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1 USO DA TERRA E MALÁRIA : UMA ANÁLISE ESPACIAL PARA O NORTE DE MATO GROSSO 1 , 1992 A 1995 2 Alisson Flávio Barbieri 3 Britaldo Silveira Soares Filho 4 Leonardo Corradi Coelho 5 A região Norte do Estado de Mato Grosso caracterizou-se, no final dos Anos 80 e início dos 90, por ser uma das áreas de maior prevalência de malária no continente americano. Essa alta prevalência é justificada, além das condições naturais propícias ao desenvolvimento dos vetores transmissores (mosquitos do gênero Anopheles) e do agente infeccioso causador da doença (Plasmodium), pelas formas e intensidade de inserção e uso da terra pelo homem na região. A região foi caracterizada pela intensa presença de atividades garimpeiras, além de áreas destinadas à produção agrícola e pecuária, e de diversos núcleos populacionais com características urbanas. Nesse artigo procura-se descrever as técnicas utilizadas para o mapeamento e representação espacial das diversas localidades no Norte de Mato Grosso em que foram registrados casos de malária, assim como as suas características em termos de ocupação e uso da terra. Foi feita também, para essas mesmas localidades, uma avaliação da prevalência de casos de malária ocorridos entre os anos de 1992 e 1995. 1 Por “Norte de Mato Grosso” está-se referindo, neste artigo, aos municípios de Terra Nova do Norte, Nova Guarita, Peixoto de Azevedo, Matupá, Guarantã do Norte e Novo Mundo, todos localizados na parte centro norte do Estado de Mato Grosso, na Bacia do Rio Peixoto de Azevedo. 2 Os autores agradecem à pesquisa “Land Use and Health”, desenvolvida no Cedeplar sob a coordenação da Profª Diana Sawyer, pelos dados e sugestões utilizados neste artigo. 3 Mestre em Demografia e Pesquisador do Cedeplar/FACE/UFMG. 4 Professor e Pesquisador do IGC/UFMG e Cedeplar/FACE/UFMG. 5 Assistente de Pesquisa do IGC/UFMG.

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Page 1: USO DA TERRA E MALÁRIA : UMA ANÁLISE ESPACIAL PARA 1 USO DA TERRA E MALÁRIA : UMA ANÁLISE ESPACIAL PARA O NORTE DE MATO GROSSO1, 1992 A 19952 Alisson Flávio Barbieri3 Britaldo

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USO DA TERRA E MALÁRIA : UMA ANÁLISE ESPACIAL PARA O NORTE DE MATO GROSSO1, 1992 A 19952

Alisson Flávio Barbieri3 Britaldo Silveira Soares Filho4

Leonardo Corradi Coelho5

A região Norte do Estado de Mato Grosso caracterizou-se, no final dos Anos 80 e

início dos 90, por ser uma das áreas de maior prevalência de malária no continente

americano. Essa alta prevalência é justificada, além das condições naturais propícias ao

desenvolvimento dos vetores transmissores (mosquitos do gênero Anopheles) e do

agente infeccioso causador da doença (Plasmodium), pelas formas e intensidade de

inserção e uso da terra pelo homem na região. A região foi caracterizada pela intensa

presença de atividades garimpeiras, além de áreas destinadas à produção agrícola e

pecuária, e de diversos núcleos populacionais com características urbanas.

Nesse artigo procura-se descrever as técnicas utilizadas para o mapeamento e

representação espacial das diversas localidades no Norte de Mato Grosso em que foram

registrados casos de malária, assim como as suas características em termos de ocupação

e uso da terra. Foi feita também, para essas mesmas localidades, uma avaliação da

prevalência de casos de malária ocorridos entre os anos de 1992 e 1995.

1 Por “Norte de Mato Grosso” está-se referindo, neste artigo, aos municípios de Terra Nova do Norte, Nova Guarita, Peixoto de Azevedo, Matupá, Guarantã do Norte e Novo Mundo, todos localizados na parte centro norte do Estado de Mato Grosso, na Bacia do Rio Peixoto de Azevedo. 2 Os autores agradecem à pesquisa “Land Use and Health”, desenvolvida no Cedeplar sob a coordenação da Profª Diana Sawyer, pelos dados e sugestões utilizados neste artigo. 3 Mestre em Demografia e Pesquisador do Cedeplar/FACE/UFMG. 4 Professor e Pesquisador do IGC/UFMG e Cedeplar/FACE/UFMG. 5 Assistente de Pesquisa do IGC/UFMG.

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1. RELAÇÃO ENTRE USO DA TERRA E PREVALÊNCIA DE MALÁRIA

O desenvolvimento do ciclo malarígeno irá depender não apenas das

características naturais do meio (clima, regime pluviométrico, etc), que favorecem a

proliferação do agente infeccioso causador da doença que reside nos corpos dos

mosquitos (Plasmodium), como também pela presença do homem, cujo sangue serve de

alimento aos mosquitos (ou vetores) do gênero Anopheles que transmitem a doença. Em

uma determinada área em que prevalece um certo equilíbrio ecológico - as populações

de mosquitos, do Plasmodium e do homem permanecem em um tamanho estável - e as

condições naturais do meio são pouco modificadas, a doença mantêm-se em níveis

estáveis de prevalência6 em humanos. A quebra desse equilíbrio ocorre com a entrada

de grandes contigentes humanos no meio, modificando o equilíbrio natural e alterando

as características reprodutivas e o habitat dos vetores. Há nesse caso uma maior

abundância de alimento (sangue humano) para os vetores, favorecendo o aumento de

sua população e também do Plasmodium, e a instalação de altos níveis de malária.

Deve-se considerar, na relação entre prevalência de malária e uso da terra, as

repercussões diferenciadas das formas com que o homem utiliza o meio e como ocorre a

ruptura do equilíbrio ecológico pré-existente. Cada forma de uso da terra apresenta

especificidades que influenciam os níveis de malária, principalmente no que se refere ao

padrão de mobilidade humana e a imunidade biológica à doença e características sociais

e culturais (BARBIERI e SAWYER, 1996), e com a introdução de formas diferenciadas

de “reorganização” do espaço sócio-econômico, produtivo e ambiental.

6 Por “prevalência” entende-se o número de casos de uma doença ocorridos em um período de tempo, e por “incidência” entende-se o número de novos casos que surgem em um período de tempo. A diferença entre os dois é que a prevalência envolve recorrências da doença, ou seja, indivíduos que deixam de apresentar os sintomas mas não eliminam os agentes infecciosos do corpo. Como é difícil a separação entre casos novos e recorrentes, optou-se, neste artigo, por considerar todos os dados referentes a registros de casos de malária como sendo “prevalência”, ou seja, não distinguindo entre casos novos e recorrentes.

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Uma característica importante, tanto para áreas urbanas, garimpeiras e de

colonização, é o estabelecimento de altos níveis de prevalência de malária na fase inicial

de ocupação. Conforme MONTE-MÓR (1986), “é exatamente nos primeiros estágios de

transformação do espaço natural em espaço construído, que as condições ambientais

resultantes se mostram mais propícias ao estabelecimento do ciclo da malária humana”

(p.312). SAWYER e SAWYER (1992) ressaltam, nesse estágio inicial de ocupação, a

existência de uma alta densidade de vetores e significativa contaminação por exposição

a céu aberto (contaminação extra domiciliar), a precariedade das habitações (facilitando

a penetração de vetores no ambiente doméstico), o baixo nível de imunidade e

conhecimento sobre a doença, a fraca presença de instituições públicas (especialmente

através de postos de saúde e de medicamentos), e a alta mobilidade populacional.

Pode-se qualificar os garimpos como sendo as áreas de maior prevalência de

malária na Amazônia Legal. Há, nos garimpos, uma grande quantidade de locais

propícios à reprodução dos vetores, como as cavas abandonadas que acumulam águas

de chuva, além do maior contato entre os vetores e o homem (exposição ocupacional).

Há também uma grande concentração de pessoas em um espaço relativamente menor do

que em áreas de colonização, além dos garimpeiros serem muito mais móveis

(permanência por tempo reduzido nos garimpos), facilitando a entrada e saída de

pessoas infectadas ou não e a constante “renovação” de populações infectadas.

Com a estabilização dos assentamentos de colonos, o que pode incluir aumento

da área desmatada e diminuição dos habitats dos vetores, e melhoria nas moradias, cria-

se um novo “equilíbrio ambiental” caracterizado pela grande redução nos níveis iniciais

de prevalência de malária, estabilizando-se em baixos níveis. A redução dos níveis de

malária nessas áreas de colonização irá depender também do tipo de interação com

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áreas vizinhas. De fato, a proximidade de uma área de colonização com um garimpo

com alto índice de prevalência de malária pode conferir à primeira níveis altos de

malária, sobretudo quando houver, entre as áreas, uma mobilidade considerável de

pessoas (por exemplo, colono que trabalha parcialmente no garimpo e mora em um

povoado ou sítio). Da mesma forma, esse padrão de mobilidade humana é importante

em relação às áreas urbanas, especialmente as mais próximas aos garimpos e em que as

condições de moradia não são adequadas, assim como as condições de saneamento

(formação de águas paradas em períodos chuvosos).

Enfim, para se compreender como a heterogeneidade da ocupação e uso da terra

se relaciona com a prevalência de malária, é preciso compreender não apenas a

dimensão biológica da doença (mosquito e seu habitat, e o Plasmodium) e de cada

forma de uso da terra, mas também como essas formas articulam-se entre si, no espaço

regional, influenciando as características populacionais e ambientais. Trata-se, então, de

articular transformações locais no meio natural e nas formas de organização humana

para o uso da terra, a fatores regionais, como os fatores populacionais relacionados à

mobilidade humana e a “rede” de atividades humanas desenvolvidas no território.

A Figura 1 apresenta um modelo teórico que trata das interações entre uso da

terra, prevalência de malária, e características ambientais e demográficas

(especificamente, em termos de mobilidade populacional)7. Estão representados, nos

retângulos, os três tipos principais de uso da terra no Norte de Mato Grosso: garimpo

(G), rural - colonização e pecuária extensiva (R), e atividades urbanas (U). Estas

atividades resultam em uma paisagem cultural ou modificada que interage com um

“ambiente natural”, habitat dos vetores transmissores de malária e do Plasmodium. A

7 Trata-se aqui de um modelo de complexidade simples, construído, tendo como referência, manuscrito não publicado pelo Professor Burton Singer, da Princeton University.

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interação entre cada um desses três tipos de ambientes natural e construído dá origem a

um novo tipo de ambiente com características particulares. Pode-se falar, nesse sentido,

de um “ambiente garimpeiro”, um “ambiente urbano” e um “ambiente rural”.

Figura 1 –Modelo de Uso Antrópico da Terra e Malária no Norte de Mato Grosso Mosquitos/ Vetores Mosquitos/ Vetores em área urbana (VU) em garimpos (VG) Novos imigrantes Novos imigrantes População em População em área urbana (PU) Fluxo de pessoas garimpos (PG) Fluxo de pessoas Fluxo de pessoas População em área rural/ colonização ou pecuária extensiva (PR) Novos imigrantes Mosquitos/ Vetores em área rural (VR)

Um elemento explicativo das diferenças de prevalência de malária entre os

ambientes na Figura 1 é a ligação que cada um deles mantêm entre si. As setas indicam

a possibilidade da mobilidade populacional entre os ambientes ser um elemento

determinante do nível de prevalência de malária. O fluxo de pessoas pode implicar

também em um fluxo das doenças, pois o fluxo de pessoas contaminadas a partir de

áreas com alta prevalência de malária, para áreas com baixos (ou nulos) contigentes de

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pessoas contaminadas (áreas de baixa prevalência), pode implicar no estabelecimento,

nessa última área, de altos níveis de prevalência da doença.

2. CARACTERIZAÇÃO DA REGIÃO EM ESTUDO: O NORTE DE MATO

GROSSO

O Norte de Mato Grosso, região conhecida como “Nortão” é apresentado na

Figura 1. A região compreende os municípios de Terra Nova do Norte, Nova Guarita,

Peixoto de Azevedo, Matupá, Guarantã do Norte e Novo Mundo8.

O Norte de Mato Grosso apresentou um processo de ocupação e uso da terra

peculiar em relação à maior parte das ocupações verificadas na Amazônia Legal, com a

presença praticamente conjunta de atividades de colonização agrícola e pecuária, do

garimpo e da criação de núcleos urbanos. Uma das características mais marcantes

dessas formas de ocupação é a interação e complementariedade entre elas, não apenas

pela proximidade física em vários casos – por exemplo, áreas de colonização próximas a

garimpo, ou áreas urbanas próximas a garimpos –, como também pela circulação de

pessoas entre as áreas, pelo fato de boa parte da população utilizar mais de uma dessas

formas de uso da terra como lugar de residência e de trabalho. São os casos, por

exemplo, de um colono que trabalha parte do tempo na agricultura e parte no garimpo,

residindo no seu lote rural, e de um garimpeiro que reside parte do tempo no próprio

garimpo e parte do tempo em uma área urbana próxima, ou procurando nessa última

alguns serviços como comércio e saúde. Essa forte articulação entre atividades

garimpeiras, agropecuárias e urbanas, especialmente com o fluxo de pessoas entre elas,

8 O município de Novo Mundo é o de emancipação mais recente (1997), e não se encontra localizado na Figura 1. O município é antigo distrito de Guarantã do Norte, estando situado a oeste do mesmo (a oeste do Rio Braço Norte)

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significa também a “mobilidade” da doença, pois pessoas contaminadas podem difundir

a doença para outras áreas.

Figura 1 - Localização da Região em Estudo no Norte de Mato Grosso

Study area

MATO GROSSOSinop

São Felixdo Aracuaia

Aripuanã

CUIABÁPontes deLacerda

CáceresRondonópolis

Fonte: SOARES, 1997

As formas de ocupação e uso da terra no Norte de Mato Grosso apresentam

especificidades quanto ao ritmo e desenvolvimento. Os grandes projetos de colonização

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na região, destinados ao assentamento de pequenos produtores, foram implementados

no final dos Anos 70 e começo dos 80. O “Projeto Terra Nova”, implementado em 1978

em Terra Nova do Norte, foi o pioneiro deles, e teve como principal objetivo assentar

famílias de colonos do sul do país. Também com o mesmo objetivo de assentamento,

foram criados dois outros projetos de colonização, na área dos atuais municípios de

Guarantã do Norte e Novo Mundo. São eles o “Projeto de Assentamento Conjunto

Peixoto de Azevedo” (PAC Peixoto de Azevedo) e o “Projeto de Assentamento Braço

Sul” (PA Braço Sul). Além dos projetos oficiais de colonização, a região também foi

caracterizada por processos espontâneos de colonização, com a presença de posseiros e

grileiros de diversas regiões do país.

Embora o uso do solo para fins agropecuários tenha sido predominante no final

dos Anos 70 e início dos 80, nos Anos 80 há a consolidação do garimpo como atividade

mais importante da região. A rigor, o Norte de Mato Grosso chegou a constituir, nos

Anos 80, uma das áreas mais importantes no país em termos de produção garimpeira de

ouro9, o que, dentre outros aspectos, contribuiu para atrair um grande número de

pessoas de outras regiões do país (especialmente do Nordeste) para os trabalhos de

extração de ouro, bem como atividades de suporte ao garimpo (comércio, serviços,

prostituição, etc.). É importante observar ainda que, com a expansão da atividade

garimpeira, há o desenvolvimento de núcleos urbanos na região, especialmente como

lugar de concentração das atividades de suporte ao garimpo, e mesmo como lugar de

residência de boa parte dos garimpeiros (especialmente em Peixoto de Azevedo).

Com a expansão, na Década de 80, do garimpo e das atividades de suporte a ele

relacionadas, houve uma forte retração nas atividades rurais, que passaram a assumir

9 Ver a esse respeito BRASIL/MME e DNPM, 1993; MIRANDA (1997); e BARBIERI e SAWYER (1996).

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uma importância secundária enquanto fonte de renda e emprego na região. Porém, já a

partir do final dos Anos 80, devido a problemas conjunturais como a queda do preço do

ouro e a exaustão do ouro secundário (ouro superficial, encontrado em depósitos

aluviais e coluvionares), o garimpo entrou em franca decadência, e com ele, as suas

atividades de suporte. Um efeito disso é que no primeiro qüinqüênio da Década de 90

passa a se verificar um processo de retomada da agropecuária, especialmente com a

abertura para esse fim de áreas ainda intocadas de floresta, nas regiões limítrofes do

Norte de Mato Grosso (principalmente a noroeste, nordeste e leste).

Na Tabela 1 é apresentada a evolução do tamanho populacional nos municípios

do Norte de Mato Grosso, entre 1991 e 1996. Nota-se que a região perde, por ano,

quase 1% da população da população no qüinqüênio, sendo essa perda maior para os

municípios que historicamente concentraram a maior parte da população garimpeira,

como são os casos de Peixoto de Azevedo e Terra Nova do Norte.

Tabela 1 –População e Taxa de Crescimento por Município no Norte de Mato Grosso – 1991 a 1996 Município 1991 1996 Taxa de Crescimento*

Masculino Feminino Total Masculino Feminino Total Masculino Feminino Total

Total 50899 42835 93734 48217 41494 89711 -1,08 -0,64 -0,88 Terra Nova 12034 10414 22448 11721 9957 21678 -0,53 -0,90 -0,70 Peixoto 20307 16933 37240 15429 13656 29085 -5,49 -4,30 -4,94 Matupá 5339 4882 10221 6137 5202 11339 2,79 1,27 2,08 Guarantã 13219 10606 23825 14930 12679 27609 2,43 3,57 2,95

Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 1991 e IBGE, Contagem Populacional de 1996. * Taxa de Crescimento Exponencial Anual da População, entre 1991 e 1996, conforme a fórmula: r = [( ln(po96/pop91) / t ]*100, em que t = 5 anos.

As características do processo de ocupação e uso da terra no Norte de Mato

Grosso, com suas formas e ritmos específicos, serão determinantes de um padrão de

prevalência de malária. Os efeitos da relação entre as formas diversas de uso da terra,

que se articulam no espaço regional, e a prevalência de malária, são bem exemplificados

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no caso dos garimpos. Os garimpos se constituíram em ambientes altamente propícios

ao ciclo malarígeno, tanto pelas condições favoráveis à proliferação dos vetores e do

Plasmodium, quanto pela existência de fontes abundantes de alimento para as fêmeas

anofelinas (sangue humano) e a alta mobilidade nessas áreas. A rigor, o Norte de Mato

Grosso notabilizou-se principalmente pelo fato de historicamente ter concentrado

grande parte dos casos de malária no país, chegando a apresentar os maiores índices de

prevalência da doença no continente americano no final dos Anos 80 e começo dos 90

(SAWYER, 1999; SAWYER, 1995).

3. IDENTIFICAÇÃO E DEFINIÇÃO DO TIPO DE USO DA TERRA POR

LOCALIDADE

Para um estudo adequado das relações entre uso da terra e prevalência de

malária no Norte de Mato Grosso, procurou-se inicialmente estabelecer o perfil de uso

da terra na região, através da representação espacial das atividades garimpeiras, urbanas

e rurais empreendidas nas diversas localidades (ou pequenas áreas). O termo

“localidade” refere-se aqui a um lugar caracterizado por uma forma particular de

ocupação e uso da terra, e que apresenta uma distribuição e localização específicas no

espaço. Nesse sentido, cada área urbana é definida como sendo uma localidade, da

mesma forma que garimpos e áreas de colonização diferentes, distantes entre si no

espaço, são definidos como localidades.

As informações sobre localidades foram obtidas de bancos de dados da

“Operação Inseticida” (Fichas OI-8) e as Fichas de Controle Epidemiológico EP-305,

ambos da Fundação Nacional de Saúde (FNS). Essas informações serviram de base para

a implementação de um Sistema de Informações Geográficas de Malária (SIGM), com

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informações sobre identificação geográfica e uso da terra nas localidades (informações

da EP-305 e OI-8), e sobre malária por mês e ano, entre 1992 e 1995 (EP-305).

Todas as localidades do Norte de Mato Grosso foram georreferenciadas, e para

cada uma delas foi criado um código com o número da localidade, número do setor

censitário, distrito e município a que pertencem. Para obter o posicionamento

geográfico preciso das localidades, o Cedeplar e o Centro de Sensoriamento Remoto da

UFMG (CSR) realizaram, entre 1992 e 1995, trabalhos de campo com o uso de GPS10,

tendo como referência imagens de satélite (LANDSAT) da região, além de croquis

utilizados pela FNS na cobertura de malária em localidades da região. Para cada

localidade foram identificados os seus pontos limítrofes, e dessa forma, foram medidas

as suas coordenadas.

Observou-se em pesquisas na região que os lotes rurais foram formados a partir

das margens das rodovias (ou “linhas”), sendo que a frente destes acompanham o

traçado da rodovia, possuindo uma profundidade variável, enquanto os garimpos

geralmente estão localizados ao longo das drenagens (riachos, córregos, ou “grotas”).

Dessa forma, constatou-se que cada localidade pode ser representada por uma área

adjacente ao seu respectivo segmento da rede viária ou hidrográfica (Figura 2). Isso é

particularmente importante para efeitos de simulação e representação gráfica, pois as

áreas que correspondem às localidades podem ser representadas através de polígonos,

formados a partir das redes viária e hidrográfica. A utilização de polígonos ao invés das

linhas é preferível, pois permite uma melhor visualização da tipologia de uso da terra e

de prevalência de malária nas localidades.

10 Global Position System (GPS), aparelho orientado por satélite que fornece as coordenadas exatas (latitude e longitude) de localidades geográficas.

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12

Figura 2 – Mapa de Localidades da Região em Estudo – Norte de Mato Grosso, 1992 a 1995

C urs os D 'ág u a

LE GE NDA

E s tra d a s

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Para a transformação da representação linear (redes viária e hidrográfica) para

zonal (polígonos) das localidades do Norte de Mato Grosso, foram criados “buffers” em

torno das linhas que representam as redes viária e hidrográfica. Os “buffers”

representam uma área de influência de cada localidade. Assim, as áreas rurais e

garimpeiras podem ser concebidas como uma extensão territorial formada a partir de

uma rede viária ou hidrográfica.

Na Figura 3 as localidades estão representadas a partir da aplicação da técnica

descrita acima. A cada localidade foi atribuído um tipo de uso da terra, através de

informações das fichas EP-305 e OI-8. Observa-se pela Figura 3 um certo padrão na

distribuição espacial do tipo de uso da terra em localidades do Norte de Mato Grosso.

As atividades garimpeiras estão, em sua grande maioria, concentradas ao longo do Rio

Peixoto de Azevedo, no município de mesmo nome. Em algumas outras localidades, as

atividades garimpeiras convivem com atividades rurais (agricultura e pecuária),

especialmente nas partes centro oeste, sudeste e noroeste da região. Há ainda uma maior

concentração de localidades predominantemente rurais nas partes centro sul, sudoeste,

nordeste e centro norte.

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Figura 3 – Tipologia de Uso da Terra nas Localidades – Norte de Mato Grosso, 1992 a 1995

C u rs o s D 'ág u a

HIDROGRAFIA

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4. PREVALÊNCIA DE MALÁRIA POR LOCALIDADE E TIPO DE USO DA

TERRA

As Fichas EP-305 da FNS disponibilizam algumas informações sobre a

prevalência de malária no Norte de Mato Grosso entre janeiro de 1992 e julho de 1995,

como o número de casos positivos de malária por localidade. Essa informação, por estar

relacionada a localidades espacialmente definidas, permitiu a criação de um Sistema de

Informações Geográficas sobre Malária (SIGM), em que as informações sobre a doença

podem ser analisadas a partir de sua distribuição no espaço.11

Na Tabela 2 é apresentada uma estimativa dos casos de malária nos meses de

pico (janeiro a julho)12, a participação desse período no total de casos no ano, e a

variação anual dos casos de malária (1992 a 1995). Os meses de pico concentram cerca

de 69% do total dos casos positivos de malária nentre 1992 e 1995. No total, entre

janeiro de 1992 e julho de 1995, foram registrados 192.353 casos de malária na região.

As informações apresentadas na Tabela 2 também foram analisadas por

localidades, o que permite encontrar com maior clareza diferenciais que permitam

estabelecer como as mudanças na intensidade de malária podem ser relacionados ao tipo

de uso da terra. Na Figura 4 é representada, por localidade13, a média mensal de casos

de malária entre janeiro de 1992 e julho de 1995.

11 Deve-se mencionar que, para serem utilizados em um SIGM, os dados da Fundação Nacional de Saúde necessitaram de vários ajustes e correções. Os procedimentos utilizados na preparação dos dados são minuciosamente descritos em BARBIERI (2000). 12 Essa definição de “meses de pico” é apenas para fins analíticos. Conforme a região da Amazônia, o período de maior intensidade de malária pode sofrer variações em termos de meses, sendo que no Norte de Mato Grosso esse período ocorre normalmente do meio para o final da estação chuvosa (março a maio). Nesse caso, os “meses de pico” estariam envolvendo esse período de maior intensidade e o período inicial da estação seca. 13 Das 351 localidades com registros de malária (Mapa 3), 178 estão representadas no Mapa 4. Se por um lado foram mantidos os registros de malária em cada localidade, na representação gráfica das localidades alguns polígonos podem englobar mais de uma localidade. Isso ocorre pelo fato da contigüidade e proximidade entre algumas localidades impossibilitar uma distinção dos limites das localidades, embora elas continuem a existir separadamente, com os seus registros de malária.

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Tabela 2 – Número Estimado de Casos Positivos de Malária (Intensidade) em meses de pico, por Ano, Município e Tipo de Uso da Terra – Norte de Mato Grosso, 1992 a 1995. Município e Casos de Malária % dos casos no ano Variação (%)

Uso da terra 1992 1993 1994 1995 Total 1992 1993 1994 1995 Total 92/93 93/94 94/95

Urbano 12886 9822 3208 3533 29449 0,64 0,68 0,64 1,00 0,68 -23,78 -67,34 10,15

Garimpo 32549 21045 11873 10245 75712 0,67 0,63 0,63 1,00 0,68 -35,34 -43,58 -13,71

Rural 9446 7592 3328 3504 23870 0,65 0,62 0,69 1,00 0,68 -19,62 -56,16 5,29

S/definição 741 734 203 442 2121 0,59 0,64 0,65 1,00 0,67 -0,95 -72,35 117,75

Total 55622 39193 18612 17725 131152 0,66 0,64 0,64 1,00 0,68 -29,54 -52,51 -4,77

Terra Nova

Urbano 564 672 241 148 1626 0,73 0,69 0,73 1,00 0,73 19,16 -64,10 -38,56

Garimpo 5812 4572 3038 1694 15116 0,71 0,59 0,67 1,00 0,68 -21,33 -33,55 -44,25

Rural 3989 4628 2041 1174 11831 0,66 0,60 0,73 1,00 0,67 16,01 -55,90 -42,48

Total 10365 9872 5321 3016 28573 0,69 0,60 0,69 1,00 0,68 -4,75 -46,10 -43,31

Peixoto de Az.

Urbano 5977 4611 1071 1204 12862 0,60 0,69 0,73 1,00 0,67 -22,86 -76,77 12,41

Garimpo 12774 6895 5573 5402 30644 0,67 0,63 0,58 1,00 0,68 -46,03 -19,17 -3,08

Rural 22 73 243 808 1146 0,41 0,44 0,60 1,00 0,80 235,08 233,62 232,41

Total 18773 11578 6887 7414 44651 0,65 0,65 0,60 1,00 0,68 -38,33 -40,52 7,65

Matupá

Urbano 3065 3153 1219 1499 8937 0,64 0,66 0,62 1,00 0,68 2,84 -61,33 22,98

Garimpo 7459 5418 1565 1856 16297 0,64 0,69 0,62 1,00 0,68 -27,37 -71,12 18,59

Rural 1940 1241 297 424 3902 0,63 0,67 0,79 1,00 0,68 -36,05 -76,04 42,73

Total 12465 9811 3081 3779 29136 0,64 0,68 0,63 1,00 0,68 -21,29 -68,59 22,66

Guarantã

Urbano 3279 1386 676 682 6024 0,71 0,67 0,55 1,00 0,70 -57,73 -51,22 0,84

Garimpo 6504 4160 1697 1294 13655 0,68 0,61 0,81 1,00 0,69 -36,04 -59,21 -23,75

Rural 3495 1651 747 1098 6991 0,65 0,66 0,61 1,00 0,68 -52,76 -54,77 46,96

Total 13279 7198 3120 3073 26670 0,68 0,63 0,69 1,00 0,69 -45,79 -56,65 -1,50

Fonte: FNS, fichas EP-305.

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Figura 4 - Média Mensal de Casos de Malária por Localidade – Norte de Mato Grosso, 1992 a 1995

C u rs o s D 'ág u a

HIDROGRAFIA

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As evidências apresentadas na Tabela 2 e Figuras 3 e 4 apontam uma forte

tendência de queda nos níveis de prevalência de malária, havendo uma maior

intensidade de queda no triênio 1992/1994. Entre 1994 e 1995 também há indícios de

queda, porém já em um ritmo menor. A redução da prevalência de malária pode ser

atribuída principalmente à decadência dos garimpos, mais concentrados nos municípios

de Peixoto de Azevedo e Terra Nova do Norte.

A análise por unidades espaciais mais desagregadas, como as localidades,

permite observar diferenciais significativos, especialmente quando se analisa o tipo de

uso da terra predominante. Além das localidades garimpeiras ao longo do Rio Peixoto

de Azevedo, cujas características de uso da terra e da população inserida nesse tipo de

atividade são por si só fatores altamente explicativos da alta prevalência de malária, as

localidades rurais e urbanas com maior prevalência de malária são caracterizadas por

uma maior interação com atividades garimpeiras, sendo que essa “rede de localidades”

permite um processo mais acentuado de difusão da doença. Por interação quer-se dizer

não apenas a proximidade física, mas também o fluxo de pessoas entre as áreas. No

Norte de Mato Grosso, as áreas garimpeiras, urbanas e rurais mantêm um fluxo regular

de pessoas entre si, facilitando a difusão da doença por uma área maior e com maior

quantidade de pessoas vulneráveis à ação hematófaga dos vetores. Nesse sentido,

quanto maior a interação entre diferentes formas de uso da terra com localidades

garimpeiras, maior a possibilidade mobilidade populacional entre elas e maior a

prevalência de malária. Essa situação parece se aplicar bem ao caso de Matupá, onde foi

constatada uma alta interação entre os tipos distintos de uso da terra (Figura 3).

As localidades rurais mais isoladas apresentam prevalência de malária com

médias mensais relativamente pequenas, enquanto a média de casos no urbano deve ser

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relativizada em função de uma maior população exposta aos vetores14. Dessa forma,

áreas rurais e urbanas com menor interação com localidades garimpeiras tendem a

apresentar menor prevalência de malária, o que é bem exemplificado por grande parte

das localidades rurais e urbanas em Terra Nova do Norte.

Pode-se observar ainda que as localidades urbanas e rurais de Terra Nova do

Norte apresentaram aumento na intensidade de malária nos primeiros anos, e um

número decrescente no final do período. Já algumas das localidades rurais mais

importantes em Peixoto de Azevedo, Matupá e Guarantã, do Norte (em termos de

número de casos de malária), apresentaram alta prevalência de malária no período.

Nesses municípios, a retomada de atividades agropecuárias ocorreu em maior

intensidade no final do qüinqüênio, confirmando a hipótese de tendência crescente no

número de casos de malária em ocupações rurais mais recentes. As localidades com

ocupação mais antiga (no caso, no início do qüinqüênio), especialmente em Terra Nova

do Norte, apresentam, de forma geral, menor prevalência de malária do que áreas rurais

de ocupação mais recente (à exceção de algumas localidades rurais próximas de

localidades garimpeiras).

Em suma, as principais formas de uso da terra no Norte de Mato Grosso

apresentam especificidades que irão se refletir em níveis diferenciados de prevalência

de malária. Por outro lado, considerar a prevalência de malária por tipo de uso da terra

nas localidades isoladamente, é insuficiente para explicar os diferenciais da doença. No

Norte de Mato Grosso, a interação espacial entre localidades mostrou-se altamente

significativa na explicação da prevalência da doença, especialmente pela singularidade

14 O ideal, nesse caso, seria estimar taxas de malária por localidades, com o número de casos de malária no numerador, e a população exposta no denominador. Essa última informação, no entanto, não está disponível nos bancos de dados da FNS.

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dessa região devido à alta interação espacial entre as áreas rurais, garimpeiras e urbanas.

A rigor, a interação espacial, caracterizada pela proximidade física e pela mobilidade

humana entre localidades de diferentes tipos de uso da terra, é um traço característico da

região desde os estágios iniciais de ocupação. A interação espacial pode ser, nesse caso,

um resultado da dicotomia entre lugar de residência e de trabalho – por exemplo, o

colono que reside em seu lote rural e trabalha temporariamente no garimpo, ou o

garimpeiro que reside em uma área urbana; ou uma necessidade de garimpeiros e

colonos de buscarem comércio, serviços e as comodidades urbanas; ou mesmo uma

imposição da própria disposição espacial das ocupações humanas, como são os casos

das áreas rurais e urbanas “cercadas” por atividades garimpeiras. Em quaisquer desses

casos, as formas de ocupação e uso da terra não são isoladas umas das outras, e o fluxo

de pessoas implica também em um fluxo das doenças. Quanto maior a intensidade e o

alcance dos deslocamentos espaciais, maiores são as probabilidades de que a doença

seja difundida por áreas cada vez mais amplas, e em maior intensidade.

Nesse sentido, a mobilidade populacional apresenta-se como decisiva no nível

de prevalência de malária, tanto pela saída de população de maior risco ocupacional

(garimpeiros), quanto pela redução da mobilidade entre áreas garimpeiras, urbanas e

rurais. Um bom indicativo disso é que, em situações em que ocorre maior interação

entre localidades garimpeiras e rurais, normalmente a alta ou baixa prevalência de

malária em localidades rurais acompanha a alta ou baixa prevalência em localidades

garimpeiras. Ou seja, em termos de avaliação epidemiológica de malária, há que se

considerar como as diversas localidades, com suas formas distintas de ocupação e uso

da terra, estão articuladas no espaço regional, especialmente no que se refere à

mobilidade populacional da população de risco dentro desse espaço.

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4. CONCLUSÃO

Nesse artigo pôde-se observar a importância da utilização de informações sobre

pequenas áreas (aqui chamadas de “localidades”), relacionadas ao tipo de uso da terra,

prevalência de malária, e a sua distribuição espacial. Para esse tipo de análise espacial, a

construção de um Sistema de Informação Geográfica (SIG) mostrou-se uma instrumento

extremamente útil, permitindo não somente a visualização dos resultados, como também

a análise espacial da distribuição da prevalência de malária no espaço.

Pôde-se constatar que a interação espacial entre as localidades (proximidade

física e mobilidade populacional) se coloca, ao lado das especificidades próprias de

cada forma de uso da terra, como um fator primordial na explicação da prevalência de

malária no Norte de Mato Grosso, seja em áreas urbanas, garimpeiras ou rurais. Essa

constatação levanta a discussão sobre a necessidade de se compreender a importância de

características populacionais, como a mobilidade populacional, na determinação de

doenças transmitidas por vetores, e em que o homem é um hospedeiro intermediário.

Em pesquisas de campo e trabalhos epidemiológicos que abordem esses tipos de

doenças, pode-se sugerir que uma melhor compreensão da doença, especialmente a sua

difusão e configuração espacial, poderia ser obtida introduzindo, por exemplo, questões

em entrevistas de campo que permitissem identificar padrões de mobilidade humana,

como os lugares de residência e de trabalho, e consequentemente associar esses padrões

ao histórico de doenças do indivíduo.

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