universitas semper reformanda? a história da universidade de são

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA MARIA CARAMEZ CARLOTTO Universitas semper reformanda? A história da Universidade de São Paulo e o discurso da gestão à luz da estrutura social São Paulo 2014

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    MARIA CARAMEZ CARLOTTO

    Universitas semper reformanda?

    A histria da Universidade de So Paulo e o discurso

    da gesto luz da estrutura social

    So Paulo

    2014

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    MARIA CARAMEZ CARLOTTO

    Universitas semper reformanda?

    A histria da Universidade de So Paulo e o discurso

    da gesto luz da estrutura social

    Tese apresentada ao Programa de Ps-

    graduao em Sociologia da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo para a obteno do

    ttulo de doutor(a) em sociologia.

    rea de concentrao: Sociologia

    Orientadora: Sylvia Gemignani Garcia

    So Paulo

    2014

  • LICENA PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA

    Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial

    deste trabalho, por qualquer meio convencional ou

    eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que

    citada a fonte.

  • AGRADECIMENTOS

    No atual contexto de pesquisa da universidade brasileira, talvez mais at do que em

    outros, no retrico dizer que a realizao de uma tese como esta dependeu, visceralmente,

    de uma extensa rede de apoios, individuais e institucionais, sendo, portanto, um resultado social.

    So alguns desses pilares de sustentao, sem os quais este trabalho no teria sido possvel, que

    gostaria de reconhecer com estes agradecimentos.

    Nesse sentido, gostaria de comear agradecendo aos dirigentes da Universidade de So

    Paulo, que encontraram um tempo, na sua agenda repleta, para responder s minhas inmeras

    perguntas em entrevistas sempre extensas e demoradas.

    Aos funcionrios da USP que apoiaram ativamente a minha pesquisa, demonstrando por

    ela um interesse genuno. Em especial, gostaria de agradecer aos funcionrios das bibliotecas

    da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, da Faculdade de Direito, da Faculdade

    de Economia e Administrao, da Faculdade de Educao, da Faculdade de Arquitetura e

    Urbanismo, da Escola Politcnica, da Faculdade de Medicina, do Instituto de Estudos

    Brasileiros, do Instituto de Cincias Biomdicas e do Instituto de Fsica de So Carlos, que

    foram colaboradores ativos na busca por livros e documentos sobre a histria da Universidade

    de So Paulo e a trajetria de seus professores. Aos funcionrios do Jornal da USP, que me

    receberam em uma sede improvisada, se preocupando em me oferecer, na medida do possvel,

    plenas condies de pesquisa. Aos servidores da Secretaria Geral que me ajudaram a acessar,

    de Paris, atas e outros documentos da USP.

    Gostaria de agradecer, nominalmente, aos tcnicos responsveis pelo Anurio

    Estatstico da USP, Silvio Fernandes de Paula e Gisele Lopes Batista, e pelo Questionrio

    Socioeconmico da FUVEST, Renan de Cerqueira Leite, pelo seu apoio absolutamente

    imprescindvel ao longo desta pesquisa. Eles me mostraram, na prtica, como a USP depende

  • profundamente do trabalho cotidiano desses servidores que se dedicam integralmente a uma

    instituio na qual acreditam.

    Por fim, a todos os funcionrios da FFLCH, especialmente os do Programa de Ps-

    graduao em Sociologia, ngela Ferraro e Gustavo Mascarenhas, por todo o apoio nesses

    quatro anos de doutorado.

    A realizao de uma tese em sociologia o resultado de um longo processo de formao

    que devo, antes de tudo, aos meus professores do programa de ps-graduao em sociologia e

    do curso de cincias sociais. Gostaria de agradecer, em especial, a Francisco de Oliveira,

    Helosa Martins, Maria Helena Augusto, Flvio Pierucci (in memoriam), Maria Arminda

    Nascimento Arruda, Vera Telles, Leopoldo Waizbort, Nadya Guimares, Antnio Srgio

    Guimares, Marcos Csar Alvarez, Fernanda Peixoto, Jos Guilherme Magnani, Fernando

    Haddad, Bernardo Ricupero, Rafael Villa e Ccero Arajo.

    A Ruy Braga eu agradeo, em especial, por todo o apoio, sempre pronto e generoso,

    desde o comeo do meu mestrado.

    A Ricardo Musse, pelos espaos de discusso e participao que me abriu e que foram

    fundamentais para a minha formao.

    A Alvaro Comin, por ser um modelo, sempre.

    A Andr Singer e Braslio Sallum agradeo especialmente pela leitura atenta e crtica

    do meu texto de qualificao.

    A Lincoln Secco, por sempre se lembrar de me enviar indicaes fundamentais do que

    ia sendo produzido, sobre universidade, no campo da histria.

    A Paulo Arantes e Laymert Garcia dos Santos, por algumas das sugestes mais

    interessantes deste trabalho.

    A Valria de Marco, pela disposio de me explicar, sistematicamente, os meandros da

    transformao da USP, ajudando a iluminar a minha pesquisa de campo.

  • A Lilia Schwarcz, pelo trabalho que constitui um dos pilares desta tese.

    A Sergio Miceli, Fernando Limongi e Ana Paula Hey, devo o exemplo do que significa

    tentar no por limites ao olhar sociolgico sobre a universidade.

    E a Marilena Chau, Franklin Leopoldo e Silva e Irene Cardoso, a inspirao crtica

    deste trabalho.

    A Pablo Ortellado agradeo, alm da amizade sempre paciente, a oportunidade de ter

    integrado o Grupo de Pesquisa em Poltica Pblica para o Acesso a Informao, onde, alm

    de realizar uma das pesquisas mais interessantes da minha trajetria, tive condies de conceber

    o projeto desta pesquisa. A todos os membros do Gpopai, em especial a Giseli Craveiro, Mrcio

    Black, Jamila Venturi e Brulio Santos Arajo, pelo convvio maravilhoso e pelo aprendizado.

    Ao Grupo de Pesquisa em Sociologia da Educao, Cultura e Conhecimento, que por

    mais de uma vez discutiu o meu trabalho, agradeo por ter sido um espao fundamental de

    formao e discusso, que se mostrou cada vez mais decisivo para a definio da abordagem

    terica deste trabalho. Encontrei, ali, os colegas mais generosos, a quem eu devo inmeras

    contribuies.

    Ao Lemarx-USP, por ser sempre uma janela aberta para a transformao da sociedade

    capitalista brasileira e mundial.

    Por fim, ao grupo de pesquisa em Filosofia, Histria e Sociologia da Cincia e da

    Tecnologia, por ser um espao onde, com toda a liberdade, comecei a discutir o processo de

    mudana das instituies de produo e difuso do conhecimento, que esta tese tentou ajudar a

    entender. Agradeo especialmente a Pablo Mariconda, por no medir esforos para viabilizar

    esse espao de crtica, investigao e discusso sobre os rumos da cincia contempornea.

    A Terry Shinn, por ter me ensinado a amar a pesquisa e a vida na mesma intensidade. E

    a Anne Marccovitch, pela amizade e carinho que me fizeram sentir em casa longe de casa.

  • A todos da Revista Fevereiro, espao vivo de debates e polmicas, em especial ao Ruy

    Fausto, pelas longas conversas, em castelos e bibliotecas por a afora.

    A todos os amigos queridos que a USP, nesses 12 anos, me deu. Em especial, a Lgia

    Luchesi, Marcelo Souza, Renan Quinalha, Rafael Pereira, Cristina Beskow, Lucas Monteiro

    Oliveira, Nicolau Dela Bandeira, Natlia Mello, Polly Rosa, Luiz Gustavo Soares, Bruno

    Carvalho, Helder Souza, Toms Marques, Maria Morita, Thas Pavez, Christian

    Schallenmueller, Mariana Rubiano e a todos os outros membros da APG, do CAF e do CEUPES

    pelo esforo em tentar construir uma universidade melhor, para alm das suas estruturas.

    A Patrcia Magalhes e Maria Fernanda Pinto agradeo, alm disso, por serem mulheres

    to maravilhosas!

    A Camila Gui Rosatti, por todo o apoio, sempre empolgado e empolgante.

    A Mariana Toledo por ser, alm de uma companheira de militncia, uma parceira de

    pesquisa e de vida.

    A Elisa Klger, pela amizade que me ajudou a viver Paris, sociolgica e intensamente.

    Ao Stefan Klein, por compartilhar comigo a questo da universidade e por me apoiar

    de modo to presente a minha caminhada.

    Aos amigos de Campinas, por deixarem a vida mais leve.

    A Z Luiz, Edu, Fernando, Gilberto, Douglas, Anderson, Bruno, Paulo, Felipe, Raquel,

    Lucas, Lo, Mariana, Silvinha, Rodrigo, Tati, Z Csar e s Marinas-Marias, amigos da

    educao pela noite, pelas conversas regadas a cerveja e gargalhadas.

    A Carlos, Caio, Fbio e Ilan, pela philia que, entre outros devaneios, me faz seguir

    acreditando na sociologia.

    A Gabi e Dani, pelas afinidades infinitas, que s so possveis entre grandes amigos.

    A Z Paulo, que alm de companheiro de vrias lutas e muitas pesquisas, um irmo

    que a vida me deu.

    https://www.facebook.com/profile.php?id=1279118243https://www.facebook.com/profile.php?id=1279118243

  • A Verena, Pedro Tito e Nico, que apesar da distncia, esto sempre presentes.

    A Ana Paula, pelas nossas correspondncias que, nos momentos mais difceis, me

    ajudaram a seguir avante siempre.

    A Ana Elisa, amiga de uma vida toda.

    E a Pati, companheira de todos os momentos.

    A toda famlia Borghi, agradeo pelas semanas na Fazenda So Pedro, onde o clima de

    tranquilidade total permitiu a concluso desta tese.

    A Ceclia, Jorge, Manuela e Pedro, pelo apoio sempre incondicional a esse longo e

    custoso processo.

    A toda a minha famlia, por aceitar a minha obsesso. Em especial, aos meus primos,

    que so meus melhores amigos. A pequena Ella, agradeo particularmente pela ternura que me

    fez entender o amor incondicional. Aos meus tios, tias, e principalmente s minhas duas avs,

    por compreenderem a minha ausncia nesses ltimos anos. Aos meus irmos, por

    contornarmos, juntos, todas as pedras. Ao meu pai, por simplesmente tudo o que fez para que

    eu pudesse concluir esse longo processo de formao. E, por fim, a minha me, por acreditar e

    apoiar, desde o comeo, esta jornada. Que o fim deste ciclo nos permita estar mais prximos.

    Ao Rica, meu companheiro no sentido mais profundo que consigo conceder palavra,

    por caminhar sempre ao meu lado, compartilhando comigo a sua integridade.

    E, por fim, a minha orientadora, Sylvia Gemignani Garcia, a quem eu devo muito mais

    do que sou capaz de agradecer, por ser o suporte pessoal, emocional e intelectual deste trabalho.

  • Esta pesquisa foi financiada pela Fundao de Amparo

    Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) e pela

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel

    Superior (CAPES).

  • RESUMO

    Na literatura nacional e internacional sobre a transformao contempornea das universidades,

    so muitos os estudos que enfatizam o impacto do conhecimento gerencial sobre a

    reorganizao dos procedimentos de deciso, controle e coordenao do trabalho acadmico.

    Partindo dessas anlises, a presente pesquisa buscou interrogar o papel do discurso gerencial na

    redefinio do governo acadmico das universidades brasileiras enfatizando a sua relao com

    a estrutura social, que se expressa, no interior da universidade, pela hierarquizao poltica,

    social e acadmica das suas diferentes unidades. Para tanto, esta tese baseia-se em um estudo

    de caso sobre a Universidade de So Paulo uma das maiores, mais importantes e mais antigas

    universidades de pesquisa do pas que sofreu diretamente o impacto dos saberes gerenciais na

    redefinio das suas estruturas internas de governo a partir dos anos 1960. Em termos gerais, a

    tese essencial deste trabalho de que o discurso gerencial conseguiu se impor na USP pela ao

    do seu polo dominante, formado pelas unidades profissionais tradicionais que conseguiram,

    justamente pela sua posio na estrutura social, impor sua viso de universidade e de governo

    acadmico.

    PALAVRAS-CHAVE

    Universidade de So Paulo, reforma universitria, gesto, governo acadmico, sociologia

    histrica, histria estrutural.

    ABSTRACT

    Among the national and international literature upon the contemporary transformation of the

    universities, many studies underline the impact of the management knowledge on the

    reorganization of the procedures related to the decision, accountability and coordination of the

    academic work. Departing from these analysis, the present research intend to interrogate the

    role of the management discourse in the redefinition of the academic government of Brazilian

    university, emphasizing the relation with its social structure, expressed through the political,

    social and academic hierarchisation of university faculties. In that sense, this thesis is based on

    a case study about the So Paulo University one of the biggest, oldest, and most important

    research university of Brazil that suffered directly the impact of the management knowledge

    in the redefinition of its intern structure of government from the 1960 onwards. In general terms,

    the essential argument of this work is that the management discourse could impose itself in the

    So Paulo University through the action of the dominant pole, composed by the traditional-

    professional faculties that, due to its position in the social structure, achieved to impose its

    conception of university and academic government.

    KEYWORDS

    University of So Paulo, university reform, management, academic government, sociological

    history, structural history.

  • LISTA DE GRFICOS

    Grfico 1. Evoluo do nmero de cursos de administrao e gerenciamento em

    funcionamento no pas (1991 2005)

    Grfico 2. Evoluo do nmero de unidades da USP (1934 2014)

    Grfico 3. Evoluo do corpo docente da USP em nmeros de professores contratados (1960

    2012)

    Grfico 4. Evoluo do corpo docente da USP pelo nmero de professores trabalhando o

    equivalente em RDIDP (1980 2012)

    Grfico 5. Evoluo do percentual de docentes da USP em dedicao exclusiva (RDIDP) entre

    1980 e 2010

    Grfico 6. Evoluo do nmero de alunos de graduao, de ps-graduao e total de docentes

    da USP (1989 2012)

    Grfico 7. Percentual de dirigentes da USP vinculados aos polos profissional tradicional,

    tcnico-profissional e acadmico-cientfico (1934 2014)

    Grfico 8. Distribuio dos cursos de graduao realizados pelos dirigentes da USP (1934

    1968)

    Grfico 9. Distribuio dos cursos de graduao realizados pelos dirigentes da USP (1968

    2014)

    Grfico 10. Distribuio dos cursos de graduao realizados pelos dirigentes da USP (1934 -

    2014)

    Grfico 11. Percentual de homens e mulheres entre os dirigentes da USP em trs categorias

    (1934 2014)

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1. Evoluo do corpo discente da USP (1989 2012)

    Tabela 2. Evoluo das vagas de graduao (1960 - 2012)

    Tabela 3. Evoluo dos cursos de graduao, mestrado e doutorado (1987 - 2012)

    Tabela 4. Evoluo do nmero de trabalhos cientficos publicados por docente ativo da USP

    (1985 - 2012)

    Tabela 5. Relao de unidades de ensino e pesquisa da USP segundo o ano de fundao,

    incorporao ou desmembramento e com informaes sobre a localizao e os principais cursos

    de graduao oferecidos em 2012

    Tabela 6. Evoluo dos cursos da USP por unidade de ensino e pesquisa, com indicao da

    progresso quinquenal do nmero de vagas e sua variao absoluta e percentual entre 1982 e

    2010*

    Tabela 7. Sntese dos cursos (ativos) criados a partir de 1982 com a respectiva unidade e ano

    de criao

    Tabela 8. Cursos j existentes em 1982, hierarquizados segundo a variao percentual do

    nmero de vagas no perodo

    Tabela 9. Carreiras da USP hierarquizadas pela relao candidato/vaga a partir dos inscritos no

    vestibular da Fuvest em 1999

    Tabela 10. Carreiras da USP hierarquizadas pela relao candidato/vaga a partir dos inscritos

    no vestibular da Fuvest em 2009

    Tabela 11. Reitores da USP entre 1934 e 2014, com a respectiva unidade de vinculao

    Tabela 12. Unidades de ensino e pesquisa da USP hierarquizadas segundo o percentual de

    docentes em regime de dedicao exclusiva (2010)

    Tabela 13. Unidades hierarquizadas pelo percentual de ingressantes em 2000 cuja me realizou

    o ensino superior completo

    Tabela 14. Unidades hierarquizadas pelo percentual de ingressantes em 2005 cuja me realizou

    o ensino superior completo

  • Tabela 15. Unidades hierarquizadas pelo percentual de ingressantes em 2010 cuja me realizou

    o ensino superior completo

    Tabela 16. Unidades hierarquizadas pelo percentual de ingressantes em 2012 cuja me realizou

    o ensino superior completo

    Tabela 17. Unidades hierarquizadas segundo o percentual decrescente de ingressantes que

    cursaram o ensino fundamental, integralmente ou na maior parte, em escola particular

    Tabela 18. Unidades hierarquizadas segundo o percentual decrescente de ingressantes que

    cursaram o ensino mdio, integralmente ou em parte, em escola particular

    Tabela 19. Unidades hierarquizadas segundo o percentual decrescente de ingressantes que

    cursaram o ensino mdio comum

    Tabela 20. Unidade hierarquizadas segundo o percentual de ingressantes que cursaram o ensino

    mdio no perodo noturno

    Tabela 21. Unidades hierarquizadas segundo o percentual decrescente de ingressantes que no

    exercem nenhum tipo de atividade remunerada

    Tabela 22. Unidades hierarquizadas segundo o percentual decrescente de ingressantes com pai

    que realizou a ps-graduao

    Tabela 23. Unidades hierarquizadas segundo o percentual de ingressantes com pai proprietrio

    de grande ou mdia empresa

    Tabela 24. Unidades hierarquizadas segundo o percentual de ingressantes com pai profissional

    liberal

    Tabela 25. Unidades hierarquizadas segundo o percentual de ingressantes proprietrios de

    grande ou mdia empresa

    Tabela 26. Unidades hierarquizadas segundo o percentual de ingressantes com me profissional

    liberal

    Tabela 27. Unidades hierarquizadas segundo o percentual de ingressantes com renda familiar

    acima de 20 salrios mnimos

    Tabela 28. Unidades hierarquizadas segundo o percentual crescente de ingressantes que se

    declara de cor parda ou preta

    Tabela 29. Unidades hierarquizadas segundo o percentual decrescente de ingressantes homens

  • Tabela 30. Dirigentes da USP (reitores, pr-reitores e coordenadores gerais de administrao)

    segundo perodo no cargo, faculdade de origem e formao

    Tabela 31. Distribuio do oramento da USP, na alquota outras despesas, que exclui o gasto

    em pessoal (1986 - 2012)

    Tabela 32. Distribuio do oramento total da USP, incluindo gasto em pessoal e outras

    despesas (1986 - 2012)

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1. Braso darmas da USP

  • Sumrio

    Introduo ............................................................................................................................................ 17

    Captulo 1. Posies sociais e vises do passado: por uma histria estrutural da USP ................. 33

    1. Entre fatos e feitos: perspectiva finalista e histria oficial ..................................................... 36

    2. Relato pessoal e primazia da estrutura: da histria oral histria estrutural ................................ 69

    3. A ideia de universidade: perspectiva filosfico-pedaggica e histria dos vencidos ................ 86

    4. A universidade vista a certa distncia: a perspectiva estrutural sobre a histria da USP ........ 112

    Captulo 2. Posies sociais e vises de futuro: a emergncia da universidade como objeto de

    gesto .................................................................................................................................................. 133

    1. A gesto como um sistema de classificao e um dispositivo de saber-poder ............................ 136

    1.1. Conhecimento especializado e interveno tcnica como construo social da realidade ... 137

    1.2. A perspectiva estrutural da circulao internacional de saberes: a inflexo gerencial das

    universidades vista da perspectiva latino-americana ................................................................... 148

    1.3. Importao e expanso do conhecimento gerencial no Brasil: a consolidao de um novo

    saber e seus efeitos culturais e polticos ...................................................................................... 157

    2. A disputa pela reforma universitria nos anos 1960 vista a partir da estrutura universitria ...... 176

    2.1. Gesto colegiada e autogoverno: a proposta de reforma universitria do polo acadmico-

    cientfico da universidade ............................................................................................................ 176

    2.2. A universidade como objeto de gesto: a reao do polo politicamente dominante ............ 189

    2.2.1. Profissionalizao e gesto: o IPES e a viso econmica da educao ....................... 189

    2.2.2. Uma nova gerao de lderes: as consultorias norte-americanas e a converso

    invisvel dos dirigentes acadmicos brasileiros ...................................................................... 197

    2.2.3. A sntese governamental: o Grupo de Trabalho da Reforma Universitria, a Comisso

    Especial Meira Mattos e a Lei 5.540/1968 para a reforma do ensino superior ..................... 213

    3. Impactos da gesto na USP: converso de dirigentes, centralizao administrativa e emergncia

    das estatsticas universitrias ........................................................................................................... 233

    3.1. A converso invisvel dos dirigentes da USP a partir dos anos 1970: experts em gesto,

    lideranas institucionais e professores na direo da universidade ............................................. 235

    3.1.1. A profissionalizao de experts em gesto a partir dos anos 1970 .............................. 236

    3.1.2. A reprofissionalizao de lideranas institucionais nos anos 1970 e 1980 ............. 254

    3.1.3. A influncia do discurso da gesto sobre os especialistas em poltica acadmica ....... 264

    3.2. A centralizao do poder na USP ......................................................................................... 270

    3.3. O surgimento das estatsticas universitrias nos anos 1980 ................................................. 283

  • Captulo 3. A transformao estrutural da USP: dominantes e dominados no contexto

    universitrio ....................................................................................................................................... 291

    1. Expanso e diversificao: mudanas na estrutura social e acadmica da USP entre 1960 a 2010

    ......................................................................................................................................................... 293

    1.1. A expanso da USP (1960 - 2012) ....................................................................................... 294

    1.2. A diversificao interna da USP (1960 - 2012).................................................................... 312

    2. A elitizao da USP (1995 - 2013) .............................................................................................. 347

    2.1. A elitizao da USP em termos gerais ................................................................................. 347

    2.2. A elitizao diferencial da USP (1995 - 2013) ..................................................................... 355

    3. Dominantes e dominados no contexto universitrio: a estrutura social da USP ......................... 383

    Captulo 4. Escolas de elite, escolas de poder: a socializao no polo dominante e o discurso da

    gesto como violncia simblica ....................................................................................................... 414

    1. Escolas de poder, escolas de elite: a socializao para o controle e a produo social de uma elite

    dirigente........................................................................................................................................... 416

    2. A produo social de elites dirigentes: socializao e homogeneidade do polo dominante da USP

    ......................................................................................................................................................... 427

    2.1. A imensa e poderosa famlia das arcadas: socializao na Faculdade de Direito da USP 431

    2.2. Formando engenheiros e lderes: a socializao na Escola Politcnica ............................ 443

    2.3. Uma classe poderosa, preparada e coesa: a socializao na Faculdade de Medicina ....... 453

    3. O discurso da gesto como violncia simblica: o novo vocabulrio das disputas sobre as formas

    de governo na USP .......................................................................................................................... 469

    3.1. Os dirigentes centrais da USP: a hegemonia do polo profissional tradicional ..................... 471

    3.2. O processo de imposio do discurso gerencial: reformas, programas e especialistas ........ 482

    3.3. Categorias de avaliao do governo acadmico: o discurso da gesto como violncia

    simblica ..................................................................................................................................... 500

    3.3.1. O olhar a partir de cima: a capacidade de viso e o planejamento luz da estrutura

    social ....................................................................................................................................... 500

    3.3.2. A valorizao da avaliao externa: a universidade de resultados .............................. 507

    3.3.3. A valorizao da liderana individual: a universidade centralizada ........................... 514

    3.3.4. Crtica e resistncia nos limites da gesto: a universidade gerenciada ....................... 520

    Concluso ........................................................................................................................................... 528

    Referncias ......................................................................................................................................... 545

  • 17

    Introduo

    Conforme a ideia que ordinariamente se faz, a sociologia se coloca como finalidade

    revelar as estruturas mais profundamente enraizadas nos diferentes mundos que

    constituem o universo social, e tambm os mecanismos que tendem a assegurar a

    sua reproduo ou transformao. Mas [] uma tal explorao das estruturas

    objetivas , tambm e no mesmo movimento, uma explorao das estruturas

    cognitivas que os agentes engajam no seu conhecimento prtico dos mundos sociais

    assim estruturados: existe uma correspondncia entre as estruturas sociais e as

    estruturas mentais, entre as divises objetivas do mundo social notadamente em

    dominantes e dominados nos diferentes campos e os princpios de viso e diviso

    que os agentes aplicam (Bourdieu, 1989, p. 7).

    [] em toda a sociedade, a produo do discurso ao mesmo tempo controlada,

    selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de procedimentos que tm

    por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio,

    esquivar sua pesada e temvel materialidade (Foucault, 2011, p. 9).

    Ao tratar sociologicamente a questo da universidade preciso reconhecer, em

    primeiro lugar e como dimenso distintiva do problema, o fato de que ela constitui, h algumas

    dcadas, o ponto de condensao de uma mirade de discursos conflitantes, no raro

    contraditrios, que disputam a melhor forma de descrever, para ento ordenar, a instituio

    universitria. Ser objeto de disputas particularmente de disputas discursivas que se desdobram

    no plano material, simblico, cognitivo e poltico , portanto, um dos traos caractersticos da

    universidade contempornea. A constatao dessa determinao incidiu profundamente sobre o

    desenho emprico da presente pesquisa. Metodologicamente, foi preciso operar um giro

    reflexivo no sentido de transformar as prprias noes que fundamentam os discursos sobre a

    universidade em geral tidas como evidentes em objeto de interrogao. Essa operao

    analtica pode ser explicitada, a ttulo de ensaio, na tentativa de classificar o debate mais amplo

    que emerge das reformas universitrias da dcada de 1960 em dois grandes polos representados

    pelas posies sociais essenciais que estruturam, contemporaneamente, a instituio

    universitria.

    Assim, em um primeiro extremo, esto os que consideram que a universidade vive, hoje,

    uma crise de dimenses abissais, cuja reverso depende de uma inflexo radical, sem a qual a

    nica certeza a do seu colapso. partindo desse diagnstico, por exemplo, que Bill Readings

  • 18

    descreve a universidade em runas (1996) e Michel Freitag, o naufrgio da universidade

    (1995). A mesma sensao de declnio leva o historiador Peter Scott a evocar a crise da

    universidade (1984), atribuindo-lhe uma escala sem precedentes. Veredas semelhantes seguem

    os filsofos brasileiros Jos Arthur Giannotti e Franklin Leopoldo e Silva que, mobilizando

    diagnsticos opostos, descrevem a universidade em ritmo de barbrie (1986) e a

    universidade em tempo de conciliao autoritria (2004). Em uma dimenso mais mundana,

    porm igualmente significativa, podemos evocar as palavras de ordem que marcaram a greve

    de 2002 estudantil da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP cuja pretenso

    era, justamente, resgatar a instituio do que parecia a sua runa iminente: acabou o amor. Isso

    aqui vai virar um inferno. Crise, declnio, agonia, destruio, regresso, perda so alguns dos

    elementos constitutivos do discurso da catstrofe universitria, percebida como tal no interior

    do polo acadmico-cientfico. Constitudo por campos disciplinares menos voltados formao

    profissional, esse polo compe o ncleo duro da clssica universidade de pesquisa1, tornando-

    se o principal alvo das mudanas em curso.

    No outro extremo, orbitam diagnsticos opostos que enxergam a universidade no como

    uma instituio que colapsa, mas como uma organizao que se reinventa, mostrando-se, ao

    mesmo tempo, vigorosa e plstica, moderna e modernizvel. A ideia norteadora, nesse caso,

    a de que as transformaes por que passa ou deveria passar a universidade so, alm de

    positivas, necessrias e desejveis: trata-se de atualizar a universidade, aproximando-a de

    um funcionamento considerado ideal segundo os padres da teoria organizacional moderna.

    As reformas so concebidas, nesse caso, como um processo que corrige falhas e desvios

    1 Estou denominando universidade de pesquisa as instituies inspiradas no chamado modelo alemo, que orientou

    grande parte das reformas universitrias do final do sculo XIX e incio do XX e cujo cerne era a unio entre as

    funes de ensino e pesquisa e a consolidao institucional da autonomia didtica, cientfica e administrativa da

    universidade. Esse modelo tinha o seu ncleo, como no caso do projeto original da USP, nas reas mais bsicas de

    pesquisa, representadas, nesse caso, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias, em torno da qual se erguiam

    os institutos complementares, de matriz profissional. Nesse sentido, podemos dizer que todos os autores

    mencionados acima vm desse ncleo humboldtiano: Bill Readings foi professor de Letras. Michel Freitag, de

    filosofia e sociologia. Peter Scott historiador. Arthur Giannotti e Franklin Leopoldo e Silva so, como dito,

    filsofos.

  • 19

    atribudos ao carter excessivamente corporativo e acadmico das universidades de pesquisa

    que, vistas dessa perspectiva modernizante, aparecem como ultrapassadas. nesse registro,

    por exemplo, que Rudolph Atcon pretendia caminhar rumo a uma reformulao estrutural da

    universidade brasileira (1966), desenhando reformas de carter administrativo para torn-la

    uma organizao moderna. Foi compartilhando os mesmos pressupostos que James Ridgeway

    associou a crise das universidades norte-americanas ao seu carter de corporaes fechadas

    (1970), diagnstico parecido ao que levou Burton Clark a prescrever, trinta anos depois, os

    caminhos para se criar uma universidade empreendedora (1998). A transio da corporao

    fechada para a organizao empreendedora parece ter sido to importante que se tornou objeto

    de diferentes anlises, como a de Clark Kerr, que denomina esse processo de a grande

    transformao, conferindo-lhe um aspecto marcadamente positivo (1991). A ideia de que essas

    transformaes devem ser pensadas na chave de uma atualizao bastante disseminada

    determinando, por exemplo, as anlises de Algo Henderson e Alfonso Borrero, ambos

    formuladores de poltica da Unesco, o primeiro, quando fala da educao superior do mundo

    de amanh (1968) e o segundo, quando trata da universidade como uma instituio hoje

    (1993). Tambm no Brasil possvel encontrar exemplos significativos dessa viso otimista e

    engajada, como o ttulo do documento publicado pelo Frum de Pr-Reitores de Graduao das

    universidades brasileiras, do pessimismo da razo ao otimismo da vontade (1999).

    Modernizao, atualizao, adaptao, empreendedorismo, abertura, inovao, reforma so

    alguns dos tpicos dominantes no outro extremo do campo discursivo, formado no pelo corpo

    que sofre os impactos das reformas, mas pelos agentes diretamente envolvidos na sua produo,

    a partir de posies que lhe conferem poder para tanto2.

    2 James Ridgeway foi jornalista investigativo de importantes semanrios norte-americanos e documentarista.

    Escreveu e filmou temas diversos, dentre os quais um ensaio crtico sobre o funcionamento das universidades

    norte-americanas, que se tornou um best-seller nos anos 1970. Burton Clark considerado um dos fundadores da

    chamada moderna sociologia da educao, marcada pela importao da teoria das organizaes para o campo

    de estudos educacionais. Como tal, ocupou um espao privilegiado na formulao de polticas e orientaes para

    a reforma do ensino superior no mundo todo, chegando a ser membro do Conselho Consultivo do Ncleo de

  • 20

    Considerar a universidade, antes de mais nada, como objeto de formulaes discursivas

    procurando associ-las s posies sociais de sua produo , portanto, o desafio essencial do

    presente trabalho. Essa operao analtica implica, em primeiro lugar, conferir centralidade s

    disputas em geral negligenciadas pela imposio de uma linguagem, ou seja, de um sistema

    elementar de classificao, que estrutura o espao dos possveis e o campo do pensvel no

    debate e no desenho de reformas universitrias, na medida em que determina, no plano

    cognitivo, a compreenso do que , do que deve e do que pode ser uma universidade.

    Dentre os diversos discursos que incidem sobre a instituio universitria, reivindicando

    a definio da sua funo social e do seu ordenamento interno, esta pesquisa concentrou-se no

    discurso gerencial que, orientado pelas modernas teorias da gesto e inspirado em uma viso

    econmica da educao, tematiza o funcionamento do governo acadmico segundo um

    vocabulrio prprio, em que noes tais como eficincia, eficcia, metas, objetivos, resultados,

    diretrizes, planejamento, estratgia, liderana, misso, inovao e organizao encerra todo

    um sistema de classificao e viso de mundo que est redefinindo completamente a

    universidade contempornea. A deciso de priorizar o discurso da gesto inspirou-se em

    matrizes diversas.

    Pesquisas sobre Educao Superior da USP (NUPES) no incio dos anos 1990. Clark Kerr era economista de

    formao, inicialmente especializado em relaes industriais, gesto do trabalho e negociaes trabalhistas.

    Ganhou notoriedade internacional, no entanto, pela sua atuao e produo como gestor acadmico. Ocupou

    altos cargos administrativos na Universidade de Washington e da Califrnia, tendo sido demitido desta ltima

    durante os protestos estudantis dos anos 1960, particularmente por conta dos desdobramentos do chamado Free

    Speech Movement, iniciado em 1964. Em 1967, tornou-se diretor da Carnegie Commission on Higher Education,

    posteriormente transformada na Carnegie Council on Policy Studies in Higher Education, ainda sob a direo de

    Kerr. Ambos foram, durante as dcadas de 1960 e 1970, um dos centros mais importantes de estudo e orientao

    poltica do ensino superior, somando mais de 140 pesquisas entre 1967 e 1979. Kerr trabalhou, ainda, para a

    Association of Governing Boards of Universities and Colleges Presidents e comps inmeras comisses polticas

    nacionais, dentre as quais: a Commission on National Goals (durante o governo de Dwight D. Eisenhower), o

    Advisory Committee on Labor Management Policy (durante o governo de John Kennedy), o National Committee

    for a Political Settlement in Vietnam. Tambm atuou na Rockefeller Foundation, na Carnegie Foundation for the

    Advancement of Teaching, no American Council on Education, and no Work in America Institute. Algo Henderson

    e Alfonso Borrero, como j mencionado, trabalharam como formuladores de poltica da Unesco. O primeiro

    norte-americano, formado em direito e administrao em Harvard, tendo atuado na Unesco nas dcadas de 1960 e

    1970. O segundo colombiano, formado em arquitetura e teologia e trabalhou para a Unesco nos anos 1990.

    Ambos foram reitores de universidades e institutos de ensino superior em seus pases.

  • 21

    Em primeiro lugar, na literatura internacional sobre a mudana universitria, so muitos

    os trabalhos que enfatizam o impacto do conhecimento em gesto sobre a reorganizao interna

    das instituies acadmicas e dos seus procedimentos de deciso, controle e organizao do

    trabalho. Alguns autores denominam esse processo de colonizao gerencial, associando-o a

    uma transformao estrutural das universidades pblicas, europeias no caso (cf. Charle &

    Souli, 2007; Gall & Souli, 2007; Lorenz, 2007). Partindo de uma anlise mais centrada nas

    universidades francesas, Christine Musselin fala em uma onda de gesto em que managers

    profissionais passam por cima das especificidades da instituio universitria para promover

    um conjunto de reformas inspiradas nos modelos abstratos da teoria organizacional (cf. 2005,

    2006, 2007). No mesmo sentido, Georg Krcken, Albrecht Blmel e Katharina Kloke

    mencionam uma virada gerencial das instituies de ensino superior alems, mostrando que

    esse processo teve um impacto decisivo na sua transformao (cf. 2013). Na sua anlise sobre

    a transformao da universidade inglesa, Marylin Strathern destaca a emergncia de uma

    cultura da auditoria em que o discurso do management torna-se um idioma ubquo pautado

    na regulao e na organizao (cf. 2000, p. 2). Os noruegueses Ase Gornitzka, Svein Kyvik e

    Ingvild Larsen descrevem o que eles definem como uma burocratizao das universidades

    nrdicas, justamente a partir da profissionalizao da sua administrao acadmica (cf.

    Gornitzka, Svein & Larsen, 1998; Gornitzka & Larsen, 2004). De modo anlogo, Gary Rhoades

    e Larry Leslie, tomando o exemplo dos Estados Unidos nos anos 1990, observavam um

    crescimento dramtico dos custos administrativos de universidades e colleges nas ltimas duas

    dcadas (1995, p. 187), buscando enfatizar seus efeitos em termos de uma crise da profisso

    acadmica. Olhando para as universidades europeias entre os anos 1980 e 1990, Rhoades, em

    parceria com Barbara Sporn, mencionam a emergncia de uma administrao mais

    profissionalizada, com gestores permanentes, em dedicao integral e com poderes

    crescentes (Rhoades & Sporn, 2002, p. 3). Os autores identificam uma mudana semelhante

  • 22

    nos mtodos de gesto acadmica das universidades norte-americanas, onde o processo assume

    uma feio ainda mais radical, a ponto das mudanas em curso serem descritas como a

    emergncia de um capitalismo acadmico (cf. Rhoades & Sporn, 2002; Rhoades & Slaughter,

    2004; Slaugther & Leslie, 1997).

    Na literatura especificamente brasileira sobre a transformao da universidade, tambm

    no so poucas as referncias centralidade do conhecimento gerencial no desenho de reformas

    universitrias. Ao tratar do processo de modernizao da universidade brasileira, Irene Cardoso,

    por exemplo, enfatiza a importncia do planejamento racional das atividades acadmicas,

    mostrando como esse processo implica a burocratizao crescente da esfera da cultura (e da

    cincia), com a transformao da universidade numa grande organizao racional, na qual essa

    racionalidade de carter funcional, instrumental, ou formal, est subordinada ideia de clculo

    (2001, p. 67). A anlise de Marilena Chau sobre a obsolescncia da universidade liberal no

    Brasil tambm enfatiza o papel crtico da administrao, enquanto modelo organizacional

    baseado na grande empresa, na imposio de uma ideia de progresso como sinnimo de uma

    organizao administrativa e administrada da universidade (Chau, 2001, p. 66). Em um

    diagnstico semelhante, Franklin Leopoldo e Silva afirma que as reformas universitrias dos

    anos 1960 e, sobretudo, 1980 construram uma universidade gerencial baseada na

    desqualificao da poltica em todos os nveis como parte de um projeto poltico de

    dimenses transnacionais, que a tecnoburocracia brasileira leva a efeito naquilo que lhe

    compete e de acordo com as diretrizes de rgos internacionais (Silva, 1999, p. 27). Essas

    diretrizes internacionais estabelecem o economicismo como padro de gesto eficiente e

    racional o que, segundo o autor:

    [...] a razo pela qual, a partir do final dos anos 80, instalou-se na USP a mentalidade

    do gerenciamento, isto , a definio clara e inequvoca da direo universitria

    como algo primordialmente ligado a organizao e mtodos administrativos, com a

    elevao dos critrios de eficcia empresarial ao primeiro plano na considerao dos

    requisitos de gesto universitria (Silva, 1999, p. 26).

  • 23

    Mas para alm dessa literatura nacional e internacional sobre a transformao da

    universidade, o fortalecimento do conhecimento gerencial ocupa um lugar central na teoria

    social que busca formular uma crtica do capitalismo contemporneo, enquanto estrutura social

    de dominao que determina processos de subjetivao que definem esquemas de percepo,

    sentimento e ao. nessa chave, por exemplo, que Luc Boltanski e ve Chiapello vo afirmar

    que o discurso do management constitui, hoje, a forma por excelncia do esprito capitalista,

    enquanto ideologia voltada justificao da atuao de gerentes e dirigentes, cuja adeso ao

    sistema econmico-social indispensvel ao seu funcionamento (1999, p. 51). No mesmo

    sentido caminha a anlise de Pierre Dardot e Christian Laval sobre a nova razo do mundo,

    o neoliberalismo, definido como o conjunto de discursos, prticas e dispositivos que

    determinam um novo modo de governo dos homens baseado no princpio universal da

    concorrncia (2010, p. 6). Essa nova racionalidade, como os autores apontam, inseparvel

    da prtica dos experts e administradores que definem a gesto como uma nova tecnologia

    de controle e um novo modo de subjetivao (cf. Dardot & Laval, 2010, p. 371). tambm

    em termos de nova racionalidade que Albert Ogien analisa a emergncia do esprito

    gestionrio que faz com que as questes propriamente polticas, sobre a organizao dos

    processos de discusso e deliberao no interior das instituies sociais, sejam cada vez mais

    nomeadas e descritas a partir de um lxico gerencial, emprestado da economia e da

    contabilidade. Como resultado dessa imposio cognitiva, uma parte substancial das decises

    polticas sobre a forma mesma dessas decises encontra-se implicada nas tcnicas de

    administrao que se impem progressivamente aos responsveis pelo governo dos homens (cf.

    Ogien, 1995, p. 12).

    Os exemplos podem parar por aqui porque a inteno apenas mostrar como a

    preocupao com conhecimento gerencial e o seu significado social vm ganhando espao nas

    anlises sobre a mudana da universidade contempornea, no Brasil e no mundo, e sobre a

  • 24

    transformao da sociedade capitalista ela mesma. partindo dessas anlises que a presente

    pesquisa buscou interrogar o lugar do discurso da gesto na redefinio da universidade

    brasileira atravs da sua reestruturao interna. Este desenho de pesquisa permaneceria, no

    entanto, incompleto, caso as noes que constituem o discurso gerencial fossem compreendidas

    como meras elaboraes intelectuais, obras do pensamento puro, da imaginao livre ou, ainda,

    expresses imediatas da verdade. A disciplina sociolgica seja ela inspirada no

    materialismo histrico, no historicismo weberiano ou no mtodo durkheimiano compartilha

    o pressuposto de que os discursos e suas categorias constitutivas so essencialmente produtos

    sociais que, tanto na sua origem quanto nos seus efeitos, encontram-se profundamente

    conectados s estruturas e aos conflitos que instituem a sociedade. Esta pesquisa incorpora

    anlise do discurso gerencial, portanto, a problemtica essencial da sociologia do conhecimento

    que se pe como tarefa explicar a formao, a difuso e o impacto das categorias de percepo,

    classificao e ordenao do mundo, particularmente as que constituem discursos

    especializados, legitimados pelo seu carter pretensamente cientfico.

    Assim, considerando a teoria da gesto como um discurso com pretenso de verdade,

    produzido e difundido para descrever e, a partir disso, normatizar o funcionamento da

    universidade, esta pesquisa visa analisar tanto o impacto da estrutura social da universidade

    sobre a formulao do conhecimento gerencial quanto deste sobre a ordenao interna da

    instituio universitria. Isso implica no s considerar a expanso da gesto como um processo

    de imposio cognitiva e cultural, como tambm analisar essa mesma imposio e a

    possibilidade de resistir a ela luz da estrutura social, marcadamente a estrutura de classes,

    entendida como sistema de relaes sociais, econmicas e polticas que hierarquizam os

    diferentes universos sociais, incluindo, no caso, a universidade.

    Tentando traduzir esse problema sociolgico geral procurei desenhar uma pesquisa

    emprica que, enquanto um estudo de caso, buscava analisar o processo de difuso do

  • 25

    conhecimento gerencial em uma nica instituio, a Universidade de So Paulo, enfatizando os

    seus efeitos para a desestruturao da profisso acadmica, vista como uma forma histrico-

    social de organizao do trabalho baseada na institucionalizao da autonomia e do

    autogoverno que, juntas, preservam a diversidade de funes, tradies e estilos de trabalho que

    marca a histria da universidade como instituio social. A opo por realizar um estudo de

    caso se justificava na medida em que o objetivo essencial da pesquisa era analisar, em

    profundidade, o processo social de produo e difuso do saber gerencial na universidade,

    enfatizando a relao entre esse discurso e a estrutura social. A escolha da USP como objeto de

    pesquisa baseou-se, essencialmente, no reconhecimento do lugar central que ela ocupa no

    campo do ensino superior brasileiro, ditando rumos e tendncias.

    De fato, a Universidade de So Paulo, com 80 anos de existncia, a maior e mais

    tradicional universidade pblica do pas, tendo sido recentemente considerada, pelos sistemas

    internacionais de ranqueamento, tambm a melhor e mais importante universidade de pesquisa

    da Amrica Latina e uma das mais prestigiadas instituies universitrias do mundo. Do ponto

    de vista das suas dimenses internas, a USP tambm uma instituio de peso, exercendo, por

    isso, efeitos sobre o conjunto do sistema. Para citar s os dados mais gerais, a USP tem quarenta

    e duas unidades de ensino e pesquisa, seis institutos especializados, quatro museus, quatro

    hospitais, quarenta e quatro bibliotecas que somam um acervo de mais de 8 milhes de livros,

    uma editora, uma rdio, pelo menos um jornal de mdia circulao e dezenas de revistas de

    distribuio nacional. Geograficamente, a USP se espalha por sete campi localizados em sete

    cidades diferentes. Todo esse aparato consumiu, em 2013, mais de R$ 4 bilhes em repasses

    diretos do tesouro do estado de So Paulo, sem contar as outras formas de financiamento

    pblico e privado recebidos pela instituio no perodo. Muitos indicadores poderiam seguir

    demonstrando a centralidade da USP no campo brasileiro de ensino e pesquisa. Mas, talvez, o

    indcio mais significativo, do ponto de vista sociolgico, da proeminncia da USP seja o seu

  • 26

    carter de quase-evidncia, fruto da percepo socialmente compartilhada do seu predomnio:

    em suma, possvel afirmar a centralidade da USP sem precisar mobilizar dezenas de

    indicadores porque, afinal, todo mundo sabe o lugar que ela ocupa3.

    justamente como instituio dominante que a USP exerce enorme poder na definio

    de tendncias em trs dimenses centrais para a formao contempornea da sociedade

    brasileira: o das prticas pedaggicas com reflexos em todos os nveis de ensino ; o da

    pesquisa cientfica desde as mais bsicas at as voltadas para a aplicao econmica, poltica

    ou social ; e o das profisses especializadas ligadas, portanto, formao das elites

    profissionais que compem, e de certo modo dirigem, o Estado brasileiro, a sociedade civil e o

    setor econmico, sobretudo a partir da profissionalizao das funes de direo. Esse poder

    de influncia sobre o sistema de ensino e pesquisa instrumento essencial para a constituio

    e legitimao de estruturas sociais de dominao torna a USP um objeto privilegiado de

    disputa entre diferentes classes, fraes de classe e grupos sociais que travam, atravs de lutas

    na universidade e pela universidade, um dos frontes da batalha pelo sentido e orientao da

    sociedade brasileira.

    Ao reconhecer essa funo especfica da universidade em geral e da USP em particular,

    o problema terico geral desta pesquisa a relao entre categorias de pensamento e estrutura

    social ou, se quisermos, entre sistemas de classificao e sistemas de dominao pde ganhar

    uma configurao emprica bastante concreta. Isso porque a USP, pela sua centralidade na

    constituio da sociedade local e nacional enquanto instrumento de produo e legitimao de

    estruturas sociais de dominao, torna-se ela mesma, objeto privilegiado de disputas que

    assumem, no raro, contornos violentos. Tais disputas se desenrolam, evidentemente, em

    mltiplos nveis, tais como: a escolha dos currculos acadmicos e contedos disciplinares; a

    3 Reconhecer que a USP , hoje, a mais importante universidade brasileira no significa ignorar o processo de

    construo dessa imagem da USP como exemplo mximo de excelncia ou mesmo as inmeras derrotas que a

    USP sofreu no plano das definies de padres de funcionamento universitrio e cientfico.

  • 27

    criao de vagas, cursos e carreiras; o estabelecimento de prioridades, padres e culturas de

    pesquisa; a legitimao de mtodos cientficos e pedaggicos; a determinao de reas e

    formatos da chamada extenso universitria; e a mobilizao de critrios de seleo e

    avaliao do alunado. No entanto, existe um nvel de embate que pressuposto para todos esses:

    a definio dos processos de ao, controle e deciso no interior da universidade, tal como

    expresso nas regras do seu governo4. E precisamente sobre esse nvel de disputa como dito,

    essencial para todos os outros que incide de modo paradigmtico o discurso da gesto sendo,

    portanto, tambm sobre ele que se concentrou o meu esforo de pesquisa.

    Assim, a hiptese geral deste trabalho, que estruturou toda uma primeira fase do

    processo de investigao, era de que o governo central da USP vinha se transformando nos

    ltimos anos a partir da imposio dos princpios das modernas teorias da gesto, tal como

    descrito pela literatura sobre a mudana universitria em diversos pases do mundo. Essa

    hiptese geral foi facilmente confirmada na primeira fase do meu trabalho de campo, voltada

    para a anlise de atas, relatrios, manuais, portarias e outros documentos produzidos no mbito

    central da universidade a partir dos anos 1980, momento em que parte importante da literatura

    localizava o incio dessas mudanas, at 2010, quando se encerrava a presente pesquisa. Esse

    material me permitiu identificar claramente a influncia dos princpios gerenciais, seja na

    implementao de dispositivos tcnico-materiais de gesto, seja na legitimao de dirigentes

    que se apresentavam como portadores desse conhecimento especfico.

    No entanto, medida que eu avanava na segunda fase da minha pesquisa de campo,

    que consistia em entrevistar reitores, pr-reitores e diretores administrativos da USP5 para

    4 Usamos o termo governo, e no outros mais comuns como gesto, administrao, liderana ou governana

    acadmica, justamente para escapar do vocabulrio mobilizado nas disputas que vamos estudar. Embora ainda

    pouco usado no Brasil, o termo governo acadmico ou universitrio bastante recorrente na literatura sobre

    histria e funcionamento das universidades (cf. Friedberg & Musselin, 1991; Henkel, 1991; Neave & Van Vught,

    1991; Rothblatt & Wittrock, 1993; Regg, 2004).

    5 A amostra dos dirigentes da USP inclua todos os reitores, pr-reitores e diretores da Codage que ocuparam esses

    postos entre 1986 e 2010. Eu consegui entrevistar parte importante deles. Embora, metodologicamente, eu tenha

    optado por no nomear meus entrevistados optando por identific-los por suas propriedades sociais relevantes,

  • 28

    entender como eles participavam e avaliavam o processo de expanso do conhecimento

    gerencial na universidade, eu fui percebendo que, embora o domnio da gesto tivesse

    visivelmente se fortalecido na universidade a partir dos anos 1980, os dirigentes que atuaram

    nos rgos centrais de direo, durante esse perodo, desprezavam taxativamente a

    administrao, tanto como um campo especfico de conhecimento quanto como conjunto de

    prticas. Essa recusa assumiu, na grande maioria dos casos, um mesmo sentido: a administrao

    era vista como simples atividade de execuo a servio de diretrizes, projetos e metas

    concebidos pela direo central da instituio. No ser conduzido, conduzir era, portanto, o

    ideal que transparecia nessas avaliaes que revelam, justamente, como os dirigentes da USP

    mobilizam um esquema categorial expresso nas oposies entre alto/baixo, elevado/rasteiro,

    nobre/vulgar que traduz hierarquias socialmente significativas entre direo/execuo,

    comando/obedincia ou, em casos extremos, pensamento/atividade e concepo/trabalho.

    Em suma, o que o meu trabalho de campo revelava era que os principais responsveis

    pela imposio da viso gerencial da USP, tanto como profissionalizao de instrumentos e

    rotinas de coordenao, controle e avaliao quanto como construo de um modelo de gesto

    estratgica baseada em vises, diretrizes e metas claramente estabelecidas pelo poder central,

    achei fundamental listar as entrevistas realizadas. Foram elas: Jos Goldemberg (entrevista realizada no Instituto

    de Eletrotcnica e Energia da USP em 21 de novembro de 2012); Roberto Leal Lobo (entrevista realizada no

    Instituto Lobo, em Mogi das Cruzes, em 07 de maro de 2013); Ruy Laurenti (entrevista realizada no seu

    laboratrio na Faculdade de Sade Pblica em 03 de dezembro de 2012); Flvio Fava de Moraes (entrevista

    realizada no gabinete da presidncia da Fundao Faculdade de Medicina, na Faculdade de Medicina, em 25 de

    abril de 2013); Jacques Marcovitch (entrevista realizada na sala do Conselho de Departamento de Administrao,

    na Faculdade de Economia, Administrao e Contabilidade em 14 de maio de 2013); Joaquim Jos de Camargo

    Engler (entrevista realizada na Diretoria Administrativa da FAPESP em 21 de novembro de 2012); Hlio Nogueira

    da Cruz (entrevista realizada no Gabinete da Vice-reitoria da USP em trs sees em 27 de maio, 07 de junho e 25

    de junho de 2013); Erney de Camargo Plessmann (entrevista realizada na sua sala pessoal no Instituto de Cincias

    Biomdicas em 21 de maio de 2013); Hugo Armelin (entrevista realizada na sua sala pessoal no Instituto Butant

    em 21 de maio de 2013); Carlos Alberto Barbosa Dantas (entrevista realizada nas suas salas pessoais no Instituto

    de Estudos Avanados e no Instituto de Matemtica e Estatstica em duas sees, em 11 de maio e 17 de junho de

    2013); Geraldo Serra (entrevista realizada na presidncia da Fundao Faculdade de Arquitetura em 16 de abril

    de 2013); Celso Beisiegel (entrevista realizada na sua sala pessoal na Faculdade de Educao em 25 de abril de

    2013); Snia Penin (entrevista realizada na sua sala pessoal na Faculdade de Educao em 03 de julho de 2013);

    Ada Pelegrini Grinover (entrevista realizada na sua residncia em 06 de junho de 2013); Oswaldo Ubraco

    (entrevista realizada na sua residncia em 29 de novembro de 2012); Luiz Nunes de Oliveira (entrevista realizada

    na sua sala pessoal no Instituto de Fsica de So Carlos em 12 de junho de 2013); Sedi Hirano (entrevista realizada

    na Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas em trs sesses, em 28 de agosto, 04 de setembro e 12 de

    setembro de 2012).

  • 29

    desprezavam a gesto e a administrao seja como cincia especfica seja como um repertrio

    de procedimentos e prticas. Esse aparente paradoxo me obrigou a perguntar, afinal, como foi

    possvel que a gesto reestruturasse completamente o governo da USP se os seus dirigentes,

    diretamente responsveis por esse processo, se mostravam claramente contrrios a ela? Para

    responder a essa questo e tentar dar conta desse aparente paradoxo, optei por conjugar dois

    caminhos de anlise, pavimentados pelas referncias tericas que orientavam, desde o comeo,

    esta pesquisa, porm no de modo to determinante.

    Por um lado, eu procurei entender a gesto como um sistema de classificao que pde

    se impor no interior desse universo especfico a Universidade de So Paulo justamente por

    se adequar sua estrutura social interna incorporando, portanto, as oposies cognitivas que ela

    engendrava. Isso significava, em suma, assumir a perspectiva de Pierre Bourdieu de que, na

    anlise sociolgica, a explorao das estruturas objetivas , tambm e no mesmo movimento,

    uma explorao das estruturas cognitivas que os agentes engajam no seu conhecimento prtico

    dos mundos sociais assim estruturados (1989, p.7). Nessa chave, foi imprescindvel pensar a

    histria da USP no modelo de uma histria estrutural que identificasse as estruturas essenciais

    de dominao social, poltica e acadmica, procurando entender, ao mesmo tempo, como essas

    estruturas esto na raiz das categorias cognitivas que se impuseram para a totalidade da

    universidade em um claro movimento de violncia simblica (cf. Bourdieu, 1980, 1984, 1989).

    Por outro, o andamento da pesquisa foi mostrando como era cada vez mais importante

    analisar a gesto enquanto uma formao discursiva que, pela mobilizao de dispositivos

    tcnico-materiais, transformava profundamente o funcionamento da universidade. Esse

    processo, de afirmao de instrumentos, rotinas, prticas e procedimentos gerenciais, contribua

    para impor a gesto como linguagem especfica reafirmando, assim, as suas categorias

    essenciais. Em outras palavras, foi preciso entender, luz dos trabalhos de Michel Foucault, a

    o discurso da gesto como um dispositivo de saber-poder que se imps em sua pesada e temvel

  • 30

    materialidade (Foucault, 2011, p. 9).

    O presente trabalho parte de uma tentativa de estabelecer um dilogo entre essas duas

    tradies tericas6 que, conjugadas, possibilitam realizar uma anlise estrutural das formaes

    discursivas sem que isso implique desconsiderar o papel dos discursos na construo de

    estruturas sociais. Esse esforo duplo foi mobilizado, nesta pesquisa, para entender tanto a

    histria da Universidade de So Paulo e da sua transformao quanto o processo de difuso do

    discurso da gesto e a sua aplicao universidade brasileira, USP, em particular. Esse esforo

    de anlise se distribui em quatro captulos que se organizam da seguinte forma. O primeiro

    captulo, Posies sociais e vises do passado: por uma histria estrutural da USP, analisa as

    diferentes linhas de reconstruo da histria da USP luz das posies sociais e institucionais

    que fundamentam essas vises do passado, buscando justificar, na prtica, a opo pela histria

    estrutural. O segundo captulo, chamado Posies sociais e vises de futuro: a emergncia da

    universidade como objeto de gesto, uma tentativa de analisar a gesto como um novo regime

    de verdade que, mobilizando dispositivos tcnico-materiais e difundindo uma linguagem

    especfica, conseguiu transformar a universidade em objeto de gesto, o que possibilitou a

    emergncia de estatsticas universitrias que do suporte ao terceiro captulo, A transformao

    estrutural da USP: dominantes e dominados no contexto universitrio, que se volta para as

    transformaes do padro de expanso da USP e seus efeitos sobre a estrutura social da

    universidade. O quarto e ltimo captulo, intitulado Escolas de elite, escolas de poder: a

    socializao no polo dominante e o discurso da gesto como violncia simblica, pretende

    analisar o processo de socializao no polo dominante da universidade, onde se formou a

    6 Eu j realizava a presente pesquisa quando foram publicados dois artigos de Gil Eyal, em colaborao com

    Larissa Buchholz e Grace Pok, que tematizavam justamente a possibilidade de unir a abordagem estrutural de

    Bourdieu anlise construtivista referenciada em Foucault (Eyal & Buchholz, 2010; Eyal & Pok, 2011). No

    mesmo sentido caminha o artigo de Bernard Lahire que defende, justamente, dilogo entre a perspectiva

    bourdieusiana que enfatiza a relao entre os discursos e as posies sociais, identificando o poder dos discursos

    ao lugar do campo social em que eles so produzidos, com a perspectiva foucaultiana que prioriza o poder dos

    discursos em si, tratando eles mesmos como uma estrutura (cf. Lahire, 2001). Ou mesmo o artigo de Remi Lenoir

    sobre a construo do objeto sociolgico onde o dilogo entre essas duas tradies tambm aparece como um

    esforo importante (cf. 1998).

  • 31

    maioria dos dirigentes que se engaja em atividades de coordenao e direo no mbito da

    universidade, mostrando como o discurso da gesto, que se adequa viso de universidade

    predominante nesse polo, passou a determinar os termos em que as disputas pelo governo

    acadmico so travadas no interior da USP, em um caso tpico de violncia simblica. A

    concluso retoma as principais concluses desta tese, apontando perguntas que ela permite

    formular, o que j indica que esta pesquisa no se encerra com o presente trabalho.

  • 32

    Figura 1. Braso darmas da USP

  • 33

    Captulo 1. Posies sociais e vises do passado: por uma histria

    estrutural da USP

    Em escudo antigo o apstolo So Paulo, sentado numa ctedra guarnecida de ouro

    encostada a um muro ameiado, acompanhado destra pelo escudo do Estado de So

    Paulo e sinistra pelo da Capital, ambos com seus timbres. O apstolo de encarnao,

    vestido de vermelho e com manto azul, empunha com a destra uma espada em riste e

    mantm com a sinistra um livro. A ctedra firmada sobre dois degraus e estes sobre

    o cho em ponta. Tudo de sua cor. O timbre, uma esfera armilar sainte de ouro.

    [Abaixo] um listo vermelho com a divisa Scientiae Vinces em letras de prata. So

    Paulo, dezembro de 1934. Explicao do braso darmas da Universidade de So

    Paulo por Jos Wasth Rodrigues (Ernesto de Souza Campos. A histria da

    universidade de So Paulo, 1954, n.p.).

    No romance machadiano praticamente no h frase que no tenha segunda inteno

    ou propsito espirituoso. A prosa detalhista ao extremo, sempre cata de efeitos

    imediatos, o que amarra a leitura ao pormenor e dificulta a imaginao do panorama.

    Em consequncia, e por causa tambm da campanha do narrador para chamar ateno

    sobre si mesmo, a composio do conjunto pouco aparece. Entretanto, ela existe, e, se

    ficarmos a certa distncia, deixa entrever as grandes linhas de uma estrutura social

    (Roberto Schwarz. Um mestre na periferia do capitalismo, 2000, p. 18).

    A ideia de que a Universidade de So Paulo deva ter um braso darmas tem, em si, algo

    de excntrico. Uma instituio fundada em pleno sculo XX, expresso de um anseio

    essencialmente modernizador, recorrendo a um smbolo medieval como forma de forjar uma

    tradio milenar capaz de legitim-la junto s suas congneres mais antigas e, por isso,

    percebidas como mais autnticas, soa, no mnimo, deslocado. De incio, a tentao remeter

    tal iniciativa extravagncia das nossas elites agrrias sedentas de ttulos que as aproximassem

    das antigas aristocracias europeias (Schwarcz, 1993, p. 110). No caso do braso darmas da

    USP, entretanto, no seu sentido e na sua funo, constantemente atualizados, esconde-se algo

    de mais complexo.

    De fato, ainda hoje, o braso darmas da USP constitui smbolo mximo da universidade

    ganhando, como tal, enorme visibilidade. No por acaso, portanto, o braso constitui o timbre

    oficial da USP, acompanhando grande parte dos seus documentos, particularmente os histricos

    escolares, os comprovantes de matrculas e outros registros acadmicos de uso cotidiano dos

    alunos de graduao e ps-graduao. Alm disso, mais recentemente, passou a ilustrar a pgina

  • 34

    inicial do webmail institucional da USP e o site oficial da universidade. A partir de 2013, passou

    a constar, acompanhado da sua explicao oficial, na primeira pgina do anurio estatstico,

    publicao que divulga os nmeros da USP para dentro e para fora da universidade. Mas o mais

    surpreendente e inusitado, a imagem do braso darmas tambm foi espalhada, nos ltimos

    anos, por diversos locais de passagem como os restaurantes universitrios reformados, as

    bibliotecas de diferentes institutos, em entradas e sadas de prdios da universidade. Sempre em

    posio de destaque, a imagem aparece para os uspianos que, no seu cotidiano repleto, atentam

    s paredes em volta, seja como uma ilustrao qualquer e sem importncia, seja como um

    reflexo natural da vida na mais tradicional universidade de pesquisa do pas, seja ainda, para os

    mais crticos, como outra idiossincrasia da direo universitria que no vem ao caso. Em todas

    as alternativas, o braso visto como uma simples imagem, desprovida de qualquer significado

    mais profundo.

    Ainda assim, o apstolo Paulo armado segue encarando, indiferente, os uspianos que

    passam apressados e, moda de uma esfinge, sugere que ali subsista alguma verdade mais

    essencial. E subsiste de fato. Como na prosa machadiana em que a profuso de detalhes e as

    peripcias do narrador amarram o leitor ao pormenor, impedindo-o de apreender o significado

    mais profundo do conjunto, o braso darmas da USP tambm esconde, nos seus traos mais

    insignificantes e inslitos, as grandes linhas de uma estrutura social que s se mostra, no

    entanto, se ficarmos a certa distncia (Schwarz, 2000, p. 18).

    A grande dificuldade de tentar realizar uma pesquisa que assume o pressuposto de que

    a anlise das relaes objetivas, expresso das estruturas sociais, s se completa com a anlise

    dos esquemas de percepo, de pensamento e de ao, produto dessas estruturas sociais

    incorporadas enquanto estruturas cognitivas (Bourdieu, 1989, p. 7ss), que o movimento de

    determinao entre uma estrutura e outra tem algo de circular. Dito de outro modo, embora a

    abordagem estrutural pressuponha a primazia da estrutura social, enquanto expresso de

  • 35

    condies materiais de existncia essencialmente distintas, inscritas em instituies e corpos

    (Bourdieu, 1980, p. 94-6), a possibilidade de apreenso dessa estrutura, assim como de sua

    reproduo ou transformao, depende essencialmente das categorias de pensamento e

    classificao que ela produz e refora.

    Essa dupla determinao impe uma enorme dificuldade de exposio. Para seguir com

    a analogia machadiana, fcil padecer da mesma dvida que acomete o seu defunto autor:

    comear pelo princpio ou pelo fim? Neste caso, pela estrutura social ela mesma ou pelas

    categorias de percepo, pensamento e ao que ela engendra? Nesta tese, como nas Memrias

    pstumas de Brs Cubas, a opo foi comear pelo fim, ou seja, pelas categorias cognitivas, tal

    como expressas nas diferentes representaes da histria da USP. Essa opo se justifica porque

    ela permite, a um s tempo, expor o objeto e justificar a abordagem adotada que, no caso, parte

    da anlise das insuficincias da historiografia atual sobre a USP, para defender a opo por uma

    histria estrutural. importante frisar desde j que, na presente anlise, essas historiografias

    ditas parciais, porque incapazes de tomar a distncia necessria para apreender o espao

    estruturado da USP que lhes confere sentido, no so simplesmente descartadas como mero

    erro ou desvio, resultado de uma operao pr-cientfica e, portanto, invlida. Na verdade, essas

    historiografias foram restauradas como parte essencial do objeto. Em sntese, confere-se a essas

    histrias o estatuto de problema de investigao, o que implica projetar tambm sobre elas as

    categorias analticas que estruturam o presente trabalho.

    Este primeiro captulo se divide em quatro sees. A primeira se dedica historiografia

    oficial da USP, marcada por obras escritas a partir de posies de poder no interior da

    instituio. A segunda interrompe a descrio da historiografia para inserir as categorias

    essenciais da anlise estrutural; a terceira retorna para a anlise da historiografia tomando como

    objeto os trabalhos escritos a partir de uma posio institucional diametralmente oposta que

    define a histria oficial, ou seja, a partir dos estudos de histria e filosofia da educao, social

  • 36

    e academicamente dominados. Por fim, a concluso resume a chave de leitura estrutural para

    retomar a anlise do braso darmas da USP, a partir da distncia capaz de revelar o seu sentido,

    o que abre caminho para localizar a tradio paulista de histria estrutural qual se filia o

    presente trabalho.

    1. Entre fatos e feitos: perspectiva finalista e histria oficial

    No dia 25 de janeiro de 2014, a maior e mais conceituada universidade pblica

    brasileira, a Universidade de So Paulo, completou oitenta anos7. Nos eventos de comemorao,

    ainda era possvel ouvir o eco dos bumbos e gritos de mais uma greve estudantil e dos debates

    e burburinhos de mais uma eleio para reitor. primeira vista, essas duas expresses opostas

    da vida poltica universitria a eleio reitoral e a greve estudantil compem apenas mais

    dois registros na sucesso de fatos e feitos que, ao longo das dcadas, constituem a histria

    da USP.

    Por certo, na narrativa do movimento estudantil, a greve e a ocupao da reitoria sero

    descritas como mais um ato heroico de uma comunidade sufocada por uma burocracia

    autoritria e indiferente urgente democratizao da universidade. J na perspectiva dos

    dirigentes, a reintegrao de posse da reitoria e a conduo da eleio em meio aos protestos e

    presses ter representado mais um momento de coragem em que se fez valer a

    responsabilidade da direo que, com alma forte e tmpera de ao, conseguiu manter a

    7 A Universidade de So Paulo foi fundada em 25 de janeiro de 1934, com sede na cidade de So Paulo, pelo

    decreto estadual n6.283, assinado pelo ento interventor estadual Armando Salles de Oliveira. Na sua formao

    original, a USP era composta por faculdades profissionais pr-existentes a Faculdade de Direito, a Escola

    Politcnica, a Faculdade de Medicina, a Faculdade de Odontologia e Farmcia, a Faculdade de Medicina

    Veterinria, a Escola Superior de Agricultura, o Instituto de Educao, e a Escola de Belas Artes, que no ficou

    muito tempo associada nova universidade s quais se somaram duas novas unidades: a Faculdade de Filosofia,

    Cincias e Letras, que entrou em funcionamento ainda em 1934, e o Instituto de Cincias Econmicas e Comerciais

    que s se efetivou em 1946, como Faculdade de Economia e Administrao.

  • 37

    USP na sua estrada real8. Nos dois casos, os eventos aparecem como resultado direto da

    atuao consciente de homens imbudos da certeza de que suas aes determinam a histria.

    Entre essas duas foras historicamente contrapostas, a percepo secretamente compartilhada

    de que ambas, a despeito das suas profundas diferenas ideolgicas e prticas, se sabem parte

    de uma mesma elite poltica9.

    Essa viso inerente aos homens de ao, de que nada existe na histria seno feitos,

    se traduz diretamente na historiografia predominante sobre a USP que, por partilhar uma viso

    ingenuamente finalista da histria (Bourdieu, 1984, p. 12), marcada pela primazia da ao

    individual, confere narrativa dos prprios uspianos, quase sempre de autoconsagrao, um

    lugar absolutamente central. Essa perspectiva finalista concebe o desenvolvimento institucional

    como um todo, um conjunto coerente e orientado que pode e deve ser apreendido como

    expresso unitria de uma inteno subjetiva e objetiva, de um projeto (Bourdieu, 1986, p.

    69; grifo meu). Essa perspectiva historiogrfica reverte-se, no entanto, no seu aparente

    contrrio: por conceber uma histria contnua, aberta ao trabalho de uma teleologia e aos

    processos indefinidos da causalidade garantindo os poderes de uma conscincia constituinte

    (Foucault, 2010, p. 275), essa mesma historiografia termina por conceber os acontecimentos

    histricos como uma mera sucesso de fatos desprovidos de significao, ignorando que os

    8 As expresses inseridas entre aspas neste pargrafo so falas dos prprios atores. Para caracterizar o discurso do

    movimento estudantil, utilizou-se termos e adjetivaes de panfletos distribudos durante a greve de 2013. Para

    caracterizar o discurso dos dirigentes, mobilizou-se as expresses utilizadas por Ernesto de Souza Campos para

    descrever a ao das diretorias da Faculdade de Medicina e da Escola Politcnica durante as primeiras

    mobilizaes estudantis, ainda no comeo do sculo XX (cf. Campos, 1954, p. 354).

    9 O movimento estudantil da USP reconhecidamente um espao importante para a formao de lideranas

    polticas. S para exemplificar, na ltima eleio para a prefeitura de So Paulo, o segundo turno ops dois antigos

    militantes do movimento estudantil da USP: Jos Serra (PSDB) e Fernando Haddad (PT). Ambos disputavam o

    lugar que cabia a outro uspiano, o ento prefeito Gilberto Kassab (PSD), que tambm iniciou sua carreira poltica

    no movimento estudantil dessa instituio. No outro extremo, importante frisar que existe um forte trnsito de

    dirigentes acadmicos entre posies de controle da universidade e outras funes executivas no aparelho de

    Estado, em nvel municipal, estatual e federal. Ainda que a porta de entrada na vida pblica seja diferente uns

    pela via propriamente poltica e os outros por um caminho pavimentado pela legitimidade burocrtica , tanto as

    lideranas do movimento estudantil quanto os dirigentes acadmicos acabam formando uma mesma elite poltica

    que dirige, juntamente com outras foras sociais, o aparelho estatal brasileiro.

  • 38

    acontecimentos devem ser vistos como a irrupo de uma singularidade nica e aguda, no

    lugar e no momento da sua produo (Cardoso, 2001, p. 217).

    A perspectiva finalista que concebe a histria como o resultado da ao consciente de

    homens que dirigem a instituio assumindo um determinado sentido marca de modo

    significativo uma parte importante da historiografia sobre a USP, composta pelas obras que

    formam a sua histria oficial. Podem ser includos nessa categoria todos os trabalhos escritos a

    partir de posies de poder repercutindo, nas suas reconstrues histricas, as vises inerentes

    a esse lugar institucional, ocupado pelo polo dominante da universidade formado, como se ver,

    pelas faculdades profissionais tradicionais.

    Tem sido assim desde o primeiro livro que se pretende uma histria da USP,

    concludo pelo ex-reitor Jorge Americano em 1946 e intitulado A Universidade de So Paulo:

    dados, problemas e planos (Americano, 1947). Na mesma linha, as diferentes Memrias e

    Recordaes do tambm ex-reitor Miguel Reale inserem-se como outro exemplo interessante

    (Reale, 1986a, 1986b, 1987 e 1994). Ambos, alm de polticos importantes do estado de So

    Paulo, eram professores catedrticos da Faculdade de Direito da USP. Outros dirigentes

    acadmicos tambm escreveram sobre a histria da USP, seja sob a forma de artigos

    acadmicos, seja sob a forma de memrias. No primeiro caso, pode-se incluir o recente artigo

    do tambm professor de direito e ex-reitor da USP, Joo Grandino Rodas, intitulado Histria

    da Universidade de So Paulo e escrito em parceria com Shozo Motoyama (Rodas &

    Motoyama, 2011). No segundo caso, pode-se incluir as memrias do mdico e ex-reitor Hlio

    Loureno de Oliveira, publicadas em volume de homenagem a ele (Oliveira, 1995), ou ainda o

    dirio do ex-reitor da USP e o professor de administrao da FEA, Jacques Marcovitch,

    publicado com o ttulo Universidade viva, dirio de um reitor (2001). nessa linha de trabalhos

    que se localiza, tambm, a obra intitulada Universidade de So Paulo: smula de sua histria,

    de Josu Camargo Mendes, que foi ex-diretor do Instituto de Geocincias de 1970 a 1974 e

  • 39

    vice-reitor da USP de 1973 a 1977 (Mendes, 1977). Pode alm disso ser interpretado nessa

    direo o livro Universidade de So Paulo: subsdios para uma avaliao, organizado pela

    professora Eunice Lacava Kwaniscka da Faculdade de Economia e Administrao da USP a

    pedido do engenheiro e ento reitor da USP, Hlio Guerra Vieira, no momento em que se

    fortalecia, na universidade, um discurso da avaliao institucional. O livro rene, assim, a

    colaborao de diversos professores da USP, tendo em vista subsidiar os processos de avaliao

    que estavam sendo projetados pelo poder central (Kwaniscka, 1985). No mesmo sentido, pode

    ser includo nesse estilo de trabalho o livro preparado pela assessora da reitoria, Rosana Oba,

    Universidade de So Paulo: seus reitores e seus smbolos um pouco da histria (Oba, 2006).

    Publicado pela Edusp, o livro traz a histria pessoal de todos os reitores da USP entre 1934 e

    2006, seguida da anlise da simbologia da administrao universitria, expressa no cerimonial

    de posse do reitor, nas vestes utilizadas, no capelo e no colar doutoral, no braso darmas da

    universidade, na torre do relgio, no sino da reitoria, entre outros. Prefaciado pelo ento

    governador Geraldo Alckmin, o livro testemunha que a histria oficial da USP escrita no s

    por aqueles que ocupam diretamente cargos de direo, mas por especialistas a quem se delega

    essa funo.

    Com efeito, as duas obras mais significativas dessa tradio foram escritas justamente

    por autores que, sem assumir diretamente as mais altas posies de poder na universidade,

    acabaram designados pela direo universitria e em funo da sua trajetria institucional como

    docentes, para escrever a histria da USP. So elas: o compndio Histria da Universidade de

    So Paulo escrito por Ernesto de Souza Campos (1954) e o volume USP 70 anos, imagens de

    uma histria vivida, organizado por Shozo Motoyama (2006). O primeiro foi redigido em 1954

    a pedido do Conselho Universitrio por ocasio da comemorao do IV Centenrio da cidade

    de So Paulo e das duas dcadas de fundao da USP. O segundo foi concludo em 2006 como

    mais um volume produzido pelo Centro Interunidades de Histria da Cincia, ligado reitoria

  • 40

    da USP e responsvel por escrever a histria de diversas instituies de ensino e pesquisa do

    estado de So Paulo.

    Quando se passa da histria da Universidade como um todo para a histria das suas

    unidades constitutivas, a lista de trabalhos muitas vezes de carter memorialista escritos a

    partir de posies estruturais de poder aumenta ainda mais. Sem pretenso de compor uma

    seleo exaustiva, possvel citar as Memrias para a histria da Academia de So Paulo,

    escritas por Spencer Vampr que, alm de catedrtico, foi diretor da Faculdade de Direito em

    1938 (Vampr, 1977). Ou ainda o livro Recordao das Arcadas, publicado pelo Departamento

    de Cultura e Ao Social da reitoria em 1953 (Lbo, 1953). Outro livro que segue esse mesmo

    padro o Geologia USP: 50 anos, escrito por Celso de Barros Gomes, ex-diretor do Instituto

    de Geocincias e ex-chefe de gabinete da reitoria no mandato de Adolpho Melfi (Gomes, 2007).

    O autor j havia organizado um livro USP leste: a expanso da Universidade de oeste para o

    leste sobre a histria da fundao da Escola de Artes, Cincias e Humanidades, cuja

    implementao o gelogo coordenou no comeo da dcada de 2000 (Gomes, 2005). Outro

    exemplo o livro de Ruy Alberto Corra Altafim, 50 anos da Escola de Engenharia de So

    Carlos, unidade de que foi vice-diretor entre 2001 e 2005, pouco antes de se tornar Pr-reitor

    de Cultura e Extenso da USP (Altafim & Silva, 2004). A Escola Politcnica tambm teve sua

    histria registrada pelo Centro Interunidades de Histria da Cincia ligado reitoria na

    publicao intitulada Escola Politcnica 110 anos, construindo o futuro (Motoyama &

    Nagamini, 2004). De forma menos pretenciosa, a Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas teve projetos de reconstruo de sua histria tematizados no seu veculo oficial por

    professores ligados a postos de direo como, por exemplo, Sedi Hirano (2003) e Francis

    Aubert (2002)10.

    10 interessante notar que, considerando o conjunto das unidades da USP, o volume das obras historiogrficas

    dedicada a cada uma delas bastante desigual. Enquanto a Faculdade de Direito, a Escola Politcnica e a Faculdade

    de Medicina concentram uma enorme quantidade de trabalhos historiogrficos (cf. Adorno, 1988; Bontempi

    Jnior, 2013; Buzzoni, 2007; Castro, 1982; Cytrynowicz & Cytrynowicz, 2011; Danila, 2009; Faria, 2007; Ficher,

  • 41

    Em todos esses casos, o relato histrico formulado a partir de posies de direo na

    estrutura universitria assumindo, assim, um contedo de celebrao e legitimao institucional

    que ressalta o seu carter de histria oficial. Seus formuladores ou assumiram diretamente

    posies de poder na universidade (Americano, 1947; Reale, 1986a, 1994; Mendes, 1976;

    Oliveira, 1995; Marcovitch, 2001, Rodas & Motoyama, 2011) ou, de modo mais mediado,

    escreveram a partir de espaos acadmicos criados pela reitoria com a funo especfica de

    reconstruir a histria oficial da instituio e marcando a profissionalizao dessa historiografia

    oficial (Campos, 1954; Kwaniscka, 1985; Motoyama, 2006; Oba, 2006). Trata-se, portanto, de

    um padro de reconstruo histrica que, pela sua importncia, no se restringe s obras citadas

    acima. Ao contrrio, marca parte importante da historiografia da USP e das suas respectivas

    unidades. Todo esse conjunto de trabalhos de histria oficial, a despeito das suas diferenas

    internas, assume uma mesma perspectiva historiogrfica que, elegendo o discurso dos

    dirigentes universitrios como fonte privilegiada de pesquisa, concebe a histria da USP como

    uma trajetria bem sucedida, operando, por esse mesmo movimento, uma legitimao dos

    grupos e indivduos responsveis pela sua concepo e direo, dos lugares sociais de onde

    provm, bem como dos projetos de universidade de que so portadores11.

    Essa tendncia aparece de modo explcito na obra do ex-reitor Jorge Americano, um

    catedrtico da Faculdade de Direito com extensa carreira poltica que, logo aps deixar a reitoria

    1995 e 2005; Lacaz & Mazzieri, 1995; Marinho, 2001 e 2003; Marinho & Mota, 2012; Martins & Barbuy, 1998;

    Mota, 2005; Motoyama & Nagamini, 2004; Nagamini, 1994; Nakata, 2003, 2007 e 2013; Padilha, 2010; Queiroz

    Filho, 2008; Reale, 1997; Ricci, 2006; Samara & Facciotti, 2004; Santana, 1996; Santos, 1985, Venancio Filho,

    2004), outras unidades de menor prestgio como a Faculdade de Odontologia, a Escola de Enfermagem, a

    Faculdade de Sade Pblica, para ficar apenas nas escolas profissionais da capital, possuem uma tradio

    historiogrfica bem mais discreta (cf. Brener & Cesar, 2010; Russo, 2006). Assim, a historiografia das diferentes

    unidades da USP confirma a afirmao de Pierre Bourdieu de que quanto mais uma escola clebre, mais ela

    celebrada e mais atrai, para si, obras e artigos (1989, p. 329). As obras especficas sobre as unidades profissionais

    tradicionais da USP sero trabalhadas no quarto captulo desta tese.

    11 A mobilizao da reconstruo histrica como instrumento de autolegitimao e de autoconsagrao no

    exclusivo da historiografia sobre a USP escrita a partir de posies de poder institucional da universidade. Nos

    livros de reconstruo da histria de alguns centros acadmicos de prestgio como o Centro Acadmico Oswaldo

    Cruz, da Faculdade de Medicina da USP, e o Centro Acadmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito, so

    igualmente marcadas por um tom enaltecedor que, baseado em discursos dos prprios agentes, resulta em uma

    perspectiva finalista e autolegitimadora (cf. Mota, 2009; Centro Acadmico XI de Agosto, 2003).

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    da USP em 1946 e reconhecend