vai chamar pai a outro

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“Vai chamar Pai a outro!!!” Acto I Numa pequena cozinha pobre, com uma lareira, uma mesa com uma toalha de linho e um vaso de flores e quatro bancos. A porta é de madeira. Cena I José, Maria José está sentado junto à lareira, um bocado parado, como que meditando. E depois diz: José- Vida de campónio, estou farto. Um homem passa os dias a trabalhar ao sol, ao calor e ao frio, e quando chega a casa ainda tem que ir tratar das suas terras e dos seus animais. Maria- Ó homem, só sabes reclamar da vida, como se não houvesse pessoas como tu. José (descontente) - Então, que queres que faça? Maria- Que te cales e faças o que tens a fazer, pois é esse o nosso ganha- pão. José- O quê, pão seco? Maria- É o que se arranja, pois não há dinheiro para mais. E não vou andar a roubá-lo. José- Não o gastes todo com a tua mãe, que também só sabe enervar-me. Maria (triste)- Manel, tu não fales assim da minha mãe. E para já…ela deve estar quase a chegar. José (raivosamente)- E vem cá fazer o quê? Maria (em tom desafiador)- Vem passar a morar connosco. Há algum problema?

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“Vai chamar Pai a outro!!!”

Acto I Numa pequena cozinha pobre, com uma lareira, uma mesa com uma toalha de linho e um vaso de flores e quatro bancos. A porta é de madeira.

Cena I

José, Maria

José está sentado junto à lareira, um bocado parado, como que meditando. E depois diz: José- Vida de campónio, estou farto. Um homem passa os dias a trabalhar ao sol, ao calor e ao frio, e quando chega a casa ainda tem que ir tratar das suas terras e dos seus animais.

Maria- Ó homem, só sabes reclamar da vida, como se não houvesse pessoas como tu.

José (descontente) - Então, que queres que faça?

Maria- Que te cales e faças o que tens a fazer, pois é esse o nosso ganha-pão.

José- O quê, pão seco?

Maria- É o que se arranja, pois não há dinheiro para mais. E não vou andar a roubá-lo.

José- Não o gastes todo com a tua mãe, que também só sabe enervar-me.

Maria (triste)- Manel, tu não fales assim da minha mãe. E para já…ela deve estar quase a chegar.

José (raivosamente)- E vem cá fazer o quê?

Maria (em tom desafiador)- Vem passar a morar connosco. Há algum problema?

José- Isso pergunta-se? Claro que há problema, porque é mais uma boca para alimentar, e olha que ela não come pouco.

Maria- Ó homem, onde comem dois, comem três.

José- Dizes isso, porque não és tu quem põe a comida cá em casa, nem és tu quem trabalha de manhã à noite sem parar.

Cena II Ditos e D. Felismina

D. Felismina (batendo à porta da cozinha)- Ó da casa, está alguém?

José (aparte)- Não, só estão bonecos.

Maria- Comporta-te, José Manel, que é para a mãezinha não pensar mal de ti.

José (aparte)- pois que pense. Que bom para ela.

D. Felismina- Boa - tarde a todos. Hoje está um belo dia.

José (irónico) -Só se for na sua terra.

Maria- Entre, entre, mãe. Deve estar aborrecida da viagem.

José (aparte)- Se fosse só ela, então…

D. Felismina- Então, minha filha, como vai a vida?

Maria- Ah! Vai bem, tirando a ideia de que o meu homem não quer ter um filho.

D. Felismina (admirada)- E porque não, filho?

José- Ainda pergunta? Porque em primeiro lugar são chatos, irritantes e em segundo é outra boca para sustentar.

D. Felismina (num tom afectivo)- Como eu vou cá ficar a morar, a minha reforma pode dar para vos ajudar a criar um filho.

José (aparte) -Se tem dinheiro, porque pede à filha…

Maria- Mas isso é uma grande ideia, mãe. E tu, José Manel, o que é que achas?

José- Se é assim, por mim, tudo bem, mas para tal preferia adoptar um rapaz que não fosse chato.

Maria- Então adoptemos um rapaz, estão de acordo?

D. Felismina- Óptimo. Vamos amanhã ao orfanato da cidade.

José- Amanhã não posso.

Maria- E pode-se saber porquê?

José- Amanhã estou muito atarefado. De manhã, vou limpar as terras do Sr. Manel, o pai do Rafael da padaria, e à tarde vou ao funeral do Sr. Fernando, por isso vão vocês sozinhas.

Acto II

Gabinete da Directora do orfanato “Terraço dos órfãos”

Cena I Directora, D. Felismina, Maria, Tio Quim

D. Felismina bate à porta da Directora.

Directora- Bom dia, D.Felismina, entre, entre, por favor!

D. Felismina- Oh, bom – dia, Senhora Directora, eu venho cá com a minha filha Maria, por causa daquele assunto de que lhe falei ontem, lembra-se?

Directora- Sim, o assunto da adopção?

D. Felismina- Esse mesmo. Mas o meu genro não pôde vir porque foi tratar de alguns imprevistos.

Directora- Já sabem o que querem?

Maria- Como assim?

Directora- Querem um rapaz ou uma rapariga?

Maria- Ah, nós queríamos um rapaz.

D. Felismina (rindo)- De preferência, muito calado, que já saiba o que faz e bem-educado.

Directora- Espere um bocado, que eu vou só chamar um funcionário para as acompanhar. Ó tio Quim, tio Quim, chegue cá, por favor.

Tio Quim (aparte)- O quê que esta quer agora, será que não se pode descansar nesta espelunca? - Ora diga, Directora.

Directora- Leve-me estas senhoras para verem as crianças, está bem?

Tio Quim (aparte) -Que remédio tenho eu. – Sim senhora, é para já. Sigam- -me por favor.

Directora- (num tom sério) Vão com este senhor que ele vos acompanhará.

Maria- Ai, mãezinha, estou a ficar nervosa.

D.Felismina (não se contendo)- Cuida-te, mulher, já não és nenhuma criança.

Maria- Mas estou é preocupada com o meu homem.

D. Felismina- Ora, porquê?

Maria- É que uma criança exige atenção, carinho e responsabilidade.

D.Felismina- Nesse aspecto tens razão, são qualidades que o teu marido não tem, nem nunca terá.

Maria (ofendida)- Mãe, não diga isso do meu homem.

Tio Quim- Chegamos, é aqui. Não tenham pressa que eu tenho o dia todo, ou melhor dizendo o tempo todo por minha conta.

Maria- Estou um bocado indecisa.

D. Felismina- O que é que foi desta vez?

Maria- É que estão todos muito quietos.

Tio Quim- Se me permite, eu aconselhava-as a levarem o Duarte.

D. Felismina- E quem é esse?

Tio Quim- É o que está ali sentado a ler.

Maria- Tem ar de ser um rapaz bem-educado, acho que escolho esse mesmo.

Tio Quim- Óptimo, agora vamos ter com a Directora para assinarem os papéis. Enquanto isso, eu vou preparar o menino Duarte.

D. Felismina ( no gabinete com a filha)- Já escolhemos uma criança e agora temos que assinar o quê?

Directora- Óptimo, quem é?

Maria- Chama-se Duarte, e até é sossegado.

Directora- Então só têm que assinar aqui o termo de responsabilidade, que é este.

Tio Quim (entrando no gabinete, após ter batido à porta)- Ora cá está o rapaz prontinho…

Directora- Olá Duarte, estes são os teus novos familiares.

Duarte- Olá, bom - dia, eu sou o Duarte.

Maria (sorridente)- Olá, eu sou a Maria, tua mãe a partir de hoje e esta senhora tua avó, chama-se Felismina.

D. Felismina (com meiguice) -Então Duarte, vamos embora?

Duarte (com um ar feliz)- Está bem. Adeus, senhora Directora! Adeus tio Quim!

Acto III

Quintal da casa de José e Maria, onde há uma grande cameleira toda florida.

Cena I

José, Maria, D. Felismina, Duarte

José (ansioso) -Demoraram muito, onde está o rapaz?

Maria- Foi lá para dentro com a minha mãe arrumar as coisas. Já lhe digo para vir ter contigo.

José (aparte) - Coitado do rapaz sozinho com aquela mulher.

Maria- (decidida e feliz) Vais tomar conta do menino, que eu vou ajudar a minha mãe a fazer o almoço, está bem?

José- Mas despacha-te que estou com fome.

Maria- Está bem, homem.

Duarte (aparece no quintal com um modo tímido)- Olá, tu deves ser o meu papá?

José (agressivo)- Mau, tu vai chamar pai a outro, que tu de mim não tens nada.

Duarte- Mas, mas (quase a chorar) tu é que és o meu pai, pois foi a tua mulher que me adoptou.

José- Eu sei disso, mas pai vai chamar a outro, trata-me por José ou senhor José, e agora ajuda-me aqui.

Duarte (obediente)- Está bem.

José- Óptimo, assim é que eu gosto, tens cara de trabalhador.

Maria (olhando para eles muito sorridente) -Venham por a mesa, o comer está pronto!

José- Já vamos.

Duarte ( muito contente)- Já vamos, mãezinha.

Maria- Despachem-se que está a ficar frio.

Acto IV Cozinha, com a lareira acesa e uma mesa bem composta.

Cena I

Ditos

José- Esta jardineira, está muito boa, vê-se logo que foi a minha mulher que fez.

D. Felismina (rindo-se) -Não, por acaso fui eu que a fiz.

José (aparte) -Afinal a velha faz alguma coisa de jeito. É de admirar ou melhor de pasmar…

Maria- E tu Duarte. Estás a gostar da comida?

Duarte- Sim, mamã, está muito boa.

D. Felismina (aparte)- Óptimo, vê-se logo que é meu neto, só sabe apreciar coisas boas.

José (aparte) -Nem imagino quanto- E o que temos para sobremesa? Espero que esteja magnifica como este prato.

Maria- A sobremesa… tu vais adorar, pois fomos as duas que a fizemos. É uma receita antiga da minha bisavó.

José- Mas o que é?

Maria- Chama-se baba de camelo.

José (ingénuo) -O quê? Mas nós, aqui em Portugal, não temos camelos. Nunca ouvi falar em tal coisa. Baba de Camelo?!

D. Felismina (aparte) -Este homem é mesmo ignorante.

Duarte (admirado) -Mas o que é baba de camelo, mamã?

Maria- é uma sobremesa que leva natas do céu.

José (irónico)- Vai levar-nos ao céu…Vai levar-nos ao céu…

D. Felismina (aparte)- É o que eu dizia, este homem é mesmo ignorante e não é pouco.

(Fecham-se as cortinas do palco)

Cena II

Todos- Eis-nos chegados ao fim, pedimos as vossas palmas. Talvez em outra ocasião isto venha a ser melhor. A A<