canen, ana universos culturais e representações docentes

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    UNIVERSOS CULTURAIS E REPRESENTAES DOCENTES:SUBSDIOS PARA A FORMAO DE PROFESSORES PARA A

    DIVERSIDADE CULTURAL

    ANACANEN *

    RESUMO: Inserida no bojo de relaes socioculturais desiguais, a esco-la tem produzido a excluso daqueles grupos cujos universos culturaisno correspondem aos dominantes. Baseada em literatura na rea e no

    estudo etnogrfico realizado em uma escola pblica de primeiro grau, apresente pesquisa visa: discutir diferentes abordagens para uma forma-o docente voltada pluralidade cultural; identificar os universos cul-turais dos alunos que chegam s escolas, segundo as representaesdocentes no cotidiano escolar; detectar prticas pedaggicas favorecedorasda expresso desses universos; incorporar as reflexes acima em propos-tas de formao docente voltada valorizao da pluralidade cultural e transformao do fracasso escolar.

    Palavras-chave: Formao inicial e continuada de docentes; Pluralidadecultural; Educao multicultural; Representaes do-centes; Perspectiva intercultural.

    Introduo

    Reconhecer que a sociedade brasileira multicultural significacompreender a diversidade tnica e cultural dos diferentes grupos sociaisque a compem. Entretanto, significa tambm constatar as desigual-dades no acesso a bens econmicos e culturais por parte dos diferentesgrupos, em que determinantes de classe social, raa, gnero e diversi-dade cultural atuam de forma marcante.

    Inserida no bojo destas relaes socioculturais desiguais, a escolatem produzido a excluso daqueles grupos cujos padres tnico-culturaisno correspondem aos dominantes. Embora o fracasso escolar tenha causas

    * Professora Adjunta da Faculdade de Educao e pesquisadora do Proedes da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro. A autora agradece o apoio da Faperj ao desenvolvimento destapesquisa. E-mail: [email protected]

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    que extravasem o mbito educacional, uma maior conscientizao temsido desenvolvida acerca da necessidade de minimizar aqueles fatores

    intra-escolares que contribuem para a perpetuao do problema, dentreos quais as percepes e as expectativas de professores. Conforme indicadopor estudos tais como os de Ldke & Mediano (1992), Candau (1995),Canen (1995, 1996, 1997b), Silva (1992) e Eggleston (1993), asexpectativas docentes com relao ao desempenho de alunos de padresculturais distintos dos dominantes so, muitas vezes, permeadas de este-retipos que se refletem em prticas docentes que, sob o vu da neutra-lidade tcnica, legitimam o silenciar das diferentes vozes que chegam anossas escolas.

    No entanto, em uma perspectiva crtica, trata-se de superar umaatitude meramente condenatria e resgatar o espao intra-escolar paraviabilizar prticas pedaggicas imbudas por expectativas que celebrem

    a diversidade cultural, ao invs de abaf-la. Nesse sentido, um caminhopossvel a luta por uma formao docente que sensibilize professores efuturos professores pluralidade cultural e favorea prticas pedag-gico-curriculares a ela coadunadas (Canen, 1996, 1997a, 1997b;Candau, 1995, 1997; Silva, 1995; Moreira, 1995).

    A partir dos eixos de preocupaes explicitados e em busca desubsdios para o desenvolvimento da sensibilizao intercultural emformao inicial e continuada de professores, a presente pesquisa procuraresponder s seguintes questes:

    De que forma as diferentes abordagens de formao docente paraa diversidade cultural propem trabalhar a pluralidade dos

    universos culturais dos alunos de nossas escolas?Que potenciaisapresentam na preparao de professores em uma perspectiva detransformao do fracasso escolar?

    O que constituem os chamados universos culturais dos alunosque chegam s nossas escolas, segundo autores na rea e aspercepes e representaes docentes, manifestas no cotidianoescolar? Em que medida esses universos culturais tm sidopercebidos como norteadores do planejamento curricular e dasprticas pedaggicas empreendidas?

    Que tipos de prtica pedaggica, bem como variveis intra-escolares para alm da sala de aula, poderiam favorecer a expressodesses universos?Em contrapartida, que pressupostos informamaquelas que reproduzem o seu silenciar?

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    Como incorporar as reflexes acima em estratgias que viabilizemuma formao de professores comprometida com um projeto de

    competncia pedaggica que valorize a diversidade cultural,contribuindo para a minimizao do fracasso escolar?

    Os caminhos da pesquisa

    Para responder a estes interrogantes, literatura na rea foi consul-tada e um estudo etnogrfico empreendido em uma escola pblica deprimeiro grau. A abordagem qualitativa constituiu o caminho para arealizao da pesquisa, caracterizada por Ldke & Andr (1986) comoaquela que envolve a obteno de dados descritivos, por meio do contatodo pesquisador com a situao estudada. Dentro desta abordagem, oestudo etnogrfico destaca-se como uma modalidade de estudo de casoque conta com determinadas caractersticas especficas, dentre as quais ointeresse em compreender os significados culturais atribudos pelossujeitos a sua realidade (Spindler & Spindler, 1992; Andr, 1997). Esteaspecto ampliado por Denzin & Lincoln (1994, p. 11), em termos doreconhecimento do prprio pesquisador como um sujeito culturalmentesituado, cujo mapa cultural permeia todo o processo, desde as questesformuladas e pressupostos tericos at as estratgias de campo e as inter-pretaes de dados.

    Nesse sentido, a explicitao do marco terico na perspectiva deformao docente para a pluralidade cultural, efetuada na primeira partedo presente artigo, busca iluminar a perspectiva para a diversidade culturalque norteou o processo da pesquisa. Em um segundo momento, busca-se uma interlocuo entre o referencial terico e os dados das entrevistas

    conduzidas com professores em uma escola pblica de primeiro grau,durante o estudo etnogrfico realizado. Entrevistas semi-estruturadasforam privilegiadas, na medida em que permiteram uma explorao dostemas da pesquisa sem as limitaes impostas por questionrios e, aomesmo tempo, mantendo em vista as categorias a ser abordadas na anlise.Seis professoras de primeiro grau foram entrevistadas na prpria escola,quatro das quais atuavam em reas especficas de 5 a 8 srie e duaseram professoras de 1 a 4 srie. Procedeu-se ao sistema recomendadopor Spindler & Spindler (1992) de gravao e anotaes simultneasdos dados no dirio de campo, tornando-se mais rpido e eficiente otrabalho posterior de transcrio do volume de gravaes.

    A escolha da escola teve por base que fosse de primeiro grau, pbli-ca, atendendo a camadas populares, de forma que se mergulhasse no

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    cotidiano das representaes que incidem sobre os universos culturaisda parcela da populao sistematicamente excluda do sistema educa-

    cional. Um outro critrio importante foi que a escola fosse receptiva presena sistemtica da pesquisadora. Nesse sentido, uma carta formal,seguida por uma entrevista com o diretor do estabelecimento e o enviodo sumrio do projeto de pesquisa por ele solicitada pavimentaram ocaminho para o incio do trabalho de campo. As categorias de anlisedas entrevistas foram elaboradas em virtude das questes do estudo, daimerso da pesquisadora no cotidiano escolar e do referencial tericonorteador da pesquisa ( a ser explicitado a seguir).

    Situando o olhar terico

    A importncia da preparao docente que leve em conta adiversidade cultural tem sido reconhecida em virtude de dois aspectosrelevantes: por um lado, a constatao do peso de esteretipos sobre orendimento de alunos de universos culturais diferentes daqueles queperpassam as prticas pedaggico-curriculares no cotidiano escolar(Canen, 1996, 1997b; Silva, 1992; Ldke & Mediano, 1992; Candau,1995; Grant, 1997; Moreira, 1995). Nesse sentido, preparar professoresna linha da apreciao da diversidade cultural e da quebra de esteretiposfavoreceria atitudes positivas que contribuiriam para transformar a situaode fracasso escolar. Por outro lado, a importncia de tal educao refora-se tambm em artigos recentes, tais como os de Barcelos (1993), Candau(1995, 1997), Canen (1997a), Coutinho (1996), Cruz (1995), Kramer(1995a), Lucinda (1996) e outros, que tm contribudo para desvelar omito da democracia racial vigente at bem pouco no mbito de nossa

    sociedade e a conscientizao acerca da relevncia de prticas docentesque preparem futuras geraes nos valores da tolerncia e apreciao diversidade cultural, de forma a desafiar preconceitos e promover umaeducao para a cidadania.

    Entretanto, a relao educao-diversidade cultural vem sendopreconizada e estudada sob diferentes enfoques, no raro conflitantes econtraditrios entre si. Canen (1997a) identifica quatro perspectivasbsicas: assimilao, reproduo, aceitao e conscientizao cultural. Aperspectiva de assimilao baseia-se em paradigma estrutural-funcio-nalista, em que a funo do professor ser a de proceder de forma acrtica transmisso de contedos marcados por vises de mundo e valoresculturais dominantes, sem que se questionem a representatividade degrupos tnico-culturais diversos em prticas curriculares. No Brasil, tal

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    perspectiva pode ser identificada teoria da carncia cultural, basede programas de educao compensatria nos anos 70 e 80, cujo discurso

    baseia-se na idia de falta, no que o aluno no tem da culturadominante, cabendo escola suprir as deficincias socioculturais pormeio de programas compensatrios, assimilacionistas. Como observaEarp (1997, p. 179), neste tipo de abordagem (infelizmente aindapresente em propostas educacionais como as dos CIEPS, conformeassinalado pela autora), qualquer referncia s crianas de camadaspopulares realizada pela negao, pela desqualificao, adicionando-se, ainda, esteretipos com relao a suas famlias, vistas como desestru-turadas e desestruturantes, em que as relaes caracterizam-se pelaagressividade, pela violncia e pela falta de higiene. Apoiando-se emGouvea (1993), Earp (1997, p. 180) sugere que este tipo de abordagempercebe a diferena enquanto desvio ou atraso, a partir de uma concepoetnocntrica da sociedade humana em que o observador toma sua culturade origem como ponto de referncia.

    A perspectiva de reproduo, por sua vez, informada por umaabordagem crtico-reprodutivista da educao, denunciando aqueleprocesso assimilatrio e identificando-o em toda a educao formal. NoBrasil, esta abordagem pode ser relacionada ao fatalismo com que foraminterpretadas as teorias reprodutivistas, em que a escola aparece comoinexoravelmente ligada reproduo das desigualdades socioculturais,no restando espao possvel de transformao dentro do cotidiano dasprticas educativas. Nesse sentido, tal postura informa uma viso deeducao multicultural reduzida ao mbito de movimentos e espaosextra-escolares, uma vez que no se reconhece, no interior da escola,qualquer perspectiva de trabalho pela valorizao das diferenas e pela

    emancipao social.As perspectivas de aceitao e de conscientizao inserem-se nomovimento de resgate do espao intra-escolar como viabilizador detransformaes, e no apenas de reproduo de desigualdades sociocul-turais. A viso de aceitao cultural vincula-se s abordagens fenome-nolgica e simblico-interacionista, em que a dimenso dos significadosatribudos s experincias e a facilitao de relaes interpessoais em salade aula so percebidas como norteadoras das prticas pedaggicas nocotidiano escolar. Nesse sentido, a educao buscaria desenvolver atitudesde tolerncia diversidade cultural, enfatizando currculos multiculturaise estratgias para promover a aceitao cultural nas relaes interpessoais.Entretanto, ainda no so questionadas, nesta abordagem, as causasestruturais ligadas distribuio desigual de poder mediante as quais se

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    d a desvalorizao de certos padres tnico-culturais. Finalmente, aperspectiva de conscientizao incorporaria a viso contida na abordagem

    anterior, porm, contextualizando-a em termos das relaes desiguais depoder entre grupos socioculturais e a busca de estratgias que desafiempreconceitos e legitimem os discursos e as vozes daqueles cujos padresculturais no correspondem aos dominantes. Esta ltima abordageminsere-se em uma perspectiva da teoria crtica da educao, que, na ver-tente culturalista, ora em pauta, denomina-se de perspectiva interculturalcrtica (Canen, 1995, 1997a e 1997b). Nesta linha que norteou apresente pesquisa , entender multiculturalidade e educao significavincular educao multicultural a perspectivas de transformao da escolae superao dos mecanismos excludentes no interior de suas prticascotidianas.

    A perspectiva intercultural crtica implica, tambm, reconhecer

    que a sensibilizao intercultural no pode ser concebida de formadissociada da realidade do cotidiano docente, de suas representaes ede seu saber, sob pena de se proceder elaborao de programas e docu-mentos curriculares que no se consubstanciem em prticas pedaggicastransformadoras. Broadfoot et al. (1994) ilustram bem esta perspectiva,ao analisar o impacto de polticas educacionais no cotidiano dasrepresentaes docentes em escolas no Reino Unido e na Frana. Osreferidos autores demonstram, por meio das representaes dos profes-sores estudados, que tais polticas pouco alteraram suas prticas, umavez que no procederam ao envolvimento destes docentes e ao reconhe-cimento de suas perspectivas quando de sua formulao. Estas observaesganham relevo no contexto brasileiro atual de discusso dos parmetroscurriculares nacionais. Embora a incluso em seu bojo do tema

    pluralidade cultural deva ser louvada como um importante passo paraa sensibilizao intercultural docente, estudos que avancem no sentidode compreender as representaes docentes no cotidiano de suas prticaspodem permitir um aprofundamento na reflexo sobre possveis formasde mobilizao efetiva de coraes e mentes para a questo da plura-lidade cultural.

    Nesse sentido, embora um mapeamento cultural, de acordo como proposto por autores tais como Sacristn (1995), represente uma alter-nativa em formao docente para que se tome conscincia da existnciade uma diversidade de universos culturais em uma sociedade e se busqueassegurar a representatividade de grupos tnico-culturais da populaoem currculos no-etnocntricos, multiculturais, esta proposta deveriaser acompanhada por reflexes que levassem em conta as representaes

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    docentes sobre a pluralidade cultural. Este argumento pode ser ilustradoem termos da diversidade lingstica e dialetal dos alunos. Estudos como

    os de Gillborn (1993) e Khan (1994) indicam que as representaes eos esteretipos sobre a diversidade de dialetos e sotaques, dentro de umamesma lngua, esto base de muitas prticas pedaggicas excludentes.No Brasil, pesquisas desenvolvidas por Paes da Silva & Vasconcelos(1997), Valente (1995), Gouvea (1993), Alves-Mazzotti (1997), entreoutros, apontam para a presena de representaes docentes impregnadasde vises estereotipadas sobre crianas faveladas, meninos de rua, crianasnegras, alunos provenientes de escolas para pobres, alunos com dificul-dades na lngua padro, indicando o peso dessas representaes nas aespedaggicas desenvolvidas no espao escolar.

    Nesse sentido, os referidos autores alertam para a necessidade dese trabalharem as representaes docentes, de forma a promover uma

    atitude de visualizao de todos os grupos tnico-culturais comoportadores de cultura (Candau, 1995; Kramer, 1995a). Grant (1997)prope a categoria marcadores de identidade (markers of identity) parareferir-se a padres culturais de grupos tnico-culturais diversificados(dentre os quais a diversidade lingstica aparece com destaque), emsociedades multiculturais. O referido autor alerta, porm, para anecessidade de se compreender o dinamismo de culturas em contato esugere formas pelas quais o sistema educacional pode problematizar aeducao multicultural em polticas e prticas. Traduzindo esta posturano caso da diversidade lingstica, preconiza-se um trabalho de sensi-bilizao docente para uma maior focalizao na competncia lings-tica do aluno, ao invs de excessiva nfase em rgidas regras gramaticais.Tal competncia lingstica implicaria o reconhecimento dos padres

    lingsticos de origem, para articul-los aos que esto sendo ensinados.Ao mesmo tempo, estimularia uma compreenso, por parte do aluno,dos momentos em que um ou outro padro lingstico mais apropriado,de forma que, ao mesmo tempo em que se ensinem os padres domi-nantes, tambm se incentive a preservao da linguagem e da cultura deorigem. No Brasil, Soares (1995, p. 11) confirma que, em uma perspectivaradical, revolucionria, as habilidades de leitura e escrita no podemser vistas como neutras, mas sim como um conjunto de prticassocialmente construdas, visualizando-se o processo de alfabetizao comoum conjunto de prticas governadas pela concepo de o que, como,quando e por que ler e escrever (ibidem). Nesse sentido, prope umaviso multidisciplinar do processo, em que a perspectiva sociolingstica,como uma de suas dimenses, focalizaria relaes entre a lngua oral e a

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    escrita, bem como entre essas e as variedades lingsticas e dialetais. Emuma perspectiva similar, Kramer (1995b) aponta que processos de alfabe-

    tizao, dentro da realidade brasileira, deveriam partir do conhecimentodas crianas concretas que chegam a nossas escolas, organizando-se oensino da lngua em virtude de aspectos como as suas formas de socializa-o, seus valores e formas de comunicao utilizadas.

    Por outro lado, estudos na linha das representaes docentes e davalorizao do saber docente, tais quais desenvolvidos por autores comoLessard, Tardi ff & Lahaye (1991), Lelis (1996), Nvoa (1995) eHuberman (1995) alertam para a relevncia em se entender os processospelos quais os professores produzem um saber especfico, pelo qualefetuam uma sntese entre os saberes curriculares, os saberes das disciplinase os saberes pedaggicos na experincia de seu cotidiano escolar. Estesaber-sntese norteia a prtica pedaggica docente e permeado pelas

    representaes que se constroem no dia-a-dia do professor, ele prprioum sujeito sociocultural inserido em espaos especficos no momentohistrico, com gnero, raa e classe social definidos (Teixeira, 1994).

    Trabalhar com representaes de docentes, futuros docentes eaqueles responsveis por sua formao representa um caminho possvelna formao docente, trazendo tona a futilidade de iniciativaspedaggico-curriculares que no levem em conta as formas pelas quaisdocentes pensam e representam sua prtica pedaggica. Entretanto, umaanlise dos estudos sobre universos culturais e aqueles sobre represen-taes e saber docentes parece indicar uma lacuna em termos da interseode ambas as abordagens. O banco de dados da pesquisa Cotidiano Escolare Cultura(s) (Gecec, 1997), desenvolvido na PUC-RJ pelo Grupo deEstudos Cotidiano Escolar e Culturas, coordenado por Candau, parece

    confirmar esta tendncia nos artigos nacionais cadastrados. Nesse sentido,embora artigos diversos tratem de temas tais como educao e etnia,educao e gnero, e assim por diante, as categorias levantadas pelogrupo referentes a Currculo, saber docente e cultura escolar e educaoe representao social contm artigos que, embora forneam subsdiospara o avano da reflexo sobre prticas pedaggicas transformadoras,poderiam enriquecer-se com a anlise da dimenso cultural destas mesmasprticas e o impacto da pluralidade cultural no processo de ensino-apren-dizagem.

    Nesse sentido, no momento em que se discute a perspectiva dapluralidade cultural e que j se conta com uma proposta de incorporaodesta temtica como eixo transversal nos parmetros curriculares nacio-

    nais, trata-se de tentar avanar no sentido de fazer dialogar uma perspec-

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    tiva intercultural crtica em formao docente, com dados relativos aesquemas e representaes docentes construdos em seu cotidiano com

    referncia pluralidade cultural. Em termos de formao continuada deprofessores, autores como Candau (1997) enfatizam a necessidade deque esta deva articular-se sua realidade, a seus problemas, com seuenvolvimento ativo e, de preferncia, realizando-se no seu ambiente detrabalho, na sua escola. Nesta mesma linha, desta vez no contexto daformao inicial, autores como Andr (1997) e Canen (1996) sugeremque o estgio supervisionado durante a prtica de ensino pode representarum espao privilegiado para a interlocuo entre instituies de formaodocente e escolas. Pode-se argumentar que, em uma perspectiva intercul-tural crtica, a imerso do futuro professor no cotidiano escolar suscitarinteressantes reflexes que, uma vez trabalhadas e compartilhadas emparceria entre instituio de formao docente-escola de estgio, podemrepresentar, tambm, uma janela para a formao continuada dosprprios professores da escola de estgio, contribuindo para uma crescentesensibilizao pluralidade cultural dos alunos.

    Vale assinalar, no entanto, que as colocaes acima realizadas noimplicam uma idia voluntarista de transformao da ao docente numadireo mais crtica e comprometida com o alunado. De fato, a realidadedifcil das instituties de formao docente e da escola pblica deprimeiro grau no Brasil tem sido reafirmada em pesquisas e prticasvividas, no podendo ser desconsiderada, sob pena de se ignorarem osaspectos estruturais mais amplos que incidem sobre a educao e adesigualdade educacional. Entretanto, argumenta-se que, em uma linhaterico-crtica, a luta por melhores condies de trabalho, salrios dignose valorizao do magistrio e da escola pblica, deve se articular a uma

    concomitante busca de prticas pedaggicas e de formao docentecomprometidas com a incluso dos grupos socioculturais marginalizadosdo poder econmico e social no processo educacional.

    Dessa forma, com o objetivo de fornecer subsdios para a reflexona rea, o estudo etnogrfico empreendido buscou detectar, a partir dasrepresentaes docentes, espaos de continuidade e de ruptura com ostatus quoda excluso de vozes culturais no cotidiano escolar. O horizontede preocupaes norteador da anlise efetuada pode ser sintetizado pelatenso homogeneizao x pluralidade cultural, sugerido por Ranson(1996) como o grande paradigma desafiador da educao neste final demilnio. Nesse sentido, os dados e as reflexes a partir das entrevistasrealizadas no estudo etnogrfico empreendido buscam avanar nesta linha,tentando captar elementos reprodutores de uma homogeneizao cultural

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    e os que avanam na linha da valorizao da pluralidade cultural, conformepercebido nas representaes docentes.

    Universos culturais dos alunos da escola: as representaes docentes

    A escola onde o estudo etnogrfico se realizou atende majorita-riamente crianas provenientes de uma favela localizada nas imediaes.Segundo os docentes entrevistados, no h fichas ou quaisquer docu-mentos que busquem caracterizar os universos culturais dos alunos: estesso percebidos pelos professores, por intuies e percepes no dia-a-dia escolar (palavras extradas de seus depoimentos). Uma das professorasadmitiu que no conhece muitos destes alunos, mas que, at o final doano, passa a conhec-los a todos, de cor e salteado. J uma outraprofessora admitiu que seria interessante que algo sobre suas vidas pudesseser conhecido, por meio de entrevistas com os pais e com as prpriascrianas. Porm, admitiu que isto no ocorre, at mesmo por falta depessoal tal como orientadores educacionais ou outros que pudessemassessorar o professor nesta tarefa no dia-a-dia escolar.

    Nesse sentido, o conhecimento do aluno concreto como condiopara a viabilizao de prticas pedaggicas transformadoras, conformeenfatizado por Kramer (1995b), no tem lugar no cotidiano da escolaem questo, na viso das professoras entrevistadas. Ao contrrio, osdepoimentos que revelam as representaes docentes sobre os universosculturais dos alunos com que deparam no cotidiano escolar se acharevestido de um amlgama de discursos que, na sua grande maioria,tendem a uma reduo destes universos queles aspectos que estariamfaltando para que se equiparassem aos das camadas dominantes. Por

    exemplo, uma professora fala dos universos culturais de seus alunos emtermos de seus maus modos, de sua aparncia suja, da freqncia dearrotos em sala de aula. Outras referem-se ao fato de que estes alunosso, em grande parte, nordestinos, com srias dificuldades lingsticas,e que se trata de uma verdadeira luta o processo de ensino de escrita eleitura. Tais colocaes vm a confirmar dados das pesquisas desenvolvidaspor Paes da Silva & Vasconcelos (1995) e Earp (1997), trazendo tonaos esteretipos relacionados s crianas das camadas populares, a refernciaa seus universos culturais em termos de negao ou desqualificao comrelao queles das camadas dominantes e, por conseguinte, uma visoda educao como compensatria das deficincias culturais nelasapontadas.

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    Ao reduzir universos culturais a esta dimenso, uma perspectivade assimilao cultural (Canen, 1997a) pode ser detectada, em que a

    funo da escola ser a de promover a transmisso dos valores culturaisdominantes, inclusive padres lingsticos, sem que se levem em contaos sujeitos do processo como portadores de cultura e de histria prprias(Candau, 1995, Kramer, 1995a). Conforme salientado por autores comoGrant (1997), Canen (1995), Khan (1994), Kramer (1995b) e Soares(1995), ignorar o padro lingstico do aluno significa transmitir-lhe amensagem de que este inferior, reduzindo-lhe a auto-estima e fragili-zando seu autoconceito identitrio e cultural. Alm do mais, por noestabelecer pontes com seu universo cultural de origem, torna-se bastanteimprovvel que o ensino do novo padro lingstico seja absorvido,legitimando-se uma homogeneizao cultural artificial que ir contribuirpara a excluso deste aluno do sistema educacional. Em termos da profes-sora que se queixa dos maus modos de seus alunos, a no-contextualizaodas desigualdades socioeconmico-culturais base dos comportamentosobservados por ela implicam uma viso restrita e deturpada de universosculturais, sem que se visualize o vnculo padres culturais-poder socialque os legitimizam. Somando-se falta de informaes mais precisassobre os modos de vida desta populao, suas expectativas e padresculturais, instalam-se os esteretipos que provavelmente iro colorir asprticas pedaggicas cotidianas.

    Por outro lado, iniciativas em fornecer educao de modos easpectos da cultura erudita propostos por essa mesma professora podemser vistas como formas encontradas para buscar ampliaros universosculturais dessas crianas e equip-las para a vida social. Sem dvida, asformas pelas quais esta cultura erudita pode dialogar com a cultura de

    massa so objeto de questionamentos de diversos autores (Moreira, 1995;Candau, 1995; Canen, 1996; Grignon, 1995). Entretanto, uma condiointrnseca a este dilogo seria a no-negao de qualquer uma das duasculturas no decorrer do processo. A perspectiva de assimilao (Canen,1997a) identificada nos discursos poderia ter o efeito de ignorar osuniversos culturais dos alunos e dificultar o estabelecimento de prticasdocentes que mobilizassem estes alunos e atualizassem seus potenciais.

    Diversidade cultural, racismo e educao

    Uma vez verificadas as representaes sobre universos culturais e arelevncia de iniciativas no sentido de permitir este maior conhecimento,restava sabermos a que ponto a diversidade de universos culturais era

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    entendida tambm em termos das discriminaes com relao quelespadres tnico-culturais no-dominantes. Em outras palavras, queramos

    detectar em que medida as professoras entrevistadas percebiam manifes-taes ou comportamentos racistas no cotidiano escolar, bem como opapel atribudo educao em seu combate.

    Com relao a comportamentos racistas entre alunos, praticamentetodas as professoras entrevistadas reconheceram ter presenciado, pelomenos algumas vezes, episdios em que alunos agrediam-se verbalmentecom termos discriminatrios, tais como macaco, paraba, e assim pordiante. Estas colocaes parecem confirmar o que autores como Coutinho(1996), Kramer (1995), Candau (1995), Paes da Silva & Vasconcelos(1997), Lucinda (1995) e Cruz (1995) apontam como a presena dediscriminaes e a quebra do mito da democracia racial brasileira. interessante notar que, conforme atestado por uma professora, as discrimi-

    naes base de raa so efetuadas, muitas vezes, por indivduos elesprprios no-brancos, mas que se consideram mais claros do que seuscompanheiros. Reproduzem-se, desta forma, as desigualdades tnico-culturais no mago das prprias populaes mestiadas, que introjetamas imagens valorativas do branco, normalmente identificado com ascamadas dominantes da populao.

    A necessidade explicitada por autores na linha intercultural crtica(Candau, 1995; Canen, 1995; Kramer, 1995; Grant, 1997) em sepromover uma educao que busque romper com preconceitos e valorizea todos os indivduos como cidados produtores de cultura parece, noentanto, no ser percebida pelas professoras entrevistadas. Emboraadmitam a presena de comportamentos racistas, elas preconizam umaatitude j detectada em pesquisas, tais como as realizadas por Tomlinson

    (1990) e Canen (1996), de lidar com situaes de discriminao nicae exclusivamente quando estas ocorrem. Neste caso, um sermo dirigido s partes envolvidas, com papos para que todos entendam quetm de se respeitar, que no a aparncia que conta, mas sim o que cadaum por dentro (do depoimento de uma das professoras). Por reduziras manifestaes de discriminao ao nvel exclusivo de relaes interpes-soais, conforme detectado em enfoques de linha mais fenomenolgicade aceitao cultural (Canen, 1997a), a educao concebida nas repre-sentaes docentes analisadas no avana em termos de questionar osmecanismos base de sua perpetuao.

    Vale salientar que, conforme percebido na seo anterior, essasmesmas professoras exibem, muitas vezes, discursos coloridos por expec-

    tativas negativas com relao aos universos culturais das crianas. Dessa

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    forma, longe de se limitarem a manifestaes entre alunos, os preconceitose esteretipos esto tambm presentes nas falas das professoras. Este

    aspecto pode ser ilustrado pela fala de uma professora, logo no incio dotrabalho de campo do presente estudo, quando apresentava as turmascom que trabalhava naquele ano letivo. Referindo-se a uma turma de 5serie, observou que aquela era a mais difcil, pois ali predominavamalunos vindos dos CIEPS, sempre bastante problemticos, evidenciandoo esteretipo relacionado s crianas provenientes de escolas freqentadasprincipalmente por alunos pobres e negros, conforme sugerido por Paesda Silva & Vasconcelos (1997).

    Dessa forma, a partir dos dados do estudo etnogrfico em pauta,percebe-se que a questo da valorizao diferencial de padres tnico-culturais e as discriminaes resultantes no so desafiadas em sua gnese,quando se trata de preconceitos exibidos por alunos, no sendo sequer

    percebidas, no caso de esteretipos das prprias professoras com relaoaos mesmos. O vnculo dos determinantes de raa, gnero, classe sociale outros com a questo do poder social a eles associado no identificadoe, dessa forma, perpetuam-se preconceitos, velados ou explcitos, nasrelaes intraescolares.

    Espaos de Ruptura: caminhando para prticas de valorizao dapluralidade cultural

    Neste ponto, cabe assinalar as contradies e o desconforto comque as professoras entrevistadas lidam com o fracasso dos alunos, e asiniciativas no sentido de conhecer melhor seus padres culturais, expec-tativas e modos de vida. Em meio s dificuldades decorrentes das condi-

    es de salrio precrias, falta de pessoal administrativo na escola, necessidade de acumular mais de uma matrcula e proceder ao corre-corre para garantir um sustento, o esforo de um grupo delas em conhecermelhor os universos culturais destes alunos deve ser ressaltado. Este esforotraduziu-se em um interessante projeto abraado pela escola: o projetoO que somos, o que queremos e o que precisamos fazer?. Neste projeto,ainda em fase inicial quando da realizao do estudo, diferentes professoresem uma perspectiva interdisciplinar propem questionrios e atividadesa serem efetuadas pelos alunos em suas comunidades, trazendo para aescola elementos que permitem um maior conhecimento de formas deorganizao, suas idias, modos de lazer, aspiraes e padres culturais.Conforme explicado por algumas das professoras entrevistadas, ao finaldo projeto planeja-se uma exposio em que cartazes, maquetes e outras

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    atividades ilustrem os resultados em termos dos universos culturais dosalunos da escola. Em uma perspectiva de visualizar espaos de resistncia,

    articulao e quebra da homogeneizao cultural (Ranson, 1996; Candau,1995), tais inciativas vislumbram possibilidades de avanar no sentidode conhecer melhor os universos culturais dos alunos e sinalizam avenidasque podem conduzir transformao das expectativas negativas comrelao a estes e construo de prticas pedaggicas coadunadas s suasrealidades. Embora ainda interpretado como uma atividade extracur-ricular, e no como eixo configurador das prticas docentes cotidianas,como seria de se esperar em uma perspectiva intercultural crtica, umprojeto deste tipo representa um importante espao para a viabilizaodesta perspectiva no mbito do cotidiano escolar.

    Em termos de prticas pedaggicas de sala de aula, em grandeparte das entrevistas ficou tambm clara a preocupao das professoras

    em buscar adequar os assuntos ao que elas percebem como os universosculturais das crianas. Por exemplo, uma das professoras afirma que, aoiniciar o assunto eroso, realiza conexes com as enchentes provocadaspelas chuvas, que tanto atingem a favela de onde as crianas provm.Este tipo de prtica permite uma maior aproximao com os universosculturais dos alunos, tornando o que se ensina mais significativo paraeles. Entretanto, vale assinalar que, embora este seja um aspecto positivoda iniciativa da professora, deve-se ficar atento para que a aproximaocom os universos culturais dos alunos ultrapasse uma viso no-crticade aceitao cultural. No caso mencionado, por exemplo, uma visointercultural crtica implicaria em uma reflexo sobre as causas dasenchentes, de forma que no se casse na idia de que estas so umfenmeno meramente natural, provocado pelas chuvas.

    Sem dvida, no demais enfatizar que um maior conhecimentodos universos culturais dos alunos e valorizao positiva dos mesmosincrementariam o saber docente no sentido de mobilizar o dilogocultura erudita cultura popular (Moreira, 1995), nas prticasdocentes cotidianas. Ao mesmo tempo, uma atitude de flexibilidadeperante o programa que deve ser cumprido, em prol de um esforo emque o aluno construa seu conhecimento, em virtude de seus universosculturais, representa um dado a mais no sentido de romper com ahomogeneizao cultural nas prticas docentes. Tal flexibilidade foiobservada no discurso de algumas das professoras entrevistadas. Porexemplo, a professora de ingls afirma que, em suas aulas, foge da posturargida de cobrar exerccios de gramtica e opta pela compreenso dosentido dos textos, permitindo o uso da lngua portuguesa para expressar

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    esta compreenso, nos moldes da competncia lingustica preconizadapor autores como Grant (1997), Khan (1994), construda em dilogo

    com os padres lingsticos das crianas concretas que chegam escola,de acordo com estudos de Kramer (1995b) e Soares (1995). Seextrapolada ao uso da lngua portuguesa e valorizao da diversidadedialetal, pode-se argumentar que esta perspectiva poderia contribuir nosentido de minimizar preconceitos contra variedades lingsticas degrupos da populao (tais como os nordestinos a que se referiam as profes-soras ao falarem de manifestaes racistas na escola) e promover umaaprendizagem mais eficaz do padro lingstico que se quer ensinar.

    Na linha de uma maior flexibilizao curricular e incentivo dife-renciao no cotidiano escolar, observa-se que algumas professoras abolemo livro didtico, preferindo trabalhar com recursos diversos, tais comovdeos, materiais ilustrativos, materiais vivos, apostilas, que dem conta

    da realidade da sala de aula. As justificativas so interessantes de se anali-sar: O livro didtico implica que temos de dar aquele contedo, somoscobrados... Existem turmas que tm outro ritmo... por isto optamos portrabalhos que se voltem a eles, dinmica do dia a dia... (Prof. 1); Nousamos os livros didticos. Complementamos com outras informaes...(Prof. 2).

    Evidentemente, a abolio do livro didtico no significa necessaria-mente uma preocupao com a diversidade cultural: h livros didticoscuidadosamente elaborados e deve-se tambm proceder observacao dosmateriais que so usados, do contedo das apostilas e das aulas, do enfoqueadotado, entre outros. O que se quer enfatizar que, na medida em queuma flexibilizao de programas e materiais didticos contemplada,uma via de incorporao dos universos culturais dos alunos concretos da

    escola pode ser avanada. Nesse sentido, uma iniciativa interessante porparte de uma das professoras entrevistadas partiu justamente de umaproposta contida no livro didtico. A partir de uma unidade denominadaquem sou eu, sugerida no livro, a professora resolveu elaborar um projetoem que os alunos so incentivados a tentar conhecer um pouco de siprprios. Uma das atividades propostas a pesquisa sobre as certidesde nascimento destas crianas, concomitante ao trabalho de construoe valorizao de sua identidade e auto-estima, como explicado pelaprofessora: Alguns diziam: Tia, eu nao tenho pai, no sei quem sou...Eu mostrava que sim, devem conhecer-se, e que no vergonha no terpai... Eles se empolgaram bastante com a atividade.

    importante observar que a professora, ao estimular a auto-estima

    do aluno, estar contribuindo para a valorizao de seu ser, para a sua

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    identidade, o que constituem pr-requisitos essencias para a aprendizagemna linha intercultural (Canen, 1997; Candau, 1995; Grant, 1997).

    Semelhante perspectiva parecia imbuir uma outra professora, queorganizou um coral com as crianas de sua turma, ensinando-lhes msicaerudita, msicas folclricas brasileiras e de outras nacionalidades, aomesmo tempo em que buscava aprender msicas que os prprios alunostraziam. Nesse sentido, valorizando seus universos musicais, a professoraconstrua pontes para a ampliao destes universos de forma que seincorporassem novos valores e conhecimentos, e ambas as partes professora e alunos saam enriquecidos deste dilogo.

    Estas iniciativas, incorporadas ao cotidiano escolar pelo saberdocente construdo na experincia (Nvoa, 1995; Tardiff et al., 1995;Lelis, 1996), vislumbram possibilidades de valorizao da diversidadecultural em prticas docentes. Refletir sobre elas significa reconhecer

    que, embora em condies precrias de trabalho, h avenidas possveisde serem exploradas para se tentar minimizar a excluso daqueles alunoscujos padres culturais no correspondem aos dominantes.

    Consideraes finais: implicaes em formao inicial e continuada dedocentes para a diversidade cultural

    Reconhecer a diversidade de universos culturais de alunos nombito de prticas docentes implica no s a conscientizao acerca dopeso dessas prticas no sucesso ou no fracasso destes alunos, mas tambmna importncia em se trabalhar no sentido de mobilizar expectativaspositivas que promovam a aprendizagem de todos, independentementede raa, classe social, sexo ou padres culturais.

    Nesse sentido, trabalhar com uma proposta de conscientizaocultural em formao docente significa, tambm, ter em vista asrepresentaes e o saber desenvolvido por docentes em seu cotidianoescolar, de forma que se incorporem as iniciativas de ruptura com ahomogeneizao cultural e se combatam as expectativas negativas comrelao queles cujos padres culturais no correspondem aos dominantes.

    As representaes docentes expressas no estudo conduzido revelammuitas vezes uma viso fragmentada dos universos culturais dos alunos,percebidos em grande parte em termos dos aspectos que lhes faltampara se equipararem queles das camadas dominantes da populao.Entretanto, interessantes iniciativas e projetos de aproximao para maiorconhecimento dos universos culturais dos alunos puderam ser detectadas,

    como os projeto O que somos, o que queremos e o que precisamos

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    fazer? e Quem sou eu?, descritos anteriormente, assim como prticasdocentes que buscavam fugir da rigidez dos programas e tornar o processo

    ensino aprendizagem mais coadunado aos padres culturais dos alunos.Outras questes, no entanto, merecem ser estudadas, tais como: Emque medida estas iniciativas podem ser viabilizadas como parte integrantedos contedos escolares, e no como atividades interpretadas comoextracurriculares?Que tipo de clima ou etos escolar revela-se propicia-dor de uma maior valorizao da pluralidade cultural dos alunos?Comoso traduzidas as representaes docentes com relao aos universos cultu-rais dos alunos em prticas pedaggicas, conforme observadas no cotidianoescolar?Como incorporar os discursos e representaes dos prprios alunosem prticas docentes voltadas a seus universos culturais?Com o intuitode bucar responder a estas questes e aprofundar na temtica estudada,entrevistas com administradores e alunos, bem como observaes e anlisedocumental sero empreendidas em uma fase posterior da presentepesquisa.

    Vale salientar, neste ponto, que a aproximao com o cotidianoescolar em cursos de formao docente, aliada a uma proposta imbudapor uma perspectiva intercultural crtica, poderia permitir uma ricainterlocuo para o avano de uma preparao docente coadunada coma pluralidade cultural. A futilidade de iniciativas que no levem emconsiderao as representaes e o saber docentes so ilustradas pelasprprias professoras entrevistadas na pesquisa empreendida, que vem,com reservas, programas de formao continuada base de materiaisescritos e audio-visuais de densa linguagem e preparados no estilo descritopor uma das professoras como sendo de Globo Reprter, todo bonito ecertinho, mas longe da nossa realidade.

    Ao mesmo tempo, vale registrar as opinies de duas professorascom relao a aspectos considerados importantes no mbito da formaoinicial e continuada de professores, que se articule realidade culturaldos alunos: Gostei tanto de ter uma licencianda aqui, no ano passado,durante a prtica de ensino dela... Ela me trouxe textos que discutiamna faculdade, e veio com tantas novidades... Acho que isso a melhorcoisa para ns, na escola...; A formao inicial... no sei o que se podefazer... mas na formao continuada, tem que ser algo diferente... algumacoisa que parta da nossa realidade, dos nossos problemas, juntoconosco....

    Estas colocaes parecem corroborar a necessidade apontada porautores trabalhados no referencial terico do estudo em se proceder a

    uma interlocuo teoria-prtica em cursos de formao docente, contando

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    com o estgio supervisionado como um possvel espao de articulaoformao inicial-formao continuada de professores, permitindo no s

    uma insero do futuro professor na realidade cultural dos alunos eprofessores daquela escola, como tambm oferecer a oportunidade detrazer, para os docentes da mesma, subsdios acadmicos para a reflexosobre suas representaes e seu saber cotidiano.

    Em uma perspectiva intercultural crtica, aproximar a reflexo sobreprticas docentes para a pluralidade cultural temtica das representaese do saber docentes no cotidiano escolar constitui, sem dvida, umcaminho possvel e instigante para uma formao docente que vislumbrea transformao da escola em um espao de cidadania para alunos detodas as raas, gneros, classes sociais e padres culturais.

    Recebido para publ icao em janeiro de 1999.

    PUPILS CULTURALBACKGROUNDSANDTEACHERS PERCEPTIONS:

    REFLECTINGABOUTTEACHER EDUCATION FORCULTURALDIVERSITY

    ABSTRACT: In a context of unequal sociocul tural relati onships insociety, school has produced the exclusion of the groups whose cultu-ral backgrounds do not match the prevai l i ng ones. Based on theliterature in the area and on an ethnographical case study carr ied out ina publ ic primary school, the present research aims to: discuss di fferentapproaches for teacher educati on in a mult icultural society; i dent i fythe cultural backgrounds of the pupi ls who go to school, according toteacher s percepti ons in everyday schooli ng; pi npoint pedagogi calpracti ces whi ch foster the expression of cult ural diversi ty; and i ncor-porate such reflecti ons in proposals and suggestions for teachers educa-ti on aimed at the celebration of cultural plurali ty and at a project ofchanging school failure.

    Key words: Ini ti al and conti nuing teacher education; Cultural diversity;Multi cultural educati on; Teachers percepti ons; Interculturalperspecti ve.

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