v illa boa de goyaz:

19
Ana Guiomar Rêgo Souza Mestre em Música pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutora em História Cultural pela Universidade de Brasília (UnB). Professora da Escola de Música e Artes Cênicas e do Programa de Pós-graduação em Música da UFG. Coorganizadora do livro O grande governador da Ilha dos Lagartos: práticas de pesquisa e criação em artes. Goiânia: Cegraf/UFG, 2015. [email protected] Villa Boa de Goyaz: uma outra história contada em prosa, versos e sons Casa de Cora Coralina. Cora Coralina fazendo doces. Imagens do Facebook Cora-Coralina.

Upload: vantruc

Post on 07-Jan-2017

238 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: V illa Boa de Goyaz:

Ana Guiomar Rêgo Souza Mestre em Música pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutora em História Cultural pela Universidade de Brasília (UnB). Professora da Escola de Música e Artes Cênicas e do Programa de Pós-graduação em Música da UFG. Coorganizadora do livro O grande governador da Ilha dos Lagartos: práticas de pesquisa e criação em artes. Goiânia: Cegraf/UFG, 2015. [email protected]

Villa

Boa

de G

oyaz

: um

a ou

tra

hist

ória

con

tada

em

pro

sa, v

erso

s e

sons

cas

a de

cor

a c

oral

ina.

cor

a c

oral

ina

faze

ndo

doce

s. im

agen

s do

Fac

eboo

k c

ora-

cor

alin

a.

Page 2: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015180

Villa Boa de Goyaz: uma outra história contada em prosa, versos e sonsVilla Boa de Goyaz: a different history told in prose, poetry, and sounds

Ana Guiomar Rêgo Souza

resumoEste artigo procura entender socialida-des e identidades construídas no espa-ço urbano de Villa Boa de goyaz, capi-tal goiana de 1726 até 1937. Buscou-se elaborar uma história apreendida pela via das sensibilidades reveladas pelos sons que ali se fizeram, ouviram ou imaginaram. a proposta consiste em transformar as sonoridades emergi-das de diferentes suportes, sobretudo o literário, em potência capaz de viabilizar uma narrativa fundada em sons tomados como ressonâncias de identidades. Um fluxo não linear de eventos que articula mitos de origem, memórias e vestígios do passado que remontam ao século XViii e avançam para os séculos XiX e XX.palavras-chave: paisagem sonora; memória e literatura; identidades.

abstractThis article tries to understand sociali-ties and identities built within the urban space of Villa Boa de Goyaz, capital city of the state of Goiás in 1726-1937. It aims at developing a history captured through sensitivity, brought to light by the sounds that were created, heard, or imagined there. We propose to transform sounds from different sources, mainly literary, in a power that enables the emergence of a narrative based on sounds considered as identity resonances. It is a non-linear flow of events that interconnects myths of origin, memories, and vestiges of the past dating back to the 18th century and going onward into the 19th and 20th centuries.

keywords: soundscape; memory and lit-erature; identities.

Um corpo posto a vibrar, daí resultando feixes de ondas que se apresentam ou como frequências regulares, periódicas, estáveis (sons de altura definida), ou como frequências irregulares, descontínuas, instáveis (ruídos). Dois tipos de eventos aparentemente opostos. Mas, som e ruído não são ocorrências que se excluem. trata-se de um trânsito contínuo que se estabelece no interior das culturas, gerando intricadas relações que coexistem ora se opondo, ora se combinando. ordem e desordem, de cujo interstício a música toma a sua existência, extraindo configurações do meio caótico dos ruídos. Processo eivado de historicidade, posto que combina-ções sonoras aceitas em uma época podem ser recusadas em outra ou vir a ser fundamentais depois. o fato é que sons tornados música pela cultura dialogam constantemente com o ruído. Em algumas circunstâncias, no canto cristão medieval, por exemplo, a busca é por ordenações estáveis. Em outras, como nas tendências vanguardistas do século XX e XXi, invoca-se

Page 3: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015 181

Ar

tig

oso ruído como princípio de dissolução de uma ordem cristalizada, simul-

taneamente estética e social.1 Investigar o ambiente sonoro de algum lugar significa, pois, abordar

suas músicas, mas também os sons, ruídos e silêncios que lhe são pecu-liares; investigar “paisagens sonoras” (do inglês soundscape) – conceito introduzido pelo musicólogo e compositor canadense Murray Schafer, na década de 1960, a partir de um movimento ambientalista contra a poluição sonora das grandes cidades, denominado com World Soundscape Project. a palavra soundscape é um neologismo introduzido por Schafer em analogia à palavra landscape (paisagem)2 para designar “o nosso ambiente sonoro, o sempre presente conjunto de sons, agradáveis e desagradáveis, fortes e fracos, ouvidos ou ignorados, com os quais vivemos.3

o som é invisível, não pode ser tocado, mas nos atinge profunda e fisicamente porquanto é vibração. Para Eduardo Meditsch, o ouvido é o “sentido hiperestésico4 por excelência”, o que significa dizer que “o organismo é estimulado ininterruptamente pela vibração sonora e reage a ela também ininterruptamente”.5 os sons presentes em uma paisagem sonora interferem diretamente nos órgãos sensórios colaborando para a constituição de novas formas de sensibilidade e novos hábitos. atuam tanto nos domínios da subjetividade quanto da objetividade, estabelecen-do contrapontos “entre o tempo da consciência e o não-tempo do incons-ciente”. Nesse sentido, se constitui, nas palavras de José Eduardo Wisnik, em “poder invasivo e às vezes incontrolável, [...] envolvente, apaixonante e aterrorizante”.6 “a música, sendo uma ordem que se constrói de sons, em perpétua aparição e desaparição, escapa à esfera tangível e se presta à identificação com outra ordem do real: isso faz com que se tenha atribuído a ela, nas mais diferentes culturas, as próprias propriedades do espírito. o som tem um poder mediador: é o elo comunicante do mundo material com o mundo espiritual e invisível”.7

Stanley Waterman8 defende que o sentido da audição é vital na media-ção das idéias e transmissão da cultura, vez que é capaz de evocar memórias de maneira mais intensa do que a visão. os olhos fazem como que uma “varredura” do ambiente e captam cenários mais amplos e gerais. Já o sen-tido da audição reage mais lenta e seletivamente, propiciando o estranha-mento de sensações e sentimentos e conformando memórias mais robustas e duradouras. Nas suas palavras: “Sons nos ajudam por evocar imagens; imagens que reverberam e ecoam nossos pensamentos; enquanto os olhos estimulam a formação de pontos de vista iniciais, os ouvidos nos aprisio-nam e nos concedem tempo para refletir e formar uma segunda opinião”.9

cada paisagem sonora, além de revelar o movimento contínuo da trama urbana, permite a comunhão dos sons resultantes do labor, do la-zer, da religiosidade, do movimento dos corpos, dentre outros. Sons que traduzem familiaridade ou estranhamento; significados compartilhados que permitem identificar pertencimentos, permanências e transformações. Parafraseando o geógrafo augustin Berque, uma paisagem sonora é tanto uma “marca”, por expressar um grupo social, como também uma “matriz” porque informa esquemas de percepção, de concepção e de ação10, o que não é outra coisa senão considerar as distintas sonoridades não como signos “desencarnados”, mas como fato humano e social. É a partir desta perspec-tiva que procura-se entender socialidades e identidades desenvolvidas no espaço urbano da antiga Vila Boa de goiás, atual cidade de goiás, elevada no ano de 2001 à condição de Patrimônio cultural da humanidade.11

1 cf. WiSNiK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra his-tória das músicas. São Paulo: companhia das letras, 1999, p. 26 e 27.2 SchafEr, Murray. A afinação do mundo. São Paulo: Editora Unesp, 2001, p. 366 e 367.3 Idem, ibidem.4 hiperestesia (de híper = sobre; aíszesis = sensação) significa exaltação da sensação. hipe-restésico é quem capta e pode manifestar estímulos mínimos. 5 MEDitSh, Eduardo. O rádio na era da informação: teoria e téc-nica do novo rádio jornalismo. coimbra: Minerva, 1999.6 WiSNiK, José Miguel, op. cit., p. 28.7 Idem, ibidem.8 Ver WatErMaN, Stanley. geography and music: some introductory remarks. Geo-Journal, Springer Netherlands, v. 65, 2006.9 Idem, ibidem, p. 1.10 cf. BErQUE, augustin. Paisa-gem-marca, paisagem-matriz: Elementos da problemática para uma Geografia Cultural. In: corrÊa, roberto lobato e roSENDahl, Zeny (orgs.). Paisagem, tempo e cultura. rio de Janeiro: Eduerj, 1998, p. 84 e 85.11 Em 1726, Bartolomeu Bueno da Silva filho estabelece nos sertões dos goyases o arraial da Barra e, no ano seguinte, os de ouro fino, ferreiro e Sant’anna, este ultimo origi-nando a atual cidade. Em 1736, o arraial é elevado à categoria de vila recebendo o nome de Villa Boa de goyaz. Em 1818, consegue foros de cidade pas-sando a chamar-se cidade de goiás. Usufruiu dos privilégios de capital até 1937, quando per-de suas prerrogativas seculares para goiânia. o nome Villa Boa de goyaz (no corpo do texto escrito com a ortografia atual), é privilegiado neste trabalho por se constituir na designação com que os vilaboenses, tradicional-mente, referem-se à sua cidade.

Page 4: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015182

a busca foi por escrever uma história apreendida pela via das sensibilidades, reveladas por sons que ali se fizeram, ouviram ou foram imaginados; transformar sonoridades emergidas de diferentes suportes, sobretudo o literário, em potência capaz de viabilizar uma narrativa fun-dada em sons tomados como ressonâncias de identidades. tendo em vista que historiadores e musicólogos pouco tem se preocupado com a vida social dos sons, busquei, a contrapelo da perspectiva das histórias oficiais, “ouvir” os vestígios sonoros que ressoam na literatura. Não como segunda opção, mas como necessidade advinda da riqueza da palavra metaforiza-da, a qual se constitui em imperativo perceptivo dos fenômenos sonoros, dada a sua fluidez.

Diálogos entre literatura e história

É visão corrente, na atualidade, que o relato sobre o passado é sem-pre “contaminado por uma cadeia de intermediários”: atores sociais que selecionam, registram e interpretam os acontecimentos a partir de valores, crenças e de seus lugares na sociedade.12 Essa intermediação torna im-possível apresentar os fatos “como eles realmente aconteceram”, tal qual pretendido por modelos objetivistas. com a emergência da história Nova, a idéia de “fontes” passa a ser avaliada como suporte material portador de indícios do passado no presente. indícios não mais limitados a documen-tos escritos de natureza oficial, mas ampliando-se para abarcar a vida em sua complexidade, o que pressupõe a inclusão de manuscritos diversos, impressos de qualquer natureza, diferentes tipos de imagens, literatura, arquitetura, músicas, dentre outros.

No caso do diálogo literatura e história, trata-se de aproximação que ocorre, desde muito, com o objetivo de situar os autores em “quadros his-tóricos” ou de introduzir a dimensão cultural no campo da análise literária. tais abordagens perdem em substância frente novas vertentes epistemoló-gicas que vêm redimensionando o estudo das ciências humanas e sociais, dentre elas, os estudos do imaginário. Para Sandra Pesavento, o imaginário possibilita “a recuperação das formas de ver, sentir e expressar o real dos tempos passados”. São suportes privilegiados, posto se constituírem em campo por excelência da metáfora: “uma forma de interpretação do mun-do que se revela cifrada”, que “encerra aquelas coisas ‘não-tangíveis’ que passam pela ironia, pelo humor, [...] pela utopia, pelos medos e angústias, pelas normas e regras [...] e pelas suas infrações”.13 Sendo uma outra ma-neira de falar das coisas do mundo,

a ficção literária [...] dá acesso para nós, historiadores, às sensibilidades e às formas de ver a realidade de um outro tempo, fornecendo pistas e traços daquilo que poderia ter sido ou acontecido no passado e que os historiadores buscam. Isto implicaria não mais buscar o fato em si, o documento [...] na sua concretude de “real acontecido”, mas de resgatar possibilidades verossímeis que expressam como as pessoas agiam, pensavam, o que temiam, o que desejavam.14

como diz ivan teixeira, o texto literário passa a ser concebido como uma trama de signos cuja composição pressupõe a coexistência de outros textos, elucidados como discursos, ou seja, uma gama de imagens, idéias, filosofias, normas, práticas, que compõem a noção de representação do mundo. “a literatura, assim, integra-se a esse complexo sistema de conhe-

12 BUrKE, Peter. Testemunha ocular. Bauru: Edusc, 2004, p. 16.13 PESaVENto, Sandra Jatahy. história & literatura. Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, v. 6, n. 1, 2006, p.38. Disponível em <www.uesb.br/politeai/v6/artigo01>. acesso em 14 jan. 2015.14 Idem, ibidem, p. 8.

Page 5: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015 183

Ar

tig

oscimento e inclusão simbólica do real”, enquanto [...] “encenação sensível de

condutas e conceitos perdidos no vácuo do tempo - simulacros que hoje se apresentam como discursos produtores do efeito de real e cuja realidade efetivamente integra a cultura material dos povos”.15

Roger Chartier, a partir de Stephen Greenblatt, usa o conceito de “energia social” como um dos caminhos para elucidar a maneira pela qual algumas obras literárias plasmam as representações coletivas do passado, através da “potência das linguagens, ritos e práticas do mundo social”. Para Greenblatt, “o que define a força estética das obras [...] é “a capaci-dade que tem certos traços verbal, aural e visual, de produzir, plasmar e organizar experiências coletivas físicas e mentais.”. Processo que se dá pelo trânsito contínuo entre mundo social e obras; movimento de circulação que, segundo chartier, é capaz de apoderar-se de coisas produzidas pela sociedade, salvo nas circunstancias que impeçam esse fluxo, como nos casos de censura estabelecida por qualquer instância.16

Dentro das realidades que circulam entre o mundo social e as obras de arte figuram as representações do passado. No caso da literatura, vol-tando a Pesavento, busca-se, sobretudo, a “impressão de vida”: “capturar a [...] energia vital, a enargheia presente no passado, na raiz da explicação de seus atos e da sua forma de qualificar o mundo”.17

Busquei nos textos da escritora goiana cora coralina (1889-1985)18 capturar essa enargheia. Memórias consubstanciando poesias e contos - a “minha força tribal” -, como dizia a escritora; memórias das quais emer-gem imagens que tracejam afetos e pertencimentos, que expressam um mundo às vezes épico ou trágico, às vezes lúdico e prosaico, mas sempre pleno de bom humor, sensibilidade e saber prático. oswaldino Marques, na apresentação do livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, sintetiza a poética coraliniana nos seguintes termos: cora coralina “absorveu e assimilou o tempo e a geografia da cidade de Goiás, reofertados a nós em sua autenticidade inaugural”. Marques classifica sua obra, grosso modo, sob duas rubricas: documentos e criação, as primeiras não se confundindo com “páginas cartorárias”, pois que são documentos “na medida em que funcionam como traslado dos gestos e dos vínculos ritualizados do grupo social, no seu defrontear intersubjetivo”.19

Para clovis carvalho, a longevidade de cora coralina permitiu que sua obra revelasse memórias de sua bisavó e de outras mulheres: “Mãe Didi, Siá Balbina, tia Nhá-Bá, tia Nhorita, e tantas outras perdidas no tempo das lembranças”.20 Uma escrita que articula sua “memória indivi-dual” com uma “memória coletiva”, para usar os termos de halbwachs, vez que o ato de rememorar implica que ao evocar seu próprio passado o sujeito estabelece vínculos com as memórias daqueles que constituem seu grupo social, de forma hodierna e por herança avoenga.21 o “acontecido” é, pois, ofertado aos ouvintes por cora coralina como experiências tecidas em múltiplas camadas do tempo, “interligando o passado, o presente e o futuro pela memória que reconstituiu os espaços da cidade de goiás”.22 Um fluxo não linear de eventos que articula mitos de origem, memórias, vestígios de um passado que remonta ao século XViii e avança para o século XiX e parte do século XX. tempos cruzados que de igual forma guiaram a tessitura deste artigo.

Muito embora tenha encontrado em cora coralina especial estímulo para esta pesquisa, em face da riqueza das imagens sonoras encontradas em sua obra, a construção da paisagem sonora vilaboense exigiu o diálogo

15 tEiXEira, ivan. Poética cultural: literatura & his-tória. POLITEIA: história e Sociedade, v. 6, n. 1, 2006, p. 38 Disponível em <www.uesb.br/politeia/v6/artigo01>. acesso em 14 jan. 2015. 16 Ver chartiEr, roger. El pa-sado en el presente: literatura, memória e história. ArtCultura: revista de história, cultura e arte, v. 8, n. 13, Uberlândia, 2006, p. 8 e 917PESaVENto, Sandra, op. cit., p. 8.18 cora coralina – ana lins dos guimarães Peixoto Bretas –, nasceu na cidade de goiás em 20 de agosto de 1889. iniciou sua carreira literária aos 14 anos com seu conto tragédia na roça, publicado em 1910 no Anuário Histórico, Geográfico e Descritivo do Estado de goi-ás. Em 1911, mudou-se para o interior do Estado de São Paulo. Voltando para sua terra natal, foi morar na casa Velha da Ponte. faleceu em goiânia em 10 de abril de 1985.19 MarQUES, oswaldino. cora coralina, professora de existên-cia. In: cora coraliNa. Po-emas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: global, 1988. 20 Brito, clovis carvalho. lembranças de mulher: litera-tura, história e sociedade em cora coralina. Opsis, v. 7, n. 9, catalão, jul-dez 2007, p. 249.21 cf. halBWachS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990 (original publica-do em 1950).22 DElgaDo, andréa ferreira. goiás: a invenção da cidade “Patrimônio da humanidade”. Horizontes Antropológicos, ano 11, n. 23, Porto alegre, 2005, p. 135.

Page 6: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015184

com folcloristas e memorialistas, como Maria augusta calado de Saloma rodrigues, regina lacerda e Ursulino leão; com o historiador Paulo Bertrand, com relatos do botânico francês auguste de Saint-hilaire, e do governador da Província Raymundo José da Cunha Mattos, dentre outros.

Construindo paisagens sonoras

construir uma paisagem sonora não é tarefa simples, visto a inexis-tência em sonografia de recursos que correspondam à “impressão instan-tânea que a fotografia consegue criar”. Já o microfone funciona colocando em close determinados elementos, mas deixa difuso ou embaralha o campo sonoro23, No que diz respeito à perspectiva histórica, a tarefa é ainda mais difícil. No caso de músicas, músicos e instituições musicais, o trabalho é de certa forma facilitado pela existência de registros que resistiram ao tempo. trata-se, no entanto, de vestígios parciais. como reconstruir o efêmero sonoro? como construir uma paisagem sonora do passado? Uma saída

para o problema é dialogar com outras fontes documentais, buscando, ao mesmo tempo, sua inserção em contextos espaço-temporais concretos, dos quais emerge o universo dos sons produzidos por uma sociedade.24 outra possibilidade é trabalhar com inferências a partir da literatura, registros visuais, dentre outros. Na literatura, em particular, encontra-se os primei-ros registros das sonoridades de um tempo e lugar, através de recursos linguísticos como a onomatopeia, a metáfora fônica, o ritmo e a métrica, a arquitetura das frases, as cadências, dentre outros.

com base em Murray Schafer, comecei por identificar aspectos sig-nificativos da paisagem sonora vilaboense: “sons que são importantes por causa de sua individualidade, quantidade ou preponderância”. Na seqüên-cia, procurei distinguir “sons fundamentais, sinais e marcas sonoras”. os sons fundamentais de uma paisagem são aqueles criados por sua geografia e clima: água, vento, planícies, pássaros, insetos e animais. Encerram muitas vezes um significado arquetípico, ou seja, gravam-se tão profundamente nas pessoas que a vida na sua ausência parece empobrecida. tais sons não precisam ser ouvidos conscientemente; são, na verdade entreouvidos. Já os “sinais” constituem-se em sons percebidos de maneira consciente, muitas vezes funcionando como avisos acústicos, tais quais sinos, apitos, sirenes etc. o termo “marca sonora”, por sua vez, diz respeito a um som que possui determinadas qualidades que o tornam único, especialmente significativo para a comunidade. tanto os sons fundamentais como os sinais afetam o comportamento e o estilo de vida de uma sociedade e, em muitos casos, se tornam marcas sonoras ou expressão identitária de um determinado grupo social.25

Várias são as formas de classificação dos sons, segundo Murray Schafer, destacando, dentre elas, as que privilegiam: a) as características físicas (acústica); b) os modos de percepção (psicoacústica); c) aspectos re-ferenciais ou funções e significados (semiologia); d) qualidades emocionais (estética). No entanto, Schafer aponta que separadamente nenhum desses sistemas, ou de outros, consegue absorver a complexidade do fenômeno sonoro, faltando as necessárias interfaces entre disciplinas que contem-plem os processos de produção, circulação e percepção do som. Por este viés, entendendo que os sons de um ambiente não são eventos acústicos abstratos, mas símbolos acústicos, o trabalho de identificação de vestígios sonoros que foram e que, de certa maneira, ainda são significativos para

23 SchafEr, r. Murray, op. cit., p. 23.24 Ver SoUZa, ana guiomar rêgo. Paisagem sonora da paixão vilaboense (século XiX). Música Hodie v. 8, n.2, goiânia, 2008, p. 3525 Idem, ibidem, p. 26 e 27.

Page 7: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015 185

Ar

tig

oso vilaboense, resultou no inventário abaixo apresentado (elaborado com

base no modelo referencial apresentado por Murray Schafer26). trata-se de um inventário dos sons por mim levantados, a ser cotejados com sua res-pectiva referência na sequência do artigo, avançando para a interpretação das sonoridades das quais emergem marcos sonoros cultivados, em sua maioria, como aspecto distintivo da sociedade vilaboense.

1. Sons míticos da criação: relacionados, no imaginário vilaboense, à Serra Dourada, ao rio Vermelho, às origens da cidade.

2. Sons relacionados a elementos naturais: funcionando tanto como arquétipos da construção identitária do vilaboense ou como superfície acústica produtora de sono-ridades.

Rochas, pedras e madeira

Sons da água– o rio vermelho em diferentes circunstâncias: na vazante, na cheia etc.

Sons de animais– cavalo, gado etc.– galo, galinha, pássaros.– Sapos, cigarras, grilos

3. Sons humanos ou por eles produzidos

Sons da voz:- fala- gritos- cantos- choro- risadas- Pregões

Sons do corpo e de objetos usados ou manipu-lados:– Passos;– Sons de botas, sapatos, chinelos, pés descalços;– Sons de açoites, estalos de chicote, esporas, relhos, palmatória;– Sons do sexo, tosse, escarro.

4. Sons de festas e sons de músicas nsd festas

Fogos de artifícioMúsicaProfana: saraus, música de dança, cantigas, bandas, serestas, batuques etc.;– Religiosa: na igreja, em procissões, em ofícios etc.;– Teatral: espetáculos cênico-musicais, recitais e concertos.

5. Sons do transposte e sons indicadores: carro de boi; sinos: da igreja, do quartel; corneta; tiros, esporas.

tabela 1. relação de sonoridades retiradas das fontes consultadas para esta pesquisa, referenciadas à

medida que aparecem na narrativa em notas de rodapé.

Fragmentos sonoros e poéticos: dos mitos de origem à primeira metade do século XX

De convulsão titânica surge, no planalto central do Brasil, a Serra Dourada, matriz ambiental do cerrado vilaboense, desenhando, conforme Paulo Bertran, um “V” com envergadura de 180 graus sobre o vale do rio Vermelho27. a memória – musa que organiza de maneira sensível o espaço geográfico – fez da Serra Dourada mais do que a formação rochosa que “guarnece” a cidade de goiás. É seu arquétipo maior: “o campanário de Vila Boa (onde o vento assobia)”.28 Do seu “abraço” resulta uma acústica pode-rosa, permitindo que na cidade, “aninhada no convexo dos vales – sinos, transmissores, ampliadores e até o canto dos galos, nas madrugadas enlu-aradas, tenha uma sonoridade que não pertence a nenhum outro lugar”.29

rochas que espelham o sol do amanhecer e do anoitecer, que asso-alham o leito do rio Vermelho e que se espalham pela cidade nos muros ancestrais e no antigo calçamento. Pedras “que cantam para os sentidos a

26 SchafEr, r. Murray, op. cit., p. 194-202.27 Ver BErtraN, Paulo e fa-QUiNi, rui. A cidade de Goiás, patrimônio da humanidade: ori-gens. Brasília-ão Paulo: Verano e takano, 2002, p. 35.28 lEÃo, Ursulino. Roteiro dos sentimentos da cidade de Goiás. goiânia: Editora da Ucg, 2003, p. 21.29 cora coraliNa. Sinos de goiás. In: Villa Boa de Goyaz. São Paulo: global, 2001, p. 14.

Page 8: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015186

música dos vegetais que se movem ao vento”, como diz cora coralina.30 Pedras que fazem ressoar o tropel dos cavalos – som fundamental constante em vilas e cidades, desde os tempos coloniais e adentrando em muito o século XX. Sonoridades que na poesia coraliniana pertencem ao conjunto de elementos que integram a mítica das origens goianas ligada à figura do primeiro anhanguera:

Evém a Bandeira dos Polistas ... num tropel soturno, de muitos pés, de muitas patas.Deflorando a terra. Rasgando as lavras nos socavões.Foi quando a perdida gente no sertão impérvioriscou o roteiro incerto do velho Bandeirantee Bartolomeu Bueno, bruxo feiticeiro, num passe de magia históricatirou Goyaz de um prato de aguardente e ficou sendo o Anhangüera. 31

Estabelecida Vila Boa como capital, o processo civilizatório intensifi-cado, as pedras passam a “cantar” com freqüência cada vez maior. o tropel dos cavalos cresce em volume e intensidade. Já em 1755, conta Ângelo cardoso dos Santos em carta ao Marquês de Pombal, que se formavam bandos de mais de 200 cavaleiros composto de oficiais, escrivães, meirinhos e advogados, para acompanhar o ouvidor das Justiças em suas missões de devassa pelos arraiais da capitania.32 Enquanto o grupo se reunia, pode-se imaginar a polifonia feita por vozes, o relincho dos cavalos, o tilintar das esporas, o som “surdo” dos cascos percutindo a praça de terra batida, habitada por vacas, galinhas, burros de carga. Depois: o uníssono coral do galopar pelo calçamento de pedra, em seu ritmo cadenciado, como que em quatro colcheias lembrando um “Baixo D’alberti” serenado. a esse tropel oficial aliava-se igualmente o galope festivo das Encamisadas, Cavalhadas e Jogos de touros para compor a rítmica e timbrística eqüestre que povoou o cotidiano sonoro da antiga Vila Boa.

outro som também relacionado às “pedras do caminho” é aquele produzido pelas carroças. Murray Schafer constatou que o contínuo e assimétrico ruído das rodas de metal rolando sobre o calçamento era um som nem sempre agradável aos ouvidos do europeu. No entanto, para o homem do sertão brasileiro a percepção dos sons produzidos pelo carro de boi é perpassada por imagens lúdicas e carregadas de afeição. a prosa de inspiração sertaneja é eloqüente e musical por excelência:

o carro de boi não canta por boniteza, somente. Canta por precisão. A vida do carro está na cantiga. Carro de boi, de pau, que não canta, não é carro. É tranqueira, desservida de encantamento. Porque se há muita carga e o carro canta de gaita, a gente mata os bois. Eles ficam destrambelhados, se estouram no esforço. Mas se o carro canta de baixão, vão lá naquele passo deles, na mesmice de boi deles [...] E se é trabalho corriqueiro, normal, então é bom o carro cantar de pombo, nem para cima, nem para baixo.33

Se o carro de boi “canta por precisão”, na vida das pequenas cida-des brasileiras de outrora esse canto se transformava em encantamento, vinculado que era à comunicação com centros longínquos, povoando o imaginário com as “maravilhas” da “civilização”. os tropeiros – chamados popularmente de “cometas” em Vila Boa de goiás –, eram “empresários” do transporte que se encarregavam do comércio de exportação e importação,

30 cora coraliNa. anhan-güera. In: Meu livro de cordel. São Paulo: global, 2002, p. 31.31 Idem, ibidem, p. 32.32 carta de Ângelo dos Santos cardoso enviada ao Marques de Pombal, em 1755. Ângelo cardoso foi o primeiro car-tógrafo do Brasil central e observador de goiás em 1755. Secretário do primeiro governo da capitania de goiás. fazia também às vezes de historió-grafo e cronista. In: BErtraN, Paulo (texto) e faQUiNi, rui (fotos). Cidade de Goiás, patri-mônio da humanidade. goiânia: Verano, 2001, p. 56.33 caStro, Paulo roberto Moura. O carro de boi. Dispo-nível em <http://www.wide-soft.com.br/users/pcastro1/carrodeboi.htm>. acesso em 12 set. 2006

Page 9: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015 187

Ar

tig

osmas eram também vendedores de sonhos: faziam às vezes de mensageiros,

transmitindo notícias pessoais, trazendo as novas que viam e ouviam em suas andanças. com eles chegavam a Vila Boa, vindas da corte e do ex-terior, peças de cristal tcheco, móveis, porcelanas inglesa e chinesa, prata portuguesa, livros, tecidos finos, instrumentos musicais, enfim, objetos de deleite do mundo dito civilizado.34 E com eles partiam cartas, presentes para familiares e amigos que moravam nas cidades vizinhas e os artigos da terra a serem comercializados em outros lugares. assim, talvez por conta das rodas de madeira que ressoam mais docemente do que as rodas de metal utilizadas na Europa, talvez porque a esses sons corresponda uma pragmática que se faz parceira da estética, talvez pela magia da comuni-cação inter-relacionando lugares, gente e coisas, o “canto por precisão” do carro de boi se apresentava não como ruído, mas como “música” para os vilaboenses de outrora. antiquados sons ecoando pelo caminho das tropas, condensados por cora coralina em “o longínquo cantar do carro”: “Uma festa, apurar o ouvido ao longínquo cantar do carro, avistado na distância, esperar as novidades que vinham:cartas, livros e jornais. Era uma vida para aquela mocidade despreocupada, pobre e desfeita de sonhos”.35

Às pedras associa-se a madeira como superfícies especialmente so-noras: cada tábua de assoalho ressoando diferentemente sob os saltos de botas, sapatos, chinelos, pés descalços etc. Nas casas, conforme a madeira era afixada e conforme o tipo de solado dos calçados, sons cavos, secos, agu-dos, abafados, eram produzidos. Dependendo do agente que os causava, apresentavam ritmos regulares, claudicantes, andamentos lentos, rápidos ou movimentos em acelerando ou retardando. Uma “música” percussiva que preenchia o espaço de igrejas, casas, lojas, salões, ou mesmo, altas horas, assombrando o imaginário vilaboense povoado de fantasmagoria.

outra “festa” é ouvir a voz dos vilaboenses através do “canto das águas”. águas de um rio que divide a cidade de goiás em dois antigos distritos – carmo e Sant’anna –, mas que também une os goianos através de memórias feitas em verso e prosa, música e pintura. com o rio Verme-lho, há um mundo que se organiza no imaginário. Parafraseando Mário leite em seu estudo sobre o encantamento das águas na área do Pantanal mato-grossense, sempre que um espaço, um grupo humano e uma forma de pensar é narrada, narra-se o surgimento e o ressurgimento de um uni-verso – “ele, mesmo, ‘real’, e um ‘outro mesmo’ elaborado na narrativa e no desenho de quem narra”; este tão real quanto à chamada realidade, vez que imprime na voz-memória a corporeidade e vivências dos habitantes36. À serrania e suas pedras ancestrais, soma-se, pois, como sons fundamentais arquetípicos, o “canto” do rio Vermelho. “Eternidades irmanadas”, nas palavras de cora coralina:

Túmulo – torrente.Estática – silenciosa.O paciente deslizar,O chorinho a lacrimejarsutil, dúctil,na pedra, na terra.Duas perenidades – sobreviventes no tempo.Lado a lado – coniventes,Diferentes, juntas, separadas.37

34 cf. PalaciN, luis, garcia, ledonias franco e aMaDo, Janaína. História de Goiás em documentos. I -.Colônia. goiânia: Editora da Ufg, 1995, p. 127, e roDrigUES, Maria augusta calado de S. A modinha em Vila Boa de Goiás. goiânia: Editora da Ufg/coleção Documentos goianos – 12, 1982, p. 45.35 coraliNa, cora. o longín-quo cantar do carro. In: Vintém de cobre: meias confissões de aninha. São Paulo: global, 2001, p. 97 e 98.36 Ver lEitE, Mário cezar Sil-va. Memória e encantamento das águas: vozes e histórias do Pantanal de Mato grosso. Projeto História, n. 22, São Paulo, 2001, p. 380.37 coraliNa, cora. rio Ver-melho. In: Meu livro de cordel, op. cit., p. 41.

Page 10: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015188

rio que canta em diferentes tons – da brandura à turbulência –, em-balando vidas vividas em plenitude ou não. rio de mineração, que traz no nome a cor do seu sacrifício na busca pelo Eldorado. No tempo da seca, mais parece um riacho de águas murmurantes. Nas chuvas, entretanto, quase “lambe” as três pontes que o atravessam, e, vez ou outra, produz enchentes terríveis. Um rio com uma longa “folha de serviços prestada à gente goiana, do qual escorre história”, como diz o memorialista Ursulino leão: “foi navegável, [...] abasteceu potes e moringas; serviu divertimento e peixes aos ‘paulistas’ do arraial, aos ‘goianos’ da vila e da cidade; inspirou modinhas e beijos [...]”.38

No decorrer dessa pesquisa pude ouvir essa “voz”. Se a mim sedu-ziu o contínuo das águas, o que dizer daqueles que cresceram embalados pelo “canto” do rio Vermelho? Muitos são os depoimentos que falam da intensidade de sua presença no cotidiano vilaboense, transformando-o em marca sonora que expressa identidade. Volto-me novamente para um trecho de cora coralina. Vivendo sua infância e velhice na casa Velha da Ponte, a qual se debruça sobre o rio Vermelho, a velha rapsoda fala sobre as águas em uma prosa plena de imagens sonoras, o que para os propósi-tos deste trabalho autoriza uma longa transcrição, sob pena da perda do sentido musical do texto:

Nasci nas margens desse doce rio e o seu murmúrio ininterrupto embalou o berço da minha infância, fecundou e perfumou a flor da minha adolescência, acalentou com amavio estranho os sonhos da minha fantasia. As águas sempre correntes, sempre apressadas, quando passavam pela velha casa onde nasci, iam mais vaga-rosas, mais lentas e contavam-me longas e formosíssimas histórias das margens por onde andavam, dos bosques onde refletiram a verde roupagem das árvores, do ignoto donde vinham e do desconhecido para onde iam, cantando, falando e correndo sempre. [...] Nas noites escuras, em que as águas espelham a verde luz do verde olhar dos astros, o rio tem estremecimentos humanos e repercute longínquo a abemolada surdina das serenatas distantes. [...] Pelas cheias, quando as chuvas lentas e monótonas fazem os dias goianos úmidos e tristonhos, a água do rio toma a cor do sangue do seu nome e num coro de vozes formidandas entoa um cantochão fúnebre e grave. Troncos arrancados, galhadas verdes onde fremiram asas e balouçam ninhos, detritos, escórias e sedimentos, as águas encachoeiradas lavam e arrastam com violenta fúria. [...] Depois, a vazante; e o rio, no comprido de seu leito, recai na acalmia do ordinário curso. As águas volvem a correr compassivas e mansas com a mesma feiticeira mansidão que embalou e deu asas aos sonhos da minha adolescência. Meus ouvidos ouvem sempre a voz amiga, oh!, as águas longínquas da minha terra, sempre a correr, sempre a cantar, coleando as margens, dormitando um instante na tranqüilidade profunda do remanso, despencando-se das pedras, vencendo as distâncias...39

Desta narrativa desprendem-se imagens recorrentes como “murmú-rio ininterrupto, águas sempre correntes, compassivas e lentas”. Expressões que se configuram como a sonoridade habitual do Rio Vermelho, à qual se associam outros sons fundamentais e marcas sonoras. Partes de um todo que a escritura organiza linearmente, tal qual uma linha melódica, mas que no imaginário apresentam-se como sedimentações de memórias que afloram tanto em termos de sucessividade quanto de simultaneidades. Metaforicamente falando, pode-se denominar “o murmúrio ininterrupto das águas correntes” como um baixo-contínuo, ao qual se sobrepõe uma

38 lEÃo, Ursulino, op. cit., p. 49.39 coraliNa, cora. rio Ver-melho. In: Villa Boa de Goyaz, op. cit., p. 102.

Page 11: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015 189

Ar

tig

ossegunda voz: as “águas encachoeiradas” das cheias que “lavam e arrastam

com violenta fúria”, troncos, detritos, e uma terceira voz constituída por águas que despencam das pedras.

Uma trama de sonoridades que bem pode se configurar como textura contrapontística – linhas conflitantes movendo-se em ritmos e intensidades diferentes: o baixo contínuo representado por uma linha ondulante regu-lar, de pequena amplitude, descrevendo as águas “a correr compassivas e mansas”, correspondendo à fluência contínua do “legato” e movendo-se em andante; a segunda voz desenhando-se como linha melódica ondulante irregular, mas com amplitude acentuadamente mais ampla, expressando o impetuoso ondear do rio avolumado pela cheia, movendo-se como um “alegro assai”; a terceira voz tomando a forma de um som contínuo seguido de um intervalo descendente, delineando o movimento do rio “dormitando um instante na tranqüilidade profunda do remanso, e de-pois, despencando-se das pedras”. a essa polifonia aquática acoplam-se ainda, nas memórias de cora, ecos modinheiros de “serenatas distantes”, a religiosidade do canto gregoriano e a “sinfonia dos sapos e das rãs que moram no recôncavo das [...] pedras”.

a trama aquática vilaboense parece completar-se com as lavadeiras e os sons característicos do seu fazer e com o burburinho das tradicionais “carregadeiras d’água”. as lavadeiras são poeticamente representadas por cora coralina como personagem “transgressora dos papéis programados para o sexo feminino”, uma inversão dos valores patriarcais onde o homem é o provedor.40 Mulher simples do povo se estafando, sol à sol, às margens do rio Vermelho:

Sombra verde dos morrosno fundo da Cariocaonde as mulheres sem maridocarregadas de necessidadesmães de muitos filhoslargados pelo mundobatem roupa nas pedras lavando a pobreza sem cantiga, sem toada, sem alegria41

Outra figura suprimida das histórias oficiais, por trazer o “pejo da mulher pública”, a que trabalha para o seu sustento e da família, contra-riando o ideal da “mulher mãe”, são as carregadeiras d’água. Narra a memorialista regina lacerda que até meados do século XX, era grande o número de mulheres que ganham a vida com o pote na cabeça. “rece-bendo por mês ou por viagem, lá iam as carregadeiras, alegres, limpinhas, conversadeiras, faceiras [...]. conforme conduziam água, transmitiam recados entre as famílias e faziam um pequeno jornal trazendo e levando notícias de um bairro a outro, de uma rua a outra”.42 Durante todo o dia transportavam água potável para casas de famílias e instituições públicas. Mulheres com saia longa e blusão branco, enchendo potes nas bicas do chafariz de cauda ou na fonte da carioca, conversando entre si na espera para recolher o precioso líquido. conversas que, certamente, ressoavam pela praça junto com o som da água escorrendo, o relinchar de cavalos, o mugir de vacas pastando, o latido de cachorros. “Música das ruas”, da qual não podem faltar os pregões.

40 cf. liMa, omar da Silva. a vida mera das obscuras e cora coralina. Anais do XIV Seminá-rio Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura, v. 1, n. 1, 2011.41 coraliNa, cora. Meu livro de cordel, op. cit., p. 198.42 lacErDa, regina. Vila Boa. goiânia: Bolsa de Publicação hugo de carvalho ramos, 1957, p. 54.

Page 12: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015190

Bakhtin classifica esses gritos de rua como manifestação que é mais do que um simples “gênero verbal da praça pública”:

O papel dos pregões de Paris era imenso na vida da praça pública e da rua [...] Cada mercadoria [...] possuía o seu próprio vocabulário, a sua melodia, a sua entonação, isto é, a sua figura verbal e musical. Esses pregões não eram, aliás, os únicos que se podiam ouvir num dia [...] todo reclame, sem exceção, era verbal e gritado em alta voz, mas também [...] todos os anúncios, decretos, ordenações, leis, etc., eram trazidos ao conhecimento do povo por via oral. Na vida cultural e cotidiana o papel do som, da palavra sonora era muito maior.43

No Brasil, a prática dos pregões persiste nas cidades do interior, bem como no centro de algumas metrópoles, através da voz do “camelô”. No material consultado destaca-se o leiteiro – sempre um garoto de até doze anos montado a cavalo ou em um burrinho –, que todas as manhãs gritava à porta das casas anunciando o produto. cora coralina guarda com especial deleite a imagem desses meninos, os quais na hora de recolher as vasilhas, “gritavam desesperadamente: garrafa de leite... garrafa de leite... garrafa vaziiiia!...”.44 isso sem falar dos vendedores de frutas, dos vendedores dos famosos doces e bolos de arroz de goiás.45

havia também os “vendelhões” de uva. Saint-hilaire, quando de sua estada em Vila Boa (1819), menciona essa produção:

No meu primeiro jantar no palácio havia sobre a mesa uma bandeja de uvas mosca-téis, as quais, como o vinho, foram inutilmente cobiçadas pela maioria dos convivas. Eu, porém, fui mais favorecido, e achei-as excelentes. Embora as vinhas produzam na região frutos de muito boa qualidade e as tentativas para o fabrico do vinho tenham dado resultado, bastante satisfatórios, um prato de uvas é ainda considerado um artigo de luxo, tamanha é a indolência do povo do lugar.46

Parece que decorrido o tempo, a indolência dita por Saint-hilaire, se real, cedeu lugar a um empreendimento vinheiro doméstico capaz de abastecer as casas. conta cora coralina que as vindimas em goiás produziam frutos duas vezes por ano. E não “cacho aqui, cacho ali [...]. carrega de verdade e produz com abundância”. fartura que dava para o consumo da casa e para a venda. assim, os vendelhões andavam “pelas ruas com seus pregões e coroados de vide, ou seja, com tabuleiros de uva na cabeça”.47

Nas praças e ruas se insinuavam ecos modinheiros e seresteiros – marcos sonoros valorizados até os dias de hoje pelo vilaboense. com relação às modinhas, a pesquisadora Maria augusta calado rodrigues registra que, na segunda metade do século XiX, era costume reunir-se na casa de amigos para ouvir e cantar esse tipo de música. tratava-se de reuniões noturnas denominadas como “tocatas”, semelhantes às “serena-tas de salão” de Diamantina. Só que no caso vilaboense, portas e janelas permaneciam abertas para que os transeuntes e ouvintes – “apelidados de sereno” – também pudessem apreciar a música. conforme rodrigues, os intelectuais seresteiros levaram para as ruas e praças suas modinhas, junto com outras anônimas ou de autoria incerta48: “o adro da igrejinha de Santa Bárbara foi ponto de inspiração e reunião dos intelectuais e também lá se reuniam os seresteiros para os ensaios, sendo o ponto de partida para as serestas. Os becos eram ideais para afinar instrumentos. Quando cantavam

43 BaKhtiN, Mikhail. A cul-tura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de françois rabelais. São Paulo: hucitec, 1993, p. 157.44 cora coraliNa. o boi de guia. In: Estórias da Casa Velha da Ponte. São Paulo: global, 1997, p. 38.45 lacErDa, regina, op. cit., p. 55. 46 SaiNt-hilairE, auguste de. Viagem à Província de Goiás. Belo horizonte-São Paulo: ita-tiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1975 (coleção reconquista do Brasil, v. 8), p. 55 e 56.47 coraliNa, cora. goiás e suas uvas. In: Villa Boa de Goyaz, op. cit., p. 27.48 cf. roDrigUES, Maria augusta calado de S., op. cit., p. 97 e 98.

Page 13: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015 191

Ar

tig

osem lugares altos, como o chafariz, podia-se ouvir a voz do seresteiro em

vários pontos da cidade”.49

cunha Matos, em 1824, fala do gosto vilaboense pela música e men-ciona, além da música vocal, a música instrumental:

A música fez progressos, ou foi cultivada com gosto em toda a província de Goiás: [...] se encontram na cidade, e nos arraiais muitos homens que tocam rabeca, rabe-cão e outros instrumentos de corda; tanto assim que nas festas das igrejas sempre a música vocal é acompanhada de música instrumental; mas não há quem toque instrumentos fortes de sopro. Algumas senhoras cantam sofrivelmente e tocam saltério, cítaras, guitarras e violas.50

Com base neste relato de Cunha Mattos, bem como em face da carên-cia de documentação relativa ao tema, musicólogos goianos vêm afirmado que as bandas de música foram introduzidas em goiás a partir da segunda metade do século XiX. trata-se de uma inferência que deve ser revista, primeiro tendo em vista o status de Vila Boa como capital de província. o modelo festivo português, estabelecido no Brasil colonial e mantido nos tempos do Império, demandava a realização de inúmeras pompas oficiais e religiosas; efemérides nas quais a banda de música se perpetrava como elemento retórico indispensável para os atos de afirmação do poder, a par do te-déum, dos fogos de artifício, da iluminação das casas. Por outro lado, localizei um relato que confirma a existência de algum tipo de banda de música51 em Vila Boa, antes de 1824. trata-se das manifestações de apoio ao “Manifesto de adesão às cortes, ao rei e à constituição”. Na ocasião, especificamente no dia 26 de abril de 1821, o Governador Manoel Inácio de Sampaio mandou convidar as corporações eclesiásticas, civis e militares para celebrar o juramento de obediência e fidelidade a El-Rei, às cortes e à futura constituição.

À noite se iluminaram as casas e no quartel-general se reuniram os funcionários e pessoas gradas da capital; o povo tendo à sua frente uma banda de música, percorreu as ruas da cidade dando entusiásticos vivas a el-rei, a S. Alteza Real e às cortes; a satisfação pública não tinha limites; todas as fibras do coração desse povo estreme-ciam de prazer, porque se lhes falara de progresso e de liberdade.52

Mas é, de fato, na segunda metade do século XiX que se assiste ao período áureo das bandas de musica na cidade de goiás. Surgem por essa época: a “Banda da guarda Nacional”; a “Banda do 20º Batalhão”; a “Banda Policial; a “Banda aliança goiana”; a “Banda de Música União goyana”, que funcionou pelo menos desde 1884; a “Banda do Quartel dos Menores” e a “Banda do Seminário da Santa cruz”.53 José do Patrocínio Marques tocantins, músico de grande prestígio na região, criou, por sua vez, em 1870, a “Sociedade Phil’harmônica”, conjunto instrumental que funcionava como orquestra ou como banda. No primeiro caso, atuava no teatro de São Joaquim e em concertos. apresentava um naipe de cordas, como pode ser atestado por manuscritos que trazem o nome “Phil’harmônica” junto ao título, indicando as partes dos primeiros violinos, segundos violinos e violas.54 Possuía ainda um harmônio, instrumento que também foi adqui-rido por particulares e pelos dominicanos.

a partir da segunda metade do século XiX, o timbre do piano passa a integrar a paisagem sonora vilaboense. Um dos primeiros a chegar a

49 Idem, ibidem, p. 99.50 MattoS, raymundo José da cunha. Chorographia Histórica da Província de Goyaz. goiânia: convênio Sudeco/governo de goiás. Secretaria de Planeja-mento e coordenação, 1970, p. 93. a Chorographia Histórica da Província de Goyaz foi en-viada por cunha Mattos ao imperador D. Pedro i em 31 de dezembro de 1824, tendo sido publicada somente em 1874 na revista do então instituto histórico geographico e Etno-gráphico do Brasil. 51 há que se atentar que o ter-mo banda referia-se, conforme tinhorão, a “uma confusa formação de músicos tocadores de charamelas (instrumentos de sopro de palheta dupla), caixas, trombetas, vindos dos primeiros tempos da coloniza-ção”, acrescidos de sacabuxas (instrumento de sopro de metal similar em aparência ao trom-bone de vara moderno) e ma-rimbas. cf. tiNhorÃo, José ramos. Música Popular: os sons que vêm das ruas. rio de Janeiro: edição ao autor, 1976, p. 89. 52 alENcaStrE, José Martins Pereira de. Anais da Província de Goiás. (1863). reeditado pelo governo do Estado de goiás/convênio SUDEco. Secretaria do Planejamento e coordenação. Brasília: Editora Gráfica Ipiranga, 1975-1979, p. 350 e 351. 53 cf. roDrigUES, Maria au-gusta calado de S., op. cit., p. 53.54 Manuscrito localizado pela musicista e professora Belkiss S. carneiro de Mendonça e gentilmente cedido a mim para cópia.

Page 14: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015192

goiás foi um modelo retangular de bordas douradas, adquirido por João Fleury Curado, em 1853, para sua filha Mariana Augusta Gaudie Fleu-ry. tem-se posteriormente notícia de que a mesma Mariana recebeu de seu marido um piano Pleyel mandado vir da corte. também o poeta e desembargador antônio felix de Bulhões (1845-1887) encomendou para suas irmãs outro Pleyel.55 o jornal O Goyaz, em 1887, dá notícia deste piano em um concerto denominado como festival abolicionista, e não por acaso, o programa deste recital se apresentava recheado de trechos de ópera. Vila Boa de goiás acompanhou a moda da corte no que se refere à prática operística e, impensável, um concerto no teatro de São Joaquim, no Palácio conde dos arcos, ou mesmo saraus residenciais, que não incluíssem áreas.

Às sete horas da noite, no Theatro S. Joaquim, Concerto Musical organizado e dirigido pela Exma. Sra. Josephina Bulhões Baggi de Araújo, e para o qual muito concorreu também a Exma. Sra. Maria Nazareth de Bulhões Jardim, que offereceu e fez transportar para o Theatro e seu magnífico piano Pleyel. Constava o seu programa a que damos publicidade: – do duetto – Orfana e solo Nel materno tetto – ‘Fosca’ de Carlos Gomes – cantado pelas Exmas. Sras. Victoriana Alves de Castro e Ângela de Bulhões Natal, acompanhada a piano por esta.56

Junto aos sons da burguesia os sons da escravidão também ecoavam na velha cidade. cora coralina em um de seus contos faz menção aos batu-ques que no tempo de sua bisavó se ouvia noite adentro: “Num magote de negros, de sunga e camisa de baeta, ela (personagem conhecida como Dona Minguta) reconheceu os escravos do Brigadeiro felipe antônio cardoso, que costumavam pular o muro dos senhores e corriam para um batuque que zoava do lado da rua do fogo”.57 Significativo o uso da palavra zoar: remete à zunido e à zumbido (o primeiro aludindo aos sons emitidos por insetos e o segundo ao som do vento que passa por gretas, ambos se cons-tituindo em som forte, penetrante, constante, incomodativo). Zoar também faz menção à bagunça, diversão, deboche, farra. com uma única palavra, cora coralina dá ao conhecimento das festas de terreiro realizadas por escravos em Vila Boa de goiás (tema invisibilizado na musicologia goiana) e deixa transparecer o preconceito e o fascínio que esses eventos traziam aos patrões: o medo da desordem, da revolução, da diferença, aliado à atração pela diversão livre e sem culpas.

Em A Casa Velha da Ponte, sons do trabalho escravo, da vida na sen-zala, de sensualidade e sexualidade, emergem como contraponto ao seu “eu - lírico” cantador das pedras, das águas, dos sinos, das rodas do carro, das paisagens antigas marcadas pelo tempo.

Escravos escavando em busca de filões, veeiros que aprofundavam terra adentro, vigiados de feitores, esfalfando-se em trabalho muscular, nas lavras de um tal Vai-Vem que ainda hoje tem esse nome na posse de terceiros, perto de Goiás [...] Vultos negros se buscando, se agarrando, na sombra dos muros e tapumes, atracados num cio vigoroso e animal. De noite, subia das senzalas e dos quadrados um fartum de sexo e de sêmen...58

E depois da abolição, segue a narrativa: “a melancolia dos senhores definhando-se no saudosismo estéril de negras submissas e amedrontadas, de negros animalizados e crioulinhos regrados a palmatória. os relhos

55 cf. MENDoNÇa, Belkiss S. carneiro de. A música em Goiás. goiânia: Editora da Ufg, 1981, p. 82 (coleção Documentos goianos n. 11).56 O GOYAZ, ano ii, n. 102, 2 set. 1887.57 coraliNa, cora. Estórias da Casa Velha da Ponte, op. cit., p. 21.58 Idem, ibidem, p. 9.

Page 15: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015 193

Ar

tig

osdependurados, os açoites inúteis, as palmatórias ociosas. o sadismo sema

mais onde cevar”.59

os sons da transgressão, da marginalidade, dos párias, das vidas obscuras, insurgem em cora coralina ao falar dos becos de goiás, como denúncia que se materializa não só no sentido das palavras, mas nas imagens sonoras incisivas que delas emergem: “os becos eram os lugares por excelência do lixo, dos animais soltos, das brigas, da prostituição nas casas pobres ou ao ar livre, dos mendigos e das pessoas com problemas mentais”.60 cora coralina denuncia o cotidiano dos becos, as mulheres “perdidas”, doentes, renegadas, oprimidas pela miséria e pela violência física e moral:

Tem poesia e tem drama.O drama da mulher da vida antiga,humilhada,Meretriz malsinada,desprezada mesentérica, exangue.Cabeça raspada a navalha,castigada a palmatória,capinando o largo,chorando. Golfando sangue.[...]Prostituta anemiada,solitária, hética, engalicada,tossindo, escarrando sanguena umidade suja do beco.(...)Queriam alegria. Faziam bailaricos.– Baile Sifilítico – era ele assim chamado.O delegado-chefe de Polícia – brabeza –dava em cima... [...]61

Drama de vida e morte informando parte da “estória mal contada” de Vila Boa, daquela outra não inserida nos “autos oficiais do passado”, para citar cora coralina mais uma vez.

Nas inúmeras festas do calendário vilaboense, a cidade se punha às ruas produzindo uma textura urdida por salvas de tiros, pelo espocar de fogos de artifício, pelo repique dos sinos, por música de banda, rezas, gritos, cantos, aqui ressaltando os sempre presentes te-déum. Sintetizam essa trama sonora as celebrações pelo nascimento de D. Pedro ii:

Na madrugada do dia 22 de fevereiro, estando o Exmo. Prelado e o Governador de Armas por mim cientes e os habitantes desta cidade, pelo solene Bando da Câmara que fiz publicar de que era aquele o primeiro dia que eu havia destinado para se dar princípio aos festejos públicos, salvou a Artilharia com 21 tiros e ao mesmo tempo a alegre e festiva harmonia dos sinos de todos os Templos, girândolas, que sucessivamente subiam ao ar, e uma banda de música que pelas ruas ia tocando o Hino Nacional. [...] A noite iluminou-se toda a cidade, repetindo-se as salvas de artilharia, toque dos sinos, girândolas, e por toda a parte ressoavam os vivas a S.M. o I. e a Família Imperial.62

E por falar em sinos, o seu badalar foi o som mais característico das

59 Idem, ibidem.60 caMargo, goiandira ortiz de. a escrita poética do espaço em cora coralina. Poesia Sem-pre, n. 31, rio de Janeiro, 2009.61 coraliNa, cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, op. cit., p. 94 e 95.62 Documento datado de 2 de março de 1826, assinado por caetano Maria lopes, presi-dente da Província de goyaz, relatando ao Visconde de Bar-bacena os festejos consagrados em goiás ao nascimento de S.a. o Príncipe imperial. In: BraSil, antônio americano (1892-1932). Pela história de Goiás. goiânia: Editora da Ufg, coleção Documentos goianos – 6, 1980, p. 59.

Page 16: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015194

comunidades cristãs, vez que delimitava a comunidade paroquial - espaço acústico circunscrito por sua abrangência. Sinos produzem um som centrí-peto, e, por essa qualidade, são propícios para atrair e congregar pessoas. Nesse sentido, Murray Schafer cita huizinga:

Um som se erguia constantemente acima dos ruídos da vida ativa e elevava todas as coisas a uma esfera de ordem e serenidade: o ressoar de todos os sinos. Eles eram para a vida quotidiana os bons espíritos que, nas suas vozes familiares, ora anun-ciavam o luto ora chamavam para a alegria; ora avisavam do perigo ora convidavam à oração. Eram conhecidos pelos seus nomes: o grande Jaqueline, o sino de Rolando. Toda gente sabia o significado dos diferentes toques que, apesar de incessantes, não perdiam o seu efeito no espírito dos ouvintes.63

o colonizador lusitano chegando ao Brasil no século XVi trouxe consigo a tradição sineira. tradição que se incorporou ao cotidiano das comunidades, e, ainda hoje se mantém viva em muitas das cidades surgidas no Brasil com o ciclo do ouro, de tal maneira, que o iPhaN (instituto do Patrimônio histórico e artístico Nacional) propõe a sua preservação como bem cultural. Um grande projeto de registro dessas sonoridades e de seus significados específicos iniciou-se na mineira São João D’El Rei.64 tal projeto ainda não chegou à cidade de goiás, mas, pelo menos durante a Semana Santa, como pude observar, é intenso o badalar dos sinos anunciando a saída ou chegada de procissões. instigante, por outro lado, é observar o sineiro em ação, personagem que parece transposto do passado para habitar o presente. Figura como a de Benedito de Sá Efigênia, que, desde finais dos oitocentos até meados do século XX, acionava o sino da Boa Morte: tocava as badaladas do meio dia, o “ângelus”, as chamadas para as missas, os sinais de morte e enterro, os dobres da Paixão e da aleluia.

Benedito, conta a memorialista regina lacerda, se dizia inventor de muitos “toques”, além daqueles que aprendeu com seu mestre, e, como tantos outros sineiros, se criou e viveu à sombra dos campanários, coman-dando, a despeito da humildade do ofício, a vida da cidade.65 Quando da morte de Benedito de Efigênia os sinos da Boa Morte tocaram longamente em sua memória:

Dão... Dão... Dão... Choram os sinos da antiga igreja; choram a morte daquele que os visitava diariamente, no momento exato (...). Conhecia muito bem a linguagem do bronze, qual famoso maestro conhece os instrumentos componentes de sua orquestra. Os diversos toques eram como trechos de uma partitura: ‘Vira Mingau’, mais difícil que requeria o uso de uma corrente presa ao ombro, destinada à manobra do sino grande, ficando as mãos para os menores. ‘Vaga-Lume Cai, Cai’, toque cotidiano; ‘Moacir’, repiques vibrantes dos dias festivos.[...] Centenas de mortes ele chorou nos sons dos sinos que, agora, plangem, pedindo uma oração pela alma saudosa do amigo que se foi. Ressoa o bronze e as montanhas repercutem os sons: Dão... Dão... Dão.66

Benedito de Efigênia era sineiro de alma e ofício, assim como aquele ou-tro que rodou abraçado ao sino da igreja da lapa na grande enchente de 1839 e que ainda assombra as noites goianas, conforme a prosa de cora coralina:

Minha bisavó conheceu e contava da igreja. [...] A igreja rodou. O sineiro estava na torre tocando, tocando... dando aviso do perigo, pedindo rezas. O povo de longe

63 SchafEr, Murray, op. cit., p. 86.64 Ver o EStaDo DE S. PaU-lo. o toque dos sinos: um patrimônio. Disponível em <www.ivt-rj.net/clipping/clip-ping04.cfm?id=2081>. acesso em 27 mar. 2005.65 cf. lacErDa, regina, op. cit., p. 45.66 fErrEira, luíza de camar-go. Do baú de Luíza. goiânia: formato gráfica e Editora, 2003, p. 85 e 86.

Page 17: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015 195

Ar

tig

osgritava, fazia sinais que descesse e ele nada de ouvir, só queria tocar. Já tinham tirado

as alfaias e as imagens. O homem do sino não deu fé do perigo e lá se foi a igreja arrancada, torre e sineiro rodaram rio abaixo, o sino tocando mais. Afinal, a igreja se abriu de todo, no lugar da Pinguelona, onde o sino ficou encalhado e o sineiro se achou depois, cheio d’água, agarrado ao badalo. Gente que mora ali perto conta que terça à noite, ainda se ouve o sino tocar, isso quando a cidade se aquieta e as águas ficam dormindo. E a alma do sineiro nunca se afastou do lugar. Aparece em grandes visagens, muito alta e muito branca, crescendo e minguando, aparecendo sobre as águas, se sumindo de repente, repousando nas pedras, esperando que o povo tire o sino debaixo d’água e o reponha no alto de sua torre. 67

Quem sabe não estaria esse sino à espera de um compositor goiano que se inspire no seu tangido lendário e, tal qual um claude Debussy, com-ponha a nossa Cathédrale Engloutie68, conferindo-lhe vida através de música.

Sinos mediam a comunicação entres homens e homens, entre homens e Deus, e até mesmo entre homens e espíritos, mas ultrapassavam essa função, na sua profunda interação com a vida vivida na sua cotidianidade. Para cora coralina, os sinos da cidade de goiás não badalam simplesmen-te: “eles falam, chamam, soluçam, plangem”, e a cidade pulsa sob seus diferentes toques:

São argentinos, graves, fúnebres e dolentes, numa escala cromática de sons harmo-nizados ou díspares que rolando pelo espaço vão se perder nas quebradas distantes da serrania imensa, levando os corações para o alto. A gama sonora vai do pequeno toque ao grande dobre e é a entrada, o sinal, a procissão. Procissão saindo, procissão entrando. Reza. Missa. Novena. Tríduo. Missa solene, com seu toque repetido e festivo. Repique do Carmo. Dobre da Abadia. A cidade acorda com os sinos... são as matinas. A do Rosário avisa com 23 pancadas. A Boa Morte [...] responde com 94 badaladas. Trindade ao meio-dia e vésperas pela tarde. 69

os sinos vilaboenses não têm nome próprio, como aqueles de que fala huizinga. tomam simplesmente o nome de suas igrejas. todavia, a eles foi dada a propriedade de humanizar-se, conferindo-se aos toques o atributo da vocalização. Em caso de morte, os sinos “cantavam” mensagens, indicando para os vivos se quem morreu era criança ou “pecador”. “pode ser anjo com seu toque argentino: stá no céu... stá no céu... sta no céu... coitadim... coitadim...coitadiiinho... Pode ser irmão: consolo... consolo... consoolooo... chora não... chora não... chora nãoãoão... Vai por aí a plangência de finados, que a gente ouve com respeitoso temor, encomendando a alma dos mortos e perguntando o nome do que se foi”.70

Nos seus toques básicos – “dobre simples, dobre duplo e repique” – o badalar dos sinos da cidade de goiás não se diferencia daqueles tocados em qualquer outra cidade. No entanto, as especificidades e os detalhes de cada toque os individualizam. cora coralina conta que depois de ter se ausentado por meio século de Vila Boa, não entendia mais a linguagem dos bronzes de sua terra. Buscou, portanto, se inteirar sobre as badaladas que rompiam o ar, dia e noite, valendo-se da sabedoria de Júlia, com seus 50 anos de Casa Velha da Ponte, que ia traduzindo a “linguagem figurada, pitoresca, a fala alegre ou lamentosa dos sinos”: “Júlia, é anjinho que estão tocando? Não senhora, dona anica, é pecador. como assim, Júlia? o cama-rim do Senhor do Passos não toca anjinho. Só bate defunto... É homem ou mulher, Júlia? É homem, dona anica; a senhora não vê que é só grossão?”.71

67 coraliNa, cora. O tesouro da Casa Velha. São Paulo: global, 1989, p. 31 e 32.68 claude Debussy compôs o prelúdio Cathédrale Englou-tie inspirado em uma antiga lenda bretã, segundo a qual a catedral d’Ýs teria desapare-cido pelos pecados dos seus paroquianos. Mas, durante certas manhãs brumosas, cú-pulas e campanários apareciam brilhando sob os raios de sol. Nessas ocasiões, o sono mal-dito a que estava condenado o templo é suspenso, podendo-se ouvir sinos e cantos atemporais dos abades ecoando simulta-neamente. cf. MartiNS, José Eduardo. O som pianístico de Claude Debussy. São Paulo: No-vas Metas, 1982, p. 142.69 coraliNa, cora. Villa Boa de Goyaz, op. cit., p. 14.70 Idem, ibidem, p. 15. os sons chamados argentinos são agu-dos como a voz das crianças. Já as palavras atribuídas aos adul-tos mortos pressupõem o grave da voz masculina ou a tessitura média da voz feminina.71 coraliNa, cora. Villa Boa de Goyaz, op. cit., p. 15 e 16.

Page 18: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015196

o sininho da cadeia e câmara, situado em um pequeno campanário no topo desta construção colonial – hoje Museu das Bandeiras –, comandava o cotidiano vilaboense. tocava o silêncio da noite, dava alarme em casos de incêndio e anunciava julgamento de presos. Esse pequeno sino, com o “dialeto” peculiar conferido a ele por aquela gente, exercia sua função dialogando com o corneteiro do Quartel. Era a música da alvorada e do escurecer, reverberando em todos os lugares graças a “acústica poderosa da cidade”:

Cá é bem bão... cá é bem bão... cá é bem bão,assim, no dizer da gente da cidade,respondia o sininho da cadeia,ao toque de silêncio do quartel.[...]O maioral do quartel era mesmo o corneteiro.Acordava a madrugada, antes do dia clarear.Na alvorada antiga do quartel era o mundo que acordava.Repicava o sino das igrejas e cantavam os galos do quintal.A corneta, o corneteiro, o toque de silêncio, respondia o sininho da cadeiaCá é bem bão... Cá é bem bão... Cá é bem bão [...]72

“cá é bem bão”... “stá no céu”, “coitadiiinho”,” chora não” ... “cá é bem bão”! articuladas dessa forma, as “vozes” dos sinos parecem falar, no limite, sempre e apenas de vida e morte, repetindo o embate arquetípico entre permanência e desaparecimento. Embate, na verdade, concretamente travado pela própria cidade, no século XX, buscando acordar a si mesma, sair das brumas do esquecimento depois da mudança da capital do estado para goiânia. Voltar à cena, justamente através do que parecia fadado ao desaparecimento. conjunto de imagens, práticas e sons. Música perene que, parafraseando José Saramago, tal qual o badalar dos sinos, “voa de casa em casa, salta por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras”, para dizer ao mundo, permaneço aqui, a mesma e outra, viva.

Ressonâncias

No decorrer do século XX, o deslocamento da música dos territórios por ela tradicionalmente ocupados, possibilitou que a paisagem sonora pudesse ser percebida, no limite, como música, ou seja, pensar uma escuta que torna música o que, em princípio, não é música. também permitiu a incorporação do cotidiano sonoro no fazer musical enquanto material expressivo. fosse este o propósito desta investigação, e eu compositora, poder-se-ia pensar na utilização do material recolhido em ordenações de caráter musical. Mas, não foi essa a “composição” pretendida aqui.

a proposta foi transformar as sonoridades emergidas de diferentes suportes em potência capaz de viabilizar uma narrativa histórica. Uma história fundada em sonoridades tomadas como ressonâncias do sócio-cultural, por meio das quais se pôde inferir uma sociedade que cultivava a música e fazia festas – ambas funcionando como vetor de socialidade; que harmonizava o seu cotidiano em torno da linguagem dos sinos das igrejas e da câmara em diálogo com a corneta do quartel, revelando uma estrutura de poder ainda centrada na relação trono-governo-altar. Uma sociedade que se abriu aos modismos, hábitos e ideologias vindas da corte,

72 coraliNa, cora. o quartel da polícia de goiás. In: Vintém de cobre, op. cit., p. 207 e 208.

Page 19: V illa Boa de Goyaz:

ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan-jun. 2015 197

Ar

tig

osmas que guardou o bucolismo de seus sons arquetípicos, de seus marcos

sonoros, de habitus ancestrais, vivenciando-os como vetores da memória. O mítico, o lúdico, a lírica das pedras, o fluxo da água, de gente, de bichos, de festas, contraponteados pelas “vozes” emudecidas dos becos e porões da velha cidade, porosidades por onde fluem as marcas da escravidão, dos interditos, doenças, crenças, medos.

Artigo recebido em setembro de 2014. Aprovado em fevereiro de 2015.