vala de perus (livro de memorias da ditadura)

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VALA CLANDESTINA DE PERUS DESAPARECIDOS POLÍTICOS, UM CAPÍTULO NÃO ENCERRADO DA HISTÓRIA BRASILEIRA

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História da Vala de Perus

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  • VALACLANDESTINA

    DE PERUSDESAPARECIDOS POLTICOS,

    UM CAPTULO NO ENCERRADODA HISTRIA BRASILEIRA

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  • 1 edio

    So Paulo2012

    VALACLANDESTINA

    DE PERUSDESAPARECIDOS POLTICOS,

    UM CAPTULO NO ENCERRADODA HISTRIA BRASILEIRA

    RealizaoApoio

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  • PRESIDENTA DA REPBLICADilma Vana Rousseff

    MINISTRO DA JUSTIAJos Eduardo Cardozo

    SECRETRIA-EXECUTIVAMarcia Pelegrini

    PRESIDENTE DA COMISSO DE ANISTIAPaulo Abro

    VICE-PRESIDENTES DA COMISSO DE ANISTIAEgmar Jos de Oliveira, Sueli Aparecida Bellato

    CONSELHEIROS DA COMISSO DE ANISTIAAline Sueli de Salles Santos, Ana Maria Guedes, Ana Maria Lima de Oliveira, Carolina de Campos Melo,

    Cristiano Otvio Paixo Arajo Pinto, Edson Cladio Pistori, Ena de Stutz e AlmeidaHenrique de Almeida Cardoso, Jos Carlos Moreira da Silva Filho, Juvelino Jos Strozake, Luciana Silva Garcia

    Mrcia Elayne Berbich de Moraes, Marina da Silva Steinbruch, Mrio Miranda de AlbuquerqueNarciso Fernandes Barbosa, Nilmrio Miranda, Prudente Jos da Silva Mello, Rita Maria de Miranda Sipahi

    Roberta Camineiro Baggio, Rodrigo Gonalves dos Santos,Vanda Davi Fernandes de Oliveira, Virginius Jos Lianza da Franca

    SECRETRIO-EXECUTIVO DA COMISSO DE ANISTIAMuller Luiz Borges

    COORDENAO-GERAL DE MEMRIA HISTRICA DA COMISSO DE ANISTIAMarcelo D. Torelly

    SECRETRIA-EXECUTIVA SUBSTITUTAAmarilis Busch Tavares

    COORDENADORA DE POLTICAS DE JUSTIA DE TRANSIO E MEMRIA HISTRICARosane Cavalheiro Cruz

    O presente projeto foi apresentado no ano de 2011 II Chamada Pblica do Projeto Marcas da Memria,da Comisso de Anistia do Ministrio da Justia, e selecionado por Comit independente para fomento.

    A realizao do projeto objetiva atender as misses legais da Comisso de Anistia de promovero direito reparao, memria e verdade, permitindo que a sociedade civil e os anistiados polticosconcretizem seus projetos de memria. Por essa razo, as opinies e dados contidos na publicao

    so de responsabilidade de seus organizadores e autores, e no traduzem opinies do Governo Federal,exceto quando expresso em contrrio.

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  • VALACLANDESTINA

    DE PERUSDESAPARECIDOS POLTICOS,

    UM CAPTULO NO ENCERRADODA HISTRIA BRASILEIRA

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  • ARTIGOSEugenia Augusta Gonzaga

    talo CardosoIvan Aksehuld Seixas

    Luiz HespanhaLuiza Erundina de Souza

    Jos Pablo Baraybar Marlon Alberto Weichert

    Maria Amlia de Almeida TelesPaulo Abro

    Suzana Keniger Lisboa Tereza Lajolo

    PROJETOInstituto Macuco

    Danilo Fernandes CostaDiretor Executivo

    ORGANIZAOtalo Cardoso

    Laura Bernardes

    COORDENADOR EDITORIALLuiz Hespanha

    PESQUISA BIBLIOGRFICAAndrea Pacheco

    CAPAZapt Editora

    Fotos: Marcelo Vigneron

    PROJETO GRFICO E EDITORAOZapt Editora

    www.institutomacuco.com.br

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Desaparecidos Polticos um captulo no encerrado da Histria Brasileira / [edio de textoInsttuto Macuco]. So Paulo: Ed. do Autor, 2012. (Desaparecidos Polticos um captulono encerrado da Histria Brasileira; v. 1)

    Bibliografia.1. Vala de Pers (So Paulo, SP) - Bairro - Descrio 2. Vala de Pers (So Paulo, SP) -Bairro - Histria I. Insttuto Macuco. II. Srie.

    200 pginasISBN 978-85-00000-00-0

    12-01650 CDD-981.611

    ndices para catlogo sistemtico:1. Desaparecidos Polticos um captulo no encerrado da Histria Brasileira : So Paulo :

    Histria 981.611

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  • APRESENTAO

    Marcas da memria:um projeto dememria e reparaocoletiva para o Brasil 7

    Ministrio da Justia

    A Vala de Peruse a questodemocrtica 10

    Instituto Macuco

    Trabalho fundamentalpara a democracia 14

    Ncleo Memria

    ANEXOS IMPRESSOS

    1 Siglas eabreviaturas 145

    2 Fotos 1463 CPI Perus/

    Desaparecidos 1574 Relatrio final

    da ComissoEspecial 261/90 194

    CONTEDO DO DVD

    1 Os volumes da CPI2 ntegra do livro

    3 A primeiracomissoda verdade 23

    Luiz Hespanha

    2 A valade Perus 21Luiza Erundina de Sousa

    6 A indignciahumana! 103Tereza Lajolo

    4 Uma ditaduracontra o povoe o pas 43

    Ivan Seixas

    9 Desapariese desaparecidosna Amrica Latina 134

    Jos Pablo Baraybar

    5 A vala de Perus:um marco histricona busca da verdadee da justia! 51

    Maria Amlia de Almeida TelesSuzana Keniger Lisboa

    8 A questo dosdesaparecidospolticos no Brasil. Perspectivascom a ComissoNacionalda Verdade 117

    Marlon Alberto Weichert

    7 As ossadas dePerus e a atuaodo MinistrioPblico Federalem So Paulo 106

    Eugnia Augusta Gonzaga

    1 INTRODUOMais um passono caminhoda Justia 17

    talo Cardoso

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  • Paulo Abro Doutor em Direito pela PUC/RJ.Mestre em Direito pela Unisinos(Universidade do Vale do Rio dosSinos/RS) e especialista emDireitos Humanos e Processos deDemocratizao pela Universidadedo Chile. Foi coordenador doDepartamento de Direito Pblicoda PUC/RS. Foi membro doGrupo de Trabalho da Presidnciada Repblica para a elaboraodo projeto de lei para a criao daComisso Nacional da Verdade(2009). Integrou a MissoBrasileira sobre a Lei de Anistiajunto Comisso Interamericanade Direitos Humanos CIDH, naOEA - Organizao dos EstadosAmericanos em Washington(2008). Coordenador Geral daComisso de Implantao doMemorial da Anistia Poltica noBrasil e presidente da Comissode Anistia do Ministrio da Justia.

    7

    Marcas da memria: um projeto dememria e reparao coletiva para o Brasil

    Criada h dez anos, em 2001, por meio de medida provisria,a Comisso de Anistia do Ministrio da Justia passou aintegrar em definitivo a estrutura do Estado brasileiro noano de 2002, com a aprovao de Lei n. 10.559, que

    regulamentou o artigo 8 do Ato das Disposies ConstitucionaisTransitrias. Tendo por objetivo promover a reparao de violaes adireitos fundamentais praticadas entre 1946 e 1988, a Comissoconfigura-se em espao de reencontro do Brasil com seu passado,subvertendo o senso comum da anistia enquanto esquecimento. A Anistiano Brasil significa, a contrrio senso, memria. Em seus 10 anos deatuao, o rgo reuniu milhares de pginas de documentao oficialsobre a represso no Brasil e, ainda, centenas de depoimentos, escritos eorais, das vtimas de tal represso. E deste grande reencontro com ahistria que surgem no apenas os fundamentos para a reparao sviolaes como, tambm, a necessria reflexo sobre a importncia dano repetio destes atos de arbtrio.

    Se a reparao individual meio de buscar reconciliar cidados violados,que tem ento a oportunidade de verem o Estado reconhecer que errou paracom eles, devolvendo-lhes a cidadania e o patrimnio roubados, por sua vez,as reparaes coletivas, os projetos de memria e as aes para a norepetio tm o claro objetivo de permitir a toda a sociedade conhecer,compreender e, ento, repudiar tais erros. A afronta aos direitos fundamentaisde qualquer cidado singular igualmente ofende a toda a humanidade quetemos em comum, e por isso que tais violaes jamais podem seresquecidas. Esquecer a barbrie equivaleria a nos desumanizarmos.

    Partindo destes pressupostos e, ainda, buscando valorizar a lutadaqueles que resistiram por todos os meios que entenderam cabveis

    APRESENTAO

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    Vala Clandestina de Perus

    a Comisso de Anistia passou, a partir de 2008, a realizar sesses de apreciaopblica em todo o territrio dos pedidos de anistia que recebe, de modo a tornar opassado recente acessvel a todos. So as chamadas Caravanas da Anistia. Ao faz-lo, transferiu seu trabalho cotidiano das quatro paredes de mrmore do Palcio da Justiapara a praa pblica, para escolas e universidades, associaes profissionais esindicatos, bem como a todo e qualquer local onde perseguies ocorreram. Assim,passou a ativamente conscientizar as novas geraes, nascidas na democracia, daimportncia de hoje vivermos em um regime livre, que deve e precisa seguir sempresendo aprimorado.

    Com a ampliao do acesso pblico aos trabalhos da Comisso, cresceramexponencialmente o nmero de relatos de arbitrariedades, prises, torturas... mastambm, pode-se romper o silncio para ouvir centenas de depoimentos sobreresistncia, coragem, bravura e luta. neste contexto que surge o projeto Marcas daMemria, que expande ainda mais a reparao individual em um processo de reflexoe aprendizado coletivo, fomentando iniciativas locais, regionais e nacionais quepermitam queles que viveram um passado sombrio, ou que a seu estudo se dedicaram,dividir leituras de mundo que permitam a reflexo crtica sobre um tempo que precisaser lembrado e abordado sob auspcios democrticos.

    Para atender estes amplos e inovadores propsitos, as aesdo Marcas da Memria esto divididas em quatro campos:

    1. Audincias Pblicas: atos e eventos para promover processos de escuta pblica dosperseguidos polticos sobre o passado e suas relaes com o presente.

    2. Histria oral: entrevistas com perseguidos polticos baseada em critrios tericometodolgicos prprios da Histria Oral. Todos os produtos cam disponveis no Memorialda Anistia e podero ser disponibilizadas nas bibliotecas e centros de pesquisa dasuniversidades participantes do projeto para acesso da juventude, sociedade epesquisadores em geral;

    3. Chamadas Pblicas de fomento iniciativas da Sociedade Civil: por meio deChamadas Pblicas a Comisso seleciona projetos de preservao, de memria, dedivulgao e difuso advindos de Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico(OSCIP) e Entidades Privadas Sem Fins Lucrativos. Os projetos desenvolvidos evolvemdocumentrios, publicaes, exposies artsticas e fotogrcas, palestras, musicais,

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    Marcas da memria: um projeto de memria e reparao coletiva para o Brasil

    restaurao de lmes, preservao de acervos, locais de memria, produes teatrais emateriais didticos.

    4. Publicaes: com o propsito de publicar uma coleo de livros de memrias dosperseguidos polticos; dissertaes e teses de doutorado sobre o perodo da ditadura ea anistia no Brasil alm de reimprimir ou republicar outras obras e textos histricos erelevantes e registrar anais de diferentes eventos sobre anistia poltica e justia detransio. Sem ns comerciais ou lucrativos, todas as publicaes so distribudasgratuitamente, especialmente para escolas e universidades.

    O projeto Marcas da Memria rene depoimentos, sistematiza informaes efomenta iniciativas culturais que permitam a toda sociedade conhecer o passado e deleextrair lies para o futuro. Reitera, portanto, a premissa que apenas conhecendo o passadopodemos evitar sua repetio no futuro, fazendo da Anistia um caminho para a reflexocrtica e o aprimoramento das instituies democrticas. Mais ainda: o projeto investe emolhares plurais, selecionando iniciativas por meio de edital pblico, garantindo igualpossibilidade de acesso a todos e evitando que uma nica viso de mundo imponha-secomo hegemnica ante as demais.

    Espera-se, com este projeto, permitir que todos conheam um passado que temos emcomum e que os olhares histricos anteriormente reprimidos adquiram espao junto aopblico para que, assim, o respeito ao livre pensamento e o direito verdade histricadisseminem-se como valores imprescindveis para um Estado plural e respeitador dosdireitos humanos.

    Paulo AbroComisso de Anistia do Ministrio da Justia

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  • Instituto MacucoO Instituto Macuco, criado em2002 como organizao nogovernamental, tem atuaoreconhecida em atividadesde consultoria e estudos paraas reas de educao, sadecultura, direitos humanos emeio ambiente.www.institutomacuco.com.br

    10

    A Vala de Perus e a questo democrtica

    Este livro um esforo conjunto do Instituto Macuco com aComisso de Anistia Projeto Marcas da Memria doMinistrio da Justia que aprovou o projeto que sedesenvolveu tendo como objetivo o levantamento de

    documentao para busca do resgate da Histria, entre outras aes narea de defesa dos direitos humanos, relacionados com a descoberta emSo Paulo, em 1990, no Cemitrio Dom Bosco no bairro de Perus, de umavala clandestina com ossadas no identificadas. O convnio inclui estapublicao, bem como, a realizao de exposio fotogrfica com carteressencialmente documental.

    A proposta que o material produzido neste projeto sirva como fontede informao, pesquisa e estudo sobre um perodo que deve ser lembradosempre, para que jamais seja repetido. Sua concretizao ocorre emmomento extremamente sensvel para a sociedade brasileira. Passados 27anos do momento em que, no processo de transio conservadora quesuperou a ditadura militar vigente por 21 anos, o poder poltico no Brasilvoltou s mos dos civis. Assistimos a uma multiplicao de aes quereafirmam a necessidade da sociedade civil se manifestar sobre estepassado que alguns, muitas vezes com a mesma arrogncia e violnciaque praticavam na poca da ditadura, insistem em apagar.

    No se trata de qualquer tipo de revanchismo. No pretendemosvingana contra sequestradores, torturadores e assassinos hoje acobertadospela anistia ambgua imposta pela ditadura militar. Buscamos apenas arevelao de fatos ocorridos neste perodo histrico, certos que arecuperao destas informaes trar contribuio substantiva para oaprofundamento da democracia e da justia social em nosso pas. Amobilizao da juventude ao contestar democraticamente em 30 de maro

    APRESENTAO

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    A Vala de Perus e a questo democrtica

    de 2012, em atitude inovadora e plena de dignidade, aqueles que pretendiamprovocativamente comemorar o golpe de 1964 mostra da renovao e atualidade destesentimento.

    Estas mobilizaes de maior exposio, como as aes pblicas visando mostrar apermanncia e impunidade de conhecidos participantes de torturas como o mdicotorturador, cassado pelo Conselho Regional de Medicina de So Paulo CRM-SP, HarryShibata combinam com inmeras outras em que grupos e comisses regionais ou locaisesto sendo organizados para recuperar informaes sobre as violncias cometidas contra apopulao nas mais diversas formas. Pretende-se que suas aes sejam as mais amplaspossveis e j comeam a apontar inmeras situaes que muitas vezes espantam por noser parte do passado, mas pela continuidade de sua ocorrncia. Listas de trabalhadores comtrajetria de ativismo poltico-sindical que inviabilizam sua contratao em empresas noocorreram apenas na ditadura. Elas continuam existindo, como foi relatado em recenteencontro dos trabalhadores da Oposio Sindical Metalrgica de So Paulo. Espionagensclandestinas contra trabalhadores da cidade e do campo, com perseguies, discriminaese assassinatos, tambm continuam, incluindo agentes do servio pblico, religiosos e outraslideranas da sociedade civil. Boa parte deles ainda impunes, como o assassinato de quatroservidores pblicos do Ministrio do Trabalho e Emprego em Una - MG, em 2004.

    A publicao deste livro, com a qual o Instituto Macuco tem a honra de contribuir,chama a ateno sob vrios aspectos.

    Em primeiro lugar o primeiro relato documentado do que foi a primeira comissolegislativa a investigar os crimes da ditadura que vigeu no pas de 1964 a 1985. O trabalho fruto da coragem poltica da ento prefeita de So Paulo, Luiza Erundina, eleita em 1988,e da combativa bancada de vereadores do legislativo paulistano. A Comisso Parlamentarde Inqurito Perus - Desaparecidos Polticos (CPI Perus) foi a primeira a colocar no bancodos rus, num poder institudo, o legislativo paulistano, que tanta submisso deveu aosditadores de 1964 a 1985 responsveis pelas perseguies, torturas e assassinatos praticadospelo mais longevo perodo ditatorial da histria republicana do Brasil. Ouviu depoimentosde perseguidos e perseguidores, torturados e torturadores, dirigentes polticos contrrios ea favor da ditadura, exemplo a servir para as atuais Comisses da Verdade.

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    Vala Clandestina de Perus

    Em segundo lugar, pelo que representa para a nossa jovem democracia, que tem apenas27 anos com mais ampla liberdade de organizao partidria, pois mesmo nos perodosde maior democracia poltica como o de 1950 a 1964, partidos comunistas no erampermitidos, a nica exceo foi no curto perodo que se seguiu deposio de GetlioVargas, em 1945. Do que representa no sentido de reafirmar que o compromisso com aampla liberdade poltica, contra as quais as elites do passado e os golpistas, militares ecivis, que levaram Getlio ao suicdio, tentaram impedir a posse de Juscelino (JuscelinoKubitschek de Oliveira) e de Jango (Joo Goulart) e deram o golpe em 31 de maro de1964, ainda atentam.

    Em terceiro lugar porque ajuda a colocar, no lugar devido, o debate sobre anecessidade do esclarecimento das perseguies, assassinatos e desaparecimentos levadosa cabo pelo regime ditatorial que teve incio com o golpe de 1964. Esclarecimento dosfatos, para evit-los no futuro, para deixar claro sociedade que os algozes, que (se vivemem paz com suas conscincias) no podem deixar de prestar contas nao, pelossofrimentos que causaram aos milhares de brasileiros e pelos descaminhos poltico, social,econmico e cultural que impuseram ao Brasil. Uma reafirmao contra a falcia de queo Estado usou mtodos violentos para reagir violncia de grupos polticos queconsideravam seus inimigos, sejam comunistas, democratas-cristos, socialistas,guerrilheiros ou resistentes outros. Quem deu incio violncia, assim como BenitoMussolini, Adolf Hitler e Juan Francisco Franco, foram eles, com o golpe de 1964 e scentenas de prises e torturas, a exemplo do que foi feito com o dirigente comunistaGregrio Bezerra, arrastado pelas ruas de Recife-PE em abril de 64. Reagimos aqui nossa maneira, como sua maneira o fizeram os partisans, na Itlia; os combatentes dasresistncias francesa e grega na luta antifacista; dos argelinos contra a dominao colonialfrancesa, quando o aparelho de Estado deixa de ser o guardio da democracia, dasegurana e do bem-estar de toda a populao para privilegiar os interesses de um grupo,autoescolhido ou escolhidos ao arrepio da vontade popular e em nome desta subjugar amaioria do povo. Ao Estado, como o concebemos, em qualquer circunstncia, no dadoo direito de prises ao arrepio da lei, a torturar, sequestrar e matar, crimes imprescritveise que lei nenhuma pode tolerar.

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  • A Vala de Perus e a questo democrtica

    Pretende assim, esta publicao, contribuir com a edificao de nossa incipientedemocracia, que est sendo construda pelos movimentos sociais, pelos parlamentares,governantes, procuradores e juzes progressistas, no Legislativo, Executivo e Judicirio.Esse encontro com a Histria reafirma a inaceitabilidade da tortura e do assassinatopraticado contra qualquer pessoa, mesmo condenada ou espera de condenao judicial.

    A tortura, o assassinato, o desaparecimento de corpos no pode, jamais, ser uma prticado Estado ou de seus agentes. E quando isto acontecer imperiosamente necessrio oesclarecimento dos fatos e responsabilizao judicial de quem assim agiu, foi cmplice,se omitiu ou foi conivente com o crime.

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  • Arevelao da existncia de uma vala clandestina dentro deum cemitrio oficial, com restos mortais de desaparecidospolticos e cidados mortos pela violncia social da ditaduramilitar, desencadeou um processo de busca da verdade sem

    precedentes no pas. A vala clandestina do Cemitrio Dom Bosco emPerus foi apresentada ao mundo como um dos muitos crimes cometidospelo regime ilegal e ilegtimo surgido com o golpe de estado de 1964.

    As consequncias dessa revelao foram enormes e tiveram reflexosem todas as partes do Pas, provocando a busca de vrios setores sociaisda verdadeira face de um perodo de violncia do Estado contra seuscidados. Uma das mais importantes, pioneira no parlamento brasileiro,foi a criao da Comisso Parlamentar de Inqurito - CPI da CmaraMunicipal de So Paulo sobre a vala clandestina do Cemitrio DomBosco, no bairro de Perus.

    Este livro d a dimenso do que foi aquele momento histrico, seuimpacto junto opinio pblica poca, o que ela pode contribuir com asComisses da Verdade em nveis federal, estadual e municipal; eprincipalmente as perguntas ainda sem resposta sobre a identificao dasossadas descobertas, e sobre as aes que responsabilizam os praticantesdos crimes de tortura, assassinato e ocultao de corpos.

    Os trabalhos da CPI da Vala de Perus (Comisso Parlamentar deInqurito Perus: desaparecidos polticos) aconteceram ainda nos primeirosanos do processo de reconstruo democrtica que ainda vivemos. Elacomeou logo aps a promulgao de uma nova Constituio Federal, comuma resistncia nada disfarada dos setores conservadores e com o receiobvio dos setores mais vacilantes de nossa sociedade. A sociedade civil notinha a fora organizada capaz de impor a necessidade de uma verdadeiraruptura com o perodo ditatorial e a execuo de uma prtica de Justia deTransio, viso s desenvolvida tempos depois.

    Trabalho fundamental para a democracia

    Ncleo MemriaNcleo de Preservao daMemria Poltica - Entidadeformada por militantespreocupados com o resgatehistrico e composto porparticipantes da luta contra aditadura, de outros movimentossociais e de jovens militantespreocupados com a construode pas e uma sociedadeprogressista e sem repressoaos movimentos sociais.www.nucleomemoria.org.br

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    APRESENTAO

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    Trabalho fundamental para a democracia

    O pacto federativo no permite que as cmaras municipais tenham poderes derequisio de documentos ou de convocao de agentes pblicos das esferas estadual efederal. Isso no impediu que a comoo pblica diante de fatos to graves como osrevelados pela CPI da Vala de Perus, obrigasse a colaborao dos governantes do estadode So Paulo e da Unio com as investigaes realizadas pela comisso parlamentar deinqurito do parlamento paulistano.

    Fato indito no pas, a CPI da Vala de Perus ouviu um grande nmero de envolvidosnos crimes e que levaram a criao daquele depsito macabro de restos mortais de maisde mil pessoas. Delegados de polcia que trabalharam no DOI-CODI (Destacamento deOperao e Informao do Centro de Operaes e Defesa Interna) do II Exrcito(Comando Militar do Sudeste - CMSE), rgo de represso, torturas e assassinatos demilitantes polticos contra a ditadura; mdicos legistas responsveis por autpsias falsasque acobertavam as torturas cometidas pela represso poltica e muitos agentes do aparatomunicipal foram ouvidos e acabaram por revelar fatos e procedimentos at aquela datadesconhecidos da opinio pblica.

    A Comisso Parlamentar de Inqurito tambm fez buscas em locais clandestinos ondeo aparato repressivo mantinha em crcere privado, torturava e matava militantes daresistncia contra a ditadura militar. Entre os locais que a CPI buscou provas da atuaoclandestina do DOI-CODI e do CIEx (Centro de Informaes do Exrcito) estava o Stio31 de Maro, na regio de Parelheiros, extremo sul do municpio de So Paulo. Distantedos olhos e ouvidos da populao, nesse local macabro, torturas, assassinatos edesaparecimentos de corpos de homens e mulheres que ousaram lutar contra a ditaduramilitar eram uma prtica constante.

    E o mais importante de tudo, a CPI ouviu as vtimas dos crimes cometidos pelo Estadousurpado em 1964. Sobreviventes das cmaras de torturas fizeram relatos aterradores sobreas brutalidades por que passaram. Familiares de desaparecidos puderam, pela primeira vez,contar oficialmente os passos que deram na procura de pessoas sequestradas pelo aparatorepressivo e toda dor por no poder sepultar pais, mes, irmos, filhos ou filhas.

    No curto espao de alguns meses o perodo de terrorismo de Estado de vinte e umanos, tempo oficial que durou a ditadura implantada em 1964, foi revelado ao pas e aomundo em detalhes alarmantes. As pessoas sepultadas naquela vala clandestina eram,

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    Vala Clandestina de Perus

    alm de militantes polticos que lutaram contra uma ditadura implacvel, cidadosbrasileiros que tiveram seus mais elementares direitos desrespeitados e violados.

    Os resultados dos trabalhos feitos pela Comisso Parlamentar de Inqurito da CmaraMunicipal de So Paulo foram fundamentais para que brasileiros e povos de outras terrasconhecessem um dos piores perodos da Histria do Brasil. Hoje, dcadas depois, a CPIda Vala de Perus continua sendo indispensvel, no s para estudiosos e pesquisadores,mas principalmente para toda pessoa que acredita e atua na construo de uma verdadeiraDemocracia em nosso pas tendo como princpio e prtica a defesa e a valorizaoconstante dos direitos da cidadania.

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  • talo Cardoso Vereador da cidade de SoPaulo e ex-deputado estadual.Participou da CPI Perus Desaparecidos Polticos;presidiu as Comisses deDireitos Humanos da AssembliaLegislativa do Estado de SoPaulo e da Cmara Municipal deSo Paulo, onde foi reconduzidoao cargo vrias vezes.

    17

    Foram pouco mais de seis meses de muito trabalho. Perodoonde compromisso, responsabilidade histrica e tensoandavam lado a lado. Todos que trabalharam na ComissoParlamentar de Inqurito - CPI, vereadores, assessores

    parlamentares e integrantes dos departamentos tcnicos da CmaraMunicipal de So Paulo - CMSP, percebiam a cada reunio que viviamum momento nico. Cada sesso ou diligncia realizada significava, aomesmo tempo, um mergulho num passado doloroso, mais ainda por serrecente, e um presente que invariavelmente teria que ser transformado eminstrumento de reflexo e de recuperao dos valores dos direitoshumanos e da democracia.

    Esta publicao tem compromisso com a Justia, com o direito memria, verdade e histria. Ela tambm uma homenagem aosfamiliares e descendentes de homens e mulheres que fizeram parte deuma gerao marcada pelo desprendimento, coragem e generosidade.Gerao com discurso e prtica, sempre com o objetivo de fazer destepas um lugar melhor para si, para os outros, para geraes futuras. Genteque teve direitos cassados por artigos e decretos, que foi retratada,perseguida e caada como monstro, mas que tinha rosto, gesto, atitude ecomportamento cidado.

    Quem tem os valores democrticos como referncia e prtica polticano tem como negar o direito resistncia que essas pessoas, boa parteformada por jovens na casa dos 20 ou 30 anos, exerceram na plenitude,pagando com a prpria vida a ousadia de lutar e tentar vencer um poderestabelecido pela fora, pela violncia.

    Durante os depoimentos prestados no Plenrio 1 de Maio da CmaraMunicipal de So Paulo a histria brasileira recente foi desnudada. Cadainterveno dos vereadores era movida apenas e to-somente pelo

    Mais um passo no caminho da Justia

    1INTRODUO

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    Vala Clandestina de Perus

    compromisso de apurar a verdade, custasse o que custasse. Todos ns, o presidente daCPI, vereador Julio Csar Caligiuri Filho, do Partido Democrtico Trabalhista - PDT; arelatora, vereadora Teresa Lajolo, do Partido dos Trabalhadores - PT, e os vereadores AldoRebelo, que depois seria substitudo por Vital Nolasco, do Partido Comunista do Brasil -PC do B, cumprimos nosso dever.

    Em momento algum nos deixamos levar pela agressividade ou nos intimidar porhomens que participaram do sistema repressivo, e que at h pouco tempo agiamonipotentes, certos de que os sobreviventes seriam vencidos pelo medo e prefeririam osilncio denncia. Essa onipotncia tambm era movida pela certeza que a impunidadeseria eterna. Um exemplo desse comportamento sensato foi dado pelo vereador VitalNolasco, que esteve preso no Departamento de Ordem Poltica e Social - DOPS, passoupela crueldade da tortura, mas em instante algum buscou no rancor e na agressividadeverbal a fora de sua argumentao.

    O trabalho da CPI tambm contou com o apoio inestimvel da ento prefeita LuizaErundina. Do momento da abertura da vala, da instalao da CPI at a entrega do relatriofinal, ela colocou disposio da Comisso os arquivos do Servio Funerrio Municipal,alm de mobilizar vrios setores do governo paulistano que pudessem colaborar com obom andamento dos trabalhos. Alm de determinar a apurao imediata dos fatos, LuizaErundina firmou convnio com o governo do Estado de So Paulo e a UniversidadeEstadual de Campinas - UNICAMP - para identificao das ossadas. Em todos osmomentos a prefeita deu exemplos de colaborao e compromisso com a investigaodos fatos. Luiza Erundina traduziu na prtica a chamada vontade poltica de contribuircom as investigaes, cumprindo seu dever de prefeita-cidad comprometida com aapurao da verdade e com a construo democrtica.

    Foram ouvidos familiares de desaparecidos, ex-presos polticos, vtimas etestemunhas da barbrie. Da mesma forma tambm foram colhidos depoimentos de doisex-governadores, um deles tambm ex-prefeito, que foram aliados incondicionais daditadura militar; um coronel do Exrcito, delegados, policiais militares, investigadorese escrives do DOPS e mdicos legistas. Em muitos momentos nos emocionamos coma angstia de homens e mulheres que queriam apenas conhecer as circunstncias dasmortes de parentes mortos sob tortura e que jamais tiveram os corpos encontrados. Em

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    Mais um passo no caminho da Justia

    outros tivemos que suportar o cinismo, a empfia e a indiferena, exercidos no mais altograu por integrantes do aparato repressivo, quase sempre tentando negar o inegvel,diante das prprias assinaturas em documentos como decretos, autos de exibio eapreenso, fotos, fichas e exames necroscpicos encontrados no Servio Funerrio e noInstituto Mdico Legal - IML.

    Momentos de tenso foram inevitveis. Como o reencontro de torturadores etorturados, colocados frente a frente, agora numa situao talvez jamais imaginada pelosprimeiros. Em vez da ameaa e da crueldade dos socos, chutes, paus-de-arara, mquinasde choque, cadeiras-do-drago e simulaes de fuzilamento, o que eles enxergavam deforma contundente e decisiva era a fora dos fatos, da verdade, estas sim insuperveis einvencveis.

    Fundamentais nesta histria tambm foram os depoimentos de funcionrios do serviofunerrio da cidade de So Paulo, de simples sepultadores a administradores de cemitrios,como Antonio Pires Eustquio responsvel pela administrao do Cemitrio Dom Bosco,que deu contribuio decisiva para o esclarecimento de fatos que seus antecessorestentaram a todo custo esconder.

    Recuperar a histria da CPI Perus Desaparecidos Polticos contribuir com oprocesso de construo democrtica vivido pelo povo brasileiro. Esta publicao tem estecarter. Mas ela no apenas documental, com a publicao na ntegra do relatrio final,alm das fotos e depoimentos digitalizados e disponibilizados. Ela tambm traz osdesdobramentos das aes do Ministrio Pblico Federal - MPF em So Paulo propostaspelos procuradores Eugnia Augusta Gonzaga e Marlon Alberto Weichert, que solicitarama responsabilizao civil dos ex-comandantes do Destacamento de Operaes deInformaes - Centro de Operaes de Defesa Interna DOI-CODI entre 1970 e 1976,Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, por tortura e mortes no regimemilitar. Em outra ao os procuradores tambm pedem as responsabilizaes pessoais ecriminais de autoridades e agentes pblicos civis e da Unio, Estado e Municpio de SoPaulo por ocultao de cadveres de opositores da ditadura ocorridas nos cemitrios dePerus e Vila Formosa na capital, bem como a de pessoas jurdicas e legistas quecontriburam para que as ossadas de mortos e desaparecidos polticos na vala comum dePerus continuassem sem identificao.

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    Dois jornalistas tambm tiveram papel fundamental nessa histria: Caco Barcellos,da Rede Globo de Televiso, que descobriu e investigou a existncia da vala e produziumatrias exibidas no Jornal Nacional e depois no programa Globo Reprter; e Elza Hatori,do antigo Dirio Popular, hoje Dirio de So Paulo, que produziu a maior srie dereportagens sobre o assunto na imprensa brasileira. O trabalho de ambos levou aoconhecimento da opinio pblica a barbrie dos torturadores e a esperana de familiarese sobreviventes.

    Mas, esse captulo da Histria brasileira, no seria contado sem a voz, o trabalho, apersistncia, determinao e coragem de pessoas como Maria Amlia Almeida Teles,Suzana Lisboa, Ivan Akselrud Seixas, Gilberto Molina, Crimia Alice Schmidt deAlmeida, Joo Luiz de Morais, Csar Teles, Gertrudes Mayr, Felcia Mardini, EgleVanucchi Leme, Sonia Haas, Laura Petit, Maria Augusta Capistrano, Betinhos, Marias eClarices, avs, pais, mes, irmos e filhos Brasil afora que choraram e reconstruram asprprias vidas a partir de fios de esperana que renasciam da certeza de que era precisocontinuar.

    Todos os que carregam as marcas desse tempo sabem que indenizaes no curamdores, eliminam cicatrizes ou sepultam lembranas. O que consola e fortalece a certezada Justia, com a responsabilizao criminal e histrica dos envolvidos, acompanhada doesclarecimento das circunstncias das mortes e do direito de enterrar os restos mortaisdos entes queridos de acordo com suas crenas e credos.

    Esse captulo da histria brasileira continua aberto porque ainda h o que ser dito,mostrado, descoberto e, principalmente, julgado, isto porque, os atos praticados nasdependncias de prdios pblicos ou em imveis clandestinos so crimes de lesa-humanidade, sem prescrio, como determina as normas do Direito Internacional.

    Que esta publicao seja mais um passo neste caminho!

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  • Luiza Erundina de Sousa Luiza Erundina de Sousa foivereadora em So Paulo (1983-86), deputada estadual(1987-88) e prefeita deSo Paulo (1989-92).Foi ministra-chefe da Secretariada Administrao Federal noGoverno Itamar Franco em 1993.Atualmente deputada federal,eleita pelo Partido SocialistaBrasileiro - PSB. Coordena naCmara dos Deputados asFrentes Parlamentares pelaDireito Comunicao e pelaLiberdade de Expresso comParticipao Popular e pelaReforma Poltica com ParticipaoPopular. Tambm coordenadorada Comisso ParlamentarMemria, Verdade e Justiada Cmara dos Deputados.

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    No momento em que a Comisso Nacional da Verdade iniciaseus trabalhos, consideramos oportuno trazer memriacoletiva um fato estarrecedor, que causou um enorme impactona sociedade, que foi a descoberta da vala clandestina do

    cemitrio Dom Bosco, em Perus, na periferia de So Paulo.

    H mais de duas dcadas, descobriu-se que naquele cemitriomunicipal, construdo em 1971 pelo ento prefeito de So Paulo PauloMaluf, havia uma vala clandestina com 1.049 ossadas acondicionadas emsacos plsticos sem nenhuma identificao. Informaes do entoadministrador do cemitrio, o funcionrio Antonio Pires Eustquio,davam conta de que para l eram levados os corpos de indigentes, vtimasannimas do Esquadro da Morte, da misria social e da repressopoltica, para serem enterrados em covas individuais ou jogados numavala comum.

    Na condio de prefeita da cidade, ao ser informada sobre aquele fatoinusitado desloquei-me imediatamente para o cemitrio, a fim de assumirpessoalmente o controle da situao e declarei, naquela ocasio, ocompromisso do nosso governo de investigar e revelar toda a verdade arespeito de fatos to graves.

    Como primeira providncia, criamos uma Comisso para acompanhara exumao dos corpos, formada por secretrios do governo, o ServioFunerrio do Municpio, Tcnicos e peritos do Instituto Mdico Legal efuncionrios municipais.

    Com a participao de familiares de desaparecidos polticos e derepresentantes de entidades de defesa dos direitos humanos, tais como, aComisso Justia e Paz da Arquidiocese de So Paulo e o Grupo TorturaNunca Mais, tomamos todas as providncias necessrias imediatainvestigao e anlise pericial das ossadas. Nesse sentido, a prefeitura

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    firmou convnio com o Governo do Estado de So Paulo para que o Departamento deMedicina Legal da Universidade de Campinas pudesse realizar o trabalho de pesquisacientfica e identificao das ossadas.

    At o final do nosso governo, 30/12/1992, a equipe de pesquisadores da Unicampidentificou, nas ossadas do cemitrio Dom Bosco, sete corpos de desaparecidos polticosno perodo da ditadura militar, sendo que trs deles estavam na vala comum e quatro emsepulturas individuais. So eles: Frederico Eduardo Mayr; Dnis Casemiro; FlvioCarvalho Molina; Snia Moraes Angel Jones; Antonio Carlos Bicalho Lana; Luiz Josda Cunha; e Miguel Sabat Nuet.

    Com base em indcios de que corpos de desaparecidos polticos poderiam estarenterrados em outros cemitrios do municpio, as buscas se estenderam aos cemitrios deCampo Grande, zonal sul, e de Vila Formosa, zona leste da capital, porm foram suspensaspela Unicamp no final de 92, quando terminou o nosso governo. Contudo, no incio de2010 a Justia Federal de So Paulo, a pedido do grupo Tortura Nunca Mais, concedeuliminar determinando que as ossadas da vala comum do cemitrio de Perus fossemsubmetidas a exames de DNA e que a Unio e o estado teriam seis meses para promoversua identificao. Essa deciso representa uma extraordinria vitria, no s dos familiaresdos mortos e desaparecidos polticos, mas tambm de todos os que lutam para que averdade sobre os crimes da ditadura militar seja revelada, e os responsveis por eles,identificados e devidamente punidos.

    evidente que a realidade poltica de duas dcadas atrs e a correlao de foras entoexistente eram relativamente mais desfavorveis do que as de hoje para o enfrentamentode tais questes. No entanto, o fizemos por entender que a defesa da causa da Verdade eda Justia so um imperativo histrico e condio para que o processo deredemocratizao do pas se conclua.

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  • Luiz HespanhaJornalista, escritor e pesquisadorda Histria da ditadura civil-militarinstalada no Brasil em 1964.Assessor parlamentar na CmaraMunicipal de So Paulo pocada instalao da CPI Perus:desaparecidos polticos.

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    Ainda hoje tem muito morador de So Paulo que acha quePerus mais um municpio da regio metropolitana e noum bairro da zona noroeste da capital. Essa confuso justificada pelo fato de Perus ser um ncleo urbano com

    caractersticas de isolamento at pela situao geogrfica. Localizado naregio do Vale do Juqueri e da Serra da Cantareira, Perus j tinha essapeculiaridade no perodo colonial, quando era passagem obrigatria detropeiros e entreposto de abastecimento; o que se manteve ao longo dotempo quando a regio se tornou parte do cinturo verde da capital paulista,mas mantendo ligaes histricas e culturais com cidades vizinhas comoCaieiras, Franco da Rocha, Francisco Morato e Cajamar.

    Perus tambm foi sede da primeira fbrica de cimento do pas,instalada em 1926, e que levou o nome do bairro. O material ali produzidofoi utilizado na construo de boa parte dos edifcios, tneis e viadutos dacidade de So Paulo entre os anos de 1930 e 1960. Esse componenteindustrial tambm provocou em Perus o surgimento de um movimentosindical e popular organizado e forte. Essa capacidade de mobilizaotem origem no Sindicato da Categoria Cimenteira, bero das lutas dosqueixadas, como eram chamados os operrios do cimento, e que aindamantm vivas sua histria e fora atravs das demandas ambientais quesurgiram com a instalao de um aterro sanitrio e a construo doRodoanel.

    Ainda hoje, ir a Perus como fazer uma viagem. Essa distncia docentro nervoso da capital foi uma das razes que levaram civis e militaresa escolherem o cemitrio recm-inaugurado como ideal para enterrosno necessariamente cristos. O Cemitrio Dom Bosco foi inauguradoem 1970, na primeira gesto do prefeito Paulo Maluf, escolhido pelos

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    militares para administrar a maior cidade do pas num perodo em que a tortura, a mortee os desaparecimentos de opositores polticos eram uma poltica de Estado.

    No h registro documental da deciso, mas o cemitrio seria utilizado no apenaspara servir de ltima morada para os mortos da regio, mas tambm de depsito decadveres de indigentes, vtimas da violncia urbana, das aes do Esquadro da Mortee para enterrar, ou fazer desaparecer, os corpos de militantes de organizaesrevolucionrias que ousaram enfrentar numa luta desigual a ditadura iniciada em 31 demaro de 1964.

    O projeto original previa a implantao de um crematrio. Diante das suspeitas que adeciso provocou; e tambm os impedimentos legais para a instalao de um crematrioespecfico para indigentes, o projeto acabou sendo transferido. Inicialmente para oCemitrio de Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte, e depois para o Cemitrio de VilaAlpina, na zona leste, onde o crematrio foi finalmente instalado.

    Em 1975 vrias ossadas foram exumadas de duas quadras do cemitrio de Perus. Eraperfeitamente possvel supor que restos mortais de oponentes do regime estivessem entreelas. Com o abandono do projeto de cremao em 1976, as ossadas ficam amontoadas.Neste mesmo ano, 1.049 ossadas foram jogadas numa vala. Assim surgiu a valaclandestina do Cemitrio Dom Bosco.

    A caixinha da Oban

    OCemitrio Dom Bosco era a ltima ponta de um novelo que comeava no DOPSe na Operao Bandeirante - Oban, uma criao da aliana empresarial e militar,voltada para sustentar as operaes de busca, captura, tortura e interrogatrio dossubversivos, dos terroristas, termos martelados exausto nas pginas dos jornais enoticirios do rdio e da tev poca.

    A Oban surgiu por meio de uma Diretriz para a Poltica de Segurana Interna expedidapela Presidncia da Repblica em julho de 1969. De acordo com ela, o sistema desegurana, de combate subverso, ficaria sob as ordens de um oficial do Exrcito ligado Seo de Informaes do Comando Militar do Leste. Este oficial poderia requisitarefetivos da Polcia Militar de So Paulo, delegados, investigadores, escreventes ecarcereiros para atuar na represso poltica.

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    Idealizada pelos generais Jos Canavarro Pereira e Ernani Ayrosa da Silva, a Obanfoi instalada no governo de Roberto de Abreu Sodr, que participou da solenidade delanamento. O local escolhido foi uma delegacia policial situada nas esquinas das ruasTutia e Toms Carvalhal, bem prximo do Quartel General do Exrcito no bairro doIbirapuera. As contribuies do governador Roberto de Abreu Sodr e do prefeito PauloSalim Maluf foram polticas e, tambm, estruturais. A rea foi asfaltada e ganhou novailuminao de mercrio. Mas era preciso mais: era necessrio dinheiro, muito dinheiro.

    Esta parte foi resolvida com a caixinha do empresariado paulista liderado pelo donodo Banco Mercantil de So Paulo, Gasto Eduardo de Bueno Vidigal, e co-irmos dapoderosa Federao das Indstrias de So Paulo, a FIESP. Um desses empresrios, odinamarqus Henning Albert Boilesen, fazia bem mais que arrecadar dinheiro, gostava devisitar as salas de tortura e ver a utilizao de um equipamento importado por ele e cedido polcia poltica. A pianola Boilesen produzia descargas eltricas em diferentes voltagense que eram aplicadas nos presos subjugados nas cmaras de tortura na sede da Oban narua Tutia.

    Com a caixinha da Oban a mquina repressiva ficou azeitada. Empresas como a Ford,Volks, Ultrags e a Folha da Manh, responsvel pelos jornais Folha de So Paulo e Folhada Tarde, forneciam automveis, caminhes e camionetes para operaes realizadas pelapolcia poltica. A comida gelada servida na carceragem em nome da defesa da ptria, dafamlia e da propriedade contra o perigo comunista, era cortesia da Supergel. Emdepoimento ao jornalista Elio Gaspari no livro A ditadura escancarada, o ex-governadorPaulo Egydio Martins, disse que todos os grandes grupos comerciais e empresariais doestado contriburam para o incio da Oban (GASPARI, 2002, p. 62).

    Crueldade e profissionalismo na tortura

    Ocombate aos opositores do regime, e no s queles que faziam oposio armada,atingiu um grau de violncia que no ficou a dever em nada utilizada contrandios e negros escravos no perodo colonial, muito menos praticada contra osseguidores de Antonio Conselheiro na Guerra de Canudos, ou contra o bando de VirgulinoFerreira, o Lampio. Ser prisioneiro da ditadura significava ficar literal e cruelmentedespido de qualquer direito, por mais elementar que ele parecesse.

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    O sistema repressivo produziu personagens que se notabilizaram pela brutalidade eprofissionalismo na prtica da tortura, e muita rapidez e sigilo na realizao de enterrose desaparecimentos. Em So Paulo boa parte deles veio dos quadros da Polcia Civil,como os delegados Srgio Paranhos Fleury, David dos Santos Arajo, Josecyr Cuoco,Ivahir Freitas Garcia, Otvio Gonalves Moreira Jnior, Raul Nogueira e Alcides CintraBueno, este transformado em coveiro oficial do DOPS, tal a presteza em realizarsepultamentos clandestinos.

    impossvel dissociar as atividades de todos os que em nome da defesa da ptriatorturaram e mataram daquilo que determinava a poltica do Estado comandado por generaiscomo Emilio Garrastazu Mdici e Ernesto Geisel, secundados por colegas de farda e patentecomo Joo Batista Figueiredo, Humberto de Souza Melo; ou brigadeiros como Joo PauloBurnier; almirantes como Augusto Rademaker; e coronis, majores, capites e tenentes, comoErasmo Dias, Adyr Fiza de Castro, Newton Cerqueira, Carlos Alberto Brilhante Ustra,Benoni de Arruda Albernaz, Waldir Coelho, Enio Pimentel da Silveira, Mauricio Lopes Lima,Dalmo Luiz Cirilo, Inocncio Fabrcio Beltro, entre outros. Nos anos 70 esses, e mais de trsdezenas de nomes de militares e civis, foram denunciados como mandantes, praticantes ouconiventes com torturas num dossi elaborado pelos presos polticos brasileiros.

    Em So Paulo a represso e a tortura tornaram tristemente clebres um policial civilque comeou a carreira fazendo segurana de cantores da Jovem Guarda e um major doexrcito que chegou a ser qualificado por outro colega de farda e patente comoincompetente (GASPARI, 2002, p. 187): um era o delegado Srgio Paranhos Fleury, oDr. Vidigal Barreto, codinome usado em vrias operaes, ou simplesmente Papa, comoera tratado cerimoniosamente pela equipe de investigadores. O outro era o ento majorCarlos Alberto Brilhante Ustra, o Major Tibiri, que comandou de 1970 a 1974, o DOI-CODI paulista, principal centro de tortura de So Paulo.

    A escolha de Fleury para o aparato repressivo ocorreu naturalmente. O delegado jtinha conquistado notoriedade pelos mtodos utilizados contra marginais e contraventores,de quem podia, ao mesmo tempo, ser algoz e scio. Corrupto e violento, Fleury foitransformado em exemplo de eficincia na luta contra os opositores do regime. Transitavacom a mesma desenvoltura na represso poltica e na bandidagem, onde vendia proteopara traficantes de drogas.

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    O regime usou e abusou de seus servios. Preso em agosto de 1970 no Rio de Janeiropelo delegado, o ento militante da Aliana Libertadora Nacional - ALN Ottoni FernandesJnior (2004, p. 36) diz que Fleury

    [...] no era apenas um bate-pau, um policial violento. Recorria friamente tortura, mas erainteligente. Colhia pistas, juntava depoimentos e informaes arrancadas sob tortura,analisava os indcios. Dizia que ia desenrolando as pontas do novelo at chegar onde queria.

    Otoni esteve na Casa da Morte, um centro de tortura utilizado por Fleury no bairro deSo Conrado, no ento estado da Guanabara.

    Alm do centro de operaes do DOI-CODI, na rua Tutia, e de outras Delegacias dePolcia onde tinha livre acesso, Srgio Fleury tambm teve disposio um stiodenominado 31 de Maro, localizado no bairro de Embura, em Parelheiros, no extremosul da capital paulista. Vrios presos polticos foram levados para l e torturados. Fleurytambm realizou operaes em outros estados e at em outros pases. Exilados brasileirosdenunciaram sua presena em Santiago, no Chile, no perodo do golpe militar contra opresidente Salvador Allende, em setembro de 1973. O mesmo teria acontecido em 1976,no golpe militar que levou ao poder na Argentina o general Rafael Videla.

    Para no correr o risco de v-lo condenado no processo movido pelo procurador HlioBicudo sobre as aes do Esquadro da Morte, a ditadura fez o Congresso Nacionalaprovar em 1973 a Lei n 5.941, que permitia todos os rus primrios, com residnciafixa e com bons antecedentes (grifo nosso) respondessem julgamento em liberdade,mesmo se tivessem sido condenados em primeira instncia. A Lei, criada para beneficarum criminoso, ganhou o nome do prprio: entrou para a histria da jurisprudnciabrasileira como Lei Fleury.

    No processo movido pelo promotor Hlio Bicudo contra o Esquadro da Morte foramdenunciadas 31 execues, atribudas a 35 delegados, investigadores e informantespoliciais. Fleury foi acusado de participar de 22 assassinatos. Indiciado e condenado nosprocessos do Esquadro da Morte, jamais cumpriu pena, tendo sido sempre absolvido outendo as prises revogadas.

    O Cemitrio Dom Bosco de Perus era, se no o principal, um dos destinos finais dosmortos sob tortura pela equipe de Fleury. Ele sabia da existncia do local e encaminhoucorpos de opositores do regime para serem enterrados ali. Entre 1971 e 1973 pelo menos

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    25 pessoas capturadas com vida foram enterradas com identidades verdadeiras ou comnomes falsos no cemitrio.

    Fleury morreu num misterioso acidente em Ilhabela, litoral norte de So Paulo, quandoteria cado de uma lancha na madrugada de 1 de maio de 1979. Seu corpo foi sepultadosem ter sido necropsiado, o que levantou a suspeita de que ele teria sido vtima de queimade arquivo. Oficialmente a causa mortis foi afogamento.

    Menos espalhafatoso que Fleury, o ento Major Carlos Alberto Brilhante Ustra,comeou seu trabalho na Seo de Informaes do II Exrcito em So Paulo. Estaexperincia lhe seria muito til no trabalho frente do DOI-CODI. Segundo o historiadorGorender (1990, p. 157)

    [...] De maneira meticulosa, Ultra sistematizou as operaes de investigao, captura,interrogatrio, anlise de interrogatrios, fichrio e cruzamento de informaes etc.

    Ainda segundo Gorender (1990, p. 157): [...] sob suas ordens, a tortura deixou de serarbitrria e catica e se tornou uma prtica orientada e metdica, friamente executada..

    Mas o profissionalismo de Ustra, que teve sob controle a vida de cerca de 2 mil presos,no ficava restrito apenas sala em que analisava informaes e estabelecia diretrizespara as aes. O major Tibiri, como era chamado respeitosamente pelos parceiros naprtica da tortura, comandava pessoalmente os suplcios. Presa no final de 1972, aprofessora Maria Amlia de Almeida Teles disse em depoimento CPI Perus,Desaparecidos Polticos, em novembro de 1990:

    [...] a tortura comeou no ptio da Oban, recebi um soco no rosto do Major Ustra e ca nocho. Em seguida me agarraram e levaram para a sala de tortura, onde eu, o Csar e oDanielli fomos torturados. Eu ouvia os gritos dos dois e eles ouviam os meus. Teve ummomento em que eles levaram meus filhos e eles me viram. Depois continuamos sendotorturados. (SO PAULO, 1992.)

    Em outro depoimento, desta vez prestado em 2006 por ocasio da primeira sessopblica do julgamento de caso em que a famlia Teles moveu ao para o major Ustrafosse reconhecido como torturador, Maria Amlia Teles, reiterou:

    [...] Foi ele quem mandou invadir a minha casa, buscar todo mundo que estava l, meusfilhos e minha irm. Durante cerca de 10 dias, minhas crianas me viram sendo torturadana cadeira de drago, me viram cheia de hematomas, com o rosto desfigurado, dentro da

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    cela. Nessa semana, em que meus filhos estavam por ali, eles falavam que os dois estavamsendo torturados. Diziam tambm que eu ia ser morta, um terror o tempo todo. (FRUM,2010)

    A equipe comandada pelo Major Tibiri no tinha limites. O stimo ms de gravidezde Crimia Alice Schmidt de Almeida, tambm presa com a irm Maria Amlia e seu maridoCsar Teles, no a livrou das torturas. Ela tomou choques eltricos e sofreu espancamentos.Em depoimento prestado CPI em 14 de novembro de 1990, Crimia disse:

    [...] algum que se dizia mdico falava que eu no deveria ser pendurada no pau de arara,nem levar choque na vagina, no nus, ou nos olhos porque estava grvida, mas levei choquenos ps e nas mos. (FRUM, 2010)

    Em sentena publicada em outubro 2008 o Tribunal de Justia de So Paulo declarou queCarlos Alberto Brilhante Ustra foi oficialmente reconhecido como torturador. A deciso daJustia foi motivada por ao declaratria requerida por Maria Amlia de Almeida Teles, seumarido Csar Teles, os filhos Janaina de Almeida Teles e Edson Lus de Almeida Teles, eCrimia Alice Schmidt de Almeida, que foram presos e torturados pelo ento major nadependncias da Oban. Devido Lei da Anistia, Brilhante Ustra no poderia ser condenadocriminalmente, mas poderia, como foi, ser declarado oficialmente torturador.

    A ao movida pela famlia Teles no pretendia a obteno de indenizao do Estado,mas o efeito poltico atravs do reconhecimento da Justia que o comandante do DOI-CODI comandava e praticava pessoalmente a tortura. A deciso, indita na Justiabrasileira, reconheceu a participao de um militar de alta patente em torturas contracivis. A deciso histrica pode abrir precedente para questionamentos sobre ainterpretao da Lei da Anistia, que tambm protege agentes do Estado responsveispela prtica de tortura.

    Assim como o delegado Srgio Fleury, o ento major Carlos Alberto Brilhante Ustratambm sabia da existncia do Cemitrio de Perus. Fleury no pode ser ouvido pela CPIdas Ossadas, que foi instalada na Cmara Municipal de So Paulo porque havia morridoum ano e cinco meses antes. J Brilhante Ustra foi convocado e no compareceu paraprestar depoimento. Atitudes semelhantes tiveram os tambm militares Benoni de ArrudaAlbernaz e Dalmo Luiz Cirilo. A chamada convocao coercitiva por ordem judicialacabou no acontecendo por causa do vencimento do prazo dos trabalhos da CPI.

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    A descoberta da Vala e a abertura da CPI

    Ofio da meada sobre a vala clandestina do cemitrio de Perus comeou a serpuxado pelos familiares dos militantes presos e mortos na tortura pela Oban epelo DOI-CODI em So Paulo. Em 1973, depois de visitar vrios cemitrios da cidade, afamlia dos irmos Iuri e Alex de Paula Xavier Pereira, militantes da Ao LibertadoraNacional, viu nos livros do cemitrio o registro do sepultamento de Joo Maria de Freitas,nome falso usado por Alex na clandestinidade. O relato foi feito em 1979 a outrosfamiliares de mortos e desaparecidos polticos no III Encontro Nacional dos Movimentosde Anistia, no Rio de Janeiro.

    Neste mesmo ano, parentes de integrantes de organizaes guerrilheiras foram a Peruse obtiveram a certeza que outros militantes mortos foram enterrados sob identidade falsano local. Um deles foi Gelson Reicher, enterrado com o nome de Emiliano Sessa, o outrofoi Lus Eurico Tejera Lisboa, sepultado com o nome de Nelson Bueno. Ambos militaramna ALN. O mesmo aconteceu com Flvio Carvalho Molina, militante Movimento deLibertao Popular - Molipo, sepultado como indigente com o nome falso de lvaroLopes Peralta. Na poca se suspeitava que tambm estariam enterrados no Cemitrio DomBosco os corpos dos irmos Denis e Dimas Casemiro, do Movimento RevolucionrioTiradentes; Francisco Jos de Oliveira, Frederico Eduardo Mayr e Hiroaki Torigoe,integrantes do Molipo.

    Vrios militantes de organizaes revolucionrias assassinados pela ditadura foramenterrados em Perus. Antonio Benetazzo, Alexandre Vanucchi Leme, os irmos Alex dePaula Xavier Pereira e Iuri Xavier Pereira, Antonio Carlos Bicalho Lana, Antonio Srgiode Matos, Eduardo Antonio da Fonseca, Jos Milton Barbosa, Luis Jos da Cunha, PedroEstevam Ventura Pomar, ngelo Arroio, Carlos Nicolau Danielli e Joaquim Alencar deSeixas esto entre aqueles que foram localizados pelos familiares, mesmo sofrendoameaas quando da procura nos arquivos dos cemitrios ou do Instituto Mdico Legal, ouna visita dos tmulos.

    Em depoimento prestado CPI Perus em 22 de outubro de 1990, o jornalista IvanAkselrud Seixas disse: o corpo de meu pai foi localizado por uma tia. Ela conseguiu oatestado de bito que dava o local do sepultamento como sendo o cemitrio de VilaFormosa (SO PAULO, 1992.). Ivan destacou as ameaas sofridas pela famlia:

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    [...] quando minha me e minhas irms foram libertadas aps um ano e meio de priso,passaram a visitar o cemitrio. Elas eram acompanhadas e ameaadas por policiais desdeo trajeto da estao de trem de Perus at o cemitrio, dois ou trs quilmetros adiante.Muitas vezes as ameaas aconteciam nas proximidades do tmulo. (SO PAULO, 1992.)

    Segundo o jornalista Antonio Carlos Fon, autor do livro Tortura, histria da repressopoltica no Brasil, lanado em 1979 pelo Comit Brasileiro de Anistia, a informao quehavia corpos de desaparecidos polticos em Perus j corria nos meios policiais desde oincio de 1970. Fon tambm foi preso pela ditadura em 1969. Os policiais que o prenderame o torturaram queriam informaes sobre seu envolvimento com a ALN e o paradeiro deseu irmo, Aton Fon Filho, militante desta organizao. O jornalista prestou depoimento CPI em 17 de outubro de 1990.

    Mas foi em 1990 que a histria da vala clandestina do Cemitrio Dom Bosco comeoua ser aberta para os brasileiros. As suspeitas e levantamentos feitos pelos familiares demortos e desaparecidos polticos se somaram ao trabalho investigativo do jornalistaCludio Barcelos e Barcellos, conhecido profissionalmente como Caco Barcellos, da RedeGlobo de Televiso. Caco investigava a venda de caixes nos cemitrios da capital parauma reportagem para a tev. Paralelamente ele tambm fazia um levantamento sobre asmortes envolvendo policiais militares na cidade de So Paulo, material que foi utilizadono livro Rota 66, lanado em 1992 pela Editora Record e considerado um dos maiscompletos relatos j publicados no Brasil sobre a violncia policial.

    Soube da vala clandestina de Perus em 27 de julho de 1990. A informao veio doadministrador do cemitrio, Antonio Pires Eustquio disse o reprter em depoimentoprestado CPI em 17 de outubro de 1990. (SO PAULO, 1992.) Caco checou a informaoe constatou que no havia registro oficial da existncia da vala no departamento ondeestavam as plantas dos cemitrios da cidade de So Paulo. O contato com familiares depresos e desaparecidos polticos, como Suzana Lisboa, mulher de Luis Eurico TejeraLisboa e Gilberto Molina, irmo de Flvio de Carvalho Molina, ajudaram a construir oquadro. O administrador abriu a vala e ns vimos cinco ou seis ossadas, nenhuma tinhaidentificao, no havia etiquetas.

    O jornalista e sua equipe cruzaram as informaes sobre as mortes provocadas por causasviolentas com dados do Instituto Mdico Legal, com as listas dos desaparecidos polticos e

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    reportagens publicadas em jornais. Outro cruzamento foi feito com o livro de registros docemitrio. Foram encontradas fichas com dados de pessoas que participaram da resistnciaao regime militar e eram consideradas desaparecidas. Muitas dessas fichas estavammarcadas com lpis vermelho com a letra T, que significava terrorista. A pesquisa levou descoberta de que pelos menos sete presos polticos mortos estariam enterrados no CemitrioDom Bosco: Grenaldo Jesus da Silva, Dimas e Denis Casemiro, Frederico Eduardo Mayr,Francisco Jos de Oliveira e Flvio de Carvalho Molina. A descoberta ganhou repercusso.

    Em 4 de setembro de 1990 a vala virou alvo de investigao oficial com a deciso daprefeita de So Paulo, Luiza Erundina de criar a Comisso Especial de Investigao dasOssadas de Perus. Ela determinou a apurao dos fatos e firmou convnio com o governoestadual e com a Universidade de Campinas para identificao das ossadas. Em 5 deoutubro de 1990 a Cmara Municipal de So Paulo aprovou a instalao de ComissoParlamentar de Inqurito para investigar a origem e as responsabilidades quando sossadas encontradas no Cemitrio Dom Bosco, em Perus, e investigar a situao dosdemais cemitrios de So Paulo.

    Em visita Cmara paulistana em 18 de outubro de 1900, a prefeita Luiza Erundinadisse:

    [...] quis Deus e a Histria que essa situao casse em nossas mos como prefeita de SoPaulo. Os fatos vieram nos colocar uma responsabilidade histrica, tanto do executivoquando do legislativo, que levar s ltimas consequncias a apurao da verdade sobreaquelas pessoas enterrada naquele cemitrio pblico. (SO PAULO, 1992.)

    Tenso e cinismo!

    ACPI Perus Desaparecidos Polticos foi a primeira Comisso Parlamentar deInqurito instalada num parlamento brasileiro com o objetivo de averiguar ascircunstncias das mortes e desaparecimentos de opositores do regime militar. Suainstalao em So Paulo, ao lado da cidade do Rio de Janeiro, um dos cenrios principaisda guerra suja, do combate travado na escurido da censura e da represso absoluta, deu CPI dimenso histrica. Seu significado e consequncias so, e continuaro, sendodebatidos e avaliados, servindo como elemento de estudo de pesquisadores e, tambm,como ocorre hoje, de base para aes do Ministrio Pblico.

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    Depoimentos, diligncias, visitas, anlises de documentos, fotos, formulao de perguntas,rplicas e trplicas, tudo requeria concentrao total. Nenhum dos integrantes da comissopodia fazer acusaes gratuitas ou genricas, cair em provocaes, e ver o trabalho manchadopela suspeita da parcialidade, das afirmativas e da produo de um relatrio final meramentepoltico, sem provas documentais, baseado em relatos desprovidos de credibilidade.

    Mas, o material levantado e o teor dos depoimentos eram simplesmente irrefutveis. Sea Justia anda a passos de jabuti nas decises sobre a responsabilidade dos autores doscrimes praticados contra homens e mulheres indefesos nas cmaras de tortura, nas sessesrealizadas no Plenrio 1 de Maio da Cmara Municipal de So Paulo a Histria registravade forma clere e cristalina situaes e fatos envolvendo vtimas e algozes.

    Os documentos que oficializavam mortes em supostos tiroteios com agentes dos rgosde segurana, em tentativas inexistentes de fugas, pseudossuicdios e atropelamentos eramcontraditados por informaes conflitantes, ou em outros documentos emitidos por rgoscomo o Instituto Mdico Legal ou DOPS. Alguns casos so patticos e seriam risveis se noenvolvessem vidas humanas.

    De acordo com a requisio de exame do DOPS emitida para o IML, Francisco Josde Oliveira, do Molipo, foi morto com trs tiros na cabea s 16 h do dia 5 de novembrode 1971, mas a ficha do Instituto Mdico Legal registra a entrada do corpo no necrotrios 20 h do dia anterior. De acordo com o documento, Chico Dialtico, como era conhecidoquando estudante de Cincias Sociais na Universidade de So Paulo - USP, teria chegadoao necrotrio 18 horas antes de ter sido alvejado. Francisco Jos de Oliveira foi enterradocom o nome falso de Dario Marcondes no cemitrio de Perus, mas os policiais sabiamcomo ele realmente se chamava. No laudo necroscpico, alm da letra T de terrorista, seuverdadeiro nome foi grafado mo no documento.

    A morte de Joaquim Alencar de Seixas, do Movimento Revolucionrio Tiradentes -MRT, teria ocorrido em tiroteio no dia 16 de abril de 1971. Joaquim foi preso s 10 damanh deste dia, ao lado do filho Ivan Seixas, ento com 16 anos. Pai e filho chegaramjuntos ao DOI-CODI, onde foram torturados durante todo o dia e parte da noite. No diaseguinte, 17 de abril, jornais como a Folha da Tarde, do grupo Folha da Manh, noticiavama morte de Joaquim como sendo em tiroteio com os rgos de segurana, quando ele aindase encontrava nas mos dos torturadores. De acordo com depoimento prestado por Ivan

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    Seixas CPI, seu pai teria falecido por volta das 19 h do dia 17 de abril, 33 horas depois dapriso. A constatao foi feita por sua me, Fanny Akselrud Seixas, tambm presa, que viuquando o corpo de Joaquim foi jogado num carro e ouviu o dilogo entre os policiais sobrea identidade do presunto. Carlos Nicolau Danielli, dirigente do PC do B, foi outro presodado como morto aps tentativa de fuga. A priso e a morte de Danielli tm Maria AmliaAlmeida Teles, Csar Teles e Crimia Schmidt de Almeida como testemunhas. Os trs forampresos no mesmo perodo e torturados com ele.

    Os policiais ouvidos insistiam em negar fatos que os documentos expedidos pela prpriapolcia revelavam. Depois de negar conhecer os nomes verdadeiros dos militantes da ALN,Gelson Reicher e Alex de Paula Xavier de Freitas, os delegados Renato DAndrea e EdselMagnotti, e o policial e juiz de futebol Dulcdio Wanderley Boschilla, foram confrontadoscom as prprias assinaturas nos autos de exibio e apreenso, datados de 20 de janeiro de1972, data em que Gelson e Alex foram mortos. Os papis revelavam que os policiais sabiamque os corpos no eram de Marcos, Emiliano Sessa, Amado, Anozinho, Miguel ou JooMaria de Freitas, codinomes utilizados pelos revolucionrios, mas de Gelson e Alex.

    Negativas semelhantes foram tentadas, tambm em vo por legistas do InstitutoMdico Legal, como Isaac Abramovitch, que assina 58 exames necroscpicos e HarryShibata, responsvel por 20 desses exames. Os documentos tentam dar suporte a versescomo mortes acontecidas em tiroteios travados com os rgos policiais, tentativas de fugaseguidas de atropelamento e choques traumticos. O relatrio da CPI registra que

    [...] em nenhum dos laudos verificados pela CPI, a verso policial que constava da solicitaode exame foi contestada aps a percia mdica. Quando os sinais de tortura eram muitoevidentes, o legista, s vezes, descrevia as marcas deixadas, mas conclua sempre no finalque a morte se dera como descrito pela polcia. (SO PAULO, 1992.)

    Negando ou corroborando as indagaes feitas pelos vereadores, os depoimentos deagentes e cmplices da represso poltica chocavam em muitos momentos pela arrognciae pelo cinismo. O mdico legista Isaac Abramovitch, por exemplo, negou ao depor em 7 defevereiro de 1991, ter reconhecido o corpo de Gelson Reicher, enterrado no Cemitrio dePerus com o nome falso de Emiliano Sessa. Abramovitch, que assinou o laudo examenecroscpico feito no corpo de Gelson escreveu no documento que se tratava de elementoterrorista. Detalhe: Abramovitch foi vizinho da famlia de Gelson, conhecia o rapaz desde

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    criana. Durante o depoimento o mdico fez reclamaes sucessivas sobre o interrogatrioa que estaria sendo submetido. Abramovitch registrou seu protesto junto aos vereadores,considerando-se agredido por estar sendo submetido a luzes fortssimas das cmeras detev e flashes fotogrficos; por participar de uma sesso que, segundo ele mais pareciainterrogatrio de bandidos.

    O mdico legista Harry Shibata prestou depoimentos em duas ocasies, 10 de outubrode 1990 e 10 de abril de 1991. Assim como Abramovitch, Shibata assinou laudos quenegavam evidncias de torturas e procuravam dar validade s verses policiais. Em umdos depoimentos ele afirmou que no tinha a obrigao de fazer o corte do crnio dapessoa examinada, mas declarava em laudo ter realizado o procedimento. Entre outrosexames necroscpicos dos chamados subversivos, ele realizou o de Sonia Maria MoraesAngel Jones. Alm de deixar de registrar marcas evidentes de tortura, a militante da ALNteve dois laudos assinados pelo mdico: o primeiro em 1973, com o nome falso deEsmeralda Siqueira de Aguiar. O segundo um ano depois, desta vez com o nomeverdadeiro, mas sem retificao dos dados do registro de bitos.

    Presos no Vale do Ribeira os militantes da Vanguarda Popular Revolucionria,Edmauro Gopfert, Jos Arajo Nbrega e Ariston Lucena relataram terem sido submetidosa sesses de fuzilamento pelo coronel do Exrcito Antonio Erasmo Dias. SegundoNbrega, Edmauro e Lucena, o coronel descarregou uma pistola 45 prximo aos ouvidos,alm de circundar os corpos deles com tiros de pistola ou de metralhadora. Emdepoimento, prestado em 29 de novembro de 1990, o coronel Antonio Erasmo Dias foienftico ao falar sobre Nbrega (SO PAULO, 1992.): realmente eu disparei a minhapistola e perguntei a ele se podia dar alguma informao. No sei se isso tortura. Euestava brincando de dar tiro nele. Citando o dicionrio Aurlio, o coronel repetiu irnico:no sei se isso tortura, diz a o nosso Aurlio Buarque que tortura atormentar, afligir(SO PAULO, 1992.). Erasmo Dias tambm admitiu ter dado rajadas em volta do presoAriston Lucena quando da procura do local onde o tenente Alberto Mendes Jnior, mortopelos guerrilheiros, foi enterrado. A anlise desses depoimentos mostra comportamentose prticas regidos pela certeza da impunidade.

    O trabalho da CPI, que em nenhum momento assumiu caractersticas de um tribunal, foia de fornecer Justia elementos que contribussem para revelar a ao repressiva do Estado

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    contra cidados e cidads que tiveram seus direitos mais elementares violados. O relatriofinal tambm indica a necessidade da responsabilizao criminal de agentes do aparelhorepressivo, pertencentes ao Exrcito, Marinha, Aeronutica e Polcias Civil e Militar; etambm no sentido de apurar as responsabilidades de governantes, ocupantes de cargos dechefia comissionados, e funcionrios pblicos que praticaram atos administrativosirregulares para dar suporte ou oficializar verses de fatos comprovadamente criminosos.

    A mdia e a CPI: o trabalho de Elza Hatori

    Rdios, jornais, revistas e noticirios de tev deram destaque descoberta da vala.No havia mais censura imprensa e a abordagem do assunto poderia ser feita semas presses, pelo menos as explcitas, da direita civil e militar. Poucos anos antes, os chamadosbolses sinceros e radicais do aparato repressivo, ameaavam editoras e colocavam bombasem bancas de revistas que vendiam publicaes de esquerda. So deste perodo atentadoscomo o que atingiu OAB do Rio de Janeiro, matando a secretria Lyda Monteiro; e o doRiocentro, quando uma bomba explodiu dentro de um carro matando o sargento GuilhermePereira do Rosrio e deixando ferido o ento tenente, hoje coronel, Wilson Dias Machado.Integrantes do DOI-CODI do Rio de Janeiro, os militares pretendiam colocar o artefato nopavilho onde se realizava um show, mas a bomba explodiu antes do tempo.

    A redescoberta da vala e o espao que o assunto ganhou na mdia devem-se em grandeparte ao trabalho investigativo do reprter Caco Barcellos, da Rede Globo de Televiso,que soube da existncia do local no final de julho de 1990. Redescoberta porque familiaresde desaparecidos polticos j suspeitavam da existncia da vala. Em 1979 Gilberto Molina,irmo de Flvio Carvalho Molina, enterrado com o nome falso de lvaro Lopes Peralta,esteve no cemitrio e obteve a confirmao. O prprio administrador autorizou a aberturacom a ajuda de operadores e de uma retroescavadeira. Na ocasio foram encontradosalguns sacos com ossadas sem qualquer tipo de identificao.

    O jornalista trabalhou um ms na reportagem que ficaria pronta ainda em agosto de1990. Ela seria tema do programa Globo Reprter. No relato, publicado no livro Mortose Desaparecidos Polticos: reparao ou impunidade? organizado pela historiadoraJanana Teles (2000, 344 p.), Caco Barcellos diz que foi a prefeitura de So Paulo quemdivulgou para a imprensa que a vala seria aberta.

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    Dia 4 de setembro, s 8 horas da manh, eu estava l e creio que os jornalistas comearama chegar ao meio dia. A imprensa inteira divulgou este acontecimento com grande destaque.Eu produzi uma reportagem para o Jornal Nacional, que foi ao ar no mesmo dia. Mas oGlobo Reprter s foi ao ar cinco anos depois, em 1995, quando da discusso sobre a Leidos Desaparecidos. (TELES, 2000).

    A instalao da CPI e os primeiros depoimentos tiveram cobertura ampla da imprensa.Mas aquele trabalho que todos sabiam ser de longa durao, por mais importante quefosse o significado para a histria brasileira, no seria acompanhado pari passu pela mdia.Nenhum grande rgo de imprensa iria manter reprteres para acompanhar sesses queduravam em mdia quatro horas, com um mnimo de dois depoimentos por dia, seis porsemana, alm das diligncias e visitas a rgos pblicos. Mas questes tcnicas, logsticase falta de material humano no esto necessariamente ligados polticas editoriais.

    Seria difcil imaginar que alguns dos mais importantes jornais, rdios e tevs queapoiaram total ou parcialmente a ditadura militar realizassem a cobertura integral de umaCPI que poderia tambm expor as relaes de seus proprietrios com os generais. Maisainda num perodo em que apenas parte da chamada opinio pblica tinha conhecimentoda colaborao de grupos jornalsticos com a ditadura militar.

    No auge da represso, beneficiada com financiamentos e outras benesses do poder,setores da mdia divulgavam ipsis literis as notas emitidas pelos rgos de represso sobremortes em supostas tentativas de fugas, falsos tiroteios e atropelamentos de opositoresdo regime. Tambm cediam veculos para atividades policiais, caso do Grupo Folha daManh, fato demonstrado pela historiadora Beatriz Kushnir em Ces de Guarda Jornalistas e censores, do AI 5 Constituio de 1988 (2004, p. 213 a 315); ou cessode equipamentos para gravao de depoimentos dos chamados arrependidos, caso da TVTupi (KUSHNIR, 2004, p. 310), e tambm da TV Globo, como relatou o jornalista CelsoLungaretti, em Nufrago da Utopia, vencer ou morrer na guerrilha aos 18 anos.(LUNGARETTI, 2005, p. 167).

    A cobertura da CPI pela mdia ficou restrita praticamente a alguns depoimentos depersonalidades polticas e militares identificados com o perodo repressivo, como o docoronel, ex-vereador, ex-deputado e ex-secretrio estadual da Segurana Pblica, AntonioErasmo Dias; o ex-prefeito e o ex-governador Paulo Maluf, e o tambm ex-governadorRoberto de Abreu Sodr. Tambm mereceram algum destaque os depoimentos dos

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    mdicos legistas Harry Shibata e Isaac Abramovitch. Alm disso, foram feitos registrosbreves de algumas das muitas ameaas feitas por telefone a vereadores, ou de colocaode bombas no prdio da Cmara Municipal.

    A possibilidade da ocorrncia de atentados obrigou os parlamentares a adotar algunscuidados no cotidiano, o que implicava, tambm, orientaes para os familiares maisprximos, que poderiam estar expostos a alguma ao de antigos integrantes do aparatorepressivo. Na Cmara paulistana foram tomadas medidas como a realizao devarreduras no plenrio onde eram realizadas as sesses da CPI e em outras reas doPalcio Anchieta. A assessoria militar tambm ficou responsvel pela abertura deenvelopes e pacotes considerados suspeitos de conter explosivos.

    Mas o recebimento de ameaas no era privilgio dos vereadores. Em 29 de novembrode 1990 a presidncia da CPI foi comunicada que a chefia de reportagem do Dirio Populartinha recebido vrios telefonemas ameaadores. Uma pessoa que se identificava comogeneral alertava que o jornal no deveria continuar com a cobertura que vinha fazendo dostrabalhos da Comisso. Essa cobertura diferenciada e contnua era feita por uma reprterdescendente de japoneses. Seu nome: Elza Hatori, para quem foi solicitada segurana.

    Passado o impacto inicial da abertura da vala, as sesses entraram no ritmo dosrequerimentos e ofcios encaminhados a diversos rgos pblicos, convocatrias,respostas e anlises da documentao recolhida ou solicitada. Numa semana era possvelvivenciar a emoo dos depoimentos de sobreviventes da tortura e as revelaes desimples funcionrios do Servio Funerrio Municipal. Em outra, o jeito era exercitar apacincia e utilizar os recursos legais para convocar participantes, ou cmplices do sistemarepressivo na mquina pblica, gente que procurava tambm utilizar todas aspossibilidades para protelar depoimentos.

    Elza Hatori acompanhava e relatava tudo isso de maneira isenta e precisa. Suasmatrias nas edies do Dirio Popular daqueles dias so leitura obrigatria parapesquisadores que se debruarem sobre o cotidiano da CPI. Seus textos retrataramfielmente o que foram aqueles dias. Cada matria era, ao mesmo tempo, jornalismo eHistria. Esse captulo que desnudou um tempo que no pode ser esquecido foi registradopor ela num portugus, claro, direto e preciso. Na maioria das sesses ela era a nicaprofissional de imprensa no Plenrio 1 de Maio da Cmara Municipal de So Paulo.

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    Acostumada a grandes coberturas, como a do massacre do Carandiru, Elza Hatoriproduzia textos que facilitavam a compreenso do leitor. Para Everaldo Gouveia, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de So Paulo e colega de trabalho deElza por 17 anos no Dirio Popular, ela era uma pessoa extremamente simples nocotidiano. Na redao era um verdadeiro p-de-boi, jargo utilizado por vriascategorias profissionais para definir a capacidade de colegas que fazem de tudo notrabalho com competncia. Segundo Everaldo, a continuidade da cobertura sobre a CPIfoi uma vitria pessoal de Elza e do jornalismo. Ela era persistente, no deixava nada porfazer. (SO PAULO, 2009)

    Elza Hatori comeou na imprensa em maio 1977, como estagiria do Dirio Popularonde, por 32 anos, passou por praticamente todas as editorias. Em 2009 ela faleceu,vencida pelo cncer. Poucas semanas depois da morte a Cmara Municipal de So Paulorealizou sesso solene em sua homenagem. A cerimnia teve a participao de familiares,de ex-colegas de trabalho, dirigentes do Sindicato dos Jornalistas de So Paulo evereadores de vrios partidos. Foi um ato marcado pela simplicidade e pela emoo!

    Captulo (quase) final

    Orelatrio da CPI da Vala de Perus foi apresentado no Plenrio 1 de Maio daCmara Municipal de So Paulo pela vereadora Tereza Lajolo, do PT, no dia 15de maio de 1991. Participaram de sua elaborao, alm da relatora, os vereadores JulioCesar Caligiuri Filho, do PDT, que presidiu a CPI, talo Cardoso, do PT e Vital Nolasco,do PC do B. O trabalho teve a participao decisiva de assessores dos parlamentares e defuncionrios de vrios setores do poder pblico.

    De 17 de setembro de 1990, data de instalao da CPI a 15 de maio de 1991, foramrealizadas 42 sesses ordinrias e uma extraordinria e ouvidos 82 depoimentos. Osparlamentares tambm participaram de vrias diligncias a uma rea no bairro deParelheiros, local denominado Stio 31 de Maro e utilizado para a prtica de tortura pelaequipe do delegado Srgio Fleury. O dono da rea era o empresrio do setor de transportes,Joaquim Rodrigues Fagundes, que era amigo dos policiais do DOI-CODI. SegundoAlcides de Souza, caseiro do stio poca, Fagundes emprestava o espao para os militaresfazerem treinamentos, alm de churrascos e confraternizaes. Fagundes que se

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    autodenominava Coronel tambm fazia visitas regulares delegacia da rua Tutia, sedepaulista da represso.

    Tambm foram feitas trs visitas Secretaria de Segurana Pblica, cinco PrefeituraMunicipal, uma ao Departamento de Homicdios e Proteo Pessoa, duas aoDepartamento de Comunicao Social da Secretaria de Segurana Pblica, duas PolciaFederal, duas ao Instituto Mdico Legal, duas ao Cemitrio de Perus e duas Universidadede Campinas.

    O relatrio foi encaminhado prefeita, Luiza Erundina de Souza, ao Governador doEstado de So Paulo, Luiz Antonio Fleury Filho, Procuradoria Geral da Justia do Estadode So Paulo, deputado Carlos Apolinrio, presidente da Assembleia Legislativa do Estadode So Paulo, Ministrio Pblico Federal em So Paulo, ao presidente da Repblica,Fernando Collor de Mello, Ministrio da Justia, ao Conselho Regional de Medicina e spresidncias da Cmara Municipal de So Paulo, Federal e do Senado Federal. Odocumento solicitava apurao das responsabilidades pelos atos administrativosirregulares dos citados e o afastamento dos envolvidos nos crimes e continuidade dasinvestigaes.

    O trabalho realizado pela CPI da Vala de Perus contribuio inestimvel para aelucidao de fatos e responsabilizao judicial dos criminosos. A tarefa das Comissesda Verdade, criadas nos mbitos federal, estadual e municipal tem na CPI da Vala de Perusmais que um ponto de partida, mas parte fundamental da histria brasileira contada porquem viu, foi testemunha, viveu e conseguiu sobreviver a dores impossveis de seremdescritas em depoimentos ou qualquer outro tipo de narrativa. O trabalho revela a omisso,a cumplicidade e a prtica de crimes definidos pelo direito internacional como de lesahumanidade.

    Que ele seja utilizado como instrumento de Justia, em respeito aos que tombaram, aosque sobreviveram, a suas famlias, s geraes futuras, vida e Histria!

    RefernciasBARCELLOS, Caco Rota 66: a histria da polcia que mata. So Paulo: Editora Record, 1992. 306 p.

    BRASIL Nunca Mais: um relato para a histria. 4 ed. Petrpolis: Editora Vozes, 1985. 312 p.

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    DARAJO, Maria Celina; SOARES, Glucio Ary Dillon; CASTRO, Celso. Os anos de chumbo, amemria militar sobre a represso. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumar, 1993. 327 p.

    DOSSI dos Mortos e Desaparecidos Polticos a partir de 1964 / Comisso de Familiares de Mortose Desaparecidos Polticos, Instituto de Estudos sobre a Violncia do Estado/IEVE, Grupo TorturaNunca Mais RJ e PE. Pernambuco: CEPE (Companhia Editora de Pernambuco), 1995. 448 p.

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    FERNANDES JNIOR, Ottoni. O ba do guerrilheiro. So Paulo: Record, 2004. 300 p.

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  • Ivan SeixasJornalista, membro daComisso de Familiares de Mortose Desaparecidos Polticos eCoordenador da Comisso daVerdade Estadual, da AssembliaLegislativa de So Paulo. Presoe torturado pela ditadura militarjunto com seu pai, o operriomecnico Joaquim Alencar Seixas,testemunhou aos 16 anos seuassassinato na priso.

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    Ainstalao de uma ditadura nunca uma ao isolada ouimprovisada. Menos ainda fruto de vontade individual oude um grupo pequeno de pessoas. Em geral, de interessede uma classe para impor seu projeto poltico, econmico e

    social, mas pode ser tambm de uma parcela de uma classe contra outrae contra os interesses da maioria.

    A ditadura implantada em 1964 foi o incio de um perodo deTerrorismo de Estado que durou longos 21 anos, mas foi tambm aconcluso de um processo de conspirao e ataques aos interessesnacionais e populares da maioria da populao brasileira. Seu comeopode ser determinado como sendo no momento exato do fim da SegundaGuerra Mundial e incio do chamado perodo da Guerra Fria. Toda a aodos conspiradores se deu sob a mentalidade dessa absurda viso docombate a um indeterminado inimigo interno, a toda manifestao emdefesa dos direitos da cidadania e contra um suposto perigo comunistaque s eles viam na sociedade brasileira.

    Durante todo o governo constitucional de Getlio Vargas (1951-1954)e de Juscelino Kubitschek (1956-1961) houve muita presso e tentativasde destruio da democracia atravs de golpes militares ou rasteiraspolticas. Getlio frustrou a tomada do poder pelos conspiradores comseu suicdio e Juscelino s conseguiu tomar posse pela ao de militareslegalistas que mediram foras com os golpistas e venceram a disputa naltima hora.

    A renncia de Jnio Quadros (1961), eleito para um mandato de quatroanos, aps apenas sete meses de governo errtico, desencadeia novatentativa de assalto ao poder pelos setores golpistas das Foras Armadase os setores mais reacionrios da elite brasileira. Alegam que o vice-presidente, Joo Goulart (eleito por voto direto em eleio conjunta com

    Uma ditadura contra o povo e o pas

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    o presidente da Repblica), no poderia assumir a Presidncia por estar em viagem China, pas comunista considerado por eles como capaz de influenciar o poltico brasileiroe que, por causa disso, levaria ao poder algum que transformaria nosso pas em maisuma pea do movimento comunista internacional e desvirtuaria os valores por elesdefendidos como ideais para o Brasil.

    Essa nova tentativa leva a mobilizao popular atravs de uma vibrante Campanha daLegalidade, encabeada pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Essa redede rdios e mobilizaes locais acontece num tempo em que no havia internet, satlitesou telefonia celular, mas tem a fora do povo organizado em defesa dos interessesdemocrticos e nacionais. A tentativa de assa