universos de sentido na população de baixa renda_matrizes

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CLOTILDE PEREZ* SÉRGIO BAIRON** Universos de sentido da população de baixa renda no Brasil: semânticas da estabilidade, da ascensão social e da mobilidade Universes of meaning for the low-income populace in Brazil: semantics of stability, of social ascent and mobility RESUMO O objetivo da presente pesquisa foi identificar e compreender as semânticas básicas recorrentes no cotidiano da população de baixa renda no Brasil. Para tanto, o estudo baseou-se nas reflexões acerca da linguagem popular de Michel De Certeau (1996) e Agnes Heller (1987), a linguagem como jogo de Ludwig Wittgenstein (1989) e a erosão dos sentidos de Arjun Appadurai (2004). Integramos as considerações sobre a contem- poraneidade por meio dos textos de Bauman (2008), Lipovetsky (1989, 2004a, 2004b) e Hall (1992) sobre os diferentes sujeitos e o sujeito pós-moderno. Os resultados desta bricolagem metodológica nos levaram a identificar três semânticas básicas recorrentes na construção dos sentidos do consumo da população de baixa renda, a semântica da estabilidade, a semântica da ascensão social e a semântica da mobilidade. Palavras-chave: Brasil, baixa renda, mobilidade, ascensão social, universo de sentido ABSTRACT e objective of this research was to identify and understand the basic recurring semantics in the everyday life of the low-income populace in Brazil. To accomplish this, the study was based on the reflections regarding popular language by Michel De Certeau (1996) and Agnes Heller (1987), language-game by Ludwig Wittgenstein (1989) and the erosion of meaning of Arjun Appadurai (2004). We integrated the consider- ations about the contemporaneity with writings by Bauman (2008), Lipovetsky (1989, 2004a, 2004b) and Hall (1992) regarding the different subjects and the post-modern subject. e results of this methodological bricolage have led us to identify three basic recurring semantics in the construction of meanings of consumption among the low-income populace, the semantics of stability, the semantics of social ascent and the semantics of mobility. Keywords: Brazil, low income, mobility, social ascension, universe of meaning 177 * Livre docente em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP. Pós- Doutora em Comunicação pela Universidad de Murcia, España. Professora convidada da Universidade Católica Portuguesa e da Universidad de Murcia, Espanha. Vice-líder do GESC 3 – Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo. E-mail: [email protected] ** Livre docente pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP, onde exerce atividades docentes e de pesquisa na temática do Audiovisual, da Hipermídia e da Produção Partilhada do Conhecimento. É lider do CEDIPP – Centro de Comunicação Digital e Pesquisa Partilhada. E-mail: [email protected].

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Padrões de consumo cultural nas classes emergentes

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  • C L O T I L D E P E R E Z *

    S R G I O B A I R O N **

    Universos de sentido da populao de baixa renda no Brasil: semnticas da estabilidade, da ascenso social e da mobilidadeUniverses of meaning for the low-income populace in Brazil: semantics of stability, of social ascent and mobility

    ResUmoO objetivo da presente pesquisa foi identificar e compreender as semnticas bsicas recorrentes no cotidiano da populao de baixa renda no Brasil. Para tanto, o estudo baseou-se nas reflexes acerca da linguagem popular de Michel De Certeau (1996) e Agnes Heller (1987), a linguagem como jogo de Ludwig Wittgenstein (1989) e a eroso dos sentidos de Arjun Appadurai (2004). Integramos as consideraes sobre a contem-poraneidade por meio dos textos de Bauman (2008), Lipovetsky (1989, 2004a, 2004b) e Hall (1992) sobre os diferentes sujeitos e o sujeito ps-moderno. Os resultados desta bricolagem metodolgica nos levaram a identificar trs semnticas bsicas recorrentes na construo dos sentidos do consumo da populao de baixa renda, a semntica da estabilidade, a semntica da ascenso social e a semntica da mobilidade.Palavras-chave: Brasil, baixa renda, mobilidade, ascenso social, universo de sentido

    ABstRActThe objective of this research was to identify and understand the basic recurring semantics in the everyday life of the low-income populace in Brazil. To accomplish this, the study was based on the reflections regarding popular language by Michel De Certeau (1996) and Agnes Heller (1987), language-game by Ludwig Wittgenstein (1989) and the erosion of meaning of Arjun Appadurai (2004). We integrated the consider-ations about the contemporaneity with writings by Bauman (2008), Lipovetsky (1989, 2004a, 2004b) and Hall (1992) regarding the different subjects and the post-modern subject. The results of this methodological bricolage have led us to identify three basic recurring semantics in the construction of meanings of consumption among the low-income populace, the semantics of stability, the semantics of social ascent and the semantics of mobility.Keywords: Brazil, low income, mobility, social ascension, universe of meaning

    177

    * Livre docente em Cincias da Comunicao pela Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo ECA/USP. Ps-Doutora em Comunicao pela Universidad de Murcia, Espaa. Professora convidada da Universidade Catlica Portuguesa e da Universidad de Murcia, Espanha. Vice-lder do GESC3 Grupo de Estudos Semiticos em Comunicao, Cultura e Consumo. E-mail: [email protected]

    ** Livre docente pela Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo ECA/USP, onde exerce atividades docentes e de pesquisa na temtica do Audiovisual, da Hipermdia e da Produo Partilhada do Conhecimento. lider do CEDIPP Centro de Comunicao Digital e Pesquisa Partilhada. E-mail: [email protected].

  • 178 matrizes Ano 7 n 2 jul./dez. 2013 - So Paulo - Brasil CLOTILDE PEREZ - SRGIO BAIROn p. 177-191

    Universos de sentido da populao de baixa renda no Brasil: semnticas da estabilidade, da ascenso social e da mobilidade

    o fenmeno dA BAixA RendA

    Marco nas discusses sobre o fenmeno da baixa renda, o livro A Riqueza na Base da Pirmide de C.K. Prahalad (2005) trouxe a ateno do mundo para essa parte da populao que parecia fantasmagrica, desconsiderada, alijada socialmente. Certamente, as reflexes de Prahalad con-triburam para que essa parcela da populao fosse percebida no mais como uma massa de excludos e deixasse de ser desprezada pelos empresrios os quais partilhavam do entendimento corrente de que a responsabilidade por tal contingente de pessoas era exclusividade dos governos. Passou-se ento ao entendimento de que essas pessoas a maioria da populao mundial, cerca de 4 bilhes (Prahalad, 2005:3) no apenas existiam como tambm faziam parte dos processos sociais e econmicos e que era possvel obter riqueza e levar prosperidade e desenvolvimento em uma perspectiva ao mesmo tempo humanista e capitalista.

    Apesar de fenmeno mundial, muitas reflexes se debruam sobre as popu-laes de baixa renda da Amrica Latina que, segundo Nardi (2009:29), baseado nas informaes do Cepal (2007), apresenta potencial para o consumo de 301 milhes de pessoas na regio.

    Outra questo central que surge entender os limites e contornos econ-micos e sociais dessa populao. Segundo o CCEB Critrio de Classificao Econmica Brasil (ABEP, 2011) os indivduos de baixa renda no Brasil integram as classe C, D e E. So pessoas que vivem com renda familiar abaixo de R$ 1.459,00 (C1, C2, D e E) e representam aproximadamente 78% da populao do pas, o equivalente a 148 milhes de pessoas.

    No Brasil, principalmente em funo da estabilidade da economia nos lti-mos anos e de uma srie de medidas governamentais direcionadas aos pblicos de baixa renda crescente o interesse de empresas e investidores nacionais e internacionais nessa populao. Agora j no so mais apenas foco de polticas assistencialistas do governo, das entidades confessionais, dos servios de ateno social e organizaes da sociedade civil.

    O fenmeno no Brasil tem contornos especficos uma vez que est em pleno movimento de ascenso, o que implica distribuio de renda e um caminho de equidade e de diminuio das camadas menos privilegiadas, como pode ser visto na tabela 1, na qual a classe DE que representava 51% da populao do pas em 2005, em 2011 passou a representar 24%, uma queda acentuada em muito pouco tempo. Segundo informaes do relatrio Observador Brasil 2012 (Cetelem), constatou-se novamente a mobilidade ascendente do brasileiro: entre 2010 e 2011, 2 milhes e 700 mil brasileiros deixaram a classe DE e mais de 230 mil brasileiros entraram na classe AB. Tambm foi verificado novo aumento

    JSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroNotaO perfil das classes C, D e EJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealce
  • 179Ano 7 n 2 jul./dez. 2013 - So Paulo - Brasil CLOTILDE PEREZ - SRGIO BAIROn p. 177-191

    n a s p e s q u i s a s d e c o m u n i c a o

    em pautauniverses of meaning for the low-income populace in Brazil: semantics of stability, of social ascent and mobility

    da renda mdia disponvel dos brasileiros, com crescimento de mais de 20% em relao edio 2009/2010. Destacamos a renda mdia disponvel dos brasileiros da classe C, que teve um crescimento de 50% neste perodo.

    tABelA 1: distRiBUio dA PoPUlAo BRAsileiRA

    Fonte: Pesquisa Cetelem-Ipsos (2011: 23)

    J no temos pirmide social no pas, mas um losango alongado que mais indicia um corpo em crescimento do que um espao geomtrico e estanque.

    figURA 1: imAgem gRficA dAs clAsses sociAis no BRAsil

    Fonte: Observatrio Brasil 2012. Pesquisa Cetelem-Ipsos (2011:.22)

    Como pensam e agem essas pessoas? O que valorizam? Qual o impacto das mudanas nas suas relaes de consumo? E como podemos entender os caminhos comunicacionais consequentes em meio a tantas e profundas trans-formaes em to pouco tempo? Essas so algumas das questes que tentamos encaminhar.

    lingUAgem oRdinRiA e cotidiAno: AsPectos comUnsA questo central que levantamos neste artigo pretende associar as classes C, D e E, entendidas como baixa renda, com reflexes tericas a respeito da

    r e n d a

    1 9

    EVOLUTIVO

    Classe2005 2006 2007 2008 2009 2010

    % % % % % %

    AB 15 18 15 15 16 21

    C 34 36 46 45 49 53

    DE 51 46 39 40 35 25

    DISTRIBUIO DA POPULAO BRASILEIRA

    POR C LASSE DE C O NSUMO

    MOBILIDADE SO C IAL

    NMERO ABSOLUTO DE PESSOAS

    EVOLUTIVO

    Classe 2005 2006 2007 2008 2009 2010

    AB 26.421.172 32.809.554 28.078.466 29.377.015 30.217.541 42.195.088

    C 62.702.248 66.716.976 86.207.480 84.621.066 92.850.384 101.651.803

    DE 92.936.688 84.862.090 72.941.846 75.822.249 66.884.870 47.948.964

    Total 182.060.108 184.388.620 187.227.792 189.820.330 189.952.795 191.795.854

    2005 2010

    CLASSES DE92.936.688

    CLASSE C62.702.248

    CLASSES AB 26.421.172

    CLASSES AB 42.195.088

    CLASSE C101.651.803

    CLASSES DE47.948.964

    r e n d a

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    EVOLUTIVO

    Classe2005 2006 2007 2008 2009 2010

    % % % % % %

    AB 15 18 15 15 16 21

    C 34 36 46 45 49 53

    DE 51 46 39 40 35 25

    DISTRIBUIO DA POPULAO BRASILEIRA

    POR C LASSE DE C O NSUMO

    MOBILIDADE SO C IAL

    NMERO ABSOLUTO DE PESSOAS

    EVOLUTIVO

    Classe 2005 2006 2007 2008 2009 2010

    AB 26.421.172 32.809.554 28.078.466 29.377.015 30.217.541 42.195.088

    C 62.702.248 66.716.976 86.207.480 84.621.066 92.850.384 101.651.803

    DE 92.936.688 84.862.090 72.941.846 75.822.249 66.884.870 47.948.964

    Total 182.060.108 184.388.620 187.227.792 189.820.330 189.952.795 191.795.854

    2005 2010

    CLASSES DE92.936.688

    CLASSE C62.702.248

    CLASSES AB 26.421.172

    CLASSES AB 42.195.088

    CLASSE C101.651.803

    CLASSES DE47.948.964

    JSFaroNotaMobilidade entre 2010 e 2011JSFaroRealceJSFaroRealce
  • 180 matrizes Ano 7 n 2 jul./dez. 2013 - So Paulo - Brasil CLOTILDE PEREZ - SRGIO BAIROn p. 177-191

    Universos de sentido da populao de baixa renda no Brasil: semnticas da estabilidade, da ascenso social e da mobilidade

    linguagem enquanto expressividade cotidiana, popular e do senso comum. Buscamos esta interlocuo na linguagem ordinria de Michel De Certeau (1996), no cotidiano como definido por Agnes Heller (1988), na linguagem como jogo de Ludwig Wittgenstein (1989) e na eroso dos sentidos de Arjun Appadurai (2004), alm do conceito de turboconsumidor de Lipovetsky (2004b), esferas do filsofo Peter Sloterdijk (2006), da paralaxe de Slavoj iek (2008) e do imaginrio de Castoriadis (1989). Com isto queremos enfatizar a importncia de uma fundamentao interdisciplinar para compreender os universos de sentido da populao de baixa renda no Brasil. Constatamos que a recente ascenso econmico-social dessa populao, tem colocado, por um lado, em maior evidncia algumas das caractersticas que sempre fizeram parte da lin-guagem ordinria popular e, por outro, tem inaugurado comportamentos e sentidos baseados em novas formas de comunicao e acesso educao, cultura e informao que sempre estiveram margem dessa populao.

    Atualmente nas classes populares h uma grande tendncia para o consumo de produtos que representam incluso scio-simblica (Appadurai, 2004). A incluso sintoma de pertencimento a um mundo que no fazia parte da tradio da prpria famlia. Isto ocorre por meio da conscincia da ruptura com a tradio histrico-familiar. O fato de seus integrantes manifestarem uma grande vontade de incluso, ao contrrio do que podemos pensar, os transforma em consumidores mais seletivos, crticos e fiis, ou seja, no momento em que acertam o produto ou a marca, dificilmente mudaro. Nesse sentido, os jogos de linguagem agem como eroso dos signos do consumo, mas, ao mesmo tempo, atuam como tticas e estratgias cotidianas de reconstruo dos significados constitudos (Castoriadis, 1989). Nesse contexto heterrquico, as prprias maneiras de interpretar o que representa ou no incluso acabam sendo movedias (Sloterdijk, 2006).

    Um dos motivos da existncia dessa linguagem escorregadia, que dificil-mente conseguimos agarrar para entender, que essa populao vive a condio atual do mundo das esferas, ou seja, um ecossistema econmico, social e cultural que mescla relaes aleatrias entre as mdias de massa e as tecnologias digitais da mobilidade (Sloterdijk, 2006). O que garante sua relativa estabilidade no cotidiano so as suas caractersticas de familiaridade. A grande maioria dos membros da famlia est prxima geograficamente, portanto, valorizam seu habitat (vila, bairro, rua) como uma extenso da prpria famlia. o conceito topoantropolgico de esfera bolha (Sloterdijk, 2006: 89) que pode explicar, inclu-sive, as grandes diferenas entre as classes populares (como a nfase na sociabi-lidade) e as classes A e B (como a nfase na individualidade). A identidade nas classes populares construda a partir de sua base simblica, definida tanto por determinaes geogrfico-humanas quanto por caractersticas da mobilidade.

    JSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroNotaReferenciais terico-metodolgicosJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroNotaEsta a hiptese com a qual trabalho no meu Projeto de Pesquisa: narrativas da cultura na sociedade emergente.JSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealce
  • 181Ano 7 n 2 jul./dez. 2013 - So Paulo - Brasil CLOTILDE PEREZ - SRGIO BAIROn p. 177-191

    n a s p e s q u i s a s d e c o m u n i c a o

    em pautauniverses of meaning for the low-income populace in Brazil: semantics of stability, of social ascent and mobility

    O cotidiano trouxe desafios que foram enfrentados pela coletividade e no somente pelos indivduos isolados. Laos de familiaridade existem para muito alm do espao da casa. Caractersticas fundamentais que explicam o motivo da maioria que ascende socialmente no abandonar o bairro. Compartilhar intimidades a universalidade caracterstica da construo da identidade co-munitria nas classes populares. A principal tarefa deve ser a defesa do espao pblico: lugar onde os problemas privados so traduzidos para a linguagem das questes pblicas e solues pblicas para os problemas privados so buscadas, negociadas e acordadas. Cenrio bem diferente das realidades das classes A e B. Ou seja, nas classes populares questes privadas so discutidas e emergem da exposio pblica e so reafirmadas como privadas. Os problemas privados no se tornam questes pblicas pelo fato de serem ventilados em pblico; mesmo sob o olhar pblico no deixam de ser privados (De Certeau, 1996).

    Nesse jogo entre o pblico e o privado, preponderam o sacrifcio de satis-faes imediatas em funo de objetivos distantes e o sacrifcio de satisfaes individuais em nome do bem-estar de um grupo, sobretudo, no universo das mulheres. Este fenmeno tem acontecido apesar do grande acesso informao que , cada vez mais, acompanhado de um acesso cultura e educao, o que tambm tem proporcionado uma igualmente grande aproximao do universo simblico da classe A. justamente a proximidade e um maior convvio com os produtos da Classe A, que est criando uma situao curiosa: pessoas de baixa renda esto desenvolvendo um imaginrio mais crtico e mais seletivo. No entanto, este senso crtico no pode ser considerado, pura e simplesmente, uma doutrinao interclassista, mas um imenso universo imaginrio que atua de forma desordenada e diversifica, cada vez mais, os grupos que existem no interior das classes populares e seus cotidianos simbolicamente dinmicos (Heller, 1988).

    As classes populares esto aprendendo a lidar, em nvel emocional, com a temporalidade curta dos objetos de desejo consumidos. Esto vivendo a experincia de que o consumo semanal ou mesmo cotidiano, assim como a temporalidade do universo simblico associado aos produtos est mais curta. Vivem a realidade de que, nos dias de hoje, as mensagens so no aditivas e dificilmente carregam uma temporalidade muito longa. Ou seja, ou atingi-mos a sua ateno imediatamente ou no atingiremos mais. No interior desta realidade, a representao publicitria de espaos que sejam interditrios, ou seja, que apenas sirvam para serem admirados por sua imponncia e que no convidam seus visitantes a interagirem, perde fora a cada dia (Bairon, 2011: 28). A grande questo que ostentao representa abundncia, quantidade e familiaridade, nunca apenas contemplao e exclusividade. Os signos da

    JSFaroRealceJSFaroNotaTenho dvidas a respeito. O valor simblico no consumo das marcas reforou o individualismo, mas os "rolezinhos", por exemplo, reforaram o coletivo.JSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealce
  • 182 matrizes Ano 7 n 2 jul./dez. 2013 - So Paulo - Brasil CLOTILDE PEREZ - SRGIO BAIROn p. 177-191

    Universos de sentido da populao de baixa renda no Brasil: semnticas da estabilidade, da ascenso social e da mobilidade

    abundncia expressam um imaginrio importante para toda tradio popu-lar. A abundncia est repleta de interpretantes da vitria sobre a escassez, no interior dos quais objetos de desejo representados em grande quantidade significam saciao e satisfao: por exemplo, a mesa repleta de comida ou a sacola cheia de compras agem, prioritariamente, como uma vitria sobre as adversidades. As marcas e produtos so somente instrumentos dessa engre-nagem (Perez, 2004).

    Da o mundo dos interpretantes emocionais ser definido por uma fren-quente reinveno. Em funo das dificuldades histricas, os integrantes das classes populares lidam de uma maneira muito menos dramtica com as noes de crise. As tecnologias da comunicao tambm adquirem um alto grau de afetividade. O simbolismo da comunicao dialgica por meio de tecnologia mobile, redes sociais etc., acabam representando a extenso do entorno da familiaridade da qual falamos acima (Bairon, 2010). Melhorar a casa metfora da expanso social, alm de aumentar a autoestima, tambm significa construir uma habitao socioeconmica. Cada objeto decorativo, eletrodomstico ou eletrnico, age como um elemento simblico material da ascenso social, no somente na intimidade familiar mas tambm entre seus vizinhos e amigos. H uma grande multiplicidade de ofertas de produtos, que pode ser relacionada com uma igualmente multiplicidade de manifestaes do eu na contemporaneidade, que refora o sentido da ascenso e vitria contra a escassez. Portanto, produtos e servios agem como uma espcie de reflexi-vidade, espelhamento dessa condio de familiaridade, por mais que estes limites estejam ficando obscuros, eles sempre estaro presentes no imaginrio do homem comum. Em ambientes que propiciam a ascenso social, as pessoas vivem a sensao de reconhecer o que h de melhor em si prprias por meio dos produtos consumidos, semelhante ao dos jogos de linguagem que somente valorizam os sentidos das coisas do mundo por meio da familiaridade com a ao cotidiana (Wittgenstein, 1989).

    Tambm o espao em que a esttica acontecia, de forma a seguir somente alguns modelos, no existe mais. Princpios como o multiculturalismo e diver-sidade cultural acabaram subjetivando a tendncia de padronizao esttica. Hoje, os integrantes das classes populares podem viver uma liberdade maior, sobretudo, por transitarem em mais de uma realidade no tocante s suas op-es estticas e de comportamento. Vivem a realidade de que no h como superar a diversidade. J vivem fortemente a inconscincia presente na ao do consumo, ou seja, com o tempo, torna tanto o consumo de bens caros quanto a relao entre esttica e cuidados com a sade, aes cada vez mais automticas e inconscientes (De Certeau, 1996).

    JSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroNotaO Lulismo captou isso mais pela sensibilidade poltica do que pelo rigor conceitual e acadmicoJSFaroRealceJSFaroNotaFundamental
  • 183Ano 7 n 2 jul./dez. 2013 - So Paulo - Brasil CLOTILDE PEREZ - SRGIO BAIROn p. 177-191

    n a s p e s q u i s a s d e c o m u n i c a o

    em pautauniverses of meaning for the low-income populace in Brazil: semantics of stability, of social ascent and mobility

    No por acaso que no universo de sentidos das classes populares a mulher tem assumido a liderana, inclusive, no aspecto econmico-social. Essa nova realidade aumenta tremendamente a autoestima e coloca a mulher num cenrio cotidiano de liderana. O predomnio do feminino sobrevaloriza as narrativas (signos) emocionais a respeito de produtos e servios e incentiva a recomposio dos valores morais e ticos. Um dos sintomas mais significativos est calcado no fator do aumento da insero feminina no mbito educacional, pelas in-formaes do INEP (2010) as mulheres j representam 44,2% dos formandos em cursos de graduao, contra 38% dos homens. O fato de fazer faculdade ser algo inaugural na maioria das famlias, sobretudo no caso de formandas, age como um interpretante simblico da ascenso social absolutamente indito na histria do Brasil. As narrativas que se desdobram da indicam no ser somente o indivduo que est em ascenso mas a famlia inteira est sendo carregada simbolicamente pela mulher. Alm de uma ressignificao sociofamiliar, a educao um bem que tambm provoca profundas transformaes em nvel psicolgico, pois eleva a autoestima e oferece uma maior segurana frente velocidade das mudanas.

    A imeRso semnticA no cotidiAno: AsPectos diveRsosAps a articulao e a imerso terica interdisciplinar que permitiu o apro-fundamento no corpus da pesquisa, passamos fase da recepo sgnica. A pesquisa emprica foi estruturada por meio da integrao entre diferentes ca-minhos e tcnicas qualitativas. Foram organizados oito grupos de discusso, com aplicaes de tcnicas projetivas, com o objetivo de entender os valores sociais e sua relao com questes culturais e identitrias, tais como educao, cultura, famlia, trabalho, consumo etc. A segunda fase integralizou os resul-tados qualitativos de 18 entrevistas em profundidade, tanto com especialistas em polticas pblicas para baixa renda e estudiosos da questo com vistas ao entendimento da influncia das aes governamentais nas diferentes esfe-ras, quanto com vendedores, comerciantes e empregadores de pessoas que se enquadravam no critrio baixa renda, para compreender as movimentaes de sentido percebidas.

    A terceira fase contou com a imerso, por meio da abordagem etnogrfica, acompanhada do registro fotoetnogrfico e flmico de mais de 100 horas de observao e observao participantes em distintas localidades das regies Sudeste e Nordeste do Pas. Os espaos contemplaram tanto o ambiente do-mstico quanto pblico, principalmente em situaes de consumo, tanto nos rituais de busca, quanto de compra, uso, posse (McCraken, 2003) e descarte.

    JSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealce
  • 184 matrizes Ano 7 n 2 jul./dez. 2013 - So Paulo - Brasil CLOTILDE PEREZ - SRGIO BAIROn p. 177-191

    Universos de sentido da populao de baixa renda no Brasil: semnticas da estabilidade, da ascenso social e da mobilidade

    Para estruturar e integrar os resultados das reflexes tericas com a fase emprica optou-se pelo caminho da semitica de Peirce (1977), que nos fornece rentveis condies de anlise e apresentao das concluses, quando acionamos o conceito de interpretante peirceano como efeito de sentido desejvel, ainda que este necessite de uma mente interpretadora para sua atualizao. Assim, para chegar aos interpretantes (efeitos de sentido potenciais e reais), partiu-se para a anlise qualitativo-icnica emocional, segmentadas como: objetos de desejo, familiaridades e fantasias; singular-indicial funcional: temporalidades, espa-cialidades e sociabilidades, para finalmente achegar ao nvel dos interpretantes.

    Os resultados desta bricolagem metodolgica nos levou a identificar trs semnticas bsicas na construo dos sentidos do consumo da populao de baixa renda: a semntica da estabilidade, a semntica da ascenso social e a semntica da mobilidade, que podem ser verificadas de forma sinttica na tabela 2 e, a seguir, de forma mais detalhada.

    tABelA 2 sntese dAs 3 semnticAs dA BAixA RendA

    cRitRios estABilidAde Ascenso sociAl moBilidAde

    Objetos Desejo

    Modestos e cotidianos

    Arrojados sofisticados

    Intangveis e tangveis

    QUALITATIVOICNICOEMOCIONAL

    Familiaridade Mais dedicado ao outro

    Mais dedicado a si prprio

    Dedicado a si prprio incluindo o outro

    Fantasias Afetivas e familiares

    Pragmticas e hedonistas

    Intelectuais e culturais

    Temporalidade Esttica futuro como manuteno do status

    Imediatista: consumo gil e pragmtico

    Subjetiva: predomnio do conhecimento

    SINGULARINDICIALFUNCIONAL

    Espacialidade Local: total doao ao entorno imediato

    Global: voltado individualidade

    Lquida: adaptada subjetividade

    Sociabilidade Prioridade na famlia e vizinhana

    Prioridade ao individualismo

    Prioridade ao crescimento pessoal

    LEGISIMBLICOFINAL

    Predomnio do nvel emocional

    Predomnio do nvel lgico

    Predomnio do nvel funcional

    Fonte: Elaborao dos autores

    A Semntica da Estabilidade refere-se ao contexto de narrativas eviden-ciadas por pessoas que se apresentam satisfeitas com as conquistas alcanadas. Geralmente so manifestaes oriundas de pessoas e famlias que recentemente

    JSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroNota3 semnticas na construo de sentidos: estabilidade, ascenso social e mobilidadeJSFaroRealce
  • 185Ano 7 n 2 jul./dez. 2013 - So Paulo - Brasil CLOTILDE PEREZ - SRGIO BAIROn p. 177-191

    n a s p e s q u i s a s d e c o m u n i c a o

    em pautauniverses of meaning for the low-income populace in Brazil: semantics of stability, of social ascent and mobility

    passaram a integrar a classe C, vindas das classes mais baixas: D (renda familiar de R$ 680,00) ou daquelas que estavam na classe E (renda familiar de R$ 415,00) e ascenderam D (a mobilidade em algumas situaes foi to transformadora que alguns indivduos passaram da total excluso classe E diretamente para a classe C, principalmente como decorrncia da melhoria do emprego e das polticas de transferncia de renda do Governo Federal nos ltimos 9 anos).

    Essas pessoas revelam certo conformismo, explicado pela recente ascenso e pela satisfao proporcionada. Ainda esto sob os efeitos do prazer das mni-mas conquistas, do pequeno conforto, da sada da condio de excluso de boa parte dos servios essenciais da vida em sociedade. Uma expresso foi muita significativa nessa perspectiva: literalmente samos do lombo do jegue para a Dafra, disse um de nossos entrevistados em Feira gua de Menino, Salvador Bahia, referindo-se mudana na mobilidade, do jegue para a motocicleta popular e de fcil crdito.

    O entorno extremamente valorizado. O espao vivido, a casa, o bairro, o comrcio local, tudo signo de segurana e deve ser mantido. A prioridade total para a famlia e para as pessoas mais prximas, principalmente os vizi-nhos, sobressaindo-se enormemente a dimenso da coletividade e at de uma concepo de famlia ampliada. Os objetos de desejo esto presentes ainda que contidos e modestos, tais como a melhoria cotidiana dos eletrodomsticos, onde nem sempre a compra intermediada pelo dinheiro o caminho para isto, h situaes onde a troca ainda um forte mecanismo de movimentao do mundo material.

    A familiaridade um valor integral, est presente em vrios aspectos (es-pacialidade, sociabilidade...) e o que garante o pertencimento e a segurana psquica. As fantasias so predominantemente afetivas e tambm familiares, passando por dar uma vida melhor para os filhosa conseguir visitar os pais que esto distantes, como interpretante pretendido h o predomnio do nvel emocional para garantir o reforo psquico identitrio.

    Essas pessoas, por um lado, adquiriram uma grande resistncia s crises e dificuldades, por meio de uma maior convivncia com problemas mais materiais e simblicos do que conceituais e imaginrios. Por outro lado, o imaginrio aqui age por meio de um universo de narrativas que sustentam a satisfao com o mundo conquistado, uma espcie de concluso que permanecer socialmente onde est o principal sintoma de conquista social.

    Outra caracterstica com fundamental impacto para a comunicao a demanda para orientao. Justamente por estarem vivendo momentos inau-gurais como pde ser observado em vrias situaes de consumo relaciona-das ao acesso e procedimentos de embarque em rodovirias e aeroportos, no

    JSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroNotaTalvez a gravidade da crise atual tenha posto isto em cheque...JSFaroRealce
  • 186 matrizes Ano 7 n 2 jul./dez. 2013 - So Paulo - Brasil CLOTILDE PEREZ - SRGIO BAIROn p. 177-191

    Universos de sentido da populao de baixa renda no Brasil: semnticas da estabilidade, da ascenso social e da mobilidade

    uso datelefonia celular com aparelhos smartphones, tecnologias touch, como tambm comportamentos em lojas e restaurantes ficou evidente o desconhe-cimento sobre questes de direitos bsicos e at legais, como preferncia em filas ou atendimento prioritrio. A semntica da estabilidade tem a marca da continuidade, o tempo est centrado na permanncia, ou seja, o futuro como manuteno do presente, sem projees e conquistas evidentes. a valorizao do entorno imediato, do bairro, do comrcio local, do espao conhecido que tambm sinaliza o desenvolvimento. A busca mais marcante pela extenso para o futuro do que se tem hoje e, nesse aspecto, importante lembrar que a mobilidade recente e que a memria de um passado ruim e to presente pura pulso pela permanncia do que j se conquistou. o desejo do deixa como est, que est muito bom, parafraseando Luiz Gonzaga (1912-1989) e tambm como uma homenagem ao centenrio de seu nascimento, o tom Ah, isso aqui t bom demais!.

    A Semntica da Ascenso Social refere-se ao contexto das narrativas mais individualistas e singulares. Trata-se daquelas expresses e comportamentos voltados para conquistas mais individuais do que coletivas. O sentimento de imediatismo e de posse de objetos marcadores sociais mais significativo do que as projees em mdio e longo prazo. A grande aspirao est em ser aceito imediatamente pela Sociedade, a pertencer, e assim, os signos do consumo que expressam tal condio so muito valorizados, espao privilegiado para as marcas. Essas pessoas identificam-se com o Universo Simblico da Classe A, inclusive com a aquisio de produtos e marcas desse universo referencial, o que confirmam Lipovetsky & Roux o luxo no to destinado apenas clientela de elite, mas para a parte elitista de cada um (2005: 94). Buscam alternativas de antecipao de consumo, por meio de crdito, liquidaes e assemelhados, sempre em uma perspectiva de fisgar o universo da exclusividade to prprio do mercado de luxo.

    Em meio a tudo isso, tambm valorizam narrativas de superao, do tipo eu venci, agora eu posso e, claro, eu mereo, nas quais se inscrevem as aquisies de produtos e servios como autoindulgncias, tanto de bens materiais quanto de experincias gastronmicas e de lazer.

    Na semntica da ascenso social percebemos a forte valorizao do momento presente, com evidncias de agilidade e pragmatismo em vrios comportamentos e expresses. O maior valor relacionado espacialidade relaciona-se ao indivduo, com destaque para a valorizao do espao privado (ter um quarto exclusivo, por exemplo), mas que tambm pode ser materializar por meio do consumo de moda e objetos pessoais. No que se refere sociabilidade, ela s faz sentido a partir do individualismo, o foco est no indivduo e na sua capacidade de ser reconhecido

    JSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroNotaA camarotizao comea aqui...JSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealce
  • 187Ano 7 n 2 jul./dez. 2013 - So Paulo - Brasil CLOTILDE PEREZ - SRGIO BAIROn p. 177-191

    n a s p e s q u i s a s d e c o m u n i c a o

    em pautauniverses of meaning for the low-income populace in Brazil: semantics of stability, of social ascent and mobility

    singularmente. Os objetos de desejo so diferentes, arrojados e muitas vezes sofisticados, normalmente relacionados s marcas reconhecidas presentes no universo do luxo, tais como perfume CK, ou ainda relacionados tecnologia iPhone, iPad, iPode A familiaridade negligenciada a favor da valorizao do indivduo, o que muitas vezes significa negar esta condio. As fantasias so pragmticas e absolutamente hedonistas, passando por questes relacionadas a se dar bem na vida, ganhar na loteria, comprar uma mquina (carro).

    Identificamos assim o predomnio do interpretante lgico, que est to-talmente de acordo com as narrativas do turboconsumidor descritas por Lipovetsky (2004b).

    A Semntica da Mobilidade baseia-se no contexto das narrativas voltadas para o mundo mais abstrato, com nfase em valores como consumo cultural, educao e crescimento pessoal. A posse de objetos no a prioridade, mas um meio para alcanar valores mais intangveis. Primeiro construmos a pr-pria imagem, para depois sermos reconhecidos. Encontramos aqui a nfase no consumo de viagens, passeios culturais como museus e exposies, cursos de extenso e difuso cultural (presenciais e online), alm da melhoria na qualidade da educao formal, normalmente representada pela escola privada quando se referem ao ensino fundamental e mdio.

    A semntica da mobilidade est centrada na subjetividade da temporalida-de uma vez que a valorizao est no crescimento pessoal, com foco evidente na ampliao do conhecimento. A espacialidade lquida e no mais centrada nas evidncias e marcas da familiaridade apenas, tambm encontra o digital como possibilidade de mobilidade (intelectual e no apenas social). Quanto sociabilidade a importncia direciona-se para o crescimento do indivduo, o que indiretamente beneficia a sociedade, mas por derivao. uma familia-ridade voltada para o indivduo, mas que inclui o outro. Os objetos de desejo centram-se na intangibilidade e surgem com grande nfase os servios pessoais e as viagens, tanto no Brasil, quero conhecer meu pas todinho, quanto para o exterior sabe que ainda no viajei para fora, vou comear por Buenos Aires? Destaca-se tambm a importncia da vida cultural, desde frequentar museus (ainda que procurem os dias em que a entrada seja livre, mais barata ou ainda por meio de doaes), exposies temporrias, cinema (s quartas-feiras mais barato), arte nas ruas, parques e praas (no Horto tem apresentao de msica aos domingos); mas tambm a educao formal e os cursos de difuso cultural, normalmente frequentados a partir das ofertas pblicas, pontos de cultura e/ou de organizaes sociais e religiosas. Os objetos de desejo so mais intelectuali-zados e culturais, como fazer curso de ingls: j sei que tenho que fazer ingls, e vou fazer; agora vou conseguir fazer uma faculdade, antes no dava; ir ao cinema

    JSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroNotaCulturaJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroRealce
  • 188 matrizes Ano 7 n 2 jul./dez. 2013 - So Paulo - Brasil CLOTILDE PEREZ - SRGIO BAIROn p. 177-191

    Universos de sentido da populao de baixa renda no Brasil: semnticas da estabilidade, da ascenso social e da mobilidade

    uma vez por ms um luxo no ? Tambm h evidncias da valorizao de experincias, tanto no discurso do presente, quanto nas projees de futuro: quero viajar de balo, deve ser o mximo!; Viajei pela primeira vez de avio e adorei; Entrei em uma loja e me ofereceram caf, no tinha imaginado que isso poderia acontecer!; Agora que fao minha mo no salo, lendo a revista da semana, t me achando Como vimos, apesar de vrios aspectos emocionais, h o predomnio dos interpretantes funcionais uma vez que h explicitamente a busca de mobilidade social a partir do investimento intelectual em vrios aspectos. Demandam experincia, experimentao e vivncia com valores cul-turais. J notamos aqui as manifestaes do sujeito ps-moderno preconizado por Hall (1992: 13) e suas identidades em deslocamento.

    Nesta semntica, predomina o universo de sentido da educao e da cultura, provocando o surgimento de um senso crtico apurado no tocante utilizao de informaes atualizadas e da busca contnua do aprimoramento educacional. Os cursos de lnguas, fotografia, mas tambm de tcnico de som e DJ, produo de contedo para games, moda e cuidados pessoais surgiram com grande recorrncia nas citaes, principalmente entre os mais jovens. As pessoas que se situam nessa semntica tm uma clara conscincia de que pre-ciso estudar e se informar sempre e continuamente para ascender socialmente, o que j revelador de uma profunda transformao social.

    Como vimos, h uma grande diversidade de valores, aspiraes, senti-mentos, prioridades e aes pragmticas e outras absolutamente subjetivas e emocionais na vida cotidiana da chamada populao de baixa renda no Pas, que no pode ser negligenciada. notrio que a fora e a rapidez com que o fenmeno se revelou (em nvel mundial e local) nos levaram em alguns casos a concluses precipitadas, principalmente relacionadas ao mbito do consumo e da cultura material. Em meios eruditos, empresariais ou populares no era incomum ouvir agora s comprar a tela plana que est tudo certo, se o brasi-leiro estiver na Casas Bahia comprando ele est feliz Esse pensamento, no incomum, estava voltado quase que exclusivamente ao entendimento de que a ascenso social do brasileiro o levaria apenas e to somente ao consumo de bens materiais, o que se provou em nossa pesquisa ser um grande e at pre-conceituoso equvoco. H diferenas importantes e que devem ser tomadas em questo quando temos de ter em considerao a populao de baixa renda, a complexidade um desafio e o olhar distanciado, laboratorial ou estrangeiro no atender a essas expectativas e, assim, novos desafios s pesquisas se apresentam.

    Tambm em perspectiva inovadora no entendimento da complexidade da baixa renda, destacamos o texto de Fogaa (2011) acerca das diferenas sobre o consumo de insero e o consumo de ascenso dessa populao, alm das

    JSFaroRealceJSFaroRealceJSFaroNotaFundamental...JSFaroRealceJSFaroNotaO simplismo na interpretao do processo...JSFaroRealce
  • 189Ano 7 n 2 jul./dez. 2013 - So Paulo - Brasil CLOTILDE PEREZ - SRGIO BAIROn p. 177-191

    n a s p e s q u i s a s d e c o m u n i c a o

    em pautauniverses of meaning for the low-income populace in Brazil: semantics of stability, of social ascent and mobility

    anlises sobre as questes do gosto e o papel da publicidade nesse contexto. Essa e outras reflexes comeam a surgir no mbito das pesquisas em comunicao, o que se revela prodigioso para o campo.

    consideRAes finAisEntender a populao de baixa renda no Brasil um imenso desafio. O tama-nho, a distribuio espacial continental e a diversidade trazem a fora de um fenmeno complexo. No entanto, a realidade se impe e nos impele na busca de saber um pouco mais. Para atender a essa tentativa de compreenso conci-liamos as reflexes tericas de De Certeau (1996), Heller (1987), Wittgenstein (2001), Appadurai (2004) e tambm as problematizaes sobre o imaginrio de Castoriades (1989) e a reflexividade de iek (2008), integrando s discusses sobre a contemporaneidade de Bauman (2008), Lipovetsky (2005, 2004a, 2004b) e Hall (1992). Como fenmeno social movente e fugidio, nos encaminhamos, na tentativa de alguma fixao, aos mtodos qualitativos de pesquisa de recep-o, partindo com discusses em grupos com aplicao de tcnicas projetivas, entrevistas em profundidade com especialistas e imerso com abordagem et-nogrfica em situaes vivenciadas pelas pessoas selecionadas como alvo da pesquisa. Ainda que tenhamos integrado teorias e mtodos, as limitaes da pesquisa so amplas, uma vez que integram desde opes tericas hbridas da comunicao, antropologia, cincias sociais filosofia, passando pelos mtodos selecionados e restries de tempo e espao. Sobre este aspecto, por exemplo, importante se ter em conta que foram privilegiadas as regies Sudeste para as discusses em grupo e Sudeste e Nordeste para as entrevistas e imerses com abordagem etnogrfica. A regio Sudeste foi contemplada parte em funo da convenincia e parte em decorrncia da fora econmica; j a regio Nordeste foi escolhida porque cresce e se desenvolve acima da mdia nacional (IBGE, 2010), alm de integrar nove Estados brasileiros e reunir uma populao de mais de 54 milhes de habitantes.

    Assim, as trs semnticas evidenciadas brotaram pela fora das suas re-corrncias, o que foi possvel pela integralizao das teorias e mtodos que buscaram conciliar os aprendizados. A semntica da estabilidade traz o tom da permanncia e da satisfao com as conquistas. Os objetos de desejo revelados so modestos e cotidianos. Revelam pessoas que esto vivendo momentos inau-gurais e que querem manter essa condio de satisfao, alongada para o futuro. O universo das fantasias mais afetivo e familiar, assim como a sociabilidade valorizada pelo entorno do conhecido e do vivido. Na semntica da ascenso social as pessoas so mais individualistas e hedonistas. Buscam no pragmatis-mo suas solues. So mais arrojadas e inovadoras e valorizam os signos das

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  • 190 matrizes Ano 7 n 2 jul./dez. 2013 - So Paulo - Brasil CLOTILDE PEREZ - SRGIO BAIROn p. 177-191

    Universos de sentido da populao de baixa renda no Brasil: semnticas da estabilidade, da ascenso social e da mobilidade

    classes sociais privilegiadas, com grande importncia ao consumo de marcas de reconhecimento imediato. Esto sob o predomnio do interpretante lgico. A semntica da mobilidade totalmente distinta das anteriores. Os objetos de desejo so mais complexos e intangveis, contemplam as experincias e vivn-cias. As pessoas so dedicadas a si prprias, mas integram o outro e valorizam o aprimoramento intelectual contnuo, tanto na perspectiva da educao formal quanto nas formaes complementares. As fantasias so mais intelectuais e culturais e esto sob o predomnio do interpretante funcional, pois entendem que o futuro determinado pelo conhecimento continuado.

    Um dos desdobramentos possveis da atual pesquisa buscar o aprofunda-mento dessas semnticas em outras esferas da vida social e tambm a tentativa de quantificar esses segmentos em termos de conhecer sua representatividade numrica na populao de baixa renda. Tambm estudos por segmentos de consumo e impactos miditicos contriburam para o aprofundamento e alar-gamento do entendimento.

    E assim, com limitaes, muitos desafios e alguns achados que finaliza-mos a pesquisa acerca do universo de sentido da populao de baixa renda no Brasil manifestada em suas semnticas recorrentes.

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  • 191Ano 7 n 2 jul./dez. 2013 - So Paulo - Brasil CLOTILDE PEREZ - SRGIO BAIROn p. 177-191

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