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UNIVERSIDADE PAULISTA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO O “OUTRO” NA NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA NOS FILMES O SOM AO REDOR E O HOMEM AO LADO Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Comunicação da Universidade Paulista UNIP, para obtenção do título de mestre em Comunicação. JOÃO KNIJNIK SÃO PAULO 2015

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UNIVERSIDADE PAULISTA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

O “OUTRO” NA NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA

NOS FILMES O SOM AO REDOR E O

HOMEM AO LADO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista – UNIP, para obtenção do título de mestre em Comunicação.

JOÃO KNIJNIK

SÃO PAULO

2015

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UNIVERSIDADE PAULISTA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

O “OUTRO” NA NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA

NOS FILMES O SOM AO REDOR E O

HOMEM AO LADO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista – UNIP, para obtenção do título de mestre em Comunicação.

Orientadora: Prof.a Dr.a Anna Maria Balogh

JOÃO KNIJNIK

SÃO PAULO

2015

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FICHA CATALOGRÁFICA

Knijnik, João.

O “outro” na narrativa cinematográfica nos filmes o som ao redor e o homem ao lado / João Knijnik - 2015. 100 f.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista, São Paulo, 2015. Área de Concentração: Configurações de linguagens e Produtos Audiovisuais na Cultura Midiática. Orientadora: Prof. Dra. Anna Maria Balogh.

1. Cinema. 2. Narrativa. 3. Alteridade. 4. Semiótica. Balogh, Anna Maria (orientadora). II. Título

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JOÃO KNIJNIK

O “OUTRO” NA NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA

NOS FILMES O SOM AO REDOR E O

HOMEM AO LADO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista – UNIP, para obtenção do título de mestre em Comunicação.

Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA:

___________________________/___/___

Prof.a Dr.a Anna Maria Balogh

Universidade Paulista – UNIP

___________________________/___/___

Prof.a Dr.a Carla Montuori Fernandes

Universidade Paulista – UNIP

___________________________/___/___

Prof. Dr. Marco Antonio Guerra

MUBE – Museu Brasileiro da Escultura

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Arnaldo e Beatriz, nem precisa dizer o porquê;

aos meus irmãos Celso, Joca e Vitor, porque a estética não se sustenta;

à minha filha Ana, por me ensinar a ser pai;

e aos ciclos de cinema do Bristol e outras salas que não existem mais por me

proporcionarem uma cultura cinematográfica.

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AGRADECIMENTOS

À Prof.a Dr.a Anna Maria Balogh, minha orientadora, por todo apoio; Aos professores doutores Marco Antonio Guerra e Carla Montuori, pelas valiosas contribuições a este trabalho, durante a qualificação; Ao Prof. Dr. Geraldo Carlos do Nascimento, que iniciou comigo esta pesquisa; Aos meus colegas de mestrado com quem fiz parcerias e aprendi muito.

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RESUMO

Este estudo parte da coincidência semântica existente nos títulos dos dois filmes estudados – o brasileiro O som ao redor (2012), e o argentino O homem ao lado (2009) – e percorre um caminho teórico para conhecer o “outro”, conceito que envolve alteridade. Da semiótica de Algirdas Greimas buscamos a compreensão das estruturas narrativas e discursivas dos filmes e como se apresentam as categorias de tempo, espaço e atorialização. Também estudamos os mecanismos da linguagem cinematográfica utilizados, buscando suas especificidades. De Gilles Deleuze e outros teóricos, conceituamos a diferença entre cinema clássico e cinema moderno. De posse dessas informações, chegamos ao conceito do “outro”. Quando e de que forma se manifesta nos filmes estudados? Em que espaço e tempo? Com que rosto? Na sequência deste raciocínio, nos voltamos para o pensamento de teóricos como Anthony Giddens, Zygmunt Bauman e Umberto Eco. A definição destes conceitos vai nos auxiliar no desvendamento dos processos de enunciação sobre o tema proposto: o “outro” na narrativa cinematográfica.

Palavras-chave: Narrativa, cinema, alteridade, semiótica.

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ABSTRACT

This study report departs from the semantic coincidence found in the titles of two films – Brazilian Neighboring sounds (2012) and Argentinean The man next door (2009) – to explore a theoretical path in examining the “other,” a concept pertaining to alterity. The semiotic theory of Algirdas Greimas is instrumental to understanding the two films’ narrative and discursive structures as well as time, space, and person categories. The cinematographic language mechanisms employed were also studied in search of their specificities. Based on Gilles Deleuze and other theoreticians, a conceptualization is offered about the difference between classical and modern cinema. This information is used to produce a concept of the “other.” When and how does this concept appear in the two films under study? In what space or time? With what face? These answers are then examined in the light of theoretical notions proposed by Anthony Giddens, Zygmunt Bauman, and Umberto Eco, among others. Such definitions will be useful to uncover the processes of enunciation about the proposed theme: the “other” in film narrative. Key words: cinema, narrative, alterity/otherness, semiotic

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8 1 OS UNIVERSAIS SEMÂNTICOS .......................................................................... 11 2 O ESTUDO DA NARRATIVA ................................................................................ 13

2.1 A narrativa “ao redor” ................................................................................ 14 2.1.1 Uma descrição .......................................................................................... 14 2.1.2 O contexto social e político “ao redor” ....................................................... 19 2.2 A narrativa “ao lado” ................................................................................. 23 2.2.1 Uma descrição .......................................................................................... 23 2.2.2 O contexto social e político “ao lado” ........................................................ 28

3 DO CINEMA CLÁSSICO AO CINEMA MODERNO: A INVERSÃO DE EXPECTATIVAS ....................................................................................................... 31

3.1 O cinema clássico e seus gêneros ........................................................... 31 3.1.1 O clássico “ao redor” ................................................................................. 34 3.1.2 O clássico “ao lado” ................................................................................... 38 3.2 O cinema moderno ..................................................................................... 39 3.2.1 Breve olhar sobre a tradição cinematográfica brasileira ............................ 40 3.2.2 O cinema moderno “ao redor” ................................................................... 43 3.2.3 Breve olhar sobre a narrativa cinematográfica argentina .......................... 45 3.2.4 O cinema moderno “ao lado” ..................................................................... 48

4 ESPAÇO-TEMPO: A FIGURATIVIZAÇÃO DA HISTÓRIA E DA CULTURA ........ 50 4.1 O campo, o fora de campo e o contraplano ............................................ 50 4.2 Os espaços quaisquer e os tempos mortos ............................................ 51 4.3 A manipulação do tempo ........................................................................... 55 4.4 O som como relação espaço-tempo ......................................................... 57 4.5 O espaço e o tempo “ao redor” ................................................................ 59 4.6 O espaço-tempo “ao lado” ........................................................................ 62

5 ENUNCIAÇÃO NO CINEMA: O PONTO DE VISTA ............................................. 67 5.1 O discurso “ao redor” ................................................................................ 72 5.2 O discurso “ao lado” ................................................................................. 75

6 A ATORIALIZAÇÃO: O OUTRO ........................................................................... 79 6.1 A alteridade ................................................................................................. 81 6.2 O estranho .................................................................................................. 83 6.3 O inimigo ..................................................................................................... 87 6.4 A representação de duas nações ............................................................. 89

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 92 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 95 FICHA TÉCNICA DOS FILMES ESTUDADOS ........................................................ 97

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INTRODUÇÃO

O cinema passa hoje por uma série de transformações. Se, até os anos 50,

ele era a única forma de produção da imagem em movimento, logo vai perder

terreno para a televisão. Hoje, com a digitalização e outros meios decorrentes da

Internet, temos novos formatos. As séries de TV, por exemplo, ganham também

status de arte, com narrativas mais longas. Por outro lado, a Internet oferece

formatos com menor tempo, narrativas curtas que vêm pouco a pouco angariando

aficionados. Enquanto o formato DVD ainda se mantém, o vídeo on-demand vem

conquistando público.

O cinema industrial agora se propõe praticamente a só agradar o público

infantojuvenil, apresentando comédias e super-heróis, na sua maioria. Os temas dos

filmes se infantilizaram, com lançamentos ocupando a maioria das salas. Uma

pequena parte ainda recebe filmes adultos. A exibição emigrou para dentro dos

shoppings. O cinema já não é um meio de massas como foi no passado.

O circuito de festivais de cinema avaliza cinematografias que não estão

contempladas pela indústria. Existe uma reflexão que busca conhecer e

compreender estas manifestações, com a tentativa de mapeamento de filmes que

vêm de Taiwan, Irã, Romênia, México – para citar aleatoriamente alguns países que

trazem uma contribuição artística para esta arte à margem dos grandes circuitos.

Os dois filmes estudados nesta dissertação vêm de dois países periféricos

deste eixo: O som ao redor (filme brasileiro, rodado no Estado de Pernambuco com

equipe e atores locais) e O homem ao lado (argentino, rodado em La Plata, cidade

perto de Buenos Aires). Tiveram número reduzido de público, o que é comum para

dois filmes independentes: quase 100 mil para o filme brasileiro e 250 mil para o

argentino. Porém, amealharam diversos prêmios em festivais e geraram impacto por

onde passaram.

São filmes bem diferentes, mas que procuram refletir com certa ironia sobre

comportamentos da nossa época. Mais adiante vamos conhecer suas semelhanças

e diferenças, mas o essencial é que ambos falam de um mundo inseguro, sem

limites definidos de espaço e tempo. É um cinema que brinca com expectativas

consolidadas. Reconhece a importância do cinema industrial, até se encanta com

ele, mas procura desvios narrativos, olhares perturbadores, sem especificar heróis

nem vilões. Estabelecem-se regras narrativas que podem mudar durante o decorrer

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do filme, esperando ou fazendo esperar pelo espectador num jogo em que a própria

enunciação pode ter um olhar ora atento, ora preguiçoso; ora sapiente, ora ingênuo.

Esta investigação vai por este lado: pretende olhar o mundo e algumas

manifestações impressas nos filmes, as narrativas que reproduzem e consolidam

formas de vida social e uma visão mais específica dos elementos que compõem o

cinema. É uma teia teórica que quer reunir sociologia, cinema e narrativa; estudos

diferentes que, assim esperamos, convirjam para tratar do tema escolhido para

análise nos dois filmes citados: o “outro”. Aqui vamos estudar, principalmente, a

atorialização. Como este “outro” aparece nas narrativas do cinema clássico? E no

cinema moderno, como este “outro” é visto? Daí surgem as figuras do herói e do

vilão e como a enunciação se dirige a cada um deles, como os julga, qual o papel do

enunciatário.

Fazendo uma intersecção com estes estudos, temos uma visão sobre

aspectos sociais e históricos que desenham a formação de cada país. O Brasil

açucareiro se impõe já no início da colonização. A Argentina é colonizada por

espanhóis, depois recebe fluxos de população inglesa e italiana. Trajetórias

diferentes, com algumas semelhanças, apesar da proximidade: 3 estados brasileiros

ao sul têm fronteira com a Argentina.

Também nos voltamos para um breve histórico de suas cinematografias. O

cinema novo, referência mundial nos filmes de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos

Santos, deixa marcas profundas mesmo depois de findo o movimento, há mais de

quatro décadas. O cinema argentino vem se destacando com filmes de médio

orçamento, trazendo um olhar que remete à dramaticidade do tango, ou uma linha

de humor ou de jogo intelectual, o que inclui alguns policiais.

Podemos afirmar que os dois filmes acrescentam qualidade às suas

cinematografias, mais que isto, à própria cultura do país. São jovens realizadores,

com propostas inovadoras, instigantes. Não são filmes perfeitos: algumas atuações

em O som ao redor são amadoras, sem brilho. Em O homem ao lado, existe algum

formalismo, mas o que se impõe são duas construções narrativas ímpares, com

imagens e conflitos marcantes que expressam problemas fundamentais do mundo

ocidental.

Com esta perspectiva, vamos procurar o “outro”, ou podemos encontrar “os

outros”, nos filmes em questão. Uma tarefa que pretende levantar ideias sobre

cinema, arte, a vida privada e pública, a insegurança, a violência, os conflitos

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sociais. Podemos ir mais longe: algumas escolhas civilizatórias são abordadas nos

filmes, na forma como a narrativa se desenvolve e é isto que vamos procurar

desvendar.

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1 OS UNIVERSAIS SEMÂNTICOS

Os dois filmes – O som ao redor e O homem ao lado – têm uma identidade

desde o título. Algo está rondando um ponto central, ou está numa relação de

contiguidade espacial. Existe um limite deste centro e, após ele, algo (um som) ou

alguém (um homem) a ser reconhecido, assinalado, nomeado. O som está num raio

de ação de um centro (O som ao redor) e o homem segue a lateralidade, está à

esquerda ou a direita (O homem ao lado).

Fiorin, ao se referir à Teoria da Enunciação, busca em Greimas as categorias

da enunciação: espaço, tempo e atorialização.

Porque a enunciação é o lugar da instauração do sujeito e este é o ponto de referência das relações espaço-temporais, ela é o lugar do ego, hic et nunc. O conjunto de procedimentos destinados a constituir o discurso como um espaço e um tempo povoado de atores diferentes do enunciador constitui para Greimas a competência discursiva em sentido estrito. (FIORIN, 1996, p.42)

Por Fiorin ter como objeto de estudo a linguagem escrita e o objeto desta

dissertação envolver a linguagem visual com foco em dois filmes produzidos para

cinema, o pensamento do teórico nos é útil neste comentário sobre a semântica dos

títulos dos filmes, um dos primeiros contatos que a obra tem com seu espectador.

O autor aponta os elementos para caracterizar o espaço:

1- O espaço é um objeto construído a partir da introdução de uma descontinuidade numa continuidade. [...] 2- as relações espaciais são simétricas e reversíveis, em função do ponto em que se organiza o espaço. 3- O espaço é pluridimensional. (FIORIN,1996, p.260)

No que corresponde ao primeiro elemento, os títulos desses filmes são

instâncias de enunciação que indicam esta descontinuidade: existe algo a certa

distância que vale mencionar, que está ao lado ou ao redor. Quanto ao segundo e

ao terceiro elementos, no que concerne à simetria e à irreversibilidade, aquele que

está ao centro também pode estar ao redor ou ao lado, dependendo do ponto de

vista. Se o ponto de vista muda para outro ponto do espaço, já temos outra

compreensão sobre este mesmo espaço.

Estas unidades – “centro/ao redor” e “aqui/ao lado” – funcionam como o que

Greimas assinalou como unidades paradigmáticas: “No interior do esquema

sintagmático, estas unidades paradigmáticas desempenham o papel organizador da

narrativa e constituem, por assim dizer, a armação desta” (GREIMAS, 1979, p.11).

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Então é possível inferir que o espaço tem este papel organizador, e também a

atorialização. O tempo age como um vetor sujeito aos desdobramentos desta

relação espaço e atorialização e que, por fim, não é menos importante. Uma das

ênfases do tempo é o contexto histórico e isto está presente, principalmente, em O

som ao redor. Entre os muros de Setúbal, a rampa e os espaços da Casa Curutchet,

o tempo se contrai e se estende, agindo diretamente na narrativa, exprimindo

tempos diferenciados.

Buscando a visão das questões que os dois filmes colocam, o objetivo inicial

é investigar como estas unidades se comportam nos filmes, conferindo os aspectos

espacial, temporal e atorial. Vamos observar, na estrutura narrativa dos dois filmes,

como os conflitos já inerentes nos seus títulos se revelam e se desenvolvem.

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2 O ESTUDO DA NARRATIVA

Para analisar a narrativa dos dois filmes, vamos utilizar como referência a

semiótica narrativa de Greimas e a semiótica discursiva de Fontanille. Diana Luz

Pessoa de Barros, baseada nos dois teóricos citados, considera as duas

concepções complementares da narrativa:

Narrativa como mudanças de estados, operada pelo fazer transformador de um sujeito que age no e sobre o mundo em busca de valores investidos nos objetos; narrativa como sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário. (BARROS, 2003, p.16)

Nesta primeira etapa de análise, o objetivo é apontar os enunciados da

narrativa, seus sujeitos, como agem e se movimentam em relação aos outros

actantes, identificando nos dois filmes as mudanças de estado e o programa

narrativo de cada actante. O que se refere ao discurso, será tratado em capítulo

posterior.

Anna Maria Balogh busca, nos conceitos de Edward Lopes, a definição das

estruturas elementares da narrativa.

São estruturas elementares da narrativa: a sintagmaticidade finita entre duas pausas da enunciação; a configuração de um efeito único de sentido (isotopia) entre essas pausas, um esquema atuacional mínimo manifesto ao menos por dois atores (personagens), sendo estes dotados de `uma qualificação: uma ação que defina a relação entre estes personagens; e, finalmente, uma temporalização em que se opõe um “antes” e um “depois” que pressupõe uma transformação dos conteúdos da narrativa do começo (antes) para o fim (depois). (BALOGH, 2005, p.56)

Este capítulo vai procurar desvendar quem são os atores destas narrativas,

como se movem dentro das isotopias em que estão inseridos e como eles

estabelecem relações dentro do campo posicional.

Como parte fundamental desta narrativa, os dois filmes têm contextos muito

diferentes, que serão apontados aqui. Deseja-se perceber o que existe em comum

para que se possa avançar nos nossos objetivos. O primeiro é um filme

pernambucano, que remete de forma oblíqua a 500 anos de colonização. Desde a

chegada dos portugueses ao Brasil, já se constrói uma sociedade baseada em quem

manda e quem obedece. O segundo é um filme argentino, que reúne aspectos

históricos, culturais e sociais daquele país. Nestas duas perspectivas, o “outro” é

mostrado de maneira diversa, mas de acordo com a cultura contemporânea que não

despreza a história e tem um olhar diferenciado sobre os dias de hoje.

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2.1 A narrativa “ao redor”

2.1.1 Uma descrição

Logo após os breves créditos iniciais de O som ao redor, o enunciador se faz

presente com força. São apresentadas, em sequência, cerca de 10 fotografias

antigas, em preto e branco, de diferentes momentos da história recente de um Brasil

arcaico: um carro antigo na frente de portão e um campo aberto à frente; uma família

com casa de tapera ao fundo; um homem e uma senhora sentados num pátio

conversando; uma mulher com uma coroa na cabeça em algum festejo com casas

desfocadas ao fundo; um grupo de agricultores de várias idades num clima de

polvorosa; uma plantação se estendendo até uma colina; uma casa de fazenda;

outra casa de fazenda; um grupo de mais ou menos 30 agricultores trabalhando na

terra com os feitores a cavalo ao fundo; um grupo de mulheres com papéis para

votação numa eleição.

A trilha incidental, uma percussão bem marcada, é interrompida com o corte

seco: agora em cores, duas crianças, uma de bicicleta e outra de patins se

locomovem na garagem de um edifício, passam pelos carros parados e entram na

quadra esportiva do condomínio. Crianças brincam com bolas e bambolês com a

proximidade de suas babás. Algumas crianças observam, no prédio do lado, um

soldador trabalhando em uma janela. O som da solda rivaliza com a algazarra das

crianças.

Seguem algumas imagens incidentais do bairro: edifícios, ruas em vários

ângulos e períodos (dia/noite). São imagens que aparecem durante todo filme

pontuando passagens de espaço e tempo.

A partir daí, os 3 núcleos se alternam ao longo da narrativa.

O núcleo de Bia, o primeiro a ser apresentado, reúne sua família e quem

gravita em torno dela (marido, dois filhos, o entregador de água, a irmã violenta).

Ela é uma dona de casa zelosa que sente uma perturbação permanente, seja pelo

barulho do cão do vizinho que não a deixa dormir, seja pelo sexo ausente pois tem o

mínimo de contato físico com o marido. Em uma cena do seu cotidiano, ela se

masturba com a vibração da máquina de lavar, em outra fuma um cigarro de

maconha ouvindo Elvis Presley, para se acalmar. Ao mesmo tempo, ela mora numa

casa confortável, tem bens de consumo (recebe uma TV no início do filme) e ainda

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pode possibilitar aos filhos aulas de mandarim. Ela representa uma classe média

ascendente, com novas possibilidades de consumo, acesso à informação e intenção

de participar das decisões do país e do mundo, mas que se mantém infantilizada

pelos meios de comunicação de massa e por sua própria passividade. No final, ela

promove uma queima de fogos, num extravaso geral com sua família, purgando

suas inquietações.

O núcleo de João, herdeiro da família do senhor de engenho, Francisco, é o

que reúne mais personagens. Também interagem neste núcleo Dinho, o primo

ladrão; alguns outros parentes de várias idades; empregados e os condôminos da

cena da reunião de condomínio. É um grupo que representa o poder financeiro e

político da região e que já se ressente dos novos tempos: já não manda como antes

e não tem perspectivas de manutenção do poder, apenas de manter seus privilégios

enquanto classe dominante.

Sabemos que João voltou de um período fora do Brasil. Ele acaba de

conhecer Sofia, por quem aparenta estar apaixonado. Após uma festa na casa dele,

eles dormem juntos na sala. Logo ele é avisado que o som do carro dela foi furtado.

Daí conhecemos outro personagem: Dinho, primo de João, jovem mimado que

costuma fazer este tipo de assalto. João confronta Dinho, que nega o roubo, mas

quando João vai embora, Dinho manda entregar um som de carro. Dinho conta com

sua impunidade, pois é protegido pelo avô, Francisco.

João tem uma empregada que traz os filhos pequenos para seu trabalho.

Aparecem um filho e uma filha dela já adultos, a quem João dá conselhos. Sofia

também interage com eles, principalmente com as crianças. Não são personagens

relevantes para o enredo, porém determinam a relação de classe tão comum, das

famílias brasileiras de classe média alta com seus empregados de classe baixa.

Se, no início de filme, João se mobiliza para investigar quem roubou o som do

carro de Sofia, pressionando os flanelinhas de carro a dizerem quem fez o roubo, a

partir da reunião de condomínio, ele se anula como personagem. Nesta cena, os

condôminos discutem se o porteiro deve ser demitido e um deles traz um vídeo feito

pelo filho mostrando o porteiro dormindo durante o serviço. João se posiciona

contra, mas não fica para votar, pois Sofia o espera. Neste ponto, João abre mão de

ser o herói e seu protagonismo vai se dissolvendo.

Francisco nos é apresentado numa visita que Clodoaldo e o colega fazem à

sua casa, pedindo o seu apoio para manter a segurança do bairro. Ele mora num

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belo apartamento duplex, de cobertura, e é proprietário de fazenda no interior do

estado. Exige que os seguranças poupem Dinho, seu neto. Mostra-se tolerante com

Clodoaldo, carinhoso com netos, autoritário com empregados, corajoso numa cena

simbólica: desce à noite para praia para nadar onde há avisos da existência de

tubarões. Em dado momento, sente-se ameaçado e tenta contato com Clodoaldo

para fazer a segurança dele, já prenunciando sua fragilidade e derrota no final.

Dinho não tem a compreensão de João. É arrogante e prepotente. Como tem

a proteção do avô, ninguém mexe com ele. Quando se confronta com o primo João,

dá-se por ofendido. Quando Clodoaldo o provoca por telefone, sai para rua e vai

bater boca com ele na barraca dos seguranças, arrotando sua condição social e o

poder da sua família.

Na cena de aniversário da criança, no final do filme, os primos João e Dinho

se encontram. Eles têm uma conversa amistosa: o primeiro fala que não está mais

com Sofia e o segundo que está estudando Direito. Os dois estão tranquilos, não há

conflitos, não há dúvidas. São duas pessoas que se conhecem, se gostam e

respeitam. A vida deles e sua posição social continuam sem sobressaltos.

O terceiro núcleo, o dos seguranças, sob o comando de Clodoaldo, aparece

no bairro oferecendo proteção. Eles montam uma barraca numa esquina para vigiar

o bairro, cobram um valor de cada residência por este serviço e ficam

permanentemente observando as ruas. Aparentemente, não têm passado relevante

e estão apenas atendendo uma demanda de mercado, o que no final não vai se

confirmar: eles têm outros motivos para estar ali. Sua presença incomoda alguns

moradores (diálogo de João e Anco com Clodoaldo) e a outros tem resposta positiva

(diálogo com Francisco e a cena em que Bia paga a contribuição).

Existe uma interação harmoniosa entre os membros do núcleo, fica evidente

que Clodoaldo é quem manda no grupo, o que é demonstrado na bronca que ele dá

em seu colega, no elevador, por este ter reagido às provocações de Francisco

durante a visita, por exemplo. Desde o início da trama, existem indícios de que eles

não estão ali apenas como profissionais da segurança, porém não é um filme que se

utiliza da estrutura do gênero suspense, não se cria a expectativa de que algo vai

ser revelado. Clodoaldo não divide nem com os colegas sua real intenção, o irmão

chega só no fim do filme para ajudá-lo na ação de afrontar Francisco pela morte de

seu pai, ocorrida muitos anos antes. É um núcleo dos excluídos que estão

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ascendendo a outra posição social, encontrando brechas (como a falta de

segurança) para quebrar o bloqueio de uma sociedade desigual.

Os 3 núcleos têm interações diferentes: o núcleo de Bia e o do João

praticamente não se encontram, a não ser no plano simbólico. O núcleo de Bia e o

de Clodoaldo têm uma relação apenas profissional. No de João e no dos seguranças

acontece o conflito do filme, o que se evidencia no embate final. Na análise do filme

sob a luz da semiótica narrativa, vamos acompanhar a evolução de cada um dos

núcleos e observar os pontos de intersecção entre eles. Também vamos observar a

relação espacial: se há proximidade e/ou afastamento nessa interação entre os

núcleos.

O núcleo de Bia tem apenas um fio de história: ela está irritada e insatisfeita,

aparentemente é com o latido do cão do vizinho que não a deixa dormir, mas é claro

que existem motivações internas (o tédio com o casamento; a pressão do dia a dia).

No final, ela promove a explosão dos fogos, num extravaso geral. Ela, pelo espaço

que ocupa no campo posicional da narrativa do filme, é Sujeito de Estado, utiliza

todos os artifícios acima descritos para manter as aparências, para só no final se

atualizar simbolicamente na queima de fogos, como Sujeito do Fazer. Os filhos e o

marido são adjuvantes que reforçam o núcleo, dando veracidade a esta dona de

casa insatisfeita, principalmente a menina que tem um sonho que confirma o título

do filme: ela vê e ouve uma multidão de pessoas pular o muro e quando vai pedir

socorro para os pais, a cama está vazia, inclusive sem o colchão. Então ela desperta

e reconhece que foi um sonho.

Como Sujeito do Fazer, Bia, como classe social e como mulher, está em

disjunção com seu meio e se atualiza para entrar em conjunção com a nova ordem

que se aproxima. Sob um outro ponto de vista, o marido é oponente, pois não está

correspondendo aos desejos da protagonista, ou seja, não é de fato seu

companheiro.

O núcleo do João é o Sujeito de Estado por excelência, pois existe apenas

para manter seus privilégios. Ao sentir o poder histórico escapar de suas mãos, seus

personagens não têm muitas perspectivas: João voltou da Europa e trabalha como

corretor de imóveis, está desmotivado e se realiza na paixão por Sofia. Não se

envolve com nada que não seja pessoal e que lhe traga prazer imediato, o que fica

claro na cena da reunião de condomínio já descrita. Seu potencial em fazer se

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deteriora ao longo do filme. É um Sujeito do Fazer no início do filme e passa a ser

Sujeito de Estado a partir da cena da reunião do condomínio.

Dinho tem a marca da amoralidade; rouba tocafitas dos carros para se divertir

e é protegido pelo avô, não tem ética nenhuma. Só age de forma ilícita porque tem

certeza da impunidade. Quando declara que está estudando Direito, credencia-se

ainda mais a defender a família da mesma forma que é um pequeno ladrão. Ética é

uma palavra que não existe para ele. É adjuvante do núcleo.

Francisco é o senhor de engenho que sabe que perdeu parte do poder na

cidade e teme pela segurança física. Ele corresponde à mentalidade de um outro

espaço, a casa do senhor de engenho rural, agora num espaço urbano. Seu plano

narrativo envolve defender sua integridade física, seu status social. Nas cenas que

acontecem em seu engenho no interior, com a presença de João e Sofia, ele insiste,

em tom de brincadeira, que o casal vai se casar: é o papel do patriarca, conferindo

se terá descendentes no futuro.

Todos os personagens deste núcleo tendem a não criar nada, são Sujeitos de

Estado, em conjunção com esquema social vigente. O máximo que conseguem é

suportar as mudanças que se aproximam, não têm mais competência para impedi-

las, nem para entrar em conjunção com elas. Seguindo os preceitos da modalização,

eles estão presos na condição de senhores do engenho e por isso representam as

oligarquias brasileiras; querem manter o Ter, que é ter poder, e sobreviver em parte.

Estão inoperantes, andando em círculos: o que significa que o Fazer não faz parte

do seu programa narrativo no filme.

O núcleo dos seguranças é o Sujeito da Transformação por excelência. Este

grupo não tem história como o núcleo de João nem o conforto como o núcleo de Bia.

Sua presença no início do filme antevê violência, o que só acontece no final de uma

forma simbólica com a queima de fogos promovida por Bia.

O plano narrativo deste núcleo envolve exercer a segurança do bairro

visando deixar caminho livre para o objetivo principal: a vingança contra Francisco. É

o núcleo que cumpre seus objetivos: está em conjunção com Bia no plano real (a

quem presta serviços de segurança) e simbólico (queima de fogos).

Com o Núcleo de João, há vários pontos de disjunção com o dos seguranças:

no diálogo inicial de Clodoaldo com João e Anco não há entendimento. João fica

evidentemente contrariado com a presença deles. No primeiro diálogo entre

Francisco e Clodoaldo há conjunção, um acerto tácito do reconhecimento das forças

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que cada um tem, pois Francisco dá seu aval para que eles trabalhem no bairro. No

final, a disjunção acontece pois há outros motivos para a existência dos seguranças

naquele bairro (a vingança). O núcleo do Fazer, é que promove as mudanças

narrativas. Eles qualificam este Fazer escondendo seus reais propósitos, jogando

com a persuasão e ao mesmo tempo atropelando a justiça e criando uma lei

paralela. Eles representam uma nova ordem diversa da do latifúndio: a lei dos

condomínios fechados, da especulação imobiliária, da ascensão de novas classes

sociais na divisão dos direitos e deveres da nação.

Seguimos para um resumo da narratividade e seus actantes em O som ao

redor: o núcleo de Bia é Sujeito de Estado e simbolicamente é Sujeito do Fazer. Isto

significa que o núcleo é virtual, existe como potencialidade de promover mudanças

ou então de conceder seu apoio para que elas aconteçam. No núcleo de João, nada

acontece: existe impotência, não existe contato com Bia e isto tira forças; estão

isolados. O núcleo de Clodoaldo é que promove as mudanças e avança para uma

outra configuração social, mas não são salvadores nem garantia de ordem e bem-

estar, nem garantia de ética e igualdade.

Temos aqui o programa narrativo da vingança, quando todo desenvolvimento

narrativo se baseia na punição dos criminosos pelo herói, não importando o poder

que o inimigo tenha. Mas isto fica velado durante todo o filme, só aparecendo no

final. A vingança é o Plano Narrativo tradicional, mas visto sob um ponto de vista

distanciado. Se muitos elementos se perdem no decorrer da narrativa (o

protagonismo de João, a ameaça dos seguranças), o tema da vingança vem no final

para substituir todos os outros. É o plano narrativo que vence, que se sobrepõe num

filme tão intrincado, que não aceita facilmente uma análise semiótica narrativa, que

desvia percursos propositadamente, que procura atalhos, aquece e esfria a ação.

Este triângulo entre os 3 núcleos vai desenvolver um jogo de forças com

muitos vetores, inclusive dentro dos próprios núcleos. Não há exatamente um

confronto, mas sim uma acomodação dos actantes desenhando nova ordem.

2.1.2 O contexto social e político “ao redor”

O som ao redor se passa numa região bem delimitada: quase todas as cenas

acontecem no Bairro de Setúbal, região de Boa Viagem, cidade de Recife. A outra

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locação é a fazenda de Francisco no interior do estado. Na sequência inicial de

fotos, já comentada na descrição do filme, temos um panorama que contextualiza os

aspectos sociais e políticos.

Buscando uma síntese da história dessa região tão conturbada, o nordeste

brasileiro tem sido palco de muitos conflitos, desde a vinda dos portugueses a partir

do século XVI. A principal característica desse período é a constituição de uma

sociedade patriarcal baseada no cultivo da cana-de-açúcar.

A sociedade colonial no Brasil, principalmente em Pernambuco e no Recôncavo da Bahia, desenvolveu-se patriarcal e aristocraticamente à sombra das grandes plantações de açúcar, não em grupos a esmo ou instáveis; em casas-grandes de taipa ou de pedra e cal, não em palhoças de aventureiros. Observa Oliveira Martins que a população colonial no Brasil, “especialmente ao norte, constituiu-se aristocraticamente, isto é, as casas de Portugal enviaram ramos para o ultramar”. (FREYRE, 2003, p.79)

O índio, habitante anterior à chegada dos ocidentais, não foi considerado

pelos portugueses uma boa mão de obra para as lavouras de cana. Logo veio a

solução de trazer o negro africano como escravo. Deste amálgama de três raças é

que se forma a nação brasileira. Esta ideia de aristocracia está no centro da questão

social e traz sentido às ações do filme: uma aristocracia oriunda dos grandes

latifundiários da cana que mesmo miscigenados conduzem a vida social, política e

econômica do nordeste brasileiro.

Num paralelo com a formação dos povos latinos da América, Sergio Buarque

de Holanda encontra pontos de contato da colonização portuguesa com a espanhola

e chega a estas conclusões:

Efetivamente, as teorias negadoras do livre-arbítrio foram sempre encaradas com desconfiança e antipatia pelos espanhóis e portugueses. Nunca eles se sentiram muito à vontade em um mundo onde o mérito e a responsabilidade individuais não encontrassem pleno reconhecimento. (HOLANDA, 1995, p.37)

Um dos pontos que Holanda insiste nesta investigação da formação das

nações latino-americanas é a não existência de uma atitude que valorize o trabalho

como fator de organização social.

Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de

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grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação. E assim, enquanto povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se ainda largamente no ponto de vista da Antiguidade clássica. O que entre elas predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor. (HOLANDA, 1995, p.38)

No nordeste brasileiro, a cultura da cana-de-açúcar cresceu com chegada da

mão de obra escrava. Uma aristocracia regulou a vida da província e depois do

império. Não existia noção de crescimento, comunidade, solidariedade. Era preciso

usar a terra e os serviçais retirando deles o máximo possível.

E a boa qualidade das terras do Nordeste brasileiro para a lavoura altamente lucrativa da cana-de-açúcar fez com que essas terras se tornassem o cenário onde, por muito tempo, se elaboraria em seus traços mais nítidos o tipo de organização agrária mais tarde característico das colônias europeias situadas na zona tórrida. A abundância de terras férteis e ainda mal desbravadas fez com que a grande propriedade rural se tornasse, aqui, a verdadeira unidade de produção. (HOLANDA, 1995, p.48)

A sociedade foi construída em bases patriarcais em torno da terra. Não se

preconizou uma evolução, um pensamento intelectual que abrangesse coisas do

mundo. A hierarquia, a submissão à família e à igreja é que regiam os atos da classe

dominante.

Com efeito, onde quer que prospere e assente em bases muito sólidas a ideia de família — e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal — tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições a formação e evolução da sociedade segundo conceitos atuais. A crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social é, assim, especialmente sensível no nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtudes antifamiliares por excelência, como o são, sem dúvida, aquelas que repousam no espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre os cidadãos. (HOLANDA, 1995, p.85)

Além disso, a desigualdade deu o tom nas relações entre as classes. O

poderio do homem branco preponderou e criou suas regras para a exclusão dos

outros meios de vida.

O povo-nação não surge no Brasil da evolução das formas anteriores de sociabilidade, em que os grupos humanos se estruturam em classes opostas, mas se conjugam para atender suas necessidades de sobrevivência e progresso. Surge, isto sim, da concentração de uma força de trabalho escrava, recrutada para servir a propósitos mercantis alheios a ela, através de processos tão violentos de ordenação e ordenação que constituíram, de fato, um continuado genocídio e um etnocídio implacável. Nestas condições, exacerba-se o distanciamento social entre as classes dominantes e as subordinadas, e entre elas e as oprimidas, agravando as oposições para acumular, debaixo da uniformidade étnico-cultural e da

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unidade nacional, tensões dissociativas de caráter traumático. (RIBEIRO, 1995, p.24)

No século XX, o Brasil iniciou um processo de modernização, principalmente

a partir da revolução de 30, sob a liderança de Getúlio Vargas. A estrutura patriarcal,

base da sociedade brasileira, esteve sujeita à organização sindical e agrária dos

trabalhadores. Em Pernambuco, o governo popular de Miguel Arraes implantou uma

série de reformas até o golpe de 1964, que determinou o fim das mobilizações. Por

15 anos, o Brasil viveu sob uma ditadura militar.

A transição brasileira teve {...} a vantagem de não provocar grandes abalos sociais. Mas teve também a desvantagem de não colocar em questão problemas que iam muito além da garantia de direitos políticos à população. {...}. A desigualdade de oportunidades, a ausência de instituições do Estado confiáveis e abertas ao cidadão, a corrupção, o clientelismo são males arraigados no Brasil. {...} O fato de que tenha havido um aparente acordo geral pela democracia por parte de todos os atores políticos facilitou a continuidade de práticas contrárias à uma verdadeira democracia. (FAUSTO, 1994, p.527)

Esta transição descrita por Boris Fausto entra em consonância com os

conceitos de Buarque, dado que foi evitado o enfrentamento de conflitos arraigados

desde o descobrimento e a consolidação de uma nação. Com a redemocratização, a

partir da década de 80, novas configurações sociais aparecem. Os movimentos

sociais como o MST se organizam, mas a questão agrária não é debatida pelas

urbes. Com o controle da inflação e políticas públicas que possibilitam a mobilidade

social, temos um novo quadro social com novos atores antes à margem das

decisões do país.

As imagens da abertura de O som ao redor remetem a um período posterior à

escravidão e anterior ao golpe de 64. Vemos o voto feminino e os movimentos dos

trabalhadores rurais, cenas bucólicas de fazenda e a casa-grande, que incidem

diretamente na vida de Bia, João, Francisco, Dinho e Clodoaldo. Estes personagens

são construídos com esta perspectiva histórica. Eles vivem transformações

históricas que estão no centro da narrativa, mostrando quem são, como agem, suas

expectativas. A velha sociedade patriarcal persiste, mas está em vias de

reformulação, ou de extinção. A valorização do ócio, do tirar vantagem se colide com

outras perspectivas: a igualdade, a democracia, a justiça social alijada por séculos

de práticas exclusivista e retrógradas.

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A narrativa do filme de Kleber Mendonça Filho tem um alvo: pensar a decadência do engenho. E registrar que mundo saiu dali e que o cineasta exibe como uma vitrine e uma cirurgia. Vitrine por causa da necessidade de exibir, com realce, o drama dessa classe. E cirurgia por causa do sutil recorte de sua mostra, separando o refinamento e a degradação. {...} Neste sentido, o tempo organiza o espaço em função do tempo. Temos, no caso, o imperial tempo histórico. E o filme capta o momento do depois. {...} Trata-se de um momento de ruptura, anunciando um outro tempo do tempo, o tempo da migração. Migração para um novo espaço, a lenta e inexorável decadência da família patriarcal. (SOUZA, 2012, v.21, p.16)

Este mundo que Enéas de Souza comenta é um mundo menos desigual,

porém não menos violento. É uma narrativa aberta para um futuro complexo e nada

previsível. Este som ao redor ainda é uma incógnita.

2.2 A narrativa “ao lado”

2.2.1 Uma descrição

No início do filme, logo nos créditos, O homem ao lado anuncia a que veio

com uma imagem de forte impacto. A tela está dividida em duas partes, uma bem

iluminada recebendo a luz do sol e outra mais escura, recebendo pouca luz interna.

Ouvimos na trilha um ruído ambiente: som de latidos ao fundo. Uma marreta

aparece e começa a quebrar a parede cinza. O som é potente. Logo entendemos

que a parede branca e iluminada pelo sol é o outro lado, a parede começa a rachar

e o buraco se concretiza dos dois lados. Nos créditos finais está explicado que esta

abertura é baseada na instalação chamada Boquete da Série Productos Caseros do

artista plástico e arquiteto argentino Gaspar Libedinsky.

Também temos acesso a informações sobre outras manifestações culturais

que aparecem no filme: foi filmado na Casa Curutchet, obra-prima de Le Corbusier

em 1948; a cadeira premiada, desenhada pelo personagem Leonardo se chama El

placentero e foi desenhada por Batti dentro do projeto Brion Experimental em 2004;

a sequência de marionetes de Victor foi criada e executada por Carlos Herrera; os

desenhos dos créditos finais são de Sle Cohn e outras obras de arte nomeadas nos

créditos foram cedidas por seis artistas. Qualquer consideração sobre O homem ao

lado deve compreender como estas manifestações influem na narrativa da história.

Assim que termina a abertura, o som da marreta persiste. Leonardo abre os

olhos e a esposa está logo atrás. A imagem está muito perto do rosto dele,

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levemente desfocada. O casal vive na única casa projetada por Le Corbusier na

América Latina, uma casa diferenciada, com linhas e espaços preconizados pelo

modernismo, movimento do qual esse arquiteto é um dos precursores. O

protagonista abre os olhos, levanta e anda pela casa, procurando a origem do ruído

e vai descobrir que um vizinho desconhecido está abrindo uma janela no prédio

contíguo, o que o deixa muito contrariado.

Leonardo é um designer famoso, o que ficamos sabendo na cena seguinte

quando um web designer apresenta como vai ser o site pessoal de Leonardo. Este

cultiva um estilo de vida ligado às artes e ao bom gosto, sua esposa é professora de

yoga e sua filha parece estar ausente, sempre ocupada com seu aparelho sonoro. O

vizinho é Victor, com uma postura diferente de Leonardo: tem um gosto “kitsch”, é

aberto, não se furta em tentar seduzir, intrometer-se para conseguir o que ele chama

de “un rayito de sol”. Este é o conflito do filme: um personagem quer abrir a janela e

ter acesso ao sol e o outro não quer permitir. A janela é um Objeto potente no

cinema. Balogh, em artigo sobre o desejo no cinema, aponta as potencialidades

expressivas da janela.

A janela, ela mesma, constitui um espaço privilegiado da concepção artística, seja quando participa da representação na imagem estática, seja quando se faz presente na imagem móvel, a mais provocadora de todas as imagens, sobretudo a do cinema. Como observa (Martin-Barbero): “A imagem é a propriedade oculta comum que une olho, janela e espelho. O olho vê imagens, o espelho as reflete e a janela as enquadra. Conexão triangular e metafórica”. {...} A janela instiga realizadores a subversões e jogos estéticos como os de René Magritte em que se joga com os limites da tela / janela, os realizadores, por sua vez, usam com frequência duplos enquadramentos ou recortes visando dar ênfase aos atores e objetos representados. (BALOGH, 2012, p.31)

Se a janela de Victor é uma ameaça para Leonardo, este tem um ponto de

vista por onde espiona o vizinho intruso. Durante a noite, Leonardo e a esposa

acordam com ruído vindo da casa de Victor. Este está acompanhado de uma bela

mulher, arrota com ruído, exagera no gestual. Os dois transam na janela. A esposa

de Leonardo só consegue balbuciar: “Que animal”. Victor provoca no ponto em que

o casal vizinho está defasado: a sexualidade. Ele usa a janela como um antídoto: já

que Leonardo não quer ser visto, ele se mostra na sua intimidade, fazendo sexo com

a parceira como um animal, pegando-a por trás. A janela, mesmo à revelia, é um

novo enquadramento para Leonardo.

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Do ponto de vista da semiótica de Greimas, os dois Sujeitos medem suas

forças, cada um com seus métodos próprios visando preponderar e cumprir seu

objetivo. É um típico esquema de prova do cinema clássico: dois planos narrativos

em confronto, só um pode prevalecer. Segundo a semiótica narrativa, “O encontro

dos sujeitos constitui um momento-chave no desenvolvimento narrativo: ele provoca

a transferência de objetos de valor, põe fim a certos Planos Narrativos e

desencadeia outros” (EVERAERT-DESMEDT, 1984, p.41).

Em O homem ao lado, o plano narrativo opõe dois sujeitos: Leonardo e Victor.

Um é o Sujeito de Estado, tem uma vida bem estabelecida, valores definidos. O

outro é o Antissujeito: o intruso, o inconveniente, não se sabe o que faz, não se sabe

as suas reais intenções.

Fontanille, baseado em Propp, estabelece o esquema completo de prova:

Confrontação Dominação Apropriação / Desapropriação

Para a disputa do objeto, os dois sujeitos, segundo Fontanille, devem tomar

posição em um mesmo campo, o da presença da instância do discurso. Antes

mesmo de ganhar ou perder o objeto, os sujeitos devem medir suas forças, se

opondo para saber quem prevalecerá sobre o outro.

Durante a fase da confrontação, os dois oponentes têm alguns encontros cara

a cara: entre a janela de Leonardo e o buraco aberto por Victor; na Van; na frente da

casa de Leonardo; num encontro que só é narrado por Leonardo para um amigo.

São diálogos em que Leonardo utiliza sua competência para convencer Victor a não

abrir a janela. Mas não é bem sucedido. Sua performance, seu Fazer, é hesitante,

tem medo, perde a força ao ceder seu discurso à mulher e ao sogro, pois conta a

Victor que são eles que pedem o fechamento da janela. Ele se enfraquece em ter

que enfrentar uma pessoa tão diferente dele.

Leonardo é um Sujeito de Estado que cria conexões frágeis com seus

adjuvantes: não se comunica com a filha, está em crise com a esposa, é arrogante

com a equipe de TV e os estudantes. A solidão lhe apetece. Quando a esposa

insiste para que ele mantenha a pressão sobre Victor, ela se transforma em

Destinadora. Para ele, que vive na redoma de sua arte, de suas referências que

estão distribuídas por toda a casa, seu espaço é indevassável.

Victor usa outra tática: argumenta um pouco, olha firme intimidando o

oponente e concorda em fechar a janela ao fim do diálogo, o que nunca cumpre

renovando seu jogo de sedução. É uma tática que evita o conflito imediato e o adia

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para um novo reencontro. Não existe dominação durante os embates. Existe

resistência firme de Victor às investidas de Leonardo. É uma narrativa do adiamento.

O percurso narrativo parece sempre recomeçar, com cada personagem usando

diferentes recursos.

Victor quer cativar Leonardo e seus adjuvantes e aí também tenta adquirir a

função de Destinador. Ele apresenta um repertório bem variado para convencer

Leonardo e sua família no seu intento. Sua performance, seu Fazer, envolve a

conversa, a persuasão, a ameaça, a arte. Não é racional, exige seu direito ao sol,

tenta cativar Leonardo, quer conversar com a esposa, o que Leonardo impede. Mas

Victor manda flores para ela e faz uma performance mímica para a filha do casal.

Ele quer seduzi-las para ter seu direito ao “rayito de sol”.

Numa das vezes que vê que a janela não está sendo fechada, acontece a

única cena em que Leonardo se enche de coragem e vai ao apartamento de Victor.

A câmera se mantém na mesma janela e observa a movimentação raivosa de

Leonardo xingando um senhor de idade que logo sabemos ser um tio de Victor.

Então Leonardo conhece a casa de Victor, mas o espectador continua a distância.

Segue a cena em que Victor vai pedir explicações a Leonardo com agressividade,

chega a ameaçá-lo de morte e em seguida diz que é brincadeira. Victor parece estar

sempre neste meio do caminho entre a agressividade e a civilidade, pendendo para

um lado ou para o outro.

Na festa de Leonardo, Victor consegue ir mesmo sem ser convidado, pois a

sua namorada é amiga dos donos da casa. Victor extravasa seu jeito expansivo e

incomoda o casal anfitrião, dança provocando a suposta harmonia da festa, usa a

cadeira premiada de Leonardo com vulgaridade, como se estivesse num parque de

diversões. Para ele, a arte não é sacralizada como é para Leonardo. Os dois

personagens dão valores diferentes à obra de arte. Nesta festa, já não é a janela

que está em jogo: são as diferenças entre eles, a possibilidade de invasão, de

resolução que parece longe, se e como vai haver apropriação/desapropriação

designada por Fontanille.

Victor tenta várias conexões com Leonardo e sua família, o que já significa

intrusão, procurando se posicionar dentro da família do oponente. Leonardo evita o

contato, que deve ser mínimo para não se contaminar com esse indivíduo que

considera tosco. Este seria um conflito subterrâneo ao conflito principal (a janela): a

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necessidade de preservação do modo de vida de Leonardo contra a porosidade de

Victor e sua afetividade excessiva e fácil, beirando a promiscuidade.

Na sequência final, a casa é invadida por dois assaltantes. Victor entra, rende

um deles, não atira e manda o rendido embora, mas recebe um tiro pelas costas do

outro que estava na casa. Leonardo chega e pega o telefone para chamar socorro,

na primeira tentativa de ocupado, desiste. Leonardo aproveita a situação e espera a

morte de Victor. Num plano que mostra a rampa de perfil, Leonardo está na parte de

cima da rampa, Victor está embaixo, agonizando. Leonardo desce e senta ao lado

dele, apenas esperando sua morte. Victor poderia ter matado o bandido e não o fez,

poderia ter sido salvo e não o foi. Quando sua cabeça pende, chegamos à última

cena do filme: o buraco na parede da casa vizinha é fechado. O resultado é que o

isolamento da casa de Leonardo é reestabelecido.

Victor se torna vítima. Seu plano narrativo é vencido pelo de Leonardo, que o

reconhece como inimigo, não chama o socorro que poderia salvá-lo e o mata.

Leonardo, como Sujeito de Estado, reage passivamente, redime-se do assassinato

que está cometendo e se transforma em Sujeito do Fazer. É capaz de matar e assim

transformar a narrativa. A apropriação/desapropriação acontece de forma inusitada:

não houve preponderância de nenhum dos dois protagonistas até o momento do

assalto e do tiro que Victor leva.

Segundo Fontanille, a dominação também se expressa pela competência.

O poder-fazer de um dos sujeitos prevalece sobre o poder-fazer do outro. Contudo, o poder–fazer do vencido não é necessariamente nulo (não poder-fazer): o valor da vitória é, de fato, proporcional ao da resistência. Mesmo em termos modais, a dominação é ainda uma questão de intensidade e quantidade. (FONTANILLE, 2011, p.119)

Logo no início do filme, dadas as evasivas de Leonardo de fazer contato,

Victor diz que não é um psicopata. Ele parece estar certo: a ameaça e a

agressividade vêm dele, mas é o protagonista que nesta cena final se revela um

psicopata. O resultado é que Leonardo mantém sua posição, a custo da vida do

vizinho inconveniente. Sua privacidade é mantida, sem a janela que seu opositor

estava abrindo. A. estética representada pela Casa Curutchet, da qual é um paladino

também, Foi só não fazer nada, não prestar socorro, não ser solidário, criar uma

cegueira de fachada para conquistar seus objetivos: defender seu espaço físico e

seu modo de vida dos olhos do vizinho invasor. O valor da vitória dele é mínimo,

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pois foi uma vitória desleal, covarde, sem méritos, sem nenhuma intensidade moral.

A fórmula enunciada por Fontanille não serve aqui: não está prevista pela narrativa

tradicional a vitória do covarde, do imoral, do desleal.

Neste jogo de forças opostas, que usam métodos diferentes para sua

conquista, vemos uma classe em que um profissional liberal defende constrangido

sua posição até a decisão final de omissão. Por outro lado, uma classe emergente,

sem lastro cultural mas ávida por participar. Victor se apressa a cozinhar, encenar,

fazer esculturas, decorar seu veículo. Ele só pede um “rayito de sol”. É um conflito

que se resolve com violência: ela é latente o tempo todo, mas sempre adiada até o

desfecho final.

2.2.2 O contexto social e político “ao lado”

A Argentina vive, a partir da metade do século XIX, um processo de

modernização tanto das instituições como de sua indústria. Até então, é um país

essencialmente agrário que se torna independente da Espanha em 1810, depois de

uma longa guerra de independência.

Um conceito estudado pelos sociólogos e historiadores argentinos vem ao

encontro desta pesquisa: a “argentinidade” que, para Luis Garcia Fanlo, significa

“modos e formas de ser argentino”. Ele comenta:

Conviene precisar que el término argentinidad es relativamente reciente, que surge a principios del siglo XX, que quien lo enuncia por primera vez y lo instala como un problema y desarrolla su primera problematización no es un argentino sino un español, el filósofo Miguel de Unamuno, y el momento histórico que lo enuncia está marcado por un gran acontecimento – la gran inmigración – y por una conmemoración – el Centenário de la Revolución de mayo – a partir de los cuales se produce uma profunda reestructuración de las condiciones de dominación previamente existentes en la Argentina. (FANLO, 2011, p.2-3)

A “argentinidade” abraça diversas manifestações da vida argentina, criando

uma ideologia que responde aos anseios de uma classe dominante, regulando as

atitudes e o modo de pensar tanto dos criollos, índios e seus descendentes, como

da crescente imigração :

La argentinización requirió la reconfiguración de dispositivos de saber-poder preexistentes como la escuela, la salud pública, la política inmigratoria, el hospital, la literatura, y la aparición de nuevos dispositivos como el servicio

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militar obligatorio, la higiene pública, la penitenciaría y el hospital psiquiátrico, configurando una red argentinizadora que debía producir un crisol de razas. (FANLO, 2011, p.3)

O que nos interessa neste conceito é a relação entre as classes, entre as

raças, neste corpo heterogêneo que é o povo argentino. Para controlá-lo, foi preciso

regular a vida como um todo. Fanlo explica sua construção iniciada através do

pensamento positivista e que, segundo ele, “fundamentó una serie de políticas

estatales que se legitimaron invocando saberes científicos” (FANLO, 2011, p.9).

Um dos discursos apontados por ele diz respeito ao nacionalismo cultural

baseado na figura do gaúcho “a partir de la lógica de funcionamento de las

relaciones sociales de poder imperantes de la estancia, el quartel, la iglesia”

(FANLO, 2011, p.10).

Este modo de ser argentino gera este discurso de poder, normativo, que não

reconhece o “outro”, não o entende e o quer regido por seu próprio discernimento:

En este sentido la forma de ser de los argentinos siempre es enunciada como algo que constituye una desviación, una falla, una anomalía, un desencuentro, que debe ser corregido para asegurar cierta racionalidad medios-fines cuyo propósito no es otro que sostener un orden. No importa de momento si la construcción de ese orden remite a lo que fue, a lo que debería ser, o a lo que es, sino a que todas exigen algún tipo de restauración: de la mezcla de razas científicamente perfecta, de una esencia perdida, o de una integración social siempre imperfecta. (FANLO, 2011, p.11)

Na entrada do século XX, grandes transformações passam a mudar o

panorama social, cultural e econômico:

Constituiu-se, em suma, uma nova sociedade, que permaneceu bastante tempo em formação, na qual estrangeiros e seus filhos estavam presentes em todas as posições – altas, médias e baixas. Era aberta e flexível, com oportunidades para todos. Era, também, uma sociedade duplamente dividida: por um lado, o país modernizado se diferenciou do interior tradicional; por outro, a nova sociedade manteve-se separada por muito tempo das classes crioulas e das classes altas. Estas, um tanto tradicionais, mas, em grande medida, também buscaram afirmar suas diferenças em relação à nova sociedade. Enquanto os imigrantes se misturavam sem reservas com os crioulos e geravam formas de vida e de culturas híbridas, as classes altas – capazes de acolher sem problema os estrangeiros ricos e bem-sucedidos, se sentiam tradicionais, afirmavam sua argentinidade e se achavam donas do país ao qual os emigrantes tinham vindo trabalhar. (ROMERO, 2006, p.23)

Estas raízes construídas durante o crescimento da nação geram conflitos

entre raças, ideologias, culturas. Ao longo do século XX, a Argentina se alterna entre

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a ditadura e a democracia. Crises econômicas e períodos de bonança também são

constantes. Na última década, mesmo com período recessivo, foram feitos ajustes

sociais.

Numa casa na cidade de La Plata, meio fictícia e meio real, os personagens

reproduzem certos conflitos sociais e culturais inerentes ao início deste século

corrente. A “argentinidade” paira como uma sombra.

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3 DO CINEMA CLÁSSICO AO CINEMA MODERNO: A INVERSÃO DE

EXPECTATIVAS

3.1 O cinema clássico e seus gêneros

Os dois filmes estudados assumem algumas características do cinema

clássico, utilizando-se de seus recursos expressivos para alcançar outros resultados.

Este modelo que se engendrou nos estúdios de Hollywood e formou toda uma

indústria tem seu modo de relacionar espaço e tempo. Ismail Xavier comenta sobre

a decupagem clássica:

Tal modelo representa uma convergência radical entre a construção do discurso que se quer transparente (efeito janela / fluência narrativa) e a modelagem precisa de uma dupla máscara: para propor uma ideologia como verdade, tal máscara insinua-se na superfície da tela (produzindo os efeitos ilusionistas) e insinua-se, na profundidade e na duração produzidas por estes efeitos (produzindo as convenções do universo imaginário no qual o espectador mergulha). (XAVIER, 2005, p.46)

Gilles Deleuze, baseado no pensamento de Henri Bergson, desenvolveu uma

classificação das imagens para definir cinema clássico e moderno. O primeiro

estaria ligado a imagem-movimento, que são imagens sensório-motoras que

estabelecem uma relação causal entre uma e outra. É o domínio do objetivo, de um

mundo pré-concebido em que o cinema fatia sua parte: existe uma relação indireta

com o tempo, uma cena depende da outra, que vai confluindo para um final

conclusivo. O presente está condicionado a um passado e a um futuro. Griffith é o

cineasta que engendra esta técnica que vai percorrer todo cinema clássico e ainda é

usada principalmente no cinema industrial.

Cada imagem-movimento exprime o todo que muda, em função dos objetos entre os quais o movimento se estabelece. É portanto o plano que já deve ser uma montagem em potencial, é a imagem – movimento, uma matriz ou célula do tempo. Desse ponto de vista, o tempo depende do próprio movimento e lhe pertence: pode ser definido, à maneira dos filósofos antigos, como o número do movimento. (DELEUZE, 1990, p.49)

Podemos perceber nos dois filmes um novo olhar sobre dois gêneros

consagrados do cinema clássico, de quem recebem influência e criticam invertendo

alguns parâmetros: o “western” e o horror.

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Do ponto de vista da semiótica de Greimas, o western abrange percursos

narrativos facilmente identificáveis: existe um polo de disjunção do protagonista com

seu oponente, um objetivo ou missão a cumprir e várias dificuldades para que isto

aconteça, colocando à prova a competência do autor. Elencando algumas figuras,

temos a geografia da cidade (as ruas empoeiradas, o saloon, a delegacia), o culto à

arma e a cena definidora do gênero: o duelo.

Deleuze tem sua visão própria do duelo, propondo que existem forças

antagônicas querendo ocupar o mesmo espaço na narrativa.

Há binômio assim que o estado de uma força remete a uma força antagônica, e particularmente quando, sendo uma das forças "voluntária" (ou ambas), ela envolve em seu próprio exercício um esforço para prever o exercício da outra força: o agente age em função do que pensa que o outro vai fazer. Os disfarces, as ostentações, as armadilhas são portanto casos de binômios exemplares. Num western, o momento do duelo, quando a rua se esvazia, quando o herói sai e caminha com um porte particularíssimo, esforçando-se para adivinhar onde o outro está e o que vai fazer, é um binômio por excelência. (DELEUZE, 1983, p.164)

No western clássico, enunciado pelo olhar do colonizador, o homem quebra o

equilíbrio ao entrar em disjunção com a natureza, no esforço de subjugar, com seus

valores e sua ação, o espaço dado e os atores que nele atuam. O duelo é o ponto

de conflito entre a civilização e a barbárie, entre os ideais americanos de virtude e

justiça e o caos inóspito e sem lei da terra dos índios e malfeitores. É uma nova

ordem que se impõe, que vem para subjugar o que é selvagem. A figurativização do

western passa por essa paisagem mítica: pelos caminhos e encontros que existem

nela.

Nos dois filmes estudados podemos encontrar traços desta estrutura narrativa

aceita há década pelos espectadores e por isso passível de ser utilizada,

transformada, desviada, reciclada para outras formulações narrativas.

Se existem traços do western nos dois filmes, um outro gênero também deixa

suas marcas: o horror.

Como veremos adiante, Kleber Mendonça Fº, diretor de O som ao redor,

declara sua admiração pelo terror, elogiando um cineasta de mercado: John

Carpenter. É um horror que vive no cotidiano, presente nas fissuras morais, na

desigualdade, nos muros e portarias.

Para definir o terror, chegamos às reflexões de Noel Carroll,

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o gênero do horror, que atravessa muitas formas de arte e muitas mídias, recebe seu nome da emoção que provoca de modo característico ou, antes, de modo ideal; essa emoção constitui a marca de identidade do horror. (CARROLL, 1999, p.30)

Esse autor distingue terror do horror desta maneira: “Correlacionar o horror

com a presença de monstros dá-nos uma boa maneira de distingui-lo do terror,

sobretudo do terror enraizado em histórias de psicologias anormais” (CARROLL,

1999, p.31).

Não temos monstros nos filmes estudados, mas a ameaça da explosão da

violência persiste. Com base nas impressões de Carroll sobre o horror artístico,

vamos apontar características que flertam com o gênero, um gênero que este autor

identifica “em primeiro lugar, em razão do perigo e da impureza” (CARROLL, 1999,

p.46). Estas duas sensações partem da emoção do espectador. A primeira envolve

o medo e o pânico de se perceber numa situação de risco e a segunda o contato

físico com o desconhecido e o fétido, o viscoso e o desagradável. No terror, o

contrato entre o enunciador e o enunciatário, quem filma e quem assiste, base da

semiótica discursiva, acontece nesse limite em que encontramos o desconhecido e o

tememos e o desejamos ao mesmo tempo. O que importa aqui é a figurativização do

terror: a aproximação com a impureza, com o viscoso, o temor da mácula, o medo

como uma expressão da condição humana.

Em seu estudo sobre o medo no cinema, João Luiz Vieira o define o medo

como “uma forma de estímulo positivo no sentido de nos colocar sempre em alerta,

em geral associado à sobrevivência diante da possibilidade concreta da morte”

(VIEIRA, 2007, p.225). Neste ensaio, também se define o que é o filme de terror.

O Gênero traduz algo que é indizível, representa e constrói o medo ao lidar com espaços mais complexos do ser humano, como a insanidade, a loucura, a alienação, os desvios sexuais, as obsessões, a violência. E, no geral, o faz de forma visualmente fascinante e atraente, confundindo bastante as fronteiras entre repulsa e o prazer. (VIEIRA, 2007, p.225)

Analisando três filmes de Griffith, Vieira constata como a manipulação do

medo é parte central da montagem paralela, linguagem da qual Griffith foi o principal

artífice na segunda década da sétima arte. Ele percebe a evolução dos filmes

dizendo que:

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há notáveis mudanças e avanços na experimentação narrativa, no desenvolvimento de determinados elementos da narrativa cinematográfica {...}; e no aperfeiçoamento e controle de uma linguagem calcada exatamente na habilíssima manipulação temporal destinada a provocar pânico nos espectadores, mérito das experimentações com a montagem efetuada por Griffith. (VIEIRA, 2007, p.236)

Isto coloca a produção do medo como elemento central do cinema clássico. A

longa cena final de O nascimento de uma nação mostra os cavaleiros do Klan

correndo em direção à cidade que os negros dominaram e ameaçavam com um

horror pior que a morte: o estupro da mulher branca. São horrores sugeridos que

estão ali para acontecer na mente do espectador, para temer a perda da pureza

racial.

No western, existe a expectativa por parte do espectador de definir o bem e o

mal em confronto num ambiente determinado, que faz parte de um outro ambiente

maior ainda, o próprio Universo. Então, do horror, a tensão vem de ir além dos

limites do natural, no contato com o estranho, o que deixa de ser humano para nos

ameaçar como feras, principalmente as que existem dentro de cada um de nós. Daí

O som ao redor e O homem ao lado estabelecem, manipulando traços destes

gêneros, uma subversão de esquemas narrativos consolidados, controlando

expectativas e jogando novas luzes sobre a figurativização destes gêneros.

3.1.1 O clássico “ao redor”

Em O som ao redor, podemos constatar alguns traços do cinema clássico e

seus gêneros. Em relação ao horror, o filme não assume de fato o gênero, mas os

resquícios são intencionais, para gerar um efeito que une medo e repugnância. O

que nos interessa é o uso que o filme faz desses elementos para subverter o cinema

clássico e alcançar outros significados.

Kleber Mendonça Fº, nos comentários em áudio do DVD do filme, afirma sua

intenção de filmar O som ao redor de maneira convencional, o que transparece

desde o formato da imagem:

Sempre vi este filme, desde o roteiro, em tela larga, ou seja, numa tela digamos tradicional de cinema, ele preenche a tela inteira, tem um enquadramento bem horizontal e bem largo. Eu achei que este tipo de look para o filme faria parte desta tentativa de fazer um filme na verdade bem clássico, bem sóbrio, isso de alguma forma poderia ser um contraponto à

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anormalidade dos incidentes que acontecem no filme. (MENDONÇA Fº, 2013, 03:55)

Ele reconhece também a ligação do filme com os gêneros terror e western:

Na segunda metade de O som ao redor, parece que o filme dá uma desestabilizada e começa a ir em algumas outras direções que ele não estava indo antes. Tem a coisa do filme de horror e uma ligeira queda para, não o bang-bang, uma coisa meio western. (MENDONÇA Fº, 2013, 112:00)

No filme, existe um medo construído, que suspende o tempo a ponto de

banalizá-lo. Nas ruas escuras, na trilha sonora tensa e na chegada dos seguranças

no bairro, já se exerce tensão sobre a narrativa.

Os seguranças, sob o comando de Clodoaldo, são viscosos, corpos estranhos

naquele ambiente. Podem ser aceitos por uns e rejeitados por outros, mas a

promessa do filme é de que a violência está vindo, de que algo muito sério está

sendo gestado para prejuízo do que Clodoaldo e sua turma estão oferecendo: a

segurança. Mendonça sinaliza esta predileção pelo horror, referindo-se a uma cena

já citada: o sonho da filha de Bia:

Mais uma vez, esta cena tem uma influência bem forte do (John) Carpenter, tem um filme dele de 76 chamado Assalto à 13º DP, eu acho que é esse o nome em português, essa coisa dos vultos filmados a distância, que eu acho que é algo de muito assustador quando você filma a distância, alguém vindo lá longe. Você não sabe quem são as pessoas, e tem o escuro, e tem a distância. É uma sequência de pesadelo. (MENDONÇA, 2013, 97:58)

Na expectativa do susto, o filme recorre a um efeito de utilizar por breves

segundos uma aparição que pode, inclusive, ser lida como sobrenatural. Estes

efeitos estão na cena da transa de Clodoaldo com a empregada na casa de um

cliente dele que está viajando; quando alguém passa pelo corredor; no sonho da

filha de Bia; na encenação de um susto cinematográfico no cinema abandonado; no

susto na cachoeira com o sangue substituindo a água. São cenas que não estão na

isotopia do filme, quebram seu realismo, flertam com o fantástico e o sobrenatural.

Uma rua vazia passa a ser motivo de atenção, pois algo está para acontecer, um

crime será mostrado, algo excepcional vai irromper na tela. O filme joga com muita

habilidade, mantendo essa expectativa, esvaziando-a, de uma maneira que será

explicada em capítulo posterior, quando nos referirmos às relações com o tempo.

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Traços do western também estão no filme. O som ao redor utiliza o cenário de

uma forma semelhante. Existe uma visão do bairro Setúbal, que tenta ser geral

como uma pradaria, se ela existisse, se fosse possível apagar seus muros e

espigões. O filme tenta construir um espaço paradigmático, sinalizando os limites do

bairro: de um lado o mar onde Francisco vai nadar com os tubarões, de outro o

engenho com seu ciclo econômico e social já superado, porém ainda ecoando nas

relações sociais e econômicas. Neste aspecto, O som ao redor é o anti-western,

pois contrai muito mais que expande o espaço.

O diretor reconhece este parentesco de O som ao redor com o western na

cena que Clodoaldo retorna e traz o irmão: “É a chegada meio western do irmão de

Clodoaldo. Eles chegam de motocicleta que poderia ser cavalo e essa câmera

distante que vai fechando” (MENDONÇA Fº, 2013, 111:00).

Temos também o binômio (núcleo João / núcleo Clodoaldo) apontado por

Deleuze e uma terceira força (núcleo Bia), apoiada no simbólico, pois não faz parte

da ação diretamente. O duelo do western é o ponto máximo da ação, quando se

conclui quem é o vencedor, mas em O som ao redor, já vem esvaziado na sua carga

dramática por não haver o crescendo de tensão e por esta terceira força que vai

representar simbolicamente o conflito. Um duelo recriado no solo nordestino, sem

transe.

E agora tem a apresentação do rosto dele (o irmão de Clodoaldo). Clássica apresentação de pistoleiro, do cara que chegou e tem alguma coisa ai por trás. Para mim, era uma sugestão tão tranquila e tão sutil, que para mim não era uma questão. {...} Tá lá, mas não é para levantar uma bandeira dentro do filme, mas eu acho que tá lá principalmente na parte final quando os irmãos sobem para conversar com Francisco e claro que se você somar toda a coisa da própria história do Brasil, a coisa dos conflitos de terra, definitivamente chega nesta coisa do western. (MENDONÇA Fº, 2013, 113:00)

No momento do tiro, quando Francisco, Clodoaldo e seu irmão se levantam

para o enfrentamento, nem as armas são vistas, só ouvidas em meio ao foguetório.

O som que não pode ser percebido ao redor aponta a morte desse personagem da

vida social e política brasileira – o senhor de engenho – e a ascensão de uma nova

ordem. É um duelo esfriado para exprimir esta nova realidade e o outro estatuto da

imagem: a imagem ótica e sonora pura. A troca de poder, comum em westerns em

que a ordem chega aos confins da América, está em O som ao redor.

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Como vimos, a vingança é uma das temáticas de O som ao redor. Ela ta

também aparece em filmes como Era uma vez no oeste de Sergio Leone e Kill Bill

de Quentin Tarantino, além de vários westerns e noirs. É um tema que fica

escondido durante todo o filme para só se revelar no final. Se no filme de Leone o

vilão se apresenta como um homem mau desde o início, Francisco – o homem a ser

justiçado – é um avô amoroso, pois protege Dinho, está preocupado com os

romances do neto João e o aniversário da sobrinha.

Observando esta estrutura narrativa, o conflito no campo posicional não está

definido. Não se sabe quem é o vilão, não se sabe quem é o herói, nem se existe

um herói. A compreensão total da narrativa só vem no fim, no encontro derradeiro de

Francisco com Clodoaldo e seu irmão, mas a ação é cortada pelo foguetório e sua

patética alegria. É um final que continua sem heróis.

Mas voltando ao ensaio de Vieira, os três filmes estudados por ele tratam

também de uma casa, de um ambiente. Ele observa como o meio cinematográfico

foi evoluindo de um filme seguindo o mesmo tema: uma casa é invadida por

malfeitores e o espectador é levado à tensão à medida que eles conseguem chegar

a outros cômodos. Mesmo que nessa altura do filme, o espectador não saiba das

intenções de Clodoaldo, a cena que ele e seu parceiro visitam Francisco pela

primeira vez mostra esse trajeto de invasão: caminham pela rua; entram no edifício

de Francisco pela garagem; cruzam a garagem até o elevador; seguem tensos a

subida, depois pelo corredor aberto até a porta da cozinha; passam pela porta e

ficam parados de pé na cozinha esperando por Francisco. Não sabemos das

desavenças que só serão reveladas no final, mas a cena antevê esta invasão num

percurso que os vilões dos filmes de Griffith fizeram naqueles filmes do cinema

mudo. Francisco abre a guarda e por isso será vencido no desfecho.

Então, o que se subverte é esta confluência, este crescendo de tensão, que O

som ao redor comenta de uma forma distanciada da ação, um olhar analítico, como

uma crônica que acelera ou segue em marcha lenta mexendo com as emoções do

espectador. Às emoções do cinema clássico, acrescentam-se enfado, tédio e rotina.

A violência está não só nas cenas de ação, não só no desfecho, mas em todos os

instantes da narrativa.

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3.1.2 O clássico “ao lado”

Do western, O homem ao lado também traz traços desta confrontação entre

dois polos pelo território. Mas se no western, ligado ao cinema clássico, o vilão é

definido pela enunciação, neste filme os dois polos em confronto podem oscilar e

fazer do vilão o herói e vice-versa. A ambiguidade é a regra, todos e nenhum são

heróis. Não temos mais a luta pela terra, é um outro tipo de luta, essencialmente

urbana, no espaço em que a privacidade e o conflito estético se apresentam. A

sobrevivência física parece estar resolvida, o que não se confirma no final. Temos o

duelo, um reflexo do cinema clássico, porém agora desigual e covarde. O herói que

defende seu território não condiz com os heróis do western, mesmo os ambíguos

como o velho pistoleiro de Os imperdoáveis de Clint Eastwood. Esta disputa que a

semiótica narrativa de Greimas reconhece acontecer no campo posicional, acontece

sem heroísmo.

Do terror, também temos resquícios. O filme se vale do medo do

desconhecido, do estranho, do inconveniente. Victor surge como uma ameaça

àquele ambiente, à integridade física e intelectual do protagonista, que se sente

frágil, não tem forças para se contrapor, usa de uma argumentação sempre tênue.

Já vimos que Victor, não se sabe exatamente se para provocar o vizinho, faz

sexo na frente da janela. Leonardo, por sua vez, tem uma relação fria com a esposa,

então a sexualidade é outro dado que torna Victor um vilão aos olhos de Leonardo.

Esta pequenez frente a esta força da natureza, este desconhecido imprevisível é o

que dá o tom do horror.

O medo que existe no filme – de que este ser viscoso e inconveniente ocupe

espaço e de alguma maneira macule o ambiente fechado da Casa Curutchet – é o

mesmo do protagonista. Leonardo é hesitante, tem um desconforto imenso em falar

com Victor, o mero contato já não lhe agrada. Esta é a tensão do filme, já expressa

em outros como Cabo do medo de Martin Scorsese, onde o perigo vem de fora.

Mesmo tendo como base dar razões ao personagem de Robert De Niro para que ele

agisse por vingança, pois foi condenado por provas forjadas mesmo sendo culpado,

ele é indiscutivelmente o vilão: seduz a filha do casal, assassina o cachorro e a ação

vai confluindo para a cena da tempestade no barco. O filme promete e cumpre a

violência nesta cena, o que ocorre parcialmente em O homem ao lado.

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Um dos pontos de contato com O som ao redor, O homem ao lado promete e

só vai cumprir o horror anunciado apenas na última cena. O que seria um embate,

um conflito já determinado pela isotopia do filme, acontece de uma forma

inesperada, mas não menos violenta.

Não existe a intenção de horrorizar, mas de mostrar esta relação com o

Outro, com o estranho, com este vizinho sempre imprevisível. Quem é o vilão?

Quem deve morrer no final? O filme pega a origem do horror, o medo dessa invasão

e trabalha como matéria-prima, mas vai desmistificando desde o início. Quando

Victor diz que não é um psicopata, o filme já anuncia essa desmistificação.

Seguindo a classificação de Deleuze, o cinema, como arte muito jovem,

associada à sua complexidade como indústria, toma os caminhos do cinema

clássico, utilizando como matriz a literatura clássica do século XVIII e XIX. A partir

do choque histórico da 2º guerra mundial, um outro cinema surge em pontos

diferentes do planeta: o cinema moderno que se expressa por imagens óticas e

sonoras puras.

3.2 O cinema moderno

Com o cinema moderno, que tem seu início a partir de Orson Welles e o

cinema neorrealista italiano, o todo que muda ganha outros contornos. A imagem-

movimento cede lugar à imagem-tempo.

O esquema sensório-motor já não se exerce, mas também não é ultrapassado, superado. Ele se quebra por dentro. Quer dizer que as percepções e ações não se encadeiam mais, e que os espaços já não se coordenam nem se preenchem {...} Não é mais o tempo que depende do movimento, é o movimento aberrante que depende do tempo. A relação situação sensório-motora / imagem indireta do tempo é substituída numa relação não-localizável situação ótica e sonora pura/ imagem tempo direta. (DELEUZE, 1990, p.55)

O cinema clássico, engendrado a partir da ilusão e de convenções aceitas

pelo espectador, prepondera e persiste até os dias de hoje, nos trazendo diversas

obras-primas. No decorrer do tempo, o cinema moderno vem traçar alternativas: o

neorrealismo italiano e a nouvelle vague francesa apontam novos caminhos. Em

contraste com o cinema em que a tensão e o movimento se sobressaem, as

imagens estão vinculadas a um olhar mais livre, onde o tempo não é mais imutável e

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sim pode ser percorrido ou pulado, evoluindo ou recuando muitas vezes no mesmo

enquadramento, sujeito às leis da memória, dos lapsos, delírios e devaneios.

Estamos diante de um cinema de fissuras no movimento, na convergência de

situações que fatiam uma realidade, pode não haver mais início nem fim.

O neorrealismo italiano mostra a Itália fragmentada, destruída pela guerra. A

câmera está mais solta, sem o vínculo do movimento: “O que define o neorrealismo

é essa ascensão de situações puramente óticas, [...] que se distinguem

essencialmente das situações sensório-motoras da imagem-ação do antigo

realismo” (DELEUZE, 1990, p.11).

Deleuze reconhece em Welles a imagem-tempo que traz tempos diferentes

no mesmo plano. Na nouvelle vague francesa, cortam-se os laços com o

convencionalismo do cinema da época para ir às ruas com Truffault, Rivette,

Rohmer e Godard.

Nos capítulos que seguem, vamos procurar compreender como o cinema

moderno se manifesta em O som ao redor e O homem ao lado, a partir de cineastas

como Alain Resnais e Jean Luc Godard.

3.2.1 Breve olhar sobre a tradição cinematográfica brasileira

O som ao redor faz parte de uma linha evolutiva que contempla temas sociais

e quer explicar o Brasil através das imagens. O cinema novo foi fundador desta

vertente no cinema brasileiro. Rio 40 graus vai às ruas à maneira do neorrealismo

italiano. É um período de tensões, de farta agitação cultural, que vai culminar no

golpe de 64,

Neste capítulo, vamos privilegiar o cinema urbano que conta a vida das

cidades em crescente inchaço. Como primeiro degrau dessa linha evolutiva,

reconhecemos Terra em transe de Glauber Rocha como o filme que abraça maior

número de contradições e por isso consegue exprimir um olhar complexo sobre a

realidade brasileira.

Deleuze se refere ao cinema político moderno sob as seguintes bases: “o

povo já não existe, ou ainda não existe [...] o povo está faltando” (DELEUZE, 1990,

p.259). Seu pensamento encaixa bem na visão de Glauber de um Brasil

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convulsionado pela perspectiva do arbítrio, o que se comprovaria alguns meses

depois, com a instituição do AI-5. Sobre este cinema onde falta o povo, Deleuze diz:

A agitação decorre mais de uma tomada de consciência, mas consiste em fazer tudo entrar em transe, o povo e seus senhores, e a própria câmera, em levar tudo à aberração, tanto para pôr em contato as violências quanto para fazer o negócio privado entrar no político, e o político no privado. Daí o aspecto tão particular que a crítica do mito assume, em Glauber Rocha: não é analisar o mito para descobrir seu sentido ou estrutura arcaica, mas sim referir o mito arcaico ao estado das pulsões numa sociedade perfeitamente atual – fome, sede, sexualidade, potencia, morte, adoração. (DELEUZE, 1990, p.261)

Este transe que permeia este cinema barroco, exagerado, intenso; quer

abarcar vários aspectos da sociedade brasileira. O poeta que se relaciona com o

poder treme com a exacerbação de seus sentimentos, oscilando entre o fascismo, o

populismo e a revolução. Num Brasil que já sente a força da ditadura, que não vê

perspectiva de síntese nem de renovação, o personagem principal encontra a morte.

Um filme que aparece no final da ditadura também está em transe: Tudo bem

de Arnaldo Jabor. Num apartamento de Copacabana, uma reforma reúne os

personagens característicos do Brasil já industrial: o pai é ex-integralista, saudoso

dos velhos tempos; o filho é um jovem executivo; as empregadas e os operários

miseráveis representam o povo; um americano marca presença do capital

estrangeiro na vida do país. O clima é de chanchada, porém sempre flertando com a

tragédia e o drama social.

Como Glauber Rocha notou, o filme vai se desmontando à medida que o apartamento vai se montando. A entrada dos operários dentro de um apartamento burguês se torna pretexto para uma análise crítica das contradições básicas da vida social brasileira. Tudo bem sugere que existem vários Brasis compostos de diversas classes sociais, falando linguagens distintas e com perspectivas diversas e muitas vezes opostas. (STAM, 1981, p.190)

No ano da primeira eleição direta após a ditadura, 1989, um curta-metragem

ganha o mundo tratando a temática social com uma narrativa incomum: Ilha das

flores de Jorge Furtado. Como um documentário, o filme segue o percurso de um

tomate, desde sua plantação, passando por uma família feliz, até ser levado a um

lixão, onde alguns humanos esperam os porcos se alimentarem para catar seus

alimentos. Com uma voz em off, à maneira dos filmes empresariais, seguimos um

raciocínio errático, como uma navegação pela internet, criando parênteses visuais e

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sonoros que lembram o nazismo, o capitalismo, a história, o lixo, o ciclo de um

produto. Fortes ironias são usadas para lidar com o horror da fome e do abandono.

Ainda estamos em transe, sem querer acreditar no horror da desigualdade que

estamos vemos. O próprio cineasta comenta seu filme:

Para convencer o público a participar de uma viagem por dentro de uma realidade horrível, eu precisava enganá-lo. Primeiro, tinha que seduzi-lo e depois dar a porrada. O público começa sabendo que um ser humano é um bípede mamífero. Com um telencéfalo altamente desenvolvido e um polegar opositor. Todo mundo acha graça. O filme fala de galinhas e baleias, de japoneses e tomates, e todo mundo achando graça. Aí o filme mostra um monte de cadáveres de judeus, e lembra ao público que eles são seres humanos. Daí em diante, o filme começa a revelar o que ele realmente pretende, mas as pessoas estão dentro demais para sair, e assim vão até o fim, onde se lembra a todos que existe o bem e o mal, existem coisas como a liberdade, e a humanidade, que ninguém precisa explicar para que todos entendam. (FURTADO, 1992, p.63)

Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, um filme reflete as

contradições do país: Central do Brasil de Walter Salles Jr. O filme começa na

Central do Brasil, a estação de trem central no Rio de Janeiro e mostra a relação

entre uma estranha mulher que escreve cartas a pedido dos emigrantes que por ali

transitam. A miséria agora se mistura com temas como o tráfego de crianças. A fuga

para o interior nordestino traz o encontro com a família: uma ponta de esperança e

de ingenuidade para um país que está buscando seu equilíbrio econômico e político.

Um filme surpreende o Brasil e logo depois o mundo, às vésperas da eleição

de Lula para presidente da república: Cidade de Deus de Fernando Meirelles. A

história do bairro do Rio de Janeiro baseada no romance homônimo de Paulo Lins: o

país sacudido pela violência e o tráfego de drogas. É um drama épico que percorre a

vida de alguns personagens e desenha um Brasil com a questão social agravada

pela violência. Num ritmo contagiante e dinâmico, existe um claro flerte com a

narrativa clássica. Este filme de quase 3 horas cativou o público pela ação, pela

linguagem televisiva, com elementos de linguagem publicitária. Mas na sua essência

utiliza várias técnicas para compor um painel desse Rio de Janeiro sem estado nem

comando.

O quadro se agrava nos dois filmes da série Tropa de elite de José Padilha.

Em ritmo de thriller, à maneira do policial americano, entramos no pesadelo das

favelas, do medo, do crime, do poder policial nem sempre eficiente, mas sempre

repressivo e violento.

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Nesta perspectiva, O som ao redor segue a linha evolutiva do estudo da

violência e da questão social brasileira. O transe ainda existe, mas pode ser

controlado, esquecido e retomado, já trazendo o ponto de vista de quem vive a Era

Lula. O encontro e confronto que geram o humor dá lugar a um sarcasmo. Não

existe a esperança, mas sim o dado objetivo, o mercado imobiliário, os índices de

criminalidade desenhando uma cidade que começa a rejeitar seu passado, tentando

reescrever o presente e o futuro. O transe fica por conta da enunciação, é controlado

por ela e pode ser uma febre, um mal-estar permanente. O transe avança e recua no

tempo, delira entre o horror e real, confunde o passado e o presente à maneira de

Alain Resnais e apresenta os corpos e sons à maneira de Jean Luc Godard.

O transe que em Glauber Rocha levava ao desespero e à morte, que em

Jabor unia a comédia e a tragédia brasileira, que em Furtado racionalizava tanto que

nos fazia delirar com um mundo melhor e depois nos jogava na dura e cruel tragédia

dos morros cariocas sob a tutela do cinema clássico, em O som ao redor nos faz

viver uma febre e quase adormecer num torpor (a festa de aniversário) para nos

fazer acordar com os tiros e fogos de artifício. A alteridade sempre nos foi negada e

parece inviável no nosso país. Esses filmes que citamos em escalada evolutiva

confirmam esta afirmação: com O som ao redor ela cria brechas no acerto de

contas, na vingança, num fim do túnel que almeja a sensualidade de Bia, de João e

Clodoaldo.

3.2.2 O cinema moderno “ao redor”

O som ao redor remete a dois grandes cineastas da nouvelle vague francesa:

Alain Resnais e Jean Luc Godard. A influência do primeiro se estabelece nas

relações de tempo. Anco está na sua rua e tem uma visão dela alguns anos antes,

sem asfalto, sem movimento de carros, sem os prédios que povoam o bairro. É uma

ação que está inserida na montagem da cena em que João e Sofia visitam a casa

que ela morou quando criança. As duas cenas fazem o que Deleuze chama de

lençóis do passado.

Assim como em Hiroshima mon amour e A guerra acabou, que criam uma

relação em que o tempo permeia o fluxo da imagem; em O som ao redor, o passado

está presente desde os créditos, não só o histórico, mas o afetivo: Anco e Sofia se

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encontram com seu passado, assim como Clodoaldo e Francisco na cena final, com

a vingança deflagrada.

A confrontação dos lençóis do passado se faz diretamente, cada um podendo servir de presente relativo ao outro: Hiroshima será para a mulher o presente de Nevers, mas Nevers será para o homem o presente de Hiroshima. Resnais começou com uma memória coletiva, a dos campos de concentração, a de Guernica, a da Biblioteca Nacional. Mas descobre o paradoxo de uma memória a dois, de uma memória a várias pessoas: os diferentes níveis de passado já não remetem a uma personagem, mas a personagens completamente diferentes, como a lugares não-comunicantes que compõem uma memória mundial . (DELEUZE, 1990, p.142)

Esta memória coletiva povoa as ruas, corredores, escadarias, prédios

abandonados e prédios novos que insistem em esquecer, inutilmente segundo o

filme, o passado. O som ao redor faz uma ligação que mostra a simultaneidade do

tempo com o passado sempre se esgueirando pelo presente, por mais que se

divulgue com intensidade uma suposta modernidade imobiliária.

Esta narrativa multifacetada (que oscila entre o filme social com conexões do

passado, o drama realista e o filme de vingança) pode ser encontrada nos filmes de

Godard.

Os filmes de Godard não apresentam mais aquele tipo de espetáculo cuja imagem se oferecia como uma transparência reveladora dos fatos – ele utiliza-se, de um modo crescente, de um universo visual heterogêneo, composto de diferentes materiais, e avança decididamente rumo à descontinuidade do cinema-discurso. (XAVIER, 2005, p.140)

No que tange à narrativa, O som ao redor fica no meio do caminho entre a

narrativa clássica (em que é possível delinear com clareza os atores no campo

posicional) e a narrativa descontínua. Não chega na desconstrução de Godard, mas

tira dele o que Deleuze chama de “clichê”.

Perguntamo-nos o que mantém o conjunto neste mundo sem totalidade nem encadeamento. A resposta é simples: o que faz o conjunto são os clichês, e nada mais. Apenas clichês, clichês por todo lado... O problema já se colocara com Dos Passos, e as novas técnicas por ele instauradas no romance, antes que o cinema tivesse pensado nisto: a realidade dispersiva e lacunar, o fervilhamento de personagens com interferência fraca, sua capacidade de se tornarem principais e voltarem a ser secundários, os acontecimentos que se depositam sobre os personagens e que não pertencem àqueles que os sofrem ou provocam. Ora, o que cimenta tudo isto são os clichês habituais de uma época ou de um momento, slogans sonoros e visuais que Dos Passos chama, com nomes emprestados do cinema, de “atualidades” e “olho da câmera”. (DELEUZE, 1990, p.232)

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Os clichês percorrem toda a narrativa de O som ao redor. Podemos citar três

bem significativos:

1) no encontro de João e Anco com Clodoaldo, eles perguntam ao

segurança se ele anda armado e a resposta vem com uma frase

clichê: “Eu nem posso lhe dizer que sim, mas também não tem como

lhe dizer que não”. Desta contradição, surge uma das questões do

filme: a discussão ética da distância entre o que é permitido e o que

é obedecido;

2) na cena em que o lavador de carro, pressionado se sabe quem

roubou o som do carro da namorada de João, sai com uma resposta

gerada pelo medo: “A gente viu que a confusão tinha envolvimento

com o senhor, e aí a gente foi atrás logo para avisar, mas a gente tá

por fora de tudo que acontece aqui nessa rua, não é, não?”. Para o

lavador, é melhor parecer ridículo do que falar o que sabe, o que

talvez lhe valesse uma reprimenda a altura;

3) na cena em que a senhora, ao olhar um apartamento para alugar, e

saber que houve um suicídio no prédio, sugere a João, o corretor:

“Vocês não fariam um desconto no aluguel num apartamento dentro

de um prédio num contexto desses?”. Ela tenta inserir um dado

emocional e sobrenatural na negociação de um apartamento, ação

eminentemente objetiva e racional. Sua arrogância e medo

confundem esses valores, o que vem sendo bem comum nos dias

que correm.

3.2.3 Breve olhar sobre a narrativa cinematográfica argentina

Se O homem ao lado tem uma tradição narrativa, ela remete aos grandes

contistas como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, principalmente com este último,

afeito a jogos intelectuais. O tema da privacidade e do espaço invadido já está em A

casa tomada.

O cinema argentino não teve uma escala evolutiva, não criou uma tradição

cinematográfica tão significativa quanto a brasileira. Voltando no tempo, localizamos

La batalha de los Hornos de Octavio Gettino e Fernando Solanas como um marco

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do cinema social. É um documentário filmado em 16mm na clandestinidade em meio

a uma das ditaduras argentinas da década de 60.

La hora de los hornos aglutina los conflictos de su tiempo en una única gran disputa entre los pueblos del Tercer Mundo y el neocolonialismo. Una lucha por la liberación que, para los autores, se libraba en distintas esferas (militar, cultural, económica), se remontaba en el tiempo a los orígenes del colonialismo europeo (“una guerra larga”) y se extendía a todos los continentes, sin dejar de formar parte de una misma contienda de dos contrarios. Solanas y Getino se proponían revelar el carácter sistémico, transhistórico y transcontinental de esta única gran lucha entre las clases sociales y entre las regiones del planeta. Tal vez por eso en la primera parte del tríptico los narradores no mencionan por sus nombres a personajes de la trama política local como Onganía y Vandor, que son aludidos pero no nombrados, quizá porque sus nombres podrían distraernos del sistema que, más allá de las personas, articulaba la dominación neocolonial. (SIRLIN, s.d. p.42)

Por longos anos, o cinema argentino ficou à deriva. Uma adaptação

cinematográfica de um livro do escritor uruguaio Mario Benedetti preencheu toda

década de 70: La trégua.

No inicio da década de 80, ainda durante a ditadura, Adolfo Aristarain dirige

dois filmes emblemáticos da época: Tiempo de revancha e Últimos dias de la

víctima. São filmes de cunho dramático envolvendo tramas policiais: no primeiro, um

engenheiro sofre um acidente em uma mina no interior do país e supostamente fica

surdo e mudo. Ele solicita um seguro contra acidentes, o que gera uma pressão

enorme da empresa e da seguradora para que ele desista. Se não aparece a

violência estatal, o que vemos é a forte intrusão de empresas estrangeiras sem

escrúpulos, atuando no vácuo da desproteção. Um filme que não fala diretamente de

política, mas ela está presente no thriller, na tensão constante e na cena final,

quando o protagonista corta sua própria língua.

Só depois da queda da ditadura militar que os filmes passam a ter relevância.

A história oficial, vencedor de melhor filme estrangeiro, conta o drama de uma

mulher que descobre que seu filho foi sequestrado de uma presa política

provavelmente assassinada após o parto.

Na década de 90, mesmo com toda a crise econômica que se abateu sobre a

Argentina, seu cinema ganhou em vitalidade, em função de leis protecionistas que

propiciaram uma filmografia de qualidade, produzindo filmes de médio orçamento.

Juan José Campanella revela o astro Ricardo Darin em filmes que relatam o

drama da crise econômica e da frágil democracia. O filho da noiva tem grande apelo

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popular. O segredo de seus olhos tem influência das séries policiais americanas e

revisita as dores da ditadura, através de um crime ocorrido na época e que a trama

traz a solução, percorrendo grandes e pequenos espaços desta nação, num curto-

circuito entre o passado e o presente..

El buonarense de Pablo Trapero expõe a corrupção policial nos subúrbios

pobres de Buenos Aires. Uma Argentina ainda desconhecida, aquela que emerge da

crise, mostra o que de sórdido e criminoso pode surgir de um aparelho repressivo

imoral.

O espaço é geralmente a intimidade da personagem, sua casa, e mostram o contato contrastante com a rua, que é mostrada como cenário público de fluxos de câmbio e violência. Assim, os espaços do cotidiano nos situam na Argentina de hoje, construindo uma geografia cinematográfica que é retrato vivo deste país no final de século. As ruas, os carros, a moda das pessoas, sua música, os modos de comer e falar na rua. O espaço urbano representado é, geralmente, o da periferia. A arquitetura familiar é o principal cenário íntimo do relato, caracterizando assim o ponto de vista da classe média decadente. (MOLFETTA, 2008, p.13)

O interior, por sua vez, aparece nos filmes de Lucrécia Martel com O pântano

e A menina santa. É um olhar cáustico sobre a sociedade argentina, entre a

repressão moralista e a sexualidade, entre os valores tradicionais e a violência

intrínseca que eles trazem. O espaço de Martel é o noroeste da Argentina, seus

planos dividem indivíduos em partes. É um ambiente sempre dissociado, sempre

caótico na suposta ordem aparente.

A região da Patagônia também está em Cachorro e Histórias Mínimas, ambos

de Carlos Sorin. O bucólico da paisagem, a falta de perspectiva está refletida na

narrativa, assim como as imensas possibilidades geradas em pequenas histórias,

pequenas vidas, pequenas alegrias e tragédias.

Existe uma relação de espelhamento entre o realizador e o filme: o mundo das personagens e seus conflitos são as matérias de um cinema feito como modo de pensar o mundo. Daí sua vocação intimamente realista. Em grande parte destas obras existe a colocação de personagens que são alter-ego do autor, no registro de pequenas histórias de origem autobiográfica. Neste conjunto de filmes ouvimos a voz de uma geração que assoma a maturidade da sua juventude tomando as salas para falar do país, reativando a representação. (MOLFETTA, 2008, p.1)

O Homem ao lado faz parte dessa tendência descentrada de reativar a

representação, de apontar os conflitos com olhar clínico, instigante, que abre para

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um novo realismo. Mesmo sendo uma história pontual, as crises argentinas estão

presentes.

3.2.4 O cinema moderno “ao lado”

O Homem ao lado é cinema moderno porque também está sujeito ao

encadeamento dos clichês em imagens óticas e sonoras puras.

Os personagens, à maneira de Godard, mas sem a descontinuidade deste,

usam seus corpos: Leonardo e sua rigidez, sua esposa e a yoga, Victor e sua

sexualidade e expansão corporal, Lola envolvida com seu mundo e seu aparelho

sonoro. É o que Deleuze diz sobre Godard: “A solução em Godard [...], é que, vimos

as personagens se põem a dançar, a arremedar por si mesmas, numa teatralidade

que prolonga diretamente suas atitudes cotidianas: a personagem faz para si mesma

um teatro”. (DELEUZE, 1990, p.233)

Estes corpos se perdem nos seus clichês: a vida cotidiana amassa Leonardo,

um personagem típico de Antonioni com seu acúmulo de conhecimento, seu

excesso de referências. Já Victor é Godard: é múltiplo, tira partido da rotina, busca

seu lugar ao sol, tem um portfólio de possibilidades que o divertem, expressa-se e

se expõe em atitude corporal.

Na cena em que Leonardo e seu amigo ouvem uma música moderna, o som

da parede sendo aberta se mistura com o som emitido. O amigo delira, confundindo

o som real com uma ousadia do músico. Eis aí um clichê: esta convivência nem

sempre harmônica entre a realidade e a arte. Deleuze (1983, p.232), questiona: “(…)

perguntamo-nos o que mantém o conjunto neste mundo sem totalidade nem

encadeamento. A resposta é simples: o que faz o conjunto são os clichês, e nada

mais. Apenas clichês, clichês por todo lado...”

A postura da filha de não tirar os fones de ouvido, mesmo quando o pai a está

questionando, sempre dançando, sempre alheia ao que acontece em volta, é

revelação desse corpo solitário num espaço alienado.

Assim como as falas e os corpos se manifestam, os objetos emanam suas

mensagens. Duas camisetas marcam O homem ao lado: o assaltante que usa a

camiseta de Messi no Barcelona e a ajudante que usa a camiseta do grupo de rock

Kiss. A primeira remete ao esporte tão amado pelos argentinos, dizendo mais uma

vez que o povo está à espreita para invadir a casa. A segunda contrasta com a

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forma como a empregada é tratada: frieza e autoritarismo. Aqui estamos frente à fina

ironia do filme.

Também são dignos de observação os móveis e obras de arte, incluindo a

que Victor dá de presente a Leonardo. É algo esteticamente desagradável, que

agride o bom gosto de Leonardo e sua esposa. A cadeira premiada é o troféu de

Leonardo, que muitos têm o privilégio de experimentar, mas nenhum com o prazer

que Victor se concede ao usá-la. O quadro com a imagem de uma famosa foto do

Che Guevara no quarto de Lola mostra a banalização da cultura.

Temos aqui seres soltos no espaço-tempo, bem diferentes dos personagens

do cinema clássico que rumam para conflitos determinados, com competência para

enfrentar dificuldades. Agora a voz de Leonardo treme, o personagem hesita e pode

desistir. O mundo não é hostil, é desesperançado.

Não temos mais, como nos filmes do início do cinema comentados por Vieira,

a geografia da casa sendo tomada pelos malfeitores e acuando os moradores. O

medo persiste, mas existe um intrincado diálogo de direitos e deveres, de acesso à

luz do sol, de sexualidade reprimida e liberdade sexual. Victor é uma ameaça, mas

Leonardo também segura sua agressividade para defender seu direito sobre a luz do

sol do vizinho. É uma briga de omissões, falsas concordâncias, busca de aliados,

temores e prazeres misturados. É um cinema questionador, cínico, frio. Não mobiliza

o espectador, mas busca a reflexão, uma compreensão do que é heterogêneo, do

que não tem possibilidade de síntese, do que não é possível conciliar.

Um aspecto fundamental na constatação de um cinema clássico é o ponto de

vista: quem vê, como vê e o que é permitido ao espectador conhecer para que a

estrutura narrativa se desenvolva, mas isto é assunto para outro capítulo.

A seguir, vamos compreender como os filmes apresentam a relação espaço-

tempo e como figurativizam estas características em imagem e som.

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4 ESPAÇO-TEMPO: A FIGURATIVIZAÇÃO DA HISTÓRIA E DA CULTURA

De posse das observações sobre a narrativa e constatando a influência de

dois gêneros clássicos, vamos avançar para a posição dos autores sobre os temas.

Neste aspecto, apontamos o que é essencialmente cinematográfico e que, a partir

do discurso constatado, figurativizam-se em imagens de espaço, tempo e

atorialização. “A enunciação projeta, para fora de si, os actantes e as coordenadas

espacio-temporais do discurso, que não se confundem com o sujeito, o espaço e o

tempo da enunciação” (BARROS, 2003, p.54).

Buscando o discurso enunciador dos dois filmes, vamos utilizar as oposições

figurativas, tal como a semiótica discursiva proporciona como instrumento de

análise. Desta projeção da enunciação, vamos reconhecer como os autores

estruturam suas narrativas para elaborarem seus discursos.

No seu estudo sobre Vidas Secas, a Prof.a Dr.a Anna Maria Balogh expõe as

bases de uma análise em que a figurativização é primordial para o desvendamento

dos filmes.

Quando Desmedt fala sobre figurativização, ela se lembra de um dos princípios básicos do estruturalismo linguístico: o sentido nasce das diferenças. O sentido nasce, portanto, neste nível, de oposições significativas, de traços figurativos que se opõem. (BALOGH, 2005, p.79)

Aqui vamos nos confrontar com aspectos essencialmente cinematográficos:

como os conteúdos apresentados se revelam nos enquadramentos, montagem,

iluminação e outros fatores definidores do ato de criação da sétima arte.

4.1 O campo, o fora de campo e o contraplano

Para seguir adiante nesta dissertação, é preciso balizar alguns conceitos

referentes à especificidade do meio em questão. No cinema, dada sua

bidimensionalidade física e sua a tridimensionalidade virtual, temos um espaço que

gera a “impressão de realidade”. Nesse retângulo, enxergamos corpos e volumes.

São vultos, dado que apenas projeção, mas que atingem esta capacidade de

reproduzir a realidade. Este espaço de expressividade Aumont define como campo,

“É esta porção do imaginário que está contida dentro do quadro que chamaremos de

campo” (AUMONT et al., 2011, p.21). A composição do campo e seu fora são

fundamentais para compreender os dois filmes em sua totalidade expressiva.

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Assim podemos definir o fora de campo:

O Fora de campo está, portanto, vinculado essencialmente ao campo, pois só existe em função do último; poderia ser definido como o conjunto de elementos (personagens, cenário etc) que, não estando incluídos no campo, são contudo vinculados a ele imaginariamente para o espectador, por um meio qualquer. (AUMONT et al., 2011, p.24)

Noel Burch (1992, p. 37), também se refere a este aspecto dizendo que: “Para

compreender a natureza do espaço no cinema, pode ser útil considerar que se trata,

efetivamente, de dois espaços: o que existe em cada quadro e o que existe fora de

quadro”.

Aumont coloca 3 categorias do Fora de campo:

1) A entrada e saída do campo, assinalando o que está fora incluindo e

excluindo personagens e objetos pelas bordas do quadro;

2) Quando o olhar se dirige para fora do quadro, denunciando a presença de

algo ou alguém;

3) Quando o personagem ou o objeto apresenta uma parte de si no quadro,

o que faz compreender que a outra parte existe fora de quadro.

Dentro do Campo, estudaremos as tensões dos enquadramentos que,

figurativamente, assumem significados. A imagem sugerida, a que está fora de

campo, ganha força como elemento expressivo, na intenção de mais sugerir do que

mostrar. Se buscamos o sentido da segurança, do perigo e do medo muito mais do

que a imagem da violência física, o Fora de campo se impõe como força expressiva.

O mesmo podemos dizer da sexualidade: sugerir o sexo é muito mais excitante do

que mostrá-lo.

Na contramão de um cinema que expõe a violência, os filmes em questão vão

discutir este assunto à luz do século XXI, suas mudanças sociais e a nova

configuração mundial, onde as periferias dos grandes centros de decisão, tendo

Pernambuco e a província de La Plata como referências, modificam-se para existir

dentro de um novo panorama social e cultural.

4.2 Os espaços quaisquer e os tempos mortos

Nossa atenção está no bairro de Setúbal ou na casa que Le Corbusier

projetou na cidade de La Plata, na Argentina. São espaços determinados, com uma

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geografia reconhecível, porém desconectados entre si. Ainda existem imagens

sensório-motoras, porém enfraquecidas, cedendo lugar para imagens óticas puras.

As situações óticas e sonoras do neo-realismo se opõem às situações sensório-motoras fortes do realismo tradicional. A situação sensório motora tem por espaço um meio bem qualificado, e supõe uma ação que a desvele, ou suscita uma reação que se adapte a ela ou a modifique. Mas uma situação puramente ótica ou sonora se estabelece no que chamávamos de “espaço qualquer” seja conectado, seja esvaziado. (DELEUZE, 1990, p.14)

Dois cineastas citados por Deleuze trabalham com a noção de espaço que

serve para este estudo: Yasujiro Ozu e Michelangelo Antonioni. Do segundo,

Deleuze aponta O eclipse “onde os pedaços desconectados do espaço [...] somam-

se no final do filme em um espaço vazio que se confunde com a superfície branca”

(Deleuze, 1990, p.14). O conceito de espaço qualquer será bem relevante no

estudo de O som ao redor e O homem ao lado.

Na sua filmografia, o japonês Ozu exprime o cotidiano com seus problemas

diários, os filhos que crescem e abandonam os pais, o fluxo irremediável de quem

vai ou para vida ou para morte e de quem fica vivendo seu dia a dia; sendo um dos

primeiros cineastas a usar a imagem-tempo, desvinculando-a do movimento.

(Ozu) documenta a ausência de intriga: a imagem-ação desaparece em favor da imagem puramente visual do que é uma personagem, e da imagem puramente sonora do que ela diz, uma natureza e uma conversa absolutamente banais constituindo o essencial do roteiro. {...} É evidente que esse método apresenta desde o início tempos mortos, e os faz proliferar no decorrer do filme. Certo, à medida que o tempo avança, poder-se-ia acreditar que os tempos mortos não valem mais apenas por si mesmos, mas recolhem o efeito de alguma coisa importante: o plano ou a réplica seriam assim prolongados por um silêncio, um vazio bastante longo. {...} Em Ozu, tudo é comum ou banal, inclusive a morte e os mortos, que são objeto de um esquecimento natural. (DELEUZE, 1990, p.23-24)

Os tempos mortos de Ozu estão desvinculados do movimento, da confluência

de imagens rumo a um desfecho. São intervalos de conexão mínima, exprimindo

passagens de tempo diferentes, criando conteúdos que desvendam a desconstrução

de um personagem, uma família e um país.

Os dois filmes estudados têm uma relação com o cotidiano: um deles olha

para o bairro e outro para a casa. Deleuze se refere a este olhar que passeia pelo

banal, pelo que não é espetacular, mas que consegue captar o essencial e

exemplifica com o cinema de Ozu.

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A vida cotidiana não deixa subsistir senão ligações sensório-motoras fracas, e substitui a imagem-ação por imagens óticas e sonoras puras. {...} Em Ozu não há linha de universo que ligue os momentos decisivos, os mortos aos vivos, como em Mizoguchi; também não há espaço-sopro ou englobante que tenha uma pergunta profunda, como há em Kurosawa. Os espaços de Ozu são elevados ao estado de espaços quaisquer, seja por desconexão ou por vacuidade. Os falsos raccords de olhar, de direção e mesmo de posição de objetos são constantes, sistemáticas. (DELEUZE, 1990, p.26)

Vemos também o espaço qualquer, desconectado na sua geografia, com as

imagens sensório-motoras quebradas por dentro, criando uma percepção incerta

desse espaço.

Num estudo sobre Ozu, Bordwell e Thompson explicam a questão do espaço

na obra desse cineasta. Para isso, fazem uma comparação com a decupagem

clássica, que em Deleuze corresponde à imagem-movimento, na qual toda

construção do espaço está vinculada à concentração em pontos espaciais

específicos, à regra de 180 graus que orienta o jogo de olhares, ao espaço e aos

objetos como exteriorização das características dos personagens e a continuidade

geral. “De modo geral, os filmes de Ozu divergem do paradigma hollywoodiano por

gerarem estruturas espaciais não motivadas pela cadeia de causa-efeito da

narrativa” (BORDWELL; THOMPSON, 1990, p.130).

O que é explicado aqui sobre Ozu é uma desorientação espacial que

acompanha os fatos apresentados. Seja na casa Curutchet ou no aparentemente

cartesiano bairro de Setúbal, as ruas e peças se embaralham até ser impossível

viver e estar nestes lugares sem medo, desorientação, confusão, injustiça,

criminalidade.

Outro ponto que Bordwell e Thompson chamam à atenção é a forma como

Ozu reinventou a questão do campo e contracampo. No cinema clássico, isto

significa que o ambiente é cortado por um eixo de 180 graus para que a câmera

possa alternar os olhares dos personagens. Ozu utiliza todos os 360 graus, um

espaço circular e não semicircular, eliminando o eixo.

Estes artifícios dos 360 graus apresentam várias consequências. Eles tendem a pôr em jogo o espaço à volta da personagem, tornando-os constantes, mas alterando o espaço a cada plano (comparar com o paradigma clássico que busca manter os planos de fundo estáveis, enquanto os personagens reposicionam-se nos planos e entre elas). (BORDWELL et al., 1990, p.144)

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O resultado está numa maneira de filmar muito distante dos métodos

ocidentais, de imersão do espectador na ação.

Encerrando o artigo sobre Ozu, Bordwell e Thompson enfatizam:

“Trabalhando assim sobre a narrativa, os espaços de Ozu exigem uma interpretação

pluralista, pelos seus próprios propósitos, desafiando-nos a jogar, embora de modo

inconstante, dentro deles” (BORDWELL; THOMPSON, 1990, p.153).

Antonioni também é um cineasta com um olhar aguçado sobre o banal e o

trivial. Da trilogia da incomunicabilidade (A aventura, A noite e O Eclipse), podemos

observar uma proposta diferenciada sobre o espaço-tempo. As imagens refletem o

vazio interior dos personagens e, saindo deles, sem relação causa e efeito comum

ao cinema clássico, expõem regiões em que o espaço e tempo se confundem e se

contornam.

E a arte de Antonioni se desenvolverá sempre em duas direções: uma espantosa exploração dos tempos mortos da banalidade cotidiana; depois, a partir de O eclipse, um tratamento das situações-limite que as impele até paisagens desumanizadas, espaços vazios, dos quais se diria terem absorvido as personagens e as ações, para deles só conservar a descrição geofísica, o inventário abstrato. (DELEUZE, 1990, p.14)

Esta relação com o espaço e o tempo gera outro estatuto da imagem, que

revela estas regiões misteriosas da alma humana em que a aridez prepondera. Não

há a emoção do cinema clássico, nem tensão crescente; o que existe são seres

solitários, perdidos numa imagem que conta sobre a solidão do mundo moderno ou

que pode não contar nada.

Os dois filmes jogam o tempo todo com estes espaços e tempos que se

descredenciam de uma lógica uniforme e cartesiana. Deleuze comenta sobre esta

imagem puramente ótica, que se detém com outro olhar sobre seus objetos, não

mais amarrado a uma trama que deve ser seguida até o seu desfecho.

E sem dúvida estes novos signos remetem a imagens bem diversas. Ora é a banalidade cotidiana, ora são circunstâncias excepcionais ou limites. Mas, acima de tudo, ora são imagens subjetivas, lembranças de infância, sonhos ou fantasmas auditivos e visuais, onde a personagem não age sem se ver agir, espectadora complacente do papel que ela representa. À maneira de Fellini, ora, como em Antonioni, são imagens subjetivas à maneira de uma constatação, ainda que a mera constatação de um acidente, definida por um enquadramento geométrico que, entre seus elementos, pessoas e objetos, só deixa subsistir relações de medida e distância, transformando desta vez a ação em deslocamento de figuras no espaço. (DELEUZE, 1990, p.14-15)

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Este fascínio de Antonioni pelo vazio e pelos espaços quaisquer não procura

uma definição exata. Estamos no reino da imprecisão, entre o vagar e o vazio, entre

estar em qualquer lugar e não estar em lugar nenhum. “O método da constatação

em Antonioni tem sempre esta função de reunir os tempos mortos e vazios: tirar

todas as consequências de uma experiência decisiva passada, uma vez que já está

feito e tudo já foi dito” (DELEUZE, 1990, p.16).

Certeau se refere ao cotidiano como uma invenção mental tomada pelo

controle do espaço e do tempo, elaborada para gerar mais consumidores, evitando o

caminho da criatividade. Na cidade e seus espaços, sobras e restos de muitas

histórias.

Tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada. As redes dessas escrituras avançando e entrecruzando-se compõem uma história múltipla, sem autor nem espectador, formada de fragmentos de trajetórias e em alterações de espaços: com relação às representações, ela permanece cotidianamente, indefinidamente, outra. (CERTEAU, 1998, p.171)

Essas escrituras se esvaziam e se reconstroem pelo espaço-tempo. Cabe à

arte cinematográfica perceber seus volumes, sua presença inativa, seu estatuto de

um ser humano isolado que não consegue se colocar nos espaços que ele mesmo

construiu. Nas ruas incertas de um bairro da capital pernambucana ou na casa de

um dos grandes nomes da arquitetura do século, personagens estão sujeitos a uma

concepção de espaço e tempo: um tempo que se volta ao passado e ao futuro e vê

o presente apenas como momento; um lugar que oscila pelo que não se é e pelo

que se pensa que deveria ser.

4.3 A manipulação do tempo

Se o espaço se dilata ou contrai para fora e para dentro dos limites do quadro,

o tempo também sofre transformações: pode-se desdobrar em muitas ações

acontecendo ao mesmo tempo ou, no sentido oposto, concentrar vários tempos

numa só ação. Este é um elemento básico na criação do suspense: a manipulação

do tempo.

Burch escreve sobre a duração do plano e o relaciona à legibilidade.

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A experiência do dia-a-dia do cineasta (e as tentativas de organizar as durações dos planos como tal, independentemente do seu conteúdo) tem mostrado que a percepção da duração de um determinado plano está condicionada à sua legibilidade. (BURCH, 1992, p.74)

Neste raciocínio, cineastas do cinema clássico querem se fazer compreender

e procuram a duração exata do plano e a montagem mais fluente para que o filme

seja uma experiência prazerosa, de entretenimento, sem sobressaltos. Mas além do

sentido da compreensão, podemos acrescentar que

A relação duração-legibilidade é, em si, uma dialética: não se trata apenas de encontrar a duração adequada à legibilidade de cada plano, mas de jogar com graus de dificuldade ou facilidade de leitura, tornando alguns planos muito curtos para serem lidos confortavelmente (desconforto ou frustração) ou tão longos que podem ser lidos e relidos até a saturação (desconforto do tédio). (BURCH, 1992, p.75)

Nessa decupagem que transcende o entendimento da cena e joga para o

espectador sentimentos que o seduzem ou o entediam, temos visões de tempo

diferenciados: um tempo que passa rápido demais para a instalação do prazer ou

que permite esse prazer até o limite da exaustão, trazendo cansaço e tédio, de

acordo com a expectativa e o tempo de leitura do espectador. Veremos como

enxergamos este aspecto nos dois filmes.

Desse tempo que flui para a resolução de uma trama, pulamos para um

tempo com outra lógica: deslocamentos, contrações e expansões. Se, no cinema

clássico, podemos definir o tempo a reboque do movimento, com o cinema moderno

este tempo tem que se defrontar com o futuro e todas suas incertezas. Não é só o

espaço que está fragmentado, não são só os personagens que têm seus papéis

invertidos ou descaracterizados; o tempo está livre, indeterminado, mesclando

passado, presente e futuro.

O tempo histórico passa por esta percepção: como em Hiroshima Mon Amour

de Alain Resnais, existem camadas de tempo que se confundem, alternam-se,

debatem-se entre o fato e a interpretação. No nordeste brasileiro, os cinco séculos

de dominação persistem no filme. Temos resquícios de Canudos, da saga de

Lampião, da escravidão e dos quilombos.

Na única casa projetada por Le Corbusier na América Latina, o choque

cultural, decorrência do histórico, também se faz presente.

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Segundo Tarkovski (1998, p.72), o tempo, “registrado em suas formas e

manifestações reais: é esta a suprema concepção do cinema enquanto arte”.

4.4 O som como relação espaço-tempo

Em O som ao redor, já está no título a importância que o som ganha na

expressividade do filme. Em O homem ao lado, o som também tem grande

relevância. Noel Burch conceitua as relações entre os elementos visuais e sonoros.

Ao falar das inter-relações entre os materiais sonoros e entre o espaço sonoro e o espaço virtual, referimo-nos tanto à música como aos diálogos e ruídos, porque achamos que estes dois tipos de interação dialética podem envolver todos os elementos sonoros. {...} Esta atitude constitui um passo importante para as pesquisas contemporâneas sobre o som no cinema: estabelecer uma trilha sonora organicamente coerente, onde as relações dialéticas entre som e imagem sejam estreitamente ligadas a outras, inter-relacionando o que poderíamos chamar de três tipos essenciais de som cinematográfico (ruídos, identificáveis ou não, música e diálogo). (BURCH, 1992, p.120-121)

Buscando respostas a estas questões no cinema clássico, podemos observar

que o som acompanha a imagem procurando aumentar a impressão de realidade. É

a grande vitória do cinema clássico que consegue emergir do cinema silencioso

arrebatando multidões. O tratamento do som colabora intensamente em definir as

relações de espaço-tempo. Da modulação entre vozes, ruídos e música temos um

conjunto sonoro que acompanha as oscilações dramáticas das tramas

cinematográficas.

Desde o início o problema do sonoro era: como fazer para que o som e a fala não sejam mera redundância do que se vê? Este problema não negava que o sonoro e o falado fossem um componente da imagem visual, ao contrário; era na qualidade de componente específico que o som não devia ser redundante com o que era visto no visual. (DELEUZE, 1990, p.279)

Abrindo novas possibilidades, os cineastas do cinema moderno interferem no

som dos filmes de outra maneira, “O som já não seria, ou nem sempre seria,

submetido à imagem, mas sim tratado como um elemento expressivo autônomo do

filme, podendo entrar em diversos tipos de combinações com a imagem” (AUMONT

et al., 2011, p.49).

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Deleuze se refere a um continuum sonoro “cujos elementos só se separam

em função de um referente ou de um significado comum, mas não de um

significante” (DELEUZE, 1990, p.278).

Se o encontro cada vez maior com a impressão de realidade é a regra no

cinema dos grandes estúdios, também abre-se o que já se comentou acima: uma

separação entre imagem e o som, os dois assumindo papéis complementares na

expressão cinematográfica.

Michel Chion reflete sobre esta independência que o som passa a ter da

imagem, proporcionando um elemento que não só pode discordar da imagem, mas

ter autonomia e expressividade própria.

En los filmes de Jacques Tati, pero también en los «objetos sonoros» del creador sonoro Ben Burtt para La guerra de las galaxias (Star Wars, 1977) de George Lucas (ruidos de puerta neumática, zumbido del sable láser, bips de robots y rugidos de aeronaves), los sonidos están extremada y firmemente perfilados, organizados y equilibrados, tanto si los tomamos de uno en uno como sucesivamente, y esta calidad sonora contribuye tanto a la eficacia cómica o espectacular como al placer sensorial. Por supuesto, hay estéticas sonoras diferentes; del mismo modo que la belleza de un sonido de guitarra eléctrica no es la misma que la de un sonido de trompeta ni apela a los mismos criterios, hay varios tipos de belleza sonora en el cine. Unas veces, lo que cuenta es la forma del sonido, su «aerodinamismo» -como se decía antaño-; y otras veces se busca una materia, una textura, como puede ocurrir en el caso de un tejido. (CHION, 1999, p.236)

Deleuze comenta os componentes do som e como eles podem se unir

criativamente – de falas se revelam ruídos, ruídos dizem mais que o que é dito, a

música se funde com eles.

É evidente que estes diferentes elementos podem rivalizar, se combater, suprir, recobrir, transformar: isso {...} será um dos aspectos mais importantes da obra de Tati, na qual relações intrínsecas de sons são sistematicamente deformadas, mas também os ruídos elementares se tornam personagens e inversamente as personagens entram na conversa por meio de ruídos. (DELEUZE, 1990, p.277)

Se já compreendemos que as imagens se traduzem em espaço-tempo,

perdidas num vazio cotidiano, o som define o espaço pelo que está fora de campo, o

espaço fragmentado, nunca completo: um espaço que só pode ser imaginado e

sugerido ao espectador.

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Adiante veremos como um latido de cão, a chave riscando a lataria de um

carro ou o som de uma reforma assumem destaque tão relevante nos filmes

estudados.

4.5 O espaço e o tempo “ao redor”

As imagens em fotos na abertura de O som ao redor e o contraste com a

cena do condomínio nos dias de hoje são como um editorial, pois exprimem o ponto

de vista do enunciador, que quer dizer que os conflitos que O som ao redor

apresenta como atuais neste início de século, relacionam-se com o passado

histórico e social do nordeste brasileiro.

No discurso sobre o que está “ao redor”, o tempo histórico e social remete a

cinco séculos de história brasileira, localizados mais especificamente no nordeste.

No bairro onde se passa quase todo o filme, o bairro de Setúbal, em Recife, o que

está ao redor é um país que sofre esta transformação. O espaço-tempo passa por

este filtro histórico e esta localização: o bairro é enquadrado, visto em planos muito

gerais, nos seus condomínios de classe A, na desordem urbana e social.

Este tempo histórico remete a Resnais e o estudo que se fez dele para a

análise de O som ao redor em relação ao cinema moderno. O passado está em

cada fotograma, num curto-circuito com o presente e o futuro. Assim como Nevers e

Hiroshima, como Guernica e a Biblioteca Nacional, temos Setúbal e o engenho, a

Alemanha que João morou, a China que é o futuro dos filhos de Bia que estão

aprendendo mandarim. Estes fluxos deixam o presente como apenas um ponto

numa infinita linha de tempo, na confluência quando se encontram o que passou e o

que vai passar.

No que se refere à figurativização, ela é observada no quadro dividido: na

casa de João, o espaço amplo de um apartamento de classe alta divide no quadro

pobres e ricos. Logo no início do filme, na cena que João e Sofia dormem nus na

sala do apartamento dele, vemos imagem da cidade e seus edifícios ao amanhecer

com as garrafas vazias da festa da noite anterior na posição vertical em primeiro

plano, o mesmo sentido dos edifícios. Esta modernidade se alterna também quando

o casal visita a casa em que ela morava: eles observam uma piscina abandonada,

contraste com os imóveis de tendência mediterrânea da redondeza, sinalizando a

estrutura social em decadência.

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A presença de um espaço fora de campo é uma constante e delimita o objeto

apontado pelo próprio título, existe algo ao redor que pode não ser visto, mas é

ouvido e/ou pressentido: no cão que Bia se esforça para ver; na voz de João

passando com Anco quando Bia está recebendo a televisão (eles nunca se

encontram no filme); na ausência do cinema em ruínas no engenho; na possível

presença de algo ou alguém que traga perigo.

As oposições figurativas de O som ao redor são compreendidas de duas

maneiras:

da divisão do quadro, estabelecendo oposições dentro do

quadro: o fora e o dentro, o pobre e o rico, a segurança e o perigo.

do que está fora de quadro, mas marcando sua presença

na fronteira que traz o desconhecido. O que está ao redor pode ser

visível ou não, mas é percebido. Mesmo algo que não está ao redor,

pode ser percebido: o filme joga sempre com esta possibilidade.

Como vimos, o tempo também se dilata ou contrai. Em O som ao redor, a

espera e a expectativa do perigo (expressa quando os seguranças estão na tenda

observando as ruas) refletem esta característica. O rosto de Bia ouvindo um rock’roll

por vários instantes, além da legibilidade, apresenta um tempo que se prolonga, mas

que corresponde a um momento de alívio no tédio geral que é a vida dela e no

envolvimento do espectador com as sensações da personagem.

Em diversos momentos do filme existem cenas que fazem a passagem de

turno, do dia para noite, uma pontuação entre uma coisa e outra, mas que dá uma

outra dimensão ao tempo: uma rua do bairro vazia; dois carros se cruzam e quase

se chocam, cantando pneu. O corte é abrupto para a cena seguinte, o suficiente

para ser legível, mas gera um impacto de um instante, de um momento forte dentro

um tempo impreciso.

Podemos reconhecer os já citados espaços quaisquer, visíveis na obra de

Antonioni. Existe um bairro e uma desconexão sensório-motora que gera essa

sensação de que algo está fora de lugar, de que o bairro se constrói e desconstrói

continuamente, com limites em permanente acomodação, sejam sociais, políticos ou

mesmo territoriais. A cena em que este aspecto fica evidente é a do argentino

perdido, que sai de uma festa para comprar cerveja e não consegue voltar. Ele está

desorientado. O bairro embaralha suas ruas. A noção de espaço se modifica

continuamente. Os seguranças o auxiliam depois de desconfiar dele.

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Os tempos mortos também visam os volumes dos edifícios, muros,

construções; estão ali num tempo finito, na perenidade da história que os colocou e

os pode retirar de acordo com os novos movimentos sociais e políticos. Temos aqui

pontos de contato de O som ao redor com o cinema de Antonioni.

O foco de cada personagem não está em si mesmo. É outro ponto que a

configuração no centro e ao redor deixam claro: João se divide entre ser da família e

estar com Sofia, estar na Europa ou ser corretor de imóveis em Recife. Francisco

oscila entre o mar, seu apartamento e o engenho; Bia se defronta com sua

insatisfação, toda sua atenção está ao redor. Ninguém está centrado, só conseguem

se concentrar no espaço em volta, nas possibilidades de prazer ou de terror. Não

procuram conhecer seu próprio som. Não ouvem o som da própria voz.

Como vimos, o som é personagem do filme. O latido do cão detona toda a

insatisfação de Bia. Nas suas cenas, o som é fundamental, delimitando espaço fora

de quadro, dando a dimensão do medo e do perigo urbano, mostrando a

insatisfação de se estar confinado aos seus próprios limites físicos (a casa) e

pessoais.

Num cena em que não estão nenhum dos personagens principais, o

manobrista arranha a lataria do carro da mulher que o contrariou, fazendo um ruído

que é otimizado para ferir os ouvidos do espectador. Existem outros momentos que

o som interfere além da imagem: quando o som do camelô de produtos piratas

impede a conversa entre João e os flanelinhas; quando o garoto pede ao vizinho a

bola que caiu além do muro.

Os celulares delimitam novos espaços virtuais. Sabemos através deles que

Francisco tenta falar com Clodoaldo, mas este não atende, mesmo dizendo que

nunca desliga. É uma expressão que se sobressai do jugo da imagem, o que fica

evidente porque já está no título do filme e cria linguagem própria.

Os ruídos, como nos filmes de Tati, assemelham-se aos diálogos, geram

conteúdos que expressam enunciados, em paralelo com o que é dito. A música é

incidental, percussiva, fazem comentários mínimos sobre a ação.

O crítico Enéas de Souza faz considerações importantes sobre o som neste

filme:

Trata-se de um filme onde o som e o espaço fazem e constroem o sentido do roteiro, da história e da intriga. E, certamente, o som se torna o móvel ficcional que faz avançar a narração. De fato, ele é o magma desse cinema.

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Arquiteta e marca a explosão definitiva da realidade ficcional e assinala a passagem de um período histórico a outro. {...} O ritmo e o sentido dessa história são movidos pela dinâmica do som. {...} Mas, ao mesmo tempo, o som dá aquele tom de estranhamento, de inquietação, de irritação, de uma realidade histórica cuja clareza está longe de ser de todos. (SOUZA, 2012, v.21, p.20)

É o som que se faz espaço, que reverbera por apartamentos e bairros. Vozes

que se perdem, ruídos que permanecem ao redor, presentes no nosso imaginário,

algo que amedronta o íntimo das pessoas e a ordem social de um país.

4.6 O espaço-tempo “ao lado”

A Casa Curutchet é o cenário principal de O homem ao lado e foi projetada

pelo arquiteto Le Corbusier, ícone da arquitetura modernista. Este movimento

rompeu com toda a arquitetura anterior e criou novas bases estéticas. Um breve

histórico da Casa Curutchet, por Silvia Leão:

A Casa Curutchet, situada em La Plata, Argentina, foi projetada por Le Corbusier em 1948-49 e representa um caso particular dentro da obra do arquiteto. Inserida em malha urbana perfeitamente constituída, sobre um bulevar e em frente a uma praça, é a única casa do arquiteto construída na América Latina. Além disso, implantada em lote estreito e profundo entre medianeiras, flanqueado por casas contíguas de diferentes épocas, a residência é um típico exemplo de arquitetura moderna perfeitamente ajustada a um contexto urbano figurativo. (LEÃO, 2007, p.2)

Para esta dissertação, é importante ressaltar o que esta obra de Le Corbusier

tem de modernidade e que pode auxiliar na nossa análise: a ideia de uma

arquitetura prática, funcional, com características que O homem ao lado vai usar

com propriedade:

Sem abandonar os principais pressupostos dos anos 20, tais como o uso dos cinco pontos e da rampa, que encaminha a promenade architecturale através do pátio, e acrescentando elementos de seu repertório pós-guerra – brise-soleil, teto pára-sol, uso do Modulor – Le Corbusier enfrenta o problema da inserção urbana com maestria, provando que modernidade arquitetônica não é incompatível com urbanismo figurativo pré-moderno. Antes pelo contrário. (LEÃO, 2007, p.2)

O uso cinematográfico desse espaço, como um invólucro isolado do exterior,

já é uma crítica ao modernismo, que aparece congelado, como uma caverna que

mantém obras de arte e de design, que abriga pessoas que amam a arte, mas têm

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imensas dificuldades de manter contato com a vida lá fora. Este contato, desde o

primeiro instante do filme, é inevitável: na primeira cena após os créditos, Leonardo

acorda com o ruído da obra da casa ao lado. Estamos num período após o

modernismo; Leonardo é um designer famoso e existem objetos e quadros artísticos

por toda a casa. Então este filme tem uma relação com um tempo cultural que

pontua a primeira metade do século XX, com o modernismo e a segunda metade e

início do século XXI com o pós-modernismo. Quando Victor abre sua janela, está

defasando esta casa modernista, maculando esta caverna fechada, descongelando

o que estava cristalizado. As consequências estão no final do filme.

Um dos episódios de Roma de Fellini mostra o encontro de uma sala em

ruínas dos tempos antigos, com belos afrescos pintados na parede. No contato com

o ar romano da atualidade, os afrescos começam a desaparecer. Parece que é isto

que Leonardo teme no contato com Victor: que sua casa se dissolva, seu design

perca o valor.

É uma casa cindida e ameaçada. Num cinema clássico, num gênero como o

western, este espaço tenderia à coesão para defendê-lo, com imagens sensório-

motoras se sucedendo para uma conclusão. Neste cinema moderno, imagens puras

mostram a completa desconexão e a impossibilidade de defesa do protagonista do

que vem do exterior. O fato de a casa ser vista de fora por turistas já indica a

invasão. O espaço já é fragmentado, ao contato com o vizinho se proporcionam

rachaduras indesejáveis.

Este é o espaço-tempo de O homem ao lado: o espaço-tempo cultural.

Existem outras leituras não menos relevantes: sociais, políticas, mas o cultural e

artístico estão no centro da narrativa. A janela é o estopim de um conflito em que os

dois opostos praticam métodos e filosofias de vida diferentes. Leonardo é designer,

fala alemão fluente ao telefone, ouve música concreta, dá entrevistas para TV; já

Victor prepara um estranho prato, javali a escabeche, faz esculturas monstruosas,

encena um teatrinho com presunto, bolacha e banana, tem uma Van com cores

berrantes, que ele mesmo se orgulha de ter decorado. A distância cultural entre o

sujeito e o antissujeito é enorme, sem possibilidade de um acordo que pudesse

apaziguar os dois e permitir uma convivência pacífica. Sem conflito, seriam

estranhos; com conflito, são inimigos.

Comparando o filme com a matriz semiótica do western, temos aí o conflito do

gênero: do agente do bem e da ordem contra os desordeiros e malfeitores, sejam

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brancos ou índios. O conflito é iminente, algumas vezes Victor demonstra

agressividade com Leonardo, mas nada acontece. Existe um constante adiamento

desse conflito, até que no final acontece um duelo às avessas, num espaço icônico

da obra modernista de Le Corbusier: a rampa. Leonardo demonstra torpeza e

sangue frio e aguarda seu inimigo morrer. Não há explosão de violência, não há um

duelo irreversível, mas uma decisão fria e calculista de encerrar a questão para

retornar à harmonia da família.

Do terror, o filme também se vale do medo do desconhecido, do estranho, do

inconveniente. Victor surge como uma ameaça àquele ambiente, à integridade física

e intelectual do protagonista, que se sente frágil, sem forças para se contrapor, usa

de uma argumentação fraca para tentar impor seu ponto de vista.

A figurativização que explora o que está além do quadro é fundamental em O

homem ao lado. Numa cena do filme, aparentemente sem grande relevância,

Leonardo conversa com a mulher na cozinha enquanto prepara um frango. Sua

cabeça está escondida atrás de um armário de cozinha e só o vemos do pescoço

até a cintura. A cabeça de Leonardo só entra em quadro quando vai beijar a mulher.

Isto já sinaliza que o espaço fora de campo traz algumas significações. Um dos

sentidos é o deboche: Leonardo não teria ou não estaria usando sua cabeça, numa

forma sutil de dizer algo que de outra maneira seria agressivo ao personagem. Um

outro sentido possível é que a família está carecendo de comando, de liderança.

A casa de Leonardo conhecemos bem em vários ângulos e movimentos. O

que não é mostrado ao espectador é o apartamento de Victor, nunca nos

aproximamos. É da janela, a única vista do apartamento, como já descrito acima,

que Leonardo e os moradores da casa assistem desde uma cena de sexo até uma

apresentação de marionetes. Mantemos a mesma distância de Leonardo, incluindo a

cena em que ele vai até lá xingando o tio de Victor, mas o espectador fica na mesma

posição, observando da janela da Casa Curutchet. Leonardo é o predador nesta

cena: invade, ofende, mostra agressividade, o que não tem coragem de fazer na

presença de Victor.

Esse mundo que está fora de nossa visão é escuro (Victor só pede um rayito

de sol). Leão, na sua análise sobre a Casa Curutchet, conta que um dos fatores que

perturbou o morador e fez com que ele deixasse a casa anos depois foi o excesso

de luz e a invasão de privacidade, já que o proprietário não quis usar cortinas. No

filme, paredes brancas contrastam com este mundo que está atrás do plástico preto

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que encobre a janela do vizinho. Aqui temos uma oposição figurativa: o mundo de

Leonardo (claro) e o mundo de Victor (escuro): a casa que imaginamos além da

janela vive nas sombras.

O cenário principal é uma casa, propriedade privada, que também é uma obra

de arte. O que está ao lado é desconhecido, ameaçador, não tem sol, não tem

cultura, não passou pelo modernismo de Le Corbusier. Se a casa é uma fortaleza e

Leonardo preza tanto a sua privacidade, seu oponente é intruso, invade os limites e

age para ter intimidade, tentando uma amizade. O que está fora de campo se orienta

para um espaço de não saber, com outra visão de civilização, sem noções de

design, onde uma janela é aberta sem nenhum cuidado com o vizinho, agredindo o

centro nervoso da sua vida: a estética.

O que está fora de campo também pode estar trazendo outra dimensão de

tempo. Já foi dito que um dos ladrões que vai atirar em Victor usa a camiseta do

Messi da seleção argentina de futebol, indicando uma realidade presente da

Argentina atual que invade a modernidade datada da obra de Le Corbusier.

Quanto à legibilidade, o filme foca em Leonardo como um personagem que se

coloca acima de todos, é arrogante, seus discursos são excessivos. As imagens

deixam que ele fale, que se expresse em demasia, dizendo muito não comunica

nada. Como personagem misterioso, só conhecemos Victor através da relação com

Leonardo, não se sabe o quanto é agressivo ou afetivo e até onde vai a sua

civilidade.

Victor aparentemente encerra a discussão com o vizinho várias vezes,

concordando em fechar a janela. Isto auxilia nesta legibilidade, pois é um filme que

começa e termina continuamente.

O som tem relevância, pois é a partir dele que Leonardo e o espectador

conhecem Victor: na batida da marreta com a parede. É o mesmo ruído de obra que

interfere na música instrumental e se torna mais um instrumento, o que faz o amigo

de Leonardo delirar achando que o ruído vem da música, numa cena que tem efeito

cômico, dado o ridículo da situação. São os clichês gerando novos significados.

Não é nada engraçada a personagem da filha do casal. É no som do seu Ipod

que Lola se isola do mundo, das palavras, do pai incompreensível. Ela vive em outro

mundo, rejeitando o dos pais. É uma menina surda, voltada para seu próprio interior.

Os diálogos são apenas um canal para que os personagens exalem suas

mazelas. Leonardo não se faz compreender por nenhum dos seus interlocutores.

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Victor amedronta, mas evita o conflito explícito, põe seus argumentos verbais e

concorda sempre com Leonardo. Ele tem outras formas de persuasão. O som se

impõe como ruído, acima de tudo quando a marreta é o solo principal. Não seria

surpreendente se o filme se chamasse “O som ao lado”.

Se o foco da atenção do filme já direciona nossa atenção desde o título, o

protagonista está descentrado, existe um vetor que o coloca fora de si mesmo.

Então vemos esta personalidade sem centro, sem cabeça, voltado para seu interior

e perturbado pelo que está ao lado. Edgar Morin dá uma definição deste mundo e

deste homem partido, dividido, fora de si mesmo:

Os progressos concomitantes da cosmologia, das ciências da Terra, da ecologia, da biologia, da pré-história, nos anos 60-70, modificaram as idéias sobre o Universo, a Terra, a Vida e sobre o próprio Homem. Mas estas contribuições permanecem ainda desunidas. O humano continua esquartejado, partido como pedaços de um quebra-cabeça ao qual falta uma peça. Aqui se apresenta um problema epistemológico: é impossível conceber a unidade complexa do ser humano pelo pensamento disjuntivo, que concebe nossa humanidade de maneira insular, fora do cosmos que a rodeia, da matéria física e do espírito do qual somos constituídos, bem como pelo pensamento redutor, que restringe a unidade humana a um substrato puramente bio-anatômico. As ciências humanas são elas próprias fragmentadas e compartimentadas. Assim, a complexidade humana torna-se invisível e o homem desvanece “como um rastro na areia”. Além disso, o novo saber, por não ter sido religado, não é assimilado nem integrado. Paradoxalmente assiste-se ao agravamento da ignorância do todo, enquanto avança o conhecimento das partes. (MORIN, 2000, p.47-48)

Deste estudo sobre o espaço-tempo nos filmes, partimos para a compreensão

de como o enunciador desenvolve seu ponto de vista, com que recursos e qual a

intenção quando atinge o enunciatário, assunto do próximo capítulo.

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5 ENUNCIAÇÃO NO CINEMA: O PONTO DE VISTA

Desvendando o discurso dos dois filmes, vamos conhecer o que os

enunciadores propõem comunicar aos enunciatários: seus valores e sua visão de

mundo.

O sujeito da enunciação faz uma série de opções para projetar o discurso, tendo em vista os efeitos de sentido que deseja produzir. Estudar as projeções da enunciação é, por conseguinte, verificar quais são os procedimentos utilizados para constituir o discurso e quais os efeitos de sentido fabricados pelos mecanismos escolhidos. (BARROS, 2003, p.54)

A reflexão sobre o ponto de vista mobilizou teóricos sobre os modos de

enunciação no cinema. Arlindo Machado reflete sobre um dos aspectos: a

ubiquidade. É um conceito que permeia o cinema clássico narrativo. As imagens são

vistas por uma entidade superior, para quem nada escapa, tudo pode ser visto e

mostrado.

Machado comenta que a pintura do Quattrocento estabeleceu uma posição de

ponto de vista na convergência do ponto de fuga.

O que caracteriza a pintura do Quatroccento, antes de tudo, é a convergência para um ponto de fuga único de todas as linhas que representam os planos perpendiculares à tela. Este ponto, metáfora ótica do infinito, situa-se na ponta de uma reta cujo oposto diametral é um outro ponto, localizado fora de quadro, onde está o olho doador da cena, numa palavra: o ponto de vista do sujeito da figuração. (MACHADO, 2007, p.22)

Segundo Machado, este ponto de vista gera a subjetividade. O que é visto já

passou por um olhar atento que escolheu a posição em relação ao objeto ou objetos

a serem retratados. O cinema clássico vai organizar o olhar neste pressuposto, com

o instrumental que esta arte dispõe para se expressar: montagem, movimentos de

câmera e um termo emprestado do teatro, a mise-en-scène. “Do espectador pode-se

dizer que, diante do filme clássico, ele se identifica primordialmente com o olhar

desse sujeito invisível e ‘transcendente’ que centraliza o espetáculo” (MACHADO,

2007, p.29). Este olhar transcendente que a tudo vê é o que caracteriza a

ubiquidade. Ele se manifesta no cinema clássico, criando narrativas críveis que

potencializam a ilusão de realidade.

Um dos instrumentos que intervém nesta ilusão é a utilização do plano e

contraplano: vemos um diálogo em que o personagem 1 é visto de costas, olhando

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para o personagem 2. No plano seguinte, este movimento é invertido. A convenção

já institucionalizou que, mesmo em imagens tão fragmentadas, reconhecemos que

os dois estão frente a frente.

A estrutura básica do campo/contracampo permite tornar perceptível a cadeia de ações e reações que move os agentes da intriga, constituindo-os simultaneamente em sujeitos e objetos dos olhares uns dos outros. {...} [Essa estrutura] se apoia agora no confronto das informações que cada personagem acumula sobre as restantes. Daí esta perspectiva cambiante, esse pluralismo que constitui a complexidade e o fascínio do filme clássico: é o efeito de uma modulação de olhares que a instância narradora opera pela mediação do seu olhar como num jogo de espelhos. (MACHADO, 2007, p.58)

Conhecemos os mestres do cinema clássico: John Ford, Frank Capra,

Howard Hawks, Willian Wyler, entre outros. Machado assinala que esta tendência foi

revertida por realizadores como Ozu, Bresson e Straub, trazendo outros enfoques à

posição mediadora da câmera.

Machado evolui sua exposição para outra modalidade de enunciação: quando

a câmera e o ponto de vista dos personagens coincidem. No exemplo de Lady in the

lake, sob a direção de Robert Montgomery, existe o desconforto em assistir a um

filme em que só vemos o que o personagem vê, este só aparecendo quando a

câmera enquadra um espelho, fazendo deste filme uma rara experiência narrativa.

Machado identifica que o espectador aceita muito mais o ponto de vista em

que o personagem que vê pelo olhar da câmera também é visto no quadro,

apontando uma outra modalidade de enunciação.

Neste tipo de construção, o olhar da personagem é assimilado apenas parcialmente pela ubiquidade da câmera, conservando, entretanto, boa parte da integridade. Os dois polos não se identificam totalmente, o olho da câmera não é da personagem, a trilha sonora não é o seu monólogo interior em voz over, mas eles se embaralham, se contaminam, caminhando em sintonia durante a maior parte do tempo. O sujeito que vê os fatos da diegese não é o personagem, mas o olhar que ele deposita na cena não vai além da experiência do protagonista. (MACHADO, 2007, p.44)

Um teórico que serve de referência a Machado é Nick Browne. Ele faz a

análise de uma cena de No tempo das diligências de John Ford. Neste comentário,

Browne desvenda sua decupagem para concluir que o espectador é parte integrante

do processo e não apenas um receptor em algum ponto da sala de cinema.

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Todas as estruturas de apresentação do filme são direcionadas para a construção, pelo narrador, de um comentário sobre a história, e para o posicionamento do espectador em um determinado ângulo. O filme procura não apenas dirigir a atenção, mas posicionar o olho do espectador no interior do espaço ficcional, tornando sua presença parte integrante e constitutiva da estrutura das visões. (BROWNE, 2004, p.247)

O espectador, sob o comando do enunciador, participa da ação, vê o que o

diretor deseja, não vê o que ele esconde, e faz com que ele assuma o olhar

enunciador de outros personagens. Conduzido por olhares mesmo de quem não

simpatiza, o espectador reconhece uma moral, deleita-se ou se incomoda com este

olhar e faz um juízo desta visão compartilhada.

Branigan, por sua vez, esmiúça o funcionamento do ponto de vista. Ele

passeia por diversos filmes para comprovar sua divisão do ponto de vista (PPV) em

seis elementos:

O PPV é um plano em que a câmera assume a posição de um sujeito de modo a mostrar o que ele está vendo. Mais precisamente, o PPV se compõe de seis elementos, em geral distribuídos em dois planos, quais sejam: Plano A: Ponto Olhar Elemento 1: Ponto – estabelecimento de um ponto no espaço. Elemento 2: Olhar – estabelecimento de um objeto (geralmente fora de campo) pelo olhar a partir do ponto. Entre planos A e B Elemento 3: Transição – continuidade temporal ou simultaneidade. Plano B: Ponto/objeto. Elemento 4: A partir do ponto – a câmera se posiciona no ponto, ou muito perto dele, no espaço definido pelo elemento 1. Elemento 5: Objeto – o objeto do elemento 2 é revelado. Planos A e B Elemento 6: personagem – o espaço/tempo dos elementos 1 a 5 são justificados, ou indicados, pela presença e percepção normal de um sujeito. (BRANIGAN, 2004, p.252)

Branigan combina estes 6 elementos para abarcar todas as características do

PPV. Como vimos no primeiro capítulo desta dissertação, os dois filmes estudados

sinalizam desde os títulos que um ponto indica circularidade ou lateralidade. É um

ponto de vista que transcende os protagonistas, ultrapassa o enunciador, como

aponta Browne, e alcança o espectador. Esta figura que assiste ao filme toma suas

decisões, sente o incômodo de assumir certos olhares (como em No tempo das

diligências), sabe que está neste ponto ou ao lado, ou ao redor. Pode ser o ponto de

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vista e objeto, olhar e olhado, protagonista ou antagonista. Sujeito à moral, pode ser

bom ou mau, herói ou vilão. A partir deste ponto, o espectador é inserido e é instado

a decisões, numa atitude pouco cômoda e distante do cinema clássico.

Nos dois filmes, mas principalmente em O homem ao lado, como já vimos em

outro capítulo, a janela é um símbolo forte que no cinema ganha contornos de

enunciação poderosos. A janela recebe o olhar privilegiado e atento do voyeur, é

objeto de disputa em O homem ao lado e tem muita relevância na discussão que

segue.

Branigan coloca o voyeurismo dentro da estrutura do PPV numa condição

diferente da subjetividade. Se o espectador é apenas um observador e está

acomodado nesta posição, existe o distanciamento.

Os elementos da estrutura do PPV requerem um instrumento de transição, uma vez que a câmera deve passar fisicamente do elemento 1 (ponto) para o elemento 4 (a partir do ponto). Esta passagem é o correspondente físico de uma mudança na percepção narrativa, de onisciente e voyeurista, por exemplo, para subjetiva e pessoal. (BRANIGAN, 2004, p.261)

Quando as motivações expressivas do enunciador emitem o sentimento de

cada personagem, agora repassado ao espectador, as imagens completam o ciclo

da enunciação: o enunciatário percebeu a gama de mensagens emitidas.

Em aula do seminário ministrado pela Prof.a Dr.a Anna Maria Balogh (Imagens

e travessias: suportes, experimentações, transmutações e transmidiações) tivemos

outra abordagem sobre o voyeur. Em Janela indiscreta de Alfred Hitchcock, o

fotógrafo imobilizado por um acidente observa os movimentos de seus vizinhos

através da janela.

Como espectadores, acompanhamos seu olhar com curiosidade, ávidos pela

intimidade alheia. Assumimos a posição do personagem, ao mesmo tempo que o

observamos. “A escopofilia, prazer de tomar o outro como objeto, submetendo-o a

um olhar fixo e curioso, é um dos componentes principais da sedução no cinema”

(Machado, 2007, p.48).

Balogh exemplifica este olhar que, mesmo se envergonhado, mantém-se em

objetos de desejo nestes três níveis: enunciador, personagem (actante) e

enunciatário (espectador). Se estes sentimentos, mesmo que difusos, atingem o

espectador, a intenção do cineasta chega ao seu objetivo. No cinema clássico, o

voyeurismo tem uma função.

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O voyeurismo procura pilhar o objeto do ver desprevenido, em sua intimidade, no momento mais autêntico de ser. O cinema, sobretudo o clássico, procura ocultar os artifícios da decupagem clássica e manter a unidade que conservará o espectador cativo da narrativa. Esta estratégia de enunciação pressupõe o fazer do enunciador, que consiga a identificação do enunciatário na trama fílmica. A relação deste modo de contar próprio do cinema americano com o erotismo está na categoria de desvendamento do universo íntimo, do privado, do qual o realizador nos faz sentir cúmplices numa relação complexa, não isenta de doses homeopáticas de sentimento de poder, de perversidade e outros quantos. (BALOGH, 2012, p.33)

O voyeurismo ganha outra conotação no cinema moderno em filmes

comentados por Balogh como Kika de Pedro Almodóvar, Não amarás de Kristof

Kielowski e O marido da cabelereira de Patrice Leconte. Estamos bem longe do

cinema americano. Vamos além do olhar em doses homeopáticas, da visão sedenta,

porém envergonhada: personagens se masturbam, passeiam sua nudez e fazem

sexo aos olhos do espectador, estupros são mostrados e não só sugeridos. Assim, o

mistério do prazer e do sexo pode ser revelado, o que não quer dizer que seja. Esta

promessa também é chave do voyeurismo.

A câmera (o realizador) é quem escolhe o que deve mostrar e o que deve ocultar, possuidor que é de competências e poderes negados ao pobre voyeur. É tão competente, aliás, que sequestra pela catarse o seu espectador e lhe faz crer que é partícipe de um mundo do qual é mero observador. [...] O mistério é essencial e faz parte intrínseca da sedução e, portanto, do próprio cinema. Na verdade, o que está em jogo nos três elementos que instigam nossas reflexões são categorias que permeiam tais como o público e o privado, o segredo e a revelação, o mostrar e o sugerir, ou o ocultar pura e simplesmente, a atração e a reflexão, entre outras. (BALOGH, 2012, p.40)

Os filmes estudados alternam o banal com o mistério, o medo com o prazer.

Neles, os enunciadores convidam os enunciatários a ver o que é permitido e o que

não é, escolhendo, dando saltos no tempo e no espaço, entrando e saindo das

mentes dos personagens. São decisões narrativas que alteram a condução da trama

e a identificação do enunciatário com ela, partindo de olhos hábeis, que veem além

das janelas, mas ficam atrás de algumas paredes e compreendem que nem tudo

pode ser sabido, nem tudo deve ser mostrado. O espectador participa deste jogo,

ora como voyeur, ora se envolvendo nas tramas, sendo solicitado a tomar posições

e revê-las constantemente.

Não estamos diante de dois filmes que apenas querem emocionar: existe

reflexão, discussão de temas candentes, visão de mundo apurada que não dispensa

a tentativa de compreensão dos problemas de seus países e do mundo.

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5.1 O discurso “ao redor”

Já vimos que O som ao redor se inscreve num tempo histórico de uma

determinada região. Dos elementos do cinema clássico, seguindo resquícios dos

gêneros cinematográficos, reconhecemos como o filme se comporta, comentando e

invertendo o que está consolidado no contrato dos gêneros com o espectador.

O que chama a atenção neste filme é o olhar multifacetado e esta tendência

de reproduzir uma ampla visão do ambiente que está sendo apresentado, mostrando

o que interessa, escolhendo o que pode dispersar a atenção do espectador, jogando

com a relação duração-legibilidade.

O olhar multifacetado acompanha os atos íntimos de Bia. Somos voyeurs

quando ela se masturba com a vibração da máquina de lavar e fuma maconha.

Conhecemos a intimidade dela, seu ódio pelo cachorro, seu destempero com a

empregada, a relação fria com o marido, a briga com a irmã. O núcleo dela é íntimo.

Ela fecha a janela e não estamos do lado de fora, nos mantemos nessa intimidade

excessiva, incômoda e assistimos sua masturbação com a máquina de lavar.

Um olhar semelhante se volta para João, personagem que é uma espécie de

porta de entrada para o núcleo de sua família. Conhecemos a intimidade dele, a

relação amorosa com Sofia, a nudez do casal, a relação com a empregada, também

com os outros moradores, com os primos e com o avô. No início do filme, eles

fogem da empregada que chegou com os filhos e se trancam no quarto, nus,

beijando-se e abraçando-se.

Em outra cena, não o vemos fazendo sexo com Sofia, eles são vistos de

cima, já saciados e têm uma conversa sobre a família e o rádio que supostamente

Dinho roubou. Percebemos uma atração genuína entre eles, o que é fascinante.

Porém, não existe despedida. O fim do romance já está anunciado, mas só sabemos

do desfecho na festa, no diálogo de João com Dinho. Não há drama, não há

desfecho nem lição de moral; um amor que apenas acaba como começou. Mais um

anticlímax de O som ao redor.

Já sabemos que, no início, o olhar do enunciador parece ter escolhido João

como protagonista. A visão se dispersa durante a narrativa e ele vai perdendo a

força gradativamente, cada vez aparecendo menos. No momento decisivo do filme,

o encontro final entre Clodoaldo e Francisco, ele não tem participação. O

protagonismo é invertido.

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Aqui este olhar multifacetado, que olha para muitos personagens no mesmo

espaço e que identificamos reunidos em três núcleos, escolhe o que e quem

privilegia com sua atenção. Tudo e nada pode acontecer, as ações podem ser vistas

de relance, ou num tempo maior, podem gerar expectativa e não cumprir o

prometido ou então, ao não prometer nada, deixar fluir a falta de ação, deixar o

tempo correr sem sobressaltos. É um contraste que angustia o espectador

acostumado ao cinema clássico, à espera de um crescendo que vai resultar num

confronto: herói e anti-herói na competição por um objeto dentro do campo

posicional.

O enunciador brinca com estas escolhas para gerar o efeito neste espectador

viciado em ação e conflito. Mas existe o cotidiano, o anticlímax, o tempo que se

expande no tédio e na espera. O enunciador manipula, abafa a ação e cria um

tempo diferenciado, além da história e do drama.

Neste filme vemos a crítica do clichê que mostra a manipulação do medo.

Quanto mais se promete ação e violência e não se entrega esta emoção catártica,

de purgação ou concretização desse medo, mais ele se torna clichê. Este

esvaziamento vai na contramão da catarse, trazendo sensações diferenciadas ao

espectador: o tédio, a monotonia, a perpetuação de um ciclo.

O som ao redor, mesmo admirando o cinema clássico, busca um olhar que

parece aleatório. Nem tudo é explicado, nem todas as cenas se conectam para

engendrar o conflito. A cena da reunião de condomínio está ali para desenhar o

perfil de João, um personagem que o enunciador vê com bons olhos, porém sua

participação na reunião é se omitir totalmente de uma maneira covarde. Nesta cena,

ele se anula como personagem e se descredencia como protagonista, ou como

herói, porque não age. Clodoaldo vai assumir essa posição. A cena do aniversário

no final é incômoda porque não dá indícios do desfecho que se aproxima,

aparentemente não existe perigo para a família de Francisco. Nada de diferente

acontece nesta cena que esvazia a ação e não dá indícios ao espectador de que o

desfecho se aproxima.

Um dos momentos de conflito no início do filme que gera expectativa de

violência é o encontro de João e Dinho. João vem perguntar se foi ele que roubou o

som do carro de sua namorada. Eles discutem, Dinho se sente ofendido. Na festa de

aniversário, no final, o assunto já está esquecido, eles conversam como primos

fraternos. O olhar do enunciador fica implícito, não quer julgar, quer existir, estar

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presente sem conduzir o espectador com a sedução do medo e da violência. Estes

sentimentos não são negados, eles existem, mas não movem as imagens, não são o

motor da ação.

Já vimos que um dos planos narrativos do filme é a vingança, que fica

escondida até sua revelação, no final. Em quase nenhum momento parece haver

pistas de que ele e seu grupo se voltariam contra Francisco. A cena em que

Clodoaldo provoca Dinho pelo telefone, desobedecendo o pedido de Francisco para

não mexer com Dinho, é o único momento em que existe esta intenção, mas que

não gera uma relação de causa e efeito que confirme este conflito. A vingança

aparece de uma forma não tradicional: não é o encadeamento das ações, mas sim

um dado inserido na história que poderia ser desviada para outra solução narrativa.

Estes aspectos envolvem o conceito de legibilidade: o que vemos é sempre

uma aparência do real, um olhar que não quer compreender, deseja apenas ver,

sonhar, delirar, como nas cenas do engenho, no cinema abandonado. Um olhar em

transe bem diverso daquele de Glauber Rocha: a convulsão que vem do transe é

sempre adiada, nunca resolvida. É uma crise permanente que invade o olhar e cria

sua própria dinâmica: uma febre que não passa, um gozo que não vem, um medo

que não se purga.

Deste olhar, não se retira a imaginação, a sexualidade e seus chavões: uma

das cenas em que isto fica evidente é quando Clodoaldo transa com a empregada

de Francisco: ela exige a cama perfeita, com lençóis brancos. É um olhar

distanciado, que oscila entre o frio e o irônico, mas pode manter uma carga de afeto

sobre os personagens. Não é um olhar que julga: é um olhar que pode parecer sem

interesse, está ali para captar o rotineiro, não importa tanto para que lado olha, para

onde apura os ouvidos.

A narrativa, estruturada entre o cinismo e o realismo, assume sua

aniquilação. Já é impossível se emocionar com o cinema. É a impossibilidade de

extravasar emoções, de participar da vingança, de assassinar o cão do vizinho, ou

de desejar uma dona de casa sem a beleza padronizada.

Em O som ao redor, o espectador é vislumbrado na enunciação. A mudança

de protagonista no meio do filme, o olhar multifacetado e os conflitos não localizados

criam esta participação.

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5.2 O discurso “ao lado”

Como vimos, O homem ao lado remete a um espaço-tempo que privilegia a

cultura. Encontramos aqui o modernismo estagnado, preso no espaço e no tempo,

na única casa projetada por Le Corbusier na América Latina. O pós-modernismo

está por toda casa, numa profusão de estilos e tendências: a tecnologia também

impõe um novo modo de vida.

O filme comenta um cinema clássico, assumindo traços de figurativização do

horror. Existe um embate entre dois personagens, com percursos narrativos

opostos. Como já vimos na análise da estrutura narrativa deste filme, para que um

conclua o percurso, o outro deve frustrar o seu.

Segundo Fontanille, num esquema de busca, o enunciador, ao escolher um

dos lados do conflito, está se posicionando e determinando o seu ponto de vista.

O conjunto todo está sob o controle da enunciação e, especialmente, da orientação discursiva: é ela que, na verdade, delibera sobre a coincidência ou não-coincidência entre a posição que motiva o conflito narrativo e o centro do campo posicional do discurso. Dessa deliberação depende o ponto de vista ao qual o esquema será submetido: o ponto de vista do vencedor, se essas duas posições coincidirem, ou o ponto de vista do perdedor, se elas não coincidirem. (FONTANILLE, 2011, p.120)

Do ponto de vista da enunciação, temos dois personagens que entram em

conflito. Leonardo é visto de muito perto pela enunciação, que coloca um nível de

crítica acentuado sobre o personagem. Estamos quase sempre com ele, muitas

vezes com o olhar grudado no seu rosto, assumimos seu ponto de vista e nos

distanciamos para poder observá-lo. Os enquadramentos do personagem evitam vê-

lo de frente. Existe sempre um ângulo, ou algo como a tela do notebook dividindo

seu rosto. Este olhar sempre oblíquo vê com crítica o personagem, acerca-se dele,

conhece seus defeitos, sua prepotência, seus subterfúgios. Não tem simpatia por

ele. Seu oponente é conhecido através da janela que está abrindo, sob o ponto de

vista a partir da janela da casa de Leonardo.

Ao mesmo tempo que é o intruso, Victor, que mete medo, que supostamente

é o personagem que vem trazer a instabilidade, é visto sempre de frente, encarando

seu vizinho, olho no olho, autuando o oponente e o espectador. Então, na

enunciação se criam tratamentos diferentes. Cada personagem ganha um olhar que

difere do outro. Um é crítico, podemos ver em detalhe a crise do personagem, outro

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nos olha de frente mas não é mostrado em toda sua totalidade, só conhecemos suas

atitudes quando reage ao contato com o vizinho.

Boa parte das cenas de Victor acontecem quando ele está na janela a ser

aberta, sob o olhar de Leonardo ou alguém de sua família. Ali somos apresentados a

ele e conhecemos as muitas habilidades do personagem. Já vimos que só

conhecemos o apartamento dele pela janela. Por isso, enunciatários são voyeurs a

quem a enunciação só permite que se veja o que se passa naquela casa através da

janela: uma relação que começa nos créditos quando a parede está aberta. Num

desses diálogos, o buraco está coberto por um plástico preto onde existe um corte

de cima a baixo, bem na metade do quadrado, por onde Victor coloca a cabeça. É a

aparência de uma vagina que Leonardo olha contrariado e ainda tem que pegar o

javali à escabeche que Victor envia e o obriga a provar. Na cena de sexo, já

descrita, entre Victor e a namorada, este aparentemente se deleita em mostrar uma

cena fetichista para seus vizinhos assexuados.

O espectador, incluído na enunciação, é um voyeur constrangido, como

Leonardo. Pode sentir atração ou repulsa pela situação. Não tem muito o que olhar

como o fotógrafo de Janela indiscreta, segue o enquadramento dentro do

enquadramento e vê aquela janela em seus vários modelos. Ali tem sexo, comida,

show. Uma televisão a quem, como faz a mulher de Leonardo, pode chamar de

“animal”.

O enunciador mostra aqui a metáfora da tela, que pode ter as mais

incômodas imagens, mas não conseguimos desgrudar os olhos dela. Também

podemos buscar um outro significado a esta janela: a própria tela do cinema. O filme

começa com a abertura da telas a marretadas e termina com sua supressão com o

fechamento da janela. É a moldura do espetáculo cinematográfico que se impõe

apresentando a nós e à família de Leonardo um programa com vasto repertório.

Para que este espetáculo exista, só precisamos daquilo que Victor mais deseja: um

rayito de sol, isto é, um facho de luz para que a magia do cinema aconteça.

O enunciador parece simpatizar mais com Victor, porém o ponto de vista está

com Leonardo, o que dá certo equilíbrio para a narrativa. O espectador não

consegue aprovar a atitude de Victor, mas não aprova nem cria identificação com

Leonardo. Os dois são patéticos, cada um à sua maneira. O jogo de forças fica

indefinido até final, quando da penúltima imagem do filme, na rampa, característica

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da obra de Le Corbusier, Victor, sentado, deixa pender a cabeça, morto,

assassinado pelo ladrão que estava na casa e por Leonardo, que omite socorro.

Esta contradição – simpatia por Victor, protagonismo de Leonardo – dá o tom

da complexidade da enunciação, entrando e saindo dos estereótipos entre o bem e

o mal. O espectador comentado por Branigan e Browne é impelido a participar pelo

olhar ambíguo, que não decide, não opina nem enfatiza os polos entre o bem e o

mal. É possível dar razão a Leonardo e pouco depois condená-lo, o mesmo a Victor.

Sua morte pode gerar até alívio pela inconveniência, mas certamente condena seu

opositor. O enunciador tira partido destes sentimentos contrários e repassa a

decisão para o enunciatário: ele que pode julgar se o que ocorreu é um crime e

merece julgamento e condenação. A enunciação para na morte e basta.

Ao mesmo tempo que olhamos aquela janela com interesse, pois ali está um

mundo inacessível e escuro, pervertido e instável, para nós e para família de

Leonardo, tememos essa escuridão, a incultura, a indiscrição, o contato com esse

ser pegajoso, intruso, grosseiro. Reconhecemos também que o mundo de Leonardo

está se dissolvendo. A violência é uma possibilidade cada vez mais real para o

desfecho do filme, tal como se desenvolve no cinema clássico: a impaciência e a

instabilidade emocional vai tomando conta de Leonardo, Victor vai demonstrando

sua capacidade de provocação e agressividade. O impacto entre dois mundos

diferentes parece ser inevitável.

Este olhar ambíguo que rejeita o protagonista, que mantém o antagonista um

tanto sedutor, um tanto viscoso, passa pela noção de cultura, do que representa

cada actante no campo posicional. Ao mesmo tempo que aponta a cultura

estabelecida como arrogante e autoritária e se deixa seduzir pela sensualidade e

criatividade dos novos atores da cena urbana, olha o confronto com preocupação,

sabe que vai gerar violência, morte, descaso. O personagem que defende sua

privacidade com argumentação frouxa merece mantê-la? O personagem que exige

un rayito de luz merece o que está pedindo, mesmo sendo inconveniente? É um

olhar impreciso, atento aos nós do conflito, ao ridículo, ao paradoxo.

E agora podemos reagir à citação de Fontanille sobre o discurso do esquema

de busca. Não existe coincidência entre o ponto de vista do vencedor e do

enunciador. Este último está focado em conteúdos mais abrangentes que a narrativa

e vê a apropriação pela janela como um pretexto para discutir assuntos maiores. A

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apropriação pela janela se desenvolve, mas perde a força, ganhando assim outras

consequências como a inversão do protagonismo.

O desfecho é pessimista. Não há saída, não há possibilidade de acordo. A

violência de Victor se confirma, em cena já descrita em capítulo anterior, mas vem

com outra conotação. Ele é a verdadeira vítima do filme, o personagem mais

autêntico, que consegue ser agressivo e terno, sempre atuante, brincalhão e

sedutor. Leonardo é o seu algoz, o verdadeiro vilão, o assassino em potencial. Um

duelo covarde, em que o vilão vence e conquista seus objetivos, mesmo que durante

todo o filme, a câmera privilegie olhar para ele, para suas ações, para suas reações,

antes de qualquer outra preferência. Este filme é pessimista. O mal vence e não vem

do vizinho, mas está no próprio personagem que não tem nada de nobre.

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6 A ATORIALIZAÇÃO: O OUTRO

No esquema narrativo de Algirdas Greimas, já vimos que existem dois

sujeitos – o sujeito e o antissujeito – se enfrentando pelo espaço no campo

posicional, cada um com seu percurso narrativo, cada um com seus recursos

(saber/fazer) para se estabelecer como vitorioso.

Estes percursos diferentes que se cruzam ocasionam uma confrontação. Sob

o aspecto moral, segundo Greimas, o herói é aquele que tem o perfil mais positivo.

Como o estudo da semiótica não julga, mas tem os instrumentos de investigação da

narrativa, duas possibilidades de confrontação são observadas:

A confrontação pode ser quer polêmica, quer transacional, manifestando-se ora por um combate, ora por uma troca, permitindo esta distinção reconhecer duas concepções de relações inter-humanas (luta de classes, por exemplo, oposta ao contrato social), e dividir as narrativas, segundo este critério, em duas grandes classes. (GREIMAS, 1979, p.16)

Já vimos nos dois filmes como estes confrontos acontecem e como, na

análise discursiva, aparece a questão política e social de cada filme, cada

enunciador trazendo seu ponto de vista sobre temas relevantes de cada país e das

sociedades modernas como um todo, sem estabelecer julgamentos morais sobre os

personagens.

Na questão da atorialização, foco principal deste trabalho, resta saber se nos

filmes estudados temos um novo conceito de o “outro” e como isto interfere nas

escolhas artísticas e estilísticas dos autores.

Este “outro”, que no cinema clássico pode ser chamado de anti-herói, é uma

figura facilmente identificável, dado que as polarizações são definidas à medida que

há movimento, transformação, continuidade do espaço-tempo. Neste fluir que

corresponde a uma Totalidade, todos os papéis são reconhecíveis.

Sob o ponto de vista da taxionomia de Deleuze, o esquema sensório-motor

expõe polos, exige conflitos para existir. O fluxo do movimento é como um vetor:

atrai e afasta, engloba ou expele a representação.

Este “outro” que no cinema moderno adquire novo status, na ascensão da

imagem pura que impede o movimento de preponderar, gerando a imagem do

sonho, da memória, da história, dos lençóis do passado, dos curto-circuitos entre o

passado e o futuro, dos fluxos livres de pensamento. O “outro”, neste cinema, se

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orienta pelas subjetividades, pelos olhares desencontrados, pela indecisão, pela

indefinição. Os polos são móveis e dependem dos muitos olhares subjetivos que a

narrativa pode conduzir.

Sob o ponto de vista da semiótica narrativa, as estruturas se delineiam por

oposições figurativas e se estratificam em polos. Aqui se investigam divisões

estabelecidas entre o bem e o mal, o certo e o errado, o dia e a noite e assim por

diante.

O enunciador, de posse dos elementos narrativos, decide de quem é o olhar e

quais informações podem ser passadas aos enunciatários. Este domínio expõe

vários níveis que oscilam entre espaços e tempos, que podem ser contraídos e

dilatados. O olhar percorre a tela, é preciso ver e não apenas acompanhar o

movimento. É impreciso decidir quem é o “outro”, se ele está em quadro, se o “outro”

pode ser encontrado, se o “outro” não está invisível, se o “outro” está fora de quadro.

Vimos também que os dois países configurados nos filmes – o Brasil e a

Argentina – se estruturaram a partir de uma definição de nação. O colonizador

português estabelece o domínio do território brasileiro sem o desejo de se fixar,

mercantilizando vidas, tentando domar a natureza sem organizar espaço nem o

tempo: a terra parecia ilimitada e o futuro não era previsto. O que vemos em O som

ao redor também pode ser explicado pela história e sociologia e o filme expõe o

passado de uma maneira indireta.

Em O homem ao lado a conotação histórica e social não é tão forte, mas ela

está ali, defrontando pontos de vista e, de alguma maneira, explicando diferenças,

questionando o que é ser argentino, jogando a questão da alteridade num conflito

que parece não ceder terreno para ela.

Já vimos que a atorialização dos dois filmes sofre uma inversão dos papéis, o

que acarreta uma transformação na dinâmica narrativa que propõe uma quebra de

expectativas e um novo jogo entre herói e anti-herói, sujeito e objeto, enunciador e

enunciatário. A partir deste ponto da dissertação, vamos procurar desvendar como

os filmes encaram o “outro” buscando o ponto de vista de pensadores conectados

com a situação mundial, que abordam os temas correlatos com o que estamos

estudando: a convivência entre contrários e estranhos, as diferenças sociais entre as

classes e países.

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Buscando o que estes pensadores expõem sobre o “outro”, vamos observar

como ele se comporta nos filmes estudados, somado à bagagem que esta

dissertação já desenvolveu. O tema da alteridade se impõe aqui como conceito.

6.1 A alteridade

A alteridade é assunto que permeia a discussão da pós-modernidade. Susana

Morais, baseada em Derrida e Levinás, questiona o significado de identidade,

expondo que ela é um processo construído e não um conceito posto e definido.

As teorias pós-modernas decretam não poder mais pensar-se o sujeito determinado por uma referência única e obrigatória, mas como alguém que constrói e elabora a sua identidade. Ora, dizer que a identidade não é essencial é, optando pela definição negativa, dizer que a identidade é relacional. Dizer que a subjectividade se constrói através de relações, que não é apriorística nem está pré-atribuída mas resultado da dinâmica que lhe é intrínseca, equivale a rejeitar uma concepção na qual não cabe a ligação profunda que, na verdade, mantém com uma alteridade que, simultaneamente, confirma e confronta o Eu. O sujeito essencial, cuja definição decorre de uma qualquer natureza, é substituído pelo sujeito que é resultado de práticas culturais e sociais, que é determinado (e perturbado) pelo encontro, pelo diálogo, pela interacção com vários Outros. (MORAIS, 2009, p.44)

Outro aspecto a ser levantado é que a representação é inerente à diferença.

Seus limites são uma operação mental que pode se transformar a cada novo olhar.

Além das definições de certo e errado, bem e mal e outras dicotomias, as fronteiras

estão difusas nas sociedades modernas.

O que, em última instância, é revelador de que não há nada de natural nas fronteiras que são desenhadas entre nós e outros. As fronteiras são sempre representações e, por isso, contingentes, instáveis; em termos absolutos, tudo é semelhante e diferente de uma outra coisa, o que significa que a semelhança ou a dissemelhança não são arbitrárias mas dependentes de contextos concretos. (MORAIS, 2009, p.71-72)

Também nos interessa salientar sobre a alteridade: o múltiplo e o heterogêneo são a tônica deste entendimento sobre as relações fluidas.

Afirmar que a identidade inclui opostos e forças contraditórias é ter presente o carácter múltiplo, fluído e mutante de uma subjectividade que contém em si própria a alteridade. Um Eu múltiplo e heterogêneo. Quer ao nível individual quer colectivo, as identidades lutam pela estabilidade precisamente porque têm inscrita em si a tendência contrária. (MORAIS, 2009, p.82)

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Este entendimento não exclui a diferença. Reconhecer o “outro” é um dado

cultural que compreende que é preciso novos processos e que este chegam para

transformar o “eu” e o meio em volta. “A evidência do Outro como aquele que vem

perturbar a minha ordem e desassossegar-me. O encontro com a alteridade é

sempre um confronto: abala, faz duvidar, desestabiliza” (MORAIS, 2009, p.85).

O desafio do “eu” é aceitar o “outro” como sujeito, é trocar de lugar com ele

ou assimilá-lo como ser influente, possuidor de potencialidades, no que ele tem de

comum e no que tem de estranho. O “outro” não é apenas um conceito, é um ser na

sua complexidade.

Enquanto a razão apenas entende a alteridade encerrando-a em conceitos, em Lévinas, o Outro é aceite enquanto diferente e não é submetido a grelhas apriorísticas de classificação. O Outro não pode ser objecto de conhecimento do cogito. Se a alteridade só pode existir enquanto instância ética, isso significa não lhe negar a diferença e a estranheza que a constituem através de conceitos e nomeações. (…) O Outro não é uma abstracção, mas alguém que não pode nomear-se sob pena de o entender como objecto e não enquanto sujeito que é parte integrante do mundo. (MORAIS, 2009, p.92-93)

A partir de um discurso paternalista, ou mesmo patriarcal, em que a dicotomia

seja aceitar ou rejeitar o “outro”, não se pratica a alteridade. Este é um conceito de

Levinás, que Morais se refere assim:

Nem mesmo quando se trata de atender ao apelo, à súplica que entende ser-lhe inerente: estou sempre aquém das necessidades do Outro, porque só poderia saber o que ele precisa se agisse pensando que conheço as suas necessidades como conheço as minhas – e isso seria reduzir o Outro ao Mesmo. (MORAIS, 2009, p.144)

Com esta compreensão de alteridade, podemos seguir adiante para conhecer

o que alguns pensadores entendem sobre a relação com o “outro” nos dias de hoje.

Os fluxos migratórios aproximam fisicamente grupos sociais que nada conhecem

uns dos outros. As conexões virtuais também catalisam encontros inusitados. Existe

um vizinho, um estranho, um intruso, atrás de paredes, janelas ou telas. Em O som

ao redor e O homem ao lado, um personagem pode ser o “outro” do enunciador, do

seu oponente, do enunciatário (o espectador). Podem ver e serem vistos como

heróis ou vilões, sádicos ou masoquistas, culpados ou vítimas, protagonistas ou

espectadores.

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6.2 O estranho

Zygmunt Bauman se debruça sobre as comunidades no mundo líquido. A

questão da segurança, de como as comunidades se veem e reagem ao “outro”,

ganha contornos específicos nos dois filmes.

O bairro seguro concebido com guardas armados controlando a entrada; o gatuno e suas variantes substituindo os primeiros bichos-papões modernos do mobile vulgus, e juntamente promovidos à posição de inimigos públicos número-um; uma equiparação das áreas públicas a enclaves “defensáveis” com acesso seletivo; a separação em lugar da negociação da vida em comum; a criminalização da diferença residual —essas são as principais dimensões da atual evolução da vida urbana. E é na moldura cognitiva dessa evolução que a nova concepção de “comunidade” se forma. Segundo essa noção, comunidade significa mesmice, e a “mesmice” significa a ausência do Outro, especialmente um outro que teima em ser diferente, e precisamente por isso capaz de causar surpresas desagradáveis e prejuízos. Na figura do estranho (não simplesmente o “pouco familiar”, mas o alien, o que está “fora de lugar”), o medo da incerteza, fundado na experiência da vida, encontra a largamente procurada, e bem-vinda corporificação. (BAUMAN, 2001, p.104-105)

Então, segundo o conceito de Bauman, o “outro” é quem está fora da

comunidade, não é aceito por ela porque aparece como um ser diferente que vai

quebrar a sua suposta harmonia.

Em O som ao redor, cada membro e cada grupo desta comunidade

heterogênea estão focados nos seus próprios interesses: ou de ascensão ou de

manutenção do seu status quo. João é o mais ambíguo em relação ao

reconhecimento do “outro”. Ele não vê sentido em estar na reunião de condomínio, é

como se perdesse seu tempo, como ele mesmo diz para Sofia: “Reunião bizarra”.

Mesmo que João reconheça que o porteiro erre pela displicência, ele aceita manter

seus direitos ao trabalho do funcionário. Mas João não fica para votar, prefere

encontrar sua amante, portanto, não reconhece esta comunidade. João parece criar

uma relação afetiva com os empregados, é tolerante. Ele inclui, exclui e se exclui. É

o único personagem que reconhece o “outro” mesmo dentro dos limites de sua

classe e por isso parece que ele é o herói, mas não é o suficiente. Ele tem uma

insatisfação, um tédio, uma falta de expectativas. Personagem contraditório, João é

tragado por um modo de agir que lhe é definidor: a omissão.

Num filme clássico como Casablanca, o personagem principal parece desistir

de ser herói e auxiliar o marido de sua amada, líder da resistência. Mas para ele,

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existe redenção e decide por salvar a vida do herói da resistência francesa, mesmo

que custe a perda de seu grande amor. No cinema moderno, às voltas com o

cotidiano e a crise do homem moderno, não há redenção para João, que sucumbe

às facilitações da sua posição social. Na narração de Kleber Mendonça Fº sobre o

filme, ele diz que “João seria um abolicionista” (MENDONÇA Fº, 2013, 109:00),

assim como o personagem de Humphrey Bogart era um resistente ao nazismo, com

toda sua ambiguidade.

Numa cena, Bia revela que sua relação com “outro” mantém a origem social

dominante. Sua empregada queima um aparelho eletrônico e Bia se enfurece,

xingando a mulher: “É como se lá no fundo você vê que tem a sinhazinha de

engenho” (MENDONÇA Fº, 2013, 109:00). Ou então “A Bia seria uma escrava

alforriada” (MENDONÇA Fº, 2013, 109:00). Bia é autocentrada, está em conflito

consigo mesma e por isso fica mais difícil ter alguma crítica sobre si: com o marido

existe só frieza, com os filhos eles que acabam por cuidar dela e acalmá-la, e com a

empregada existe desprezo e autoritarismo.

Bia tem uma identidade imprecisa, ela vive na fuga, no medo, na dependência

e não consegue visualizar o “outro”. Ela atua de maneiras diferentes: fugindo para

dentro de si mesma, preservando a segurança ao pagar a turma de Clodoaldo ou

proporcionando aos filhos o estudo de línguas como inglês e mandarim, para que

eles tenham outras oportunidades além do bairro, da cidade, do país. Ela sente que

é acossada pelo “outro” que está ao “redor” e pode lhe assaltar, atrapalhar, coibir.

Ela cria uma série de defesas internas e externas para se proteger.

Francisco percebe que os tempos estão mudando. Durante o filme, ele

reconhece o “outro”. Ele mantém a autoridade mesmo sabendo que ela está em

crise. “Francisco seria senhor do engenho” (MENDONÇA Fº, 2013, 109:00). É do

tempo que os conflitos se resolviam no cano de uma arma de fogo, como fica

provado na cena final, pois ficamos sabendo que ele assassinou no passado o pai e

o tio de Clodoaldo. Mas no diálogo em que recebe Clodoaldo em casa, faz

perguntas, observa principalmente Fernando que não tem olho, brinca, sempre com

um ar de desconfiança. Parece se perguntar “Quem são vocês”. Mas falha no

julgamento, então não reconhece quem vem visitá-lo e a quem vai pedir proteção,

sinal de poder perdido.

Dinho só se reconhece como classe social. Quando responde as provocações

de Clodoaldo, ele diz: “Esta rua daqui é da minha família, gente grande, tem

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dinheiro, aqui não é favela não, este orelhão é de favela, de gente pobre”. Dinho

rouba som de carros por prazer, lesando o próximo e tem a proteção do avô: quem

não é da família não se comunica com ele. É um vilão que que usa sua arrogância

como arma, mas lhe falta esperteza.

Clodoaldo é herói e vilão ao mesmo tempo. Não usa a ética. À medida que

vai ganhando a confiança das pessoas do bairro, vai se impondo como anti-herói.

Logo criamos uma identificação com ele, é um malandro simpático, sedutor, tem

liderança sobre seus comandados e parece estar sujeito a deslizes éticos. No final,

com a vingança, revela-se um assassino que conclui um elaborado plano de

vingança.

O que sabemos de O som ao redor é que a comunidade funciona como

manutenção das diferenças, de estruturas consolidadas de poder, como criadora de

guetos. Mas o filme deixa claro que estas estruturas estão frágeis e um dos sinais

disso é a atorialização: a dificuldade de definir protagonistas, antagonistas e quem

vai fazer a diferença na estrutura narrativa do filme. Também os personagens não se

veem no “outro”, triangulam-se as posições num universo multifacetado em que

todos usam seus recursos cognitivos para atingir seus objetivos. São batalhas

frequentemente invisíveis de tomada de posição, de duelos sociais, de estratégias

para existir dentro das possibilidades de cada um.

Em O homem ao lado, não existe comunidade e a família também não anda

muito bem. As bases aparentemente sólidas da família estão ruindo e o contato com

Victor é apenas um catalisador: ele mete medo a Leonardo como um animal

perigoso e é desprezado como tal. Pela fraqueza em enfrentar Victor, Leonardo

passa a ser desprezado pela esposa, ele também é “outro” para ela. Sua filha não

tem respeito por ele, os alunos ou têm medo ou o desprezam, como uma aluna a

quem aplica uma cantada.

Giddens aponta que nas sociedades pré-modernas, o estranho foi visto como

alguém suspeito, diferente das características que ganha na sociedade moderna.

Como Simmel salientou, o significado do termo "estranho" muda com o advento da modernidade. Nas culturas pré-modernas, em que a comunidade local sempre permanece como base da organização social mais ampla, o "estranho" se refere a uma "pessoa toda" — alguém que vem de fora e que é potencialmente suspeito. Podem existir muitos motivos pelos quais uma pessoa que se muda de um outro lugar para uma pequena comunidade não consegue ganhar a confiança de seus membros, talvez mesmo depois de estar morando há muitos anos naquela comunidade. Nas sociedades modernas, em contraste, não interagimos comumente com

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estranhos como "pessoas todas" da mesma forma. Em muitos cenários urbanos, particularmente, interagimos mais ou menos de forma contínua com outros que ou não conhecemos bem ou nunca encontramos antes — mas esta interação assume a forma de contatos relativamente efêmeros. (GIDDENS, 1991, p.74)

Esse estranho, nas sociedades em que os dois filmes retratam, foi antes um

inimigo em potencial. Com ele, criavam-se rituais de “confiança, tato e poder”

(Giddens, 1991, p.78). Como inimigo, ele está sendo desconstruído. Em sociedades

pré-modernas, os estranhos de O homem ao lado e O som ao redor, seriam aceitos

ou rejeitados, seriam assimilados ou nomeados inimigos. No início do século XXI,

eles são suportados até determinado limite. Com estes estranhos, estabelecem-se

regras, que é o que Giddens chama de “contato social implícito”.

Encontros com estranhos ou conhecidos — pessoas que um indivíduo encontrou antes, mas não conhece bem — equilibra confiança, tato e poder. Tato e rituais de polidez são dispositivos protetores mútuos, que estranhos ou conhecidos usam intencionalmente (no mais das vezes por uma consciência prática) como um tipo de contato social implícito. (GIDDENS, 1991, p.76)

Em O som ao redor, os núcleos mal se tocam. Bia é a mais estranha na sua

interioridade. Clodoaldo não é daquela terra, mas tem os recursos para se tornar

assimilável e ganhar respeito. Logo sabemos que ele não faz jus a esta confiança:

tem moral dúbia, não é ético, tem outras intenções. Ele só é aceito porque existe um

vácuo de poder. Francisco não manda mais e a polícia se revela inoperante logo no

início do filme, não punindo o homem que vende CDs piratas nem procurando saber

quem é o culpado pelo roubo do som do carro.

O menino que sobe na árvore, apanha dos seguranças e foge é o estranho, o

invasor que está na fronteira e ameaça como uma sombra, um fantasma. Para ele,

não há contato social, é o excluído. É o “outro” que deve ficar além dos limites do

território, mas está pelas árvores, pelos sonhos, amedrontando a comunidade como

um todo.

Em O homem ao lado, o estranho vai se tornando inimigo ao longo do filme.

Se no início Victor é apenas um vizinho descumprindo um contrato de boa

vizinhança (abrindo a janela), no decorrer ele avança para se intrometer, persuadir,

até conseguir entrar na festa. Perto do final do filme, mesmo debochando do vizinho,

Victor se considera um aliado, Leonardo o considera um inimigo. Não há

possibilidade de acordo, de aproximação: Leonardo o rejeita. É um estranho com

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nome e documentos, com exigências e vontades, utilizando métodos pouco

ortodoxos. O que o filme faz é desiquilibrar o peso entre protagonista e antagonista.

Qualquer um pode ser o “outro”, depende do ponto de vista, depende dos métodos

empregados. O enunciador, já vimos, tem olhar diferente para cada um.

A identidade de Leonardo (um homem culto) se revela cada vez mais frágil:

ele é machista com aluna e autoritário e arrogante com a equipe de TV, com o grupo

de alunos, quando conta ao amigo a ida ao bar com Victor. Ele é incapaz de ver uma

diferença, de se colocar no lugar do “outro”. Victor é o oposto: começa como um

cara excêntrico e agressivo e vai se humanizando até o desfecho, quando tenta

enfrentar os ladrões. Ele é o que pensa no “outro” mesmo defendendo seus próprios

interesses, que o filme resume num enunciado: ele quer apenas “un rayito de sol”.

Nos dois filmes, quando há interlocução entre os personagens, ela não é

suficiente para gerar algo novo, uma amizade, uma nova possibilidade de relação. O

desencontro é a regra. Não há mistura, interação, síntese. Se existe vontade de

Victor de interagir, isto é feito de maneira intensa, autoritária, sem procurar entender

as motivações do oponente. Alguém deve vencer, mesmo que além do tempo e da

emoção. Como nos programas “reality show”: ou o “outro” está no meu grupo ou

devo eliminá-lo.

6.3 O inimigo

É na transformação do estranho em inimigo que a violência aparece.

Leonardo, ao menos inconscientemente, espera o melhor momento de agir. O

inimigo precisa ser construído, numa diferenciação permanente, que aparece em

forma de narração: pelas palavras e imagens, por voz ou por texto. A narrativa

precisa de diferenças para existir e o filme trabalha esta ideia: queremos mesmo ter

um inimigo?

Dejectos, monstros e loucos representam, cada um de forma particular, aquilo que é socialmente reprimível, uma espécie de inconsciente freudiano transformado em repositório de tudo – em boa parte a animalidade – o que culturalmente tem que ser domesticado. A concepção de monstro, em particular, é largamente devedora de uma perspectiva evolucionista da humanidade, que considera o processo civilizacional como o afastamento da barbárie e de uma condição humana primogénita. A monstruosidade representa o que a cultura, a razão, a ciência e a ideologia da higiene condenam; por isso o monstro é o Outro, mas também o Eu naquilo que é reprimido sócio-culturalmente. (MORAIS, 2009, p.69-70)

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O homem ao lado embaralha esta noção de monstro e confunde a

atorialização clássica, que escolhe heróis e vilões com clareza. Esta troca de papéis

se justificaria se o que começou o filme como vilão conseguisse força cognitiva para

vencer. Não é o que acontece. Victor é derrotado quando seu personagem ganha

valores morais, quer sinceramente defender a casa do seu vizinho durante o assalto.

Francisco é um avô bondoso e só no final de O som ao redor ele se revela um

assassino, um homem violento que matou pelo menos dois homens. Clodoaldo é um

segurança intruso que traz tensão logo no primeiro diálogo com João e Anco, mas

não tem comportamento de vilão até a cena final. Aqui também invertemos as

expectativas quanto à atorialização.

Umberto Eco, na conferência intitulada Construir o inimigo, expõe a

necessidade humana de construir um inimigo visando determinar a sua própria

identidade. Da perseguição aos judeus na Idade Média e Moderna e sarracenos até

as migrações de asiáticos e africanos para a Europa dos dias de hoje, o teórico

sustenta que a ideia de um inimigo parte não do que ele é, mas de uma ideia

construída.

Parece que não se pode passar sem o inimigo. A figura do inimigo não pode ser abolida dos processos civilizacionais. A necessidade é congênita mesmo do homem brando e amigo da paz. Simplesmente, nesses casos, a imagem do inimigo é transferida de um objecto humano para uma força natural ou social, que de algum modo nos ameaça, e que tem de ser vencida, seja ela a exploração capitalista, a poluição ambiental, a fome do terceiro Mundo. (ECO, 2011, p.31)

Eco se pergunta como a ética pode aceitar as diferenças, mesmo construindo

este inimigo. Podemos respeitá-lo ou quanto mais execrá-lo mais fácil será vencê-

lo?

A ética, portanto, é impotente face à necessidade ancestral de ter inimigos? Direi que a instância ética se sobrepõe, não quando se finge que não existem inimigos, mas quando procuramos compreendê-los, colocar-nos no seu lugar. {...} Não existe em Ésquilo um rancor contra os persas, cuja tragédia ele vive entre eles e do ponto de vista deles. Cesar trata os gauleses com muito respeito, no máximo, apresenta-os um pouco choramingas de todas as vezes que se rendem {...}. Procurar perceber outra coisa significa destruir o clichê, sem lhes negar ou lhe apagar a alteridade. (ECO, 2011, p.31)

Retomando o que já foi dito aqui, encontramos o movimento ao contrário: os

dois filmes estudados desconstroem o inimigo. A começar, os próprios protagonistas

se dissolvem ou se desconstroem.

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Em O som ao redor, o protagonista muda ao longo do filme. O inimigo, que

existe, é impreciso, está ao redor, nas ruas, prestes a invadir a segurança dos lares:

pode ser um grupo que se autointitula “seguranças”, pode ser um menino numa

árvore em atitude pouco usual, pode ser uma mulher se masturbando numa

máquina de lavar. O “outro” está invisível ou aparece de relance, mas pode em dado

momento vir cobrar da sociedade o que tem direito. O “outro” está ao redor e só se

pode ouvi-lo e temer até a morte a possibilidade de encontrá-lo. Conhecê-lo seria

destruir o clichê do assaltante, do pobre, do perigo. Desvendar este som ao redor

iria ocasionar uma diferença fundamental no modo como a própria sociedade se

enxerga. Isto tem muito a ver com alteridade, com refazer nossas narrativas,

reencontrar o inimigo: o escravo fujão, o combatente de Canudos, o comunista, o

sobrevivente da Candelária e assim por diante.

Já vimos que não existe um julgamento: o mal está por toda a parte, o inimigo

habita sonhos, copas de árvores, vídeos no celular. Está difuso, assim como a

identidade está difusa.

Em O homem ao lado, temos dois polos que se enfrentam: no lado de

Leonardo, que é seguido pelo enunciador, este o vê com pouca simpatia; no lado de

Victor, mesmo assumindo as características de vilão, pela intrusão, adquire outros

contornos que relativizam suas ações e o colocam como homem que quer lutar por

seus interesses dentro dos limites da civilidade, o que não acontece com seu

oponente.

Se o herói é difuso nos dois filmes, o vilão também está corrompido. O

protagonista se torna “outro”. O anti-herói se torna ou promete se tornar um novo

protagonista.

Avaliando os três teóricos citados neste capítulo, Eco diz que a construção do

inimigo faz parte da natureza da nossa civilização, Giddens define o estranho na

modernidade e Bauman define uma concepção de comunidade onde este estranho

traz uma nova informação que é digerida por esta comunidade como perigo e

incerteza.

6.4 A representação de duas nações

Vimos que os dois filmes representam seus países e suas cinematografias

numa linha evolutiva que reconhece as transformações da sociedade. Constatamos

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que o comportamento dos personagens de O som ao redor corresponde ao que

Sergio Buarque de Holanda compreende como gênese da nação brasileira, que não

tem o sentido do trabalho e da disciplina, da construção baseada no conhecimento e

na produção.

O indivíduo aí é o centro, não se divide, defende o que é seu, é herói de seu

próprio território. Em cada personagem de O som ao redor, podemos perceber

características que estudos históricos e antropológicos demonstrados no capítulo 2

apontam como a essência do Brasil: uma sociedade que se baseia na facilidade, sob

o comando de uma classe dominante que se bene

No nordeste brasileiro, os latifundiários da cana se beneficiaram da

escravidão. Depois, com o fim deste sistema, continuou a impor péssimas condições

de trabalho. O som ao redor é um reflexo deste nordeste que mantém até hoje este

poder, que é social, político, comportamental, mas que está em crise. Francisco é o

representante desta classe. O pai de Clodoaldo, assassinado por Francisco em

circunstâncias não esclarecidas no filme é vítima do conflito de terra.

Se podemos definir o “outro” na dicotomia da luta de classes, reconhecemos

e escolhemos o herói e o vilão. Se esta oposição que vem do conflito de classes

está em O som ao redor, a multiplicidade de atores sociais torna a narrativa mais

complexa: a dona de casa insatisfeita, o neto do latifundiário que viveu fora, os

capatazes de outrora com nova roupagem. O “outro” é aquele que hoje pode ser

visto, é urbano, pode exigir educação, segurança, moradia e também vingança.

Antes era ou um ser invisível, ou um ser inerte na sua condição social.

É uma nova transição brasileira, deixando para trás a dicotomia, colocando o

clientelismo em perigo, sem conseguir acabar com ele, sem enfrentá-lo de frente.

Não se espera uniformidade nem consenso. O “outro” é reconhecível, mesmo no

multifacetado jogo de forças. Todos buscam o protagonismo, podem dividi-lo, o que

leva à sua destruição (o que acontece com Francisco), pois existe uma dívida de

sangue a ser paga. Não há vilões. Não há heróis.

Quanto a O Homem ao lado, se o tema da “argentinidade” não parece estar

no centro da narrativa, ele aparece pelas bordas, no modo de vida de Leonardo, que

estabelece regras de civilidade com raiz positivista. Isto tem a ver com o propósito

desta dissertação: descobrir o “outro”, reconhecê-lo dentro da narrativa. Dentro

deste conceito que inclui quem está apto a fazer parte da nação argentina, vemos

um personagem que exige seu lugar ao sol. Ele está ao lado e persegue o que

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acredita ter direito. Um personagem em busca de uma inserção no centro da nação,

com direito a comer, beber, amar, expressar-se. Ser “argentino” seria corresponder

às modalidades de um cidadão com determinadas características a um desejo de

ordem sem desvios, a uma integração social sem conflitos.

A “argentinidade” é um ideal de paz social de ter o “outro” subjugado, ao lado,

agindo de acordo com as regras da modernidade. No início do século XXI, com as

transformações técnicas que aparecem em O homem ao lado, essas regras se

reconfiguram em novas ferramentas como a TV, a Internet, a telefonia móvel, as

câmeras digitais, o quarto do pânico. Este ideal positivista que regula a vida íntima e

pública se preserva. A falsa inclusão mantém atores sociais a distância regulamentar

e o design, atividade principal de Leonardo, é um dos aspectos normativos que

delimitam e potencializam as funções dos corpos e das coisas. Se Leonardo revela

conhecimento e prática de hábitos modernos, é asséptico e organizado, Victor é sua

antítese. Ele é excessivo e desorganizado. Ele se vê como moderno, atualizado,

atuante, participativo; mas é visto como intruso, como o “outro”, não pode ser aceito

por Leonardo, não tem direito ao seu raio de sol, é um cidadão de outra categoria.

Os dois filmes têm a preocupação de mostrar a diversidade, de refletir

aspectos sociais de seus países, de corresponder a uma história a partir do

momento presente. Tempo, espaço, atorialização; elementos narrativos que são

manipulados para gerar uma visão de sociedade através do cinema. O “outro” está

ao redor e ao lado, no passado e no futuro, em cada personagem, dividido em

personagens, desdobrando-se num mundo multifacetado, dissolvendo ordens

estabelecidas, avançando para uma outra configuração social, política e cultural.

Estranhos dilemas são colocados na narrativa moderna. Personagens

mergulhados nos seus cotidianos querem sobreviver, complexos por abarcar

características que parecem não conversar: o intelectual assassino; o perturbador

bom vilão; a dona de casa que fuma seu baseado e briga com a empregada; o neto

do latifundiário que trabalha como corretor; o homem que quer vingar a morte do seu

pai e que se confunde com o próprio personagem que criou – um segurança.

Já não é possível localizar vilões. Não há mais culpados nas narrativas deste

início de século. Todos ou nenhum vivem suas vidas caóticas, acossadas por algo

que eles não sabem o que é. Qualquer definição neste sentido pode criar o

paradoxo de encontrar o “outro” dentro de si mesmo, não mais ao redor nem ao

lado.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa utilizamos referenciais teóricos que se cruzaram para uma

compreensão dos filmes estudados e para que daí se chegasse ao objetivo:

conceituar o “outro” como agente narrativo e social, encontrá-lo ao redor, ao lado, ou

até mesmo no centro.

Se a semiótica de Greimas parte de uma estrutura narrativa e percorre as

múltiplas possibilidades de contar histórias, a taxionomia de Deleuze parte da

imagem, de sua construção pelo olhar. São movimentos do pensar que,

acreditamos, coadunam-se nesta dissertação para explicar o cinema, os filmes, suas

imagens e sons, sua potencialidade narrativa como obra aberta, sujeita a um sem

número de reflexões.

O cinema e suas especificidades, sua relação com o espaço e o tempo, as

possibilidades narrativas que se abriram à medida que os cineastas foram

experimentando estão nas contribuições de autores como Burch e Aumont.

Para contextualizar o Brasil historicamente, buscamos em Sergio Buarque de

Holanda e Gilberto Freyre, entre outros, a formação do Brasil Colonial em diante. Na

Argentina, nos baseamos no conceito de “argentinidade”.

O “outro” vai aparecer a partir do estudo da alteridade, trazido por pensadores

como Bauman, Giddens e Eco.

Procuramos acomodar todos estes pensadores numa ordem lógica. É

possível que as ideias nem sempre concordem. É um pouco do que trabalhamos na

atorialização transferindo para o mundo das ideias: encontrar o “outro”, aceitá-lo

mesmo na diferença, acomodá-lo, deixá-lo existir.

Os dois filmes em estudo também se diferenciam até mesmo no aspecto

espacial. Um abrange um bairro inteiro, o outro é uma casa e arredores. A questão

social em O som ao redor é muito mais forte, em O homem ao lado ela é vista por

um viés mais simbólico. O desfecho de um indica uma transformação e, o do outro,

que as relações continuam como estavam no início do filme e o personagem que

pedia “un rayito de sol” perdeu não só o sol como a vida. Encostar um filme no outro

pode trazer comparações deslocadas ou forçadas e este foi um desafio – manter a

discussão dentro dos seguintes parâmetros: linguagem cinematográfica; narrativa;

visão social e histórica; alteridade.

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Alguns filmes recentes poderiam ser incorporados às análises desta

dissertação. Um deles, e mantendo a origem de um dos filmes estudados, é o

argentino Relatos Selvagens. O homem ao lado poderia ser um de seus episódios:

tem a mesma verve de humor, sempre se estabelecendo uma disputa por um dos

polos opostos da narração e um desfecho imprevisível.

São 6 episódios: dois deles valem ser comentados por terem similaridade

maior com O homem ao lado: um homem trafega por uma estrada do interior e um

carro bem mais velho impede sua passagem. O motorista faz um sinal obsceno,

grita uma ofensa e arranca, mas adiante o pneu fura e ele é alcançado pelo outro

veículo. Dai eles se atacam, cada vez com raiva redobrada, num estilo que lembra

os desenhos de Tom & Jerry. O conflito perde todo o controle e o resultado é que

um dos carro explode com os dois personagens brigando dentro, aparentemente

abraçados e quem vem prestar socorro diz que foi um caso passional. Uma ironia,

pois não sabiam nem o nome um do outro.

Neste episódio percebemos a raiva e o medo incentivando comportamentos

cheios de ira, sem um motivo aparente. Como Leonardo sobre Victor, existe o

reconhecimento do “outro” como inimigo. Ele não precisa nem ter nome, mas pelo

seu tipo físico, pela maneira como se veste e age, é o “outro”.

O outro episódio envolve um atropelamento e a vítima morre. É manhã numa

casa de classe alta e o filho do dono da casa confessa ao pai que foi ele que

atropelou a jovem grávida. O pai chama seu motorista e pede que ele assuma a

culpa e promete pagar uma ótima quantia. O episódio se desdobra mostrando a

cobiça de cada um, o poder exercido por quem tem o capital, a ironia da cobiça e da

intolerância onde se esperava desprendimento e tolerância.

Neste drama familiar que se aproxima do humor corrosivo, podemos achar

pontos de contato com O som ao redor: existem classes sociais bem estratificadas e

o fluxo de poder parece estar mudando ou ter a chance de mudar. O “outro” ainda é

suscetível a perder sua liberdade para salvar da prisão o jovem burguês, mas sabe

que tem direito a contrapartidas, que pode mudar o jogo, que as relações podem

deixar de ser tão dicotômicas.

Aí temos alguns caminhos que podem partir da imagem, ou da narrativa, ou

de uma situação social determinada; este veio de assistir com certo distanciamento,

mas não de todo, de oscilar entre o humor e o drama e se perguntar onde um

começa e o outro termina. A comédia tradicional ri do “outro”, debocha dele, da sua

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raça, da sua maneira de ser, das suas características mais evidentes. Este humor é

diferente: ri do “outro”, de si mesmo, evita definir um ponto e se pergunta quem está

ao redor, quem está ao lado. Se faz barulho, se ama ou odeia, se um dia ele vai vir

até onde estou e tirar este ponto, esta referência, este meu lugar no mundo, que

supostamente é meu. Ou quem sabe podemos conviver juntos, aqui e ali, aqui e

aqui, ali e ali?

Escrevo agora na primeira pessoa imaginando o potencial desta pesquisa,

sua ampliação para outros filmes, tendências, expressões da linguagem

cinematográfica. Quem é o “outro”?

O “outro” sou eu que assisto a filmes para compreender o mundo, que leio

sobre eles e procuro gerar alguma reflexão. Posso organizar este espaço-tempo que

não é cinematográfico por narrativas. Posso me reconhecer dentro de algum

processo: João Knijnik, vivo em São Paulo, fevereiro de 2015, dissertação sendo

concluída.

Sobem os créditos.

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FILMES

O HOMEM AO LADO. Direção: Mariano Cohn e Gastón Duprat; Argentina: Imovision, 2009, DVD.

O SOM AO REDOR. Direção: Kleber Mendonça Fº; Brasil, Cinemascópio, Cor, 131 minutos, 2012, Filme 35mm.

DVD-EXTRA MENDONÇA Fº, Kleber. O som ao redor. DVD. ÁUDIO COMENTÁRIO. Olinda: Cinemascópio, 2013.

FICHA TÉCNICA DOS FILMES ESTUDADOS

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O SOM AO REDOR (2012)

EQUIPE TÉCNICA

DURAÇÃO:

DIRETOR, ROTEIRISTA

Kleber Mendonça Filho

PRODUTORA

Emilie Lesclaux

DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA e CÂMERA

Pedro Sotero & Fabricio Tadeu

DIREÇÃO DE ARTE

Juliano Dornelles

MONTAGEM

Kleber Mendonça Filho & João Maria

DESENHO DE SOM

Kleber Mendonça Filho & Pablo Lamar

SOM DIRETO

Nicolas Hallet & Simone Dourado

TRILHA SONORA

DJ Dolores

1a ASSISTENTE DE DIREÇÃO

Clara Linhart

DIREÇÃO DE PRODUÇÃO

Brenda da Mata & Renato Pimentel

PRODUÇÃO DE ELENCO

Daniel Aragão

PREPARADORES DE ELENCO

Amanda Gabriel, Leonardo Lacca

MAQUIAGEM

Marcos Freire

FIGURINO

Ingrid Mata

ELENCO

IRANDHIR SANTOS

Clodoaldo

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GUSTAVO JAHN

João

MAEVE JINKINGS

Bia

W.J. SOLHA

Francisco

IRMA BROWN

Sofia

LULA TERRA

Anco

YURI HOLANDA

Dinho

CLÉBIA SOUZA

Luciene

ALBERT TENÓRIO

Ronaldo

NIVALDO NASCIMENTO

Fernando

FELIPE BANDEIRA

Nelson

CLARA PINHEIRO DE OLIVEIRA

Fernanda

SEBASTIÃO FORMIGA

Claudio

MAURICÉIA CONCEIÇÃO

Mariá

8.2- O HOMEM AO LADO (2009)

DIREÇÃO E FOTOGRAFIA

Gastón Duprat e Mariano Cohn

ROTEIRISTA

Andrés Duprat

PRODUTOR GERAL

Fernando Sokolowickz

PRODUÇÃO EXECUTIVA

Maria Belen de la Torre

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DIREÇÃO DE ARTE E IGURINO

Lorena Llaneza

MUSICA ORIGINAL

Sergio Pangaro MONTAGEM Jeronimo Carranza DIRECÃO DE SOM Adrian de Michele e Anibal Girbal SOM DIRETO Ricardo Piterbarg

ELENCO

RAFAEL SPREGELBURD

Leonardo

DANIEL ARÁOZ

Victor

EUGENIA ALONDO

Ana

INES BUDASSI

Lola