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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM ARQUITETURA E URBANISMO LUGARES DE MEMÓRIA DIFÍCIL: INICIATIVAS DE PRESERVAÇÃO NA CIDADE DE SÃO PAULO Orientanda: Mariana Busson Machado e Silva Orientadora: Prof.ª. Drª Andréa de Oliveira Tourinho Área de concentração: Arquitetura e Cidade Linha de Pesquisa: Gestão do Espaço Urbano São Paulo 2019

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LUGARES DE MEMÓRIA DIFÍCIL: INICIATIVAS DE PRESERVAÇÃO NA

CIDADE DE SÃO PAULO

Orientanda: Mariana Busson Machado e Silva

Orientadora: Prof.ª. Drª Andréa de Oliveira Tourinho

Área de concentração: Arquitetura e Cidade

Linha de Pesquisa: Gestão do Espaço Urbano

São Paulo

2019

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LUGARES DE MEMÓRIA DIFÍCIL: INICIATIVAS DE PRESERVAÇÃO NA

CIDADE DE SÃO PAULO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu, como requisito para a obtenção do título de mestre.

Linha de Pesquisa: Gestão do Espaço Urbano

Orientadora: Prof.ª Dra. Andréa de Oliveira Tourinho

São Paulo

2019

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DEDICATÓRIA

Pra não dizer que não falei das flores...

(Geraldo Vandré, 1968)

Caminhando e cantando e seguindo a canção Somos todos iguais braços dados ou não

Nas escolas, nas ruas, campos, construções Caminhando e cantando e seguindo a canção

Vem, vamos embora, que esperar não é saber Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

Vem, vamos embora, que esperar não é saber Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

Pelos campos há fome em grandes plantações

Pelas ruas marchando indecisos cordões Ainda fazem da flor seu mais forte refrão

E acreditam nas flores vencendo o canhão

Vem, vamos embora, que esperar não é saber Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

Vem, vamos embora, que esperar não é saber Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

Há soldados armados, amados ou não

Quase todos perdidos de armas na mão Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição

De morrer pela pátria e viver sem razão

Para Delson, Wanda (in memorian), Geisha, Anselmo, Guilherme e Luiza

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, inicialmente, à Professora Dra. Andréa de Oliveira Tourinho, pela orientação, pelas sugestões acadêmicas, disponibilidade e, sobretudo por acreditar no meu trabalho e estar a todo momento me incentivando a dar o meu melhor.

Às Professoras Dra. Ana Paula Koury e Dra. Manoela Rossinetti Rufinoni pelas sugestões e revisões na etapa de qualificação, conselhos acadêmicos, e entusiasmo depositado no meu trabalho.

Aos Professores Dr. Fernando Guilhermo Vázquez Ramos e Dra. Paula de Vicenzo Fidelis Belfort Mattos pelas aulas que orientaram a definição do tema da minha dissertação e pelas sugestões acadêmicas.

À equipe da Secretaria de Pós-graduação da Universidade São Judas Tadeu pelo atendimento sempre muito acolhedor e eficiente.

À minha gerente, Arquiteta Maria Cristina Gomes Jotten, que me ajudou e incentivou em toda jornada acadêmica, além de acreditar no meu potencial e me conceder alguns dias extras para dedicação da dissertação.

Aos meus colegas do trabalho, inclusive a Engenheira Carmen Barros, que foi compreensiva e flexível nos dias que tive que me dedicar ao mestrado.

À minha mãe, Geisha Busson, minha maior inspiração de força e coragem e que em todos os momentos esteve ao meu lado me incentivando e apoiando, inclusive nos dias de ansiedade e preocupação.

À minha irmã, Luiza Busson, minha companheira e amiga, que passou noites ouvindo meus desabafos e sempre me ajudando a ser melhor do que sou.

Ao meu avô, Delson Machado, meu exemplo de ser humano e de amor, por ter feito muitas massagens nas minhas mãos quando eu estava cansada de escrever.

À minha avó, Wanda Busson, que não está mais entre nós, mas que com certeza gostaria de presenciar essa vitória ao meu lado.

Ao meu pai, Anselmo Martins, pelo amor e pela torcida.

Ao meu namorado, Guilherme Amorim, que sofreu junto comigo nos finais de semana que eu não podia sair de casa para fazer o trabalho, e por estar sempre me incentivando a ter força e dar o meu melhor.

À minha sogra, Glaucia Amorim, que me ajudou dando opiniões sobre o texto, me incentivando e acreditando no meu potencial.

À minha amiga, Tamires Almeida, que ouvia minhas reclamações e me encorajava a continuar firme no meu propósito.

À minha amiga de mestrado, Bruna Evangelista, que em toda jornada acadêmica, compartilhou comigo suas inseguranças e alegrias.

Por fim, agradeço à Deus, pela oportunidade de obtenção de conhecimento.

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RESUMO

BUSSON, Mariana. Lugares de memória difícil: iniciativas de preservação na cidade de São Paulo. 2019. Dissertação (Mestrado) - Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2019.

As memórias difíceis, relacionadas a eventos traumáticos que geram sentimentos negativos em um determinado grupo social, têm sido, crescentemente, objeto de discussões e estudos em diversas áreas do conhecimento. No Brasil, as memórias difíceis começam a ganhar visibilidade na década de 1980, período de redemocratização. Mais recentemente, há uma tendência de ampliação dos estudos sobre essa temática no campo da preservação do patrimônio cultural, porém existem poucos trabalhos que exploram o assunto. Nesse contexto, o presente trabalho pretende analisar as ações de preservação de lugares de memória difícil, relacionados à repressão do Estado no período da ditadura civil-militar entre 1964-1985 em São Paulo, partindo do pressuposto de que a preservação desses lugares é fundamental para a reflexão sobre a construção do nosso presente e de nosso futuro. A preservação é aqui entendida como uma série de ações que envolvem a esfera pública e a privada, e englobam a identificação, o reconhecimento do valor cultural, a proteção física e a valorização de lugares de memória. Inicialmente, o trabalho parte dos conceitos referentes à memória e aos lugares de memória e sua relação com a temática mais recente das memórias difíceis. A partir desses conceitos, o trabalho analisa o contexto em que as memórias difíceis entram na pauta da discussão e da preservação no Brasil, abordando-se as mudanças no campo do patrimônio cultural nas últimas décadas, bem como os processos sociais mais amplos relacionados à memória do período da ditadura. Nesse contexto, são entendidos, então, como as políticas públicas de preservação do patrimônio em São Paulo têm lidado com os lugares de memória difícil, por meio da análise do tombamento de três lugares emblemáticos, na cidade, relacionados ao período da ditadura: o Portal do Pesídio Tiradentes, o antigo DOPS e o conjunto da antiga OBAN e DOI-CODI. Após essa abordagem sobre os processos de identificação e reconhecimento desses lugares pelos órgãos de preservação, o trabalho analisa as iniciativas de ações de conservação e valorização de lugares de memória difícil, sejam por parte do Estado ou da sociedade civil. Ações que englobam as intervenções arquitetônica e artística, bem como a instauração de monumento celebrativo e a manifestação social como ato de rememoração. Os lugares de memória difícil, por sua própria essência de estarem vinculados a afetos negativos, evocam uma questão crucial que se refere a como lidar com a sua preservação, ou seja, como pensar ações de conservação e valorização de lugares cujas memórias remetem à dor ou ao trauma. Por último, o trabalho apresenta, de forma breve, outros lugares de memórias difíceis em São Paulo, além daquelas relacionadas ao período da ditadura, para mostrar a complexidade da temática.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural. Preservação. Políticas Públicas. Memória.

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ABSTRACT

BUSSON, Mariana. Sites of hurtful memories: conservation initiatives in the city of São Paulo. 2019. Dissertation (Master´s Degree) - São Judas Tadeu University, São Paulo, 2019.

The difficult memories, which are related to traumatic events that generate negative feelings in a particular social group, have been increasingly object of discussions and studies in several areas of knowledge. In Brazil, difficult memories begin to gain visibility in the 1980s, a period of re-democratization. More recently, there is a tendency to expand studies on this theme in the field of cultural heritage preservation, but there are few papers that explore the subject. In this context, the present work intends to analyze the actions of preservation of places of difficult memory, related to the repression of the State in the period of the civil-military dictatorship between 1964-1985 in São Paulo, assuming that the preservation of these places is fundamental for the reflection on the construction of our present and our future. Preservation is understood here as a series of actions involving the public and private spheres, encompassing the identification, recognition of cultural value, physical protection and the valorization of places of memory. Initially, the work starts from concepts related to memory and places of memory and their relation to the most recent theme related to difficult memories. From these concepts, the paper analyzes the context in which difficult memories enter the agenda of discussion and preservation in Brazil, addressing the changes in the field of cultural heritage in the last decades, as well as the wider social processes related to memory of the dictatorship period. In this context, the paper analyzes how the public policies of preservation of the patrimony in São Paulo have dealt with the places of difficult memory, through the analysis of the heritage-listed buildings of three emblematic places in the city, related to the period of the dictatorship: Portal of Pesídio Tiradentes, the former DOPS and the old OBAN and DOI-CODI. After this approach on the processes of identification and recognition of these places by the preservation agencies, the work analyzes the initiatives of actions of conservation and valorization of places of difficult memory, either by the State or by civil society. Actions that include the architectural and artistic interventions, as well as the establishment of a celebratory monument and the social manifestation as an act of remembrance. The places of difficult memory, by their very essence of being linked to negative affects, pose a crucial question that concerns how to deal with their preservation, or in other words, how to think about actions of conservation and valorization of places with memories related to pain or to trauma. Finally, the paper briefly presents other places of difficult memories in São Paulo, in addition to those related to the period of the dictatorship, to show the complexity of the theme.

Keywords: Cultural Heritage. Conservation. Public Policy. Memory.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 14

CAPÍTULO 1.

Da memória aos lugares de memórias difíceis

21

1.1. Sobre a memória: mecanismos e lembranças 21

1.2. Memória Individual e Memória Coletiva 23

1.3. Lugares de memória: uma temática recente 26

1.4. Lugares de memória e memórias difíceis 29

CAPÍTULO 2.

As Memórias Difíceis entram na Pauta de Discussão e da Preservação

33

2.1. Da Memória Nacional ao Direito à Memória 33

2.2. Patrimônio cultural e valores: um campo em ebulição 36

2.3. As memórias difíceis chegam ao Brasil: o direito à verdade 43

2.3.1. A Lei da Anistia e a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça 46

2.3.2. Brasil: Nunca Mais 48

2.3.3. A Vala de Perus 52

2.3.4. Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos 54

2.3.5. “O Direito à Memória e à Verdade” 55

2.4. Memórias Difíceis nas Políticas de Preservação do Patrimônio em São

Paulo

56

2.4.1. O Presídio Tiradentes 57

2.4.2. O DOPS 62

2.4.3. O Conjunto da OBAN e DOI-CODI 66

CAPÍTULO 3.

Das Ações: presente, passado e futuro

70

3.1. A Intervenção Arquitetônica 72

3.1.1. Memorial da Resistência: história, usos e adaptações 72

3.1.1.1. Armazéns da Companhia Estrada de Ferro Sorocabana 72

3.1.1.2. DEOPS/SP 74

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9

3.1.1.3. A Escola de Música 76

3.1.1.4. O Museu do Imaginário Povo Brasileiro e o Memorial da

Liberdade

82

3.1.1.5. O Memorial da Resistência 86

3.1.2. DOI-CODI: manutenção física e dilemas de uso 95

3.2. Intervenções Artísticas 100

3.2.1. Do Projeto Praça Vermelha ao Operação Tutóia 100

3.3. Monumentos celebrativos 109

3.3.1. Memorial Carlos Marighella 109

3.3.2. Memorial da Vala de Perus - Cemitério Dom Bosco 111

3.3.3. Memorial dos Desaparecidos da Vila Formosa 112

3.4. Manifestações sociais 115

3.4.1. A luta do operário Santo Dias 115

3.4.2. A memória de Santo Dias 118

CAPÍTULO 4.

Para não dizer que não falei de outras dores...

122

4.1. O Carandiru 122

4.2. A casa da dona Yayá 128

4.3. As colônias de hanseníase 131

CONSIDERAÇÕES FINAIS 135

REFERÊNCIAS 138

ANEXOS 01 142

ANEXOS 02 143

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LISTA DE ABREVIATURAS

AI-5 - Ato Institucional Número 5

ALN - Aliança Libertadora Nacional

APAC - Associação Paulista Central

CAU - Conselho de Arquitetura e Urbanismo

CBA - Comitê Brasileiro pela Anistia

CEMDP - Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos

CNRS - Centre National de Recherches Scientifiques

CODI - Centro de Operações de Defesa Interna

CONDEPHAAT - Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico

CONPRESP - Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo

CPC - Centro de Preservação Cultural

DEPAD - Departamento de Polícia Administrativa

DOI - Destacamento de Operações

DOPS - Departamento de Ordem Política e Social

DPH - Departamento do Patrimônio Histórico

EUA - Estados Unidos da América

FAU - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

IAB - Instituto de Arquitetos Brasileiros

ICJT - Centro Internacional de Justiça de Transição

IML - Instituto Médico Legal

IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

OBAN - Operação Bandeirante

ONG - Organização Não Governamental

ONU - Organização das Nações Unidas

OSM/SP - Operação Sindical Metalúrgica de São Paulo

PCB - Partido Comunista Brasileiro

PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira

SMC - Secretaria Municipal de Cultura

SPHAN - Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro

UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas

URSS - União Soviética

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11

LISTA DE FIGURAS

Figura 01. Anistia pelo cartunista e chargista Ziraldo.................................................... 47

Figura 02. Passeata de pedido de anistia, c.1979........................................................ 47

Figura 03. A faixa na escadaria da Câmara de Vereadores no Rio de Janeiro............. 48

Figura 04. Capa do livro Brasil: Nunca Mais................................................................ 49

Figura 05. Imagem do método de tortura “pau-de-arara”, s/d....................................... 51

Figura 06. Imagens do método de tortura “cadeira do dragão”..................................... 51

Figura 07. Retirada das 1.049 ossadas da Vala Clandetina......................................... 53

Figura 08. Descoberta Vala Clandestina no Cemitério Dom Bosco.............................. 53

Figura 09. Antiga “Casa de Correição” de São Paulo................................................... 57

Figura 10. “Casa de Correição” de São Paulo.............................................................. 58

Figura 11. Antigo Presídio Tiradentes antes de sua demolição.................................... 59

Figura 12. Antigo Presídio Tiradentes depois de sua demolição, olhando em direção

ao Quartel da Luz..........................................................................................................

61

Figura 13. Memorial da Resistência e antigo DOPS, 2018........................................... 63

Figura 14. Entrada Memorial da Resistência, 2018...................................................... 63

Figura 15. O DOI-CODI e a ausência de atributos arquitetônicos, 2018...................... 67

Figura 16. Figura 16 - Mapa de tombamento da Resolução 10/CONPRESP/2017..... 68

Figura 17. Foto da Companhia Estrada de Ferro Sorocabana,1924............................ 73

Figura 18. Planta Térreo da Estrada de Ferro Sorocabana, c.1914............................. 73

Figura 19. Fachada do edifício, 2019............................................................................ 74

Figura 20. Planta Térreo do DEOPS, c. 1938-1983...................................................... 75

Figura 21. Divisão dos Ambientes DOPS (1950-1970)................................................. 76

Figura 22. Nuna Velasco em “Lembrar é Resistir”, c.1997........................................... 78

Figura 23. Menção à peça de teatro “Lembrar é Resistir” na exposição do atual

Memorial da Resistência, 2019.....................................................................................

78

Figura 24. Croqui do Térreo da Escola de Música, s/d................................................. 79

Figura 25. Croqui do Segundo Pavimento da Escola de Música, s/d........................... 79

Figura 26. Croqui do Terceiro Pavimento da Escola de Música, s/d............................. 79

Figura 27. Croqui do Quarto Pavimento da Escola de Música, s/d............................... 80

Figura 28. Foto dos vestígios que ficavam nas paredes das celas antes da reforma,

c. 1934-1983.................................................................................................................

81

Figura 29. Croqui do Térreo, Museu do Povo Brasileiro e Memorial da Liberdade, c. 82

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12

2003...............................................................................................................................

Figura 30. Croqui do Primeiro Pavimento do Museu do Povo Brasileiro e Memorial

da Liberdade, c. 2003....................................................................................................

83

Figura 31. Croqui do Terceiro Pavimento do Museu do Povo Brasileiro e Memorial da

Liberdade, c. 2003....................................................................................................

83

Figura 32. Corredor de banho de sol antes e depois da reforma, s/d........................... 85

Figura 33. Fotos antes da reforma da porta com grades de segurança, corredor para

banhos de sol e cela em condição insalubre, respectivamente, s/d.............................

85

Figura 34. Fotos depois da reforma da porta com grades de segurança, corredor

para banhos de sol e cela revitalizada, respectivamente, s/d.......................................

85

Figura 35. Primeiro pavimento, Biblioteca Walter Wey, 2019........................................ 87

Figura 36. Quarto pavimento, Exposições Temporárias - Pinacoteca de São Paulo,

2019...............................................................................................................................

88

Figura 37. Quinto pavimento, Auditório Vitae, 2019...................................................... 88

Figura 38. “Painel da Primeira Sala de Exposição do “Módulo A”, 2019...................... 89

Figura 39. Painel interativo que fala sobre a trajetória da instituição do DEOPS, ao

fundo é possível ver a foto do gabinete do delegado, 2019..........................................

89

Figura 40. “Módulo B”, Foto Panorâmica Linha do Tempo, 2019.................................. 90

Figura 41. Maquete das celas, 2019............................................................................. 90

Figura 42. Nota-se que o ar condicionado e as luminárias acabam

descaracterizando a condição inicial da cela - Cela 1, 2019........................................

91

Figura 43. Tela posicionada no centro do ambiente, homenageando as vítimas do

período ditatorial - Cela 2, 2019....................................................................................

91

Figura 44. Cela 4 com os nomes dos ex-presos políticos escritos nas paredes como

tentativa de reconstituição do que foi apagado pela reforma, 2019..............................

92

Figura 45. Banheiros da Cela 4, 2019........................................................................... 92

Figura 46. Rosa representando a solidariedade na atitude do visitante de escutar os

relatos dos ex-presos políticos - Cela 5, 2019..............................................................

93

Figura 47. Croqui do Espaço Expositivo, Memorial da Resistência, s/d....................... 93

Figura 48. Croqui do Térreo, Memorial da Resistência, s/d.......................................... 94

Figura 49. Livro A Casa da Vovó, s/d............................................................................ 97

Figura 50. Croqui do 36° Distrito da Vila Mariana, s/d.................................................. 99

Figura 51. Croqui do anexo do DOI-CODI, s/d............................................................. 99

Figura 52. Luzes Vermelhas no Ateliê Amarelo de Fernando Piola, s/d....................... 101

Figura 53. Projeto Praça Vermelha DEOPS 2006........................................................ 102

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13

Figura 54. Projeto Praça Vermelha Moscou - Rússia, s/d............................................. 103

Figura 55. Exposição Praça Vermelha/ Operação Tutóia na Caixa Cultural,

2008...............................................................................................................................

104

Figura 56. Quadros expostos no Caixa Cultural, 2008................................................. 104

Figura 57. Projeto Operação Tutóia, 2008.................................................................... 105

Figura 58. Projeto Operação Tutóia, 2008.................................................................... 106

Figura 59. Paisagismo DOI-CODI, 2008....................................................................... 107

Figura 60. Folhagens vermelhas predominavam junto ao edifício, c. 2008.................. 108

Figura 61. Folhagens mescladas em verde e vermelho no DOI-CODI, dez................. 108

Figura 62. Marighella morto, foto destacada em sites atuais, s/d................................. 109

Figura 63. Homenagens feitas a Marighella – Memorial, s/d........................................ 110

Figura 64. Memorial da Vala de Perus, s/d................................................................... 112

Figura 65. Memorial Vila Formosa, s/d......................................................................... 114

Figura 66. Placa de concreto em homenagem às vítimas enterradas no Cemitério

Vila Formosa, s/d...........................................................................................................

114

Figura 67. Enterro de Santo Dias, c. 1979.................................................................... 117

Figura 68. Viúva de Santo Dias, c.1979........................................................................ 118

Figura 69. Manifestações contra a morte de Santo Dias, 2018.................................... 118

Figura 70. Ato em frente à fábrica Sylvania, 1980........................................................ 119

Figura 71. Aniversário de 10 anos da morte de Santo Dias em frente à fábrica

Sylvania, 1989...............................................................................................................

119

Figura 72. Placa instalada em frente à antiga Fábrica Sylvania em homenagem a

Santo Dias, s/d..............................................................................................................

120

Figura 73. Corredor Carandiru alagado de sangue, após massacre, s/d..................... 123

Figura 74. Carandiru antes da rebelião, s/d.................................................................. 124

Figura 75. Carandiru antiga, s/d.................................................................................... 124

Figura 76. Pavilhões 6,8 e 9 implodidos em 2002........................................................ 125

Figura 77. Projeto do Parque da Juventude, Biblioteca e duas escolas técnicas

(ETEC’s).........................................................................................................................

126

Figura 78. A Casa da Dona Yayá, s/d............................................................................ 129

Figura 79. A escadaria da Casa da Dona Yayá, s/d....................................................... 130

Figura 80. Cartazes da Campanha do Serviço Nacional de Educação Sanitária, s/d... 132

Figura 81. O Asilo Colônia Pirapitingui, s/d.................................................................... 133

Figura 82. Perímetro de Tombamento Colônia Pirapitingui, 2015................................. 134

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14

INTRODUÇÃO

A cidade é espaço de relações interpessoais e lugar, por excelência, de produção

e consumo, fluxos intensos e marcada por grandes desigualdades sociais. E é, também,

cenário de conflitos sociopolíticos e dinâmicas muito distintas. Todos os dias passamos

por lugares que manifestam e traduzem diferentes narrativas e histórias que revelam

dilemas estruturais da sociedade, como as questões de gênero, raça, tolerância, minorias

étnicas, violações de direitos, abusos do poder do Estado, desigualdades sociais, entre

outros (Cymbalista, 2017). Esses lugares são produtos, e produtores, de conflitos,

interesses, relações de poder, bem como de tentativas de preservação, apagamentos ou

apaziguamentos da memória a eles relacionadas. Essa memória que se refere a relações

entre eventos conflitivos e afetos negativos, têm sido, cada vez mais, objeto de interesse

de diversos campos do conhecimento, como a arquitetura, a história, a psicologia, a

antropologia, entre outros, que têm buscado entender seus impactos sobre os objetos de

estudo de cada um desses saberes.

Esse tipo de memória tem recebido algumas adjetivações, tais como traumática,

dolorosa ou difícil, e assim a define Ulpiano Bezerra de Meneses (2018, p. 4):

A memória traumática é a face de maior força em nossos tempos, herança de conflitos e violências que assolaram o século passado e não desapareceram neste, sem contar os desastres naturais. O trauma cultural é aqui tomado, um pouco na linha de Neil Alexander, como a memória aceita por uma comunidade e evocando evento ou situação carregada de afeto negativo, tida como indelével ou ameaçando seus valores e trazendo pertubações pela dificuldade de assimilação e horizonte final.

Do ponto de vista do campo da arquitetura, interessa-nos compreender a relação

entre essa memória difícil e os lugares de memória que lhe dão suporte, mais

especificamente sob o enfoque de sua preservação. A escolha pela utilização do termo

“memória difícil”, neste trabalho, deve-se ao fato desta expressão ter uma abrangência

mais ampla, englobando as noções de dor e trauma.

Sob essa ótica, vale destacar o conceito de “lugares de memória”, que,

desenvolvido na década de 1980, passou a ser explorado nas últimas décadas. No Brasil,

embora a expressão seja muito utilizada, existem poucos trabalhos que se debruçam de

maneira aprofundada sobre o seu significado, principalmente no que se refere a

memórias difíceis, cuja temática vem cobrando maior interesse nos últimos anos.

Encontramos referências ao tema em discussões e breves textos de apresentação de

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seminários, encontros, palestras, entre outros, ou, ainda, citada de forma simplificada em

artigos.

Na obra Sites of Hurtful Memory, cuja tradução é a de “lugares de memória

dolorosa”, sua autora, a historiadora alemã Gabi Dolff-Bonekamper, defende que esses

devem ser preservados pela sua importância na formação da sociedade: devido ao seu

papel de denúncia de eventos dolorosos que não devem ser repetidos, estando, ainda,

enraizados em histórias que geram diferentes interpretações individuais e que abrem

discussões sobre essas questões.

No cenário internacional, a Alemanha é considerada precursora no que diz

respeito ao enfrentamento de lugares de memória traumática, pois vivenciou processos

sociais extremamente complexos que se traduziram em episódios violentos na Primeira e

na Segunda Guerras Mundiais, no nazismo, no Holocausto e na divisão do país. Nesse

sentido, na segunda metade do século XX, o país foi obrigado a enfrentar o trauma para

reconstruir-se como nação, problematizando as questões do passado e tornando-se

referência para estudos que lidam com episódios dolorosos.

No Brasil, é no período de restauração da democracia e do estado de direito, a

partir da segunda metade da década de 1980, que as discussões sobre memórias difíceis

em relação ao passado de repressão e violações aos direitos humanos (1964-1985)

ganham visibilidade e destaque.

Pode-se dizer que o fim da ditadura no Brasil assistiu a dois momentos distintos

em relação a esse passado. Em um primeiro momento, no processo de

redemocratização, ocorreram tentativas de apagamento das memórias da brutalidade e

das injustiças do Estado, através da extinção e ocultamento de documentos e provas dos

instrumentos da repressão institucionalizada no Brasil. Já em um segundo momento, nos

últimos anos, e, após mudanças na mentalidade da sociedade civil, têm surgido esforços

para a análise do passado da ditadura com olhares de denúncia.

O trabalho parte desse recorte histórico com o objetivo de entender as ações de

preservação de lugares de memória difícil, relacionados à repressão do Estado no

período da ditadura civil-militar entre 1964-1985 em São Paulo, partindo do pressuposto

de que a preservação desses lugares é fundamental para a reflexão sobre a construção

do nosso presente e de nosso futuro.

A preservação é aqui entendida como uma série de ações que envolvem a esfera

pública e a privada, e englobam desde: a identificação através de inventários; o

reconhecimento do valor cultural por intermédio do tombamento dos bens materiais ou do

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registro de bens imateriais; a proteção física mediante manutenção, conservação,

restauro, projetos e obras de recuperação; e a valorização através de cursos,

publicações, seminários, encontros, ação museológica e educativa, entre outras

(TOURINHO, 2019).

O intuito é buscar a compreensão das distintas ações de preservação que vão

desde a alteração da materialidade, através da intervenção em um espaço construído,

até o aspecto simbólico de uma iniciativa de rememoração. É importante destacar que

não há uma resposta final para as discussões que serão abordadas, e que a intenção da

pesquisa é a problematização do tema da memória da dor, sob o enfoque de uma

reflexão acerca das diferentes respostas que ela provoca, principalmente no que se

refere à decisão de rememorar ou esquecer, tanto do ponto de vista do seu

reconhecimento cultural pelos órgãos de preservação cultural, quanto pela intervenção

física nos lugares de memória ou sua rememoração. Ressalte-se que, ao lado do direito à

memória, tão duramente defendido a partir dos anos 1980, mais recentemente, tem sido

reivindicado também o direito de esquecer, reconhecido inclusive no âmbito da justiça

como fundamento da dignidade pessoal.

Seguindo essa lógica, o trabalho se fundamenta nos autores mais relevantes, no

cenário contemporâneo, no que diz respeito à reflexão sobre a memória e os lugares de

memória, sendo eles, no cenário internacional, Halbwachs, Michael Pollak e Pierre Nora,

bem como Ecléa Bosi, e Ulpiano Bezerra de Meneses, no contexto nacional. Essa

reflexão apresenta-se no Capítulo 1 deste trabalho, que consiste no embasamento

teórico da pesquisa.

Dessa forma, nesse primeiro Capítulo, a abordagem teórica pretende mostrar a

trajetória dos estudos que se debruçam sobre a memória individual e coletiva,

interdependentes e formadoras das narrativas e identidades sociais, até os trabalhos que

definem os lugares de memória como substitutos da memória tradicional. É evidente que

uma pessoa vive suas próprias experiências, porém ela sempre será influenciada pelo

ambiente que vive por meio das relações interpessoais e dos fatos sociais. Reforça-se,

também, que a construção da memória social é um processo complexo, e que também se

constitui por aquilo que se quer esquecer. O capítulo analisa o conceito de lugares de

memória e sua associação com a memória da dor. Por último, aborda-se o entendimento

da memória traumática por Ulpiano Bezerra de Meneses que destaca sua importância na

denúncia das injustiças do passado e como reflexão para um futuro mais democrático.

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O Capítulo 2 procura analisar as políticas de preservação do patrimônio em São

Paulo em relação às memórias difíceis, enfatizando o período da década de 1980 em

adiante, em que se observa uma mudança nas atribuições de valores, que darão lugar a

tombamentos de lugares de memória difícil. Nessa direção, traçou-se um panorama

sobre a atuação dos órgãos de preservação nacional, estadual e municipal em relação à

expansão do conceito de patrimônio que antes se relacionava principalmente ao valor

excepcional e material dos bens culturais e que, com o tempo, passou a valorizar a

esfera cultural mais abrangente e valores intangíveis. Essa mudança ocorreu devido a

uma série de acontecimentos no cenário mundial e nacional, na segunda metade do

século XX, como: IIª Guerra Mundial, o Holocausto, a queda do comunismo, as guerras

do oriente médio, as ditaduras na América Latina, que influenciaram as transformações

de pensamento e a atuação dos órgãos de preservação do patrimônio.

Como já mencionado anteriormente, é a partir do final da ditadura que se inicia um

processo de reflexão sobre a memória difícil no Brasil e é durante o processo de

redemocratização que ocorre uma série de ações que fazem com que a sociedade olhe

para o passado de maneira diferente, assimilando as crueldades que ocorreram no

período, tais como a publicação do livro Brasil: Nunca Mais (1985), a descoberta e

investigação da Vala de Perus (1990), a criação da Comissão Especial de Mortos e

Desaparecidos (1995) e a criação da Comissão da Verdade (2012).

A memória do regime militar passava, então, a ser cada vez mais abordada, e os

crimes cometidos foram sendo revelados de forma escancarada, destacando a

importância do direito à verdade naquele momento. Diante deste cenário, a presente

pesquisa aborda os estudos de caso de alguns tombamentos relacionados a lugares de

memória da ditadura, analisando os valores atribuídos pelos órgãos públicos de

preservação do patrimônio a cada um desses lugares. Ressalte-se que o tombamento é o

reconhecimento de valores culturais, por isso a relevância de seu estudo. O intuito é, a

partir de cada exemplo, revelar os desdobramentos que envolvem a preservação.

Os primeiros casos de tombamento relacionados à memória da dor se deram, em

São Paulo, a partir da década de 1980, período em que o conceito de patrimônio se

ampliava. Os três casos estudados no Capítulo 2, o Portal do antigo Presídio Tiradentes,

o antigo DEOPS/SP (Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo) e o antigo

DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações - Centro de Operações de

Defesa Interna), embora possuam atributos arquitetônicos diferentes, relacionam-se à

repressão e tortura durante períodos ditatoriais, pois abrigavam os perseguidos políticos

e foram cenário de crimes de tortura. A análise da preservação desses lugares de

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memória traumática é importante, pois os tombamentos destacam valores relacionados à

memória do terrorismo institucionalizado, da repressão e resistência à ditadura, bem

como pelo valor simbólico de cada lugar em relação à violência de um passado não muito

distante.

Os três casos apresentam dilemas em relação à construção da memória da

violência de regimes opressores: o Portal do Presídio Tiradentes, que simboliza a

violência institucionalizada, porém é invisível pela sociedade; o antigo DEOPS/SP, que

abriga o Memorial da Resistência, reconhecido como um dos principais lugares de

memória da ditadura, e o apagamento da memória de suas celas; e, por último, o DOI-

CODI, que atualmente abriga o 36º Distrito Policial, e que gera polêmicas entre, por um

lado, ex-presos políticos e familiares e, por outro, a vizinhança do bairro do Paraíso sobre

seu futuro uso.

No Capítulo 3, e após entendimento do processo de tombamento dos três

edifícios emblemáticos da repressão ditatorial, o intuito é compreender as respostas no

que diz respeito a conservação e valorização dos bens tombados, mas também de outras

iniciativas de preservação que não necessariamente estão ligadas ao poder público.

Neste sentido, o trabalho parte para análise das ações em lugares de memória difícil,

destacando os desafios no que diz respeito à intervenção e manutenção física de um

lugar de memória difícil ou iniciativas simbólicas de rememoração, problematizando

questões relativas às tentativas de apagamento por parte das autoridades, mas também

de lembrança como legitimação das vítimas da ditadura.

O capítulo se inicia abordando os desafios das intervenções arquitetônicas,

focando, primeiramente, na trajetória do edifício do atual Memorial da Resistência, que

inicialmente teve como uso a Estrada Sorocabana de Ferro, e posteriormente o DEOPS,

Memorial do Povo Brasileiro e Memorial da Liberdade até sua condição atual. A pesquisa

enfatiza os desdobramentos para reforma do edifício e os dilemas e polêmicas da

intervenção que foi considerada irreversível do ponto de vista da conservação da história

do lugar, abordando também as estratégias de intervenção que visavam garantir a

preservação da memória da repressão que permeia o local.

Após a análise do Memorial da Resistência, o trabalho focou no entendimento dos

dilemas em relação a manutenção do antigo DOI-CODI e atual 36º Distrito Policial da Vila

Mariana, que englobam iniciativas dos ex-presos políticos que reivindicam que o lugar,

caracterizado como uma das instituições mais perversas da ditadura, seja destinado à um

memorial de ação preventiva, educativa e de reflexão. Por outro lado, os policiais e a

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vizinhança da Vila Mariana, que são a favor da permanência da instituição, visando a

segurança do lugar. O caso do DOI-CODI ainda não foi superado, no que diz respeito a

preservação da memória de um lugar de ação opressiva. Essa discussão, ainda muito

atual, demonstra as faces da memória que é subjetiva e que pode ser esquecida ou

lembrada dependendo do interesse de cada indivíduo e que também é mecanismo de

interesse político e social.

Posteriormente, será feita a análise da intervenção artística Praça Vermelha/

Operação Tutóia, idealizada por Fernando Piola. O projeto surgiu em um contexto da

iniciativa de revitalização da região da Luz, onde a proposta inicial seria uma praça no

Largo General Osório, constituída de folhagens vermelhas como referência à violência e

marginalização do centro e, também, devido à localização próxima ao antigo DOPS,

marcado pela violência institucionalizada. O projeto não foi aprovado pelos órgãos

públicos, destacando-se ainda uma resistência das autoridades em relação à

preservação do passado do regime militar. Como estratégia, o artista sugeriu a mesma

concepção de paisagismo ao antigo conjunto da OBAN e DOI-CODI, porém apresentou-

se como cidadão comum disposto voluntariamente a plantar as folhagens no lugar. A

intervenção Praça Vermelha/Operação Tutóia, aparentemente simples, ainda gera

discussões acerca da dualidade entre opiniões sobre a retomada desse passado.

Após entendimento das intervenções tanto arquitetônicas quanto artísticas, serão

apresentados alguns casos de memoriais em homenagem às vítimas da ditadura, como o

Memorial Marighella; o Memorial da Vala de Perus e o Memorial dos Desaparecidos da

Vila Formosa. O primeiro refere-se ao memorial de pedra destinado à figura de um dos

principais opositores políticos ligado à Aliança Libertadora Nacional (ALN) que foi morto

pelos policiais durante a ditadura. Os outros dois, são lugares onde foram encontradas

diversas ossadas clandestinas de ex - presos políticos nos cemitérios Dom Bosco e Vila

Formosa. A intenção do trabalho é mostrar como esses memoriais possuem caráter de

denúncia dos crimes cometidos durante o regime militar, mas também a relevância como

lugares de consciência e reflexão para que esses acontecimentos não sejam repetidos no

futuro.

Sob essa ótica, serão abordadas as manifestações referentes à morte do operário

Santo Dias, figura importante do movimento sindicalista que, em 1979, durante o regime

militar, foi assassinado pelo fato de estar sempre reivindicando por melhores condições

de trabalho e também por ter influência na Igreja Católica, onde participava assiduamente

das missas e atividades políticas. Até hoje, quarenta anos após o assassinato do

operário, ainda é realizada uma manifestação no local da antiga fábrica Sylvania. Mesmo

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depois da mudança da paisagem do bairro, que atualmente é residencial, e já sem a

referência material da antiga fábrica Sylvania, o lugar assume caráter simbólico, onde

todos os anos alguns grupos encontram-se no local para homenagear um dos ícones da

luta sindicalista, tornando-se, assim, um lugar de memória e reflexão.

No Capítulo 4, o trabalho procura entender, também, lugares de memória difícil

relacionados a outros eventos traumáticos: a dor relacionada à restrição da liberdade,

como a que ocorre no sistema carcerário, ou mesmo a situações de saúde como a

loucura ou a hanseníase. Essas distintas formas em que a memória da dor se manifesta

são analisadas, neste trabalho, a partir de três estudos de casos de tombamento: o

Carandiru e a Casa da Dona Yayá, na cidade de São Paulo, e as Colônias de

Hanseníase no interior do Estado. Sob essa ótica, serão feitas as análises dos processos

de reconhecimento desses lugares como patrimônio cultural, bem como de outras ações

de preservação. Assim, serão analisadas a proposta arquitetônica adotada no Carandiru,

com a implantação do Parque da Juventude e a construção da Biblioteca de São Paulo,

bem como a implosão de alguns pavilhões. Serão estudadas as ações na Casa da Dona

Yayá e sua relação com as intervenções arquitetônicas para adaptação da casa, no

passado, à loucura da moradora; e a arquitetura de exclusão no caso das colônias de

hanseníase no interior de São Paulo.

É fato que existe uma diversidade de lugares de memória traumática e o trabalho

tem como foco abordar a importância desses locais, além das respostas de preservação

pelos órgãos públicos ou por agentes de determinados grupos sociais. A intenção é o

entendimento da multiplicidade de ações que englobam a intervenção no espaço

construído ou mesmo o simbolismo de um ritual de rememoração em locais de memória

dolorosa. O intuito é destacar a importância dessas iniciativas e dos lugares de

consciência como reflexão e prevenção de acontecimentos traumáticos no futuro.

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CAPÍTULO 1.

Da memória aos lugares de memórias difíceis

1.1. Sobre a memória: mecanismos e lembranças

De acordo com Bosi1 (1994), o conceito de memória pode ser analisado de duas

formas distintas: a memória hábito e a memória lembrança. A primeira é a memória dos

mecanismos motores, relacionada ao que gravamos na mente por meio da repetição

sistemática, como, por exemplo, os mecanismos que nos fazem usar o computador, ler,

falar e escrever. Já a segunda relaciona-se ao inconsciente de alguém que viveu um

acontecimento singular que pode ser lembrado e relembrado com diferentes frequências.

A memória hábito é aquela ligada ao dia-a-dia, já a memória lembrança não é mecânica e

sim uma lembrança de um momento único de um sujeito, é evocativa:

O passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente, mas não de forma homogênea. De um lado, o corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se da memória-hábito, a memória dos mecanismos motores. De outro lado, ocorrem as lembranças independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituiriam autênticas ressurreições do passado. (BOSI, 2001, p. 48)

Há também momentos em nos esforçamos para evocar uma lembrança, nestes

casos há um empenho para pensarmos no passado e na história como forma de lembrar

o que foi esquecido. A memória voluntária se fundamenta no desejo de reconstruir um

passado através do estudo sobre os fatos que ocorreram nele. As narrativas são

utilizadas como testemunhos para quem deseja relembrar alguns acontecimentos e

episódios de outras gerações. Os relatos partem de indivíduos que selecionam cenas e

imagens que consideram mais importantes para lembrar e funcionam como mecanismo

de disseminação de um acontecimento que não deve ser esquecido.

A memória como lembrança refere-se a algo vivido no passado, que se manifesta

no presente, sendo, por exemplo, as recordações dos lugares por onde uma pessoa

andou ou morou, dos momentos bons e ruins vividos, dos lugares que visitou, lições de

vida, entre outras. Lembrar e esquecer são ações que caminham paralelamente, certas

1 Ecléa Bosi (1936-2017) foi escritora e psicóloga brasileira. Foi mestre e doutora em psicologia social pela Universidade de São Paulo (USP). Dentre suas principais publicações, destaca-se, no âmbito deste trabalho, sua obra Memória e Sociedade (1979).

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recordações podem ser armazenadas de forma profunda em nossos pensamentos e

lembradas em detalhes, enquanto outros aspectos podem ser esquecidos com facilidade.

A memória é seletiva, ou seja, os indivíduos sempre irão selecionar os fatos e

acontecimentos que considerarem relevantes, não sendo possível contar ou recontar a

história em sua totalidade. Existem várias formas de lidar com o passado e todas elas

envolvem interesses, poder e exclusões; o indivíduo, por meio de suas crenças, tenderá

a armazenar em sua mente os acontecimentos que lhe fizerem sentido.

As memórias são registros vivivos de grande importância para a definição de

identidades, sejam locais ou mesmo de uma nação. A partir das lembranças, percepções,

relatos e documentos, é possível difundir nossas heranças culturais, resgatar

esquecimentos e refletir sobre questões de outras gerações que ainda fazem parte do

presente e que devem ser revisitadas no intuito de educar os novos jovens e de ajudar na

tomada de decisões que poderiam ter sido diferentes no passado.

A partir do estudo da história através da memória, somos capazes de exercer

nosso papel enquanto cidadãos e de entender a nossa realidade política, social, cultural e

econômica. Vivemos em uma cadeia de acontecimentos que define a forma de uma

sociedade pensar e agir, neste sentido o entendimento dos eventos passados é essencial

para o desenvolvimento de uma análise crítica sobre o cenário político atual e os dilemas

sociais que estão enraizados nessas histórias. De acordo com a arquiteta Tali Hatuka2

(2017, p. 47): “uma coisa é clara: as decisões de quando lembrar ou esquecer estão

incorporadas em nosso contexto espacial, político e cultural, e são parte de quem somos

e de quem queremos ser”. Infelizmente, o Brasil é um país onde o incentivo à memória é

tímido, prejudicando o engajamento político-social de sua população, questão à qual

voltaremos ao longo deste trabalho.

Mas a memória também é uma construção social, e, neste sentido, é resultado de

adoção de distintos critérios de valor, que variam no tempo e no espaço.

2 Tali Hatuka é arquiteta, urbanista e chefe do Laboratório de Design Urbano Contemporâneo na Universidade de Tel Aviv em Israel. No presente trabalho, citamos seu artigo “A Obsessão com a Memória: o que isso faz conosco e com as nossas cidades?”, traduzido por Carlos Szlak - no livro Patrimônio Cultural: Memória e Intervenções Urbanas (2017). Tali problematiza questões relativas à memória nos territórios.

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1.2. Memória Individual e Memória Coletiva

De acordo com Maurice Halbwachs3 (2006), os homens desenvolvem suas

memórias por meio das diferentes interações que mantém com outras pessoas. Como os

indivíduos inserem-se em diferentes grupos sociais, as diferentes memórias são

consequência da trajetória de cada um ao longo da vida. Sob essa ótica e no âmbito da

memória individual, é evidente que é necessário haver uma pessoa que participou de um

fato específico, como protagonista ou como ouvinte, que se lembre ou esqueça daquele

momento. Dessa ideia, surge a afirmação de que é preciso que tenha pelo menos um

testemunho para que o fato seja transmitido e se torne memória de um grupo.

A memória individual é, então, reflexo da complexidade das relações sociais

vivenciadas por cada um. Nesse contexto, é importante entender a diferença entre os

mecanismos relacionados à memória individual e à memória coletiva, no intuito de

compreender a memória como construção social. Uma construção que tem influência

direta nas políticas públicas de preservação do patrimônio cultural.

Muitas memórias que consideramos individuais também fazem parte do

imaginário de outras pessoas que podem ter vivenciado o fato social de maneira diferente

da nossa. Pessoas que, inclusive, não fazem parte do mesmo contexto social podem ter

compartilhado de experiências semelhantes. Sob essa ótica, a memória que julgamos ser

somente nossa habita a história de muitos outros. Nesse contexto, é evidente que as

memórias individuais fazem parte de uma composição maior, que são as memórias

coletivas. De acordo com Halbwachs:

[...], mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque em realidade nunca estamos a sós. Não é necessário que os outros homens estejam lá, que se distinguam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem. (HALBWACHS, 2006, p.30)

O sociólogo se ancora na premissa de que uma pessoa vive suas próprias

experiências, mas é também influenciada pelo meio social em que está inserida. Por

exemplo, uma criança que cresce ouvindo que é necessário respeitar os mais velhos,

tende a se tornar um adulto com empatia em relação aos idosos, já aquela que não

3 Maurice Halbwachs (1867-1945), estudioso durkheimiano (ênfase na importância dos fatos sociais sobre os indivíduos), foi um sociólogo francês que refletiu a memória no campo das relações interpessoais, cujas obras são referência para o tema: Os quadros sociais da memória (1925) e A memória coletiva, que foi publicada após sua morte (1950).

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recebe nenhum tipo de educação quanto à gratidão com pessoas de idade, tem uma

tendência maior de se tornar um adulto desrespeitoso. A memória individual é resultado

da memória coletiva, e, segundo Bosi (2001), ao se relacionar com o meio social, o

indivíduo aproxima-se e absorve as ideias e histórias desses grupos.

Ao pensar em memória individual e memória coletiva é possível definir a primeira

como um conjunto de impressões subjetivas sobre fatos, com detalhes e sequências

organizados por um indivíduo. Já a segunda se define pelos registros de memória

significativos que são lembrados por várias pessoas que vivenciaram situações

semelhantes e compartilham dessas lembranças:

No delicado exercício de relembrar, percebemos que algumas memórias chegam até nós com mais facilidade e outras nem tanto. As pessoas que viveram conosco um determinado acontecimento podem ser nossas aliadas neste trabalho de diálogo com o passado. Os fatos vão ficando cada vez mais nítidos, quando ouvimos relatos daqueles que compartilharam conosco as mesmas experiências. Nossos próximos são parceiros no exercício de escavação de nossas memórias individuais. (HALBWACHS, 2006, p. 42)

Mas não são todas as impressões que temos do passado que fazem parte de

uma história vivida, muitas das nossas lembranças vêm dos relatos que nos foram

contados por meio da narrativa de outras pessoas e que acabamos incorporando ao

nosso discurso e contexto de vida, porque de certa forma fazem sentido para nós e para

nossa existência, tendo como consequência uma identificação com os relatos. De acordo

com o sociólogo Michael Pollak4, esses acontecimentos são “vividos por tabela” e são

essas memórias que propagam a nossa história e fazem parte do imaginário coletivo:

[...] acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que no fim, das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não [...] um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada. (POLLAK, 1992, p. 201)

A relação direta entre memória coletiva e memória individual é evidente, sendo

que não é possível que um indivíduo se lembre de algum acontecimento que não lhe faça

sentido:

[...] para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso

4 Michael Pollak (1948-1992), austríaco, formado em sociologia, foi pesquisador do importante Centre National de Recherches Scientifiques (CNRS), na França, na área de política e ciências sociais. Tinha como campo de pesquisa temas relacionados à memória, esquecimento, silêncio e identidade nacional. Dentre suas obras, destacam-se: Memória e Identidade Social (1992) e Memória, Esquecimento, Silêncio (1989).

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que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser constituída sobre uma base comum. (HALBWACHS, 2006, p. 39)

Em Memória e Identidade (1992), Pollak sintetiza três aspectos formadores de

memórias coletivas e individuais: os acontecimentos/eventos, os personagens e os

lugares. Como citado anteriormente, não necessariamente vivenciamos alguns

acontecimentos, porém absorvemos as memórias por empatia e identidade em relação

ao grupo que pertencemos.

Os acontecimentos baseiam-se em experiências vividas no cotidiano de cada

indivíduo que de certa forma marcaram e foram selecionadas pela memória, contribuindo

para a composição de fatos da vida, servindo como referência para diferentes situações e

maneiras de agir.

Os personagens contribuem para a construção da memória, pois são os

protagonistas e integrantes do contexto cotidiano do indivíduo, é através de suas

narrativas que a memória se propaga de geração a geração como herança, reforçando as

identidades sociais:

[...] os personagens também serão contemporâneos na memória como pessoas vividas no cotidiano mesmo que estes personagens não façam parte no tempo e espaço do indivíduo. Eles serão agregados na memória pelo simbolismo sócio-político que compõe a ideologia ímpar da pessoa. Com isto reforça-se a identidade social do indivíduo contribuindo para concretizar sua representatividade no papel social e seu reflexo junto à coletividade. (RIBEIRO, 2010, online)

No que diz respeito aos lugares, estes são formadores de lembranças, são o

cenário de referências do cotidiano. Os lugares de memória correspondem a

testemunhos físicos da história. Através da tridimensionalidade, permitem que os

visitantes e habitantes sintam a essência e o “espírito do lugar”, diferentemente do que

proporcionam os livros, que reúnem informações sob diferentes pontos de vista e

subjetividades (BUCCI, 2015). O “espírito do lugar” é a sua especificidade e identidade

particular, é através dele que conseguimos diferenciar um lugar de outro: “enquanto

objetos tridimensionais, eles são mais completos que uma fonte escrita, apesar de menos

fáceis de serem lidos” (DOLFF-BONEKAMPER, 2002).

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1.3. Lugares de memória: uma temática recente

No contexto acima delineado, é importante o conceito dos “lugares de memória”,

de Piere Nora, sobre o qual nos debruçaremos neste capítulo, buscando indicar, de forma

simplificada, sua contribuição nas discussões e estudos acerca do tema. Na década de

1980, Pierre Nora5 inicia o processo de organização de uma coletânea em que alguns

autores se uniram para estabelecer os conceitos de “lugares de memória” da nação

francesa, ou seja, dos lugares simbólicos da França. O processo do entendimento dos

“lugares de memória” passou por um período de assimilação, apropriação por diversos

autores, controvérsias e críticas que geraram uma infinidade de discussões. Sua

coletânia é extensa, e cabe, aqui uma análise breve dos estudos do autor em relação à

história e à memória, indicando sua importância para as dicussões atuais relacionadas a

lugares de memória traumática.

Nora tinha como projeto, publicações e artigos que foram reunidos em três livros:

Historien public (2011) e Présent, nation, mémoire (2011), que foram publicados

simultaneamente no intuito de dar apoio ao Les lieux de mémoire (1984-1992). As duas

primeiras obras reúnem artigos que o autor escreveu ao longo de sua vida.

O primeiro livro, Historien public (2011), reúne em mais de quinhentas páginas,

suas considerações sobre a história contemporânea e a nação francesa. A obra Présent,

nation, mémoire (2011) reúne cerca de trinta artigos do historiador que abordam a

temática da história e da memória.

As duas obras citadas acima (2011) foram resultado de reflexão do Les lieux de

mémoire (1984-1992), publicado em sete volumes e que ganhou visibilidade, sendo

utilizado em discussões na esfera das políticas públicas do patrimônio que passavam por

um processo de expansão do conceito, então traduzida nos adjetivos de cultural e

intangível, como veremos mais adiante. A publicação desse livro foi considerada como a

mais importante obra do autor que também publicou a edição de Faire de l’Histoire

(1974) com o auxílio de Jacques Le Goff, composta por três volumes que reuniam textos

de diferentes autores franceses que apresentavam suas reflexões sobre a história

(BOEIRA, 2012). A reflexão de Nora também seguirá em seu texto Entre memória e

história: a problemática dos lugares (1993), já citado anteriormente.

5 Pierre Nora (1931) é editor francês, historiador, professor universitário, ocupa posição de destaque nos debates relacionados à memória, história e patrimônio francês. Idealizador do conceito “lugares de memória”, tem como principais publicações os livros Les Lieux de Mémoire (1984 e 1992) e Entre Memória e História: a problemática dos lugares (1993).

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Na apresentação do primeiro volume da coletânia, Les lieux de mémoire (1984),

Nora indica preocupação com o desaparecimento da memória nacional francesa, partindo

o autor para análise do presente, da sociedade francesa e da relação da memória

nacional com certos lugares, o que, para ele, constituiria um diagnóstico histórico. Tal

diagnóstico teve como resultado a constatação de uma aceleração das transformações

dos processos históricos e a importância dada à memória na década de 1970, uma

espécie de “onda de memória”, segundo o autor, que se expandiu não só na França, mas

no mundo ocidental como um todo.

A França passava por uma série de mudanças que influenciava a produção do

pensamento. De acordo com a obra Les lieux de mémoire (1984), vale destacar os

seguintes acontecimentos que impulsionaram essas transformações: a morte de

DeGaulle6, em 1970, os “Trinta Gloriosos”7 e a recuperação do crescimento econômico

da França, o fim de uma França rural e do modo de vida no campo, e a perda da Argélia8,

em 1962 (GONÇALVES, 2012). Diante de todas essas mudanças, a identidade francesa

foi dolorosamente afetada e, nesse cenário, Nora viu a necessidade de identificar lugares

onde essa identidade ainda se manifestava, como forma de representatividade da nação

francesa. O autor preocupava-se com o desaparecimento rápido da memória nacional

francesa.

Os “lugares de memória” seriam resposta a essa necessidade do indivíduo

contemporâneo de, através da história, buscar lugares em que se identificam. O autor

pontua, contudo, que não há uma memória espontânea e verdadeira, há, no entanto, a

possibilidade de acessar uma memória reconstituída que nos dê o sentido necessário de

identidade:

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, organizar celebrações, manter aniversários, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. (NORA, 1993, p.13)

Nora afirmava, assim, que essa memória reconstituída é, então, história. Para ele

a sociedade precisa da história como instrumento para encontrar um significado que não

6 Charles André Joseph Marie de Gaulle (1890-1970) foi um político e general francês, que liderou, durante a Segunda Guerra Mundial, as Forças Francesas Livres (1940-1944). Também foi Presidente do Governo Provisório da França (1944-1946).

7 A expressão refere-se aos trinta anos após a Segunda Guerra Mundial, período marcado pelo grande crescimento econômico, principalmente nos países desenvolvidos.

8 A Argélia foi colônia francesa até 1962, quando se tornou independente. Considerado o mais dramático episódio colonial francês, pois aproximadamente 1,5 milhões de argelinos morreram durante o conflito. Após a independência o Governo Argelino iniciou uma política de nacionalização, incorporando a identidade árabe e combatendo as raízes francesas que existiam no país, quando este ainda era colônia.

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lhe é mais compreensível no presente. Neste sentido, Nora afirmava que seria necessária

uma renovação historiográfica nacional, pois havia o risco do apagamento da herança do

passado (BOEIRA, 2012). Em Entre Memória e História: a problemática dos lugares

(1993), Nora afirma que a memória é viva e dinâmica, o que a difere da história, que,

enquanto narrativa, seleciona um fato para ser contado. Sob essa ótica, Nora buscava

distanciar-se da narrativa histórica associada à memória da nação e traçar novos elos

entre memória e história.

O conceito de memória muitas vezes é confundido com a mera reprodução do

passado, o que de fato não é verdade. A memória é a reconstrução do pretérito, baseada

nas informações do presente e que, de geração em geração, é atualizada, confirmando

seu caráter de constante transformação. Diante disso, é possível fazer uma analogia com

a história, pois cada século influenciará o próximo, com as visões e ideias da sociedade

acerca dos fatos. É válido ressaltar que essa memória é resultado de diferentes visões e

interpretações sobre um passado recente ou distante e que nunca poderá ser uma

verdade absoluta, pois é subjetiva, dependendo de quem lembra e sofre apagamentos.

Sobre um diferente fato histórico, cada grupo terá uma lembrança, porque viveu de

maneira diferente aquele mesmo acontecimento:

A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas transformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repetitivas revitalizações. (NORA, 1993, p. 9)

Em 1997, Nora destacava a tendência de assimilar os lugares ao monumental e

ao material e fala em memória tangível e simbólica:

Lugar de memória, então: toda unidade significativa, de ordem material ou ideal, que a vontade dos homens ou o trabalho do tempo converteu em elemento simbólico do patrimônio memorial de uma comunidade qualquer. (NORA, 1997, apud. GONÇALVES, 2012, p. 34)

Para Nora (1993, p. 7), com a aceleração da história, os lugares de memória

substituíram a memória tradicional - “fala-se tanto de memória porque ela não existe

mais”:

À medida que desaparece a memória tradicional, nós nos sentimos obrigados a acumular religiosamente vestígios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que foi, como se este dossiê cada vez mais prolifero devesse se tornar prova em não se sabe que tribunal da história. (NORA, 1993, p.15)

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Os vestígios, testemunhos, de que nos fala Nora (1993, p. 9), manifestam-se

concretamente:

A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, as evoluções e às relações das coisas.

A ideia de “lugares de memória” aproxima-se da ideia de construção no tempo,

não mais ligada à tradição, mas à própria forma como foi se constituindo a memória no

tempo, e como foi sendo apropriada, o que conduz à administração do passado no

presente:

[...] não mais os determinantes, mas seus efeitos; não mais as ações memorizadas nem mesmo comemoradas, mas o traço dessas ações e o jogo dessas comemorações; não os acontecimentos por eles mesmos, mas sua construção no tempo, o apagamento e o ressurgimento de seus significados; não o passado tal como se passou, mas seus reempregos permanentes, seus usos e desusos, sua pregnância sobre os presentes sucessivos; não a tradição, mas a maneira como se constituiu e foi transmitida. Logo, nem a ressureição, nem reconstrução, nem mesmo representação; uma rememoração. Memória: não a lembrança, mas a economia geral e a administração do passado no presente. Uma história da França, portanto, mas de segundo grau. (NORA, 1997, apud GONÇALVES, 2012, p.35)

1.4. Lugares de memória e memórias difíceis

De acordo com Ulpiano Bezerra de Meneses9 (2018), a expressão “lugares de

memória”, criada por Nora, pode ser associada a uma memória vicária, ou seja,

substituta, de segunda categoria, que substituiu uma memória primária, a dos “ambientes

de memória”, fruto de experiências vividas, quando a memória ainda existia. Uma

memória que se perdeu com a aceleração do tempo que transformou a sociedade. Neste

sentido, para Meneses, Nora tinha o intuito de denunciar essa nova incapacidade

humana de lembrar, o que faz com que a sociedade queira preservar tudo o que é

apresentado, sem muito critério.

Nos últimos tempos, e de acordo com Meneses, vivemos um momento pragmático

da memória, onde assistimos uma rápida e veloz ampliação dos debates referentes às

questões do passado. É possível encontrar uma gama significativa de textos e

9 Ulpiano Bezerra de Meneses, professor aposentado da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas na Universidade de São Paulo (USP), licenciado em Letras Clássicas e Doutor em Arqueologia Clássica. Também foi membro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico (CONDEPHAAT). Tem diversas publicações sobre memória, cultura material e patrimônio ambiental urbano, entre outros muitos temas.

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publicações com enfoques diferentes relacionados à temática do lembrar e do esquecer.

Diante deste quadro, o presente trabalho busca problematizar questões referentes aos

lugares de memória difícil.

O conceito de “lugares de memória” surgiu como uma reflexão sobre a perda de

uma memória nacional francesa, sendo atualmente utilizado e atribuído também a

lugares de memória dolorosa, que revelam dilemas estruturais da sociedade, tais como:

gênero, raça, tolerância, minorias étnicas, violações de direito, abusos do poder do

Estado, desigualdades sociais, entre outros. De acordo com Meneses:

A memória traumática é a face de maior força em nossos tempos, herança de conflitos e violências que assolaram o século passado e não desapareceram neste, sem contar os desastres naturais. O trauma cultural é aqui tomado, um pouco na linha de Neil Alexander, como a memória aceita por uma comunidade e evocando evento ou situação carregada de afeto negativo, tida como indelével ou ameaçando seus valores e trazendo pertubações pela dificuldade de assimilação e horizonte final. (MENESES, 2018, p. 4)

Atualmente, há uma quantidade considerável de monumentos e museus que se

referem ou se dedicam à memória do trauma, como o Museu do Holocausto na

Alemanha e o Memorial da Resistência no Brasil, ambos relacionados a passados de

violências sociais. Os eventos traumáticos tornam as testumunhas e vítimas novos

agentes da construção da memória que ganham destaque com suas narrativas de

denúncia em relação a crimes do passado, mesmo um passado recente. De acordo com

Meneses (2018), diante da memória do trauma, novos conceitos foram surgindo e outros

foram remodelados, como:

[...] a memória transgeneracional (que assume os significados à medida que atravessa gerações), a pós-memória (a memória de segunda-mão, não vivida, mas absorvida como própria no âmbito familiar), a memória ausente (existente, mas impedida de circular pelas convenções sociais), a memória silente (do corpo da testemunha incapaz de proferir palavra, mas expressando na sua imobilização a escala do ocorrido), a memória incorporada [...] (implicações corporais do testemunho), a paisagem mnemônica [...] (o testemunho dos espaços configurando os chamados sítios de consciência). (MENESES, 2018, p. 5)

Neste contexto de diversidade de conceitos, os lugares de memória difícil

enfrentam o desafio da intervenção que gira em torno de questões como: lembrar ou

esquecer? Existe uma memória que seja justa? Qual a memória que deve ser esquecida

e qual merece ser lembrada? Vale a pena intervir ou o “não gesto” ou mesmo o vazio já

representam a dor? Quais usos legítimos podem ser dados a um lugar de memória

traumática? Essas indagações são muito atuais e cabem tanto aos órgãos de

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preservação quanto ao campo da arquitetura uma análise profunda das questões

políticas, sociais, econômicas e culturais que permeiam esses lugares.

Diante da necessidade de resgatar o passado como denúncia de eventos de dor,

existem algumas proposições, num contexto atual de democracia, que foram elencadas

por Meneses (2018, p. 5) como sendo de senso comum e essenciais para a reflexão

sobre a memória traumática:

i) Crimes contra a humanidade não são prescritíveis. Não podem ser esquecidos. O esquecimento sem justiça afeta não só o presente, mas o futuro.

ii) O direito à memória não pode sofrer qualquer restrição. Inclui o acesso do interessado à documentação e investigações.

iii) O trabalho da memória, deve destinar-se menos a profenir sentenças do que providenciar um espaço confessional e de completas elucidações.

iv) Deve-se conceder espaço a um direito à compaixão.

v) Finalmente há um direito à História, ao conhecimento das raízes dos traumas e seus efeitos.

Assim, de acordo com o autor, todos devem ter direito à memória, os crimes

contra a humanidade devem ser divulgados e não podem ser esquecidos como ação

educativa para prevenir a sociedade de eventos traumáticos similares no futuro, deve

também haver um direito à compaixão e todos devem entender a História e o motivo dos

traumas e suas consequências.

Neste cenário, a memória torna-se um mecanismo de estabelecimento de justiça

e deve ser utilizada como denúncia, pesquisa e investigação. A sociedade brasileira é

violenta e tem uma história enraizada em passados de escravidão, tortura, machismo,

perseguição aos indígenas, entre outros. Algumas ideologias desse passado ainda

permeiam a mentalidade de diversos brasileiros, muitas vezes alienados em relação à

História. Os museus e memoriais assumem, cada vez mais, o papel de informar e de

escancarar a triste realidade desse passado injusto. Segundo Meneses (2018, p. 13):

Somos um povo cordial apenas no sentido dado por Sérgio Buarque de Holanda, na preferência de agir pelo coração, quando deveríamos agir pelas obrigações, isto é, negamos a justiça a quem não faz parte de nossos afetos.

Para o autor, o povo brasileiro tende a não ter empatia com o passado de outros

com quem não têm ligação direta, sendo primordial o papel do pós-memória, aquela que

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é absorvida por outros no âmbito familiar. Esse é o papel dos museus, memoriais e

testemunhas, informar os leigos sobre passados de trauma no intuito de aproximá-los das

histórias das vítimas desses eventos:

[...] além de denunciar as enormidades da violência do passado, os museus comprometidos com os direitos humanos precisam assumir-se como faróis que iluminam também a violência de hoje, a violência cotidiana, a violência em qualquer modalidade e escala [...] no museu, a violência não seria mais uma noção abstrata: é coisa concreta, sensível, apreendida com nossos sentidos, nosso corpo e nossa mente [...] ilumina aquele caminho que podemos percorrer. (MENESES, 2018, p. 14)

Após o entendimento dos conceitos de memória individual, memória coletiva,

história e “lugares de memória”, o próximo capítulo mostra como as memórias difíceis

entram na pauta das discussões e da preservação do patrimônio, indicando a expansão

do conceito de patrimônio para a esfera do cultural e do intangível para, em seguida,

proceder-se a análise relativa à atribuição de valores conferida pelos órgãos de

preservação a lugares de memória difícil, bem como os estudos de caso desses lugares

em São Paulo.

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CAPÍTULO 2.

As Memórias Difíceis entram na Pauta de Discussão e da Preservação

2.1. Da Memória Nacional ao Direito à Memória

As políticas de preservação do patrimônio em São Paulo mais recentes são fruto

de um longo processo de maturação de certas ideias, sendo evidente que as mudanças

de alguns ideários se relacionam aos acontecimentos no cenário mundial e nacional, que

influenciam as transformações da visão da sociedade.

Após a Segunda Guerra Mundial, muitos valores foram contestados e o mundo de

forma geral se modificava, o conflito foi considerado o mais letal da história da

humanidade. A guerra durou de 1939 a 1945 e foi caracterizada pela morte e

perseguição de milhares de judeus. Além do Holocausto, a guerra foi marcada pelo uso

de armas nucleares que ameaçavam a civilização. Após o ocorrido, em um primeiro

momento, a sociedade estava preocupada em esquecer o que tinha acontecido e

reconstruir o que havia sido destruído pelos conflitos.

O período do pós-Segunda Guerra Mundial foi uma fase de mudanças de valores

e de acontecimentos que impulsionaram a reflexão sobre toda a destruição causada

pelos conflitos. Muitos países foram afetados, como a própria Alemanha, por ter sido

cenário de acontecimentos históricos muito traumáticos (nazismo, Holocausto, Primeira e

Segunda Guerras Mundiais, a divisão do país e a experiência do comunismo sob a

influência da União Soviética). Nas últimas décadas, o país foi obrigado a se reconstruir,

incluindo o processo de reunificação da capital Berlim:

[...] a nova capital, Berlim, assumiu a partir da década de 1990 o papel de laboratório global das arquiteturas da memória, e se tornou a principal referência para cidades e países que lidam com a memória de episódios tensos e dolorosos. (BUCCI, 2015, p. 12)

O medo de outro conflito levou os países que queriam prevenir a incidência de

novas intrigas a criarem a Organização das Nações Unidas (ONU)10, que tinha como

objetivo manter a paz mundial.

10 Estabelecida em 1945, após término da Segunda Guerra Mundial, a ONU foi criada para promover a cooperação internacional e evitar que outro conflito como aquele ocorresse. A organização tem como intuito promover os direitos humanos, garantir a paz mundial, ajudar vítimas da guerra e fome, além de proteger o meio ambiente.

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Além dos acontecimentos citados acima, a segunda metade do século XX foi

marcada por outros eventos significativos, como a queda do comunismo, as guerras do

Oriente Médio, o fim do apartheid, as ditaduras na América Latina, entre outros. Todos

esses acontecimentos mudaram a estrutura das sociedades que necessitaram

posteriormente passar por processos de reconstrução.

Também foi um período de contestação dos valores ocidentais então vigentes,

com o auge do movimento da contracultura na década de 1960 utilizando-se de novos

meios de comunicação em massa. A televisão associada ao entretenimento e ao

consumismo pós-guerra foi muito criticada pela juventude que tinha como premissa a

quebra de padrões estabelecidos pela sociedade. A ideia estava na transformação de

valores e na busca por uma expressão através da mudança de atitude e protestos

políticos.

No âmbito da contracultura, o período também foi marcado pelo movimento

hippie, comportamento coletivo de grupos de jovens que tinham como ideal a “paz e o

amor” e que criticavam as armas nucleares, as guerras e a repressão social. Algumas

questões de gênero foram mais debatidas, inclusive o homossexualismo e a prática do

nudismo foram defendidos e respeitados por essa comunidade. Os jovens temiam por

sua liberdade cultural e intelectual, e, conhecidos como rebeldes, os hippies lutavam

pelos direitos de serem jovens. Como é possível perceber, o mundo sofria mudanças

significativas de valores e, como consequência, o passado começava a ganhar novas

percepções e interpretações.

Nas últimas décadas, temos assistido a uma preocupação maior em relação a

questões referentes às políticas de memória e preservação do patrimônio cultural. O

antropólogo Andreas Huyssen11 afirma que vivemos um “boom memorialístico” e que

estamos todos “seduzidos pela memória” e enfatiza “a emergência da memória como

uma das preocupações culturais e políticas das sociedades ocidentais” (HUYSSEN,

2000, p. 9-16). Esta ciscunstância é evidenciada de maneira apropriada pelo historiador

francês Pierre Nora (2009, p. 6):

[...] estamos experimentando a emergência da memória [...] é como uma onda de recordação que se espalhou através do mundo e que, em toda a parte, liga firmemente a lealdade ao passado – real ou imaginário – e a sensação de pertencimento, consciência coletiva e autoconsciência. Memória e identidade. (NORA, 2009, p. 6)

11 Andreas Huyssen (1942) é alemão, professor de língua alemã e literatura comparada na Columbia University, em Nova York. O crítico é muito reconhecido por suas importantes reflexões acerca de questões como história e memória, e publicações de livros emblemáticos como: Seduzidos pela Memória (2000).

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No Brasil, a partir da segunda metade do século XX, há um crescente interesse

pelo tema, refletindo-se no aumento do campo da pesquisa e de debates em que o

passado é visto como herança para construção de um futuro mais democrático. Esses

campos tendem cada vez mais a valorizar a diversidade cultural, as memórias de outros

grupos que não dominantes, como a cultura negra e indígena. Os grupos dos

marginalizados e excluídos aos poucos ganham espaço no mundo contemporâneo e

participam das políticas de patrimônio cultural na busca do resgate da memória como

afirmação de uma identidade e luta por direitos sociais. A atuação dos cidadãos no que

diz respeito a retomada do passado como busca pela identidade, democratização e luta

por direitos sociais vem assumindo papéis imprescindíveis na denúncia e até mesmo na

reconstrução de passados recentes vinculados a memórias traumáticas ou difíceis.

O surgimento da memória referente a traumas históricos no espaço público

durante o século XX, principalmente após II Guerra Mundial, impôs uma reconfiguração

do status da memória e do recordar. Desenvolveu-se uma estética do “antimonumento”,

que funde a tradição do monumento com a comemoração fúnebre (SELIGMANN, 2016).

Neste sentido, a memória social mudou e o papel da vítima, tornou-se importante.

Desse modo, o sentido heroico do monumento é totalmente modificado e deslocado para um local de lembrança (na chave da admoestação) da violência e de homenagem aos mortos. Os antimonumentos, na medida em que se voltam aos mortos, injetam uma nova visão da história na cela da comemoração pública e, ao mesmo tempo, restituem práticas antiquíssimas de comemoração e rituais de culto aos mortos. (SELIGMANN, 2016, p.50)

Neste contexto, são produzidos diversos lugares de recordação, como legitimação

de instituições e valores de alguns grupos excluídos no passado. Esse debate em relação

à atribuição de sentido ao passado está diretamente vinculado à análise dos atores e

processos sociais envolvidos na construção das memórias, cujos efeitos estão ligados ao

tempo e ao espaço. De acordo com Seligmann (2016), a “arte da memória” é o lugar.

De acordo com Teles (2017), os valores atribuídos aos atos de rememoração são

significativos e vão além da palavra escrita na pedra, como nas antigas práticas

funerárias e de comemoração. Neste sentido, surge uma nova perspectiva sobre o

passado que resistimos em dirigir o olhar. É importante destacar que a valorização do

passado tem ressaltado a importâncias das palavras e da escuta.

Essas questões vinculam-se ao contexto de reivindicação da memória como

direito, temática recente na sociedade contemporânea, resultante de um longo processo

de amadurecimento da relação entre memória e direitos sociais.

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2.2. Patrimônio cultural e valores: um campo em ebulição

O conceito de patrimônio nem sempre esteve vinculado à memória dos diversos

grupos sociais e suas particularidades específicas. Este processo foi lento e está

relacionado diretamente às mudanças de pensamento da sociedade brasileira, sobretudo

na segunda metade do século XX e dos diversos eventos que ocorreram nesse período.

Deve-se, também, à Constituição de 1988 que traduziu a ampliação do conceito

de patrimônio cultural, incorporando também o chamado patrimônio intangível, que, de

acordo com Meneses (2009, p.31), era “caracterizado mais por processos do que por

produtos, como formas de expressão, modos de criar, fazer, viver, os quais, porém, se

examinarmos mais de perto, pressupõem múltiplos suportes sensoriais, incluindo o

corpo”.

Nesse momento, foram definidos importantes princípios que influenciaram a

construção de uma memória plural, baseada nos direitos culturais da sociedade e que

tornaram a participação popular mais efetiva no campo da preservação. De acordo com

Marly Rodrigues12 (2009, online), no período compreendido entre o início da proteção do

patrimônio no Brasil até a década de 1980:

[...] o conceito de patrimônio se transformaria e ampliaria, bem como se transformariam o valor atribuído à memória pela sociedade, e as próprias formas de proteção do poder público. O termo histórico-arquitetônico, antes amplamente utilizado para qualificar o patrimônio, seria substituído por cultural; o universo de bens protegidos não se restringiria ao que é material, mas abrangeria as manifestações intangíveis, como as devoções e os fazeres.

Diante desses fatos, é necessário um entendimento do processo de

desenvolvimento da política de proteção do patrimônio histórico no Brasil, quais as

estratégias do Estado e do município de São Paulo para implementação de diretrizes de

preservação e em qual momento discussões como “o direito à memória” ganharam

destaque e visibilidade.

De acordo com Rodrigues (2009), a gestão do patrimônio histórico no Brasil está

dividida em dois momentos cruciais: o primeiro que se inicia na década de 1930 e que

tinha como foco o ideal de identidade nacional atrelada a conjuntos simbólicos e

representações materiais de “valor excepcional”, e o segundo que vai se consolidando a

12 Marly Rodrigues é Doutora em História pela Unicamp, especialista em patrimônio cultural, com estudos sobre as relações entre memória, história, patrimônio cultural e políticas públicas de preservação. Exerceu atividades profissionais nos três órgãos de preservação atuantes em São Paulo: o IPHAN-SP, o CONDEPHAAT e o DPH. Atualmente é diretora de Memórias Assessoria e Projetos, atuando na área da pesquisa. Tem como uma de suas principais publicações o livro Imagens do Passado (1999).

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partir da década de 1980 e é marcado por valores culturais baseados na memória da

sociedade através do reconhecimento de manifestações intangíveis13:

Este patrimônio, que resulta das forças motrizes da colonização levada a cabo dos europeus, é também, e particularmente, filho de duas Guerras Mundiais, do sofrimento que elas causaram e da evidenciação do grau de exposição ao risco de desaparecimento súbito. É, nesta perspectiva, um patrimônio que é a expressão do luto resultante do sentimento de perda repentina e lancinante. Com o aproximar do fim do século XX, as representações patrimoniais ficaram menos circunscritas à monumentalidade, ao nacionalismo e às hegemonias. O local, o comunitário, a natureza, as expressões das minorias e o intangível ganham relevância nas representações, nas categorias e nas políticas patrimoniais. (PEIXOTO, 2017, p. 15)

No Brasil, as primeiras medidas efetivas do poder público no que diz respeito à

proteção do patrimônio ocorreriam em 1937 com a criação do SPHAN – Serviço do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual IPHAN). O principal objetivo deste órgão

seria proteger representações materiais e bens arquitetônicos como garantia da

identidade da nação brasileira. De acordo com Decreto-Lei 25/1937, que organizou o

patrimônio no Brasil:

Art. 1° Constitui o patrimônio artístico e histórico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

O 1º parágrafo completo:

Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos 4 Livros do Tombo, de que trata o art. 4º desta Lei.

Neste sentido, era o poder público que estabelecia o patrimônio cultural, o qual

seria composto de bens tombados. Nesse momento, havia uma visão segregada que

considerava apenas objeto de preservação cultural as manifestações da classe

dominante, a elite: “o SPHAN representaria uma junção de esforços e interesses do

grupo de intelectuais modernistas e do governo Vargas, em consagrar representações

materiais do que consideravam ser a identidade da Nação brasileira” (RODRIGUES,

2009, online). Os bens arquitetônicos eram associados a ideia de monumentos de

valores excepcionais e o processo de definição do que seria considerado patrimônio tinha

13 Manifestações intangíveis compreendem tradições e costumes de comunidades e indivíduos que são transmitidas de geração em geração, através da herança de seus ancestrais. Em 1989, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) passou a preservar a cultura nacional popular e o patrimônio imaterial que se traduz através do folclore, tradições, saberes, manifestações, festas e rituais que podem ser coletivamente compartilhados através de gestos e narrativas.

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como premissa a análise da qualidade material, valorizando formas e técnicas

construtivas como testemunho do valor histórico ou artístico.

Após a consolidação do SPHAN em âmbito nacional, em 1968 foi criado em São

Paulo o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico

(CONDEPHAAT), órgão estadual que serviria como base para estruturação dos demais

órgãos municipais na década de 1980. Este último período caracteriza-se pela transição

do conceito de patrimônio que se ampliaria agregando valor aos bens culturais e

manifestações intangíveis. Nesse momento a ideia de identidade nacional se expande

para o interesse da memória de diferentes grupos sociais.

Sob essa ótica, é justamente na década de 1980 que o conceito de patrimônio se

associa e amplia aos bens e direitos culturais que abrangem diferentes grupos sociais,

étnicos e comunidades. Muitos grupos que reivindicaram a preservação de sua

identidade viam o resgate da memória como instrumento de afirmação e luta por direito

da cidadania. Meneses (2009, p.34) enfatiza o interesse das “‘comunidades’ que solicitam

o registro de expressões do seu patrimônio imaterial, e que procuram reconhecimento,

afirmação, estímulo à autoestima”.

Sob essa ótica, é válido destacar que o debate sobre a relevância da cultura da

memória e da legitimidade do relato social foi ganhando força e estendendo-se para além

do documento escrito e testemunho. De acordo com Teles:

[...] ao contrário, a opção por dar voz às vítimas tinha por objetivo fortalecer e conceder a máxima visibilidade ao testemunho na esfera pública. Aqueles fatos, pertinentes a toda a sociedade, deveriam inscrever-se na memória pública, por meio da experiência transmitida pelo testemunho, incorporando-os à história do país. (TELES, 2017, p. 67)

Neste contexto, a Constituição Federal14 de 1988 foi inovadora no sentido de

ampliar o conceito do patrimônio para além da dimensão material, bem como reconhecer

o patrimônio como o conjunto de bens referentes a distintas memórias sociais. Pela

primeira vez na história constitucional passou-se a falar em direitos culturais e na ação do

Estado como garantia do acesso às fontes de cultura nacional, sendo estas atreladas à

produção cultural, memória histórica, informação e à participação nas decisões de

políticas públicas sobre a cultura.

14 Promulgada em 05 de outubro de 1988, durante um período de redemocratização e após vinte anos de ditadura militar, o documento reflete o contexto político e social do povo brasileiro naquela fase e foi inovadora no momento em que instituiu políticas baseadas na igualdade de gêneros, proibição da tortura, criminalização do racismo, entre outras ações que passaram a incluir grupos considerados marginalizados.

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O Art. 216 da Constituição é imprescindível para a compreensão da ampliação do

conceito de patrimônio, o que se expressa na utilização da expressão “patrimônio

cultural” que substitui o termo “patrimônio histórico e artístico” que tinha predominado até

então:

[...] os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; e os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 1988, Art. 216)

De acordo com explicações feitas por Meneses no I Fórum Nacional do

Patrimônio Cultural15, é pertinente rever as posturas em relação ao reconhecimento de

valor do patrimônio, sendo esses: valores cognitivos, formais, afetivos, pragmáticos e

éticos. Segundo o autor, tais componentes não existem de maneira isolada, podendo

agrupar-se de forma variada.

1) Valores Cognitivos

Os valores atrelados ao conhecimento. Por seu intermédio é possível conhecer

como o espaço do edifício foi organizado através da análise de materiais e técnicas de

construção; as condições históricas do lugar, usos e apropriações, além dos agentes

envolvidos, trajetória e biografia. O bem é tratado como documento.

2) Valores Formais

São sensoriais, sendo o contato do indivíduo com o “mundo externo” ou

“transcendente”, sendo formal ou perceptível. O autor atribui ao valor estático que neste

caso é a “ponte fundamental dos sentidos para nos possibilitar sair de dentro de nós,

construir e intercambiar significados para agir sobre o mundo” (MENESES, 2009, p. 36).

3) Valores Afetivos

Aqueles que são históricos, relacionados a memória. São vínculos subjetivos que

se estabelecem com determinados bens, como o sentimento de pertencimento e

identidade, por exemplo. Estão relacionados a manifestações sociais e ao imaginário

social.

15 Foi realizado entre os dias 13 e 16 de dezembro de 2009, na cidade de Ouro Preto. A iniciativa partiu do Iphan, em parceria com o Fórum Nacional de Dirigentes e Secretários Estaduais de Cultura e a Associação Brasileira de Cidades Históricas (ABCH). O Fórum foi criado para discussões acerca das novas formas de

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4) Valores Pragmáticos

São os valores de uso, que devem qualificar as práticas sociais. Como exemplo,

Meneses (2009, p. 37) lembra do caso de uma velhinha, retratada em um quadro francês,

que necessitava de consições adequadas no templo para sua prática religiosa, a oração,

e acabou sendo prejudicada pelo movimento dos turistas, que não estavam ali para rezar,

mas sim para fotografar.

5) Valores Éticos

São aqueles relacionados às interações sociais em que são apropriados e posto à

funcionar. Os valores éticos tratam de questões do comportamento humano, além dos

direitos culturais e direitos humanos, além da diversidade cultural.

De acordo com Meneses, o campo dos valores atrelados ao patrimônio não

possui um único caminho e chegada, sendo uma arena de conflitos de avaliação e

valoração. Neste sentido, o campo do patrimôncio cultural é político:

Político não no sentido partidário, mas no de pólis, a cidade dos gregos, isto é, aquilo que era gerido compartilhadamente pelos cidadãos; a expressão correspondente entre os romanos, res publica, representa a outra face da moeda: a coisa comum, o interesse público. A democracia representa garante direitos e acesso; a república, finalidade e responsabilidades. A cidadania haveria de ser obrigatoriamente democrática e republicana e instaurar direitos e as correspondentes obrigações. (MENESES, 2009, p. 38)

Sob essa ótica e para o autor, como os valores são criados, eles precisam ser

declarados, fundamentados e explicitados e podem ser propostos ou recusados, porém

não impostos. No caso das memórias traumáticas, estas estão diretamente relacionadas

aos valores afetivos e éticos. Neste sentido, as atividades relacionadas ao

reconhecimento do patrimônio cultural são complexas e delicadas:

Mas por isso também é tão gratificante, pois estamos tratando, não de coisas, mas daquela matéria-prima – os significados, os valores, a consciência, as aspirações e desejos – que fazem de nós, precisamente, seres humanos. (MENESES, 2009, p. 39).

Neste contexto é evidente que há uma visão mais abrangente do que é patrimônio

cultural. Outro aspecto importante, destacado na Constituição de 1988, é a atribuição de

responsabilidade ao Estado que deverá garantir a valorização dos bens culturais dos

diferentes segmentos étnicos, o que foi inovador naquele momento: “o Estado protegerá

gestão do patrimônio cultural, visando construção conjunta entre o Sistema Nacional do Patrimônio Cultural e da Política Nacional do Patrimônio Cultural.

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as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros

grupos participantes do processo civilizatório nacional” (BRASIL, 1988, Art. 215).

No caso de São Paulo, além da Constituição de 1988, outro documento

importante que rompeu paradigmas estabelecidos na preservação do patrimônio foi a

Resolução “O Direito à Memória Patrimônio Histórico e Cidadania” (1992), publicado pela

Prefeitura de São Paulo e resultante do congresso promovido pelo Departamento do

Patrimônio Histórico da cidade de São Paulo (DPH)16, que ocorreu em São Paulo nos

dias 11 e 16 de agosto de 1991. Este documento referia-se ao conceito de patrimônio

histórico e cultural, argumentando-se que o “direito à memória” não estava sendo

devidamente considerado nas políticas públicas de preservação do patrimônio histórico

cultural.

O documento, em seu 4° parágrafo, afirma: “[...] qualquer destruição deverá

passar pela avaliação da sociedade civil e ser justificada como benefício social” (DPH,

1992, Art. 13). Este trecho é primordial para entender o valor atribuído à participação da

sociedade em geral no processo de construção das políticas públicas de memória, não

somente da classe dominante.

O arquivo a todo momento refere-se à participação da sociedade civil e também

propõe incentivos para preservação do patrimônio histórico e cultural em suas diferentes

modalidades através da isenção de impostos, por exemplo. Além dessas questões, o

artigo em seu 10° parágrafo inclui o patrimônio ambiental urbano nas políticas de

proteção que “[...] deverá estar inserido nas políticas de desenvolvimento e em especial

nos projetos de renovação urbana” (DPH, 1992, Art. 13).

Já o 11° parágrafo da Resolução valoriza a conjugação democrática de diversos

aspectos das experiências humanas que se sobrepõem ao monumento e sua

materialidade:

[...] a política de preservação deve contemplar a convivência democrática entre o passado e o presente, entre os aspectos arquitetônicos, urbanísticos, sociais e culturais das experiências humanas nas cidades, em detrimento de monumentos isolados que, quase sempre, são reiteradores de uma memória oficial. (DPH, 1992, Art. 13)

O documento pode ser considerado inovador no momento em que incentiva a

participação popular nas questões relativas à memória e nas ações que viabilizam essa

16 De acordo com o site da Prefeitura de São Paulo, o DPH, “através de sua Divisão de Preservação [...] realiza pesquisa e difusão de informações sobre a formação histórica e territorial da cidade. [...] atua como órgão técnico de apoio à ação do CONPRESP” (SMC, 2004, online).

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preservação. O fortalecimento recente do papel do cidadão nos processos de

apropriação do espaço e do patrimônio é evidenciado por Tali Hatuka no livro Patrimônio

Cultural: Memória e Intervenções Urbanas: “[...] atualmente o cidadão é visto como

agente ativo, que participa do desenvolvimento do ambiente construído [...] O cidadão

tornou-se ponto de referência, um ator, um indivíduo participando do processo de criação

do lugar” (HATUKA, 2017, p. 50).

Por outro lado, outro exemplo de incentivo à participação ativa da sociedade e

apoio à ação municipal está descrito na Constituição e confere ao poder municipal a

competência exclusiva de ordenamento do território por meio de Planos Diretores. O

Plano Diretor é uma lei municipal que orienta e cria diretrizes para o desenvolvimento das

cidades e pode ser visto como ferramenta de planejamento, viabilizando soluções para

produção do espaço urbano, público ou privado, visando a garantia de uma melhor

qualidade de vida do cidadão que usufrui do espaço.

Vale salientar que também é recente a criação de instrumentos que contemplam a

preservação de bens culturais de ordem imaterial ou intangível. Por meio do Decreto n°

3.551, de 2000, finalmente se “institui o Registro de Bens de Natureza Imaterial que

constituem patrimônio cultural brasileiro” (BRASIL, 2000, online). É evidente a

importância da proteção jurídica do que é considerado um bem cultural da sociedade. O

decreto de 2000 inaugura a forma jurídica de proteção de manifestações intangíveis,

como eventos, saberes ou formas de expressão, o que seria um progresso na forma de

lidar com o que é imaterial.

Além do tombamento como instrumento jurídico de proteção do poder público

sobre o patrimônio material, outras formas possíveis de preservação passam a ser

contempladas, também previstas na Constituição de 1998:

O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e outras formas de acautelamento e preservação. (BRASIL, 1988, Art. 216)

As etapas das ações de preservação consistem em, primeiramente, identificar o

bem através de um inventário, em seguida reconhecer o bem material através do

tombamento, e o imaterial através do registro, garantir a manutenção física através da

conservação e do restauro e valorizar esse bem através de diversas ações, entre elas, a

educação patrimonial.

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Essas ações são resultantes do processo de atribuição de valor pelos órgãos de

preservação que se traduzem nas justificativas dadas ao se definir um bem material ou

imaterial como patrimônio.

Como citado anteriormente, o intuito do presente trabalho é entender as diversas

iniciativas e respostas dadas a preservação de lugares de memória difícil. Até o momento

foi feito um panorama do processo de ampliação do conceito de patrimônio que agora

contempla valores intangíveis e se relaciona aos diversos grupos que compõem a

sociedade brasileira.

Esta análise foi necessária, pois essa mudança de visão influenciou diretamente

nos critérios adotados para o tombamento de determinados monumentos e edifícios, que

agora não valorizam somente o tangível, e sim o intangível, e as memórias sociais

vinculadas a certos lugares. Neste cenário mais recente, surgem alguns tombamentos

ligados a lugares de memória que representam passados de violações aos direitos

humanos. No Brasil, esse enfrentamento ao passado de dor tem um recorte muito

específico que é a sua ligação com o período da ditadura militar, como veremos a seguir.

2.3. As memórias difíceis chegam ao Brasil: o direito à verdade

No Brasil, o conceito de lugares de memória é recente e o processo de

memorialização e intervenção em lugares de memória dolorosa ainda é tímido. De acordo

com o arquiteto Renato Cymbalista17 (2017), os últimos dez anos estão sendo marcados

por um novo olhar para a herança material do passado a partir de histórias traumáticas.

Na América Latina, a questão da memória traumática está focada nos regimes

autoritários ocorridos entre as décadas de 1960 e 1980, período onde foram cometidos

diversos crimes de violações aos direitos humanos, abusos do poder do Estado, tortura,

terrorismo, perseguição e ocultamento de corpos de ex presos políticos, por exemplo.

Antes desse momento não haviam significativas produções de livros e debates sobre

passados de dor. O final da ditadura e o processo de transição para democracia pode ser

dividido em dois momentos cruciais, sendo o primeiro repleto de tentativas de

apagamentos/esquecimentos e o segundo com um teor forte de denúncia.

17 Renato Cymbalista é arquiteto e urbanista, mestre e doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), com pós-doutorado em História pela UNICAMP. Atualmente é docente do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto e está constantemente envolvido em discussões sobre lugares de memória. De 2012 a 2016, uniu-se a um grupo de pesquisadores da USP no Núcleo de Apoio à Pesquisa “São Paulo: cidade, espaço, memória”, no intuito de criar um campo de pesquisas e discussões em torno da cidade de São Paulo e seus dilemas sociais.

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Segundo Cymbalista (2017), até a década de 1990 a sociedade parecia pouco

preocupada em lembrar de um passado recente e trágico, suas narrativas, experiências e

lugares que remetiam à ditadura. Os setores políticos estavam mais atentos à divulgação

de novas campanhas para ocupação de cargos na Presidência da República no período

de redemocratização e os algozes responsáveis por tantas atrocidades saíram ilesos sem

ao menos serem julgados.

Naquele momento, havia uma ansiedade geral em relação as mudanças que

ocorreriam na sociedade diante de um cenário de transformações como o

desenvolvimento da tecnologia e a fé no progresso, além de existir a possibilidade de

uma guerra nuclear, devido à Guerra Fria18. A sociedade estava mais preocupada com o

que estava por vir e não pelo que havia passado. Esse comportamento limitou a

apuração de crimes da ditadura - além dos interesses políticos não interessados neste

tipo de investigação - e dificultou o processo de constituição de uma memória daquele

período.

Por outro lado, foi crescendo no Brasil a necessidade, em certos grupos sociais,

de enfrentar as problemáticas do passado, lidando com lugares de memória do regime

autoritário, denunciando violações dos direitos humanos, refletindo sobre o que ocorreu e

comparando com o presente, a fim de enunciar seus direitos. As experiências

internacionais também influenciaram uma conjuntura de visibilidade das vítimas de

repressão do Brasil e de todos que lutaram para que a memória dos tempos de guerra

não fosse esquecida. Neste contexto, surge um processo embrionário de grupos de

ativistas, principalmente os familiares de ex-presos políticos, que foram se interessando

por esse passado e procurando esclarecer e estudar todas as questões que o envolvia,

esse grupo necessitava de medidas políticas que os amparasse no intuito do

estabelecimento da justiça.

O direito à memória e à verdade são essenciais para o processo de

democratização e direito à cidadania. A memória coletiva nada mais é do que uma

interpretação do passado de acordo com os dilemas éticos, valores culturais e

conveniências políticas de uma determinada sociedade:

A memória e a verdade são princípios essenciais do direito positivo brasileiro, estes compreendidos desde o direito a preservação da identidade cultural dos povos até o direito à informação, essenciais para

18 A Guerra Fria foi um período de tensão entre os socialistas da União Soviética (URSS) e os capitalistas dos EUA (1947 a 1991) que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial. O conflito era ideológico e os países não chegaram a um confronto armado. O período tem como principal acontecimento a corrida armamentista.

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a formação do estado democrático de direito. (MIRANDA; MELO, 2018, online)

Marcado por abusos no período do regime militar e violações aos direitos

humanos, o processo de redemocratização caracterizou-se por ser um período de

mudanças em que cada vez mais se via necessário responsabilizar crimes do passado

ditatorial brasileiro. De acordo com artigo de Andrea de Miranda19 e Ezilda de Melo20, O

Direito à Memória e à Verdade como Direitos Essenciais ao Processo de

Democratização do País, esse período é conhecido como justiça de transição ou justiça

transacional21 em que é importante estabelecer mecanismos para o enfrentamento da

herança de violência do passado e atribuir responsabilidades aos Estados.

A justiça de transição além de exigir que o direito à verdade e à memória seja

efetivo, deve investigar os perpretadores das atrocidades da ditadura, através do

desenvolvimento de reparações para o fortalecimento de instituições democráticas a fim

de denunciar crimes do passado e garantir que estes não se tornem práticas comuns no

âmbito social.

No caso do Brasil, algumas iniciativas no intuito de reparar o que havia acontecido

foram tomadas. De acordo com Miranda e Melo (online), existem quatro obrigações

comuns para os Estados que tornam o processo de justiça de transição mais efetivo:

[...] adotar medidas razoáveis para prevenir violações de direitos humanos; oferecer mecanismos e instrumentos que permitam a elucidação de situações de violência; dispor de aparato legal que possibilite a responsabilização dos agentes que tenham praticado as violações e; garantir a reparação das vítimas, por meio de ações que visem à reparação material e simbólica. (MIRANDA; MELO, 2018, online)

Hoje existe o Centro Internacional de Justiça de Transição (ICTJ)22, Organização

Não Governamental (ONG) que oferece assistência a países que sofreram com os

regimes autoritários e destaca o foco da justiça de transição como sendo: memória,

verdade e justiça. Além disso, o ICTJ ampara famílias das vítimas e sinaliza que essas

19 Mestre, doutora e professora em Direito Público e Coordenadora do grupo de pesquisa “História, Memória e Verdade”, da Faculdade Ruy Barbosa, Bahia.

20 Mestre, doutora e professora em Direito Público e Coordenadora do grupo de pesquisa “História, Memória e Verdade”, da Faculdade Ruy Barbosa, Bahia. Advogada e historiadora.

21 Conjunto de medidas políticas utilizadas para reparação de crimes de violações aos direitos humanos, atribuindo responsabilidades, exigindo o direito à memória e à verdade, fortalecendo instituições democráticas e evitando que tais atrocidades do massacre do passado se repitam.

22 ICJT na sigla em inglês, fundada em 2001, a organização sem fins lucrativos é dedicada a responsabilizar as atrocidades e abusos do Estado aos direitos humanos no processo de redemocratização e justiça transacional.

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medidas não são exaustivas e que devem ser estabelecidas para o desenvolvimento

mais efetivo da democracia.

No Brasil, os crimes e atrocidades cometidos pelo Estado, como, por exemplo,

ocultamento de corpos, sequestros, tortura e terrorismo não foram julgados efetivamente

pela justiça criminal. A penalidade seria essencial para a consolidação da democracia.

Porém, é válido destacar algumas iniciativas/ações e políticas públicas que procuraram

de certa forma denunciar o que aconteceu no passado, tais como a criação da Lei de

Anistia em (1979); a publicação do livro Brasil: Nunca Mais (1985) pela Arquidiocese de

São Paulo e iniciativa de dom Paulo Evaristo Arns23; a descoberta e investigação da Vala

de Perus (1990); a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (Lei

9.140/1995); a Comissão da Anistia (Lei 10.559/2002); a publicação do livro Direito à

Memória e à Verdade (2007), realizada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da

Presidência da República e, por último, Comissão da Verdade (2012).

A partir de 1985, fim do período da ditadura, as políticas públicas passam a focar

nas violações aos direitos humanos como denúncia de um passado de atrocidades.

Porém, em 1979, com a criação da Lei de Anistia (Lei 6.683), pode-se dizer que o Brasil

deu os primeiros passos no processo de redemocratização, sendo essa um marco no

processo de abertura política.

2.3.1. A Lei da Anistia e a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça

A criação da Lei da Anistia, durante governo do presidente João Baptista

Figueiredo24, tinha o intuito de reverter punições aos cidadãos brasileiros que, entre os

anos de 1961 e 1979, foram considerados criminosos políticos durante o regime ditatorial.

A lei permitiu a volta dos exilados e familiares ao país e o reestabelecimento dos direitos

políticos, porém ainda não havia nenhuma lei com o intuito de punir os criminosos do

regime e a anistia acabou por nivelar vítimas e algozes, não responsabilizando os

perpetradores pelos crimes cometidos. De acordo com o 1º parágrafo da Lei 6.683, de 28

de agosto de 1979:

É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus

23 Arcebispo de São Paulo em 1970, utilizou seu prestígio católico para denunciar publicamente os abusos da ditadura militar. É considerado principal figura católica de oposição ao regime militar.

24 João Baptista Figueiredo foi o 30° Presidente do Brasil e último presidente do período da ditadura militar, entre os anos de 1979 a 1985.

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direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares e outros diplomas legais.

Figura 01 - Anistia pelo cartunista e chargista Ziraldo25. Fonte: MAGNONI, 2014, online.

Figura 02 - Passeata de pedido de anistia, c.1979. Fonte: ACERVO GLOBO, 2014, online.

25 Ziraldo, brasileiro, é um famoso chargista, cartunista, desenhista e jornalista que lutou contra a ditadura através de suas charges. Em 1969, como membro do jornal “O Pasquim”, utilizou páginas para o enfrentamento da ditadura. Atualmente foi indenizado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justição por ter sido alvo de perseguição política no regime autoritário.

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Figura 03 - A faixa na escadaria da Câmara de Vereadores no Rio de Janeiro, c.1979. Fonte: ACERVO GLOBO, online.

Em 2002, após a criação da Comissão de Anistia no Ministério da Justiça (2001),

foi criada uma lei com o intuito de ampliar os direitos dos anistiados (Lei nº 10.559), que

vale para o período de 1946 a 1988 e com o foco em pessoas que foram punidas por

suas preferências políticas. De acordo com site do Ministério da Justiça do Governo

Federal:

[...] muito além da dimensão individual de reconhecer a cada requerente sua condição de anistiado político e o direito às reparações morais e econômicas, compensando prejuízos causados pelo arbítrio estatal, o Ministério da Justiça, por meio da Comissão de Anistia, tem cumprido a função pública de aprofundar o processo democrático brasileiro a partir da busca de valores próprios da Justiça de Transição: o direito à reparação, à memória e à verdade. (GOVERNO FEDERAL, online)

O intuito da Comissão é o de informar por meio de projetos de educação,

cidadania e memória, apurando violações em lugares de memória, aprofundar o processo

de democracia e intercâmbio de práticas com países do Hemisfério Sul.

Sob essa ótica e neste contexto, foram surgindo, aos poucos, algumas iniciativas

que buscavam simbolizar efetivamente a ruptura com esse passado traumático, através

da denúncia do passado de crimes.

2.3.2. Brasil: Nunca Mais

A década de 1980 foi marcada por diversas manifestações populares de denúncia

à ditadura. Durante este período surgiram as primeiras políticas públicas de defesa aos

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direitos humanos e preservação da memória. Esse período de voz, foi marcado pela

publicação do livro Brasil: Nunca Mais feita pela pela Arquidiocese de São Paulo que

inaugurou as ações de memorialização do regime militar em um processo de

redemocratização.

O documento foi elaborado através da iniciativa de advogados de defesa e ex

presos políticos, além de historiadores e jornalistas. Lançado em 1985 e idealizado pelo

cardeal arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, o livro apresenta diversos

processos da Justiça Militar que comprovam crimes cometidos durante a ditadura militar

desde 1964, expondo os métodos de tortura utilizados na época:

[...] que o método de tortura foi institucionalizado em nosso País e, que a prova deste fato não está na aplicação das torturas pura e simplesmente, mas, no fato de se ministrarem aulas a este respeito, sendo que, em uma delas o Interrogado e alguns de seus companheiros, serviram de cobaias [...] à concomitância da projeção de “slides” sobre torturas elas eram demonstradas na prática, nos acusados, como o interrogado e seus companheiros, para toda a platéia. (VIEIRA, 1970, apud ARNS et al., 1985, p. 31)

Figura 04 - Capa do livro Brasil: Nunca Mais, s/d. Fonte: Acervo Pessoal.

Este documento incentivou a construção de uma consciência coletiva em torno

das políticas de repressão ditatorial e dos sobreviventes do período e pode ser utilizado

como estratégia educativa através da sistematização de denúncias contra violações aos

direitos humanos. O livro apresenta diversos relatos de torturados da época que

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descreveram os métodos de tortura e agressão, denunciando o abuso do Estado e a

violência institucionalizada. Seguem abaixo alguns trechos do livro que descrevem a

violência dos métodos de tortura:

O “pau de arara”

[...] O pau-de-arara consiste numa barra de ferro que é atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, sendo o “conjunto” colocado entre duas mesas, ficando o corpo do torturado pendurado a cerca de 20 ou 30 cm. do solo. Este método quase nunca é utilizado isoladamente, seus “complementos” normais são eletrochoques, a palmatória e o afogamento. (GALVÃO, 1970, apud ARNS et al., 1985, p. 34)

[...]

A “cadeira do dragão”

[...] sentou-se numa cadeira conhecida como cadeira do dragão, que é uma cadeira extremamente pesada, cujo assento é de zinco, e que na parte posterior tem uma proeminência para ser introduzido um dos terminais da máquina de choque chamado magneto; que, além disso, a cadeia apresentava uma travessa de madeira que empurrava as suas pernas para trás, de modo que cada espasmo de descarga as suas pernas batessem na travessa citada, provocando ferimentos profundos; [...] (ALMEIDA, 1975, apud ARNS et al., 1985, p. 37)

O que é inédito no livro é a forma como as narrativas dos ex-presos políticos

contribuem para a constituição de uma memória lacinante, através de relatos íntegros

que chocam os leitores diante de tamanha perversidade humana. O que fica evidente nos

relatos é a violência dos métodos de tortura refletidos no “pau de arara” e na “cadeira do

dragão”, entre outros.

O documento apresenta de forma escancarada e fiel os diversos métodos de

tortura que foram utilizados em pessoas com ideais políticos diferentes aos do regime

militar e gera revolta nos leitores, inclusive de pessoas que não foram protagonistas

daquela época e que não viveram o período da ditadura militar:

A “geladeira”

[...] que foi colocado nu em um ambiente de temperatura baixíssima e dimensões reduzidas, onde permaneceu a maior parte dos dias que lá esteve; que nesse mesmo local havia um excesso de sons que pareciam sair do teto, muito estridentes, dando a impressão de que os ouvidos iriam arrebentar. (RIBEIRO, 1977, apud ARNS et al., 1985, p. 37)

[...]

Insetos e animais

[...] que lá na P. Ex. existe uma cobra de cerca de dois metros a qual foi colocada junto com o acusado em uma sala de dois metros por duas noites; [...] (PIRES, 1973, apud ARNS, 1985, p. 39)

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Figura 05 - Imagem do método de tortura “pau-de-arara”, s/d. Fonte: HISTÓRIA DIGITAL, online.

Figura 06 - Imagens do método de tortura “cadeira do dragão”, s/d. Fonte: HISTÓRIA DIGITAL, online.

O importante no livro é que, através da denúncia e das descrições de tortura na

íntegra, as narrativas criam um sentimento de revolta nos leitores da obra que não

necessariamente viveram o período da ditadura, mas que se aproximam dos relatos e

criam um sentimento de empatia com os torturados. Hoje, após mais de trinta anos do

regime militar, o livro ainda é utilizado como embasamento para denúncia de crimes

cometidos na época e como ação educativa para atual juventude na forma de prevenção

de ações como essas em âmbito social no intuito de evitar que atrocidades cometidas no

regime ditatorial se repitam.

A obra, através de relatos de uma parcela dos perseguidos políticos submetidos à

tortura, apresenta provas de ação dos terrorismos de Estado a partir de 1964. A utilização

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de fontes oficiais dos arquivos do Supremo Tribunal Militar26 mostra que a ditatura

acabou por documentar essas violações e o livro é a prova disso. O documento refletiu

sobre os limites da transição brasileira no processo de redemocratização que ainda é

pauta das questões relacionadas à ditadura.

O livro, logo após sua publicação, foi uma das obras mais vendidas do país

(BUCCI, 2015) e considerado um obstáculo para aqueles que tinham o intuito de apagar

o passado e esconder os crimes cometidos, desempenhando papel decisivo para “abrir

os olhos” da sociedade que necessitava da percepção do que havia acontecido nos

cárceres.

2.3.3. A Vala de Perus

Em 1990, no Cemitério Dom Bosco no bairro de Perus, periferia de São Paulo,

descobriu-se que havia uma vala clandestina com 1.049 ossadas acondicionadas em

sacos plásticos não identificadas, que posibilitou a investigação de crimes do regime

militar. De acordo com o livro “Vala Clandestina de Perus. Desaparecidos Políticos um

capítulo não encerrado da História Brasileira”27, publicado em 2012, a então prefeita

Erundina28 afirmou que o governo iria se responsabilizar pela investigação do caso:

Na condição de prefeita da cidade, ao ser informada sobre aquele fato inusitado desloquei-me imediatamente para o cemitério, a fim de assumir pessoalmente o controle da situação e declarei, naquela ocasião, o compromisso do nosso governo de investigar e revelar toda a verdade a respeito de fatos tão graves. (ERUNDINA, 1990, apud SOUSA, 2012, p. 21)

Após esse fato, surgiram diversas ações de escavação que tinham o intuito de

apurar o que havia acontecido em Perus, organizadas pela Comissão Parlamentar de

Inquérito Perus – Desaparecidos Políticos (CPI - Perus) na Câmara Municipal de São

Paulo, que ouviu diversos relatos de torturados e vítimas dos crimes cometidos pelo

Estado, buscando provas de atuação clandestina. Essa iniciativa incentivou outros

movimentos de descobertas de diversas valas em diferentes estados do país. O processo

de escavar, com o apoio do Instituto Médico Legal (IML), possibilitou a investigação dos

métodos utilizados para ocultamento de cadáveres.

26 O Supremo Tribunal Federal é considerado a mais alta instância do Poder Judiciário.

27 Publicação com o apoio do Governo Federal do Brasil, Instituto Macuco, Projeto Marcas da Memória, Comissão da Anistia e Ministério da Justiça, o livro tem o intuito de mostrar a história da repressão por meio do direito à verdade.

28 Atualmente Erundina é deputada federal desde 1999. Foi a primeira prefeita do Estado de São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores (PT) em 1988, período de redemocratização pós Ditadura Militar.

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A repercussão dessas descobertas favoreceu a investigação no IML de São Paulo

que foi organizada pelos familiares dos ex-presos políticos que tinham o intuito de

denunciar esses crimes e esperança de encontrar os corpos de seus parentes. Em 1991,

durante o Governo Collor29, a pedido dos familiares, o Estado promoveu o acesso aos

arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) que teve como

consequência a Promulgação da Lei dos Mortos e Desaparecidos Políticos (Lei nº 9.140),

em 1995, e a Criação da Comissão dos Direitos Humanos do Congresso Nacional.

Figura 07 - Retirada das 1.049 ossadas da Vala Clandetina, c. 1993. Fonte: VIGNERON, online.

As imagens dos coveiros desenterrando diversos sacos de ossos foram

divulgadas na televisão, cinemas e jornais e gerou grande comoção nacional. No final do

governo da prefeita Luiza Erundina (1989 a 1993), havia uma preocupação

principalmente dos familiares da possibilidade de paralisação das investigações sobre as

ossadas de Perus.

Figura 08 - Descoberta Vala Clandestina no Cemitério Dom Bosco, c. 1993. Fonte: VIGNERON, online.

29 Fernando de Collor de Mello foi o 32° Presidente do Brasil, de 1990 até sua renúncia em 1992.

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2.3.4. Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos

De acordo com a Lei n° 9.140 de 1995, foi criada a Comissão Especial de Mortos

e Desaparecidos Políticos (CEMDP), com o apoio dos familiares de ex-presos políticos e

desaparecidos em lutas por medidas de transição. O intuito desta organização do Estado

foi o reconhecimento de pessoas desaparecidas durante o período da ditadura militar,

através da localização de corpos desaparecidos durante a repressão, além de analisar os

requerimentos das famílias dessas vítimas e dar um parecer em relação a possível

indenização dessas pessoas, oficializando período fundamental que faz parte da história

do Brasil.

De acordo com o site da Comissão, o intuito é a investigação de valas

clandestinas e identificação das ossadas de diversos presos políticos não somente em

São Paulo, como no caso da “Vala de Perus”, mas também em outros estados:

A Comissão está desenvolvendo projeto de busca, localização e identificação de restos mortais de mortos e desaparecidos políticos nos Estados do Pará e Tocantins, onde ocorreu a Guerrilha do Araguaia, em proposta de substituição ao Grupo de Trabalho Araguaia. No Estado de São Paulo, sua principal atividade é coordenar o Grupo de Trabalho de Perus, instituído pela Secretaria de Direitos Humanos, Unifesp e Prefeitura de São Paulo, que desenvolve ações para a identificação de restos mortais oriundos da “Vala Clandestina de Perus”. No Estado do Rio de Janeiro, acompanha e apoia pesquisas relacionadas à “Casa da Morte”, centro clandestino de detenção e tortura utilizado pela repressão no Município de Petrópolis. (COMISSÃO ESPECIAL DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS, online)

Como pode-se verificar, é através de experiências como a descoberta da “Vala de

Perus” que vão surgindo novas iniciativas de investigação de um passado injusto que

ainda não foi esquecido. A CEMDP continua atuando na investigação e na tentativa de

reconhecimento de ossadas, tendo sido feitas duas descobertas, desde 2014, de

ossadas de militantes mortos durante o regime militar. Seus parentes reuniram-se em

Brasília e receberam atestados de óbito com a mudança da causa da morte que ocorreu

em razão da ditadura militar, mostrando a luta dos familiares que ainda seguem em

busca da verdade.

Essas ações foram aos poucos estimulando novas formas de denúncia e

intervenções e o passado que, em um primeiro momento foi silenciado, quase apagado,

agora é um marco do direito à democracia por meio da justiça de transição e da garantia

do direito à memória e à verdade.

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Cymbalista (2017, p.236) cita a poetisa afro-americana Maya Angelou30 que, em

seu poema On the pulse of morning (1993), enfatiza: “Apesar de causar uma dor

lacinante, a História não pode ser des-vivida. Mas, se a enfrentarmos com coragem, ela

não precisa ser novamente vivida”.

2.3.5. “O Direito à Memória e à Verdade”

Iniciativa da Secretaria Especial dos Direitos Humanos31 contemplando o trabalho

de 11 anos da CEMDP, o livro O Direito à Memória e à Verdade, publicado em 2007,

tinha o intuito de resgatar a justiça, a memória e a verdade sobre os crimes de violações

aos direitos humanos praticados no regime ditatorial. O livro apresenta a história de

diversos militantes políticos, vítimas do período de 1961 a 1988. Os militantes foram

estudados caso a caso e para cada desaparecido há uma versão oficial da história. O

foco do documento é a contribuição para que o Brasil avance em questões relacionadas

aos Direitos Humanos.

A publicação do livro foi primordial para a divulgação dos crimes cometidos e

como forma de homenagear as vítimas da ditadura, que sofreram com os abusos de

poder do Estado.

“A Comissão da Verdade”

De acordo com a Lei federal n° 12.528/2011, foi instaurada em 16 de maio de

2012 a Comissão Nacional da Verdade no Brasil. Composta por sete membros

nomeados pela ex-presidente Dilma Rousseff e vítima das torturas do regime, tinha por

objetivo investigar violações de direitos humanos cometidos pelo Estado ou por grupos

envolvidos por conflitos armados, no período entre 1961 a 1988.

Essa investigação foi feita por meio de depoimentos de vítimas e testemunhas e

de agentes da repressão. Após a junção dessa documentação, a Comissão tinha como

dever entregar um relatório de suas conclusões sobre os assuntos e testemunhos

analisados, bem como fazer recomendações para evitar a sua repetição no futuro.

O objetivo seria ajudar a sociedade a entender e reconhecer eventos passados,

que fossem motivo de controvérsia e negação, e, ao fazê-lo, trazer conhecimento do

30 Nascida nos EUA Maya Angelou (1928-2014) foi poetisa, historiadora, escritora e ativista de direitos humanos.

31 Criada no ano de 1997, na estrutura do Ministério da Justiça, tem por objetivo garantir os direitos dos cidadãos através da normatização, coordenação e formulação de políticas de direitos humanos.

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público em geral, os testemunhos oculares e relatos das vítimas. Era uma iniciativa de

retorno ao passado, com olhos menos generosos aos algozes e finalmente tratando a

especificidade de cada lado na luta contra ou a favor do regime autoritário entre as

décadas de 1960 e 1980: “as Comissões da Verdade são instrumentos importantes para

se garantir à sociedade – como forma de resgate da cidadania – o direito a ter

conhecimento dos motivos pelos quais esses crimes foram cometidos no passado, num

regime distante do atual” (MIRANDA; MELO, online)

O ano de 2014 foi marcado pelos 50 anos do golpe que iniciou o regime militar no

Brasil, o que propiciou uma oportunidade maior de debate sobre esse período. Neste ano

surgiram diversas Comissões da Verdade com o intuito de desvendar crimes políticos

cometidos na época do regime. Os exemplos citados acima foram alguns entre uma

infinidade de ações que foram se desenvolvendo no intuito de demonstrar a verdade do

que ocorreu no passado da ditadura como direito à democracia. Sobre a verdade ainda é

necessário refletirmos, porém, todo cidadão deve ter direito à informação, valor

fundamental do exercício de cidadania.

Diante desse cenário, em que o que ocorreu passa a ser cada vez mais abordado

e questões como as da ditadura são evidenciadas como dilemas sociais que devem ser

enfrentados, o presente trabalho abordará a política de preservação de patrimônio em

São Paulo no que se refere a memórias difíceis por meio da análise de alguns

tombamentos que foram inovadores em relação a memória da ditadura militar.

Sob essa ótica e nesse contexto, foram surgindo algumas iniciativas que

buscavam simbolizar a importância de não esquecermos esse passado traumático, por

meio do reconhecimento, através do tombamento, de lugares caracterizados pela

violência estatal do período ditatorial, conforme veremos a seguir.

2.4. Memórias Difíceis nas Políticas de Preservação do Patrimônio em São Paulo

Os primeiros casos de tombamento de lugares de memórias difíceis - ou seja, em

que se explicitavam valores relacionados à memória traumática ou de dor - se deram, em

São Paulo, a partir da década de 1980, período de mudanças em relação ao conceito de

patrimônio e de visão dos órgãos de preservação, como vimos anteriormente. O primeiro

tombamento a ser estudado, refere-se ao Arco do Presídio Tiradentes, em 1972. Esse foi

seguido pelo DOPS e posteriormente pelo DOI-CODI,

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2.4.1. O Presídio Tiradentes

Na década de 1980 e diante das mudanças do conceito da ideia de patrimônio

que passa a considerar distintas memórias sociais, surge, como veremos a seguir, um

pedido de tombamento de caráter inédito que se referia a um lugar de memória e

consciência: o Presídio Tiradentes.

Localizado à Avenida Tiradentes e próximo à Pinacoteca do Estado de São Paulo,

o lugar é considerado emblemático no que diz respeito à repressão da ditadura na cidade

de São Paulo, ainda que no local não haja informações dessa memória que deveria ser

evocada, uma crítica frequente à sua preservação. Os edifícios que compunham o antigo

presídio passaram por uma multiplicidade de usos durante aproximadamente dois

séculos de existência, porém o uso em destaque foi a carceragem dos presos políticos.

A Casa de Correção, mais tarde conhecida como Presídio Tiradentes, foi criada

em 1825, num cenário onde São Paulo possuía apenas uma cadeia pública que tinha

como sede o Paço Municipal. Em um primeiro momento, o foco do local seria a prisão de

escravos.

Figura 09 - Antiga “Casa de Correição” de São Paulo, s/d. Fonte: PINTEREST, online.

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Figura 10 - “Casa de Correição” de São Paulo, s/d. Fonte: WIKIPEDIA, online.

No século XX, em 1935, o espaço foi transformado em Casa de Detenção, devido

ao contexto de grande violência sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB)32 e a Aliança

Nacional Libertadora (ANL)33 , recebendo diversos presos políticos. O edifício passou por

um processo de deterioração devido à superlotação do lugar e, durante o Estado Novo,

alguns famosos foram presos ali, como Monteiro Lobato por exemplo:

A despeito das imposições do sistema penitenciário, o Presídio Tiradentes foi um espaço de resistência. Ali, os prisioneiros políticos cuidavam para que o cotidiano fosse repleto de atividades físicas, de lazer e culturais para usufruírem melhor de seu tempo e combater o isolamento típicos do sistema carcerário. (TELES, 2011, p. 220)

Em maio de 1973, devido às obras da linha azul do metrô, o edifício foi

desativado. Nesse momento, houve uma vistoria no local que verificou que o antigo

presídio poderia desabar devido à precariedade do local. Na época e, de acordo com

Teles (2011), alguns presos foram transferidos para o Presídio do Hipódromo e outros

para a Casa de Detenção do Carandiru. Após a demolição do edifício, restaram poucos

vestígios do lugar como o arco da entrada do presídio, construído por volta de 1930.

32 Desde 1922, o Partido Comunista Brasileiro é formado por militantes que defendem as bandeiras marxistas-leninistas. 33 Fundada em 1934, a ALN foi uma organização de esquerda e antifascista.

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Figura 11 - Antigo Presídio Tiradentes antes de sua demolição, s/d. Fonte: PINTEREST, online.

Na década de 1980, num contexto de mudança de visão da sociedade brasileira,

o portal foi tombado pelo CONDEPHAAT, que lhe atribuiu valor pelo seu caráter

simbólico que representa um período de violência institucionalizada do Estado. A

solicitação do tombamento foi feita pelo Sindicato dos Jornalistas que justificaram o

pedido alegando a necessidade de se manter a história política no Brasil através da

preservação de um monumento que representasse o passado de repressão estatal e as

manifestações de resistências.

A historiadora Marly Rodrigues, em seu livro Imagens do Passado (1999)34,

destaca um trecho do processo de tombamento pelo CONDEPHAAT que fortalece o que

foi mencionado acima quanto ao momento em que se afirma a necessidade de se manter

a “memória de todos aqueles que, durante toda a história do Brasil, se colocaram ao lado

do povo na luta contra o arbítrio e a opressão” (RODRIGUES, 1999, p.101).

De acordo com a Resolução de Tombamento SC 59/85, do CONDEPHAAT,

datada de 25 de outubro de 1985 e publicada no Diário Oficial em 26/10/85, foram feitas

as seguintes considerações:

34 O livro procura fazer uma análise da relação da sociedade paulista com o seu passado e investiga as políticas de proteção do patrimônio em São Paulo.

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Artigo 1º - Fica tombado como bem cultural de interesse histórico o arco remanescente da demolição do ex-presídio Tiradentes, localizado na Avenida Tiradentes esquina com a Praça Fernando Prestes, nesta Capital, pelo valor simbólico que representa na luta contra o arbítrio e a violência institucionalizadas em nosso país em passado recente.

Na esfera municipal de preservação, o remanescente do presídio foi tombado por

meio da Resolução n° 05/CONPRESP/1991, que tratou dos tombamentos ex-offício de

89 bens já realizados pelo CONDEPHAAT e pelo IPHAN, incluindo, no seu item 70, o

“Portal de Pedra, em forma de arco - Avenida Tiradentes, esquina com a Praça.

Fernando Prestes - Luz”.

É importante salientar que, apesar do DPH, órgão técnico que subsidia as

decisões do CONPRESP, ter sido criado em 1975, o CONPRESP foi criado somente em

1985, sendo que o primeiro tombamento municipal só ocorreu em 1988, ou seja, vinte

anos após a criação do CONDEPHAAT e cerca de 50 anos depois do IPHAN. Dessa

forma, o CONPRESP resolve tombar ex-offício os bens já protegidos na cidade de São

Paulo pelos outros órgãos, pois não tinha sentido o órgão municipal fazer novos estudos

de tombamento de bens culturais já reconhecidos, significativos, portanto, para a história

e memórias da cidade. Entre eles, já havia sido reconhecido o remanescente do Presídio

Tiradentes, tombado em 1985 na esfera estadual.

Em 1985, de acordo com Janaina Teles (2015, p. 201), quando se completava 10

anos do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, foi colocada no Portal de Pedra uma

placa de bronze que afirmava: “a todos os homens e mulheres que, no Brasil, ao longo da

História, lutaram contra a opressão e a exploração - pela liberdade”.

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Figura 12 - Antigo Presídio Tiradentes depois de sua demolição, olhando em direção ao Quartel da Luz, 2018. Fonte: Acervo pessoal.

O arco com a placa por anos foi visitado por familiares de ex-presos políticos que

depositavam flores no local, porém, anos mais tarde, a placa foi roubada e não se sabe

se foi pela oposição ou mesmo pelo seu valor, por ser de bronze. Atualmente o portal

continua sem identificação e não faz referência ao passado de violência aos direitos

humanos enraizados naquele local, inclusive o monumento está pichado e sem

conservação (Figura 12). Diante deste cenário, surge a discussão da real função do

tombamento do portal no sentido de transmitir as histórias da ditadura militar:

A despeito dos esforços de preservação do Portal do Presídio Tiradentes atualmente ele faz parte do circuito turístico da cidade [...] o local que o abriga volta à sua condição de sombra do passado e ruína "invisível" para a maioria da população. (TELES, 2015, p. 204)

Ao analisar o tombamento e a justificativa dada que considera “o valor simbólico

na luta contra a violência institucionalizada”, seria dever do Estado a propagação desta

memória de maneira efetiva. Quem passa pelo local e não sabe a história do arco, não

terá acesso a nenhuma informação da história enraizada naquele lugar, pois não há um

incentivo à memória.

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2.4.2. O DOPS

No que diz respeito à análise de lugares de memória relacionados ao período da

ditadura militar na cidade de São Paulo, cabe destacar o tombamento do Departamento

de Ordem Política e Social da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo

(DOPS/SP), conhecida por ser “uma das polícias políticas mais truculentas do país,

principalmente durante o regime militar” (Memorial da Resistência, s/d, online).

O prédio em que funcionou o DOPS, localizado no bairro da Santa Ifigênia na área

central da cidade de São Paulo, foi inaugurado em 1914, sendo projeto do prestigiado

arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo35, no intuito de ser sede administrativa

da Estrada de Ferro Sorocabana36, tendo funcionado também como estação para

embarque e desembarque de passageiros.

Em 1938, o prédio passou por reformas para se tornar sede do DOPS. Criado em

1914, foi órgão do governo brasileiro e responsável por controlar e reprimir movimentos

políticos e sociais de esquerda, tanto no período do Estado Novo quanto, mais tarde, no

da ditadura civil-militar instituída com o golpe de 1964. A função do órgão seria a de

assegurar e disciplinar a ordem militar no país e acabar com qualquer movimento que

fosse contra o regime de poder então estabelecido. Diversos crimes relacionados à

tortura e ocultamento de corpos foram praticados no DOPS, inclusive o órgão foi

responsável pela prisão e deportação da militante Olga Benário37 para Alemanha (1936),

além de prender nomes importantes da política como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da

Silva38, a ex-presidente Dilma Roussef39, o ex-governador de São Paulo, Mário Covas40,

entre outros.

A partir de 1983, com a extinção do DOPS em São Paulo, o prédio passou a

pertencer à Secretaria Estadual da Cultura, sofrendo uma reforma no seu interior e

fachada. Hoje parte do edifício é ocupado pelo Memorial da Resistência, com o intuito de

preservar as memórias difíceis relacionadas aos períodos de repressão política no Brasil,

35 Ramos de Azevedo (1851-1928) foi um importante e muito conhecido arquiteto brasileiro, responsável por obras emblemáticas, como, por exemplo, a Casa das Rosas e o Palácio das Indústrias, na cidade de São Paulo, bem como a Catedral de Campinas.

36Companhia Ferroviária Brasileira criada em 1807 que funcionou até 1971, sendo incorporada posteriormente à administração da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM).

37 Olga Benário (1908-1942), companheira de Carlos Prestes, foi uma militante comunista alemã, presa e perseguida durante a Ditadura.

38 35° Presidente do Brasil (2003-2011).

39 36ª Presidente do Brasil (2011-2016).

40 Governador do Estado de São Paulo (1995-2001).

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por meio de ações, programas e exposições que remetem a esse passado muito

debatido ainda nos dias atuais.

O referido Memorial (s/d, online) é uma instituição governamental, ligada à

Secretaria Estadual da Cultura, criado em 200941, e atualmente regido por uma

Organização Social, estando, desde seu início, vinculada a uma rede internacional de

preservação de memórias traumáticas ou difíceis:

Membro Institucional da Coalizão Internacional de Sítios de Consciência, uma rede mundial que agrega instituições constituídas em lugares históricos dedicados à preservação das memórias de eventos passados de luta pela justiça e à reflexão do seu legado na atualidade.

Figura 13 - Memorial da Resistência e antigo DOPS, 2018. Fonte: Acervo Pessoal.

Figura 14 - Entrada Memorial da Resistência, 2018. Fonte: Acervo Pessoal.

41 Ulpiano Bezerra de Meneses (2018, p.6) reconhece a importância dessa iniciativa: “(...) gostaria de prestar minha homenagem ao Memorial da Resistência, aqui em São Paulo, o primeiro a se inaugurar no país, em 2009 e que, por seus vários méritos, faz jus a reconhecimento e visitação”.

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O Memorial da Resistência é um espaço que reúne ações culturais e

educacionais, bem como programa de registro de relatos de ex-presos políticos, vítimas,

familiares e protagonistas principalmente do período da ditadura iniciado em 1964,

marcante na história da segunda metade do século XX. Desta forma, desenvolve ações

que visam educar, conscientizar, transformar e incentivar a pesquisa no que diz respeito

ao período ditatorial por meio do enfrentamento do trauma e da participação popular para

construção de uma nova história, mais justa e digna.

O Memorial da Resistência foi um dos espaços precursores no enfrentamento de

lugares de memória da ditadura no Brasil. O edifício passou por um agitado processo de

tombamento na esfera estadual que teve início em 1976 e que se concretizou em 1999 e

que, apesar da Resolução de Tombamento fazer menção ao valor histórico e da memória

do edifício ligado aos opressores, ele foi valorizado pela sua arquitetura, o que o difere do

reconhecimento de valor do conjunto da OBAN e DOI-CODI analisado anteriormente.

A história das intervenções no edifício carrega tentativas de apagamentos e

necessidade de legitimação das narrativas das vítimas do regime militar. Atualmente, o

Memorial atrai uma diversidade de curiosos que o visitam com o intuito de entender o que

aconteceu e, também, por empatia com as pessoas que sofreram naquele período.

Como dito anteriormente, o prédio foi inaugurado para abrigar a sede

administrativa da Estrada de Ferro Sorocabana, sendo sua construção de estilo eclético,

baseado na arquitetura inglesa do século XIX, estrutura de ferro e revestimento de tijolos

vermelhos. Em um segundo momento, no período de 1940 a 1983, abrigou o

Departamento Estadual de Ordem Política e Social e atualmente seu uso é destinado ao

Memorial da Resistência, passando por diversas reformas até sua constituição atual.

Em 1990, após reforma polêmica que gerou discussões sobre o dano da essência

e autenticidade do edifício, o museu hoje é gerido pela Organização Social Associação

Pinacoteca de Arte de Cultura (APAC)42 e é um dos mais visitados do Estado de São

Paulo, sendo também um dos principais protagonistas no que diz respeito às ações de

preservação da memória traumática, sendo influenciador de museus de outros estados.

Estes aspectos serão estudados no próximo capítulo de forma mais detalhada.

Em 1976, iniciou-se o tombamento estadual da edificação de acordo com o

processo administrativo nº 20151/76. Na época, o pedido referia-se ao edifício da antiga

Estrada de Ferro Sorocabana e, por ausência de material para elaboração de parecer

42 Criada em 1992, a APAC é uma sociedade civil de direito privado que faz a gestão dos museus da Pina_Luz, Pina_Estação e Memorial da Resistência.

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técnico, acabou sendo arquivado. Já na década de 1980, o edifício foi incluído como

parte da mancha urbana, de interesse de preservação, dos Campos Elíseos, de acordo

com o processo nº 24506/86.

Ressalte-se que, apesar de ter sido um lugar de memória traumática de regimes

opressores, o seu tombamento refere-se principalmente à arquitetura da antiga Estação

da Estrada de Ferro Sorocabana, tendo o órgão estadual de preservação atribuído o

valor à história da edificação, mais do que pelo valor da memória política, diferindo-se

dos tombamentos do Arco do Presídio Tiradentes e do antigo conjunto da OBAN e DOI-

CODI. Mas é importante enfatizar o fato de que a Resolução “dispõe sobre o tombamento

do edifício do antigo DOPS”. Ou seja, ela não denomina o bem cultural como os antigos

armazéns da estrada de ferro, como poderia ter feito considerando que o valor que

enfatiza, em seu texto, é o estético.

Com efeito, de acordo com a Resolução de Tombamento SC 28/88, do

CONDEPHAAT, datada de 08 de julho de 1999 e publicada no Diário Oficial em 09/07/99,

assim foi descrito o conjunto tombado:

Artigo 1º - Fica tombado como bem cultural de interesse para memória social paulista o edifício localizado na Praça General Osório [...] o “antigo DOPS”, construído para abrigar armazéns da Estrada de Ferro Sorocabana, foi ocupado parcial e e temporariamente pela direção da mesma empresa até o término das obras da Estação Júlio Prestes, de 1951 a 1953, o do estado e, em seguida, pelo DOPS, Departamento de Ordem Política e Social da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Foi projetado pelo Escritório de Ramos de Azevedo, sua importância arquitetônica é grande e decorre principalmente do seu partido arquitetônico. O espaço é definido de forma racional e organiza os ambientes, amplos, entre as prumadas verticais de circulação. Os sistemas estruturais adotados associam elementos modulares em ferro às duas torres de alvenaria portante e resolvem tecnicamente o espaço pretendido. No conjunto das celas, produto da ocupação dos edifícios pelo DOPS, reside parte significativa do seu valor histórico. Tal conjunto será preservado juntamente com os elementos originais do projeto. (CONDEPHAAT, RES. 28/88/1999)

Apesar do tombamento, neste caso, justificar-se pelo valor da arquitetura, há uma

tímida menção ao valor histórico traduzido no conjunto das celas do antigo DOPS, lugar

de grande repressão a presos políticos.

Já na esfera municipal, o edifício do DOPS e da antiga estação da Estrada de

Ferro Sorocabana foi inicialmente reconhecido e classificado, na década de 1970, como

Z8.200 - zona especial de preservação do patrimônio, integrando o processo de abertura

de tombamento de todas as Z8-200, indicado na Resolução nº 44/CONPRESP/1992. O

tombamento definitivo do imóvel ainda não foi concluído, e provavelmente seria

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encaminhado ao Conpresp, com proposta de proteção ex-offício de tombamento

realizado pelo Condephaat (informação verbal)43.

Todos os exemplos citados acima não têm nada em comum, do ponto de vista

arquitetônico-estético, mas sim o que os liga é a história que neles está enraizada, com

um recorte muito específico do período da ditatura militar. Verifica-se que é nas últimas

décadas que se tem uma preocupação maior com o enfrentamento de memórias

traumáticas e é a partir do processo de redemocratização que os lugares de memórias

difíceis ganham destaque.

Após a abordagem referente aos estudos de caso de tombamentos relacionados

ao período da ditadura e, posterioremente, a outros tipos de memória traumática, o

próximo capítulo terá como foco os desafios contemporâneos relacionados às

intervenções e ações nesses lugares de memória.

Diante da diversidade de lugares de memória difícil, existem variadas respostas

que se refletem em ações de distinta natureza, sejam elas no âmbito do monumento, do

edifício, da cidade ou até mesmo através de intervenções artísticas, rituais ou, mesmo,

manifestações sociais, como veremos a seguir.

2.4.3. O Conjunto da OBAN e DOI-CODI

Por fim, localizado à Rua Tutóia no bairro Vila Mariana, o conjunto das antigas

instalações da Operação Bandeirante (OBAN) e do Destacamento de Operações (DOI),

subordinado ao Centro de Operações de Defesa Interna (CODI), órgão oriundo de

organização clandestina do Estado, subordinado ao Exército, não apresenta atributos

arquitetônicos consideráveis que lhe confiram valor de patrimônio, tendo sido tombado

exclusivamente pela importância da memória a ela vinculada. Esta afirmativa tem como

base as considerações na Resolução que estabelece o seu tombamento.

43 Informação fornecida por técnico do DPH, o arquiteto Walter Pires, por telefone, em 19/09/2018.

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Figura 15 - O DOI-CODI e a ausência de atributos arquitetônicos, 2018. Fonte: Acervo Pessoal.

A Resolução de Tombamento SC 25, do CONDEPHAAT, datada de 12 de maio

de 2014 e publicada no Diário Oficial em 14/05/14, considera:

- Que os edifícios que abrigam o DOI-CODI constituem lugar de memória da repressão e da resistência à Ditadura Civil-Militar no Brasil entre 1964-1985;

- Que os edifícios representam a institucionalização do terrorismo de Estado. (CONDEPHAAT, RES. SC 25/2014)

O tombamento do DOI-CODI é um exemplo importante de atribuição de valor a

lugares de memória e que não se refere ao valor arquitetônico da edificação. Como se

verifica na Resolução, o tombamento se justifica pelo lugar estar vinculado à “memória da

repressão e da resistência à Ditadura Civil-Militar” e por representar a “institucionalização

do terrorismo de Estado”, através de suportes materiais que representa a memória do

período ditatorial, ou seja:

- Que representam testemunho material da história política recente;

- Que se trata de lugar simbólico de violação dos Direitos Humanos e privação de liberdade durante o período da Ditadura Civil-Militar;

- Que os edifícios ali remanescentes dão suporte físico à memória da repressão e da resistência.

- Que representam testemunho material da política recente;

- Que se trata de local simbólico de violação dos Direitos Humanos e privação de liberdade durante o período da Ditadura Civil-Militar;

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- Que os edifícios e espaços ali remanescentes são o suporte físico à memória da repressão e da resistência; [...] (CONDEPHAAT, RES. SC 25/2014)

A Resolução também destaca a necessidade de reparação do passado e cita a

importância da Comissão Estadual de Ex-Presos Políticos:

- Que o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), instituído pelo Decreto 7.037/2009 e atualizado pelo Decreto 7.177/2010, estabelece em sua Diretriz 24 a necessidade de Preservação da memória histórica e a construção pública da verdade, através da identificação e divulgação pública das estruturas, locais, instituições e as circunstâncias relacionadas à prática de violações de direitos humanos, suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;

- Que a preservação deste bem corrobora com as recentes políticas do Estado de São Paulo de reconhecimento e reparação através da Comissão Estadual de Ex-Presos Políticos, criada através da lei estadual 10.726/2001 e do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, criado pela Lei Estadual 7.576/91, com as alterações nela produzidas pela Lei Estadual 8.032/92 [...] (CONDEPHAAT, RES. SC 25/2014)

O antigo conjunto da OBAN e do DOI-CODI, três anos depois, foi tombado ex-

offício pelo CONPRESP.

Figura 16 - Mapa de tombamento da Resolução 10/CONPRESP/2017, com indicação dos elementos contemplados na proteção do antigo conjunto da OBAN e do DOI-CODI. Fonte:

CONPRESP, online.

De acordo com a 666ª Reunião Ordinária do CONPRESP, datada de 15 de maio

de 2017, os considerandos que serviram de base para o tombamento:

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Artigo 1º - TOMBAR EX-OFFICIO, nos termos do parágrafo único do artigo 7º da Lei nº 10.032 de 27 de dezembro de 1985, o CONJUNTO DAS ANTIGAS INSTALAÇÕES DA OBAN E DOI-CODI, localizado na Rua Tomás Carvalhal s/n° e Rua Coronel Paulino Carlos, no bairro do Paraíso (Setor 036 – Quadra 045 – Lote 0175-1, do Cadastro de contribuintes da Secretaria Municipal da Fazenda), como bem cultural de interesse artístico, urbanístico, paisagístico, histórico e turístico. (CONPRESP, RES. 10/2017)

Um fato relevante na análise deste artigo é que exceto pelo valor histórico, o

conjunto aparentemente não possui atributos artísticos, urbanísticos, paisagísticos e

turísticos relevantes e mesmo assim o documento ressalta essas características. Além

disto, parece uma piada de mau gosto enquadrar esse bem como de interesse turístico.

O DOI-CODI foi um dos mais significativos sítios de perseguição e tortura do

regime militar, onde morreram cerca de 10% das vítimas de todo o país durante o período

da ditadura. O tombamento do conjunto implica desafios no que diz respeito ao uso que

será dado ao local, que atualmente contempla o 36º Distrito Policial da Polícia Civil de

São Paulo. Em relação às diversas narrativas e polêmicas que envolvem o lugar, há um

conflito entre o Núcleo de Preservação da Memória Política, que reivindica a instalação

de um memorial no local que seja educativo como forma de denúncia dos crimes que

ocorreram ali; o CONDEPHAAT, que luta para que o edifício seja aberto à visitação; e a

vizinhança local juntamente com a Polícia Civil, que são contra a desativação do edifício

em prol do memorial, pois alegam que a segurança é necessária no bairro. Essas

questões serão abordadas de forma minuciosa no Capítulo 3.

O que acontece com o DOI-CODI é somente um exemplo dos enfrentamentos que

ocorrem em lugares de memória dolorosa, pois estes possuem dilemas difíceis de serem

resolvidos de maneira coerente e muitas vezes estão carregados de narrativas

conflituosas. Neste caso, foi questionada a viabilidade de se preservar um edifício sem

atributos arquitetônicos notáveis, além da abrangência do tombamento e a ocupação do

conjunto (todo o conjunto ou parte dele) para memorialização do regime militar e tentativa

de refletir sobre esse passado recente.

O processo de memorialização de lugares utilizados na repressão ditatorial ainda

é polêmico e gera controvérsias no Brasil, porém vivenciamos um momento de

valorização de memórias sociais múltiplas e tendemos a incentivar a investigação de um

passado de crimes como forma de denúncia para que o que aconteceu no passado não

se repita no futuro. Diante disso, museus e memoriais tornam-se alternativas dadas para

os lugares de memória, porém é necessária uma preocupação com a autenticidade

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desses locais que não devem perder a essência diante de um mundo que valoriza cada

vez mais o “Turismo Dark”44 .

CAPÍTULO 3

Das Ações: presente, passado e futuro

Como visto anteriormente, as políticas de preservação de bens tombados como

patrimônio cultural, existe de maneira institucionalizada no Brasil desde 1930, iniciando

com a ideia de identidade da nação e valorização dos bens materiais.

Entre as décadas de 1960 a 1970, viveu-se o período dos sucessivos golpes

militares e o regime da ditadura expandiu-se por toda América Latina. Por outro lado, a

década de 1980, foi marcada pelo período de redemocratização e como consequência,

foram surgindo grupos que reivindicavam as memórias dos anos de terror como prática

de reparação aos danos causados a sociedade.

O capítulo anterior indicou que foi a partir deste momento que as questões

relacionadas às memórias difíceis ganharam visibilidade. Neste contexto, o trabalho

procurou analisar de que forma alguns edifícios simbólicos da ditadura civil-militar foram

declarados patrimônio cultural de suas sociedades, como prática de identificação e

reconhecimento de valores subjetivos inerentes àqueles lugares. Para isso, foram

selecionados como estudo de caso, três edifícios localizados na cidade de São Paulo,

com características físicas diferentes, porém ligados ao passado de repressão movida

contra opositores do Estado.

Neste momento, a intenção será no entendimento das ações de conservação e

valorização pós-tombamento, como garantia física do prédio do DOPS e do Conjunto

OBAN DOI-CODI. Ademais, também será discutido como alguns desses lugares foram

utilizados como memoriais e serão abordados os conflitos sociais que fizeram parte do

processo de valorização desses bens. É válido ressaltar que o patrimônio, por

representar valores simbólicos para a sociedade, hoje em dia é objeto de disputa, sendo

que a preservação desses lugares é essencial para o debate atual sobre dilemas sociais

do passado que ainda persistem no presente.

44 “Turismo Dark” ou Dark Tourism é um turismo sombrio que consite na visita a lugares relacionados à morte e sofrimento, ou seja, lugares de memória traumática como forma de entretenimento.

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Apesar de remeter a memórias difíceis, a preservação de lugares de memória

pode ser resultado da solicitação de pessoas que foram vítimas de tais eventos, ou que,

de alguma forma, consideram que esses acontecimentos ameaçam a sociedade. Neste

sentido, o presente trabalho busca aproximar-se das questões referentes aos lugares de

memória. O intuito, neste capítulo, é abordar as respostas, através de ações e

manifestações, dadas aos lugares de memória difícil, considerando os dilemas que

permeiam o ato de intervir e que giram em torno do lembrar e do esquecer.

O processo de criação na arquitetura deve levar em consideração a

fenomenologia do lugar45 que, de acordo com Schulz, é “como um ‘método’ que exige um

‘retorno às coisas’, em oposição às abstrações e construções mentais” (SCHULZ, 2006,

p. 443). No que diz respeito à arquitetura, é imprescindível que o arquiteto retome o

passado de determinado lugar entendendo a relação do antigo com o presente para que

sua proposta seja coerente com a realidade e especificidade de cada local. O projeto de

intervenção arquitetônica pode contribuir para o fortalecimento da memória social,

propiciando ao indivíduo, que, ao andar por esse lugar de memória, consiga aproximar-se

da sua história, mesmo que ele não tenha relação direta com os eventos que ocorreram

no lugar:

Quando visitamos uma cidade estrangeira, geralmente o que nos impressiona é seu caráter peculiar, que é parte importante da experiência [...] É importante assinalar que geralmente todos os lugares possuem um caráter, e que essa qualidade peculiar é a maneira básica em que o mundo nos é “dado” [...] o caráter de um lugar é uma função de tempo; ele muda com as estações, com o correr do dia e com as situações meteorológicas, fatores que, acima de tudo, determinam diferentes condições de luz. (SHULZ, 2006, p. 451)

O papel do arquiteto é intervir no existente, modificando e

preservando/restaurando, relembrando ou apagando, de maneira que a proposta

arquitetônica faça sentido com o contexto no qual está inserida. É evidente que as

práticas arquitetônicas fazem parte de um processo de construção, apagamento e

modificação de lugares.

Atualmente começa a se delinear em São Paulo uma rede de lugares de memória

relacionados à história da ditadura militar. Esse processo é resultado não apenas do

período de redemocratização e denúncia das barbaridades que foram cometidas durante

a repressão, mas também de uma nova e recente cultura de valorização dos lugares de

45 A fenomenologia do lugar é um conceito que se deve a Christian Norberg-Schulz (1926-2000) que, na década de 1960, identificou o potencial do lugar em sua relação com a arquitetura, para a ressignificação do ambiente mediante a criação de lugares únicos como fenômenos qualitativos que permitem o habitar.

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memórias difíceis ou de consciência. Neste momento, o trabalho fará a análise de

diversos exemplos - que incluem edifícios, intervenções artísticas, manifestações

culturais e memoriais ou monumentos.

3.1 A Intervenção Arquitetônica

Primeiramente, no que diz respeito às intervenções arquitetônicas, será

apresentada a trajetória de usos do edifício da antiga Estrada de Ferro Sorocabana para

a atual condição de Memorial da Resistência, as discussões em relação às diversas

reformas feitas no local e o papel do museu no mundo contemporâneo, sendo

considerado um dos mais eficazes no que diz respeito à ação museológica educativa,

preventiva e de reflexão sobre o passado traumático da ditadura militar. Posteriormente

será feita uma reflexão sobre os dilemas de manutenção do atual 36º Distrito Policial da

Vila Mariana e antigo DOI-CODI que apresenta uma dualidade entre os que querem que

o prédio seja destinado ao uso da polícia e os que reivindicam que, devido ao passado de

violências cometidas no local, é inadmissível que o edifício ainda destine-se ao cárcere,

sendo necessário destinar o uso do lugar para um memorial em homenagem as vítimas

da repressão.

3.1.1. Memorial da Resistência: história, usos e adaptações

3.1.1.1. Armazéns da Companhia Estrada de Ferro Sorocabana

Como visto anteriormente, o prédio do Memorial da Resistência, localizado no

Largo General Osório, centro de São Paulo, passou por muitas ocupações até sua

condição atual. O edifício foi inaugurado em 1914, a partir do projeto do arquiteto Ramos

de Azevedo, para sediar a Estrada Sorocabana de Ferro, através do armazenamento e

transporte de café, além do fluxo de passageiros vindos do interior para capital, e chegou

a funcionar de maneira provisória como segunda estação para passageiros até a

construção da Estação Júlio Prestes, em 1938.

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Figura 17 - Foto da Companhia Estrada de Ferro Sorocabana,1924. Fonte: EXPOSIÇÃO MEMORIAL DA RESISTÊNCIA, 2019, Foto da autora.

De acordo com Lo Turco e Righi (2004), o edifício foi inspirado na tradição

européia, sendo utilizada estrutura de ferro aparente, com vigas e colunas de ferro

fundido, material já presente no século XIX. Neste sentido, o edifício possuía um interior

livre de alvenaria de tijolos, sendo esses utilizados somente para o fechamento das

fachadas. As vigas de ferro aparente sustentavam as lajes e eram pintadas imitando o

tom da madeira.

Figura 18 - Planta Térreo da Estrada de Ferro Sorocabana, c.1914. Fonte: BUCCI, 2015, p. 49.

Sob essa ótica, também foi destacado que talvez esse seja o edifício de Ramos

de Azevedo com arquitetura mais utilitária e menos decorativa, pois a maioria dos pilares

foram utilizados de forma aparente. Outra informação importante destacada no trabalho

acima referido e fornecida pelo ex diretor do Condephaat, Carlos Lemos, é a de que,

provavelmente, a estrutura tenha sido adquirida na França, o que se comprova pelo fato

da legenda dos projetos oiriginais estar em francês. Neste sentido, evidencia-se que

Ramos de Azevedo foi responsável somente pelos projetos de arquitetura.

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Figura 19 - Fachada do edifício, 2019. Fonte: Foto da autora.

O prédio está dividido em três blocos separados por duas torres de escadas de

ferro e elevadores (Figura 18). Possivelmente, “[...] em uma das reformas pelas quais

passou o edifício [...] foram substituídos por elevadores fechados, formando caixas de

concreto que hoje lá se encontram” (TURCO; RIGHI, 2011, p. 120).

Já no pavimento térreo, os grandes salões são sustentados por pilares quadrados

de 0,50m x 0,50m. O quarto pavimento, onde estão os blocos laterais, não possuem

pilares, sendo caracterizados por um grandioso vão livre, onde é possível ver a cobertura

das telhas, com tesouras de ferro fundido.46

3.1.1.2 DEOPS/SP

A partir de 1938, o edifício sofreu várias reformas e reestruturações e passou a

sediar diversas delegacias que estavam vinculadas ao Departamento Estadual de Ordem

Política e Social de São Paulo. Nesse momento, o órgão símbolo da repressão

institucionalizada atuava no controle da ordem no período getulista e, posteriormente, na

ditadura militar iniciada em 1964. No local, e como já visto anteriormente, eram realizadas

investigações com métodos de tortura, constrangimentos, cárcere privado, ocultamento

de cadáveres, entre outros.

A historiadora do Condephaat Deborah Neves (2014) afirma que o antigo DEOPS,

durante sua existência no século XX, teve três grandes eixos de atuação. Desde sua

criação até 1945 atuou na repressão a movimentos operários e sindicalistas e, quando

46 Ivanise Lo Turco e Roberto Righi

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transcorrida a II Guerra Mundial, passou a fiscalizar imigrantes nascidos em países do

Eixo (Alemanha, Itália e Japão). De 1945 a 1964, período após I Guerra Mundial, adotou

diretrizes de segurança baseadas no modelo dos Estados Unidos para combater

movimentos comunistas em países ocidentais. Finalmente, de 1964 a 1983, atuou no

período marcado pela perseguição de pessoas contrárias ao regime político, sob forte

influência anticomunista dos Estados Unidos. Esse período inclusive foi marcado pelo

aumento da violência estimulada pelo Ato Institucional Número 5 (AI-5)47, de 1968. O

DEOPS participou de maneira incisiva da “Operação Limpeza”, que tinha como premissa

prender pessoas e exonerar funcionários públicos ligados ao Partido Comunista.

A ocupação do edifício pelo DOPS ainda é obscura, sendo difícil encontrar

imagens internas do local no período da ditadura militar, o que evidencia um interesse em

não mostrar o que acontecia dentro do prédio. De acordo com Neves (2014), essa falta

de registros dificulta o processo de reconstrução da ocupação e entendimento de quais

processos o edifício passou durante suas reformas.

Após algumas consultas a publicações no Diário Oficial, Neves (2014)

desenvolveu um estudo sobre o tema e acredita que, entre as décadas de 1950 a 1970, o

prédio poderia estar dividido da seguinte maneira: no térreo estavam as dez celas, sendo

seis dentro do edifício, um corredor para banho de sol e quatro celas construídas em um

anexo voltado para antiga ferrovia.

Figura 20 - Planta Térreo do DEOPS, c. 1938-1983. Fonte: BUCCI, 2015, p. 49.

No primeiro pavimento ficava a cozinha, no segundo pavimento localizavam-se as

delegacias (Delegacia de Ordem Social, Delegacia de Explosivos e Armas, Delegacia de

47 O Ato Institucional Número 5, foi o quinto decreto emitido pela ditadura militar nos anos posteriores ao golde de 1964 durante o Regime de Exceção. Os atos institucionais expressavam a vontade dos militares e eram leis propostas pelo Executivo, concentrando os poderes na figura do presidente da República. O AI-5, foi criado durante o governo de Costa e Silva e tinha como princípios: a cassação de direitos políticos; aposentadoria compulsória de funcionários públicos; fim do habeas corpus por crimes políticos; e censura prévia aos meios de comunicação.

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Estrangeiros), Biblioteca, Cartório e Sala de Subchefia dos Investigadores e, no terceiro

pavimento, a Delegacia de Ordem Econômica. Entre o segundo e terceiro pavimento,

havia uma cela clandestina, no quarto pavimento uma copa, ambulatório, caixa, vestiário,

sala de reunião e o Gabinete do Delegado Geral do DOPS, no quinto pavimento, uma

sala de escuta clandestina do serviço secreto, sala de armas e, por fim, garagem e

oficina no anexo. Segue abaixo, divisão simplificada de ambientes do DOPS de acordo

com o estudo de Neves (2014):

Anexo Garagem e Oficina.

Entre o 2º e 3º

PavimentoCela Clandestina.

4° PavimentoCopa, Ambulatório, Caixa, Vestiário, Sala de Reunião

e Gabinete do Delegado Geral do DEOPS.

5° PavimentoSala de escuta clandestina do serviço secreto e Sala

de Armas.

DEOPS (1950-1970) - Divisão dos ambientes segundo Deborah Neves

TérreoDez celas, sendo seis dentro do edifício e quatro no

anexo próximo a antiga ferrovia.

1º Pavimento Cozinha

2º Pavimento

Delegacia de Ordem Social, Delegacia de Explosivos

e Armas, Delegacia de Estrangeiros, Biblioteca,

Cartório e Sala de Subchefia dos Investigadores.

Figura 21 - Divisão dos ambientes do DOPS (1950-1970). Fonte: Elaborado pela autora com base em NEVES (2014).

O entendimento da disposição dos ambientes por andar facilita a visualização da

sistematização de um regime opressor e mostra como havia uma organização da

instituição especializada em perseguir opositores e “estabelecer a ordem”. As

informações da autora são essenciais, pois há uma dificuldade em encontrar documentos

e fotos que destaquem as características internas do prédio naquele período.

3.1.1.3 A Escola de Música

A extinção do DOPS deu-se em 1983, antes do período de transição para a

democracia, que, segundo Neves (2014), era uma estratégia para evitar que o órgão

fosse administrado pelos opositores, inclusive os funcionários foram transferidos para

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outras repartições da polícia civil do estado. De acordo com a autora, somente em 1991,

os arquivos da Ditadura foram entregues ao Arquivo Público do Estado de São Paulo e

disponibilizados para consulta pública em 1994. O tombamento do edifício pelo

CONDEPHAAT, como já visto anteriormente, foi realizado em 1999.

Mesmo com a desocupação do DOPS, o edifício destinou-se, entre 1940 e 1998,

à Delegacia do Consumidor (DECON), pertencendo à Secretaria da Justiça e da Defesa

da Cidadania do Governo do Estado de São Paulo (FELIPINI, 2011, p.77), e também ao

Departamento de Polícia Administrativa (DEPAD).

No ano de 1997, e em um contexto de retomada valorização do bairro da Luz e

revitalização do centro por meio de políticas culturais, o prédio foi entregue para a

Secretaria Estadual da Cultura. É válido destacar que, nesse momento, devido à

localização e facilidade de transportes, “[...] pensou-se em diversas ocupações para o

edifício: uma biblioteca pública estadual, uma Escola Superior ou Universidade Livre de

Música, uma escola de teatro, e o Museu do Imaginário do Povo Brasileiro [...]”.

(FELIPINI, 2011, p. 78)

Em 1998, a Sede da Secretaria da Cultura passa para o edifício da Estação Júlio

Prestes, que, no ano de 2000, inaugura a Sala São Paulo. Nesse contexto, foram feitas

diversas propostas para o uso do edifício, desde a Sede da Academia Superior, ao

Memorial do Cárcere, e posteriormente ao Museu Imaginário do Povo.

Conforme destacado por Bucci (2015), o edifício sofreu grandes perdas em

relação a sua essência enquanto testemunho histórico após uma reforma irregular, que

fora iniciada sem autorização do Condephaat, como será abordado adiante.

Nesse contexto, o então Governador do Estado de São Paulo, Mário Covas,

assinou o documento de transferência de uso dos edifícios para a Secretaria da Cultura,

esse processo teve a participação do Secretário de Justiça e Cidadania, que informou

que o prédio seria destinado para fins distintos ao anterior. A primeira ação do Secretário,

no que diz respeito à cultura, foi a divulgação da peça “Lembrar é Resistir” que tinha

como cenário a carceragem do antigo DOPS e o intuito de comemorar os vinte anos da

Lei da Anistia. De acordo com a atriz Neusa Velasco, uma das participantes da peça, a

essência do roteiro seria “Lembrar, Criticar, Alertar, Emocionar” (DOCTELA, 2019,

online):

Tudo o que eu disser é pouco, perto da mescla de sentimentos que me toma, ao escrever sobre a época mais obscura do meu país: a ditadura militar. Ao fazer parte do elenco do espetáculo “LEMBRAR É RESISTIR”, pude sentir o impacto que a tragédia dos personagens provocava nas

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pessoas. O texto de Izaías Almada e Analy Alvarez tocava nos expectadores de maneira tão forte que alguns desmaiavam, outros vomitavam, e muitos choravam copiosamente.

Figura 22 - Nuna Velasco em “Lembrar é Resistir”, c.1997. Fonte: Doctela, online.

Figura 23 - Menção à peça de teatro “Lembrar é Resistir” na exposição do atual Memorial da Resistência, 2019. Fonte: EXPOSIÇÃO MEMORIAL DA RESISTÊNCIA, 2019, Foto da autora.

Destinado à cultura, iniciou-se um processo de organizações de atividades que se

relacionavam aos direitos humanos e de vítimas da ditadura. Além disso, havia uma

preocupação em como ocupar aquele lugar permeado de subjetividade e carga simbólica.

Como dito anteriormente, o entendimento das diversas intervenções no edifício é

complexo, a história do lugar é conturbada e requer análises de contribuições de estudos

como o de Neves, por exemplo. De acordo com Lo Turco e Righi (2004), e segundo

entrevista com o arquiteto Haron Cohen (2002), primeiramente foi apresentada uma

proposta para a Escola Superior de Música, porém os desenhos foram analisados e o

projeto não foi liberado para obra. Já de acordo com Neves (2014), e após análise do

Processo nº 36924/199748 do Condephaat, há evidências de que as obras começaram

48 Relativo às obras de reforma no edifício ora em estudo.

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em 1997, antes da abertura do processo administrativo, ou seja, antes da aprovação

daquele órgão.

Diante da análise de Lo Turco e Righi (2004), a ideia do projeto seria a divisão dos

pavimentos da seguinte forma: no térreo, um auditório, camarins, depósito de material

cênico, café, livraria e bilheteria; no segundo pavimento, salas de estudo, biblioteca,

administração e salas de acervo; no terceiro pavimento, apenas salas de estudo.

Figura 24 - Croqui do Térreo da Escola de Música, s/d. Fonte: Ivanise Lo Turco e Roberto Righi.

Figura 25 - Croqui do Segundo Pavimento da Escola de Música, s/d. Fonte: LO TURCO; RIGHI, 2004, p. 123.

Figura 26 - Croqui do Terceiro Pavimento da Escola de Música, s/d. Fonte: LO TURCO; RIGHI, 2004, p. 123.

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Em relação ao quarto pavimento, os espaços foram reservados para salas de

ensaio, salas de aulas teóricas, salas de coro e estúdios e o quinto pavimento, salas de

professores, diretoria, secretaria e conselho.

Figura 27 - Croqui do Quarto Pavimento da Escola de Música, s/d. Fonte: LO TURCO; RIGHI, 2004, p. 123.

Como dito anteriormente, as obras de reforma tinham o intuito de abrigar a

Universidade Livre de Música e foram iniciadas em 1997, sem aprovação do Condephaat,

além disso implicavam em mudanças que comprometiam a autenticidade do prédio. O

Diretor Técnico do Condephaat, Guilherme Savoy de Castro, emitiu, então, um relatório

identificando preocupação em relação ao prosseguimento das obras sem autorização do

órgão de preservação e solicitando readequação do projeto. De acordo com (NEVES,

2014, p. 129), os conflitos destacados por Savoy de Castro, foram:

1. As dimensões propostas para o auditório resultariam na ocupação integral do pavimento térreo que prejudicaria a instalação do “Memorial do Cárcere”, além de obrigar a remoção da laje no primeiro piso no módulo central do edifício, com remoção de vigas e pilares; 2. Ocupação do módulo central no quinto andar, desprovido de qualquer interferência visual, por setores de administração que criariam obstáculos à fruição visual do espaço livre; 3. Ocupação inadequada às proporções espaciais dos módulos laterais do quarto andar; 4. Instalação de Elevadores nas prumadas verticais em substituição às escadas e elevadores originais ainda existentes no edifício.

Diante das questões apresentadas por Savoy, foi enviada, em 1999, uma

informação para Secretaria Estadual da Cultura, solicitando que a reforma fosse

acompanhada pelo CONDEPHAAT para dar continuidade as obras, porém não houve

solicitação para paralisação das obras e aprovação do projeto pelo Conselho. Somente

no ano de 2000, a obra foi aprovada pelo Condephaat (NEVES, 2014).

Apesar da aprovação pelo Condephaat, em 2001, foi aberto o Inquérito 077/01,

após denúncia do IPHAN, para investigação dos danos causados com a remoção dos

vestígios que ficavam nas paredes das celas. O processo ainda está em andamento, e o

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dano foi considerado irreversível, pois a obra já havia sido consolidada e o Memorial da

Liberdade tinha previsão de inauguração para 2002.

Após o inquérito, e segundo informações de Neves (2014), o Iphan, Condephaat e

Conpresp reuniram-se em 21 de maio de 2001 para discutir a possibilidade de remoção

do revestimento feito que eliminava os vestígios originais das paredes do cárcere e a

resposta de um dos engenheiros representantes da Secretaria Estadual da Cultura foi a

de que as paredes já haviam sido encontradas daquela forma.

Figura 28 - Foto dos vestígios que ficavam nas paredes das celas antes da reforma, c. 1934-1983. Fonte: EXPOSIÇÃO MEMORIAL DA RESISTÊNCIA, 2019, Foto da autora. Foto da autora.

Nesse contexto, e após diversas discussões acerca das obras de reforma

realizadas para a Escola de Música, em dezembro de 2001 foi constatado que as obras

não poderiam continuar conforme adequações de projeto feitas pelo Condephaat que

havia liberado aprovação em 2000. Na época, e de acordo com Lo Turco e Righi (2004),

também havia uma questão financeira, pois o grande custo no valor da obra levou a

Secretaria da Cultura optar por uma solução economicamente mais rápida e viável.

Sob essa ótica, foi feita a proposta para o Museu do Imaginário do Povo

Brasileiro, sendo o novo projeto aprovado pelo Condephaat, em 15 de dezembro de 2003

(NEVES, 2011, p.131). É válido destacar que a obra foi aprovada da forma como foi

executada, não sendo possível reverter alguns danos causados à memória do edifício.

De acordo com Neves (2014, p.131):

Embora os relatos de funcionários ligados à Secretaria de Cultura e ao Condephaat tenham informado reiteradamente que as inscrições de presos já tinham sido removidas antes da entrega do edifício à Secretaria, não havia absoluta certeza desta informação, já que no

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processo do Condephaat não há sequer um relatório fotográfico da situação em que o prédio se encontrava quando foi transferido para a Secretaria, nem das condições anteriores à obra.

3.1.1.4 O Museu do Imaginário Povo Brasileiro e o Memorial da Liberdade

Diante da decisão de não seguir com o projeto da Escola de Música no local

devido a problemas de aprovações com os órgãos de preservação e restrição financeira,

surgiu uma ideia de um novo projeto mais viável do ponto de vista da restauração.

A ideia inicial do novo projeto, seria fazer um museu com diversos artigos sobre

direitos humanos e armazenar documentos de presos políticos. O projeto contava com

salas de monitoria, pesquisa e reunião no bloco central do edifício, além de refeitório e

sala de workshop e ateliê. No térreo foram abertas entradas tanto pela frente quanto

pelos fundos, através do pátio interno, ou do estacionamento. Próximo ao

estacionamento foi criada uma loja e também um jardim integrado a área externa (LO

TURCO; RIGHI, 2004).

Nos fundos havia o acesso de funcionários e carga e descarga. Para isso,

também foram criados depósito, sala de controle de segurança, refeitório funcionários

com copa, sala de som, telefonia e copiadora. Também no térreo encontrava-se o

Memorial da Liberdade, onde estão as quatro celas que restaram do DOPS.

Figura 29 - Croqui do Térreo, Museu do Povo Brasileiro e Memorial da Liberdade, c. 2003. Fonte: BUCCI, 2015, p. 49.

Neste local, foi proposta uma exposição permanente com trinta quadros que antes

localizavam-se no Palácio do Governo.

No primeiro pavimento foi decidido reservar uma área para eventos que seria um

espaço isolado, seja para eventos do museu ou não. No bloco central teria área

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administrativa, departamento financeiro, recursos humanos, sala de reunião, diretoria,

recursos humanos e sanitários. O andar também contava com laboratórios de

conservação e restauro (LO TURCO; RIGHI, 2004).

Figura 30 - Croqui do Primeiro Pavimento do Museu do Povo Brasileiro e Memorial da Liberdade, c. 2003. Fonte: LO TURCO; RIGHI, p. 125.

Figura 31 - Croqui do Terceiro Pavimento do Museu do Povo Brasileiro e Memorial da Liberdade, c. 2003. Fonte: Fonte: LO TURCO; RIGHI, p. 126.Ivanise Lo Turco e Roberto Righi.

O segundo e terceiro pavimentos contavam com exposições permanentes. Já o

terceiro pavimento era mais livre, contando apenas com as torres de escadas, elevadores

e sanitários, além de passarela ligando os três blocos do edifício e proporcionando

fruição de pessoas, além de dar lugar a um mezanino a partir da saída dos elevadores.

No quarto andar foram previstas salas de projeção para áudio e vídeo, o arquiteto

destacou como o andar era mais interessante em relação aos outros pelo pé direito de

5,50 metros. Já no quinto pavimento, foi projetado auditório com capacidade para 130

pessoas, com palco, camarins, apoio, sala de multimídia, salas de leitura e pesquisa.

Em 2002, concluídas as obras de restauração, o prédio seria ocupado pelo Museu

do Povo Brasileiro, cuja implantação não se efetivou, e pelo Memorial da Liberdade que

inicialmente havia sido concebido pelo Memorial do Cárcere. A inauguração do edifício

pós-reforma gerou uma série de dualidades de opiniões.

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De acordo com a geógrafa Ana Clara Volpi Antonini, em sua importante

dissertação de mestrado sobre os lugares da ditadura em São Paulo, o Memorial da

Liberdade, instalado no térreo, não apresentava um projeto museológico, e não se

apropriava do caráter educativo do lugar. De acordo com autora: “[...] as fortes mudanças

percebidas no Memorial da Liberdade nos levam a considerar que no processo de

restauração de 2002 foram apagadas muitas das características anteriores do espaço,

inclusive as inscrições feitas pelos presos [...]”. (ANTONINI, 2012, p. 50)

Em contrapartida e de acordo com considerações feitas por Turco e Righi (2004),

o projeto era funcional e transmitia sensação de conforto, bom aproveitamento dos

espaços e destacava que a única “falha” seria a entrada que era pouco explorada: “[...]

exceção da entrada do Memorial, acanhada, devido à limitação oferecida pela localização

das celas e à segurança” (LO TURCO; RIGHI, 2004, p. 127).

Em divergência ao entendimento de projeto por Lo Turco e Righi, e de acordo com

Neves (2011), o edifício sofreu grandes perdas no que diz respeito a sua essência e

história do lugar, pois eliminava as celas e os vestígios dos presos deixados nas paredes.

Segundo Maurice Politi e Ivan Seixas (2009, p. 200-201) ex-presos políticos que

participaram dos debates para a concepção do Memorial da Resistência:

[...] documentos presenciais de personagens ativos da História foram raspados e repintados de modo a não permitir nenhum resquício de lembrança do período [...] A aparência que deram ao espaço e a ausência daquelas inscrições impediam a identificação do que havia sido aquele lugar [...]

De acordo com o arquiteto Haron Cohen, após assumir o projeto, foi verificado

que as celas que foram usadas pelos ex-presos políticos não apresentavam as

características anteriores, pois o prédio fora ocupado pelo DECON, durante

aproximadamente dez anos, sendo este voltado para o combate do narcotráfico,

causando destruição do edifício.

Ao analisar as fotos a seguir, é possível verificar a descaracterização do lugar

pelas reformas que acabaram por apagar os vestígios das paredes que eram relatos das

torturas e mortes, e suavizar o aspecto dos ambientes que no período de repressão eram

insalubres. Outra questão importante e que deve ser observada é a escolha do nome

“Memorial da Liberdade” que gerou controvérsias, pois estava atrelado a um lugar onde

existia ausência de liberdade pela polícia.

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Figura 32 - Corredor de banho de sol antes e depois da reforma, s/d. Fonte: EXPOSIÇÃO MEMORIAL DA RESISTÊNCIA, 2019, Fonte da autora. Foto da autora.

Figura 33 - Fotos antes da reforma da porta com grades de segurança, corredor para banhos de sol e cela em condição insalubre, respectivamente, s/d. Fonte: EXPOSIÇÃO MEMORIAL DA

RESISTÊNCIA, 2019, Foto da autora. Acervo pessoal.

Figura 34 - Fotos depois da reforma da porta com grades de segurança, corredor para banhos de sol e cela revitalizada, respectivamente, s/d. Fonte: EXPOSIÇÃO MEMORIAL DA RESISTÊNCIA,

2019, Foto da autora. Acervo pessoal.

Diante de tantas críticas após a reforma do edifício, houve uma iniciativa do

Fórum de Ex-presos e Perseguidos Políticos49 em reivindicar a transformação do espaço

49 Entidade de direito privado sem fins lucrativos, criada em 2009, que lutava pela representatividade e

participação na reforma do Memorial da Resistência.

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em um lugar que refletisse de forma incisiva sobre o passado de violações aos direitos

humanos. Naquele mesmo momento acontecia uma mudança administrativa, pois, em

2006, a gestão do Memorial foi transferida para APAC (Associação de Arte e Cultura

Pinacoteca) do Estado de São Paulo. Até esse momento, o museu não havia sido

pensado para ser o Museu do Imaginário e não atingia números significativos de

visitação.

3.1.1.5 O Memorial da Resistência

Nesse contexto, e em decorrência das fortes reivindicações dos ex-presos

políticos, foi apresentado um novo projeto em agosto de 2007, idealizado por Maria Luiza

Tucci Carneiro (historiadora), Maria Cristina Oliveira Bruno (museóloga) e Gabriela Aidar

(educadora). De acordo com Antonini (2012), o projeto apresentava uma nova visão

museóloga, que tinha o intuito de problematizar o passado de resistência contrapondo-se

ao projeto até então vigente.

O novo projeto criticava os aspectos do Memorial da Liberdade que se limitavam

às celas, e solicitava uma participação mais profunda dos principais envolvidos no

passado traumático, além de destacar uma tentativa de silenciamento pela proposta

apresentada pelo arquiteto Haron Cohen. Por esse motivo, a intenção do novo projeto

estaria mais ligada à memória política e não somente restrita à função cultural, tendo

caráter de conscientização do cidadão sobre seu passado. De acordo com pesquisa de

Antonini, foi possível identificar as premissas norteadoras para concepção do projeto do

Memorial da Resistência, sendo essas:

Evidenciar os vetores da memória, de uma instituição de controle do exercício da cidadania, a partir da musealização dos espaços da repressão e da resistência, como expressões do Estado Moderno;

Difundir a importância dos vestígios da memória, a partir da pesquisa, salvaguarda e comunicação das fontes e indicadores desta herança patrimonial;

Problematizar os distintos caminhos da memória da repressão e da resistência, enfatizando as estratégias de controle de um Estado Republicano e tendo como referência a ação do DEOPS no estado de São Paulo, a partir dos seguintes segmentos:

- Memórias silenciadas/ apagadas/ destruídas/ exiladas;

- Pesquisas sobre a construção da memória;

- Memória e herança patrimonial;

Atualizar as questões relativas à repressão e resistência para os dias atuais. (ARAÚJO, 2009, apud ANTONINI et al., 2012, p. 52-53).

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Em 2008, o marco da implantação do novo projeto foi a mudança de nome que

passou de Memorial da Liberdade para Memorial da Resistência. O uso da palavra

resistir faz muito mais sentido ao passado daquele lugar, pois significa não ceder, não

sucumbir e continuar firme nos propósitos de luta contra as atrocidades cometidas

naquele lugar, meta tanto do projeto que queria educar e conscientizar os usuários do

memorial, quanto dos ex-presos políticos, protagonistas desse passado que para eles

não poderia ser repetido.

As diretrizes do projeto, idealizado em 2007, visavam um trabalho coletivo e

multidisciplinar e teve como importante contribuição o trabalho de pesquisa da USP e da

Biblioteca Nacional, além da participação do Fórum Permanente de ex-presos Políticos e

Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo. Esse processo visava articular diferentes

pontos de vista até chegar a um senso comum que beneficiaria a todos os envolvidos no

que diz respeito à representatividade.

Dentre as atividades desenvolvidas nesses encontros multidisciplinares,

destacam-se: a Roda de Conversa com Ex-Presos; os Sábados Resistentes; a criação do

Núcleo de Preservação da Memória Política, entre outros.

O Memorial da Resistência, neste caso, limitou-se apenas ao térreo do edifício,

sendo os outros pavimentos ligados à Estação Pinacoteca e exposições temporárias. O

museu recebe cerca de cento e oitenta mil visitantes por ano, sendo um dos mais

visitados museus do Brasil. A seguir serão indicadas as atividades que ocorrem em cada

pavimento, na atualidade, conforme resumo abaixo:

• Térreo: Memorial da Resistência São Paulo;

• Primeiro Pavimento: CEDOC (Centro de Documentação e Memória),

Biblioteca Walter Wey e Banheiros.

Figura 35 - Primeiro pavimento, Biblioteca Walter Wey, 2019. Fonte: Acervo pessoal.

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• Segundo Pavimento: Exposições Temporárias - Pinacoteca de São Paulo.

Terceiro Pavimento: Exposições Temporárias - Memorial da Resistência;

• Quarto Pavimento: Exposições Temporárias - Pinacoteca de São Paulo.

Em 22 de fevereiro do presente ano, o andar estava sem uso.

Figura 36 - Quarto pavimento, Exposições Temporárias - Pinacoteca de São Paulo, 2019. Fonte: Acervo pessoal.

• Quinto Pavimento: Auditório Vitae. No dia da visita estava ocorrendo um

evento sobre memórias indígenas.

Figura 37 - Quinto pavimento, Auditório Vitae, 2019. Fonte: Acervo pessoal.

O intuito do projeto é o de crirar um lugar onde novas gerações encontrem inspiração

para valorizar a solidariedade, as diferenças, os princípios democráticos e respeito aos

direitos humanos. A ideia é a de criação de um lugar dedicado à preservação das

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memórias da repressão através da musealização de parte do edifício que foi sede do

DOPS. A inauguração do novo projeto deu-se em 2009 e suas linhas de atuação são

mantidas até hoje. Sua exposição de longa duração está orientada em quatro módulos

(Figura 57), sendo esses:

• Módulo A - O edifício e suas memórias

Apresenta o tema do memorial e mostra a história do lugar, os diferentes usos do

edifício, estrutura e funcionamento do antigo DEOPS. Além disso, o texto da

exposição ora em andamento faz menção à reforma do edifício, porém não há

problematização em relação às suas consequências. Nesse ambiente, existe um

banco de madeira no centro, onde o visitante pode entender a história do lugar de

maneira acomodada.

Figura 38 - Painel da Primeira Sala de Exposição do “Módulo A”, 2019. Fonte: Acervo pessoal.

Figura 39 - Painel interativo que fala sobre a trajetória da instituição do DEOPS, ao fundo é possível ver a foto do gabinete do delegado, 2019. Fonte: Acervo pessoal.

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• Módulo B - Controle, repressão e resistência: o tempo político e as memórias

Contextualiza o espaço no âmbito do Brasil Republicano, onde um equipamento

multimídia oferece informações sobre os conceitos do espaço, além de linha do

tempo com informações, documentos e iconografias, mostrando um pouco da

memória coletiva.

Figura 40 - “Módulo B”, Foto Panorâmica Linha do Tempo, 2019. Fonte: Acervo pessoal.

Neste módulo, existe uma maquete que simula as condições das celas do Memorial

da Resistência. São dez celas, sendo seis no espaço projetado para o memorial e

quatro no anexo.

Figura 41 - Maquete das celas, 2019. Fonte: Acervo pessoal.

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• Módulo C - A construção da memória: o cotidiano nas celas do DEOPS/SP

Permite conhecer aspectos da resistência do sistema prisional do DEOPS, a partir

das memórias dos ex-presos políticos, a concepção dos espaços valorizou a

resistência como ligação do trágico passado ali vivenciado com os novos tempos.

- Cela 1: processo de implantação do memorial e as atividades desenvolvidas desde

Maio/2008.

Figura 42 - Nota-se que o ar condicionado e as luminárias acabam descaracterizando a condição inicial da cela - Cela 1, 2019. Fonte: Acervo pessoal.

- Cela 2: homenagem a todos aqueles que lutaram e aos que continuam lutando pelos

ideais de justiça e de democracia;

Figura 43 - Tela posicionada no centro do ambiente, homenageando as vítimas do período ditatorial - Cela 2, 2019. Fonte: Acervo pessoal.

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- Cela 3: reconstituição parcial feita pela equipe do memorial a partir dos relatos de

ex-presos políticos que também participaram do processo de reconstituição. Nesta

cela, os vestígios que foram apagados nas reformas para o Memorial da Liberdade

foram reconstruídos com participação dos ex-presos políticos.

Figura 44 - Cela 4 com os nomes dos ex-presos políticos escritos nas paredes como tentativa de reconstituição do que foi apagado pela reforma, 2019. Fonte: Acervo pessoal.

Figura 45 - Banheiros da Cela 4, 2019. Fonte: Acervo pessoal.

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- Cela 4: solidariedade através da escuta de depoimentos de ex-presos políticos que

contam as atrocidades do período da repressão.

Figura 46 - Rosa representando a solidariedade na atitude do visitante de escutar os relatos dos ex-presos políticos - Cela 5, 2019. Fonte: Acervo pessoal.

• Módulo D - Da Carceragem ao Centro de Referência

Possível acessar fontes documentais, por intermédio de arquivos e instituições

museológicas similares. Neste módulo também existe uma vitrine com uma série de

objetos do DOPS que estão sob a guarda do Arquivo Público do Estado de São

Paulo, também parceiro do memorial. (Informações adquiridas em visita do dia

15/02/2019)

Figura 47 - Croqui do Espaço Expositivo, Memorial da Resistência, s/d. Fonte: Acervo Memorial da Resistência.

Apesar de ter sido cenário de atrocidades, o novo projeto procura transformar o

espaço como acolhedor de resistência, coragem, fraternidade e solidariedade. Neste

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momento, a ênfase é atribuída às memórias dos ex-presos políticos e, a partir delas,

cada espaço valoriza a resistência como ligação entre o trágico passado aqui

vivenciado e o mundo contemporâneo.

Figura 48 - Croqui do Térreo, Memorial da Resistência, s/d. Fonte: BUCCI, 2015, p. 131.

O programa museológico do Memorial está baseado em procedimentos de

pesquisa através da conservação e documentação, além de ações educativas

culturais. O memorial tem estabelecido diálogos com instituições no Brasil e no

exterior, principalmente na América Latina, visando estabelecer redes que tratem

dessas abordagens e servindo de inspiração para criação de outras instituições com

cunho educativo similar.

Hoje o Museu conta com o Projeto Lugares da Memória, que pretende incentivar

ações de identificação, inventário e sinalização de lugares utilizados para ações de

resistência, tendo como o objetivo expandir o alcance preservacionista do memorial.

A Coleta Regular de Testemunhasé outra ação que recolhe as memórias de ex-

presos políticos, familiares de mortos e desaparecidos políticos e cidadãos que

trabalharam no DOPS/SP, tendo como premissa a construção de um valioso banco

de dados para ser usado por estudantes e pesquisadores, além do público em geral.

O intuito da ação educativa é o desenvolvimento de caminhos de diálogo e reflexão

para formação de cidadãos mais conscientes e críticos em relação ao passado e

atualidade.

Como ação cultural, o Memorial promove eventos para atualização de discussões

sobre práticas de controle e repressão e as ações de grupos de resistência durante

regimes autoritários e democráticos, com abordagens multidisciplinares que renovam

interpretações sobre passados recentes tais como: seminários e debates, filmes,

teatros, lançamento de livros e outras atividades.

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A memória do passado de intolerância recente no Brasil não deve ser apagada.

Para os protagonistas desse passado tão doloroso é preciso desenvolver a

consciência de continuar lutando e para quem não viveu esse período, a sabedoria de

não deixar que situações como essas se repitam.

Hoje, e após toda a trajetória do Memorial da Resistência, existem opiniões de

que, por um lado, o memorial possibilita um entendimento mais geral da ditadura

militar, tendo, inclusive, um caráter forte de prevenção, abrindo os olhos de seus

visitantes sobre o passado de repressão. Por outro, devido às inúmeras reformas, e

apesar da tentativa de resgatar os tempos do cárcere, outros consideram que o

passado acaba sendo representado de maneira suavizada, não estando na condição

real, conforme testemunhas da época.

Diante desse cenário dos diversos usos do edifício, fica evidente que a

intervenção em lugares de memória difícil não é simples e requer um olhar

multidisciplinar para que se alcance um objetivo comum e justo com o passado

traumático e com os participantes desse passado. É válido destacar que toda história

é narrada através de diferentes interpretações e são traduzidas em relatos repletos de

subjetividade, além disso há uma dualidade entre os que querem esquecer o passado

de dor e aqueles que, através da rememoração, sentem-se representados.

O exemplo do Memorial da Resistência é mais um exemplo de resposta das

ações em lugares de memória difícil. O entendimento da trajetória do edifício mostra

que houve um processo de identificação do lugar, reconhecimento através do

tombamento, de tentativas de conservação física através das reformas polêmicas e

da valorização do local através de ações educativas, do uso como memorial e da

divulgação das atividades que acontecem no local.

3.1.2. DOI-CODI: manutenção física e dilemas de uso

O edifício do DOPS apresenta qualidades arquitetônicas que não ocorrem no caso do

DOI-CODI. O atual 36º Distrito Policial da Vila Mariana já foi considerado um dos lugares

de repressão mais violentos da ditadura, porém, difere-se do edifício do DOPS, pois não

se instalou em construções grandiosas decorrentes do período do café no século XX. Na

década de 1950, o DOI-CODI atuou em conjunto com uma delegacia que permanece no

local até os dias atuais.

Em julho de 1969, a Operação Bandeirantes (OBAN), surgiu no intuito de

concentrar as ações repressivas no Comando do Exército e combater os opositores ao

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regime. A operação financiada por grandes empresas como a Ultragás, Universidade

Paulista e Federação das Indústrias do Estado de São Paulo em parceria com a polícia

que encaminhava para o local, os presos políticos.

De acordo com Bucci (2015), as informações obtidas nos interrogatórios feitos

pela OBAN não poderiam ter validade legal, visto que se tratava de uma organização

clandestina que empregava métodos ilegais. Essa estrutura foi extinta em 1970, para dar

lugar ao Centro de Operações de Defesa Interna (CODI) e ao Destacamento de

Operações e Informações (DOI) que foram considerados locais onde passaram milhares

de presos e onde ocorreu a maioria dos casos de execuções e ocultamento de corpos de

opositores ao regime. Apesar de serem associados em conjunto, o CODI tinha atividades

como armazenamento de informações, planejamento de combate e coordenação dos

militares. O DOI era subordinado ao CODI e tinha como funções as práticas de busca e

interrogatório de suspeitos.

As práticas americanas de combate, no contexto de Guerra-Fria, foram as

principais influências sobre o regime militar no Brasil, sendo a violência cada vez mais

institucionalizada através do DOI-CODI, considerado o mais temido instrumento de

controle da repressão na época.

Foram nas dependências do DOI-CODI que em 1975, morreu o então diretor e

jornalista da TV Cultura Vladimir Herzog, já citado anteriormente e cujo nome foi inserido

na placa do Arco do Portal do Presídio Tiradentes como homenagem. O jornalista havia

sido chamado para prestar esclarecimentos na sede do DOI-CODI por possível

envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Na época a versão oficial,

apresentada pelos militares e pelo médico legista Harry Shibata, foi a de que o jornalista

teria se enforcado com um cinto, inclusive a foto ainda é muito comentada nos dias

atuais.

Diante do ocorrido, surgiu uma corrente de manifestações de protesto contra o

regime militar depois do AI-5, em 1968. Esse episódio, junto com outros, desencadearam

uma revolta popular contra as práticas de tortura do DOI-CODI, e que transformaram o

lugar num centro de tortura de excelência.

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Em 2014, foi publicado por Marcelo Godoy50, o livro A Casa da Vovó, muito

importante para o entendimento das atrocidades cometidas no DOI-CODI e que reúne

diversos relatos das pessoas que trabalhavam no local. O livro é outro testemunho das

barbaridades cometidas no período da ditadura militar e é uma evidência das afirmativas

elencadas acima de que o lugar foi o mais temido no período de repressão.

Figura 49 - Livro A Casa da Vovó, s/d. Fonte: Acervo Pessoal.

De acordo com o autor, a ideia do livro seria investigar o papel da polícia militar

durante a repressão, pois quando iniciou sua pesquisa, verificou que a abordagem ainda

era pouco conhecida. Neste contexto, Godoy procurou diversos policiais que tinham

vivido aquele período para relatarem suas atividades.

O livro destaca a expressão “Casa da Vovó” que era associada ao DOI-CODI

pelos agentes que trabalhavam no local. O termo pode causar estranhenza, mas,

segundo o autor, foi muito utilizado durante as entrevistas com os militares que diziam

que o lugar era muito bom para trabalhar. Alguns chamavam de açougue, evidentemente

um termo mais apropriado para o lugar e para o que era feito ali.

O autor declara que, no início, as entrevistas foram repletas de desconfiança dos

funcionários e que depois descobriu que o ex-comandante e coronel Carlos Alberto

50 Jornalista, vencedor do prêmio Jabuti 2015, devido a publicação em 2014 do livro A Casa da Vovó - Uma

Biografia do DOI-CODI (1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar.

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Brilhante Ustra51, havia concedido o pedido de ficarem em silêncio, porém Gody

conseguiu aos poucos descobrir os diversos casos de mortes de militantes que foram

relatadas de forma minuciosa, sequestros de pessoas que nunca foram sequer presas

oficialmente, além dos inúmeros casos de tortura. De acordo com relato de um dos

agentes de repressão, que preferiu ser identificado com nome fictício de Chico:

Você não tem ideia do que é passar uma noite inteira vendo um homem e sabendo que no dia seguinte ele vai morrer...E você ali com ele...Essa foi uma das coisas que me deixaram mal depois. Todos nós carregamos um fantasma que te acompanha a vida inteira. Esse é o meu. (CHICO, 2005, apud GODOY, 2014, p.03)

Outro relato importante destacado por Godoy, foi o do agente Nelson que

informou que viu o delegado Sérgio Paranhos Fleury52, em nome do esquadrão da morte,

montar um grupo de extermínio na década de 1960:

- Eu fui da ronda com ele [o delegado Fleury], da R1. A R2, da guarda, se envolveu naquele negócio do esquadrão [da morte]. Mas quando eu vi ele [Fleury] fazer um negócio lá eu me arranquei.

- O que o senhor viu?

- Vi ele matar um cara lá a tijolada.

- Quando?

- Quando ele era ainda da radiopatrulha [...]. Eu vi ele fazer isso e achei um negócio chato. Aí pedi minha saída de lá. (NELSON, 2004, apud GODOY, 2014, p.04-05).

O livro de Godoy procura também buscar alguma coerência nos motivos para

tortura militar e alega que para eles, tudo era estratégia militar baseada na doutrina de

guerra francesa contra os de esquerda. No livro foram relatadas algumas táticas

utilizadas pelo órgão, como o uso do fichário, seguir opositores políticos, infiltrados para

denúncias, entre outras. Segundo autor, os militares não davam o direito de alguém se

manifestar contrariamente ao governo, pois todos os opositores eram vistos como

inimigos, traidores e adversários políticos.

Como já visto anteriormente, o tombamento do DOI-CODI é atribuído ao seu valor

histórico e não arquitetônico, como no DOPS. Hoje temos uma discussão acerca do uso

que será dado ao edifício. Com o término da ditadura, existe um anexo que foi utilizado

51 Foi coronel do Exército Brasileiro e ex-chefe do DOI-CODI (1970-1974).

52 Foi um policial que atuou como delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São

Paulo, durante a Ditadura Militar. Muitos depoimentos de ex-presos políticos, relatam que o policial era um dos mais severos e que ele torturava as pessoas durante interrogatório.

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pelo DOI-CODI que está atualmente inativo e no outro edifício encontra-se a delegacia

que funciona no local até hoje.

Nesse contexto, há uma dualidade de posições entre os moradores do bairro Vila

Mariana que não querem que a delegacia seja retirada e do Núcleo de Preservação da

Memória Política, responsável pelo pedido de tombamento em conjunto com as vítimas

da repressão, que são a favor da criação de um centro de memória no lugar, substituindo

o uso atual do edifício.

Para entendimento da história da construção do edifício, é de extrema importância

a análise dos estudos de Neves (2014), através de relatório técnico minucioso que

desenvolveu em três partes: história do lugar, pesquisa de documentos oficiais e coleta

de testemunhos. Não é intenção do presente trabalho reiterar o que já foi estudado e sim

destacar a importância desses lugares e seu conhecimento, como essenciais para

reflexão e consciência sobre a ditadura através do conhecimento da história do edifício,

da construção e dos atores envolvidos, além das respostas dadas no âmbito da

preservação.

Segundo Neves (2014), existem afirmações contraditórias em relação ao

funcionamento do edifício, pois existem análises técnicas que diziam que o DOI-CODI

funcionava também no edifício da delegacia, mas alguns ex-funcionários alegavam que a

tortura ocorria apenas no terreno dos fundos.

Figura 50 - Croqui do 36° Distrito da Vila Mariana, s/d. Fonte: BUCCI, 2015, p. 95.

Figura 51 - Croqui do anexo do DOI-CODI, s/d. Fonte: BUCCI, 2015, p. 95.

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Após tombamento do edifício pelo CONDEPHAAT que atribuiu relevância histórica

de violência institucionalizada, o uso que será dado ao local ainda gera polêmica e está

em estudo. O papel do órgão de preservação é garantir a integridade física do edifício e

esse é um dos principais desafios do CONDEPHAAT, que seria fazer a gestão do pós-

tombamento e garantir a proteção e valorização do bem tombado.

Hoje, os ex-presos políticos lutam para que o lugar se transforme em um local de

memória, contudo a Associação de Moradores da Vila Mariana e Associação Vila Paraíso

reinvidica a permanência da delegacia para garantia da segurança do bairro. Em 2015, a

referida Associação emitiu um abaixo-assinado para o Secretário da Justiça solicitando

que a delegacia continue no local.

O entendimento da história do DOI-CODI e dos dilemas em relação ao seu uso é

primordial, pois destaca que a memória está sempre em disputa e que o passado do

edifício associado ao período de repressão ainda é muito latente, tanto que ainda há uma

dúvida sobre manter a delegacia no local ou criar um memorial em homenagem as

pessoas que foram torturadas no lugar.

3.2. Intervenções Artísticas

Em relação às intervenções artísticas, será apresentado o trabalho do artista

Fernando Piola, denominado inicialmente de Praça Vermelha. No contexto de proposta

revitalização da região da Luz, em 2008, pela Secretaria Estadual da Cultura de São

Paulo, como veremos a seguir.

3.2.1. Do Projeto Praça Vermelha ao Operação Tutóia

Como proposta para ações de revitalização da área da Luz, o Projeto Praça

Vermelha surge em 2005, a partir de uma proposta de bolsa da Secretaria da Cultura que

incentivou dez artistas a ocuparem o Ateliê Amarelo, no Largo do General Osório,

visando sua permanência no local durante sete meses, para elaboração de um projeto

de “releitura do cenário esquecido da cidade”. De acordo com reportagem datada em 26

de julho de 2007, no site do Governo do Estado de São Paulo, o Ateliê Amarelo foi:

[...] um espaço cedido pela Secretaria, num casarão antigo no número 23 da Rua General Osório, aberto à visitação pública. São nove estúdios, com banheiros privativos, uma sala para administração, um salão para convivência coletiva, uma portaria, telefone comunitário e suporte técnico. Ali eles convivem com outros artistas e com os curadores do projeto. (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2007, online).

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Como se sabe, o bairro da Luz é caracterizado por uma forte presença de

usuários de drogas e prostituição, além disso, em frente ao Largo do General Osório é

onde se encontra o Memorial da Resistência, antigo DOPS. O Estado procurava criar

políticas de incentivos a investimentos particulares, no intuito de revitalizar a região da

Luz, trazendo novos atrativos para o lugar.

Diante deste cenário, o artista Fernando Piola53, idealizador do projeto, procurou

aproximar-se do passado da região da Luz, caracterizada por abrigar uma série de

edifícios históricos que são importantes pontos turísticos da cidade, como a Sala São

Paulo/Estação Júlio Prestes; Estação da Luz; Pinacoteca do Estado de São Paulo,

Convento da Luz/Museu de Arte Sacra, Edifício Paula Souza, Arquivo Histórico Municipal

Ramos de Azevedo e Oficina Cultural Oswaldo de Andrade, e buscou fazer uma reflexão

sobre o passado de violência da região da Luz.

Ao assumir um dos ateliês com os outros nove artistas, Fernando Piola

transformou o lugar em um escritório administrativo e trocou as luzes do ambiente por

luzes vermelhas. Essa iniciativa foi denominada Intervenção Luz, fazendo uma analogia

entre esse ambiente e o bairro em que estava instalado. As venezianas do ambiente

foram mantidas abertas durante os meses em que o artista permaneceu no Ateliê

Amarelo, e a ideia das luzes vermelhas referia-se ao passado de prostíbulos do bairro

que estava esquecido. (CAIXA CULTURAL, 2008)

Figura 52 - Luzes Vermelhas no Ateliê Amarelo de Fernando Piola, s/d. Fonte: CAIXA CULTURAL, 2008, p. 06-07)

53 Graduado em Artes Plásticas pela USP (2007). Em 2008, o artista realizou quatro exposições individuais

em instituições e museus em São Paulo. Dentre os trabalhos em destaque, podemo citar os seguintes: Prêmio Arte e Patrimônio no Rio de Janeiro (2014), 13ª Bienal de Istambul (2013) e “O Agora, O Antes: uma síntese do acervo do MAC USP” em São Paulo (2013).

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Como as janelas ficavam abertas, foi possível que os pedestres pudessem

visualizar as luzes vermelhas tanto durante o dia quanto durante a noite, sendo uma das

estratégias de Piola.

Além dessa ação, Piola propôs uma intervenção paisagística que consistia em

criar uma praça constituída por plantas de folhagem vermelha, no Largo General Osório

em frente ao antigo prédio do DOPS. A ideia inicial seria a construção de uma

praça/monumento através de um trabalho de arte pública que faria referência ao período

sangrento da ditadura militar. Neste contexto, foi escolhida a cor vermelha para

representar a história do lugar.

Figura 53 - Projeto Praça Vermelha DEOPS 2006. Fonte: CAIXA CULTURAL, 2008, P. 30.

A intenção do projeto seria protestar contra as atrocidades cometidas no antigo

DOPS e rememorar esse passado através da ação crítica traduzida no tom vermelho que

está vinculada ao passado sangrento. A cor foi escolhida “enquanto cor comunista, cor do

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protesto, do sangue, da luta, dos desprovidos de posse e de pudor” (CAIXA CULTURAL,

2008, p. 08).

O título do projeto faz referência a um dos maiores símbolos arquitetônicos do

comunismo, a Praça Vermelha de Moscou54, na Rússia. A ideia seria transformar a Praça

Vermelha de São Paulo em um importante monumento histórico como na Rússia. O

monumento representaria a memória de um lugar histórico, porém esquecido no dia-a-dia

da cidade paulista.

Figura 54 - Projeto Praça Vermelha Moscou - Rússia, s/d. Fonte: DEMOCHILAECANECA, 2018, online.

O Projeto Praça Vermelha foi negado pelas entidades políticas municipais e pelo

Departamento de Parques e Áreas Verdes da Subprefeitura da Sé, que não foram as

mesmas que patrocinaram o projeto, e que decidiram pela não autorização de sua

implementação quando souberam dos objetivos da proposta:

Nas conflituosas relações das instâncias do Estado, o bater do martelo sempre é dado pelo mais forte que, nesse caso, busca eliminar as peças gangrenadas, embelezando o feio, varrendo os excluídos e ressignificando o presente e o passado negro, manchados pelo vermelho de sangue, pelas drogas e pela luz vermelha dos prostíbulos. Troca-se a memória da dor e do prazer imoral, pela vivência de um puro prazer estético, moralmente permitido, embora, preferencialmente imposto, sem vínculo crítico com os objetivos políticos do poder. (MACIEL, apud RIVITTI; PIOLA, 2008, p. 08-09).

A crítica se dá, mais uma vez, quanto à tentativa de apagamento de eventos

dolorosos que hoje seria considerada um erro histórico e inadmissível em relação aos

54 Localizada em Moscou, a Praça Vermelha é marcada pelos desfiles militares da antiga União Soviética.

Apesar da origem do nome da praça não fazer referência ao comunismo, a sua fama é atrelada a esse passado.

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direitos humanos e aos abusos do poder do Estado, e infelizmente a memória está em

disputa porque o presente ainda está.

A exposição apresentava o processo utilizado pelo artista e as imagens

fotográficas que ganharam o nome de Panorama Praça Vermelha e que foram utilizadas

como referência para simulação de um objeto que não foi executado no espaço

projetado. As imagens da exposição tinham o intuito de mostrar a ideia do jardim,

direcionado para os edifícios, como crítica à negação da história pelos órgãos públicos.

(CAIXA CULTURAL, 2008)

Figura 55 - Exposição Praça Vermelha/ Operação Tutóia na Caixa Cultural, 2008. Fonte: CAIXA CULTURAL, 2008, p. 16.

Figura 56 - Quadros expostos no Caixa Cultural, 2008. Fonte: CAIXA CULTURAL, 2008, p. 10.

Diante da falta de sucesso na instalação da Praça Vermelha no Largo General

Osório, o artista procurou um outro local de passado histórico similar ao do DOPS, sendo

que a escolha não foi difícil, tendo recaído sobre o 36º Departamento de Polícia Militar da

Vila Mariana, o antigo DOI-CODI. Com o novo olhar, o artista teve que mudar de

estratégia, apresentou-se como um cidadão comum, e não como artista, e solicitou para

os policiais a implantação de um jardim no lugar. Diante do ocorrido, o artista percebeu

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que sua proposta não era mais uma intervenção pontual e, sim, uma operação, levando à

mudança do nome do projeto.

Em relatos de Maciel, esse caminho possibilitou a intervenção no DOI-CODI, não

havendo explicação incial sobre o simbolismo do jardim vermelho, o que evidencia como

o poder político ainda lida com seu passado em pleno século XXI, mesmo após tantos

erros cometidos:

A Operação Tutóia, nome que sucedeu a ideia da Intervenção, relembra em título as famosas operações militares, e salvo as diferenças entre os objetivos de cada uma delas – uma artística, as outras bélicas, suas analogias eram mantidas na maneira de tornar os escopos possíveis, através do cálculo das ações, da cautela e da ponderação dos passos a serem seguidos. (MACIEL, apude RIVITTI; PIOLA, 2008, p. 12)

Figura 57 - Projeto Operação Tutóia, 2008. Fonte: CAIXA CULTURAL, 2008, p. 31.

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O projeto de Piola também confere representatividade aos ex-presos políticos que

continuam reivindicando para que o local se torne um memorial, devido a sua história que

não pode ser apagada, mesmo com diversas tentativas de silenciar os fatos que

ocorreram dentro do edifício. Para Pollak (1989, p.3), é importante e necessário trazer à

tona as memórias silenciadas e traçar uma luta com as memórias oficiais:

Não se trata de historicizar memórias que já deixaram de existir, e sim, trazer à superfície memórias “que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível” e que “afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados”.

De acordo com o artista, a intervenção começou de forma morosa, em que foram

sendo substituídas uma planta por outra, pois queriam ser discretos e evitar desconfiança

dos responsáveis do local. A intervenção, a princípio de fácil execução, revelou aspectos

burocráticos e influenciou o artista a procurar novas estratégias para conseguir o que

queria.

O processo de plantação do jardim, apesar de demorado, foi impondo-se aos

poucos com a beleza da cor predominante juto ao edifício. É válido destacar uma reflexão

muito importante sobre o processo de crescimento da espécie da folhagem escolhida

para o jardim, que, quando podada, nasce como quer. Essa irreverência e resistência ao

corte faz uma analogia ao objetivo pretendido pelo artista com a intervenção.

Figura 58 - Projeto Operação Tutóia, 2008. Fonte: FERNANDO PIOLA, 2008, online.

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Figura 59 - Paisagismo DOI-CODI, 2008. Fonte: CAIXA CULTURAL, 2008, p. 26-29.

As imagens acima, feitas, provavelmente em 2008, mostram a grande quantidade

de folhagens vermelhas plantadas em praticamente todo o perímetro do 36°

Departamento Policial Militar. Porém, em visita realizada em dezembro de 2018,

constatamos que já não permanece tanta folhagem vermelha como antes, e que a

intervenção se encontra tímida em relação às imagens de 2008, sendo perceptível que

muitas folhas foram retiradas, conforme imagens comparativas abaixo:

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Figura 60 - Folhagens vermelhas predominavam junto ao edifício, c. 2008. Fonte: FERNANDO PIOLA, 2008, online.

Figura 61 - Folhagens mescladas em verde e vermelho no DOI-CODI, dez. 2018. Fonte:

Acervo Pessoal.

Segundo Piola, o uso da cor e da natureza podem funcionar de forma orgânica no

espaço urbano no intuito de questionar o espaço e a história. O uso do vermelho remete

aos negligenciados e também à violência tanto do regime militar quanto da marginalidade

que ainda faz parte do dia-a-dia, principalmente na região da Luz. A intervenção volta ao

passado, com o intuito, porém, de propiciar um processo de reflexão sobre o que será o

nosso futuro. Outro aspecto destacado pelo artista é a fragilidade e vitalidade da

vegetação que têm relação direta com a vida e resistência. Para ele, a natureza simbólica

da cor é de grande importância:

Tais dimensões se articulam nestes jardins monocromáticos que causam estranheza, e assim são capazes de desencadear um complexo jogo de ideias. Aposta-se que sejam provocadas reflexões sobre a história da cidade no seu próprio espaço através da experiência sensível associada ao contexto ao qual se insere. (PIOLA, 2008, online)

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3.3. Monumentos celebrativos

Em relação ao âmbito dos memoriais, foram elencados três exemplos de

memoriais de homenagem às vítimas da repressão para análise: o Memorial de Carlos

Marighella; o Memorial da Vala de Perus - Cemitério Dom Bosco e o Memorial dos

Desaparecidos da Vila Formosa.

3.3.1. Memorial Carlos Marighella

No caso do Brasil, em um recorte específico da memória relacionada à ditadura

civil-militar, um exemplo de monumento celebrativo é o que homenageia Carlos

Marighella, no local onde ele foi assassinado em 04 de novembro de 1969. Seu projeto e

instalação geraram discussões sobre a permanência ou não do monumento, como

veremos a seguir.

Marighella foi um líder comunista da organização clandestina Aliança Libertadora

Nacional e foi morto na Alameda Casa Branca, no Jardim Paulistano, área nobre de São

Paulo, após ser perseguido e encurralado pela Polícia Militar. Na época, o líder foi

sepultado como indigente e, em 1979, com a anistia concedida aos perseguidos da

ditadura, vários exilados voltaram ao Brasil e a família de Marighella conseguiu levar o

corpo para Bahia, seu estado natal.

Figura 62 - Marighella morto, foto destacada em sites atuais, s/d. Fonte: PINTEREST, online.

Durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso55, foi reconhecida a

culpa do Estado Brasileiro pelo episódio e, em novembro de 1999, trinta anos após a

55 Fernando Henrique Cardoso foi o 34º Presidente do Brasil entre 1995 e 2003.

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morte do líder, foi inaugurado um monumento de autoria do arquiteto Marcelo Ferraz,

membro da família do militante, em memória ao líder, representando o trauma relativo à

repressão ditatorial. Na ocasião, a companheira de muitos anos de Marighella, Clara

Charf, afirmou que os militares, no futuro, reconheceriam seu valor, pois o Estado já

havia assumido sua “culpa pelo assasinato” e indenizado a família de Marighella.

Desde sua instalação, a localização do monumento vem sofrendo ameaças,

necessidade de relocalização e vandalismos. A inauguração do monumento foi uma

homenagem promovida por um grupo de intelectuais e militantes, entre eles Oscar

Niemeyer, Mino Carta56 e Ricardo Ohtake57, que solicitaram ao então Prefeito de São

Paulo, Celso Pitta58, a utilização do espaço para memória do líder. Por outro lado,

existem pessoas que acreditam que Marighella seja um assassino, tendo sido

responsável pela publicação de um manual de guerrilha, documento que ensinava como

exterminar os comandantes do regime militar. Essa dualidade mostra que, mesmo depois

de trinta anos do seu assassinato, as narrativas e histórias sobre a oposição na ditadura

ainda são muito vibrantes e atuais.

Figura 63 - Homenagens feitas a Marighella – Memorial, s/d. Fonte: FOTOS PÚBLICAS, online.

O Memorial Marighella permanece sem placa e sem indicações que possam

estabelecer um vínculo com quem passa pelo local e de certa maneira é despercebido

pelas pessoas que circulam pela região. Essa falta de sinalização pode ser entendida

apenas como descaso ou, ainda, e mais grave, como mais uma tentativa de apagamento

56 Jornalista, editor e escritor ítalo-brasileiro.

57 Nascido em 1942, arquiteto pela FAU USP, e um dos mais reconhecidos profissionais da área no Brasil.

58 Celso Pitta foi prefeito da cidade de São Paulo de 1997 a 2001.

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de uma memória relacionada aos processos de responsabilização pelos crimes

cometidos no regime militar.

O processo de memorialização de lugares utilizados como instrumentos de

repressão ditatorial ainda é polêmico e gera controvérsias no Brasil, porém vivenciamos

um momento de poder de fala e de voz e tendenciamos cada vez mais a valorizar a

investigação de um passado de crimes como forma de denúncia para que o que

aconteceu no passado não se repita no futuro. Diante dessas afirmativas, museus e

memoriais tornam-se soluções dadas aos lugares de memória, porém é necessária uma

preocupação com a autenticidade de tais locais que não devem perder a essência diante

de um mundo que valoriza cada vez mais o “Turismo Dark”.

3.3.2. Memorial da Vala de Perus - Cemitério Dom Bosco

Como visto anteriormente, o ano de 1990 foi marcado pela descoberta da primeira

vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, região de Perus na cidade de São Paulo.

Nesse período foram encontradas diversas ossadas de vítimas e desaparecidos políticos

da repressão durante a ditadura civil-militar. Há relatos de que a vala já havia sido

descoberta desde 1970 por familiares de mortos políticos, mas que só pôde ser aberta

vinte anos depois, após saída dos militares do poder.

O envento de abertura das valas foi um marco para os familiares e vítimas da

ditadura, pois representou um avanço no processo de reconhecimento, pelo Estado

brasileiro, das violações aos direitos humanos cometidas durante o período ditatorial.

Diante deste fato, a Prefeitura de São Paulo propôs em 1992 um concurso que tinha o

intuito de fazer um memorial na vala clandestina.

A abertura do concurso foi unicamente mérito dos esforços dos familiares na luta

pela “verdade e justiça” no Brasil, na tentativa do resgate histórico aliado à atividade

arqueológica com intuito de reparar, através da denúncia, um histórico de traumas. Esse

quadro é retratado no livro Vala Clandestina de Perus (2012) conforme testemunho de

Suzana Lisboa, esposa de um dos integrantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN),

desaparecido e primeiro militante reconhecido nas escavações de Perus:

A ideia de fazer o memorial surgiu entre os familiares que compunham a comissão de trabalho sobre a vala de Perus, na prefeitura. Queríamos inaugurar o memorial no governo da Erundina para homenagear tanto os mortos e desaparecidos políticos, quanto a própria prefeita, com o empenho com que ela nos apoiou. [...] Depois de diversos problemas, decidiu-se pelo projeto do Ricardo Ohtake, mas tudo ocorreu muito em cima da hora no final do mandato dela. Até a inauguração foi rápida e discreta. (LISBOA, apud INSTITUTO MACUCO, 2012, p.30)

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No final de 1992, o memorial foi construído a partir da ideia de uma fissura no

chão, representando uma cicatriz, localizada na antiga vala clandestina. Sobre a fissura

foi erguido um muro vermelho que, de acordo com o arquiteto idealizador do projeto

Ricardo Ohtake, representava um desejo de “nunca mais” sermos obrigados a viver tanta

violência. No muro está escrita a seguinte frase:

Os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do Estado Policial, dos esquadrões da morte e sobretudo os direitos dos cidadãos pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos. (Luiza Erundina de Souza e Comissão de Familiares de Presos Políticos Desaparecidos)

Hoje o memorial homenageia de forma simbólica um passado cruel na tentativa

de construção da identidade dos familiares e sobreviventes, bem como de “abrir nossos

olhos” para um passado a que resistimos, sendo parte da paisagem histórica da cidade.

É válido ressaltar que ainda há possibilidade de existirem restos mortais no local.

Figura 64 - Memorial da Vala de Perus, s/d. Fonte: AGÊNCIA BRASIL, online.

3.3.3. Memorial dos Desaparecidos da Vila Formosa

Antes da inauguração do Cemitério Dom Bosco, o Cemitério Municipal de

Vila Formosa, inaugurado em 1949, fora local onde os presos políticos assassinados em

São Paulo eram enterrados de forma indigente. De acordo com Teles (2017), conforme

investigações produzidas pela CPI da Vala de Perus, e após descobertas de arquivos do

Instituto Médico Legal de São Paulo, haviam indícios de que outros cemitérios foram

utilizados para enterrar militantes no período da ditadura, sendo o Cemitério Vila Formosa

um deles.

Diante das investigações, foi localizado um documento referente a José

Ferreira Araújo, um ex prisioneiro político e apurou-se que ele havia sido enterrado com

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nome falso. Segundo estudo de Teles, em 1975, ocorreram algumas mudanças nas

quadras do cemitério que impossibilitaram encontrar os restos mortais de Araújo. De

acordo com a CPI da Vala de Perus, essas alterações foram feitas sem projeto,

descaracterizando o traçado das ruas que formavam as quadras.

Nesse contexto, as tentativas de encontrar os resquícios do corpo de Araújo foram

inúmeras, porém sem sucesso. Todavia, em 2004, foram encontrados os restos mortais

de outra vítima da ditadura conhecido como Virgílio Gomes da Silva, onde localizaram o

laudo necroscópico e a foto do corpo do desconhecido nos arquivos do DOPS/SP,

confirmando seu sepultamento como indigente no cemitério de Vila Formosa.

A documentação encontrada intensificou as investigações por parte do Ministério

Público de São Paulo, em 2010. Além disso, houve uma parceria por parte dos familiares

de Virgílio Gomes da Silva, com representantes do Ministério Público de São Paulo, da

Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos, do Instituto Nacional de Criminalística

do Departamento de Polícia Federal e do Instituto Médico Legal, que no mesmo ano

descobriram a vala de Vila Formosa, sendo encontrados cerca de noventa restos mortais

armazenados em sacos plásticos.

De acordo com testemunho de Adriano Peixoto, que acompanhou o processo de

investigações como presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia

Legislativa de São Paulo:

[...] foi realmente impressionante encontrar aquelas ossadas e descobrir que isso ocorreu em plena democracia e bem em frente da administração do cemitério. Quando eu achava que estávamos no fim das investigações, percebi que aquilo era apenas o começo. De início, não sabíamos se as ossadas tinham ligação com os presos políticos ou como foram parar na vala, porque não havia registro desses restos mortais em lugar nenhum [...] É preciso dizer que se deve investigar isso a fundo e punir os responsáveis por esse descaso humano, tanto no período ditatorial quanto na democracia. (PEIXOTO, apud TELES, 2017, p. 82)

No ano de 2016, familiares uniram-se ao arquiteto Marcos Cartum para debater o

projeto do lugar de recordação, que teria como objetivo homenagear as vítimas

enterradas como indigentes na vala comum de Vila Formosa. O projeto conta com uma

lâmina de concreto com aproximadamente 1,60m de altura e em frente a ela encontram-

se dez troncos de madeira dispostos em cima de uma laje de concreto, que representam

os dez desaparecidos homenageados no lugar.

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Figura 65 - Memorial Vila Formosa, s/d. Fonte: TELES, online.

Na época não foi solicitado um concurso público para elaboração do projeto,

assim como no Cemitério Dom Bosco, sendo voluntária a iniciativa de Cartum, que

destacou a importância de preservar a memória da violência praticada naquele local

como denúncia as violações dos direitos humanos.

Em dezembro de 2016, após esforço dos familiares para conseguirem doações, o

Memorial dos Desaparecidos de Vila Formosa foi inaugurado. A placa de concreto,

assinada pela Comissão de Familiares, faz referência a ditadura e ao papel dos militantes

que foram enterrados no local de maneira clandestina:

Eles defenderam a liberdade e a justiça. Sonhavam com um Brasil democrático, livre e digno. Foram assassinados sob tortura por agentes da repressão política e tiveram seus corpos ocultados nesse cemitério. Seus nomes são... [seguem os nomes com as devidas datas de nascimento e desaparecimento].

Figura 66 - Placa de concreto em homenagem às vítimas enterradas no Cemitério Vila Formosa, s/d. Fonte: TELES, online.

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3.4. Manifestações sociais

No que diz respeito às manifestações sociais que têm por objetivo denunciar as

atrocidades cometidas no regime militar, o trabalho procurou entender a história do

operário Santo Dias, figura que representou os trabalhadores no período da ditadura e

que, para alguns grupos, continua representando-os nos dias atuais.

3.4.1. A luta do operário Santo Dias

Santo Dias, nascido em 1942, no distrito de Terra Roxa, interior de São Paulo, era

lavrador e foi expulso da terra onde morava com a família, em 1961, após participar do

movimento de reivindicação por melhores condições de trabalho. Em 1962, o trabalhador

mudou-se para São Paulo na tentativa de uma vida melhor, onde começou a trabalhar

em uma fábrica em Santo Amaro chamada Metal Leve, e tornou-se um dos principais

líderes operários contra a ditadura militar e a opressão capitalista, sendo reconhecido e

respeitado entre os trabalhadores.

O operário foi membro da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSM/SP),

da Pastoral Operária, do Movimento Custo de Vida e das associações de bairro, além do

Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). Ao comandar um piquete de greve, foi morto com

um tiro na barriga por um policial. O movimento era pacífico e tinha a participação de

aproximadamente cinquenta operários.

Na época, o corpo do operário havia sido retido pela polícia, o que gerou grande

mobilização dos trabalhadores que protestaram contra o assassinato de Santo Dias e que

solicitaram a liberação do corpo. A partir da interferência dos sindicalistas, foi possível

velar o corpo na Igreja da Consolação, sendo que milhares de pessoas foram

homenagear o trabalhador.

Santo Dias tornou-se uma das principais figuras da memória da luta operária.

Familiares, amigos e operários criaram o Comitê Santo Dias para solicitar a condenação

do soldado Herculano Leonel, acusado de ter matado o operário. A organização tinha o

intuito de não deixar a história cair em esquecimento. Em 1982, após muitas

reivindicações, o policial foi condenado a seis meses de prisão, porém recorreu e o

processo foi arquivado.

Para o entendimento da história do trabalhador, existem duas fontes primordias

que auxiliam na pesquisa, sendo a primeira o livro Porque mataram Santo Dias:

quando os braços se unem à mente (1980), do filósofo da educação Paolo Nosella, em

que apresenta relatos da entrevista feita pelo autor a Santo Dias, que ocorreu cerca de

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um mês antes do assassinato do operário. Nessa entrevista, o operário descreve

situações vividas, a atividade sindical e as concepções sobre política. Já a segunda fonte,

é a biografia de Santo Dias elaborada por sua filha, Luciana Dias, em parceria com o

jornalista Jô Azevedo e a fotógrafa Nair Benedicto, que busca homenagear o pai através

do resgate de sua memória.

De acordo com o referido livro, Santo Dias não se sentia valorizado na empresa

em que trabalhava e não tinha perspectiva em relação ao crescimento no trabalho, sendo

que esses foram os motivos que o fizeram escolher pela luta sindical, sendo que o

trabalhador era muito engajado com os compromissos do sindicato.

Posteriormente, Santo Dias e sua esposa conseguiram comprar um terreno no

Jardim Santa Tereza que ficava perto da represa do Guarapiranga, onde construíram sua

casa. Nesse lugar, o casal participava das atividades da Igreja, sendo que Santo tornou-

se uma figura importante e participativa dentro da Igreja Católica. De acordo com Diniz

(2013, p. 60), o casal participava de comunidades eclesiais de base (CEB’s), além de

organizações populares dentro da Igreja Católica, segundo o autor:

Nos anos 1970 [...] A Igreja Católica é o principal agente de denúncia, tanto da violação dos direitos humanos como das mortes e desaparecimentos de lideranças comunitárias, quanto das questões sociais como a terra, a moradia, os alimentos, o preconceito racial e de gênero, além dos problemas que envolviam os operários na construção de uma nova forma de organização sindical. A Igreja Católica, nesse período, apoiou a formação de pastorais e movimentos que reivindicam melhores condições de vida para a população, sobretudo nas periferias.

O trabalhador passou por diversas empresas como Burdy, Bristan e MWM, até

1976. Em 1997, retornou a Metal Leve e acabou sendo demitido por ter se candidatado

como vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos da Cidade de São Paulo, onde criou

uma relação estreita com as causas sociais e trabalhistas. Além de estar envolvido com o

sindicato, o trabalhador também liderava grupos católicos que também foram resistentes

à opressão. Diante de tantas causas defendidas, Santo Dias foi considerado uma figura

emblemática e um dos principais alvos da polícia por representar uma liderança sindical,

mas também nas comunidades eclesiais de base, estando engajado com a resistência da

Igreja Católica. O operário também foi membro da Pastoral em conjunto com à

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil na cidade de São Paulo.

No dia 30 de outubro de 1979, após alguns anos de batalha e resistência, Santo

Dias, durante um piquete de greve, foi morto em frente à empresa Sylvania. Hoje, a

maioria dos trabalhos que se referem à história do operário, afirmam que ele foi um mártir

para os trabalhadores sociais e as comunidades ligadas à Igreja Católica em São Paulo.

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Na época, o operário João Ferreira junto com os familiares de Santo Dias, foram

ao Instituto Médico Legal acompanhar o corpo do operário, pois tinham medo de que

fosse ocultado. O próprio arcebispo Dom Evaristo Arns ajudou a reconhecer o corpo do

trabalhador, mas destacou a dificuldade de conseguir autorização para chegar perto do

corpo. A morte de Santo Dias gerou grande comoção popular e seu enterro foi

acompanhado de milhares de lideranças da Igreja Católica, além de vários

representantes dos sindicatos.

Figura 67 - Enterro de Santo Dias, c. 1979. Fonte: MEMÓRIAS DA DITADURA, 2018, online.

Diante da morte de Santo Dias, houve uma grande procisão da Igreja da

Consolação até a Praça da Sé, em São Paulo.

Após a morte do trabalhador, foi criado o Comitê Santo Dias, iniciativa do padre

Luiz Giuliani, que tinha como intuito manter a memória do operário e julgar o policial

responsável pela morte do trabalhador. De acordo com sua viúva, Ana Dias, “o objetivo

era manter a memória do Santo viva entre o povo; divulgar por todo o Brasil e fora do

Brasil o seu exemplo de luta; denunciar e solidarizar-se com todos que tombam pela

justiça” (DIAS, apud DINIZ, 2004, p. 289). O que se pode dizer é que o legado que Santo

Dias deixou foi a luta pela justiça social e a cidadania, mesmo com as limitações dos

tempos difíceis da ditadura.

Analisar a construção da memória de Santo Dias significa entender e resgatar o

movimento social e sindical brasileiro no processo de redemocratização no Brasil, através

da luta de seus companheiros de sindicato que, por diferentes razões, desenvolveram um

olhar crítico sobre a situação política e social a qual se encontravam:

A memória de Santo Dias foi construída por meio das relações sociais e políticas que estabeleceu durante sua vida, mas o seu uso, seja como inspiração ou homenagem, está carregado também de apropriações e de idealizações da figura do operário. Sua memória passa, portanto, a não somente pertencer a seus familiares e amigos, mas a todos aqueles que buscam em sua lembrança motivações e representações políticas que

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estejam ligadas às causas sociais dos pobres trabalhadores do campo e das periferias das grandes cidades. (DINIZ, 2013, p. 40)

Figura 68 - Viúva de Santo Dias, c.1979. Fonte: MEMÓRIAS DA DITADURA, 2018, online.

Figura 69 - Manifestações contra a morte de Santo Dias, 2018. Fonte: MEMÓRIAS DA DITADURA, 2018, online.

3.4.2. A memória de Santo Dias

Santo Dias morreu em 1979, lutando e mobilizando os trabalhadores. Sua morte

gerou grande comoção entre os operários e a Igreja, sendo que o seu legado foi sendo

incorporado aos companheiros de jornada. Esse entendimento da trajetória do

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trabalhador é de grande importância, pois mostra como a figura do operário tornou-se

simbólica não só para os trabalhadores, mas também para aqueles que reinvidicavam

melhores condições de vida.

Até hoje, quarenta anos após o assasinato do operário, ainda é realizada uma

manifestação, quase um ritual, em que diversas pessoas seguem para o local da antiga

fábrica Sylvania, hoje um condomínio residencial, e pintam a seguinte frase no chão:

“Aqui foi assasinado o operário cristão Santos Dias da Silva, em 30 de outubro de 1979,

pela ditadura militar”.

Figura 70 - Ato em frente à fábrica Sylvania, 1980. Fonte: ANTONINI, 2017, p. 95. Foto: Acervo Padre Luís Giuliani.

Figura 71 - Aniversário de 10 anos da morte de Santo Dias em frente à fábrica Sylvania, 1989. Fonte: ANTONINI, 2017, p. 95. Foto Acervo Padre Luís Giuliani. FONTE: ANTONINI, 2017, p. 96.

Foto: Acervo Comitê Santo Dias/ CEDEM-UNESP.

O que é importante destacar, é que apesar de não existir mais a representação

física da materialidade da antiga fábrica Sylvania, as pessoas continuam indo ao local

que carrega consigo valores afetivos e éticos. Apesar das mudanças do bairro e da

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paisagem, as pessoas se identificam com o lugar e o encontro acontece todo ano no

mesmo local, data e horário. Sendo assim, a memória continua através das

manifestações sociais e não mais pela materialidade. De acordo com Antonini (2017):

Para além do ato simbólico onde as pessoas se encontram, as sinalizações na rua em tinta vermelha mostram um uso resistente deste lugar que, além de contrariar sua transformação e a perda do referencial da fábrica, contesta até mesmo o uso esperado da rua. (ANTONINI, 2017, p. 103).

Figura 72 - Placa instalada em frente à antiga Fábrica Sylvania em homenagem a Santo Dias, s/d. Fonte: TUTAMEIA, 2018, online.

Conforme a viúva de Santo Dias, e após ter visitado o local trinta e oito anos após

o crime, a sensação ainda era a mesma, de tristeza. Para Ana Dias, as letras pintadas

em vermelho no chão representam o sangue que o marido havia deixado no lugar, mas

que deveria ser mostrado para que a memória do operário não fosse esquecida. Há

quarenta anos, todos os anos, amigos e familiares visitam o local da antiga fábrica e

depois caminham até o cemitério de Campo Grande, na zona sul de São Paulo e

realizam uma missa no túmulo do operário como forma de homenagem.

Sob essa ótica, é válido destacar que o fato de existirem expressões que buscam

preservar a memória de Santo Dias gera, em consequência, a criação de espaços de

reflexão e de resistência. Essa retomada da história de Santo, todos os anos, é uma

forma de lutar contra a opressão e a violência também no presente, contribuindo para o

debate sobre a memória na metrópole de São Paulo, principalmente a relacionada ao

período de repressão e violação de direitos.

A maioria das catástrofes do passado acabam assumindo um papel de divisão da

história em momentos únicos e cruciais que fazem com que as pessoas reflitam. De

acordo com Diniz:

Tempos de violência extrema e traumas podem ao mesmo tempo motivar novas lutas e reflexões [...] O holocausto nazista, mesmo com

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todas as evidências, ainda hoje é questionado quanto à sua proporção. No Brasil, mesmo diante das memórias de práticas de repressão e tortura, existem aqueles que tentam justificar o injustificável. (DINIZ, 2013, p. 110)

As práticas de rememoração do passado, mesmo que relacionadas a uma única

pessoa, como no caso do operário Santo Dias, são fundamentais para que as vítimas da

repressão e da violência do Estado não sejam esquecidas. Apesar de vivermos em outro

contexto, ainda existem discursos de ódio e de ataque aos direitos humanos. As ideias

sobre o período da ditadura no Brasil não são consensuais e ainda existem pessoas que

acreditam que o período do regime militar foi glorioso e que não houve ditadura. Esse

comportamento é preocupante, sendo todas as ações de memorialização de extrema

importância para prevenir e educar os jovens deste país.

A luta pelos lugares de memória relacionados à ditadura militar – sua preservação, transformação em memoriais, demarcação com placas, intervenções artísticas, etc. – representa um importante rompimento com o processo de apagamento da memória coletiva no chamado espaço amnésico e com o próprio silenciamento dessas memórias, encapado de maneiras mais ou menos explícitas. Trata-se de uma resistência nos dias atuais, constituída por reivindicações que se dedicam à transformação da postura presente e futura, incorporando o passado e iluminando suas contradições para transformá-lo em força no presente, como propõe Walter Benjamin nas teses “Sobre o conceito de história”. (BENJAMIN, 2008, apud ANTONINI, 2017, p. 34)

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CAPÍTULO 4

Para não dizer que não falei de outras dores...

Ao referenciar a canção escrita e cantada por Geraldo Vandré59 em 1968, num

dos momentos mais duros da ditadura brasileira, o presente capítulo procura trazer à

baila outras dores, relacionadas a memórias difíceis, que não apenas aquelas

relacionadas ao período da ditadura.

Com o intuito de mostrar o quão complexo e amplo é o universo das memórias

difíceis, serão apresentados três casos referentes a distintas naturezas de memórias

difíceis, relacionadas a lugares reconhecidos pelos órgãos de preservação como

patrimônio cultural de São Paulo, cidade ou Estado.

4.1. O Carandiru

No caso da cidade de São Paulo, apontamos, primeiramente, o Complexo

Penitenciário Paulista, conhecido como Carandiru, como lugar de memória relacionada a

dor de um passado recente que ainda gera muitos debates públicos sobre o sistema

penal brasileiro, e cujo ápice ficou representado pela chacina ali ocorrida em 1992,

trazendo complexas questões políticas. A reportagem abaixo, publicada em 2016, mostra

a contemporaneidade do caso que ocorreu há alguns anos atrás:

No dia 02 de outubro de 1992, a Polícia Militar de São Paulo invadiu a penitenciária do Carandiru para reprimir uma rebelião. A ação matou 111 presos em meia hora. As fotos dos corpos, nus e enfileirados no chão de concreto, correram o mundo como um símbolo da barbárie brasileira. O massacre também se tornou sinônimo de impunidade. Depois de 24 anos nenhum policial foi preso. Autoridades da época, como o governador Luiz Antônio Fleury Filho, nem chegaram a ser processadas. Agora o caso ganha mais um capítulo vergonhoso. O Tribunal de Justiça anulou os julgamentos que condenaram 74 PM’s. Todos recorriam em liberdade, apesar da gravidade dos crimes e das penas de até 624 anos de prisão. O relator do recurso, desembargador Ivan Sartori, defendeu a absolvição dos PM’s. Ao justificar o voto, ele tentou reescrever a história. “Não houve massacre, houve legítima defesa”, afirmou. A declaração é espantosa, pois as vítimas estavam desarmadas e todos os policiais saíram vivos. A perícia contou uma média de 5 tiros por corpo, muitos

59 Compositor da música “Pra não dizer que não falei das flores”, que conquistou o segundo lugar no Festival

Internacional da Canção, em 1968. O tema tornou-se um dos hinos da resistência ao sistema ditatorial

militar que vigorava na época. A canção foi censurada na época e Vandré foi perseguido pela polícia

militar.

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disparados pelas costas e pela cabeça. (FRANCO, 2016, apud TRINDADE, 2016, p.5)

Figura 73 - Corredor Carandiru alagado de sangue, após massacre, s/d. Fonte: UOL, online.

No momento da reportagem, em 2016, discussões de diversos grupos sobre o

assunto ganhavam maior visibilidade contra a decisão mais recente do Tribunal de

Justiça. A história tem dois lados, dividida em posições muito distintas: um lado acredita

que o massacre foi proposital e desumano, diante das condições dos presos que

estavam desarmados, enquanto o outro lado alega que a Polícia Militar, liderada pelo

coronel Ubiratan Guimarães, com o objetivo de acalmar a rebelião no local, agiu em

legítima defesa.

O Complexo Penitenciário Paulista, conhecido como Carandiru, localizado na

Zona Norte da cidade de São Paulo, foi construído entre as décadas de 191060 e 1920, a

cargo do Escritório Técnico de Ramos de Azevedo, autor do projeto, com a criação da

Penitenciária do Estado. Era um projeto inovador, que buscava, de forma pioneira a

regeneração do preso e sua reinserção na sociedade.

60 Sua pedra fundamental foi lançada em 1911.

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Figura 74 - Carandiru antes da rebelião, s/d. Fonte: SÃO PAULO ANTIGA, online.

Figura 75 - Carandiru antiga, s/d. Fonte: SÃO PAULO ANTIGA, online.

No intuito de resolver o problema de superlotação na unidade original, a partir de

1950, foram construídas, junto à Penitenciária, a Casa de Detenção, a Penitenciária

Feminina e o Centro de Observação Criminológica. O complexo chegou a ter oito mil

detentos, extrapolando a sua capacidade de abrigar menos de três mil presos, sendo

considerado um dos maiores do mundo.

No ano de 2001, nove anos após o massacre, foi publicada no dia 12 de

novembro de 2001, a Resolução nº 15/CONPRESP/2001 que tinha o objetivo de dar

continuidade ao processo aberto em 1997, conforme trecho abaixo:

Artigo 1° - Fica aberto o processo de tombamento do Conjunto de Edifícios da Penitenciária do Estado de São Paulo, da Casa do Administrador e da Vegetação Remanescente da Mata Atlântica, existentes no denominado Complexo Penitenciário do Carandiru, bairro de Santana, que corresponde à Quadra 09 – Setor 304, do Cadastro

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imobiliário municipal e conforme contido no processo administrativo nº 1997-0.125.758-8. (CONPRESP, RES. 15/2001)

Em 2002, a penitenciária foi desativada por completo, sendo implodidos os

pavilhões 6, 8 e 9, sendo o último, o local da tragédia. Somente dois pavilhões foram

mantidos, ganhando novos usos com uma pequena referência à história que marca o

lugar. Nesses pavilhões foram criados o famoso Parque da Juventude na tentativa de

apagar uma memória traumática através da criação de uma área verde. Junto ao parque,

foram criadas uma biblioteca e duas escolas técnicas.

Figura 76 - Pavilhões 6,8 e 9 implodidos em 2002. Fonte: UOL, online.

No que se refere ao parque criado, no site da Prefeitura, é possível encontrar uma

breve referência ao passado do lugar, o que mostra que sua história não é explorada

integralmente. O espaço físico criado não possui menção ao seu passado e história,

sendo mantida somente a muralha de pedras que facilitava a vigia dos agentes da

penitenciária.

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Figura 77 - Projeto do Parque da Juventude, Biblioteca e duas escolas técnicas (ETEC’s). Fonte: SPBAIRROS, online.

Em 2007, as escolas técnicas iniciaram suas atividades, recebendo como

complemento o Espaço Memória do Carandiru, que tem o intuito de propagar a memória

oficial do ocorrido, porém a exploração da história ainda é tímida.

Em 2014, o Museu Penitenciário passou a funcionar nas dependências do antigo

complexo do Carandiru, incorporando um novo acervo de objetos deixados pelos presos,

como facas e objetos cortantes, por exemplo, sendo uma forma de mostrar os processos

de resistência dos presos frente aos regimes institucionais e denunciando a negligência

carcerária. De acordo com informações do site do museu, sua missão seria criar um

espaço aberto ao público em geral, capaz de propiciar a reflexão sobre a história

penitenciária (MUSEU DO CARANDIRU, online).

Em relação ao processo de preservação do Complexo Penitenciário do Carandiru,

o DPH propôs o tombamento total do conjunto incluindo os pavilhões originais e

projetados pelo Escitório Técnico de Ramos de Azevedo. Contudo, de acordo com

publicação no Diário Oficial do dia 27/05/2018, o CONPRESP aprovou o tombamento

parcial do conjunto.

Segundo reportagem do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), publicada

no seu site, a arquiteta Marianna Boghosian (2018, apud CAU, 2018, online), conselheira

do CONPRESP como representante do Instituto de Arquitetos Brasileiros (IAB), foi

contrária ao tombamento parcial do Carandiru, alegando ser a favor do tombamento do

complexo como um todo, incluindo documentos sobre o tema: “eu recomendei que fosse

discutido a abertura dos acervos que têm obras e relatos de como a penitenciária

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funcionava. É bastante importante do ponto de vista da memória”. Ainda de acordo com a

conselheira:

A gente não deve apagar a memória da dor. Se fosse isso todos os Campos de Concentração deveriam ser destruídos. É importante deixar as marcas dessa dor para que não se repitam atrocidades como essa na nossa história. (BOGHOSIAN, 2018, apud CAU, 2018, online).

No dia 27 de março de 2018, após diversas discussões, o processo relativo ao

Tombamento do Complexo Penitenciário do Carandiru foi deferido, gerando a Resolução

nº 38/CONPRESP/2018, ainda não publicada. Tombamento, reiteramos, de apenas uma

parte do complexo. Segue a síntese e considerações da arquiteta Marianna Boghosian,

conselheira do IAB e membro do CONPRESP, a favor do tombamento integral do

conjunto:

Note-se o papel paradigmático que o conjunto denominado Complexo do Carandiru possui como lugar de memória quer seja em âmbito local ou municipal, quer seja em âmbito nacional, ao operar como referencial simbólico e como vestígio material de condutas assumidas e relação ao encarceramento ao longo do século XX. Os vestígios materiais ainda existentes remontam por um lado a história do presídio modelo – que se tornaria referência internacional segundo os mais modernos conceitos em sua época do entendimento do encarceramento como alternativa para a regeneração e reintegração à sociedade, e por outro trazem à tona as memórias ainda dolorosas e polêmicas do trauma que entrou para a história recente como “massacre do Carandiru”. Tendo em vista o extenso material acerca das recentes intervenções empreendidas na Penitenciária do Estado que evidenciam não haver incompatibilidade entre a preservação e seu uso atual. Gostaríamos ainda de sugerir o estudo para a abertura de processo de tombamento de dois acervos, já sob a guarda do Estado, que viriam a reforçar a compreensão das dinâmicas e do cotidiano da população carcerária que ali habitou em dois momentos distintos: o acervo do Museu Penitenciário e o acervo do Espaço Memória Carandiru. (BOGHOSIAN, 2018, apud ATA..., 2018, online)

Após o relato da arquiteta, foi realizada a votação e os membros do CONPRESP

foram favoráveis à proteção de apenas alguns itens da proposta técnica do DPH, sem

área envoltória e sem considerar os acervos conforme solicitado por Boghosian. Porém é

válido ressaltar que a sugestão foi encaminhada ao DPH para análise, ou seja, não foi

descartada essa hipótese relacionada aos acervos.

O tombamento do Carandiru é recente e ainda não foi publicizado, pois a

Resolução ainda não foi publicada, mas poderá gerar muitas discussões acerca do que

deveria ter sido mantido e das narrativas acerca do complexo. É bastante discutível, por

exemplo, a exclusão do tombamento do conjunto original dos pavilhões projetados pelo

escritório de Ramos de Azevedo, referência acima apontada por Boghosian do presídio

modelo então concebido entre as décadas de 1910 e 1920.

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Um segundo exemplo de lugar de memória difícil é o da Casa da Dona Yayá e

está associado à memória da loucura e enclausuramento, como veremos a seguir.

4.2. A casa da dona Yayá

A Casa da Dona Yayá é um imóvel situado no bairro do Bexiga61, na área central

da cidade de São Paulo, que, após o falecimento de sua proprietária original, foi

transferido para a USP como herança, pois não haviam herdeiros.

Antes disto, a casa, durante anos, foi local de residência e de tratamento mental

da última herdeira do imóvel da família, a Dona Sebastiana de Mello Freire, mais

conhecida como Dona Yayá. A herdeira, devido à sua doença mental, foi considerada

incapaz de administrar sua fortuna e, assim, mantida presa em sua própria residência

entre 1921 a 1961, aproximadamente durante 40 anos. Várias reformas foram realizadas

na casa originalmente construída, garantindo o isolamento da paciente que era exigido no

tratamento. A casa, além de suas características arquitetônicas, é cenário de discussões

sobre a forma de construir e morar no século XX.

O imóvel foi tombado em 1998 pelo CONDEPHAAT, através da Resolução SC

37/98, datada de 02 de abril de 1998 e publicada no DOE de 04/04/98. O referido

documento assim descreve o imóvel tombado:

Artigo 1º - Fica tombado como um bem de importância cultural e histórica para a cidade de São Paulo a residência situada na Rua Major Diogo, 353, nesta Capital, destacando-se que as obras de restauro que vierem a ser realizadas no referido bem não poderão subtrair os testemunhos materiais que o tornaram abrigo de uma doente mental, sua antiga proprietária. Procura-se assim manter esta casa como representação das formas da sociedade tratar a loucura no início do século XX. (CONDEPHAAT, RES. SC 37/98)

Além do tombamento estar diretamente ligado à loucura, a justificativa também

foca na excepcionalidade desse imóvel, apresentado como fiel ao estilo eclético muito

difundido entre meados do século XIX e início do XX. Reconhecido por seu valor

arquitetônico, foi recomendada proteção total de suas características tanto internas

quanto externas. O CONDEPHAAT (s/d, online) assim justifica o seu tombamento:

Sebastiana de Mello Freire, carinhosamente chamada de Yayá, nasceu em 21 de janeiro de 1887. Aos 13 anos de idade perdeu seus pais e, poucos anos depois, seu último irmão. Herdeira de uma grande fortuna e dona de uma personalidade voluntariosa e exigente, não se casou. Aos 31 anos apresentou os primeiros sinais de desequilíbrio emocional,

61 O Bairro do Bixiga é um dos mais tradicionais de São Paulo e formado em grande parte por imigrantes italianos.

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sendo interditada no ano seguinte e internada por um ano no Instituto Paulista. Após deixar a clínica, viveu até o final dos seus dias, em 1961, segregada em sua residência, pequena chácara localizada próxima ao centro. A casa é exemplar remanescente significativo das transformações do bairro em razão do crescimento da cidade, mas, sobretudo, é testemunho material das formas pelas quais a sociedade entendia e tratava a loucura nos primeiros sessenta anos deste século.

O que chama atenção na justificativa do tombamento é a história e a memória que

a casa carrega, baseada na loucura e o seu tratamento em uma época em que se

acreditava que o enclausuramento da pessoa afetada era a solução. Hoje, existem

discussões que afirmam que a loucura de Yayá se intensificou com o tratamento dado,

que a manteve prisioneira dentro de sua própria casa, que foi totalmente adaptada ao seu

diagnóstico.

Na esfera municipal, o tombamento da Casa da Dona Yayá integra a relação de

imóveis tombados no bairro da Bela Vista, conforme indicado na Resolução nº

22/CONPRESP/2002.

Figura 78 - A Casa da Dona Yayá, s/d. Fonte: SPCITY, online.

Por muitos anos, Yayá não pôde ver o sol, porém, em 1952, foi feita a última

reforma na casa para construção de um solarium para banhos de sol. Apesar da

ampliação da edificação, poucas vezes a paciente foi levada ao local. Em 1961, aos 74

anos, Yayá morreu supostamente de um câncer no estômago, resultado da quantidade

de remédios que a paciente tomava. O tombamento, além de analisar as características

da casa como um todo, com qualidades ecléticas e de refinamento, também focou na

história atrelada à loucura e é um exemplo significativo da valorização da memória de um

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lugar e de todos os valores que este carrega e não apenas da mera análise de materiais

e técnicas construtivas da residência.

Figura 79 - A escadaria da Casa da Dona Yayá, s/d. Fonte: BOISCHIO, online.

Em 2003, depois de muitas discussões sobre como intervir no local, o imóvel

passou a abrigar a sede do Centro de Preservação Cultural da Universidade de São

Paulo (CPC-USP), que assumiu a conservação da casa. A ideia é que o imóvel possa

atrair práticas culturais, focando na inclusão social e na extensão universitária. Hoje, o

local tem como programação a educação patrimonial, cursos, oficinas, palestras,

simpósios, comunicação museológica entre outros, o que mostra uma preocupação cada

vez maior da sociedade civil em debater sobre as questões relacionadas a proteção do

patrimônio cultural.

Como pudemos analisar neste capítulo, categorias como patrimônio, memória,

passado e futuro podem ser mobilizadas no intuito de incentivar uma reflexão e discussão

em torno das intervenções possíveis e registros necessários. Os lugares de memória são

reflexo e testemunho da história e suportes materiais de acontecimentos do passado e

suas memórias sociais. Esses lugares são carregados de especificidades e manifestam o

que se chama “espírito do lugar”, amparado em sua materialidade:

[...] “lugar”? [...] Pensamos numa totalidade construída de coisas concretas que possuem substância material, forma, textura e cor. Juntas, essas coisas determinam uma “qualidade ambiental” que é a essência do lugar. Em geral, um lugar é dado como esse caráter peculiar ou “atmosfera”. Portanto, um lugar é um fenômeno qualitativo “total”, que não se pode reduzir a nenhuma de suas propriedades, como as relações espaciais, sem que se perca de vista sua natureza concreta. (NORBERG-SCHULZ, 2006, p.444-445).

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O ato de enfrentar o trauma através da pesquisa e das conferências de debates

permite que os indivíduos assimilem a verdade e entendam os fatos ocorridos. Este

acontecimento é necessário para construção de uma narrativa e identidade nacional.

4.3. As colônias de hanseníase

Uma outra situação diferente é o caso de lugares de memória difícil relacionados

ao confinamento devido à doença, como no caso da hanseníase, antigamente conhecida

como lepra ou como Mycobacterium leprae, é uma doença crônica e infectocontagiosa

que causa lesões na pele e danos nos nervos. Esse tipo de doença até hoje desafia a

medicina no que diz respeito à sua propagação e tratamento. A partir do século XX, a

lepra passou a ser considerada como um problema de saúde pública, sendo vista como

uma “enfermidade” que necessitava de pesquisa, conhecimentos científicos e medidas de

prevenção. De acordo com o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela

Hanseníase (Morhan)62:

Na década de 20 havia um clima de pânico social em relação aos doentes. Marginalizados, os portadores de hanseníase não podiam trabalhar e, sem condições de subsistir, mendigavam pelas ruas. No primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-45), o combate à “lepra” foi ainda mais disciplinado e sistematizado. Reforçou-se, então, a política de isolamento compulsório que mantinha os doentes asilados em hospitais-colônia. (MORHAN, 2007, apud BEZERRA E SERRES, 2015, p.176).

Foi neste momento que surgiram redes de modelos hospitalares baseadas no

confinamento e no isolamento em vários países do mundo, sendo essas redes

conhecidas como Asilos Colônia que funcionavam como pequenas cidades para abrigar

os doentes que deveriam estar afastados da sociedade e recebendo tratamento. Os

hospitais-colônia foram produtos de políticas segregacionistas e sanitárias, entre os

séculos XIX e XX, e foram muito debatidas nas Conferências de Lepra63. No Brasil, o

combate à lepra ganhou destaque durante o Governo Vargas com a instauração do

Estado Novo, período em que a doença era sinal de atraso na medicina.

62 O Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase é uma instituição sem fins lucrativos, criada no Brasil, em 1981, com o objetivo de reinvidicar e conquistar os direitos junto ao poder público no intuito de reconhecer a memória das pessoas que viveram nas colônias de hanseníase através de um estímulo à empatia e construção de uma solidariedade social.

63 A Primeira Conferência Internacional sobre Lepra aconteceu em 1879, em Berlim.

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Figura 80 - Cartazes da Campanha do Serviço Nacional de Educação Sanitária, s/d. Fonte: Acervo Museu Emílio Ribas.

Os hospitais dos leprosários, no caso do Brasil, foram construídos a partir de 1935

por solicitação do Ministério da Saúde, a partir da ideia de confinamento. Eram

construídos em lugares afastados da mancha urbana, com difícil acesso e organizados

em moldes de pequenas colônias que possuíam escolas, praças, dormitórios, prisões,

cemitérios e refeitórios.

No dia sete de maio de 1962, de acordo com publicação do Decreto Federal n°

968, foi determinado o fim do isolamento compulsório, porém a maioria das pessoas e

doentes permaneceram em seus locais de isolamento, sem expectativa de vida em novos

lugares. Segundo decreto:

Parágrafo único. No combate à endemia a leprótica será, sempre que possível, evitada a aplicação de medidas que impliquem na quebra da unidade familiar, no desajustamento ocupacional e na criação de outros problemas sociais. (DECRETO FEDERAL 968/1962)

De acordo com as técnicas do CONDEPHAAT Daniele Bezerra e Juliane Serres

(2015): “os hospitais-colônia podem ser considerados lugares de memória, uma vez que

configuram como lugares “onde a memória trabalha” na evocação de emoções negativas

que marcaram mais de uma geração”.

As colônias representavam locais de sofrimento marcados pela separação de

pessoas doentes de seus familiares, pois a legislação estabelecia que pacientes que

engravidassem dentro das colônias deveriam ser afastados dos filhos e mantidos

isolados nessas pequenas cidades. Hoje existem algumas políticas de indenização às

vítimas desse período como forma de reparação às injustiças cometidas e a criação de

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diversos memoriais e museus que preservam o interior de hospitais-colônia, e mesmo o

tombamento desses asilos-colônias, como tentativa de reconhecimento de eventos

traumáticos do passado.

Figura 81 - O Asilo Colônia Pirapitingui, s/d. Fonte: Infopatrimônio, online.

Integrando a rede estadual de outros asilos, destacamos, no presente trabalho, o

Asilo Colônia Pirapitingui, localizado entre Sorocaba e Itu. O asilo fez parte da rede

paulista de profilaxia e tratamento da hanseníase, entre os anos de 1930 e 1960, em um

contexto de ações que tinham como intuito o isolamento forçoso de portadores da

doença, tendo sido também construídos neste período, os asilos colônias de Santo

Ângelo (Mogi das Cruzes), Aimorés (Bauru), Cocais (Casa Branca) e Padre Bento

(Guarulhos). Os médicos da época, relatam que a lógica arquitetônica tinha como

premissa a internação obrigatória e o afastamento da sociedade em um mundo

disciplinador e sanitarista.

O Asilo Colônia Pirapitingui é um entre outros tombados pelo CONDEPHAAT,

sendo um dos maiores da rede e cenário de revoltas e tentativas de fuga dos internos,

além de palco para medidas de punição em complexos hospitalares da época. Hoje, a

instituição continua com o tratamento para hansenianos e outros tratamentos médicos.

De acordo com a Resolução de Tombamento SC 66 do CONDEPHAAT, de 19 de

dezembro de 2017, publicada no Diário Oficial em 22/12/2017, tendo o processo sido

aberto em 2014 (Processo nº 72097/14), assim foi definido o imóvel protegido:

Artigo 1º. Fica tombado como bem cultural de interesse histórico, arquitetônico, artístico, turístico, paisagístico e ambiental o antigo Asilo Colônia Pirapitingui, no município de Itu, formado por edificações e remanescentes relacionados à rede asilar, implantada durante o programa de tratamento da hanseníase no Estado de São Paulo. (CONDEPHAAT, RES. 66/2017)

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O tombamento, além de reconhecer o valor cultural da história do tratamento da

hanseníase, delimitou um perímetro de proteção e alguns cuidados em relação às

características arquitetônicas também indicadas na Resolução. O tombamento das

colônias de hanseníase é um reflexo das políticas públicas de preservação em lugares de

memória difícil e não necessariamente àquelas ligadas ao período da ditadura.

Figura 82 - Perímetro de Tombamento Colônia Pirapitingui, 2015. Fonte: DOE, 2017.

Ao analisar as decisões em relação ao tombamento, verifica-se que a atribuição

de valor a memória difícil não é indicada nos “Considerandos” da Resolução, em que se

justificam os motivos do reconhecimento do imóvel ou artefato como bem cultural.

Contudo, fica evidente o valor dado a rede asilar e ao tratamento da doença que ainda é

socialmente estigmatizada. O tombamento não deixa de ser visto como um ato de

inclusão, neste caso, através da atribuição de valor a um lugar com a essência da doença

que ainda requer o afastamento dos portadores dos demais e que, consequentemente,

ainda é excludente.

O processo de identificação do Asilo Pirapitingui é um dos exemplos de como o

campo da preservação do patrimônio teve que lidar com uma memória pouco conhecida

e marginalizada, cuja compreensão da sociedade ainda é permeada pela restrição.

Representa, também, e como já citado anteriormente, a expansão do conceito de bem

cultural:

A proposta técnica de preservação dos remanescentes permite a leitura da rede paulista de profilaxia e tratamento da hanseníase e sua dinâmica inerente, inclusive atribuindo valor aos vestígios daquilo que não está materialmente representado nos conjuntos, como os cemitérios e os acervos. É a oportunidade de reconhecer a memória de um passado quase esquecido por ser doloroso e indesejável. (BEZERRA; SERRES, 2015, p.173)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A temática do presente trabalho surge a partir de uma inquietude em relação a

como lidar com lugares de memórias difíceis e quais são as iniciativas de preservação

nesses locais. No Brasil, as memórias difíceis começam a ganhar visibilidade no na

década de 1980, período de redemocratização. Mais recentemente, há um processo de

ampliação desse tema no campo do patrimônio cultural.

Neste sentido, o presente trabalho procurou elencar algumas ações de

preservação de lugares de memória difícil, relacionados principalmente à repressão

estatal entre 1964-1985 em São Paulo, destacando que a preservação desses lugares é

fundamental para o resgate do passado como denúncia a eventos de dor, no contexto de

democracia.

De acordo com Meneses (2018), todos devem ter direito à memória e os crimes

de violações aos direitos humanos devem ser divulgados e não podem ser esquecidos,

garantindo ação educativa e prevenção de eventos traumáticos no futuro. Neste contexto,

a memória torna-se um mecanismo de justiça, pesquisa e investigação. Sob essa ótica,

os lugares de memória e consciência, principalmente relacionados a eventos traumáticos,

ancoram a preservação da memória.

Alguns territórios são evidentes por expressar de forma emblemática a memória

de grupos sociais específicos, outros consagram-se como lugares estratégicos para a

construção de identidades nacionais ou regionais, outros perpetuam-se na memória

coletiva como cenário de experiências individuais ou coletivas que geram sofrimento,

outros revestem-se de significados específicos para a narrativa histórica de determinados

grupos sociais (Cymbalista, 2018, online). Esses lugares se traduzem em dilemas

estruturais da sociedade como questões de: raça, cor, minorias étnicas, entre outros.

Neste contexto, a preservação dos lugares de memória, é entendida como uma

série de ações que envolvem a esfera pública e a privada englobando a identificação, o

reconhecimento do valor cultural, a proteção física e a valorização de lugares de

memória.

O trabalho analisa três exemplos de tombamentos que são inovadores no que diz

respeito à atribuição de valor à violência institucionalizada como: o Presídio Tiradentes,

DEOPS e o DOI-CODI. Todavia, apesar do avanço em relação à preservação da

memória intangível das atrocidades cometidas pelo Estado, os órgãos de preservação

ainda possuem obstáculos em relação a gestão pós-tombamento.

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No caso do Presídio Tiradentes, o arco que restou do edifício não consegue

representar a memória do lugar, pois encontra-se pichado e sem nenhuma referência

sobre a história do período ditatorial e do sistema carcerário da época. O DOI-CODI

apresenta dilemas em relação ao uso que geram discórdia entre os policiais e os

familiares de ex-presos políticos, sendo que os primeiros são a favor da permanência do

36º Distrito Policial da Vila Mariana e os outros, solicitam um uso destinado a um

memorial que homenageie as vítimas da repressão. O caso do DEOPS/SP, atual

Memorial da Resistência, o edifício passou por uma reforma que foi considerada

irreversível no sentido de preservar as celas do período da ditadura, porém,

posteriormente houve um grande esforço da ação museológica em reparar este dano

causado à preservação da memória do período ditatorial, tanto que alguns vestígios que

haviam sido apagados das celas foram reescritos por amigos e familiares dos antigos

detentos.

Ao citar ações como as intervenções artísticas de Fernando Piola, é possível

constatar que a intervenção Praça Vermelha/Operação Tutóia, aparentemente simples,

ainda gera discussões acerca da dualidade entre opiniões sobre a retomada desse

passado, salientando que a memória ainda é mecanismo de justiça e de interesses

políticos.

Os acontecimentos baseiam-se em experiências vividas no cotidiano de cada

indivíduo que foram selecionadas pela memória. Os personagens contribuem para o

processo de construção da memória, é através de suas narrativas que a memória se

propaga de geração a geração como herança cultural.

Sob essa ótica, os operários que todos os anos fazem homenagens a Santo Dias,

estão garantindo a propagação da memória como legitimação da luta dos sindicatos dos

trabalhadores, e também mostrando a verdade aos mais jovens que não viveram o

período da repressão, mas que sentem empatia com a história de Santo. Desta forma, é

como se fossem representados pela memória do operário e é como se fizessem parte do

contexto social da época da ditadura.Como vimos anteriormente, e de acordo com Pollak

(1992), esses acontecimentos são “vividos por tabela”, ou seja, não são todas as

impressões que temos do passado que fazem parte da nossa realidade de vida, algumas

lembranças são incorporadas ao nosso dia-a-dia e acabam fazendo sentido para nossa

existência.

Neste contexto, tanto os edifícios, quanto os memoriais, intervenções artísticas e

até rituais, são mecanismos que dão continuidade a preservação da memória de

determinados grupos sociais. Em relação ao Memorial da Vala de Perus e do Memorial

de Desaparecidos da Vila Formosa, esses não foram apenas criados para homenagear

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as vítimas da repressão que foram enterradas como indigentes e sem dignidade, os

memoriais representam um sentimento de inconformidade com a capacidade humana de

cometer barbaridades como ocultar diversos corpos em valas clandestinas. Até hoje

existem famílias que não sabem sobre o paradeiro de seus entes queridos e que clamam

para que pelo menos a memória de seus familiares seja mantida como denúncia à crimes

que são inadmissíveis. A democracia foi uma conquista, porém ainda é ameaçada, sendo

primordial a preservação dos lugares de memórias difíceis para “abrir os olhos” dos

jovens e evitar que acontecimentos absurdos do passado, que põem em risco a condição

humana e que censuram qualquer tipo de opinião contrária, não sejam repetidos.

Em relação ao Carandiru, a casa da dona Yayá e as colônias de hanseníase,

apesar de não serem lugares de memória relacionados à repressão da ditadura, também

são locais de reflexão e estão atrelados e ligados no que diz respeito a lugares prisionais

e ausência de liberdade, que também ferem a dignidade humana.

A chacina do Carandiru deixou cerca de 111 mortos e a história é marcada por

dois lados: um que acredita que o massacre foi proposital e desumano, e outro que alega

que a polícia agiu em legítima defesa. O lugar sofreu uma intervenção arquitetônica que

se refere a história do antigo presídio de forma superficial, sendo assim, o direito à

memória, neste caso, não é garantido, pois é evidente a tentativa de apagamento da

história traumática do local. Em relação a casa da dona Yayá, o passado traumático é

relacionado à prisão de uma pessoa com problemas mentais que, devido às suas

condições de saúde, foi restrita durante quase toda a sua vida a limitar-se ao espaço da

casa, que foi adaptada de forma a evitar o contado da Yayá com o mundo exterior. Essa

restrição, também pode ser identificada no caso das colônias de hanseníase, que devido

às políticas sanitaristas, afastavam e excluíam os pacientes do contato com a sociedade

e com os familiares. Ambos os casos estão relacionados a restrições de liberdade, pondo

em xeque à dignidade humana.

O trabalho considerou pertinente fazer a análise desses outros tipos de memória,

pois vivemos em um mundo de transformações, onde a todo momento novos lugares de

memórias difíceis vêm surgindo, como o caso do incêndio do Museu Nacional no Rio de

Janeiro (2018), a tragédia de Brumadinho (2019), as catástrofes naturais, as chacinas em

espaços públicos, entre outros. Apesar de grande parte do trabalho fazer referência a

memória da ditadura, período em que o passado de dor ganha visibilidade e passa a ser

estudado, é pertinente destacar que os lugares de memória fazem parte do cotidiano e

que outros tipos de memórias difíceis surgirão. Cabe uma ação conjunta das políticas de

preservação com os grupos sociais, no sentido de propagar a memória às futuras

gerações, como garantia da democracia e prevenção de eventos dolorosos no futuro.

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REFERÊNCIAS

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ANEXO 01

RESOLUÇÕES DO CONDEPHAAT

CONDEPHAAT, RES. SC 59/1985 - Tombamento Arco Presídio Tiradentes

CONDEPHAAT, RES. SC 37/1998 - Tombamento Casa da Dona Yayá

CONDEPHAAT, RES. 28/1999 - Tombamento do antigo DOPS

CONDEPHAAT, RES. SC 25/2014 - Tombamento OBAN e DOI-CODI

CONDEPHAAT, RES. 66/2017 - Tombamento Colônias Hanseníase Pirapitingui

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ANEXO 02

RESOLUÇÕES DO CONPRESP

CONPRESP, RES. 05/1991 - Tombamento ex-officio Portal de Pedra Presídio Tiradentes

CONPRESP, RES. 15/2001 - Tombamento Complexo Penitenciário Carandiru

CONPRESP, RES. 22/2002 - Casa da Dona Yayá no Tombamento do bairro Bela Vista

CONPRESP, RES. 10/2017 - Tombamento OBAN e DOI-CODI