o ator no contexto da direção cinematográfica

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 10 O ATOR NO CO NTEXTO DA DIRE ÇÃO CINEM ATOGR ÁFICA:  ATUAÇÃO COMO TER RITÓRIO DE ES TRANHAMENTO Rejane K. Arruda 1  Resumo: O texto coteja a problemática da atuação no cinema partindo de duas clássicas dicotomias. Primeiramente, a oposição entre uma atuação naturalista ( f undamentada na coti di ani da de do cor po e na leit ur a de a çõe s dieg é t icas ) e a exacerbação da plasticidade corporal (tal como postulava Bertolt Brecht a fim de provocar um estranhamento sobre o que, na sociedade burguesa, estaria posto como "nat ur a l ") . E m se gundo l uga r , pass a -se pela oposição representação-performatividade, em voga na cena contemporânea, para propor a a t ua çã o nat uralis t a no cinema como uma poéti ca  ou seja, como perspectiva de "faz er vac i lar a re fer ê ncia" ( de um efe i t o de rea l repr es enta do n a di eg es e) . O texto traz exemplos da história do cinema para concluir com a perspectiva da atuação como tessitura de arranjos singulares entre representação e performatividade. Isto na medida em que significantes podem ser escutados e deslocados para a diegese enquanto o olhar do espectador performa.  Palavras chave:  O ator no cinema, Atuação naturalista, Poética, Estranhamento.  Contacto: [email protected] A hipótese que desenvolvo neste texto é a de uma poética da atuação como choque entre visualidades diferentes, sendo que o corpo do ator encontra- se inscrito em um território de estranhamento. E stranhamento primeiramente no sentido comum do verbo "estranhar", mas também em alusão ao termo cunhado por Bertolt Brecht, quando o ato de atuar é revelado e, reconhecido, implica uma visualidade inscrita como poética da cena. Em outr a s pala vr a s, quero di zer que a atuação depende de algo que escapa à diegese e, advindo como estranho, ganha sentido ao inscrever - se na poética do filme. Um sentido que é político, pois se investe no que não está dado como certo, 1  Rejane K. Arruda  é professora da Univ ersida de Vi la Velha ( ES), da Academia Internacion a l de Cinema (SP), doutoranda pela E CA/ US P e es pec iali sta em Audi ovi sua l pela Un iv ersida de Gama Filho. Membro do Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica (USP), editora da Revista PesquisAtor (USP) e coordenadora do projeto de extensão "Ateliê Cênico - cinematográfico" (UVV -ES ) .  Arruda, Rejane K.. 2014. “O Ator no Contexto da Direção Cinematográfica: Atuação como Território de Estranhamento”. In A ta s d o I I I E nc o ntro A nu a l d a A I M, editado por Paulo Cunha e S érgio Di a s Branco,  10-18. C oimbra: AI M. I S BN 978-989 -98215-1-4.  

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O Ator No Contexto Da Direção Cinematográfica

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  • 10

    O ATOR NO CONTEXTO DA DIREO CINEMATOGRFICA:

    ATUAO COMO TERRITRIO DE ESTRANHAMENTO

    Rejane K. Arruda1

    Resumo: O texto coteja a problemtica da atuao no cinema partindo de duas clssicas dicotomias. Primeiramente, a oposio entre uma atuao naturalista (fundamentada na cotidianidade do corpo e na leitura de aes diegticas) e a exacerbao da plasticidade corporal (tal como postulava Bertolt Brecht a fim de provocar um estranhamento sobre o que, na sociedade burguesa, estaria posto como "natural"). Em segundo lugar, passa-se pela oposio representao-performatividade, em voga na cena contempornea, para propor a atuao naturalista no cinema como uma potica ou seja, como perspectiva de "fazer vacilar a referncia" (de um efeito de real representado na diegese). O texto traz exemplos da histria do cinema para concluir com a perspectiva da atuao como tessitura de arranjos singulares entre representao e performatividade. Isto na medida em que significantes podem ser escutados e deslocados para a diegese enquanto o olhar do espectador performa. Palavras-chave: O ator no cinema, Atuao naturalista, Potica, Estranhamento. Contacto: [email protected]

    A hiptese que desenvolvo neste texto a de uma potica da atuao

    como choque entre visualidades diferentes, sendo que o corpo do ator

    encontra-se inscrito em um territrio de estranhamento. Estranhamento

    primeiramente no sentido comum do verbo "estranhar", mas tambm em

    aluso ao termo cunhado por Bertolt Brecht, quando o ato de atuar revelado

    e, reconhecido, implica uma visualidade inscrita como potica da cena. Em

    outras palavras, quero dizer que a atuao depende de algo que escapa diegese

    e, advindo como estranho, ganha sentido ao inscrever-se na potica do filme.

    Um sentido que poltico, pois se investe no que no est dado como certo,

    1 Rejane K. Arruda professora da Universidade Vila Velha (ES), da Academia Internacional de Cinema (SP), doutoranda pela ECA/USP e especialista em Audiovisual pela Universidade Gama Filho. Membro do Centro de Pesquisa em Experimentao Cnica (USP), editora da Revista PesquisAtor (USP) e coordenadora do projeto de extenso "Ateli Cnico-cinematogrfico" (UVV-ES). Arruda, Rejane K.. 2014. O Ator no Contexto da Direo Cinematogrfica: Atuao como Territrio de Estranhamento. In Atas do III Encontro Anual da AIM, editado por Paulo Cunha e Srgio Dias Branco, 10-18. Coimbra: AIM. ISBN 978-989-98215-1-4.

  • Atas do III Encontro Anual da AIM

    11

    pondo em cheque o que seria natural. De maneira que, quando se trata de uma

    atuao realista, a prpria inscrio do ator na visualidade de um cotidiano

    diegtico deve estranhar. Esta hiptese est em experimentao, ou seja, no

    est plenamente desenvolvida. No entanto, espera-se que um possvel

    amadurecimento abra perspectivas para uma crtica da atuao.

    Estranhem o que no for estranho Tomem por inexplicvel o habitual Sintam-se perplexos ante o cotidiano Faam sempre perguntas Caso seja necessrio Comecem por aquilo que mais comum Para que nada seja considerado imutvel Nada, absolutamente nada. Nunca digam: isso natural (Brecht 1990, 129)

    Quando falamos de diegese estamos nos referindo fico, tal como

    define Aumont em referncia ao uso do termo por Soriau. Esta diegese que

    aparece, no campo da teoria contempornea articulada a noo de

    representao.

    Para Souriau, os "fatos diegticos" so aqueles relativos histria representada na tela, relativos apresentao em projeo diante dos espectadores. diegtico tudo o que supostamente se passa conforme a fico que o filme apresenta, tudo o que essa fico implicaria se fosse supostamente verdadeira (Aumont & Michel 2003, 79)

    Tambm podemos evocar aqui, outro conceito, que o "efeito do real",

    como o que Brecht, justamente, queria quebrar.

    O efeito de real designa o fato de que, na base de um efeito de realidade o espectador induz um "juzo de existncia" sobre as figuras da representao e lhes confere um referente no real; dito de outro modo, ele no acredita que o que ele v seja o prprio real (no uma teoria da iluso), mas sim que o que ele v existiu no real. Para Jean-Pierre Oudart (que retoma conscientemente ou no teses de Michel Foucault), esse vnculo entre efeito de realidade e efeito de real caracterstico da representao ocidental ps-renascentista, que sempre quis submeter a representao analgica a uma perspectiva realista (Ibidem, 92).

    No que diz respeito atuao, Brecht cunhou o termo "estranhamento"

    em referncia estilizao dos gestos, mas tambm presena de uma crtica

    ou seja, visualidade do olhar (do prprio ator que representa a personagem).

    Aparece, em cena, a visualidade do pensamento do ator criticando a

    personagem. como se o ator dissesse: sou eu aqui (no a personagem) e no

  • Rejane K. Arruda

    estou de acordo com o que esta personagem faz, pois entendo que ela est

    agindo por uma determinao social; com o meu gesto, eu digo isto a vocs; por

    isto, olho diretamente para vocs; exagero os gestos e os construo de maneira a

    no simplesmente mimetizar aes, mas tambm estranha-las, coloc-las em

    questo, desitu-las, retira-las da diegese, desloc-las para um discurso que

    meu.

    Trata-se, classicamente, da oposio atuao naturalista quando esta

    dada como registro de um real sem p-lo em questo (de um real "natural"), tal

    como pode ser atribuda Stanislavski (com a sua crena na revelao de uma

    essncia do homem) ou Antoine, quando este tenta fazer do teatro o

    documento do mundo "tal como ", reverberando o projeto cientificista de

    Zola. Ao contrrio, a obra teatral de Brecht est marcada "pelo niilismo

    anrquico e pelo cinismo" (Montagnari 2010, 9)

    Com o folclore, as aes populares, os corais, cenas justapostas ou a

    estilizao do texto, Brecht procura evocar a visualidade de um olhar, de um

    pensamento. Na atuao, o efeito de distanciamento implica que, enquanto o

    ator inscreve as aes da personagem, outra cadeia lida pelo espectador. A

    visualidade de uma representao aparece, enquanto que, em Stanislavski, esta

    se encontra disfarada e escondida para que o ator evoque o "como se" fosse

    o personagem. Para muitos, o projeto de Stanislavski de evocar, atravs da

    atuao naturalista (ou realista), com a mimese de uma cotidianidade do corpo,

    o "como se" fosse real, implicaria a diluio do olhar do espectador; um

    colamento na diegese por empatia (identificao), reforando, assim, padres

    burgueses. J a obra de Brecht seria "convite ao deboche (sexo, charuto, lccol,

    pio) e um desafio moral burguesa" (Ibidem 9).

    No entanto, podemos perceber que, no cinema, uma atuao realista pode

    estar implicada em uma potica que sublinha a visualidade do olhar do

    espectador atravs da mise-em-scene, enquadramento e movimento da cmera,

    bem como dos cortes. No cinema, podemos perceber indcios da visualidade de

    um contexto do ator inscrita na potica do filme. Por exemplo, em Viver a Vida

    de Jean-Luc Godard, por mais cotidianidade que Anna Karina imprima atravs

    do seu desenho corporal, olhar, respirao e gestos, h distanciamento e a

    visualidade da presena do espectador evocada quando a atriz olha (ou quase

    olha) para a cmera. Ou, para citar um exemplo brasileiro, quando, em Bang

  • Atas do III Encontro Anual da AIM

    13

    Bang, de Andrea Tonacci (1971), Paulo Cesar Pereio repete um mesmo dilogo

    por diversas vezes na mesa do bar, misturando a visualidade da representao a

    um universo diegtico fragmentado, apesar da cotidianidade da construo

    corporal da atriz, que se torna, ento, performativa.

    - Oi. - Oi. (...) T bom? - Porque voc falou "t bom"? Eu s falei "oi"!2

    O que quero demonstrar que, enquanto no teatro de Brecht necessrio

    uma plasticidade exacerbada do corpo (ou, como diz Barba, "extra-cotidiana")

    para que o deboche, a crtica, a visualidade do olhar e o pensamento sejam

    impressos, no cinema, o ator pode se valer da montagem e mise-en-scene onde

    se inscreve para, justamente, potencializando a cotidianidade da atuao,

    estranhar. Deparamo-nos com a perspectiva de uma reviso do papel da

    atuao naturalista: no de forma a dizer que o mundo burgus natural, mas

    como potencia de estranhamento deste mundo.

    No caso de Bang Bang a visualidade do contexto do ator aparece na

    medida em que est tambm criticando a parceira de cena. Na repetio do

    dilogo entra a msica e o barulho do transito se sobrepe s falas; a cmera

    passeia de um lado para o outro, reforando a visualidade de uma construo

    que vem a primeiro plano, como espcie de laboratrio de linguagem, na

    medida em que os elementos da cena estranham a diegese. Enquanto isto, a

    "naturalidade" dos gestos da atriz contribui para que o estranhamento se

    configure porque h algo em cena que est deslocado do seu habitual apesar

    de ser reconhecido como tal.

    No teatro, no apenas o projeto de Bertolt Brecht implicou oposio

    atuao realista, mas tambm Meyerhold, Craig, Decroux, Grotowski, Barba,

    tomaram a atuao como territrio que evoca diferentes camadas textuais.

    Craig e Meyerhold preconizaram o uso de traos gratuitos e abstratos do

    desenho corporal para sugerir uma dimenso que se pretende espiritual e para

    alm das aparncias (de uma imitao da realidade). Este paradigma do teatro

    simbolista, burilado desde o comeo do Sculo XX, implicava uma de-

    subjetivao da atuao para que a interpretao do ator no interferisse na

    potica do texto. Um projeto que lembra o choque entre o que se daria como

    2 Trecho de dilogo em Bang Bang de Andrea Tonacci.

  • Rejane K. Arruda

    inscrio humana no cotidiano diegtico e a mecanizao dos gestos postulada

    por Robert Bresson.

    Em um filme como Mouchette (Bresson, 1967), o corpo evoca

    significantes que podem ganhar sentido na diegese (como a mortificao dos

    indivduos frente s relaes de poder, por exemplo), mas tambm, que, por

    outro lado, ganham sentido em aluso presena do boneco como potica da

    cena, de maneira que o ator coisificado, como postulava Kantor ou Craig.

    Assim, a visualidade das aes dramticas implica um sentido na diegese, no

    entanto, est tambm para alm desta quando se configura como uma potica

    que aproximaria a atuao das artes plsticas ou da dana.

    Mas, se por um lado, percebemos estas duas vertentes como

    paradigmticas de uma teoria da atuao (a estilizada e a realista), por outro

    lado, os limites entre elas se diluem quando estabelecemos a articulao com a

    potica flmica. Deparamo-nos com a perspectiva desta espcie de

    estranhamento quando a visualidade do desenho do corpo que estranha. Mas

    tambm encontramos a perspectiva da inscrio de uma naturalidade do corpo

    comum e cotidiano, das aes advindas como impulsos em funo da inscrio

    em relaes intersubjetivas ou seja, da atuao que implica o disfarce da

    representao para que o corpo possa ser tomado como objeto da captura do

    olhar (e o estranhamento possa advir da identificao deste olhar). Trata-se,

    portanto, de duas modalidades para que o estranhamento se configure. E, neste

    caso, podemos tomar a propriedade do ator estranhar, no bojo de uma atuao

    naturalista, como um valor para a crtica manejar.

    Em A Separao de Asghar Farhadi (2011), os atores que representam o

    pai, a empregada, a filha, a me, o av, esto inscritos como personagens em um

    cotidiano da diegese. Qualquer visualidade de um ato de representar perdida.

    Encontramos um prottipo de como a atuao realista serve ao filme na medida

    em que no se denuncia como representao, mas aparece como mimese da

    realidade. Apesar da oposio contra esta mimese (construda na histria da

    encenao teatral e que, a cada movimento, traz a estilizao como um valor),

    no que diz respeito ao cinema contemporneo, esconder a visualidade da

    representao (de maneira que os significantes escutados atravs do corpo

    estejam articulados diegese) servir ao filme filme que se torna poltico no

    seu valor de denncia. No entanto, neste caso, onde estaria a implicao potica

  • Atas do III Encontro Anual da AIM

    15

    deste tipo de atuao? Neste caso haveria tambm uma potica da atuao ou

    quando o ator cumpre a mimese do habitual somente a potica do filme (a

    qual esta serve) que se constitui?

    Seria preciso aqui investigar um pouco o conceito de potico. Para

    Jakobson, por exemplo, "toda mensagem potica como um discurso citado

    que no oblitera a referncia, mas a torna ambgua". A ambiguidade tal como

    "um corolrio obrigatrio da poesia", de maneira que esta "encontra

    correspondncia num remetente cindido, num destinatrio e numa referncia

    cindidos" (Jakobson 2010, 150). A noo de potica postulada por Jakobson

    serve a nossa hiptese. Isto na medida em que a atuao realista implica

    justamente a ambiguidade. Ela torna ambguo o corpo cotidiano inscrito na

    diegese por ser do ator e tambm da personagem evocada: construda, efeito.

    Ela torna ambgua uma suposta verdade das aes inscritas na atuao por

    saber-se se tratar de construo que, no entanto, perde em visualidade para dar

    lugar ao "como se". A forma mimtica, neste caso, em seu efeito de "natural",

    implica tambm um efeito de fissura entre duas visualidades que se chocam (a

    visualidade do contexto de produo da obra e o efeito diegtico que produz)

    abrindo, ao espectador, espao para a sua produo na medida em que este

    choque produz enigma. Assim, a potica da atuao naturalista colocaria em

    cheque a clssica oposio "verdade e mentira" tanto quanto um poema de

    Pessoa que diz: "O poeta um fingidor. Finge to completamente que chega a

    fingir que dor a dor que deveras sente" (Pessoa 1972, 164). construo e

    experincia; verdade e mentira ao mesmo tempo. Enquanto potica, trata-se

    de uma construo para falar da verdade que no se pode dizer (para

    parafrasear Lacan): "Digo sempre a verdade. No toda... pois, diz-la toda, no

    se consegue... Diz-la toda impossvel, materialmente... faltam as palavras.

    justamente por esse impossvel... que a verdade toca o Real." (Lacan 1973).

    Assim, a performance do ator, ao evocar a cotidianidade de um corpo

    "real", a coloca em cheque, fazendo "vacilar a referncia" como diz Jakobson e

    constituindo um efeito de potica. E colocar este corpo em cheque seria um

    projeto que se pode dizer com Brecht poltico por no tom-lo como natural,

    por acus-lo como construo. Isto para alm do fato que temos este corpo

    como objeto de enquadre e corte bem como a visualidade do olhar da cmera

    (evidenciado no seu movimento, variaes, durao e angulaes) que garante

  • Rejane K. Arruda

    a inscrio do ator em uma relao estranhada. E para alm do fato que, na

    medida em que as aes dos atores implicam a adequao diegese, entram em

    relao de tenso com a perspectiva de que algo possa dali escapar (e

    estranhar) quando o significante escutado no se inscreve mais em um

    encadeamento linear ou lgico. De maneira que, mesmo perdendo de vista a

    situao de representao, pode-se colocar em jogo, em cheque, em questo, as

    aes da diegese.

    Um trabalho como o de Marlon Brando em Sindicato de Ladres, de Elia

    Kazan (1954), torna-se paradigmtico de uma atuao a la Actors Studio, onde

    os traos do corpo inscrevem a relao com o espao e o outro diegticos.

    Mexendo na luvinha de Eva Marie Saint, Brando evoca a visualidade de um

    indivduo inscrito em relaes intersubjetivas; uma visualidade densa o

    suficiente para que se possa dizer: universo diegtico "fechado".

    Tericos do teatro contemporneo, como Hanz-Ties Lehmann e Josette

    Fral, fazem frequentemente aluso representao de um "universo ficcional

    fechado" em oposio performatividade. Esta ideia est hoje disseminada nos

    estudos acadmicos teatrais. Trata-se de um campo de investigao cujo debate

    se amplia hoje na academia.

    O teatro tradicional trabalha com a ideia da manuteno de um universo fictcio

    fechado. um tipo de representao cnica com uma realidade emoldurada, encerrada em leis prprias e com uma lgica interna entre os elementos. Esse enquadramento fictcio ignora a ideia de que o teatro um "processo in actu". O teatro tem como especificidade o fato de que a um s tempo processo material e signo, prtica real e significante. Os produtos materiais da cultura so usados como signos estticos no teatro, e isto o que torna possvel um "para alm da interpretao" e a "esttica da irrupo do real" A partir dos anos 70, diversas manifestaes da arte teatral empreenderam uma revoluo na "representao dramtica imitativa" e propuseram um teatro para alm dos limites do significado, da cpia e do ordenamento centrado no logus2. O novo teatro no mais visto como lugar do simulacro, da ilustrao da ao, da duplicao de outra realidade; nele, "o real passa a ter o mesmo valor do fictcio" (Bond 2010, 01).

    Retomando a atuao de Brando em Sindicato de Ladres (Elia Kazan,

    1954) quando esta implica justamente a clssica representao de um

    universo diegtico fechado que o teatro ps-dramtico ope ao "processo in

    actu" podemos dizer que h performatividade? Tal como define Josette Fral

    a performatividade se constitui atravs do olhar do espectador: "O espectador,

  • Atas do III Encontro Anual da AIM

    17

    longe de buscar um sentido para a imagem, deixa-se levar por esta

    performatividade em ao. Ele performa" (Fral 2008, 202). Pergunto-me se a

    performatividade no implica uma estrutura da relao do espectador com a

    obra (mais que uma modalidade desta relao em detrimento da outra que seria

    a representao tal como posto na teoria teatral). De maneira que haveria

    diferentes arranjos entre uma possvel escuta de significantes evocando a

    diegese (como "universo fechado") e a performatividade do olhar do

    espectador.

    Em O Espelho de Andrei Tarkovsky (1975), ns vemos a atriz Margarita

    Terkhova coando o olho de maneira a diluir a visualidade do contexto de

    uma atriz representando (procedimento da atuao naturalista) graas a uma

    relao de intimidade com o corpo que independe da diegese. Em Os Idiotas de

    Lars Von Trier (1997), as aes dos bastidores so ficcionalizadas (evocam

    uma diegese na montagem). O filme se estrutura como um registro do processo

    da criao dos personagens ("os idiotas"). Os atores se dedicam a aprender

    como representar estes "idiotas". As aes inscritas neste processo de

    construo so capturadas e montadas em funo de um filme que conta

    tambm com a voz over do diretor comentando estes processos. O pensamento

    do ator pode implicar o mistrio, se situando fora da diegese mesmo que o

    espectador faa o exerccio de articul-lo ao percurso da personagem tal

    como vemos em filmes de Krzysztof Kieslowsky como A Dupla Vida de

    Veronique, A Liberdade Azul, A Igualdade Branca ou A Fraternidade

    Vermelha. Ou, ainda, quando a atuao encontra-se sustentada por uma

    combinao entre densidade e imobilidade (como em certas atuaes de

    Barbara Stanwyck, por exemplo) estes elementos so emprestados diegese na

    medida em que lidos como a personalidade da personagem: "poderosa",

    "misteriosa". Por fim, o rosto dos atores pode imprimir efeitos de

    estranhamento, comportando algo a mais que atrapalhe a constituio da

    diegese e fazendo girar uma cadeia de associaes durante o empenho do

    espectador em criar um lugar para aquele material que escapou s suas

    identificaes.

    Poderamos dizer, portanto, que a cena do corpo implicada como uma

    escrita, cujos significantes o espectador escuta, e que conta com a

    performatividade do seu olhar quando este estranha tambm uma obra atoral.

  • Rejane K. Arruda

    De maneira que a complexa composio de significantes escutados na atuao

    podem se deslocar apara uma diegese ou abrir nela fissuras de

    desentendimento. No cinema, graas a estas operaes, h potncia na uma

    cotidianidade do corpo, que se revela justamente quando o paradigma da

    atuao naturalista pode ser utilizado para estranhar. A cena da teoria teatral no

    sculo XX lutou contra o projeto de atuao realista. Mas, especialmente no

    cinema, esta modalidade de atuao se configura como potica na medida em

    que, entre esta e a diegese, algo se d como diferena, abrindo espao para

    substituies em um eixo vertical de possveis e no se configurando apenas

    como "a" representao daquela ao ficcional. De maneira que o princpio de

    uma montagem entre visualidades distintas se encontra presente. Um jogo que

    implica relaes de sentido e deslizamentos, mas tambm a performatividade

    do olhar do espectador que no consegue capturar o sentido do que fica de fora

    (o que dinamiza a sua relao com a obra). Espera-se que esta hiptese se

    fortalea e, com ela, a perspectiva de uma crtica da atuao que contemple a

    construo deste jogo.

    Referencias bibliogrficas Aumont, Jacques & Michel, Marie. 2003. Dicionrio terico e critico de

    cinema. Campinas: Ed. Papirus. Bond, Fernanda. 2010. "O Ator autor: a questo da autoria nas formas

    teatrais contemporneas". Anais do VI Congresso de Pesquisa e Ps-graduao em Artes Cnicas. http://portalabrace.org/vicongresso/processos/ Fernanda%20 Bond%20-%20O%20Ator%20autor.pdf

    Brecht, Bertolt. 1990. "A exceo e a regra". In Teatro completo (12 vols). Vol IV. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 129-160.

    Fral, Josette. 2008. "Por uma potica da performatividade: o teatro performativo". Sala Preta, Revista do Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas 8: 197-210.

    Jakobson, Roman. 2001. Lingistica e Comunicao. So Paulo: Ed. Cultrix. Lacan, Jacques. Televiso. Emisso para o Servio de Pesquisa do ORTF,

    1973 - DVD. Lehmann, Hans-Thies. 2007. Teatro ps-dramtico. So Paulo: Cosacnaify. Pessoa, Fernando. 1972. Obra Potica. Rio de Janeiro: Cia. Jos Aguilar Ed. Montagnari, Eduardo. 2010. Brecht: Estranhamento e Aprendizagem.

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