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O Servidor Público e a Educação em Valores Valdeblan Siqueira AFTE Novembro de 2010

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O Servidor Público e a Educação em Valores

Valdeblan Siqueira – AFTE

Novembro de 2010

Sumário

Introdução ............................................................................................................................... 1

1 Traçando cenários ................................................................................................................ 3

1.1 Ponto: os valores e sua crise ......................................................................................... 5

1.2 A crise dos valores ...................................................................................................... 10

1.3 Contraponto: demanda de ética .................................................................................. 11

1.4 Eu e os valores - os valores e eu ................................................................................. 13

2 Ética e valores .................................................................................................................... 18

2.1 Ninguém nasce ético ................................................................................................... 18

2.2 Ética e moral ............................................................................................................... 20

2.3 Ética e valores ............................................................................................................. 21

2.4 Moral e deveres .......................................................................................................... 23

3 Virtudes ............................................................................................................................. 26

3.1 A virtude dos romanos (pública e pessoal) ................................................................. 27

3.2 Virtudes públicas ........................................................................................................ 28

3.3 Virtudes pessoais ........................................................................................................ 34

4 A educação em valores ...................................................................................................... 46

4.1 O valor dos valores ..................................................................................................... 46

4.2 A educação como valor .............................................................................................. 49

4.3 A educação em valores ............................................................................................... 51

Conclusões ............................................................................................................................ 54

Referências ........................................................................................................................... 57

1

Introdução

Objetiva-se, com este estudo, abordar a ética no serviço público, sob o

enfoque da ética dos valores. Pretende-se, também, subsidiar curso a distância de

educação em valores para servidores públicos, que promova reflexão, discussão e

eventual aplicação de valores morais às relações interpessoais, nos diferentes

âmbitos de atuação profissional.

Este trabalho está dividido em quatro partes.

A primeira traça um cenário do que se convencionou chamar de “crise dos

valores morais” e seu contraponto, a correspondente demanda ética. Um cenário

que contempla a crise ética à luz das reflexões oferecidas por alguns filósofos

morais. Focaliza, especialmente, as respostas articuladas pelas instituições públicas

e dadas à sociedade. Em sua busca pela integridade pública, elas apontam não

apenas para a dimensão punitiva, mas, também, para a prevenção. De um lado,

estimulando a transparência na gestão e, de outro, a autonomia e a

responsabilidade dos servidores públicos, mediante a educação em valores, públicos

e pessoais.

Pretende-se, com a segunda parte (Ética e valores), manejar alguns conceitos

oferecidos pela filosofia moral. Partindo do pressuposto de que ninguém nasce ético,

abre-se à perspectiva da educação em valores para servidores públicos,

identificando e desmistificando conceitos através de linguagem passível de ser

compreendida por não iniciados. A ética exige fundamentação e consistência na

argumentação, a fim de não se deixar confundir com uma pregação moralista.

Procura-se fundamentar a relação entre a ética e a moral, assumindo

2

deliberadamente a perspectiva da ética dos valores, sem desprezar as necessárias

implicações do dever, contidas nas teorias relacionadas com a moralidade pública.

A terceira parte deriva, necessariamente, da opção sinalizada no parágrafo

anterior: focalizar a ética dos valores, geralmente desprezada nas abordagens

relacionadas com a ética na administração pública, associada à obrigatoriedade no

cumprimento dos deveres constantes das normas legais. Apesar de incomum, essa

concepção não é nova. Pelo contrário, no Ocidente é a mais antiga. Aristóteles (384

a.C. – 322 a.C.), na Grécia antiga, e os romanos já o faziam. Algumas das virtudes

por eles defendidas permanecem, com a devida adequação ao nosso tempo, que

costuma privilegiar as virtudes públicas em detrimento das virtudes pessoais.

Procura-se, na quarta parte, analisar mais diretamente a educação em

valores. Começa por avaliar o valor dos valores em nossa sociedade, verificando

suas diferentes manifestações, dentre as quais o valor moral e o valor ocupado pela

própria educação. Procurou-se, então, associar esses dois conceitos, educação e

valores morais, articulando-os com o diagnóstico de crise e demanda de ética,

contido na primeira parte, a fim de oferecer, nas conclusões, uma proposição, a ser

construída e aperfeiçoada num processo dialógico e democrático de educação em

valores colocado a serviço dos agentes públicos e, indiretamente, da própria

sociedade.

3

1 Traçando cenários

As épocas de maior espírito público nem sempre são as que mais se distinguem pela virtude pessoal. É possível que boas leis introduzam a ordem e a moderação no governo, mesmo que os usos e costumes pouca humanidade ou justiça hajam incutido no caráter dos homens (HUME, 1989, p. 197).

Começar este trabalho citando o filósofo escocês David Hume (1711 – 1776)

é uma forma de refletir preliminarmente sobre o alcance e os limites do que aqui se

propõe. À semelhança de Hume e sob sua inspiração, tem-se plena convicção de

que a ausência das virtudes pessoais poderá, em muitos casos, ser compensada

pela presença do direito, cuja eficácia depende do estabelecimento de uma cultura

de valorização das normas jurídicas.

O raciocínio oferecido por Hume não é excludente. Não nega a importância

da ética e dos valores. Apenas lembra a possibilidade da suplementação da ética

pelo direito, na eventual ausência de valores éticos. Nesse caso, e no mínimo para

contribuir com o direito, é possível e necessário apostar na ética, particularmente na

formação do caráter das pessoas, como forma de combater os vícios e favorecer as

virtudes. É o mesmo Hume quem afirma essa possibilidade, da educação em

valores, quando diz:

Se um homem escolher como modelo um tipo de caráter que aprova, e adquirir um perfeito conhecimento de todos os aspectos em que seu próprio caráter diverge de seu modelo, e além disso for capaz de constantemente se vigiar a si mesmo, levando seu espírito, através de um incessante esforço, do lado dos vícios para o das virtudes, não tenho dúvida que, com o tempo, encontrará em seu caráter uma mudança para melhor (HUME, 1989, p. 164).

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Ficou conhecida como “a guilhotina de Hume” a impossibilidade teórica – no

âmbito da filosofia moral – de transformar um “ser” num “dever-ser”. Trazendo essa

afirmação para a esfera pública, é possível dizer que, do ponto de vista da ética, e

por melhor que seja uma gestão, ela poderá sempre ser melhorada. Em outras

palavras, não há como se falar num modelo de gestão pronto e acabado (ser), digno

de ser copiado em caráter definitivo (dever-ser). E, tratando-se dos agentes públicos,

nenhum cenário estará plenamente delineado contando apenas com a descrição

sociológica de seus comportamentos. Sem prescindir dessa descrição (ser), será

preciso sempre confrontá-lo com a prescrição ética (dever-ser), contida nos valores

morais.

A ânsia de responder às exigências por mais ética no serviço público, que

procedem da sociedade, tem levado inúmeros gestores ao cometimento de graves

equívocos. Um deles, o de condicionar a eficácia da governança corporativa

unicamente à observância do princípio da legalidade. “Se não temos o direito,

individualmente, de ser uns canalhas legalistas, e se o povo, coletivamente, não tem

todos os direitos, não é por razões jurídicas ou políticas; é por razões morais”

(COMTE-SPONVILLE, 2005, p. 59).

Em qualquer organização, privada ou pública, especialmente num Estado

Democrático de Direito, em face da segurança jurídica, a legalidade é fundamental.

Porém, levada ao extremo, essa opção poderia limitar e empobrecer o conjunto de

alternativas que favoreceriam a eficiência na gestão pública e a consequente

conquista da legitimidade social associadas ao cultivo da ética. No mesmo sentido,

ao tratar da imperiosidade da transparência nas organizações, James O‟Toole e

Warren Bennis advertem:

Quando falamos em “transparência”, queremos dizer muito mais do que a típica definição usada no meio empresarial – a saber, a plena divulgação de

5

informações financeiras a investidores. Embora tal honestidade obviamente seja necessária, essa interpretação estrita produz um foco pernicioso na conformidade com normas – em detrimento de considerações éticas igualmente importantes – e em necessidades de acionistas, com a desconsideração de necessidades de outros públicos. Pior, é fundada na tese caolha de que a empresa pode ser transparente para os acionistas, sem antes ser transparente para o pessoal que nela trabalha (O‟TOOLE; BENNIS, 2009, p. 42).

Como ponto de partida, pretende-se traçar um cenário que destaque alguns

pontos e contrapontos. No ponto, os valores e sua crise. No contraponto, a

constatação de que há uma demanda de ética que surpreende por sua intensidade.

E, complementando esse cenário, uma discussão sobre as diferentes formas como

as pessoas se posicionam diante do que entendem por “valor”, em geral, e por

“valores morais”, que se revelam nos atos, hábitos e costumes vividos na sociedade

e nas instituições e organizações às quais essas pessoas estão funcionalmente

vinculadas.

1.1 Ponto: os valores e sua crise

Chama-se axiologia o conjunto de teorias que, no âmbito da filosofia, ocupa-

se com o estudo dos valores. Aranha e Martins dizem que “a axiologia não se ocupa

dos seres, mas das relações que se estabelecem entre os seres e o sujeito que os

aprecia” (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 300). Mas, afinal, o que é que entendemos

por valor? Tudo aquilo que desperta nas pessoas repúdio ou interesse, impedindo-

as de ficar indiferentes. Em linguagem filosófica:

[...] uma coisa é valor e outra coisa é ser. Quando dizemos de algo que vale não dizemos nada do seu ser, mas dizemos que não é indiferente. A não-indiferença constitui esta variedade ontológica que contrapõe o valor ao ser. A não-indiferença é a essência do ser (MORENTE, 1966, p. 296).

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Comecemos por buscar entender essa afirmação no cotidiano das pessoas.

Imagine alguém que vai a uma festa de aniversário e lá não resiste aos doces e

salgados distribuídos em bandejas colocadas sobre a mesa, de forma a chamar a

atenção dos convidados, a ponto de lhes dar água na boca. As crianças,

espontâneas, revelam de imediato seu interesse, quando não avançam diretamente

sobre a mesa, chorando e esperneando caso sejam impedidas de comer. Os

adultos, por sua vez, geralmente têm um comportamento mais contido, ainda que

salivem do mesmo jeito.

Afinal, o valor saboroso está nos doces e salgados ou nas pessoas que não

resistem ao vê-los? O valor é objetivo ou subjetivo? Que tal o encontro dos dois?

Quem preparou os doces, fê-lo com o propósito de agradar o paladar dos

convidados. Assim, do preparo à disposição na mesa, há todo um interesse: o de

que as pessoas não fiquem indiferentes aos doces, a ponto de “comer com os

olhos”.

A culinária é um valor para o ser humano, que desenvolveu a arte de preparar

alimentos. Aplica-se, nessa atividade, muito de liberdade, inteligência, criatividade,

vontade, sensibilidade, etc. Ao contrário dos animais, que simplesmente atendem a

uma necessidade biológica e comem apenas quando têm fome. E você, come

apenas quando tem fome? Ou quando tem vontade? Já imaginou aquela fatia de

pizza de quatro queijos? Mas, de repente, bate a consciência de que é preciso

reduzir massas e doces, por conta da taxa de triglicerídios ou mesmo do colesterol...

e a tal da razão dá “um chega pra lá”, no puro prazer.

A comida é apenas um exemplo do muito que há, à nossa volta, e que

desperta nosso interesse. Os publicitários são excelentes conhecedores da

sensibilidade humana. Você já reparou naquela propaganda exibida na televisão e

7

que se faz acompanhar de uma voz monocórdia, falando de um carro sofisticado que

custa a bagatela de R$ 99.900,00? Num país no qual a maioria das pessoas recebe

– quando recebe – salário mínimo, não lhe parece um desrespeito?

Subliminarmente, vai-se constituindo um valor para os telespectadores que assistem

àquele comercial, desprovidos de visão crítica. A hipótese de consumir gera uma

expectativa de felicidade. E quem não gostaria de ser feliz?

Chegamos a outro ponto: o de que o valor buscado por todos e por cada um

dos seres humanos integra o ideário para a realização do que se costuma chamar

de felicidade (ARISTÓTELES, 2004, p. 30). E, quanto mais complexa a vida

humana, mais difícil o alcance e a realização dos valores buscados, especialmente o

da felicidade. Kant (1724 – 1804) deu-se conta dessa dificuldade, propondo, em seu

lugar, a busca da justiça como imperativo categórico da moralidade (KANT, 2003, p.

46-47). E Russell (1872 – 1970) o fez em linguagem mais acessível, a saber:

Em todas as relações humanas é bastante fácil garantir a felicidade de uma das partes, mas é mais difícil garantir a felicidade das duas. Um carcereiro sente-se feliz sabendo que mantém seu prisioneiro bem guardado; um chefe experimenta prazer tratando mal seus subordinados; um ditador obtém plena satisfação governando o povo com mão de ferro; e, sem dúvida, até os pais de antigamente gostavam de ensinar a virtude aos filhos com a ajuda de um porrete. No entanto, esses prazeres são unilaterais; para a outra parte a situação é menos agradável (RUSSELL, 2005, p. 168).

A antropologia dá conta da simplicidade da existência dos povos mais

primitivos, e daqueles que ainda vivem nas selvas, bastando, para serem felizes,

comida e abrigo. Os contatos com as civilizações “desenvolvidas” foram e vão

despertando outros interesses, geralmente associados às diferentes formas de

consumo. Pouco a pouco as pessoas foram-se distanciando do estado de natureza

e se aproximando mais e mais do mundo da cultura, artificialmente produzido,

8

dependendo das novas descobertas científicas e das correspondentes aplicações

tecnológicas.

As promessas de felicidade, decorrentes da vida urbana, têm empurrado as

pessoas do campo para as cidades. Muitas são aquelas que preferem viver

miseravelmente nas favelas e poder contar com oportunidades de emprego e renda

a terem que viver distantes das cidades, “fonte de toda felicidade”. E por quê?

Segundo seus defensores, porque nelas circula com maior velocidade o dinheiro,

símbolo maior da riqueza e meio de troca preferencial para a obtenção de outros

bens: carros, casas, apartamentos, lazer, cultura e esporte, entre outros.

No caso da administração pública, há um valor que deve ser considerado e

que, não necessariamente, está associado à obtenção de um benefício financeiro.

Trata-se da realização pessoal e profissional decorrente da realização de um serviço

bem feito, dentro de padrões técnicos e humanos que incluem o bom atendimento e

a correspondente satisfação dos usuários.

Ao longo de sua história, a sociedade vem-se organizando politicamente a fim

de responder à crescente complexidade dessas demandas. O serviço público

constitui uma dessas respostas. Um valor presente para os que dele se beneficiam,

sempre e quando facilita a realização de objetivos socialmente buscados: saúde,

segurança, educação. Um valor ausente quando se deixa desvirtuar daqueles

justificados objetivos.

A busca pela realização do valor “serviço público de qualidade” está na

sociedade, que o demanda. Mas poderá e deverá estar, também, nos responsáveis

políticos e nos próprios servidores. Neste último caso, tratando-se de uma iniciativa

própria, constitui, ademais de um valor, uma virtude por excelência.

9

Indaguemos juntos. Dinheiro em banco é um valor? Exercer alguma forma de

poder, político ou econômico, é um valor? Deter informação e conhecimento seria

outro valor? Conquistar status social, emprego com boa remuneração e estabilidade,

não constitui, também, o objeto do desejo de muita gente, particularmente dos mais

jovens, recém-chegados ao mercado de trabalho? Não há dúvida: o “valor” encontra

diferentes formas de manifestação, dependendo da cultura do lugar e, numa escala

um pouco menor, dos indivíduos, com suas características, suas crenças, seus

talentos, suas experiências e escolhas pessoais. Em síntese:

[...] é o homem – como ser histórico-social e com a sua atividade prática – que cria os valores e os bens nos quais se encarnam, independentemente dos quais só existem como projetos ou objetos ideais. Os valores são, pois, criações humanas, e só existem e se realizam no homem e pelo homem (VÁZQUEZ, 2005, p. 146).

Dominar uma técnica – tocar violão, por exemplo – habilita-nos a fazer coisas

que gostaríamos de fazer. No exemplo dado, a técnica não constitui um fim em si

mesma, mas proporciona as condições mínimas para desfrutar momentos de

felicidade. Pergunte-se aos seresteiros. Por mais que gostem da música, o que

buscam mesmo é conquistar o respeito, a simpatia e a admiração da pessoa amada.

Para eles, o valor por excelência não é outro, senão amar e ser amado. Fazer

amizade e ser digno dela.

O que comentamos até aqui corresponde a algumas vivências próprias do

cotidiano de um número maior de pessoas. Deve-se observar, no entanto, que há

outros valores, classificados em outras categorias: estéticos, econômicos, políticos,

sociais... Gostaríamos de destacar aqueles que são chamados de “valores morais”.

Assim, o que poderia corresponder a um valor moral? Poderia ser um conjunto de

ações e de atitudes que revelem respeito, amor, carinho, compreensão, por si

10

mesmo e pelos demais? De modo geral, sempre um ato de liberalidade do indivíduo

com seu semelhante, nunca obrigatório, mas como algo derivado de sua própria

consciência moral. Para caracterizar a vida de um ser humano como digna desse

nome, deve-se procurar identificar, em sua trajetória existencial, gestos, atitudes,

ações e comportamentos comprometidos com a realização de valores morais.

1.2 A crise dos valores

A coisa mais comum é ouvir de algumas pessoas desabafos, passíveis de

serem reunidos na expressão “crise de valores morais”. Sem querer minimizar os

efeitos desse diagnóstico, é preciso refletir sobre a transitoriedade dos valores. Eles

não são eternos, são históricos e culturais. Mudam com o tempo, porque as pessoas

mudam, na medida em que mudam seus interesses. “Os valores que orientam a

conduta dos indivíduos enquanto membros de uma determinada categoria

profissional também seguem esse mesmo tipo de relação, uma vez que não estão

descolados do «ethos» da sociedade” (PASSOS, 2004, p. 107).

É fácil identificar, na sociedade, uma tendência a emitir juízos de valor sobre o

valor e os valores dos outros. Dificilmente nos incluímos nesse “endereço”. Tal

parcialidade e limitação da moral a determinados valores, e não a outros, pode ser

considerada uma atitude moralista, mas nunca moral. Mais que isso, pode ser

considerada, também, uma atitude maniqueísta, na medida em que qualifica de

moral a própria posição e de imoral, ou equivocada, a posição de alguns ou dos

demais.

Esclarecida a possibilidade de precipitação e de parcialidade na emissão de

juízos de valor a propósito do comportamento de uns ou de outros, deve-se observar

11

que, em alguns casos, racionalmente justificados, tais juízos poderão ser

procedentes.

Considere-se o seguinte elenco de valores: cortesia, respeito, boa-fé,

gratidão, honestidade, integridade, generosidade, solidariedade, justiça e

fraternidade. Pouca gente declararia publicamente sua discordância quanto à sua

validade e importância. No entanto, e na prática, é possível verificar o descaso social

com relação à sua aplicação. Tomemos como exemplo o comportamento das

pessoas no trânsito, o maior e mais sistemático exemplo de desrespeito à vida e às

pessoas. Portanto, da chamada “crise de valores”. O discurso ético de muitos nem

sempre coincidirá com sua atitude como condutores. Seu veículo termina sendo uma

arma. Adeus à cortesia, com relação aos demais motoristas, e ao respeito, com

relação aos pedestres, que dificilmente conseguem atravessar a rua, sequer na faixa

que lhes é reservada.

1.3 Contraponto: demanda de ética

A frequência com que se reclama da ausência de ética, ou – o que dá no

mesmo – da presença de uma sistemática crise dos valores morais, passa, na

verdade, outra mensagem: a de que há, ainda, um número significativo de pessoas

que traz dentro de si uma profunda indignação moral diante das injustiças, como

prova de sua sensibilidade ética e moral.

Enquanto a sociedade for capaz de se indignar diante das sucessivas

injustiças com as quais se depara, não estará totalmente desorientada do ponto de

vista de sua moralidade. “As manifestações de inconformidade, de insatisfação, de

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não-aceitação explícita, de impossibilidade de participar, tudo isso são mudanças”

(SANTOS, p. 168).

Os servidores públicos constituem um alvo preferencial daquelas críticas em

decorrência de sua ação ou de sua omissão. Na condição de agentes públicos,

poucos são aqueles que se mobilizam para atender às demandas, adotando

procedimentos que demonstrem, efetivamente, a valorização da ética no serviço

público.

É conhecida a frase de Stuart Mill (1806 – 1873) segundo a qual “mais vale

ser um Sócrates insatisfeito que um porco satisfeito” (apud COMTE-SPONVILLE,

2002, p. 19). Deve-se contextualizar essa afirmação, a fim de que sua leitura não

leve a uma interpretação radical, que discrimine toda e qualquer forma de prazer.

Obviamente que a satisfação humana não se restringe aos prazeres físicos e

ao atendimento das necessidades fisiológicas. Elas têm sua importância. Deve-se,

contudo, dar ao prazer uma conotação mais ampla, que contemple a alegria,

especialmente no trabalho. Lamentavelmente, “o prazer, em todas as suas

acepções, inclusive a sexual, tem sido sistematicamente expulso das relações de

trabalho, por acharem que ele constitui-se em um ponto de fuga da energia que

deveria ser canalizada para a produtividade” (PASSOS, 2004, p. 149).

Em todo caso, quem age deixando-se satisfazer apenas num nível superficial,

do puro prazer, perde muito de sua humanidade e revela uma característica própria

de sua animalidade, ainda que defendida pelo epicurismo, no sentido de agir sempre

buscando o prazer e fugindo da dor.

O ser humano resgata sua humanidade na medida em que estabelece um

nível maior de exigência para seu próprio comportamento e para o daqueles com os

quais convive. Tratando-se de seu próprio comportamento, pode, sim, fazer

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exigências morais, impondo-se determinadas atitudes. Extrapolando-as para outros

indivíduos, deixará de ser uma exigência meramente moral e incidirá naquilo que se

costuma chamar de moralismo ou moralina, como deturpação da moral. “A moralina

sempre transforma o erro do outro em falta moral. A partir daí a auto-ética impele-

nos a evitar a condenação sumária do outro em função de uma falha ou de um erro

em sua vida” (MORIN, 2005, p. 98).

E, quando direcionada ao comportamento próprio e dos demais, no que se

refere ao senso de justiça, a exigência extrapolará a dimensão da ética, tocando a

esfera da política. Aí, então, dar-se-á outro nível de reflexão. Nesse sentido, e

conforme Pablo Zúñiga1:

[...] o fortalecimento da cultura democrática requer um apoio permanente à educação – formal e não formal – dos indivíduos em valores e práticas como a tolerância, a liberdade, a justiça, o respeito, a negociação e a solidariedade. [...] É de extrema importância estimular e promover o desenvolvimento de tais valores e práticas para despertar e alimentar o interesse, compromisso e espírito participativo das novas gerações de líderes dos diversos setores da sociedade, governantes, dirigentes políticos e funcionários públicos nos processos democráticos.

1.4 Eu e os valores - os valores e eu

A composição de Tim Maia (1942 – 1998), Eu e Você, Você e Eu, é

interpretada com a liberdade poética e musical de quem dispõe desses pronomes na

ordem que lhe apetece. Um emprego que desperta a curiosidade quanto ao uso da

língua em diferentes idiomas. Manda a boa educação, e a elegância no falar, dizer

você e eu, e não, eu e você. Nem que seja no formalismo linguístico, o pronome

1 ZÚÑIGA, Pablo (especialista principal e coordenador da Unidade para a Promoção da Democracia - OEA -

Prolidem): Democracia e gerência política: formação de jovens líderes. In: Portal Educacional das Américas.

Disponível em: <http://www.educoas.org/portal/pt/>. Acesso em: 2 jun. 09.

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pessoal “eu” deverá aparecer em último lugar, cedendo a vez ao outro, que viria

sempre em primeiro.

Culturalmente, no Brasil, não somos tão rigorosos quanto ao uso dessa regra

que, em todo caso, não pode ser transformada num preconceito. Caso contrário,

sequer se abriria um exemplar da obra prima Eu e Tu, do filósofo do diálogo, Martin

Buber (1878 – 1965). Apesar do título, trata-se de uma obra que é pura ética,

abordando a questão da responsabilidade que nasce da reciprocidade na relação

que o homem estabelece com a natureza, com o semelhante e com a divindade. Diz

ele que “relação é reciprocidade. Meu Tu atua sobre mim assim como eu atuo sobre

ele. Nossos alunos nos formam, nossas obras nos edificam [...]. Nós vivemos no

fluxo torrencial da reciprocidade universal, irremediavelmente encerrados nela”

(BUBER, 2003, p. 62).

A ética (cristã) não sinaliza para a prioridade do outro em relação ao eu, mas

para a igualdade entre ambos. Os evangelhos sinóticos colocam na boca de Jesus

uma frase enunciada como o maior dos mandamentos: amar a Deus sobre todas as

coisas e ao próximo como a si mesmo. O outro é colocado em situação de igualdade

com o eu. Uma máxima assimilada por diferentes filósofos morais, não como

negação de si mesmo, mas como afirmação do outro. É o que se depreende do

princípio da alteridade desenvolvido pelo filósofo lituano Emmanuel Lévinas (1906 –

1995): o outro como condição para a descoberta de si mesmo. E o ser para o outro,

como momento ético de respeito à alteridade. Sem dúvida, uma forma de abrir-se ao

mundo dos valores. Em suas palavras:

Positivamente, diremos que, desde que o outro me olha, sou por ele responsável, sem mesmo ter que assumir responsabilidades a seu respeito; a sua responsabilidade incumbe-me. [...] Isto quer dizer que sou responsável pela sua própria responsabilidade (LÉVINAS, 1982, p. 88).

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Em que essa abordagem, aparentemente metafísica, do Eu e do Tu pode

contribuir no combate à corrupção? Contribui, na medida em que promove a

integridade pública, a partir da mudança de um paradigma. Veja-se, por exemplo,

uma possível definição de corrupção na administração pública:

A corrupção na administração pública consiste na ação produzida pelo servidor que, de forma passiva (suborno) ou ativa (extorsão), desvia-se do conjunto das normas administrativas que definem seus papéis, responsabilidades públicas e atribuições institucionais, em busca da satisfação de interesses privados, próprios ou de terceiros, em detrimento dos interesses gerais que deveria servir no interesse do cargo público que lhe foi confiado (VIANA, 2006, p. 83).

Observe-se, a partir dessa definição, que a corrupção está na deturpação de

um sentido: do Tu para o Eu. E o seu combate ou prevenção consiste no esforço

realizado para inverter essa tendência, centrada numa visão egocêntrica do mundo:

as coisas e as pessoas usadas para atender aos meus interesses.

Em linhas gerais, ao se falar em ética nas organizações privadas, o que se

propõe é uma mudança de foco, que deixa de ser prioritariamente o lucro das

empresas e passa a ser a qualidade do serviço prestado ao cliente (movimento do

Eu para o Tu). O lucro será uma consequência.

Já nas organizações públicas, trata-se de resgatar o sentido da expressão

“servidor público”. O que significa dizer que o foco passa a ser o cidadão (movimento

do Eu para o Tu), ganhando o servidor público em termos de legitimidade social. A

remuneração digna será uma consequência.

Há que se falar, aqui, da dimensão tanto pessoal quanto social da ética.

Nenhum ser humano, isoladamente, é capaz de gerar valores. Eles são socialmente

construídos.

Ao nascer, toda pessoa encontra uma circunstância histórica previamente

estabelecida. Será esse ambiente cultural o responsável pela produção dos padrões

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de comportamento e, consequentemente, pela definição do que é certo e do que é

errado, moldando, assim, sua identidade moral. Obviamente, haverá sempre um

espaço de liberdade que permitirá a manifestação, pelo sujeito moral, de sua

aceitação ou repulsa (fundamentada ou não) daqueles valores sociais. A mecânica

adequação a esses valores poderá causar a impressão de coesão social.

Na Idade Média, ser ético consistia exatamente nessa mecânica

conformidade com a lei, imposta pela Igreja Católica. Desde o iluminismo, porém,

particularmente a partir das contribuições de Kant, tem-se avançado sensivelmente

para a adoção da autonomia como pressuposto fundamental para toda conduta

ética. Sua obra foi considerada um marco divisor de águas. Há uma ética antes e

outra depois de Kant. Com ele, deu-se a chamada revolução copernicana da ética.

Tal como Copérnico dissera não ser o Sol que gira em torno da Terra, mas ser esta que gira em torno daquele, também Kant afirma que o conhecimento não reflete o objeto exterior, mas é o próprio espírito que constrói o objeto do seu saber. Nesse sentido, Kant realizou uma revolução copernicana no campo da teoria do conhecimento (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 136).

A filosofia moral contemporânea, apoiada nas contribuições tanto de Kant

quanto de Aristóteles, acena para a consciência, a liberdade, a responsabilidade e a

vontade como fatores constituintes da conduta ética. Ora, essas características são

eminentemente pessoais. Quem tem consciência é o indivíduo. Quem exercita a

liberdade é o indivíduo, que é o sujeito detentor de uma vontade capaz de assumir a

responsabilidade por suas próprias ações.

O que se deve observar é que os valores socialmente constituídos encontram

na pessoa a força para sua realização, denominada de virtude. Etimologicamente, a

expressão virtude é originária do latim, virtus, que quer dizer força, e encontra na

expressão grega, areté, seu correlato, significando, excelência. A busca da

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excelência, como realização do melhor de si, é uma forma de materializar, no plano

individual, o conjunto dos valores morais socialmente produzidos.

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2 Ética e valores

Como área do conhecimento, a ética constitui, junto com a política, um

capítulo à parte nos livros de filosofia, associada ao mundo da prática. Ela trata de

um mundo simbólico, cultural, que não guarda qualquer relação com as coisas como

elas são, mas, sim, com a forma como deveriam ser, a fim de viabilizar a realização

de alguns valores.

Em contraposição ao mundo da natureza (physis), e de acordo com

Aristóteles, há uma segunda natureza que dependerá da liberdade do homem para

projetar e realizar um determinado fim: a busca da felicidade, o maior de todos os

valores. Na esfera dessa ação, e segundo sua liberdade, o homem fará escolhas,

tomará decisões e construirá sua história.

Para a ética, os fins buscados não justificarão os meios utilizados. Fins éticos

exigirão a adoção de meios também éticos, isto é, justos, válidos, coerentes com os

valores que pretendem alcançar. Resta, então, identificar os valores, pessoais e

institucionais. Nas palavras de Peter Drucker (1909 – 2005):

As organizações precisam ter valores. E as pessoas também. Para ser eficaz em uma organização, os valores de um indivíduo devem ser compatíveis com os da organização. Eles não precisam ser os mesmos. Mas devem ser bem próximos. Caso contrário, a pessoa ficará frustrada, além de não produzir resultados (DRUCKER, p. 97).

2.1 Ninguém nasce ético

Nenhum ser humano está programado para fazer o bem ou o mal. O

ambiente em que vive e a educação – tanto formal quanto informal – que recebe são

19

elementos que influenciam e condicionam a formação do seu caráter, mas não serão

determinantes. Será sempre possível identificar casos que comprovam essa tese.

Inúmeras pessoas que vivem em situações de extrema pobreza e marginalidade não

necessariamente terão que desenvolver um comportamento violento em seus

relacionamentos.

Porém não se deve esperar ou exigir tanto da moralidade espontânea,

baseando-se apenas no caráter das pessoas, especialmente daquelas que integram

o serviço público. Pode-se contribuir para a eficácia do princípio da moralidade por

meio de uma sistemática prática de controle social exercido sobre os atos praticados

pelos agentes públicos, incluindo aqueles considerados como “atos discricionários”.

É certo que a lei não consegue prever toda e qualquer situação enfrentada pelo agente público no exercício de suas funções. Existe, de fato, uma esfera dentro da qual ele tem liberdade para agir, segundo critérios de conveniência e oportunidade, esfera essa que se denomina discricionariedade administrativa. Note-se que não se confundem discricionariedade e arbitrariedade. Há arbitrariedade quando são contrariados ou extrapolados os limites da lei. Há discricionariedade quando se age livremente, dentro dos limites da lei e dos princípios que regem a administração pública. De qualquer maneira, todos os atos praticados pelos agentes públicos devem ser motivados, até mesmo os discricionários, que ficam, então, vinculados à sua motivação (FIGUEIREDO;GARCIA, 2002, p. 54).

Dificilmente uma grande mudança para melhor, nas pessoas e na sociedade,

poderá prescindir da educação. É possível e necessário que se adotem políticas

públicas que favoreçam a universalização do ensino. Um ensino que desmobilize

aquela inaceitável visão mítica e fatalista que corresponde à “aceitação da corrupção

como estigma da classe política, da cultura nacional ou do comportamento do

homem em sociedade” (SPECK, 2002, p. 20).

As políticas públicas deverão viabilizar, portanto, as oportunidades de

crescimento pessoal, como dever do Estado e direito de cidadania. O papel do

Estado deverá ser o de prover as condições mínimas para a realização da justiça e

20

da transformação social. Um papel que não elimina o compromisso das pessoas –

incluindo os servidores públicos – de fazer a sua parte, adotando atitudes e

comportamentos virtuosos que favoreçam a harmonização da vida em sociedade.

2.2 Ética e moral

A simplificação de conceitos pode produzir alguns equívocos. Sem querer

esgotar as semelhanças e as diferenças entre os conceitos de ética e de moral,

pretende-se, aqui, oferecer alguns elementos que favoreçam sua compreensão

mínima. É natural que as pessoas confundam “ética” como sinônimo de “moral”. Isso

porque, na origem, as expressões ética e moral significavam quase a mesma coisa.

Tanto moral – do latim, mos, moris – quanto ética – do grego, éthos – queriam dizer

hábitos e costumes.

Ocorre que a língua grega, idioma mais rico em matizes que o latim e que o

português, oferece também outra grafia – êthos – significando caráter. Há uma

nuance histórica que deve ser considerada na diferenciação de uma expressão da

outra. Trata-se da influência da filosofia analítica em princípios do século passado,

induzindo a compreensão da “ética” como sinônimo de “filosofia moral”.

Essa concepção vigora até os dias de hoje, sobretudo nos meios acadêmicos.

Ética seria o mesmo que filosofia moral, significando a parte da filosofia que estuda o

comportamento humano, do ponto de vista do bem e do mal (moral). E a moral, por

sua vez, significando o conjunto de normas, princípios e valores que norteiam o

comportamento das pessoas e da comunidade ou sociedade na qual elas vivem.

Segundo o filósofo espanhol, José Luís Lopez Aranguren (1909 – 1996), a ética

21

corresponde à “moral pensada”. Enquanto a moral propriamente dita corresponde à

“moral vivida”. Na mesma linha, diz Cortella:

A ética é o conjunto dos seus princípios e valores. Portanto, é muito mais do campo teórico. A moral é a prática, é o exercício das suas condutas. Eu tenho uma conduta no dia-a-dia, chama-se conduta moral. A ética são os princípios que orientam a minha conduta. Do ponto de vista teórico, ética e moral não são a mesma coisa. Estão conexas. Eu posso dizer que algo é imoral, mas não posso dizer que é aético. É imoral quando colide com determinados princípios que uma sociedade tem. (CORTELLA, 2003, p. 110).

2.3 Ética e valores

A ética apresenta pelo menos duas grandes divisões. Uma, voltada para os

fins que o ser humano busca alcançar com suas ações. Outra, que focaliza os meios

utilizados para alcançar os mesmos fins. No primeiro caso, tem-se a teleologia (do

grego, télos = fim). E, no segundo, a deontologia (do grego, deontos = dever-ser).

Os valores integram o conjunto dos fins buscados por qualquer pessoa em sua ânsia

de ser feliz, conforme já observado anteriormente (dinheiro, poder, prazer, etc.).

Haverá diferenças significativas entre esses valores, dependendo da singularidade

da história tanto pessoal quanto social de cada indivíduo, contribuindo para a defesa

de certo relativismo moral.

Em todo caso, e segundo o prêmio Nobel de Economia, o indiano Amartya

Sen, deve-se observar que:

O comportamento, em última análise, também é uma questão social, e pensar em termos do que “nós” devemos fazer ou qual deve ser “nossa” estratégia pode refletir um senso de identidade que encerra o reconhecimento dos objetivos de outras pessoas e das interdependências mútuas existentes. Embora os objetivos de outras pessoas possam não estar incorporados aos nossos próprios, o reconhecimento da interdependência pode sugerir que certas regras de comportamento sejam seguidas, regras essas que não necessariamente possuem um valor intrínseco, mas são de enorme importância instrumental na promoção dos respectivos objetivos dos membros desse grupo. (SEN, 1999, p. 101).

22

Essa interdependência não elimina, senão reforça, o valor da pessoa e de

seus respectivos valores, que deveriam ser respeitados por todos os demais, desde

que não perdessem a sintonia social apontada por aquele autor. A tolerância, por

exemplo, seria um “valor” empregado na defesa do respeito à diversidade de

valores, exceto, evidentemente, com relação ao valor da “intolerância”.

No entanto, é possível identificar alguns momentos na história da humanidade

que despertaram uma convergência em torno de alguns valores “inegociáveis”. É o

caso dos valores contidos na declaração dos direitos humanos, de dezembro de

1948, que nasceram como expressão de indignação ante as horrendas experiências

produzidas pelo nazismo. Nesse caso é perfeitamente admissível a intolerância em

face da intolerância.

Diante de situações como essa, pode-se dizer que nem todos os valores são

relativos e que é possível comungar, universalmente, com aqueles valores que

tenham como objetivo a preservação da dignidade humana. Eles serão

simultaneamente éticos e políticos. E, ao dizer políticos, leia-se, democráticos. Para

Savater:

O ideal básico que a educação atual deve conservar e promover é a universalidade democrática. [...] Universalidade na educação? Significa colocar o feito humano – linguístico, racional, artístico... – acima de seus modismos; e, sobretudo, não excluir ninguém a priori do processo educacional que o potencializa e o desenvolve. [...] Durante séculos, o ensino serviu para discriminar grupos humanos uns dos outros: os homens das mulheres, os abastados dos necessitados, os citadinos dos camponeses, os clérigos dos guerreiros, os burgueses dos operários, os “civilizados” dos “selvagens”, os “espertos” dos “bobos”, as castas superiores das e contra as inferiores. Universalizar a educação consiste em acabar com essas manobras discriminatórias. (SAVATER, 2005, p. 149).

23

2.4 Moral e deveres

Alguns problemas que cercam as pessoas são de tal grandeza que

extrapolam o poder de resolução estritamente pessoal. Fala-se, uma vez mais, na

dimensão social da ética. Em todo caso, não se deve esquecer que a ética é, antes

de tudo, pessoal. É o sujeito moral, em sua individualidade e no exercício de sua

liberdade, quem tem que tomar decisões e fazer escolhas naquilo que lhe afeta

diretamente. Os chamados dilemas morais: Aceitar ou não um emprego ilegal? Dar

ou receber uma propina? Cumprir ou não uma norma?

A consciência moral nascida das escolhas decorrentes dessas questões

produz, simultaneamente, uma obrigatoriedade moral. Ao saber ou descobrir o que é

certo e o que é errado, o indivíduo gera, para si mesmo, um dever de cumprimento

de determinados princípios, normas ou valores socialmente produzidos. Vê-se,

assim, despertar, no sujeito moral, o compromisso com a adoção de atitudes e de

comportamentos coerentes com suas convicções morais. O eventual desprezo

dessa “norma” gera na pessoa um dilema, antes, e um conflito, depois, na própria

consciência. Mas isso não se dá de forma descontextualizada. Segundo Vázquez:

A obrigatoriedade moral exige, em maior ou menor grau, uma adesão íntima, voluntária e livre dos indivíduos às normas que regulam as suas relações numa determinada comunidade. Por isto, o conceito de obrigatoriedade moral só tem sentido no contexto da vida social, no seio de uma comunidade. (VÁZQUEZ, 2005, p. 205).

Será que a ética dependerá apenas da boa vontade, do interesse e da escala

de valores de cada um? No caso do servidor público, de viver devotado apenas e

tão somente ao conjunto de suas obrigações? Evidentemente que não. Não vivemos

numa ilha deserta, qual Robinson Crusoé. E mesmo se assim o fosse, dada a

24

interligação das coisas, sofreríamos, a distância, muitos dos efeitos do que se passa

nos lugares mais longínquos. Como a mudança climática, por exemplo.

Ainda que seja válido e importante que cada pessoa tenha e busque alcançar

seus propósitos na vida, não podemos perder de vista que vivemos e dependemos

todos da mesma natureza. Hoje, somos seis bilhões de seres humanos. Caso não

haja um entendimento mínimo em torno de determinados pontos que tornem essa

convivência mais harmoniosa possível, a vida na terra será insustentável. Segundo o

geógrafo baiano Milton Santos:

[...] a perversidade sistêmica que está na raiz dessa evolução negativa da humanidade tem relação com a adesão desenfreada aos comportamentos competitivos que atualmente caracterizam as ações hegemônicas. Todas essas mazelas são direta ou indiretamente imputáveis ao presente processo de globalização (SANTOS, p. 20).

Veja-se, a propósito, o que há bem pouco tempo consistia numa reflexão

exclusiva de alguns ecologistas, na defesa da preservação do ambiente. Muita gente

reagia virando a cabeça, simplesmente ignorando qualquer discurso dessa ordem,

considerando-o fora de propósito. Hoje, ao contrário, há maior aceitação dessas

cobranças que deixam de ser estapafúrdias e passam a integrar um conjunto de

exigências morais e políticas aplicadas, até mesmo, ao mundo dos negócios

(AHNER, 2009, p. 133). Obviamente que essas coisas não podem ficar à mercê da

boa vontade das pessoas. Sem garantias. Em todo caso, “eu diria que não há outras

garantias além da nossa vontade: é aí que intervêm a virtude, no caso dos

indivíduos, e a democracia, no caso dos povos” (COMTE-SPONVILLE, 2008, p. 73).

Dada a magnitude dos desafios éticos colocados para a humanidade em

nosso tempo, faz-se necessária a imposição de alguns deveres mínimos e comuns,

a serem negociados politicamente entre as diferentes nações do mundo, por meio

25

de organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e

outros.

Esses acordos e decisões internacionais exigirão, dentro de cada país, uma

decisão política e uma conscientização da sociedade organizada, quanto à

importância de um trabalho voltado para a educação em valores ambientais, que

passarão a ter caráter ético e de cidadania. Seu cumprimento tangenciará a esfera

dos deveres morais.

No plano internacional, não cabe, porém, pelo menos por enquanto, nenhuma

imposição de deveres políticos que obriguem o cumprimento dessas determinações

por intermédio de sanções penais. Medidas de força, quando acontecem,

geralmente ficam restritas a embargos econômicos.

No plano interno, não se pode contar com um policial ou um auditor ao lado

de cada cidadão para verificar o cumprimento ou não de seus deveres cívicos. Para

avançar em termos de civilidade, é preciso trabalhar a cultura da sociedade, a fim de

que seus membros internalizem em suas respectivas consciências o conjunto de

suas obrigações cidadãs, preparando-se para os complexos efeitos do fenômeno

global da multiculturalidade (VALCÁRCEL, 2002, p. 23). Trata-se, aqui, do exercício

da autonomia, como resultado do amadurecimento cultural, no sentido de que serão

os indivíduos aqueles que imporão a si mesmos algumas obrigações (autonomia),

que só depois se materializarão em diferentes formas de respostas a determinações

políticas, externas à sua vontade (heteronomia). Para Kant:

A autonomia da vontade é a constituição da vontade, graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é, portanto, não escolher senão de modo a que as máximas da escolha no próprio querer sejam simultaneamente incluídas como lei universal (KANT, 2003, p. 70).

26

3 Virtudes

Se observarmos o dicionário Houaiss em busca da etimologia da palavra

virtude, encontraremos que vem do latim, vírtus, útis, significando “'força corpórea;

ânimo, valor; bravura, coragem; força de alma, energia; boas qualidades morais”.

Portanto, uma força, uma vitalidade, que pode estar em algo ou em alguém.

Assim, e para o que aqui nos interessa, ter uma virtude significa educar ou

reeducar os próprios sentimentos, a fim de desenvolver, interiormente, uma força

espiritual para alcançar o melhor de si mesmo na realização de um projeto, no

desempenho de uma função pública ou privada ou de qualquer outra atividade. E, se

quisermos adjetivar essa virtude, chamando-a de virtude moral, precisaremos ter em

conta a educação do caráter, conformando – conscientemente – seu próprio

comportamento a um padrão preestabelecido.

Em alguns casos, tal adequação dar-se-á de forma inata. Mas, na maioria das

situações, derivará de um processo educativo que nos permitirá desenvolver uma

atividade visando a excelência, dando o melhor de nós mesmos nessa busca. Trata-

se de uma mudança de foco que representa uma valorização das pessoas e um

crédito em seus valores, alcançando inúmeras organizações. Nesse sentido:

[...] a mudança na direção de tratar todos os colaboradores como indivíduos maduros, cada um com seu próprio critério de sucesso e com sua necessidade de sentir-se realizado, pode ser uma das inovações mais espetaculares a serem implementadas em qualquer organização, gerando aumentos surpreendentes nos recursos mentais e emocionais comprometidos com os objetivos corporativos e com o bem-estar geral (DOLAN;GARCÍA, 2006, p. 120).

27

3.1 A virtude dos romanos (pública e pessoal)

Não há nenhuma novidade no esforço dos filósofos morais contemporâneos e

também neste, nosso, de dedicar tempo à busca da compreensão do que sejam

virtudes públicas e pessoais. Os Romanos já o faziam. Para eles, a força política da

nação dependia da qualidade moral de seus cidadãos. No elenco das virtudes

pessoais listavam2: autoridade espiritual, humor, clemência, dignidade, tenacidade,

frugalidade, gravidade, respeito, humanidade, trabalho, submissão (compreendida

como respeito pela ordem política e religiosa), prudência, saúde, severidade e

verdade.

Já entre as virtudes públicas que deveriam ser buscadas por toda a

sociedade, destacavam: abundância, equidade, boa sorte, clemência, concórdia,

felicidade, confiança, sorte, espírito romano, alegria, justiça, felicidade, liberalidade,

liberdade, nobreza, riqueza, paciência, paz, piedade, providência, modéstia, saúde,

segurança, esperança, fertilidade, e coragem.

Entre os romanos, na Antiguidade, e os filósofos morais contemporâneos, há

que se falar de quem, a partir de seus estudos sociológicos na Alemanha do início

do século passado, introduziu a discussão da ética que deve reger o comportamento

dos servidores públicos. Trata-se de Max Weber (1864 – 1920), que ponderou sobre

as teorias que ainda hoje norteiam essa discussão, contidas em duas teses

fundamentais: a ética da convicção e a ética da responsabilidade.

Sua advertência previne contra o risco de querer trazer, para a esfera pública,

uma concepção ética que só se aplicaria adequadamente à esfera privada. Em sua

compreensão, a ética que deve reger a ação do servidor não poderá depender

2 Fonte consultada: http://www.novaroma.org/via_romana/virtues.html.pt

28

apenas de suas convicções, mas do que decorre da natureza de sua atribuição.

Para ele:

[...] de forma cristalina, impõe-se que nos demos conta do seguinte fato: qualquer atividade orientada segundo a ética pode ser subordinada a duas máximas inteiramente diferentes e irredutivelmente opostas. A orientação pode ser segundo a ética da responsabilidade ou segundo a ética da convicção. Não quer dizer isso que a ética da convicção equivalha a ausência de responsabilidade e a ética da responsabilidade, a ausência de convicção. Não é nada disso, evidentemente. Sem embargo, oposição profunda há entre a atitude de quem se resigna às máximas da ética da convicção – diríamos, em linguagem religiosa, “o cristão cumpre seu dever e, quanto aos resultados da ação, confia em Deus” – e a atitude de quem se orienta pela ética da responsabilidade, que diz: “Devemos responder pelas previsíveis consequências de nossos atos” (WEBER, 2005, p. 114).

A despeito de sua advertência, deve-se considerar o contexto histórico no

qual se vive atualmente, de revalorização do elemento humano nas organizações,

sejam elas públicas ou privadas, devolvendo-lhe a importância tanto da convicção

moral quanto da responsabilidade política. E articular aquelas teses como sugeriu a

filósofa moral espanhola Adela Cortina, que defende a ética da responsabilidade

convencida (CORTINA, 1997, p. 273).

Com base nessa mesma convicção é que se defende, aqui, a necessidade de

dar um salto com relação à teoria weberiana, sem desprezar seus cuidados, e

sinalizar para a importância da valorização das virtudes públicas e pessoais.

3.2 Virtudes públicas

A catedrática de Ética da Universidade Autônoma de Barcelona, na Espanha,

Victoria Camps, publicou um livro intitulado Virtudes públicas, na qual procurou

associar suas experiências como política (ex-senadora) e professora de filosofia

moral, elencando e refletindo, apropriadamente, sobre um conjunto de virtudes que,

29

no seu modo de ver, reúnem as condições necessárias para o exercício de uma

atividade pública calcada na ética. São elas: a solidariedade, a responsabilidade, a

tolerância, o profissionalismo e a boa educação. Sem nenhuma pretensão de

reproduzir o conteúdo apresentado por essa autora, é possível explorar o elenco de

virtudes por ela sugeridas, adaptando-as à nossa realidade.

Solidariedade

A palavra solidariedade traz a ideia de integrar um todo que seja maior que as

suas respectivas partes. Sentir-se parte de um todo, ainda que não haja nenhuma

ligação direta e imediata com ele. Um processo que se dá como resultado de uma

decisão livre e pessoal, mas também como um valor social. A solidariedade se

contrapõe à indiferença. O que acontece com o outro, independentemente de sua

vontade, interfere no meu sentimento, modificando minhas atitudes. O que é

possível de se verificar a partir de uma:

educação moral que desenvolva sentimentos propícios. A solidariedade transformará em direitos tudo o que a caridade outorga como favores, e muito mais que ela não pode outorgar; mas também imporá a todos a aceitação dos deveres indispensáveis para que desapareça o ódio entre os homens, preparando o surgimento de novos equilíbrios sociais, incompatíveis com a violência e a injustiça (INGENIEROS, 2004, p. 50).

Considere a notícia relacionada com o terremoto ocorrido no início de abril de

2009, na Itália, que provocou a morte de aproximadamente 150 pessoas. Ainda que

se viva a milhares de quilômetros de distância, tem-se consciência do destino

comum e interdependente.

A solidariedade que daí resulta considera pelo menos três momentos. O

primeiro, de sensibilização com o sofrimento dos semelhantes. O segundo, de sentir-

se parte de um todo, que nos faz compartilhar um destino comum. E o terceiro, de

30

mobilização em função dessa sensibilidade e desse sentimento. Este último nível

extrapola a mera consciência das pessoas, a ponto de deixá-las abertas a “consolar,

apoiar, auxiliar, defender ou acompanhar alguém em alguma contingência”3,

mobilizando-as para uma ação mais efetiva. Por exemplo: recolhendo e enviando

donativos para ajudar as vítimas daquela tragédia.

Mas não é preciso ir tão longe para viver a solidariedade. Como ser solidário

no âmbito do serviço público? A partir da vivência de pequenas atitudes, que dão

prova dessa virtude. Pense, por exemplo, naquele dia em que, embora já houvesse

concluído sua tarefa, o servidor se dispôs a ajudar um colega que ainda não havia

concluído a sua, não por preguiça, mas pelo volume de trabalho que deveria

executar. Essa é uma forma simples de manifestação da solidariedade. E, a

propósito da preguiça, veja-se o que disse o filósofo Mário Sérgio Cortella:

A preguiça é muito diferente do ócio. O líder não pode ser preguiçoso, porque a preguiça gera um estado de letargia, faz com que se adie o que precisa ser feito e perca o senso de oportunidade, impede que se reconheça a ideia de urgência quando esta se impõe. A preguiça, que constitui na verdade um hábito, deforma a personalidade. (CORTELLA e MUSSAK, 2005, p. 137).

Responsabilidade

Etimologicamente, “responsabilidade” significa a habilidade de dar respostas.

Ou seja, aquele que, de sã consciência, “tem condições morais e/ou materiais de

assumir compromisso”4, agindo em consonância com essas condições. Uma

habilidade desenvolvida por cada um e que termina integrando o seu caráter

moralmente responsável, ampliando o espectro desse alcance com o presente e o

com o futuro que lhe cabe viver. Uma sensibilidade que começa a bater às portas

3 Cf. Dicionário Houaiss On-line, verbete 'solidário'.

4 Cf. Dicionário Houaiss On-line, verbete 'responsabilidade'.

31

dos que têm sobre seus ombros a responsabilidade de formar administradores,

públicos e privados. Assim:

A filosofia moral contemporânea insiste em que somos responsáveis, sobretudo, perante a humanidade. A presente e a futura. Ser responsável hoje é, em grande medida, ter sido feito refém dos que estão por vir, preocupar-nos com os que ainda não nasceram, olharmos mais adiante, para o mundo que estamos construindo a cada dia e do qual não participaremos (THIRY-CHERQUES, 2008, p. 192).

A responsabilidade é uma virtude de fácil verificação nas atitudes positivas de

prestação de contas dos próprios atos e das próprias ações diante de quem quer

que seja. No caso da responsabilidade profissional dos servidores públicos,

corresponde ao desenvolvimento da habilidade de prestar contas das próprias

ações, diretamente aos superiores hierárquicos e, indiretamente, aos colegas e à

própria sociedade.

Tolerância

Trata-se de uma virtude pública própria das democracias. Isso porque elas

convivem com a enorme dificuldade de conciliar o valor liberdade, que tanto pregam,

com a explosão demográfica, potencializada pela diversidade de valores culturais

constantes do processo migratório das sociedades.

Para tornar possível a convivência democrática nessa circunstância, de

diversidade cultural, a imposição das normas legais é insuficiente. É aí que entram

as normas e os valores morais, especialmente a tolerância, como fator de regulação

espontânea das manifestações culturais instauradas nas relações sociais,

especialmente nas organizações. “As organizações são instrumentos para se

alcançar objetivos. A tolerância em relação a elas está no quanto concordamos com

32

os meios de que fazem uso e com os seus objetivos” (THIRY-CHERQUES, 2008, p.

223).

A tolerância, como virtude introjetada tanto pessoal quanto socialmente, torna

possível a convivência entre as pessoas, estimulando o respeito às diferenças de

credo, de convicções ideológicas e políticas, etc. Não de forma mecânica, mas como

resultado da educação dos sentimentos, gerando, nas pessoas, uma “tendência a

admitir, nos outros, maneiras de pensar, de agir e de sentir diferentes ou mesmo

diametralmente opostas às nossas”.5

Profissionalismo

A virtude do profissionalismo está vinculada à maneira como a sociedade

entende que deve ser o procedimento daqueles que desempenham uma

determinada profissão. Espera-se que atuem não só com ciência, mas também com

plena consciência do que fazem. Além de competentes, que sejam também

responsáveis, íntegros e humanos. Um processo nada fácil. De acordo com Sennett:

Constatamos que o impulso de fazer um bom trabalho não é nada simples. [...] As instituições precisam socializar esse trabalhador; ele precisa saber lidar com a competitividade cega. O trabalhador terá de aprender a gerir a obsessão no próprio processo do trabalho, questionando-a e moderando-a. O impulso para a realização do bom trabalho pode conferir às pessoas um sentimento de vocação; as organizações mal constituídas ignoram o desejo de seus integrantes de que a vida faça sentido, enquanto as bem constituídas tratam de aproveitá-lo (SENNETT, 2009, p. 297).

A exigência social relacionada com o profissionalismo nunca estará limitada a

um só enfoque. O médico, por exemplo. Não basta que seja tecnicamente

competente. Exige-se dele, ademais, que tenha um bom trato humano com os seus

pacientes, respeitando seus sentimentos e sofrimentos, tanto físicos quanto

5 Cf. Dicionário Houaiss On-line, verbete 'tolerância'.

33

psíquicos e emocionais. Espera-se, igualmente, que não seja mercenário e que

coloque, em primeiro plano, a saúde do paciente confiado a seus cuidados.

O mesmo se aplica a outros profissionais. Um auditor de tributos. Deverá ir

além de seus conhecimentos jurídicos e contábeis, agindo com lisura em sua

relação com os contribuintes, observando os padrões éticos e deontológicos (= ética

profissional) estabelecidos pela Instituição à qual presta seus serviços

administrativos fiscais. Cumprirá, assim, uma exigência disciplinar que lhe será

determinada por seus superiores e outra, relacionada com os padrões de ordem

ética e moral, que procede da convivência com seus pares e com a sociedade.

Deve-se observar, no entanto:

[...] que não existe uma via reta que ligue a natureza humana a uma única moralidade e um único ideal moral. Tudo seria mais simples se os homens não pudessem ser tantas coisas diferentes, e tantas coisas caracteristicamente humanas; ou se os traços, disposições, arranjos sociais e questões a que a inteligência humana pode atribuir valor fossem, todos, plenamente compatíveis uns com os outros. Mas eles não são, e há boas razões para que não sejam: boas razões que por sua vez decorrem da própria natureza humana (WILLIAMS, 2005, p. 101).

Boa educação

Segundo o filósofo francês André Comte-Sponville, a polidez (a boa

educação) é a primeira das virtudes, dando origem a todas as outras. Por isso,

segundo esse autor, seria a menor delas. Mesmo assim, ela não seria em nada

desprezível. Em suas palavras:

A polidez faz pouco caso da moral, e a moral da polidez. Um nazista polido em que altera o nazismo? Em que altera o horror? Em nada, é claro, e a polidez está bem caracterizada por esse nada. Virtude puramente formal, virtude de etiqueta, virtude de aparato! A aparência, pois, de uma virtude, e somente a aparência (COMTE-SPONVILLE, 1996, p. 13).

34

Observe-se que a boa educação está associada não só à forma, aos bons

modos, portanto à polidez, mas também ao conteúdo internalizado. Presume-se com

isso que, quem detém um conhecimento mais acurado, desenvolve também uma

maior conscientização de sua responsabilidade social. Espera-se, entre outras

coisas, que seja coerente com esse saber, esse conhecimento e essa “boa

educação”, colocando-a a serviço dos outros.

É preciso estimular a internalização do valor “boa educação” nas práticas

diárias do serviço público. Ela favorecerá o compartilhamento de saberes, a troca de

experiências, o espírito de cooperação e de serviço. Enfim, a adoção da simplicidade

e da maior e melhor atenção às pessoas, como requisitos essenciais ao exercício

das demais virtudes pessoais.

3.3 Virtudes pessoais

Para quem tenha interesse em aprofundar o tema relativo às virtudes, sugere-

se aqui a leitura do já mencionado Pequeno tratado das grandes virtudes, do filósofo

francês André Comte-Sponville. Nessa obra, traduzida para diversos idiomas e de

grande aceitação entre leitores de todo o mundo, relaciona-se um conjunto de

dezoito virtudes. A saber: polidez, fidelidade, prudência, temperança, coragem,

justiça, generosidade, compaixão, misericórdia, gratidão, humildade, simplicidade,

tolerância, pureza, doçura, boa-fé, humor e amor.

Desse elenco, e seguindo a reflexão de Victoria Camps (1990), a justiça

terminaria por constituir a maior das virtudes, confundindo-se com a própria ética.

Uma virtude tão completa e complexa que deriva da convergência de quase todas

as outras, especialmente da solidariedade, da responsabilidade e da tolerância,

35

apontadas por essa autora como virtudes públicas. Mas a justiça depende também

do compromisso das pessoas de torná-la uma realidade. Conforme dizia o filósofo

francês Alain – pseudônimo do filósofo Émile-Auguste Chartier (1868 – 1951), “A

justiça não existe [...] a justiça pertence à ordem das coisas que se devem fazer

justamente porque não existem [...] A justiça existirá se a fizermos. Eis o problema

humano” (Apud, COMTE-SPONVILLE, 1996, p. 69).

Já tivemos a oportunidade de tratar da polidez e da tolerância. Considerando

a peculiaridade deste texto, voltado para a educação em valores dos servidores

públicos, parece razoável que teçamos um comentário sobre as virtudes que, a

nosso ver, têm um impacto direto nas relações interpessoais.

Tudo isso de forma despretensiosa, já que nenhuma virtude terá caráter

obrigatório para o comportamento das pessoas. Ninguém poderá ser obrigado a ser

generoso, bem-humorado, alegre, satisfeito. Por isso são chamados de “atos super-

rogatórios”, na medida em que sua observância depende do caráter e do modo de

ser de cada um. Considerando que este é um tempo caracterizado pela valorização

do trabalho em equipe, pode-se nele identificar uma tendência a desconsiderar a

importância da formação do caráter. Definitivamente, um tempo no qual o “nós”

pode-se transformar num pronome perigoso (SENNETT, 2005, p. 166).

A referência que aqui se faz às virtudes pessoais tem o propósito de chamar a

atenção para a importância delas como facilitadoras da criação de um ambiente de

trabalho mais cooperativo, revalorizando o papel das pessoas, individualmente, com

ganhos para todos: a instituição, os colegas e a comunidade à qual se presta

serviço. Afinal, ninguém é ético para si mesmo. A ética supõe, necessariamente, a

relação com o outro e com os outros. O que significa dizer que a atualização de cada

36

uma dessas virtudes exigirá do agente moral uma atitude de abertura com relação a

seus semelhantes.

Fidelidade

Pode-se ser fiel a uma coisa ou a uma causa, a depender mais do

comportamento de quem se diz fiel e menos do seu discurso. A fidelidade gera uma

obrigação, um dever de consciência. Mas fidelidade a que causa ou a quem?

Portanto, a fidelidade considerada em si mesma não diz muito. Para que a fidelidade

venha a ser considerada uma virtude é preciso considerar a quem ou a que se é fiel.

No caso de um servidor público, a que ou a quem deve ser fiel? Ao chefe, pelo

simples fato de sê-lo? Isso não seria lealdade nem fidelidade, mas, subserviência. A

lealdade e a fidelidade podem ser alimentadas, como se estivessem numa via de

mão dupla. Para Cortella:

A educação é um valor intrínseco na sociedade e no mundo do trabalho, é um valor inclusive de empregabilidade. Se eu percebo que a empresa investe em mim, aumenta o meu nível de gratificação, de um lado, e de gratidão, do outro. Não significa que eu tenha lealdade absoluta, porque não se sente isso nem nas organizações em geral. Mas, pelo menos, eu tenho um nível de fidelidade maior. E a educação significa que ela quer me preparar, se não exclusivamente para ela, ao menos me preparar como profissional, e isso me dá um grau de tranquilidade maior, portanto, de adesão (CORTELLA, 2007, p. 39).

No serviço público, tratando-se de um Estado Democrático de Direito, é

preciso critério para qualificar a fidelidade. Começando pelas leis que regem a

conduta do servidor. Não se trata de uma cega fidelidade à letra da lei e, sim, a seu

espírito. Assim, e considerando os princípios apontados no artigo 37 da Constituição

Federal, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, parece

37

razoável procurar a lealdade e a fidelidade a partir desses princípios, adotando-os,

efetivamente, como norte para a própria conduta profissional.

Prudência

Considere-se o seguinte caso, ocorrido no cruzamento entre duas ruas, sendo

uma delas de grande circulação de veículos. Um motoqueiro, parado na via de

menor movimento, aguarda a abertura do semáforo para cruzá-la e seguir o seu

caminho. De repente, por um inexplicável motivo, resolve furar o sinal, achando que

daria tempo de cruzar a rua e é lateralmente alcançado por um caminhão. Apesar do

impacto, levanta-se aparentemente ileso do acidente. É evidente que conhecia o

perigo, tanto é que estava parado no sinal. Mas não agiu em consonância com seu

conhecimento, colocando em risco a própria vida e a vida de terceiros. Agiu com

imprudência. Faltou-lhe paciência, cautela, precaução. Esse exemplo é

paradigmático, porque põe em xeque a vida da pessoa.

No cotidiano das organizações, públicas e privadas, protagonizamos

situações exemplificativas dessa ausência de prudência. Uma virtude que, em

muitos casos, salva vidas. Importa, contudo, precaver-se contra o excesso de

prudência que leve eventualmente à inação.

Temperança

Há diversas acepções ligadas à virtude da temperança. Uma delas estará

associada à ideia de moderação das pessoas, sempre e quando adotem, por

exemplo, uma atitude de “sobriedade no consumo de alimentos e/ou bebidas”, como

anotado pelo dicionário Houaiss. Embora esse enfoque tenha sua importância no

38

cotidiano das organizações e, sobretudo, na conquista e manutenção da confiança

entre os servidores e entre esses e as pessoas que são usuárias do serviço público,

é seguramente menos relevante para a dimensão política da ética pública.

Mesclando a temperança com outras virtudes, é possível dizer que, “na

ambivalência da crise, o importante, para a ética, é de não ceder à histeria, de

salvaguardar a tolerância e a compreensão. É nas situações de crise que há, ao

mesmo tempo, degenerescência e regeneração da ética” (MORIN, 2005, p. 85).

Num tempo de crise, por exemplo, é bastante razoável adotar uma política de

contenção de gastos. Passa para a sociedade, que paga seus impostos, a ideia de

ética na gestão pública. Enquanto adotar uma política contrária ao controle dos

gastos e à responsabilidade fiscal sinalizaria à sociedade o antônimo da

temperança: a indecência pública, a gastança desenfreada. Para Aristóteles:

O intemperante, portanto, anseia por todas as coisas agradáveis ou as que mais o são, e é levado pelo seu apetite a escolhê-las custe o que custar; por isso sofre não apenas quando não as consegue, mas também quando simplesmente anseia por elas (pois o apetite é acompanhado pelo sofrimento), embora pareça um absurdo sofrer por causa do prazer (ARISTÓTELES, 2004, p. 78).

De que adianta, portanto, um discurso formal em favor da economia, caso

esse valor não tenha sido incorporado pelos agentes públicos, como demonstração

de comportamento parcimonioso e de zelo com a coisa pública? Enquanto não

houver internalização desse hábito como uma virtude pessoal da temperança por

parte dos servidores, estará comprometida a credibilidade de qualquer instituição e

dos seus respectivos agentes perante a sociedade.

39

Generosidade

Considere-se o caso de um servidor público estritamente cumpridor de seus

deveres. Mas incapaz de ir além disso. Chega na hora certa, faz o seu trabalho

técnico com bastante profissionalismo e sai na hora certa. No entanto, não dá um

minuto a mais ou a menos de seu tempo, mesmo em situações justificadas. Não

está disposto a disponibilizar nada de seu tempo ou de sua atenção em benefício de

um colega de trabalho ou de um usuário de seu serviço.

Provavelmente, do ponto de vista deontológico, não poderá sofrer qualquer

sanção. Deve-se observar, no entanto, que o hipotético servidor estará sujeito à

reprovação moral, seja de seus colegas de trabalho, seja dos cidadãos, com relação

à qualidade do relacionamento interpessoal, independentemente de sofrer qualquer

punição disciplinar em decorrência dessa falta ética.

Faltar-lhe-á aquela largueza ou liberalidade de gesto que conquiste a

aprovação das pessoas a seu ato e, por extensão, beneficie a imagem da categoria

que integra profissionalmente. Faltar-lhe-á generosidade. “Ela consiste em dar a

outrem o que lhe falta, sendo que essa falta não corresponde a um direito” (LA

TAILLE, 2006, p. 62). Nos pequenos gestos: um médico dedicado que se preocupa

também com a família do paciente; um policial atencioso que ajuda uma pessoa

idosa a carregar um fardo; um agente administrativo que atende com

desprendimento e sem outro interesse a qualquer cidadão. Tudo isso sem ser

mesquinho, extrapolando, excepcionalmente, e por razões humanitárias, o seu

horário de expediente. A generosidade é, portanto, a negação do egoísmo:

O egoísta, ao contrário, não cumpre seu destino de egoísta por um erro de raciocínio. O egoísta não quer mover um dedo se não percebe a possibilidade de obter um grande prazer, mas em seus cálculos sempre esquece os verdadeiros prazeres, que são aqueles que supõem um esforço inicial. Por isso, nos cálculos da prudência sempre ganham as dores; o medo sempre é mais poderoso que a esperança e o egoísta acaba por

40

considerar a enfermidade, a velhice, a morte inevitável. Sua desesperação me demonstra que é um homem que não compreendeu bem a si mesmo (ALAIN, p. 120 e 121, tradução nossa).

Gratidão

É comum escutar das pessoas de mais idade a seguinte frase: saber

agradecer é ter uma virtude. E uma virtude é uma qualidade que é assimilada num

processo educacional, que poderá começar na família e passar pela escola ou pela

convivência com os colegas, amigos e mesmo com estranhos, no cotidiano.

Ninguém nasce “grato”. As pessoas vão desenvolvendo essa virtude. Um ato isolado

que se vai transformando num hábito, até definir o seu caráter ou a sua forma de

ser. É, portanto, um elemento cultural e não natural, que depende dos valores

alimentados pelas pessoas naquele “lugar”.

Trata-se da constância na atitude de reconhecimento a quem lhe presta um

benefício, a ponto de se transformar num hábito. E, ao falar de hábito, não se quer

dizer que seja mecânico. Deverá ser um ato livre e consciente. De respeito, de

reconhecimento e até mesmo de estímulo a quem se dispõe a ajudar. Por essa

razão, a gratidão consiste numa virtude ética por excelência, que promove a

harmonia na relação entre as pessoas nos diferentes espaços de convivência

profissional e nos momentos formais ou informais.

Humildade

Há várias formas de entender a humildade. A ideia que vamos explorar é a

que aponta essa qualidade nas pessoas que têm plena consciência de suas

limitações e são capazes de introduzir esse saber na relação que estabelecem com

os demais. Nesse sentido, ser humilde não significa ser cabisbaixo ou deixar-se

41

humilhar. Humilhação seria uma forma de desrespeito por si mesmo ou pelo outro,

enquanto a humildade corresponde a uma atitude bem diferente, de respeito pelo

outro, desvestindo-se de qualquer forma de arrogância, prepotência ou

superioridade. A humildade “é um sentimento bom porque não nos encerra em nós

mesmos, senão que é o princípio geral de nossa convivência, ao que nos apegamos

para exigir aos demais respeito, e que exige de nós respeitar aos demais” (MARINA,

2006, p. 176-177, tradução nossa).

A humildade supõe acessibilidade, simplicidade e, sobretudo, despojamento.

Alguém que detém qualquer forma de poder social, econômico, político, cultural,

despoja-se dessa condição e trata os outros como se não tivesse esse poder. Não

se vale de sua condição como elemento de distanciamento aos demais. Num

universo corporativo, o efeito dessa atitude é agregador, porque aproxima as

pessoas, eliminando barreiras entre elas e permitindo o exercício de atividades

cooperativas.

Simplicidade

A vida é naturalmente complexa. Por que complicá-la, gratuitamente? Se o

objetivo é facilitar a comunicação, por que falar empolado? A simplicidade aproxima

as pessoas, enquanto a afetação promove o distanciamento entre elas. O que não

se deve confundir é simplicidade com vulgaridade. A simplicidade é natural. A

vulgaridade choca, separa, distancia, fere, cria arestas. Na convivência humana, a

simplicidade tem um poder catalisador que favorece o exercício da criatividade, da

espontaneidade, e a revelação da potencialidade das pessoas. Ela se revela nas

diferentes formas de ser e de agir. Particularmente na forma da comunicação falada

ou escrita.

42

Confiança

Quando se dão os grandes escândalos, a mais sacrificada é a confiança.

Entre 2008 e 2009, a generalizada desconfiança social no sistema capitalista,

especialmente no sistema financeiro, fez ruírem as bolsas e quebrarem inúmeros

bancos no centro do capitalismo, os EUA, e nos principais mercados mundo afora. O

que demonstra que a rede de sustentação econômica está baseada num elemento

subjetivo – a confiança – e não apenas num elemento econômico objetivo, material.

Se a confiança tem sua importância na determinação da qualidade das relações

macroeconômicas, que dizer, então, das relações microeconômicas e dos

relacionamentos sociais, nacionais, regionais, locais, comunitários e interpessoais?

A confiança é o cimento constitutivo das amizades, do companheirismo e do

coleguismo. Ela também se revela estratégica nos espaços corporativos, sobretudo

no fomento das relações baseadas no exercício da liderança organizacional.

Evidencia-se, assim, que é “crença na probidade moral, na sinceridade afetiva, nas

qualidades profissionais de outrem, que torna incompatível imaginar um deslize, uma

traição, uma demonstração de incompetência de sua parte”6, permitindo sentir e

transmitir segurança nessas relações.

Sem transparência, veracidade e sinceridade, não há como se falar em

conquista ou manutenção da confiança que, uma vez prejudicada, é de difícil

recuperação. Ela se dá horizontalmente entre os pares. Mas também ocorre entre

diferentes níveis hierárquicos, num processo que supõe o respeito à palavra dada; à

sinceridade e à lisura no cumprimento dos acordos formulados entre as partes.

Alguém poderá dizer: você tem que confiar em mim, porque sou seu chefe. Ocorre

6 Dicionário Houaiss On-line, verbete 'confiança'.

43

que ninguém impõe confiança. Ela é e será, sempre, objeto de uma conquista

permanente.

Humor

O humor revela um estado de espírito que poderá ser de irritabilidade,

tristeza, alegria, dependendo da constituição psíquica de cada um e das

circunstâncias objetivas na qual estão envolvidos.

A reação a esse contexto variará em função do modo de ser de cada um. Uns

se deixarão levar subjetivamente por essas circunstâncias, enquanto outros serão

menos suscetíveis a fatores externos, preservando certa “imperturbabilidade”

psicológica. Tal atitude ou comportamento poderá ser ou não, uma virtude. De

qualquer forma, deve-se verificar que:

[...] algumas das virtudes mais valorizadas em nossa sociedade – independência, humor, iniciativa e um tipo de coragem – são com demasiada frequência deixadas de fora dos livros de administração que tratam de eficiência e eficácia, dos livros de planejamento estratégico e dos relatórios corporativos. Pensar no malandro empresarial como simplesmente “imoral” ou no palhaço corporativo como simplesmente tolo é deixar de compreender uma questão ética muito importante e propor-nos um retrato falacioso tanto dos negócios quanto da ética (SOLOMON, 2006, p. 407).

Não dá para legislar sobre o humor, exigindo que todos sejam bem-

humorados e que saiam rindo à toa diante de qualquer situação, que faça ou não

graça. O riso e o humor não se confundem (AYAN, 2009, p. 39). As famosas

pegadinhas exploradas pelos programas de humor (negro) podem fazer graça a uns,

que riem da desgraça alheia, e a outros não.

Nesse sentido, o humor dependerá, sim, da “constituição psicofisiológica do

organismo como um todo, constituindo o pano de fundo sobre o qual diferentes

44

conteúdos psíquicos tomam uma tonalidade afetiva”7. Mas não há como negar a

importância do humor como fator motivacional nas organizações. Deve-se

considerar o humor como uma virtude sempre e quando, alterando positivamente o

ânimo das pessoas, implique a aproximação e o estímulo à cooperação entre elas,

com vistas ao desenvolvimento de atividades colocadas a serviço do bem comum.

Amor

Pode parecer descabido tratar da virtude do amor num texto sobre educação

em valores para servidores públicos. Será? No entanto, é possível pensar na sua

importância, desde que tomando certos cuidados, exigidos também com relação às

demais virtudes pessoais. Com mais razão no caso da virtude do amor, que não se

permite vulgarização. Mas, se tomarmos a acepção mais comum, qual seja a de

forte atração por aquilo de que se gosta, bem que se poderia falar em inúmeras

situações que supõem a amorosidade como aplicação da virtude do amor.

Qualquer exploração do conceito de amor que seja desprovida de critérios

pode gerar profundas distorções. É preciso tratar, em primeiro lugar, do que não é

ou não deveria ser considerado amor. Assim, não é nem pode ser considerada

virtuosa aquela forma de atração que resulte na tentativa de apropriação, pelo

sujeito, de pessoas como se fossem objetos. Toda relação sujeito-objeto é

caracterizada como uma relação egoísta, marcada pela possessividade e pela

dominação. Por sua vez, qualquer tentativa de sujeição (do outro) perde sentido na

relação sujeito-sujeito. Não se trata como objeto um ser humano, muito menos um

ser amado.

7 Dicionário Houaiss On-line, verbete 'humor'.

45

E, como poderíamos considerar positivamente o conceito de amor, a fim de

poder utilizá-lo favoravelmente como uma virtude no ambiente de trabalho? Trata-se

da melhor disposição – física, psíquica, espiritual, biológica – de uma pessoa,

despertando nela um movimento de respeitosa atração em relação a si mesma, a

um semelhante, uma coisa, uma causa, um projeto, um propósito, de tal forma que

dá o melhor de si para alcançá-lo, conquistá-lo, preservá-lo, promovê-lo, etc.,

deixando-se sempre mover pelos melhores sentimentos e as mais louváveis ações,

do ponto de vista moral, e com toda a carga de deveres que encerra. Assim:

[...] compor uma música, construir uma casa ou dançar bem, têm seus próprios requisitos, quase sempre custosos. Ninguém se diverte levantando-se durante à noite se seu filho chora. Mas esses deveres adquirem seu significado da relação amorosa na qual nascem. A ideia de que o que se faz por amor não deve custar esforço é uma ideia absolutamente estúpida (MARINA, 2006, p. 53, tradução nossa).

O simples gostar de exercer determinada atividade, incrementada pelo

impacto emocional do resultado com ela alcançado, pode despertar no servidor um

sentimento a que se denomina de amor, na medida em que faz bem a si mesmo e

aos outros. Diz-se então que o amor é contagioso, propagando-se como um círculo

virtuoso por todo o ambiente de trabalho.

46

4 A educação em valores

Seria ingênuo pensar que a educação em valores dos servidores viesse a

constituir uma panacéia, remediando os males derivados da corrupção humana no

espaço público. Tanto a governança quanto a promoção da integridade pública

dependem de muitos fatores, dentre eles o da ampliação do controle social.

À sociedade interessa a probidade e a eficiência. Caberá aos políticos e aos

administradores públicos a gestão da ética, que terá um duplo e complementar

caráter, de promoção da legalidade, zelando pelo seu cumprimento, e de promoção

de uma cultura ética. Nesse sentido, valerá investir na formação da consciência

moral dos servidores públicos, considerando as dimensões:

1. heterônoma, com uma porção de responsabilidades e de deveres a cumprir (código deontológico);

2. autônoma, com um reconhecido espaço de liberdade (ética crítica),

o que supõe um direito do servidor à educação em valores e,

simultaneamente, um dever institucional em proporcioná-la

(VIANA, 2006, p. 188).

4.1 O valor dos valores

O lugar ocupado pelo “valor” entre os valores de uma pessoa fará toda a

diferença em sua história. Influenciará, decisivamente, o seu modo de ser. Cada um

levará em consideração, em sua vida diária, o elemento norteador de suas escolhas

mais importantes. Em caso contrário, “você faz coisas que são incoerentes com sua

bússola moral, e você provavelmente está bastante confuso a respeito do que está

causando isso” (KIEL, 2005, p. 71).

47

Far-se-á necessário atualizar a competência moral a partir dos valores. O que

acontece, por exemplo, na hora de definir a profissão que se pretende exercer e sua

respectiva motivação? Quero ser médico porque dá status ou porque tenho

vocação? Quero ser advogado porque abre oportunidades de concurso para

diferentes carreiras de estado ou porque entendo que é uma forma de ajudar as

pessoas a exercerem melhor a sua cidadania e resolverem os conflitos que se

apresentam em suas vidas? As escolhas nem sempre serão assim, nítidas e claras.

Poderá haver uma área cinzenta, sobre a qual não haverá clareza. Às vezes, os

acontecimentos se impõem, impedindo que as pessoas exerçam a sua liberdade de

escolha.

Será que a vida é composta apenas por momentos que exigem grande

capacidade de decisão, para os quais devotamos toda nossa energia e nossos

valores? Não. A vida também é feita por escolhas simples, aparentemente mais

comuns, nas quais os valores estarão presentes como elementos norteadores de

nossa existência e de nosso caráter. É preciso saber dizer sim ou não diante das

oportunidades ou dos riscos à nossa integridade.

Considere-se, por exemplo, o valor “generosidade”. Alguém que resolve

ajudar um semelhante, desconhecendo sua condição pessoal. E, no entanto, num

futuro não muito distante, recebe o reconhecimento ou se beneficia

inesperadamente daquela situação pretérita. Isso nos faz crer na importância da

incorporação dos valores morais como um bem pessoal e social.

É ilustrativo dessa liberdade e do medo correspondente, por tudo que implica

na construção da personalidade, o posicionamento valorativo exigido a cada

instante, relativo ao ter ou ao ser. Um dilema tratado por um eminente pensador do

século XX, Erich Fromm (1900 - 1980), em suas obras “Medo à Liberdade” e “Ter ou

48

Ser”. Negar-se a viver por medo à liberdade é, em certo sentido, antecipar uma

escolha e ficar escravo de uma situação alheia à sua vontade.

No caso de um servidor público afeito às normas burocráticas, poderá incidir

facilmente num ativismo automático, na medida em que fuja da reflexão crítica sobre

sua própria atividade profissional, querendo, com isso, eximir-se de sua

responsabilidade. Uma hipótese exaustivamente analisada por Hannah Arendt (1906

– 1975) ao acompanhar, em Jerusalém, como correspondente da Revista The New

Yorker, o julgamento de um terrível criminoso de guerra alemão, Adolf Eichmann.

Para sua surpresa, deparou-se ela com uma pessoa ao mesmo tempo, comum e

medíocre. Um servidor público que tinha de si mesmo a imagem de pessoa zelosa

de suas obrigações. Um servidor cumpridor de seus deveres e que, no entanto, não

se permitia pensar criticamente sobre seu labor. Para aquela filósofa alemã:

[...] somos forçados a concluir que Eichmann agiu inteiramente dentro dos limites do tipo de discernimento que se esperava dele: agiu de acordo com a regra, examinou a ordem expedida para ele quanto à sua legalidade “manifesta”, sua regularidade; não teve de depender de sua “consciência”, uma vez que não era daqueles que não têm familiaridade com as leis do seu país (ARENDT, 1999, p. 316).

As personalidades mais marcantes da história humana destacaram-se

fundamentalmente pela escolha que fizeram com relação a alguns valores. Os que

muito quiseram ter, tornaram-se ricos e poderosos, construindo impérios políticos e

econômicos. E os que muito quiseram ser, tornaram-se líderes espirituais, revelados

sob o manto dos mais diferentes matizes religiosos, como foram Buda, Maomé,

Moisés ou Jesus Cristo. E, mais recentemente, líderes políticos, como Mahatma

Gandhi, Martin Luther King e Nélson Mandela.

Entre os extremos dessas escolhas, há uma seara aberta para acolher

pessoas comuns, que não serão jamais nem santas nem diabólicas. Pessoas de

49

carne e osso que carregam com elas o dilema de decidir, no seu cotidiano, entre o

bem e o mal. Mas um bem e um mal que não se apresentam de forma pura. Eles

estão entrelaçados e geram confusão. É aí que entra a importância dos valores. Eles

funcionarão como bússolas em mar agitado.

Será a vez de recorrer à ética: “A autoanálise, a autocrítica e a ginástica

psíquica coincidem na prática recursiva que consiste em avaliar as nossas

avaliações, julgar os nossos julgamentos, criticar as nossas críticas” (MORIN, 2005,

p. 97). Na dúvida, a ética servirá como um norteador de caminhos. Pode-se

equivocar de estrada, que apresentará mais ou menos buracos, terá ou não asfalto,

mas não se equivocará de sentido. É ele o que mais importa.

4.2 A educação como valor

Na maioria dos animais, a programação genética é determinante. Sua

liberdade de escolha é praticamente inexistente, porque é incapaz de abstrair-se da

realidade. Estando preso ao objeto, sua “liberdade” estará, quando muito, em decidir

por um tipo de caça e não por outro, quando aparecem simultaneamente à sua

frente. Não muito mais. Entre eles prevalece a lei do mais forte. Não podem contar

com nenhum sonho ou aspiração que possam levá-los além da luta pela

sobrevivência.

O mesmo já não ocorre com o ser humano, exceto nas situações em que é

relegado a uma condição de miséria tal que não lhe resta alternativa, a não ser a de

viver como animal. Como dizia Manuel Bandeira (1886 – 1968) em seu poema O

bicho:

50

Vi ontem um bicho / Na imundície do pátio / Catando comida entre os detritos. / Quando achava alguma coisa, / Não examinava nem cheirava: / Engolia com voracidade. / O bicho não era um cão, / Não era um gato, / Não era um rato. / O bicho, meu Deus, era um homem (BANDEIRA, p. 119).

Mesmo diante das circunstâncias mais adversas, o homem é capaz de refletir

sobre elas, tomar consciência das causas geradoras da pobreza e da miséria e lutar

por sua erradicação. Por razões óbvias, a reflexão não deverá ser apenas objeto de

deleite pessoal, levando quem a faz a alguma ação, a partir da transformação que

se produz em sua consciência. Para Umberto Eco, a função intelectual não pode ser

separada da moral. Escreve ele:

É uma escolha moral exercê-la, assim como também é moral a escolha do cirurgião que decide cortar carne viva para salvar uma vida humana. [...] Tal é o drama de quem, mesmo por um só instante, assume a tarefa de “funcionário da humanidade” (ECO, 1998, p. 14).

O ser humano traz consigo a capacidade de se indignar. E de agir, em

consequência. Se os animais se reúnem em bandos para sobreviver, os nômades

primitivos também formavam hordas como mecanismo de defesa contra os perigos

da natureza e de compensação da fragilidade humana, em sua competição com as

demais formas de vida animal.

“O homem é um ser racional e se não quer ser um traidor de sua própria

natureza deve obrar racionalmente” (MARINA, 1995, p. 129, tradução nossa).

Apesar dessa decantada superioridade racional humana com relação às demais

espécies, é possível identificar entre os humanos a formação de redes e de bandos

com o objetivo de alcançar fins ilícitos e propósitos não universalizáveis. Mas não

tem que ser assim. Essas redes poderão ser diferentes dependendo da qualidade

das escolhas realizadas por seus integrantes. O comportamento gregário pode levar

a outro tipo de organização política, com o propósito de promover o bem comum.

51

Fará falta um projeto coletivo que tenha a educação como força motriz. A educação

como valor viabilizador do aperfeiçoamento das relações humanas e de sua

interação com a natureza no transcurso de sua aventura histórica.

4.3 A educação em valores

Vimos o valor que tem a educação no desenvolvimento de qualquer projeto

humano. Mas ele será insuficiente caso não seja, também, humanizador. Um projeto

técnico construído dentro dos parâmetros científicos e tecnológicos mais arrojados

será sempre um projeto humano. Contudo, se não responder a um “para quê”, não

revelará a substância diferenciadora de sua qualidade, oferecendo-lhe sentido e

razão de ser. Em se tratando de um projeto excludente, em nada contribuirá para

tornar mais harmônica a convivência humana.

Como profissionais, os servidores públicos precisarão desenvolver suas

potencialidades para a convivência social, adotando posturas e estimulando atitudes

que consolidem um ethos, um modo de ser capaz de despertar, ao mesmo tempo,

admiração e respeito. Uma orientação paradigmática pode ser encontrada na ética

médica. Nessa seara, pode-se dizer que:

A orientação para o bem da coletividade é uma característica sociológica do que institucionalmente se espera de todo profissional da medicina. Supõe-se que o médico não comercialize os seus serviços. Não se promova nem faça propaganda. Não possa regatear seus honorários, nem rejeitar pacientes porque não oferecem garantias financeiras, especialmente se eles não têm outros profissionais a quem recorrer (ALONSO, 2006, p. 38).

Vale sempre recordar: ninguém nasce ético. Educa-se em valores,

estimulando e fortalecendo uma cultura e um modo de ser pessoal e coletivo que

seja inclusivo. Que faça com que mais e mais seres humanos sejam aceitos em

52

função de sua humanidade e não em decorrência de sua “animalidade”, aqui

considerada como expressão de mais ou menos poder, mais ou menos força bruta.

Isso não se fará sem o fortalecimento da cidadania, que considera, em seu

processo educativo, o valor das pessoas como fins em si mesmas e não como

coisas. Um imperativo ético que se faz pela aplicação do direito e pela educação em

valores. Materialização de um sonho de humanidade e de cidadania que vá além da

racionalidade instrumental da educação. Nesse sentido, “se buscamos a formação

de pessoas autônomas com desejo de auto-realização, então é necessária uma

educação moral, no mais amplo sentido da palavra „moral‟” (CORTINA e MARTÍNEZ,

2005, p. 170).

A educação em valores supõe algo mais que a mera afinidade com um tipo de

literatura que estimule esse tipo de reflexão. Implica a tentativa de adequação das

expectativas da organização e de seus respectivos servidores. Um esforço de

ambas as partes a fim de demonstrar permanente abertura para o alcance de

objetivos práticos, associados à excelência. O que significa chamar a atenção para a

reeducação de procedimentos operacionais e atitudinais, priorizando a qualificação

de “relações interpessoais pautadas em valores vinculados à democracia, à

cidadania e aos direitos humanos” (ARAÚJO, 2007, p. 35).

Uma forma privilegiada de caracterizar o compromisso com alguns princípios

e valores morais será a de dar-lhe a maior concretude possível. Só assim o valor

“respeito à dignidade da pessoa humana”, por exemplo, deixará de ser um

compromisso meramente discursivo, incorporando-se ao cotidiano das

organizações. Ao assumir o compromisso com a educação em valores, haverá

exigências impostas a seus interessados. Ainda que não possam eliminar, deverão

combater, reduzindo ao máximo alguns fatores de incompatibilidade.

53

Faz-se necessário, então, envidar esforços para realizar a transição de

relações fundadas em comando e controle, para outras, baseadas em liderança e

motivação. Isso requer o incremento dos níveis de autonomia, consciência, liberdade

e responsabilidade dos atores envolvidos.

Na prática, será preciso estimular o estabelecimento de relações que

valorizem o diálogo e a construção coletiva de soluções para os problemas que

sejam comuns, integrando as partes interessadas e influenciando sua mudança: de

agentes passivos a cada vez mais ativos e comprometidos com a organização.

54

Conclusões

A primeira das conclusões tem a ver com o cenário no qual estamos

inseridos. Dispensa qualquer malabarismo intelectual saber que ele é de crise. Os

jornais o revelam diariamente. Mas é, também, um cenário de oportunidades. A

crise está associada à inversão de valores e ao sistemático desvio de condutas

verificado entre aqueles que têm a seu cargo a condução e a operacionalização da

gestão pública. Uma frustração experimentada a partir da sociedade e também no

âmbito mais interno do serviço público. Nele há pessoas incomodadas, tanto quanto

as há no seio da sociedade.

Quanto à oportunidade, deriva da crescente consciência de que é possível

reverter esse quadro a partir da gestão da ética. É possível dar respostas positivas à

sociedade a partir de uma ação consciente dos próprios servidores. Um exercício

que supõe o fomento à educação em valores.

A demanda de ética tem uma ressonância interna no âmbito da administração

pública. Sua resposta está calcada no cumprimento das normas legais e nas

diferentes formas de gestão. Mas não se limita apenas a esse parâmetro, exigindo

uma ação consciente do próprio agente público. Não fosse assim, seria expressão

pura e simples do direito e não da ética. Daí a importância da formação do caráter e

da identificação dos valores pessoais e institucionais, bem como da fina sintonia

entre a ética e os valores.

Foi dito, aqui, que ninguém nasce ético. Uma forma retórica de chamar a

atenção para a educação, catalisadora da segunda natureza aristotélica: a ética,

compreendida em suas acepções filosófica e moral. Fez-se necessário compreender

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suas nuances terminológicas e manejar seus conceitos, com o propósito de melhor

servir à construção da ética pública. E deixar evidenciada a relação que há entre

ética e moral; moral e deveres; valores e virtudes.

Procurou-se saber qual o valor que têm os valores. Identificou-se que o valor

maior dos valores está na recriação de seu sentido, numa perene educação em

valores decorrente das diferentes circunstâncias históricas. Resulta daí a tomada de

consciência de que é possível deixar um legado não só na esfera do ser, mas

também, do dever-ser. Nem tudo que se constrói pode ser medido em metros ou

avaliado em unidade monetária. O valor maior decorrente da educação em valores

estará no resgate da confiança pública, com a convicção de que a corrupção não é

uma fatalidade. Pode-se prevenir contra sua manifestação, com inteligência e

vontade. E com a certeza de que a integridade pública poderá ser promovida tanto

no seu fim quanto nos meios utilizados para alcançá-la.

Por último, ficou uma constatação e uma esperança. A constatação de que

não é possível reduzir a promoção da integridade ao elemento probidade. Numa

perspectiva holística, é possível considerar o sujeito moral „servidor público‟ em sua

totalidade, num somatório que não dispensa os pequenos e virtuosos gestos e

atitudes. E sua vontade. Sem ela não há como nem por que se falar em virtude, nem

pessoal, nem pública. Muito menos em ética.

E restou, por fim, a esperança, uma das três coisas – as outras seriam o sono

e o riso – que, segundo Kant, fortalecem o homem nas tribulações da vida (AYAN,

2009, p. 38). A esperança de que todo esse processo poderá ser acelerado, na

medida em que os líderes maiores das instituições e organizações se comprometam

com a aplicação desses princípios e valores. Dando provas de suas convicções, a

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partir do seu exemplo. Começando por sua abertura ao diálogo com o outro e seus

valores. Tudo isso sem esquecer de exercitar, diariamente, a transparência.

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