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Urdimento Número 4, Dezembro/2002 Revista de Estudos Teatrais na América Latina ISSN1414-5731 Índice Editorial Teatro popular no Brasil: A rua como âmbito da cultura popular André Luiz Antunes Netto Carreira Engajamento e Resistência na Perspectiva de um Projeto Intercultural de Teatro Beatriz Angela Vieira Cabral A Emoção e o Ator: em Stanislavski, em Brecht, em Grotowski Heloise Baurich Vidor Os Cadernos de Teatro & A Descentralização do Fazer Teatral José Ronaldo Faleiro A utilização da máscara neutra na formação do ator Luciana Cesconetto Buscando uma interação teatral poética e dialógica com a comunidade Márcia Pompeo Nogueira O corpo em equilíbrio, desequilíbrio e fora do equilíbrio Sandra Meyer Nunes Maiakóvski e o Teatro de Formas Animadas Valmor Beltrame Resenha Antoine no Brasil: Ecos de uma polêmica Edelcio Mostaço 32 5 12 43 55 70 90 100 118 3

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UrdimentoNúmero 4, Dezembro/2002 Revista de Estudos Teatrais na América Latina ISSN1414-5731

ÍndiceEditorial

Teatro popular no Brasil: A rua como âmbito da cultura popularAndré Luiz Antunes Netto Carreira

Engajamento e Resistência na Perspectiva de um Projeto Intercultural de Teatro Beatriz Angela Vieira Cabral

A Emoção e o Ator: em Stanislavski, em Brecht, em Grotowski Heloise Baurich Vidor

Os Cadernos de Teatro & A Descentralização do Fazer Teatral José Ronaldo Faleiro

A utilização da máscara neutra na formação do ator Luciana Cesconetto

Buscando uma interação teatralpoética e dialógica com a comunidadeMárcia Pompeo Nogueira

O corpo em equilíbrio, desequilíbrio e fora do equilíbrio Sandra Meyer Nunes

Maiakóvski e o Teatro de Formas Animadas Valmor Beltrame

ResenhaAntoine no Brasil: Ecos de uma polêmicaEdelcio Mostaço

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PERIÓDICOS EM ARTES CÊNICAS NO BRASIL

Revista Repertório / UFBAUrdimento / UDESC

O Percevejo / UNIRIOTeatro da Juventude

O FolhetimRevista do Lume

Cadernos de Teatro d’O TabladoSala Preta / USP

ABRACEAssociação Brasileira de Pesquisa

e Pós Graduação em Artes Cênicas

www.udesc.br/abrace

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Editorial

Este número de Urdimento tem a particularidade de apresentar ex-clusivamente trabalhos produzidos por professores do Departamento de Artes Cênicas da UDESC. A razão disso é que decidimos comemorar a abertura do nosso Programa de Pósgraduação em Teatro (Mestrado) e sua respectiva reco-mendação pela CAPES. Nosso esforço para fomentar a pesquisa e sua difusão ganha um novo impulso com a implantação do PPGT. Nosso Programa é uma demonstração de que o sistema de pós gradu-ação em artes cênicas no Brasil vem crescendo permanentemente e também da consolidação da nossa área de conhecimento. Reiteramos a intenção de Ur-dimento em cumprir um papel difusor da produção que emana dos programas de pósgraduação espalhados pelo país. Urdimento também continua buscando um maior contato com a pro-dução acadêmcia da América Latina. Acreditamos que muito há por fazer neste campo. O intercâmbio com nossos colegas de língua espanhola não apenas representa um movimento que é parte de nossa vocação continental, como é uma condição necessária para o aprofundamento de um conhecimento que se afirma na sua particularidade enquantoreivindica sua diversidade. Este objetivo ainda não alcançou o nível que pretendemos pois as dificuldades de contato e distribuição ainda fazem que neste mundo, que pa-rece absolutamente interconectado, se possa perceber claramente as fronteiras impostas que mesmo parecendo cada vez mais invisíveis fazem notar sua presença. Mas, nada nos diz que não podemos criar mais espaços de pesquisa consistentes dentro desta realidade nem sempre fácil.

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Teatro popular no BrasilA rua como âmbito da cultura popular

Dr. André Luiz Antunes Netto CarreiraUniversidade do Estado de Santa Catarina – UDESCConselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq

Convidado pelo Programa de Pós Graduação em Teatro da UNIRIO a refletir sobre o tema teatro popular no Brasil imediatamente pensei em abordar a relação entre a modalidade do teatro de rua, que é uma das áreas nas quais tenho trabalhado muito nos últimos anos, e diversas formulações conceituais referentes à idéia de teatro popular. A questão que pretendo abordar focaliza a definição de qual é o âmbito ou zona onde podemos pensar a relação teatro de rua / teatro popular. Talvez não seja uma novidade propor uma clara diferenciação entre a idéia de teatro popular e do teatro de rua. De forma reiterada, estudiosos do teatro se referem ao teatro de rua como um componente do teatro popular. Mas de fato, quando nos debruçamos sobre o teatro de rua contemporâneo podemos ver uma miríade de projetos cênicos que exploram formas teatrais que se rela-cionam muito mais com experimentações vanguardistas do que com a cultura popular. O que nos intriga é que percebemos a rua como um lugar da cultura popular. Portanto, nos inclinamos a pensar que as manifestações espetaculares neste âmbito devem estabelecer relações com este campo cultural que delimi-tamos como popular

Se há um vínculo entre o campo da cultura popular o e o teatro de rua, este vínculo se manifesta nos sentidos do uso da rua, na possibilidade de apropriação e transformação dos usos da rua, até mesmo em uma lógica da rua. A rua, enquanto espaço de convivência, permite que o cidadão desfrute

2 Duvignaud, Jean. El juego del juego. México. 1982. Fondo de Cultura Económica. p.18.3 Duvignaud, Jean. El juego del juego. p. 12. 4 Ávila, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo. 1980. De. Perspectiva.

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6 Urdimento 4 / 2002 Urdimento 4 / 2002Urdimento 4 / 2002 Urdimento 4 / 2002

5 Duvignaud, Jean. El juego del juego. p.54.

de um anonimato que o libera do peso do compromisso pessoal. No espaço aberto da rua e em comunidade, o ser humano urbano se sente mais capaz de atuar. Este é um comportamento que facilita que na rua exista uma predisposição para o jogos e a participação espontânea.

O jogo foi definido pelo sociólogo francês Jean Duvignaud “como uma atividade sem objetivos conscientes, um estado de disponibilidade que foge a toda intenção utilitária”2 , livre e sem regras (...) “neste estado de ruptura do ser individual ou social, no qual a única coisa que não se questiona é a arte.”3

O jogo, a brincadeira é fantasia. As crianças transformam a calçada de sua rua na praia à qual chegam piratas. Os adultos transformam, durante uma festa de carnaval, as pedras do calçamento, no âmbito onde cada um pode ser o que quiser. A rua, é portanto, o espaço para o exercício da liberdade e da criatividade. No que se refere ao comportamento do homem da rua, convivem duas tendências: a primeira é uma atitude de respeito às regras sociais dominantes, e a segunda á a abertura ao jogo e à liberdade de ação. O equilíbrio entre a atitude social dominante e o jogo é dinâmico, e se modifica de acordo com os processos sócio-culturais do momento. Na rua existe um complexo jogo social no qual está presente uma infinidade de inter-relações que regem grande parte do comportamento dos cidadãos na rua. Este ordenamento não é imutável e portanto, é permeável à ação coletiva anteriormente descrita, e se transforma segundo a incidência dos acontecimentos. A tendência ao jogo se vê favorecida especialmente pela individuali-zação, que é provocada pela sensação de liberdade. Paradoxalmente, é através do jogo da rua - manifestado nas ações coletivas - que o indivíduo se expressa sem freios e limitações. O jogo quando “evolui da sua esfera de fenômeno subjetivo individual e penetra as estruturas da vida social”4 se faz transgressor, porque a mobilização da energia lúdica coletiva questiona os códigos e as regras sociais estabelecidas. Ao se materializar na superfície do ser social, o jogo se plasma em manifestações culturais de ruptura da ordem vigente. Este jogo da rua, cujo exemplo mais contundente talvez seja o carnaval, abre a possibilidade da mais ampla liberdade criadora, porque, enquanto dura, põe o mundo de cabeça para baixo, inverte todos os valores. Nossa sociedade

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estabeleceu como regra que as ruas cumprem uma série de funções específicas, e aquelas atividades que extrapolam estes limites entram numa zona de conflito, pois, questionam não somente o uso da rua, senão o poder de controle sobre o espaço cidadão. O jogo, enquanto experiência lúdica, é em essência questionador. Subverte a ordem que propicia tranqüilidade, e a desequilibra. É esta a característica que define o jogo como um elemento perigoso que deve ser enquadrado como um fenômeno temporário para seu controle. Jean Duvign-aud fazendo referência ao jogo com relação às festas como acontecimentos únicos diz: “Durante esta explosão súbita e momentânea das relações humanas estabelecidas, se rompe o consenso, se apagam os modelos culturais trans-mitidos de geração em geração, não por uma transgressão qualquer, senão porque o ser descobre, às vezes com violência, uma plenitude ou uma super abundância proibida na vida cotidiana...lógico, a festa não dura. É perecível no seu próprio princípio”.5 No carnaval, as mais amplas liberdades estão contidas em quatro dias. As manifestações políticas de rua não controladas por aparelhos políticos, quando alcançam o grau de revolucionárias, isto é, quando põe em risco o sistema de dominação sócio-político, atingem a mesma liberdade do carnaval, pois as regras desaparecem e a criatividade se faz livre. Neste caso, independente dos objetivos específicos da manifestação, aparece uma enorme variedade de reações que estão muito mais relacionadas com a possibilidade de jogar; já seja o papel de transformador da realidade ou simplesmente pôr para fora uma energia por muito tempo contida. É esta característica de ruptura, própria do comportamento oriundo do jogo, que provoca que o espaço da rua seja considerado estratégico pelos organismos encarregados de manter a ordem social. Por isso o teatro de rua, ainda que não possa alcançar a dimensão do descontrole do carnaval ou a força avassaladora das grandes manifestações sindicais, explicita a possibilidade de ruptura ao provocar o jogo e ao convidar aos transeuntes a participar da criação - ainda que momentânea - de uma nova ordem. Isso ganha importância por se tratrar de um fenômeno instalado em um espaço de vivência cotidiana - que diferentemente das salas teatrais - não enclausura os espectadores, senão que, ao ser totalmente aberto, estreita a 6 Vetor no sentido explicitado por Marco de Marinis: força dramática que opera na modificação dos personagens.

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7 Melquior, José Guilherme. Formalismo e tradição moderna - O problema da arte na crise da cultura. São Paulo. 1974. De. Forense - EDUSP. p. 158.

relação entre o acontecimento teatral e o horizonte da cidade, provocando um imediato desdobramento dos signos propostos pelo espetáculo. Considerando a cultura popular como um conjunto de produção simbólica que se constrói também como imagem especular da cultura “culta”, uma ques-tão pertinente segundo Fredric Jameson, seria averiguar se ambos movimentos culturais não se definem apenas como coisa relacionada com este outro. Então a cultura da rua que se relaciona estreitamente com a idéia de jogo aparece delimitada pelas fronteiras da cultura de entre muros, a cultura da instituição do interior dos edifícios. É o adentro e o afora que permitirá a construção um saber/fazer diferenciado. A rua, por ser o espaço da circulação pública, onde estão desde o mar-ginal até o trabalhador de setores médios, constitui um espaço de hibridação de usos que dá forma a um marco cultural próprio, mas, que se relaciona – por aproximação – com o campo da cultura popular. É neste território híbrido que se da a aproximação entre o teatro de rua e a cultura popular. De fato, esta aproximação não é somente temática. Pelo contrário ela se dá no sentido das regras de funcionamento do espetáculo e das modalidades de atenção do público. Isto é, a interferência da audiência tem, neste caso, uma influência muito grande na constituição do espetacular. Quando falo da audiência (de sua interferência) quero dizer que atra-vés das atitudes do público surge um vetor6 que representa necessariamente a presença da cultura da rua/popular na cerimônia espetacular. Como o fazer espetacular não pode desconhecer a força do público na articulação de sentidos do espetáculo, a resultante do teatro de rua terá sempre o elemento popular no seu bojo, ainda quando não o tenha – conscientemente – na sua temática. Poderíamos dizer que o popular estaria sempre relacionado com o teatro de rua na sua existência enquanto cerimonia social, como acontecimento. O teatro de rua como transgressão.

A hierarquização espacial que estabelece a cidade capitalista considera alguns espaços como nobres e outros como marginais. Ao confinar o espetáculo teatral nas salas, a cultura capitalista determinou que o espetáculo aceitaria

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perder seu caráter de festa e ganharia o valor de mercadoria. Esta mercadoria tem mais valor nos espaços fechados onde o pagamento de uma entrada, não somente gera lucro, senão que outorga hierarquia. Neste marco, a manifestação teatral na rua ocupa, cada vez mais, um espaço de marginalidade. A expressão desta marginalidade denuncia a cara segregacionista do sistema e portanto o questiona, transgredindo assim as regras do uso espacial da cidade. Se o espaço profano da rua está reservado especialmente para suas funções específicas, toda atividade que esteja fora deste marco resultará, de certo modo, transgressora. Esta transgressão pode variar segundo graus ou intensidades, mas, ao fim, questionará o sistema dominante. Ainda quando a cultura dominante possa conviver com essa transgressão, cedendo alguns es-paços, a expressão da rua continua sendo marginal frente ao conceito de teatro respeitável que forjou a sociedade.

José Guilherme Melquior, filósofo brasileiro, diz que “a arte tolerada pode gerar a crítica da sociedade que a tolera e segregar o vírus de ruptura com dita sociedade”.7 Que a sociedade tolere o teatro de rua não o faz menos trans-gressor, porque esta tolerância está marcada por uma atitude discriminatória que permanentemente situa este teatro no seu lugar de marginalidade, que é um lugar de confronto com o padrão cultural dominante. O simples fato de que o teatro de rua exista implica um potencial transgressor, mas, a concretização desta transgressão se manifesta em diferentes ordens. Em primeiro lugar; o teatro de rua transgride o caótico deslocamento das pessoas na ruas, pois, ainda que momentaneamente, propõe uma ruptura no uso cotidiano da rua. Recria o espaço da rua e inventa uma nova ordem, ao mesmo tempo que impõe às pessoas que caminham pela rua uma mudança: de simples pedestres a espectadores. Em segundo lugar, ao ocupar a rua, o teatro se faz permeável à in-fluência do que se poderia chamar “cultura da rua”, que seria a mescla de todas as culturas dos usuários do espaço da rua, tudo aquilo que se manipula como modo de atuar próprio da rua; os medos, os códigos gestuais, as formas de ocupação do espaço, etc. Esta cultura da rua estaria situada fora do padrão cultural dominante, como fato paralelo e marginal. Outro aspecto desta transgressão: o teatro de rua toma elementos das manifestações de rua, especialmente aquelas relacionadas com as lutas políticas ou sindicais. Este fenômeno responde a que, no seio destas manifestações, se desenvolveu uma maneira particular de ocupação e uso do espaço da rua que

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explicita o caráter democrático da rua. O teatro de rua, tão transgressor como as lutas políticas, toma emprestado a estas alguns elementos formais. Ainda que se possam ver nas ruas manifestações artísticas que nada têm de transgressoras - especialmente naqueles casos em que as instituições da cultura levam espetáculos de âmbitos fechados aos palcos na rua, ou quando organismos oficiais de cultura realizam atividades de rua - se pode dizer que essencialmente o teatro de rua transgride o princípio hierárquico espacial dentro do qual a sociedade burguesa enquadra as manifestações artísticas, como fica explicitado no conteúdo deste capítulo. É a partir da compreensão do teatro de rua como uma modalidade teatral transgressora que se pode começar a estudar a atitude dos regimes ditatoriais para com os grupos que realizaram este tipo de teatro e as conse-qüências posteriores que sofreu o discurso teatral de rua no seio dos processos de democratização.

Este acontecimento tem uma composição híbrida. O hibridismo é uma característica fundamental da rua que é o âmbito que permite a fomenta a interferência múltipla de fatores na construção do espetáculo de rua como cerimônia pública. A ampla diversidade de sujeitos sociais que estão aptos a interferir na construção do momento espetacular modifica o caráter do espetáculo, senão na totalidade da sua linguagem cênica, na sua relação concreta com o ambiente. Utilizando termos termos da semiótica , poderíamos dizer que até o significante do signo teatral sofre influências modificadoras na rua dado que as próprias regras que são propostas para a construção do espetáculo podem mudar (e mudam) radicalmente na relação vigorosa que se estabelece na representação na rua. A interferência do público multifacético (multi-social) da rua tem a potencialidade de transformar o caráter do espetáculo teatral, incorporando componentes da cultura popular e construindo no evento espetacular um acontecimento da cultura popular. Um encontro entre realizadores e audiência, que também pode se dar entre campos culturais distintos, mas que se constrói como uma síntese cujo resultante é a re-apresentação da cultura popular. Esta aparece então como fenômeno da recepção que constrói sentidos a partir do texto espetacular. Ao construir sentidos atribuindo significados ao espetáculo a cultura de rua define o teatro de rua como acontecimento que

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se incorpora a esse marco cultural. Então seria possível pensar que mesmo o espetáculo mais experimental viria a compor parte da cultura popular, ou mais especificamente da cultura híbrida das ruas.

Referências Bibliográficas

Ávila, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo. De. Perspectiva. 1980.Duvignaud, Jean. El juego del juego. México. Fondo de Cultura Económica. 1982.Jameson, Fredric. El Posmodernismo como lógica cultural del capitalismo tardio. Buenos Aires, Imago. 1996.Melquior, José Guilherme. Formalismo e tradição moderna - O problema da arte na crise da cultura. São Paulo. Ed. Forense - EDUSP1974.

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Engajamento e Resistência na Perspectiva de um Projeto Intercultural de Teatro

Beatriz Angela Vieira CabralUniversidade do Estado de Santa CatarinaUniversidade Federal de Santa Catarina

“Aquele que quer dar um longo salto deve estar preparado para dar alguns

passos atrás. O hoje se sustenta através do ontem em direção ao amanhã”

B. Brecht, Baal

“Na batalha com o velho as novas idéias chegam às suas

formulações mais agudas” B. Brecht, Na Selva das Cidades

A oscilação entre engajamento e resistência foi uma constante durante o intercâmbio de pesquisa “Teatro - Escola - Comunidade”, realizado entre as Universidades do Estado e Federal de Santa Catarina e a Universidade de Exeter/UK, patrocinado pela Capes e Conselho Britânico, no período de 1997 a 2001. O objetivo geral deste projeto de intercâmbio foi promover interesses comuns de pesquisa sobre o papel do teatro como elo de ligação entre a escola e a comunidade.1 Para tanto foram examinadas as possíveis contribuições do drama para o desenvolvimento de uma abordagem construtivista no ensino do teatro através de:- Investigações relacionadas com o desenvolvimento conceitual na área do Drama como Pedagogia- Investigações de abordagens atuais para a formação do professor, re-lacionadas a inovações na prática de ensino em sala de aula, com foco na troca de experiências e observações viabilizadas pela análise conceitual mencionada acima.- A pesquisa foi desenvolvida através de cinco parcerias, que focaliza-ramaspectos específicos e complementares ao fazer teatral em escolas

1 Comunidade entendida aqui em seu sentido amplo, e não em relação a alguma abordagem específica, tal como teatro comunitário ou teatro para o desenvolvimento.

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e comunidades e as respectivas formas de formação de seus agentes.2

A análise das dimensões de engajamento e resistência aqui apresenta-das referem- se à etapa conclusiva da parceria Beatriz Cabral - John Somers, realizada em Florianópolis entre março e abril de 2001, com a realização de um “Trânsito Teatral” na comunidade de Santo Antônio de Lisboa. Este trânsito se caracterizou pela montagem de cinco cenas teatrais concomitantes, cada uma construída e apresentada em um local do patrimônio histórico da comunidade, e baseada em fatos e/ou histórias vinculadas àquele local. Cada cena se repetiu cinco vezes, possibilitando assim, que os espectadores também divididos em cinco grupos, transitassem de uma cena à outra, liderados por contadores de histórias.3

O projeto “Teatro em Trânsito” foi planejado pela equipe de pesquisa da área de Pedagogia do Teatro associada às duas universidades públicas de Santa Catarina,4 e as questões relacionadas com engajamento e resistência emergiram durante este planejamento, nas reuniões de trabalho com estudantes de licencia-tura em teatro para identificação e definição de roteiros e ações, e finalmente, durante a construção das cenas e do trânsito na comunidade.

As dimensões do entrelaçamento intercultural

O papel do professor visitante foi inicialmente definido como “obser-vador participante”, e sua participação circunscrita aos encontros e debates com os respectivos grupos de pesquisa, entrevistas com os participantes das atividades e eventos observados, além de oficinas ofertadas pelo visitante aos alunos do professor anfitrião, em horário extra-classe ou extra-comunidade, i.e., fora da atividade-foco do intercâmbio.

2 Os integrantes brasileiros deste intercâmbio foram: Beatriz Cabral (coordenadora - UDESC/UFSC), André Carreira (UDESC), Gilka Girardello (UFSC), Ida Mara Freire (UFSC), Márcia Pompêo Nogueira (UDESC). Os integrantes da equipe inglesa foram: John Somers (coordenador), Geoff Fox, Linda Rolfe, Steve Cockett, e William Stanton, todos da Universidade de Exeter.3 Esta forma teatral vem sendo por nós desenvolvida a partir de 1998, quando montamos “Plan-tas da Ilha - a História de Marina”, ao longo de uma trilha no distrito da Lagoa da Conceição, Florianópolis (Cabral, 1998). Foram realisadas mais duas trilhas (Cabral, 1999), e cinco trânsitos (Cabral, 2000 e 2001), nomenclatura que adotamos a partir de 1999. 4 Fizeram parte desta equipe no príodo 2000-2001: Beatriz Cabral (coordenadora), Célida Salume Mendonça, Maria Aparecida de Souza, Maria de Fátima Moretti, Zélia Sabino. A aluna Cláudia Regina Telles participou das reuniões de pesquisa referentes ao trabalho em Santo Antônio de Lisboa.

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Esta decisão foi tomada a fim de preservar as possíveis especificidades culturais dos trabalhos realizados e facilitar sua identificação e análise compara-tiva. Nos processos teatrais desenvolvidos como atividade-foco do intercâmbio a participação do visitante foi a de observador distanciado, e posterior retorno aos estudantes e grupo de pesquisa sobre sua percepção do evento, com ênfase nos momentos de estranhamento e resistência.

A presença de um observador de outra cultura, o foreign observer, revelou-se especialmente interessante nestes momentos de estranhamento, os quais deixaram transparecer as diferenças culturais e distintas visões de mundo, ajudando atores e professores a se auto-perceber e identificar.

A segunda dimensão do entrelaçamento cultural se deu através da in-teração universidade - comunidade. A comunidade que sediou esta experiência já havia realisado projetos em parceria com a universidade anteriormente, e se ressentia da falta de continuidade daqueles projetos ou de sua não participação nos benefícios posteriores. Esta circunstância, acredita-se, dificultou o envol-vimento de moradores locais com o projeto.

Por outro lado, o patrimônio histórico desta comunidade, um dos pri-meiros assentamentos da Ilha de Santa Catarina, e um dos locais com maior número de sítios tombados da região, tem atraído grande número de visitantes, além de artistas e escritores que hoje lá moram.

Assim, a ambiguidade entre ressentimento e conhecimento das vanta-gens da popularização e divulgação das belezas e história do bairro, perpassou as interações entre os diversos coletivos interpretativos que participaram do evento. Se em decorrência das dificuldades de envolvimento inicial, duas das cenas tiveram os papéis principais representados por alunos da universidade, por outro lado, a problemática das relações entre os daqui e os de fora pôde ser incorporada às cenas históricas e deu origem aos focos de tensão necessários para o impacto da abordagem.5

Outro entrelaçamento, mais sutil quanto ao referencial básico para a realização do trabalho, porém complexo quanto à rede de interações, esteve presente nas relações entre coordenadora - demais integrantes da equipe de pesquisa - alunos-diretores de cena - alunos-atores.

A proposta para realização deste evento, suas características e abordagem, foram introduzidas pela coordenação, e resultaram de pesquisa sendo realizada desde 1996, quando teve início o planejamento do intercâmbio

5 Para maior detalhes sobre o assunto ver meu artigo anterior, “Impacto e Risco em Teatro na Escola e na Comunidade”, Memória ABRACE V (Salvador, UFBA, 2002).

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e as visitas exploratórias realizadas pelos dois coordenadores ao país e univer-sidade do colega estrangeiro. Assim sendo, a teoria e prática desenvolvidas no decorrer deste processo aconteceu em contextos diversos, incluindo-se aqui o inglês.

Por outro lado, o grupo de pesquisa sofreu alterações durante os cin-co anos de realização do projeto, saída de alguns para capacitação, adesão de outros6 ; assim, a relação engajamento - resistência esteve presente em todas as etapas do planejamento. A complexidade das interações ao nível do coletivo universitário foi ainda ampliada com a participação de alunos de várias turmas, orientados por diferentes professores.

Outro aspecto do entrelaçamento cultural ocorreu entre o elenco de cada uma das cenas. Este variou muito entre uma cena e outra: na do Engenho todos os atores eram da comunidade, com idades de 06 a 50 anos; a cena Curtume contou com cinco alunos, um adulto da comunidade, e cinco crianças; em So-brado participaram nove alunos e doze moradores, incluídas algumas crianças; Intendência contou com dois alunos, dois pais de aluna, e doze adolescentes locais; Sineira, com quatro alunos e oito moradores. O número de diretores, em cada cena, variou de um a três. Os integrantes do grupo de pesquisa ob-servaram os ensaios de todos os grupos, alternadamente, e trocaram opiniões com os diretores e elencos.

Além da variedade de origem, formação e idade, as cenas agregaram extratos sociais diversos da comunidade, conforme o tema e o local escolhidos, mas isto já exigiria um outro artigo e abordagem. Aqui serão feitas referências aos aspectos de interações culturais que incidiram sobre o engajamento e/ou resistência dos participantes com a abordagem do trânsito ou com as propostas de cena.

Entretanto, pode-se imaginar as interações entre os moradores da comunidade. Algumas referências espontâneas, da parte dos participantes, in-dicam início de amizades, interêsse despertado para novas montagens teatrais, encontros casuais. Maiores detalhes exigiriam uma pesquisa exploratória após o evento, com entrevistas e avaliações do significado da experiência para os diversos extratos da comunidade.

A dinâmica entre engajamento e resistência, ambos deflagrados por uma etapa anterior de envolvimento ou estranhamento, envolveu assim, áreas

6 Deixaram de participar da pesquisa por motivo de capacitação, Maris Viana e Nara Micaela Wedekin; passaram a integrar a equipe no último ano, Célida Salume Mendonça e Maria Apa-recida de Souza.

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de interesse e especialidade distintas, interações de trabalho entre alunos de fases distintas do curso de artes cênicas, rotatividade nas interações do grupo de pesquisa com os diferentes elencos.

A relação engajamento - resistência

O engajamento com uma atividade pressupõe empenho em sua realiza-ção; implica por-se a serviço de sua idéia e sua causa. Este conceito aponta para uma ação que vai além de um simples envolvimento, potencializando-o. A ação ou efeito de envolver-se com uma situação é considerada, por arte-educadores de diversas tendências, como sendo uma condição para a realização de trabalhos de expressão. A necessidade de enfatizar a participação com envolvimento é responsável, por exemplo, pela expressão já corrente na área.

Entretanto, não há como haver envolvimento sem emoção. A própria ação de cativar e atrair, inerentes ao processo de envolvimento, sugerem sua dimensão emocional. O ato de atrair ou cativar envolve uma recepção simul-tânea de sentimento e entendimento (cognição), pois o sentimento e a emoção não podem ser identificados independentemente de uma interpretação do objeto desta emoção. Como lembra David Best, a razão pode mudar o entendimento (de uma situação), e com ele, o sentimento em relação (a ela) ... Neste sentido, (também) o sentimento artístico, e as emoções a ele relacionados, são racionais em si, à medida que respondem à razão: estão sempre, em princípio, abertos à possibilidade de mudança, como consequência da reflexão, ou de razões oferecidas por alguém em favor de uma concepção diferente do objeto (ou situação) e a partir daí, a possibilidade de um novo sentimento sobre ele (ou ela). (Best, 1992:2) Ao optar pelo termo engajamento, como uma forma de indicar o em-penho do participante em uma atividade ou ação, decorrente da potencialização de seu envolvimento, pretende-se indicar a intensidade de seu envolvimento. Esta torna-se possível quando a sintonização com os contextos social e da fic-ção permitem que o participante possa experienciar aquilo que Janet Murray descreve como imersão:

... ele então se enterrou em seus livros e passou noites lendo do en-tardecer ao amanhecer, e dias, do amanhecer ao anoitecer (...) e ele penetrou tão profundamente em sua imaginação que acreditou

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que toda a fantasia lida era realidade, e ... decidiu ... tornar-se cavaleiro errante e viajar ao redor do mundo ...

Don Quixote de la Mancha

A história de Don Quijote, 150 anos após o descobrimento da imprensa, mostra o perigo do poder dos livros para criar um mundo mais real do que a realidade. Uma narrativa envolvente, em livros, cinema, teatro, pode ser expe-rienciada como uma realidade virtual sempre que sintonizamos com a história com uma intensidade que possa obliterar o mundo a nossa volta. Histórias com tal poder evocam nossos medos e desejos mais profundos porque elas habitam o mundo mágico da fronteira. Explorar os limites da fronteira entre ficção e realidade é a primeira condição para estabelecer formas interativas de participação em narrativas de ficção: Como entrar na narrativa sem destruí-la? Como ter certeza que as ações imaginárias não serão desenvolvidas no contexto real? Como viver a ficção sem ficar paralisado pela ansiedade? (Murray, 1997: 97-125).

A primeira condição para planejar a participação e imersão em situa-ções de ficção reside na possibilidade de estruturar a narrativa, e delimitar seu contexto, de forma a antecipar e indiretamente indicar, as formas de interação desejáveis. Esta intervenção do professor/diretor ao nível da estruturação e delimitação da narrativa implica a identificação de possíveis ressonâncias com o contexto atual dos participantes; a previsão de papéis coletivos, oposições e confrontos; estabelecimento de uma ambientação e atmosfera propícias ao jogo cênico.

No espaço virtual, segundo Janet Murray, as estratégias e recursos responsáveis pela imersão dos participantes estão centrados na potencial expansão do sequenciamento e aprofundamento do repertório à disposição do navegador - o prazer de auto perceber-se como autor e agente de mudan-ças através de um repertório de opções aparentemente ilimitado (op. cit.). Esta tríade subjacente ao prazer de participar - amplo repertório, autoria e agente de transformação - aplica-se a qualquer processo criativo, virtual ou real, e seu reverso (ou outra face) conduz ao estranhamento. Resistência é indicador de um estranhamento mal resolvido. Como tal, revela uma reação ou resposta imediata a um engajamento prévio com uma ação, situação ou proposta. Resistência é assim caracterizada por um certo sentimento de per-turbação, distúrbio ou choque, os quais, segundo Lyotard (1984:95-9) podem ser considerados como pré-requisito para qualquer tipo de mudança. Uma

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resistência, segundo o autor, aponta para a possibilidade de passagem da pertur-bação à reflexão; assim sendo, cabe ao artista (professor e/ou diretor) descobrir as formas pelas quais ele pode criar esta resistência. Neste sentido, engajamento e resistência estão associados ao rompi-mento de expectativas quanto à narrativa, espaço, estilo, interações; ao cruzar as fronteiras do conhecido e à disponibilidade dos participantes para romper barreiras. Quanto maior o engajamento, maior as possibilidades de resistência, pois as mudanças irão incidir sobre aspectos de identificação mais claros e definidos. Um outro ângulo por onde analisar esta questão é considerar a noção de resistência à imposição de significados reificados, e como tal, central àqueles que advogam uma pedagogia radical. Resistência à História, tal como esta chegou até nós; à dimensão simbólica dos espaços do patrimônio da comunidade; aos padrões teatrais vigentes; ao próprio texto teatral resultante das interaçõesque o criaram. Esta não é apenas uma resistência no sentido político, mas sim uma resistência a qualquer transferência para a estrutura de poder em curso. Isto envolve problematizar a própria atividade de referência, jogando com a sua própria estrutura dialética de percepção: consciência versus inconsciência; ver versus olhar; simbólico versus imaginário - evidenciando a discrepância entre significante e significado, e a inadequação de rotular e definir categorica-mente uma ação ou atitude. Resistir aos rótulos, fórmulas prontas, e definições, encoraja o reconhecimento daquilo que é marginal nas interações cênicas em andamento, e conduz a uma estética da experimentação, onde a arte explora o que não está dito, o que é sentido como ainda não percebido concretamente.

Engajamento e resistência, da forma analisada acima, foram acentuadas pela dimensão intercultural desta pesquisa: questionamentos sobre a distinção entre ficção e realidade, no sentido de identificar ações e atitudes, foram feitos não só pelo observador estrangeiro, mas também por participantes e especta-dores (após o evento). A oscilação entre história e ficção foi acentuada pela interação entre os repertórios cultural (da comunidade) e artístico (apropria-ções por estudantes de teatro). Analogias, paródias e metáforas, responsáveis pela ressonância do espetáculo com o contexto real, e consequentemente, pelo engajamento com a proposta, foram estimuladas por apropriações e citações (ou ‘cacos’); ao se basearem no repertório cultural foram sugeridos pela comu-nidade; ao se basearem no repertório artístico, foram introduzidos, em grande parte, por estudantes e professores de teatro.

Em decorrência das apropriações e colagens, a resistência foi estimulada pelos diversos coletivos interpretativos, sendo representada muitas vezes pelo

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embate entre pesquisador, diretor e atores. O pesquisador (coordenador e/ou equipe de pesquisa) participou da pesquisa histórica, e do debate sobre as experiências anteriores e teorias subjacentes. Como tal, criou expectativas, e desenvolveu idéias próprias a respeito do desenvolvimento do processo e definição do produto. O(s) diretor(es) participaram da análise do roteiro e pro-posta de cena, e formaram sua concepção de montagem própria. O fato de sua participação ter sido caracterizada como estágio, na área de ensino do teatro, aumentou sua responsabilidade quanto à identificação de uma abordagem pró-pria. Os atores da comunidade, eram os herdeiros históricos e ‘proprietários’ do espaço físico; possuíam assim idéias próprias sobre os eventos e personagens. Os atores visitantes (alunos), ao optarem por um personagem, o fizeram a partir de sua identificação com um determinado estilo de composição de personagem e expectativas de atuação. A complexidade sugerida por estas interações foi um desafio que gerou resistências múltiplas, mas também abriu portas para a análise e interpretação da experiência.

Método de Investigação

A abordagem etnográfica foi a opção de investigação durante este intercâmbio, uma vez que as aproximações entre os campos de conhecimento da Etnografia e do Drama estão refletidas tanto na linguagem quanto em suas categorias conceituais e áreas de debate.

Ambos os campos priorizam um relacionamento equilibrado entre pro-cesso e produto e partem do princípio que os processos artísticos são inerentes à prática da pesquisa e ensino em artes, considerando os aspectos estéticos e simbólicos em todas as etapas do processo. As implicações desta perspectiva são de especial importância para um trabalho artístico baseado na interação universidade - comunidade, pois exigem a sintonia do pesquisador com as qualidades particulares do contexto social e cultural onde o trabalho acontece, para que a compreensão dos textos social e performático dos participantes seja cumulativa através das diversas etapas da experiência, coleta de dados, análise e descrição.

O desenvolvimento deste processo de investigação, neste trabalho, esteve fortemente ancorado no conceito de pre-texto1 , que na área do Drama corresponde ao conceito antropológico de foreshadowed problems (antecipação de problemas), ambos usados para estabelecer expectativas, padrões, foco, sentido de direção, além de possibilitarem a geração de temas e ações. O pre-

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texto e seu equivalente antropológico apontam para o duplo papel do professor e/ou pesquisador, como participante e observador, insider e outsider, processo este que na área do teatro vem sendo designado como metaxis (pertencer a dois mundos simultaneamente). O duplo papel do professor e pesquisador, neste caso representado pelos integrantes do grupo de pesquisa, foi enfatizado nos diferentes níveis de interação desta experiência:

• entre universidade e comunidade - cada grupo integrando alunos de teatro e moradores do local, de diversas idades, ocupações e formação; • entre o elenco de cada cena e o roteiro dramático criado pelo grupo de pesquisa - a forma de roteiro favoreceu a apropriação do texto pelos participantes, que o completaram e re-interpretaram, mesclando história e ficção de forma a atingir alguma ressonân-cia com o momento atual; • entre o texto teatral resultante das interações an-teriores e os locais/espaços onde ocorreram as cenas - sejam estes aqueles em que os eventos ocorreram no passado, ou outros espaços urbanos ambientados cênicamente para revisitar a história da comunidade.

A metodologia utilizada incluiu detalhamento em processo, isto é, anotações pormenorizadas do processo de criação, ensaios e apresentação, seguidos de investigação das possíveis conexões (entre as cinco cenas) e padrões (ações e atitudes reiteradas por parte dos atores da comunidade). Por exemplo, como conexão observou-se que na maior parte das improvisações os temas ‘discriminação’ e ‘os daqui versus os de fora” foram recorrentes. Como padrão, observou-se que a fala e o gestual do ‘manezinho’ (versão local do caipira) foram constantes. Entretanto, cada grupo lidou com estas questões à sua maneira e os resultados foram variados. A necessidade de transformar os dados em texto expressivo e evocativo, comum tanto ao Drama quanto à Etnografia, ficou evidenciada nesta etapa da pesquisa, pelo recurso de poesia e cantorias, evocativas do contexto e situação dramática, tanto como entrada quanto como fechamento das cenas. O objetivo, porém, foi de ordem prática: ampliar a experiência interativa, ao estimular as dimensões emocional e estética, envolvendo os participantes e espectadores

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imaginativa e emocionalmente.

O Trânsito “Santo Antônio de Lisboa na Virada do Milênio”

Este trânsito, realizado nove meses após a versão inglesa “Payhem-bury Millenium Play”7 , resultou em primeiro lugar, de uma análise pela equi-pe de pesquisa, da documentação referente ao processo inglês e da identifica-ção do que nós faríamos diferente, a qual se baseou em três tipos de reflexão sobre as possíveis diferenças: as exigidas pelos contextos distintos, aquelas decorrentes de limitações de tempo, recursos humanos e materiais, e as relaciona-das com as perspectivas estéticas, artísticas e educacionais dos pesquisadores. O título do evento brasileiro procura mostrar de um lado, o parentesco com o irmão inglês - um resgate e recriação histórica de momentos significati-vos de uma comunidade; e por outro lado, salientar a orientação que conduziu o processo brasileiro: as cenas do passado seriam vistas com os olhos de hoje, em direção ao amanhã (parafraseando Brecht, em Baal). Uma sinopse do registro histórico e das cenas é apresentada a seguir para melhor compreensão da análise.

Curtume

Registro Histórico: O local conhecido como ‘curtume’, denominação da atividade lá desenvolvida nos primeiros tempos da colonização de Santo Antônio, foi durante o final do século XIX e início do século XX a única fonte de água pública, não salobra, localizada no centro da Freguesia. Como tal, tornou-se o ponto de trabalho das lavadeiras, atividade acompanhada por muitas fofocas. A cena criada para representar este local e atividade foi ambientado em torno de 1880, a fim de incorporar a personagem histórica do Padre José Feliciano Pereira Serpa, vigário da comunidade durante 53 anos e conhecido por suas atividades em medicina popular, sendo famosas suas garrafadas e benzeduras. 7 Pre-texto refere-se à fonte ou impulso que move o processo dramático, e indica a razão do trabalho ao conter o significado de um texto que existe anteriormente ao evento. Segundo Cecily O’Neill (1995) o processo dramático, mesmo quando baseado em improvisações, não ocorre em um vacuum: ativado por uma palavra, um gesto, uma imagem, um objeto (que podem ser considerados como estímulos) ele é entretanto definido e delimitado pelo pre-texto, que sugere a natureza dos eventos cabíveis em tal contexto e circunstâncias, e implica papéis, expectativas e tipos de ação.

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A Cena: O ponto de encontro das lavadeiras, antigo curtume, é o cenário da cena das lavadeiras, que disputam os tanques em meio a fofocas, anedotas e cantorias. A insatisfação e reclamações de uma delas, por não ter conseguido o tanque almejado, vira motivo de jacota das demais, quando uma das colegas sugere que a origem do mau humor deve-se, na realidade, ao baixo desempe-nho sexual do marido da colega insatisfeita. A acusação abre espaço para a introdução de histórias sobre as garrafadas do Cônego Serpa

Sobrado

Registro Histórico: D. Pedro II e sua comitiva aportaram em Santo Antônio em 21 de outubro de 1845, a bordo do vapor Imperatriz, como parte de visita protocolar. Após cerimônia na Igreja Matriz, onde foi entoado o hino Te-Deum Laudemus, foram entregues as honrarias às autoridades da Fregue-sia. O Padre Lourenço Rodrigues de Andrade foi vigário de Santo Antônio de 1797 a 1821, onde exerceu importante liderança política, sobretudo contra o Alvará Régio de 1785, de D. Maria I, A Louca, que mandou extinguir os tea-res no Brasil, para que nesta colônia não se fabricassem tecidos que viessem a competir com os preços daqueles fabricados em Portugal. Padre Lourenço passou então a se vestir com roupas feitas nos teares de Santo Antônio, assim se apresentando à Côrte. A junção destes dois momentos históricos visou salientar as contradições da relação colônia-côrte em períodos históricos anteriores, e sua possível analogia com outras épocas e locais. A Cena: 1845 - D. Pedro II e numerosa comitiva visitam Santo Antônio. Durante a cerimônia de entregue de comendas às autoridades locais, realizada no local em que o evento ocorreu no passado, manifestantes vestidos com túnicas feitas em teares, aparecem sobre as ruínas das paredes do sobrado, bradando palavras de ordem contra o imperador e sua política à época. São feitas referências ao Padre Lourenço e ao Alvará Régio de D. Maria, e alusões ao fato de que as coisas não mudaram muito com a independência do Brasil.

Engenho

Registro Histórico: O registro da produção de farinha em Santo Antônio de Lisboa em 1797 aponta para 20.000 alqueires de mandioca, produção esta que começou a cair a partir de 1835, com os efeitos da chamada farinha de guerra, por ser em grande parte enviada às tropas da Coroa no Rio Grande do

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Sul. A fabricação da farinha era acompanhada de muitos momentos de recrea-ção, por exemplo, “as farinhadas”, feitas no inverno quando a mandioca ainda estava bem consistente. Várias pessoas trabalhavam na farinhada, o forneiro, o cevador, o emprensador, e os raspadores de mandioca. Quanto maior o número de ajudantes, mais rápido terminava o serão. Na raspagem da mandioca gente de todas as idades contavam casos, cantavam quadrinhas e faziam desafios. A Cena: A ação tem início durante uma raspagem de mandioca, onde os donos do engenho, parentes e vizinhos, entre cantorias e fofocas, revelam o contexto da produção e da vida no engenho naquele período. Os protagonistas, um jovem casal e o pai da noiva, discutem o repetido adiamento do casamento dos jovens, por falta de recursos, em decorrência do declínio da produção da farinha, devido aos sucessivos calotes do governo, que comprava a produção para alimentar as tropas e não pagava.

Sineira

Registro Histórico: Na década de 20, a limpeza e ornamentação da Igreja de Nossa Senhora das Necessidades de Santo Antônio de Lisboa estava a cargo de um grupo de senhoras do “Apostolado da Oração”, associação recém fundada. Entre as histórias populares associadas à igreja está a de que o espaço situado entre a escada que leva aos sinos, e o cemitério aos fundos, incluindo-se aí uma das entradas laterais da igreja, era um local conhecido pelos encontros furtivos que lá aconteciam, devido à proteção que este lugar oferecia frente aos olhares dos passantes. A Cena: a interação de personagens representando as senhoras do “Apostolado” e jovens daquela época foi o foco da cena. As distintas visões de mundo, por parte dos dois grupos, são confrontadas através do aparecimento em cena de uma figura mitológica do folclore local, “a maromba”, que segundo alguns idosos da comunidade, entrevistados nesta pesquisa, era a caracterização usada por homens da época interessados em afastar os olhares do público de seus eventuais encontros amorosos.

Intendência

Registro Histórico: A eleição de 1947, com canditados do PSD e UDN, ficou na memória daqueles que dela participaram devido a um incidente com

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dias de eleição). Segundo os entrevistados, o incidente ocorreu durante a visita dos presidentes dos dois partidos, que apareceram para inspecionar o andamento do pleito. Após acusações mútuas de compra de votos, o eleitor embriagado, irritado, declara seu voto. Os eleitores do partido oposto clamam pela impug-nação, a qual não acontece, e o bêbado é retido até o final do pleito. A Cena: uma paródia das atitudes, do gestual, e dos rituais eleitorais conduziu esta cena, que se baseou inteiramente em depoimentos de moradores que a vivenciaram, e nas anedotas que acentuam a persistência e atualidade dos antigos hábitos. A perspectiva crítica e o campo de reflexão foram abertos com a inclusão do poema “O Analfabeto Político”, de Brecht, recitado por um eleitor bêbado e revolvado por ter sido impedido de votar. O bêbado perambula por entre os presentes, enquanto recita, tentando convencê-los de que há problemas mais sérios que o dele na condução do pleito. Opções que delimitaram a seleção e reconstrução dos momentos históricos • Situações que tivessem ressonância com o contexto sócio-político atual, e permitissem que participantes e espectadores fizessem analogias com o presente. • Possibilidade de recriar estas situações nos sítios históricos em que elas ocorreram no passado, procurando com esta recriação sugerir ou ressaltar a possibilidade de um novo olhar sobre o espaço e o evento que lá ocorreu. • Fatos associados à mitologia local e/ou incluídos nas memórias dos idosos da comunidade, quer através das histórias que foram repassadas de pai para filho, quer através das anedotas construídas posteriormente. Engajamento e resistência a partir da investigação etnográfica A análise da oscilação engajamento - resistência aponta, em primeiro lugar, para o sentido de experimentação dos trabalhos realizados, e sua conse-qüente caracterização como evento, em vez de espetáculo.

Este sentido de experimentação, reforçado pela mesclagem de histórias correntes na comunidade com fatos históricos, fez com que personagens e ações se situassem na intersecção das forças do social (histórico) e do psicológico (percepções pessoais - transhistórico). Além do imaginário coletivo, represen-tado pelas histórias correntes na comunidade sobre os eventos passados, ficou clara a inclusão da interpretação particular dos eventos pelos atores que o re-presentaram. Assim, na ausência de rubricas, e de uma análise mais detalhada

um eleitor embriagado (apesar da proibição da venda de bebidas alcólicas em

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isto ocorreu em maior grau nas cenas onde os atores eram a fonte das informa-ções - adultos, da comunidade, entrevistados no início da pesquisa deste trânsito. Em segundo lugar, o grande número de pessoas envolvidas exigiu a incorporação de figurantes ou ‘jogadores’ que interagiram com os atores de formas variadas: grupos familiares onde um dos participantes era o porta-voz do grupo; eleitores na sala de votação com a interação verbal centrada em dois atores; e outras cenas de multidão onde os figurantes atuaram apenas corporalmente ou em coro. A presença do coletivo influenciou a interpre-tação e recepção do texto teatral, de forma a produzir tanto o engajamento (coro, cantos), quanto o estranhamento (protestos, poema - por exemplo, “O analfabeto político”, de Brecht, quebrou a comicidade de uma cena de compra de votos). Finalmente, a estrutura dialética das cenas, que mesclaram ficção e realidade, e alternaram ou incluíram de forma implícita, real e imaginário, ação e narração; indivíduo e coro, acarretaram por vezes desencontros entre as unidades destes binômios, ampliando a oscilação. Por uma perspectiva mais ampla, pode-se dizer também que as distintas perspectivas dos pesquisadores-parceiros, quanto ao fazer teatro em escolas e comunidades; e suas próprias diferenças culturais refletidas na leitura e apreciação dos eventos teatrais em processo, provocaram momentos de inusitado angajamento (impacto e/ou entusiasmo) alternados com resistência e/ou rejeição.

Segundo a avaliação contínua realizada durante este projeto, a investiga-ção das dimensões mencionadas acima foi privilegiada pelas formas interativas que caracterizaram a abordagem ao teatro em comunidade utilizada pelo teatro em trânsito. Ao enfatizar a expressão formas interativas em vez de formas de interação acentua-se a interatividade como um fator implícito às formas teatrais utilizadas, e não como resultante de uma experiência em determinado contexto e circunstâncias.

A forma adjetivada indica que as interações resultantes decorrem das estratégias utilizadas; não de eventos ocasionais. Este artigo remete assim aos recursos cênicos explorados no decorrer desta pesquisa, que constituíram a base do espetáculo em comunidade que encerrou o intercâmbio.

A identificação dos níveis de interação e das formas interativas utili-zadas; bem como uma descrição sumária das cenas e seu argumento central, tornam-se necessários para focalizar e compreender as questões de engajamento

da cena proposta pelos respectivos coletivos interpretativos (cada grupo), os atores tiveram um maior peso na identificação e escolha de seus personagens.

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os problemas (de resistência). Formas Interativas de Teatro na Escola e/ou Comunidade

A investigação e identificação de formas teatrais potencialmente intera-tivas para trabalhos de curta duração baseados na relação universidade - comu-nidade, decorreu da necessidade da incorporação de pessoas sem experiência anterior em teatro, nas apresentações públicas resultantes de oficinas ou estágios realizados por alunos e/ou grupo de pesquisa. Estas apresentações, por sua vez, foram solicitadas pelos participantes, ávidos em compartilhar a experiência com amigos e familiares; e corresponderam ao entendimento, pelos atores, professores e pesquisadores, de que uma experiência teatral só se concretiza e adquire significância em seu contato com os espectadores. As formas interativas, desenvolvidas para a montagem do trânsito, adquiriram os seguintes contornos:

•Jogos de interação corpo - espaço/objetos. A escolha de espaços físicos relacionados com a memória histórica da comunidade facilitou a incor-poração de atitudes e gestual típicos de personalidades da comunidade, e este jogo de espelho, observação e memória intensificou, por sua vez, a interação com o público

•Formas interativas de associar Fatos Históricos distintos – reunião de fatos, de momentos históricos diversos, relacionados com um mesmo as-pecto da vida da comunidade - jogos de palavras e associações de imagens com ele relacionados; por exemplo, a visita de D. Pedro II e a atuação política de Pe Lourenço – expressões e imagens de eventos oficiais, protocolos, comemorações políticas e religiosas. A associação de fatos históricos ampliou a identificação dos participantes e espectadores com os eventos recriados. Além disso facilitou as analogias com o momento atual e a percepção de implicações e acontecimentos além da história oficial

•Formas interativas de associar História e Ficção – rodada de associa-ções de imagens, conceitos e expressões, pela equipe de pesquisa, a fim de criar

criar um roteiro dramático associando momentos históricos e histórias populares, para ampliar a percepção dos hábitos, atitudes e contradições ine-rentes aos acontecimentos da comunidade. Por exemplo, associação da história da Igreja local com a história popular da maromba; ou dos fatos relaciona-dos

e resistência percebidas durante o processo e as alternativas encontradas para orquestrar (selecionar e compatibilizar as formas de engajamento) ou contornar

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• Recursos de ambientação cênica: tochas, lamparinas, máscaras, etc., e sua associação com coro, palavras de ordem, rituais ...

• Incorporação de danças, rituais, marchas, cortejos, passeatas, etc., orquestrados a fim de facilitar a incorporação de vinte a trinta atores e figurantes, e sua interação com os espectadores

• Limite de tempo e espaço – ênfase no ritmo, foco dramático e jogo cênico.

O potencial dramático das formas interativas do “Teatro em Trânsito” reside na possibilidade das histórias remeterem ao universo cotidiano, e o in-tensificarem para ampliar o engajamento dos participantes. As ações propostas, inseridas em formas ritualizadas ou jogos, são experienciadas simbolicamente - os participantes são protagonistas de uma ação simbólica, cuja trama segue uma das seguintes formas:

• O(s) personagen(s) decifra(m) a narrativa • Unificam seus fragmentos• Assumem riscos• Enfrentam ou desafiam um antagonista difícil• Derrotam um sistema injusto• Mudam de vida• Alteram as regras do jogo

A identificação de uma destas tramas, como base para as interações, facilita o planejamento das formas interativas mencionadas acima.

O potencial dramático é acentuado pela intervenção do professor ao nível da estrutura da atividade ou do jogo, isto é, ao estabelecer as regras do jogo e as condições nas quais os participantes irão interagir e criar, o professor está agindo como autor e intervindo no processo de criação. A intervenção do pro-fessor ao nível estrutural implica o estabelecimento das propriedades de uso dos objetos e a forma pela qual eles poderão interagir; como um coreógrafo ou co-autor, o professor cria um arsenal de possibilidades narrativas, suprindo ritmos, contexto e seqüência de jogos ou tarefas.

com a vida do Cônego Serpa e os testemunhos, de idosos, sobre os hábitos das lavadeiras.

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Uma das implicações da prática antropofágica, centrada em empréstimos de outras culturas, é que metodologias, formas artísticas ou outros modelos, são sempre redefinidos; são incorporados às práticas e modelos nativos, usados de outra forma, observados a partir da perspectiva cultural de quem os adotou. Desta forma, a interpretação é sempre culturalmente específica.

Ao privilegiar, para efeito de pesquisa, a leitura do observador externo (estrangeiro), pretendeu-se questionar os empréstimos, associados à mudança de parâmetros de lugar, identidade, história e poder. Isto traz como consequência, implicações éticas de aquisição de diferentes códigos culturais, transparência nos processos de produção e recepção, aceitação e expressão das diferenças.

Quanto à aquisição de diferentes códigos culturais, sabe-se o teatro transmite significados não apenas através das falas e ações, e da concepção da montagem que juntos revelam a mensagem do(s) autor(es), mas também pela própria forma pela qual estes significados são transmitidos. No caso em pauta, a dimensão de evento, o número reduzido de ensaios, a base improvisacional da construção das cenas, e a própria forma de intervenção dos diretores, esti-mularam a busca de formas de expressão locais - favorecendo desta forma a leitura cultural das cenas, isto é, a naturalização das apropriações. Além disso, aspectos formais do espetáculo, tais como: a diluição da fronteira entre os espaços da ficção e da realidade - espectadores incluídos no espaço da apresentação; o trânsito liderados por contadores de histórias - que desta forma carregaram o espaço teatralizado com eles durante o percurso entre uma cena e outra; e a inclusão de cantos/coros na abertura e fechamento de algumas cenas, propositadamente e de forma rudimentar, facilitando a adesão do público; levaram à percepção da montagem como evento, não como espe-táculo. À dimensão cultural do planejamento em si, e às características for-mais do trânsito, pode-se acrescentar a textualidade resultante da interação dos códigos culturais da comunidade, com as influências explícitas na formação

nível da igualdade artística entre profissionais que se reonhecem mutuamente como companheiros de viagem

O intercâmbio só é possível como troca ou permuta, i.e., ao

Richard Schechner1

1 R. Schechner em entrevista a Patrice Pavis (1996)

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identificar os padrões estéticos desta proposta com a forma de mosaico, em substituição à tradicional linearidade. Com “transparência nos processos de produção e recepção”, pretende-se salientar a viabilidade de abrir a concepção e opções de encenação à autoria múltipla (grupo de pesquisa e diretores de cena), ampliando assim o debate sobre as razões e implicações das escolhas e definições tomadas. Com isto pretende-se agilizar o desenvolvimento de uma estética teatral voltada a eventos de curta duração em escolas e comunidade, e com isto reduzir os riscos de resistência e ampliar as condições de engajamento. Convém notar que o teatro é um fórum privilegiado para esta transparên-cia, uma vez ser ela um pré-requisito do processo artístico - razões para a ação e a interação cênica são o ponto de partida para a construção do personagem e a delimitação do contexto e das circunstâncias a serem encenados. Entretanto, a transparência traz à tona a questão da aceitação e expressão de diferenças. Contextos multiculturais e os novos meios de comunicação (ou a era da globalização?) causaram e reforçam uma cultura de opções - cresce-mos em meio a uma grande variedade de vozes culturais; é possível dizer que somos feitos de diferentes vozes, e como tal nos identificamos com aspectos de cada uma delas em momentos distintos de nossas vidas. Em vez de identidade, identificação torna-se o cerne do processo de aprendizagem; em vez de consi-derar a diferença como objeto de opressão, a noção de diferença democrática torna-se central à educação. Aprender a aceitar e expressar diferenças depende da transparência mencionada acima. Se as razões para uma determinada ação ou atitude não forem explicitadas, a aceitação das diferenças, a nível do debate intercultural, torna-se um discurso vazio; algo que fazemos por educação ou condescendência e não como resultado de nossa compreensão sensível de uma situação. Como afirma David Best, “as emoções são cognitivas em si, uma vez que são a expressão de um certo entendimento sobre seus objetos (...) os argumentos apresentados para a mudança de entendimento e avaliação de uma situação inevitavelmente envolvem uma mudança dos sentimentos em relação a estes objetos”. As implicações éticas pertinentes aos três pressupostos analisados acima foram acentuadas e evidenciadas através da participação ativa do obser-vador estrangeiro. John Somers chegou em Florianópolis após a conclusão da etapa de identificação dos espaços físicos e construção do roteiro dramático, mas antes do início do semestre acadêmico, e portanto, antes do engajamento dos moradores de Santo Antônio de Lisboa e alunos de teatro. A presença do

dos professores e alunos, e com a vivência com o professor visitante, para

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natural de Santo Antônio de Lisboa, seu casario e patrimônio histórico situado em estreita faixa de terra entre o mar e as montanhas, a chegada à noite com o ônibus especial que levava os estudantes logo após as aulas - tudo isso funcio-nou no âmbito do engajamento. Da parte dos estudantes e moradores, o fato de contarem com um inglês expert no assunto, interessado e disponível, estimulou a predisposição para envolvê-lo além da ‘observação ativa’ Foi neste contexto que no final da primeira semana de trabalho na comunidade, alguns alunos anunciaram que John Somers faria o papel de D. Pedro II, na cena em que este visita Santo Antônio em 1845. Coube então à coordenadora, a função de resistência maior nesta experiência, uma vez que o projeto, além de propor que os personagens de destaque fossem representados pelas pessoas da comunidade, estava centrado na observação, pelo pesquisador visitante, das formas culturais específicas de construção de cena e personagens. Acrescente-se ainda, que para a equipe de pesquisa e alguns participantes, a opção de ter um inglês como imperador pareceu por demais simbólica, e criou outras resistências, ainda que não explícitas. Foi necessário então lembrar que a caracterização do observador como ativo, especificada no projeto, estava circunscrita à sua leitura das cenas e questionamento dos aspectos culturais que lhe causassem estranhamento, o que seria feito no transcorrer dos encontros contínuos de avaliação e/ou através de entrevistas a quaisquer dos participantes. Se por um lado, o espaço aberto para que esta opção fosse sugerida pode ser considerado como um aspecto cultural importante da interação social brasileira, aqui específica a um projeto intercultural, sua concretização à nível de apresentação ao público, exigiria maior tempo de ensaios, para que a ironia subjacente ao fato (ou esta nova concepção de montagem) pudesse ser traba-lhada, e o assunto debatido com a comunidade. O episódio descrito acima, além de simbolizar um aspecto importante das discussões durante os cinco anos de intercâmbio com a Universidade de Exeter, revela a necessidade de uma vigilância permanente para conter o en-tusiasmo dos participantes em eventos desta natureza. Uma prática de teatro interativo, entre universidade e comunidade, exige um distanciamento mínimo e um grupo de referência para acompanhamento e avaliação contínua, além do suporte de um referencial teórico consistente.

observador estrangeiro, na etapa de envolvimento dos atores, aumentou seu engajamento com o projeto. A atmosfera e a ambientação cênica

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Urdimento 4 / 2002 Urdimento 4 / 2002Urdimento 4 / 2002 Urdimento 4 / 2002 31 Bibliografia

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A Emoção e o Ator : Stanislavski, Brecht, Grotowski. Heloise Baurich VidorUniversidade do Estado de Santa Catarina. Para estudar o fenômeno emotivo no trabalho do ator contemporâneo é necessário fazer referência à transformação que ocorreu na arte da representação a partir do século XVIII, com o reconhecimento do ator como o próprio cerne da encarnação teatral, que foi então considerado como objeto teórico1. No século XVIII, o filósofo Denis Diderot, com o tratado intitulado O Paradoxo sobre o do Comediante (1979), apresentou o conceito de desdobra-mento do ator, plantando as sementes que mais tarde iriam contribuir para as idéias de alguns dos homens de teatro que, com o impacto de seus trabalhos, possibilitaram esta transformação. A linha de abordagem que norteará este artigo é a relação entre a idéia de emoção nas propostas dos homens de teatro Stanislavski, Brecht e Gro-towski e sua conexão com algumas teorias da filosofia, fisiologia e psicanálise que estudaram este fenômeno, e que serviram de base para a sua aplicação no campo do teatro. O conceito do agir e padecer de Aristóteles, as definições de Spinoza para o desejo e a vontade, a proposta dos fisiologistas James e Lange de inver-são no desencadeamento das emoções, o conceito de inconsciente de Freud e o conceito de ‘couraças musculares do caráter’ desenvolvido por Wilhelm Reich, a partir da psicanálise, são alguns dos aportes que relacionados com a realidade teatral podem oferecer contribuições. O primeiro ponto comum entre Stanislavski, Brecht e Grotowski é a idéia do ator como duplo. Fenômeno que parte da idéia do desdobramento de Diderot, encontra em Aristoteles uma referência. Segundo Gerard Lebrun (1987), Aristóteles explica os conceitos do agir e do padecer, dizendo que “é próprio do agente encerrar em si mesmo um poder de mover ou mudar”, por isso superior, enquanto que o paciente é aquele ‘que tem a causa de sua modi-ficação em outra coisa que não ele mesmo” (Lebrun, 1987:17) e, por isso, inferior.

1.Empresto esse termo de um artigo de Jean-Jacques Roubine, O Ator como Objeto Teórico, da obra Introdução às grandes teorias do Teatro, atualização bibliográfica de Jean-Pierre Ryngaert, Paris:Dunod, 1996 p. 67-72/ Tradução ad usum dephini de J. R. Faleiro que aborda o lugar do ator como objeto teórico a partir das idéias de Diderot, no tratado intitulado Paradoxo do Comediante.

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Portanto, para Aristóteles, o homem deve controlar suas emoções. Diderot pro-põe este controle das emoções no teatro com seu conceito de desdobramento do ator. O ator deve ser aquele que age, enquanto que o homem sensível, por ser paciente do afeto, é mais passivo. A partir de Diderot, como este mecanismo repercute no trabalho destes diferentes pesquisadores do teatro? H á um denominador comum na obra de Stanislavski e na de Grotowski, que é o fato de que ambos têm um foco muito concreto no ator, como elemento princi-pal da cena. Para Stanislavski, o diretor, o dramaturgo e o cenógrafo, estavam presentes, trabalhando para auxiliar o ator na sua criação, na sua caracterização. Já no Teatro Pobre de Grotowski, até mesmo os meios materiais de encenação podem ser descartados, exceto a presença do ator em cena, comunicando-se com uma platéia. Brecht, apesar de querer um determinado tipo de interpretação, para a qual criou o distanciamento, não centrou seu trabalho na problemática do ator propriamente, mas a presença deste era essencial para que as idéias revolucio-nárias, do homem e dramaturgo Brecht, pudessem ganhar corpo e partir para a transformação dos homens, seu primordial objetivo. A transformação dos homens, implicava, para Brecht, na transformação de seus atores. Porém, apesar desta diferença na abordagem da atuação tanto em Stanislavski, quanto em Brecht e em Grotowski, a emoção do ator no palco, representando um personagem, não deve ser semelhante à de uma pessoa no dia-a-dia. Ainda que Grotowski enfatize que, em sua técnica, o objetivo do ator é chegar ao desnudamento, mostrando ao público o que lhe é mais íntimo, esta exposição psíquica do ator recorre a uma linguagem metafórica. Conseqüente-mente, sua abordagem requer um rigor técnico enorme. As associações evocadas no psiquismo da platéia devem ser fruto dos ideogramas construídos pelo ator em sua partitura, e não por uma descarga emocional próxima à histeria. No método de Grotowski, o ator não busca determinada emoção, para um determinado personagem de literatura ficcional, num determinado momento do espetáculo, como no teatro de Stanislavski e de Brecht. No en-tanto, Grotowski também se propunha a guiar o intérprete pelos meandros da “vida interior” do ser humano. E isto, aproxima os três pensadores novamente, porque a busca de seus fundamentos está na observação da natureza humana, cuja complexidade tem por objetivo reproduzi-la de maneira estética. No teatro de Stanislavski e de Brecht, o que ocorre é o encontro da pessoa do ator com um personagem de ficção. O ator acredita nas palavras do

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seu papel e na sua imagem. Porém, por maior que seja a atração que a imagem desse outro lhe provoque, o ator continua ciente da sua própria identidade, não se perdendo na máscara que assume. Em Grotowski, o ator usa a composição da partitura, construindo a forma e objetivando a expressão dos símbolos que, por um processo involuntário, ativará seu fluxo interno psico-físico, para construir a seqüência de ações que o guiará no momento da representação. Por isso, já por princípio, não há identificação com o personagem. Dentro da idéia de que o fenômeno básico do teatro é a metamorfose do ator em personagem, Anatol Rosenfeld, estudioso da estética teatral, em sua obra O Fenômeno Teatral (1969), reforça a idéia de que esta metamorfose nunca ultrapassa os limitesda representação, pois, se o “desempenho é real, a ação desempenhada é irreal” (Rosenfeld,1969:30) - a situação do ator, em cena, cumprindo seu ofício faz parte da realidade desse ator, os espectadores comparecem no teatro para vê-lo, portanto é real; as suas ações no palco são ficcionais, portanto irreais. Isto quer dizer que existe o convívio entre uma irrealidade imaginária (do personagem) e uma realidade sensível (do ator). A metamorfose, base do fenômeno teatral, portanto, não é real, pois não ultrapassa o domínio do imaginário, permanecendo no limite do apenas simbólico. Com isso, Rosenfeld defende a concepção de que, na gênese do papel, prevalece o intencional (postura ativa) e não o involuntário (passivo). A representação teatral não poderia ser uma exibição de emoções reais, sob pena de perder sua dimensão estética, porque se aceitamos o jogo de que as ações são irreais, ao exibirmos emoções reais estaríamos quebramos o pacto. Neste ponto, no entanto, pode surgir a seguinte questão: com a expo-sição de emoções reais, deixamos de ter o espetacular? Sim, no sentido que fala Rosenfeld. A exibição de sentimentos pessoais, que podem aflorar durante o processo de criação - o ator emocionar-se durante os ensaios, o que é até bastante comum, ou já nas apresentações – reflete certa instabilidade à qual o ator não deve ficar à mercê. Neste sentido, o palco não pode ser visto como um lugar terapêutico, onde o objetivo seja experimentar emoções reais e analisar os complexos e os traumas pessoais deste ator. Por outro lado, é claro que a emoção real é espetacular. Basta observar a quantidade de gente que se junta para observar um acidente de automóvel, uma briga, alguém passando mal. Todos os programas sensacionalistas da televisão, por exemplo, exploraram justamente isto, com sucesso garantido. A emoção do ator sendo intencional, no teatro ocidental, estabelece que o desempenho do mesmo não deve ultrapassar o limite do plano imaginá-rio. A garantia do respeito a essa regra está no fenômeno do desdobramento,

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delimitada pelo tratado de Diderot, e que salienta a idéia de Rosenfeld, de que a comunicação emocional do ator nunca chega a ser sinal de estados emocio-nais, permanecendo símbolo desse processo íntimo. Para permitir esta cisão, que lhe confere a posição de “duplo”, o ator necessita de uma sistematização.

Stanislavski procurou encontrar o caminho que levasse à sistemati-zação do comportamento humano na tentativa de apontar, na psicologia do ator em cena, os meios que possibilitassem a expressão deste complexo processo, uma vez que no palco, há o perigo da simplificação, que conforme Grotowski, leva à banalidade, à linearidade e ao estereótipo. E esta sistematização ajuda o intérprete a aproximar-se do que é singular, complexo, inédito, contraditório. Neste sentido a contribuição de Stanislavski foi determinante. Desta forma, justifica-se que o pensamento de Stanislavski esteja nas origens do teatro de Grotowski, por sua formação e por seu método, envolvendo o estudo, a sistematização da observação e a investigação metodológica. Em entrevista concedi-da ao jornal O Estado de São Paulo, em 7 de janeiro de 1996, Grotowski fala de seu trabalho no Work Center e, sobre Stanislavski diz:

“Stanislavski afirmou que para descobrir a lógica do comportamen-to do personagem é necessário considerar as associações mentais e emocionais, as feridas no sentido psicológico, os desejos, os meca-nismos de reação e também o passado da pessoa. Se me encontrasse na mesma situação e com a mesma educação: não o personagem, eu, como reagiria? Pesquisando nessa direção na primeira parte de sua vida, Stanislavski propôs que o ator trabalhasse em cima da memó-ria afetiva. Mais para frente percebeu que não dava certo, porque as emoções são independentes da vontade. Mesmo as experiências ligadas à própria vida desaparecem. Então o ator começa a poupar as emoções e a fazer algo extremamente excitado, mas que não é a emoção que está procurando. Após anos de trabalho com a memória afetiva, Stanislavski, com uma pesquisa muito séria, descobriu que o que sentimos independe da vontade, mas o que fazemos depende da vontade. A partir daí concentrou-se nas ações, no fazer.... Ele

tinha certeza, e eu também, de que se encontra uma linha de pequenas ações justas, as emoções seguirão. As pequenas ações são as iscas para as emoções”(Grotowski,1996:1). A constatação de Stanislavski, aqui colocada por Grotowski, a respeito da incapacidade da vontade

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agir sobre as emoções, nos remete à filosofia, onde Spinoza diferencia o desejo da vontade. Segundo Abbagnano, para Spinoza o desejo, tido como emoção fundamental, refere-se ao corpo e a alma, enquanto que a vontade, se refere à mente e se esforça por manter-se no corpo por um período indefinido. O desejo é traduzido pela vontade, que se esforça para a realização do mesmo, através das ações(Abbagnano, 1998:314).

Porém, este esforço da vontade não garante a permanência do desejo, porque o que sentimos independe da vontade. Assim, poderia arriscar que o desejo é inconsciente e a vontade é consciente, no sentido de que ela surge para cumprir o desejo. A vontade, a que se refere Stanislavski, é a vontade do personagem para encontrar as ações. Mas se deslocarmos ao plano do ator, diria que o des-ejo que este deve ter para desencadear o processo criativo é essencial, ou seja, para disponibilizar-se para a proposta de criação que venha a escolher - e aqui aparece outro ponto em comum entre os três teóricos analisados: Stanislavski, Brecht e Grotowski. Em termos teatrais, quando Grotowski estabelece a oposição entre a atitude de “querer fazer isto ou aquilo” versus “desistir de não fazê-lo”, e opta por “desistir de não fazê-lo”, talvez seja pela idéia de que a ausência de interferência da mente, permita, assim, a quebra das resistências psíquicas e um contato com o inconsciente, que para Freud, é onde habita o desejo. Stanis-lavski, por outro lado, não se refere ao fluxo inconsciente.2 Parte da premissa que, através do consciente, o ator atinge o subconsciente. O estado subconsciente é composto pelo “conjunto de processos e fa-tos psíquicos que estão latentes no indivíduo, mas lhe influenciam a conduta e podem facilmente aflorar à consciência”(Ferreira,1990:1328). Enquanto que “o

2. Há que se considerar que a utilização do termo subconsciente em detrimento à in-consciente na obra de Stanislavski pode ser um problema de tradução para o português.

inconsciente não pode ser trazido por nenhum esforço da vontade ou da memó-ria, aflorando ... quando a consciência não está vigilante”(Ferreira, 1990:755). Este esclarecimento dos conceitos de inconsciente e subconsciente ajudam a identificar a linha que separa Stanislavski de Grotowski. Ou, pelo menos, que o segundo foi muito mais contundente nesta questão que o primeiro.

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Uma outra questão que se reforça é a relação que podemos estabelecer entre Grotowski e Wilhelm Reich, pois a maneira como Grotowski conduz seus atores para atingirem o insconsciente está totalmente voltada para o tra-balho corporal. Grotowski utiliza a respiração como desbloqueador das tensões musculares, bem como Reich, objetivando, assim, flexibilizar o que o discípulo de Freud chamou de “as couraças musculares do caráter”. Assim, a tensão crônica pode provocar o enrijecimento muscular e influenciar no ca-ráter e dificultar o contato do indivíduo com o seu material psíquico. Em Brecht, esta questão é colocada de maneira a focar uma opção racional. Com verdadeira aversão ao mundo das vivências, Brecht quer que o ator tenha um posicionamento claro fora do teatro, ou seja, na vida. Fala que esta á a escolha que o ator deve fazer, e que o levará a um ato de libertação e lhe provocará alegria. A alegria nos remete novamente a Spinoza, que, segundo Abbagnano (1998), teria dito que o desejo seria a emoção fundamental e a ele estariam ligadas as emoções alegria e dor(Abbagnano, 1998:314). Portanto, novamente se estabeleceria uma conexão entre a alegria de que fala Brecht, como emoção relacionada ao desejo e, por sua vez, o desejo agindo na criação do ator. Voltando à relação com o personagem, a vontade relacionada à mente e ao desejo, pode interferir nas ações e, esta relação entre a vontade e a ação, construída conscientemente pelo ator na criação do personagem, serviu para Stanislavski desenvolver o método das ações-físicas. O processo do “reviver”, onde o psíquico arrasta o físico, sugerido por Stanislavski, com a memória emotiva, dá lugar à composição exterior onde, para tentar desencadear a emoção, se partiria de um estímulo físico. Esta alteração na seqüência do desencadeamento da emoção foi proposta pelos fisiologistas William James e Carl Lange. De acordo com James-Lange, tradicionalmente eu vejo algo que me dá medo, sinto medo e então reajo corporalmente. Para eles, a seqüência do desencadeamento seria: eu vejo algo que me causa medo, reajo corporalmente e, só então, sinto medo. Apesar da falta de garantia de que da ação venha a experiência emocional, assim tão diretamente, a possibilidade de trabalhar com o concreto das ações, em detrimento ao impalpável dos sen-timentos, foi melhor assimilada pelos interessados na criação do ator, desde então. O trabalho com as ações, que foi um ponto de convergência entre Stanislavski e Grotowski, também interessou a Brecht, já que as ações do personagem eram racionalmente tiradas dos objetivos do mesmo, podendo ser

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construídas e elaboradas nos ensaios de mesa. Há um trecho do manual de Man-fred Wekwerth, baseado nas reflexões de Brecht, Diálogo sobre a Encenação, que confirma o uso das ações físicas por Brecht e seus seguidores:

B. Muitos sentir-se-ão frustrados quando ouvirem propor, ao invés de um profundo debate psicológico: ensaie como você se senta, se levanta, espera, entra, sai, ouve, não ouve, come, trabalha, senta-se à mesa, dá a mão, pega a faca, foge, etc.A . Ações psicofísicas! B. O pedagogo Stanislavski as chama de ações físicas; foram seus teóricos que as “aperfeiçoaram” para ações “psicofísicas”. A . Mas em todo caso, o ator – e naturalmente também o ence-nador – precisa saber, por exemplo, porque este ou aquele personagem num dado momento vai daqui para ali. Acho que o impiedoso “porque” bloqueia o caminho à celebre confusão «intuitiva”. B. Sem dúvida. Mas também dá livre acesso a motivações psicológicas do inconsciente” (Wekwerth, 1986:118-19).

Através do diálogo entre um diretor e um aprendiz, Wekwerth esclarece o caminho iniciado pelos por quês, que levam às ações, e que, por sua vez, estimulam o inconsciente e, por isso, chamadas de psicofísicas. Já Grotowski, dá um passo alternativo e propõe: “Continuei a pesqui-sa de Stanislavski e o que desenvolvi no âmbito das ações é concentrar-se no que precede a ação. Antes de fazer qualquer coisa, mesmo as ações menores, há um impulso, algo que vem de dentro do corpo e se projeta ao externo. Quando se projetou para o exterior, virou uma pequena ação. Esse momento é fundamental, quando a ação ainda não era visível, mas já havia nascido dentro do corpo como uma capacidade. O impulso nasce dentro do corpo, é físico e psicológico. Minha pesquisa em torno dos impulsos foi uma continuação dos estudos de Stanislavski”(Grotowski, 1996:1). De qualquer maneira, o conceito das ações físicas, seja o escrito por Stanislavski, sejam suas adaptações, ainda é objeto de muita especulação e dúvida por parte dos teóricos e pesquisadores do teatro, bem como dos atores. No entanto, ele provocou uma nova possibilidade de abordagem dentro do trabalho do ator, reforçando o ponto de vista da criação ‘de fora para dentro’. O último ponto importante que relacionarei dentro do campo das emoções é o que na teoria das emoções se chama de elemento surpresa e que no teatro

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pode ser relacionado à busca de espontaneidade pelo ator. O recurso utilizado para trazer a espontaneidade é a improvisação.Segundo o filósofo Fernando Gurméndez, um dos aspectos da emoção é a idéia de que ela é sempre provocada pela presença ou imagem de algo que me leva a reagir, geralmente de improviso, ou seja, ela tem como característica a atitude de romper com o processo que estava em curso no indivíduo no momento de sua aparição (Gurmendez, 1984:57). Esta ruptura causa certa turbulência e desorganização e, esta desorganização, pede uma reação espontânea. No teatro, a improvisação sempre aparece, em maior ou menor medida, dependendo do temperamento e aptidão do intérprete, gênero e estilo eleitos, técnica e treinamento desenvolvidos. Segundo Sandra Chacra, a intenção é o que permeia a combinação de fatores que são usados para a composição do intérprete, e esclarece: “Sendo o desempenho do ator uma realização aqui e agora, no seu centro, de um ou outro lado da configuração plasmadora, encontra-se o produto da resposta bio-psico-energética do intérprete, qualquer que seja o papel do contexto sócio- histórico e do código cultural, à proposta de representação. Assim, no ato interpretativo apresentar-se-á necessariamente uma improvisação implícita, a qual, por inexistir a intenção de usá-la expli-citamente, incorporar-se-á como um dado pessoal e involuntário no trabalho composicional do comediante”(Chacra & Guinsburg, 1992:217-18). A intenção atua de modo a explicitar a improvisação ou não, e o agente psico-físico do ator está implicado neste processo, quer no ato criativo, quer na condição de sanar eventual falha que ocorra durante a representação, trazendo de volta a representação ao curso pré –estabelecido.

A relação entre a improvisação e os teóricos aqui analisados é vista por Chacra da seguinte maneira: “Tal modo de proceder no tocante à improvisação se estende quer aos intérpretes mais “frios” e cerebrais, nos termos de Diderot ou Brecht, quer aos mais emotivos e “quentes”, nos termosde Stanislavski, Artaud ou Grotowski”(Chacra & Guinsburg, 1992:218). O enfoque dado por Diderot e por Brecht ao improviso é em relação ao autodomínio que o ator deve ter para distanciar-se do papel e contornar uma situação qualquer, real, que ocorra durante a representação. Já vimos que, para Diderot, o intérprete de gênio se recusará à instabilidade subjetiva e à impre-visibilidade formal. Em Brecht, não se encontra o conceito de improvisação explicitamente. No manual escrito por Manfred Wekwerth, Diálogo sobre a Encenação(1986), nota-se que, desde a preparação da encenação até

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organização e abordagem dos ensaios, não se menciona o recurso da impro-visação como parte do trabalho. Isso não nos deixa afirmar que, em nenhum momento, Brecht ou seus seguidores não tenham utilizado da improvisação nos primeiros ensaios, onde a empatia entre ator e personagem pudesse ser criada. Porém, a técnica do improviso não foi, nem para Diderot, nem para Brecht, um recurso muito destacado como auxílio para a composição do ator. Já para os emotivos e “quentes” Stanislavski e Grotowski, conforme disse Sandra Chacra, “o ator é um ser sensível que precisa trabalhar os seus próprios sentimentos e vivências, tentando descobrir neles a chave de acesso aos da persona. Entregando-se a uma livre associação de emoções reais e fic-cionais, o comediante vai construindo a máscara através de um processamento improvisacional”(Chacra & Guinsburg, 1992:219). No caso de Stanislavski, a improvisação serve de alavanca para o ator agir no condicional, “como se fosse”, sem perder excessivamente a naturalidade. E, além dos ensaios, a improvisação pode ser usada como desenvolvimento de pontecialidades físicas, emocionais, imaginativas e sensitivas. Para Grotowski, ela é quase invisível. Depois de dominar sua partitura completamente, sem ter que pensar no que vai fazer, é possível, então, o ator partir para a improvisação, para chegar a algo que seja, ao mesmo tempo, já estruturado e novamente espontâneo. A impossibilidade de penetrar no subconsciente de um ator para sondar o mecanismo da inspiração, seja qual for sua linha de interpretação, leva a um caminho alternativo possível para os que se interessam por este problema, que é, conforme disse Eugênio Kusnet, “estudar os processos naturais que regem a ação na vida real para depois transpor os conhecimentos adquiridos para o trabalho de teatro”(Kusnet,1992:12). Ao mostrar algumas diferenças no campo das pesquisas sobre a emoção, desde a filosofia clássica até a psicanálise, passando pela fisiologia, apresentei algumas especulações teóricas significativas para este problema.A integração entre razão e emoção, entre o objetivo-corporal e o subjetivo-afetivo, no ato da representação, é o que as propostas de Stanislavski, de Brecht e de Grotowski buscam, com procedimentos e matizes distintos. Esta distinção permitiu dife-rentes enfoques da emoção nos procedimentos do ator e não a negação de sua existência na criação. O ator, por lidar com a ficção, adquire a capacidade de desdobramento, necessária à reprodução dos diversos caracteres e seus respectivos comporta-

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mentos emocionais. Esse fingimento ou estado de dualidade deve convencer o espectador, sendo, não verdadeiro, mas verossímil, crível. Por isso, a força da convicção do intérprete fica na dependência da sua capacidade de acreditar no jogo fictício que, por sua vez, nasce da necessidade de convencer. O ator de hoje, mais do que adquirir habilidades específicas para uma montagem ou para a criação de determinado personagem, pode ter acesso a possibilidades objetivas de articulação, domínio e conhecimento de seu universo

psicofísico, tornando este o seu principal objetivo em termos de técnica a cons-truir. E, neste sentido, a complementaridade que há entre Stanislavski, Brecht e Grotowski, proporciona uma base sólida para esta construção. Mais que uma visão superficial das diversas possibilidades do fazer teatral, o ator cada vez mais é levado a tomar partido e responsabilizar-se por sua criação, pelo tipo de teatro que quer fazer. Esta segurança de saber conduzir seu trabalho o aproxima de seu desejo, que, por sua vez, é intrínseco à criação. Neste caso, não há mentira, ou não deveria haver, já que ele estaria de acordo com seu desejo e sua vontade.

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Civilização Brasileira. 1989.A Preparação do Ator. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 1984. A Criação do Papel. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,. 1989.Minha vida na Arte. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.WEKWERTH, Manfred. Diálogo sobre a Encenação Teatral. São Paulo, Editora Hucitec, 1986.

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Os Cadernos de Teatro & A Descentralização do SaberTeatral José Ronaldo FaleiroUniversidade do Estado de Santa Catarina

Fundados em 1956, os Cadernos de Teatro d’O Tablado completam quarenta e cinco anos em 2001. Procuro neste artigo as origens inspiradoras desse periódico e algumas de suas repercussões.

As origens Numa entrevista a mim concedida em 1993, Maria Clara Machado confirma que o nome da publicação é inspirado no dos periódicos que Chancerel publi-cou de 1945 a 1950, intitulados Cahiers d’Art Dramatique [Cadernos de Arte Dramática]. Sua fundadora tomou conhecimento deles durante a sua primeira permanência na França. Tendo lido esses cadernos, sentiu vontade de fazer publicações periódicas no mesmo espírito:

JRF - Você conheceu Chancerel através do movimento escoteiro? MCM - Não. Não. Fui até lá, quer dizer ao Centro Léon Chancerel1 . Fui lá e comprei os Cahiers [Cadernos]. JRF – Em suma, Maria Clara, você foi recebida no Centro Dramático de Chancerel, você leu na França os Cahiers d´Art Dramatique de Chancerel, e... MCM – ...e tive vontade de fazer igual. A tal ponto que são Cadernos, também (FALEIRO, 1998:421 e 446).

1 Situado no número 98 do Boulevard Kellermann, Paris 13e, o Centro Dramático foi a residên-cia e o local de trabalho de Léon Chancerel desde seu regresso de Toulouse, em 1945, após o término da Segunda Guerra Mundial, até sua morte, em 1965. Aí desenvolveu as atividades da Associação Centro Dramático, por ele fundada. Hoje em dia esse prédio de dois andares e um porão continua a abrigar a biblioteca Léon Chancerel e as sedes da Société d’Histoire du Théâtre [Sociedade de História do Teatro] e da Association Internationale de Théâtre pour l’Enfance et la Jeunesse/ASSITEJ [Associação Internacional de Teatro para a Infância e a Juventude], ambassob o impulso de Rose-Marie Maudouès, colaboradora de Chancerel. Localiza-se muito próximo à Cidade Universitária Internacional, que foi um dos lugares onde viveu Maria Clara Machado

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A questão do teatro popular e da popularização do teatro, da ampliação da presença do teatro para além dos grandes centros – a descentralização – é dis-cutida na França desde pelo menos o final do século XIX. Maurice Pottecher funda o seu Teatro do Povo na cidade de Bussang, na floresta dos Vosgos, em 1895. Já nos primórdios do século XX, Romain Rolland publica Le Théâtre du Peuple [O Teatro do Povo], em 1903. Nas duas primeiras décadas do século XX, Firmin Gémier viaja pelo interior com o seu Teatro Nacional Ambulante. As discussões e experimentos sobre o assunto seguem o seu curso ao longo da primeira metade do século. Em 1941, Jacques Copeau publica O Teatro Popu-lar. Depois da Segunda Guerra Mundial, a descentralização se concretiza em território francês, com a implantação dos centros dramáticos regionais. A s idéias e práticas de Jacques Copeau e de Léon Chancerel muito contribuíram para formar as equipes que estariam aptas a atuar, desde 1946, neste novo fronte. Nesse movimento, a palavra escrita foi elemento valioso. Chancerel declara, em seu Bulletin d’Information et de Liaison [Bo-letim de Informação e de Ligação] (1955-1956), que deve a Jacques Copeau a idéia de publicar uma revista. Querendo renovar a vida e a cena francesas, dar-lhes “verdadeiros valores”, Copeau amplia o seu campo de ação, pensando a formação dos atores dentro de uma “pedagogia total”, e tornando o Vieux-Colombier (teatro e escola) um centro de cultura geral. Concebe e amadurece, durante a Primeira Guerra Mundial, o projeto dos Cahiers. Não se trata, evidentemente, de uma idéia original. Na realidade, no sé-culo XIX Richard Wagner havia fundado o Bayreuther Blätter, e André Antoine publicara (1887-1894) suas cinco brochuras du Théâtre Libre. Paul Fort cria a seguir o periódico do Théâtre d’Art (sete números, 1891-1892), et Lugné-Poe publica L’Oeuvre (noventa números, 1909-1930). Por fim, Max Reinhardt funda na Alemanha (1911) son Blätter des Deutches Theaters, retomado depois em Viena com o título de Blätter des Theaters in des Josefstadt. Talvez, porém, sejam os Cahiers de la Quinzaine, de Charles Péguy, que tenham inspirado Copeau mais diretamente: Péguy também deseja

na capital francesa, durante sua temporada parisiense de 1949-1950. Na carta de “Paris, 1.2.50”, Maria Clara conta ao pai, o escritor Aníbal Machado, que se instalou na Cidade Universitária, num quarto amplo com um parque visto da janela, compartilhado com Sílvia Moscovici, “uma pessoa muito silenciosa”... Na carta parisiense datada de 25.3.50, endereçada a toda a família, sacia a curiosidade do pai, escrevendo que, de trem (pela linha de Sceaux), chega em quinze minutos ao “curso Barrault”, no Boulevard Raspail. Terá levado ainda menos tempo, a pé, para ir ao Centro Dramático de Chancerel: o Boulevard Jourdan, que passa em frente à Cidade Uni-versitária Internacional de Paris, é a continuação do Boulevard Kellermann.

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reconstruir um público na um grande periódico, que constituísse aos poucos uma espécie de enciclopédia do saber teatral. Disse um dia a Louis Jouvet2 que era preciso estar na primeira fila com um palco e um jornal. Transmite esse desejo a Léon Chancerel, que durante a vida inteira se esforçará para se desincumbir da tarefa, com tenacidade, movendo-se e epermanecendo o mesmo, como o moinho que ilustra algumas de suas publicações — « in sua movenza e fermo » (CAHIERS D’ART DRAMATIQUE, 1950c:88). Assim, “transplantados” para o Brasil por Maria Clara Machado, os opúsculos de Chancerel foram certamente de grande auxílio para a adaptação desse movimento junto à realidade brasileira do imediato pós-guerra. Com efeito, a primeira preocupação da equipe d’O Tablado que lançou os Cadernos de Teatro diz respeito aos grupos novos que se formam nos lugares mais recuados do Brasil e buscam iniciar-se no mundo teatral e ampliar seus conhecimentos sobre ele. Sua divisa é Remember Amapá3 , um modo bem-humorado de falar em descentralização do teatro... Partir da própria realidade para depois difundi-la é outro elemento fundamental no procedimento de ambos os líderes. O grupo teatral O Tablado pôs cinco anos, de 1951 a 1956, para fundar sua revista, os Cadernos de Tea-tro. Sentiu necessidade de realizar seus próprios experimentos e suas próprias pesquisas antes de se julgar capaz de transmitir a outros o seu conhecimento. A revista surgiu, na verdade, dentro de uma equipe teatral já bem conhecida do público e da crítica do Rio de Janeiro. Críticos dramáticos louvavam-lhe então a novidade, a qualidade ou o caráter coletivo. Assim, em l952, Paschoal Carlos Magno escreve que O Tablado lhe revelou um modo de fazer teatro que ele só vira anteriormente nos jovens ingleses de Cambridge, no grupo de Vittorio Gassmann, nos Pitoëff ou em alguns grupos da Inglaterra (MAGNO, 1986:174;Claude Vincent, em 1955, observa que as decisões do grupo são tomadas

2 Jouvet também teve a sua revista, Entr´acte, publicada pela Comédie des Champs-Elysées (1927-1928). Du Théâtre Libre au Théâtre Louis Jouvet. Les Théâtres d’Art à travers leurs périodiques [Do Teatro Livre ao Teatro Louis Jouvet. Os Teatros de Arte através de seus pe-riódicos] estuda as seguintes publicações: Le Théâtre Libre [O Teatro Livre], Le Théâtre d’Art [O Teatro de Arte], L’Oeuvre [A Obra], Les Cahiers du Vieux-Colombier [Os Cadernos do Vieux- Colombier], La Chimère [A Quimera], Correspondance [Correspondência], Entr’acte [Entreato] (VEINSTEIN, 1955).3 Na época da fundação dos Cadernos de Teatro, o Brasil contava com vinte estados, um Dis-trito Federal e cinco territórios. Situado na fronteira com as então Guianas (Francesa, Inglesa e Holandesa), o Amapá era um território. Para os jovens do Rio de Janeiro dos anos cinqüenta, ele era o símbolo de tudo o que houvesse de mais distante no espaço e de menos desenvolvido do ponto de vista cultural.

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democraticamente e todos os membros da equipe trabalham pelo sucesso comum (VINCENT, 1955:175). O grupo poderia ter optado por fazer uma publicação sofisticada, dirigida exclusivamente para o meio teatral do Rio de Janeiro, que era então a capital do país. Mas assim não aconteceu. O Tablado preferiu dialogar com o público a quem pretendia dirigir-se. Trata-se realmente de um diálogo? Por um lado há o conteúdo da revista; por outro, há reflexões, aplicações, os textos dos leitores. O que se estabelece não é um diálogo somente epistolar, escrito. É também um contato que se constrói, da parte do leitor, no desejo de pôr em prática o que foi lido, estabelecendo assim uma relação viva com o teatro, criando uma necessidade de servir à arte. No intermédio, na junção entre leitores e artistas, os Cadernos de Teatro expõem, antes de mais nada, não uma doutrina, mas uma prática. As idéias que a subtendem nem por isso estão menos presentes. No primeiríssimo número da revista, mencionando a grande efervescência teatral então vivida pelo país, Maria Clara Machado afirma que da mistura da lição dos antepassados, da experiência dos grupos e da experiência externa se forma pouco a pouco um teatro no Brasil. Expressa a firme convicção de que os conselhos dos mestres que que passaram a vida inteira tentando resolver os problemas da vida teatral podem ser úteis aos que estão iniciando. Baseando-se em Charles Dullin — para quem são os próprios deuses que nos fazem faltam, e não as máquinas para fazer com que desçam de seu mundo4 —, acredita que não é possível fazer teatro sem técnica, mas que essa técnica deve ser vivificada por um espírito de teatro. São prioridades: não esquecer as pequenas cidades do Brasil e divulgar tudo o que diga respeito à formação corporal do ator, à encenação, à técnica da cena, para chegar a uma cultura teatral e à formação de um espírito de grupo. Portanto, preparar o ator ao mesmo tempo em que preparar a pessoa do ator. Nos primeiros números, os Cadernos de Teatro não escondem quequase todos os seus artigos são traduções ou adaptações. Seus fundadores declaram não se sentir ainda bastante capazes de emitir suas próprias opiniões. Preferem adaptar a suas necessidades o pensamento e a experiência daqueles que os

4 Nessa afirmação de Charles Dullin podemos perceber o eco da luta de Jacques Copeau, seu mestre, por um “tablado nu”, expresso já no seu manifesto publicado pela Nouvelle Revue Françai-se/NRF [Nova Revista Francesa] no momento da fundação do Teatro do Vieux-Colombier, em 1913. Procurando renovar o teatro e dar importância à poesia no teatro, em seus escritos Copeau indignava-se, entre outras coisas, com os aplausos que os cenários arrancavam do público.

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auxiliaram a começar. Já foi dito que tanto Maria Clara Machado quanto Léon Chancerel tiveram objetivos semelhantes: formar uma equipe e preparar movimentos ligados à juventude para um trabalho especificamente teatral. Chancerel e sua equipe consignaram no Bulletin des Comédiens Routiers (1932-1935), em Art Dramatique (1935-1938), nos Cahiers d´Art Dramatique (1945-1950), e tam-bém no modesto Bulletin d’Information et Liaison (1955-1956), um testemunho rico de seu trabalho, que pode ainda servir aos leitores em busca de formação teatral. É oportuno recordar aqui algumas idéias obtidas em sua leitura.

Princípios e práticas nos Cahiers/Cadernos

Primeiramente, o treinamento físico, corporal e vocal. Chancerel considerava-o fundamental. Para ele, os exercícios que põem em ação o corpo são globais, mobilizando-o integralmente, sem acentuar uma parte em detri-mento de outra, nem fazer trabalhar mecanicamente. A preocupação de não queimar etapas é evidente, pois “só se passará à improvisação depois de haver consolidado muito bem a sintaxe corporal” (BULLETIN DES COMÉDIENS ROUTIERS D´ILE DE FRANCE, 1932:13)

Utilizando o método do tenente Hébert5 , as sessões de trabalho co-meçam com alguns minutos (de dez a trinta) destinados a mover o corpo, a caminhar e a fazer acrobacia, para obter controle, maleabilidade e equilíbrio corporais. Esses exercícios são executados em grupo. Considerados “elemen-tares”, propõem ações como caminhar em fila, ao som de um tambor, com variação de ritmos; caminhar embaixo de um sol tórrido, caminhar na chuva, caminhar na montanha ou numa cidade; fazer caminhadas ritmadas em relação com um elemento exterior imaginário (recuar ou avançar por influência de uma força sobrenatural) ou a partir dos animais. Depois, rir cada vez mais, até chegar às gargalhadas (seja individual, seja coletivamente, com a propagação do contágio), colher flores, lavar roupa no rio, resistir ou ceder ao sonho. Partindo desses exemplos, que formam quase imperceptivelmente o

5 Tendo muito viajado e muito observado, Georges Hébert criou o “hebertismo”, método global que ensina a treinar o corpo pela execução dos “dez exercícios naturais”: caminhar, correr, saltar, praticar a quadrupedia, trepar, levantar-carregar, lançar, atacar-defender, equilibrar-se, nadar. Tal método permite a aquisição de grande resistência física, muito necessária ao ator (BAYEN, 1945:23). Seu método foi utilizado no Teatro e na Escola do Vieux-Colombier. Portanto, Jean Dasté, Marie-Hélène Dasté, Etienne Decroux, Charles Dullin e Louis Jouvet, entre outros, to-maram conhecimento de seus princípios e praticaram tais exercícios.

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sentido do grupo, os participantes têm a tarefa de inventar, por sua vez, exer-cícios, jogos, temas, cuja expressão se encarregarão de aprofundar cada vez mais: Dominar o corpo para torná-lo um instrumento perfeito. Flexibilidade, equilíbrio, fôlego e ritmo são as qualidades fundamentais. Depois, começa-se a dramatizar os exercícios de escola. Estuda-se o gesto augusto do semeador, as inúmeras maneiras de caminhar (...) Entrar no mar num lugar levemente inclinado. Nada de anedota, nada de arrepio se a água estiver muito gelada. O essencial: a música do corpo... O corpo pode também tornar-se árvore, rochedo, animal pré-histórico (HUSSENOT, 1978: 44). Em cena, o mais importante não é saber falar: é saber calar. Em cena, o jogo do ator consiste em falar e ouvir. Ele não pode falar sem representar mas pode representar sem falar. A reação corporal ao meio ambiente, a aquisição da maleabilidade, o sentido do ritmo e da observação são os objetivos procurados pelo trabalho e reiterados nas publicações de Chancerel. A partir do treinamento corporal em grupo, forma-se pouco a pouco o espírito coletivo, de equipe, a formação coral, “orquéstica”6. Quanto à voz, os periódicos franceses aludidos não apresentam muitos exemplos de treinamento. Há exemplificação de certos exercícios simples de pronúncia ou dicção, ou de canto seguindo um ritmo, como na “Marcha para o Suplício” (BULLETIN DES COMÉDIENS ROUTIERS D´ÎLE DE FRANCE 1933:134-36). Há também interesse pela onomatopéia, arte estudada pelos alu-nos da Escola do Vieux-Colombier (1920-1924) e batizada como “grommelot” [gromelô]. Os exercícios vocais, como os corporais, contribuem para a formação do coro e, por isso mesmo, para a formação de todos os membros da equipe. Às vezes movimento e voz são trabalhados conjuntamente, como nas caminhadas concomitantes com a emissão de um som coincidente com o ritmo do andar. Na execução dos exercícios, deve-se evitar a caricatura, o excesso, o que desvio da economia, e sobretudo procurar a expressão do corpo, sua “música”, “o jogo perfeito dos músculos, a continuidade e o encadeamento

6 O termo ορχηστικοσ, η, ον [orkhestikós, -é, -ón] significa “relativo à dança” segundo o filósofo Platão de Atenas (430-348 a.C.), Leis 816 a. Para o filósofo e biógrafo Plutarco de Queronéia (205-270 d.C.), Marius 27 b, 67 b, trata-se de “quem se entrega à dança”. - O substantivo η [τηχνη] ορχστικη [hé (tékhne) orkhestiké] é “a arte da dança”, para o sofista Luciano de Sa-mosata (c.120-200 d.C.), Salt. 65, 71 [Da Arte da Dança]. – “Os ‘jogos dramáticos’, praticados desde a infância, são o caminho que se deve trilhar para estabelecer essa orquéstica de que já se podem entrever as conseqüências magníficas, na obra de reconstrução a que estamos atrelados” (CHANCEREL, [1936]: 10).

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sem choque das atitudes” (BULLETIN DES COMÉDIENS ROUTIERS D´ÎLE DE FRANCE, 1932:13). Trata-se, portanto, não de uma inspiração, mas de um trabalho técnico, corporal, mobilizador dos músculos e da totalidade do ser. Esse treinamento físico apropriado visará, porém, mais ao desenvolvimento harmonioso de todo o indivíduo do que somente a melhorar uma parte do corpo considerada isoladamente. Em suma, os exercícios constantes dos periódicos publicados por Léon Chancerel vão ajudar a imprimir num grupo ou num ator um tipo de jogo baseado no corpo, onde a voz é utilizada apenas quando absolutamente necessária, tornando-se esta, portanto, um elemento integrado ao corpo e ao ritmo. Chega-se, com isso, a um jogo não naturalista, que dispensa os cenários e permite que o ator represente seres humanos ou não humanos, assim como todos os tipos de mundos imaginários. O que é buscado — e expresso nas páginas dos periódicos em estudo — é o instinto e a invenção dramáticos do aluno; o poder pessoal da expressão do corpo e da mímica; o sentido da personagem e da situação; a formação do ator como um ser humano. Nesse conjunto, a improvisação é empregada como método de formação e como recurso para a criação de personagens, e é executada, para preparar o ator a jogar, a partir de exercícios de treinamento do corpo e da voz; a partir de temas; a partir de personagens (da Commmedia dell´Arte e outras); e a partir de situações (também da Commmedia dell´Arte e outras). Intimamente vinculada ao trabalho do corpo em silêncio e em estado de improvisação, o uso da máscara é um instrumento para a aprendizagem dramática a ser utilizado na sala de trabalho (ateliê) antes de o ator passar a representar com máscara diante dos espectadores. Supõe e impõe uma inter-pretação muito física, e até acrobática. Por isso está estreitamente ligado aos exercícios para treinar o corpo e a voz (e, portanto, a rapidez dos reflexos, a observação e a reação, a presença no espaço de representação, o contato com os colegas, a precisão do movimento ). Olivier Hussenot apresenta sete razões para utilizar a máscara: evitar a maquilagem; ajudar o ator; poder representar todos os papéis, independente-mente da idade ou do tipo físico; mudar de personagem segundo as necessidades do grupo; representar papéis do outro sexo; desdobrar, multiplicar o jogo dos intérpretes; facilitar a passagem de uma personagem para outra (HUSSENOT, 1932:8-9). No início de seu artigo, Hussenot declara haver um preconceito na França, na época, em relação a trabalhar com máscaras. É inegável a influência dos

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periódicos de Chancerel para a mudança dessa atitude. De fato, através das publicações sobre a máscara surgidas nos Bulletins des Comédiens Routiers, em Art Dramatique et nos Cahiers d’Art Dramatique, os leitores puderam aperfeiçoar e às vezes modificar suas concepções referen-tes ao teatro, como o demonstra este depoimento de um leitor, confirmando a contribuição desses periódicos como uma espécie de escola à distância: Leitor assíduo do Bulletin des Comédiens Routiers, primeiro pensei que a arte da máscara e o jogo com máscara deviam ser algo muito estranho. Depois, lendo o Bulletin, minha opinião se modificou, mas outra objeção se apresentou a meu espírito, para nós que estamos no interior, distantes de Paris. Como fazer para, sozinhos, fabricar máscaras? O Bulletin veio me socorrer, e tentei (...), partindo de uma máscara de cartolina comprada na cidade e transformada por nós. Agora estamos mais do que convencidos: entusiastas. E devemos essa transformação, essa metamorfose de nosso gosto teatral, a vocês. Nosso muito sincero obrigado (BULLETIN DES COMÉDIENS ROUTIERS D’ILE-DE-FRANCE, 1933:276-277). Portanto, é possível afirmar que os periódicos de Léon Chancerel atingiram seu objetivo de informar e sobretudo formar à distância leitores interessados no fato teatral7 . Dos Cahiers aos Cadernos Inspirando-se nos Cahiers d´Art Dramatique [Cadernos de Arte Dra-mática] (1945-1950) de Léon Chancerel, fundador da Associação Centro Dra-mático, em Paris, Maria Clara Machado teve, portanto, como já foi dito, a idéia de fundar, no Rio de Janeiro, os Cadernos de Teatro do grupo O Tablado. Não conheceu o Bulletin des Comédiens Routiers (1932-1935) nem Art Dramatique (1935-1938). Todas as traduções dos artigos provêm dos Cahiers. Do ponto de vista do trabalho do ator, até o número 19, podemos contatar traços nítidos da influência do periódico francês sobre o brasileiro. A presença dos autores franceses é considerável, através da tradução de artigos ou de trechos de artigos ou de livros publicados nos Cahiers d´Art Dramatique, ou pela publicação de autoresque se situam na mesma esfera de pensamento que7 Sobre os efeitos formadores do Bulletin, um leitor envia um relatório pormenorizado de suas atividades de “teatro no colégio” e afirma, no item 2, que “durante as sessões de estudo, o trabalho era dividido da seguinte maneira: 20 minutos de exercícios de formação coral segundo a técnica proposta pelo boletim dos Comédiens Routiers [Atores Itinerantes] (...) » (GARRONE, 1938:82-94.)

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Chancerel, como JacquesCopeau, Louis Jouvet, Jean Dasté, Michel Saint-Denis,Charles Dullin, Gaston Baty, Georges Pitoëff, Jean Vilar. Seus leitores podem, assim, praticar exercícios corporais e vocais, jogos dramáticos, técnicas de encenação a partir dos escritos de Charles Antonetti, de Jan Doat, de Henri Cordreaux, de Hélène Charbonnier-Joly e de Anne-Marie Saussoy-Hussenot,de Jacques Lecoq e do próprio Chancerel. Essa presença se rarefez com o tempo, mas nunca desapareceu totalmente. Na verdade, com Chancerel, no cerne da prática de Maria Clara Ma-chado e da orientação que imprimiu aos Cadernos de Teatro está a convicção de que todo conhecimento deve poder ser utilizado, e que é preciso evitar a erudição sem a prática. Ainda com Copeau e Chancerel, para Maria Clara o desejo de contribuir para renovar o teatro do seu tempo passa por uma exigência de qualidade que visa a obter dos atores amadores um resultado tão apurado que chegue a influenciar a ética e a estética dos atores profissionais. As idéias dos Cadernos sobre a questão são expostas através dos artigos traduzidos, em grande parte. Assim, no número 1, após o manifesto de “MCM”, uma citação de Théodore de Banville se refere à representação dramática e à comunhão com o público. Chancerel aparece na página 4, numa citação enquadrada: “Para a felicidade de um grupo, e ao mesmo tempo no interesse dos espetáculos, será preciso estabelecer um equilíbrio entre a arte e a vida. Nem sempre é fácil”. No mesmo número, em forma de versos, o mesmo autor dita os dez mandamentos do encenador e os dez mandamentos do ator, acompanhados de uma nota da redação do periódico brasileiro que sublinha a utilidade desses preceitos (CA-DERNOS DE TEATRO, [1956]:6-7)8 . Para o ator, trata-se de aprender seu texto longa e perfeitamente; de chegar na hora para os ensaios; de não beber demais para poder representar (!!!); de odiar a cabotinagem; de se regozijar também com o sucesso dos outros; de ser disciplinado, não tagarela ou inconveniente; de aceitar com modéstia os cumprimentos. O quinto mandamento faz menção ao treinamento quotidiano do corpo e da voz. A página 5 acolhe quatro pará-grafos de Jacques Copeau sobre o público. No mesmo número, Charles Dullin sublinha a importância de respirar bem e de falar bem (id., ib.:8-9).

8 Em seus primeiros números, é frequente os Cadernos de Teatro não indicarem a fonte completa ou não darem nenhuma indicação sobre a procedência das matérias> Assim, somente após a leitura atenta das duas coleções pode-se afirmar que a citação asima é oriunda do Suplemento “Comment monter et présenter un spectacle de qualité” [ Como montar e apresentar um espe-táculo de qualidade], Cahiers d’Art Dramatique ]Cadernos de Arte Dramática], publicação da Association Centre Dramatique [Associação Centro Dramático], ano 10, n. 5, p.20-21, jun. 1948.

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Desde o primeiro número os Cadernos lembram os Cahiers, também pela diagramação, pelo formato, pelas citações, pela organização dos conteúdos, pelo tipo de enfoque. Nos Cahiers, Chancerel publica uma coluna intitulada “Formação do Ator”; Maria Clara, nos Cadernos, uma coluna cuja denomi-nação oscila entre “Escola do Ator”, “Jogos Dramáticos”, “Exercícios práticos do ator”. Como Chancerel — que, quando Maurice Jacquemont deixou o grupo, manifestou-se contra a profissionalização dos Comédiens Routiers —, Maria Clara num momento de crise no Tablado publica, no número 6, um artigo sobre essa questão que pode ser útil para muitos outros grupos de teatro amador. Um aspecto fecundo dos Cadernos de Teatro é, portanto, a sua noção de continuidade. Ao formar formadores ou atores, uma cadeia se estabelece. Um tipo de trabalha continuará. Cada um é um elo numa sucessão, numa fa-mília, numa tradição. Grotowski gostava de citar monges orientais que diziam que o discípulo deve superar em pelo menos vinte por cento o mestre. O que importa é a obra a construir, o que não se faz numa ou duas gerações (nem numa só coleção de periódicos...). Tenir et poursuivre [Manter e continuar] foi uma divisa em certos instantes dramática para ambos os criadores, mas, livre dos entraves que às vezes acarreta, pode iluminar um trabalho que se consagra à causa do teatro com a finalidade de aproximar as pessoas. Outro aspecto fecundo desse trabalho consiste no fato de pôr genero-samente à disposição do leitor uma série de artigos sobre o ator, o corpo, a voz ou a encenação, que possibilitaram a muitos amadores brasileiros encontrar o seu caminho e até se tornarem profissionais na área. Para citar apenas um, é o caso do encenador Paulo Affonso Grisolli, que declara num artigo ter aprendido muito, jovem estudante, nas páginas dos Cadernos. Quanto à formação do ator, os Cadernos podem agir em duas direções. Primeiro, de modo indireto, trazendo um auxílio aos atores-aprendizes, ao darem indicações aos encenadores sobre os meios de trabalhar com eles. Em segundo lugar, diretamente, por meio de exercícios corporais ou vocais publi-cados, a serem experimentados individualmente ou em grupo; por jogos, por sugestões de improvisação; pela escolha de um repertório; por noções teóricas sobre o jogo, sobre o espaço, sobre as concepções dos homens de teatro, pelo despertar da curiosidade com relação a todos os aspectos componentes de um espetáculo teatral, visto numa perspectiva de coletividade, de disciplina, de rigor mas também de prazer de ser um servidor da arte dramática. Além dos exercícios práticos (voz, corpo, improvisação) para o ator, os .

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Cadernos publicam os testemunhos de atores e textos teóricos sobre seu ofí-cioO que ressalta dessas colaborações é uma idéia de dinamismo, de textos acessíveis e agradáveis, dando vontade de buscar, de ler, de “ir além”. Esses cadernos podem, aliás, ser lidos em vários níveis. Nas grandes cidades, as pessoas interessadas encontrarão neles um ponto de partida para descobrir e continuar a procurar. Encontrando, por exemplo, um trecho de Barba, de Grotowski, de Strehler, de Copeau, procurarão saber mais, irão à biblioteca ou a livreiros especializados, para comple(men)tar sua leitura. Nas cidades pequenas, esses artigos podem prover uma necessidade imediata, e criar o impulso de encomen-dar livros, de escrever a universidades ou a pessoas que possam eventualmente suprir um desejo de saber. Tudo isso cria um movimento dinâmico, uma procura maior de informação e de formação – não só pelo pedido de informações, mas também pela experimentação das informações na prática, por tentativas, por esboços que às vezes originam espetáculos dirigidos a determinada comunidade e que, assim, desempenham um papel descentralizador.

A fecundidade maior do trabalho de Maria Clara Machado (e sua equipe) reside no fato de que, a partir do contato com a obra de Chancerel, ela não se limitou a traduzir os periódicos franceses: fez uma seleção, viu o que se adaptava à realidade que ela estava vivendo no Brasil e desejava compartilhar. Os Cahiers lhe proporcionaram meios de concretizar a necessidade de ser útil, de se voltar para as regiões mais isoladas e levar-lhes não o teatro mas a sua centelha, de ser útil, de “servir”, de “jogar bíblias de avião”, de realizar uto-pias e continuar a criá-las. Com a ação de Maria Clara Machado9 e de toda a equipe d´O Tablado, os Cahiers traduzidos puderam passar a ser, plenamente, Cadernos. Longa vida a eles! As gerações se sucedem e se superam. O amor ao teatro segue seu curso.

9Personalidade forte, Maria Clara Machado sempre soube muito bem o que deseja ver publicado pelos Cadernos de Teatro. É elogiável, porém, que ela tenha sempre tido em conta a equipe com que trabalha. É sintomático que as publicações de Chancerel contivessem a menção de que ele era o seu fundador e diretor. Já ao pensar nos Cadernos de Teatro, embora creditando à sua fundadora todo o seu valor, vem logo à lembrança de que se trata de uma publicação do grupo teatral O Tablado. Tal atitude foi projetada por ela, por ela arquitetada e obtida. Afirmando a importância de sua participação, a clareza e força de seus princípios, Maria Clara Machado sempre valorizou o espírito coletivo no teatro e particularmente no periódico em que pôs nele o seu grande entusiasmo. Com ele começou a construir, ao longo dos últimos quarenta e cinco anos, uma parte (considerável) da obra — convivendo, como no poema de Carlos Drummond de Andrade, na praça de convites.

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A utilização da máscara neutra na formação do ator

Luciana CesconettoUniversidade do Estado de Santa Catarina

Este artigo é um resumo da dissertação que defendi no Programa de Mestra-do em Educação e Cultura da UDESC1. A pesquisa consiste em uma exploração do fenômeno “utilização da máscara neutra na formação do ator”.

A máscara neutra é uma máscara que se pretende inexpressiva, sem defi-nição de gênero ou caráter. Esse objeto, denominado a princípio de “máscara nobre”, foi utilizado pela primeira vez com fins pedagógicos na formação do ator por Jacques Copeau, no início do século XX. Foi um recurso encontrado por Copeau principalmente para eliminar as possibilidades de expressão facial do aluno-ator a fim de explorar as possibilidades do seu corpo como um todo em movimento. O termo “máscara neutra” foi introduzido por Jacques Lecoq, um pedagogo que continuou e aprofundou a estratégia de sua utilização.

A primeira parte do trabalho consiste em uma pesquisa bibliográfica. Ve-rifiquei a teoria teatral de Jacques Copeau, contextualizando-a historicamente, a fim de identificar como foi possível o surgimento dessa prática. Investiguei também os desdobramentos da proposta inicial de Copeau, com relação à máscara neutra. Na segunda parte descrevo a prática com a máscara neutra desenvolvida pelo grupo de teatro Moitará (Rio de Janeiro). Na terceira parte comparei a proposta prática desse grupo com as propostas dos pedagogos estudados, identificando semelhanças e diferenças (a comparação ficou mais direcionada ao trabalho desenvolvido por Copeau). Nas considerações finais, sintetizei as constatações feitas, levantei questões que merecem ser investigadas e elaborei respostas provisórias.

Considerações sobre a utilização da máscara neutra na formação do ator (Jacques Copeau)

Copeau foi um dos fundadores da Nouvelle Revue Française e a partir de 1910, tornou-se crítico teatral da revista. Através desse ofício, conheceu o sistema teatral baseado nos papéis de vedetes e os exageros do naturalismo.

1 Trabalho orientado pelo prof. José Ronaldo Faleiro

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Como crítico, rejeitou o naturalismo, corrente estética que prescrevia para a cena a reprodução cinematográfica do real. Copeau afirmava que o naturalismo, por trabalhar com o excesso de detalhes no palco, não exigia do ator o máximo de sua capacidade expressiva e não permitia à platéia explorar ao máximo sua capacidade imaginativa. Copeau rejeitou também o sistema de vedetes que surgiu no século XIX, o teatro de grandes atores com personalidades marcantes. Afirmava que esses atores eram cabotinos, falsos, estavam preocupados apenas com o sucesso pessoal. Não satisfeito em criticar o que se fazia como teatro, resolveu construir, ele mesmo, uma outra possibilidade para a cena. Defendia que, para realizar uma renovação, era preciso primeiro construir uma escola para formar os novos atores, os quais viabilizariam um novo teatro. Copeau não conseguiu realizar seu projeto nessa ordem, fundando inicialmente o teatro do Vieux-Colombier, em 1913. No projeto de renovação teatral proposto por Copeau, o corpo do ator ocupava um lugar privilegiado.

A teoria teatral de Jacques Copeau

Para Copeau, o teatro é um meio de nos religarmos entre nós ( 1993). Por isso, seria preciso que o teatro fosse compreendido, para que pudesse se tornar alimento de todos. Copeau buscava o “fundamental”, o que está nas origens. Assim, chegou ao teatro popular. Encontrou na Commedia dell’Arte a força para combater a decadência do teatro de seu tempo, visto que nesse gênero teatral o foco não era a voz, mas o ator em ação como um todo; a cena era pobre em recursos materiais e os atores ricos em meios expressivos; não havia a preocupação com a representação realista; além do que nesse tipo de teatro o ator também era cantor, músico, malabarista, equilibrista e se relacio-nava com a platéia.

A busca da simplicidade estava na base do projeto teatral de Copeau. A economia de meios daria espaço para a poesia, para a ação dramática. Dentro dessa perspectiva, ele propôs para a cena o “palco nu”. Suprimiu o móvel e os painéis pintados e os substituiu pela arquitetura fixa, permanente. Reduziu os objetos da cena ao fundamental, ao que seria necessário para a ação dramática.

Na orientação do trabalho do ator, Copeau prescrevia os seguintes princípios éticos: trabalhar coletivamente; se fazer compreender; ser simples (alertava para o perigo da especialização técnica, do esvaziamento no virtuo-sismo); ser sincero (para ser sincero em cena, o ator deveria ser sujeito de suas

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ações, não deixar-se levar pelos modismos da cena. A primeira condição para ser sincero seria só interpretar textos que se admira. Só assim o ator poderia trabalhar apropriando-se desse texto, tornando-o seu); ter disciplina; acompa-nhar o crescimento do trabalho do colega; amar o teatro.

Copeau defendia que a palavra, em cena, deveria ser o resultado de um pensamento sentido pelo ator em todo o seu ser ( 1993:308). Para isso, o ator deveria admirar o texto e repassar pelo caminho do autor. Ao abordar a questão do corpo em movimento, Copeau prescrevia que o ator tivesse consciência da expressão do próprio corpo e uma boa técnica corporal.

A escola do Vieux-Colombier

Objetivando formar atores para a companhia do Vieux-Colombier, formar novos atores com o que Copeau chamava de uma “educação total”, ele fundou, em 1921, a escola do Vieux-Colombier. A estrutura da escola compre-endia o “Curso fechado” – ou Grupo de aprendizagem: destinado à formação de atores; o “Curso aberto”: para complementar a cultura geral dos membros da cia. e de artesãos do teatro; e o “Curso livre”: para espectadores e amigos do teatro. Abordo neste texto apenas o trabalho desenvolvido no Grupo de aprendizagem.

O embrião do método se formou em 1916, junto com Suzanne Bing (sua colaboradora pedagógica) a partir da observação do jogo das crianças (CHAN-CEREL, 1944). O método do trabalho prescrevia partir do silêncio e da imobi-lidade, para então, gradualmente, levar os alunos ao movimento e à utilização da voz.

O curso no Grupo de aprendizagem tinha a duração de três anos, ao longo dos quais trabalhavam as seguintes áreas de conhecimento: Educação corporal; Iniciação progressiva aos trabalhos manuais; Canto coral e individual; Exercícios de expressão dramática; Improvisação; Elocução, dicção, decla-mação; Cultura geral; História do teatro; Jogos livres (ou interpretações livres).

A área “Exercícios de expressão dramática” incluía: máscara, jogo do corpo, fisionomia e mímica. Um dos cursos chave da escola pertencia a essa área: era o curso de “Educação do instinto dramático”: nesse curso iniciaram o trabalho sobre o estado neutro e preparatório e sobre a improvisação silenciosa com máscara inexpressiva.

O princípio de cobrir o rosto no trabalho pedagógico surgiu

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quandoCopeau tentou, um dia, solucionar o problema de uma aluna que não conseguia expressar os sentimentos de sua personagem em cena. Cobriu o rosto dela com um pano e o resultado foi positivo: a aluna relaxou e imediatamente expressou com o corpo todo o que lhe havia sido solicitado (CHANCEREL, 1944) . Copeau resolveu então incluir esse recurso na formação dos alunos. Passou do pano a uma máscara que chamou de “nobre”.

Chancerel (colaborador de Copeau) relata uma seqüência de exercí-cios com a máscara neutra: 1° Tomar posição. – O jogador (...), deve se estabelecer, seus pés se apoiando solidamente no chão – se enraizar. Ele deve se sentir bem à vontade, livre dos seus movimentos, de ataque . 2° Colocar a máscara.- Segura-se a máscara com a mão esquerda, pelo queixo, a outra mão segurando o elástico, posicionado mais ou menos na altura das têmporas, que manterá a máscara no rosto.

Primeiro tempo: veste-se a máscara como um chapéu, o elástico se encontrando na altura da nuca. Segundo tempo, baixa-se a máscara sobre o rosto. Executar esses dois tempos sem hesitação.3º Relaxamento - Uma vez mascarado, o ator deve se abandonar, se deixar, tornar-se ‘disponível’, pronto para receber nele o personagem que ele vai agir: uma espécie de pele dócil que espera seu hóspede. Os músculos devem estar flexíveis, relaxados, o espírito vazio, livre.(...). 4° Nascimento da máscara. – A máscara toma consciência da sua existência. Jogo dos músculos do pescoço. Levantar a cabeça. Olhar. À direita. À esquerda. Olhar suas mãos. Seus pés. Se levantar. Andar.

Esse exercício elementar deve se manter elementar e ser muito curto. Não se trata de nada além de constatar as possibilidades de vida em si de uma criatura que não é você, de obedecer às suas instigações à medida que ela descobre as leis da sua própria existência, suas possibilidades, antes de cair na inconsciência”(CHANCEREL, 1944) .

Com esses exercícios, pretendiam chegar ao corpo neutro, ao corpo descontraído. Seria um ponto de partida: o estado de calma, de repouso. Para ser neutro, o corpo teria que alcançar a despersonalização: seria uma forma de desnudamento que prepararia o ator para uma arte mais objetiva, seus movimentos seriam exigidos por essa máscara que subs-titui sua personalidade.

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Os outros exercícios que realizavam com a máscara eram os seguintes: familiarização com a máscara neutra; exercícios de mimo alegórico; simbolizar as formas plásticas: árvores, pontes (figuração ou técnicas mímicas); imitação das atividades e sentimentos humanos (figuração ou técnicas mímicas); imitar animais, estudo do comportamento dos animais (figuração ou tecnicas mímica); criação de pequenas cenas. No que diz respeito à metodologia de ensino, Copeau propôs a cópia do real e não a cópia do modelo. Para imitar animais, iam em zoológicos observá-los, desenhavam o que era observado, para depois representá-los com o corpo em movimento. Era uma estratégia para fugir dos clichês e da afetação. O aluno espectador deveria poder tirar, ele mesmo, indicações do que via , dos graus de inclinação da máscara, da direção do olhar. Segundo Chancerel (CHANCEREL, 1944) , a máscara contribui para combater no ator aprendiz sua tendência a gesticular; exige um grande domínio corporal, exige que todo o corpo atue. De acordo com Marinis (1995) , a práti-ca com a máscara neutra em Copeau contribuiu para ultrapassar a convenção pantomímica do gesto que traduz as palavras; desenvolver as qualidades dinâ-micas do movimento, ritmo e intensidade; utilizar o princípio da independência articular e muscular do corpo; trabalharo princípio do raccourci: princípio da condensação da idéia, do espaço e do tempo; incentivar o aluno a ser autor do roteiro executado.

Jacques Lecoq

Dentre outros, Lecoq estudou com Jean Dasté (que foi aluno de Cope-au), com quem aprendeu o trabalho sobre a máscara neutra. Desenvolveu uma escola em Paris, para a formação de atores, na qual a prática com a máscara neutra é um dos pilares pedagógicos. Segundo Lecoq, o corpo na neutralidade está em estado de alerta, de suspensão. Estar na neutralidade é se apresentaràs situações nas quais a gente se encontra em estado de calma, sem conflitos pre-liminares, nem idéias à priori. Estar disponível ao acontecimento, um pouco espantado, olhar de uma maneira ingênua, pronto para descobrir. O estado neutro suscita economia de movimentos (LECOQ, 1988 ).

Uma das regras ensinada por Lecoq é não deixar a máscara virada com o nariz para o chão, tocando no chão. Diz que essa posição é sinal de morte (LECOQ, 1988 ). Nota-se aqui uma sacralização da máscara, um respeito a algo misterioso escondido nesse objeto .

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Com relação à máscara neutra, os exercícios ensinados são: descoberta da máscara: experimentar a máscara, tocar, dizer o que sentiu; 1o tema peda-gógico – o despertar: como a máscara se acorda pela primeira vez; 2o tema pedagógico: o adeus do navio; 3o tema – a viagem elementar pela natureza: trata-se de uma viagem onde o aluno anda, corre, escala, salta por uma natureza calma, neutra, em equilíbrio; identificar-se com a natureza: o aluno torna-se os quatro elementos (água , terra, fogo, ar), torna-se diferentes matérias tais como madeira, papel, papelão, metal, líquidos; o método das transferências: tomam apoio nas identificações e transferem essas qualidades para a natureza humana. Quando Lecoq ensinava ele não dava muitas explicações aos alunos no início da aprendizagem. Preferia que descobrissem, eles mesmos, os recursos da máscara.

Eldredge/ Huston

Sears A. Eldredge e Hollis Huston são professores em universidades dos EUA. Em seus estudos, eles constataram que a definição de neutralidade varia de pedagogo para pedagogo e que existem diversos tipos de máscaras neutras. Eldredge diz que “os estilos de esculpi-las variam de acordo com a quantidade de personalidade considerada adequada para a máscara”(ELDREDGE - HUS-TON, 1978 ). Em suas aulas, Eldredge ensina o seguinte:

- A contemplação da máscara. Trabalha com uma máscara de papel, só com buracos para os olhos e uma forma de cone para o nariz. Não há identificação de boca. A vantagem dessa máscara, segundo Eldredge, é que ela é mais abstrata, significasimplesmente face humana. Os alunos observam e depois falam sobre as características da máscara: +verificam que ela é simétrica, não tem boca, não tem traços de personagem nem de emoção, não tem definição de gênero;- Análise do movimento pessoal de cada aluno;- Exercícios sobre o corpo neutro: levantar, andar, sentar;- Exercícios sobre “a mente neutra”: descobrindo o objeto pela pri-meira vez.

Com relação à metodologia de ensino, Eldredge discute a neutralidade a partir da resposta dos alunos à contemplação da máscara.

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Elisabeth Pereira Lopes

Autora da tese “A máscara e a formação do ator”(1990 ). Lopes em sua pesquisa, Lopes descreve e avalia a eficácia da máscara na formação do ator, passando pela máscara neutra e abordando outras máscaras. Ela informa que no período em que estudou o trabalho com a máscara na França, passou por experiências de transe e que voltando para o Brasil, ao ensinar o trabalho com máscaras, constatou que seus alunos também entravam em transe (experiências de eliminação da identidade, momentos em que a máscara “toma conta do corpo e da voz do ator” (1990 )). Intrigada com o que ocorria, decidiu investigar o fenômeno. Fez uma pesquisa bibliográfica, entrando em contato com trabalhos de antropólogos que estudaram “o fenômeno do transe religioso com máscaras em sociedades não complexas”. Com as conclusões daqueles antropólogos sobre aquele fenômeno, a autora afirma que esclareceu o fenômeno que ocorria em sua sala de aula, no curso de teatro da Unicamp. De acordo com esse processo metodológico, a autora chegou às seguintes conclusões, dentre outras: em todo tipo de máscara, realista ou abstrata, existe um conteúdo sobrenatural associado à idéia do outro – o animal, o mito, o espírito; no trabalho com a máscara, um outro vai manifestar-se no corpo do ator se este não criar resistências emocionais durante o trabalho (LOPES, 1990 ).

A prática com a máscara neutra no Brasil: o grupo Moitará

Essa parte do trabalho consiste em uma breve descrição da oficina “o jogo da máscara”, ministrada pelo grupo de teatro Moitará5 , em maio de 2000, durante o Festival Internacional de Londrina, na qual participei como aluna. Nessa oficina o ensino estava calcado em três tipos de trabalho: segmentações, ações (práticas corporais sem máscaras), e máscaras (neutra e expressiva). Me detenho mais especificamente no trabalho com a máscara neutra, objeto de minha investigação. Os exercícios ensinados com a máscara neutra foram os seguintes:

-o ponto fixo: partir do ponto zero (posição que consiste em ficar de pé, com os pés paralelos e alinhados na linha dos quadris, cabeça ligeiramente inclinada para um ponto na frente/ nível baixo), ao sinal (nota musical produzida por um diapasão) olhar para um ponto à frente no nível médio, abrindo

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bem os olhos e transferindo, ao mesmo tempo, o peso do corpo para a região do metatarso. Afastar ligeiramente os braços do tronco. Esse lugar é chamado de ponto fixo. Depois, voltar para o ponto zero.- ir do ponto zero ao ponto fixo e seguí-lo em seu giro de 180o ;- ir do ponto zero ao ponto fixo e dar um passo à frente; - ir do ponto zero ao ponto fixo seguí-lo no seu giro de 360o ;- o despertar da máscara;- roteiro de ações mais complexo;- Triangulação/ assunto: ir do ponto zero ao ponto fixo/ dar uma volta de 180o / olhar a platéia/ olhar o objeto (cadeira)/ dar um passo em direção ao objeto/ olhar a platéia/ olhar o objeto/ subir na cadeira/ olhar a pla-téia/ olhar o ponto fixo/ dar uma volta de 180o / retornar ao ponto zero.

Os alunos foram ensinados a realizar o primeiro contato com a máscara sentados e de costas para a platéia. Deveriam, a princípio, se relacionar com o objeto (havia duas máscaras no chão, sobre um tecido, e pedaços de espuma à disposição para acertar a máscara no rosto): tocá-lo, olhá-lo, experimentá-lo, verificar qual das duas máscaras serviria melhor, experimentar com uma espuma no rosto. Depois disso, deveriam recolocar a máscara no chão, dar uma pausa, colocar o corpo em estado de repouso e então, colocar a máscara sobre a face. Deveriam pegá-la pelas laterais. O corpo na neutralidade está em uma postura anatomicamente alinhada, move-se de forma simétrica, equilibrada, precisa agir com uma força superior à utilizada no cotidiano, em tempo lento, o olhar deve ir de um ponto a outro de forma direta, sem vacilar, é necessário pôr pausas entre a chegada do olhar num ponto e a partida para outro ponto, as pausas não devem extrapolar três segundos. Apresento, a seguir, um resumo das idéias que foram veiculada oral-mente:

- a neutralidade não tem nem futuro nem passado, não tem memória, tudo é novo e importante para ela;- a máscara neutra desenvolve os sentidos que estavam impedidos pelo racional;- a máscara se relaciona com o aqui e agora, cria um estado de calma e percepção;- esse é um trabalho que busca a presença do ator; todo o corpo está em ação;

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- abandonar a gestualidade cotidiana é atingir a despersonalização;- O método de ensino do grupo incluía:- a máscara neutra não é nem alegre nem triste; - a máscara deve estar sempre pronta para partir;

Explicação oral: antes ou depois dos exercícios os ministrantes realizam explicações orais sobre o que deve ser feito, colocando as regras do trabalho. Também passam uma teoria sobre o trabalho com a máscara, oralmente:Demonstração técnica: antes dos exercício, geralmente a atriz Erika Rettl rea-lizava uma demonstração técnica do trabalho; Correções no corpo do aluno: através do toque, os orientadores posi-cionavam melhor o braço do aluno, a bacia, colocavam o corpo no eixo, etc... Os ministrantes da oficina faziam avaliações orais após o exercício de cada aluno, explicando o que havia funcionado ou não no seu trabalho.

Através da prática com a máscara neutra no grupo Moitará, os alunos aprendem o seguinte: ter consciência corporal; ter contrôle corporal ( dominar a posição fundamental/ engajar o corpo como um todo na ação/ tonificar o corpo como um todo/ eliminar tensões/ controlar a direção do olhar/ pontuarSuma ação com a pausa, fazendo com que a ação tenha co-meço, meio e fim/ controlar sua respiração); trabalhar espontaneamente; ampliar a condição para observar e analisar o movimento; valorizar a percepção.

Crítica de resultado - Sobre o que se ensina e com que objetivosAs regras1. O ritual para colocar a máscara.

Os rituais estabelecidos são semelhantes no Grupo Moitará e em Copeau. Institui-se um caminho uniformizado, um ritual que propicia a concentração do aluno, a passagem de um tempo cotidiano ao “tempo da máscara”; uma mudança de tônus, de respiração;2. Em cena, não tocar a máscara com a mão.

Regra colocada pelos ministrantes do grupo Moitará.3. Não falar sob a máscara.

Segundo os ministrantes do Grupo Moitará, se o aluno falar sob a máscara sua voz não será projetada, irá sujar a máscara, estragá-la. Disseram ainda que isto seria anti-higiênico, visto que depois outro aluno iria utilizá-la.

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A marcação dessas regras foi constituindo um clima de respeito em relação à máscara, um respeito que ultrapassava a materialidade do objeto. Estávamos aprendendo a respeitar um objeto de forma quase sagrada, não no sentido religioso, mas por envolver algum mistério;4. Não se aproximar da platéia.

para o chão.regra presente no trabalho de Lecoq. Ele afirma que a máscara virada com o

nariz para o chão ou, tocando o chão, é sinal de morte.Uma regra funcional, presente no ensino do Grupo Moitará, para que a

platéia tenha uma boa visibilidade do jogo.1. Não tocar com a face da máscara no chão.

Não houve explicação para a regra no curso em Londrina. Verifiquei que é uma regra presente no trabalho de Lecoq. Ele afirma que uma mascara com o nariz virado, ou tocando o chão segnifica morte.

Os exercícios descritos por Chancerel (colaborador de Copeau), tais como direcionar o olhar, levantar, andar, em um estado de calma, guardam alguma semelhança com os exercícios propostos pelo grupo Moitará. Já os outros exercícios de figuração que eram feitos com máscara neutra na escola do Vieux-Colombier não têm nenhuma semelhança com a proposta do grupo Moitará. Assim, também os objetivos alcançados acabam sendo diferentes. Copeau, ao trabalhar com a figuração, leva o aluno a dominar a variação dinâ-mica do movimento.

A noção de neutralidade e despersonalização

Como explicitei anteriormente, Eldredge verificou que existem va-riações com relação ao conceito de neutralidade, que o “neutro” é uma cons-trução intelectual e imaginária. Essa verificação nos permite afirmar que no Grupo Moitará, o que foi ensinado através da demonstração das atrizes como “a neutralidade” era “uma forma particular de se movimentar”, um padrão de mo-vimento desenvolvido no grupo. Estávamos aprendendo uma técnica corporal, mais especificamente, uma técnica corporal extra-cotidiana, pessoal. É uma téc-nica corporal por ser uma forma particular de utilizar o corpo; é extra-cotidiana porque necessita de uma aprendizagem mais ou menos formal; e pessoal por não ser feita pra ser vista, faz parte do treinamento do ator (VOLLI, 1985) .

O conceito de despersonalização está relacionado ao conceito de neu-tralidade. São como duas faces da mesma moeda: para chegar a outro padrão

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de movimento (a neutralidade) eu preciso deixar de lado a minha maneira cotidiana de agir (a despersonalização). O conceito de despersonalização tinha o seguinte sentido, no grupo Moitará: “abandonar a gestualidade cotidiana é atingir a despersonalização”. Em nenhum momento o conceito foi remetido à “possessão pelo outro” como propõe Lopes. Constatei que o grupo Moitará utiliza esse conceito no mesmo sentido que foi utilizado por Dullin (colaborador de Copeau). Ele afirmava que “despersonalizar” é mover-se sem seus tiques habituais, sem suas manias, tratando de compor os movimentos do exterior (DULLIN, 1946).

A noção de percepção.

Seria possível se relacionar com as coisas e os outros somente com os senti dos, sem pensar, como estava sendo proposta na oficina em Londrina? Isto é possível simultaneamente à aprendizagem da técnica? Recorri à psicologia científica como instrumento, a fim de elucidar o fenômeno. Constatei que o fenômeno da percepção é um fenômeno psicológico primário, acontece conosco.

Na percepção, estamos pura e simplesmente na contemplação do objeto, não há reflexão, noslimitamos em destacar uma forma sobre um fundo (...) esse modo irreflexivo é mais comum em crianças com menos de um mês de vida ou em casos de crise de esquizofrenia, onde a pessoa é levada pelos objetos que percebe, não pensa no que está fazendo. (...), não há como reco-nhecer uma personalidade estruturada numa pessoa absorvida nesse modo de relação com o mundo” (FRANCISCO, 1996).

Feito esse esclarecimento, fica evidente que não é possível uma pessoa, com sua personalidade estruturada, perceber (as coisas e os outros), sem pensar, durante os vários minutos que pode durar um exercício com a máscara neutra e tendo que organizar seus movimentos de acordo com regras precisas, como por exemplo: não ficar mais que três segundos em relação com o objeto. Ter que respeitar regras já é pensar. esse trabalho com a máscara neutra, podemos ter momentos de percepção sem reflexão, mas esses momentos são curtos visto que temos que estar atentos às regras que estamos aprendendo. O que seria possível é estar em relação com o objeto sem o posicionamento do eu para a consciência. Nesse caso, estaremos em uma relação espontânea com os

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objetos, o que não significa que não exista reflexão. O nome científico desse tipo de relação é consciência reflexiva espontânea. Constatei que essa questão está presente na pedagogia de Copeau: ele aborda o martírio do ator quando esse se ouve falar, se vê atuando, se julga.

O que é possível no trabalho com a máscara neutra, portanto, é construir uma figura neutra, que se relaciona com os objetos “como se” não tivesse nem passado nem futuro, “como se” não tivesse cultura. Essa figura neutra é uma construção a partir de uma idéia de neutro, de um padrão de movimento que buscamos e que chamamos de neutro. Com relação ao que foi ensinado no curso em Londrina, seria somente depois de o aluno dominar essa forma particular de se movimentar que ele poderia trabalhar sem o posicionamento do eu para a consciência, pois só depois de dominada uma técnica é que conseguimos nos mover na espontaneidade.

Sobre como se ensina demonstração técnica

Na oficina oferecida pelo grupo Moitará, geralmente uma das atrizes realizavauma demonstração antes de os alunos executarem cada exercício. A demonstração funcionava, inevitavelmente, de modelo aos alunos. Esse método difere do método proposto por Copeau, já que ele prescrevia a cópia do real e não a cópia do modelo.

Direção expressa/ direção tácita.

Constatei a presença dos dois tipos de orientação no trabalho realizado pelo grupo Moitará. A primeira é a “direção expressa”: aquela em que o orien-tador diz ao aluno o que ele tem que fazer expressamente, detalhadamente. O outro tipo de orientação que verifiquei foi a “direção tácita” (ou implícita). Seguem alguns exemplos de “direção tácita”: “acorde como se fosse pela pri-meira vez”; “siga seus impulsos”; “deixe que a máscara conduza você”. Nesses casos os limites não estão claros. Não fica evidente para o aluno o que ele deve fazer exatamente. A orientação tácita sempre oferece uma abertura, permite a ultrapassagem de regras. Verifiquei que esse tipo de orientação torna-se com-plicado no trabalho com iniciantes na técnica, visto que um aprendiz não tem condições de ultrapassar o que ainda não domina.

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A avaliação do aluno

Identifiquei nas avaliações feitas pelos ministrantes do grupo Moitará momentos em que fazem avaliações objetivas e outros momentos em que a avaliação é subjetiva. São exemplos de avaliação objetiva: “as oposições estão bem pre-sentes”; “às vezes a cabeça finalizou o movimento e o corpo ainda não, falta precisão”.2 Nessas avaliações, o ministrante está informando o que o aluno fez, mostrando quando ele realizou bem o exercício e quando não o fez. Constatei um exemplo de avaliação subjetiva quando o ministrante corrigiu um aluno que fez uma inclinação de cabeça: isto, “inconscientemente, é um estereótipo de doçura”3 . Há aqui uma interpretação do movimento por parte do ministrante. O movimento que o aluno faz é interpretado como revelação de algo que está oculto, que está em outro lugar, em uma suposta interioridade do aluno. Uma das conseqüências da avaliação subjetiva é que o aluno pode ficar confuso: o

Considerações finais

Nas considerações finais, foi possível constatar que o trabalho com a máscara o professor está avaliando o que ele traz inconscientemente ou o seu trabalho concreto, para verificar se está de acordo com o padrão de neutrali-dade? É possível que o aluno nem aprenda, se ficar preocupado com a doçura estereotipada que o professor diz que ele tem inconscientemente. neutra pos-sibilita uma formação fundamental ao ator, porque ensina ao aluno um tipo de postura, de movimento e de relação deste com as coisas e os outros e que é suporte para qualquer construção de movimento, de personagem, de relação na cena. A neutralidade é um ponto de partida. Verifiquei ainda que não há uma única forma de trabalhar com a más-cara neutra, mas várias. Com as diferenças metodológicas também se alcança objetivos diferentes. Não há “um único” corpo neutro. O corpo que chamamos de neutro é um padrão construído a partir de certos princípios. Pude constatar também que o trabalho com a máscara neutra não forma corporalmente apenas, mas prevê um engajamento específico da consciência. Com essa técnica, além de formar corporalmente o ator e de engajar a consciên-

2 FONSECA, Venício. Londrina. Transcrição de aula gravada em 31/05/2000. 3 FONSECA, Venício. Londrina. Transcrição de aula gravada em 31/05/2000.

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cia, Copeau também preocupava-se em formar o “ator-sujeito”. Além disso, a prática proporciona o conhecimento da relação eu/personagem. Constatei por último que a maioria dos pedagogos sacralizam a máscara.Com base nessas considerações, levantei questões que merecem ser investi-gadas:1. Se é possível trabalhar com e sem a sacralização da máscara, qual a função dessa variável no processo de ensino/ aprendizagem da máscara neutra na formação do ator?2. Quais as conseqüências das seguintes proposições metodológicas para a formação do ator: expor regras sem explicar sua necessidade; solicitar que os alunos espectadores observem o trabalho do colega e façam uma avaliação objetiva; fazer uma avaliação subjetiva; fazer uma avaliação objetiva; ensinar com demonstração técnica, propondo a cópia do modelo; ensinar sem demons-tração técnica? Finalmente, termino a pesquisa esboçando algumas respostas provisó-rias:Encontrar junto com o aluno a neutralidade. Aponto como interessante a proposta metodológica de Eldredge: os alunos contemplam a máscara, falam sobre suas características, realizam com a máscara, ações simples. Observam e falam a respeito, procurando estabelecer o que seria uma movimentação tão neutra quanto aquela máscara. Digo que essa proposta é interessante porque viabiliza o aluno-ator- sujeito, sujeito na onstrução do novo padrão de movimento. Com demonstração técnica, seria mais coerente utilizar a direção expressa. Se utilizamos demonstração técnica, é importante conhecer que isso funciona como modelo para o aluno. É preferível esclarecê-lo de que essa é uma maneira de entender a neutralidade, que esse padrão de movimento foi construído. Sugiro ainda que se explicite o caminho que se fez para chegar no padrão. Porque no início o aluno vai aprender uma técnica, seria mais produtivo ser orientado apenas com direção expressa. Depois de dominada a técnica, po-deria ser orientado com direção tácita, porque o aluno já teria o que ultrapassar. Evitar o ensino formal de regras/ propiciar a avaliação objetiva. Se uma regra é ensinada sem explicação, o aluno respeita a regra em termos de certo/errado. Não há uma necessidade concreta do trabalho sustentando essa regra. Proponho que o professor aproveite a ocasião em que um aluno tenha tocado com a mão na máscara por exemplo, e pergunte aos alunos-espectadores:

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Bibliografia

COPEAU, Jacques. 1974. Registres I; Appels. Paris: Gallimard, 1974. 1993. Registres V; Les Registres du Vieux-Colombier III, 1919-1924. Paris: Gallimard.CHANCEREL, Léon. 1944. Le masque (deuxième cahier). Prospero II. Paris: La Hutte, pp. 13-29.DULLIN, Charles. 1946. Souvenirs et notes de travail d’un acteur. Paris: Odette Lieuter.ELDREDGE, Sears A.; HUSTON, Hollis W. 1978. Actor training in the neutral mask. Drama Review, New York, v.22, n. 4, pp. 19-28, dec. FRANCISCO, Paulo Roberto. 1996. Psicologia: Ciência e objeto. In: BERTOLINO, PEDRO et. Al. A Personalidade: Cadernos de formação. Florianópolis: Nuca Ed. Independentes.LOPES, Elisabeth Pereira.1990. A máscara e a formação do ator. Tese (doutorado) Universidade de Campinas, Campinas (SP).LECOQ, Jacques. 1988. Rôle du masque dans la formation de l’acteur. In: ASLAN, Odette. Le masque. Du rite au théâtre.Paris: Centre national de la Recher-che Scientifique.MARINIS, Marco de. 1995. Copeau, Decroux et la naissance du mime corporel. Bouffonneries: Copeau l’éveilleur. “La cerisaie”/ Lectoure: Bouffon-neries, n. 34, pp. 127-143, 1995.VOLLI, Ugo. 1985. Techniques du corps. In: BARBA, Eugênio; SAVARESE, Nico-la. Anatomie de l’acteur:Un dictionnaire d’anthopologie théâtrale. Domaine de Lestanière: Bouffonneries Contrastes, pp. 113-123.

que efeito isso tem? Aprenderiam a falar do trabalho objetivamente, vendo as conseqüências para o espectador. Proponho que se aproveite a observação dos alunos-espectadores para o ensino de outras questões. Após um exercí-cio, o professor poderia perguntar à platéia, por exemplo: quando um aluno movimenta-se de forma mais lenta, que efeito isso tem? E se fizer mais rápido, o que muda? Estaria assim evitando a interpretação sobre o que se passa na cabeça do aluno-ator, propiciando uma avaliação objetiva.

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Buscando uma interação teatral poética e dialógica com comunidades

Marcia Pompeo NogueiraUniversidade do Estado de Santa Catarina

A prática de interação com comunidades através do teatro não é nova, entretanto pude constatar que ela vem acontecendo com mais freqüência em outros países do chamado terceiro mundo do que no Brasil. O que é mais sur-preendente é que a principal fundamentação teórica destas práticas é baseada no trabalho de dois brasileiros: Paulo Freire e Augusto Boal. Os trabalhos que pude pesquisar no meu doutorado1 , através de pesquisa de campo e bibliográfica, enquadram-se na abordagem dialógica do teatro para o desenvolvimento. Eles visam ao fortalecimento de comunidades, contribuindo enquanto um meio de comunicação entre diferentes setores da comunidade e enquanto forma de identificação e solução de problemas. Trata-se de um teatro que envolve a comunidade em todo o processo teatral, incluindo a criação do texto e representação que são baseadas em proble-mas apontados pelos participantes. O método de abordagem das comunidades é baseado no respeito ao conhecimento e às formas de expressão da cultura local. Este método foi sendo desenvolvido e aprimorado através de intercâmbios entre facilitadores que tomaram parte em oficinas e conferência internacionais muito freqüentes nos anos oitenta principalmente no continente Africano. Estes encontros envolviam discussões e prática teatral em uma comunidade local. Para sistematizar o método dialógico de teatro para o desenvolvi-mento, decidi focar, entre diversas fontes bibliográficas, em dois workshops que aconteceram na África nos anos 80, um no Zimbabwe, outro na Nigéria. Ambos são fundamentados nos princípios educacionais de Paulo Freire, e são profundamente influenciados por Augusto Boal. O processo de interação com a comunidade, segundo este método, envolve cinco etapas, desde a identificação do problema até a apresentação final:

1 Doutorado feito na Universidade de Exeter e concluído em junho de 2002.

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1. Preparação para a interação com a comunidade

Inicialmente, o grupo contata a comunidade, pedindo autorização para o trabalho acontecer. Em seguida, o grupo de facilitadores cria um repertório comum, antes de ir para a prática. Seu papel deixa de ser o do especialista, do profissional que vem com um projeto pronto, e passa a ser o de alguém que vai coordenar um processo aberto para as contribuições dos membros da comunida-de. O facilitador faz perguntas no lugar de dar respostas. Encoraja membros da comunidade para por suas idéias em prática. Ajuda a manter o foco no problema como forma de ajudar na sua solução. Abre espaço para diferentes setores da comunidade para apresentar seus pontos de vista. Garante a democracia dentro do processo.

2. Identificação do conteúdo

No primeiro momento na comunidade, a atenção está voltada para con-hecer as pessoas e se inteirar do que acontece lá. Trata-se de uma aprendizagem gradual. No workshop do Zimbabwe os facilitadores se prepararam para atuar da seguinte maneira:

• Dando informações e consultado as lideranças locais;• Adotando as formas locais de cumprimento;• Apresentando-se, falando de sua experiência, assim o processo de conhe-

cimento é duplo, e não um interrogatório deles;• Explicando sua proposta e a natureza do trabalho que se pretendia desen-

volver, de forma que entendessem porque este grupo de fora estava lá e para motivá-los a participar;

• Falando com as pessoas numa situação de igualdade e mostrando interesse genuíno no que eles diziam;

• Batendo papo informalmente e não entrevistando formalmente;• Encorajando a troca de músicas, danças para se criar uma relação de par-

ticipação;• Descobrindo qual é a experiência da comunidade;• Sendo consciente da presença deles lá;• Sabendo que os dois lados aprendem com a experiência (Kidd 1984:18).

Os facilitadores se dividiram em pares que passearam pela comunidade,

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conversando com as pessoas, visitando as instituições e convidando as pessoas para uma reunião. Isto permitiu um contato não apenas com as pessoas mais articuladas, o que ajudou a formar uma visão mais abrangente da comunidade.

3. Reunião com as pessoas da comunidade

As reuniões geralmente se iniciam com troca de músicas e danças entre os facilitadores e as pessoas da comunidade. Isto representa um reco-nhecimento de que ambos possuem cultura e conhecimento, ajuda a quebrar as barreiras entre os dois lados, e representa um novo meio de conhecer um ao outro. Este processo é descrito da seguinte forma por Steve Oga Abah:

A tradição de narrativas orais, músicas e danças são formas comunitá-rias que enfatizam e realmente revelam a ética e os costumes da vida na comunidade e sua orientação coletiva na forma que lidam com os assun-tos da comunidade. Os animadores viram e se identificaram com esta abordagem. O grupo trocou músicas, dançou, e sentaram para beber e comer com as pessoas da comunidade. Dessa forma, os animadores quebraram barreiras e se integraram com a comunidade. Isto abriu ca-minho para uma pesquisa efetiva com a comunidade (Abah, 1997: 33).

Depois de algum tempo compartilhando músicas, os facilitadores explicam a proposta de trabalho. Durante o workshop no Zimbabwe, os fa-cilitadores apresentaram os objetivos e em seguida dividiram a comunidade em grupos para identificar os problemas que a comunidade queria entender e buscar soluções. O passo seguinte é o isolamento de um problema maior. Como não é possível endereçar toda a informação adquirida no campo e na discussão, é im-portante selecionar a principal preocupação para servir de base para o processo teatral. É requerido das pessoas da comunidade que selecionem o problema que mais os aflige. O facilitador coordena o processo de decisão, ajudando a manter o foco e garantindo a democracia nos processos de decisão.No final das discussões em grupo, todos se juntam novamente, comentando aspectos da discussão em grupo, organizando a continuidade das atividades, e terminando novamente com uma nova troca de músicas.

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4. Dramatizando os problemas

A dramatização é proposta enquanto um processo de aprendizagem acessível a qualquer grupo. Permite uma combinação de análise e dramatização que pode ajudar a tornar certas discussões mais concretas. Improvisando, crian-do imagens, assumindo papéis permite um olhar diferente sobre a realidade. Enquanto se faz e refaz uma dramatização, os participantes podem focar em detalhes, prestar atenção em diferentes lados das relações. A dramatização tam-bém pode ajudar a identificar as causas subjacentes dos problemas, e as razões delas permanecem sem solução. Permite também que diferentes estratégias de solução sejam tentadas. A apresentação dos problemas num palco ajuda a deixá-los mais concretos, o que pode ajudar na organização da comunidade para solucioná-lo. O fato de que todos estes problemas são encaminhados pelas pessoas envolvidas ajuda a dar confiança, a fortalecer o grupo, a aumentar a auto-estima dos participantes. Os moradores da comunidade controlam o pro-cesso como um todo. Existem diferentes abordagens em relação ao uso do teatro como parte deste processo, mas as influências das técnicas de Augusto Boal são marcantes, em especial as do teatro fórum.

5. Continuidade depois do workshop (follow up)

A abordagem dialógica do teatro para o desenvolvimento objetiva que o processo seja sustentável pelos moradores da comunidade, sempre enfatizando a autoria do processo. Entretanto, isto não é atingido facilmente. Anos de do-minação não podem ser transformados do dia para noite. Depois do workshop a comunidade enfrenta a realidade novamente e não é sempre possível por em prática as alternativas imaginadas no workshop. Em vista disto, é fundamental a continuidade da interação com a comunidade depois do workshop. O retorno à comunidade é fundamental para a criação de mudanças que possam perpetuar na comunidade, bem como a vinculação do projeto teatral com outros projetos e organizações que atuam na comunidade.

O contexto do trabalho de Ratones

A abordagem dialógica trouxe muitas contribuições em termos de mé-todos de interação com comunidades oprimidas, contribuindo para fortalecer

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comunidades. Entretanto, olhando sob outro ponto de vista, não estaria o teatro dialógico assumindo uma forma muito discursiva? Para discutir esta questão, gostaria de apresentar, enquanto paralelo, uma prática teatral que desenvolvi na comunidade de Ratones, sul do Brasil. Observar as semelhanças e as diferenças entre as duas práticas é parte de uma avaliação pessoal necessária para a definição de meu trabalho futuro, mas que espero possa também trazer novas idéias para a prática na área. Nosso teatro em comunidade surgiu como resposta a um grupo de jovens de Ratones que veio para a universidade para fazer uma apresentação teatral. Ficamos encantados pela vitalidade e coragem do grupo de se apre-sentar por conta própria para uma audiência universitária, mas chocados pelo fato de que a apresentação se limitava a cópias de programas humorísticos da televisão. Em conjunto com um grupo de alunos da universidade, fizemos um projeto para trabalhar com este grupo, objetivando a facilitação de uma prática teatral baseada em histórias próximas da realidade e cultura da comunidade. Esta prática se tornou, entre 1991 e 1998, um campo de estágio para diversos alunos da Universidade do Estado de Santa Catarina e, para mim, um campo de trabalho que me energizou e me ensinou muitíssimo. Ratones é uma pequena comunidade que fica no interior da ilha de Santa Catarina, em Florianópolis. Até uns cinqüenta anos atrás, era uma comunidade rural, auto-suficiente, que tinha uma clara identidade cultural. Neste tempo, para ir à ao centro de Florianópolis se tomava um dia inteiro. Não existiam escolas em Ratones. Hoje, a produção agrícola sofre duramente com a concorrência da agricultura industrializada e da falta de terras para se plantar, já que a maioria das terras foi vendida, às vezes para se comprar apenas uma geladeira. A maio-ria dos habitantes deixa a comunidade diariamente para trabalhar na cidade. Ratones está hoje conectada ao centro de Florianópolis por uma linha regular de ônibus. Existe uma escola municipal de primeiro grau, local onde nosso trabalho costumava acontecer, muitas igrejas, lojinhas e bares. A identidade cultural se enfraqueceu. O grupo de jovens com quem trabalhamos costumava reclamar que: ‘nada acontece em Ratones!’ Talvez por causa disto nós tenhamos conseguido manter o trabalho de teatro por oito anos, sempre com um alto nível de energia e comprometimento dos adolescentes que costumavam esperar ansiosamente pelo nosso workshop semanal, mesmo que nossos encontros acontecessem na hora das novelas mais populares da televisão.

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2 Sobre o processo de criação de País dos Urubus ver Nogueira, M.P. “Teatro na Edu-cação: uma Proposta de Superação da Dicotomia entre Processo e Produto”. 3 Esta proposta de desenho dos caminhos da comunidade é parte do método de trabalho de Ili Krugli, veja Nogueira, 1993. 4 Do texo ‘País dos Urubus’. Criado a partir da gravação de apresentações improvisadas. 5 Ver Nogueira, M.P. ‘Community Theatre in Florianópolis’.

Nosso grupo, Sonho de Criança, era formado por cerca de trinta pessoas com idades variando entre quatro e vinte anos. Juntos criamos três peças que resultaram de processos longos de um ano e meio cada, incluindo as apresen-tações. País dos Urubus2 foi criada em 1991 como parte de nosso processo de conhecer o grupo e a comunidade. Depois de trocarmos músicas e danças de roda, pedimos a eles que desenhassem os caminhos da comunidade, e para nos contarem histórias de mentira e de verdade que aconteceram nestes caminhos3 . Entre as imagens que desenharam e as histórias que contaram, escolhemos a imagem do País dos Urubus para ser desenvolvida em nosso processo teatral. A imagem surgiu como uma história de mentira identificada como parte dos caminhos de Ratones. Para mim, e para o grupo de universitários que tomaram parte do projeto, esta imagem foi selecionada por seu potencial simbólico. Para o grupo de adolescentes, era divertido imaginar um país de urubus. Como era este país? Quem teria poder nele? Como era a vida das pessoas que lá viviam? O país criado era muito corrupto. O objetivo do ministro da educação era: “ensinar as crianças a não tomar banho, a falar palavrões, a fazer grafite, a preservar a sujeira, a poluir, não limpar os banheiros deixando sempre aquele cheirinho gostoso…”4 . A principal contradição deste país era que, apesar de sua cultura poluidora, os urubus necessitavam água bem limpa para beber. Para garantir que os representantes do poder tivessem estoque de carniça suficiente, costumavam raptar a prender os idosos. A peça se desenvolveu em torno da história de uma criança com poderes mágicos, que tentava salvar seus avós de serem capturados e presos pela polícia, de forma a virar comida da elite de urubus. A segunda peça criada coletivamente foi História do Não Sei5 . Não Sei era um personagem que emergiu em um workshop e nos impressionou por suas possibilidades simbólicas. Para desenvolver o significado deste personagem,

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6 As três comunidades eram: Morro do Mocotó, uma favela próxima do centro de Flo-rianópolis formada em sua maioria por moradores negros; Coloninha, uma comunidade mais recente feita de pessoas que vieram para capital fugindo do campo por causa dos efeitos da mecanização do campo; e Ratones. 7 O Mapa da vida é uma atividade que integra o método de Ilo Krugli. Ilo Krugli é um diretor teatral que influenciou profundamente meu trabalho. Seu trabalho foi o foco de minha dissertação de mestrado: Teatro com Meninos de Rua. Este mestrado foi concluído na Escola de Comunicações e Artes da USP.

organizamos workshops em três diferentes comunidades6 . Pedimos aos partici-pantes que dessem forma ao Não Sei usando folhas de jornal, e para desenvolver seu mapa da vida7 , feito a partir de desenhos da vida do personagem antes de nascer, seu presente - incluindo seus sonhos - e seu futuro. Muitos aspectos deste personagem vieram à tona. Para alguns, ser Não Sei significava não saber quem eram seus pais, não saber o que a escola queria que eles soubessem, apesar de saberem que aqueles que sabem exploram os que não sabem. A forma dada ao Não Sei, pelo grupo de Ratones, era um boneco que tinha seios, rabo e pênis, Não Sei não sabia se era um menino ou uma menina.A história criada unia as dúvidas das crianças das três comunidades, mas como somente a comunidade de Ratones criou o espetáculo, focamos a história do Não Sei na questão de gênero, numa tentativa de responder às necessidades expressas pela criação do boneco andrógino. Na história criada, nosso personagem pesquisou sua identidade na comunidade em que foi adotado(a), já que não sabia quem eram seus pais. A revelação surgiu através de uma viagem pra dentro de seu corpo, quando Não Sei descobriu que era homem. Após esta descoberta, decidiu enterrar seu lado feminino, do qual nasceu uma árvore. O fruto dessa árvore foi transformado numa mulher de quem Não Sei se apaixonou. Esta história cresceu passo a passo durante nossos workshops com o grupo de Ratones, que era na sua maioria composto por participantes de doze anos. Todas as soluções encontradas para o desenvolvimento da história vieram do grupo; nosso método de criação tinha como base responder às perguntas dos participantes com outras perguntas8 . Desenhar e improvisar uma viagem dentro do corpo foi inicialmente desenvolvido enquanto uma busca pessoal feita por todos os participantes. O segundo passo foi imaginar nosso personagem fazendo a mesma pesquisa em seu corpo. Que órgãos ele pode encontrar? Esta atividade aumentou o entendimento a respeito do processo de

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8 Este método foi influenciado pelo método de Catherine Dasté, que criava históriaspara serem encenadas por seu grupo profissional de teatro infantil, a partir de uma interação com grupos de crianças. Veja Dasté, C.; Jenger, Y.; Voluzan, J. El Niño, el teatro y la Escuela, Madrid: Villalar, 1978. 9 Veja Nogueira, m. p. ‘Theatre and Cultural Renewal’.

mudança vivido no corpo dos jovens com quem trabalhávamos. Improvisando brincadeiras de meninas, e brincadeiras de meninos; improvisando cenas em que uma mãe dá conselhos para uma filha, e um pai dá conselhos para um filho ajudou o grupo a identificar a diferença na expectativa cultural em relação à educação sexual de meninos e meninas de sua comunidade. Foi um processo teatral que permitiu ao grupo investigar questões íntimas muito profundas. A peça foi apresentada para diferentes comunida-des, incluindo as outras comunidades que tomaram parte na pesquisa sobre o personagem Não Sei. Entretanto, o grupo decidiu não se apresentar em sua comunidade. O conteúdo era pessoal demais, eles não quiseram compartilhá-lo com seus familiares. Entretanto, durante a seleção do tema de nosso próximo espetáculo, o grupo tinha certeza de que dessa vez queriam criar uma peça para a comunidade de Ratones. O tema de nossa terceira peça A Outra História do Boi9 era relacionado com uma manifestação cultural que acontece de norte a sul no Brasil, sobre a morte e ressurreição de um boi. Em Florianópolis esta manifestação se chama Boi de Mamão. Ela é brincada na maioria dos bairros de Florianópolis, mas não em Ratones. Isto nos intrigou: por que esta manifestação cultural não era mais viva em Ratones que, por causa de sua localização no interior da Ilha de Santa Catarina, é mais preservada da invasão turística do que outras comunidades de Florianópolis? Enquanto o coordenador de dança e música do projeto, Reonaldo Gonçalves, entrevistava informalmente pessoas da comunidade, ouviu que eles pararam de brincar o Boi de Mamão depois do assassinato, durante uma apre-sentação, do homem que dançava o boi. Esta informação virou o tema central de nosso processo teatral. Descobrimos que o assassinato, o qual não tínhamos certeza de que tenha realmente acontecido, era uma representação simbólica da morte da identidade cultural da comunidade. O processo teatral começou com a criação de uma comunidade fictícia onde este assassinato aconteceu. Organizados em torno de famílias, cada parti-cipante foi requisitado a criar o seu personagem baseado em pessoas que eles conhecessem do passado e presente de Ratones. A escolha de integrar pessoas

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10 A cena é uma clara re-leitura da cena do médico e da feiticeira no Boi de Mamão.

reais na criação de uma comunidade fictícia proporcionou ao mesmo tempo proximidade e distância em relação à sua própria comunidade: era como se os participantes estivessem criando “sem querer” a história de suas próprias famílias, de sua comunidade. A história criada era sobre uma rivalidade entre duas famílias em relação à posse da terra. Ambas foram chamadas pra resolver uma praga que estava matando o gado da região. Espantosamente, apesar da doença estar se generalizando, um boi estava crescendo mais e mais. Um médico foi chamado sem sucesso, uma feiticeira foi então chamada10 e descobre que o boi encantado estava grávido e o ajudaramm a dar luz. O bezerro recém-nascido se transformou no boi da brincadeira e ajudou a unir a comunidade. A peça terminava com o Boi de Mamão dançado na forma como era realmente feito na comunidade trinta anos atrás, contando inclusive com a presença dos músicos que animavam o boi naquela época. A peça foi extremamente bem recebida pela comunidade e para a maioria dos membros do grupo este foi o nosso melhor trabalho.

O conceito de codificação

Quais seriam as semelhanças e diferenças entre o método dialógico e o desenvolvido em Ratones? Para responder a esta questão, escolhi olhar para ambas as práticas usando como lentes o conceito Freireano de codificação. Acredito que, examinando como as duas práticas se relacionam com os mé-todos de Paulo Freire, e como ambos os métodos utilizam o conceito de codi-ficação, poderei ter mais dados para a análise dos dois trabalhos e para focar na questão da importância da forma artística num trabalho que objetive uma mudança social. Que tipo de codificação pode ajudar a comunidade a desvelar e a transformar sua realidade? Pode-se trabalhar com codificações imaginárias e mesmo assim manter o foco na realidade da comunidade? Como parte da educação conscientizadora Freireana, existe um ins-trumento central proposto para desvelar a realidade, parte do processo de transformar a realidade, o conceito de codificação. Para Freire, a realidade concreta não pode ser reduzida a fatos obser-váveis; ela também inclui a forma como a as pessoas a percebem. Subjetividade tem que se unir com objetividade para gerar uma percepção acurada da realidade.

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Codificação representa uma forma de focar o diálogo - entre os facilitadores e os membros da comunidade envolvidos no projeto - objetivando desvelar a realidade, o que inclui aspectos objetivos e subjetivos. Codificação é feita de situações de vida.

A codificação representa uma dada dimensão da realidade da forma como é vivida pelo povo, esta dimensão é proposta para ser analisada num contexto diferente do que o que ela é vivido. Neste sentido, a co-dificação transforma o que era uma forma de vida num contexto real, num ‘objeto’ no contexto teórico (Freire 1972: 32).

Codificação permite aos participantes uma percepção distanciada de sua vida quotidiana, que pode ser admirada, isto é, observada a distância, trans-formada em um objeto que pode ser coletivamente analisado. A codificação funciona como uma ponte entre os contextos teórico e prático. Uma imagem da realidade concreta é um ponto de partida para uma análise abstrata que pode desvelar profundos relacionamentos dos atores sociais que passam freqüente-mente despercebidos. Para Freire, isto faz parte de um processo contínuo de conhecimento onde não se tenta apenas entender a realidade, mas também a percepção anterior que se tinha dela.Freire apresenta em Pedagogia da Esperança um rico exemplo de codificação que era parte de um projeto educacional que ele visitou em Nova York, onde um grupo de educadores estava trabalhando com Robert Fox:

Numa sala, participantes do grupo, negros e porto-riquenhos. A edu-cadora faz repousar nos braços de uma cadeira a artística foto de uma rua, a mesma em que, dentro de uma de suas casas estávamos e em cuja esquina havia uma quase montanha de lixo.- O que vemos nesta foto? - perguntou a educadora.Houve um silêncio como sempre há, não importa onde e a quem faça-mos a pergunta. Depois, enfático, um deles disse com falsa segurança:- Vemos aí uma rua da América Latina.- Mas - disse a educadora - há anúncios em inglês…Outro silêncio cortado por uma tentativa de ocultar a verdade que doía, que feria, que magoava.- Ou é uma rua da América Latina e nós fomos lá e ensinamos inglês ou pode ser uma rua da África.- Por que não Nova York? - perguntou a educadora.

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- Porque somos os Estados Unidos e não podemos ter isso aí. - E, com o dedo indicador apontava a foto.Depois de um silêncio maior um outro falou e disse, com dificuldade e dor, mas como se tirasse de si um grande peso:- É preciso reconhecer que esta é a nossa rua. Moramos aqui (Freire 1992: 55-56).

A realidade vivida pelo grupo pode ser melhor percebida através da codificação. A tentativa de esconder a verdade procurando outro lugar para por o lixo é explicada por Freire como expressão da incorporação, pelos educan-dos, da ideologia dominante que os posiciona como incompetentes e culpados, autores de sua própria desgraça, mas cuja razão de ser é na verdade encontrada na perversidade do sistema (ibid: 56). A codificação contribuiu para a cons-cientização do grupo de sua realidade e também permitiu o desenvolvimento de uma consciência de sua atitude anterior em relação a esta realidade. Outro exemplo de codificação é apresentado por Freire em Pedagogia do Oprimido, parte de uma investigação temática em Santiago do Chile. A cena mostrada era de um homem embriagado andando na rua e três jovens conversando numa esquina. Esta cena havia sido proposta para discutir o problema de alcoolismo. Para surpresa do facilitator, os comentários dos educandos foram:

Aí apenas é produtivo e útil à nação o “borracho” que vem voltando para casa, depois do trabalho, em que ganha pouco, preocupado com a família, a cujas necessidades não pode atender. É o único trabalhador. É um trabalhador decente como nós, que também somos “borrachos” (Freire 1977: 133).

Se perguntado diretamente os participantes, poderiam ter afirmado que nunca tinham se embriagado na vida. O educador poderia ter assumido uma postura moralista contra o alcool sem, entrentanto, levantar uma discussão in-teressante. Através da codificação o problema de baixos salários, do sentimento de ser incapaz de sustentar a família foram levantados. Ao mesmo tempo, os educandos se reconheceram como “‘trabalhadores decentes’’. No lugar de uma discussão moralista, a codificação permitiu que o grupo focasse nas causas do problema.

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A identificação da realidade dos participantes é apenas o começo do trabalho. Freire cita Chonsky em relação ao que se espera da análise da codifi-cação. Ele fala que a ‘leitura’ da codificação deve incluir o que Chonsky chama de “estruturas de superfície” e as “estruturas profundas” (Freire 1982: 51). O primeiro nível inclui a descrição da codificação, identificando seus elementos constitutivos, que devem ser seguidos de uma exploração mais profunda. Muitos problemas podem ser discutidos a partir de uma codificação. O processo de descodificação requer que se mova da parte ao todo e que retorne para a parte; do concreto ao abstrato e ao concreto novamente, parte de um constante fluxo e re-fluxo. Através desse processo é possível que se atinja uma perspectiva crítica da realidade concreta, anteriormente percebida como densa e impenetrável (Freire 1977: 114). A escolha de uma boa codificação é fundamental para o desen-volvimento de uma análise crítica frutífera. Freire apresenta as seguintes condições:

Uma primeira condição a ser cumprida é que, necessariamente, devem representar situações conhecidas pelos indivíduos cuja temática se busca, o que as faz reconhecíveis por eles. […] Igualmente fundamental para sua preparação é a condição de não poderem ter as codificações, de um lado, seu núcleo temático demasiado explícito; de outro, de-masiado enigmático. […] Na medida em que representam situações existenciais, as codificações devem ser simples na sua complexidade e oferecer oportunidades plurais de análise na sua descodificação, o que evita o dirigismo massificador da codificação propagandística. As codificações não são slogans, são objetos cognoscíveis, desafios sobre o que deve incidir a reflexão crítica dos sujeitos descodificadores (ibid: 127-128).

O teatro enquanto codificação

O teatro é um tipo de codificação reconhecido por Freire. Que tipo de teatro poderia preencher os requerimentos de uma codificação frutífera? Seria possível de identificá-la em ambos os métodos, o dialógico e o utilizado em Ratones? A descrição que Freire faz em relação à pesquisa do universo temático

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na comunidade, a escolha fundamental de uma codificação significativa, é quase idêntica à descrição do método dialógico de Teatro para o Desenvolvimento:

Neste [primeiro] encontro, os investigadores necessitam de obter que um número significativo de pessoas aceite uma conversa informal com eles, em que lhes falarão dos objetivos de sua presença na área. Na qual dirão o porque, o como e o para que da investigação que pretendem realizar e que não podem fazê-lo se não se estabelece uma relação de sim-patia mútuas (ibid: 121).Ao lado deste trabalho da equipe local, os investigadores iniciam suas visitas à área, sempre autenticamente, nunca forçadamente, como ob-servadores simpáticos. Por isto mesmo, com atitudes compreensivas em face do que observam (ibid: 122).Na etapa desta igualmente sui generis descodificação, os investigado-res, ora incidem sua visão a, observadora, diretamente, sobre certos momentos da existência da área, ora o fazem através de diálogos informais com seus habitantes (ibid: 123).

Os princípios educacionais Freireanos, bem como o método dialógico de teatro para o desenvolvimento, são baseados numa interação com a comu-nidade alvo. Os facilitadores não decidem o que apresentar às pessoas, nem sugerem um itinerário pré-estabelecido de pesquisa do universo temático da comunidade. Ambos os métodos estão baseados numa abordagem dialógica. Aconteceria o mesmo em Ratones? Em primeiro lugar, o projeto de teatro de Ratones não foi criado enquan-to um fórum para identificar e resolver os problemas da comunidade. O trabalho em Ratones tinha seu foco na prática teatral a ser desenvolvida por um grupo específico de adolescentes. Entretanto, nós não chegamos em Ratones com uma peça teatral pré-estabelecida. Queríamos pesquisar os interesses do grupo, em torno do que nós criávamos as peças a serem apresentadas pelos adolescentes de Ratones, baseadas em histórias próximas de sua cultura e realidade. Para criar estas histórias nós também pesquisávamos o contexto da comunidade. A forma com que realizávamos isto era diferente da abordagem dialógica de teatro para o desenvolvimento. Não chegávamos na comunidade fazendo contatos informais com diferentes setores da comunidade. Nós fomos diretamente à escola para pedir permissão para trabalhar lá e para convidar os

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alunos, especialmente aqueles que já faziam parte do grupo de teatro que se apresentou na universidade, para trabalharem conosco. Nós então exploramos o contexto da comunidade através do desenho dos caminhos da comunidade, e através das histórias de mentira e de verdade que aconteceram ali. Entretanto, como este era um projeto de longa duração, nossa imersão na comunidade cresceu de um projeto para o outro. Nós melhoramos o nível de interação com a comunidade durante os oito anos do projeto. A especificidade de nossa abordagem é que, enquanto pesquisávamos o contexto da comunidade, nós não nos preocupávamos apenas com a realidade concreta, mas também com o imaginário que se conectava com esta realidade. Nós procurávamos elementos simbólicos e não apenas idéias racionalmente articuladas. Meu entendimento de “imaginário” segue Lucian Boia para quem “imaginário” não pode ser definido como algo que acontece fora da realidade concreta. O autor rejeita a dicotomia “real” versus “imaginário”.

Imaginário em um sentido se mescla com a realidade, em outro, se confronta com ela. Ele age sobre o mundo e o mundo age sobre ele. Contudo, como parte de sua essência, é feito de uma realidade independente, com sua própria estrutura e sua própria dinâmica. […] Para levar ao imaginário (pelo menos para sua expressão mais estruturada), a imaginação deve ser fertilizada pela racionalidade. Portanto, o imaginário vai além da representação sensorial. Envolve de um lado imagens percebidas ( e inevitavelmente “adaptadas”, porque não existe uma imagem idêntica a um objeto), algumas imagens ela-boradas e idéias abstratas estruturando a imagem (Boia 1998: 16-17).

Podemos entender as imagens simbólicas enquanto codificações? O principal requisito para Freire de uma codificação é que apresente situações familiares que possam ser reconhecidas pelos participantes. Mais ainda, a co-dificação deve favorecer à ampliação do entendimento dos participantes sobre a realidade, que permita a eles construir uma perspectiva mais fiel para explicar a realidade. Seria a discussão sobre fragmentos da realidade o único meio de se atingir isto? Poderia, numa forma similar, uma situação imaginária trazer contribuições que ajudassem a entender a realidade? Apesar de usar imagens fantásticas, não estávamos, em Ratones, fu-gindo da realidade. Trabalhávamos com aspectos da realidade da imaginação do grupo, que eram explorados através da exploração das contradições que pudessem ter reflexos no contexto da vida real. Em País dos Urubus, por exemplo, eles puderam brincar com os conceitos de poder. Criando um país em que a corrupção era a ordem a ser obedecida, puderam encontrar semelhanças com a realidade brasileira. Os elementos fantásticos da narrativa, em um certo sentido, lhes permitiram ver

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o mundo, a eles mesmos, e a sua comunidade com outros olhos, ajudando-os a ir além do ponto de vista dominante.

No espetáculo País dos Urubus nós não propusemos um vínculo concreto entre a corrupção no Brasil e o país imaginário. A proposta era imaginar alguma coisa completamente diferente da realidade, pelo menos da for-ma ideológica em que a sociedade é apresentada para as crianças. Mas pulado fora de uma abordagem realista, ou da abordagem intelectual de se entender a sociedade, eles encontraram em direção oposta muitos elementos da realidade. O ministro da educação não propôs realmente que se devesse: “preservar a sujeira, poluir, não limpar os banheiros para que fiquem com aquele cheirinho agradável”, mas na escola deles, o banheiro tem sempre um cheiro horrível. Na peça, os idosos eram raptados e presos para garantir o estoque de carniça. No mundo real, uma manifestação dos aposentados de Florianópolis contrários à aposentadoria miserável que recebiam e lutavam por dignidade. Esta manifestação provocou uma reação: os aposentados apanharam dos policiais e isto apareceu nos noticiários da televisão. Criando suas histórias, as crianças estavam revelando e ampliando seu entendimento sobre a realidade (Nogueira 2000: 114-115).

O trabalho em Ratones estava relacionado com a realidade, mas não era uma simples cópia de aspectos da vida quotidiana. Era uma abordagem poética e lúdica da realidade. Nós estávamos também interessados na exploração de experiências de aprendizagem ricas que eram estruturadas nas nossas reuniões semanais de planejamento .

Nossa escolha da imagem (entre outras criadas pelo grupo) a ser desenvolvida em cada projeto, vinha de nossa bagagem educacional e política e do conhecimento que tínhamos do grupo e da comunidade em que vivem. Junto com estudantes comprometidos, planejamos passo a passo os conteúdos que poderíamos desenvolver com o grupo. Nossos espetáculos eram o resultado da exploração teatral dos conteúdos que cada tema nos oferecia (ibid: 110-111).

É verdade que nós, algumas vezes, perdemos a oportunidade de esta-belecer vínculos concretos entre o mundo fictício e a realidade deles. Era um processo de aprendizagem também para nós! Lentamente aprendemos como

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11 Alguns estudantes de música e teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina compunham junto comigo o grupo de facilitadores que se encontra-va semanalmente para avaliar o trabalho. Mais adiante no processo, alguns jovens de Ratones também tomaram parte nesses encontros. 12 O joker (coringa) é proposto por Boal como intermediário que facilita processos de participação dos espectadores nos processos teatrais como o do teatro forum.

explorara ricos conteúdos emergentes que se conectavam com nosso processo criativo e lúdico. No processo criativo de A Outra História do Boi nos baseamos numa história de literatura de cordel chamada O Boi Misterioso. Fazia parte de nosso interesse de beber nas fontes da literatura brasileira para explorar o conteúdo simbólico do boi. A história acontece num período duro de seca. Ao ver seu gado sofrer por falta de pastagem, um fazendeiro desesperado decide abrir as porteiras de sua fazenda, na esperança de que o gado pudesse ter uma melhor sorte em outro lugar. Depois de algum tempo, para surpresa do fazendeiro, um de seus bois volta extremamente gordo e bonito e dá luz a um bezerro. Esta história não termina aí, mas nós decidimos começar nosso trabalho deste fragmento. A história foi explorada através de improvisação, mas também des-envolvemos algumas atividades para relacioná-la com o contexto de vida dos participantes que vivem uma outra realidade no sul do Brasil. Pedimos a eles que desenhassem como entendiam a atitude do fazendeiro, abrindo as porteiras para os animais que garantiam o seu sustento. Que atitude da vida deles poderia se assemelhar a esta? Nosso conhecimento de Ratones nos ajudava a entender o significado de seus desenhos, e a facilitar debates sobre estes aspectos da realidade deles. Dois desenhos chamaram nossa atenção: um menino tendo que abandonar seu cachorro de estimação, outro uma casa com a placa ‘vende-se’. O primeiro exploramos em termos dos sentimentos do fazendeiro, o segundo nos deu oportunidade de discutir a especulação imobiliária em Ratones: Os facilitadores assumiram papéis e representaram uma cena em que um empresário abordou uma viúva para a persuadir de vender sua terra. Um joker12 parava a cena em momentos críticos, perguntando aos membros do grupo sobre os pensamentos dos diferentes atores a serem escritos em letreiros de papel. Nosso foco em História do Não Sei estava na realidade subjetiva do

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13 Natanael e Gabriela são membros do grupo. Esta entrevista fez parte do projeto despedida, antes de eu ir para a Inglaterra para fazer o doutorado, em 1998.

grupo. Enquanto explorávamos os ‘caminhos de dentro do corpo’ e os improvi-sávamos, a realidade objetiva e as estratégias culturais da educação de gênero eram exploradas, revelando contradições profundas:

Em História do Não Sei o tema era ao mesmo tempo poético e fantástico, um personagem que era meio menina e meio menino. Desenvolvendo-o pudemos nos aprofundar nossa pesquisa sobre a educação sexual e na forma como questões de gênero eram abor-dadas pela comunidade. Uma cena em que um pai dá conselhos a um filho, e uma mãe dá conselhos a uma filha revelou contradições que os participantes não sabiam. Através de improvisações eles desvelaram as contradições entre a educação de meninos e meni-nas. As meninas deveriam se preservar de relacionamentos sem futuro, enquanto os meninos deveriam ter relações superficiais para evitar um compromisso muito cedo. Puderam enfrentar con-tradições como esta durante o processo, desafiando-os a entender a complexidade da educação sexual. Existem alguns depoimentos sobre o significados desta cena na vida deles:Natanael13 : Você acha que o teatro te ensinou alguma coisa im-portante para sua vida?Gabriela: Talvez, quando eu fiz a peça do Não Sei, sobre adoles-cência, sobre o que as pessoas acham, talvez eu tenha aprendido alguma coisa.Natanael: Como, que tipo de coisa?Gabriela: Como as pessoas entendem qual a diferença entre menino e menina, sobre os preconceitos, dos quais nós não tínhamos uma visão mais clara. Eu acho que foi muito interessante (Entrevista pessoal: 11/1998) (ibid: 116).

Formas imaginativas de se criar codificações

Do meu ponto de vista, as imagens simbólicas escolhidas no centro de cada peça criada em Ratones podem ser identificadas com codificações. Não

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eram aspectos da realidade concreta, Não Sei era um personagem fictício, mas exatamente porque era imaginário, ele nos deu uma distância para explorar questões íntimas relacionada com a realidade do grupo. Olhando criticamente para o nosso trabalho em Ratones, reconheço que nossa análise freqüentemente não atingia o nível das ‘estruturas profundas’, identificando as causas dos problemas analisados. Em País dos Urubus, por exemplo, permanecemos num nível intuitivo de análise, perdendo algumas pon-tes concretas entre a intuição do grupo sobre a corrupção no Brasil e o contexto brasileiro real. Em História do Não Sei nossa análise limitou-se ao contexto da comunidade, enquanto parte da exploração do tema. Também falhamos ao não estabelecer vínculos com organizações da comunidade que teriam ampliado o potencial transformativo de nosso trabalho teatral. Sob outro ponto de vista, o trabalho de Ratones gerou formas imagi-nativas de se criar uma codificação. Poderia uma representação simbólica da realidade contribuir para o modelo dialógico de teatro para o desenvolvimento? Poderia contribuir para o entendimento da realidade? Elementos fantásticos poderiam contribuir para melhorar nosso entendimento da realidade? Qual o papel da imaginação no processo de compreensão e transformação do mundo? Como vimos em Freire, uma boa codificação não pode ser nem muito explícita nem muito enigmática. O objetivo não é a propaganda de algum ponto de vista. Entretanto, na abordagem dialógica a codificação teatral é freqüente-mente limitada à improvisação de problemas identificados e selecionados pelas pessoas da comunidade. Apesar de usar uma abordagem bastante democrática para dar voz a diferentes setores da comunidade para selecionar uma codifi-cação, a forma de se criar uma codificação é freqüentemente muito explícita, caindo muitas vezes em cenas que não vão além de uma discussão mediada. Seria o conteúdo político de uma peça limitado a seu discurso? Poderia uma forma teatral contribuir para o conteúdo, ou seria ela uma mera distração? Sob meu ponto de vista, enquanto artistas, podemos levar adiante o conceito de codificação, no sentido de incluir abordagens fantásticas e imagina-tivas que possam contribuir para aprofundar nosso entendimento da realidade.

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O corpo em equilíbrio, desequilíbrio e fora do equilíbrio.

Sandra Meyer NunesUniversidade do Estado de Santa Catarina

O corpo, como um sistema vivo, apresenta um dinamismo que en-contra seu equilíbrio em sua auto-organização. E o caráter deste equilíbrio é ser instável, próximo ao desequilíbrio, porque os músculos estão em contínuo estado de tensão, prontos para restabelecer um re-equilíbrio. A instabilidade deste re-equilíbrio é que permite a movimentação corporal, é o estímulo para a vida, para a evolução. O estado de instabilidade precária, resultantes da tensão e re-equilíbrio constantes, dá aos corpos possibilidade de iniciativa, inteligência e risco (Béziers,1992). A vida se manifesta no homem, no seu aspecto psicomotor, em sintonia com as características físicas e químicas presentes na natureza. Em ambas, os processos de constante instabilidade e desequilíbrio garantem a “aparente” es-tabilidade necessária à criação, permanência e evolução da vida. O equilíbrio e o desequilíbrio do corpo exercitado em técnicas corporais no teatro e na dança acontece pelo uso direcionado e ampliado de uma condição que já é própria da operacionalidade do corpo. Em todas as formas de codificação da representação no teatro e na dança, segundo Barba (1989), se encontram certas “leis” que regem o equi-líbrio e o desequilíbrio do corpo. Uma deformação da técnica cotidiana de caminhar, de deslocar-se no espaço e de manter o corpo imóvel, que se baseia, fundamentalmente, na alteração do equilíbrio em situação de permanente instabilidade, representa um elemento comum ao trabalho corporal de atores e bailarinos de diferentes épocas e diferentes culturas. A busca do equilíbrio se dá pelo abandono de um equilíbrio “cotidiano” em favor de um equilíbrio “precário’, de “luxo”, ou “extracotidiano”, termos estes utilizados pela Antro-pologia Teatral concebida por Barba. O balé clássico nos empresta exemplos “luxo”, ou “extracotidiano”,termos estes utilizados pela Antropologia Teatral concebida por Barba. O balé clássico nos empresta exemplos como o attitude1 e o arabesque2, a dança

1. Determinada pose do balé criada pelo italiano Carlo Blasis, em meados do século XIX, inspirada na estátua de Mercúrio, de Jean Bologne. Posição em que o bailarino(a), apoiado numa perna só, eleva a outra para trás com o joelho dobrado num ângulo de noventa graus (Rosay,1985:40).

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tradicional indiana traz as posições do corpo em forma de arco (tribagi)3 (Barba,Savarese,1989:69). Este equilíbrio exige um esforço maior do físico, o tônus corporal se dilata, e empresta ao corpo uma aparência “viva” que se adianta expressivamente à própria açãoc do ator. Aparece então uma “pré-expressividade”, que para Barba concerne à totalidade “corpo-mente”, permi-tindo ao ator uma compreensão mais vasta da representação (Barba,1994:173). A busca pelo equilíbrio precário, ou “de luxo”, ou a sua falta, o desequilíbrio, gera uma infinidade de esforços de um complexo sistema de contrapesos re-presentados pelos ligamentos, ossos, articulações e músculos, no sentido de recuperar o equilíbrio, condição também básica para a permanência e sobre-vivência do homem. Trata-se de um drama humano elementar. O estado de equilíbrio pode ser entendido como “o estado de um corpo solicitado por duas ou mais forças que se anulam entre si” (Pându,1981:322). O afastamento do centro de gravi-dade do corpo em relação à linha de gravidade perpendicular ao chão impõe um esforço muscular adicional. Uma dinâmica de forças opostas é acionada, criando uma tensão diferenciada daquela que é exigida para uma situação de equilíbrio mais econômico (quando o corpo, como um todo, está próximo ao seu eixo central em situação perpendicular ao chão). Para manter o corpo em posição vertical, simétrica e cômoda, onde o centro de gravidade do corpo está na mesma linha da gravidade, não é neces-sário um número muito grande de ações musculares. A maior parte do esforço parece ser desempenhada pelos ligamentos (em conjunção com os músculos), visto que o esqueleto é composto por muitas partes móveis que precisam ser sustentadas. Mas ao partir para uma posição de equilíbrio instável, fora da linha vertical da gravidade, o corpo se acha num “equilíbrio em ação”. Para que o corpo passe de um equilíbrio sem esforço para um conflito de forças contrárias gerada pelo desequilíbrio, a utilização de músculos em ação torna-se neces-sariamente superior à ação exercida pelos ligamentos. Para que o equilíbrio

2. Uma das posições básicas do balé, a terminologia arabesque origina-se de uma forma de ornamento mourisco. A posição do corpo consiste em se estar apoiado numa só perna (flexionada ou esticada), enquanto a outra está estendida para trás em um ângulo reto em relação à perna apoiada no solo (Rosay,1985:32).3. A terminologia tribhangi significa “três arcos”, e remonta à dança clássica hindu Odissi. Um S sob a forma de uma serpentina, atravessa o corpo do bailarino, abrangendo a cabeça, tronco e pernas (Barba,1989:46).

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torne-se cada vez mais dinâmico no corpo do ator, a ponto de transmitir este conflito elementar ao espectador, a sua musculatura deverá estar trabalhada. Para Barba, o ator que não conhece estes equilíbrios precários e dinâmicos “carece de vida, conserva a estática cotidiana do homem, mas como ator, es-támorto” (Barba,1989:72). Trabalhar com este tipo de treinamento, que produz instabilidade e imprevisibilidade em corpos que, por questões de sobrevivência cotidiana, tendem a procurar o equilíbrio e a perpetuar sua estabilidade, tem sido matéria de interesse de muitos diretores de atores, com o intuito de colocar o organismo do ator em estado de atenção constante, percebendo e reagindo de forma menos convencional às situações que a experiência do jogo teatral demandar. O diretor russo Vsevolod Meyerhold (1874-1940), em relação ao sistema de treinamento corporal que formulou, ocupava-se das questões do equilíbrio: “cada movimento da biomecânica deve reconstruir conscientemente o dinamismo implícito na reação automática que mantém o equilíbrio não de maneira estática, mas perdendo-o e recobrando-o com uma série de ajustes su-cessivos” (Apud Barba,1994:39). A tensão entre o equilíbrio e o desequilíbrio, queda e recuperação do eixo corporal igualmente norteou a dança no século XX e toda a tradição da mímica moderna. O mímico francês Etienne Decroux fundamenta a dilatação da presença cênica através do déséquilibre:“sem expor aqui todos os mandamentos de nossa estética, se pode dizer que quase sempre a obediência a estes últimos requer a faculdade de se manter em equilíbrio instável” (Apud Burnier, 1994:123). Antunes Filho se encontra entre os diretores de atores, no Brasil, que se utiliza exercícios de alteração do equilíbrio cotidiano. Em sua metodologia, há uma desestruturação através dos exercícios de desequilíbrio que carrega outras intenções do diretor no tratamento do corpo. Antunes busca eliminar alguns traços maniqueístas do ator para revitalizá-lo para novas situações, quebrando-lhe as “velhas” convicções e posturas através do desequilíbrio: “o ator luta contra o condicionamento físico, as articulações passam por uma severa ‘análise crítica’ e vão, aos poucos, deixando de constituir impedimentos ao pleno uso do corpo humano como matéria expressiva” (Milaré,1994:270). Em 1992, o diretor brasileiro assim descreveu seu processo de trabalho com o ator em relação aos exercícios de desequilíbrio:

Através de algo chamado desequilíbrio fui entendendo o corpo humano. Porque necessitava quebrar as couraças dos atores. Eles trazem todo-

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sos seus complexos, seus traumas por todo o orpo. E a primeira coisa a fazer era desequilibrar, no sentido de tentar retirar, romper com isto.(Carreira,1992:62).

O princípio sobre o qual Doris Humphrey (1895-1958) constitui a sua teoria de dança, o fall-recovering, descreve a trajetória do corpo que luta para manter-se em equilíbrio, vindo a sistematizar as questões do desequilíbrio na dança moderna. Para a coreógrafa americana, vida e dança existem entre o ajustamento do corpo entre a posição vertical, resistência máxima à força gravitacional, e a sua queda para a horizontalidade. O passo humano, movi-mento mais elementar, como aponta Humphrey, é o próprio modelo de queda e recuperação de equilíbrio: “começa-se a caminhar caindo, a fase seguinte é sustentar o peso que cai” (Humphrey,1977). Para a coreógrafa,este “arco entre duas mortes”, a queda e recuperação do equilíbrio, tem sua gênese na força da gravidade, e permite ao bailarino ricas possibilidades de trabalhar ritmicamente estas mudanças de peso e eixo do corpo (Humphrey,1977:106). A questão da gravidade, na dança moderna, é mais do que um esforço físico e estético para manter o corpo em equilíbrio ou fora dele. Para Humphrey, reflete o próprio fluxo da vida, visto que o ser humano está sempre resistindo ou se entregando, caindo e se recuperando de situações diversas, e a dança só especializa estas relações. É perceptível uma ampliação destas questões do equilíbrio e desequilí-brio nas produções da dança contemporânea a partir da década de 80 do século XX. Passando a gravitar em torno do risco, os corpos não só se permitem cair “naturalmente” em direção ao solo, mas provocam uma nova relação com a gravidade provocando quedas abruptas e lançando-se no espaço de forma mais radical. Da companhia canadense “La, la Human Steps”, que praticamente in-augurou na década de 80 novos entendimentos sobre o equilíbrio, desequilíbrio e situações de risco na dança, ao explorar formas do corpo se portar fora do seu eixo central, ao grupo catarinense Cena 11 Cia de Dança, hoje referencia nacional nestas questões, inúmeros criadores e intérpretes têm refletido sobre (Grotowski) o tema. O que Barba denominou de equilíbrio precário ou des-equilíbrio ao olhar para a dança clássica e moderna, pode ser atualizada, em muitas das estéticasda dança contemporânea na atualidade, enquanto uma investigação para fora do equilíbrio.

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Se algo é simétrico, não é orgânico.

Ilya Prigogine nos fala de sistemas afastados do equilíbrio nas áreas da química e da física. Mas já admite a aplicação dessas noções a outras esferas, como abiológica, a social e a econômica, considerando as várias equipes que vêm pesquisando este caminho pelo mundo. Prigogine é um dos divulgadores de uma nova visão da ciência que devolveu à natureza o seu potencial inovador. Suas pesquisas relativas à “termodinâmica do não-equilíbrio” e sua teoria das “estruturas dissipativas” contribuíram para fortalecer a idéia da criação e da evolução a partir da desordem e do caos, estes gerando novas organizações e complexidade na natureza. Os fenômenos químico-físicos do não equilíbrio nos ajudam a entender a possibilidade da criação e inovação a partir de situações fora do equilíbrio presentes na própria natureza. E, como estamos incluídos nesta mesma natureza, concordando com Prigogine em não mais compactuar com a cultura herdada da ciência do século XVII, quando, arrogantemente, excluíamos a nós, homens, desta mesma natureza, também o fazer teatral acaba por manifestar-se sob as mesmas condições.

A atividade humana, criativa e inovadora, não é estranha à natureza. Po-demos considerá-la como uma ampliação e uma intensificação de traços já presentes no mundo físico e que a descoberta dos processos longe do equilíbrio nos ensinou a decifrar (Prigogine,1996:74).

A manifestação criativa da natureza estaria ligada aos processos irre-versíveis do tempo.Para Prigogine, o tempo teria um papel crucial para a oco-rrência da criação no universo4. Este seria, então, uma propriedade emergente, que partiria de uma assimetria e um desequilíbrio manifestados pela natureza: “a flexa do tempo nunca emergirá de um mundo regido por leis temporais si-métricas” (Prigogine,1996:62). A simetria condenaria à estagnação ou à morte de um sistema. A noção de tempo como um mero parâmetro geométrico, espacial,

4. Ainda na década de 40, o meio acadêmico recebeu com hostilidade as primeiras comunicações de Prigogine sobre processos de irreversibilidade do tempo e das estruturas fora do equilíbrio. Os processos de não equilíbrio e irreversíveis eram considerados meramente transitórios, as leis da natureza eram ainda vistas como regidas pelo equilíbrio, como descrevia a física clássica.

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persiste desde a física clássica. Prigogine é um dos cientistas da segunda metade deste século que mais veemente nega estaespacialização do tempo, vendo-acomo incompatível com o universo evolutivo e com o que a nossa experiência humana nos diz. Na filosofia, a noção de tempo como agente ativo da criação, e não mera es-pacialidade encontra eco de forma brilhante em Henri Bérgson, já na primeira metade do século XX. O filósofo francês afirmava que “tempo é invenção ou não é absolu-tamente nada (...) Na gênese da criatividade da natureza, reside o tempo, jorro efetivo de novidade imprevisível” (Apud Prigogine,1996:61). Utilizando-se da termodinâmica e das questões da entropia, Prigogine buscava entender o papel do tempo enquanto vetor de irreversibilidade na física e, por extensão, na natureza como um todo. A estabilidade e o determinismo, conceitos herdados da ciência clássica, foram revistos no século XX a partir da manifestação dos modelos de instabilidades, bifurcações, flutuações, da termodinâmica longe do equilíbrio. Mas ainda permanece, lembra Prigogine, o paradoxo do tempo. O tempo em que vivemos é irreversível, mas em alguns modelos de objetos simples vê-se um tempo reversível, como num pêndulo. No movimento do pêndulo ideal, não podemos distinguir o futuro do passado, que se mantém por igual. Já numa decomposição radioativa, ou biológica, por exemplo, seus componentes mudam na passagem do tempo de forma que não se pode voltar à composição original. A aparição da teoria darwinista, em 1859, trouxe novos elementos para o entendimento deste paradoxo, pois foi a primeira a tratar da evolução no tempo e, portanto, da irreversibilidade. A vida passou a ser concebida em um processo contínuo de evolução, emergência ditada pelo devir. Também contribuiu para um melhor entendimento do paradoxo do tempo a formulação do segundo prin-cípio da termodinâmica, contraparte física à teoria darwinista. A entropia, um dos conceitos chaves da nova física, introduzida pela termodinâmica, significa, em grego, “evolução”, e associa-se à passagem de uma estrutura ordenada para uma desordem crescente, desordem esta que é orientada pelo tempo deforma irreversível. Implica numa quebra da simetria temporal, “o crescimento da entropia designa, pois, a direção do futuro, quer no nível de um sistema local, quer no nível do universo como um todo” (Prigogine,1996:25). Ao mesmo tempo que processo gerador de desordem, a entropia também é geradora de ordem. A irreversibilidade leva, ao mesmo tempo, à ordem e à desordem. Reafirma Prigogine que é graças aos processos irreversíveis asso-ciados a flexa do tempo, “que a natureza realiza suas estruturas mais delicadas e mais complexas”. Os processos irreversíveis são altamente construtivos e, sentencia Prigogine,A vida só é possível num universo longe doequilíbrio (Pri-

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gogine,1996:30). Prigogine percebe que a vida se acha associada à produção de entropia e, portanto, aos processos irreversíveis. Conclui, então, que:

Ao passo que, no equilíbrio e perto do equilíbrio, as leis da natureza são universais, longe do equilíbrio elas se tornam específicas, dependem do tipo de processos irreversíveis. Esta observação é conforme a variedade dos comportamentos da matéria que observamos ao nosso redor. Longe do equilíbrio, a matéria adquire novas propriedades em que as flutuações, as instabilidades, desempenham um papel essencial: a matéria torna-se mais ativa (Prigogine,1996:68).

Dentro do ambiente teatral, também há uma expectativa que se desencadeie nos atores renovação e invenção através dos exercícios de desequilíbrio, ainda que, em seus discursos, os diretores de atores não ex-plicitem analogias com os princípios descritos na física e na química fora-do-equilíbrio. No treinamento corporal de Antunes Filho, por exemplo, os corpos experimentam situações de instabilidade ao buscar romper com os condicionamentos pessoais e os do próprio ofício teatral. O novo tende a emergir em situações fora dos padrões de acomodamento de um “suposto” equilíbrio, a partir de um encaminhamento também psíquico. Suposto equi-líbrio porque, de acordo com Prigogine, não permanecemos em equilíbrio por muito tempo, do contrário, não evoluiríamos. Estaríamos fechados, ou irremediavelmente mortos. Embora a instabilidade provoque desconforto na maioria das situações cotidianas, parece que é nela que se abrem as pos-sibilidades (ou probabilidades), na naturezacomo um todo, de se alçar maiores vôos criativos. É na perspectiva da abertura de vias, bifurcações, que emergem novos acoplamentos entre o sujeito e o meio. No exercício do gesto do “bêbado” e do “louco”, por exemplo, Antunes Filho coloca o ator em situação limite de desequilíbrio físico/emocional. Colocando-se em um espaço imaginário (manicômio, rua), o ator busca manifestar gestos instintivos, “soltos”, que emergem “naturalmente”, ou seja, sem uma condução mental/intelectual ou retórica fixa. O mental, neste caso, se refere a padrões prontos de com-portamento, e não a atividade cerebral em si, esta inevitável enquanto seres vivos que somos. Caso o estado de equilíbrio já conhecido (cotidiano) se mantivesse, as respostas motoras seriam provavelmente mais previsíveis.

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A operacionalidade do corpo humano confirma irrefutavelmente o caráter do equilíbrio: pura instabilidade. No plano do movimento, o corpo é, pelo seu aspecto mecânico, visto como um volume homogêneo, autônomo. Apesar de ser formado por elementos justapostos, como músculos, ossos, ner-vos, articulações, etc, o corpo forma um volume dinâmico que encontra seu equilíbrio em sua própria organização. “Desta forma, o movimento constrói os órgãos do movimento e é construído por eles: o osso tem a forma que lhe dá o músculo, ao passo que o músculo faz o movimento determinado pela forma do osso” (Béziers,1992:123). Mais uma vez a natureza nos dá mostras - desta vez na operacionalidade do corpo – que os sistemas vivos não se encontram totalmente pré-dados, mas se auto-organizam incessantemente. Da mesma forma, a questão da forma x conteúdo se desfaz ante o processo dinâmico de funcionamento do corpo, onde o que aparentemente se dá como o mais “estrutural”, o osso, não vem antes. Também para o LUME, Grupo teatral brasileiro criado pelo diretor Luis Otávio Burnier (1956-1995), e atualmente coordenado pelo ator Carlos Simioni, parceiro fundamental nas pesquisas do diretor, a experiência com exercícios fora-do-equilíbrio tem papel vital. Representa um dos pilares do treinamento corporal do ator - de acordo com a metodologia proposta por Eugênio Barba, adotada pelo grupo - e tem como objetivo “auto-renovar” a energia do ator. OLUME incorporou seqüências de exercícios de desequilíbrio em seu treina-mento técnico proveniente de seminários de pesquisas do ator, como o dirigido pela atriz Iben Nagel Rasomussen5, integrante do Odin Theatre. Na prática do grupo, os exercícios se dividem em três momentos. O primeiro, Alteração do Equilíbrio, consiste em realizar uma ação qualquer que leve ao desequilíbrio, com a perda real do controle do peso do corpo. Implica em intensificaros riscos que ocorrem com a perda do eixo de equilíbrio cotidia-no, caso contrário,o processo não se efetiva eficazmente. No segundo Evitar aQueda, realiza-se uma ação rápida e precisa para evitar a queda, convertendo-se

5. O contato do ator Carlos Simioni com a atriz Iben Nagel Rasmussen emaparente equilíbrio, em estado de estabilidade e de continuidade. Embora busquemos o equilíbrio como forma de Humphrey é neste “arco entre duas mortes”, na perda e na recuperação do equilíbrio, que a vida evolui na natureza. permanecer, de nos assegurar, é pelo desequilíbrio que nossa permanência e sobrevivência é mantida. Nosso organismo evolui e se organiza não no equilíbrio, mas em desequilíbrio, num dinamismo estabilizado, ou numa “unidade em movimento”. Para que uma nova ordem possa emergir, torna-se necessário a passagem por algum estado entrópico. Tal qual poetizava Doris

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impulso final de uma queda em um impulso inicial de um outro movimento.“O exercício fora-do-equilíbrio é uma maneira de desenvolver um princípio fundamental na técnica do ator: converter o peso em energia, mediante a colunavertebral”, ra evitar a queda, convertendo-se o impulso final de uma queda em um impulso inicial de um outro movimento. Paradoxalmente, é o estado de desequilíbrio que permite ao sistema manter-se em aparente equilíbrio, em estado de estabilidade e de continuidade. Embora busquemos o equilíbrio como forma de permanecer, de nos assegurar, é pelo desequilíbrio que nossa permanência e sobrevivência é mantida. Nosso organismo evolui e se organiza não no equilíbrio, mas em desequilíbrio, num dinamismo estabilizado, ou numa “unidade em movimento”. Para que uma nova ordem possa emergir, torna-se necessário a passagem por algum estado entrópico. Tal qual poetizava Doris Humphrey é neste “arco entre duas mortes”, na perda e na recuperação do equilíbrio, que a vida evolui na natureza.

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Entrevista concedida por Antunes Filho à autora, realizada em 21 de abril de 1998, no Centro de Pesquisas Teatrais, no SESC/São Paulo. Conferência de Eugênio Barba sobre Antropologia Teatral e aula-espetáculo com a atriz Julia Varley, do Odin Theater. Porto Alegre, UFRGS, dezembro de 1995.

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Maiakóvski e o Teatro de Formas Animadas

Valmor Beltrame (Nini)Universidade do Estado de Santa Catarina

Introdução

Os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX são mar-cados pelo crescente interesse de dramaturgos e encenadores pela marionete. A marionetização do ator, a substituição do ator por bonecos, por formas, a humanização de objetos são discussões que animam a produção teatral. Em tomo dessa polêmica estão artistas que negam o teatro burguês, a estética do romantismo, do melodrama e do realismo, enquanto correntes artísticas e defendem o simbolismo como arte. Tal interesse aparece de forma visível em duas direções; a marionete como referência para o comportamento do ator em cena e o teatro de marionetes como gênero artístico ou, de outra maneira, o fascínio pela marionetização do trabalho do ator e experimentações em tom da humanização de objetos.

Encenadores e dramaturgos, decepcionados com a atuação dos atores, seu histrionismo, excessos, caretas e seus condicionamentos psicofísicos ex-pressam a necessidade do ator assumir outro comportamento em cena e apontam a marionete como referência para seu trabalho. Acreditam que marionete pode expressar os estados da alma ocultos e impalpáveis, possibilitando conhecer e mostrar as sensações transcendentais. Na raiz dessa discussão está a defasado controle sobra o trabalhado ator a ser efetuado pelo diretor e a negação do espontaneísmo, do maneirismo, do vedetismo, predominantes c. comportamen-to dos atores na época. A teatralização do teatro, a necessidade de afirmar a função do diretor como o maior responsável pela criação do. espetáculo teatral, incumbindo-o da preparação psicofísica dos elencos, são preocupações que permeiam essa discussão.

Basta lembrar as contribuições de Kleist, Maeterlinck, Jarry e Craig para situar a inquietação de alguns artistas e teóricos do teatro deste tempo em relação a arte produzida na época1.

1 Em “Sobre o Teatro de Marionetes”, Herick Von Kleist apresenta um texto polêmico por defender que o belo está no artificial e no autômato. Maeterlinck, escreveu nove peças para marionetes na perspectiva de uma estética simbolista. No estudo “Menus Propus - Le Théâtre” propôe a supressão do ser humano da cena e em seu lugar a presença de sombras, reflexos, formas sim-bólicas com ¬aparência de vida, sem ter vida. Jarry, ao fazer a estréia de “Ubu Rei” em Paris

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Na Rússia do princípio do século, este fenômeno também ganha vi-sibilidade seja no interior da obra dos cubo-futuristas através da linguagem Zaun2, como também em diversas expressões artísticas que recorrem às mani-festações da cultura popular local. O teatro, e especial o teatro de Maiakóvski, recria diferentes expressões da cultura popular russa, dentre elas o teatro de bonecos conhecido como Petruchka, bastante vivo nas feiras e periferias das grandes cidades.

As publicações a respeito das encenações das suas peças quase todas dirigidas por Meyerhold3, sugerem que o uso da linguagem do teatro de ani-mação aí contido é tão rico e instigante quanto o que se apresenta nos textos dramáticos. Porém, os registros fotográficos e descrições sobre tais encenações são escassos no ocidente e não são relativos a todos os textos escritos. Por isso, os textos dramáticos são a maior referência para o presente estudo.

A análise dos textos dramáticos de Maiakóvski, sob a ótica da linguagem do teatro de animação evidencia três aspectos fundamentais:

a) a presença de “nomes falantes” na denominação de personagensde algumas peças, que remetem, assim, às formas de arte popular, notadamente ao circo e ao teatro de bonecos; b) o boneco com alegoria, onde o poeta faz hipérbole e ridicularização de comportamentos sociais e simultaneamente sintetiza o sentimento popular sobre personalidades russas; c) a “humanização” dos objetos, quando realça a possível vida existente nos objetos e a inumanidade dos homens.

Antes de analisá-las faz-se necessário discutir algumas características desta linguagem artística, o teatro de bonecos.

em 1896 como atores usando máscaras apresenta personagens marionetizadas, e os atores com gestualidade próxima ao do boneco. Craig, em “Da Arte do Teatro”, em 1906, propõe a substi-tuição do ator e sua interpretação realista/naturalista pela Supermarionete: o ator inteiramente coberto pela máscara, apresentaria a personagem sem deixar transparecer ou revelar traços da sua própria personal idade de ator.2 Linguagem Zaun ou Transmental, utilizada pelos artistas russos conhecidos como cubo-futuristas que desarticula o significante do significado, que faz o desmembramento do sentido e signifi-cado. Maiakówski, no princípio de suas atividades artísticas estava vinculado a este movimento.3 Vsiévolod Meyerhold (1874-1940) Diretor, ator e teórico de teatro russo. Fez parte do Teatro de Arte de Moscou onde trabalhou com Stanislavski. Em 1917, entusiasmado com a Revolução proclama Outubro Teatral, propondo a revolução artística e política no teatro. Nesse período organizou os famosos espetáculos de massa. Foi o grande companheiro de Maiakóvski, dirigindo seus textos e tendo-o como diretor assistente. Em 1937, sob as ordens de Stalin, a polícia fecha seu teatro. É preso em 1939 e fuzilado no dia 02 de fevereiro de 1940 (Hormigon, 1992, p.21-36).

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Teatro de animação

Atualmente, várias nomenclaturas são adotadas para referir-se à lin-guagem do teatro de animação: teatro de bonecos, teatro de fantoches, teatro de marionetes, teatro de objetos, teatro de formas animadas, teatro de figura.

Cada uma destas denominações poderá apresentar especificidades técni-cas c estéticas quando comparadas entre si, porém, todas dizem respeito ao que se pode chamar teatro de animação, isto é, um teatro que anima o inanimado. Têm-se ¬como princípio fundamental dar vida, ânima, ao objeto, à forma, ou ao boneco simulacro do humano. Para isso, a característica fundamental desta arte é ¬presença do objeto a ser animado e do ator-animador que dá vida a esta forma.

Assim, “... o teatro de bonecos é uma arte teatral cuja característica. principal que o diferencia do teatro de atores é o fato de que o objeto (bone-co) necessita de fontes físicas e de poderes vocal e motor que estão fora .:.: si”(Jurkowski, 1990, p.75). Ou seja, a personagem no teatro de bonecos, atores que protagonizam as cenas nesta arte, têm dependência direta de terceiros para adquirirem vida. Ao dizer que os poderes vocal e motor da personagem estão fora do objeto, destaca a incondicional idade da atuação do ator-animado.

No entanto, Amaral acrescenta outros elementos fundamentais na identificação das características desta linguagem artística: “Boneco é o termo ¬usado para designar um objeto que, representando a figura humana ou animal é dramaticamente animado diante de um público” (1991, p.69). Além ¬mo-vimento da forma animada e da presença do ator-animador mencionados por Jurkowski, Amaral acrescenta a exigência do tratamento dramático na animação, bem como aponta para a necessidade da presença do público. Portanto, dois elementos fundamentais para a realização do ato teatral.

Por objeto animado dramaticamente não se pode entender a forma animada possuída apenas de movimento. Isso não é suficiente para que esteja ¬vivo. O boneco está vivo sobretudo quando age de forma a dar ao público a ¬ilusão de que pensa, e tem autonomia em relação aos seus atos, ações e emoções. O boneco pensa quando se comporta como personagem, quando tem vida própria. ¬

O bonequeiro pode utilizar diversas maneiras para chegar a isso e uma delas é privilegiar a ação do boneco na encenação. Na medida em que a ação do boneco se completa com o texto, ganha vida, seu caráter se evidencia e a relação com a platéia se estabelece. Os solilóquios, os discursos verbais destituídos de ação dramática traem a condição do boneco. Quando o texto

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4 Renata Pallottini, em seu livro, “Dramaturgia: a construção da personagem”, dedica um capítulo ao estudo das diversas formas de caracterização da personagem dramática.

diz tudo e não permite que as palavras pronunciadas se materializem de certa forma em gestos, instala-se um vazio na comunicação. Assim, o boneco vivo é boneco em movimento, com ação física reveladora do caráter da personagem, que representa.

A vocação do boneco é realizar o inusitado, o impossível, o ini-maginável do ponto de vista da ação física. Como diz o marionetista russo Obravtsov, fundamental é perceber que “... o que pode ser expressado por um boneco, não pode ser expressado por um ator” (1950, p.117). Quando o boneco não assume a condição de boneco ou não dá proporções aos gestos e movimentos maiores que as reais; quando não se utiliza dos excessos, do exagero, quando o boneco se limita a imitar o ator, a linguagem do teatro de animação não se efetiva.

Outro aspecto que caracteriza o teatro de animação, a construção das personagens, é que estas não precisam necessariamente ter a aparência de seres humanos. É freqüente encontrar personagens antropomorfas com traços sintéticos, que remetem à forma humana. No entanto, também tem sido comum a personagem apresentar uma forma inusitada, destituída de traços físicos humanos, uma forma confeccionada especialmente para esta finalidade, ou ser um objeto do cotidiano. Por isso, estas personagens são esquemáticas, possuem traços definidos, claros, porém, não têm o que no teatro se denomina de “aprofundamento psicológico”. Estão mais próximas do esquema, da per-sonagem tipificada.

A apresentação destas características e peculiaridades da arte do teatro de bonecos toma-se fundamental para este estudo, uma vez que muitas delas estarão presentes na obra dramatúrgica de Maiakóvski analisada a seguir.

Os nomes falantes

As diversas maneiras de caracterizar e definir a personagem no texto dramático compreendem, basicamente, traços físicos, sociais, ou psicológicos. O dramaturgo procura destacar traços em cada uma delas, buscando, além de identificá-la, diferenciá-la das outras. Às vezes, há a predominância de um desses aspectos na definição do caráter da personagem, mas quase sempre o somatório desses aspectos dá sustentação, tomando-a crível, permitindo, dessa maneira, reconhecer seus desejos e vontades4.

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Em certos momentos da história da dramaturgia é possível perceber a predominância de formas peculiares na caracterização das personagens. Por exemplo, as personagens nos textos naturalistas, vão, em sua maioria, desta-car traços psicológicos; já as personagens do teatro de feira, da rua, no teatro popular, são comum ente esquemático, sintéticos, o que permite dizer que há uma predominância de características sociais. As personagens são normalmente típicas: soldado, amante, a bela, a má, o trabalhador, o patrão etc...

No teatro de bonecos popular do Brasil há uma peculiar forma de ca-racterização que se dá através do nome da personagem. O nome já é definidor do caráter e do seu comportamento. Os nomes sintetizam sua forma de ser. Para Ripellino, referindo-se às personagens da peça “Os Banhos” de Maiakovski, são “nomes falantes” (1986, p.198).

No Mamulengo5, teatro de bonecos popular da região do Pernambuco, a personagem central do trabalho de muitos mamulengueiros é conhecida como Professor Tiridá. Trata-se de um justiceiro, esperto, malandro que ao mesmo tempo ajuda os pobres e é inconformado com a concentração de riqueza nas mãos de poucos. Portanto, é o que tira e dá, por isso, TIRIDÁ.

Outra personagem bastante conhecida é Maria Favoráve (corruptela de favorável) para designar a moça que “dança com todos”, disponível, sempre convidada a dançar com alguma personagem nas interrupções das cenas. É pos-sível identificar, ainda, personagens como Zé das Moças, que designa querido: Benedito, o negro; Cabo Setenta, “... delegado de roubos... de vigilância de costumes e de brigas de galo...” ou Afonso Gostoso “... moço delicado! Moço suspeitoso! As mulheres são loucas por esse moço!” (Borba Filho, 1987, p.179)

Estes nomes e de outras personagens podem ser encontrados nas peças de mamulengueiros nordestinos recolhidas por Hermilo Borba Filho.

O “nome falante” é uma forma sintética de caracterização da per-sonagem. O nome contribui para identificar seu caráter e comportamento A explicitação do seu nome é suficiente para diferenciar sua maneira de ser das demais personagens.

Maiakóvski se utiliza deste recurso dos “nomes falantes” na peça Os Banhos, por certo inspirado no Petruchka, herói popular do teatro de bonecos russo. Historiadores como o francês Jacques Chesnais (1980) e o polonês Ma-

5 O teatro de bonecos popular do Brasil, mais conhecido como Mamulengo, refere-se à manifestação na região do Estado do Pernambuco. Já no Rio Grande do Norte é chamado Calunga, no Ceará é conhecido como Babau ou Mané gostoso. No Maranhão e Paraíba é João Redondo. Existem de-nominações diversas para essa expressão dramática popular que mantém características similares.

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rek Wazkiel (1997) afirmam que o teatro de bonecos é introduzido na Rússia pelos alemães. Dizem ainda que nasceu no século XVII e “sob o reinado do Imperador Alexis, foi proibido de 1648 a 1672. Petruchka é um personagem extremamente popular , vulgar em suas palavras e em seus atos. Faz parte da família dos Polichinellos e é quase exclusivamente representado por bonecos de luva” (Chesnais, 1980, p.165).

Vale destacar que tanto o Petruchka, quanto as personagens do nosso Mamulengo, assim como os outros heróis populares do teatro de bonecos de outros países, mantêm traços comuns tais como: são bonecos de luva, o que no Brasil comum ente se chama de fantoche; em seus aspectos físicos destacam-se narigões, bocarras por vezes apenas pintadas com traços amplos, exagerados, sem preocupações realistas; além da origem popular comum a personagem central possui caráter irreverente, é justiceiro, têm um vocabu-lário recheado de palavrões, questiona as autoridades constituídas e resolve seus conflitos com surras e pauladas. A palavra tem grande ênfase neste tipo de teatro que representa comédias improvisadas a partir de um roteiro que se atualiza e modifica com os acontecimentos cotidianos e intervenções das platéias. O bonequeiro ao interpretar durante toda a sua vida a mesma personagem, vai ampliando o repertório de gestos, ações e falas desta per-sonagem que ganha cada vez mais autonomia e força, solidificando-se como personagem na prática de representar.

Na denominação das personagens da peça “Os Banhos”, fica evidente a utilização do recurso de “nomes falantes”. A apresentação das personagens desta peça, presente no estudo: “Os Banhos: uma poética em cena”, de Reni

6 Em muitos países ainda existe um teatro de bonecos popular, conhecido pelo nome da sua per-sonagem central: VASILACHE, herói popular do teatro de bonecos Romeno, KARAGOZ, figura central do teatro de sombras popular da Turquia e Grécia. PUNCH e JUDY, casal, personagens centrais do teatro de bonecos inglês que aparece em Londres pela primeira vez em 1662, com o nome de Pulcinella. TCHANTCI-IES, herói popular do teatro de marionetes da região de Liége, Bélgica. KASPEREK, herói popular do teatro de marionetes da República Tcheca. PULCINE-LLA, pai da maioria dos heróis populares, remanescente da commédia dell’arte. Napolitano de origem, sabe-se que provém das farsas atelanas. KASPERLE, herói popular do teatro de bonecos alemão, parente próximo do Pulcinclla italiano e do Punch inglês, muito popular no início do século XIX. POLlSZYNEL, herói popular do teatro de bonecos francês, atuante desde 1630. A partir da revolução francesa não se tem mais notícias de suas atuações. Reaparece nas ruas e feiras de Lion e Paris a partir do século XIX substituído pelo GUIGNOL. JAN KLASSEN, herói popular do teatro de marionetes holandês, conhecido já a partir da segunda metade do sé-culo XVII. (Extraído de textos de Marek Wazkliel publicados nas revistas da UNIMA Espanha, TITEREANDO, números 50 a 63).

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7 “Os Banhos: uma poética em cena”, a leitura desta tese é fundamental para a compreensão do teatral de Maiakóvski. Sua importância não reside somente no fato de apresentar uma análise exaustiva _ peça “Os Banhos”, também faz ampla contextualização do período vivido pelo poeta, além _ trabalhar sua obra como conjunto, indissociando teatro e literatura. Destaca-se ainda a documentação fotográfica das encenações das peças de Maiakóvski dirigidas por Meyerhold.

Chaves Cardoso revela que Maiakóvski utilizou abundamente deste recurso .“A personagem Pobiedonóssikov junta ironicamente “pobieda” (vi-

tória) ao afetuoso “nóssik” (narizinho) recordando ao mesmo tempo o sobre-nome do retrógrado Pobiedonóstzev, inspirador da polícia de Alexandre III. A pesquisadora acrescenta: “Pobiedonóssikov é um palhaço de uma repartição burocrática apresentada como circo: às vezes um circo do horror, com toda a burocracia emperrando qualquer iniciativa, onde os peticionários, de tanto esperar por uma resposta para seus pedidos, petrificam-se, são representados por manequins; Pobiedonóssikov seria então: aquele que carrega a vitória no nariz” (Cardoso, 1990, p.205).

O nome da personagem Pólia “é um tratamento afetivo, um dimi-nutivo de Polina (do francês Pauline). Esta personagem traz em sua fala a seguinte característica: no final de cada oração sempre diz: “Engraçado!” ou “Não é engraçado!” e através disto, ela divide o mundo em o que é e o que não é engraçado” (Cardoso, 1990, p.206). Camarada Momien-tá1nikov, o servidor dos burocratas é um repórter e remete a momento, instante. Camarada Optimístienko, secretário de Pobiedonóssikov, tem na raiz do seu nome, otimista. Camarada Be1vedónski, retratista, tem por sua vez a referência de belo, bela vista. Camarada Vielossipiédkin, ex-cavalariano ligeiro, guarda popular, tem como referência o nome russo proveniente de velocipiéd, velocípede, bicicleta, e indica duas características básicas da personagem: a rapidez e a esperteza. Camarada Underton, a datilógrafa. Underton é a marca de máquina de escrever, fa-mosa em 1930. Segundo Reni C. Cardoso, esse nome falante poderia ser traduzi de por Camarada Remington. Camarada Tchudakóv, o inventor. Deriva de tchudák. que significa esquisito, excêntrico e também pode ser tchudo, milagre, maravilha

Pont Kitsch, um estrangeiro ávido por saber dos operários russos come inventaram a máquina do futuro. Talvez seja necessário evidenciar que “...o nome Kitsch está certamente ligado ao substantivo alemão que designa os objetos de péssimo gosto... as palavras russas são ajuntadas de modo a trans-mitir por semelhanças fonéticas, locuções inglesas” (Ripellino, 1986, p.198).

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Mezaliánsova, personagem na qual Maiakóvski critica a postura oportunista, burocratizada e, sobretudo colonizada das pessoas responsáveis por relações culturais internacionais, tem na origem do seu nome a expressão francesa ““ésa-lliance”” que significa casamento com pessoa de origem socialmente inferior. Maiakóvski transforma “Mésalliance” em Mezaliánsova.

Nestas dez personagens da peça “Os Banhos” o poeta recorre ao uso dos “nomes falantes” para melhor caracterizá-las, oferecendo ao público in-formações claras sobre o modo de ser da personagem.

Este mesmo procedimento aparece na peça “O Percevejo”. A persona-gem central da peça, Prissipkine, Pedro Skripkine, ex-operário, ex¬membro do Partido e noivo, na peça nega sua origem de classe. A personagem muda o nome de Prissipkine para Skripkine, e faz isso para tomar-se mais nobre. É que Prissypat vem do verbo russo polvilhar, enquanto que Skripkine é uma palavra derivada do violino (O’Neill, s./d, p.23). Essa mudança de nome de Prissipkine (talco, polvilhar) para Skripkine (violino) indica que a personagem, antes, era ligada ao mundo do trabalho. Agora com o outro nome, não pertence mais a este mundo, mas ao da aristocracia, é erudito, fino, delicado. Ou seja, o nome indica a nova condição da personagem.

Para o italiano Rippelino, a tendência para designar os personagens com denominações significativas chegou a Maiakóvski por meio dos clássicos: “en-contram-se, como se sabe, esplêndidos exemplos em Gogol, e Súkhovo¬Kobílin e ainda mais cedo, nas comédias do século XVIII de Fonvizin. Longas listas de divertidos nomes falantes ornam os argutos cadernos do humorismo soviético Iliá III” (1986, p.199).

Sem dúvida as comédias antigas e cadernos de humor podem ter in-fluenciado o poeta russo no uso dos “nomes falantes”. Porém, não é possível omitir a referência do Petruchka somando-se a essas influências. Isso se deve ao interesse de Maiakóvski pelas diversas formas de expressões artísticas populares, notodamente ao teatro de bonecos e à arte circense de onde extraiu técnicas e recursos incluídos nos seus textos dramáticos e encenações feitas conjuntamente com Meyerhold.

Jurkovski diz que, no século XIX, em muitas regiões da Europa, era comum a existência de números artísticos com teatro de bonecos dentro da programação dos circos. Muitos espetáculos de teatro de bonecos popular também apresentavam, no final da representação, números com “bonecos de circo” e, criavam assim, um tipo especial de teatro, o teatro de bonecos de variedade (1990, p.72).

Maiakóvski, poeta futurista sabia reunir elementos aparentemente

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8 Obraztsov, um dos mais conhecidos marionetistas russos, nasceu em Moscou, em 1901, foi inicialmente ator profissional, mas logo optou pelo trabalho com bonecos. Foi diretor do Teatro Central de Bonecos em Moscou e faleceu em 1993.

contraditórios como, seres abstratos, autômatos, truques estilísticos, tramas sonoras, plasticidade gestual, com números circenses, bonecos e outras ex-pressões recuperadas das manifestações populares russas.

São valiosas as informações e memórias de Sergel Obraztsov , contida em seu livro “Mi Profesión”. Conta que ele e outros artistas russos, durante os anos de 1920 a 1923 trabalharam na identificação de artistas que atuavam com teatro de bonecos nas feiras e nas periferias das grandes cida-des russas. Menciona que, no ano de 1923, encontrou ‘Ivan Afinoguénovich Záitsev e Ana Dmítrievna, los últimos mohicanos dei teatro de feria popular” com quem passou a trabalhar no Teatro Central de Munecos (1950, p.117).

É possível continuar apresentando evidências da proximidade dos “nomes falantes” com o teatro de bonecos popular. Porém os dados apresen-tados já evidenciam como o poeta russo se aproximava das artes populares e percebia, nestas formas de expressão, a capacidade de síntese e comunicação direta com a platéia e assim intertextualizava estes saberes populares com sua obra. Interessa destacar, ainda, que Maiakóvski, utilizava este recurso para dar vida às suas personagens cujos nomes trazem consigo parte da crítica e ironia que ¬fazia em relação ao comportamento dos burocratas que ocupam cargos novo governo e seu afastamento dos sonhos e expectativas do povo russo.

O boneco como alegoria

É interessante observar que o teatro contemporâneo feito por atores apresenta, com freqüência, cenas onde são utilizados recursos do teatro de animação. É comum encontrar em espetáculos, ora uma cena com personagem mascarada, ora uma personagem mitológica ou fantástica a ser representa por uma forma animada ou boneco, por vezes, uma cena com as técnicas ¬teatro de sombras.

No entanto, vale destacar que o uso de tais recursos está mais direcio-nado no sentido de dar certa dinâmica ao espetáculo, criando clima ou mesmo objetivando resolver certos problemas técnicos como a caracterização física dos personagens, do que a experimentar ou trabalhar a linguagem espec do teatro de animação.

O boneco presente na cena deste tipo de espetáculo, mais de persona-

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gem, apresenta-se como alegoria, como representação sintética simbolizando determinada personagem ou sentimento.

Se essa prática é comum atualmente e para alguns apresenta-se como procedimento inovador no teatro contemporâneo, vale lembrar que Maiakóvski já fazia isso em “Moscou em Chamas” escrita em 1930. Na primeira parte desta peça, há o momento em que se destaca a festa no Palácio de Inverno da monarquia russa. O dramaturgo detalha a cena apresentando situações, personagens presentes e através de rubricas descreve: “O cvzar-zinho, a czarina e os ministros aparecem no palco. Um anão de circo, bem magro, representa o czar; a czarina é representada por um enorme boneco cujo pescoço mede cerca de 1,5m. Esse boneco, construído sobre uma grande estrutura é movido por um ator nela oculto”.

A apresentação da czarina como boneco-máscara lembra, quanto a sua estrutura, os conhecidos bonecos gigantes da cidade de Olinda em Pernambuco que saem animando o carnaval de rua da cidade. Lembram também a figura de Maricota, personagem do Boi-de-Mamão de Santa Catarina. Trata¬sse de um boneco-máscara, com um ator dentro da sua estrutura, que dança e caminha pelo espaço. O detalhe relativo ao pescoço, medir um metro e meio de comprimento, lembra certas cenas e personagens do teatro popular onde o boneco ao encontrar-se numa situação que lhe desperta curiosidade, não se desloca até o local de interesse. Imobilizado, o pescoço estica, cresce e vai até o local. Construído com um mecanismo simples permite ao ator-animador, dentro do boneco, fazer o pescoço au-mentar e diminuir de tamanho, provocando o riso na platéia.

O uso que se faz do boneco nesta cena está inteiramente ligado a perspectiva de hiperbolizar o gesto, não limitando-se assim a imitar o ator. A desproporcional idade do pescoço da czarina e o movimento de diminuir e aumentar em um metro e meio o seu comprimento, além de incluir-se dentre as habilidades características do boneco, remete à ridicularização da personalidade histórica que este boneco representa. E para evidenciar ainda mais, Maiakóvski apresenta o czar e a czarina como imagens discrepantes, sem sintonia, provocando o riso, chegando ao grotesco. A boneca czarina é uma alegoria do poder desprestigiado, assim como o czar representado pelo “anão magro” sintetiza a visão e sentimento popular em relação ao poder czarista.

Nesta mesma peça “Moscou em Chamas”, há uma cena envolvendo um camponês, jovens sapadores e um Kulak. Segundo nota do tradutor Alexandre

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O’neill, Kulak é o rico camponês proprietário de terras que explorava mão de obra e a partir da revolução, durante o processo de coletivização, se recusava ao trabalho coletivo na fazenda. Esta cena também é reveladora do uso do boneco como recurso estético eventual, como síntese e alegoria de um tipo social - o grande proprietário de terras russo dos anos anteriores à revolução. A transcrição de trecho da cena revela isso claramente:

CAMPONÊSO trator semeava e ceifava.Os resultados eram muito bons[para Kulak: Seu boca-mole, não gaste suas forças. Afogue¬se.O Kulak afoga. Balões emergem como um conjunto de bolhas. Sapado-res jovens pescam. Eles apanham um boneco - o Kulak. Eles dilaceram o boneco e ensacam os pedaços. Outra sapador apanha refugos de cerca e algumas garrafas e cruzes com sua linha de pesca.

É interessante perceber que o boneco-Kulak é retirado do lixo, do lago poluído, definição clara do sentimento coletivo por este tipo social. A indi-cação para os sapadores dilacerarem o boneco e ensacarem seus pedaços faz com que o boneco sintetize realidades opostas: o rechaço e morte à figura do grande proprietário de terras russo, explorador de mão-de-obra e a perspectiva de construção de relações distintas das que se evidenciam quotidianamente, ou seja, a coletivização.

As ações realizadas com o boneco-Kulak são repletas de sentidos muito além daquilo que à primeira vista parece. Maiakóvski faz deste boneco ã metáfora do lixo/dejeto/grande proprietário/explorador contrapondo-se a idéia de coletivização/trabalho justo/felicidade.

Vale relembrar a cena da peça “Os Banhos” na qual as personagem que representam o povo são apresentadas como seres petrificados, manequins. Para criticar a demora das solicitações junto às repartições públicas e o descaso das autoridades e burocratas que obrigavam as pessoas a permanecerem lon-gos ¬tempos nas filas de atendimento, Maiakóvski mistura atores e bonecos/manequins. No final da cena restam insólitos bonecos, seres humanos imóveis petrificados pela exaustão da espera e desesperança, aguardando resposta que não chegam.

Ao utilizar o recurso do teatro de animação apresentando persona-

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gens, bonecos produz metáforas da realidade, faz representação sintética de v. se sentimentos e desejos, concretiza idéias coletivas. Faz uso da alegoria como cerne do texto dramático possibilitando diversas leituras da ação apresentada.

A “Humanização dos objetos”

O termo de animação é uma linguagem com especificidades, com certa lógica e procedimentos diferenciados de outras linguagens dramáticas. A presença do objeto na cena é uma das suas características mais fundamentais. No entanto, a expressividade do objeto está relacionada, em certa medida, com sua confecção ou escolha, porém, principalmente com o uso que se faz deste objeto na cena.

Vale reafirmar, o boneco não precisa ter necessariamente a forma humana. Qualquer objeto extraído do cotidiano, quando animado-e animado aqui tem o sentido de animal alma -- quando o ator-animador atua com ele, por certo comunica.

A trajetória de muitos grupos de teatro atualmente no Brasil, vem sendo marcada por este tipo de prática e opção estética. O Grupo X.P.T.O de São Paulo, por exemplo, põe em cena, flores que engravidam, peixes que se apaixonam, sacos de lixo que têm fome e cospem resíduos. O grupo gaúcho Cem Modos, em 1982, fez grande sucesso ao apresentar o espetáculo de es-tréia do grupo com uma cena que reproduzia a conversa entre duas estudantes universitárias. ‘As personagens eram duas pedras sobre as quais se alternava um jogo de luzes que produzia resultados cômicos surpreendentes na platéia. Seria possível apresentar uma quantidade de experiências e criações no teatro contemporâneo, onde a animação de objetos de uso cotidiano dá resultados estéticos e dramáticos eficientes.

Os textos dramáticos de Maiakóvski, Mistério Bufo, O Percevejo e Vladimir Maiakóvski: uma tragédia, são permeados por este tipo de recurso.

Em “Mistério Bufo” isso fica evidente no sexto ato da peça, conhecido como A Terra Prometida, momento em que os objetos passam a assumir compor-tamentos humanos. Depois da chegada ao local, feito certo reconhecimento do lugar, o Faroleiro, personagem que integra o grupo dos “Sujos” ou trabalhadores, avisa que vê os objetos caminhar, “Os objetos têm pés e mãos. As fábricas estão embandeiradas. Em todos os lugares vejo máquinas descansando”.

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Noutro momento uma rubrica descreve a cena: “... Das vitrinas descem e saem marchando os melhores objetos, conduzidos pela foice e martelo, o pão e o sal, que encabeçam a comitiva, cercando-se dos portões”.

Na seqüência os objetos manifestam-se dialogando:

“Objetos - E nós, nós os objetos ajudaremos o homem.Nós os martelos, os agulhas, os serrotes ajudaremos os homens”.As personagens humanas, uma vez desfeita a surpresa, passama dialogar com as personagens objetos:“Camponês - Camaradas Objetos! Sabem de uma coisaChega de torturar o destino. Agora, nós vamos construir vocêe vocês nos alimentar e se aparecer o patrão, não o deixaremosescapar com vida. Assim, viveremos melhor”. A partir deste encontro fazem pactos de ajuda e colaboraçãomútua: “Camponês - Eu levaria um serrote. Faz tempo que não faço nada e sou jovem. Serro te - Leve-me!Costureira - E eu uma agulha.Agulha - Leve-me!Ferreiro - Minha mão pede um martelo.Martelo - Leve-me!”

E tudo termina com os trabalhadores, na peça denominados “Os Su-jos”. cantando a Internacional Socialista e expulsando “Os Limpos”, ou seja, a classe dominante.

Maiakóvski propõe a invasão do palco por objetos comuns ao cotidiano dos homens. Os instrumentos de trabalho, alimento, constituem-se na presença arquetípica do objeto na esfera do comportamento e sobrevivência humana. O poeta convida seu público a sentir e perceber, através da forma inanima, fabricada industrialmente, porém, marcada pelas mãos dos homens, impulsos criativos, afetivos e simbólicos.

Quando o poeta russo recorre ao uso da animação de objetos estimula a imaginação e a fantasia do leitor/espectador, convidando-o a perceber que as coisas no mundo não precisam ser como sempre são e estão, que é preciso rever o sentido e estado das coisas.

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Algo semelhante acontece na peça “O Percevejo”. O quinto ato da peça inicia com uma rubrica esclarecedora para a temática em estudo:

“Imensa sala de reuniões em forma de anfiteatro. Os homens são substituídos por alto-falantes. Junto destes, mãos de metal, do tipo dos indicadores de direção de automóveis. Por cima, lâmpadas de cor. Sob o teto, telas para projeção de imagens. Ao centro, uma tribuna com um microfone. À heira da tribuna, reguladores e botões de distribuição das vozes e das luzes. Dois mecânicos ¬um jovem e um velho - trabalham na sala francamente iluminada “.

Numa das cenas deste ato, oportunidade em que há necessidade de se tomar uma decisão coletiva, os representantes das diversas regiões que com-põem a “Federação da Terra” são apresentados como alto-falantes. Já numa outra situação deste mesmo ato, os homens são representados por mãos de ferro. Assim os homens são mãos de ferro, lâmpadas, alto¬falantes, ou seja, as coisas abandonam o seu lugar e uso cotidiano e ganham vida, atuam, decidem com, junto ou pelos homens.

Porém, na primeira peça escrita por Maiakóvski, a animação de formas e objetos acontece de maneira surpreendente, inusitada e sobretudo poética. Em “Vladimir Maiakóvski: uma tragédia”, com exceção da personagem o poeta Maiakóvski, as demais são extraídas de um universo não naturalista, fragmentos de homens, mutiladas, como se fossem coisas saídas de um mundo onde objetos e formas são possuídas de vida.

As principais personagens da Tragédia são as seguintes: Vladimir Maiakóvski, um poeta (20 a 25 anos de idade); A Mulher Enorme, sua amiga (5 a 7 metros de altura, não fala); Velho com Gatos Negros e Magros (milha-res de anos de idade); Homem Zarolho e Pemeta; Homem com Uma Orelha; Homem sem Cabeça; Homem de Cara Longa e Macilenta; Homem com Dois Beijos; Jovem Convencional; Mulher com Uma Lagrimazinha; Mulher com Uma Lágrima; Mulher com Uma Lagrimazona; Garotos Vendedores de Jornal; Beijos Infantis.

“As personagens concebidas por Maiakóvski são fragmentos de homens. Apresentam-se mutiladas, transformadas, como se fossem coisas. Para cada uma, falta-lhe determinada parte. A mutilação apresenta-se sob dois aspectos: um primeiro, de ordem física, na qual se realça a ausência de

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membros e outros órgãos do corpo, como perna, olho, cabeça e orelha. O segundo se dá pela manifestação hiperbólica da principal característica da personagem. Assim, o Homem com Dois Beijos, por exemplo, destaca sua mutilação emocional e afetiva através do realce dos beijos que lhe parecem inúteis” (Bolognesi, 1987, p.15).

“No primeiro ato, o poeta convoca e incita os mutilados para se rebe-larem contra os burgueses. Deste incitamento, o Velho com Gatos Negros e Magros chama a atenção para a revolta dos objetos. E assim todo o primeiro ato transcorre em tomo da discussão sobre a natureza dos objetos, ou seja, se estes possuem ou não, uma alma. Ao final deste ato o Homem Zarolho e Pemeta vem anunciar a revolta das coisas, que está tomando conta da cidade” (Bolognesi,1987, p.21).

Um pequeno trecho da peça que ilustra a “humanização” dos objetos:

“...De repente,todos os objetos fugiram,rasgando a voz,despojando-se de trapos de nomes obsoletos.As janelas das casas de vinho,como se incitadas por Satanás,salpicaram o fundo das garrafas.As calças fugiramde um alfaiate desmaiadoe foram passearsozinhas,sem fundilhos humanos.Uma cômoda bêbada,de pança boquiabertatropeçam dormitório afora.Espartilhos temerosos de cairdos anúncios “Robes et Modes “, choravam.As galochas estavam severas e apertadas.As meias, feito putas,flertavam com os olhos.Eu voei feito um palavrão.Minha outra perna ainda tenta me alcançar:está a um quarteirão”

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Como se vê, “as coisas abandonam o seu lugar e uso cotidianos, e ganham existência humana. Ao se tomarem autônomos, traduzem conteúdos e propriedades humanas. Neste caminho o texto apresenta a humanização dos objetos, uma expressão poética da coisificação dos homens. Há o desloca-mento do foco de imagem, de sujeito para o objeto” (Bolognesi, 1987, p.23).

Nestas três peças: “Os Banhos”, “O Percevejo” e “Vladimir Maiakó-vski: uma tragédia”, o poeta propõe o uso de formas animadas ou a animação de objetos na cena. Ao dar vida aos objetos, ao humanizar as máquinas, propõe a reflexão sobre a inumanidade dos homens.

Tais objetos, transformados em personagens, são sintéticas, tipificadas, não têm aprofundamento psicológico, não representam um homem específico, mas o sentimento possível de ser reconhecido em todos os homens e mulheres. Por isso são arquetípicas, são máscaras que representam o mundo do trabalho, da sobrevivência, solidariedade, esperança e felicidade a ser consegui da com a Revolução.

Reflexões finais

É possível perceber a amplitude, densidade e complexidade da obra de Maiakóvski. Cada texto estudado trás uma infinidade de elementos que mos-tram a riqueza da obra e apontam para a necessidade de continuar estudando e se surpreendendo com a arte do poeta russo. As rupturas estéticas que fez com a arte ‘teatral do seu tempo podem ser referências para a arte produzida contemporaneamente.

Tais inovações utilizadas com mais freqüência no teatro de bonecos dos últimos 30 anos, Maiakóvski já utilizava nos anos 10 e 20 do princípio do século XX. O emprego, na cena, de muitos e diferentes meios de expressão, procurando complementar e ampliar as expressões do boneco com a presença de diversos tipos de objetos, formas, máscaras e atores/personagens constituíam-¬se em práticas comuns naquela época.

O palquinho tradicional, a tapadeira que historicamente cobria o ma-nipulador e confinava o boneco àquele espaço restrito, foi demolido nas peças escritas por Maiakóvski. O ator-animador rompe com este espaço e passa ocupar um espaço cênico ilimitado. A “destruição” dessa tapadeira deixando à vista os atores-animadores inaugura um novo tipo de atuação. O bonequeiro deixa

9 Tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher.

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de ser apenas o manipulador, para em cena, complementar a interpretação do boneco ou da forma animada.

Maiakóvski antecipa-se a tudo o que até então se fazia na área do tea-tro e principalmente do teatro de bonecos porque vai dar diferentes sentidos e conotações ao objeto animado na cena. Sem abandonar o boneco (forma an-tropomorfa), o poeta recorre a objetos cotidianos, cria novas formas, utensílio dando vida a cada uma delas.Inspirado nas artes populares e nas tradições da commédia dell’arte circo e no teatro de bonecos Petrucka, Maiakóvski não faz simples transposição destas manifestações para a cena, mas as recria, reinventa dando atualidade estética às mesmas.

Revisitar a obra de Maiakóvski possibilita conhecer não só o teatro produzido naquela época como também, permite aprofundar os conhecimentos sobre o teatro de animação produzido contemporaneamente. Rever Maiakóvski estimula a produção de uma arte inquieta, irreverente, destituída de fórmulas prontas e comercialmente certeira. Encoraja a produção de uma arte poetica-mente apaixonada pela vida e pelo futuro da humanidade.

Referências bibliográficas

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MAIAKÓVSKI, Vladimir. Yo o VIadimiro Maiakóvski. Tradução de Lila Guerrero. Buenos Aires: Editorial Platina, 1958.Vladimir Maiakóvski: uma tragédia. Tradução de Nelson Ascher e rev. de Boris Schnaiderman. Datilografado.Mistério Bufo. Tradução de Lila Guerrero. Buenos Aires: Editorial Platina, 1958.Mistério Bufo. Tradução de Dmitri Beliaev. Rio de Janeiro: Musa, 2001.Os banhos. Tradução de Luiz Sampaio Sacchi, rev. Boris Schnaiderman. In: CARDOSO, Reni Chaves. Os banhos: uma poética em cena. Tese de Doutoramento. São Paulo: FFLCH-USP, 1990.Moscou em chamas. Tradução de Luciano Fraga. São Paulo: Mimeo, 1993.O percevejo. Tradução de Alexandre O’Neill. Lisboa: Editorial Pre-sença, s./d.

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ResenhaANTOINE, ANDRÉ. Conversas Sobre a Encenação. Tradução, introdução e notas de Walter Lima Torres. Editora 7 Letras, Rio, 2001.

Antoine no Brasil: Ecos de uma velha polêmica

Edelcio MostaçoCrítico teatral e professor da Universidade do Estado de Santa Catarina

Não sem tempo, ganha versão brasileira um texto primacial da arte da encenação teatral: Conversas Sobre a Encenação, de André Antoine. Datado de abril de 1903, trata-se de uma curta preleção onde o fundador do Théàtre Libre expõe, para um público interessado mas não profissional, alguns de seus balizamentos estéticos relativos à criação e condução do espetáculo.

A caprichada tradução é de Walter Lima Torres - que lhe acrescentou uma introdução e notas -, além de ajuntar ao volume outro sugestivo e oportu-no texto: a conferência que Antoine realiza no Rio de Janeiro, quando de sua excursão pela América Latina. Entre um texto e outro decorrem alguns poucos meses; um funcionando como explicitação do outro, mas albergando o segundo uma resposta a Arthur Azevedo, festejado autor de Teatro a Vapor que, como crítico, não captou a dimensão das inovações.

Comecemos pelo texto histórico. Apontado como o primeiro encenador, no sentido moderno e pleno do termo, somente após longa trajetória artística à frente de seu conjunto de amadores, Antoine lança-se nesta Causerie de la Mise-en-Scène; salientando os principais passos que o conduziram às refor-mas cênicas, inclusas no âmbito maior do naturalismo estético. Elas podem ser englobadas em três grandes conjuntos; embora cada um tenha suscitado enormes esforços para ser implantado: a demolição das convenções, um novo estilo de interpretação e o uso da iluminação cênica, aproveitando-se da recém descoberta lâmpada elétrica.

O teatro francês vinha amargando, ao longo do século XIX, um pesado tributo às convenções estereotipadas, entendidas desde o respeito ao texto, às Os textos de Arthur Azevedo dedicados à excursão de Antoine encontram-se republicados in Faria, João Roberto. Idéias Teatrais - o século XIX no Brasil, Editora Perspectiva, São Paulo, 2001, p. 657-670.

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palavras do autor e sua onisciente presença - que, quando mortos, era invocada em espírito; assim como às normas de representação dos atores, bem vigia-das pelo Conservatório ou transmitidas de geração em geração pelo recurso mimético do metièr; isso tudo embalado em cenários falsos, à base de telões pintados e decorados de papier-maché, sem a menor consciência daquilo que, na modernidade, será denominado lugar cênico. O palco era, sempre, o tablado, uma plataforma para dois atores e uma paixão, necessário para garantir a visão das filas mais detrás.

Desde que tais convenções foram conformadas nos séculos XVII e XVIII, encontram amplo lastro na centúria seguinte, incorporadas e redimen-sionadas pelos estilos vigentes, em que pesem as transformações introduzidas pelo drama romântico e realista. De modo que, mesmo no final do século, recorda Antoine: “lembrem-se ainda do ‘endomingamento’ das nossas atrizes. Elas se vestem menos para determinar suas personagens do que para servir de manequins vivos aos costureiros, às modistas” (p. 27). Uma senhora, ao assistir a uma pantomima, comenta com o marido: “eles não estão falando porque hoje é o ensaio geral!”, grifa o encenador, retratando não apenas o despreparo das platéias como, sobretudo, sua desconsideração e desconhecimento em relação ao que lhes era apresentado (p. 29).

Após esclarecer seus ouvintes de que um árduo trabalho torna-se im-perioso, envolvendo farta equipe técnica e artística, ultimando ínfimos detalhes do produto final antes que a cortina seja aberta, é destacada a importância do regente de todo este processo: o encenador. Para a platéia, quanto mais perfeito o resultado final, menos perceptível é sua figura; escamoteada nas mil e uma soluções com que o artefato final se reveste. Mas sem ele, nada de verdadeira-mente artístico se produz no palco.

Distinguindo o ensaiador do encenador, e este do dono de companhia, Antoine finalmente assenta que sua tarefa possui dois planos distintos: um intei-ramente material (a constituição do espaço cênico servindo de meio para a ação, a marcação dos atores e o agrupamento das personagens) e uma outra imaterial (a interpretação e o movimento do diálogo). Esta segunda, ainda menos detec-tada pelo público, implica na orientação ideológica da montagem. É ela quem organizará os signos, dar-lhes-á significados, executará a invisível partitura que combina e coordena todos os ingredientes do espetáculo, conferindo-lhes rumo e forma específica e sintética.

É esta consciência - mas principalmente o exercício desta arte - que alça

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André Antoine à categoria de encenador, em pleno exercício de sua condição. Becq de Fouquières, vinte anos antes, já havia registrado em seu L’Art de la Mise-en-Scène a indispensável instituição desta figura, mas nunca a experimen-tara na prática. Será no Théàtre Libre que Antoine colocará suas idéias à serviço da renovação naturalista, iniciando a reforma com a abolição dos cenários de papelão, telões pintados e ausência de perspectiva, impondo uma cenografia que reconstruía minuciosamente o ambiente requerido pela ação. Um novo jogo cênico para os atores, agora envolvidos pela “quarta parede”, evitava os gestos não-naturais, os apartes, o arraigado hábito de não falar andando, a proibição das costas para a platéia, etc. Um conjunto de hábitos de palco que, aos olhos de hoje, tornam-se quase risíveis. Mas que, durante séculos, sustentaram a arte da declamação dramática. No Brasil, estiveram vigentes até os anos 40.

A iluminação surge como um recurso à parte: “a luz age fisicamente sobre o espectador: sua magia acentua, sublinha, acompanha maravilhosamente a significação íntima de uma obra dramática. Para obter magníficos resultados não é preciso temer administrá-la, espalhando-a de forma desigual”, p. 37, salienta o autor. As lâmpadas incandescentes, inventadas em 1879, já estavam nos teatros em 1880. Elas vão possibilitar a confecção de focos e, daí, o sentido simbólico de foco narrativo, fornecendo ao encenador um poderoso recurso técnico para organizar esteticamente sua obra. Claro que novas convenções são criadas; mas estas exprimem agora o sabor da inovação, nascidas de ne-cessidades internas à obra.

Uma velha tautologia diz que, para que exista teatro, é necessária a interpenetração de três dimensões: o texto, o ator e o público. Para o teatro moderno, contudo, ela deve ser ampliada, incluindo o sentido da leitura, ou seja, o papel do encenador. É ele o responsável pelas interpenetrações aludi-das, conferindo à cena um significado que, de outro modo, resultaria acéfalo, desgovernado, sem direção. Esta é a lição aqui em pauta..

No Brasil

Em sua excursão à América do Sul, em 1903, o Théàtre Antoine (her-deiro do Théàtre Libre) trouxe quase uma vintena de montagens e os principais jornais cariocas escalaram seus críticos para acompanhar a temporada. Athur

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Azevedo escrevia para o Jornal do Commercio. Adepto da peça-bem-feita, uma fórmula nascida ao longo do século XIX e que havia encontrado entre os realis-tas seus mais tenazes cultores, Azevedo seguia o crítico parisiense Francisque Sarcey letra por letra. E este, fiel defensor das fórmulas consagradas por aquela dramaturgia de algibeira, havia sido o principal alvo do encenador e Emile Zola para imporem suas idéias - e sobretudo seus espetáculos - à capital francesa.

Os conflitos enfrentados pelo naturalismo nos palcos não estiveram longe das mais árduas batalhas. Uma empedernida resistência às novas so-luções, mal disfarçadas sob a capa de uma moralidade vitoriana, objetava os avanços. No Brasil, o naturalismo no teatro enfrentou problemas semelhantes, não chegando a impor-se como movimento estético muito palpável; de modo que, em 1903, ainda causava reservas e só penosamente era suportado em cena.

O repertório da excursão incorporava, além de Zola, autores como Ibsen, Bernstein, Sée, Hauptmann, Curel, entre outros, pontas de lança do naturalismo e da peça de tese, um painel das mais expressivas criações da com-panhia. A inexistência de um aparato de iluminação no Teatro Lyrico, porém, além de sua grandiosidade e existência de largo fosso de orquestra, impediram que as produções recriassem para a platéia carioca toda a intimidade preparada para uma sala de câmara.

Esta é a moldura para a Conferência do Rio de Janeiro, uma prática protocolar destinada à missão cultural (era hábito este esclarecimento das pla-téias, uma vez que as excursões recebiam auxílios governamentais, incorporadas nas “relações internacionais”); mas que, dada a reação de Azevedo, tornou-se também suporte de uma disputa.

Em sua introdução, Walter Lima esclarece este contexto, bem como o centro da discórdia que se trava entre ambos, envolvendo a pièce-bien-fait, pedra angular e sustentáculo das antigas convenções, das tiradas, da scène à faire, das lições de moral saídas pela boca de um raisonneur. Acrescento eu que ela abarca outros e importantes componentes. Embora elogiando os desempenhos, o dramaturgo brasileiro considera o repertório distante da qualidade esperada; acusa Antoine de repetir-se em suas interpretações e, sobre Honra, de Suder-mann (levada no ano anterior pela companhia carioca de Dias Braga), acredita que a montagem brasileira nada deva à parisiense, onde “descontada, porém, a diferença do meio, do ambiente, da educação, do estímulo, dos recursos e, sobretudo, da disciplina, a palma caberia aos nossos” (vide nota).

Ora, a peça-bem-feita reunia o cúmulo das convenções em voga,

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estribada num sistema mercantil que visava quer a bilheteria quanto o conser-vadorismo de temas, enredos e golpes de teatro que, garantidos pelo hábito, auferissem ampla receptividade. Nosso Sarcey dos trópicos, ao defender esta dramaturgia, apenas corroborava um gosto estético passadista e de calculados resultados, também ele um profissional tão comprometido com a bilheteria quanto os elencos que lhe encomendavam textos.

Trata-se menos de estética o fundo desta discussão, do que de resulta-dos sonantes. A renovação naturalista, exatamente em sentido contrário, visava libertar o palco das antigas normas de mimese, introduzindo narrativas ao modo da tranche de vie, apenas pedaços de vidas comuns enredadas em situações co-muns, cotidianas, destituídas de qualquer heroísmo ou efeito outro que não suas angústias, mazelas, obsessões. O proletariado, o homem pobre dos mercados, as lavadeiras, os ceifadores de trigo, contam entre suas personagens de destaque. Compreender isto é compreender o nascimento do teatro moderno, trazido por este drama que efetua um corte experimental na sociedade, golpe certo contra algumas das mais estabilizadas características do aristotelismo cênico.

Esta situação torna-se ainda mais clara quando Azevedo, para defen-der a prata da casa, cita tudo aquilo que não via em nossos palcos - o meio, o ambiente, a educação, o estímulo, os recursos e sobretudo a disciplina -, exatamente as marcas de trabalho do encenador francês. Ora, tudo isso é fruto da encenação, a materialização do sentido de leitura da obra, inteiramente evaporada na apreensão de nosso crítico a vapor.

Perdeu ele a chance de enxergar exatamente o novo, para onde apontava a renovação cênica naturalista. E, finalmente, ao ver no Antoine ator apenas uma repetição de si mesmo, quando não interpretava papéis elaborados “sob composição”, Azevedo deixa de perceber outra de suas decisivas frentes de trabalho, a desmontagem da interpretação tipificada, paradigma que sustentava o medíocre modo de apresentação dos atores correntes.

Foi contra esta declamação exteriorizada, cheia de esgares e trejeitos, em busca dos efeitos fáceis e repetitivos, “solicitando a todo custo a aprovação do público por meio de macetes e truques de mètier”, que o encenador colocou-se contra; almejando um novo intérprete em que “todo seu físico faz parte de cada personagem representado e que, em certos momentos da ação, suas mãos, suas costas, seus pés podem ser mais eloqüentes do que um longo monólogo; que a cada vez que o ator é percebido sob o personagem, a fábula dramática é interrompida” (p. 39).

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O que aqui temos evocado é o novo ator de matriz psicológica, interio-rizado, cercado de intenções e fiel à uma partitura interpretativa concebida rente à evolução dramática de sua alteridade cênica, perfeitamente concretizado, nos anos subsequentes, por Stanislavski. Como se vê, as grossas lentes passadistas de Arthur Azevedo impediram-no de vislumbrar exatamente onde estava o fulcro da renovação cênica de Antoine. Teríamos ainda de esperar quase meio século para que tais conquistas, novamente cruzando o Atlântico, viessem a ser aceitas entre nós, pelas mãos de Os Comediantes.

Possibilitar tais cogitações e reflexões é um mérito trazido por esta oportuna tradução, num momento em que a figura do encenador novamente ocupa o centro do debate.