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UNIVERSIDADE PARANAENSE – UNIPAR CAMPUS UMUARAMA - SEDE FIXAÇÃO DA PENA-BASE PRIVATIVA DE LIBERDADE NO DIREITO BRASILEIRO : LIMITES AO PODER JURISDICIONAL DENISE DA SILVA VIÉGAS UMUARAMA - PR 2007

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UNIVERSIDADE PARANAENSE – UNIPAR CAMPUS UMUARAMA - SEDE

FIXAÇÃO DA PENA-BASE PRIVATIVA DE LIBERDADE NO DIREITO BRASILEIRO: LIMITES AO PODER JURISDICIONAL

DENISE DA SILVA VIÉGAS

UMUARAMA - PR 2007

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UNIVERSIDADE PARANAENSE – UNIPAR CAMPUS UMUARAMA - SEDE

FIXAÇÃO DA PENA-BASE PRIVATIVA DE LIBERDADE NO DIREITO BRASILEIRO:

LIMITES AO PODER JURISDICIONAL

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção de grau de Mestre pelo Programa de Mestrado em Direito Processual e Cidadania da Universidade Paranaense – UNIPAR. Orientador: Prof. Dr. Fábio André Guaragni

UMUARAMA - PR 2007

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TERMO DE APROVAÇÃO

DENISE DA SILVA VIÉGAS

FIXAÇÃO DA PENA-BASE PRIVATIVA DE LIBERDADE NO DIREITO

BRASILEIRO: LIMITES AO PODER JURISDICIONAL

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção de grau de Mestre pelo

programa de Mestrado em Direito Processual e Cidadania, área de concentração

Direito Processual Penal, da Universidade Paranaense – UNIPAR.

BANCA EXAMINADORA

Profº Dr. Fábio André Guaragni (Presidente) ________________________

Profº Dr. Néfi Cordeiro (Membro) _________________________

Profº Dr. Luiz Antonio Câmara (Membro) ________________________

Umuarama, 28 de fevereiro de 2007.

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Ao Daniel, filho amado e razão maior de

minha existência, cuja generosidade e

equilíbrio me comovem e surpreendem a

cada dia.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Washington e Rosemarion, pelo estímulo permanente

para o conhecer e pelos valores humanísticos que incutiram em minha formação

pessoal e profissional.

Ao meu orientador, Professor Doutor Fábio André Guaragni, pela

generosidade em partilhar seus vastos e profundos conhecimentos, mas, sobretudo,

pela paciência e incentivo transmitidos em preciosos e-mails, nos quais as palavras

amigas e bem humoradas, aliadas a redirecionamentos sempre pertinentes ao longo

da pesquisa, me davam renovado ânimo.

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Na medida em que se interessar pelo drama de seu tempo, o juiz poderá perceber a verdadeira dimensão e a inserção histórica de seu trabalho, situando e compreendendo a ordem jurídica no contexto humano global. Na medida em que acresça ao seu saber técnico uma visão de mundo tão dilatada quanto possível, o juiz enriquecer-se-á interiormente, podendo melhor avaliar os dados reais, humanos, que constituem a razão de ser, tantas vezes esquecida, de todo processo.

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo demonstrar, a partir do modelo constitucional de Estado vigente na República Federativa do Brasil e de seus desdobramentos, os limites impostos ao poder jurisdicional, quando, proferida sentença penal condenatória, adentrar na primeira fase de individualização da pena privativa de liberdade. Com efeito, um Estado que se autoproclama de Direito e Democrático, que erige a dignidade da pessoa humana como um de seus pilares, que declara seu comprometimento com a inclusão social e com os direitos fundamentais, somente admite conviver com um poder punitivo que já nasce e é exercido de forma racional e limitada, formal e materialmente. A sentença penal condenatória com aplicação de pena privativa de liberdade, por restringir um dos direitos fundamentais, há de retratar esta racionalidade e limitação ínsitas ao poder punitivo, através da clareza e lógica demonstradas no raciocínio seguido pelo juiz, predicados incompatíveis com o emprego do mero silogismo, pois se trata de peça destinada à persuasão. Ademais, os princípios constitucionais, com relevo para aqueles mais diretamente afetos ao procedimento individualizador da pena privativa de liberdade, enquanto categoria de normas que expressam os mais elevados valores de uma determinada sociedade, igualmente constituem poderoso instrumental posto a serviço do julgador no momento culminante do processo penal para contingenciar o poder punitivo, inclusive com força para paralisar, total ou parcialmente, a incidência de norma infraconstitucional que com eles se revele incompatível. Dentre os aludidos princípios, os da secularização e culpabilidade fundamentam a impossibilidade de serem valorados em detrimento do condenado, no sentido de autorizar a fixação da pena-base acima do mínimo legal, aqueles parâmetros do artigo 59, caput, do Código Penal concernentes a um direito penal de autor: antecedentes, personalidade e conduta social. Quanto às teorias que procuram justificar a imposição de uma pena, opta-se pela teoria unificadora dialético-preventiva de Roxin, não só porque restringe a incidência do direito penal à proteção subsidiária de bens jurídicos essenciais, mas primordialmente porque alça a culpabilidade como limite máximo e inultrapassável da pena a ser concretizada. Finalmente, ressalta-se a vedação à aplicação acrítica dos vetores postos à disposição do juiz para fixar a pena-base privativa de liberdade, pois todo aquele arcabouço tratado nos capítulos antecedentes impõe um repensar no seu manejo. A uma, porque o atuar do julgador está cingido a uma discricionariedade regrada, como decorrência do princípio constitucional da obrigatoriedade de motivação de suas opções, o qual exige que sua argumentação venha amparada em dados concretos extraídos dos autos, a fim de permitir o controle da racionalidade de suas conclusões. A duas, porque algumas circunstâncias estão defasadas perante a nova ordem constitucional, que veda o agravamento da pena-base do sentenciado pelo que ele é, somente admitindo a valoração negativa da sua conduta objetivamente considerada, isto é, pelo que ele fez, o que demanda do intérprete um perene e urgente trabalho de atualização constitucional, tarefa que somente será cumprida a contento caso o julgador assuma com destemor uma prévia posição em relação ao direito e à vida. Palavras-chave: pena-base privativa liberdade. Fixação.

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ABSTRACT

The present work has as its goal to demonstrate, based on the constitutional model of State valid in Federal Republic of Brazil and of its unfoldings, the limits imposed upon the jurisdictional power, when, pronounced condemnatory penal sentence, come into the first phase of individualization of the depriving of freedom punishment. As a result, the State which acclaims itself as one of Right and Democratic, which builds person's human dignity as one of its pillars, which declares its compromise with social inclusion and with the fundamental rights, may only admit acquaintance with a punishing power which has already been born and has been exercised in a rational and limited, formal and material way. The condemnatory penal sentence with the application of depriving of freedom punishment, for restricting one of the fundamental rights, must reveal this rationality and limitation inherent to the punitive power, through the clearness and logic demonstrated in the reasoning followed by the judge, attributes that are incompatible with the use of mere syllogism, because it is a matter related with inducement. Moreover, the constitutional principles, in distinction with those more directly entrusted with the individualizing procedure of the depriving of freedom punishment, while category of rules which expresses the most elevated values of a certain society, they equally constitute powerful instrument put in service for the judge at the penal lawsuit culminating moment to limit punitive power, inclusively with force to paralyze, total or partially, the incidence of infringing the constitutional law which may be revealed incompatible with them. Among the alluded principles, both the secularization and culpability establish the impossibility of being valorous in the convict's detriment, in the sense of authorizing to set the punishment-base above of the legal minimum, those parameters of the article 59, caput, of the Penal Code concerning to an author's penal right: antecedents, personality and social conduct. Regarding the theories which try to justify the imposition of a punishment, it is opted for the unifying dialectic theory of Claus Roxin, not only because it restricts the incidence of the penal right to the subsidiary protection of the essential juridical property, but also because it primordially raises the guilt as maximum limit and unsurpassing of the punishment being formalized. Finally, it is stressed the disallowance to the acritical application of the vectors available to the judge to set punishment-base of the depriving of freedom, because all that framework treated in the antecedent chapters imposes to rethink its handling. First, because the actuating of the judger is girded with a ruled discretionality, as a consequence of constitutional principle of the obligation of motivation of its options, which demands that his argumentation comes aided in concrete data extracted from the records, in order to allow the control of rationality of his conclusions. Second, because some circumstances are dephased in relation to the new constitutional order, that girds the aggravation of the punishment-base of the sentenced whereby he is, only admitting negative valorization of his conduct objectively considered, that is, whereby he made, which demands from the interpreter a perennial and urgent work of constitutional update, task which only will be accomplished satisfactorily if the judge assumes fearlessly a previous position regarding right and life.

Key- words: exclusive punishment-base freedom. Fixation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 10 CAPÍTULO 1 LIMITES AO EXERCÍCIO DO PODER PUNITIVO ............................ 15

1.1 ESTADO (CONSTITUCIONAL) DE DIREITO, DEMOCRÁTICO E SOCIAL .... 16 1.1.1 Estado de Direito ........................................................................................... 18 1.1.2 Estado Democrático ...................................................................................... 21 1.1.3 Estado Social ................................................................................................. 24 1.1.4 Estado Social e Democrático de Direito ...................................................... 29 1.2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ................................................................ 32 1.3 COMPROMETIMENTO COM A DEMOCRACIA MATERIAL NO EXERCÍCIO DO PODER PUNITIVO ................................................................................................... 44 1.4 DIREITOS FUNDAMENTAIS ............................................................................. 51 1.5 SENTENÇA PENAL ENQUANTO LUGAR DE ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 59 1.5.1 Etimologia do termo sentença ..................................................................... 62

1.5.2 Conceitos de sentença penal ....................................................................... 63 1.5.3 Funções da sentença penal .......................................................................... 64 1.5.4 Requisitos formais da sentença penal ........................................................ 65 1.5.5 Requisitos retóricos da sentença penal ...................................................... 69 1.5.6 Raciocínio jurídico e argumentação ............................................................ 77 1.5.7 Prevalência do saber judicial sobre o poder .............................................. 89 CAPÍTULO 2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS INERENTES À APLICAÇÃO DA PENA (PRIVATIVA DE LIBERDADE) ..................................................................... 92 2.1 CONCEITOS ...................................................................................................... 98 2.2 DIMENSÕES OPERATIVAS ............................................................................. 99 2.3 PRINCÍPIOS EXPLÍCITOS .............................................................................. 101 2.3.1 Legalidade .................................................................................................... 101 2.3.2 Humanidade ................................................................................................. 118 2.3.3 Pessoalidade ............................................................................................... 125 2.3.4 Individualização .......................................................................................... 126 2.4 PRINCÍPIOS IMPLÍCITOS ............................................................................... 130 2.4.1 Secularização ............................................................................................... 130

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2.4.2 Culpabilidade ............................................................................................... 135 2.4.3 Proporcionalidade ....................................................................................... 142 CAPÍTULO 3 FINALIDADES DA PENA (PRIVATIVA DE LIBERDADE): TEORIAS ................................................................................................................................. 146

3.1 TEORIAS MONISTAS ...................................................................................... 148 3.1.1 Teoria retributiva ......................................................................................... 148 3.1.2 Teoria preventivo-especial ......................................................................... 156 3.1.3 Teoria preventivo-geral ............................................................................... 165 3.2 TEORIAS MISTAS OU ECLÉTICAS ............................................................... 172 3.3 TENDÊNCIAS ATUAIS .................................................................................... 176 3.4 POSIÇÃO ADOTADA PELO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO ....................... 189 CAPÍTULO 4 FIXAÇÃO DA PENA-BASE PRIVATIVA DE LIBERDADE ............ 193 4.1 INDIVIDUALIZAÇÃO JUDICIAL: SISTEMA TRIFÁSICO ............................... 194 4.2 CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS: NOÇÕES PRELIMINARES E ALGUMAS PREMISSAS .......................................................................................................... 204

4.3 CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS: CRITÉRIOS ................................................. 224 4.3.1 Relativos ao fato .......................................................................................... 225 4.3.1.1 culpabilidade ............................................................................................. 225 4.3.1.2 motivos do crime ...................................................................................... 229 4.3.1.3 circunstâncias do crime .......................................................................... 230 4.3.1.4 conseqüências do crime .......................................................................... 232 4.3.1.5 comportamento da vítima ........................................................................ 233 4.3.2 Relativos ao autor ....................................................................................... 235 4.3.2.1 antecedentes ............................................................................................ 236 4.3.2.2 conduta social .......................................................................................... 241 4.3.2.3 personalidade ........................................................................................... 243 CONCLUSÃO: REPENSANDO O ARTIGO 59 DO CÓDIGO PENAL PARA A FIXAÇÃO DA PENA-BASE PRIVATIVA DE LIBERDADE ................................... 246 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 251

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INTRODUÇÃO

Uma das funções primárias do Estado é a de dirimir conflitos

intersubjetivos inerentes à vida em sociedade, já que esta é essencialmente uma

experiência compartilhada. Sendo vedado aos indivíduos e ao próprio Estado-

Administração fazer justiça com as próprias mãos (justiça privada), o Estado, em

contrapartida, assegurou a todos a proteção judiciária, concretizada no artigo 5º,

inciso XXXV, da Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder

Judiciário lesão ou ameaça a direito.”

A lesão ou ameaça a direito passível de ser regulada no campo penal, por

seu turno, tem seu âmbito limitado prima facie pelo princípio da legalidade, que

formalmente vem previsto no artigo 5º, inciso XXXIX, da Carta Política de 1988: “não

há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.”

Assim, realizada uma conduta humana que se amolde ao preceito

primário de uma norma penal incriminadora, surge para o lesado (Estado ou

particular) o direito de pleitear a tutela jurisdicional (direito de ação), desde que a

imputação deduzida em juízo venha assentada sobre uma base empírica idônea,

assegurando-se em contrapartida ao pretenso infrator o amplo direito de poder

resistir à pretensão punitiva (direito de defesa), sendo um e outro, bem como a

atividade do juiz, regulados passo a passo pelo devido processo legal (Constituição

Federal, artigo 5º, inciso LIV). Se ao final do procedimento, as provas produzidas

licitamente formarem um conjunto sólido acerca da autoria, materialidade do crime e

culpabilidade do acusado, estará o Estado (representado pelo Poder Judiciário)

autorizado, e somente então, a concretizar o seu direito punitivo (jus puniendi),

mediante a prolação de uma sentença condenatória, que há de atender o ideal de

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justiça ansiado pelas partes e pela sociedade, e cujo trânsito em julgado a reveste

de executoriedade (nulla poena sine judicio).

Nítidas, assim, as forças antagonistas que se apresentam no decorrer de

toda a relação processual penal: direito de punir do Estado de um lado, como uma

das claras manifestações do poder político e, de outro, o direito de liberdade (de ir e

vir) do pretenso infrator.

Assentados quem pode punir e executar as penas impostas, bem como o

que pode ser punido e o como punir, impende ressaltar encontrar-se esta moldura

punitiva primeiramente inserida e subordinada axiologicamente aos princípios

fundamentais consignados no Título I da Constituição Federal. Com efeito, quando a

República Federativa do Brasil adota como opção ideológica o Estado Democrático

de Direito (artigo 1º, caput) e enuncia como um de seus fundamentos a dignidade da

pessoa humana (artigo 1º, inciso III), deixa claro que o poder punitivo estatal já

nasce limitado e seu exercício está condicionado aos valores deles decorrentes,

com destaque para a preeminência do indivíduo frente ao Estado e o respeito ao seu

modo de ser. Quando se compromete a “construir uma sociedade livre, justa e

solidária” (artigo 3º, inciso I) e a “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as

desigualdades sociais” (artigo 3º, inciso III), chama para si o encargo de transformar

esta sociedade, reconhecida pelo próprio Estado como injusta e desigual,

assumindo o direito – enquanto manifestação do poder político pelo qual são

submetidas ao seu crivo as forças sociais – papel relevantíssimo neste desiderato,

mormente nas searas do direito penal e processual penal, não somente pela severa

possibilidade de inflição de pena, mas igualmente porque seletivos na sua

incidência, na medida em que exercem controle basicamente sobre as camadas

mais fragilizadas (social, econômica e culturalmente) da população.

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Mas não é só, pois o atuar estatal encontra-se igualmente jungido pelas

barreiras impostas pelos direitos fundamentais, consubstanciados em princípios

constitucionais, que como categoria de normas, longe estão de funcionar como mera

orientação de caráter formal dirigida aos Poderes, aí merecendo destaque aqueles

que falam mais de perto com a aplicação da pena.

Nem poderia ser diferente, pois se a pena tem a retribuição como

finalidade primordial, sua legitimidade somente se sustenta caso aplicada de forma

racionalmente fundamentada e na medida exata da culpabilidade pelo fato concreto

perpetrado pelo agente, daí a importância que tais noções adquirem no âmbito de

atuação do Poder Judiciário, com destaque para o momento da entrega em definitivo

da prestação jurisdicional. A sentença condenatória, como discurso que se destina a

convencer, não pode se limitar a preencher os requisitos formais, porquanto sua

validade depende primordialmente da satisfação dos requisitos retóricos, pois estes

é que irão demonstrar o grau de persuasão racional alcançada em cada hipótese.

Como um arcabouço jurídico garantístico de pouco vale quando

desacompanhado de atores jurídicos com vontade de Constituição, torna-se

imperioso que o agente público encarregado de exercer o poder punitivo – o juiz –

esteja primeiramente investido da sensibilidade humana e jurídica necessárias para,

em cada caso concreto, buscar o equilíbrio entre autoridade e liberdade, o que

pressupõe seu compromisso perene com toda a carga principiológica já referida e

decorrente do modelo de Estado adotado pela Constituição Federal, porque é ela

quem limitará e ordenará os termos da atuação judicial no manuseio das normas

infraconstitucionais.

Ainda como consectário lógico dos termos firmados em torno do pacto

social brasileiro, o processo penal – do começo ao fim – antes de mero instrumento

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de aplicação do direito penal, há de atuar como filtro de efetivação dos direitos e

garantias do indivíduo acusado, a ser tratado sempre como sujeito da história,

conforme determina o princípio matriz da dignidade da pessoa humana.

Quando uma sentença é prolatada, o magistrado, abrigado sob o manto

da lei, dá a conhecer a todos aquilo que sente. Não é, contudo, um ato de fé. Além

da fundamentação empírica que lhe é inerente, há a sentença – principalmente a

condenatória com aplicação de pena privativa de liberdade – de conter o tempero da

atividade cognitiva do seu autor, sob pena de transmudar-se o livre convencimento

em puro arbítrio, de há muito repudiado pelas sociedades ditas civilizadas.

Adentra-se, então, na seara da discricionariedade dos magistrados, cujas

decisões hão de conter, além da exposição clara e convincente do raciocínio por

eles seguido quanto às questões de fato e de direito postas a sua apreciação, o

equilíbrio de sua cognição e experiência, pois em sendo a sentença de mérito o

ápice do processo penal, constitui a materialização de um dos fins do Estado: a

pacificação social (ou para ser mais realista, a contenção da violência), através de

uma resposta justa a quem ofendeu e teve ofendido um bem jurídico essencial para

a vida em comunidade.

Em função da acentuada margem de discricionariedade conferida ao juiz

na análise das circunstâncias judiciais especificadas no artigo 59, caput, do Código

Penal, seja pelas amplas margens punitivas mínima e máxima cominadas para cada

tipo penal, seja porque lhe toca exclusivamente preencher o conteúdo de cada uma

das diretivas (algumas delas centradas na culpabilidade de autor), cinge-se o

presente trabalho, dentro do amplo espectro de individualização da pena, à fixação

da pena-base privativa de liberdade, tentando responder à seguinte indagação: até

que ponto a resposta estatal frente a um quadro constitucional de valorização do ser

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humano é justa e a partir de quando descamba para a arbitrariedade, carecendo, por

via de conseqüência, de legitimidade?

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CAPÍTULO 1 LIMITES AO EXERCÍCIO DO PODER PUNITIVO

O poder punitivo é uma das manifestações do poder político, força de que

somente é o Estado dotado para produzir regras de convivência em sociedade

(normas jurídicas), aplicá-las e fazê-las obedecidas, coativamente se necessário, por

todos os grupos sociais dele integrantes.1 O exercício do poder político é regulado

pelo direito público (cuja idéia-força consiste em alcançar o equilíbrio entre liberdade

– indivíduo - e autoridade - Estado), ramo a que pertencem tanto o Direito

Constitucional (aliás é na Constituição que o direito público está delineado), quanto o

Penal e o Processual Penal.

O sistema penal2 insere-se dentre os mecanismos de controle social

formal, os quais assentam-se sobre o tripé norma, sanção e processo.

Em decorrência da natureza da sanção que pode ser posta em ação pelo

mecanismo penal – pena privativa de liberdade, a mais agressiva das respostas

estatais – submete-se ele a rígidas e peculiares exigências em cada uma daquelas

etapas de desenvolvimento, nominadas por Franco de círculos de formalização,

complementares entre si, destinados a limitar o exercício do poder punitivo estatal e

cujos traços essenciais são:

1 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed., 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996,

p. 20-22. 2 Zaffaroni e Pierangeli conceituam o sistema penal em um sentido limitado como o “controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação.” ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 69 (grifo dos autores). O Direito Penal enquanto ciência é deôntica, na medida em que estuda a conduta humana como deve ser, não como ela é, e é a norma que dita como a conduta deve ser, buscando nos valores o ideal da conduta; já o sistema penal, o qual engloba o conjunto de órgãos encarregados de aplicar o Direito Penal, é uma ciência ôntica, porque o estuda como se apresenta na realidade, o que não significa a impossibilidade de interpenetração entre um campo do saber e o outro.

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a) com relação à norma, não é qualquer conduta desviante que autoriza a

incidência do Direito Penal, mas apenas as que o Estado, por força de lei, explicita

previamente como criminosas (princípio da legalidade formal dos delitos);

b) no tocante à sanção, como materialização da reação às condutas

incriminadas, é igualmente necessário que o Estado as preveja em lei e

anteriormente à prática do fato, dado o seu conteúdo negativo e estigmatizante

(princípio da legalidade formal das penas) e

c) finalmente, quanto ao processo, é imprescindível que se desenvolva

dentro da mais estrita legalidade, o que pressupõe a emissão de normas pelo

Estado dedicadas a regular a forma de verificação das infrações ocorridas

concretamente e de aplicação das sanções correspondentes, se for o caso.3

A maneira como cada sociedade vai manejar as etapas de formalização

do sistema penal vai depender do modelo de Estado por ela adotado, opção

nitidamente política que há de sintetizar as suas expectativas com relação à ordem

jurídica.4 Nada mais natural, portanto, que o centro do palco destas aspirações seja

ocupado normativamente pela Constituição, face a sua posição de supremacia

(qualidade do que está acima de tudo) em relação ao restante do ordenamento. É

sobre esta escolha política da sociedade brasileira e seus fundamentos que ora se

debruça.

1.1 ESTADO (CONSTITUCIONAL) DE DIREITO, DEMOCRÁTICO E SOCIAL

3 FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: anotações sistemáticas à lei 8.072/90. 4. ed. rev., atual.

e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 44-45. 4 Guerra Filho chega a afirmar, sem exagero, que “todo o restante do texto constitucional pode ser entendido como uma explicitação do conteúdo dessa fórmula política,” o que justifica o espaço destinado neste Capítulo à dissecação dos componentes do Estado (Social) e Democrático de Direito. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: RCS Editora, 2005, p. 16 (grifo do autor).

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A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de

outubro de 1988, marca juridicamente o reencontro da nação com a convivência

democrática, após mais de duas décadas de regime ditatorial, instaurado com o

golpe militar de março de 1964.

Declara ela enfaticamente e já no seu limiar – Título I, Dos Princípios

Fundamentais - que o Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito

(artigo 1º, caput). Imprescindível, pois, colher da Constituição o significado desta

expressão, porquanto resume o seu conteúdo material (enfeixa seus valores básicos

e permite a sua irradiação por todo o ordenamento jurídico).

Em suma, enquanto “manifestação de uma opção básica por

determinados valores, característicos de uma ideologia,”5 a fórmula política de uma

Constituição é a sua marca registrada.

Consagra com esta fórmula uma concepção sintética de Estado, resultado

da superação das idéias próprias do Estado Liberal e do Estado Social,6 enfatizando

o que estes modelos de Estado têm de positivo, visando a estabelecer um equilíbrio

racional entre indivíduo e Estado (com preponderância do primeiro sobre o segundo,

conforme se verá adiante).

Cumpre destacar, neste ponto, que embora o Poder Constituinte não

tenha consignado expressamente na fórmula política o vocábulo social - o que

levaria a concluir pelo acolhimento apenas de princípios próprios do Estado liberal -

nítida é a influência também do paradigma do Estado Social, como comprova o rol

de direitos sociais (Constituição Federal, Título II, Capítulo II, artigos 6º a 11),

5 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 4. ed. rev. e

ampl. São Paulo: RCS Editora, 2005, p. 17. 6 Nesse sentido, Mir Puig: “Como toda síntese, a imagem resultante do Estado supõe uma superação

de seus componentes básicos isoladamente considerados, o que permite incluir a terceira característica da fórmula constitucional: a democracia.” Función de la pena y teoria del delito en el Estado Social e Democrático de Derecho. 2. ed. rev. Barcelona: Bosch, 1982, p. 19 (tradução nossa).

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erigidos igualmente em direitos e garantias fundamentais, ao lado dos direitos

individuais e coletivos. Portanto, o modelo do Estado brasileiro é de um Estado

(Social) e Democrático de Direito.7

1.1.1 Estado de Direito

A idéia do Estado de Direito (Idade Contemporânea), isto é, um Estado

submetido ao Direito proveniente da vontade geral, manifestada pelos

representantes do povo, foi incorporada do Estado Liberal, este nascido como

reação ao Estado Absoluto e se fez acompanhar de teorias políticas cuja

preocupação central era buscar limites ao poder estatal.8

No Estado Absoluto9 o poder, enfeixado nas mãos do príncipe, não sofria

limites jurídicos,10 valendo ressaltar, pela conexão com o tema do presente trabalho,

o papel secundário por ele destinado à jurisdição: simples aplicação das normas

jurídicas de origem legislativa e dentro dos estritos limites de delegação pelo

soberano. É Bobbio quem esclarece sobre a mecânica do poder nas monarquias

absolutas:

7 Neste sentido: FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: anotações sistemáticas à lei 8.072/90. 4.

ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 48. 8 O Estado Liberal, no sentido originário do termo, traduz um Estado que se pautava pelo

reconhecimento dos direitos naturais individuais. BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1992, p. 15-16.

9 Historicamente, o Estado Absoluto surgiu no início da Idade Moderna (século XV) como produto da dissolução da sociedade medieval (esta caracterizada pela pulverização do poder político, distribuído entre os reis, a Igreja, os senhores feudais e as corporações de ofício, causa e conseqüência de uma permanente instabilidade política, econômica e social, o que gerou uma intensa necessidade de ordem e autoridade), através de um amplo processo de unificação, tanto das fontes de produção jurídica (doravante enfeixadas apenas na lei), quanto dos ordenamentos jurídicos (identificados somente no ordenamento jurídico estatal), ambos encarnados na vontade do príncipe. Ibid., p. 11-13. A Idade Moderna compreende o período histórico de transição do feudalismo para o capitalismo, que, na Europa, se estendeu da queda do Império Romano do Oriente para os turcos, em 1453, até a Revolução Francesa, em 1789. Disponível em: <http://www.conhecimentosgerais.com.br/historia-geral/idade-moderna.html>. Acesso em: 10 nov. 2005.

10 Bobbio alerta que as teorias políticas do maquiavelismo e da razão de Estado alargavam a ausência de limites ao poder do príncipe, desvinculando-o também dos limites morais e religiosos. BOBBIO, op. cit., p. 13-15.

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[o poder estatal] é absoluto porque tornou-se definitivamente o único poder capaz de produzir o direito, isto é, de produzir normas vinculatórias para os membros da sociedade sobre a qual impera, e portanto, não conhecendo outros direitos senão o seu próprio, nem podendo conhecer limites jurídicos para o próprio poder.11

O Estado Absoluto impunha, sem qualquer limitação, tanto obrigações,

quanto restrições às atividades dos súditos, o que explica ser este modelo de Estado

também denominado Estado de Polícia. Neste contexto não havia espaço para a

existência de direitos individuais contra o Estado, isto é, “o indivíduo não podia exigir

do Estado o respeito às normas regulando o exercício do poder político, mas apenas

direitos dos indivíduos nas suas recíprocas relações.”12

No Estado de Direito, por seu turno, apesar de os titulares do poder

político ainda o fazerem prevalecer sobre os indivíduos (que pagam impostos ao

Estado, por ele são julgados e devem obediência às leis produzidas), estão eles

mesmos, no seu atuar, jungidos a determinadas normas jurídicas destinadas a

limitar o seu poder.13

Fácil perceber agora o divisor de águas primordial entre o Estado

Absoluto e o Estado de Direito: naquele, apenas os indivíduos eram submetidos ao

direito; neste, o direito demarca a esfera de atuação não só dos indivíduos, mas

igualmente dos poderes públicos, de quem exerce o poder político.14 Lá, o poder

11 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. 2. ed.

Brasília: Universidade de Brasília, 1992, p. 13. 12 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996,

p. 34. Na vigência do Estado Absoluto, adverte o mesmo autor, “o direito público (vale dizer, as regras que regiam o exercício do poder político) poderia ser resumido [...] a uma norma básica: o poder deve ser acatado e é ilimitado.” Ibid., p. 35.

13 Ibid., p. 35-36. 14 “a diferença entre o Estado absoluto e o de direito não é que no primeiro o Direito dependa do

poder e no segundo o poder dependa do Direito, uma vez que também neste o Direito depende do poder (legislativo). A diferença é que no Estado de Direito os representantes do povo (expressão da vontade geral) estabelecem o Direito que traça o marco máximo dentro do qual podem mover-se os demais poderes (expressão de vontades particulares).” MIR PUIG, Santiago. Función de la pena y teoria del delito en el Estado Social e Democrático de Derecho. 2. ed. rev. Barcelona: Bosch, 1982, p. 20 (tradução nossa).

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pairava sobre a ordem jurídica (o poder criador das normas jurídicas a elas não se

sujeitava); aqui, é a ordem jurídica que se sobreleva ao poder. É o velho pêndulo da

história, oscilando entre autoridade (no caso do Estado Absoluto, o despotismo

estatal sobre os indivíduos) e liberdade (a exacerbação do indivíduo perante o

Estado, no modelo liberal).15

O Estado de Direito, cuja formulação é cunhada nos fins do século XVIII e

início do XIX, era então, no sentido liberal, “aquele em que [também] o poder estatal

encontrava-se vinculado e controlado pela ordem jurídica,”16 permitindo, por via de

conseqüência, o controle do poder político pelos seus destinatários (limite formal do

Estado de Direito), como aliás convinha a uma agora concepção filosófica

antropocêntrica, em que o indivíduo é “colocado ao nível de protagonista direto da

vida civil e política,”17 determinada pelo Iluminismo18 e impulsionada pelo surgimento

de uma nova força política e econômica: a burguesia. Esta valorização do indivíduo

traz a lume a vertente material de limitação ao poder contida no Estado de Direito,

qual seja, a obediência das leis ao reconhecimento de alguns direitos fundamentais

consagrados constitucionalmente e, assim, a princípio, invioláveis.19

15 GORDILLO, Agustin. Princípios gerais de direito público. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1977, p. 49. 16 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Função da pena no Estado Democrático de Direito. In: DOTTI, René

Ariel et al. Penas restritivas de direitos: críticas e comentários às penas alternativas – Lei 9.714, de 25.11.1998. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, parte III, p. 152.

17 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varriale et al. 12. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2004, vol. I, verbete A concepção liberal do Estado e a sua crise, p. 430.

18 Segundo Lopes, o termo “indica um movimento de idéias que tem suas origens no século XVII (ou até talvez nos séculos anteriores, nomeadamente o século XV, segundo interpretação de alguns historiadores), mas que se desenvolveu especialmente no século XVIII, denominado por isso o ‘século das luzes’. Esse movimento visou estimular a luta da razão contra a autoridade, realizando a substituição da razão da autoridade pela autoridade da razão, a luta da luz contra a época das trevas. Daí o nome de Iluminismo, tradução da palavra alemã Aufklarung, que significa aclaração, esclarecimento, iluminação.” LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Direito penal, Estado e Constituição: princípios constitucionais politicamente conformadores do direito penal. São Paulo: IBCCrim, 1997, p. 30-31.

19 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 38-39.

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Em um primeiro momento os direitos inatos à natureza humana – à época

basicamente os direitos à vida, à liberdade e à propriedade – não eram formalmente

garantidos pelo Estado, constituindo um limite externo ao poder estatal

(jusnaturalismo). Somente com a evolução do Estado Natural para o Estado Civil (o

Estado como fruto de um pacto social), com a conseqüente criação das

constituições (auge do movimento constitucionalista), é que o próprio Estado

chamou para si a obrigação de proteger aqueles direitos inatos ao ser humano.

Sinteticamente pode-se conceituar o Estado de Direito como um Estado

conformado por uma Constituição e um Estado de direitos fundamentais.

1.1.2 Estado Democrático

Estado Democrático é “aquele onde o povo, sendo o destinatário do poder

político, participa, de modo regular e baseado em sua livre convicção, do exercício

desse poder.”20 Um Estado de Direito não é necessária e automaticamente um

Estado Democrático, pois apesar de dotado de instrumentos eficientes para

controlar e limitar o poder político, não garante a participação do povo no seu

exercício.21

Bobbio, ao fazer uma retrospectiva dos ideólogos liberais, particularmente

na Inglaterra, ressalta que até o surgimento de um pequeno partido, os Niveladores,

não se apregoava a igualdade política, porque aqueles teóricos fundamentavam a

participação do poder na propriedade, o que excluía larga margem da população. Já

a principal tese política dos Niveladores (1647-1649), representantes dos interesses

dos pequenos burgueses, dos oficiais inferiores e dos soldados, expressa a pedra

de toque da teoria democrática: a de que “os direitos políticos deveriam ser 20 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996,

p. 49. 21 Ibid., p. 48-49.

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concedidos a todos os cidadãos, e não somente aos possuidores de terras.”22 É

ainda o mestre italiano que apresenta Rousseau (1712-1778) como “o teórico mais

conseqüente do Estado democrático,” visto que a sua teoria contratualista sustenta

que a renúncia coletiva dos direitos naturais em prol da formação do Estado não

acarreta a sua transferência para um terceiro (o soberano, como apregoava

Hobbes), mas sim “em favor da comunidade inteira, ou do corpo político, do qual é

manifestação suprema a vontade geral,” o que acarreta para os indivíduos a

substituição da liberdade natural (aqui com o sentido de ausência de leis) por uma

liberdade mais “plena e superior,” que é a liberdade civil (“liberdade no sentido de

submissão somente àquelas leis que cada um dá a si mesmo”).23

Partindo exatamente das diferentes noções de liberdade, Bobbio

apresenta ao final da primeira parte de sua obra esclarecedora distinção entre

Estado Liberal puro (berço do Estado de Direito) e Estado Democrático:

o liberal entende a liberdade como não-impedimento, ou seja como a faculdade de agir sem ser dificultado pelos outros, e cada um então tem liberdade tão maior quanto maior for o âmbito no qual pode mover-se sem encontrar obstáculos; o democrático, todavia, entende a liberdade como autonomia, e cada um então tem liberdade tão maior quanto mais a vontade de quem faz as leis se identificar com a vontade de quem deve obedecer a essas leis. Segundo o liberal, o Estado corresponde tanto mais ao ideal quanto mais suas ordens forem limitadas (segundo a fórmula “liberdade do Estado”); para o democrático, o Estado é tanto mais perfeito quanto mais suas ordens exprimirem a vontade geral (segundo a fórmula “liberdade no Estado”). No primeiro, o problema fundamental da liberdade coincide com a salvaguarda da liberdade natural; no segundo, com a eliminação da liberdade natural que é anárquica, e na sua transformação em liberdade civil que é obediência à vontade geral.24

Pois bem, suplantada a fase inicial do Estado de Direito, foi ele

incorporando mecanismos democráticos, a fim de assegurar a mencionada

22 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. 2. ed.

Brasília: Universidade de Brasília, 1992, p. 34-35. 23 Ibid., p. 46-47 (grifo do autor). 24 Ibid., p. 48. (grifo do autor).

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participação popular no poder, merecendo menção inicialmente a concepção de

República, modelo que se ancora basicamente na representação, vez que torna os

agentes públicos (exercentes diretos do poder) em mandatários, representantes do

povo (titular do poder) por um certo período através de eleições.25

Além do exercício indireto do poder pelo povo através de seus

representantes eleitos, próprio do paradigma republicano (Constituição Federal,

artigo 1º, caput), a Lei Fundamental brasileira previu ainda formas diretas de

participação popular, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de leis.26

Como consectário da soberania popular surge uma nova categoria de

direitos, que vão se somar aos direitos individuais: os direitos políticos, aí

compreendidos não só aqueles garantidores da participação imediata no poder –

como os de votar e ser votado, de fundar e filiar-se a partido político – como também

os imprescindíveis para a livre formação da vontade popular que vai se manifestar:

liberdade de expressão do pensamento, direito à informação e à reunião etc.27

Entretanto, para que a vertente democrática não se limite a uma mera

declaração de intenções, imprescindível ainda que todo o processo político (quem

pode decidir e de que forma) obedeça às regras do jogo, feliz expressão empregada

por Sundfeld, isto é, seja precedido de regras estáveis e refratárias às manipulações

de ocasião por determinado grupo: as normas jurídicas, especialmente as

constitucionais,28 dada a sua posição de supremacia dentro do ordenamento

jurídico.

25 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996,

p. 49-50. 26 Ibid., p. 50. A Constituição Federal, artigo 1º, parágrafo único, preceitua: “Todo o poder emana do

povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” O seu artigo 14 (caput e incisos) enumera os instrumentos de exercício direto da soberania popular.

27 Ibid., p. 51. Ver a título de exemplo os incisos IV, VIII, XIV e XVI do artigo 5º, da Constituição Federal.

28 Ibid., p. 51-52.

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1.1.3 Estado Social

O Estado Liberal era um Estado não-intervencionista, sem qualquer

preocupação na modificação das relações sociais. Contentava-se em garantir,

através do Direito e apenas formalmente, os limites indispensáveis à salvaguarda

das esferas de liberdade reconhecidas aos cidadãos, tarefa da qual se desincumbia

através de dois mecanismos: separação dos poderes e princípio da legalidade

(formal). Escapava desta concepção de Estado a obrigação de cumprir quaisquer

prestações positivas, restringindo-se a sua função a “defender a sociedade do

Estado.”29

Em contrapartida, o Estado Social surge como uma reação àquele

Estado-árbitro imparcial, àquele Estado mínimo, buscando aproximar o Estado da

sociedade através de uma intervenção ativa nas relações sociais, a fim de modificá-

las.

Esta passagem do Estado Liberal clássico para o Estado Social foi

entremeada historicamente por doutrinas autoritárias, que rompem com o pilar do

Estado de Direito, ao rejeitarem todos os direitos individuais, o que leva a uma nova

contradição interna, como pontua Gordillo: “por pretender assegurar aos indivíduos

uma situação econômica e social satisfatória os priva do gozo dos direitos da

liberdade em suas diversas manifestações.”30

29 MIR PUIG, Santiago. Función de la pena y teoria del delito en el Estado Social e Democrático de

Derecho. 2. ed. rev. Barcelona: Bosch, 1982, p. 20. No mesmo sentido, SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 53.

30 GORDILLO, Agustin. Princípios gerais de direito público. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 71. Estas respostas autoritárias às crescentes desigualdades sociais e à opressão econômica são analisadas pelo autor a partir da p. 69, citando como exemplo a “ditatura do proletariado”.

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É um Estado intervencionista por excelência, daí ser igualmente chamado

de Estado do bem-estar social (Welfare State),31 residindo o seu principal diferencial

no fato de que esta intervenção nas estruturas públicas, visando à melhoria do nível

de vida, seja reivindicada pelos cidadãos como um direito, não uma caridade do

Estado.32

De um Estado preocupado basicamente em garantir a liberdade negativa

(ausência de restrições pelo Estado), passa-se a um Estado positivamente atuante

para proporcionar “o desenvolvimento (não o mero crescimento, mas a elevação do

nível cultural e a mudança social) e a realização de justiça social (é dizer, a extinção

das injustiças na divisão do produto econômico)”33 para e perante todos os cidadãos.

Esta nova postura estatal agrega dois elementos: de um lado, faz surgir

uma terceira categoria de direitos, os direitos sociais, “ligados sobretudo à condição

dos trabalhadores: garante-se o direito ao salário mínimo, restringe-se [...] a

liberdade contratual de empregadores e empregados;” de outro, torna certo ao

indivíduo o direito de exigir do Estado determinadas prestações positivas, como “o

direito à educação, à previdência social, à saúde, ao seguro-desemprego e outros

mais.”34

Historicamente, o Estado Liberal está atrelado à liberdade pessoal,

política e econômica (tutela das liberdades burguesas), ao passo que o Estado

Social reverencia “os direitos de participação no poder político e na distribuição da

31 MIR PUIG, Santiago. Función de la pena y teoria del delito en el Estado Social e Democrático de

Derecho. 2. ed. rev. Barcelona: Bosch, 1982, p. 20-21. 32 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad.

Carmen C. Varriale et al. 12. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2004, vol. I, verbete Estado do Bem-estar, p. 416.

33 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 54 (grifo do autor).

34 Ibid., p. 54 (grifo do autor).

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riqueza social produzida,”35 como consectário da introdução na sociedade de

recentes titulares de novos direitos (classe trabalhadora). Não à toa, as normas

destinadas à defesa da população mais fraca (direitos sociais) eram vistas, nas

sociedades em que a Revolução Industrial ia se fortalecendo, como entraves

ultrapassados à livre iniciativa, oposição que persiste durante grande parte do século

XIX e começa a ser superada no século XX, notadamente nas décadas próximas às

duas Guerras Mundiais, embora a implementação dessas políticas sociais tenha se

dado em condições institucionais radicalmente diferentes, pois “enquanto nos países

nazifascistas a proteção ao trabalho é exercida por um regime totalitário, com

estruturas de tipo corporativo, nos Estados Unidos do New Deal, a realização das

políticas assistenciais se dá dentro das instituições políticas liberal-democráticas.”36

Enquanto no Estado Liberal o ordenamento jurídico partia do pressuposto

da igualdade de todos perante a lei, no Estado Social a igualdade entre as pessoas

é um objetivo, uma aspiração permanente da ordem jurídica.37

Sundfeld assinala com precisão o marco temporal inicial da assunção das

novas preocupações pelo Estado:

a crise econômica do primeiro pós-guerra levou o Estado a assumir – forçado, diga-se, pelas exigências da própria sociedade – um papel ativo, seja como agente econômico (instalando indústrias, ampliando serviços, gerando empregos, financiando atividades), seja como intermediário na disputa entre poder econômico e miséria (defendendo trabalhadores em face de patrões, consumidores em face de empresários).38

35 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad.

Carmen C. Varriale et al. 12. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2004, vol. I, verbete Estado Contemporâneo – I. Estado de Direito e Estado Social, p. 401 (grifo nosso).

36 BOBBIO, op. cit., verbete Estado do Bem-estar, p. 416-417. 37 GORDILLO, Agustin. Princípios gerais de direito público. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1977, p. 74. 38 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996,

p. 54, para em seguida apontar as Constituições de Weimar (1919) e do México (1917) como as pioneiras na incorporação destes novos objetivos: “desenvolvimento da sociedade” e “valorização dos indivíduos socialmente inferiorizados.”

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Em sua gênese (e somente nela), portanto, correto é afirmar que Estado

Liberal e Estado Social situaram-se numa relação de tese e antítese (liberdade

versus participação), mas passível de ser convertida numa síntese, graças ao

componente democracia, que em sua acepção formal impede que o Estado Social

volte a descambar em regimes autoritários, enquanto sua acepção material vincula o

Estado Liberal a assumir determinados compromissos sociais, harmonização

trabalhada com propriedade por Mir Puig:

[...] O Estado intervencionista não implica necessariamente uma concepção autoritária. O único essencial ao mesmo é a assunção de uma função de incidência ativa nas relações sociais efetivas, e esta função pode por-se ao serviço não somente de uma minoria ou de um discutível todo social, mas também do progresso efetivo de cada um dos cidadãos. Sendo assim, não resultará contraditório com este Estado social o impor-se-lhe os limites próprios do Estado de Direito, igualmente a serviço do cidadão, os quais poderão impedir que se desenvolva a tendência do Estado social a um intervencionismo autoritário, que deixaria de servir aos interesses – também “reais” – do particular. Porém a fórmula ‘Estado social e democrático de Direito’ supõe não só a tentativa de submeter a atuação do Estado social – a qual não se quer renunciar – aos limites formais do Estado de Direito, mas também sua orientação material em direção à democracia real. Se pretende, por esta via, recepcionar uma modalidade de Estado social – isto é, que tome partido efetivo na vida social – a serviço de todos os cidadãos. Enquanto social e democrático, tal Estado deverá criar condições sociais reais que favoreçam a vida do indivíduo, porém para garantir o controle pelo mesmo cidadão de tais condições deverá ser, ademais, um Estado democrático de Direito. O caráter democrático deste Estado aparece vinculado, pois, à síntese do Estado social e do de Direito [...].39

Assiste razão a Gordillo, quando sustenta que Estado de Direito e Estado

do Bem-Estar não estão em relação antitética, na medida em que este não veio para

substituir ou suprimir aquele, mas antes a noção de Estado Social se prestou para

“operar como um corretivo para a noção clássica de Estado de Direito, revitalizando-

39 MIR PUIG, Santiago Mir. Función de la pena y teoria del delito en el Estado Social e Democrático

de Derecho. 2. ed. rev. Barcelona: Bosch, 1982, p. 21-23 (grifo do autor – tradução nossa).

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a e atualizando-a,” ao edificar seus princípios peculiares sobre a base já fornecida

pelo Estado de Direito: o respeito aos direitos individuais.40

Este processo de aperfeiçoamento pode ser melhor entendido a partir da

noção de supremacia da Constituição, que a coloca no vértice superior da pirâmide

de que é composto o ordenamento jurídico, aliada à concepção de que o povo é o

único titular da soberania, o que implica afirmar que é o povo, através do Poder

Constituinte, quem cria a Constituição. Ela, portanto, não é uma criatura do Estado,

mas exatamente o contrário: a Constituição precede ao Estado, é quem o institui e,

lhe sendo superior, sujeita o Estado juridicamente organizado (Poder Legislativo,

Poder Executivo e Poder Judiciário) às suas disposições.41

Estão a partir daí assentados os alicerces que permitiram a transição do

Estado de mera legalidade (submissão dos particulares e do Poder Executivo à lei)

para o Estado da constitucionalidade (sujeição de todos, inclusive do legislador, a

uma ordem jurídica superior, consubstanciada na Constituição, “cujos limites e

princípios não poderá violar nem alterar ou desvirtuar”),42 trajetória que põe em

relevo o Poder Judiciário, porquanto, “como intérprete último do significado das

40 GORDILLO, Agustin. Princípios gerais de direito público. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1977, p. 74, pois “se o Estado se limita a contemplar impassível enquanto as diferenças sociais vão se acentuando de fato, sem tomar nenhuma ação para ajudar aos mais necessitados para progredir paralelamente aos demais, estaria contribuindo praticamente para uma verdadeira negação dos direitos que postula para os indivíduos. De nada serviria reconhecer a ‘todos’ os indivíduos um direito à propriedade ou liberdade de trabalho ou de ensinar e aprender, se as condições sócio-econômicas imperantes (miséria, enfermidade, acidentes, ignorância, velhice), excluem permanentemente alguns indivíduos de toda oportunidade de serem proprietários, trabalhar livremente ou aprender e ensinar.” Ibid, p. 70 (grifo do autor), que à p. 77 demonstra de forma irrefutável e através de exemplos vários, que as garantias individuais e sociais não se excluem, antes “se complementam e reafirmam mutuamente.”

41 Ver a respeito do processo de criação do Estado de Direito, partindo da supremacia constitucional: SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 39-41, bem como sobre os sistemas da soberania desenvolvidos por Gordillo: GORDILLO, op. cit., p. 58-64, o qual salienta constituir um dos pilares de um Estado de Direito, em sentido jurídico formal, exatamente “a submissão de toda organização estatal a um regime jurídico preestabelecido” (pela Constituição – p. 59).

42 GORDILLO, op. cit., p. 64, que retorna ao tema legalidade-constitucionalidade para demonstrar como esta evolução no conceito de Estado de Direito reforça a intangibilidade dos direitos individuais pelos poderes públicos. Ibid., p. 68-69.

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normas constitucionais e portanto da validade das normas legislativas,”43 a ele

incumbe, dentro da organização estatal, fazer os demais Poderes respeitarem a

ordem jurídica.

1.1.4 Estado Social e Democrático de Direito

Pode-se assim concluir, fazendo coro com Sundfeld e com o mestre

argentino Gordillo, que o modo jurídico de ser do Estado brasileiro atual - Estado

Social e Democrático de Direito - é resultado do enriquecimento da concepção

primitiva de Estado de Direito, então atrelada ao Estado Liberal.44

Num primeiro momento, apresenta o Estado as seguintes características:

a) superioridade da lei (porquanto a atividade estatal e a esfera de liberdade dos

indivíduos são definidas e limitadas por normas jurídicas enquanto expressão da

vontade geral dos homens, as quais condicionam os atos de sua execução, que são

os atos administrativos e as sentenças),45 b) separação dos Poderes (repartindo

entre órgãos distintos e independentes, mas que se controlem reciprocamente, o

exercício do poder político: a função de fazer as leis, aplicá-las e resolver os

conflitos decorrentes de sua aplicação) e c) garantia dos direitos individuais

(oponíveis inclusive contra o próprio Estado).

43 GORDILLO, Agustin. Princípios gerais de direito público. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1977, p. 65, tanto que ao abordar o equilíbrio teórico dos Poderes, sustenta como modelo ideal, porque embasado na Constituição, uma hierarquia relativa entre eles, assim disposta: “o Poder Executivo está subordinado ao Poder Legislativo, e o Poder Legislativo ao Poder Judiciário.” Ibid., p. 52. Idêntica relevância ao Poder Judiciário é conferida por Sundfeld, para quem “o Estado se submete à lei porque se submete à jurisdição.” SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 43.

44 SUNDFELD, op. cit., p. 36. A partir da p. 37, o autor vai paulatinamente agregando os valores componentes do Estado de Direito + Social + Democrático. Gordillo, por seu turno, alerta para uma verdade que a história em várias oportunidades já demonstrou: “assim como não há verdadeiros direitos sem condições econômicas e sociais para exercê-los adequadamente, assim tampouco haverá condições econômicas e sociais verdadeiramente justas, se não se outorgam direitos para desfrutá-las.” GORDILLO, op. cit., p. 71.

45 SUNDFELD, op. cit., p. 45.

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Em estágio posterior, associa-se ao Estado de Direito um quarto atributo:

a supremacia da Constituição (a Constituição é uma norma jurídica fundamental,

porquanto estabelece “os termos essenciais do relacionamento entre as autoridades

e entre estas e os indivíduos,”46 tanto que passam a ser nela inseridos os direitos

fundamentais individuais, além de superior ao próprio Estado que cria as leis, donde

não poder ser por ele alterada; logo, sujeita todos aos seus postulados, inclusive o

próprio legislador).

Com o incremento do componente democracia, o Estado de Direito

agrega uma nova modalidade de direitos, os direitos políticos, além de assegurar a

participação do povo no exercício do poder político, seja indiretamente, através de

representantes eleitos periodicamente, seja mediante instrumentos de manifestação

direta da soberania popular. Pode-se então asseverar que o Estado Democrático de

Direito é “a soma e o entrelaçamento de: constitucionalismo, república, participação

popular direta, separação de Poderes, legalidade e direitos (individuais e

políticos).”47

A partir da transmutação do Estado absenteísta para um modelo

econômico intervencionista, característico do Estado Social, aparecem os direitos

sociais e a obrigação de o Estado assumir determinados compromissos na busca do

desenvolvimento e da justiça social. Volta-se ao ponto de partida, porque o Estado

Social depende do Estado de Direito para atingir seus objetivos:

o oferecimento de prestações positivas aos indivíduos (serviços de educação, saúde, previdência) corresponde a um direito destes a tais prestações. Não há como falar em direitos contra o Estado senão onde exista Estado de Direito! A proteção do pobre contra o rico se faz com a atribuição de direitos àqueles em face destes. Os direitos dos trabalhadores, constitucionalmente previstos, só podem prevalecer onde haja controle de

46 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996,

p. 40. 47 Ibid., p. 53.

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constitucionalidade das leis (contra as leis que os violem), onde haja um Judiciário independente (não só em relação aos demais órgãos estatais, como em relação ao poder econômico): tudo isso é mecanismo do Estado de Direito.48

Historicamente o Estado Social e Democrático de Direito surgiu nas

sociedades européias recém saídas da Segunda Guerra Mundial, mas se firma “a

partir de uma revalorização dos clássicos direitos individuais de liberdade, que se

entende não poderem jamais ser demasiadamente sacrificados, em nome da

realização de direitos sociais.”49

Segundo Sundfeld o Estado Social e Democrático de Direito apresenta

resumidamente os seguintes componentes:

a) criado e regulado por uma Constituição; b) os agentes públicos fundamentais são eleitos e renovados periodicamente pelo povo e respondem pelo cumprimento de seus deveres; c) o poder político é exercido, em parte diretamente pelo povo, em parte por órgãos estatais independentes e harmônicos, que controlam uns aos outros; d) a lei produzida pelo Legislativo é necessariamente observada pelos demais Poderes; e) os cidadãos, sendo titulares de direitos, inclusive políticos e sociais, podem opô-los ao próprio Estado; f) o Estado tem o dever de atuar positivamente para gerar desenvolvimento e justiça social.50

O ponto nodal deste Estado é o manuseio equilibrado das várias

categorias de direitos, não exacerbando exageradamente uma em detrimento de

outra, o que demanda justiça e razoabilidade em cada caso concreto e “que pode,

pela humana falibilidade, decidir-se em alguns casos erroneamente, num ou noutro

sentido mas nem por isso configura uma antítese, direta ou indiretamente.”51

48 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996,

p. 55. (grifo do autor). 49 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 4. ed. rev. e

ampl. São Paulo: RCS Editora, 2005, p. 24. 50 SUNDFELD, op. cit., p. 56. 51 GORDILLO, Agustin. Princípios gerais de direito público. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1977, p. 78.

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De posse de tais elementos, arrisca-se a apresentar uma definição

pessoal do atual modelo de organização política idealizado pela Constituição

Federal, cuja concretização depende de um engajamento maciço dos que dele

fazem parte, com destaque para os atores jurídicos: Estado Social e Democrático de

Direito é a opção ideológica por um Estado que, mediante a submissão de todos,

poderes públicos e particulares, a uma ordem jurídica superior e imperativa, tome

partido efetivo na vida social, criando condições reais que favoreçam a vida de todos

os indivíduos na sua complexidade de pessoa, cidadão e trabalhador, mas

simultaneamente estabeleça mecanismos garantidores do efetivo controle, pelos

indivíduos, de tais condições.

1.2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Além de constitucionalizar um específico modelo de Estado, o primeiro

artigo da Constituição Federal indica nos seus incisos os cinco pilares de

sustentação deste modelo, dentre eles a dignidade da pessoa humana (inciso III) –

de cada pessoa e de todas as pessoas, mas concreta e individualmente

consideradas - colocando-a no mesmo patamar da soberania, da cidadania, dos

valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político. Deixa claro de

imediato, desta forma, que é o ser humano (e não o Estado) o protagonista de toda

a vivência social, o centro de todas as atenções.

A consagração da dignidade da pessoa humana pela primeira vez na

Constituição Federal brasileira, como um de seus marcos filosóficos, foi incorporada

do artigo 1° da Constituição da República Portuguesa52 – promulgada em 1976, dois

52 A qual conceitua Portugal como “[...] uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa

humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.” CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Disponível em: <http://www.parlamento.pt/const_leg/crp_port/indi_crp.html>. Acesso em: 11 dez. 2006.

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anos após a derrubada da ditadura de Salazar – que, por seu turno, se inspirou no

artigo 1° da Lei Fundamental alemã, de 1949, sob a rubrica Proteção da Dignidade

Humana.53 Esse dispositivo foi colocado no Estatuto constitucional alemão em razão

das atrocidades praticadas durante o Estado nacional-socialista (décadas de 30 e 40

do século passado), exatamente para exacerbar a preponderância do homem em

relação ao Estado.54

Ao assim proceder, o nosso legislador constituinte,

[...] além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.55

Como peça-chave integrante de uma ordem imperativa e superior, a

dignidade da pessoa humana permite destrinchar o sentido axiológico e os

parâmetros hermenêuticos de compreensão da Constituição, funcionando, nas

palavras de Franco, como “fio condutor que faz a amarração de todas as normas

constitucionais,”56 com destaque para aquelas consagradoras dos direitos

fundamentais, os quais, na realidade, configuram concretização daquele princípio,

que também cumpre função legitimatória quanto ao reconhecimento de direitos

fundamentais materiais não expressos na Constituição, mas contidos em normas

53 Estabelece: “1. A dignidade da pessoa humana é inviolável. Toda autoridade pública terá o dever

de respeitá-la e protegê-la. 2. Com isso, o Povo Alemão declara invioláveis e inalienáveis os direitos da pessoa humana, como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no mundo.[...].” LEI FUNDAMENTAL DE BONN. Disponível em: <http://www.alemanha.org.br/embaixadabrasilia/spr_2/willkommen/infos/grundgesetz/constituição.htm>. Acesso em: 11 dez. 2006. Com a reunificação da Alemanha Ocidental e Oriental, em 1990, a Lei Fundamental de Bonn foi adotada como a Constituição alemã.

54 MACIEL, Adhemar Ferreira. Aspectos penais na Constituição. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n. 13, jan.-mar. 1996, p. 94.

55 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 65.

56 FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: anotações sistemáticas à lei 8.072/90. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 50.

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infraconstitucionais, em tratados internacionais ou mesmo não escritos (Constituição

Federal, artigo 5º, §2º).

Porém, longe de constituir somente um mero conselho, ou ainda simples

critério hermenêutico, o princípio da dignidade humana é dotado de força

normativa57 apta a plasmar e contingenciar a consciência, a vida e a prática dos que

detêm o poder político, funcionando como “fundamento autônomo de decisões”

judiciais como “juízo concreto de dever-ser,”58 inclusive dando base aos demais

princípios penais fundamentais (que têm a sua fonte ética exatamente na dignidade

da pessoa), a ponto de se poder asseverar, por exemplo, que “uma transgressão

aos princípios da legalidade ou da culpabilidade implicará, também, em última

instância, uma lesão ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.”59

Simultaneamente fortalece a esfera de liberdade dos destinatários deste mesmo

poder, porque ligado indissoluvelmente à concretização constitucional dos direitos

fundamentais.

Lopes é igualmente veemente sobre a dignidade humana como valor

presente, e não futuro, ressaltando ainda sua importância para conferir unidade ao

extenso rol dos direitos fundamentais:

[...] os princípios fundamentais do Título I da Constituição representam a base do desenvolvimento da forma de Estado Democrático de Direito que se instituiu no Brasil a partir da vigência do texto maior. Não se pode entender o art. 5° senão consagrador de direitos e garantias individuais em face da peculiar maneira de ser do Estado brasileiro, qual seja, Democrático e de Direito. Todos os inc.s positivadores de tais garantias são decorrentes dos princípios fundamentais da natureza do Estado. Se são aplicáveis imediatamente tais princípios e garantias é porque, e somente porque, o

57 Tal assertiva já denuncia considerar-se quer os princípios, quer as regras, como categorias de

normas, porquanto ambos dizem o que deve ser, ainda que por razões diversas, assunto que é abordado no Capítulo 2 - Princípios constitucionais inerentes à aplicação da pena (privativa de liberdade).

58 SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Celso Bastos Editor-Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 16-17.

59 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1, Parte Geral. 3 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 116.

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Estado Democrático de Direito proposto no Título I já existe em seus valores fundamentais. Corolário disso é que a dignidade da pessoa não é um valor futuro, mas presente desde a vigência da Constituição. Todos têm acesso ao direito de dignidade material.60

Com efeito, se o ser humano é a medida primeira e última das coisas, o

Estado só se justifica e legitima se posto a serviço da dignidade da pessoa humana,

o que permite asseverar, destarte, que

[...] não são os direitos fundamentais que haverão de ficar à disposição do Estado (em particular das maiorias ocasionais). Antes, é o Estado que haverá de permanecer à disposição dos direitos fundamentais, sendo certo que a concretização destes substancia eloqüente meio de legitimação daquele.61

Feitas estas breves considerações iniciais, é importante ressaltar a

própria origem da noção de dignidade como valor intrínseco ao ser humano, a qual é

bem anterior ao seu reconhecimento no âmbito do direito positivo.

Autores que se dedicam com profundidade ao estudo da dignidade da

pessoa humana62 reconhecem na religião cristã a originalidade quanto à elaboração

de uma concepção de dignidade da pessoa, embora não a definisse, já que tanto no

Antigo, quanto no Novo Testamento se encontram referências no sentido de que o

ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus,63 donde o cristianismo

60 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Direito penal, Estado e Constituição: princípios constitucionais

politicamente conformadores do direito penal. São Paulo: IBCCrim, 1997, p. 189-190 (grifo do autor).

61 Clèmerson Merlin Clève, ao apresentar a 1ª edição do livro de SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 21.

62 Dentre outros: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 30; SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Celso Bastos Editor-Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 19-20 e PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1, Parte Geral. 3 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 114.

63 No livro de Gênesis, capítulo 5, versículo 1, está dito que: "No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez". Em Salmos, número 82, verso 6, verifica-se que Deus diz: "sois deuses; sois todos filhos do Altíssimo". Este último trecho é repetido pelo próprio Jesus Cristo, no Evangelho de João 10:34 e 35. BÍBLIA SAGRADA. Trad. de João Ferreira de Almeida. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1996, p. 8, p. 798 e p. 164, respectivamente.

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concluiu que o ser humano (qualquer um e não apenas os cristãos) é dotado de um

valor próprio e que lhe é inerente, o que proíbe a sua transformação em mero objeto

ou instrumento.

Partindo então da noção da Graça de Deus, obtida mediante Jesus, o

cristianismo, de modo inédito, enfatiza o princípio da igualdade, que tem por base a

dignidade da pessoa humana.64

Somente nos séculos XVII e XVIII, com a transmutação do jusnaturalismo

teológico em antropológico, responsável pela (re)descoberta do homem, é a que a

noção de dignidade da pessoa humana se desapega do seu primitivo cunho

espiritual, o que lhe permite ganhar o mundo. É com Kant (1724-1804) que esta

trajetória de racionalização e laicização amadurece e se integraliza.

Após debruçar-se sobre as possibilidades da razão e situar o homem

como sujeito ativo no ato de conhecer, Kant volta-se para o estudo da moral, com o

objetivo de provar a existência da lei moral e seu princípio supremo, que ele concluiu

ser o princípio da autonomia da vontade,65 qualidade exclusiva dos seres racionais

e, exatamente por isso, fundamento da dignidade da pessoa humana, in verbis:

[...] o Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado como um fim [...]. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e

64 Na antigüidade clássica nem todos eram dotados da mesma dignidade, porque o seu grau, via de

regra, era ditado pela posição social do indivíduo e pelo nível de reconhecimento que o mesmo desfrutava no meio social, o que dava azo a diferentes escalas de dignidade. Conforme: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 30.

65 Entendida como a faculdade de autodeterminação e de agir em conformidade com a representação de certas leis, o que é muito natural, na medida em que a liberdade aparece como ponto fundamental de toda a reflexão ética kantiana, coerente com a sua adesão à concepção liberal de Estado.

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que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).66

Exatamente em razão da natureza única da pessoa humana – “um sujeito

capaz, por si mesmo, de perceber, julgar e resolver acerca de si em relação com

tudo o que o rodeia”67 - é que ela se distingue, no reino dos fins, das coisas que têm

preço, que são aqueles passíveis de serem substituídas por outra semelhante,

segundo afirma Kant mais adiante:

[...] no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.68

Esta concepção kantiana, que renega qualquer possibilidade de ser o

homem encarado como mero instrumento para o uso arbitrário desta ou daquela

vontade (o que não impede que ele espontaneamente se coloque a serviço de

outrem), foi generalizado pelo artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos

Humanos, proclamada pela Organização das Nações Unidas em 10/12/1948: “todos

66 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. São Paulo:

Abril Cultural, 1980 (Coleção Os Pensadores – Kant II), p. 134-135. 67 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Penas alternativas. In: DOTTI, René Ariel et al. Penas restritivas de

direitos: críticas e comentários às penas alternativas – Lei 9.714, de 25.11.1998. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, parte III, p. 159.

68 KANT, op. cit., p. 140. Santos bem sintetiza o pensamento do filósofo prussiano: “Se a humanidade é um fim em si mesmo, porquanto universal, não se pode derivar da experiência, pelo que se infere que a vontade de todo ser racional é tida como vontade legisladora universal. Ou seja: o homem está sujeito à lei de que afinal é o autor. A vontade, pois não apenas está submetida à lei, mas ela é, ao mesmo tempo, legisladora em relação a esta lei moral. É o princípio da autonomia da vontade. [...] Para Kant, a prerrogativa de legislador universal é que nos torna pessoa, um ser com dignidade, como fim em si mesmo, que nos faz membros de um reino de fins, que liga todos os seres racionais sob leis comuns. [...] A título de conclusão, pode-se dizer que, para Kant, o homem, como vimos, é um fim em si mesmo e, por isso, tem valor absoluto, não podendo, de conseguinte, ser usado como instrumento para algo, e, justamente por isto tem dignidade, é pessoa.” SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Celso Bastos Editor-Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 26-27.

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os homens nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e

de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”69

Mais uma vez se clarifica o liame entre dignidade-igualdade: todos os

seres humanos são iguais em dignidade exatamente porque cada pessoa, sem

exceção, é dotada de razão e consciência, aqui entendidas abstratamente como

sinônimos da “capacidade potencial que cada ser humano tem de autodeterminar

sua conduta, não dependendo da sua efetiva realização no caso da pessoa em

concreto,” daí porque “também o absolutamente incapaz (por exemplo, o portador de

grave deficiência mental) possui exatamente a mesma dignidade que qualquer outro

ser humano física e mentalmente capaz.”70

Outrossim, se o cerne da noção de dignidade foca-se na autonomia de

cada pessoa, no seu poder de autodeterminação, fica igualmente estabelecida uma

íntima conexão entre dignidade-liberdade, a ponto de se afirmar que

a liberdade e, por conseguinte, também o reconhecimento e a garantia de direitos de liberdade (e dos direitos fundamentais de um modo geral), constituem uma das principais (senão a principal) exigências da dignidade da pessoa humana.71

Fixada a idéia de que a dignidade é inata a todo e qualquer ser humano

(que tem o direito de vê-la respeitada e protegida), em virtude tão-somente de sua

condição humana e independentemente de qualquer outra circunstância – sua

condição social ou econômica, sua opção religiosa ou política, sua vida pregressa

69DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em:

<http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 23 ago. 2006. 70 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3. ed. rev., atual. e

ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 45. 71 SARLET, op. cit., p. 45-46. Beccaria também estabelecia este liame entre liberdade-dignidade (no

sentido de proibição à coisificação do homem): “[...] deixa de existir liberdade sempre que as leis permitam que em determinadas circunstâncias um cidadão deixe de ser ‘um homem’ para vir a ser ‘uma coisa’ que se possa por a prêmio.” BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1983, p. 67.

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ilibada ou criminosa72 – passa-se à tentativa de aclarar razoavelmente o seu

conteúdo, com a finalidade precípua de repelir-lhe afrontas.

A despeito de a dignidade ser algo real e com tendência universal, trata-

se de uma “categoria axiológica aberta” (característica dos princípios jurídicos), cujo

conteúdo caminha par e passo com a pluralidade de valores vigentes em

determinada sociedade e num certo compasso temporal, donde tratar-se de “um

conceito em permanente construção e desenvolvimento.”73

Talvez por isto seja mais fácil identificar as situações em que a dignidade

é violentada, do que alcançar-lhe uma definição genérica e abstrata, pois com

certeza o reverso da noção de dignidade se fará presente sempre que o indivíduo for

desconsiderado como sujeito de direitos, for tratado como uma coisa, ou em outras

palavras,

[...] onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados.74

Assim, posto que a existência da dignidade independa de seu prévio

reconhecimento pelo direito – uma vez que a dignidade constitui um conceito a

priori, um dado antecedente tal como a própria pessoa humana75 - inegavelmente o

72 “[...] em princípio, todos – mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade, no sentido de

serem reconhecidos como pessoas – ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmos.” SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 44.

73 Ibid., p. 41. O autor retorna mais adiante a esta questão da contextualização histórico-cultural da dignidade da pessoa humana, concluindo que em razão da diversidade de padrões sobre o próprio significado do seu contrário (indignidade), torna-se inevitável uma certa disparidade espacial quando se for examinar concretamente se determinada conduta ofende ou não a dignidade. Ibid., p. 55-56.

74 Ibid., p. 59. 75 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1, Parte Geral. 3 ed. rev., atual. e ampl.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 115.

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seu conteúdo e os seus desdobramentos estarão melhor resguardados na exata

medida em que o legislador souber traduzir e derramar para o ordenamento jurídico

aqueles valores dantes citados76 (e o juiz souber interpretá-los e atualizá-los).

De qualquer maneira, impende desde já registrar que a dignidade da

pessoa humana funciona como “limite mínimo vital à intervenção jurídica,”77 isto é,

somente se pode exigir do indivíduo que ceda ao todo até enquanto não for atingida

a sua plenitude enquanto homem, o que relega para plano secundário as teorias

preventivas da pena, pois o mínimo que se espera e se exige de um Estado

Democrático de Direito, fundado na dignidade da pessoa humana, é que os lugares

destinados ao cumprimento da pena privativa de liberdade não tornem seus

destinatários piores do que são “e que ofereçam condições mínimas para que os

condenados escolham livremente entre continuar sendo diferentes ou alcançarem a

ressocialização possível” 78 (finalidade preventivo-especial).

Desse modo, para que a idéia de dignidade não se perca como mero

conceito honorífico, seu conteúdo há de ser determinado “no contexto da situação

concreta da conduta estatal e do comportamento de cada pessoa humana,”79 o que

já deixa assente a co-responsabilidade do poder público-comunidade neste

desiderato.

Com efeito, a noção de dignidade da pessoa humana no âmbito de um

Estado Democrático de Direito (como se autoproclama a República Federativa do

Brasil) traz consigo uma feição material, constituída “no pleno acesso às condições

76 A história da penologia é exemplo expressivo de como o significado de dignidade humana varia no

tempo e no espaço. 77 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1, Parte Geral. 3 ed. rev., atual. e ampl.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 116. 78 BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 164 (grifo do autor). As teorias sobre a pena são objeto de análise no Capítulo 3.

79 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 47.

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necessárias para promoção do sentimento pessoal de satisfação,” não se

contentando jamais com o seu aspecto meramente formal, como se fosse possível

ao “absoluto miserável, abandonado pelo Estado, a habitar sob viadutos, alimentar-

se de restos, vestir-se de trapos, ainda assim ter considerada sua dignidade no

aspecto formal”, como lucidamente denuncia Lopes.80 Cabe ao Estado brasileiro,

portanto, concretizar paulatinamente os objetivos fundamentais traçados pelo artigo

3º da Constituição Federal (comprometimento com a democracia material, que

passa necessariamente pela inclusão social), sempre tomando como ponto de

partida e de chegada a dignidade da pessoa humana, vez que esta foi erigida como

valor fundamental da opção ideológica do Estado brasileiro.81

Por conseguinte, a dignidade da pessoa humana funciona ao mesmo

tempo como limite e tarefa dos poderes do Estado: como limite, porque se trata de

algo (no caso, a autonomia da vontade) que pertence a cada um de forma indelével,

não podendo, portanto, ser transferido para outrem; a título de tarefa, porque ela

exige que o Estado não somente preserve a dignidade existente, mas também que a

promova. Como limite, aflora a dimensão autonômica da dignidade (cada ser

humano tem liberdade para decidir sobre as questões fundamentais acerca da

própria existência), ao passo que como tarefa vem à tona a dimensão protetiva (ou

assistencial), atinente à obrigação do resguardo da dignidade pelo Estado e

comunidade em geral (através da ordem jurídica), para fazê-la respeitada

primordialmente quando fragilizada ou ausente a capacidade de autodeterminação.82

80 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Direito penal, Estado e Constituição: princípios constitucionais

politicamente conformadores do direito penal. São Paulo: IBCCrim, 1997, p. 189 (grifo do autor). Esta, frise-se, é a situação vivenciada por maioria significativa da população brasileira, com destaque para o contingente carcerário.

81 Estes objetivos fundamentais, porque direcionados à efetivação da democracia econômica, social e cultural, têm por finalidade colocar em prática a dignidade da pessoa humana.

82 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 47-50.

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Esta dúplice dimensão da dignidade representa um enriquecimento da

doutrina kantiana, centrada exclusivamente na autonomia da vontade e

racionalidade, desenvolvimento este, frise-se, decorrente dos novos componentes

agregados à concepção liberal de Estado.

Assentadas estas premissas sobre o âmbito mínimo de incidência da

dignidade da pessoa humana, cuja operacionalidade plena somente será passível

de ser alcançada no caso concreto, adota-se a definição proposta por Sarlet pela

sua perspectiva positiva (delimita o que não pode deixar de ser considerado como

dignidade, em vez de abraçar uma significação que parta de suas violações, o que

só enfraquece a busca de um conteúdo mínimo para a dignidade), que consegue

aliar a dúplice dimensão deste princípio fundamental e coloca em relevo a simbiose

entre dignidade e direitos fundamentais:

[...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.83

Pois bem, constituindo a dignidade da pessoa humana um dos princípios

fundamentais do Estado Democrático de Direito, somente se pode falar de um direito

penal harmonioso com os valores inerentes a essa fórmula política caso se paute

pelo respeito incondicional à pessoa, “resguardando sua vida, sua honra, sua

83 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3. ed. rev., atual. e

ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 59-60 (grifo do autor). Reconhece, que apesar de se tratar de um conceito aberto, procurou impingir-lhe um mínimo de objetividade exatamente para atender a um certo grau de segurança e estabilidade jurídica. Ibid., p. 57.

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liberdade, seu direito de consciência e opinião.”84 A preservação pelo Estado do

direito à liberdade de consciência veda-lhe, por exemplo, adotar como parâmetro

negativo do grau de reprovabilidade da conduta do agente do delito qualquer

circunstância relativa ao seu modo de ser, hipótese em que se enquadram três dos

critérios constantes no artigo 59, caput, do Código Penal: antecedentes, conduta

social e personalidade do agente.

A posição de maior relevância desempenhada pelo direito penal na seara

dos direitos fundamentais deriva da sua missão mais próxima, conforme ensina

Shecaira:

É que a tarefa imediata do direito penal – proteção de bens jurídicos – só deverá aflorar quando a proteção de outros ramos do direito revelar-se insuficiente [princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade] e se a lesão ou a exposição a perigo do bem jurídico tutelado apresentar certa gravidade [princípio da fragmentariedade85]. O respeito devido pela pessoa do agente do delito não se realiza enquanto não se protegerem e garantirem os seus direitos, que são parte integrante e substancial da sua personalidade. A positivação do direito penal [e de igual forma, a sua aplicação] deve ter como parâmetro fundamental, pois, a condição humana e como referência externa o conceito de Estado Democrático de Direito.86

A preocupação com o respeito e a valorização do homem no âmbito penal

encontra ressonância concreta em vários direitos fundamentais, merecendo

destaque no momento, por guardarem um vínculo mais estreito com a questão da

pena, o inciso III do artigo 5º, da Constituição Federal – “ninguém será submetido à

84 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Penas alternativas. In: DOTTI, René Ariel et al. Penas restritivas de

direitos: críticas e comentários às penas alternativas – Lei 9.714, de 25.11.1998. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, parte III, p. 159.

85 O princípio da fragmentariedade, consectário do da intervenção mínima, ao realizar uma tutela seletiva do bem jurídico, faz com que o direito penal “continue a ser um arquipélago de pequenas ilhas no grande mar do penalmente indiferente.” PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1, Parte Geral. 3 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 120.

86 SHECAIRA, op. cit., p. 159. Gomes partilha deste entendimento, ao assinalar que o Estado Democrático de Direito “tem na dignidade humana o seu valor-síntese e na justiça o seu valor-meta”. GOMES, Luiz Flávio. Penas e medidas alternativas à prisão. 1. ed., 2 tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999 (Coleção temas atuais de direito criminal, v. 1), p. 13.

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tortura nem a tratamento desumano ou degradante”87 – complementado pelo inciso

XLIX – “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.”

Ademais, a preocupação do legislador constituinte em vedar

expressamente determinadas modalidades de penas flagrantemente violadoras da

dignidade da pessoa humana (as chamadas penas proibidas, cujo rol – meramente

exemplificativo – consta do artigo 5º, inciso XLVII) chancela o seu comprometimento

com este valor fundamental e autoriza o intérprete a dele lançar mão para negar

aplicação de uma determinada norma ao caso concreto, sempre que ela se revelar

incompatível com as exigências decorrentes do respeito absoluto à dignidade de

qualquer ser humano.

Em suma, a pena, em si mesma, na sua aplicação e execução não pode

ofender o princípio do respeito à dignidade humana, pois é nele que repousam “os

valores constitucionais que compõem o arcabouço axiológico destinado a embasar a

interpretação de todo o ordenamento jurídico, inclusive servindo de orientação para

as demais normas legislativas”, na medida em que é o homem, “em última análise, o

verdadeiro titular e destinatário de todas as manifestações do poder.”88

1.3 COMPROMETIMENTO COM A DEMOCRACIA MATERIAL NO EXERCÍCIO DO

PODER PUNITIVO

Bobbio apresenta a seguinte distinção entre democracia formal e

democracia material (ou substancial):

87 “Fundamentalmente converter-se-á em degradante a pena privativa de liberdade executada em

condições que impeçam a auto-reflexão e o recolhimento em um mínimo de intimidade. A superpopulação dos estabelecimentos penais, que caracteriza nosso tempo, priva, por geral, de legitimidade constitucional a pena privativa de liberdade.” LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Direito penal, Estado e Constituição: princípios constitucionais politicamente conformadores do direito penal. São Paulo: IBCCrim, 1997, p. 197.

88 ROCHA, Luiz Ximenes Fernando. Direitos fundamentais na Constituição de 1988. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 87, v. 758, dez. 1998, p. 25.

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[...] Chama-se formal [...] porque é caracterizada pelos chamados “comportamentos universais” [...], mediante o emprego dos quais podem ser tomadas decisões de conteúdo diverso [...]. Chama-se substancial [...] porque faz referência prevalentemente a certos conteúdos inspirados em ideais característicos da tradição do pensamento democrático, com relevo para o igualitarismo. Segundo uma velha fórmula que considera a Democracia como Governo do povo para o povo, a democracia formal é mais um Governo do povo; a substancial é mais um Governo para o povo. [...] é necessário reconhecer que nas duas expressões “Democracia formal” e “Democracia substancial”, o termo Democracia tem dois significados nitidamente distintos. A primeira indica um certo número de meios que são precisamente as regras de comportamento acima descritas independentemente da consideração dos fins. A segunda indica um certo conjunto de fins, entre os quais sobressai o fim da igualdade jurídica, social e econômica, independentemente dos meios adotados para os alcançar. [...] a Democracia perfeita – que até agora não foi realizada em nenhuma parte do mundo, sendo utópica, portanto – deveria ser simultaneamente formal e substancial.89

O comprometimento da República Federativa do Brasil com a democracia

material resta nítido pelos objetivos fundamentais a serem alcançados e que vêm

traçados no artigo 3º, da Constituição Federal: construção de uma sociedade livre,

justa e solidária, garantia do desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e da

marginalização, redução das desigualdades sociais e promoção do bem de todos.

Nem poderia ser diferente, porquanto o modelo Estado Democrático de

Direito, enquanto superação enriquecida das concepções do Estado Liberal e do

Estado Social, pressupõe, para a sua legitimação, a suplantação da mera

democracia formal (concepção de democracia vinculada à vontade da maioria, em

franca opressão à minoria) rumo à democracia material, na qual necessariamente os

direitos fundamentais devem ser respeitados, efetivados e garantidos (a todos os

indivíduos). Shecaira é igualmente enfático quanto ao compromisso do Estado

brasileiro com a democracia material, decorrente exatamente dos componentes

Estado de Direito + Estado Democrático:

89 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad.

Carmen C. Varriale et al. 12. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2004, vol. I, verbete Democracia, p. 328-329.

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[...] o Estado Democrático de Direito orienta-se para uma democracia real, com a consolidação de bens materiais a todos os cidadãos. Assim, não bastam a soberania popular, o sufrágio universal, enfim, a democracia participativa. Requer-se, fundamentalmente, a redução das desigualdades. [...] há de se entender a tentativa de submeter a atuação do Estado Democrático – fator a que não se deve renunciar – aos limites legais e formais do Estado de Direito, com vista a uma democracia real. 90

Vê-se, assim, que os direitos fundamentais ou vitais, aí compreendidas

tanto as obrigações positivas por parte do Estado no âmbito social – direitos sociais -

quanto as limitações negativas da atuação estatal, privilegiando a liberdade dos

indivíduos – direitos de liberdade - são os alicerces da existência do Estado

Democrático de Direito e a base da democracia material, demarcando, nos dizeres

de Ferrajoli, “o que se deve e o que não se deve decidir” (ainda que por maioria ou

mesmo por unanimidade), ao passo que a democracia formal centra suas

preocupações em “quem pode e sobre como se deve decidir.”91 É com base nesta

distinção que o jurista italiano propõe uma redefinição do que seja democracia:

Chamarei democracia substancial ou social o “Estado de direito” dotado de efetivas garantias, sejam liberais ou sociais; e democracia formal ou política o “Estado político representativo”, isto é baseado no princípio da maioria como fonte de legalidade. Substancial, relativamente àquelas formais da democracia política, podem ser ainda consideradas as normas secundárias que as enunciam, as quais, diferentemente das normas sobre “quem” e sobre “como” se deve decidir, que referem-se às fontes e às formas de produção de normas primárias, referem-se a “o que” se deve e não se deve decidir, e por isso aos seus conteúdos substanciais. E sociais relativamente àquelas políticas em matéria de representação, podem ser consideradas as suas funções: enquanto o Estado representativo consente que a soberania resida no povo, e que portanto o seu exercício seja legítimo enquanto represente a vontade da maioria, o Estado de direito requer que as instituições políticas e jurídicas sejam instrumentos voltados à satisfação dos interesses primários de todos, e sejam, outrossim, legítimas enquanto tutelam e realizam tais interesses. [...] a democracia substancial incorpora valores mais importantes, e de tal maneira prejudiciais à formal. Nenhuma maioria, se tem dito, pode decidir a condenação de um inocente ou a privação dos direitos fundamentais de um sujeito ou de um grupo minoritário; e nem mesmo pode não decidir pelas medidas necessárias para que a um cidadão sejam asseguradas a subsistência e a sobrevivência. O

90 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Penas alternativas. In: DOTTI, René Ariel et al. Penas restritivas de

direitos: críticas e comentários às penas alternativas – Lei 9.714, de 25.11.1998. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, parte III, p. 152-153.

91 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 688-695.

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princípio da democracia política, relativo a quem decide, é, em suma, subordinado aos princípios da democracia social relativos ao que não é lícito decidir e ao que não é lícito não decidir.92

A força demarcatória dos direitos fundamentais quanto aos limites da

atividade estatal encontra justificação histórica na concepção contratualista de Locke

(1632-1704), segundo o qual os homens nascem livres, iguais e independentes,

sendo governados pela razão. O estado de natureza,93 que é aquele existente antes

do estabelecimento de qualquer governo, já dotava os homens de direitos

inalienáveis como a liberdade, a vida e a propriedade (denominados por Locke como

liberdade natural), só que colocava “a execução da lei da natureza nas mãos de

todos os homens, mediante a qual qualquer um tem o direito de castigar os

transgressores dessa lei em tal grau que lhe impeça a violação,”94 de forma a

preservar toda a humanidade.

O principal inconveniente desta forma de organização era a possível

inclinação de beneficiar-se a si próprio ou a seus amigos na execução da lei da

natureza, o que poria em risco o gozo da propriedade e a conservação da liberdade

e da igualdade. Fazia-se então necessário retirar “todo julgamento privado de

qualquer cidadão particular”, transferindo-o a um membro da comunidade, que

92 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 694 (grifo do autor). 93 “Para bem compreender o poder político e derivá-lo de sua origem, devemos considerar em que

estado todos os homens se acham naturalmente, sendo este um estado de perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem. Estado também de igualdade, no qual é recíproco qualquer poder e jurisdição, ninguém tendo mais do que qualquer outro [...].” LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo: ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: IBRASA – Instituição Brasileira de Difusão Cultural S.A., 1963 (Clássicos da Democracia, n. 11), p. 5.

94 Ibid., p. 7. O estado de natureza para Locke não se confundia com o estado de guerra: “quando os homens vivem juntos conforme a razão, sem um superior comum na Terra que possua autoridade para julgar entre eles, verifica-se propriamente o estado de natureza. Todavia, a força, ou um desígnio declarado de força, contra a pessoa de outrem, quando não existe qualquer superior comum sobre a Terra para quem apelar, constitui o estado de guerra”, como se dá quando alguém tenta colocar outrem sob seu poder absoluto, arrebatando-lhe a liberdade natural. Ibid., p. 14-15. Já para Hobbes estado de natureza e estado de guerra eram concepções idênticas.

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mediante regras fixas preestabelecidas igualmente para todos, passasse a ter

autoridade para decidir “todas as diferenças que surjam entre quaisquer membros

com respeito a qualquer assunto de direito, e castiga as infrações cometidas contra

a sociedade com as penalidades estabelecidas pela lei.”95 É exatamente a

submissão consentida da maioria de homens livres a uma lei estabelecida (como

padrão do justo e do injusto) e judicatura (um juiz na Terra para quem apelar, que é

o legislativo ou os magistrados por ele nomeados) que caracteriza uma sociedade

política ou civil, constituída, frise-se, para melhor garantir a fruição das liberdades já

existentes no estado de natureza.

Portanto, para o teórico inglês o pacto gerador da sociedade política é um

acordo celebrado não entre governantes e governados, mas sim entre homens

livres, cuja existência se justifica para preservar, tanto quanto possível, a liberdade

natural (os homens não renunciam aos seus próprios direitos naturais, abrindo mão

apenas de executar diretamente a lei da natureza), o que evidencia de plano o

surgimento de um governo necessariamente limitado em seus poderes e baseado

no consentimento da maioria (que passa a ser considerado como concordância de

todos, pois a unanimidade para Locke era praticamente impossível),96 conforme

assenta nesta passagem:

O poder absoluto arbitrário ou o governo sem leis fixas estabelecidas não se podem harmonizar com os fins da sociedade e do governo pelo qual os homens abandonassem a liberdade do estado de natureza para sob ele viverem, se não fosse para preservar-lhes a vida, a liberdade e a propriedade, e para garantir-lhes, por meio de regras estabelecidas de direito e de propriedade, a paz e a tranqüilidade. Não é possível supor que pretendessem, se assim pudessem fazê-lo, conceder a qualquer um ou a

95 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo: ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e

objetivo do governo civil. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: IBRASA – Instituição Brasileira de Difusão Cultural S.A., 1963 (Clássicos da Democracia, n. 11), p. 54. Logo, “o objetivo da sociedade civil consiste em evitar e remediar os inconvenientes do estado de natureza que resultam necessariamente de poder cada homem ser juiz em seu próprio caso.” Ibid., p. 55, finalidade reiterada ao abordar os fins da sociedade política e do governo. Ibid., p. 77.

96 Ibid., p. 60-61.

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mais de um poder arbitrário sobre as pessoas e as propriedades, para que pusessem nas mãos do magistrado uma força destinada a executar arbitrariamente a vontade dele. Fazê-lo importaria em colocar-se em condição pior à do estado de natureza, no qual tinham a liberdade de defender o próprio direito contra os malefícios de terceiros e se encontravam em termos iguais de força para sustentá-lo, fosse o mesmo invadido por um só homem ou por muitos em combinação. [...] Todo o poder que o governo tem, destinando-se tão-só ao bem da sociedade, da mesma forma que não deve ser arbitrário ou caprichoso, também deve ser exercido mediante leis estabelecidas e promulgadas; para que não só os homens possam saber qual o seu dever, achando-se garantidos e seguros dentro dos limites das leis, como também para que os governantes, mantidos dentro de limites, não fiquem tentados pelo poder que têm nas mãos a empregá-lo para fins tais e mediante medidas tais de que os homens não tivessem conhecimento nem aprovassem de boa vontade.97

Estes direitos naturais (ou direitos humanos), quando agasalhados pelo

direito positivo, recebem o nome de direitos fundamentais, os quais, exatamente

porque não foram alienados pelos homens na passagem do estado de natureza para

o estado político, não podem ser pelo Estado violados.

Sendo os direitos de liberdade e os sociais elementos limitadores do

poder do Estado (na medida em que estabelecem o que pode ser decidido pelo

Poder Legislativo e o que deve ser garantido pelo Poder Judiciário), é exatamente o

grau de garantia real a eles conferido pelo Estado que determinará o grau da

legitimidade e qualidade de uma democracia.98

Ora, numa sociedade tão injusta e desigual quanto a brasileira (realidade

reconhecida pela própria Constituição Federal, em seu artigo 3º), o caminho para a

concretização de uma democracia material passa, necessariamente, pela inclusão

social, criando mecanismos que possibilitem aos membros das classes sociais mais

desfavorecidas disputar as mesmas possibilidades dos demais, exigência que há de

ser incorporada também pelo discurso jurídico, sob pena de perda de legitimidade

97 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo: ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e

objetivo do governo civil. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: IBRASA – Instituição Brasileira de Difusão Cultural S.A., 1963 (Clássicos da Democracia, n. 11), p. 86-87.

98 ROSA, Alexandre Morais da. O que é Garantismo Jurídico?. Florianópolis: Habitus, 2003 (Coleção Para Entender o Direito, 3º vol.), p. 35.

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da ordem jurídica, o que de antemão já afasta qualquer possibilidade de um discurso

jurídico neutro.

A incompatibilidade da neutralidade do discurso jurídico (e também da

atividade jurisdicional) frente aos fins sociais colimados pelo Estado brasileiro resta

incontestável na medida em que

[...] Um ordenamento jurídico que se apóia num discurso democrático como elemento legitimador necessita da concretização de seus preceitos democráticos para manutenção do próprio sistema e para a realização dos fins a que se propõe. Portanto, percebe-se que a existência do “ser” jurídico democrático não passa pela vigência (democracia formal), mas parte antes de tudo por sua eficácia (democracia real), como elemento de existência. Sendo assim, não existe e nem poderia existir uma ordem jurídica neutra, porque na medida em que o Estado produz normas fundado numa democracia formal com aspiração de se tornar real, compreende-se que tal sistema é teleologicamente comprometido com tais fins. A isenção jurídica é um conceito estranho à ordem jurídica democrática, que somente poderá existir nos ordenamentos tipicamente liberais. Porém, ciente de que o sistema jurídico brasileiro é um sistema que prima por fins sociais (CF, art. 3º), torna-se paradoxo afirmar a neutralidade da atividade estatal. Se houve isenção jurídica no constitucionalismo isto ocorreu por ocasião da convocação da Assembléia Nacional Constituinte. A partir de sua reunião, discussão, votação e promulgação da vigente Constituição Federal, o Estado deixou de ser neutro para ser politicamente comprometido com os fins. Conseqüentemente, a atividade jurisdicional também é politicamente comprometida, uma vez que manifesta a soberania estatal – criada pelo poder social – com vistas à realização da justiça social.99

Trazendo esta discussão para o âmbito do processo penal, mais

especificamente para o da sentença condenatória com aplicação da pena privativa

da liberdade, não pode o juiz ficar alheio ao fato de atuar o seu poder político no seio

de uma estrutura social marcadamente excludente – porque esta é uma realidade

reconhecida na própria Constituição – em que larga margem dos réus não tem

acesso a uma existência minimamente digna.

Está então formado o quadro subjacente a autorizar o magistrado a lançar

mão no processo de dosimetria penal daquilo que Zaffaroni e Pierangeli denominam 99 PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. A Jurisdição como elemento de inclusão social: revitalizando as

regras do jogo democrático. Barueri: Manole, 2002, p. 102-103.

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de co-culpabilidade social, responsável pela diminuição do poder de

autodeterminação daqueles indivíduos que não foram brindados com as mesmas

oportunidades sociais que outros, donde não ser possível “atribuir estas causas

sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de

culpabilidade.”100

Assim, ao analisar as circunstâncias judiciais enumeradas no artigo 59,

caput, do Código Penal e dependendo da espécie de crime, há o juiz de ter em

mente este comprometimento parcial da capacidade de autodeterminação do agente

condicionado por causas sociais. Exemplo: ao sopesar os motivos de um crime

contra o patrimônio, a co-culpabilidade incide para valorar menos negativamente um

indivíduo que furta ou mesmo rouba para assegurar as suas necessidades básicas

ou de sua família, ao passo que um jovem de classe média que subtrai (sem ou com

violência) um toca CDs de um automóvel para comprar substância entorpecente a

fim de curtir um barato com os amigos merece a este título uma reprovabilidade

maior. O instrumental legislativo infraconstitucional ainda oferece ao juiz outra

possibilidade de manejar criticamente a co-culpabilidade, agora na segunda fase de

individualização judicial da pena, quando coloca a mercê do julgador a possibilidade

de atenuar a pena em decorrência do reconhecimento de “circunstância relevante,

anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei,” que

configuram as atenuantes inominadas autorizadas pelo artigo 66 do Código Penal.

1.4 DIREITOS FUNDAMENTAIS

100 ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte

geral. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 580.

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É também na Constituição (ordem jurídica imperativa, e não apenas uma

declaração programática)101 que se vêem reconhecidos certos direitos, sobretudo os

de liberdade e igualdade, titularizados pelos indivíduos independentemente de

outorga do Estado e oponíveis contra este: os direitos fundamentais,102 surgidos em

decorrência do reconhecimento do valor do homem enquanto homem e que

constituem “verdadeira esfera de ação dos indivíduos que delimita o poder

estatal.”103

Esta passagem dos direitos do plano jusnaturalista (limitação externa ao

poder) para o plano do direito positivo (limitação interna ao poder) coincide

historicamente com a formação dos modernos Estados constitucionais de Direito:

[...] com a formação dos modernos Estados constitucionais de Direito foram incorporados pelo Direito positivo os conteúdos ou valores de justiça elaborados pelo jusnaturalismo racionalista e ilustrado: o valor da pessoa humana, a igualdade, os Direitos civis e políticos, bem como as garantias processuais de liberdade e certeza. Todos esses princípios ou valores, afirmados na forma de Direito naturais, foram consagrados nas constituições modernas como Direitos fundamentais que contêm limitações ou imperativos negativos, ou também positivos, como aqueles expressados pelos Direitos sociais.104

101 GORDILLO, Agustin. Princípios gerais de direito público. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1977, p. 66, em razão de ser “obrigatoriamente aplicável em todo momento, a toda circunstância e por todo tribunal do país”, p. 95.

102 Os direitos fundamentais nada mais são do que os direitos humanos positivados. Assim como a dignidade da pessoa humana, os direitos humanos não são criação do Estado, mas conceitos a priori, exigências universais inerentes à condição humana. O rol dos direitos fundamentais foi-se ampliando no decorrer da história de acordo com a própria evolução do Estado: aparecem, por primeiro, os direitos individuais contra o superpoder do Estado Absoluto (direitos da liberdade, que diziam respeito aos direitos civis e políticos do indivíduo); a partir da Revolução Industrial (século XVIII) agregam-se os direitos sociais, culturais e econômicos, além dos chamados direitos coletivos, introduzidos nas diversas formas de Estado Social, os quais demandam para a sua concretização uma hipertrofia do poder estatal; já no final do século XX surgem direitos destinados a preservar o gênero humano como um todo (direito ao meio-ambiente sadio, à paz, ao desenvolvimento etc). A respeito deste breve histórico dos direitos fundamentais: ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. Direitos fundamentais na Constituição de 88. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 87, v. 758, dez. 1998, p. 23-33.

103 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1, Parte Geral. 3 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 115.

104 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 78 (grifo do autor).

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Já no Preâmbulo, a Constituição Federal deixou expressado o seu

compromisso ideológico e doutrinário com os direitos fundamentais como

sustentáculo essencial do Estado Democrático de Direito, ao proclamar que este

modelo de Estado se destina "a assegurar o exercício dos direitos sociais e

individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e

a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem

preconceitos [...]."

Seguramente pode-se afirmar que sequer há Estado Democrático de

Direito sem direitos fundamentais, assim como não existem direitos fundamentais

sem democracia, em que sejam assegurados não só os direitos civis e políticos

guiados pelo princípio básico da liberdade, mas também os chamados direitos

sociais, fundados no postulado da igualdade, sem os quais a dignidade da pessoa

humana não passaria de mera retórica (no sentido vulgar do termo).

A Constituição de 1988 “possivelmente é de todos os estatutos políticos

do mundo o mais detalhista em matéria de direitos fundamentais,”105 o que se

explica parcialmente pelo fato de a sociedade brasileira, à época de sua

promulgação, ter recém saído de mais de vinte anos de ditadura. Só o seu artigo 5º

(que não esgota o rol dos direitos fundamentais, tanto que, exemplificativamente, os

princípios da publicidade dos julgamentos e da motivação das decisões judiciais são

tratados dentro da organização do Poder Judiciário, artigo 93, inciso IX), ao

contemplar os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, se desdobra em quase

oitenta incisos, grande parte deles dedicados à esfera criminal.

Esta ênfase do estatuto jurídico-político brasileiro nos direitos

fundamentais obriga duplamente o Estado: por um lado, vedam-lhe práticas a eles

105 MACIEL, Adhemar Ferreira. Aspectos penais na Constituição. Revista Brasileira de Ciências

Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n. 13, jan.-mar. 1996, p. 94.

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lesivas; de outro, exige-lhe criar condições para que sejam acatados, “inclusive com

a eventual remoção de obstáculos à sua total realização.”106

Como o tema versado na presente dissertação procura trazer argumentos

racionais, partindo da própria fórmula política adotada pelo Estado brasileiro, para

limitar o poder punitivo in concreto do Estado com relação a um dos direitos

fundamentais - o direito individual à liberdade107 – revela-se imperioso destacar os

freios a que estão sujeitos os agentes do Estado encarregados de aplicar o

ordenamento penal, em suas distintas fases. Um destes freios é exatamente a

defesa intransigente dos direitos individuais, pois sendo oponíveis inclusive contra o

próprio Estado, constituem um espectro de proteção do indivíduo mais fragilizado

(que no curso do processo penal, com destaque para o momento de aplicação da

pena privativa de liberdade, é inegavelmente o réu) contra a irracionalidade do

poder.

Sundfeld, ao abordar a garantia dos direitos individuais como um dos

alicerces do Estado de Direito, esclarece:

Sendo de origem constitucional, tais direitos não poderão ser suprimidos pelo Estado, nem mesmo por via legislativa. Portanto, ainda que o interesse público prevaleça sobre o interesse particular, isso nunca poderá se dar em

106 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1, Parte Geral. 3 ed. rev., atual. e ampl.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 115. 107 Sundfeld anota que na Antigüidade (período que se estendeu desde a invenção da escrita - cerca

de 4000 a 3500 a.C. - até à queda do Império Romano do Ocidente - 476 d.C. - e início da Idade Média - século V) era desconhecida esta concepção individualista de liberdade – liberdade de cada um como um direito oponível à autoridade – porquanto o homem não se julgava capaz de direitos frente à cidade (unidade política para os antigos) e aos deuses. Lhe eram estranhos quaisquer direitos individuais, tanto que os tribunais apenas julgavam demandas envolvendo cidadãos entre si, inexistindo mecanismos para questionar judicialmente o próprio Estado. SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 30-32. A onipotência do Estado à época é dissecada com profundidade por Fustel de Coulanges, que demonstra a simbiose entre Estado e religião, poderes co-responsáveis pela submissão do indivíduo em todos os aspectos de sua vida (pública e privada): “os antigos não conheciam, pois, nem liberdade de vida, nem liberdade de educação, nem a liberdade religiosa. A pessoa humana representava pouquíssimo ante essa autoridade santa e quase divina, a que se chamava pátria ou o Estado.” FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003 (RT – textos fundamentais; 7), p. 209.

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prejuízo dos direitos individuais previstos na Constituição. A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão dispôs, a propósito, que ‘a lei não tem o direito de proibir senão as ações prejudiciais à sociedade’ (art. 5°) e que ‘a lei não deve estabelecer senão as penas estrita e evidentemente necessárias’ (art. 8°). Assim, o respeito aos direitos dos indivíduos passa a ser um dos fins do Estado, torna-se de interesse público.108

Ainda lançando mão das pertinentes observações de Sundfeld, insta

destacar que os pilares do Estado de Direito (supremacia da Constituição,

superioridade da lei, separação dos Poderes) são valores destinados exatamente a

“tornar efetiva, permanente e indestrutível a garantia dos direitos individuais,”109

criando um cinturão de proteção para o indivíduo contra o Estado, ao estabelecer os

limites de sua atuação, como decorrência lógica da própria titularidade do Poder

Constituinte: se a Constituição foi elaborada pelo povo como manifestação de seu

poder soberano, não a fez para limitar este poder, mas sim, para conter os seus

delegatários, isto é, os três Poderes que integram o Estado juridicamente

organizado.110

Evidencia-se, assim, que o direito desloca-se do plano do Estado

(autoridade) para o do indivíduo (liberdade), acarretando a eleição da liberdade

como mola propulsora em todas as questões que envolvam Estado-indivíduo:

[...] pode-se encontrar amiúde – em livros, decisões, acórdãos – variados reflexos de uma certa insensibilidade humana e uma certa insensibilidade em relação à Justiça. Quando quem analisa a controvérsia concreta entre o indivíduo e o Estado se deixa levar pela comodidade da solução negativa para o primeiro; quando na dúvida condena, resolvendo contra o particular [...]; quando na dificuldade do problema jurídico se abstém de abordá-lo e o resolve, favoravelmente, ao poder público, certo de que essa simples circunstância lhe dá alguma cor de legalidade; quando cria, propaga e

108 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996,

p. 47. 109 Ibid., p. 48. Em outra passagem, o autor consigna enfaticamente que “para negar os direitos dos

indivíduos, o Estado precisaria negar a Constituição; tendo sido criado pela Constituição, o Estado, ao negar os direitos individuais, negaria a si próprio.” Ibid., p. 67 (grifo do autor).

110 ALBERDI, Juan Bautista. Escritos póstumos, tomo X. Buenos Aires: 1899, p. 125 apud GORDILLO, Agustin. Princípios gerais de direito público. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 66.

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desenvolve supostas “teorias” que sem fundamento nem análise dão estes e aqueles poderes ao Estado; quando desconfia, evita e nega os argumentos que em certo caso parecem reconhecer um âmbito de liberdade; quando como os débeis se inclinam para o sol dos poderosos – no caso o Estado – então, está sendo destruída uma das mais belas e essenciais tarefas do Direito Público: a proteção da liberdade humana. Mais lamentavelmente ainda é que essas atitudes não costumam ser defendidas: ninguém diz abertamente que o Estado é tudo e o indivíduo nada; ninguém pensa assim, seriamente. Inclusive é possível que se expresse com veemência sobre os abusos dos poderes públicos, e o respeito às garantias individuais ... porém de que vale essa eloqüência, se quando se trata de dar uma solução a um problema concreto [...] são esquecidas as declamações e se resolve facilmente que esse indivíduo nesse caso não tem razão? De que valem aqueles “princípios”, se a seguir em cada matéria e questão de pormenor, se os esquece, contradiz e destrói? Este é um dos principais problemas políticos que afetam o Direito Público. [...] O equilíbrio político, a sensibilidade jurídica, não se satisfazem somente com declarações sobre a liberdade; devem ser o leit motiv de tudo o que se pensa e resolve sobre Direito Público, devem ser a preocupação constante do jurista não só nos grandes problemas institucionais, mas também nos pequenos e às vezes cansativos problemas diários.111

Assentado que o fim do Estado de Direito é, em última análise, a proteção

do indivíduo contra o Estado, todo o Direito Público há de estar entranhado por este

pensamento dominante, “que exala desde a Constituição até a mais ínfima das

normas.”112

A força de que são dotadas as normas constitucionais, particularmente as

que firmam os direitos individuais frente ao Estado, é tamanha, que a

obrigatoriedade de sua aplicação permanece íntegra mesmo na ausência de lei, ou

quando com ela se choca (e como isto é esquecido pelos juízes!), lembrete bem

pontuado por Gordillo:

[...] são imperativas e devem ser aplicadas tanto se não há lei que as reforcem, como existindo uma lei que pretenda negá-las; vale dizer, existem e devem ser aplicadas tanto com, contra ou sem a lei. São, pois, absolutamente independentes da vontade dos órgãos do Estado

111 GORDILLO, Agustin. Princípios gerais de direito público. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1977, p. 50-51 (grifo do autor). 112 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996,

p. 48.

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precisamente porque elas integram uma ordem jurídica constitucional superior ao Estado.113

Logo, os direitos fundamentais, pela própria natureza do Estado brasileiro,

controlam a atuação não só do legislador penal, mas igualmente dos agentes

estatais encarregados de aplicar o ordenamento penal em suas distintas fases, se

podendo afirmar, inclusive, que o nível de respeito e efetivação dos direitos

fundamentais é determinante para estabelecer o grau de legitimidade do próprio

Estado, donde constituir

[...] dever primevo dos atores jurídicos a compreensão adequada da Constituição Federal, concretizando-a na sua maior extensão possível, primordialmente no tocante aos Direitos Fundamentais. Existe a necessidade orgânica de convergência das práticas jurídicas e sociais aos regramentos Constitucionais relativos aos Direitos Fundamentais, estabelecendo-se, portanto, um sistema de garantias simultâneo de preservação e realização.114

Dentre esses valores humanístico-constitucionais traduzidos em direitos

fundamentais, há alguns mais abrangentes, por não se restringirem à esfera penal,

denominados por Palazzo de “princípios (ou valores) constitucionais pertinentes à

matéria penal,” como o princípio do devido processo legal (Constituição Federal,

artigo 5º, inciso LIV), os princípios do contraditório e da ampla defesa (Constituição

Federal, artigo 5º, inciso LV), o princípio da inadmissibilidade no processo das

provas obtidas ilicitamente (Constituição Federal, artigo 5º, inciso LVI) e outros.

Igualmente se fazem presentes valores com conteúdo tipicamente penalístico, que o

professor da Universidade de Florença chama “princípios de direito penal

constitucional,” responsáveis pelo delineamento da “feição constitucional de um

determinado sistema penal,” inserindo-se dentre estes, exemplificativamente, o 113 GORDILLO, Agustin. Princípios gerais de direito público. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1977, p. 66-67 (grifo do autor). 114 ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico? Florianópolis: Habitus, 2003 (Coleção

Para Entender o Direito, 3º vol), p. 38 (grifo do autor).

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princípio da legalidade dos delitos e das penas (Constituição Federal, artigo 5º,

inciso XXXIX), o princípio da irretroatividade da lei penal, salvo se para beneficiar o

réu/condenado (Constituição Federal, artigo 5º, inciso XL), o princípio da presunção

de não-culpabilidade (Constituição Federal, artigo 5º, inciso LVII), o princípio da

personalidade da pena (Constituição Federal, artigo 5º, inciso XLV), o princípio da

individualização da pena (Constituição Federal, artigo 5º, inciso XLVI), os quais, por

possuírem “características substancialmente constitucionais,” não precisam ser

expressamente reconhecidos no texto constitucional115 (os princípios da

secularização, da culpabilidade e da proporcionalidade da pena, enquanto princípios

implícitos, são exemplos veementes desta assertiva), o que em nada compromete a

força normativa de que são dotados.

Dentre os princípios de direito penal constitucional, aqueles que mais de

perto tocam à aplicação da pena privativa de liberdade recebem atenção especial ao

longo do Capítulo 2.

Enfim, a conjugação dos fatores Estado Democrático de Direito, seus

objetivos fundamentais, o valor dignidade da pessoa humana e a consagração de

direitos fundamentais demonstram de forma cristalina a exigência de construir-se um

Estado finalisticamente orientado à felicidade de seu povo, voltado ao bem comum,

em que o homem tem primazia em relação ao Estado, não mais se admitindo, nas

felizes palavras de Maciel, “a indiferença constitucional, voltada quase só para o

Estado e divorciada da Sociedade para a qual ela é feita e procura aprimorar,

diminuindo os gritantes desníveis sociais e econômicos.”116

115 PALAZZO, Francesco C. Valores constitucionais e direito penal: um estudo comparado. Trad.

Gérson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989, p. 22-23. 116 MACIEL, Adhemar Ferreira. Aspectos penais na Constituição. Revista Brasileira de Ciências

Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n. 13, jan.-mar. 1996, p. 93 (grifo do autor).

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1.5 SENTENÇA PENAL ENQUANTO LUGAR DE ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Em um Estado de Direito o poder conferido aos seus agentes somente se

justifica para atender ao interesse público, devidamente demarcado pelo direito,117

porquanto é público o interesse “que o ordenamento entende valioso para a

coletividade (não para a pessoa estatal) e que, por isso, protege e prestigia.”118

A sentença é inegavelmente um ato de autoridade, visto se impor – uma

vez esgotadas as vias impugnativas, ou transcorrido in albis o prazo para

manifestação do inconformismo - às partes envolvidas concordem elas ou não com

o seu conteúdo, pelo que há de atuar (através do juiz) como instrumental para a

realização de um interesse público que justifique a sua previsão no ordenamento

jurídico, estando a este sujeito. O princípio da submissão do Estado em quaisquer

de suas manifestações (e lógico, de seus agentes) à ordem jurídica é apontado

como o princípio mor do direito público, porque limita e controla o princípio da

autoridade pública.119

Referido princípio ordena

[...] não só que o Estado está proibido de agir contra a ordem jurídica, como, principalmente, que todo poder por ele exercido tem sua fonte e fundamento em uma norma jurídica. Assim, o agente estatal, quando atua, não o faz para realizar sua vontade pessoal, mas para dar cumprimento a algum dever, que lhe é imposto pelo Direito. O Estado se coloca, então, sob a ordem jurídica, nos mais diferentes aspectos de sua atividade.120

117 “[...] o interesse público surge como tal, para o mundo jurídico, quando as normas atribuem, ao

ente que dele cura, poderes de autoridade.” SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 148.

118 Ibid., p. 169 (grifo do autor). 119 Ibid., p. 150. 120 Ibid., p. 151 (grifo do autor). É o que se chama tipicidade dos atos estatais. A definição do autor do

que seja o princípio da submissão à ordem jurídica retira do agente estatal qualquer possibilidade criadora, tanto que ao abordar especificamente a atividade jurisdicional, Sundfeld limita o ato de julgar à incidência do direito na hipótese concreta, portanto, a um simples silogismo, posição com a qual não se concorda. Ibid., p. 155.

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Entretanto, a autoridade (ou poder) inerente ao ato decisório, para

legitimá-lo, há de se encontrar subordinada ao saber judicial, que se presta

exatamente para aferir a racionalidade da decisão, tema trabalhado mais adiante.

Afirmada a supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento

jurídico, serve ela de fundamento de validade de toda e qualquer lei. Como a

sentença do juiz - enquanto espécie de ato jurídico de manejo do poder político -

extrai seu fundamento de validade igualmente da lei,121 conclui-se que a

manifestação do seu poder jurisdicional, do início ao fim, há de estar conforme, em

primeiro lugar, aos valores estabelecidos na Lei Fundamental concretizados em

princípios constitucionais.

Em se tratando especificamente de uma sentença penal condenatória –

que envolve a punição de um indivíduo – a submissão do Estado-juiz a uma ordem

jurídica superior fica de logo evidenciada pelo princípio da legalidade em sentido

amplo (um sub-princípio do direito público), normatizado no artigo 5º, inciso II, da

Constituição Federal, a mostrar com clareza a obrigatoriedade de sempre agir

secundum legem, complementado pelo princípio da legalidade dos delitos e das

penas (Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXXIX),122 abordado no Capítulo

subseqüente.

Mas não é só, pois o trajeto percorrido pelo juiz para chegar validamente

ao momento culminante de sua atividade em primeiro grau de jurisdição está

121 Nisto consiste a superioridade da lei, pois sendo ela produto da expressão da vontade geral, se

sobrepuja aos seus atos de execução, dentre os quais se incluem as sentenças. Esta concepção da lei é inerente ao Estado de Direito, conforme demonstra Sundfeld: “a lei que, até o período medieval, era vista como sagrada e imutável e, no período absolutista, como fruto de um querer divino (que o soberano expressava), ganha, com o Estado de Direito, característica humana: passa a ser a expressão da vontade geral. A lei, destinada a reger a vida dos homens, deve ser feita por eles.” SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 44.

122 Ibid., p. 152-154. O princípio da legalidade lato sensu comporta duas máximas, dependendo se tratar de ato de direito privado ou de direito público: enquanto naquele vigora “o que não é proibido, é permitido”, para os atos estatais impera “só é permitido o que a lei autoriza”.

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igualmente subordinado a determinados princípios, passíveis de serem resumidos

no princípio do devido processo legal (penal), graças a sua amplitude, do qual

decorrem, dentre outros, os princípios do contraditório e da ampla defesa, todos com

dignidade constitucional (Constituição Federal, artigo 5º, incisos LIV e LV,

respectivamente) e vetores para a configuração material da lei processual penal.

Além de variados princípios constitucionais explícitos, o atuar jurisdicional

encontra-se igualmente condicionado a princípios implícitos, passíveis de serem

extraídos da Lei Fundamental, tais como o da secularização, culpabilidade e

proporcionalidade (objeto de análise no capítulo vindouro) que falam de perto ao

processo individualizador da pena.

Como os Códigos Penal e Processual Penal brasileiros foram

promulgados sob o manto de uma ordem político-jurídica totalmente diversa, em

plena vigência do Estado Novo, comportam necessariamente uma reinterpretação,

partindo obviamente dos novos valores assentados na Constituição Federal de

1988, assumindo o juiz papel de destaque nesta constante atualização

constitucional.

Enquanto a legalidade da sentença penal (condenatória) depende do

respeito a determinados princípios constitucionais e aos requisitos formais

enumerados no Código de Processo Penal, sua legitimidade é diretamente

proporcional ao grau de atendimento às aspirações da comunidade jurídica e social,

seara onde avultam os requisitos retóricos da sentença, pois eles é que permitirão

avaliar em cada caso se aquela peça de comunicação – pelos argumentos

empregados - atingiu o seu objetivo de convencer, de persuadir sobre o acerto de

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suas conclusões (prevalência do saber sobre o poder), e assim, impor-se como

norma individual vinculante.123

A esta altura impende salientar que a submissão do juiz à Constituição e

às leis, num contexto de um Estado Democrático de Direito, traduz-se em limite

inviolável ao exercício do seu poder punitivo em concreto (aí incluída a fixação da

pena privativa de liberdade), mas jamais uma mordaça ao seu poder criador, quando

posto a serviço da parte mais fragilizada na relação processual: o acusado,

sobretudo quando vem a ser destinatário de uma sentença penal condenatória e

ainda com mais razão, em lhe sendo aplicada pena privativa de liberdade.

Está posto então o desafio: equilibrar o juiz retoricamente o que dita a sua

consciência com as expectativas da sociedade, das partes e dos órgãos judiciais

superiores.124

1.5.1 Etimologia do termo sentença

“O termo sentença traduz sentimento, desejo, vontade, conclusão,

resolução, provimento judicial,”125 o que explica a necessidade de vir devidamente

documentada (Código de Processo Penal, artigo 388), exatamente para que se

possa conhecer qual o sentimento do juiz no momento culminante do processo, no

caso do presente trabalho, uma sentença definitiva condenatória. 123 “Peças de comunicação que se destinam a convencer [como o é a sentença], não valem pelo que

representam em termos de emissão e transmissão, mas sim em termos de recepção e adesão, vale dizer, em termos de persuasão.” BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 2.

124 Brum alerta para duas tendências igualmente perniciosas percebidas na atuação dos juízes, porquanto os afastam do cumprimento de sua função social: “[...] ou colocam-se ostensivamente contra as orientações prestigiosas da doutrina oficial e da jurisprudência dominante, seguindo unicamente os ditames de sua consciência, ou, pelo contrário, atrelam-se servilmente às orientações jurisprudenciais dominantes, ainda que tenham de violentar seus princípios e amordaçar suas consciências. No primeiro caso, deixarão de cumprir sua função social por inabilidade argumentacional, porque suas sentenças serão fatalmente reformadas; no segundo caso, deixarão de cumprir essa função sem sequer terem tentado fazê-lo, autolimitando-se ao papel de instrumento cego do poder.” Ibid., p. 2.

125 ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo de. Sentença penal: doutrina, jurisprudência e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 17.

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Derivada do “latim sententia (modo de ver, parecer, decisão), [designa na

técnica jurídica, em sentido amplo] a decisão, a resolução, ou a solução dada por

uma autoridade a toda e qualquer questão submetida à sua jurisdição,”126

envolvendo sempre, portanto, um julgamento.

1.5.2 Conceitos de sentença penal

Brum apresenta duas ordens de conceitos doutrinários da sentença –

uma que a define como a declaração judicial do direito ao caso concreto, outra

afirmando que, através dela, o juiz declara o que sente – para em seguida realçar,

aguçadamente, as ideologias subjacentes às definições que se pretendem objetivas:

a postura do primeiro grupo rejeita “a pessoa do juiz como órgão criador de direito

para sugeri-la como mero canal entre o ordenamento jurídico positivo e o fato sub

judice,” o que se presta para manter inalterado o “modelo social cristalizado no

direito positivo legislado” (concepção formalista); a do segundo grupo, por seu turno,

atribui ao juiz a função de criar o direito “através da interpretação e da avaliação”,

ponto de vista que se inclina “à eqüidade ou à adequação do jurídico ao social por

meio da redefinição do direito” (concepção realista).127

Tomando por referencial o princípio constitucional da presunção de

inocência e evidenciando que a transformação do ilícito em crime é nitidamente uma

opção política, concretizada no ato legislativo, Nassif oferece o seguinte conceito:

Sentença penal é o ato de reduzir a um espaço documentado, estrito, oficial, praticado por juiz competente, toda a gama de circunstâncias e emoções visíveis e descritíveis informadas com as garantias constitucionais do processo, ocorrentes em fato praticado com necessária intervenção humana, que a lei traduz como crime, para o efeito de confirmar ou

126 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico, vol. IV. Rio de Janeiro: Forense, 1975, verbete

sentença. 127 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1980, p. 6-7.

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desconstituir, impondo sanções legais, o estado de inocência do cidadão-acusado.128

1.5.3 Funções da sentença penal

Este tópico traz novamente à tona as concepções formalista e realista de

pensar o direito, a primeira privilegiando a segurança jurídica, a segunda colocando

em destaque a eqüidade.129

Brum consegue resumir didaticamente as duas correntes:

Entendemos como formalistas aquelas posturas que tendem à conservação ou sedimentação dos modelos jurídicos projetados nos textos legais. Trata-se do formalismo legalista que busca a segurança de uma determinada ordem social, através do fortalecimento do poder emissor de normas gerais [poder legislativo]. Entendemos como realistas aquelas posturas que se afastam das propostas legislativas, buscando outras alternativas axiológicas por meio do fortalecimento do poder judiciário.130

Expressiva doutrina brasileira abraça o formalismo, apresentando como

tarefa da sentença a de declarar o direito aplicável frente à hipótese concreta trazida

ao conhecimento do julgador, o que traria a pacificação social, função mesma do

processo penal.131

128 NASSIF, Aramis. Sentença penal: o desvendar de Themis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.

xxi (grifo do autor). 129 “Segurança, neste sentido, é o fechamento da hermenêutica em torno do complexo ideológico

institucionalizado pelos legisladores, impedindo a entrada perturbadora de outras ideologias. O termo eqüidade [...] significará apenas a abertura da hermenêutica para outras alternativas axiológicas que melhor se adeqüem à conjuntura em que se dá a interpretação. Através da eqüidade chega-se a soluções não previstas ou, até mesmo, não desejadas pelos legisladores. Essa abertura permite, inclusive, o retorno das ideologias rejeitadas pelo complexo ideológico institucionalizado.” BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p.44.

130 Ibid., p. 43-44. 131 ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo de. Sentença penal: doutrina, jurisprudência e prática. Belo

Horizonte: Del Rey, 2002, p. 24. No mesmo sentido, Tourinho Filho, para quem “a função da sentença é meramente declaratória do direito anteriormente estabelecido.” TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, vol. 4. 24 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 242.

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Esta é uma visão reducionista da atividade judicante, na medida em que

lhe nega qualquer poder criador do direito,132 partindo do falso pressuposto de

completude do ordenamento jurídico e da operatividade do direito a partir de

silogismos.

Há autores, como Almeida, que atribuem à sentença penal também uma

função preventivo-geral negativa, porque apesar de atingir diretamente os

integrantes da relação processual, mediatamente a sentença

[...] não deixa de exercer função pedagógica e intimidativa perante todos os indivíduos que possam potencialmente violar a norma incriminadora, porque ela contém, segundo a interpretação do provimento jurisdicional, a vontade da lei no caso concreto. Essa vontade legislativa não deixa de encarnar também a vontade do juiz, o que ele sente.133

1.5.4 Requisitos formais da sentença penal

Requisitos formais da sentença “são aquelas condições impostas pela lei

para que uma sentença tenha validade,”134 compreendendo no caso da sentença

penal o relatório, a fundamentação (ou motivação), a conclusão (ou parte dispositiva)

e a autenticação, cujo conteúdo mínimo é positivado no artigo 381 do Código de

Processo Penal.135

O relatório alcança os incisos I e II, do dispositivo processual citado,

consistindo no resumo do histórico processual, com aquilo que de mais relevante

ocorreu, numa ordem cronológica seqüencial. Sua ausência é geradora da nulidade

prevista no artigo 564, inciso IV, do Código de Processo Penal, visto que “é o 132 Para Almeida, o juiz deve encontrar uma posição de equilíbrio no desenvolver sua atividade maior:

não pode ser um fora-da-lei, nem um escravo da lei. ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo de. Sentença penal: doutrina, jurisprudência e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 24-27.

133 Ibid., p. 21 (grifo do autor). 134 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1980, p. 3. 135 “A sentença conterá: I – os nomes das partes ou, quando não possível, as indicações necessárias

para identificá-las; II – a exposição sucinta da acusação e da defesa; III – a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão; IV – a indicação dos artigos de lei aplicados; V – o dispositivo; VI – a data e a assinatura do juiz.”

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mesmo que um indivíduo sem nome, sem história, sem passado, sem nada que

justifique a sua vida ou existência,”136 excetuada a sentença proferida em infrações

de menor potencial ofensivo, em que o relatório é dispensado (Lei nº 9.099/95, artigo

81, §3º).

A exigência do relatório dentre os elementos essenciais da sentença não

se esgota em um mero formalismo, pois cumpre o papel de demonstrar às partes se

o juiz efetivamente leu os autos, velou pela regularidade processual, debruçou-se

sobre as provas produzidas e sobre os argumentos por elas ofertados. Tem ainda o

objetivo de proporcionar ao órgão jurisdicional superior, em caso de recurso, “uma

idéia sobre a atuação efetiva das partes no processo segundo as exigências do

sistema contraditório e a certeza acerca da regularidade do procedimento.137

Um relatório bem feito serve de ponto de apoio para o passo seguinte,

que é a fundamentação.

A fundamentação ou motivação é contemplada no inciso III, do artigo 381,

do Código de Processo Penal,138 consistindo na exposição do raciocínio lógico

desenvolvido pelo julgador para chegar a uma sentença condenatória ou absolutória.

Neste trajeto o juiz necessariamente analisará os elementos de prova constantes

nos autos e licitamente produzidos, conferindo-lhes determinado valor, bem como as

teses apresentadas pela acusação e defesa, explicitando por que as aceita ou

136 ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo de. Sentença penal: doutrina, jurisprudência e prática. Belo

Horizonte: Del Rey, 2002, p. 35. 137 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1980, p. 5. 138 A sua própria Exposição de Motivos, no inciso XII, já espelha o cuidado com a delicada questão da

motivação, principalmente num decreto condenatório, in verbis: “A sentença deve ser motivada. Com o sistema do relativo arbítrio judicial na aplicação da pena, consagrado pelo novo Código Penal, e o do livre convencimento do juiz, adotado pelo presente projeto, é a motivação da sentença que oferece garantia contra os excessos, os erros de apreciação, as falhas de raciocínio ou de lógica ou os demais vícios de julgamento.” (grifo no original).

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rejeita, total ou parcialmente, amparando-se, para tanto, no conjunto probatório

(motivos de fato) e no ordenamento jurídico (motivos de direito).139

Trata-se da parte mais difícil e importante da sentença, porque é aqui que

estará refletida sua capacidade de persuasão, como bem pontua Brum:

Aqui reside o núcleo retórico da decisão, onde o juiz precisa convencer de que decide de forma legítima, válida e justa. Cotejando e avaliando as provas dos autos, necessita ele demonstrar que o fato ocorreu de determinada forma e não de outra. Precisa, por outro lado, dizer qual o direito a ser aplicado e os porquês de tal aplicação. Enfim, é aqui que o juiz reconstrói discursivamente o fato sub judice, procede à sua consunção ao direito que entende aplicável, acolhendo ou rejeitando os argumentos das partes e explicando os mecanismos racionais pelos quais decide. É a parte da sentença que guarda a relação mais íntima com o que chamamos requisitos retóricos.140

Insta destacar que, caso julgue total/parcialmente procedente o pedido

contido na inicial acusatória, deverá ainda o juiz fundamentar a escolha da pena

(quando previstas em abstrato alternativamente mais de uma espécie, pois em se

tratando de cominação simples ou cumulada descabe opção), sua quantidade (os

limites mínimo e máximo das penas privativas de liberdade – que somente podem

ser extrapolados quando presentes no caso concreto causas de aumento ou

diminuição da pena - são estabelecidos na sanção correspondente a cada tipo

penal, conforme assenta o artigo 53 da nova Parte Geral do Código Penal, devendo

ainda serem obedecidas as três fases do artigo 68, do Código Penal), o regime

inicial para o seu cumprimento e se cabível ou não sua substituição por outra

espécie de pena (nos termos do artigo 59, do Código Penal), como também a

concessão ou não de suspensão condicional da pena privativa de liberdade, sempre

139 “A sentença, não obstante decorrer do livre convencimento do juiz, deve ser clara, certa, precisa,

objetiva, lógica e convincente. Esse ideal somente será alcançado se o juiz se dignar em fundamentá-la [...].” ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo de. Sentença penal: doutrina, jurisprudência e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 37.

140 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 5.

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com base em dados concretos extraídos dos autos e frente ao ordenamento jurídico,

o que se dará, dentro da estrutura formal da sentença penal condenatória, na parte

destinada à conclusão.

A obrigatoriedade da motivação ganhou dignidade constitucional com a

Carta Fundamental de 1988, artigo 93, inciso IX, que se preocupou, inclusive, em

deixar clara a conseqüência processual pela sua inobservância: “todos os

julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas

as decisões, sob pena de nulidade [...].”

Esta formalidade essencial justifica-se, sobretudo, para que as partes

possam aferir se os argumentos desenvolvidos pelo juiz (ainda que concisos)

permitiam-lhe, realmente, chegar àquela conclusão (decisão propriamente dita),

como bem ensina Tourinho Filho:

A exigência da motivação justifica-se, porquanto permite às partes concluírem se aquela atividade intelectual desenvolvida pelo Juiz lhe permitia chegar àquela conclusão. Será que a sua decisão foi fruto de um ato de reflexão, de um raciocínio lógico em face do material probatório de que dispunha, ou foi um simples ato discricionário, caprichoso, produto de uma vontade autoritária? Sem que houvesse a fundamentação, tal como ocorria à época do processo inquisitivo, somente Deus e a consciência do Magistrado saberiam se a sentença refletiu um ato de justiça ou injustiça, um leal cumprimento do dever ou uma prevaricação, a vontade da lei ou a realização de um desejo insopitável de maldade.141

Pode-se então afirmar, que a motivação, ao lado da publicidade,142 são

valiosos instrumentos, quando manejados lógica e racionalmente, para a

141 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 24 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:

Saraiva, 2002, vol. 4, p. 245-246. 142 Cintra, Grinover e Dinamarco são enfáticos sobre a proeminência do princípio da publicidade: “O

princípio da publicidade do processo constitui uma preciosa garantia do indivíduo no tocante ao exercício da jurisdição. [...] Em última análise, o povo é o juiz dos juízes. [...] Foi pela Revolução Francesa que se reagiu contra os juízos secretos e de caráter inquisitivo do período anterior. [...] Realmente, o sistema da publicidade dos atos processuais situa-se entre as maiores garantias de independência, imparcialidade, autoridade e responsabilidade do juiz.” CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 19. ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 69.

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credibilidade do poder jurisdicional, porquanto valorizam a transparência que há de

permear todos os atos de manifestação do poder, como exige um Estado

Democrático de Direito.

A parte subseqüente do ato decisório é ocupada pela conclusão, onde o

juiz expõe as conseqüências práticas daquele raciocínio levado a efeito na

motivação, o que já demonstra a imperiosidade de harmonia entre aquela e esta.

Contem a decisão propriamente dita, fixando, desta forma, os limites da coisa

julgada: é aí “que o juiz dirá se julga procedente (mesmo que parcialmente) ou

improcedente o pedido das partes, ou se extingue o processo sem julgamento do

mérito, se declara extinta a punibilidade do acusado [...],”143 para em seguida indicar

os artigos de lei aplicados à hipótese (incisos IV e V, do art. 381, do Código de

Processo Penal, cuja ordem, pela seqüência lógica da estrutura da sentença,

deveria ser invertida).

1.5.5 Requisitos retóricos da sentença penal

Trata-se do “conjunto de argumentos essenciais (essencial no sentido de

mínimo necessário e provavelmente suficiente) da sentença, entendida esta como

discurso persuasivo.”144 São, no entender de Brum, cumulativos.

O atendimento a tais argumentos, a tais motivações, aumenta as chances

de a sentença impor-se à comunidade jurídica como norma vinculante,145 dividindo-

se o conjunto argumentativo à disposição do julgador em duas vertentes: avaliação

143 ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo de. Sentença penal: doutrina, jurisprudência e prática. Belo

Horizonte: Del Rey, 2002, p. 45. 144 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1980, p. 4. 145 “A derradeira manifestação do magistrado (decisão) no dossiê processual traz a afirmação da

renúncia do Estado à violência e a busca do reconhecimento de, para os demais atores da cena processual, despertar sua capacidade de serem convencidos pelo argumento judicial, ainda que não na primeira, mas nas demais instâncias.” NASSIF, Aramis. Sentença penal: o desvendar de Themis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 73.

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da prova (rota geralmente escolhida pelos juízes por ser a alternativa mais fácil,

graças à menor possibilidade de seu controle pelas partes e pelos tribunais) e

interpretação da norma.146

Brum apresenta quatro requisitos retóricos da sentença penal, a maioria

deles voltados a atender os apelos de segurança da ordem jurídica (formalismo):

verossimilhança fática, efeito de legalidade, adequação axiológica e neutralidade

judicial.

O requisito da verossimilhança fática permite aquilatar se o julgador, ao

reconstruir o fato naquele caso concreto, realmente optou pela melhor prova para

chegar à verdade possível, restrita à verdade formal, pois esta é “a verdade que é

estabelecida por meio do processo, ou seja, a verossimilhança legitimada.”147

Já no início de sua obra Brum alerta para a falácia da tão propalada

verdade real ou material dos fatos, que deveria ser buscada pelo juiz:

[...] somente quem não queira ver ou quem não tenha nenhuma vivência forense, há de acreditar que, em termos de processo judicial, exista uma verdade real ou material em oposição à verdade formal. Essa oposição é uma ficção retórica que tem a utilidade de proporcionar argumentos de grande força qualificadora ou desqualificadora nos contextos decisórios, pois, na realidade, a verdade sobre o fato sub judice será sempre aquela que o juiz ou tribunal reconstruir e estabelecer em uma decisão passada em julgado.148

Conta o juiz com larga margem de discricionariedade nesta seara de

valoração das provas, na medida em que irá

[...] eleger uma das versões do fato, valendo-se dos depoimentos pessoais que lhes parecerem mais convincentes ou que conduzam à solução que lhes parecer mais justa. Mesmo aqueles fatos que possibilitam a prova

146 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1980, p. 72-73. 147 Ibid., p. 73. 148 Ibid., p. 8. A busca capciosa da chamada verdade material ou substancial volta a ser objeto de

crítica ao final do item 1.5.6 (Raciocínio jurídico e argumentação).

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técnico-científica são submetidos à discrição do juiz, pois este não está vinculado às conclusões dos peritos, podendo rejeitá-las se com elas não concordar.149

O problema reside no grau de veracidade que pode ser conferido aos

meios de prova judicial como reconstrutores do fato sub judice, com destaque para a

prova testemunhal (não é raro que as testemunhas mintam por ódio ou simpatia

nutridos pelo réu; o tempo decorrido desde a ocorrência do fato compromete a

percepção da testemunha e muitos outros senões) e o reconhecimento de pessoas

(a começar pela inobservância, na prática judiciária, das formalidades exigidas para

a sua produção, sem olvidar a grande probabilidade de engano por parte do

reconhecedor, seja pelo exíguo tempo que dispusera para ver o pretenso infrator na

ocasião do delito, seja pelas precárias condições de visibilidade naquele momento,

seja pela vontade – ainda que inconsciente – de reconhecer a qualquer custo etc).150

Apesar destas inegáveis limitações de que padece a prova judicial para

cumprir seu desiderato processual, a sobrevivência dos sistemas processuais e da

própria jurisdição exige que se confie (mas não cegamente) no seu conteúdo – “é

preciso acreditar na eficiência dos peritos [...], na veracidade das testemunhas, na

autenticidade dos documentos etc”151 - num quase ato de fé.

Assim, é com base na confiabilidade relativa da produção da prova, que o

juiz apresentará como verdadeira a sua versão (já que não significa que seja

realmente verdadeira, bastando a sua verossimilhança),152 a sua reconstrução

processual acerca do fato. Se esta reconstrução vier sustentada em argumentos que 149 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1980, p. 74. De fato, o artigo 182, do Código de Processo Penal consagra o sistema liberatório, ao dispor que “o juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte,” desde que o faça justificadamente.

150 Brum cita vários fatores observados na práxis que comprometem a verossimilhança fática da prova judicial, aí incluída a prova pericial. Ibid., p. 74-76.

151 Ibid., p. 76. 152 A verossimilhança “nada mais é que a retórica imunização do discurso jurisdicional contra

possíveis críticas”, constituindo, desta forma, o “primeiro argumento contra a reforma da sentença judicial.” Ibid., p. 77.

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convençam a comunidade jurídica e as partes do acerto do julgador em optar por um

conjunto de provas e não outro, aquela verossimilhança fática, por força da coisa

julgada, adquire status de presunção absoluta de verdade, somente admitindo-se o

reexame dos fatos em situações excepcionais (mediante revisão criminal ou habeas

corpus, neste desde que a questão não demande dilação probatória).

Este esforço do julgador em sedimentar a sua reconstrução fática como a

melhor frente às alternativas existentes, consiste inegavelmente numa atividade

“retórica que exige hábil manipulação de um vasto instrumental,” pois é através dela

que “o juiz exaltará o valor das provas que sustentam a versão que deseja fixar e

desqualificará as provas (ou interpretação das provas) que respaldem as versões

que deseja refutar.”153

Passa-se então ao segundo requisito retórico, que é o efeito de

legalidade, obtido, segundo Brum, com a aplicação do direito ao caso concreto.

Significa que o julgador em hipótese alguma pode romper com o sistema legal, a fim

de que a sentença atenda às aspirações de segurança jurídica e não seja etiquetada

de arbitrária, mesmo frente a um ordenamento legal assumidamente lacunoso e

contraditório.154 Exerceria, assim, o papel de um segundo escudo retórico contra

eventuais críticas ao discurso jurisdicional, chegando Brum a afirmar:

[...] qualquer que seja a decisão do juiz, deve ela parecer estar contida de alguma forma na previsão do legislador ou, noutras palavras, deve ela apresentar-se como derivada da previsão legal. Mesmo que adote uma linha decisória totalmente inédita, o órgão decisório deve sempre atuar deixando a sensação de ter agido legislativamente condicionado. Ainda que, por motivos lingüísticos ou ideológicos, a mensagem legislativa apresente-

153 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1980, p. 77. “O requisito da verossimilhança fática é o único que procura atender simultaneamente à segurança e à eqüidade, já que nem formalistas nem realistas admitem que alguém possa ser responsabilizado penalmente por fato inexistente ou por fato para o qual não concorreu.” Ibid., p. 86.

154 Ibid., p. 78. Este cuidado com a moldura legal da sentença se faz presente desde o seu relatório. Ibid., p. 78.

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se insuficiente, não pode admitir o juiz que esteja tomando o lugar do legislador.155

Para alcançar este efeito de legalidade, pode o julgador socorrer-se de

uma ampla gama de instrumentos dados “pelas teorias jurídicas, pelos múltiplos

métodos de interpretação da lei e pela cobertura oferecida pelo próprio legislador,”156

esta última abordada no próximo parágrafo.

O efeito de legalidade, ainda que se enfeite o discurso justificante, traduz

uma completa servidão do juiz à lei, uma separação absoluta entre a atividade

judicante e a legislativa, que somente é minimizada nas hipóteses em que o próprio

legislador desloca para o órgão judicial a sua função, seja mediante a utilização “de

expressões semanticamente vazias ou anêmicas, cujo significado somente pode ser

obtido contextualmente, depois do engajamento do julgador em uma das valorações

comunitárias,”157 seja através do “uso de conceitos indeterminados, expressões

vagas como ‘logo depois’, ‘logo após’, ‘repouso noturno’, ‘situação análoga’ etc.”158

Clara adesão, por conseguinte, ao formalismo.159

O efeito de adequação axiológica busca equilibrar na sentença o

formalismo e o realismo, ao evidenciar que ela não se legitima apenas com o

cumprimento das exigências da legalidade, exigindo-se igualmente que se justifique

na sua dimensão axiológica. Pelo que pretende tal efeito – conciliar retoricamente

legalidade e justiça - já se vê que é onde reside a parte mais difícil da sentença. 155 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1980, p. 78. Brum evidencia sua preocupação excessiva em preservar íntegra a tradicional separação dos poderes, quando critica a evolução interpretativa do crime de emissão de cheque sem suficiente provisão de fundos (Código Penal, artigo 171, §2º, inciso VI) pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de cada vez mais diminuir as possibilidades de incidência do tipo. Ibid., p. 79-81.

156 Ibid., p. 78. 157 Ibid., p. 78, citando como exemplos destas variáveis axiológicas as expressões “bom pai de

família”, “mulher honesta”, “vantagem indevida”. 158 Ibid., p. 78. 159 “O requisito da legalidade da decisão visa a atender à segurança jurídica, pois se reconhece na lei

um meio de controle das decisões judiciais e um fator de previsibilidade e exigibilidade de condutas intersubjetivas pré-valoradas.” Ibid., p. 86.

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A intensidade de preenchimento desta dimensão axiológica pelo julgador

está na proporção inversa do grau de concordância entre os valores introjetados na

comunidade e os conteúdos dos textos legais a serem aplicados: quanto maior a

identidade entre um e outro, menor o trabalho de adequação axiológica a ser

operacionalizado pelo juiz, “pois a simples invocação desses textos normalmente

bastará para fundamentar a decisão em termos de valor;” quanto menor a sintonia,

“terá o julgador de manipular um grande instrumental retórico para justificá-la.”160

E como se fará esta adequação retórica? Se a situação concreta

demandar uma correspondência dos valores comunitários à lei, o juiz procurará

demonstrar “que ‘os verdadeiros’ valores comunitários estão expressos na

literalidade do texto legal”; se for a lei que precise ser atualizada com novos valores

comunitários, o juiz “decidirá conforme os valores comunitários emergentes, fazendo

com que estes pareçam estar contidos no texto legal.”161

Por último, apresenta Brum o efeito de neutralidade judicial, segundo o

qual, para atender aos fins de previsibilidade e segurança jurídicas – dado que a

neutralidade reforça a idéia de controle e previsibilidade das decisões -, “o juiz deve

eleger parecendo neutro, racionalizar o irracional e dar cientificidade ao

sentimento.”162 Em última análise abre espaço para uma perigosa irresponsabilidade

160 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1980, p. 81-82. 161 Ibid., p. 82, esclarecendo ainda quanto a este aspecto: “se os valores que determinaram uma nova

linha decisória já estiverem internalizados e disseminados na comunidade, as alterações de significado do texto legal produzidas pelo juiz no ato de sentenciar terão boas possibilidades de serem assimilados pelos destinatários da sentença ou pelos órgãos jurisdicionais superiores.” Trata-se de efeito retórico ideologicamente comprometido com o realismo jurídico: “o requisito da adequação axiológica pretende atender às aspirações de eqüidade, pois se reconhece a incapacidade da lei para prever todas as condutas, além do que se admite a mudança valorativa acerca das condutas.” Ibid., p. 87.

162 Ibid., p. 83-84. A neutralidade caracteriza o magistrado como se fosse ele “capaz de julgar como Deus sendo homem.” Ibid., p. 8.

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judicial, pois em ocorrendo alguma injustiça, pode-se sempre lavar as mãos e

atribuir a culpa ao legislador.163

Na Idade Contemporânea o antigo mito da neutralidade judicial deita suas

raízes na Revolução Francesa e leis napoleônicas que se seguiram, mediante as

quais os juristas da revolução exterminaram qualquer possibilidade de os juízes

aristocratas interpretarem a nova ordem legislativa contrariamente aos interesses

revolucionários, pois ela seria absolutamente completa. Socorrendo-se da

objetividade de Brum:

A Revolução Francesa havia afastado do poder o rei, seus ministros e sua máquina administrativa, mas, nos tribunais, foram mantidos os juízes aristocratas. Os juristas da revolução sabiam que de nada adiantariam as novas leis se aos juízes se permitisse reimplantar os valores da aristocracia através da interpretação judicial. O Código de Napoleão surge, pois, como um sistema jurídico completo, claro, preciso e fechado. Tal codificação, à semelhança da geometria euclidiana, não era para ser interpretada, mas aplicada mecanicamente. Para isto, a Escola Francesa de Exegese haveria de reafirmar o antigo mito da neutralidade judicial, pois, se os juízes possuíam de modo geral uma ideologia antagônica à da nova legislação, era necessário dobrá-los à vontade dos legisladores, era preciso anular sua liberdade de interpretação. Essa neutralidade foi buscada (e até certo ponto obtida) graças à concepção de que a sentença constitui um silogismo pelo qual o juiz aplica o direito (vontade do legislador) ao caso concreto. A lei como premissa maior, o fato como premissa menor e o juiz como elemento neutro, haveriam de constituir os ingredientes da conclusão desejada pelos legisladores. Assim, contrariando a própria etimologia do termo, a sentença deixa de ser a declaração daquilo que o juiz sente para tornar-se a declaração daquilo que o juiz deve aplicar ainda que não o sinta.164

Requer-se do juiz que seja ideologicamente165 neutro, quando o Poder

Judiciário que integra possui iniludível função política, alargada no contexto de um

Estado Democrático de Direito, pois a ampliação e a consciência dos direitos passa

163 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1980, p. 17. 164 Ibid., p. 17. 165 Adota-se aqui a concepção de ideologia trabalhada por Nassif: “a formação e convicção teóricas

construídas axiologicamente em torno de princípios próprios como expressões sócio-econômicas, que, necessariamente, contaminam a atividade do julgador. É, à outra vista, o caldo sociológico compositor de sua personalidade que, implicitamente, contribui para a elaboração do decisum e que se revela na motivação do ato decisório.” NASSIF, Aramis. Sentença penal: o desvendar de Themis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 70.

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a exigir mais deste Poder, a quem também incumbe democratizar o conhecimento

do Direito,166 não olvidando ainda que

o papel político dos juízes renasce e se reafirma no entrechoque que, amiúde, ocorre entre a norma e a realidade social, para buscar, através da prestação jurisdicional, e assim pela sentença, a credibilidade perante comunidades integradas e paralelas.167

A neutralidade não se confunde com a imparcialidade, esta sim,

imprescindível na condução do processo:

[a neutralidade] refere-se às questões ideológicas do magistrado, sua herança psicossocial, sua formação política, etc., apanhadas com intenção ontológica. A segunda, a ser tratada apenas incidentalmente, descreve a necessária postura no comando do processo, como gestor das relações interpares.168

Como se exigir que o juiz, como ser humano que é, como integrante de

uma sociedade (formada por incluídos/excluídos) num determinado contexto

espacial, temporal e político, possa estar imune no ato de julgar a uma série de

condicionantes próprias do simples ato de existir responsavelmente, merecendo aí

receber primazia o atendimento a sua própria consciência? É uma contradição em si

mesma a pretensão da neutralidade, além de afrontosa com a ordem jurídico-

constitucional brasileira vigente.

Sobre a pretensa neutralidade política do juiz, Nassif tece observações

extremamente pertinentes e úteis, mormente quando lança mão da

discricionariedade judicial como instrumental hábil para afastar, em cada caso, o

166 NASSIF, Aramis. Sentença penal: o desvendar de Themis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.

76. 167 Ibid., p. 74. 168 Ibid., p. 74, arrematando em seguida que “a antiga ‘neutralidade’ do juiz torna-se cada vez mais

um vício a ser urgentemente sanado, surgindo como perfil da sentença ideal aquele que resulta da consciência do juiz que não renuncia ao amplo espectro ideológico na prática diária.” Ibid., p. 75.

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descompromisso político e, por via de conseqüência, facilitar a lenta transformação

do Poder Judiciário “numa cidadela de defesa dos mais fracos.”169 A conferir:

Inaceitável hoje, pela força influente da sentença, a identificação entre independência e apoliticismo do magistrado, ou descompromisso político (deixar de observar), a que deve substituir-se pela discricionariedade judicial, que comporta a observação mediata do fenômeno social e imediata da situação do réu perante o processo. Presente isto, o julgador sentirá a regra penal, quanto ao primeiro aspecto, como norma em branco a ser satisfeita, na implementariedade necessária, pela consciência política do magistrado; e, quanto ao segundo (indivíduo), como norma fechada, a exigir o rigoroso cumprimento da Constituição para dar certeza de justiça realizada na sentença. [o envolvimento político e social do juiz] não é mais uma opção ideológica: é uma imposição da democracia revelada na retórica empregada nas decisões.170

1.5.6 Raciocínio jurídico e argumentação

Conforme já visto, é na parte destinada à motivação que se concentra o

núcleo retórico da decisão.

As teorias da argumentação jurídica versam exatamente sobre

concepções diversas acerca da obrigação judicial de motivar as decisões, ou seja,

debruçam-se sobre as razões jurídicas que servem de justificativa para uma

específica decisão, apontando a doutrina três grandes teorias: teoria do silogismo

jurídico, teoria tópica do raciocínio jurídico171 e teoria retórica da argumentação

jurídica, sendo a primeira de cunho juspositivista, enquanto as demais representam

uma reação àquela, na medida em que abrem espaço ao problema valorativo

(rejeitam a lógica formal como instrumento para analisar os raciocínios jurídicos).172

169 NASSIF, Aramis. Sentença penal: o desvendar de Themis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.

77. 170 Ibid., p. 78. 171 Tanto o silogismo, quanto a tópica remontam a Aristóteles. Neste sentido: CASTRO, Fábio Caprio

Leite de. Aspectos filosóficos da motivação judicial. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre: Nota Dez, 2004, ano 4, n. 13, p. 127.

172 ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. 3. ed. São Paulo: Landy, 2003, p. 45.

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Apresentam-se suas linhas gerais, basicamente com a intenção de

demonstrar a inadequação do emprego exclusivo do silogismo com a vertente

substancial do princípio constitucional da motivação das decisões judiciais.

O raciocínio seguido pela teoria do silogismo jurídico toma por base uma

premissa173 universal e uma premissa particular, da qual se extrai uma conclusão

necessária, ou seja, dadas certas proposições, necessariamente resulta um efeito

delas distinto, sem que se precise introduzir qualquer outro elemento.

Na teoria silogística do Direito, o juízo possui uma estrutura fechada cuja premissa maior é dada pela norma aplicada ao caso, enquanto a premissa menor é dada pelo fato relevante e a conclusão é dada pela decisão, que aplica a norma ao caso concreto. Ou seja, partindo-se de um módulo lógico-estrutural, conhecido por dedução logística desde a filosofia aristotélica, o raciocínio do juiz deve percorrer um iter para alcançar a resposta adequada ao caso.174

Trata-se, portanto, de um método dedutivo estudado pela lógica formal,

pois centra sua preocupação na validade das conclusões, assim consideradas

graças exclusivamente a sua forma.

Esclarece Castro que na doutrina italiana um dos grandes defensores da

aplicação do silogismo jurídico foi Alfredo Rocco, para quem o juiz, na sentença, se

limita a declarar a vontade da lei (através da aplicação de determinada(s) norma(s))

para aquele caso concreto, inexistindo qualquer resquício de contribuição da própria

vontade do juiz na composição deste juízo lógico.175

Revestindo-se o silogismo jurídico de extrema formalidade, o raciocínio do

juiz trilha aí uma estrada reta e sem desníveis, porquanto as coordenadas com as

quais trabalha já vêm prefixadas pela lei, não restando ao juiz manifestar na

173 Premissa deriva do latim praemissa, que significa “a que é mandada primeiramente”. 174 CASTRO, Fábio Caprio Leite de. Aspectos filosóficos da motivação judicial. Revista de Estudos

Criminais. Porto Alegre: Nota Dez, 2004, ano 4, n. 13, p. 124. 175 Ibid., p. 124.

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sentença se não a vontade da lei, sem qualquer espaço para a sua atividade criativa

e criadora, imprescindível para responder satisfatoriamente à variedade e

complexidade dos fatores integrantes do ato decisório, porque cambiante e

complexo o conflito intersubjetivo posto à apreciação do juiz.

Embora o silogismo possa fornecer uma conclusão acerca das

proposições (de fato e de direito), não agasalha o principal, isto é, o raciocínio

mediante o qual o juiz fixou estas premissas,176 pelo que, trata-se de uma teoria

incompleta.

Outrossim, a teoria do silogismo jurídico parte de um pressuposto

equivocado: a existência de uma relação unívoca, de uma coincidência entre a

atividade do juiz para chegar à decisão e o raciocínio justificativo expressado na

motivação. Enquanto o silogismo mostra-se apto para demonstrar o modo como a

decisão foi manifestada (uma vez já apurados os fatos e escolhida a norma pelo

juiz), os elementos individualizadores da motivação demandam concepção diversa,

porquanto se trata de um momento do discurso a envolver necessariamente uma

escolha valorativa por parte do juiz.177

Esse círculo hermético do raciocínio jurídico, esse processo de lógica

dedutiva desempenha perigoso papel ideológico, porquanto reduz a figura do juiz a

um ser rigidamente neutro e passivo diante do conflito social e econômico para o

qual é chamado a solucionar, clarificando “o divórcio entre a verdade dos juristas e a

verdade dos leigos.”178

Posta nestes termos, entende-se

176 CALOGERO, Guido. La logica del giudice e il suo controllo in cassazione. Padova: Cedam, 1937,

p. 53-55 apud CASTRO, Fábio Caprio Leite de. Aspectos filosóficos da motivação judicial. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre: Nota Dez, 2004, ano 4, n. 13, p. 125.

177 CASTRO, Fábio Caprio Leite de. Aspectos filosóficos da motivação judicial. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre: Nota Dez, 2004, ano 4, n. 13, p. 126.

178 AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989, p. 63.

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[...] que a teoria do silogismo jurídico não é satisfatória para explicar como se efetiva a decisão, não oferecendo elementos suficientes para a compreensão de como deve ser feita a motivação. O máximo que se pode fazer é aceitar o silogismo como mais um instrumento lógico aplicável, com o qual o cuidado deve ser dobrado, em função de sua formalidade.179

A tópica, que constitui uma parte da retórica (arte da discussão), significa

técnica de pensar por problemas (casos concretos) e, em decorrência destes,

através de uma legitimação de premissas (as premissas são os tópicos, cuja

legitimação enquanto tal depende da aceitação do interlocutor), procura dar uma

solução justa para qualquer caso que seja apresentado ao jurista. Percebe-se que

os tópicos servem de auxiliar de orientação ao intérprete.

Pelo que foi dito, já é possível extrair os três elementos característicos da

tópica: o problema, os tópicos e a legitimação das premissas.180

O problema é o ponto de partida do pensamento tópico, aqui considerado

uma situação da vida real que demanda um entendimento preliminar e que

aparentemente comporta mais de uma solução, o que leva necessariamente a uma

eleição entre alternativas possíveis.

Os tópicos (ou topoi), por seu turno, englobam toda proposição ou

conceito que se preste a uma discussão do problema e indique uma possível

solução adequada, donde somente adquirirem sentido no contexto do problema, da

situação concreta. Em suma, são pontos de vista de ampla aceitação que auxiliam a

tarefa do intérprete, como as normas (aqui ocupam papel secundário, já que

primordial é o problema), os métodos de interpretação, as decisões do Poder

Judiciário etc.

179 CASTRO, Fábio Caprio Leite de. Aspectos filosóficos da motivação judicial. Revista de Estudos

Criminais. Porto Alegre: Nota Dez, 2004, ano 4, n. 13, p. 127. 180 ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. Trad. Maria Cristina

Guimarães Cupertino. 3. ed. São Paulo: Landy, 2003, p. 49-50.

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A validação das premissas (pela aceitação do interlocutor) configura a

derradeira característica da tópica. Como se opera esta validação das premissas?

Colocado um caso concreto (problema), o intérprete vai se socorrer dos topoi, que

se prestam para afirmar ou contrapor um outro argumento. À medida que o

interlocutor (no direito processual, as partes) for aceitando as argumentações

contrárias, vão-se formando as premissas que visam a encontrar uma solução que

seja razoavelmente justa. Assim, premissas legítimas são aqueles pontos de vista

aceitos pelas partes, depois de colocados em discussão.

A tópica não é uma técnica moderna de pensar, pois vem desde a

Antigüidade (graças às contribuições de Aristóteles – 384-322 a.C. - e Cícero – 106-

43 a.C. -). Apenas foi retomada por Theodor Viehweg em Topik und Jurisprudenz

(1953), obra na qual sugere que a tópica deveria ser utilizada como técnica de

interpretação do Direito, daí figurar como patrono da teoria tópica do raciocínio

jurídico.181 Por conseguinte, o pensador alemão “não criou nem propôs um novo tipo

de discurso para o direito, mas detectou-o ao analisar as produções jurídicas onde

tal discurso se encontra latente ou implícito.”182

Aristóteles se dedicou a construir uma teoria da tópica (através da

ordenação dos topoi) a partir de coisas meramente plausíveis ou prováveis

(contenta-se com premissas verossímeis, isto é, com opiniões geralmente aceitas),

ao invés do raciocínio dedutivo-silogístico (ou demonstrativo), em que as premissas

das quais parte são primeiras e verdadeiras (primum verum), não podendo sequer

ser postas em dúvida. Vê-se que o diferencial entre a argumentação dialética e a

argumentação demonstrativa reside na natureza das premissas (aspecto

181 ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. Trad. Maria Cristina

Guimarães Cupertino. 3. ed. São Paulo: Landy, 2003, p. 45-49. 182 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1980, p. 33.

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material).183 O objetivo colimado com este estudo é “encontrar um método com o

qual se possa raciocinar sobre qualquer problema colocado a partir de coisas

plausíveis.”184

Já Cícero voltou-se para a utilização prática da tópica, formulando e

aplicando uma coletânea de tópicos (topoi para os gregos, que nada mais são do

que opiniões geralmente aceitas, “pontos de vista que têm aceitação generalizada e

são aplicáveis seja universalmente, seja num determinado ramo do saber,”185 que na

tópica ciceroniana recebem o nome de loci, lugares), pois para ele a tópica consiste

na arte de buscar argumentos.

[...] um argumento é, para Cícero, uma razão que serve para convencer de uma coisa duvidosa [...]; os argumentos estão contidos nos lugares ou loci – os topoi gregos -, que são, portanto, sedes ou depósitos de argumentos; a tópica seria a arte de achar os argumentos [...].186

Para a tópica não existe problema sem solução e, por isto, é uma técnica

de pensamento que parte do problema a ser solucionado (do especial para o geral),

e percorre os sistemas na procura por topoi que dêem sustentação à determinada

solução, segundo anotado por Brum:

A tópica é uma técnica de pensamento que se orienta a partir do problema que se quer solucionar. [...] Segundo o pensamento tópico, o que releva é a solução do problema, não importando a qual ou quais sistemas tenha de recorrer-se para isso [...].Para o pensamento tópico [...] não existe problema insolúvel.

183 ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. Trad. Maria Cristina

Guimarães Cupertino. 3. ed. São Paulo: Landy, 2003, p. 48. 184 CASTRO, Fábio Caprio Leite de. Aspectos filosóficos da motivação judicial. Revista de Estudos

Criminais. Porto Alegre: Nota Dez, 2004, ano 4, n. 13, p. 127 (grifo do autor). 185 ATIENZA, op. cit., p. 48. Brum define os topoi como “opiniões acreditadas que, por seu poder

retórico, dispensam verificação ou demonstração. Eles nada têm a ver com a verdade (tomada esta palavra com seu usual sentido absolutista), mas sim com a verossimilhança.” BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 35.

186 ATIENZA, op. cit., p. 48-49. Esclarece que Cícero criou uma distinção entre a invenção e a formação do juízo: enquanto a primeira se volta para a obtenção de argumentos, para o estabelecimento das premissas (campo onde surge a tópica), a formação do juízo se localiza em momento posterior, isto é, “na passagem das premissas para a conclusão.” Ibid., p. 48-49.

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A técnica do pensamento problemático, portanto, não parte do ponto de vista geral para resolver o caso particular, mas, pelo contrário, põe o problema particular no primeiro plano da atenção e, sem jamais perdê-lo de vista, faz incursões aos diversos sistemas existentes em busca de pontos de vista que lhe sejam pertinentes. Esses pontos de vista são os topoi ou tópicos, lugares-comuns revelados pela experiência bem sucedida. Isolados, não têm os tópicos nenhuma relação entre si. O que os relaciona e atrai são os dados do problema e o que os elege ou rejeita é a solução que se pretenda dar ao problema.187

Os topoi somente são passíveis de inter-relacionamento quando

considerados no interior do problema. Eles não estão comprometidos com a

verdade, mas sim com a verossimilhança. Quando tomados como premissas, os

tópicos levam a conclusões dialéticas, não a resultados lógicos.188

Brum apresenta os cinco passos identificados por Viehweg no contexto

processual de uma interpretação tópico-retórica, alertando que eles não obedecem

obrigatoriamente esta ordem cronológica, e o que é o mais importante: os passos

traduzem retoricamente um raciocínio e uma conclusão prévios por parte do

intérprete (o julgador no caso da sentença), até então internalizados:

1º passo: a determinação do problema, ou seja, a identificação e delimitação do caso com todas as suas circunstâncias; 2º passo: o inventário dos tópicos pertinentes ao caso; 3º a seleção dos tópicos prós e contras, agrupando-os segundo as soluções possíveis para o caso; 4º passo: a montagem da argumentação, exaltando os tópicos prós e desqualificando (refutando ou omitindo) os tópicos contras em relação à solução eleita pelo intérprete; 5º passo: a síntese da conclusão julgada justa.189

Esclarece Brum, que na realidade este conjunto de cinco passos

precisará ser percorrido algumas vezes antes mesmo da solução do problema

central, porquanto

187 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1980, p. 34. 188 Ibid., p. 34-35. 189 Ibid., p. 35.

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[...] para cada problema que surgir, haverá uma série de cinco passos que se destinará, ora à solução do problema parcial da verossimilhança fática (verdade processual), ora à solução dos problemas incidentais criados e, por fim, haverá uma série com os derradeiros cinco passos que levarão à solução e justificação da solução do problema central.190

A crítica formulada por Gimbernat Ordeig evidencia que a teoria tópica do

raciocínio jurídico, isoladamente adotada, assim como a do silogismo, revela-se

insuficiente para dar uma solução adequada ao problema jurídico-penal:

A dogmática jurídica deve pensar sistematicamente e também problematicamente. [...] Um pensar meramente problemático, porém, também não basta. Não há nenhum motivo para não levar ao sistema as conseqüências que resultem da solução de um problema; apenas o sistema deve permanecer sempre aberto e ir se conformando de acordo com as soluções que vão sendo obtidas diante dos diferentes problemas. A tarefa do penalista consiste em ir superando as aparentes contradições que surgem das soluções dos diferentes problemas e em harmonizar essas soluções em um sistema. Num sistema que nunca poderá ser considerado como algo definitivo, mas sempre como suscetível de modificação e de nova harmonização quando for preciso incorporar a ele novos princípios obtidos do enfrentamento de novos problemas.191

Finalmente, a teoria retórica da argumentação consiste numa releitura

moderna da retórica clássica, capitaneada por Chaïm Perelman (1912-1984), para

quem todo discurso tem um contexto, e, por conseguinte, um auditório para o qual

ele é produzido. A relação que se estabelece entre o auditório e o enunciador é,

propriamente dita, retórica, já que a adaptação ao auditório é uma condição para a

persuasão.

Perelman trouxe relevantes contribuições para a teoria da argumentação

e para a motivação a partir de uma concepção da lógica jurídica.

190 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1980, p. 36. 191 GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Conceito e método da ciência do direito penal. Trad. José Carlos

Gobbis Pagliuca; rev. da trad. Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002 (Série as ciências criminais no século XXI, v. 9), p. 94.

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A lógica jurídica não se confunde com a lógica formal, também conhecida

como lógica matemática, porquanto esta trabalha com leis ou regras independentes

da matéria do raciocínio, característica que as revestem de uma generalidade que

permite a sua aplicação em diferentes áreas.192

Perelman193 deixa claro desde o início esta distinção, para demonstrar a

impossibilidade de se dispensar outras formas de raciocínio (que não seja o

raciocínio demonstrativo dos matemáticos) imprescindíveis para a filosofia, as

ciências humanas e em particular para o direito, e insuscetíveis de serem manejadas

mecanicamente (na base do tudo ou nada, do certo ou do errado), uma vez que o

uso destes argumentos demanda sempre uma tomada de posição para que seu

emprego em certos casos esteja justificado (destarte, a conclusão de uma

argumentação não-formal, hipótese em que se encaixa a argumentação jurídica,

resulta de uma escolha que sempre pode ser discutida e debatida). Exatamente as

razões que amparam o argumento é que lhe conferirão relevância ou não, força ou

fraqueza.

A teoria da argumentação, portanto, nada mais é do que o estudo dos

argumentos de que lançam mão as ciências não-matemáticas (aí incluído o direito),

donde então poder-se afirmar que a teoria da argumentação jurídica é o estudo das

razões jurídicas que servem de justificativa para uma determinada decisão.

Focando o direito e a figura do julgador, está ele obrigado sempre a julgar

e a motivar suas decisões, deveres que no Brasil recebem dignidade constitucional

através dos princípios da proteção judiciária (Constituição Federal, artigo 5º, inciso

192 PERELMAN, Chaïm. O Direito. In: Ética e direito. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo:

Martins Fontes, 1996, segunda parte, p. 469. 193 Ibid., p. 471.

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XXXV) e da obrigatoriedade de fundamentação de todas as decisões judiciais

(Constituição Federal, artigo 93, inciso IX).194

Exatamente em decorrência dessa dupla obrigatoriedade é que surge a

necessidade de o julgador recorrer a técnicas de raciocínio que refogem ao âmbito

da matemática (e, portanto, à esfera da lógica formal) e constituem a especificidade

da lógica jurídica, porque ao apreciar ele questões de fato e de direito em cada caso

concreto, não se limita a deduzir determinadas conseqüências jurídicas, mas antes

argumenta, expondo os motivos de ter aceitado ou refutado tal linha de raciocínio,

de ter optado por tal conclusão e não outra, e assim por diante. Nisto reside

precisamente o diferencial jurídico no raciocínio do juiz: não “a dedução formalmente

correta de uma conclusão a partir de premissas,”195 mas sim os processos

discursivos que o levaram ao assentamento das premissas na esfera de um sistema

de direito vigente.

O jusfilósofo polonês apresenta com clareza a complexidade

argumentativa que envolve a fase do julgamento, para concluir logo em seguida que

o raciocínio jurídico é um raciocínio prático:

[...] Obrigado a julgar e a motivar, o juiz deve tratar o direito que é incumbido de aplicar como um sistema a um só tempo coerente e completo. Deve interpretar o direito de modo que, de um lado, remova as incompatibilidades e mesmo as contradições que poderiam, à primeira vista, ocorrer e, de outro lado, complete as lacunas que o legislador poderia, à primeira vista, ter deixado. E esse modo de proceder, ele deve motivá-lo relacionando suas conclusões com textos legais. Essa motivação não é coerciva, pois não resulta de um raciocínio puramente demonstrativo, mas de uma argumentação. É porque essa argumentação não é mero cálculo, e sim apreciação da força deste ou daquele raciocínio, que a liberdade e a independência do juiz constituem um elemento essencial na administração da justiça. [...]

194 Mesmo antes da Constituição Federal de 1988, a Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei nº

4.657, de 04/09/1942) já vedava a recusa ao julgamento em decorrência de eventual omissão legislativa, ao dispor em seu artigo 4º: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”

195 PERELMAN, Chaïm. O Direito. In: Ética e direito. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, segunda parte, p. 481.

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Ao querer reduzir a lógica à lógica formal, tal como ela se apresenta nos raciocínios demonstrativos dos matemáticos [...] se descura inteiramente do modo como os homens raciocinam para chegar a uma decisão individual ou coletiva. É porque, de fato, a razão prática, aquela que deve guiar-nos na ação, é muito mais próxima daquela do juiz do que daquela do matemático, que o lógico que se veda examinar a estrutura dos raciocínios alheios às matemáticas, que recusa reconhecer a especificidade do raciocínio jurídico e do raciocínio prático em geral, presta um mau serviço à filosofia e à humanidade. [...] À humanidade, que à míngua de encontrar um guia nas filosofias de inspiração racional, tem de abandonar-se à irracionalidade, às paixões, aos instintos e à violência.196

Se o raciocínio jurídico (raciocínio exteriorizado pelo juiz na motivação de

uma decisão) é um raciocínio prático, e se o poder de decisão concedido ao juiz não

é perfeitamente limitado pela lei, lógico que suas sentenças estarão inquinadas de

posicionamentos tidos por ele como os mais acertados para que o direito atinja

determinadas finalidades políticas e sociais, não podendo ainda o juiz estar alheio às

conseqüências de suas decisões na vida dos jurisdicionados. Este é o direito real e

efetivamente aplicado, que há de ser conectado com o direito como ele deveria

ser.197 Esta ponte, segundo Perelman, incumbe exatamente à argumentação,

porque ela é que possibilita dar justificação razoável aos posicionamentos do

julgador, cuja eventual arbitrariedade é contida pela obrigação de motivar as suas

opções.198

Com efeito, é exatamente a motivação que irá por em relevo as

características do raciocínio seguido pelo julgador para chegar, em seguida, a uma

conclusão (parte dispositiva da sentença). E será a análise deste raciocínio que

permitirá verificar, em cada caso concreto, se aquela sentença está ou não

justificada, conforme consigna Perelman:

196 PERELMAN, Chaïm. O Direito. In: Ética e direito. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo:

Martins Fontes, 1996, segunda parte, p. 472-473. 197 Esta ligação entre o mundo do ser (sein) e do dever-ser (sollen) é incompatível com o positivismo

jurídico. 198 PERELMAN, op. cit., p. 480.

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O dispositivo da sentença, a parte que contém a decisão do juiz, é precedido pelo enunciado dos considerandos, ou seja, das razões que motivaram essa decisão. O raciocínio judiciário se apresenta, assim, como o próprio padrão do raciocínio prático, que visa a justificar uma decisão, uma escolha, uma pretensão, a mostrar que elas não são arbitrárias ou injustas. A sentença será justificada se resultar dos considerandos que ela é conforme ao direito.199

Todavia, uma boa argumentação, a par de imprescindível, não esgota as

exigências para legitimar a sentença no contexto de um Estado Democrático de

Direito:

[...] o poder judicial somente está legitimado enquanto amparado por argumentos cognoscitivos seguros e válidos (não basta boa argumentação), submetidos ao contraditório e refutáveis. A fundamentação das decisões é instrumento de controle da racionalidade e do sentire do julgador, num assumido anticartesianismo. Mas também serve para controlar o poder, e nisso reside o núcleo da garantia. Permite ainda aferir “que verdade” brota do processo, evitando assim o substancialismo da mitológica “verdade real”. Ademais, é crucial que a fundamentação seja construída a partir de atos de prova, devidamente submetidos a jurisdicionalidade e contraditório [...].200

Diante disto, a verdade a ser buscada no contexto de um processo penal

típico do Estado Democrático de Direito não é aquela obtida a todo custo em nome

do interesse público, com desprezo às garantias processuais e erigida como

verdade absoluta (a chamada verdade material ou substancial), mas sim aquela

verdade provável, limitada pelo que efetivamente se ficou sabendo do fato já

ocorrido (delito) e agora reconstruído perante o juiz, e de suas circunstâncias

penalmente relevantes, sempre através de atos de prova perfeitamente controláveis

- pela preexistência de normas que regulam o modo de sua produção - e refutáveis -

porque submetidos ao contraditório e à ampla defesa (a verdade formal ou

199 PERELMAN, Chaïm. O Direito. In: Ética e direito. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo:

Martins Fontes, 1996, segunda parte, p. 481. 200 LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade

garantista. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 261.

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processual).201 A práxis demonstra que poucos juízes cumprem estas exigências,

quer para decidir entre condenar ou absolver, quer para chegar a uma pena privativa

de liberdade minimamente racional (é só puxar um pouco pela memória e se

lembrará de alguma sentença na qual a condenação, ainda que de forma não

assumida pelo seu prolator, embasou-se despudoradamente nas informações

coletadas na fase investigatória, servindo a prova em si somente como um ponto de

apoio totalmente secundário; em que os antecedentes do condenado foram tidos por

desfavoráveis frente à mera certidão expedida pela autoridade policial; em que a

pena-base é majorada com base em elementos integrantes do próprio tipo penal, ou

desacompanhada de qualquer fundamentação empírica e por aí vai ...). Estas e

outras anomalias são objeto de enfrentamento no Capítulo 4.

1.5.7 Prevalência do saber judicial sobre o poder

Não se pode olvidar que todo o desenvolvimento de um processo visa a

convencer o juiz, o qual, ao final, manifesta a sua opinião sobre se os fatos estão

bem fixados e quais conseqüências jurídicas daí advirão.

Portanto, toda atividade jurisdicional, com destaque para a sentença

penal condenatória, é uma conjugação de saber (conhecimento) e de poder

(decisão), aquele entendido como aquisição de conhecimento sobre a ocorrência ou

não no mundo real do fato objeto do processo, enquanto o poder se traduz na

201 LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade

garantista. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 266-271. A incompatibilidade da verdade material com o modelo de Estado brasileiro vigente fica patente pela sua origem histórica, afinada com a inquisição, aspecto ressaltado por Lopes Júnior: “[...] está demonstrado empiricamente que o processo penal, sempre que buscou uma ‘verdade mais material e consistente’ e com menos limites na atividade de busca, produziu uma ‘verdade’ de menor qualidade e com pior trato para o imputado. Esse processo, que não conhecia a idéia de limites – admitindo inclusive a tortura – levou mais gente a confessar não só delitos não cometidos, mas também alguns impossíveis de serem realizados.” Ibid., p. 266-267.

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“coação que afeta o sujeito passivo da atuação processual.”202 O poder é o meio

necessário para atingir aquele saber, que é a própria finalidade do processo. A

relação de forças entre um e outro é que permite identificar um modelo de processo

penal como autoritário (supremacia do poder sobre o saber judicial) ou democrático

(predomínio do saber judicial sobre o poder, ambos revestidos necessariamente de

formas de controle da racionalidade).

Conforme adverte Lopes Júnior:

A dimensão do poder [...] necessário para atingir esse saber tem que ocupar um lugar secundário e permanecer sujeito a regras muito estritas, presididas pelos princípios da necessidade (e respeito aos direitos fundamentais) e proporcionalidade (racionalidade entre meio/fim),203

daí poder-se afirmar existir uma relação inversamente proporcional entre poder e

racionalidade: quanto maior aquele, menor esta.204

Feitas tais ponderações, adquire contornos ainda mais nítidos a

relevância da motivação das decisões judiciais, pois é através dela que se verifica,

em cada caso concreto, qual dos fatores componentes da equação restou

maximizado em detrimento do outro: se o saber (racionalidade da decisão) sobre o

poder, cumprido está o pressuposto de um processo penal democrático, porquanto é

o saber judicial que legitima o poder.205 Em outras palavras, se presta a motivação

para controlar a racionalidade da decisão judicial, aqui uma racionalidade

202 LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade

garantista. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 258. 203 Ibid., p. 258-259. 204 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et al. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 39. 205 “[...] Não se trata de gastar folhas e folhas para demonstrar erudição jurídica (e jurisprudencial) ou

discutir obviedades. O mais importante é explicar o porque da decisão, o que o levou a tal conclusão sobre autoria e materialidade [e mais adiante, caso condenatória a sentença, o que o levou a escolher determinada qualidade e quantidade de pena]. A motivação sobre a matéria fática demonstra o saber que legitima o poder, pois a pena somente pode ser imposta a quem – racionalmente – pode ser considerado autor do fato criminoso imputado.” LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 259 (grifo do autor).

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impregnada de sentimento e emoção, bem distante da falsa neutralidade do

julgador.206

Por aí já se vê que a atividade jurisdicional – cujo momento culminante

deságua na sentença – não se coaduna, no contexto de um Estado (Constitucional)

Democrático de Direito, com um atuar mecanicista do juiz, que na sentença trabalhe

meramente com silogismo, que seja refratário à interpretação das leis, heranças do

modelo iluminista.207

206 A concepção de racionalidade aqui incorporada, na esteira de Lopes Júnior, é o oposto daquela

defendida por Descartes, que via a atividade de pensar totalmente desgarrada do corpo e de qualquer emoção (“penso, logo existo”), sustentando-se, por via de conseqüência, a impossibilidade de existir racionalidade “sem sentimento, emoção, daí a importância da subjetividade e de todo sentire no ato decisório. Também isso contribui para desvelar a hipocrisia do discurso (paleo)positivista da ‘neutralidade do juiz’.” LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 260 (grifo do autor).

207 Não à toa, a defesa ardorosa da limitação da atividade do juiz à mera verificação da perfeita correspondência entre previsões legais e fatos concretos, isto é, do silogismo perfeito, é sustentada por Beccaria (que assim visava a combater o direito penal do terror, característico das monarquias absolutas, quando vigorava o sistema da absoluta indeterminação das penas, conferindo poderes excessivos aos magistrados), para quem o soberano era o único intérprete legítimo das leis: “[...] os julgadores dos crimes não podem ter o direito de interpretar as leis penais, pela própria razão de não serem legisladores. [...] O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for obrigado a elaborar um raciocínio a mais, ou se o fizer por sua conta, tudo se torna incerto e obscuro. Não há nada mais perigoso do que o axioma comum de que é necessário consultar o espírito da lei. Adotar esse axioma é quebrar todos os diques e deixar que as leis voguem à torrente das opiniões.” BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1983, p. 16-17.

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CAPÍTULO 2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS INERENTES À APLICAÇÃO DA

PENA (PRIVATIVA DE LIBERDADE)208

Tem sido objeto de realce nas constituições dos Estados democráticos de

direito o cuidado em exercer uma influência racionalizadora no campo das relações

entre política e direito penal, ao mesmo tempo estreitas e tensas, traduzida numa

exigência de eticidade para este último, porque em sua essência se localiza o ser

humano. Para alcançar esta meta racionalizadora, reforçam e ampliam os limites

constitucionais garantidores do emprego da sanção criminal.209 Os princípios

constitucionais constituem um destes limites, dedicando-se este Capítulo a alguns

informadores do Direito Penal e, mais especificamente ainda, do processo de

individualização da pena. Antes de analisá-los de per si, é revelante assentar

algumas idéias sobre os princípios (em geral, e particularmente os constitucionais)

no contexto do ordenamento jurídico.

O ordenamento jurídico é uma estrutura complexa, constituída de regras, mas, também, de valores e de princípios, ou seja, de categorias, axiológicas e deontológicas [porque propõem dever-ser], que formam uma totalidade [...].210

Por conseguinte, vê-se que o direito não é uma norma isolada, mas um

sistema de normas (logo, a Constituição é um sistema de normas jurídicas)211 como

208 O princípio da motivação não consta deste Capítulo, pois foi abordado dentre os requisitos formais

da sentença e nas teorias da argumentação (Capítulo 1); o princípio da presunção de inocência também não figura aqui, porque sustenta a posição crítica acerca da limitação dos antecedentes criminais, pelo que, é trabalhado quando abordada esta circunstância judicial (Capítulo 4).

209 PALAZZO, Francesco C. Valores constitucionais e direito penal: um estudo comparado. Trad. Gérson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989, p. 17-18.

210 BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 25.

211 Como um sistema de normas jurídicas, a Constituição “não é um simples agrupamento de regras que se justapõem ou que se superpõem. A idéia de sistema funda-se na de harmonia, de partes que convivem sem atritos,” tocando aos princípios constitucionais, enquanto “valores superiores e diretrizes fundamentais” desta ordem jurídica, exatamente “costurar” as partes deste sistema. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 142-143.

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também que o sistema jurídico (ou ordenamento jurídico) é composto de duas

categorias de normas: os princípios (base do ordenamento) e as regras,212 os

primeiros dotados de maior abstração e generalidade, além de possuir uma

destinação mais relevante dentro do sistema, enquanto as regras são eficazes

exclusivamente no âmbito das situações específicas para as quais são

direcionadas.213

Procurando diferenciar uma categoria de norma da outra, Canotilho

disponibiliza alguns critérios:

a) Grau de abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida. b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador? do juiz?), enquanto as regras são suscetíveis de aplicação direta. c) Caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito). d) ‘Proximidade’ da idéia de direito: os princípios são ‘standards’ juridicamente vinculantes radicados nas exigências de ‘justiça’ (DWORKIN) ou na ‘idéia de direito’ (LARENZ); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional. e) Natureza normogenética: os princípios são fundamentos de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.214

Os princípios constituem as idéias centrais de um sistema, porquanto lhe

“dão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo

212 A força normativa dos princípios é largamente aceita pela doutrina, podendo ser citados

exemplificativamente: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1995, p. 166; BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 35; SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 139 e BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 141.

213 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 141.

214 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1995, p. 166-167 (grifo do autor).

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de organizar-se.”215 Ressalta-se de imediato, desta forma, que o conhecimento do

sistema jurídico passa necessária e aprioristicamente pelo estudo e compreensão

dos princípios que o informam.

Na hierarquia das normas os princípios (explícitos e implícitos) são

superiores às regras (axiologicamente falando, porquanto veiculam valores), pois

eles é que dão o significado e a extensão delas, exigindo-se, destarte, coerência

entre ambos, mas sempre partindo dos princípios para as regras, daí por que

violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma [aqui no sentido de regra]. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustém e alui-se toda a estrutura neles esforçada.216

Tanto isto é verdade, que ocorrendo eventual conflito entre princípios e

regras em uma determinada situação concreta, “os princípios que informam as

regras devem ser avivados, fazendo-se, posteriormente, a ponderação dos

respectivos pesos [dos princípios envolvidos] diante do caso concreto,”217 pois o que

vai prevalecer é um princípio sobre outro princípio (trata-se na realidade de um

conflito entre princípios, mas de forma mascarada), este informador da regra, mas

sem que a preponderância daquele signifique o desrespeito completo do princípio

que foi momentaneamente desprivilegiado.

É tamanha a relevância dos princípios na compreensão global do

ordenamento jurídico, que não se revela exagerado afirmar: “aquele que só conhece 215 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996,

p. 137. 216 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. 3. ed. rev., ampl. e atual.

São Paulo: Malheiros, 1992, p. 300. 217 ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico? Florianópolis: Habitus, 2003 (Coleção

Para Entender o Direito, 3º vol), p. 67 (grifo do autor).

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as regras, ignora a parcela mais importante do direito – justamente a que faz delas

um todo coerente, lógico e ordenado. Logo, aplica o Direito pela metade.”218

Além de conhecer os princípios, é fundamental saber manejá-los em

conjunto diante de cada situação concreta, operação por vezes complexa, na

medida em que o peso de determinado princípio varia de caso a caso e cada um

deles coloca diante do intérprete um feixe de princípios, o que exige do aplicador

conhecer a ideologia que encharca o ordenamento jurídico com o qual está

trabalhando.219

As idéias desenvolvidas no Capítulo anterior demonstraram, quase à

exaustão, que no âmbito do Estado, “a Constituição é a máxima e última expressão

da juridicidade.”220

Pois bem, a incorporação pela Constituição (direito positivo ou positivismo

jurídico) dos valores substanciais expressados pelas doutrinas iluministas do direito

natural (jusnaturalismo) permitiu a abertura do direito positivo e o transformou numa

estrutura complexa, capaz perfeitamente de compartilhar “tanto a dimensão do ser

[do direito, enquanto direito positivo em seu conjunto] como a do dever ser [do

direito, ligado à idéia de justiça],”221 porque a novidade muda o foco da antiga

dicotomia entre lei positiva/lei natural para o ser e dever ser no direito, como bem

desenvolve Ferrajoli:

[...] Tão logo o direito natural foi colocado como fundamento do moderno Estado de direito e assim que seus princípios de vínculos apenas políticos ou externos passaram a ser também jurídicos ou internos, perdeu sua função de parâmetro exclusivo de valoração do direito positivo. Tal função,

218 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996,

p. 140. 219 Ibid., p. 144. 220 GORDILLO, Agustin. Princípios gerais de direito público. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1977, p. 94. 221 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et al. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 289 (grifo do autor).

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depois da inclusão daqueles princípios entre as normas constitucionais, também emana destas últimas, de forma que todo “Estado de direito”, especialmente quando está dotado de uma Constituição rígida [caso da República Federativa do Brasil], é susceptível de valoração não só externa, referida a princípios naturais de justiça, senão também interna, quer dizer, referida a seus próprios princípios tal e como estão garantidos por essas regras positivas de direito natural que são os textos constitucionais. E esta valoração não se refere somente à justiça, senão diretamente à validade das normas jurídicas. Mais precisamente, a diferença entre dever ser e ser no direito tem chegado a coincidir com a existente entre validade e eficácia ou, se se prefere, entre direito e fato, exatamente da mesma forma que a diferença entre dever ser e ser do direito configura-se como diferença entre justiça e direito positivo em seu conjunto.222

Assim, estes valores que impregnam a ordem jurídica nos Estados

constitucionais de direito são veiculados através de princípios jurídicos, mais

precisamente princípios constitucionais - “síntese dos valores mais relevantes da

ordem jurídica.”223

Pode-se então afirmar que os princípios de direito penal constitucional

possuem como fundamento histórico comum o Iluminismo,224 ideário libertador e de

reação ao até então vigente direito penal do terror. Defendeu o domínio da razão

sobre a visão teocêntrica que dominava a Europa desde a Idade Média e colocou o

homem, por via de conseqüência, no centro do palco da vivência social, o instando a

buscar respostas até então justificadas apenas pela fé.225

Beccaria conclui sua magistral denúncia contra os abusos punitivos

próprios do obscurantismo da Idade Média, apresentando os pressupostos

cumulativos da pena enquanto resposta estatal minimamente legítima (e não um ato

de violência contra o cidadão): “a pena deve ser, de modo essencial, pública, pronta,

222 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et al. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 288-289 (grifo do autor). 223 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma

dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 142. 224 Movimento surgido na França no século XVII e que atingiu seu auge no século XVIII, conhecido

como Século das Luzes. Representou, no âmbito do direito penal, o auge “do movimento de humanização da pessoa humana (da civilização)”, conforme GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: parte geral – vol. 1. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais/IELF, 2004, p. 27.

225 ILUMINISMO. Disponível em: <http://www.suapesquisa.com/historia/iluminismo/>. Acesso em: 26 set. 2006.

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necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias referidas,

proporcionada ao delito e determinada pela lei.”226

O Iluminismo se funda numa concepção antropocêntrica de Estado (o

Estado para o indivíduo), reconhecendo ao indivíduo direitos que lhe são inerentes e

preexistentes ao Estado (direitos naturais, os quais, num primeiro momento histórico,

traçam limites externos ao poder estatal), que, portanto, há de respeitá-los e

protegê-los.227 Além do jusnaturalismo, a transformação do Estado para os

defensores da filosofia da Ilustração passava pela sua elaboração jurídica “como se

tivesse origem em um contrato, no qual, ao constituir-se o Estado, os direitos

humanos seriam respeitados e assegurados,” daí surgindo um direito penal

humanitário: “vinculado a leis prévias e certas, limitadas ao mínimo estritamente

necessário, e sem penas degradantes.”228

Assim, o conjunto de idéias iluministas (que refletiu no constitucionalismo

europeu do começo do século XIX) - reação ao poder estatal ilimitado, prevalência

da razão sobre o misticismo e, sobretudo, uma concepção jurídica e formal de uma

Constituição como instrumento de tutela de direitos humanos a favor do homem e

frente ao Estado – abre espaço para a existência de um ponto comum entre a

Constituição e o direito penal: um vale comum de garantias, como assevera Cláudio

do Prado Amaral,229 já que aquela tutela se manifesta através de princípios

limitadores da intervenção estatal na esfera da liberdade e da integridade física

individual. 226 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1983,

p. 97. 227 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. 2. ed.

Brasília: Universidade de Brasília, 1992, p. 15-16. O autor disseca e confronta, a partir da p. 37, as teorias contratualistas de Locke, Hobbes e Rousseau, para, ao final (p. 47), sintetizá-las nas seguintes fórmulas: “de liberdade do Estado (Locke), de servidão no Estado (Hobbes), de liberdade no Estado (Rousseau).” (grifo do autor).

228 LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991, p. 32. 229 AMARAL, Cláudio do Prado. Princípios penais: da legalidade à culpabilidade. São Paulo:

IBCCRIM, 2003, p. 30.

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Enquanto limitadores da atuação estatal na esfera das liberdades

individuais, os princípios de direito penal constitucional desempenham papel que

não pode ser subestimado: evitar que a política criminal voltada para o

abrandamento das penas, para soluções que não envolvam a privação da liberdade

do indivíduo, para a descriminalização e outras orientações, venha a ser alterada

“em face de respostas imediatistas e circunstanciais, decorrentes de situações

esporádicas de tensão social.”230

2.1 CONCEITOS

Os conceitos a respeito dos princípios constitucionais colocam em relevo

sua função fundamentadora e limitadora com relação aos princípios que ocupam

posição normativa inferior e às regras, dada a sua condição de norma das normas,

porquanto expressam os valores essenciais de uma determinada comunidade

juridicamente organizada por uma lei fundamental. Ilustrativamente:

[...] os princípios constitucionais são valores nos quais o homem reconhece, ainda que na relativa mutabilidade da história e do espaço, a si mesmo: bem por isso, são valores fundamentais e progressivos, constitucionais no sentido de que com eles os povos trabalham a construção do próprio futuro.231

[...] são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. [...] são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui.232

Princípio [...] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre

230 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Penas alternativas. In: DOTTI, René Ariel et al. Penas restritivas de

direitos: críticas e comentários às penas alternativas – Lei 9.714, de 25.11.1998. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, parte III, p. 154.

231 Francesco Palazzo no prefácio à edição brasileira de seu livro. PALAZZO, Francesco C. Valores constitucionais e direito penal: um estudo comparado. Trad. Gérson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989.

232 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 141.

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diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.233

2.2 DIMENSÕES OPERATIVAS

Os princípios constitucionais comportam duas dimensões operativas:

princípios como diretrizes e princípios como normas.

A hermenêutica tradicional atribui aos princípios constitucionais somente

a função de “orientar o intérprete ou aplicador da lei na determinação do sentido dos

textos legislativos,”234 atuando como instrumental a serviço da arte de interpretar. Já

a concepção normativa amplia a operacionalidade dos princípios constitucionais,

pois como categoria de normas que expressam valores, são igualmente dotados de

força e aptidão para preencher as lacunas do ordenamento jurídico e também para

afastar a incidência de regras positivadas diante de determinada situação concreta e

específica.235

Socorre-se mais uma vez da precisão de Canotilho para bem sintetizar a

multifuncionalidade dos princípios:

Podem desempenhar uma função argumentativa, permitindo, por exemplo, denotar a ratio legis de uma disposição [atuando então como cânone de interpretação] ou revelar normas que não são expressas por qualquer enunciado legislativo, possibilitando aos juristas, sobretudo aos juízes, o desenvolvimento, integração e complementação do direito [...].236

233 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. 3. ed. rev., ampl. e atual.

São Paulo: Malheiros, 1992, p. 299-300. 234 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 30. 235 Ibid., p. 30-31. As dimensões interpretativa e integrativa dos princípios constitucionais é partilhada,

dentre outros, por: SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 141.

236 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1995, p. 167.

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Quanto à dimensão interpretativa, Sundfeld traça algumas diretrizes: a

interpretação de determinada regra não pode resultar contraditória (explícita ou

implicitamente) com o(s) princípio(s) que a informam; quando a regra comportar

mais de uma interpretação lógica, tem primazia aquela que mais se harmonizar com

os princípios; a extensão da regra há de ser ajustada (para mais ou para menos)

com o alcance do princípio, mediante interpretação extensiva ou restritiva,

respectivamente.237 Desta forma, fica evidente que o ponto de partida do intérprete

(aqui incluído o julgador) e os caminhos a serem por ele percorridos residem nos

princípios constitucionais (espécie do gênero princípios jurídicos), que funcionam

como verdadeiras bússolas em meio ao mar de normas, como ensina Dias:

[...] os princípios jurídicos, enquanto expressão da consciência ético-jurídica de determinada comunidade e em dado momento histórico, têm por função dar “sentido à multidão das normas, orientação ao legislador”, permitindo à dogmática “não apenas ‘explicar’, mas verdadeiramente compreender os problemas do Direito”, e, assim, “caminhar com segurança ao encontro da sua solução.”238

No tocante à dimensão integradora – aplicação da analogia a uma

situação não regulada expressamente, mas que guarda pontos de contato com uma

hipótese contemplada por uma regra – é o princípio subjacente a esta que irá

determinar a possibilidade ou não de lançar-se mão deste método de integração,

pois é da análise do princípio que se poderá concluir pela similitude ou não das

situações (a contemplada e a olvidada pela lei): se a solução indicada no princípio

237 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996,

p. 141-142. O artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei nº 4.657/42) e artigo 3º do Código de Processo Penal (Decreto-lei nº 3.689/41) expressamente autorizam o recurso aos princípios gerais de direito como método de integração.

238 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal, vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004 (reimpressão da 1. ed. de 1974), p. 113 (grifo do autor).

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embutido na regra for igualmente aplicável à hipótese lacunosa, autorizado estará o

emprego da analogia.239

A força normativa dos princípios constitucionais é tamanha, que não só

autoriza, antes determina, que o juiz paralise a incidência de determinada norma no

caso concreto

[...] sempre que possa motivadamente demonstrar sua incompatibilidade com as exigências de razoabilidade e justiça que estão sempre subjacentes ao ordenamento. Jamais deverá o magistrado se conformar com a aplicação mecânica da norma, eximindo-se de sua responsabilidade em nome da lei – não do direito! -, supondo estar no estrito e estreito cumprimento do dever.240

Este salvo-conduto a livrar o magistrado das amarras da mera

legalidade241 guarda especial relevância para o manejo das circunstâncias judiciais

constantes do artigo 59 do Código Penal, algumas delas claramente afrontosas aos

princípios constitucionais que informam o Estado Democrático de Direito (ver a

respeito o Capítulo 4).

2.3 PRINCÍPIOS EXPLÍCITOS

São aqueles formalmente expressos na Constituição.

2.3.1 Legalidade

239 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996,

p. 142. 240 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma

dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 259 (grifo do autor). 241 Princípio de direito público que se limita a “enunciar as condições de existência ou de vigência de

qualquer norma jurídica” (sem preocupação com o seu conteúdo), mas não da estrita legalidade, “metanorma que condiciona a validade das leis vigentes à taxatividade de seus conteúdos e à decidibilidade da verdade jurídica de suas aplicações”, enquanto princípio exclusivo do direito penal, conforme: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 305-306.

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A Constituição da República Federativa do Brasil (1988), em seu artigo 5º,

inciso XXXIX, dispõe que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem

prévia cominação legal,” recepcionando, pois, a redação semelhante do artigo 1º do

Código Penal Brasileiro, Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, com as

modificações introduzidas pela Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984.

Conhecido por princípio da legalidade, princípio da estrita legalidade ou

princípio da intervenção legalizada, este comando (no seu aspecto formal) submete

a existência de uma infração e de uma sanção penais à previsão legal específica, e

dele se extraem várias conseqüências.242

Um árduo caminho foi percorrido até que se atingisse o estágio atual de

evolução dos princípios garantísticos informadores do Direito Penal, dentre eles o da

legalidade, desde o primitivo direito romano, passando pela irracionalidade do

absolutismo até a necessidade de afirmação de garantias, fixando-se os princípios.

Somente a partir das idéias do Iluminismo e de suas características

principais, enquanto movimento de contestação ao absolutismo e marco inaugural

de uma nova era, foi possível introduzir princípios ideológicos na organização do

Estado moderno. Impuseram-se tais princípios a partir da Revolução Francesa, que

vieram a inspirar a formação política do chamado Estado Liberal, Estado de Direito

ou Estado Constitucional.

Logo, as bases do princípio da legalidade, nos moldes hoje vigorantes,

encontram-se arraigadas ao pensamento iluminista, porque é nessa época que

surge a idéia de expressão determinante da lei contra a arbitrariedade estatal

irracional, assim como o postulado dos direitos naturais e invioláveis da pessoa em

242 Dentre os princípios abordados neste Capítulo, três são considerados princípios básicos do próprio

Direito Penal – o da legalidade, o da humanidade e o da culpabilidade - porquanto “aspiram ser a plataforma mínima sobre a qual possa elaborar-se o direito penal de um estado de direito democrático”, conforme: BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 61-62.

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relação à sua liberdade. Entretanto, o modelo de Estado, enquanto democrático e de

direito, não pode se contentar com a acepção meramente formal do princípio (que

responde ao como proibir), devendo também estar aparelhado para responder ao o

que proibir, e nesta seara é que adentra a vertente substancial do princípio da

legalidade.

De qualquer forma, a evolução histórica do referido princípio demonstra a

sua incompatibilidade com regimes autoritários,243 em razão de sua nítida feição

garantística (ao lado de uma função constitutiva suscitada por Batista),244 avultada

sob a sua perspectiva material ou substancial.

Nos anos 900-1000 os senhores feudais se unem e elegem um deles

como seu soberano, com o apoio da Igreja. O que se forja a partir de uma

concepção filosófica teocêntrica é um Estado absolutista, cuja maior expressão foi a

França.

O Direito Penal à época sofre enorme influência da religião, existindo uma

estreita relação entre pecado e crime, o que gera elevadíssimo grau de

criminalização.245

Durante boa parte da Idade Média (que durou mil anos, do século V ao

século XV), o direito consuetudinário predominou sobre a lei escrita, a analogia em

matéria penal não era vedada e o pleno arbítrio dos juízes – além do próprio arbítrio

do rei - fez recair sobre essa época o triste adjetivo de penas arbitrárias.246

243 LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991, p. 15-

16, que cita a Alemanha de Hitler e a Rússia Soviética pós-revolução bolchevique. 244 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 68. 245 Bom exemplo desta inflação penal decorrente da influência religiosa foram as Ordenações

Filipinas (1603), que por mais de dois séculos, quanto à parte criminal, vigeram no Brasil, até o advento do Código Criminal do Império, de 1830.

246 SCHMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade penal no estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 136. Esclarece Amaral que por vezes “o arbítrio do juiz valia não só para determinar e aplicar penas não previstas em lei, mas também para estabelecer (criar) delitos não previstos anteriormente em lei.” AMARAL, Cláudio do Prado. Princípios penais: da legalidade à culpabilidade. São Paulo: IBCCRIM, 2003, p. 80.

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Pelo contexto sócio-político vigente à época, não pode ser atribuído o

nascimento do princípio da legalidade à Magna Charta Libertatum, do Rei João Sem

Terra, editada em 1215 na Inglaterra.247 A uma, porque os pares de que fala o seu

artigo 39 não são os integrantes do povo (que compunham e ainda compõem a

maioria dos delinqüentes), mas sim os condes, os barões e demais senhores

feudais; a duas, porque pende mais para figurar como uma garantia processual do

que material (e mesmo assim, limitada aos poucos homens livres), sem olvidar,

finalmente, que naquela época a formação dos Estados Modernos caminhava para o

absolutismo.248

O Estado absoluto se instaurou na Europa a partir do século XVI e

espalhava enorme terror. Apesar de não ser uma forma de Estado adotada

exclusivamente na França (Ancien Régime), foi aí que o absolutismo adquiriu maior

notoriedade, graças às habilidades do Cardeal Richelieu, responsável pela

superação do predomínio ibérico (representado por Portugal e Espanha) e pelo

restabelecimento do poder absoluto do rei como sinônimo de poder ilimitado, na

medida em que confundido com o próprio poder de Deus (monarquia do direito

divino, estabelecida durante o reinado de Luís XIV, o Rei Sol).249

247 Seu artigo 39 dispunha: “nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus

bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país.” Apud DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 57.

248 Comungam deste entendimento, dentre os autores visitados: BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 65-66; SCHMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade penal no estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 136-137. Apesar de todas estas ressalvas, “era ela original e singular em ordem a constituir-se na primeira norma que de uma maneira ou de outra reconheceu o Direito Individual dos nobres frente ao poder ilimitado do rei e assim mesmo um limite do ius puniendi que absolutamente não havia na Alta Idade Média.” SANTOS, Lycurgo de Castro. O princípio de legalidade no moderno direito penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 4, n. 15, jul.-set. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 183.

249 AMARAL, Cláudio do Prado. Princípios penais: da legalidade à culpabilidade. São Paulo: IBCCRIM, 2003, p. 24-26. O autor destrincha o absolutismo francês em quatro planos de dominação: “1) na política: o despotismo dos reis baseado no ‘direito divino’; 2) na economia: a intervenção do Estado nas atividades privadas, o mercantilismo; 3) na sociedade, sua repartição em Ordens ou Estados; 4) na cultura: a intolerância religiosa.” Ibid., p. 26.

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Diante de tamanha concentração de poder nas mãos do rei, cujas

decisões dispensavam fundamentação, óbvio não sobrar qualquer espaço para a

afirmação de direitos e garantias em prol do indivíduo. A persistência deste modelo

de pensamento teocêntrico – e seus desdobramentos (insegurança jurídica,

enormes privilégios para poucos etc) - acabou gerando variadas reações a partir do

Renascimento, secundado pelo Iluminismo, que coloca o homem como centro do

pensamento filosófico (visão antropocêntrica do mundo). Esta nova concepção, a

par de gerar enorme individualismo – porque o homem, se bastando, não precisa

dos demais – faz simultaneamente o homem questionar o poder do soberano,

ambas as conseqüências indo ao encontro dos interesses da classe que se firmava:

a burguesia.250

Estreitando os interesses vigentes na época do Iluminismo com o direito

penal – e por via de conseqüência, com o princípio da legalidade - Amaral disseca a

participação de três agentes fundamentais (os monarcas, a burguesia ascendente e

os filósofos) nesse processo evolutivo da Europa rumo à modernidade:

O monarca, ainda que ilustrado, déspota, de uma parte, estava muito interessado em concentrar o poder político em suas mãos; e para isso, o primeiro passo que tinha que dar era no sentido de conseguir unificar a legislação de seu país e acabar com os fueros e potestades dos senhores feudais. Portanto, a existência de um único Código Penal promulgado pelo monarca robustecia seu poder. [...] A burguesia, por sua vez, afiançada como classe social do futuro, via no poder da lei a possibilidade de organizar racionalmente a vida política, requisito mínimo para empreender a aventura da industrialização e estabilizar as relações de mercado. Nesse sentido, um Código Penal que permitisse ao cidadão saber a que deveria ater-se introduzia um fator de disciplina importante para as massas de trabalhadores que iriam ingressar nas fábricas. Os filósofos, de sua parte, mais idealistas que os anteriores agentes, queriam humanizar as penas, severíssimas na época do antigo regime, prevenir o delito em lugar de persegui-lo às cegas e outorgar ao cidadão a

250 Registra Batista com propriedade que o surgimento histórico do aludido princípio coincidiu com “a

revolução burguesa”, como “resposta pendular aos abusos do absolutismo [ao estabelecer garantias para o indivíduo frente ao poder do Estado] e, por outro, afirmação da nova ordem [ao conferir a titularidade da coerção penal exclusivamente ao Estado].” BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 65.

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garantia de que não iria ser perseguido nem sancionado com meios não estabelecidos previamente por lei.251

Vários pensadores iluministas sustentaram a necessidade da submissão

do poder (inclusive o judicial) à lei, mas a lição mais notável e clara a respeito

emana de Beccaria, no opúsculo Dos Delitos e das Penas, fortemente influenciado

por Rousseau:

[...] apenas as leis podem indicar as penas de cada delito e que o direito de estabelecer leis penais não pode ser senão da pessoa do legislador, que representa toda a sociedade ligada por um contrato social. Ora, o magistrado, que é parte dessa sociedade, não pode com justiça aplicar a outro partícipe dessa sociedade uma pena que não esteja estabelecida em lei; e, a partir do momento em que o juiz se faz mais severo do que a lei, ele se torna injusto, pois aumenta um novo castigo ao que já está prefixado.252

A partir do Iluminismo (mais precisamente a partir da Revolução

Francesa) a legalidade penal passou a fazer parte dos textos legislativos de forma

expressa e incontroversa – salvo em caso de regimes políticos totalitários ou

sistemas jurídicos embasados no common law - merecendo destaque a Declaração

francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), porque responsável pelo

processo de universalização do princípio,253

A fórmula ampla do princípio da legalidade – nullum crimen nulla poena

sine lege -, contrariamente ao que é difundido, não constava da obra de Feuerbach,

que em seu Tratado (1801) utilizou as expressões latinas nulla poena sine lege,

nulla poena sine crimine e nullum crimen sine poena legali.254

251 AMARAL, Cláudio do Prado. Princípios penais: da legalidade à culpabilidade. São Paulo:

IBCCRIM, 2003, p. 82-83. 252 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1983,

p. 15-16. 253 “[...] ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada

anteriormente ao delito e legalmente aplicada.” (artigo 8º). 254 VON FEUERBACH, Paul Anselm Ritter. Tratado de Derecho Penal. Trad. ao espanhol da 14. ed.,

por Eugenio R. Zaffaroni e Irmã Hagemeier. Buenos Aires: Hammurabi, 1989, p. 63.

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No Brasil, o princípio da legalidade, com maior ou menor intensidade, teve

guarida em todas as Constituições e em todas as leis penais infraconstitucionais.

A Constituição do Império de 1824 previa-o em seu artigo 179, inciso

XI;255 a republicana de 1891, no artigo 72, §15;256 a de 1934, no artigo 113, inciso

26;257 a de 1946, no artigo 141, §27;258 a de 1967, no artigo 150, §16;259 na Emenda

Constitucional nº 1, de 1969, no artigo 153, §16;260 e a atual, como visto, no artigo

5º, inciso XXXIX.

A Constituição outorgada por Getúlio Vargas em 1937, em plena vigência

do regime autoritário conhecido como Estado Novo, fazia menção ao princípio da

anterioridade (artigo 122, inciso 13),261 porém, em dispositivo subseqüente (artigo

123)262 mitigava-o ao ponto de limitar a sua aplicação ao bem público, às

necessidades da defesa, do bem-estar, da paz e da ordem coletiva, bem como à

segurança da Nação e do Estado.

No que pertine à legislação infraconstitucional, foi o princípio da

legalidade penal admitido pelo Código Criminal de 1830,263 pelo Código Penal de

255 “Ninguém será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por virtude de Lei anterior, e na

forma por ella prescripta.” CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo (Comp.). Constituições do Brasil. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1983, p. 651.

256 Ibid., p. 588. 257 Ibid., p. 538. 258 Ibid., p. 250. 259 Ibid., p. 172. 260 Ibid., p. 67. 261 “Não haverá penas corpóreas perpétuas. As penas estabelecidas ou agravadas na lei nova não se

aplicam aos fatos anteriores. [...].” Ibid., p. 441. 262 “A especificação das garantias e direitos acima enumerados não exclue outras garantias e direitos,

resultantes da forma de governo e dos princípios consignados na Constituição. O uso desses direitos e garantias terá por limite o bem público, as necessidades da defesa, do bem estar, da paz e da ordem coletiva, bem como as exigências da segurança da Nação e do Estado em nome dela constituído e organizado nesta Constituição.” Ibid., p. 442.

263 “Art. 1º Não haverá crime ou delicto (palavras synonimas neste Código) sem uma lei anterior que o qualifique.”, consignando ainda o art. 33: “Nenhum crime será punido com penas que não estejão estabelecidas nas leis, nem com mais ou menos daquellas que estiverem decretadas para punir o crime no gráo máximo, médio ou mínimo, salvo o caso em que aos juízes se permitir arbítrio.” PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed., 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 237; p. 241.

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1890264 (o qual vedava expressamente a interpretação extensiva, a analogia ou

paridade para tipificar condutas ou aplicar penas), pela Consolidação das Leis

Penais, aprovada pelo Decreto nº 22.213, de 14/12/1932, que em seu artigo 1º

repetiu a redação do diploma legal anterior, pelo Código Penal de 1940265 e,

finalmente, também pela Reforma da Parte Geral do Código Penal, datada de 1984,

que manteve inalterada a redação.

A largueza do princípio da legalidade alcança todas as etapas de

manifestação possível do direito penal: cominação da pena (pelo legislador),

aplicação da pena (pelo juiz) e sua execução (pelo juiz e administração

penitenciária), aí incluídas as questões disciplinares, por força do disposto no artigo

45 da Lei de Execução Penal.266

Traz em si duas ordens de funções: uma constitutiva (porque assenta a

pena legal), outra de garantia (porque exclui as penas ilegais, sendo desdobrável,

ainda na sua acepção formal, nas exigências de lei prévia, escrita, estrita e certa,

acrescida da lei necessária, agora na sua vertente material).267

Batista confere como primordial a função constitutiva do princípio da

legalidade, em geral passada despercebida, “através da qual se estabelece a

264 “Art. 1º Ninguém poderá ser punido por facto que não tenha sido anteriormente qualificado crime,

e nem com penas que não estejam previamente estabelecidas. A interpretação extensiva, por analogia ou paridade, não é admissível para qualificar crimes ou applicar-lhes penas.” PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed., 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 273.

265 “Art. 1º Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.” Ibid., p. 441.

266 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 68. 267 Luisi aborda somente os postulados de cunho garantístico do princípio e em sua acepção formal,

assim classificados: quanto às fontes das normas penais incriminadoras (onde adentram as determinações de lei escrita e estrita – postulado da reserva legal), quanto à enunciação desta categoria de normas (exigência de lei certa – postulado da determinação taxativa) e quanto à validade das disposições penais no tempo (determinação de lei prévia – postulado da irretroatividade da lei penal, salvo quando favorável ao réu). LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991, p. 13.

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positividade jurídico-penal, com a criação do crime (pela associação de uma pena

qualquer a um ilícito qualquer).”268

Enquanto função de garantia individual (ainda na sua vertente formal),

analisa-se suas quatro manifestações, as três primeiras dirigidas ao juiz, enquanto a

última é direcionada ao legislador:

a) proibição à retroatividade da lei penal (nullum crimen nulla poena sine

lege praevia).

Está-se diante da função histórica do princípio da legalidade, que nasceu

precisamente como reação às leis ex post facto, de sorte que

Tudo que se refira ao crime (por exemplo, supressão de um elemento integrante de uma justificativa, qual a vox “iminente” na legítima defesa) e tudo que se refira à pena (por exemplo, retificação gravosa na disciplina da prescrição) não pode retroagir em detrimento do acusado.269

Dito de outra forma, esta vertente do princípio da legalidade exige que

toda matéria atinente a crime e/ou pena já seja objeto de lei federal270 vigente antes

da prática do ilícito penal sobre o qual possa vir a incidir (princípio tempus regit

actum).

A garantia encontra-se albergada no artigo 5º, inciso XL, primeira parte,

da Constituição Federal, dispositivo que também consagra na sua parte final o outro

lado da moeda: a retroatividade da lei penal mais benéfica, seja excluindo crimes

(abolitio criminis, com previsão no artigo 2º, caput, do Código Penal), seja

favorecendo de qualquer outro modo o acusado/condenado (novatio legis in mellius 268 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 68. 269 Ibid., p. 69. Amaral cita ainda outros exemplos, como a inclusão de uma qualificadora no furto

(com relação ao crime), a modificação da pena de detenção para reclusão (quanto à pena). AMARAL, Cláudio do Prado. Princípios penais: da legalidade à culpabilidade. São Paulo: IBCCRIM, 2003, p. 93.

270 Lei entendida em sentido formal, expurgando a medida provisória como fonte do direito penal, conforme, aliás, consigna o artigo 62, §1º, inciso I, alínea b, da Constituição Federal: “É vedada a edição de medida provisória sobre matéria: I – relativa a: [...] b) direito penal, processual penal e processual civil.”

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ou lex mitior, contemplada no artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal), ainda que

no seu período de vacatio legis, pois esta circunstância não lhe retira a condição de

lei posterior;271

b) vedação à criação de crimes e penas pelo costume (nullum crimen

nulla poena sine lege scripta).

Significa que somente a lei escrita e cujo processo de elaboração tenha

obedecido ao disposto na Constituição Federal (o poder de legislar em matéria penal

está afeto com exclusividade ao Congresso Nacional, nos termos dos artigos 22,

inciso I e 48) está apta a produzir normas penais incriminadoras, aí compreendidas a

criação ou agravamento de delitos e penas.

Embora vedado ao costume272 a função criadora supramencionada, não

está ele alijado do âmbito penal, desde que manejado para favorecer a situação do

agente do fato – operando como causa supralegal de exclusão da ilicitude, causa de

atenuação da pena ou da culpa, por exemplo -, jamais para agravá-la, como bem

ressalta Toledo.273

É ainda atribuído aos costumes um papel integrativo, advindo

principalmente de sua influência no direito privado, quando aclara o conteúdo de

alguns tipos penais, como o que seja mulher honesta no crime de rapto, ato, objeto

ou recitação obscenos, no crime de ultraje público ao pudor, ou elucidando ainda o

“conceito central (dever objetivo de cuidado) dos tipos culposos, sempre que a

271 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 57. Seguindo a mesma orientação: “se a lei, obrigatoriamente, terá de retroagir a fim de beneficiar o agente, por que não aplicá-la antes mesmo do início de sua vigência, mediante a sua só publicação? Por economia de tempo, não se exige que se aguarde a sua vigência, podendo ser aplicada a partir da sua publicação.” GRECO, Rogério. Curso de direito penal: volume I (Parte Geral). 7. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 107.

272 Conforme Amaral, “uma prática constante, geral e uniforme, seguida com a convicção de sua obrigatoriedade, tal qual fosse lei.” AMARAL, Cláudio do Prado. Princípios penais: da legalidade à culpabilidade. São Paulo: IBCCRIM, 2003, p. 91.

273 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 25.

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atividade dentro da qual ocorreu o fato não esteja positivamente regulamentada de

modo exaustivo.”274

Embora amplamente negada pela doutrina e jurisprudência, há ainda de

se reconhecer nos costumes uma função derrogatória, fundada no princípio da

adequação social de Welzel (a adequação social nada mais é do que o significado

social de um comportamento de não estar proibido, donde não poder igualmente

configurar um injusto penal), mediante a qual o costume afastaria a antijuridicidade

da conduta em razão de sua clara tolerância pela sociedade, como se dá com o

crime de casa de prostituição (artigo 229 do Código Penal) e a contravenção do jogo

do bicho. “Não se pode castigar aquilo que um povo não considera injusto penal.

Imoral, vá lá. Mas jamais injusto criminal;”275

c) tolhimento ao emprego da analogia276 para criar crimes, fundamentar

ou agravar penas (nullum crimen nulla poena sine lege stricta).

Nada impede, assim, o recurso à analogia para fundamentar uma

situação exculpante ou justificante não prevista em lei – analogia in bonam partem,

que deita suas raízes na eqüidade.

A conjugação das facetas garantísticas lei escrita e estrita consiste no

princípio da reserva legal, um subprincípio do da legalidade, cuja inobservância pelo

274 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 70-71. 275 AMARAL, Cláudio do Prado. Princípios penais: da legalidade à culpabilidade. São Paulo:

IBCCRIM, 2003, p. 91-92. Batista também acolhe a função derrogatória dos costumes: BATISTA, op. cit., p. 71.

276 “A analogia consiste em um processo lógico de integração do ordenamento jurídico. Não se trata, portanto, de forma de interpretação da lei, mas, sim, de meio de preenchimento de suas lacunas. Diante da inexistência de norma legal específica para ordenar uma certa situação, o jurista utiliza-se de outra norma que regula uma situação semelhante, aplicando-a ao caso não regulado diretamente.” AMARAL, op. cit., p. 104. Ela não se confunde, nem com a interpretação extensiva, nem com a interpretação analógica (forma de interpretação extensiva).

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autor da ação penal gera a impossibilidade jurídica do pedido, uma das causas de

rejeição da inicial acusatória (artigo 43, inciso I, do Código de Processo Penal);277

d) proibição às incriminações vagas e indeterminadas (nullum crimen

nulla poena sine lege certa).

A utilização de expressões ambíguas e vagas na criminalização e

penalização foi uma alternativa largamente empregada por legislações penais

autoritárias, em diversos países e épocas, para a perseguição judicial a dissidentes

políticos.278

Também conhecido como princípio da determinação taxativa, exige que o

ilícito esteja perfeitamente demarcado quanto ao significado de seus componentes e

de forma inteligível, para que o cidadão saiba exatamente em que consiste a

conduta que lhe é proibida, até porque o dispositivo constitucional, que consagra o

princípio da legalidade, consigna não haver crime “sem lei anterior que o defina”, daí

extraindo-se “um direito subjetivo público de conhecer o crime, correlacionando-o a

um dever do Congresso Nacional de legislar em matéria criminal sem contornos

semânticos difusos.”279 Dirigido ao legislador, veta simultaneamente “a elaboração

de tipos penais com a utilização de expressões ambíguas, equívocas e vagas de

modo a ensejar diferentes e mesmo contrastantes entendimentos.”280

Infelizmente continuam proliferando no direito penal brasileiro os

chamados tipos abertos, trazendo Boschi, a título de exemplo, as definições dos

crimes de conduzir veículo sob a influência do álcool (artigo 306) e conduzir veículo

em velocidade incompatível (artigo 311), ambos do Código de Trânsito Brasileiro,

para em seguida demonstrar as possíveis soluções:

277 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 56, porque responsáveis pela tipicidade da conduta. 278 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 78. 279 Ibid., p. 80. 280 LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991, p. 18.

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[...] no primeiro caso, a jurisprudência, provavelmente, terá que preencher o tipo, lançando mão do artigo 165 do mesmo Código, que, para os efeitos administrativos, considera embriagado quem conduz automóvel apresentando nível de álcool superior a seis decigramas por litro de sangue. Já na outra situação, não haverá a menor dúvida de que o significado da expressão “velocidade incompatível” passará por variações na jurisprudência, dependendo das condições do terreno, da luminosidade, do estado do veículo, a bem denotar as inconveniências dos tipos abertos.281

A exigência de lei certa se estende à pena, aí mantendo estreita relação

com outro princípio constitucional, o da individualização da pena, valendo registro as

pertinentes observações de Batista:

Não é permitido, igualmente, tratando-se de penas graduáveis, que o legislador não estabeleça uma escala de merecimento penal, com pólos mínimo e máximo, ou a estabeleça com extensão tão ampla que instaure na prática a insegurança jurídica, diante de soluções radicalmente diferentes para fatos pelo menos tipicamente assimiláveis, favorecendo um perigoso arbítrio judicial. A individualização legal da pena, através da criteriosa cominação – o que supõe uma distribuição ponderada de penas (mantendo correspondência com a maior ou menor gravidade dos crimes), limites (mínimo e máximo) claramente fixados para cada crime, e um nítido sistema de atenuação/agravação -, abre perspectivas para a fértil mobilidade da individualização judicial, com a consideração daquela conduta humana na aplicação da pena, e garante em tese os limites e o sentido da individualização administrativa, quando deveria ocorrer, na execução da pena, a mais próxima e frutuosa consideração daquele homem. [...] A clareza na cominação da pena, desse modo, expande os efeitos do princípio da legalidade, impedindo sua violação no nível da aplicação e da execução, sem negar – antes, reafirmando, pela positividade jurídica – a idéia de individualização.282

No entanto, o princípio da legalidade apenas em sua acepção formal

(ainda que atrelado às exigências de lei estrita, escrita, prévia e determinada) é

incapaz de isoladamente auxiliar a concretização do modelo de direito penal

indissociável do Estado Democrático de Direito, porquanto deixa de fora valores

político-criminais eleitos pelo sistema constitucional, que dizem respeito ao conteúdo 281 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 59. 282 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 80-81

(grifo do autor). Sequer a distribuição ponderada de penas na fase da cominação tem sido observada, sendo “freqüentes tipos penais cominando a crimes de perigo abstrato a mesma pena estabelecida para crimes de dano efetivo.” BOSCHI, op. cit., p. 57.

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do Direito Penal. É nesta seara que adentra a acepção material (ou substancial) do

princípio da legalidade.

Estes valores constitucionais, que demarcam a esfera do indecidível,

consubstanciam-se nos direitos fundamentais, os quais englobam “limitações

negativas, geradas pelos direitos de liberdade, e que nenhuma maioria pode violar, e

limitações positivas, geradas pelos direitos sociais, e que nenhuma maioria pode

deixar de satisfazer.”283

Sendo os direitos fundamentais colocados no cerne do ordenamento

jurídico, não pode mais prevalecer aquela concepção de que a lei é quem confere

validade a eles (legalidade formal), mas sim, a de que são os direitos fundamentais

que validam (ou não) a lei (legalidade substancial). De acordo com esta nova visão,

não basta “a mera obediência do Estado à lei, mas sim, uma obediência aos valores

constitucionais.”284

Assim, ao princípio da legalidade cabe responder não apenas ao como

proibir (função que sua acepção formal teoricamente consegue cumprir), mas

sobretudo o que proibir, cujo cinturão inviolável é fornecido pelos direitos

fundamentais (missão a ser desincumbida pela acepção material do princípio da

legalidade).

O princípio da legalidade material merece, por conseguinte, ser

denominado como “uma garantia superior,”285 porquanto se presta a proteger a

sociedade “mediante um Direito Penal e de um Direito Penal.”286

Em outras palavras, pode-se apresentar o princípio da legalidade

substancial como um alargamento e aprofundamento do princípio da legalidade

283 SCHMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade penal no estado democrático de direito.

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.271. 284 Ibid., p. 274. 285 Ibid., p. 272. 286 Ibid., p. 272.

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formal, cuja perfeita compreensão repudia um enfrentamento neutro e destituído de

coloração, pois não há como negar que o direito é sempre um discurso ideológico

(do poder). Mais uma vez, lança-se mão da lição de Schmidt, desta feita para

resumir os destinatários e a esfera de atuação do princípio da legalidade

substancial, in verbis:

[...] o princípio da legalidade material é uma garantia limitadora do poder estatal dirigida tanto ao Poder Legislativo quanto aos Poderes Executivo e Judiciário, e que possui como abrangência a capacidade de vincular não só a forma como o Direito Penal é criado e aplicado, mas também o conteúdo de sua criação e de sua aplicação. Disso decorre que o princípio da legalidade, no Estado Democrático de Direito Brasileiro, passe a compor-se, além dos quatro desdobramentos do princípio da legalidade (formal) [...] [lege stricta, scripta, praevia e certa], de outro: o nullum crimen nulla poena sine lege necessariae. 287

Este conteúdo a ser preservado pelo princípio da legalidade, ditado pelos

direitos fundamentais, sofre ainda restrições ditadas pelo princípio da secularização

(princípio constitucional implícito), como bem evidencia Salo de Carvalho:

O princípio da legalidade [penal], vinculado à estrutura hierarquizada e secularizada do ordenamento jurídico balizado pela Constituição [...] intenta estabelecer uma previsibilidade mínima ao cidadão no uso e gozo de seus direitos pela exigência de lex praevia e pública, condicionando e limitando o poder na interferência ilegítima.288

As noções de legalidade (ligada ao juízo de vigência) e legitimidade

(atrelada ao juízo de validade) não são similares, o que de imediato põe em relevo a

não-presunção da regularidade dos atos do poder público (quer emanem do

Legislativo, Executivo ou Judiciário). Ora, se não se presumem regulares (legítimos)

demandam algo mais para vincular seus destinatários. 287 SCHMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade penal no estado democrático de direito.

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 273 (grifo do autor). 288 CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito e garantismo:

considerações a partir do princípio da secularização. In: CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 21.

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Para o dogmatismo, norma válida é aquela vigente, restringindo assim a

categoria validade à simples incorporação formal da norma (ou decisão) ao

ordenamento (tendo obedecido às formalidades previstas também em normas que

regulam a produção de outra norma – normas que trazem condições procedimentais

e de competência, situadas num nível superior -, ela passa a existir para o sistema e

automaticamente será válida), sem levar em consideração o seu conteúdo (é valida,

ainda que seja injusta, configurando, assim, uma definição ideologicamente

neutra).289 A validade da norma está identificada com sua existência jurídica. Está-se

diante então de uma concepção meramente formal da validade, que ignora a

incorporação às constituições modernas de valores de justiça material,

consubstanciados em princípios, bem como a superioridade destes princípios

constitucionais na hierarquia normativa,290 como acentua Ferrajoli com a usual

propriedade:

[...] entre as normas acerca da produção de normas, o moderno Estado constitucional de direito tem introduzido múltiplos princípios ético-políticos ou de justiça que impõem valorações ético-políticas das normas produzidas e atuam como parâmetros ou critérios de legitimidade e ilegitimidade não mais externos ou jusnaturalistas, senão internos ou juspositivistas.291

Por seu turno, a doutrina garantista (assumida nesta seara), coerente com

um de seus pressupostos - a tendência natural do poder para a violação dos direitos

- distancia as concepções de vigência (legalidade) e validade (legitimidade) da

norma, pois enquanto a primeira “trata, essencialmente, da forma dos atos

289 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et al. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 289. 290 CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito e garantismo:

considerações a partir do princípio da secularização. In: CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 21-22.

291 FERRAJOLI, op. cit., p. 289.

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normativos, [...] a validade diz respeito ao significado e à compatibilidade das

normas com os valores materiais expostos nas Constituições democráticas.”292

Aliás, o diferencial do moderno Estado constitucional de direito reside

precisamente “no fato de que as condições de validade estabelecidas por suas leis

fundamentais incorporam não só requisitos de regularidade formal [vigência ou

validade formal], senão também condições de justiça material [validade material],” 293

estas muito mais relevantes.

Destarte, uma norma vigente somente será válida caso guarde harmonia

“com os direitos e garantias que expressam a racionalidade material e substantiva

do estatuto fundamental.”294

Desta forma, pode-se afirmar que a vigência (validade formal) da norma

pressupõe um simples juízo de fato ou técnico, pois se limita a verificar se a

elaboração da norma obedeceu ou não o processo legislativo previsto na

Constituição Federal: em caso positivo, a norma será válida; em caso negativo, será

inválida (trabalha com o sistema binário). Já a validade (validade material ou

substancial) da norma traz em si necessariamente juízos com forte carga axiológica,

vez que investiga processos de adequação de valores (entretanto, esta aferição

sobre a compatibilidade da norma com o conteúdo material da Constituição não se

opera mediante a lógica binária do tudo ou nada, do válido ou nulo, na medida em

292 CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito e garantismo:

considerações a partir do princípio da secularização. In: CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 22.

293 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 289, o qual redefine as categorias tradicionais das normas jurídicas em vigência, validade e eficácia (esta relacionada com o grau de observância da aplicação das normas). Ibid., p. 289-292.

294 CARVALHO, op. cit., p. 23.

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que admite graduação, o que significa dizer que uma norma pode não ser válida

frente a um determinado caso, mas válida perante outra hipótese concreta.295

Esta apartação entre vigência (legalidade) e validade (legitimidade) traz

importantíssima conseqüência para o atuar do julgador, pois lhe atribui maior

responsabilidade ética no manejar o direito: de um lado, não mais lhe permitindo

uma visão simplesmente contemplativa do ordenamento jurídico,296 porém

simultaneamente lhe abre as portas para inundar o direito infraconstitucional com

esta concepção teórica, como bem assinala Salo de Carvalho:

[...] a ruptura entre os significados de vigência e validade transpõe ao intérprete o dever de apenas estar submetido às leis (constitucionalmente) válidas, tanto no plano formal como substancial.297

2.3.2 Humanidade

O princípio da humanidade é a explicitação, no âmbito penal, da função

primeira do ordenamento jurídico, qual seja, a tutela da dignidade humana

(Constituição Federal, artigo 1º, inciso III), um dos fundamentos do Estado

Democrático de Direito.

É clara a incompatibilidade entre o jusnaturalismo (pelo menos para os

teóricos contratualistas como John Locke, que não vêem na comunhão de vontades

295 ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico? Florianópolis: Habitus, 2003 (Coleção

Para Entender o Direito, 3º vol), p. 47-51. 296 Já que os juízos sobre a validade trazem ínsita uma marcante carga axiológica, a exigir do juiz

uma tomada de posição: “enquanto os juízos sobre a vigência ou não de normas apresentam um caráter fortemente descritivo, eis que dizem respeito a fatos concretos, tais como a promulgação daquelas por autoridades competentes e a observância do devido procedimento de edição, os juízos sobre a validade – pelo fato de pretenderem verificar processos de adequação valorativa – trazem uma acentuada carga axiológica. [...] Isto implica uma significativa abertura discricionária na tarefa interpretativa do aplicador de normas, de vez que esses juízos de validade são, como diz Ferrajoli, ‘opináveis’.” CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 83.

297 CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito e garantismo: considerações a partir do princípio da secularização. In: CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 23.

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para a criação do Estado um ato de renúncia total aos direitos naturais)298 e a

inflição de penas cruéis, degradantes e desproporcionais, pois estas são reações

típicas de um Estado ilimitado, que utiliza o indivíduo apenas como exemplo público

para os demais integrantes da sociedade (pena puramente retributiva).

Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria (1738-1794), com seu famoso

pequeno grande livro Dos Delitos e das Penas (1764) foi quem difundiu a

necessidade de moderação das penas, o fim dos suplícios, pois não podendo “os

berros de um desgraçado nas torturas [...] tirar do seio do passado, que não retorna

mais, uma ação já praticada,” atribui aos castigos a única finalidade de “obstar o

culpado de tornar-se futuramente prejudicial à sociedade e afastar os seus patrícios

do caminho do crime.”299

Criado o Estado nos moldes iluministas - Estado de Direito - o rol dos

direitos humanos, aí incluído o princípio da humanidade, é incorporado à maioria das

Constituições300 e reprisado em importantes documentos internacionais pós

Segunda Guerra Mundial, merecendo menção a Declaração Universal dos Direitos

Humanos (adotada e proclamada pela Assembléia das Nações Unidas em

10/12/1948), que em seu art. 5º dispõe que “ninguém será submetido à tortura, nem

298 Para Locke, o contrato que faz surgir o Estado implica na abdicação apenas do “direito de fazer

justiça por si mesmos”, sem, no entanto, abrir mão dos “direitos naturais fundamentais (à vida, à liberdade, à propriedade).” Já para Hobbes e Rousseau o referido contrato é um ato de alienação total dos próprios direitos naturais, mas enquanto para o primeiro tais direitos são transferidos para o soberano, para o autor Do Contrato Social “a renúncia não é feita em favor de um terceiro, mas por cada um em favor de todos”. BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. de Alfredo Fait. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1992, p. 46. (grifo do autor)

299 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1983, p. 43. Já àquela época Beccaria advertia que a severidade punitiva, longe de evitar a prática delitiva, induzia a crimes mais violentos: “Quanto mais terríveis forem os castigos, tanto mais cheio de audácia será o culpado em evitá-los. Praticará novos crimes, para fugir à pena que mereceu pelo primeiro. Os países e os séculos em que se puseram em prática os tormentos mais atrozes, são igualmente aqueles em que se praticaram os crimes mais tremendos.” Ibid., p. 43.

300 A própria Constituição imperial brasileira de 1824 já vedava as penas fisicamente cruéis, ao dispor em seu artigo 179, inciso XIX: “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis.” CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo (Comp.). Constituições do Brasil. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1983, p. 652.

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a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante,”301 as Regras Mínimas para

Tratamento de Reclusos, adotadas pela ONU em seu primeiro Congresso (Genebra,

1955),302 o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (adotado pela XXI

Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, em dezembro 1966), art. 7º, onde

se lê “ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis,

desumanos ou degradantes,” reforçado pelo art. 10º, I “toda pessoa privada de sua

liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à

pessoa humana,”303 bem como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos

(adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre

Direitos Humanos, em San José de Costa Rica, em 22 de novembro de 1969),

enfática ao tratar do direito à integridade pessoal em seu artigo 5º: “1. Toda pessoa

tem direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém

deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou

degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com respeito

devido à dignidade inerente ao ser humano.”304

A própria Constituição Federal de 1988 é igualmente farta no artigo 5º em

preceitos alusivos ao princípio, como os dos incisos III (“ninguém será submetido à

tortura nem a tratamento desumano ou degradante”), XLVIII (“a pena será cumprida

em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo

do apenado”), XLIX (“é assegurado aos presos o respeito à integridade física e

301DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em:

<http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 23 ago. 2006. 302 Este documento inspirou-se na ideologia do “tratamento ressocializador” do preso, pela convicção

vigente à época de que a causa do crime residia primordialmente em fatores individuais (patológicos), deixando em segundo plano os fatores sociais. Conforme: GOMES, Luiz Flávio. Penas e medidas alternativas à prisão. 1. ed., 2 tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999 (Coleção temas atuais de direito criminal; v. 1), p. 20.

303PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_politicos.htm>. Acesso em: 23 ago. 2006.

304CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/oea/oeasjose.htm>. Acesso em: 23 ago. 2006.

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moral”) e L (“às presidiárias serão asseguradas condições para que possam

permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”),305 mas é no seu

inciso XLVII (alíneas a a e) que dele trata com maior realce, ao vedar as penas

cruéis (“o antônimo da ‘pena cruel’ é a ‘pena racional’,” noção que não se confunde

com pena “doce,” contraste bem pontuado por Zaffaroni e Pierangeli,306 pois sendo

ela a resposta social à agressão representada pela prática do delito, há de

resguardar a sua natureza aflitiva), como as de morte (salvo em caso de guerra

declarada pelo Presidente da República, em decorrência de agressão estrangeira e

desde que previamente autorizado pelo Congresso Nacional, nos termos do disposto

no artigo 84, inciso XIX, da Constituição Federal),307 de caráter perpétuo

(consistente na privação do exercício do direito de liberdade de alguém para o resto

da vida),308 de trabalhos forçados (o que merece repulsa é o trabalho despido de

305 Como bem esclarece Dotti, os três últimos dispositivos receberam alguma explicitação via leis

ordinárias, respectivamente, Lei nº 9.460/97 (alterador do §1º, art. 82, da Lei de Execução Penal, para o fim de garantir, tanto à mulher, quanto ao maior de sessenta anos, recolhimento “a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal”), Lei nº 8.653/93 (proibindo “o transporte de presos em compartimento de proporções reduzidas, com ventilação deficiente ou ausência de luminosidade”) e Lei nº 9.046/95 (a qual acrescentou o §2º ao art. 83 da Lei de Execução penal, para determinar que “os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam amamentar seus filhos”). DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 54 e 439.

306 ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2004, p. 172.

307 Trata-se aqui de uma situação excepcional, porquanto coloca em risco a própria soberania do Estado, conforme esclarece Cernicchiaro, para quem a pena de morte é incompatível com os princípios da humanidade e do interesse público (este entendido como “valor voltado para respeito e consideração ao homem”): “o Estado realiza o bem comum, em cujo conceito não se agasalham métodos de eliminação do próprio homem. O homicídio é crime porque se choca com o interesse público. Logo, a pena de morte leva à mesma conseqüência.” CERNICCHIARO, Luiz Vicente; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal na Constituição. 3. ed., rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 129-130.

308 Conceituação fornecida por Cernicchiaro, que a considera igualmente afrontosa aos princípios humanitário e do interesse público, pelo que, é vedado ao legislador ordinário cominar pena privativa de liberdade excessivamente alta, pois na prática se equipara à pena de caráter perpétuo. O ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça oferece dois parâmetros para fixar a fronteira instransponível: o limite máximo da pena privativa de liberdade previsto em abstrato para o delito (não a pena aplicada, para não ferir o princípio da isonomia perante a lei), aliado ao início da imputabilidade, de acordo com o critério cronológico, que se dá aos dezoito anos de idade (Constituição Federal, artigo 228), capazes de oferecer um “limite razoável para que alguém possa cumprir sanção elevada e, mesmo assim, ter oportunidade de retornar à sociedade.” Ibid., p. 130-132.

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qualquer significação prática e produtiva, modalidade que não se confunde com a

laborterapia, trabalho remunerado – Código Penal, artigo 39 - e que faz parte da

fase de individualização executória da pena “como dever social e condição de

dignidade humana,” nos termos do artigo 28, caput, da Lei nº 7.210/84)309 e de

banimento (até ser revogado pela Constituição de 1891,310 o banimento judicial

implicava para o condenado a perda perpétua dos direitos de cidadão brasileiro e a

proibição perene de habitar o respectivo território, isto na vigência do Código

Criminal do Império,311 ao passo que o Código Penal de 1890312 previa as mesmas

restrições, mas apenas enquanto durassem os efeitos da pena).313

A legislação infraconstitucional, mormente o Código Penal (artigos 38 e

39) e a Lei de Execução Penal (artigo 3º; todo o Capítulo II, que trata das

modalidades de assistência ao preso, ao internado e ao egresso, artigos 10 a 27;

direito ao trabalho remunerado como condição de dignidade humana, artigo 28 e

seguintes) reprisam o compromisso constitucional com o princípio humanitário.

309 Cernicchiaro alerta que a pena de prestação de serviços à comunidade (Código Penal, artigo 46),

apesar da gratuidade, não se confunde com a de trabalhos forçados. A uma, porque aquela tem assento constitucional dentre as penas permitidas (Constituição Federal, art. 5º, XLVI, d); a duas, porque enquanto pena autônoma e substitutiva da privativa de liberdade (Código Penal, artigo 44), a prestação de serviços à comunidade “é ônus inerente ao cumprimento da pena”, já que decorrente da “sanção concretizada na sentença condenatória”. CERNICCHIARO, Luiz Vicente; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal na Constituição. 3. ed., rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 137.

310 Artigo 72, §20: “Fica abolida a pena de galés e a de banimento judicial.” CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo (Comp.). Constituições do Brasil. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1983, p. 588 (grifo nosso).

311 “Art. 50. A pena de banimento privará para sempre os réos dos direitos de cidadão brasileiro, e os inhibirá perpetuamente de habitar o territorio do Imperio.” PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed., 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 242.

312 “Art. 46. O banimento privará o condemnado dos direitos de cidadão brazileiro e o inhibirá de habitar o território nacional, enquanto durarem os effeitos da pena.” Ibid., p. 278.

313 Cernicchiaro sustenta, acertadamente, que o termo banimento empregado no artigo 5º, inciso XLVII, alínea d, da Constituição, há de ser interpretado em sentido amplo, para englobar também o degredo e o desterro, originariamente penas menos severas que a do banimento, mas que com este guardam um ponto de convergência: “o deslocamento compulsório do condenado do lugar em que habita”. Com efeito, o Estado Democrático de Direito não se coaduna com “a violência de impedir que alguém more no local de sua escolha ou se lhe imponha onde ficar.” CERNICCHIARO, op. cit., p. 140-141.

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Como decorrência direta do princípio da dignidade da pessoa humana, o

princípio humanitário vincula a pena desde a sua elaboração, revelando-se

inconstitucional, por exemplo, estabelecer penas que denigram a pessoa humana,

que tenham por única finalidade estigmatizar o condenado, ainda que não sejam

elas explicitamente vedadas (logo, o rol das penas proibidas, Constituição Federal,

artigo 5º, inciso XLVII, é meramente exemplificativo). As Ordenações do Reino

(Código Filipino) ofereciam exemplo de pena que tinha a finalidade única de expor o

condenado, como é o caso do marido condescendente com a infidelidade conjugal

(Livro V).314

É ainda o princípio da humanidade que vai fundamentar, por exemplo, a

inconstitucionalidade de qualquer pena que na prática acarrete diminuição perene na

dimensão da dignidade humana do seu destinatário. Esta é a advertência de

Zaffaroni e Pierangeli:

O princípio de humanidade é o que dita a inconstitucionalidade de qualquer pena ou conseqüência do delito que crie um impedimento físico permanente (morte, amputação, castração ou esterilização, intervenção neurológica etc.), como também qualquer conseqüência jurídica indelével do delito. [...] a república pode ter homens submetidos à pena, ‘pagando suas culpas’, mas não pode ter ‘cidadãos de segunda’, sujeitos considerados afetados por uma capitis diminutio para toda a vida. Toda a conseqüência jurídica de um delito – seja ou não uma pena – deve cessar em algum momento, por mais longo que seja o tempo que deva transcorrer, mas não pode ser perpétua no sentido próprio da expressão.315

A multiplicidade de documentos legislativos voltados à humanidade,

entretanto, quase beiram o cinismo, frente à caótica realidade carcerária brasileira,

pois pouco têm contribuído para amenizar as péssimas condições em que os presos

314 “TÍTULO XXV – Do que dorme com mulher casada [...]: 9. E sendo provado, que algum homem

consentio a sua mulher, que lhe fizesse adulterio, serão elle e ella açoutados com senhas capellas de cornos, e degradados para o Brazil, e o adultero será degradado para sempre para a África, sem embargo de o marido lhes querer perdoar.” PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed., 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 114.

315 ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2004, p. 172 (grifo do autor).

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(homens e mulheres, primários e reincidentes, jovens e idosos, provisórios e

cumprindo pena) são custodiados pelo Estado, em locais que mais se assemelham

a depósitos humanos, uns sobre os outros, disputando como animais um espaço

para poder dormir. O Estado é o primeiro violador do princípio da humanidade,

fazendo ouvidos moucos a uma norma elementar: “o preso conserva todos os

direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o

respeito à sua integridade física e moral,” conforme determina o artigo 38 do Código

Penal.

Como se falar em dignidade, em humanidade, diante de tamanha

degradação vivenciada pelos encarcerados, igualmente sujeitos de direitos

fundamentais?!

Este desabafo não se inclina para apregoar a inutilidade daquele

arcabouço normativo garantista, mas sim, para gritar a necessidade urgente de

aproximá-lo da realidade concreta, conclamar os juízes a não olvidarem este quadro

desolador, quando forem individualizar a pena na sentença, para que estejam

cônscios de que o tempo de encarceramento por eles determinado será cumprido

num contexto a anos-luz de distância de qualquer possibilidade de ressocialização,

vez que as penitenciárias (que dizer então das cadeias públicas?!), funcionam como

instituições ampliadoras da degradação humana.

Assim, apesar de geralmente lembrado como vetor para a fase de

execução da pena privativa de liberdade, o princípio da humanidade há de

igualmente inspirar as etapas de cominação (individualização legislativa) e aplicação

(individualização judicial), a fim de que a pena guarde um mínimo de racionalidade e

não volte a ser simplesmente a paga de um mal com outro mal.

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2.3.3 Pessoalidade

A Constituição imperial brasileira de 25 de março de 1824, outorgada por

D. Pedro I, já previa, dentre outros princípios penais liberais, o da pessoalidade (ou

intranscendência da pena), em seu artigo 179, inciso XX: “nenhuma pena passará

da pessoa do delinquente. Por tanto não haverá em caso algum confiscação de

bens, nem a infamia do Réo se transmittirá aos parentes em qualquer gráo, que

seja.”316

O princípio da pessoalidade determina que a responsabilidade penal não

se transfere a terceiro, recebendo guarida na Constituição Federal de 1988 no seu

artigo 5º, inciso XLV - “nenhuma pena passará da pessoa do condenado” -, “pondo,

desse modo, a salvo, toda e qualquer pessoa sem vínculo com o fato, do dever de

cumprir qualquer espécie de pena.”317

Como consectário da lenta evolução dos povos, a pessoalidade pretende

“evitar os males do passado, quando o Estado considerava eficaz a punição de

parentes e amigos do criminoso, especialmente quando este fugia ou morria antes

de expiar a pena que lhe estava reservada.”318

A despeito de tal princípio, a práxis demonstra de forma cruel que a

sociedade não perdoa o crime, seu autor e sua família, quando a pena aplicada é a

privativa de liberdade. O condenado e seus familiares se vêem estigmatizados pelos

vizinhos, companheiros de trabalho, e mesmo familiares, sem falar nos problemas

financeiros decorrentes da supressão de um(a) provedor(a) no lar, agravados pela

316 CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo (Comp.). Constituições do Brasil. 6. ed. São

Paulo: Atlas, 1983, p. 652. 317 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 59. 318 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.

41. A extensão das conseqüências da condenação de Tiradentes, alcançando seus descendentes de mais de uma geração, é sempre lembrada como emblemática daquela época de barbárie.

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ausência de um serviço social estatal que ampare e proteja os dependentes do(a)

condenado(a).319

Não se encontram resguardados pelo princípio da pessoalidade os efeitos

civis (ou efeitos secundários) da sentença penal condenatória, aí compreendidos o

dever de reparar o dano causado pelo delito e o perdimento de bens320 (Código

Penal, artigo 91, incisos I e II), quando considerados produto ou proveito do crime,

porque “tais medidas não envolvem a aplicação da pena, ao contrário, são efeitos

positivos de sua existência,”321 cabendo então aos sucessores do falecido

condenado arcar com tais obrigações, mas sempre dentro do limite do patrimônio

que lhes foi transferido, exceções insertas no próprio inciso constitucional que trata

da intranscendência da pena.322

2.3.4 Individualização

No sentido comum do termo, individualizar significa “particularizar o que

antes era genérico, [...] distinguir algo ou alguém, dentro de um contexto.”323

Trazendo esta acepção para o campo punitivo estatal, a

individualização da pena tem o significado de eleger a justa e adequada sanção penal, quanto ao montante, ao perfil e aos efeitos pendentes sobre o sentenciado, tornando-o único e distinto dos demais infratores, ainda que co-autores ou mesmo co-réus. Sua finalidade e importância é a fuga da padronização da pena, da “mecanizada” ou “computadorizada” aplicação da sanção penal, que prescinda da figura do juiz, como ser pensante,

319 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 60. 320 Modalidade que não se confunde com a perda de bens e valores, uma das penas restritivas de

direitos (Código Penal, artigo 43, II, com redação determinada pela Lei nº 9.714/98) e para a qual vigora o princípio da personalidade da pena. Ela tem por beneficiário o Fundo Penitenciário Nacional (Código Penal, artigo 45, §3º, acrescentado pela Lei nº 9.714/98).

321 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 41, pois não podendo o crime gerar lucro, reforçam o impedimento ao enriquecimento sem causa. Ibid., p. 42.

322 “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.” (grifo nosso).

323 NUCCI, op. cit., p. 31.

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adotando-se em seu lugar qualquer programa ou método que leve à pena pré-estabelecida, segundo um método unificado, empobrecido e, sem dúvida, injusto.324

O princípio da individualização da pena agasalha implicitamente o

princípio da culpabilidade e é exemplo explícito do princípio da proporcionalidade,

abordados mais adiante.

Somente recebeu guarida constitucional no Brasil com a Carta Política de

1946, que em seu artigo 141, §29 preceituava que “a lei penal regulará a

individualização da pena [...].”325

A Constituição Federal vigente trata da matéria no artigo 5º, inciso XLVI,

onde, na esteira das Constituições anteriores, se limita a consignar o princípio,

deixando para a lei ordinária estabelecer os critérios da individualização:

a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos.

A individualização diz respeito à determinação da medida da resposta

estatal, em consideração à relevância do bem jurídico que a norma quer proteger

(na primeira etapa), às peculiaridades de cada evento criminoso e seu autor (no

segundo e terceiro momentos de individualização).

324 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.

31-32. 325 CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo (Comp.). Constituições do Brasil. 6. ed. São

Paulo: Atlas, 1983, p. 250, sendo reprisado na Constituição de 1967 (artigo 150, §13, segunda parte) e na Emenda Constitucional de 1969 (artigo 153, §13, segunda parte), sempre no capítulo destinado aos Direitos e Garantias Individuais. Ibid, p. 172 e 67.

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Se percebe, então, que a individualização da pena se desenrola em três

fases sucessivas e complementares: a legislativa, a judicial e a executória,326 todas

balizadas pela lei, como consectário do princípio da legalidade:

a) individualização legislativa (cominação da pena), quando a lei em

sentido formal, ao elaborar o tipo penal incriminador, estabelece a qualidade da(s)

pena(s) – exemplos: só reclusão, reclusão e multa, só detenção, detenção e multa –

bem como seus limites mínimo e máximo, opções abstratas que devem ser ditadas

proporcionalmente à importância do bem jurídico tutelado e à magnitude da lesão.327

No tocante à pena de multa, a Parte Especial do Código Penal reservou à

Nova Parte Geral tais limites (o número de dias-multa varia de dez a trezentos e

sessenta, nos termos do artigo 49, caput) e o valor-dia (que oscila entre um

trigésimo do salário-mínimo e o seu quíntuplo, sempre tomando por referência o

salário-mínimo vigente à data do fato criminoso, conforme o disposto no artigo 49,

§1º, da Lei nº 7.209/84). As leis penais especiais em sua esmagadora maioria

adotam o mesmo padrão (citam-se exemplificativamente as Leis nº 9.605/98,

9.613/98 e 10.826/03), limitando-se a consignar nos preceitos secundários multa,

não seguido pela Lei nº 11.343/06, cujos artigos 33 a 39 estabelecem os termos

mínimo e máximo de dias-multa;

b) individualização judicial ou judiciária (aplicação da pena), etapa em que

a pena começa a passar da mera ameaça à concretude, por intermédio do juiz ao

proferir uma sentença condenatória, pois analisando as peculiaridades do caso

concreto e do seu autor, “determina a espécie de pena dentre as legalmente

326 Luisi esclarece que a denominação executória é mais apropriada do que a administrativa, já que

“se trata de matéria regida pelo princípio da legalidade e de competência da autoridade judiciária, e que implica inclusive o exercício de funções marcadamente jurisdicionais”, como aliás deixam claro os artigos 2º, 65 e 66, da Lei nº 7.210/84. LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991, p. 39.

327 Ibid., p. 37.

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previstas e, dentro dos limites correspondentes, fixa a quantidade necessária e

suficiente à repressão e prevenção.”328

As variáveis básicas que norteiam a individualização judicial estão

contidas no artigo 59 da nova Parte Geral do Código Penal, mas a ordem do

procedimento decisório em termos de dosimetria da pena é fixada pelo artigo 68,

caput, do mesmo diploma legal, que acolheu o sistema trifásico (fixação da pena-

base, sobre a qual incidirão eventuais agravantes e/ou atenuantes, para, num

terceiro e derradeiro momento, refletirem-se causas de aumento e diminuição da

pena, se presentes na hipótese, para chegar-se à pena definitiva).

Apesar de a trajetória a ser seguida na fixação da pena concreta, bem

como seus parâmetros, virem regulados pelo Código Penal, inegável o largo campo

de discricionariedade atribuído ao juiz nas escolhas possíveis em cada uma das

etapas do sistema, o que permite afiançar a presença de um verdadeiro “coeficiente

criador, e mesmo irracional, em que, inclusive inconscientemente, se projetam a

personalidade e as concepções da vida e do mundo do Juiz,”329 os quais não podem

colidir com a noção de justiça substancial, superação que põe em relevo a

necessidade de motivação empírica na parte dispositiva da sentença; e

c) individualização executória (execução da pena), estágio inaugurado

com o trânsito em julgado da sentença condenatória, pois, a partir de então, a

sanção ali fixada, vai ser efetivamente concretizada.

A execução diferenciada da pena impõe-se como corolário do respeito à

diversidade, conforme proclamam os artigos 5º e 6º, da Lei de Execução Penal, este

328 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 67. 329 LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991, p. 38.

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último com a redação dada pela Lei nº 10.792/03,330 que claramente abraça o direito

penal de periculosidade, ao realçar nesta etapa da individualização aspectos do ser

do condenado (antecedentes e personalidade).

Como bem lembrado por Luisi, a Constituição Federal dedica vários

preceitos para esta fase, como os constantes dos incisos XLVIII, XLIX e L, todos do

artigo 5º, e nela, como ocorre igualmente na individualização judiciária, avulta “o

subjetivismo criminológico,” uma vez que “o concreto da pessoa do delinqüente tem

importância fundamental na sanção efetivamente aplicada e no seu modo de

execução.”331

2.4 PRINCÍPIOS IMPLÍCITOS

São os princípios que apesar de não enunciados textualmente,

encontram-se latentes no ordenamento jurídico.

2.4.1 Secularização

A secularização foi um processo iniciado no século XV, tendente a

distanciar as ciências das justificações teológicas e para o qual contribuíram não só

a elaboração teórica dos filósofos, como as experiências trazidas com o

descobrimento do Novo Mundo. O saber não é mais fundado na fé, mas sim na

razão humana, passando de uma perspectiva teocêntrica para uma antropocêntrica,

de um jusnaturalismo voltado para Deus para um direito natural centrado no homem.

330 Artigo 5º “Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade,

para orientar a individualização da execução penal.“ Artigo 6º “A classificação será feita por Comissão Técnica de Classificação que elaborará o programa individualizador da pena privativa de liberdade adequada ao condenado ou preso provisório.”

331 LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991, p. 39-40.

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No campo do direito penal significou a cisão entre a moral e o direito, entre o pecado

e o delito, inaugurando o direito penal moderno.332

Vê-se, assim, que enquanto vigorou o modelo jusnaturalista teológico,

abertas estavam as comportas para criminalizar e penalizar o indivíduo pelas suas

convicções e opções pessoais, pelo que ele era (quia peccatum) e de acordo com

seu grau de periculosidade, dando azo a um direito penal da intervenção moral, cujo

exemplo emblemático era o praticado pelos Tribunais do Santo Ofício.333

Já a concepção secularizada restringe os aparatos repressivos “à punição

da conduta do infrator que resultou em dano, exterior e perceptível, a um terceiro

envolvido no conflito,” o que logo gera “uma minimização na intervenção do direito

penal”, porque repudia qualquer ingerência na esfera da consciência do indivíduo,

no seu modo de ser.334

Quando ocorre esta desvinculação direito-moral, está-se diante de um

direito penal de culpabilidade (calcado no livre arbítrio), ao passo que a confusão

entre as duas esferas autoriza um direito penal de periculosidade (baseado no

determinismo).

Lembra Salo de Carvalho que este processo de laicização do direito deita

suas bases teóricas na teoria do pacto social, trazida pelos pensadores iluministas,

com destaque para a concepção lockeana de formação do Estado: os homens,

cansados das inseguranças vivenciadas no estado de natureza, de comum acordo

332 CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito e garantismo:

considerações a partir do princípio da secularização. In: CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, primeira parte, p. 5-7.

333 As Ordenações Filipinas, que tiveram aplicação no Brasil a partir de 1603, deixam evidente a acentuada intromissão da justiça eclesiástica sobre a laica, tanto que a parte dedicada ao direito penal e processo criminal (Livro V) se inicia com a descrição dos crimes de heresia e apostasia, seguidos pelos de renegação de Deus ou dos Santos, feitiçaria e outros do gênero. PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed., 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 97-100.

334 CARVALHO, op. cit., p. 8-9.

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transferem a um ente abstrato (Estado) apenas porções de suas liberdades

individuais em prol de uma convivência pacífica (estado civil), daí continuarem os

pactuantes detendo um âmbito intocável de liberdades individuais.335

A influência deste modo de ver a criação do Estado na esfera do direito

penal é manifesta: se os integrantes do pacto não renunciaram à totalidade de suas

liberdades em favor do Estado, ele somente está legitimado a estabelecer regras de

convivência e impor penas aos que as descumprirem dentro da seara daquelas

pequenas parcelas de liberdade que lhe foram delegadas em favor do bem comum,

o que reduz a possibilidade de intervenção punitiva aos atos causadores de segura

lesão de bens jurídicos de terceiros, sendo-lhe vedado, portanto, “criminalizar ou

penalizar a esfera do pensamento” ainda que voltada a intenções ilícitas, porque não

objeto do prévio acordo, “sob pena de excesso ou desvio, o que levaria a um

rompimento do pacto.”336

Este feixe de direitos invioláveis pelo Estado são responsáveis pela

criação de uma fonte externa de legitimidade do Estado, consubstanciada no

respeito absoluto do direito à diferença, na tolerância, a expressar

[...] de forma magnífica o postulado secularizador no qual qualquer pessoa tem o direito de ser e continuar sendo o que é, independentemente de ser considerada perversa, não sendo legítima qualquer reprimenda ao seu ser.337

335 CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito e garantismo:

considerações a partir do princípio da secularização. In: CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, primeira parte, p. 9-10.

336 Ibid., p. 10. Refogem igualmente aos limites estabelecidos pelo consenso os direitos à vida e à liberdade de locomoção, dentre outros considerados inalienáveis exatamente porque constituem pressupostos para a celebração válida do pacto social. A formulação de Locke a respeito dos termos do pacto social criador do Estado, desenvolvida no seu Segundo tratado sobre o governo: ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil, é objeto de análise no primeiro Capítulo deste trabalho, mais precisamente no item intitulado Comprometimento com a democracia material no exercício do poder punitivo.

337 CARVALHO, op. cit., p. 12.

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Lembrando que uma das esferas de dominação do Estado Absoluto era a

intolerância religiosa (que carrega consigo um elevado patamar de criminalização,

pela confusão das esferas direito-moral), infelizmente tema que voltou a se fazer

presente (muçulmanos X não-muçulmanos; judeus X palestinos) como justificador

de uma política terrorista, permanecem atualíssimas as lições de John Locke (1632-

1704) registradas em livro datado de 1649, Carta a respeito da tolerância.

Partindo do papel a ser desempenhado pela verdadeira igreja – não

encantar pela pompa exterior, não impor seu domínio pela força, mas sim - “regular

a vida dos homens, de acordo com as regras da virtude e da piedade,”338 sustenta a

incompatibilidade destes atributos com qualquer tentativa de submeter outrem a

determinadas doutrinas, pelo que, a tolerância é a principal característica da

verdadeira igreja.339 Para que não pairem dúvidas a respeito, Locke considera

fundamental separar e limitar as funções do governo civil (proporcionar e assegurar

os interesses civis) e da religião (salvação das almas).

Ao magistrado civil incumbe, mediante a aplicação imparcial da lei (e com

o uso da força, se necessário), garantir a todos os integrantes da comunidade a

justa posse e fruição dos interesses civis (também chamados “bens que pertencem

a esta vida”), que são “a vida, a liberdade, a saúde e a ociosidade do corpo; e a

posse de objetos exteriores, tais como o dinheiro, terras, casas, móveis e outros

semelhantes.” 340 Aí estão os limites do seu poder, que não comporta ampliação,

nem mesmo com o consentimento do povo.

338 LOCKE, John. Carta a respeito da tolerância. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: IBRASA –

Instituição Brasileira de Difusão Cultural S.A., 1964 (Clássicos da Democracia, n. 21), p. 4. 339 “[...] o Padre Eterno não concedeu autoridade a qualquer homem sobre outro, para que o

obrigasse à religião que professasse. [...] ninguém pode, a seu bel-prazer, conformar a própria fé aos ditames de outrem. Toda a vida e força da religião verdadeira consiste na persuasão interior e completa do espírito [...].” Ibid., p. 9-10.

340 Ibid., p. 9.

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O poder da verdadeira religião reside na persuasão interior do espírito.

Como o poder do magistrado civil é dotado apenas de força exterior, ele se revela

ineficaz para alterar aquele convencimento, ainda que recorra a penalidades, como

o confisco da propriedade, a prisão e os tormentos.341

Desta forma, “todo o poder do governo civil diz respeito tão-só aos

interesses civis dos homens, limitando-se ao cuidado de quanto pertence a este

mundo, nada tendo a ver com o mundo a vir.”342

E na realidade constitucional brasileira vigente, que função desempenha o

princípio da secularização?

Salo de Carvalho, após rememorar a posição dos poucos autores que se

debruçam sobre o postulado, como Canotilho e Zaffaroni – ambos o vendo como um

princípio implícito e dedutível dos demais princípios e valores constitucionalizados,

tais como a liberdade de consciência, religião e culto, a separação do Estado frente

as Igrejas -, confere-lhe uma primazia difícil de discordar, o situando como “a

principal característica dos regimes republicanos,” e como tal, não é o princípio da

secularização que é deduzido dos demais princípios, mas sim, é ele “’o’ princípio do

qual aqueles343 são dedutíveis,” formando uma tríade de sustentação axiológica ao

modelo republicano e conformando o ordenamento jurídico fundamental, ao lado dos

preceitos preambulares da Constituição (o pluralismo, a fraternidade, o pacifismo e a

341 LOCKE, John. Carta a respeito da tolerância. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: IBRASA –

Instituição Brasileira de Difusão Cultural S.A., 1964 (Clássicos da Democracia, n. 21), p. 10-11. 342 Ibid., p. 12. 343 Dentre os princípios constitucionais inferidos pelo da secularização incluem-se o da inviolabilidade

da intimidade e do respeito à vida privada (artigo 5º, inciso X), o do resguardo da liberdade de manifestação de pensamento (artigo 5º, inciso IV), o da liberdade de consciência e crença religiosa (artigo 5º, inciso VI), o da liberdade de convicção filosófica ou política (artigo 5º, inciso VIII) e o da garantia de livre manifestação do pensamento (artigo 5º, inciso IX), passíveis de serem abraçados pelo preceito do direito à personalidade. CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito e garantismo: considerações a partir do princípio da secularização. In: CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, primeira parte, p. 17.

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igualdade) e os fundamentos assentados no artigo 1º, da Constituição Federal

(soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, pluralismo político).344

Sua posição como um dos sustentáculos da República num modelo de

Estado Democrático de Direito permite afirmar que na atualidade

[...] a amplitude e o alcance do princípio é superior ao da sua gênese histórica iluminista, representando atualmente verdadeira pedra angular da democracia e ferramenta pródiga de legitimação/deslegitimação de toda atividade do poder estatal, seja legiferante, administrativa e/ou judicial. Possibilita, inclusive, a averiguação dos níveis de legitimidade e dos graus de justiça e validade de todo sistema jurídico, principalmente das legislações penais ordinárias – inclusive pré-constitucionais [merecendo este exame, por exemplo, os critérios relativos ao autor dentre as diretivas do artigo 59, caput, do Código Penal]. Os princípios descritos [aqueles dedutíveis do postulado da secularização e objeto de nota] podem ser abarcados pelo preceito do direito à personalidade, eximindo todas as formas de manifestação da subjetividade da invasão estatal, seja por norma criminalizadora, por juízos processuais ou por pretensas interferências na execução. Assim, se o Estado não pode intervir na consciência do cidadão, tampouco pode invadir a vida privada do indivíduo, exigindo determinados comportamentos éticos ou morais.345

2.4.2 Culpabilidade

A mais antiga acepção acerca da responsabilidade penal era a objetiva

(vigorava há cerca de 2.500 anos), onde operava um desvalor de resultado, pois não

interessava a vontade psíquica do homem, o que se justificava em virtude de à

época vigorar a concepção filosófica teocêntrica (o destino humano nas mãos de

Deus). A responsabilidade penal encontrava-se ligada apenas “a um fato objetivo e

não se concentrava sequer em quem houvesse determinado tal fato objetivo. Era,

pois, uma responsabilidade objetiva e difusa.”346

344 CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito e garantismo:

considerações a partir do princípio da secularização. In: CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, primeira parte, p. 15-16.

345 Ibid., p. 17-18. 346 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 102, que

ilustra esta modalidade de responsabilidade com uma antiga legislação da Babilônia, editada pelo rei Hammurabi: “se um pedreiro construísse uma casa sem fortificá-la e a mesma, desabando, matasse o morador, o pedreiro seria morto; mas se também morresse o filho do morador, também o filho do pedreiro seria morto.”

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Há uma superação desta acepção com o surgimento do princípio da

culpabilidade, consistente no “juízo de reprovação pessoal que se realiza sobre a

conduta típica e ilícita praticada pelo agente.”347

Ao nível constitucional o princípio da culpabilidade encontra-se

implicitamente albergado em vários dispositivos, merecendo registro o artigo 1º,

inciso III (dignidade da pessoa humana), reforçado pelos artigos 4º, inciso II

(prevalência dos direitos humanos), 5º, caput (inviolabilidade do direito à liberdade e

o princípio da igualdade, este a proibir tratamento idêntico ao culpável e inculpável)

e 5º, XLVI (individualização da pena) da Constituição Federal.348

O princípio nulla poena sine culpa, citado expressamente no artigo 19 do

Código Penal, evidencia que a culpabilidade do autor é o fundamento jurídico da

pena (e também seu limite, a fim de resguardar a proporcionalidade na

culpabilidade), vez que o sistema brasileiro não se contenta com a responsabilidade

oriunda apenas do nexo de causalidade (responsabilidade objetiva – Código Penal,

art. 13),349 mediante a qual o agente responde criminalmente pelo simples fato de ter

dado causa materialmente ao evento, sem questionar se o dano produzido foi

querido, se era previsível ou mesmo se decorreu de caso fortuito.

Portanto, como pressuposto da pena o princípio da culpabilidade em

sentido amplo agasalha o princípio da responsabilidade penal subjetiva ou da

imputação subjetiva, o qual impede alguém de ser responsabilizado criminalmente

347 GRECO, Rogério. Curso de direito penal: volume I (Parte Geral). 7. ed. Rio de Janeiro: Impetus,

2006, p. 407. Ou ainda, a “reprovabilidade penal pela prática de uma conduta típica e antijurídica quando exigível ao agente um comportamento de acordo com as expectativas normativas.” AZEVEDO, David Teixeira de. Dosimetria da pena: causas de aumento e diminuição. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 66.

348 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1, Parte Geral. 3 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 117.

349 DOTTI, René Ariel. O sistema geral das penas. In: DOTTI, René Ariel et al. Penas restritivas de direitos: críticas e comentários às penas alternativas – Lei 9.714, de 25.11.1998. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. parte II, p. 65-66. Dotti entende que esta mesma culpabilidade funcionará como um dos referenciais para a fixação da pena pelo juiz. Ibid., p. 66.

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por uma ação ou omissão despida de dolo ou culpa (“não há delito ou pena sem

dolo ou culpa”).

Como limite da pena a responsabilidade penal subjetiva exige, em

ocorrendo delito doloso ou culposo, a sua proporcionalidade ou adequação “à

gravidade do desvalor da ação representado pelo dolo ou culpa, que integra, na

verdade, o tipo de injusto e não a culpabilidade.”350

O Código Penal brasileiro, com a reforma de sua Parte Geral, agasalhou

a teoria normativa da culpabilidade, que tem por pressuposto a liberdade de escolha

do homem. Portanto, será culpável o agente que, “sabendo da reprovabilidade ínsita

na norma, para atender a uma finalidade, decide livremente violá-la, quando tinha o

dever jurídico de agir de modo contrário.”351

De acordo com esta concepção, cunhada por Welzel, patrono do

finalismo, três são os elementos da culpabilidade: imputabilidade (que é a

capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com

este entendimento, aí compreendidas a maioridade penal e a higidez mental),

consciência da ilicitude do comportamento (“ilicitude é a relação de contrariedade

que se estabelece entre a conduta humana e o ordenamento jurídico,”352 sendo

suficiente, aqui, que o agente tenha, no caso concreto, a possibilidade de obter este

conhecimento; a ilicitude pressupõe um diploma legal impondo ou vedando

determinado comportamento) e exigibilidade de outra conduta (consistente na

“possibilidade que tinha o agente de, no momento da ação ou da omissão, agir de

acordo com o direito, considerando-se a sua particular condição de pessoa

350 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1, Parte Geral. 3 ed. rev., atual. e ampl.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 117. 351 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 194. 352 GRECO, Rogério. Curso de direito penal: volume I (Parte Geral). 7. ed. Rio de Janeiro: Impetus,

2006, p. 437.

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humana,”353 o que afasta qualquer pretensão de se apurar tal elemento através de

um homem ideal, o chamado homem médio).

A respeito deste derradeiro elemento da culpabilidade, bem observa

Greco que

o conceito de exigibilidade de conduta diversa é muito amplo e abrange, inclusive, as duas situações anteriormente colocadas – imputabilidade e potencial consciência sobre a ilicitude do fato -, que têm como finalidade precípua afastar a culpabilidade do agente. Se o agente era inimputável, pois que, ao tempo da ação ou da omissão, era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, não se lhe podia exigir uma conduta conforme o direito; da mesma forma aquele que atua não possuindo a necessária consciência sobre a ilicitude do fato. Todas essas causas dirimentes da culpabilidade desembocarão, é certo, na chamada inexigibilidade de outra conduta, haja vista que, nas condições em que se encontrava o agente, não se podia exigir dele comportamento diverso.354

Para tentar definir dogmaticamente a essência da culpabilidade, surgiram

duas teorias, uma calcada no livre-arbítrio (incorporada pelo direito penal brasileiro,

pois pressupõe a capacidade de autodeterminação do sujeito), outra fundamentada

no determinismo.

A primeira é produto da Escola Clássica355 e sustenta que o homem

psiquicamente desenvolvido é um ser dotado de plena liberdade de escolha, é

moralmente livre para optar entre o certo e o errado, donde sua responsabilidade

penal fundar-se na responsabilidade moral, que é assentada no livre-arbítrio,

conforme esclarece Aragão:

353 GRECO, Rogério. Curso de direito penal: volume I (Parte Geral). 7. ed. Rio de Janeiro: Impetus,

2006, p. 444. 354 Ibid., p. 443-444. Zaffaroni e Pierangeli concordam: “todas as causas de ausência de culpabilidade

são hipóteses em que não se podia exigir do autor uma conduta conforme ao direito, seja porque não lhe era exigível a compreensão da antijuridicidade, seja porque, embora tivesse esta compreensão, não se podia dele exigir a adequação de sua conduta à ela.” ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 618.

355 Em verdade, o nome escola clássica (que abrigava várias tendências) foi um eufemismo negativo para superado, dado precisamente por Ferri para designar o conjunto de autores que não partilhavam das mesmas idéias da escola científica por ele capitaneada (escola positiva ou positivista).

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Este livre-arbítrio é que serve, portanto, de justificação às penas que se impõem aos delinqüentes como um castigo merecido, pela ação criminosa e livremente voluntária. Só é punível quem é moralmente livre e, por conseguinte, moralmente responsável, porque só estes podem ser autores de delitos. Se o homem cometeu um crime deve ser punido porque estava em suas mãos abster-se ou se o quisesse, praticar ao invés dele um ato meritório.356

Surgida na primeira metade do século XIX, a Escola Clássica via o crime

como um ente jurídico abstrato, como um conceito meramente jurídico (sua atenção

é concentrada no crime), daí poder sustentar o dogma do livre-arbítrio, pois não

considerava o homem em concreto.

Como reação aos postulados desta Escola, responsável pela inserção

nos códigos dos ideais iluministas, aparece a Escola Positiva no último quartel do

século XIX, que visualiza o crime como uma ação determinada por circunstâncias de

natureza primordialmente social, ou com menor freqüência, de caráter individual (os

doentes psíquicos): o delito é um fato humano e social (volta seus esforços para o

delinqüente). Logo, volta-se para o homem concreto, para a realidade, pano de

fundo que fundamenta o determinismo por ela pregado, segundo o qual o homem

não é dotado de uma liberdade absoluta de escolha, sofrendo influência de fatores

internos ou externos na prática de uma infração penal. Amparando-se novamente

em Aragão, de acordo com tal corrente

[...] admitir-se a existência de uma vontade livre, não determinada por motivos de qualquer ordem, é contestar-se o valor da herança e a influência que a educação e o meio físico e social exercem sobre os homens. Não há fugir deste dilema. Ou a herança, o meio, a educação influem poderosamente sobre os indivíduos, formando-lhes o temperamento e o caráter, transmitindo-lhes e dando-lhes idéias e sentimentos que os levarão à prática de atos maus ou bons, conforme a natureza das qualidades morais transmitidas e adquiridas; e, então, a vontade não é livre, mas francamente determinada por esses motivos de ordem biológica, física e social. Ou a vontade é livre, exerce sua ação fora da influência destes fatores, e, neste

356 ARAGÃO, Antônio Moniz Sodré de. As três escolas penais. São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p.

72.

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caso, existe o livre-arbítrio, mas é mister confessar que o poder da herança, do meio e da educação é mera ilusão dos cientistas.357

Apesar de discordarem no tocante aos pressupostos do direito de punir,

clássicos e positivistas atribuíam às penas idêntica finalidade – retribuir o mal do

crime com o mal da pena -, com o diferencial de que estes últimos adicionaram à

retribuição a defesa social (a sociedade, colocada em perigo com a prática do crime

por um ser deterministicamente anormal e inadaptado ao meio social, defende-se

desta agressão com o mal da pena), daí surgindo conceitos como os de

imputabilidade (capacidade para ser culpável) e de periculosidade (alicerce das

medidas de segurança). De qualquer forma, a imputabilidade constitui o elemento

central da culpabilidade.358

De acordo com o livre-arbítrio o homem pode escolher sempre tudo; nos

termos do determinismo o homem não escolhe nada. Como ambas as categorias

são impassíveis de demonstração científica,359 o ideal é uma complementação entre

os dois pensamentos, que poderia ser assim resumido: o homem é livre dentro de

uma certa ambientalidade,360 como bem ilustra o exemplo de Greco:

Assistimos, quase que diariamente, por meio da imprensa, notícias no sentido de que o tráfico de entorpecentes procura arregimentar pessoas da própria comunidade para que possam praticar o comércio ilícito de drogas.

357 ARAGÃO, Antônio Moniz Sodré de. As três escolas penais. São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p.

82. 358 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 65-67. 359 “Denota-se que a idéia da liberdade de determinação, presente no pensamento clássico, revestir-

se-ia de sentido metafísico, vista sua impossibilidade de demonstração/refutação empírica. Em sentido oposto, a mesma crítica (falta de verificabilidade concreta pode/deve ser direcionada aos modelos deterministas (morais e/ou naturalistas).” CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito e garantismo: considerações a partir do princípio da secularização. In: CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, primeira parte, p. 41.

360 Logo, o juízo de culpabilidade requer, necessariamente, a incorporação de “um critério antropológico, ou seja, de uma avaliação do indivíduo concreto e socialmente referido e de sua possibilidade real de orientação”, pelo que, se nega “toda e qualquer tentativa de construção da culpabilidade a partir da adoção de critério de substituição do autor do fato por terceiro – v.g., as teses do homem médio.” Ibid., p. 42 (grifo do autor).

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Muitos são atraídos pela ausência de oportunidades de trabalho; outros, pela falsa impressão de poder e autoridade que o tráfico de drogas transmite. Enfim, o meio social pode exercer influência ou mesmo determinar a prática de uma infração penal. Contudo, nem todas as pessoas que convivem nesse mesmo meio social se deixam influenciar e, com isso, resistem à prática de crimes. Outras, pelo fato de a pressão social ser demasiadamente forte, se deixam levar.361

Impende ainda ressaltar que o princípio da culpabilidade, como clara

expressão da justiça material inerente ao Estado Democrático de Direito

(ontologicamente comprometido com a contenção do poder punitivo), somente se

coaduna com “uma responsabilidade por fato próprio” (direito penal de ato), sendo

incompatível com um direito penal de autor “fundado no modo de vida ou no caráter”

do agente.362 Estas concepções, que bem retratam a crise da culpabilidade, embora

díspares, adotam um mesmo ponto de partida, qual seja, a relação do delito com o

autor:

[para o direito penal de ato] o delito constitui uma infração ou lesão jurídica [...], [ao passo que para o direito penal de autor] ele constitui o signo ou sintoma de uma inferioridade moral, biológica ou psicológica. Para uns, seu desvalor [...] esgota-se no próprio ato (lesão); para outros, o ato é apenas uma lente que permite ver alguma coisa daquilo onde verdadeiramente estaria o desvalor e que se encontra em uma característica do autor.363

Enquanto o direito penal do ato centra-se no fato praticado pelo agente,

no direito penal de autor, o enfoque recai sobre o agente que cometeu o fato, sobre

sua especial maneira de ser ou de conduzir-se na vida. Complementando com as

lições de Roxin:

[...] por direito penal do fato se entende uma regulação legal, em virtude da qual a punibilidade se vincula a uma ação concreta descrita tipicamente e a

361 GRECO, Rogério. Curso de direito penal: volume I (Parte Geral). 7. ed. Rio de Janeiro: Impetus,

2006, p. 409. 362 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1, Parte Geral. 3 ed. rev., atual. e ampl.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 118. 363 ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito

Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 131.

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sanção representa somente a resposta ao fato individual, e não a toda a condução de vida do autor ou aos perigos que no futuro se esperam do mesmo. Ao contrário, se tratará de um direito penal de autor quando a pena se vincule à personalidade do autor e seja a sua anti-socialidade e o grau da mesma que determinem a sanção.364

Enumerando as vantagens do direito penal de ato sobre o direito penal de

autor, destaca Zaffaroni:

[...] exige que os conflitos se limitem aos provocados por ações humanas (nullum crimen sine conducta), exige uma estrita delimitação dos conflitos na criminalização primária (nullum crimen sine lege) e exige que a culpabilidade pelo ato constitua o limite da pena (nullum crimen sine culpa). No plano processual, exige um debate entre as partes, cingido ao que seja a matéria acusatória e, portanto, separa as funções do acusador, do defensor e do juiz (acusatoriedade). Apesar de nenhum desses princípios ser cumprido estritamente, não há dúvida de que as agências jurídicas que os assumem decidem com menos irracionalidade e violência que as demais.365

Ainda tomando como parâmetro as distinções entre direito penal de ato e

direito penal de autor, pode-se igualmente distinguir entre culpabilidade de ato e

culpabilidade de autor:

A culpabilidade do ato seria a reprovação do homem por aquilo que ele fez, considerando-se a sua capacidade de autodeterminação; já na culpabilidade de autor o que se reprova é o homem como ele é, e não aquilo que fez.366

2.4.3 Proporcionalidade

364 ROXIN, Claus. Derecho Penal – Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Trad. Diego

Manuel Luzón-Peña, Miguel Dias y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal da 2. ed. alemã. Parte general, tomo I. Madrid: Civitas, 1997, p. 176-177.

365 ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 134. As preciosas observações do jurista argentino colocam novamente em destaque o papel do julgador, quando conclui pela condenação, pois inegavelmente “a sintonia fina, o ajuste possível das respostas sancionadoras à culpabilidade do agente, segundo as finalidades punitivas, é incumbência somente possível ao magistrado em face do delito em sua concreção e singularidade.” AZEVEDO, David Teixeira de. Dosimetria da pena: causas de aumento e diminuição. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 77.

366 GRECO, Rogério. Curso de direito penal: volume I (Parte Geral). 7. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 422.

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O princípio da proporcionalidade adquire especial relevância nos casos

em que a norma jurídica concede certa margem de liberdade para o agente público

decidir quanto ao modo e extensão do exercício de sua competência, como se dá

por ocasião da aplicação da pena privativa de liberdade – com destaque para a

fixação da pena-base -, seja pela subjetividade de alguns critérios postos à

disposição do juiz, seja pelas amplas margens punitivas previstas nos tipos

incriminadores.

A proporcionalidade exprime quantitativamente um outro princípio – o da

razoabilidade – que condena “a irracionalidade, o absurdo ou a incongruência na

aplicação (e, sobretudo, na interpretação) das normas jurídicas”, invalidando

qualquer ato em desconformidade com os padrões lógicos.367

Firmou-se como um dos postulados penais somente com o Iluminismo,

especialmente com as reformas pregadas por Beccaria, merecendo destaque o

trecho a seguir, onde ficam igualmente nítidas a finalidade preventivo-geral por ele

atribuída às penas (tanto que a gravidade dos crimes é diretamente proporcional ao

dano causado à sociedade) e a associação utilitarismo-contratualismo:

O interesse geral não se funda apenas em que sejam praticados poucos crimes, porém ainda que os crimes mais prejudiciais à sociedade sejam os menos comuns. Os meios de que se utiliza a legislação para obstar os crimes devem, portanto, ser mais fortes à proporção que o crime é mais contrário ao bem público e pode tornar-se mais freqüente. Deve, portanto, haver proporção entre os crimes e os castigos. Se o prazer e o sofrimento são os dois grandes motores dos seres sensíveis; se, entre as razões que guiam os homens em todas as suas atitudes, o supremo Legislador pos como os mais poderosos as recompensas e os castigos; se dois crimes que afetam de modo desigual a sociedade recebem idêntico castigo, o homem votado ao crime, não tendo a recear uma pena maior para o crime mais hediondo, resolver-se-á com mais facilidade pelo crime que lhe traga mais vantagens; e a distribuição desigual das penalidades fará nascer a contradição, tão evidente quanto freqüente, de que as leis terão de castigar os delitos que fizeram nascer. Se for estabelecido um mesmo castigo, a pena de morte por exemplo, para aquele que mata um faisão e para o homicida ou aquele que falsifica um

367 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1996,

p. 158.

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documento importante, logo não se procederá a mais nenhuma diferença entre esses crimes; serão destruídos no coração do homem os sentimentos de moral, obra de muitos séculos [...]. [...] Tendo-se como necessária a reunião dos homens em sociedade, de acordo com convenções estatuídas pelos interesses opostos de cada particular, encontrar-se-á uma progressão de delitos, dos quais o maior será o que tende à destruição da própria sociedade. Os crimes menores serão as ofensas cometidas contra particulares. Entre estas duas extremidades ficarão compreendidos todos os atos que se opõem ao bem público, desde o mais criminoso até o menos incriminável. Se os cálculos exatos pudessem ser aplicados a todas as combinações obscuras que levam os homens a agir, seria necessário buscar e estabelecer uma progressão de penas que corresponda à progressão dos delitos. O quadro dessas duas progressões seria a medida da liberdade ou da escravidão da humanidade ou da maldade de cada país. Bastará, pois, que o legislador sábio estabeleça divisões principais na distribuição das penalidades proporcionadas aos crimes e que, especialmente, não aplique os menores castigos aos maiores delitos.368

Antes dele, Montesquieu (1689-1755) já demonstrava na sua obra mais

famosa, O espírito das leis (1748), preocupação com a proporcionalidade no sentido

de proibição do excesso, de moderação das penas, que corresponderia ao espírito

natural à república, ao passo que a severidade das penas se adequaria “melhor ao

governo despótico, cujo princípio é o terror,”369 tanto que nomina um dos capítulos (o

XVI) Da justa proporção das penas com o crime, quando consigna:

É essencial que as penas estejam harmoniosamente relacionadas entre si, pois é mais importante evitar antes um grande crime do que um menor, aquilo que ataca a sociedade antes daquilo que a prejudica menos. [...] É, entre nós, um grande erro aplicar o mesmo castigo ao que assalta estradas e ao que rouba e assassina. É evidente, para a segurança pública, que se deveria estabelecer alguma diferença na pena. Na China, os ladrões cruéis são esquartejados, os outros não; essa diferença faz com que se roube mas que não se assassine. Na Moscóvia, onde a pena para ladrões e assassinos é a mesma, sempre se assassina. Os mortos, dizem, nada revelam.370

368 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1983,

p. 61-63 (grifo do autor). 369 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. Conseqüências dos princípios dos diversos

governos em relação à simplicidade das leis civis e criminais, à forma dos julgamentos e ao estabelecimento das penas. In: O espírito das leis. Tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo: Nova Cultural, 2005, Livro VI (Coleção Os Pensadores), p. 122.

370 Ibid, p. 129-130. Com relação às penas pecuniárias, Montesquieu sustentava que deveriam guardar proporcionalidade com as fortunas dos condenados (p. 131).

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O princípio da proporcionalidade no campo penal exige que haja “uma

medida de justo equilíbrio – abstrata (legislador) e concreta (juiz) – entre a gravidade

do fato ilícito praticado, do injusto penal (desvalor da ação e desvalor do resultado),

e a pena cominada ou imposta,” ou seja, que haja adequação entre a pena e a

“magnitude da lesão ao bem jurídico representada pelo delito.”371

371 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1, Parte Geral. 3 ed. rev., atual. e ampl.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 122 (grifo do autor).

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CAPÍTULO 3 FINALIDADES DA PENA (PRIVATIVA DE LIBERDADE): TEORIAS

A imposição de uma pena criminal, mormente a pena privativa de

liberdade, constitui o mecanismo mais avassalador de que lança mão o Estado para

impor o respeito às normas jurídicas.

As teorias sobre as finalidades (ou funções) da pena são um tema de

permanente atualidade prática, pois buscam fundamentos para legitimar (e em um

Estado Democrático de Direito, sobretudo para limitar) a privação da liberdade de

um indivíduo (ou mesmo outra forma de intervenção, que lhe diminua a capacidade

de autodeterminação) via intervenção estatal.

Zaffaroni as denomina modelos de discursos legitimantes do poder

punitivo, nos quais sempre estaria presente (ainda que por via indireta) a função

geral de defesa social, os subdividindo em dois grandes grupos:

[...] a) o que pretende que o valor positivo da criminalização atue sobre os que não delinqüiram, das chamadas teorias da prevenção geral, as quais se subdividem em negativas (dissuassórias) e positivas (reforçadoras); e b) o que afirma que o referido valor atua sobre os que delinqüiram, das chamadas teorias da prevenção especial, as quais se subdividem em negativas (neutralizantes) e positivas (ideologias re: reproduzem um valor positivo na pessoa). 372

Segundo Dias, o estudo das finalidades da pena está ontologicamente

ligado ao próprio destino do direito penal, pois irá determinar a maneira de atuar da

pena para cumprir a função discursiva do direito penal, atuando, portanto, sobre a

própria concepção material de crime.373 De fato, o ideal seria o compartilhamento de

um projeto comum entre o direito penal e a pena – e, diga-se, este é o discurso

oficial que busca legitimar pelo menos as funções aparentes, declaradas ou

372 ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito

Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 114-115 (grifo do autor). 373 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1999, p. 89-90.

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manifestas – retribuição e prevenção geral/especial da criminalidade -, não as reais

ou latentes da pena (capazes de explicar sua existência, aplicação e execução nas

sociedades divididas em classes sociais antagônicas), como aguçadamente observa

Batista:

quando se fala nos fins (ou “missão”) do direito penal, pensa-se principalmente na interface pena/sociedade e subsidiariamente num criminoso antes do crime; quando se fala nos fins (ou objetivos, ou funções) da pena, pensa-se nas interferências criminoso depois do crime/pena/sociedade. [Ao direito penal cumpre funções nobres – sinal social positivo – enquanto à pena é atribuído um sinal social negativo, que fica claro em todos os núcleos que informam as mais variadas teorias: retribuir o mal com o mal, intimidar etc]. Um iniciante estaria tentado a considerar até que os fins do direito penal e os fins da pena habitam a mesma casa, porém os primeiros na sala de visitas e os segundos na cozinha.374

Em suma, procura replicar a seguinte indagação: qual o sentido, as

finalidades e os limites da atuação estatal nesta esfera? Obviamente a resposta não

é simples, nem pode estar desconectada das contínuas transformações da vida em

sociedade ao longo do tempo, cujas aspirações essenciais busca, em determinado

momento histórico, ver refletidas no modelo de Estado por esta sociedade adotado.

Logo, as funções da pena estão indissoluvelmente ligadas à finalidade

que se atribua ao Estado, existindo entre aquelas e esta uma “vinculação

axiológica.”375 Esta percepção de que a missão da pena repousa sobre uma

premissa política permite, ao relativizar a problemática, chegar a uma concepção

minimamente aceitável sobre o tema.376

374 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 111-112. 375 MIR PUIG, Santiago. Función de la pena y teoria del delito en el Estado Social e Democrático de

Derecho. 2. ed. rev. Barcelona: Bosch, 1982, p. 15. 376 Ibid., p. 15. Como o Estado é produto da Constituição, que por seu turno há de condensar os

valores mais relevantes de uma determinada sociedade, conclui-se com Cernicchiaro que as sanções vigentes em determinado período dão a medida da evolução das idéias e instituições penais, pois “a qualidade, a quantidade e o modo de executá-las [as sanções] retratam a cultura de um povo.” CERNICCHIARO, Luiz Vicente; COSTA JR., Paulo José da. Direito Penal na Constituição. 3. ed. rev e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 118-119.

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E onde vem condensada a função do Estado? Na fórmula política por ele

adotada, que no caso do ordenamento jurídico brasileiro recebeu guarida expressa

no artigo 1º, caput, da Constituição Federal: Estado Democrático de Direito, o qual,

portanto, há de ser alçado “como princípio valorativo supremo que deve orientar toda

elaboração dogmática do Direito penal.”377

Assim, a pena há de buscar sua finalidade e seus limites neste

fundamento constitucional da ordem jurídica.378

3.1 TEORIAS MONISTAS

As posições fundamentais a respeito da matéria podem ser resumidas a

três supostas respostas, quando isoladamente consideradas (daí a designação

monistas): teoria da retribuição, da prevenção geral e da prevenção especial. A

primeira se insere dentre as teorias absolutas (ab-soluta = desligada), enquanto as

demais encaixam-se nas teorias relativas (relativa = referir-se a).

3.1.1 Teoria retributiva

377 MIR PUIG, Santiago. Función de la pena y teoria del delito en el Estado Social e Democrático de

Derecho. 2. ed. rev. Barcelona: Bosch, 1982, p. 16-17. Consigna ainda o autor que “não somente a pena, mas também o delito hão de encontrar, pois, seu fundamento na concepção do Estado Social e Democrático de Direito, que se converte assim no suporte (valorativo) dos dois pilares sobre os quais gravita todo o sistema (teleológico) da Parte Geral do Direito penal.” Ibid.. p. 17 (tradução nossa). Zaffaroni e Pierangeli sustentam não ser possível erigir o componente Estado de Direito, no sentido de submissão de todos ao direito, como princípio geral orientador, face à constatação de que na realidade nem todos se encontram igualmente vulneráveis ao sistema penal, que é seletivo na sua incidência, existindo, assim, graus diferentes de realização do Estado de Direito, o que “nos conscientizará da necessidade de tê-lo como farol na tormenta e esforçarmo-nos continuamente para a sua realização ideal, propugnando uma integração comunitária organizada que diminua o grau de de marginalização inevitável em toda a sociedade.” ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2004, p. 74.

378 Outro não é o entendimento de Cernicchiaro, ao asseverar que a pena, “como todo instituto jurídico, atua para concretizar os fundamentos que orientam as atividades do Estado. Em se chocando com qualquer deles, evidentemente, será inconstitucional.” CERNICCHIARO, Luiz Vicente; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal na Constituição. 3. ed., rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. Parte I, p. 125.

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De acordo com a teoria retributiva, a legitimação da pena repousa

unicamente na compensação da culpabilidade do autor da infração (culpabilidade

aqui entendida como o poder agir de outro modo) com a imposição de um mal penal.

Com esta compensação estaria realizada a idéia de justiça e é o que basta, não

vislumbrando na pena qualquer finalidade (a pena não serve para nada, sendo um

fim em si mesma, assim como o homem, que por isso não pode ser utilizado como

instrumento em benefício da sociedade).

Como o crime não pode ficar sem castigo, ele há de ser aplicado sempre,

ainda que não tenha qualquer utilidade social.

A medida concreta da pena há de corresponder, portanto, à “justa paga

do mal que com o crime se realizou,”379 o que evidencia sua fundamentação

filosófica, originariamente, no princípio do talião (olho por olho, dente por dente).

No decorrer da Idade Média, a teoria permeou-se de racionalizações

religiosas, ancorando-se basicamente na seguinte idéia:

[...] a realização da justiça no mundo, como mandamento de Deus, conduz à legitimação da aplicação da pena retributiva pelo juiz como representante terreno da justiça divina.380

Caída em descrédito na época do Iluminismo, esta teoria ganhou novas

forças no século XIX, quando passa a buscar sua fundamentação filosófica no

idealismo alemão, basicamente nas versões laicas de Kant (para quem a pena é

uma retribuição ética, a encontrar justificativa “por meio do valor moral da lei penal

violada pelo culpado e do castigo que conseqüentemente lhe é imposto”) e Hegel

(para ele a pena é uma retribuição jurídica, justificada pela “necessidade de

379 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1999, p. 91. 380 Ibid., p. 92.

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restaurar o direito por meio de uma violência, em sentido contrário, que reestabeleça

o ordenamento legal violado”).381 Destarte, em Kant a pena é decorrência de uma

exigência ética profundamente arraigada na consciência humana: que o bem seja

recompensado com o bem, o mal com o mal; em Hegel a razão de existir da pena

está no seio do próprio ordenamento jurídico: ela se presta para reafirmar a

autoridade da lei posta em xeque pelo delito praticado. Ainda que por fundamentos

diversos, em ambas o réu é apenado porque delinqüiu (punitur quia peccatum,

punido porque pecou).

Immanuel Kant (1724-1804) desenvolve os fundamentos da sua

concepção retributiva na obra A Metafísica dos Costumes382 (1797), mais

especificamente na parte intitulada Doutrina do Direito.

Partindo de duas premissas – o livre-arbítrio383 dos seres humanos e a lei

da punição (lei penal) como um imperativo categórico384 - apresenta a pena como

um castigo pelo fato passado, como retribuição pelo crime praticado, destituída de

qualquer finalidade:

381 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et al. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 205. 382 Para Kant, apenas a parte não-empírica ou racional do conhecimento pode ser chamada de

metafísica. Assim, o saber metafísico é um saber a priori, puro, isto é, que dispensa experimentação. Já com relação aos costumes, são entendidos por Kant como o conjunto de regras de conduta que disciplinam a ação do homem como ser livre e inteligível, que, portanto, adequa suas ações não às leis naturais, mas sim à legislação moral. Logo, metafísica dos costumes constitui a parte da filosofia moral que estuda as leis que regulam a conduta humana sob uma perspectiva exclusivamente racional (ou não-empírica). Conforme destrincha BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1992, p. 49-53.

383 A nota distintiva entre os homens e os demais seres vivos é a capacidade de atuar de acordo com o seu livre arbítrio. Esta capacidade de autodeterminação dota os seres humanos de dignidade, o que impede que sejam usados como objeto, como instrumento para alguma coisa. Assim, o ponto de partida de Kant residia no livre arbítrio, que não é passível de demonstração científica. O livre arbítrio de Kant era aquele destituído de qualquer influência externa, portanto, um imperativo categórico. Em verdade, livre arbítrio destituído da ambientalidade social não existe. GUARAGNI, Fábio André. Anotações de aula ministrada no curso de Mestrado em Direito Processual e Cidadania. UNIPAR-Umuarama (PR), em junho de 2005.

384 Todo imperativo traduz a idéia de um dever, de um comando, que quando categórico, é incondicional, ou seja, não funciona como meio para atingir qualquer fim. Os imperativos categóricos traduzem leis (morais) universais.

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A punição imposta por um tribunal (poena forensis) [...] jamais pode ser infligida meramente como um meio de promover algum outro bem a favor do próprio criminoso ou da sociedade civil. Precisa sempre ser a ele infligida somente porque ele cometeu um crime, pois um ser humano nunca pode ser tratado apenas a título de meio para fins alheios ou ser colocado entre os objetos de direitos a coisas: sua personalidade inata o protege disso, ainda que possa ser condenado à perda de sua personalidade civil. [...] A lei da punição é um imperativo categórico e infeliz daquele que rasteja através das tortuosidades do eudaimonismo, a fim de descobrir algo que libere o criminoso da punição ou, ao menos, reduz sua quantidade pela vantagem que promete [...].Se a justiça desaparecer não haverá mais valor algum na vida dos seres humanos sobre a Terra.385

Para harmonizar a qualidade e quantidade de pena ao crime, Kant

socorre-se da lei de talião (ius talionis), única forma de devolver ao criminoso, com a

mesma intensidade (e, portanto, de forma justa), o mal por ele causado à sociedade

com a prática do delito (equivalência entre o crime e o direito de retaliação). Mais

uma vez, lança-se mão das palavras do jusfilósofo prussiano:

[...] que tipo e que quantidade de punição correspondem ao princípio e medida da justiça pública? Nada além do princípio de igualdade (na posição do ponteiro na balança da justiça) inclinar-se não mais para um lado do que para o outro. Em conformidade com isso, seja qual for o mal imerecido que infliges a uma outra pessoa no seio do povo, o infliges a ti mesmo. Se o insultas, insultas a ti mesmo; se furtas dele, furtas de ti mesmo; se o feres, feres a ti mesmo; se o matas, matas a ti mesmo. Mas somente a lei de talião (ius talionis) – entendida, é claro, como aplicada por um tribunal (não por teu julgamento particular) – é capaz de especificar definitivamente a qualidade e a quantidade de punição; todos os demais princípios são flutuantes e inadequados a uma sentença de pura e estrita justiça, pois neles estão combinadas considerações estranhas.386

É com base no ius talionis que Kant sustenta, inclusive, a legitimidade da

pena de morte para o homicídio (ou mesmo para crime contra o Estado que só

possa ser punido com a pena capital), como única forma de satisfazer a justiça,

porquanto responderia proporcionalmente à perversidade interior do criminoso, in

verbis:

385 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini.

Bauru, SP: EDIPRO, 2003, (Série Clássicos Edipro), p. 174-175 (grifo do autor). 386 Ibid., p. 175. Mais adiante, o autor reafirma o direito de retaliação como único princípio seguro para

o direito de punir, porque “determina essa idéia a priori (não derivado da experiência de quais medidas seriam mais eficazes para a erradicação do crime).” Ibid., p. 206.

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Inexiste similaridade entre a vida, por mais desgraçada que possa ser, e a morte, e, conseqüentemente, nenhuma igualdade ou analogia entre o crime e retaliação, a menos que a morte seja judicialmente aplicada ao criminoso, ainda que tenha que estar isenta de qualquer maltrato que pudesse tornar abominável a humanidade na pessoa que a sofre. Mesmo se uma sociedade civil tivesse que ser dissolvida pelo assentimento de todos os seus membros (por exemplo, se um povo habitante de uma ilha decidisse separar-se e se dispersar pelo mundo), o último assassino restante na prisão teria, primeiro, que ser executado, de modo que cada um a ele fizesse o merecido por suas ações, e a culpa sanguinária não se vinculasse ao povo por ter negligenciado essa punição, uma vez que de outra maneira o povo pode ser considerado como colaborador nessa violação pública da justiça.387

Em suma, para Kant a justiça punitiva estará resguardada sempre que a

sentença do juiz fizer recair sobre o criminoso um mal em igual quilate àquele

produzido pelo delito, pois a “única vez que um criminoso não pode se queixar que

um mal lhe é feito é quando faz retornar sua má ação sobre si mesmo, e o que é

feito a ele de acordo com o direito penal é o que ele cometeu aos outros.”388

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) construiu uma filosofia que

elimina a distinção tradicional entre a idéia e o real, uma vez que ambas seriam

aspectos de uma mesma coisa: o que é real é racional e o que é racional é real. A

realidade seria um processo lógico de evolução, que parte de um processo espiritual

e somente pode ser compreendido quando vivenciamos tal processo em nós

mesmos. A razão para Hegel não é uma faculdade da alma, mas sim a essência e

norma do pensamento do homem. Como consectário lógico desta proposição

hegeliana, a razão do direito e das leis do Estado somente se realiza “numa

387 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini.

Bauru, SP: EDIPRO, 2003, (Série Clássicos Edipro), p. 176. Contesta inclusive Beccaria, para quem a pena de morte era um erro, por não estar contemplada dentre as cláusulas do contrato civil original, pois isto pressuporia que todos os componentes da sociedade tivessem consentido em perder a vida na hipótese de matar um outro integrante do povo. A esta assertiva, que Kant atribui a “sentimentos compassivos de afetada humanidade”, ele rebate no sentido de que “ninguém é objeto de punição porque a quis, mas porque quis uma ação punível [...]. Dizer que quero ser punido se assassino alguém é dizer nada mais do que me submeto, juntamente com todos os outros, às leis, que naturalmente também serão leis penais se houver quaisquer criminosos em meio ao povo.” Ibid., p. 178 (grifo do autor).

388 Ibid., p. 206.

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sociedade em que os indivíduos livres reconhecem nas leis sua própria vontade e

em si mesmos uma expressão particularizada das leis”.389

O jusfilósofo nascido em Stuttgart justifica a pena como uma retribuição

jurídica, assunto a que se dedica na primeira parte dos Princípios da filosofia do

direito (1821), dedicada ao direito abstrato, mais especificamente no sub-item

violência e crime (§§90 a 104).

Embora a coação (esta exercida pelo direito abstrato), quando concebida

abstratamente, seja injusta, porque “é uma violência contra a existência da minha

liberdade numa coisa exterior,” 390 torna-se jurídica e necessária a partir do momento

que dela se lança mão para proteger esta mesma existência contra uma violência

anterior, pois então a segunda violência se justifica como forma de suprimir a

primeira.391

Esta primeira violência é o crime: “a primeira coação, exercida como

violência pelo ser livre que viola a existência da liberdade no seu sentido concreto,

que viola o direito como tal, constitui o crime.”392

Assim, enquanto a liberdade abstratamente considerada é ilimitada, a

convivência social (a existência real) traz consigo a necessidade de restringir esta

liberdade mediante concessões recíprocas que permitam a sobrevivência do todo,

daí o direito atuar “na base de proibições e negações (não fazer, deixar de fazer,

controlar o fazer).”393

389 HEGEL, Georg. Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima,

adaptação e notas de Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997 (Coleção Fundamentos do Direito), p. 17-23.

390 Ibid., §94, p. 102. 391 Isto porque “o princípio conceitual de que toda violência se destrói a si mesma possui a sua

verdadeira expressão no fato de uma violência anular-se com outra violência.” Ibid., §93, p. 101. 392 Ibid., §95, p. 102. 393 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. São

Paulo: Atlas, 2001, p. 286.

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Violado o direito, surge a necessidade de suprimir o evento causador da

afronta mediante a oposição de uma força que o aniquile. Entra então em cena o

castigo, a pena: “a supressão do crime é o castigo, porque, segundo o conceito, é

uma violência contra outra violência, segundo a existência,”394 conclusão a que

Hegel chega através do seguinte raciocínio:

97 – Como evento que é, a violação do direito como tal constitui, sem dúvida, uma existência positiva exterior, que contém em si uma negação. A manifestação dessa negatividade é a negação dessa violação que, por sua vez, entra na existência real; a realidade do direito reside na sua necessidade ao reconciliar-se ela consigo mesma mediante a supressão da violação do direito. [...] 99 – [...] a violação é, para a vontade particular da vítima e dos outros, algo negativo. A violação só tem existência positiva como vontade particular do criminoso. Lesar essa vontade como vontade existente é suprimir o crime que, de outro modo, continuaria a apresentar-se como válido, e é também o restabelecimento do direito. [...] 100 – A pena que afeta o criminoso não é apenas justa em si; justa que é, é também o ser em si da vontade do criminoso, uma maneira de a sua liberdade existir, o seu direito. Necessário ainda acrescentar que, com relação ao próprio criminoso, constitui ela um direito: está já implicada na sua vontade existente, no seu ato. Este ato, porque vem de um ser de razão, implica na universalidade que por si mesmo o criminoso reconheceu e à qual se deve sujeitar como ao seu próprio direito. Nota – [...] Admitindo-se, assim, que a pena contém o seu direito, dignifica-se o criminoso como ser racional. Essa dignificação não existirá se o conceito e a extensão da pena forem determinados pela natureza do ato criminoso, o que também ocorre quando ele é considerado como um animal perigoso que se tenta intimidar ou corrigir ou que é preciso suprimir. [...] 104 – [...] a vontade que em si existe a si mesmo [a vontade do criminoso] regressa ao suprimir aquela oposição [através da pena], e assim ela mesma se torna para si e real [restabelecimento da vontade geral]. Desta maneira, o direito se assegura e afirma válido, como real por sua necessidade, em face da vontade individual que só existe para si. [...]395

Hegel, portanto, apresenta o crime como uma manifestação contrária à

ordem implantada racionalmente pelo sistema jurídico, representativa da vontade

geral. Assim, o crime é a negação do direito (porquanto a vontade especial do

criminoso negou a vontade geral), e este somente será restabelecido enquanto valor 394 HEGEL, Georg. Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Tradução de Norberto de Paula

Lima, adaptação e notas de Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997 (Coleção Fundamentos do Direito), §101, p. 106.

395 Ibid., p. 103-108.

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mediante a imposição, ao autor do delito, de uma violência em sentido oposto, a

pena, capaz de negar aquela negação. Por esta fórmula dialética, enquanto o crime

é a negação do direito, a pena, pelo sofrimento que acarreta, é a negação do crime,

ou a negação da negação do direito (isto é, a sua afirmação), restabelecendo a

vontade geral.

Interessante assinalar que a concepção contrafáctica de Jakobs tem

ligação nesta idéia, mas enquanto em Hegel ela se volta para o passado, sendo

despida de qualquer finalidade, em Jakobs esta concepção se volta para o futuro,

com a finalidade de reafirmar nas pessoas a confiança no sistema jurídico:

prevenção geral positiva, tratada mais adiante.

A compensação buscada por esta teoria absoluta é em função da

culpabilidade do agente, e nisto residiria o seu mérito, de acordo com Figueiredo

Dias, pois segundo o princípio da culpabilidade “não há pena sem culpabilidade e a

medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpabilidade.” 396

Roxin, além de consignar a impossibilidade de a teoria isoladamente

justificar a pena estatal, apresenta três críticas à teoria retributiva: 1ª) a teoria parte

do pressuposto que a pena é a única forma de compensação pela culpa humana,

deixando assim assente a necessidade da pena, mas sem apresentar seus

fundamentos. Ora, se a culpa humana apresenta gradações em sua essência e em

suas conseqüências, caberia à teoria estabelecer quais as situações de culpa

legitimariam a atuação do poder punitivo estatal, e isto ela não faz, abrindo ao

legislador um perigoso espaço para a penalização desmedida; 2ª) ainda que

generalizadamente se concorde com a competência do Estado para punir formas de

396 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1999, p. 93, embora o autor negue a retribuição como uma teoria dos fins da pena, já que ela mesma se pretende dissociada de quaisquer fins. Tal assertiva, no entanto, não significa que a toda culpabilidade há de corresponder uma pena, “mas só aquela culpabilidade que simultaneamente acarrete a necessidade ou carência de pena.” Ibid., p. 95.

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conduta realizadas com culpa, carece de justificação a sanção penal como

compensação da culpa, na medida em que se revela impossível demonstrar

cientificamente, diante de uma situação concreta, se aquele homem poderia ter

atuado de forma diversa, e, portanto, se agira com culpa ou não. Logo, a culpa

acaba derivando de uma mera suposição – se o homem é dotado de livre arbítrio,

tem sempre a possibilidade de optar entre o agir conforme o direito ou

contrariamente a ele -, insuficiente para justificar o direito estatal a intervir de forma

tão drástica; 3ª) mesmo superadas as objeções anteriores, persiste a irracionalidade

de se pretender pagar um mal cometido com um segundo mal, que é a inflição de

uma pena, porquanto esta idéia de retribuição compensadora, ainda que parta do

Estado, não se diferencia em sua essência da vingança humana, e, portanto, só

encontra guarida caso encarada como um ato de fé, inconcebível na atualidade, em

que todo o poder estatal – de que as sentenças penais são um exemplo - deriva do

povo, não de poderes transcendentes, até porque nos é impossível conhecer o juízo

divino sobre a culpa humana e poder executá-lo.397398

3.1.2 Teoria preventivo-especial

As teorias preventivas surgem na metade final do século XIX e início do

século XX, com acentuado caráter positivista, apresentando como ponto de contacto

a atribuição de uma finalidade utilitarista para a pena.399

Enquanto a teoria retributiva volta-se para o passado, a teoria da

prevenção especial (ou individual), visa a evitar a prática de novos delitos pelo 397 ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1986, p. 17-20. 398 Esta equivocada confusão entre a lei penal e a lei moral em que incide a teoria retribucionista é

também objeto de crítica por Figueiredo Dias, porquanto absolutamente incompatível com o Estado contemporâneo: democrático pluralista e laico. DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 94.

399GUARAGNI, Fábio André. O sistema prescricional brasileiro como fator de impunidade. Apresentada como dissertação de mestrado, Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 1997, cap. III.3.1, p. 29.

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infrator (finalidade de prevenção da reincidência), através de três possíveis

mecanismos, conforme esclarece Roxin: “corrigindo o corrigível, isto é, o que hoje

chamamos de ressocialização; intimidando o que pelo menos é intimidável; e,

finalmente, tornando inofensivo mediante a pena de privação da liberdade os que

não são nem corrigíveis nem intimidáveis.”400 Não se preocupa muito com os fatos,

mas sim com seus autores.

Figueiredo Dias é ainda mais minucioso ao desdobrar as vertentes

negativa (ou de inocuização) e positiva (ou de socialização) do preventivismo-

especial: naquela, a pena se destinaria à intimidação individual, através da

atemorização do infrator até um ponto em que ele não tornaria a praticar crimes, ou,

ainda, caberia à pena a função exclusiva de defesa social, por intermédio da

separação ou segregação do delinqüente, porque esta seria a única forma de

neutralizar a sua perigosidade social. Já para os adeptos da vertente positiva a

prática de novos delitos pelo infrator poderá ser evitada de duas maneiras: ou

através da sua reforma moral interior, fazendo com que o delinqüente intronize os

valores que compõem a ordem jurídica, ou indo mais além, por meio de um

verdadeiro tratamento das tendências individuais que conduzem o delinqüente ao

crime.401

Zaffaroni é implacável na crítica à prevenção especial negativa, até

porque, na prática, a vertente positiva com a qual costuma ser conjugada, ou não é

implementada, ou se revela fracassada:

Para a prevenção especial negativa, a criminalização também visa a pessoa criminalizada, não para melhorá-la, mas para neutralizar os efeitos de sua inferioridade, à custa de um mal para a pessoa, que ao mesmo tempo é um bem para o corpo social. Em geral, ela não se enuncia como função

400 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 20. 401 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1999, p. 103.

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manifesta exclusiva, mas sim em combinação com a anterior [prevenção especial positiva]: quando as ideologias re fracassam ou são descartadas, apela-se para a neutralização e eliminação. Na realidade social, como as ideologias re sempre fracassam, a neutralização é somente uma pena atroz imposta por seleção arbitrária. Sem dúvida alguma, tem êxito preventivo especial: a morte e os demais impedimentos físicos são eficazes para suprimir condutas posteriores do mesmo sujeito.402

Sua formulação remonta ao Iluminismo e deve a sua força ao penalista

Franz Von Liszt (1851-1919), um dos fundadores da Escola de Política Criminal

(1888), através da qual pretendeu, sobretudo, demonstrar na prática os pontos de

contato, na luta contra o delito, entre a Escola Clássica e a Escola Positivista.403

No seu Tratado de Direito Penal Alemão, tomo I, mais especificamente no

capítulo destinado aos Lineamentos de Política Criminal (cap. II), Von Liszt

desenvolve os fundamentos de sua teoria.404

Para ele, a razão de existir do direito reside na proteção de interesses da

vida humana, sejam individuais, sejam da coletividade, os quais, sob esta tutela

jurídica, adquirem o status de bem jurídico.405

Mas estes interesses, por resultarem de relações humanas, sofrem vários

pontos de atrito no seu atuar, fazendo-se necessário, para manter a paz social,

estabelecer limites aos “círculos da vontade humana”, circunscrevendo a esfera “da

eficiência de cada um” (destes círculos), através da seleção de interesses

merecedores da proteção do Direito, papel que somente pode ser desempenhado

402 ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito

Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 127. 403 DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro:

Forense, 2005, p. 157. 404 LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I. Trad. e com. de José Higino Duarte

Pereira. Campinas: Russell Editores, 2003, cap. II, p. 139-165. 405 Ressalta Liszt que os interesses são produzidos pela vida, não pelo Direito, que se presta

exatamente para tutelá-los, daí afirmar que “bem jurídico é, pois, o interesse juridicamente protegido”. Como é a necessidade que dá origem à proteção, variando os interesses, igualmente diversos são os bens jurídicos, quer quanto à quantidade, quer quanto ao gênero. Ibid., p. 139 (grifo do autor).

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por uma vontade superior à vontade individual, no caso, a vontade do Estado

concretizada na ordem jurídica.406

O direito extrema os círculos da eficiência de cada um; determina até onde a vontade pode manifestar-se livremente e sobretudo até onde, exigindo uma ação ou inação alheia, pode penetrar na esfera da atividade de outras pessoas; garante a liberdade, o poder autorizado de querer, e proíbe o arbítrio; converte as relações da vida em relações jurídicas, os interesses em bens jurídicos; ligando direitos e deveres a determinados pressupostos, faz do comércio da vida um comércio segundo o direito. Assim, ordenando e proibindo, prescrevendo uma determinada ação ou inação sob certas condições, as normas vêm a ser o anteparo dos bens jurídicos. A proteção, que a ordem jurídica dispensa aos interesses, é proteção segundo normas [...]. O bem jurídico e a norma são, pois, as duas idéias fundamentais do direito.407

Porém, para tornar realidade a obediência de todos às normas, e assim

ver protegidos os bens jurídicos eleitos pelo direito, este também traz em si uma

“ordem de combate”, uma idéia de força, necessária para submeter as vontades

individuais relutantes às normas, daí surgindo a coação, que no caso específico do

Direito Penal se expressa mediante “punição do desobediente”.408

Seria então exatamente a intensidade do efeito jurídico, da coação – pena

– pela prática de ato contrário aos seus preceitos, que diferenciaria este ramo do

direito, cuja missão específica é “a reforçada proteção de interesses, que

principalmente a merecem e dela precisam, por meio da cominação e da execução

da pena como mal infligido ao criminoso.”409

Embora admita que tanto a cominação da pena (pela qual o Estado

mostraria aos cidadãos os valores que informam seus preceitos, ameaçando com

um mal os que os descumprirem), quanto a sua execução (que se prestaria a atuar 406 LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I. Trad. e com. de José Higino Duarte

Pereira. Campinas: Russell Editores, 2003, cap. II, p. 140-141. Até então, o autor apresenta o direito como uma “ordem ou estado de paz”.

407 Ibid., p. 141 (grifo do autor). 408 Ibid., p. 142-143. 409 Ibid., p. 143 (grifo do autor). Mais adiante reitera que a essência do Direito Penal reside na

qualidade de sua proteção, não na qualidade dos interesses que tutela, pelo que, a pena é o efeito jurídico peculiar que distingue o injusto criminal de outras espécies de injusto. Ibid., p. 146; 298.

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1º - sobre a coletividade em geral, quer contendo eventuais tendências criminosas

através da intimidação – prevenção geral negativa -, quer animando o sentimento

jurídico de todos, ao manter o direito – prevenção geral positiva; 2º - sobre o

ofendido, que com a concretização da pena desfrutaria a satisfação de não ver

impune a ameaça ou lesão a bem jurídico seu e 3º - sobre o próprio delinqüente),

desempenhem papel relevante nesta reforçada proteção de bens jurídicos, o autor

situa o ápice deste cinturão de força de que é revestido particularmente o Direito

Penal na fase da execução da pena410 (pois é aí que a vontade da ordem jurídica,

através da pena, se confirma e se concretiza) e no efeito que ela pode exercer sobre

o delinqüente.411

Logo, é a execução penal que determinará a natureza e a extensão da

pena, de acordo com os efeitos que pretenda sejam exercidos sobre o delinqüente,

os quais poderão ser de duas ordens, nas palavras do próprio Liszt:

a) a pena pode ter por fim converter o delinqüente em um membro útil à sociedade (adaptação artificial). Podemos designar como intimidação ou como emenda o efeito que a pena visa, conforme se tratar, em primeiro lugar, de avigorar as representações enfraquecidas que refreiam os maus instintos ou de modificar o caráter do delinqüente; b) a pena pode ter por fim tirar perpétua ou temporariamente ao delinqüente que se tornou inútil à sociedade a possibilidade material de perpetrar novos crimes, segregá-lo da sociedade (seleção artificial). Costuma-se dizer que neste caso o delinqüente é reduzido ao estado de inocuidade.412

410 Liszt está entre os defensores da instituição da sentença indeterminada, segundo a qual o juiz da

condenação não fixaria a pena, estabelecendo somente os limites de um mínimo e de um máximo, tocando a sua graduação à autoridade encarregada da execução da pena. LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I.. Trad. e com. de José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russell Editores, 2003, cap. II, p. 156-157.

411 LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I.. Trad. e com. de José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russell Editores, 2003, cap. II, p. 143-144. O autor quer com esta concepção – a finalidade da pena centrada em sua execução e na pessoa do delinqüente (mas sem excluir objetivos outros para a pena) - evitar o retorno às teorias monistas da pena, tanto que consigna à p. 144 que “[...] a legislação penal não perderá de vista os efeitos tanto da cominação como da execução da pena que vão além do delinqüente.”

412 Ibid., p. 144 (grifo do autor).

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Uma ou outra dessas finalidades dependerá do tipo de delinqüente

individualmente considerado, com o qual deve a Política Criminal se ocupar.413 Para

chegar a este perfil, Liszt analisa dois grupos de circunstâncias que estariam na

origem de todo crime: “de um lado, a natureza individual do delinqüente e, de outro,

as relações exteriores, sociais e especialmente as relações econômicas que o

cercam,”414 de cujo entrelaçamento resultam dois tipos principais de delinqüentes:

a) criminoso de ocasião, quando os fatores externos desempenham papel

determinante na motivação do crime, ensejando uma criminalidade aguda. Nesta

situação

arrebatado por uma excitação repentina e apaixonada, ou sob a influência de uma opressiva necessidade, o agente, até então irrepreensível, comete o crime que, alheio à sua índole, se apresenta como um episódio isolado na sua vida e amargamente lamentado;415

b) criminoso por estado (que comporta graduações), é aquele em que o

crime resulta da propensão natural do agente ao crime, porquanto aqui os fatores

externos desempenham função completamente secundária no desencadear

criminoso (é o que Liszt chama de “ocasião externa fútil”), dando lugar à chamada

criminalidade crônica.416

Feita esta dicotomia, como vai então atuar a Política Criminal no sentido

de adequar a pena frente ao delinqüente, com a finalidade de evitar que venha ele a

cometer novos delitos? De três maneiras distintas. 413 “A Política Criminal exige, em geral, que a pena, como meio, seja adequada ao fim […], isto é, seja

determinada quanto ao gênero e à medida segundo a natureza do delinqüente, a quem inflige um mal (lesa nos seus bens jurídicos a vida, a liberdade, a honra e o patriotismo), para impedir que no futuro ele cometa novos crimes.” LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I.. Trad. e com. de José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russell Editores, 2003, cap. II, p. 153.

414 Ibid., p. 149. 415 Ibid., p. 150. 416 Ibid., p. 150. O autor aponta como motivos do crime para o agente que apresenta arraigada

tendência criminosa: “rudeza brutal, crueldade destituída de toda sensibilidade, estúpido fanatismo, descuidosa leviandade, invencível repugnância ao trabalho, desregrada sensualidade levam o agente, por numerosas fases de transição, a situações indubitavelmente psicopáticas.”

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Para o criminoso de ocasião, é suficiente que a pena exerça uma

finalidade intimidativa, fixando-se-lhe “profundamente na consciência a idéia dos

preceitos proibitivos e imperativos do Estado.”417 Refere-se àquela primeira

possibilidade de adaptação artificial mencionada anteriormente.

Com relação ao criminoso por estado, Liszt dispensa finalidades distintas

à pena, de acordo com o grau de tendência para o crime já desenvolvido pelo

agente. Se esta tendência ainda não se encontra arraigada, “(estréia do criminoso

por estado), deve-se tentar corrigir a disposição criminosa por meio de uma pena

duradoura e enérgica (correção, não necessariamente moral),”418 que constitui a

segunda faceta da adaptação artificial (emenda), atribuindo então à pena a missão

de modificar o caráter do delinqüente. Entretanto, se o ato revelar uma índole

criminosa já enraizada no delinqüente (categoria que bem pode ser denominada de

criminoso por estado convicto), passível de ficar evidenciada até mesmo na prática

do primeiro crime (sendo desnecessárias repetidas reincidências), Liszt é incisivo: só

resta à pena desempenhar a finalidade de colocar o delinqüente em situação que o

torne inofensivo (estado de inocuidade), mediante a sua retirada do convívio social,

evitando, desta forma, que venha ele novamente a praticar crimes. Aqui incide o que

Liszt chama de seleção artificial.419

Importa finalmente destacar que Liszt não fundamenta a pena finalística

na sua mera conveniência, mas sim sobre a sua necessidade “para a manutenção

da ordem jurídica e conseqüentemente para a manutenção do Estado.”420

417 LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I. Trad. e com. de José Higino Duarte

Pereira. Campinas: Russell Editores, 2003, cap. II, p. 155. 418 Ibid., p. 156. Destaca que a correção (ou emenda) atua de maneira particularmente eficaz sobre

os jovens criminosos de profissão. Ibid., p. 156. 419 Ibid.,p. 155. Dentre as medidas de inocuidade admitidas pelo autor estão a pena de morte, a

prisão perpétua e a deportação, conforme nota n. 191, p. 155-156. 420 Ibid., 155.

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Embora clara quanto as suas finalidades, esta teoria (mesmo na sua

moldura positiva), assim como a anterior, não fornece padrões seguros para

delimitar quem - quem seriam os socialmente inadaptados, os excluídos de sempre?

Em sendo afirmativa a resposta, a teoria abre as portas escancaradamente para o

direito penal de autor - e até quando - pois pregando o tratamento como forma de

correção, não tem como conviver com penas limitadas temporalmente, pois aquele

pode perdurar indefinidamente - restará autorizada a atuação do poder punitivo pelo

Estado. Atribuindo à pena a finalidade única de tratamento (voltado para a defesa

social, não para a pessoa do réu), esta teoria tende a deixar o particular

ilimitadamente à mercê da intervenção estatal.421

Como se não bastasse, a teoria da prevenção especial não fornece

fundamentos para a necessidade da pena para crimes, que embora graves, não

apresentem perigo de reiteração, nem necessitem seus autores de qualquer

processo ressocializador.422

Finalmente, a teoria da prevenção especial não oferece legitimação

jurídica para forçar, por intermédio da pena, uma alteração da personalidade do

agente, a sua revelia.423

Mesmo reconhecendo que a prevenção especial não pode ser erigida

como finalidade única da pena, Dias consigna que dela não se pode prescindir

quanto ao seu aspecto positivo, mas numa concepção bem mais restrita: o Estado

tem o dever de propiciar – e não obrigar – os meios necessários à (re)inserção do

421 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 21. 422 Roxin cita como exemplo mais gritante (mas não único) desta lacuna na teoria a situação dos

“assassinos dos campos de concentração, alguns dos quais mataram cruelmente, por motivos sádicos, inúmeras pessoas inocentes. Tais assassinos vivem hoje, na sua maioria, discreta e socialmente integrados, não necessitando portanto de ‘ressocialização’ alguma; nem tão-pouco existe da sua parte o perigo de uma reincidência ante o qual deveriam ser intimidados e protegidos. Deverão eles, então, permanecer impunes?”. Ibid., p. 21-22.

423 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 106.

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delinqüente, e nisto reside o conteúdo mínimo da socialização (a prevenção da

reincidência). Qualquer outra iniciativa estatal que represente uma socialização

forçada – quer através de sua emenda moral, quer por meio de tratamento coativo –

é carente de legitimação, porquanto flagrantemente “violadora da liberdade de

autodeterminação do delinqüente e, por conseguinte, de princípios jurídico-

constitucionais imperativos como o da preservação da eminente dignidade

pessoal.”424

Focando precisamente a finalidade preventivo-especial positiva

(ressocialização), há de se ressaltar que o ambiente penitenciário em que se cumpre

a pena privativa de liberdade no Brasil – superlotado, em condições sub-humanas,

indivíduos primários misturados com reincidentes, ociosidade – evidencia que o

objetivo traçado pelo artigo 1º da Lei de Execução Penal, “proporcionar condições

para a harmônica integração social do condenado”, é muito mais um ideal a ser

alcançado num futuro ainda distante, do que uma realidade palpável. Ademais,

como bem acentua Boschi, a própria idéia de ressocialização (cujo prefixo traz

consigo a concepção que anteriormente à prisão-pena o indivíduo fazia parte da vida

social) é errônea, vez que “os condenados ao cumprimento de pena privativa de

liberdade, em sua imensa maioria, já não integravam a sociedade, vivendo à

margem do consumo, da saúde, do emprego, da educação, do lazer etc.”425 Sempre

lhes faltou o que Dimenstein denomina sentido de pertencimento,426 de não ser

invisível perante seus semelhantes.

424 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1999, 105-106. 425 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 161. 426 DIMENSTEIN, Gilberto. O mistério das bolas de gude: histórias de humanos quase invisíveis.

Campinas, SP: Papirus, 2006, p. 53. Em outra passagem o autor retoma o tema, para concluir pela inexistência de uma relação direta entre pobreza e violência, mas sim entre esta e “a sensação crônica de marginalidade – ou seja, de invisibilidade.” Ibid., p. 153.

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3.1.3 Teoria preventivo-geral

As teorias até então examinadas centram-se no próprio agente (naquilo

que ele fez, ou naquilo que ele é), quer através de uma compensação, correção ou

proteção. Já a teoria preventivo-geral, como a própria designação sinaliza, foca a

generalidade das pessoas e concebe a pena como forma de evitar que surjam

criminosos na sociedade, “através da ameaça penal estatuída pela lei, da realidade

da aplicação judicial das penas e da efetividade de sua execução.”427

Esta teoria preventiva comporta um modelo híbrido no qual se fundam as

finalidades: a primeira finalidade é a chamada prevenção geral positiva (ou de

integração), pela qual “se atribui à pena uma função de integração social derivada

de um reforço de fidelidade ao Estado;”428 já a prevenção geral negativa vê na pena

um sentido e uma finalidade intimidativas, ou, em outras palavras, parte do

pressuposto de que “com a ajuda do Código Penal se pode motivar a generalidade

da população a comportar-se de acordo com as leis,”429 concepção que remonta ao

princípio do século XIX.

Feuerbach (1775-1833) é o representante mais importante da dimensão

negativa da pena, com a sua teoria da coação psicológica ou da coação psíquica.

Situando a causa psicológica de todas as infrações nos sentidos, o indivíduo é

encorajado “à prática do crime pelo prazer que o ato causa ou que do ato resulta,”430

donde ser necessário, para impossibilitar as ofensas ao direito, que se firme e se

generalize nos indivíduos a convicção de que o mal decorrente da prática de um 427 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1999, p. 99. Ressalta o jurista português que “o ponto de partida das doutrinas da prevenção geral é prezável, logo porque [...] ele se liga direta e imediatamente à assinalada função do direito penal de tutela subsidiária de bens jurídicos.” Ibid., p. 100.

428 GARCIA, Gilberto Leme Marcos. A pena como resposta ao delito. Algumas considerações a respeito do tema. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, n. 60, nov. 1997, p. 11-12.

429 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 23. 430 Apud LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I. Trad. e com. de José Higino

Duarte Pereira. Campinas: Russell Editores, 2003, cap. II, p. 145, nota 178.

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delito é seguramente maior que o prazer impulsionador do ato criminoso, o que

somente seria alcançado pela conjugação da coação física (execução da pena) com

a psíquica (cominação da pena).431

Antes dele, Beccaria, ao abordar a questão da moderação das penas, já

sustentava que seria suficiente, para o castigo surtir o efeito esperado, “que o mal

que provoque vá além do bem que o réu retirou do crime”, ali incluídos “os terrores

que antecedem a execução e a perda das vantagens que o delito devia produzir.”432

Outro ideólogo de destaque da teoria preventivo-geral da pena foi o inglês

Jeremy Bentham (1748-1832), patrono do utilitarismo, movimento filosófico que

apresenta como ponto de partida, como o próprio nome sinaliza, o princípio de

utilidade:

[...] Por princípio de utilidade queremos dizer o princípio que aprova ou desaprova toda e qualquer ação, segundo a tendência que parece ter para aumentar ou diminuir a felicidade da parte cujo interesse está em questão [...]. Digo de toda e qualquer ação; e, por conseguinte, não apenas de toda ação de um indivíduo particular, mas de todas as medidas do governo.433

Está posta a idéia central do utilitarismo como princípio ético apto a

sustentar um sistema de controle do comportamento humano: o grau de utilidade é

que mensura o valor de uma idéia, de um método, de um conceito (assevera

coerentemente com a sua teoria que a justificativa do castigo “é a sua maior

utilidade, ou para melhor dizer, a sua necessidade. Todo o delinqüente é inimigo

público).”434 A utilidade será tanto maior, quanto mais elevado o grau de satisfação

431 LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tomo I. Trad. e com. de José Higino Duarte

Pereira. Campinas: Russell Editores, 2003, cap. II, p. 145, nota 178. 432 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. de Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus,

1983, p. 44. 433 BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação – Capítulo I. In:

MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do direito: leituras escolhidas em direito. Trad. Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 262.

434 BENTHAM, Jeremias. Teoria das penas legais. Campinas, São Paulo: Bookseller, 2002, p. 20-21.

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que proporcionar, porque é da natureza humana buscar o prazer, a satisfação, e

fugir da dor, conforme acentua Bentham ao trabalhar o significado de utilidade:

Por utilidade entende-se a propriedade de qualquer objeto, pela qual ele tende a produzir benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade (tudo isto, no caso presente, é a mesma coisa) ou (o que de novo é a mesma coisa) a impedir que aconteça o dano, a dor, o mal ou a infelicidade para a parte cujo interesse está sendo considerado; se essa parte for a comunidade em geral, então a felicidade da comunidade; se um indivíduo particular, então a felicidade desse indivíduo.435

O interesse da comunidade, por sua vez, é para Bentham “a soma dos

interesses dos vários membros que a compõem,”436 o que lhe permite repartir o

prazer entre os homens.

Ainda na mesma obra Uma introdução aos princípios da moral e da

legislação, mas no capítulo destinado ao Valor de uma porção de prazer ou dor,

como medir, Bentham apresenta uma fórmula matemática para se saber se

determinado ato apresenta uma boa ou má tendência geral, isto tomando por base a

relação prazer-dor individual, para num segundo momento incluir no cálculo uma

estimativa “do número de pessoas cujos interesses pareçam estar envolvidos”, com

relação às quais será repetido o processo.

Ao final da operação, duas opções podem se apresentar: se a dicotomia

prazer-dor geral revelar-se “favorável ao prazer, indicará a boa tendência geral do

ato com relação [...] à comunidade de indivíduos envolvidos; se for favorável à dor, a

má tendência geral com relação à mesma comunidade.”437

435 BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação – Capítulo I. In:

MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do direito: leituras escolhidas em direito. Trad. Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 262.

436 BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação – Capítulo I. In: MORRIS, Clarence (Org.). Os grandes filósofos do direito: leituras escolhidas em direito. Trad. Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 262.

437 Ibid., p. 265.

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Partindo então do princípio de utilidade, Bentham assenta os

fundamentos de sua teoria da pena: se um ato merece aprovação ou repulsa na

proporção direta de sua capacidade em aumentar ou diminuir a felicidade da

comunidade, a pena se justifica como um mal necessário para prevenir a prática de

novos crimes, já que estes diminuem a soma da satisfação pública, tanto que define

penas (ou castigos) legais nos seguintes moldes:

Segundo o princípio de utilidade, as penas legais são males, que devem recair acompanhados de formalidades jurídicas sobre indivíduos convencidos de terem feito algum ato prejudicial, proibido pela lei, e com o fim de se prevenirem semelhantes ações para o futuro.438

A concepção preventivo-geral de Bentham fica ainda mais clarificada ao

situar a distinção primordial entre os delitos e as penas nos seus efeitos, pois

enquanto os crimes somente acarretam um mal (tanto da primeira ordem, a recair

diretamente sobre a vítima, quanto um mal da segunda ordem, decorrente do da

primeira ordem e consistente no medo que se espalha no seio da comunidade no

sentido de cada indivíduo se sentir uma vítima em potencial), as penas trazem um

mal exclusivamente num primeiro momento (ao infligir ao criminoso um sofrimento),

porquanto em etapa posterior e reflexo direto da anterior produz um bem, na medida

em que a imposição da pena “amedronta os homens perigosos, é o alento das

almas inocentes, e vem a ser o único abrigo que pode manter e conservar qualquer

sociedade.”439

Bitencourt salienta, que apesar de o pai do utilitarismo não se descuidar

da finalidade preventivo-especial da pena, tanto que se preocupou com casas de

438 BENTHAM, Jeremias. Teoria das penas legais. Campinas, São Paulo: Bookseller, 2002, p. 20

(grifo do autor). 439 Ibid., p. 22.

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correção e plano de assistência pós-penitenciária,440 colocava em primeiro plano o

objetivo preventivo-geral, em sintonia, aliás, com a idéia-base de sua filosofia, in

verbis:

Bentham não via na crueldade da pena um fim em si mesmo, iniciando um progressivo abandono do conceito tradicional, que considerava que a pena devia causar profunda dor e sofrimento. [...] Admitia a necessidade de que o castigo seja um mal [mas que não deve ultrapassar o mal causado pelo delito, aqui residindo o sentido retributivo da pena], mas como meio para prevenir danos maiores à sociedade. Já não se tratava de constituir a pena um mal desprovido de finalidades. Foi um avanço importante na racionalização da doutrina penal o fato de Bentham insistir que a função da pena não era a vingança do fato criminoso praticado, mas a prevenção da prática de novos fatos.441

Portanto, para Bentham a pena declarada pelo legislador e executada no

caso concreto não é um fim em si mesma, mas sim um mal necessário (e portanto

útil) para preservar o todo (a sociedade) e somente se justifica na medida em que

cumprir este papel preventivo-geral, que é o decisivo: servir de exemplo e

desestimular os membros da comunidade a perpetrarem delitos. Confira-se a

respeito:

[...] O castigo que o réu padece é um painel em que todo o homem pode ver o retrato do que lhe teria acontecido, se infelizmente incorresse no mesmo crime. Este é o fim principal das penas, é o escudo com que elas se defendem. Considerando o delito que passou na razão de um fato isolado, que não torna a aparecer, a pena teria sido inútil; seria ajuntar um mal a outro mal; mas quando se observa que um delito impune deixaria o caminho livre não só ao réu, mas a todos os mais que tivessem os mesmos motivos

440 Contudo, não se esgotam aí suas elocubrações acerca da prevenção especial. O jurisconsulto

inglês afirma textualmente existirem dois modos de expurgar o perigo causado pela prática de um delito: “um particular, que se aplica ao réu [porque é dele que advém o perigo mais imediato - prevenção especial]; e outro geral, que se aplica a todos os membros da sociedade sem exceção [a fim de evitar que qualquer outro membro da sociedade venha igualmente a praticar um delito semelhante - prevenção geral].” A prevenção especial pode se operar por três meios: tirando do réu o poder físico de fazer mal (inabilitação), arrefecendo-lhe o desejo de praticar o mal (reforma) ou lhe amedrontando com a força da lei (intimidação), todos partindo do pressuposto de que o valor total da pena (integrado por quatro circunstâncias, que são a intensidade, a proximidade, a certeza e a duração da pena) seja superior ao valor total do prazer proporcionado pelo crime. BENTHAM, Jeremias. Teoria das penas legais. Campinas, São Paulo: Bookseller, 2002, p. 24-25.

441 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 47-48.

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e ocasiões para se abalançarem ao crime, logo se conhece que a pena aplicada a um indivíduo é o modo de conservar o todo. A pena, que em si mesma não tem valia; a pena, que repugna a todos os sentimentos generosos, sobe até emparelhar com os mais altos benefícios, quando a podemos encarar, não como um ato de raiva ou de vingança contra um criminoso ou desgraçado, que se rendeu a uma inclinação funesta, mas como um sacrifício indispensável para a salvação de todos.442

Se a finalidade preventivo-geral for alcançada e se fizer acompanhar do

menor sofrimento possível por parte do réu, o Estado contará com um saldo positivo

entre a despesa representada pelo mal produzido com o castigo real e o lucro

pretendido com a prevenção de crimes, isto é, quanto maior a margem de lucro

obtida com a prevenção geral, mais a pena tenderá para a utilidade geral. Esta, por

seu turno, será maior, quanto menor for o mal real (ou pena real, computada como

despesa e traduzida no mal vivenciado diretamente por quem a sofre) e quanto

maior for o castigo aparente (constituído pelo mal provável que acompanha a

cominação da pena ou quando se assiste a sua execução; é computado como

receita), pois é este que exerce influência sobre a moral da coletividade. A pena que

consegue conciliar os termos desta equação é denominada por Bentham de pena

econômica (atinge o efeito que dela se espera e simultaneamente inflige o menor

sofrimento possível ao réu), pois o bem (prevenir os crimes) se sobreleva ao mal.443

As penas reais são assim necessárias, sobretudo para servir de exemplo,

pois

[...] sem esta realidade não podemos ter a aparência, que na imposição das penas deve ser o nosso fim essencial: todo o mal que não aparece, fica perdido; logo, - preciso que o mal real seja o menor, e o mal aparente o maior possíveis [o que exige, segundo Bentham, que o castigo real seja público].444

442 BENTHAM, Jeremias. Teoria das penas legais. Campinas, São Paulo: Bookseller, 2002, p. 25. 443 Ibid., p. 27-28. Embora sustente que os interesses do réu possam ser sacrificados em prol do

interesse geral, Bentham restringe este poder de barganha quando claro o ganho (castigo aparente) a ser obtido com o castigo real: “pode-se arriscar uma grande pena com os olhos num grande bem, que daí pode resultar; mas por uma troca simplesmente, ou por um bem de uma ordem inferior, seria um absurdo arriscar a mesma pena [...].” Ibid., p. 28.

444 Ibid., p. 28.

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Esta teoria (na sua finalidade negativa) igualmente não esclarece perante

quais comportamentos estaria o Estado legitimado a intimidar, sem falar na

tendência a um sucessivo recrudescimento da resposta penal, pois se a anterior não

foi suficiente para evitar a prática de crimes, faz-se necessária uma resposta ainda

mais contundente, o que tangencia um verdadeiro direito penal do terror.445

Ressalte-se que cada novo crime, pela sua simples ocorrência, já é uma prova viva

da ineficácia da intimidação, como bem lembra Roxin. Ademais, não se conseguiu

provar o efeito intimidante da ameaça da pena precisamente com relação aos seus

destinatários primordiais - os delinqüentes profissionais e os impulsivos ocasionais -

o que soa no mínimo paradoxal.446

Reserva o penalista alemão a crítica mais contundente para o fato de

utilizar-se um indivíduo como exemplo (e, portanto, como instrumento) para os

demais integrantes da sociedade, porque atentatório da dignidade da pessoa

humana, in verbis:

[...] Mesmo quando seja eficaz a intimidação, é difícil compreender que possa ser justo que se imponha um mal a alguém para que outros omitam cometer um mal. Já KANT o criticou por atentar contra a dignidade humana, tendo afirmado que o indivíduo não pode ‘nunca ser utilizado como meio para as intenções de outrem [...]’. E, efetivamente, para um ordenamento jurídico que não considere o indivíduo como objeto à mercê do poder do Estado nem como material humano que possa ser utilizado, mas sim como portador, plenamente equiparado a todos os outros, de um valor como pessoa, valor esse que é prévio ao Estado e que deve ser protegido por este, tem de ser inadmissível tal instrumentalização do homem.447

445 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1999, p. 101. 446 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 24. 447 Ibid., p. 24. Mormente na concepção de Estado à época – Estado liberal -, criado para os

indivíduos, e não o contrário. Roxin reequaciona esta questão mais adiante, quando da construção de sua teoria mista.

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A rápida análise das três teorias permite afirmar que cada qual,

isoladamente, possui méritos e defeitos: a retributiva vem assentada na

culpabilidade do agente, o castiga pelo que ele fez, não pelo que ele é, o que

acarreta um quantum punitivo necessariamente proporcional ao seu poder agir de

outro modo, embora este livre-arbítrio seja de impossível mensuração, ainda mais

quando abstraído de sua ambientalidade; logo, a medida da culpabilidade é muito

mais uma suposição, do que uma realidade. Já as teorias preventivas, por partirem

do pressuposto que todos os delinqüentes são perigosos (determinismo), enxergam

a pena como tratamento e punem o agente pelo que ele é, não pelo que ele fez, daí

não terem qualquer compromisso com a limitação temporal da pena; no entanto, são

claras em suas finalidades e passíveis de reafirmar nas pessoas a confiança no

sistema jurídico.

A própria história da justiça penal bem demonstra os resultados

desalentadores alcançados pelas teorias monistas, assim resumidos por Roxin:

[...] a intimidação unilateral, o tratamento do delinqüente sem restrições no sentido da adaptação social e a ampla retribuição da culpa, obedecendo a um mandato metafísico, convertem o direito penal, em lugar de uma força protetora e construtiva, num instrumento de opressão que escraviza a mentalidade. 448

3.2 TEORIAS MISTAS OU ECLÉTICAS

Estão ligadas à Terza Scuola italiana, movimento próprio da primeira

metade do século XX e que buscou superar as divergências entre a Escola Clássica

(primeira metade do século XIX) e a Positivista (final do século XIX).449 Em verdade,

o nome escola clássica (que abrigava várias tendências) foi um eufemismo negativo

para superado, dado precisamente por Ferri para designar o conjunto de autores 448 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 43-44. 449 LINS E SILVA, Evandro. História das penas. Consulex, Brasília, DF, ano V, n. 104, 15 maio 2001,

p. 17.

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que não partilhavam das mesmas idéias da escola científica por ele capitaneada

(escola positivista).450

Como nenhuma teoria isoladamente explica o porque da pena, optou-se

não pela superação dos pontos frágeis de cada teoria, mas sim pela adoção de

variadas combinações das teorias absolutas e relativas já existentes, objetivando

alcançar uma síntese dos diversos fundamentos da pena criminal, daí surgindo as

chamadas teorias mistas ou ecléticas.

A preocupação em se alcançar uma interatividade entre as teorias da

pena tem-se mostrado presente, conforme esclarece o professor Guaragni, tanto

[...] na dogmática penal de forma majoritária, bem como nos sistemas de penas ditos pluralistas adotados na maior parte dos códigos, combinando as penas (derivadas em sentido puro das teorias absolutas) com as medidas de segurança (inequivocamente ligadas às teorias relativas). 451

Zaffaroni rechaça com veemência estas teorias combinatórias, porque

inconciliáveis os fundamentos que informam cada uma das concepções:

[...] de sua visão conjunta, resulta uma clara disparidade – que nunca é de detalhe, mas dos próprios fundamentos – razão pela qual dá lugar a construções diversas e completamente incompatíveis. Isso evidencia escassa solidez fundamentadora e crise permanente no discurso. Na prática, traduz-se em uma pluralidade de discursos legitimantes que permitem “racionalizar” qualquer decisão, através tão-somente da escolha do discurso mais apropriado entre os que são apresentados. Um direito penal elaborado dogmaticamente, mas que termina em uma prática tópica (porque permite que o operador escolha primeiro a decisão e, depois, procure o fundamento), exibe o descumprimento da promessa dogmática de previsibilidade. 452

O jurista argentino complementa sua crítica mais adiante: 450 GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: parte geral – vol. 1. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos

Tribunais/IELF, 2004, p. 31. 451 GUARAGNI, Fábio André. O sistema prescricional brasileiro como fator de impunidade.

Apresentada como dissertação de mestrado, Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 1997, cap. III.3.1, p. 31.

452 ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 114.

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[...] Aqueles que postulam um direito penal de culpabilidade (do ato ou de autor) e os que postulam outro de periculosidade (de autor) não podem compatibilizar seus pontos de vista, porque se baseiam em duas antropologias inconciliáveis. Os culpabilistas sempre respondem com penas retributivas ao uso que o ser humano faz de sua autodeterminação, ao passo que os perigosistas mudam o nome da pena (medidas ou sanções) e a reduzem a uma coerção direta administrativa que busca neutralizar (positiva ou negativamente) a determinação do ser humano para o delito, ou seja, sua periculosidade. [...] O resultado foi um discurso que pretende orientar as agências jurídicas no sentido de considerar o homem um ente que produziu um mal atribuível a sua autodeterminação e, ao mesmo tempo, considerá-lo um ente causante de mal que deve ser neutralizado: tocaria assim ao juiz considerar o homem como pessoa dotada de consciência moral e ao mesmo tempo como um animal perigoso. 453

Dentre estas teorias mistas, exerceu acentuada influência a teoria

unificadora cumulativa (ou teoria unificadora aditiva, ou ainda teoria da adição), a

qual, percebendo que cada uma das teorias possui aspectos positivos, se limita a

justapor as três concepções (retributiva, preventivo-especial e preventivo-geral),

cada qual incidindo de acordo com o momento em que o direito penal enfrenta o

indivíduo: no da cominação da pena, a preventivo-geral; no da aplicação em

concreto da sanção, a retribuição; e, na fase executória, a preventivo-especial,

concepção que leva à hipertrofia da esfera de atuação da pena, “a qual se converte

assim num meio de reação apto para qualquer realização.”454

Dias denomina esta concepção de doutrina diacrônica dos fins da pena e

a repele, como qualquer outra doutrina que incorpore a idéia de retribuição,

apresentando em abono de seu posicionamento:

[...] fazendo entrar na composição desejada, como quer que ela concretamente se estabeleça, a idéia retributiva, está a chamar para o problema das finalidades da pena um vetor que, como procurei mostrar, não pode, pura e simplesmente, ser tomado em consideração neste contexto: a retribuição ou compensação da culpabilidade não é nem pode constituir

453 ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito

Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 136. 454 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 26.

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uma finalidade da pena [mas sim o seu pressuposto e seu limite máximo e inultrapassável]. [...] Até porque, entrando na fórmula combinada [...] a idéia de retribuição, então esta, como idéia absoluta que se pretende, não pode deixar de ganhar total predominância sobre as idéias de prevenção. [...] [...] quando se misturam doutrinas absolutas com doutrinas relativas fica definitivamente por saber qual o fundamento teorético e a razão de legitimação da intervenção penal. Tanto aquele como esta, na verdade, são irrremediavelmente diversos e provenientes de concepções diferentes, quando não antagônicas, sobre o fundamento do direito de punir e a conseqüente legitimação estatal da intervenção penal [...]. [...] a pena é uma instituição unitária em qualquer um dos momentos temporais da sua existência e como tal deve ser perspectivada, mesmo no que respeita ao problema das suas finalidades. 455

Jakobs, ainda que por motivos diversos, também tece ferozes críticas à

teoria da união, porque seus representantes não conseguiram identificar um

princípio capaz de chancelar a harmonia pretendida entre fins diversos da pena,

acabando assim por comprometer, ou a pretensão à reforma, ou a retribuição de

culpabilidade, conclusão verificável pelo seguinte exemplo:

[...] se se pune um assassino para convertê-lo em uma pessoa pacífica – se é que isso é possível -, o trato com ele – dizendo coloquialmente – não pode interpretar-se de um só traço também como retribuição de culpabilidade; pois a culpabilidade se atribui a um responsável, enquanto se reforma o objeto de necessidades preventivas. Portanto, a união paralisa ou bem o direito à reforma ou bem o sentido do ato enquanto retribuição de culpabilidade. A consideração que acaba de ser exposta também se dirige contra aquela variante da teoria conforme a qual a pena adequada à culpabilidade tão-somente há de ter o efeito de limitar, porém não de legitimar. A culpabilidade somente pode limitar aquilo que se adapta a seu conceito, e, por conseguinte, não pode limitar a educação, a intimidação ou elementos similares. Dizendo de outro modo: se se leva a sério a idéia da limitação por meio da culpabilidade, isso significa que deve se tratar o autor como responsável, não como objeto, de modo que qualquer reação preventiva deve limitar-se a zero.456

455 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1999, p. 109-110. O artigo 59 do Código Penal brasileiro, que enumera as circunstâncias a serem sopesadas pelo juiz para a fixação da pena-base, é um claro exemplo desta perigosa mistura, pois trabalha tanto com a teoria retributiva (ao contemplar a culpabilidade e seus quatro desdobramentos: motivos, conseqüências e circunstâncias do crime, além do comportamento da vítima – direito penal de ato), como com a preventiva (ao considerar como relevante a periculosidade, desdobrada nos antecedentes, personalidade e conduta social – direito penal de autor).

456 JAKOBS, Günther. Teoria da pena e suicídio e homicídio a pedido. Trad. Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri, São Paulo: Manole, 2003 (Coleção Estudos de direito penal, v. 3), p. 5-6.

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Embora cada uma das finalidades possa se sobrelevar nos momentos

supra-apontados, elas não são exclusivas de cada fase, pois em cada uma há de se

interpenetrar as demais funções. Logo, as teorias são sempre “intercomplementares,

e não reciprocamente excludentes,”457 advertência que vale para os três estágios de

realização do Direito Penal: cominação, aplicação e execução da pena. A teoria da

finalidade da pena de Roxin, examinada dentre as tendências atuais e adotada

como marco teórico para os fins pretendidos no presente trabalho, parte deste

princípio.

3.3 TENDÊNCIAS ATUAIS

A teoria da prevenção geral positiva fundamentadora sustenta que a

missão mais relevante do Direito Penal não é a proteção de bens jurídicos

(concepção de um Direito Penal calcado no desvalor do resultado) - pois se fosse

esta, estaria sempre fracassando, porque somente intervém quando já lesado o bem

jurídico - mas sim fazer respeitar determinados valores tidos como essenciais por

determinada sociedade, alcançando tal objetivo através da proibição e castigo à

violação destes valores. Assim, através da pena o Direito Penal reafirma de maneira

incisiva a vigência destes valores.458 Hans Welzel (1904-1977) foi um dos expoentes

desta teoria, que tem por modelo um Direito Penal centrado no desvalor da ação, já

que focado na demonstração da intenção do agente em romper com o acordo

coletivo que está na base da vida em sociedade. Trata-se de uma concepção

autoritária, porquanto se revela extremamente perigoso deixar para o Estado

estabelecer quais os acordos coletivos que devem ser resguardados.

457 GUARAGNI, Fábio André. O sistema prescricional brasileiro como fator de impunidade.

Apresentada como dissertação de mestrado, Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 1997, cap. III.3.1, p. 31.

458 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 145-146.

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Jakobs, embora também busque na coletividade a exigência de manter-se

fiel aos preceitos do direito, mas não através da intimidação (daí integrar o rol dos

teóricos da prevenção geral positiva) entende que o direito penal, que há de

desempenhar uma função útil à sociedade, não se presta a tutelar certos valores,

mas sim funciona como instrumento para atender às expectativas criadas e

mantidas pelas pessoas que interagem na vida em sociedade. Estas expectativas

sociais são exteriorizadas nas normas, porquanto estas é que exprimem os

comportamentos tidos por padrão e que devem ser seguidos.

Importante a esta altura apresentar as concepções de sociedade e

pessoa por ele defendidas: só existe sociedade onde “existem normas reais, é dizer,

quando e na medida em que o discurso de comunicação se determina em atenção

às normas.” Na mesma linha de raciocínio, esta comunicação somente tem lugar

entre pessoas, aqui entendidas como cidadãos que se pautam pelo respeito às

normas, ao Direito, que atuam “conforme a um esquema de dever e espaço de

liberdade,” e não de acordo com um “esquema individual de satisfação e

insatisfação.”459 Já aqui fica clara a supremacia da norma no desenvolvimento de

sua teoria da pena.

Desta forma, afirma Jakobs, quando a conduta humana segue o padrão

esperado pelos demais, diz-se que o indivíduo cumpriu o seu papel social; quando

seu comportamento entra em rota de colisão com as expectativas sociais, diz-se que

ocorreu uma desfunção,460 legitimando então a intervenção de um subsistema – o

459 JAKOBS, Günther. Teoria da pena e suicídio e homicídio a pedido. Trad. Mauricio Antonio Ribeiro

Lopes. Barueri, São Paulo: Manole, 2003 (Coleção Estudos de direito penal, v. 3), p. 9. 460 “O comportamento contrário à norma [...] perturba a orientação [da conduta que os cidadãos

devem observar nas suas relações sociais, orientação esta fornecida pelas normas jurídicas], posto que põe em dúvida o caráter de real da sociedade: trata-se de dever ou de um espaço de liberdade?” Ibid., p. 11.

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direito, mais especificamente o jus puniendi – para restabelecer a estabilidade da

norma (responsável pela condensação das expectativas sociais).461

Recorrendo textualmente ao autor:

Uma violação da norma se encontra num mundo equivocado porque nega as condições do comum. Seu significado é: não esta sociedade! [...]. Se o infrator da norma [...] é tratado como uma pessoa normal, o significado de sua conduta se define como um significado normal; a norma é violada. Se se pretende evitar essa erosão, há de anular-se uma conduta de tal modo que fique clara a impossibilidade de chegar ao comum por meio da violação da norma. Priva-se o infrator da norma da possibilidade de comportar-se no plano físico, como única condição em comum com ele, e que é acessível à sociedade; se lhe retiram de modo mais ou menos radical seus meios de integração: pena, desde a constatação – contida em toda decisão de culpabilidade – de que é incorreto unir à sua conduta em termos de confirmação, passando pela pena de multa e pela pena privativa de liberdade até a pena de morte. [...] pode dizer-se que o infrator da norma lesiona por igual aos demais e a si mesmo enquanto pessoa (!); [...] Por conseguinte – se trata do plano da pessoa -, a pena não se dirige nem em maior nem em menor medida a ele que a todos os demais. Depois, pode ser que compreenda sua personalidade, é dizer, que conceba a si mesmo como sujeito; em tal caso, compreenderá também a necessidade e o significado da sanção. Também pode acontecer que persista em manter-se em sua pura individualidade; então, a sanção, desde sua perspectiva, somente poderá ser vista como violência. Porém seu entendimento individual não é o decisivo, mas o entendimento geral.462

Em seguida, Jakobs justifica o emprego da pena enquanto violência (ao

privar o infrator da norma dos meios de interação com a sociedade real), com a

finalidade de resguardar a inteireza da sociedade real (isto é, da realidade

normativa):

O infrator da norma, por meio de sua conduta, não somente significou algo, mas por vez também o configurou; exemplificando, não somente afirmou que não se tem de respeitar a vida alheia, mas a destruiu, ou, ao menos – no caso da tentativa -, dispôs-se a isso. Portanto, o significado dessa

461 Enquanto para Roxin o Direito Penal deve ter como premissa o bem jurídico lesado ou posto em

perigo (o que implica em rejeitar o uso de toda norma incriminadora que não corresponda à proteção de um bem jurídico que seja indispensável ao desenvolvimento social do indivíduo), para Jakobs o Direito Penal tem como pressuposto o descumprimento das normas que regem as relações sociais, não importando o bem jurídico violado pela conduta incriminada (como o crime significa sempre lesão da própria norma, a intervenção penal sempre se autojustifica).

462 JAKOBS, Günther. Teoria da pena e suicídio e homicídio a pedido. Trad. Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri, São Paulo: Manole, 2003 (Coleção Estudos de direito penal, v. 3), p. 14-17.

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conduta não somente é objetivado por ele no plano simbólico, mas mediante o mundo externo das pessoas, que é configurado já depois da afirmação. Assim postas as coisas, a declaração isolada de que não se deve juntar ao ato estaria objetivada em menor medida de que está o ato mesmo: assim como o ato configura de modo definitivo o mundo externo das pessoas (ou se dispõe a isso), também a reação diante do ato deve supor-se uma configuração definitiva, o que significa que deve fazer impossível de modo efetivo que se junte uma conduta a este, convertendo-se dessa maneira em permanente no mundo externo. Isso nada tem que ver com a intimidação ou educação do infrator da norma ou de outras pessoas. Trata-se apenas de contrapor à realidade da pessoa meramente formal da ação, isto é, à violação da norma, uma situação materialmente pessoal, isto é, a realidade da norma (e não somente sua possibilidade).463

Logo, a pena serve para estabilizar as relações de conduta

contrafaticamente: o delito viola a estabilidade normativa (porque vai ao encontro do

previsto no tipo penal e se choca com o previsto na norma);464 a imposição de uma

pena,465 em virtude de um fato que se pôs acima da norma, reafirmará a vigência da

norma violada (ao enviar ao infrator uma forte mensagem no sentido de que a norma

continua existindo, apesar de ele a ter infringido), restaurando a confiança das

pessoas na norma. Assim, enquanto o delito tem um cunho negativo, a pena é

positiva.466

Entretanto, esclarece Jakobs que a sua teoria não se encaixa dentre

aquelas nominadas teorias absolutas da pena, porquanto à violação da norma não

tem que se seguir necessariamente a imposição de uma pena, desde que o ato não

463 JAKOBS, Günther. Teoria da pena e suicídio e homicídio a pedido. Trad. Mauricio Antonio Ribeiro

Lopes. Barueri, São Paulo: Manole, 2003 (Coleção Estudos de direito penal, v. 3), p. 17-18. 464 O delito, porque praticado por uma pessoa, há de ter um significado, que é o de um “contraprojeto

perante a sociedade”. Ibid., p. 27. 465 “A pena não é a luta contra um inimigo; tampouco serve ao estabelecimento de uma ordem

desejável, mas somente à manutenção da realidade social.” Ibid., p. 27. 466 O autor alemão aduz que “a pena pública existe para caracterizar o delito como delito, o que

significa dizer o seguinte: como confirmação da configuração normativa concreta da sociedade.” Ibid., p. 8. Mais adiante reafirma “que aqueles que confiam numa norma devem ser confirmados em sua confiança”, confiança esta que deriva exclusivamente “da realidade da sociedade”, pelo que, o conceito de pena se esgota “em que a pena significa a permanência da realidade normativa sem modificações.” Ibid., p. 26.

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provoque uma perturbação da vigência da norma a ponto de abalar a realidade

social.467

Bitencourt, após apresentar críticas de vários autores à concepção

preventivo-geral positiva fundamentadora (ou preventivo-integradora) de Jakobs,

resume suas inquietações nos seguintes moldes:

[...] a teoria da prevenção geral positiva fundamentadora não constitui uma alternativa real que satisfaça as atuais necessidades da teoria da pena. É criticável também sua pretensão de impor ao indivíduo, de forma coativa, determinados padrões éticos, algo inconcebível em um Estado Social e Democrático de Direito. É igualmente questionável a eliminação dos limites do jus puniendi, tanto formal como materialmente, fato que conduz à legitimação e ao desenvolvimento de uma política criminal carente de legitimidade democrática.468

Ao buscar a obediência incondicional à norma, do que ela ordena, sem

questionar o seu conteúdo (se ela efetivamente traduz as expectativas daquela

sociedade e naquele momento histórico, se ela naquele caso concreto merece

preservação) ou a legitimidade de sua elaboração, Jakobs em última análise

defende que o único fim do Direito Penal (e, portanto, da pena) é confirmar a

confiança depositada nas normas penais e, por via de conseqüência, proteger a si

mesmo, mantendo o status quo, construção dogmática que se presta para

fundamentar Estados totalitários, já que a norma se pressupõe sempre justificada (o

que abre as portas para legitimar a tendência atual de expandir e intensificar a

resposta penal frente aos problemas sociais a qualquer custo, como se o Direito

467 “Se essa realidade permanece completamente incólume, por exemplo, porque o ato manifesta

desespero ou miopia ou outra forma de incompetência para administrar até os assuntos próprios, de modo que não existe na realidade o risco de que se juntem condutas ao conteúdo material da violação da norma, diante da ausência de uma perturbação de vigência da norma além do ato, não é necessária uma sanção, e esta pode ser leve enquanto o risco de que se anulem condutas seja reduzido.” JAKOBS, Günther. Teoria da pena e suicídio e homicídio a pedido. Trad. Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri, São Paulo: Manole, 2003 (Coleção Estudos de direito penal, v. 3), p. 20.

468 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 149.

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Penal fosse a salvação para todos os males), mas não um Estado Democrático de

Direito (que não pode barganhar com uma série de garantias e limites próprios do

Direito Penal, responsáveis pela delimitação formal entre esta modalidade de

controle social e outras menos traumáticas e estigmatizantes).

É com a compreensão de que as teorias da pena são

intercomplementares em cada fase de manifestação do Direito Penal, que Roxin

inicia a construção de sua teoria unificadora dialético-preventiva,469 buscando em

cada uma das formas de manifestação do poder penal uma legitimação prévia que

justifique a etapa seguinte (e se auto-limitem reciprocamente), porquanto

estruturadas umas sobre as outras, como também porque cada uma delas afeta de

forma específica a liberdade do indivíduo.470 A sua teoria está assentada sobre dois

pilares: a dignidade humana do infrator e sua co-responsabilidade pelo bem-estar da

comunidade.

Desta forma, na fase da cominação das penas (individualização

legislativa) há de se delimitar o âmbito do proibido, o que merece ser tutelado pelo

Estado através do direito penal.

Como a tarefa do Estado moderno consiste em criar e garantir aos seus

membros “as condições de uma existência que satisfaça as suas necessidades

vitais,”471 o que para o direito penal traduz-se no dever de “garantir a todos os

cidadãos uma vida em comum livre de perigos,”472 incumbe a este uma dupla

função: proteger uma série de valores tidos por fundamentais para a existência

social em comum – os bens jurídicos - além de assegurar o cumprimento das

prestações públicas necessárias para a existência.

469 Esta concepção é dialética, porque reconhecendo a antítese de cada um dos pontos de vista,

procura superá-los numa fase posterior e reuni-los numa síntese. 470 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 26-27. 471 Ibid., p. 27. 472 Ibid., p. 27.

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Desta dupla função do direito penal advêm duas importantes limitações

ao poder punitivo estatal:

a) somente se pode recorrer ao direito penal, quando todos os outros

meios de controle social tenham se revelado insuficientes para garantir a

preservação de bens jurídicos essenciais e assegurar as finalidades das prestações

necessárias para a existência comum (subsidiariedade do direito penal, direito penal

como ultima ratio), porque a legitimidade da sua intervenção decorre única e

precisamente da necessidade social. A utilização do direito penal como resposta

estatal para todos os males sociais, como lucidamente alerta Roxin,473 acarreta

exatamente as situações que pretende evitar, pois “nada favorece tanto a

criminalidade como a penalização de qualquer bagatela;”474

b) refogem ao âmbito do direito penal condutas meramente imorais.

Tendo em mente esta dupla restrição quanto à fase da cominação das

penas, Roxin lhe atribui a finalidade preventivo-geral, até porque no mundo do ser a

previsão em abstrato das penalidades antecede no tempo “o sujeito ao qual se

poderiam impor reações retributivas ou de prevenção especial,”475 sem olvidar que

aquela finalidade não se esgota na intimidação, pois também lhe interessa informar

sobre o âmbito do proibido para quem não precisa de intimidação, como decorrência

inafastável do Estado do Direito, para o qual vigora o princípio nulla poena sine

lege.476

473 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 28. 474 Ibid., p. 29. 475 Ibid., p. 31. 476 Ibid., p. 32.

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Em suma, “as cominações penais se justificam, apenas e sempre, pela

necessidade de proteção preventivo-geral e subsidiária de bens jurídicos e

prestações.”477

Na segunda etapa de eficácia do direito penal – aplicação e graduação da

pena –, a cargo do julgador, são introduzidos os fins preventivo-geral e preventivo-

especial:

O ponto de partida de toda teoria hoje defendida deve basear-se no entendimento de que o fim da pena somente pode ser de tipo preventivo. Visto que as normas penais somente estão justificadas quando tendem à proteção da liberdade individual e a uma ordem social que está a seu serviço, também a pena concreta somente pode perseguir isto, é dizer, um fim preventivo ao delito. Disso resulta ademais que a prevenção especial e a prevenção geral devem figurar conjuntamente como fins da pena. Visto que os fatos delitivos podem ser evitados tanto através da influência sobre o particular como sobre a coletividade[...].478

Isto não significa que ambos os pontos de vista preventivos hão de estar

sempre presentes na sentença condenatória, como é o caso de pena que se baseia

apenas na prevenção geral, em razão de no caso concreto inexistir qualquer perigo

de reincidência pelo condenado (prevenção especial). Igual raciocínio é válido para

a fase da execução da sentença, quando o condenado recusa sua colaboração para

a ressocialização – que Roxin entende nunca poder ser forçada, quer pela falta de

perspectiva de êxito, quer por afrontar a dignidade da pessoa humana -; neste caso

a pena será executada, residindo sua justificação somente no atendimento à

necessidade de prevenção geral (já que a prevenção especial positiva restou

prejudicada por opção do condenado).479

477 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 32. 478 ROXIN, Claus. ROXIN, Claus. Derecho Penal – Fundamentos. La estructura de la teoria del delito.

Trad. Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Dias y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal da 2. ed. alemã. Parte general, tomo I. Madrid: Civitas, 1997, p. 95 (tradução nossa).

479 Ibid., p. 95-96 (tradução nossa).

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Quando ambas as finalidades preventivas se fazem necessárias no caso

concreto, demandando, porém, diferentes quantidades de pena, Roxin resolve o

conflito dando prevalência à prevenção especial (ressocialização), mas somente até

onde seja possível resguardar o mínimo de exemplaridade requerido pela prevenção

geral, a fim de se manter a confiança no ordenamento jurídico e evitar a reprodução

de fatos criminosos semelhantes:

[...] em primeiro lugar, a ressocialização é um imperativo constitucional, que não pode ser desobedecido onde seja possível seu cumprimento. E em segundo lugar há que ter em conta que, no caso de conflito, uma primazia da prevenção geral ameaça frustrar o fim preventivo-especial, enquanto que, ao contrário, a preferência pela prevenção especial não exclui os efeitos preventivo-gerais da pena, senão que, em suma, os debilita de forma dificilmente mensurável; pois também uma pena atenuada atua de forma preventivo-geral. Por outra parte, corresponde à preferência das necessidades preventivo-especiais somente até onde a necessidade mínima preventivo-geral todavia o permita [...]. É dizer, em decorrência dos efeitos preventivo-especiais, a pena não pode ser reduzida até tal ponto que a sanção já não seja levada a sério na comunidade; pois isto quebraria a confiança no ordenamento jurídico e através disso se estimularia a imitação.480

Roxin repudia a retribuição como finalidade da aplicação da pena,481

entendendo mais eficaz o fim preventivo-geral concretizado na realidade da

sentença para, inclusive, justificar a necessidade de se punir aquelas pessoas que já

não apresentam perigo para a sociedade (e, portanto, desnecessária qualquer

finalidade preventivo-especial, como no caso dos carrascos nazistas), não como

uma simples intimidação, mas sim com uma “significação mais ampla de

salvaguarda da ordem jurídica na consciência da comunidade,”482 que nada mais é

480 ROXIN, Claus. ROXIN, Claus. Derecho Penal – Fundamentos. La estructura de la teoria del delito.

Trad. Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Dias y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal da 2. ed. alemã. Parte general, tomo I. Madrid: Civitas, 1997, p. 96-97 (tradução nossa).

481 Mas ele mesmo reconhece que é da teoria retributiva que extrai a idéia de medida da culpabilidade como limite máximo da pena, só que atrelada a fins preventivos, o que autoriza a fixação da pena abaixo da medida da culpabilidade sempre que assim autorizarem as finalidades preventivo-geral e especial, noção desconhecida para aquela teoria monista. Ibid., p. 99-101.

482 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 32-33.

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do que a prevenção geral positiva, raciocínio igualmente válido para os crimes

usuais.

Como, então, conciliar esta necessidade de salvaguardar a ordem da

comunidade (concepção que isoladamente permite a fixação de penas cada vez

mais rigorosas, na proporção direta da pretensão de manter inviolável o

ordenamento jurídico) com a autonomia da personalidade do delinqüente, a qual

impede que o Estado o use para alcançar aquela finalidade?483 Em outras palavras,

até onde o Estado de Direito permite que vá o sacrifício do particular em prol do

interesse da sociedade, sem lhe afrontar a dignidade humana?

Roxin sustenta que esta harmonização se faz possível na aplicação da

pena mediante duas idéias básicas: como membro da comunidade, o delinqüente é

co-responsável pela integridade dos bens jurídicos assegurados pelo Estado,

devendo, por conseguinte, suportar a pena necessária para a manutenção do

ordenamento;484 entretanto, esta pena jamais pode ultrapassar a medida da culpa

individual (a culpa é o limite da pena), aqui entendida como grau de liberdade e

responsabilidade no seu atuar em sociedade.485

A culpa assim concebida é incompatível com a teoria da retribuição, pois

enquanto nesta a idéia de culpa é usada para colocar o particular à mercê do poder

estatal, o conceito de culpa de Roxin preserva o indivíduo do abuso desse poder, na

medida em que a sua função é justamente garantir “que o Estado não estenda o seu

poder penal, no interesse da prevenção geral ou especial, para além do

correspondente à responsabilidade de um homem concebido como livre e suscetível

483 Roxin bem lembra que a finalidade da prevenção especial da sentença penal tem por fim último,

em realidade, a prevenção geral, na medida em que “a primeira coisa que a condenação em si mesma torna efetiva é uma dura restrição da liberdade do delinqüente, restrição essa que se faz não no seu interesse, mas no da comunidade e que, portanto, serve a outros e não a ele.” ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 34.

484 Ibid., p. 34-35. 485 Ibid., p. 35-36.

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de culpa,”486 não estando vedada, porém, a aplicação de uma pena inferior à culpa

(prevenção especial) sempre que no caso concreto for possível restaurar a paz

jurídica com sanções menos graves487 (como a suspensão condicional da pena,

substituição das penas privativas de liberdade por restritivas de direitos ou multa

etc).

“Deste modo, [o delinqüente] não é utilizado como meio para os fins dos

outros mas, ao co-assumir a responsabilidade pelo destino, confirma-se a sua

posição de cidadão com igualdade de direitos e obrigações.”488 Preserva-se, enfim,

a sua dignidade humana.

Quanto à execução da pena, ela somente se justifica caso procure, na

medida do possível, alcançar o objetivo mesmo do direito penal, qual seja, garantir a

vida em comunidade e sem perigos, o que nesta fase traduz-se na reintegração do

delinqüente (a prevenção especial assume função de primazia), mas desde que

respeitadas as limitações impostas nas etapas da cominação e da aplicação das

penas.

Assim, “não é lícito ressocializar com a ajuda de sanções jurídico-penais

pessoas que não são culpadas de agressões insuportáveis contra a ordem dos bens

jurídicos, por mais degeneradas e inadaptadas que sejam essas pessoas,”489 sendo

igualmente vedado qualquer “tratamento coativo que interfira com a estrutura da

personalidade, mesmo que possua eficácia ressocializante,”490 porque violador da

autonomia da personalidade do condenado.

486 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 36. 487 Ibid., p. 39. 488 Ibid., p. 37. 489 Ibid., p. 41. 490 Ibid., p. 41.

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Ainda que em segundo plano, Roxin491 não nega a existência da

finalidade da prevenção geral neste último estágio de manifestação do direito penal,

já que o cumprimento da pena privativa de liberdade traz graves limitações ao poder

de autodeterminação do delinqüente, mas destas limitações não se poder abrir mão

nos crimes graves, ainda que a renúncia a uma pena privativa de liberdade se

revelasse mais eficiente para a ressocialização.

A pena e, por via de conseqüência, o seu cumprimento, hão de adquirir

um sentido construtivo, oferecendo (e não forçando) ao condenado oportunidades

para que desenvolva a consciência da responsabilidade e suas aptidões pessoais,

inclusive para que os resultados desses esforços cheguem à vítima ou aos seus

herdeiros, através da reparação do dano.492

Tal desiderato não é de fácil concreção, porque a execução prática da

pena tem sido relegada pelo próprio Estado a um plano secundário, porquanto

prioriza a criação de novos tipos penais ou exacerba as cominações sobre tipos já

existentes, sempre com o discurso de garantir a defesa social.

É certo que a criminalidade jamais será totalmente eliminada, mas quiçá

apenas minorada e controlada, como também sempre existirão aqueles que voltarão

a delinqüir, porém tais constatações não retiram da sociedade a sua co-

responsabilidade para com o destino do delinqüente, da mesma forma que este é

co-responsável pelo bem-estar geral.493

Roxin resume desta forma o sentido e limites do direito penal (e assim

também os da pena): “proteção subsidiária de bens jurídicos e prestações de

serviços estatais, mediante prevenção geral e especial, que salvaguarda a

491 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 41. 492 Ibid., p. 41-42. 493 Ibid., p. 42-43.

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personalidade no quadro traçado pela medida da culpa individual,”494 o que

demanda que as três etapas da eficácia do direito penal – cominação, aplicação e

execução da pena – sejam sempre levadas conjuntamente em consideração.

A integração de todos os pontos de vista defendidos pelas teorias

monistas recebem na teoria unificadora dialético-preventiva restrições recíprocas,

com a finalidade de construir uma teoria da pena a mais próxima possível da

realidade. Confira-se:

[...] a idéia de prevenção geral vê-se reduzida à sua justa medida pelos princípios da subsidiariedade e da culpa, assim como pela exigência de prevenção especial que atende e desenvolve a personalidade. A culpa não justifica a pena por si só, podendo unicamente permitir sanções no domínio do imprescindível por motivos de prevenção geral e enquanto não impeça que a execução da pena se conforme ao aspecto da prevenção especial. E, como vimos, de igual forma a totalidade dos restantes princípios preservam a idéia de correção dos perigos de uma adaptação forçada que violasse a personalidade do sujeito. 495

Em suma, para Roxin as finalidades da pena são exclusivamente de

prevenção geral e especial. Embora recuse a idéia de retribuição dentre as

finalidades da pena, ele confere ao princípio da culpabilidade a real relevância que

ocupa na construção do fato punível e na legitimação da intervenção penal,

porquanto coloca a culpabilidade como o pressuposto da pena e seu limite máximo e

inultrapassável (será dentro desta moldura da culpa que o juiz fixará a pena em

concreto). Assim, as finalidades preventivas não poderão jamais ultrapassar o limite

da culpabilidade – ainda que interesses de tratamento, segurança ou intimidação

indiquem ser desejável uma pena mais prolongada -, mas a medida da pena pode

ficar abaixo desse limite máximo (indicado pela culpabilidade), caso isto se faça

necessário frente às exigências da prevenção especial, desde que com relação à

494 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 43. 495 Ibid., p. 44.

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prevenção geral se observe um mínimo necessário para a exemplaridade (tutela do

ordenamento jurídico).

3.4 POSIÇÃO ADOTADA PELO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO

O Código Penal, com a redação dada pela Lei nº 7.209/84, pela primeira

vez atribui expressamente à pena dupla finalidade, prevenir e reprimir as condutas

ilícitas e culpáveis, ao preceituar que a pena fixada em concreto, sua substituição

por outra espécie de pena, caso cabível, bem como o regime inicial para a sua

execução serão estabelecidas em função da análise dos parâmetros do artigo 59,

caput, conforme seja necessário e suficiente para reprovação (finalidade retributiva)

e prevenção (funções preventivo-especial e preventivo-geral).496

Desta forma, caberá ao juiz através da sentença condenatória

implementar a concepção político-criminal fundamental do direito penal brasileiro

expressa naquele dispositivo, sendo-lhe vedado especular sobre finalidades outras

da pena:

Os objetivos de reprovar e de prevenir o crime são realizados pelas funções de retribuição da culpabilidade e de prevenção da criminalidade atribuídas à pena criminal – logo, especulações judiciais sobre teorias penais estão excluídas da sentença criminal: a lei penal assume explicitamente as teorias unificadas da pena criminal, porque a reprovação seria medida pela retribuição, por um lado, e a prevenção abrangeria a prevenção especial, nas dimensões de ressocialização e de neutralização do condenado, além da prevenção geral, nas dimensões de intimidação e de reforço da ordem jurídica, por outro lado.497

496 É o que Luisi chama de “’polifuncionalidade’ da sanção penal, ou seja, uma concepção eclética em

que se integram as instâncias retributivas e as da reinserção social.” LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991, p. 39.

497 SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2005, p. 106 (grifo do autor), que a seguir põe em xeque a legitimação das finalidades da pena frente aos malefícios da prisão: “afinal, a compensação da culpabilidade e o discurso de prevenção da criminalidade justificariam os efeitos desintegradores da prisão?” Ibid., p. 107.

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A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) também se volta para o tema

logo no seu início, com ênfase na pretensão ressocializadora, dispondo no artigo 1º

que “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou

decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do

condenado e do internado.”

Cernicchiaro repudia a idéia de conferir à pena a finalidade de

ressocialização (ajustamento forçado do condenado às regras de comportamento

que o Estado considere ideal ou razoável; em outras palavras, uma lavagem

cerebral) lançada pela Escola Positiva, por entendê-la inconstitucional num Estado

Democrático de Direito, já que, proclamando a Constituição Federal no artigo 5º,

caput, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade, a todos é assegurado o direito de livre opinião e manifestação de

convicções, o que impede que o legislador infraconstitucional restrinja este direito de

liberdade no ser (esta liberdade nada mais é do que a consagração do princípio da

secularização). Assim, não é lícito, nem mesmo ao Estado, impor orientação de vida

a ninguém. O condenado, para conquistar o retorno à liberdade ou ser beneficiado

por outra causa de extinção da punibilidade, pode continuar a mesma pessoa do dia

da prática do delito ou ficar ainda mais indisciplinado socialmente (hipótese em que

se operara a reprovação, mas fracassara a prevenção).498

Sustenta-se nesta oportunidade, que apesar da ideologia penal oficial

abraçar tanto a finalidade retributiva, quanto as preventivo-geral e especial, incumbe

ao juiz refletir, em primeiro lugar, se todas elas são compatíveis na mesma medida

com os valores constitucionais inerentes a um Estado Democrático de Direito

498 CERNICCHIARO, Luiz Vicente; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal na Constituição. 3.

ed., rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. Parte I, p. 126-127.

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fundado na dignidade da pessoa humana e no respeito incondicional aos direitos

fundamentais, aí incluído o direito à diferença.

Vê-se de pronto que a função retributiva (pena limitada no seu máximo

pela culpabilidade, nos moldes propostos por Roxin) com ele se coaduna, pois como

bem demonstrado pelo magistrado italiano Ferrajoli, através da pena se castiga o

criminoso para evitar que a sociedade o faça diretamente, restaurando a justiça

privada: a pena é então vista como prevenção da violência na sociedade (tanto dos

delitos, quanto das penas informais), dentro de uma concepção de direito penal que

impõe “o máximo bem-estar possível dos não desviantes e o mínimo mal-estar

necessário dos desviantes, dentro do objetivo geral da máxima tutela dos direitos de

uns e dos outros, da limitação dos arbítrios e da minimização da violência na

sociedade.”499

Já os objetivos preventivos merecem um cuidado bem maior: a prevenção

especial (a sua vertente (res)socializadora, hoje, somente se legitima se

proporcionar ao condenado condições efetivas para, querendo, introjetar novos

valores)500 tem maior peso que a geral, incumbindo a esta somente guardar um

mínimo de exemplaridade e sempre em caráter subsidiário, salvo se atuar em

499 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et al. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 267-272. 500 Ao abordar os limites a que se sujeita a socialização, tidos como indispensáveis para

compatibilizá-la com o respeito pelos direitos, liberdades e garantias do indivíduo, Anabela Rodrigues é categórica: “ela se faz radicar no dever que ao Estado incumbe – e que entronca na sua vertente social – de ajuda e de solidariedade para com os membros da comunidade que se encontrem em especial estado de necessidade, como é o caso do recluso. Dever que se traduz em oferecer-lhe o máximo de condições para prosseguir a vida sem que pratique crimes, por essa forma prevenindo a reincidência. Só nisto se exprime a exigência de socialização. Não em qualquer imposição coactiva de valores, a dar cobertura a um modelo médico de tratamento ou à negação do direito à diferença.” RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo olhar sobre a questão penitenciária: estatuto jurídico do recluso e socialização, jurisdicionalização, consensualismo e prisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 38. Roxin manifesta-se no mesmo sentido: “O proibido é unicamente a educação forçada de adultos; não obstante, o condenado tem direito a que o Estado o ajude na reinserção social a que ele mesmo aspira.” ROXIN, Claus. Derecho Penal – Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Trad. Diego Manuel Luzón-Peña, Miguel Dias y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal da 2. ed. alemã. Parte general, tomo I. Madrid: Civitas, 1997, p. 96.

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benefício do sentenciado, nos termos da teoria unificadora dialético-preventiva de

Roxin. Estabelece-se desta forma e sem agredir o ordenamento jurídico uma escala

axiológica decrescente entre as finalidades da pena.

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CAPÍTULO 4 FIXAÇÃO DA PENA-BASE PRIVATIVA DE LIBERDADE

A procedência, total ou parcial, do pedido formulado na inicial acusatória

(denúncia/queixa) resulta em uma sentença penal condenatória, que concretiza a

pretensão punitiva do Estado.

A natureza subsidiária do Direito Penal, no sentido de recurso extremo

como instrumento de controle social, exige que no momento de constituição da

sentença condenatória (antecedente lógico da aplicação da pena) esteja claro na

mente do julgador um panorama que exclua todas as possibilidades de absolvição

do réu ou de invalidação do processo penal, apresentadas por Cirino dos Santos

como fundamentos material e processual do ato decisório de mérito:

A sentença criminal condenatória deve, do ponto de vista do Direito Penal, ter por fundamento a existência de crime na ação realizada ou omitida pelo acusado, como conceito constituído de tipo de injusto [como ação típica e antijurídica concreta] e de culpabilidade [aqui ainda como qualidade do fato punível, como reprovação do autor pela realização do tipo de injusto, pois como quantidade de reprovação somente existirá, de acordo com parte da doutrina, quando da determinação da medida da pena criminal], além dos pressupostos relativos ao fato [como a inexistência de causas excludentes de pena e a presença de condições objetivas de punibilidade] e ao processo penal [como a inocorrência de causa extintiva da punibilidade] [...]. Esse fundamento material é necessário, mas não é suficiente para condenação criminal, porque inúmeras ilegalidades ou nulidades ligadas ao processo penal devido, como as violações de garantias constitucionais e legais do acusado no processo penal, podem impedir a condenação criminal.501

Caso aplicada pena privativa de liberdade, não substituída por outra

espécie de pena, ou que não teve sua execução suspensa, em transitando em

julgado a respectiva sentença condenatória, surge a figura da prisão-pena, gênero

ao qual pertencem a reclusão, a detenção e a prisão simples, cujos traços

diferenciadores não são abordados explicitamente, quer pelo Código Penal (que

prevê as penas de reclusão e detenção nos artigos 32, inciso I e 33), quer pela Lei

501 SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba:

ICPC; Lumen Juris, 2005, p. 103 (grifo do autor).

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das Contravenções Penais (Decreto-lei nº 3.688, de 03/10/1941, que comina a pena

de prisão simples no seu artigo 5º, inciso I). Entretanto, a leitura das normas penais

incriminadoras (tanto as descritas na Parte Especial do Código Penal, quanto as

constantes em leis especiais) permite asseverar que a de reclusão é reservada para

condutas ofensivas a bens jurídicos mais relevantes (a vida, o patrimônio, a

liberdade sexual etc), ao passo que as de detenção e prisão simples destinam-se a

tutelar bens de menor relevância social (liberdade pessoal, inviolabilidade do

domicílio, de correspondência, dos segredos etc quanto à pena detentiva; quaisquer

contravenções, todas encaixadas no conceito de infração de menor potencial

ofensivo, dado pelo artigo 61 da Lei nº 9.099/95 no tocante à prisão simples).

A pena criminal então pode ser definida como “a sanção imposta pelo

Estado e consistente na perda ou restrição de bens jurídicos do autor da infração,

em retribuição à sua conduta e para prevenir novos atos ilícitos.”502

O objeto do presente capítulo repousa sobre o caminho a ser percorrido

pelo julgador no momento crucial de balizar a pena-base privativa de liberdade

(primeira fase da individualização judicial).

4.1 INDIVIDUALIZAÇÃO JUDICIAL: SISTEMA TRIFÁSICO

Ao longo da história nem sempre foi conferido ao magistrado o poder de

particularizar, dentro dos marcos traçados pela lei, a espécie (quando previstas mais

de uma) e a quantidade da reprimenda penal, podendo ser apontados três

sistemas:503

502 DOTTI, René Ariel. O sistema geral das penas. In: DOTTI, René Ariel et al. Penas restritivas de

direitos: críticas e comentários às penas alternativas – Lei 9.714, de 25.11.1998. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, parte II, p. 65.

503 Ver a respeito destes sistemas e suas características: PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1, Parte Geral. 3 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 531-535 e FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 333-334.

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a) o da absoluta indeterminação, vigente à época das monarquias

absolutas, no qual era comum a indeterminação legal das penas, tanto que elas não

se seguiam à descrição da conduta típica, mas sim eram tratadas nas disposições

gerais, o que conferia aos juízes poderes ilimitados na fixação da pena, pois que

lhes cabiam com exclusividade escolher a espécie e quantidade que lhes

parecessem mais adequadas no caso sub judice.

A legislação penal de então era marcadamente injusta, arbitrária e cruel,

com penas corporais extremamente desumanas, conforme libelo com que Foucalt

inaugura o seu magnífico Vigiar e punir, detalhando a execução do condenado

Damiens em pleno meado do século XVIII e ressaltando a dúplice função do ritual

que acompanhava o suplício penal: “a marcação das vítimas [através da punição

corporal] e a manifestação do poder que pune;”504

b) o da absoluta determinação (ou legalismo extremo), advindo dos ideais

iluministas e com o objetivo de conter os abusos decorrentes do ilimitado arbítrio

judicial, recaiu no extremo oposto do anterior, pois em nome da segurança jurídica

nos julgamentos, vedou qualquer possibilidade de escolha aos magistrados no

processo de dosimetria da pena. O juiz vira escravo da lei, única responsável pela

determinação da pena.505

O Código Criminal do Império (1830) é significativo exemplo brasileiro da

adoção deste rígido esquema, pois inspirado no Código Penal francês de 1791,

reduzia a dosimetria da pena a uma simples operação matemática, porquanto a lei

504 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 24 ed.

Petrópolis: Vozes, 2001, p. 9-10; p. 32. 505 Como um dos arautos do Iluminismo, Beccaria é taxativo em asseverar “que os julgadores dos

crimes não podem ter o direito de interpretar as leis penais, pela própria razão de não serem legisladores”, conferindo exclusivamente ao soberano, “enquanto depositário das vontades atuais de todos”, a legitimidade para tanto. Segundo Cesare Bonesana, ao decidir por um decreto absolutório ou condenatório, devia o juiz cingir-se a “um silogismo perfeito”. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1983, p. 16-17.

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de antemão, ou já trazia a pena determinada,506 ou permitia ao juiz se locomover

somente dentre os três graus de gravidade previamente traçados pelo legislador:

máximo, médio e mínimo;507

c) o da relativa indeterminação, resposta intermediária às propostas

anteriores, que alia uma porção de legalidade com uma dose de discricionariedade

judicial, vez que a lei estabelece previamente as espécies de pena e os parâmetros

mínimo508 e máximo para cada tipo penal (estes limites pré-estabelecidos também

vigoram para as causas de aumento e diminuição de pena, só que em números

fracionários ou multiplicativos), tocando então ao juiz optar, motivada e

racionalmente, através do exame das circunstâncias judiciais, por uma qualidade

(operação preliminar que somente tem lugar, quando o dispositivo violado prevê

alternação de penas, mediante a utilização da disjuntiva ou,509 como ocorre no crime

de comunicação falsa de crime ou de contravenção, descrito no artigo 340 do

Código Penal, em que o preceito sancionador comina pena de detenção, de 1 (um) a

6 (seis) meses, ou multa) e quantidade de pena (que não pode extrapolar os limites

506 Como no artigo 113, que trata de uma das condutas caracterizadoras do crime de insurreição:

“julgar-se-ha commettido este crime, reunindo-se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força. Penas – aos cabeças, de morte no gráo máximo; de galés perpetuas no médio; e por quinze annos no minimo; aos mais – açoutes.” PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed., 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 249.

507 “Artigo 33. Nenhum crime será punido com penas que não estejão estabelecidas nas leis, nem com mais ou menos daquellas que estiverem decretadas para punir o crime no gráo máximo, médio ou minimo, salvo o caso em que aos juízes se permitir arbítrio.” Este “arbítrio” se fazia presente quando o preceito secundário se restringia a prescrever o mínimo e o máximo da pena, como no crime de aborto: “Artigo 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente, com o consentimento da mulher pejada. Penas – de prisão com trabalho por um a cinco anos.” Mesmo nestes casos, ficava o juiz cingido aos três graus já citados, “[...] sendo o maximo o de maior gravidade , á que se imporá o maximo da pena; e o minimo, o da menor gravidade, á que se imporá a pena minima; o médio, o que fica entre o maximo e o minimo, á que se imporá a pena no termo medio entre os dous extremos dados”, atentando-se para tanto às circunstâncias agravantes ou atenuantes, nos termos do artigo 63. Ibid., p. 241; 259; 243.

508 O Código Penal Militar (Decreto-lei nº 1.001, de 21/10/1969) traz em alguns preceitos secundários das normas penais incriminadoras exceção a esta regra, na medida em que prevê somente o máximo legal, deixando uma margem mais ampla para o juiz alcançar uma resposta penal mais justa. A título de exemplos: furto simples (artigo 240, caput - pena de reclusão, até seis anos), furto de uso (artigo 241 – pena de detenção, até seis meses), apropriação indébita simples (artigo 248, caput – pena de reclusão, até seis anos).

509 FERRAZ, Nélson. Dosimetria da pena. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 680, jun. 1992, p. 320.

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sancionatórios mínimo e máximo previstos no respectivo tipo) em cada caso,

conforme preceitua o artigo 59, incisos I e II, respectivamente, do mesmo diploma

legal. Foi incorporado pelo Código Penal brasileiro de 1940 e reiterado pela sua

nova Parte Geral datada de 1984.

Mas o “ato judicial de determinação das conseqüências jurídicas do fato

punível”510 não se esgota na escolha do tipo de pena e na sua quantificação, pois

em sendo aplicada pena privativa de liberdade, mesmo que suspensa a sua

execução (Código Penal, artigo 77, com a redação dada pela Lei nº 7.209/84) ou

substituída por pena(s) restritiva(s) de direitos (artigo 43 e seguintes do mesmo

diploma legal, com as alterações introduzidas pela Lei nº 9.714/98) é dever do juiz

fixar o regime inicial para o seu cumprimento (Código Penal, artigo 59, inciso III),

optando entre o fechado, semi-aberto ou aberto (Código Penal, artigo 33 e

seguintes)511 – resultante da análise dos seguintes fatores: (des)favorabilidade das

diretivas do artigo 59, caput, do Código Penal, primariedade ou reincidência do

condenado e quantidade da pena privativa de liberdade definitivamente estabelecida

- porque “fator indispensável da individualização que se completará no curso do

procedimento executório,” conforme deixa clara a Exposição de Motivos da Nova

Parte Geral do Código Penal, nº 50 e, desta forma, traz segurança jurídica ao

condenado, que de antemão saberá o seu regime carcerário caso incorra em

alguma das hipóteses de revogação obrigatória ou facultativa do sursis (artigos 81 e

82 do Código Penal, com a redação da Lei nº 7.209/84) ou descumpra

510 SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba:

ICPC; Lumen Juris, 2005, p. 104 (grifo do autor). 511 Os três regimes penitenciários foram criados pelo artigo 30 da Lei nº 6.416/77, pois o Código

Penal de 1940 não os previa. PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed., 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 629-630.

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injustificadamente as restrições impostas pelas penas substitutivas (artigo 44, §4º

do Código Penal, acrescentado pela Lei nº 9.714/98).512

As linhas mestras deste complexo procedimento a cargo do juiz vêm

resumidas no artigo 59 da nova Parte Geral do Código Penal, in verbis:

Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV – a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.

Portanto, a aplicação da pena criminal é uma atividade intelectual que tem

por finalidade achar a pena necessária e suficiente para reprovação e prevenção

(especial e geral) do crime. Estes dois adjetivos restringem os objetivos retributivo e

preventivos da pena, pelo que merecem ser destrinchados: enquanto a necessidade

da pena reporta-se à natureza da pena aplicada (se privativa de liberdade, restritiva

de direitos ou multa), a suficiência alude à extensão da pena tida por necessária

(tem a ver com a duração da pena privativa de liberdade, substituindo-a ou não por

restritiva de direitos, além do valor da pena de multa).513 Vê-se que o exame da

necessidade da pena antecede logicamente ao da sua suficiência.

512 Merece assim reparo o emprego da conjunção alternativa ou por Cirino dos Santos no início da

sua abordagem sobre o método legal de aplicação da pena: “[...] e (em caso de pena privativa de liberdade) a decisão sobre regime inicial de execução, ou a substituição da pena aplicada por pena restritiva de direitos [...], ou, alternativamente, a suspensão condicional da execução da pena aplicada.” SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2005, p. 104 (grifo nosso).

513 SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2005, p. 105. Aponta o autor duas indicações legais para o juiz alcançar a pena necessária e suficiente em cada caso para atender a reprovação e prevenção do crime: 1ª – a moldura penal do tipo de injusto realizado, configurada pelas penas mínima e máxima previstas em abstrato para cada tipo penal e 2ª – o conteúdo da moldura legal do tipo de injusto, dado pelas circunstâncias judiciais, circunstâncias legais e causas de aumento e diminuição de pena. Ibid., p. 106.

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Dentro dos limites deste âmbito de discricionariedade, aponta ainda a lei

penal as etapas a serem enfrentadas pelo julgador para alcançar a pena definitiva

em cada caso concreto, iniciando pela análise das circunstâncias judiciais (artigo 59,

caput, do Código Penal, responsáveis pela fixação da pena-base), passando pelas

circunstâncias legais (agravantes e atenuantes, a atuarem sobre a pena-base e cujo

rol consta dos artigos 61, 62, 65 e 66, todos do Código Penal; interessante

mencionar que o rol das agravantes é taxativo, ao passo que o das atenuantes não

sofre esta restrição, em decorrência da possibilidade de serem reconhecidas outras

não expressamente previstas, as chamadas atenuantes inominadas, nos termos do

artigo 66, que infelizmente não costumam ser lembradas no processo de

individualização judicial, apesar das amplas possibilidades que oferece para ajudar

na localização da pena justa) e coroando com o enfrentamento das causas de

aumento e diminuição da pena, quer gerais, quer especiais (espalhadas ao longo do

Código Penal e em leis especiais, incidem sobre a pena intermédia ou provisória,

alcançada pelo resultado da operação das duas etapas anteriores), quando então se

terá a pena definitiva.

Destarte, nula é a sentença que faz incidir eventual causa de diminuição

ou aumento sobre o quantum da pena-base, quando no caso concreto se fazem

presentes agravantes e/ou atenuantes, pois é sobre o resultado pena-base +

circunstâncias legais gerais que recairá a terceira etapa. Neste sentido: Superior

Tribunal de Justiça, REsp. nº 23919/MG, Sexta Turma, Rel. Min. Anselmo Santiago,

j. em 05/02/1998, DJ 13/04/1998, p. 156.

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Como o trajeto enseja três etapas, é chamado doutrinariamente de critério

trifásico, sendo acolhido expressamente na Exposição de Motivos da Lei nº

7.209/84514 e consagrado no artigo 68, caput, da nova Parte Geral do Código Penal:

Cálculo da pena Art. 68. A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento. Parágrafo único. No concurso de causas de aumento ou de diminuição previstas na parte especial, pode o juiz limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição, prevalecendo, todavia, a causa que mais aumente ou diminua.

A adoção do critério trifásico pelo direito penal brasileiro com a reforma da

Parte Geral do Código de 1940 foi precedida de acirrada discussão entre dois

juristas de escol: Roberto Lyra sustentava que o procedimento para o cálculo da

pena era bifásico (fixação da pena-base, em que seriam analisadas tanto as

circunstâncias judiciais como as legais; sobre o resultado assim obtido, incidiria na

segunda fase as causas de aumento e/ou diminuição),515 ao passo que Nelson

Hungria afirmava tratar-se de uma operação trifásica.

514 “51. Decorridos quarenta anos da entrada em vigor do Código Penal, remanescem as divergências

suscitadas sobre as etapas da aplicação da pena. O Projeto opta claramente pelo critério das três fases, predominante na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Fixa-se, inicialmente, a pena-base, obedecido o disposto no art. 59; consideram-se, em seguida, as circunstâncias atenuantes e agravantes; incorporam-se ao cálculo, finalmente, as causas de diminuição e aumento. Tal critério permite o completo conhecimento da operação realizada pelo juiz e a exata determinação dos elementos incorporados à dosimetria. Discriminado, por exemplo, em primeira instância, o quantum da majoração decorrente de uma agravante, o recurso poderá ferir com precisão essa parte da sentença, permitindo às instâncias superiores a correção de equívocos hoje sepultados no processo mental do juiz. Alcança-se, pelo critério, a plenitude de garantia constitucional da ampla defesa.”

515 “Se concorrem circunstâncias atenuantes e agravantes e outros índices positivos e negativos de periculosidade, tendo partido de termo médio, como vimos, em torno deste operará, se os motivos do crime, a personalidade e os antecedentes do agente (art. 49) não o conduzirem às proximidades do máximo ou do mínimo. As conclusões do juiz resultam, como assinalamos, do conjunto da apreciação, sem desdobramentos nem especificações. Exigem-se apenas a menção dos elementos, que o conduziram a esta ou aquela concretização, e sua motivação. Feita, assim, a fixação, verificará o juiz, tanto na parte geral, quanto na parte especial, se ocorrem causas de aumento ou de diminuição da pena, as quais não se confundem com as circunstâncias agravantes ou atenuantes.” LYRA, Roberto. A expressão mais simples do Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora Rio – Sociedade Cultural Ltda., 1976 (edição histórica), p. 171-172.

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Reitera-se que a inobservância das etapas estabelecidas pelo artigo 68

do Código Penal é geradora de nulidade absoluta, conforme deixam assentados os

seguintes julgados:

PENAL. HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE ROUBO QUALIFICADO. EXACERBAÇÃO DA PENA-BASE. FUNDAMENTAÇÃO. CRITÉRIO TRIFÁSICO (ART. 68, CP). INOBSERVÂNCIA. ATENUANTE DE CONFISSÃO ESPONTÂNEA. PRISÃO EM FLAGRANTE. INCIDÊNCIA. I - A inobservância do critério trifásico (art. 68 do CP), com a pena sendo fixada, em ordem equivocada, acima do mínimo, gera nulidade absoluta. II – [...] Writ parcialmente deferido. (Superior Tribunal de Justiça, HC nº 20989/MS, Quinta Turma, Rel. Min. Felix Fischer, j. em 10/09/2002, DJ 14/10/2002, p. 242).516

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. ARTS. 59 E 68 DO CP. INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. CRITÉRIO TRIFÁSICO. INOBSERVÂNCIA. MAUS-ANTECEDENTES. INEXISTÊNCIA. HEDIONDEZ. PROGRESSÃO DE REGIME. DECLARAÇÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2.º, § 1.º, DA LEI N.º 8.072/90, PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AFASTAMENTO DO ÓBICE LEGAL. PEDIDO QUE DEVERÁ SER EXAMINADO PELO JUÍZO DAS EXECUÇÕES CRIMINAIS. 1. Ao individualizar a pena, o juiz sentenciante deverá obedecer e sopesar os critérios no art. 59, as circunstâncias agravantes e atenuantes e, por fim, as causas de aumento e diminuição de pena, para ao final impor ao condenado, de forma justa e fundamentada, a quantidade de pena que o fato está a merecer. 2. O acórdão condenatório usou indevidamente a agravante genérica da reincidência como circunstância judicial para a fixação da pena-base, na primeira fase da individualização da pena, em desacordo com o critério trifásico estabelecido no art. 68, do Código Penal. 3. Ao que se tem das folhas de antecedentes juntadas, não se vislumbra nos autos nenhuma condenação transitada em julgado, que justifique o reconhecimento da circunstância judicial desfavorável dos maus-antecedentes. 4. [...] 7. Writ concedido para: a) mantida a condenação, anular o acórdão impugnado, tão-somente na parte relativa à dosimetria da reprimenda, a fim de que outra seja elaborada, observando-se devidamente o critério trifásico e sem o aumento relativo aos maus antecedentes, à míngua de fundamentação; e, [...]. (Superior Tribunal de Justiça, HC nº 48122/SP, Quinta Turma, Rela. Min. Laurita Vaz, j. em 04/05/2006, DJ 12.06.2006 p. 511) (grifo nosso).

516 Dentre as circunstâncias judiciais utilizadas para fixar a pena-base próxima ao patamar máximo

cominado (nove anos de reclusão para um crime de roubo), a autoridade coatora acolheu a reincidência, que como circunstância agravante, somente poderia ser valorada na etapa seguinte. Consignou ainda o voto condutor: “[...] Além do mais, as únicas circunstâncias judiciais apontadas concretamente como desfavoráveis ao réu (antecedentes e conseqüências do crime), conquanto permitam a fixação da pena-base acima do mínimo, não são suficientes para colocá-la em patamar tão elevado, tendo o MM. Magistrado extrapolado a medida do que era necessário e suficiente à reprovação e prevenção do crime.”

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PENAL - DOSIMETRIA DA PENA - AGRAVANTES E ATENUANTES – INCIDÊNCIA SOBRE A PENA-BASE - DOSIMETRIA EQUIVOCADA - RECURSO PROVIDO. - Como tenho afirmado, a nova Parte Geral do Código Penal brasileiro, ao adotar o sistema trifásico para o cálculo da pena, o fez porque "permite o completo conhecimento da operação realizada pelo juiz e a exata determinação dos elementos incorporados à dosimetria" (CF. Exposição de Motivos, item 51). Na esteira de tal finalidade, o art. 68, caput, do CP, determina que a pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59, em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento. - O art. 59 – trata das chamadas circunstâncias judiciais – permite ao juiz o estabelecimento dos critérios necessários à fixação da pena-base entre os limites da sanção fixados abstratamente na lei penal. - Estabelecida a pena-base, procede-se uma segunda operação, na qual são consideradas as circunstâncias legais agravantes e atenuantes previstas nos artigos 61, 62, 65 e 66, do Código Penal, tal como na primeira fase da dosimetria, aqui também os limites máximo e mínimo in abstrato não podem ser ultrapassados. - Por último, observa-se a terceira operação pela qual são consideradas as causas especiais de aumento ou de diminuição da pena. - Entender de forma diversa seria conferir regra de exceção ao critério geral de dosimetria da pena consagrado pelo Código Penal sem que haja previsão legal específica. [...] - Recurso provido para determinar que o cálculo de cada agravante seja feito sobre a pena-base imposta ao réu, com a conseqüente alteração de regime prisional. (Superior Tribunal de Justiça, REsp. nº 167432/DF, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Scartezzini, j. em 25/05/2004, DJ 01/07/2004, p. 247) (grifo nosso).517

PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. JÚRI. [...] PENA. DOSIMETRIA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. FIXAÇÃO DA PENA-BASE ACIMA DO GRAU MÉDIO PREVISTO. REFERÊNCIA GENÉRICA A DUAS DAS CIRCUNSTÂNCIAS PREVISTAS NO ART. 59, DO CP. INSUFICIÊNCIA. CRITÉRIO TRIFÁSICO. INOBSERVÂNCIA. CONSIDERAÇÃO DA CAUSA DE DIMINUIÇÃO DA PENA (ART. 121, § 1º, CP) ANTES DE SEREM OBSERVADAS AS CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES E AGRAVANTES. INOBSERVÂNCIA DOS COMANDOS PREVISTOS NOS ARTS. 59 E 68, DO CP. REFORMA - RECONHECENDO-SE A INCORRETA APLICAÇÃO DOS COMANDOS PREVISTOS NOS ARTS. 59 E 68, DO CÓDIGO PENAL, NO PROCESSO DE INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA IMPOSTA AO ACUSADO, TANTO PELA DEFICIENTE FUNDAMENTAÇÃO NA EXACERBAÇÃO DA PENA-BASE, QUE NÃO LEVOU EM CONSIDERAÇÃO O INDISPENSÁVEL RECONHECIMENTO DO PRIVILÉGIO PELO CONSELHO DE SENTENÇA, BEM COMO PELA INADVERTIDA INVERSÃO DA ORDEM DAS FASES SEGUINTES DO CÁLCULO DA REPRIMENDA, REFORMA-SE O ÉDITO SENTENCIAL COM ADEQUAÇÃO DOS DISPOSITIVOS LEGAIS ÀS DIRETRIZES DO CASO CONCRETO DECIDIDO PELO TRIBUNAL POPULAR DO JÚRI. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (Tribunal de

517 O julgado refere-se à prática de crime de atentado violento ao pudor sob a égide do Código Penal

Militar (artigo 233). O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, ao prover parcialmente recurso interposto pelo Ministério Público, fez incidir cada uma das agravantes (as constantes no artigo 70, inciso II, alíneas d e g do Código Penal Militar) sobre a pena mínima prevista em abstrato para o tipo, quando deveria fazê-lo sobre a pena-base.

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Justiça/MA, Apelação Criminal nº 162272001, Primeira Câmara Criminal, Rela. Josefa Ribeiro da Costa, publ. em 14/01/2002, grifo nosso).

Ademais, um mesmo fato não pode ser valorado simultaneamente em

mais de uma etapa (como circunstância judicial e agravante, como circunstância

judicial e causa de aumento, como agravante e causa de aumento, e assim por

diante), sob pena de nulidade, pois configura bis in idem. Desta forma, se

enquadrando uma mesma circunstância em mais de uma etapa da dosimetria,

somente deverá ser empregada uma única vez e na fase derradeira cabível.518

A este respeito:

PENAL. SENTENÇA CONDENATÓRIA. PENA. INDIVIDUALIZAÇÃO. DOSIMETRIA. CÓDIGO PENAL, ART. 59. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS. CAUSA ESPECIAL DE AUMENTO DE PENA. BIS IN IDEM. VEDAÇÃO. - No processo de individualização da pena, no qual tem vigor o sistema trifásico que se desenvolve à luz das disposições dos arts. 59, 61, 65 e 68, do Código Penal, não é cabível a invocação do mesmo fato a título de circunstância judicial exasperadora da pena-base e de causa especial de aumento de pena, por consubstanciar bis in idem. - Recurso especial conhecido e provido. (Superior Tribunal de Justiça, REsp nº 246342/MG, Sexta Turma, Rel. Min. Vicente Leal, j. em 11/09/2001, DJ 17/03/2003, p. 294).519

A conjugação dos artigos 68 e 59 do Código Penal evidencia que a

individualização judicial da pena privativa de liberdade comporta em realidade mais

duas etapas: o estabelecimento do regime penitenciário inicial (sempre) e a

manifestação sobre o cabimento ou não da substituição da pena privativa da 518 FERRAZ, Nélson. Dosimetria da pena. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 680, jun. 1992, p. 319,

que oferece alguns exemplos: “em se tratando de réu reincidente, esta circunstância não poderá incidir a título de antecedentes, da primeira fase da dosimetria, mas tão-somente como circunstância legal da segunda fase – art. 61, I, do CP. Em outra hipótese, se o agente comete o crime de estupro contra sua filha, a agravante legal do art. 61, II, e, descabe considerada, face à ocorrência da causa especial de aumento de pena do art. 226, II, do CP.” Ibid., p. 319-320.

519 O réu foi condenado pela prática do delito descrito no artigo 1º, inciso III, da Lei nº 8.137/90 (adulteração de notas fiscais) em continuidade delitiva (artigo 71, caput, do Código Penal). Para manter a pena-base acima do mínimo previsto em abstrato, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais invocou duas razões: o longo período em que a empresa praticou adulteração das notas fiscais e o montante expressivo da receita omitida à fiscalização. A primeira das circunstâncias, que traduz uma prática reiterada da conduta criminosa, serviu igualmente de fundamento para caracterizar a causa geral de aumento do crime continuado.

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liberdade por pena restritiva de direitos (uma ou mais de uma, dependendo da

quantidade final da pena privativa de liberdade, nos termos do artigo 44, §2º, do

Código Penal, com a redação dada pela Lei nº 9.714/98) ou da suspensão da sua

execução mediante o cumprimento de determinadas condições.

4.2 CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS: NOÇÕES PRELIMINARES E ALGUMAS

PREMISSAS

O Código Penal de 1940 foi elaborado com base no Projeto Alcântara

Machado, e alterado por Nélson Hungria.

A sociedade brasileira à época da edição do Código Penal era ainda

eminentemente rural, com escassa urbanização. A criminalidade violenta restringia-

se basicamente ao delito de homicídio, merecendo menção também os crimes

patrimoniais perpetrados sem violência, como o furto, a apropriação indébita e o

estelionato.520

As circunstâncias judiciais, então previstas no artigo 42, eram em menor

número dos que as atualmente constantes no artigo 59, caput, cingindo-se aos

antecedentes e personalidade do agente, à intensidade do dolo ou grau da culpa,

aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime.521 Comparativamente com

esta redação, a nova Parte Geral do Código Penal limitou-se a acrescentar a

conduta social do agente e o comportamento da vítima, além de substituir a

intensidade do dolo ou grau da culpa pela culpabilidade do agente, de acordo com a

orientação finalista.

520 REALE JÚNIOR, Miguel. Mens legis insana, corpo estranho. In: DOTTI, René Ariel et al. Penas

restritivas de direitos: críticas e comentários às penas alternativas – Lei 9.714, de 25.11.1998. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, parte I, p. 26.

521 PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed., 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 446.

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Já o Código Penal de 1969 (Decreto-lei nº 1.004, de 21/10/1969), que

nunca teve efetiva vigência no país e acabou por ser definitivamente revogado pela

Lei nº 6.578, de 11/10/1978,522 oferecia ao juiz sentenciante um amplo leque de

opções para a fixação da pena privativa de liberdade, cabendo-lhe na mesma

oportunidade declarar o grau de periculosidade do condenado (periculosidade

acentuada, escassa ou nenhuma), a ser revista durante a execução da pena (artigo

52, §2º). Dentre os dotados de periculosidade acentuada, inseriam-se os chamados

criminoso habitual e criminoso por tendência, os quais recebiam uma pena por

tempo indeterminado, sendo fixada por ocasião da sentença tão-somente a duração

mínima da pena privativa de liberdade.523 Revelava uma clara adesão ao direito

penal de autor, na medida em que adotava a periculosidade do réu como pedra

angular do sistema punitivo.

O Código Penal italiano (R.D. nº 1.398, de 19/10/1930) é minucioso e

extenso no tocante às circunstâncias a serem sopesadas pelo juiz na determinação

da pena (alcançando inclusive a conduta do agente posteriormente ao crime), dando

522 PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed., 2. tir. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 83. 523 “Fixação da pena privativa de liberdade – Art. 52. Para fixação da pena privativa de liberdade, o

juiz aprecia a gravidade do crime praticado e a personalidade do réu, devendo ter em conta a intensidade do dolo ou grau da culpa, a maior ou menor extensão do dano ou perigo de dano, os meios empregados, o modo de execução, os motivos determinantes, as circunstâncias de tempo e lugar, os antecedentes do réu e sua atitude de insensibilidade, indiferença ou arrependimento após o crime. Declaração de periculosidade - §1º. O juiz, na sentença, declarará o grau de periculosidade do condenado, classificando-a de: I – acentuada, quando: a) o exame dos elementos e circunstâncias referidos neste artigo indicar que o agente tem inclinação para o crime; b) tratar-se de criminoso habitual (art. 64, §2º); ou c) tratar-se de criminoso por tendência (art. 64, §3º). II – escassa, quando o exame dos elementos e circunstâncias referidos neste artigo evidenciar a probabilidade de rápida regeneração do agente, desde que submetido a medida reeducativa. III – nenhuma, quando o exame dos mesmos elementos e circunstâncias evidenciar a desnecessidade do emprego de medidas reeducativas. [§1º acrescido pela Lei nº 6.016/73][...]. Criminoso habitual ou por tendência – Art. 64. Tratando-se de criminoso habitual ou por tendência, a pena a ser imposta será por tempo indeterminado. O juiz fixará a pena correspondente ao crime cometido, que constituirá a duração mínima da pena privativa de liberdade, não podendo ser inferior à metade da soma do mínimo com o máximo cominados. Limite da pena indeterminada - §1º A duração da pena indeterminada não pode exceder a dez anos, após o cumprimento da pena fixada na sentença. [...].” Ibid., p. 547-549.

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espaço ainda maior ao direito penal de periculosidade do que a legislação brasileira

vigente:

TITOLO V - DELLA MODIFICAZIONE, APPLICAZIONE ED ESECUZIONE DELLA PENA Capo I - DELLA MODIFICAZIONE E APPLICAZIONE DELLA PENA Art. 132 - Potere discrezionale del giudice nell'applicazione della pena: limiti Nei limiti fissati dalla legge, il giudice applica la pena discrezionalmente; esso deve indicare i motivi che giustificano l'uso di tale potere discrezionale. Nell'aumento o nella diminuzione della pena non si possono oltrepassare i limiti stabiliti per ciascuna specie di pena, salvi i casi espressamente determinati dalla legge. Art. 133 - Gravità del reato: valutazione agli effetti della pena Nell'esercizio del potere discrezionale indicato nell'articolo precedente, il giudice deve tenere conto della gravità del reato, desunta: 1) dalla natura, dalla specie, dai mezzi, dall'oggetto, dal tempo, dal luogo e da ogni altra modalità dell'azione; 2) dalla gravità del danno o del pericolo cagionato alla persona offesa dal reato; 3) dalla intensità del dolo o dal grado della colpa. Il giudice deve tener conto, altresì, della capacità a delinquere del colpevole, desunta: 1) dai motivi a delinquere e dal carattere del reo; 2) dai precedenti penali e giudiziari e, in genere, dalla condotta e dalla vita del reo, antecedenti al reato; 3) dalla condotta contemporanea o susseguente al reato; 4) delle condizioni di vita individuale, familiare e sociale del reo.524

Carnelutti, analisando este dispositivo, inicia por defender que a tarefa de

historiador do juiz não se limita a reconstruir um fato, devendo igualmente investigar

a alma do homem sob julgamento (nítido direito penal de autor). No entanto, após

constatar a imprestabilidade do instrumental de que dispõe o julgador para tão alta

524 CÓDIGO PENAL ITALIANO – Códice Penale, R.D. n. 1.398, de 19/10/1930. Disponível em:

<http://www.usl4.toscana.it/dp/isll/lex/cp_1.htm>. Acesso em: 26 set. 2006. “TÍTULO V – DA MODIFICAÇÃO, APLICAÇÃO E EXECUÇÃO DA PENA. Capítulo I – DA MODIFICAÇÃO E APLICAÇÃO DA PENA. Art. 132 – Poder discricionário do juiz na aplicação da pena: limites. Nos limites fixados pela lei, o juiz aplica a pena discricionariamente; ele deve indicar os motivos que justificam o uso de tal poder discricionário. No aumento ou na diminuição da pena não se podem ultrapassar os limites estabelecidos para cada espécie de pena, salvo os casos expressamente determinados pela lei. Art. 133 – Gravidade do delito: apreciação sobre os efeitos da pena. No exercício do poder discricionário indicado no artigo antecedente, o juiz deve levar em consideração a gravidade do delito, deduzida: 1) da natureza, da espécie, dos meios, do objeto, do tempo, do lugar e de qualquer outra modalidade da ação; 2) da gravidade do dano ou do perigo causado à pessoa ofendida pelo delito; 3) da intensidade do dolo ou do grau da culpa. O juiz deve levar em consideração, ainda, a capacidade de delinqüir do culpado, deduzida: 1) dos motivos para delinqüir e do caráter do réu; 2) dos precedentes penais e judiciários e, em geral, da conduta e da vida do réu antecedentes ao delito; 3) da conduta contemporânea ou subseqüente ao delito; 4) das condições de vida individual, familiar e social do réu.” (tradução nossa).

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tarefa, conclui “que o dever de historiador do juiz penal, enquanto se dirige para o

desenvolvimento espiritual, que se coloca acima dos delitos, é, na melhor das

hipóteses, grosseiramente aproximativo.”525

O exame pelo juiz dos oito parâmetros enumerados no artigo 59, caput,

da nova Parte Geral do Código Penal – culpabilidade, antecedentes, conduta social

e personalidade do agente, motivos, circunstâncias e conseqüências do crime,

comportamento da vítima - resultará, dentre outras conseqüências, na fixação da

pena-base (Código Penal, artigo 68 combinado com artigo 59, inciso II) privativa de

liberdade, cuja definição não é dada pelo legislador penal comum, contrariamente à

postura adotada pelo Código Penal de 1969526 e pelo Código Penal Militar (Decreto-

lei nº 1.001, de 21/10/1969, artigo 77).

A palavra base deriva do grego básis e literalmente significa a planta do pé. Daí que a palavra sugere a idéia de parte que servirá de apoio a alguma outra coisa, como a planta do pé que serve de apoio ao corpo. E é nesse exato sentido que o Código Penal a usou no art. 59. [...] Pena-base, portanto, é aquela que seria aplicada caso não existissem circunstâncias atenuantes ou agravantes ou causas de aumento ou de diminuição.527

Correto então afirmar-se que “individualizar a pena-base é determinar o

grau inicial de reprovação segundo a culpabilidade do agente pelo fato concreto.”528

As diretivas do artigo 59, caput, do Código Penal são doutrinariamente

chamadas circunstâncias judiciais porque: 525 CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antonio Cardinalli.

Campinas: Bookseller, 2001, p. 51-53. 526 Sob o nomen juris “pena-base” o seu artigo 63 a conceituava como “a pena que tenha de ser

aumentada ou diminuída, de quantidade fixa ou dentro de determinados limites, é a que o juiz aplicaria, se não existisse a circunstância ou causa que importe o aumento ou a diminuição.” PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed., 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 549.

527 FERREIRA, Gilberto. Aplicação da pena. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 63. No mesmo sentido, BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 185, acrescentando sinteticamente que a pena-base “é aquela que atua como ponto de partida, ou seja, como parâmetro para as operações que se seguirão”, correspondendo, assim, “à pena inicial fixada em concreto.” Ibid., p. 185.

528 BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 21.

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a) ao contrário das elementares (essentialia delicti), partículas integrantes

da conduta proibida pelo legislador, cuja ausência gera a atipicidade absoluta ou a

existência de outra figura criminosa, as circunstâncias (accidentalia delicti) não

possuem esta força, pois ainda que retiradas, o crime continuará existindo na sua

essência. Aquelas entram na composição da infração penal, ao passo que as

circunstâncias situam-se fora dela.529 As circunstâncias (não só as judiciais, mas

também as legais, as causas de aumento ou diminuição de pena e as qualificadoras,

estas com previsão somente na Parte Especial do Código Penal, além de em leis

esparsas), enquanto partículas contingentes que não integram o modelo

incriminador, desempenham papel relevante na individualização da pena, pois são

responsáveis pela qualidade da sanção, como também pela elevação ou redução da

reprimenda em cada caso.530 Especificamente quanto às circunstâncias judiciais,

esta majoração ou diminuição está contingenciada, respectivamente, pelos limites

máximo e mínimo cominados para cada figura delituosa, por força do disposto no

artigo 59, inciso II, do Código Penal;

b) judiciais, na medida em que a lei atribui exclusivamente ao juiz (com a

restrição da observância dos limites legais da pena) a tarefa de preencher, diante de

cada hipótese posta a sua apreciação, o conteúdo de cada uma das circunstâncias

ali enumeradas, valorando-as positiva ou negativamente,531 já que o dispositivo não

529 A etimologia dos dois termos corresponde ao sentido com que foram apreendidos pelo artigo 59

do Código Penal: “A palavra circunstância deriva do latim circumstantia, que significa ação de estar de volta de, em torno de, ao pé de, ao lado de, nas imediações de, à roda de, ao redor de. A palavra, portanto, dá a idéia de algo que se encontra fora do objeto e não dentro dele. [...] a palavra elementar deriva do latim elementu, significando tudo que entra na composição de alguma coisa.” FERREIRA, Gilberto. Aplicação da pena. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 66-67.

530 “As circunstâncias do crime [em sentido amplo] constituem um plus ao tipo penal incriminador; não têm existência autônoma, por isso que sempre dependem de uma figura típica principal, a que aderem.” AZEVEDO, David Teixeira de. Dosimetria da pena: causas de aumento e diminuição. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 57.

531 BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 187.

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disseca, por exemplo, quais motivos são relevantes, que circunstâncias merecem

ponderação etc.

Esta liberdade não vigora com a mesma intensidade no tocante às

demais circunstâncias, porque nestas o legislador de antemão determina

peremptoriamente o seu sentido, como se dá com a atenuante da menoridade, em

que o artigo 65, inciso I, primeira parte, do Código Penal delimita sem sombra de

dúvida o seu alcance: somente fará a ela jus “o agente menor de 21 (vinte e um), na

data do fato,” exceção feita ao artigo 66 do Código Penal, que trata das

circunstâncias atenuantes inominadas.

Nucci apresenta a seguinte definição:

Denominam-se circunstâncias judiciais as previstas no art. 59 do CP, não possuindo expressa definição legal, surgindo, em última análise, da avaliação do juiz, ao estabelecer a pena-base. Constituem particularidades que envolvem a figura básica de um delito qualquer, sem que possam ser consideradas integrantes da tipicidade derivada ou circunstâncias legais genéricas de aumento ou diminuição (agravantes/atenuantes), possuindo caráter nitidamente residual. Dessa forma, ao cuidar da aplicação da pena, o magistrado necessita, em primeiro plano, verificar se alguma das circunstâncias constantes do art. 59 perfaz, igualmente, outra circunstância expressamente prevista em lei; caso não ocorra esse perfil, passa a analisá-las de per si, criando um conjunto de elementos positivos ou negativos, que propiciará a formação de um juízo de censura (culpabilidade) maior ou menor.532

Inegável, destarte, a ampla margem de discricionariedade conferida ao

juiz no exame das circunstâncias judiciais, seja pela subjetividade que carregam,

seja pelos largos limites mínimo-máximo de pena privativa de liberdade previstos em

532 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.

167 (grifo do autor). O caráter acessório das circunstâncias judiciais com relação às circunstâncias expressamente previstas em lei fica claro com o seguinte exemplo: se o agente subtrai para si e mediante violência coisa alheia móvel que se encontrava na posse de uma pessoa de oitenta anos, esta circunstância do delito atinente à idade da vítima não incidirá a título de circunstância judicial, pois é expressamente prevista como agravante (Código Penal, artigo 61, inciso II, alínea h), a ser sopesada na segunda fase de individualização da pena.

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abstrato para cada infração penal,533 fatores que juntos dão uma idéia da

responsabilidade do juiz ao fixar a pena-base, até porque é sobre ela, como já dito,

que se efetuarão os eventuais acréscimos e diminuições punitivas das fases

posteriores do processo de aplicação da pena.

Exatamente pelas graves conseqüências que pode trazer para a liberdade

individual do condenado, mormente quando tratado de forma leviana e superficial, o

marco inicial para trazer o ideal de proporcionalidade entre o crime e a pena ao

plano da concretude não autoriza de forma alguma a conversão da

discricionariedade judicial em arbitrariedade, sob pena de comprometer não só as

garantias individuais como também a segurança jurídica, donde sujeitar-se o

julgador a uma série de limitações incontornáveis.

Antes de adentrar na análise de cada uma destas diretivas, hão de ser

superadas algumas premissas, a saber:

a) o elenco das circunstâncias judiciais é taxativo ou exemplificativo?

Luisi aborda esta polêmica, para concluir por uma posição intermediária,

qual seja, a discricionariedade regrada ou discricionariedade juridicamente vinculada

a que o juiz fica submetido.534

De fato, trata-se de atividade regrada, porque o juiz não pode utilizar

circunstância judicial não arrolada no artigo 59, caput, do Código Penal535 e todas aí

previstas são de trato obrigatório. Discricionária, por outro lado, porquanto dentro

533 Uma breve folheada pela Parte Especial do Código Penal corrobora esta preocupação, podendo

citar as penas cominadas ao homicídio simples (6 a 20 anos de reclusão, artigo 121, caput), ao furto qualificado (2 a 8 anos de reclusão, artigo 155, §4º), ao roubo (4 a 10 anos de reclusão, artigo 157, caput), à falsificação de documento particular (1 a 5 anos de reclusão, artigo 298) e muitas outras. Zaffaroni e Pierangeli atribuem as margens punitivas elásticas ao comodismo do legislador ou a sua falta de vontade em assumir responsabilidades. ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 781.

534 LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991, p. 38. 535 “Convém assinalar que tais circunstâncias são taxativas e não meramente exemplificativas,

vedando-se ao Juiz adotar circunstâncias de medida de pena além dessa órbita [...].” FERRAZ, Nélson. Dosimetria da pena. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 680, jun. 1992, p. 323.

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destes parâmetros legais, o juiz fica livre para realizar suas opções de acordo com

as singularidades do caso concreto, mas desde que as escolhas venham

acompanhadas de motivação empírica.

O mais lógico é que o rol fosse taxativo, para permitir maior controle

sobre a racionalidade da decisão. Porém, a taxatividade perde força como

regramento da discricionariedade a partir da expressão circunstâncias do artigo 59,

que – por serem inominadas -, dão espaço de liberdade tão amplo, que a idéia de

taxatividade perde toda a força;

b) o juiz é obrigado a analisar em cada caso concreto as oito diretivas, ou

pode se limitar àquelas por ele consideradas relevantes na espécie?

O juiz deve analisar cada um dos oito parâmetros, exatamente para

permitir, com clareza, a fiscalização do processo mental por ele trilhado para chegar

a um quantum determinado. Em concluindo que alguma circunstância judicial não

possui relevância no caso concreto, ou que inexiste nos autos elemento extraído da

realidade para sopesá-la positiva/negativamente, há de consignar expressamente

referida situação, sempre no sentido de conferir o máximo de transparência ao seu

ato. Boschi aborda com precisão esta obrigatoriedade:

[...] Não dispondo de dados nos autos para concluir positiva ou negativamente sobre tal ou qual circunstância, é indispensável que haja explícita declaração nesse sentido, evitando-se a mera criação mental nesse procedimento e eliminado-se o risco de que a omissão sobre a circunstância seja encarada por quem lê a sentença como produto do esquecimento do juiz. Correto será o juiz, nesse caso, declarar que não detém elementos de convicção para concluir num ou noutro sentido, quanto a tal ou qual circunstância.536

No sentido de que deve sopesar todas as circunstâncias judiciais:

536 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 189-190.

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HABEAS CORPUS. PENAL. CRIMES DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES E CORRUPÇÃO DE MENOR. FIXAÇÃO DAS PENAS-BASE. ART. 59 DO CÓDIGO PENAL. PROPORCIONALIDADE ENTRE OS FUNDAMENTOS JUDICIAIS E A EXASPERAÇÃO DA REPRIMENDA. MOTIVAÇÃO VÁLIDA. [...] 1. O julgador deve, ao individualizar a pena, examinar com acuidade os elementos que dizem respeito ao fato, obedecidos e sopesados todos os critérios estabelecidos no art. 59, do Código Penal, para aplicar, de forma justa e fundamentada, a reprimenda que seja, proporcionalmente, necessária e suficiente para reprovação do crime. 2. No caso em tela, a fixação da pena-base acima do mínimo legal restou suficientemente justificada na sentença penal condenatória, em razão do reconhecimento das circunstâncias judiciais desfavoráveis, inexistindo qualquer ilegalidade na espécie. 3. [...] 6. Ordem parcialmente concedida para reformar o acórdão proferido pelo Tribunal a quo e a sentença condenatória na parte relativa à dosimetria da pena, para que nova decisão seja proferida, com o reconhecimento da atenuante da confissão espontânea, bem como para afastar a imposição de regime prisional integralmente fechado. (Superior Tribunal de Justiça, HC nº 64269/RJ, Quinta Turma, Rela. Min. Laurita Vaz, j. em 19/10/2006, DJ 20/11/2006, p. 355) (grifo nosso).

APELACAO. ROUBO DUPLAMENTE QUALIFICADO. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS. ANÁLISE. CONFISSÃO. AJUSTAMENTO DO QUANTUM DELA DECORRENTE.- NÃO PROCEDE A IRRESIGNACAO DO ACUSADO SOBRE AUSÊNCIA DE ANÁLISE DAS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS SE, AO FIXAR A PENA-BASE O MAGISTRADO, DE FORMA CLARA, ANALISA TODOS OS SEUS REQUISITOS, COM DESTAQUE PARA OS ANTECEDENTES CRIMINAIS DO RÉU E SUA PROPENSÃO PARA A PRÁTICA DELITUOSA, ALEM DE ATENUAR-LHE A PENA POR FORCA DA CONFISSÃO. - AJUSTAMENTO DA PENA PARA AUMENTAR O 'QUANTUM' DA REDUÇÃO, DECORRENTE DA CONFISSÃO. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. (Tribunal de Justiça/GO, Apelação Criminal nº 18506-0/213, Segunda Câmara Criminal, Rel. Des. João Canedo Machado, j. em 01/09/1998, DJ 12891, de 17/09/1998) (grifo nosso);

c) ponto de partida para o estabelecimento da pena-base.

A respeito existem duas teorias:537

- a tradicional, segundo a qual o ponto de partida deve situar-se na média

entre o mínimo e o máximo da pena prevista em abstrato, porque tal método seria

mais lógico e racional:

537 Apresentadas resumidamente por: SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena: fundamentos

políticos e aplicação judicial. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2005, p. 108, que se filia à teoria moderna.

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[...] se se tem que atenuar ou agravar dentro de um universo que estabelece um número mínimo e um máximo, nada mais correto do que escolher um termo médio para, sobre ele, procederem-se as diminuições ou agravações necessárias;538

- a moderna, que pugna pelo mínimo em abstrato como patamar inicial,

amparada por razões humanitárias. Inegavelmente este posicionamento se impõe.

Caso se parta da média, estar-se-ia presumindo, de antemão, uma

culpabilidade mais intensa que a mínima passível de incidir, numa verdadeira e

inaceitável inversão da presunção de inocência, além de afrontar o próprio princípio

da culpabilidade, a vedar “aplicação ou agravação de penas sem fundamento

empírico concreto.”539

Ademais, como a lei é silente acerca do método a ser adotado, “o juiz não

pode fazer uma interpretação extensiva escolhendo um método [o do termo médio]

que venha prejudicar o réu.”540

Em abono a esta posição colaciona-se a seguinte decisão do Supremo

Tribunal Federal:

HABEAS-CORPUS. HOMICÍDIO PRIVILEGIADO-QUALIFICADO: POSSIBILIDADE, MESMO COM O ADVENTO DA LEI DOS CRIMES HEDIONDOS. PENA-BASE: FIXAÇÃO A PARTIR DA MÉDIA DOS EXTREMOS COMINADOS, OU DA SUA SEMI-SOMA, E FUNDAMENTAÇÃO; PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. [...] 2. A quantidade da pena-base, fixada na primeira fase do critério trifásico (CP, arts. 68 e 59, II), não pode ser aplicada a partir da média dos extremos da pena cominada para, em seguida, considerar as circunstâncias judiciais favoráveis e desfavoráveis ao réu, porque este critério não se harmoniza com o princípio da individualização da pena, por implicar num agravamento prévio (entre o mínimo e a média) sem qualquer fundamentação. O juiz tem poder discricionário para fixar a pena-base dentro dos limites legais, mas este poder não é arbitrário porque o caput do art. 59 do Código Penal estabelece um rol de oito circunstâncias judiciais que devem orientar

538 FERREIRA, Gilberto. Aplicação da pena. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 64. Logo em seguida,

entretanto, o autor admite não ser a posição mais correta. Ibid., p. 64-65. 539 SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba:

ICPC; Lumen Juris, 2005, p. 108. 540 FERREIRA, op. cit., p. 65. Também advoga o limite mínimo da pena como ponto de partida para a

fixação da pena-base: ROSA, Fábio Bittencourt da. A pena e sua aplicação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 668, jun. 1991, p. 246.

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a individualização da pena-base, de sorte que quando todos os critérios são favoráveis ao réu, a pena deve ser aplicada no mínimo cominado; entretanto, basta que um deles não seja favorável para que a pena não mais possa ficar no patamar mínimo. Na fixação da pena-base o Juiz deve partir do mínimo cominado, sendo dispensada a fundamentação apenas quando a pena-base é fixada no mínimo legal; quando superior, deve ser fundamentada à luz das circunstâncias judiciais previstas no caput do art. 59 do Código Penal, de exame obrigatório. Precedentes. 3. Habeas-corpus deferido em parte para anular o acórdão impugnado e, em conseqüência, a sentença da Juíza Presidente do Tribunal do Júri, somente na parte em que fixaram a pena, e determinar que outra sentença seja prolatada nesta parte, devidamente fundamentada, mantida a decisão do Conselho de Sentença. (Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus nº 76196-3/GO, Segunda Turma, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 29/09/1998, RTJ 176/743).

Com efeito, se as diretivas do artigo 59, caput, do Código Penal hão de

ser analisadas de acordo com o grau de reprovabilidade social da conduta

criminosa, somente admitem fixação acima do mínimo legal caso a conduta

apresente um plus de reprovação em relação aos demais crimes da mesma espécie,

ou seja, extrapole os aspectos inerentes ao próprio tipo penal, conforme o Superior

Tribunal de Justiça assentou, in verbis:

CRIMINAL. HC. LOTEAMENTO CLANDESTINO. CRIME AMBIENTAL. CONDENAÇÃO MANTIDA PELO TRIBUNAL A QUO. ART. 40 DA LEI N.º 9.605/98. UNIDADES DE CONSERVAÇÃO. AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. FALTA DE JUSTA CAUSA. NÃO OCORRÊNCIA. DEFINIÇÃO AMPLA. VIGÊNCIA À ÉPOCA DOS FATOS E DA DENÚNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. NÃO CONFIGURAÇÃO DE ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL. IMPROPRIEDADE DO WRIT. DOSIMETRIA. PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTOS. IMPROCEDÊNCIA. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS. ASPECTOS INERENTES AO TIPO PENAL. OFENSA PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA REPRIMENDA. NÃO-OCORRÊNCIA. PENA DE MULTA. FIXAÇÃO NO MÁXIMO PERMITIDO EM RELAÇÃO A UM DOS PACIENTES. DESPROPORCIONALIDADE EM RELAÇÃO À REPRIMENDA CORPORAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. Hipótese na qual os pacientes, condenados pela prática do crime de loteamento clandestino e de crime contra o meio ambiente, alegam falta de justa causa para a ação penal em relação a este, sustentando a atipicidade da conduta praticada por ausência de regulamentação, bem como erro na dosimetria da pena em relação àquele. [...] O Julgador de 1º grau utilizou, como fundamento para a elevação da pena-base acima do mínimo legal, a culpabilidade dos pacientes (dolo que teve

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por alvo pessoas humildes, leigas e de boa fé), os motivos do crime (a ganância na divisão da gleba de terra em 1.250 lotes a serem vendidos a 18 mil reais cada), suas condutas sociais (descaso com os Poderes Públicos) e as conseqüências do crime (algumas das vítimas correm o risco de ter suas residências desmoronadas por força da erosão causada pelo loteamento). O dolo intenso, a ganância, o desrespeito para com os Poderes Públicos e os riscos que correm os compradores dos lotes localizados nas terras irregularmente parceladas pelos pacientes constituem um plus ao crime de loteamento clandestino, praticado na sua forma qualificada, não sendo, pois, inerentes ao tipo penal. [...] Deve ser prestigiada a conclusão da sentença condenatória e do acórdão que a manteve, eis que suficientemente fundamentada a majoração da pena-base imposta aos réus, não restando caracterizada, portanto, qualquer afronta ao art. 59 do Código Penal. [...] Não obstante o reconhecimento da existência de certa discricionariedade na dosimetria da reprimenda, relativamente à exasperação das penas aplicadas – independente de sua natureza, privativa de liberdade ou de multa –, é indispensável a sua fundamentação, com base em dados concretos, em eventuais circunstâncias desfavoráveis do art. 59 do Código Penal. [...] Ordem parcialmente concedida, nos termos do voto do Relator. (Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus nº 2005/0184946-4, Quinta Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, j. em 29/06/2006, DJ 21/08/2006, p. 267) (grifo nosso).

Logo, somente quando relativamente desfavoráveis se revelarem os

parâmetros do artigo 59, caput, do Código Penal, restará autorizada a fixação da

pena-base na média entre o mínimo e o máximo previsto em abstrato para o delito

(obtida pela somatória do mínimo com o máximo e dividindo por dois). Em idêntica

linha de raciocínio, estará legitimada a pena máxima quando todas as circunstâncias

desabonarem o condenado, pois entendimento diverso tornaria inútil a previsão de

uma pena máxima, como bem aduz Nucci, em contraposição a Boschi,541 para

quem, presente o grau máximo de censura, a pena-base aproximar-se-á do termo

médio:

541 Seu principal argumento, respeitável, diga-se, é de que o critério do termo médio exerce relevante

papel na contenção dos excessos, pois sendo o direito penal simultaneamente um instrumento de punição e proteção, suas normas hão de atuar “como verdadeiros escudos contra os abusos e, data venia, para nós soa inimaginável que a pena-base (isto é, a pena sobre a qual o juiz realiza os primeiros movimentos para a determinação da culpabilidade em concreto) possa, desde logo, ser estabelecida no ou próximo do máximo abstratamente cominado na lei.” BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 222-223.

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A explicação dada para a fixação da pena-base, quando for absoluta a desfavorabilidade das circunstâncias judiciais, junto ao termo médio, o que sinalizaria grau máximo de reprovação, não nos parece ser lógica nem aceitável. [...] Se outras diversas circunstâncias demonstram a integral reprovabilidade do crime e de seu autor o caminho natural deve ser a fixação da pena-base no máximo. Outra conclusão, isto é, de que o termo médio é o máximo para a aplicação da pena seria negar o critério legislativo de individualização, seria declarar inexistente a pena máxima, seria ofensivo ao próprio princípio da legalidade [...].Existe a pena máxima, prevista no preceito secundário do tipo penal incriminador, para ser aplicada quando a situação concreta demandar.542

Ressalte-se que em ambos os casos (termo médio/máximo) não se trata

do ponto de partida para a fixação da pena-base, mas sim o seu ponto de chegada,

porque já produto da operacionalização das circunstâncias judiciais.

d) o juiz é obrigado a discriminar o quanto de pena (para mais ou para

menos) foi atribuído a cada um dos vetores do artigo 59, sob pena de ferir os

princípios da individualização da pena e o da obrigatoriedade de motivação da

sentença (Constituição Federal, artigo 5º, inciso XLVI e artigo 93, inciso IX)?

Com certeza, pois os aludidos princípios não se contentam com

afirmações imprecisas, que não possibilitem às partes conhecer par e passo o peso

dado a cada uma das circunstâncias judiciais.

Esta questão é muito bem articulada por Ferreira:

Não basta dizer genericamente que levando em consideração tais e tais circunstâncias fixou a pena-base em tanto. É necessário que proceda mais ou menos, assim: “Esclareço que para a fixação da pena-base procedi da seguinte forma: parti do termo mínimo, que na espécie era de três meses. A ele acresci três meses, em virtude do elevado grau de reprovação da conduta. Acresci mais um mês por possuir o réu péssimos antecedentes, ficando a pena em sete meses. Considerando o comportamento da vítima, que contribuiu intensamente para a eclosão dos acontecimentos, reduzi de três meses, quedando-se a pena-base, portanto, em quatro meses.[...].543

542 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.

343 (grifo do autor). 543 FERREIRA, Gilberto. Aplicação da pena. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 66.

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Apesar da lógica que permeia a posição de Ferreira, ainda se encontram

fartas decisões no sentido de não decorrer do princípio da individualização da pena

a obrigatoriedade de o julgador especificar a carga sancionatória atribuída a cada

uma das circunstâncias, se trazendo ilustrativamente duas emanadas da Oitava

Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Corte tida como das mais

ciosas do respeito aos princípios constitucionais. A decisão abaixo colacionada

refere-se a uma condenação por tentativa de furto simples, em que a pena-base

(cujo mínimo cominado é de um ano de reclusão) foi exasperada em seis meses de

reclusão, sendo fixada em 1 ano e 6 meses de reclusão porque computadas

negativamente três das circunstâncias judiciais: antecedentes e conduta social do

agente e circunstâncias do crime. A juíza sentenciante não quantificou a valoração

negativa atribuída a cada uma das circunstâncias judiciais objeto de análise.

Conferindo:

APELAÇÃO CRIME. FURTO SIMPLES. TENTATIVA. 1. PRELIMINAR. NULIDADE. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. INOCORRÊNCIA. Respeitados os critérios previsto no art. 68 do Código Penal para a determinação da pena privativa de liberdade, com a pena-base fixada de forma fundamentada, observadas as particularidades do agente e as peculiaridades do fato, seguidas as diretrizes do artigo 59 do Código Penal, não há falar em ofensa ao princípio constitucional da individualização da pena, inexistindo exigência legal no sentido da discriminação do quantum de aumento resultante de cada vetor considerado negativo. [...]. (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Crime nº 70012300356, Oitava Câmara Criminal, Relatora: Desa. Fabianne Breton Baisch, j. 11/10/2006, grifo nosso).

Trecho do acórdão que rejeitou a preliminar de nulidade da sentença por

violação ao princípio constitucional da individualização da pena:

Inicialmente, rejeito a preliminar de nulidade da sentença argüida pela defesa, por não vislumbrar a acenada ofensa ao princípio da individualização da pena, inexistindo suporte jurídico à pretensão. Indubitável, o princípio em tela visa a assegurar, no que diz com a primeira etapa do método trifásico da determinação da pena previsto no art. 68 do

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Código Penal, que a pena-base seja definida fundamentadamente dentro das margens mínimas e máximas cominadas abstratamente ao tipo, tendo como suporte as particularidades e peculiaridade do agente e do fato, observadas as circunstâncias judiciais elencadas no artigo 59 do Código Penal.

A determinação da basilar não deflui de operação matemática, onde cada um dos vetores, independentemente do seu conteúdo subjetivo, assume determinado valor, porque também o poder discricionário conferido pela lei penal ao Magistrado será relevante para estabelecer o “quantum” de pena-base que deve atender aos critérios de necessidade e suficiência à reprovação e prevenção do crime.

Iniludível, pretender que, para cada caso individualmente considerado, as circunstâncias judiciais, isoladamente, tenham peso específico próprio, o que inviabilizaria a quantificação das sanções da forma concebida pelo legislador, além de ser possível concretizar verdadeiras iniqüidades.

A mesma Câmara já havia adotado entendimento idêntico em julgado

anterior:

APELAÇÃO-CRIME. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. FURTO. 1. PRELIMINARMENTE. NULIDADE. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. INOCORRÊNCIA. Sendo a pena-base fixada de forma fundamentada e com observância às singularidades do agente e do fato nos precisos termos do artigo 59 do Código Penal, não há falar em ofensa ao princípio constitucional da individualização da pena pelo fato de que não houve menção discriminada do quantum de aumento resultante de cada vetor considerado negativo. 2. [...]. (Apelação Crime Nº 70011503315, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Roque Miguel Fank, Julgado em 29/06/2005, grifo nosso).

e) exigência de fundamentação extraída de dados concretos dos autos e

obtidos no curso da fase processual.

Não satisfaz a exigência constitucional da motivação das sentenças

(quanto mais as condenatórias com aplicação de pena privativa de liberdade),

inquinando-as de nulidade neste ponto, limitar-se o juiz a repetir os termos legais do

artigo 59, caput, do Código Penal (procedimento que Costa Júnior acertadamente

denomina de fórmulas rituais e preguiçosas, tais como: “entende-se equânime a

pena”, “adequada ao fato e à personalidade do réu”, “levando-se em conta os

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elementos do art. 59”)544 para justificar a fixação de determinado quantum punitivo a

título de pena-base, pois o que se confere ao julgador é uma margem de

discricionariedade, jamais de arbitrariedade.545

Corroborando tal entendimento, confira-se:

Pena: individualização e regime inicial de cumprimento: ausência de fundamentação: nulidade. Não responde a exigência de fundamentação de individualização da pena-base e da determinação do regime inicial da execução da pena a simples menção aos critérios enumerados em abstrato pelo art. 59 C. Pen., quando a sentença não permite identificar os dados objetivos e subjetivos que a eles se adequariam, no fato concreto, em desfavor do condenado. (Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus nº 68.751/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 08/10/1991, DJ 01/11/1991, p. 15569).

HABEAS CORPUS" - EXACERBAÇÃO DA PENA-BASE E APLICAÇÃO DE CAUSA DE REDUÇÃO DE PENA - AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO ADEQUADA - ILEGITIMIDADE DA OPERAÇÃO DE DOSIMETRIA PENAL - CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DE HIPÓTESE DE INJUSTO CONSTRANGIMENTO - PRETENDIDA FIXAÇÃO DA PENA EM SEDE DE "HABEAS CORPUS" - NECESSIDADE DE REEXAME DOS ELEMENTOS DE FATO - INVIABILIDADE - PEDIDO DEFERIDO, EM PARTE. - A aplicação da pena, no ordenamento normativo brasileiro, não pode converter-se em instrumento de opressão judicial, nem traduzir exercício arbitrário de poder, eis que o magistrado sentenciante está necessariamente vinculado aos fatores e aos critérios, que, em matéria de dosimetria penal, limitam-lhe a prerrogativa de definir a pena aplicável ao condenado. Precedentes. - Não se revela legítima, por isso mesmo, a operação judicial de dosimetria penal, quando o magistrado, na sentença, sem nela revelar a necessária base empírica eventualmente justificadora de suas conclusões, vem a definir, mediante fixação puramente arbitrária, a pena-base, exasperando-a de modo evidentemente excessivo (aumento de 1/3), sem quaisquer outras considerações, apoiando-se, unicamente, para esse efeito, na mera existência de circunstância agravante genérica, resultante da simples reincidência do condenado. Também incide em desrespeito às regras legais de fixação penal, o magistrado sentenciante, que, não obstante a semi-imputabilidade do réu, deixa de fundamentar, sem qualquer avaliação do grau de intensidade da perturbação da saúde mental do agente, a aplicação dessa causa especial de diminuição da pena (CP, art. 26, parágrafo único; Lei nº 6.368/76, art. 19, parágrafo único), reduzindo-a em 2/5, sem, no entanto, referir, para tal efeito, a existência de dado substancial que justifique, com suporte em elementos factuais, tal opção. - Em tema de

544 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte geral - vol. 1. São Paulo: Saraiva,

1991, p. 161. 545 Boschi adota postura idêntica: “[...] a validade da ‘pesagem’ de cada circunstância judicial

pressupõe existência nos autos de informações objetivas que a sustentem. Daí por que deve o magistrado registrar na sentença, com indisfarçável clareza e objetividade, a respectiva fonte probatória, de modo que o procedimento de individualização da pena não espelhe laboriosa mas ... desarrazoada criação mental.” BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 190 (grifo do autor).

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dosimetria penal, reputa-se destituída de fundamentação a sentença condenatória que se abstém de descrever, de maneira racionalmente adequada, o itinerário lógico percorrido pelo juiz na definição da "sanctio juris", pois cumpre, ao magistrado, indicar, no ato de imposição da pena, as razões, que, fundadas em dados da realidade constantes do processo de conhecimento, conferem expressão concreta aos elementos normativos abstratamente previstos nos art. 59 e 68 do Código Penal. Precedentes. [...] (Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus nº 82.713/MS, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 19/08/2003, DJ 29/09/2006, p. 67).

Boschi assinala que a sanção de nulidade somente vigora no caso de a

quantidade da pena-base fixada se situar acima do mínimo legal, pois aí houve

inegável prejuízo ao condenado, escudando seu posicionamento em decisões dos

tribunais.546 Entende-se, no entanto, que apesar de a motivação da sentença

prestar-se precipuamente para controlar e limitar o poder punitivo estatal, e assim

resguardar o máximo possível o direito de liberdade do indivíduo processado, trata-

se de um princípio aplicável também para a outra parte envolvida na relação

processual (em decorrência do princípio da igualdade processual das partes, que

assim poderá refutar em sede recursal os pontos com os quais não concorde) e

também para a sociedade como um todo, que tem interesse na transparência dos

atos do poder público. Desta forma, constitui também direito do Ministério Público ou

do querelante, conhecer de maneira clara o caminho trilhado pelo julgador para

chegar a determinado quantum a título de pena-base, pelo que, a pecha de nulidade

se impõe sempre que a fixação da pena-base vier desacompanhada da indicação de

dados da realidade constante dos autos.547

Exige-se ainda que esta realidade possível decorra necessariamente de

atos de prova, não de atos de investigação, pois

546 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 190. 547 Este entendimento é compartilhado por Nélson Ferraz: “mesmo quando a pena-base é fixada no

mínimo legal, poderá ser decretada a nulidade da sentença por falta de fundamentação das circunstâncias judiciais. Além do evidente cerceamento de acusação, a sentença nestas condições padece dos requisitos essenciais à sua validade, no tocante à individualização da pena.” FERRAZ, Nélson. Dosimetria da pena. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 680, jun. 1992, p. 323.

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no plano das garantias processuais, as constituições modernas asseguram que a sentença condenatória só pode ter por fundamento a prova validamente praticada no curso da fase processual, com plena observância da publicidade, oralidade, imediação, contraditório e ampla defesa. Isso exclui a possibilidade de que os atos de investigação [praticados pela Polícia Judiciária ou pelo Ministério Público], cuja estrutura não garante esses direitos, sejam considerados como meios de prova, logo, suscetíveis de valoração no momento da sentença.548

f) proibição de dupla valoração de um mesmo fato.

No exemplo a seguir o réu (apelante) registra quatro condenações

anteriores e transitadas em julgado, todas por crimes contra o patrimônio (roubo e

furtos). Por ocasião da sentença, a juíza consignou expressamente que uma das

condenações seria valorada como agravante (reincidência – Código Penal, artigo 61,

inciso I), enquanto as demais como maus antecedentes, in verbis:

Quanto aos antecedentes, registra quatro condenações com trânsito em julgado, sendo que uma será valorada como agravante e as demais como maus antecedentes -, assinalo, a Certidão de Antecedentes Judiciais das fls. 102/107 aponta a existência de uma condenação por roubo, uma por furto simples tentado e duas por furto qualificado tentado, além de ter respondido a um processo no Juizado Especial Criminal por lesões corporais leves; a conduta social - A conduta social porquanto se refere a aspectos intrínsecos e extrínsecos de cada indivíduo, espelhando seu perfil psicossocial se mostra em desajuste com os padrões de normalidade, tratando-se de indivíduo com dificuldades para interagir sadiamente com a sociedade, consoante certidão de fls. 102/107, denotando sua incursão em diversas atividades ilícitas -; [...]. (grifo nosso).

Até aí atuou dentro da legalidade, porque os fatos geradores das

condenações definitivas não foram sopesados em duplicidade. Entretanto, logo a

548 LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade

garantista. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 263. O autor traça um quadro comparativo entre atos de prova e de investigação, que não deixa margem de dúvida quanto à imprestabilidade de qualquer outra verdade, que não a processual, merecendo destaque: a) os atos de investigação se referem a uma simples hipótese, enquanto os atos de prova destinam-se a convencer o juiz da verdade a respeito de uma afirmação; b) os primeiros estão a serviço da fase pré-processual, ao passo que os atos de prova estão a serviço do processo e o integram; c) os atos de investigação só se prestam para formar um juízo de probabilidade, enquanto os de prova são voltados para a formação de um juízo de certeza; d) os atos de investigação comportam restrições à publicidade, contraditório e imediação, princípios que hão de ser estritamente observados na realização dos atos de prova. Ibid., p. 261-262.

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seguir, a juíza utilizou o mesmo conjunto de condenações (tanto que se reporta

igualmente às certidões juntadas às fls. 102/107 dos autos), já destrinchados

anteriormente em dois grupos (para funcionar negativamente a título de

antecedentes um deles, enquanto o outro num segundo momento como

reincidência), para agora atuar negativamente como conduta social desajustada dos

padrões da normalidade, incorrendo então em inegável bis in idem.

Contudo, a Oitava Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande

do Sul negou provimento a esta tese defensiva, pois segundo o voto condutor

[...] não caracteriza bis in idem o fato de os processos registrados na certidão judicial servirem como sinal de conduta social desviada e de maus antecedentes, porque a avaliação não decorre da existência de uma única ação penal na qual se viu envolvido o apelante, mas em diversas. Além do mais, a própria narrativa do recorrente aclara que sua conduta social não era boa, pois costumava praticar furtos no mesmo local.

Ora, ainda que diversas as ações penais em que se envolvera o apelante,

a prolatora da sentença recorrida já havia deixado claro quais as conseqüências

jurídicas que delas adviriam: antecedentes desabonadores (para três das

ocorrências) e agravante da reincidência (para uma delas). Voltar a sopesar esta

mesma realidade fática, só que agora isoladamente e a novo título, é valorar

novamente fatos já analisados. Se isto não é afrontar o princípio ne bis in idem! A

prevalecer o entendimento daquele órgão colegiado, todo condenado que registre

mais de uma condenação terá fatalmente valorado contra si na dosimetria da pena-

base os antecedentes, a personalidade (“voltada para a prática de crimes”, como os

julgados adoram consignar) e a conduta social.

O que se percebe é que como os antecedentes criminais são provados

documentalmente, fica mais cômodo para o julgador deles lançar mão igualmente a

título de personalidade e conduta social desfavoráveis, circunstâncias que

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demandam análise de outra ordem (muito mais abrangente e praticamente

impossível de ser levada a efeito com os recursos atualmente postos à disposição

das partes e do próprio juiz, sem olvidar que as três circunstâncias padecem de

flagrante vício de inconstitucionalidade, por permitirem agravação da reprimenda

pelo que o condenado é).

A decisão colegiada acabou por ser ementada nos seguintes moldes:

APELAÇÃO CRIME. FURTO SIMPLES. TENTATIVA. 1. [...] 3. DOSIMETRIA DA PENA. Desfavoráveis ao condenado os antecedentes, a conduta social e as circunstâncias, plenamente justificada a fixação da pena-base em 01 ano e 06 meses de reclusão. Réu que ostenta 04 condenações transitadas em julgado em datas anteriores ao cometimento do novo delito. Não só é reincidente, como possui maus antecedentes, não caracterizando “bis in idem” considerar extensa ficha criminal como maus antecedentes e indicativo de péssima conduta social. Circunstâncias negativas na medida em que a vítima, pessoa de 69 anos, não poderia esboçar reação. 4. [...] PRELIMINAR REJEITADA. APELO IMPROVIDO. (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Crime nº 70012300356, Oitava Câmara Criminal, Relatora: Desa. Fabianne Breton Baisch, j. 11/10/2006, grifo nosso).

g) vedação à utilização de fatos integrantes do próprio tipo penal.

Traduz-se na proibição de elevar a pena-base com supedâneo em

elementares do próprio fato incriminado, como “o desfalque patrimonial” em um

crime de roubo (a título de conseqüências, embora a extensão do prejuízo sofrido

pela vítima aí se encaixe), ou “a evidente desproporcionalidade entre a ação do

ofendido e a reação do réu” num crime de homicídio qualificado pela futilidade do

motivo, e assim por diante. Conferindo:

I. Sentença: fundamentação: validade. Não é inepta a sentença que - para condenar ex-Prefeito pelo crime do art. 1º, I, do Dl. 201/67 - indica os elementos comprobatórios do superfaturamento do valor contratado para a obra e o seu pagamento, ao que se somaram, segundo a decisão, indícios bastantes da concorrência do elemento subjetivo necessário à

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caracterização do concurso de agentes: saber se a prova, assim indicada, aos diversos efeitos constitutivos da infração penal é suficiente para lastrear a condenação é questão de fato, a cujo deslinde não se presta o habeas corpus. II. Sentença condenatória: individualização da pena: o fato de aludir a decisão a circunstâncias elementares do tipo, que não podem, como tais, ser consideradas na fixação da pena base não induz por si só à sua nulidade, se também se apontou outros fatores adequados à sua exasperação. (Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus nº 77047/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 16/03/1999, DJ 30/04/1999, grifo nosso).

4.4 CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS: CRITÉRIOS

O poder punitivo em concreto do juiz na fixação da pena-base, além de

sofrer as limitações impostas por aquela série de premissas, encontra-se ainda

jungido pelo teor das circunstâncias judiciais em si mesmas, que comportam

diretivas do direito penal de autor e do direito penal de ato. Advoga-se aqui, com

aprofundamento na conclusão do trabalho, que somente podem ser negativamente

valoradas aquelas relativas ao direito penal de ato, que reprova o agente pelo que

ele fez, não pelo que ele é, amparando-se, para tanto, nos princípios constitucionais

da secularização e da culpabilidade.

Os autores pesquisados divergem quanto aos próprios critérios utilizados

para compartimentar as circunstâncias judiciais: Boschi as divide em subjetivas

(culpabilidade, antecedentes, conduta, personalidade, motivos) e objetivas

(circunstâncias e conseqüências do fato e comportamento da vítima);549 Cirino dos

Santos classifica aquelas cinco primeiras como elementos do agente; circunstâncias

e conseqüências do crime como elementos do fato, colocando o comportamento da

vítima em um terceiro grupo;550 Ferreira as separa em objetivas ou reais, que são as

relativas ao fato e à vítima (motivos, circunstâncias e conseqüências do delito e o

comportamento da vítima) e subjetivas, as que dizem respeito ao agente

549 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 187. 550 SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba:

ICPC; Lumen Juris, 2005, p. 108.

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(culpabilidade, antecedentes, personalidade e conduta social);551 Nucci utiliza três

critérios: critério genérico (culpabilidade), critérios específicos referentes ao autor

(antecedentes, conduta social, personalidade e motivos) e critérios específicos

referentes ao fato (circunstâncias e conseqüências do fato criminoso e

comportamento do ofendido)552 e Bitencourt, que não as diferencia em torno de

critérios específicos.553

Este rápido apanhado doutrinário evidencia como os critérios de

agrupamento das circunstâncias judiciais variam e falham, isto porque não se atém

ao principal, que é dividi-las entre as concernentes ao direito penal de ato

(culpabilidade) – culpabilidade do agente, motivos, circunstâncias e conseqüências

do crime, e comportamento da vítima – e as relativas ao direito penal de autor

(periculosidade) – antecedentes, conduta social e personalidade do agente.

O que mais se aproxima da concepção aqui adotada é Nucci, mas

estranhamente coloca os motivos do ato (que aumentam ou diminuem a censura do

ato e dizem respeito à culpabilidade, como o motivo fútil ou torpe, motivo de

relevante valor moral ou social) dentre as circunstâncias de autor, confundindo

circunstância subjetiva com direito penal de autor.

4.3.1 Relativos ao fato

Este critério comporta as cinco circunstâncias de direito penal de ato:

culpabilidade, motivos, circunstâncias, conseqüências e comportamento da vítima.

4.3.1.1 culpabilidade

551 FERREIRA, Gilberto. Aplicação da pena. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 68 e 71. 552 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.

187 e segs. 553 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral, vol. 1. 6. ed. rev. e atual. São

Paulo: Saraiva, 2000, p. 515 e segs.

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A concepção da culpabilidade como fundamento do juízo de condenação

foi substituída pela da culpabilidade como limitação do poder de punir, isto é, como

elemento de determinação ou medida da pena.554

Estar-se-á então diante daqueles mesmos pressupostos – imputabilidade,

potencial conhecimento da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa – só que

agora para aferir o grau de reprovabilidade na conduta do agente? Entende-se que

não, porque em verdade a culpabilidade – salvo situações excepcionais, em que o

plus de reprovação social da conduta não se encaixe em qualquer das outras

diretivas, como a premeditação do agente - resta esvaziada frente aos demais

parâmetros do artigo 59, caput, do Código Penal, já que para apurar o grau maior ou

menor de reprovabilidade social da conduta a norma põe à disposição do julgador

um amplo leque de balizas.

Com efeito, se a pesquisa recai sobre o que levou o agente a perpetrar o

delito, os motivos permitirão aquilatar o maior ou menor grau de culpabilidade; em se

debruçando sobre a maneira de atuar do réu, as circunstâncias (não especificadas

pelo legislador, o que lhes confere enorme amplitude, pois conforme visto, englobam

quaisquer particularidades em torno da figura básica de um delito qualquer)

socorrerão o julgador; recaindo o exame sobre a extensão do dano causado pelo

crime, aí estão as conseqüências para preencher empiricamente a motivação.555

554 Boschi posiciona-se neste sentido, tanto que, ao iniciar a abordagem das circunstâncias judiciais,

aduz: “a culpabilidade, com o sentido de reprovação ou de censura, não é outra, e sim, a mesma culpabilidade que fundamenta o juízo de condenação.” BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 190 (grifo do autor).

555 Tanto procede esta assertiva, que Ferreira, ao abordar as circunstâncias judiciais, menciona que se destinam a “retratar o grau de culpabilidade por que se houve o agente ao praticar o evento fatídico.” FERREIRA, Gilberto. Aplicação da pena. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 83. Ora, se o conjunto dos fatores enumerados no artigo 59, caput, do Código Penal levam a conduta do agente a ser mais ou menos reprovável, mais ou menos culpável, que conteúdo restou para ser preenchido concretamente pela culpabilidade?

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Não raro vê-se na análise da culpabilidade a utilização de chavões como

“o réu conhecia o caráter ilícito de sua conduta”, “era exigido do agente uma conduta

diversa”. Ora, se ele não tivesse conhecimento do caráter ilícito do fato e/ou não

pudesse lhe ser exigida conduta diferente da que teve, ele sequer poderia ser

destinatário de uma sentença condenatória, quanto mais de uma determinada pena!

Bitencourt manifesta-se neste diapasão:

[...] constitui rematado equívoco, freqüentemente cometido no cotidiano forense, quando na dosagem da pena, afirma-se que “o agente agiu com culpabilidade, pois tinha consciência da ilicitude do que fazia”. Ora, essa acepção de culpabilidade funciona como fundamento da pena, isto é, como característica negativa da conduta proibida, e já deve ter sido objeto de análise juntamente com a tipicidade e a antijuridicidade, concluindo-se pela condenação. Presume-se que esse juízo tenha sido positivo, caso contrário nem se teria chegado à condenação.556

Cirino dos Santos é igualmente enfático em negar a identidade da

concepção de culpabilidade para constituir o juízo de reprovação (fundamento da

pena) e num segundo momento, informar a intensidade do juízo de reprovação

(como um dos critérios para mensurar a pena-base a ser aplicada), no que é

secundado por Nucci:

A culpabilidade como circunstância judicial, introduzida pela reforma penal de 1984 em substituição ao critério da “intensidade do dolo ou grau de culpa” da lei anterior, aparece em posição incômoda: a culpabilidade do autor pela realização do tipo de injusto não é mero elemento informador do juízo de reprovação, mas o próprio juízo de reprovação pela realização do tipo de injusto (o que é reprovado), cujos fundamentos são a imputabilidade, a consciência da antijuridicidade e a exigibilidade de comportamento diverso (porque é reprovado). A definição da culpabilidade como circunstância judicial de formulação do juízo de reprovação constitui impropriedade metodológica, porque o juízo de culpabilidade, como elemento do conceito de crime, não pode ser, ao mesmo tempo, simples circunstância judicial de informação do juízo de culpabilidade.557

556 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral, vol. 1. 6. ed. rev. e atual. São

Paulo: Saraiva, 2000, p. 515 (grifo do autor). 557 SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba:

ICPC; Lumen Juris, 2005, p. 109.

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A culpabilidade, como elemento do crime, já foi analisada, justamente para que o juiz chegasse à conclusão de que o réu merece ser condenado. Logo, não mais tem cabimento cuidar dos requisitos que a compõem, em sentido estrito. Não mais torna o magistrado a discutir imputabilidade, consciência potencial de ilicitude ou exigibilidade de comportamento conforme o Direito, salvo nas hipóteses expressamente autorizadas pelo legislador, mas, ainda assim, no contexto das causas de diminuição da pena – como ocorre com a ocorrência de semi-imputabilidade (art. 26, parágrafo único, CP) e com o erro de proibição inescusável (art. 21, CP).558

Idêntico entendimento extrai-se do trecho do voto abaixo, com base no

qual, à unanimidade, deu-se provimento parcial ao recurso do condenado para

reduzir a sua pena-base de doze para dez anos de reclusão:

[...] Tenho-me oportunizado a chance de dizer que as circunstâncias judiciais, da forma como enxergada pela doutrina mais abalizada, devem ser analisadas segundo o grau de reprovabilidade social da conduta criminosa. Isto é, expressões comumentes utilizadas em sentenças condenatórias como “o réu conhecia o caráter ilícito de sua conduta”, “era exigido do agente uma conduta diversa”, não podem ser justificativas válidas para o aumento da pena, pois constituem circunstâncias comuns a todo e qualquer crime. O que deve prevalecer, pois, na fixação da pena é um plus de reprovação social do delito em análise em relação aos demais delitos do mesmo tipo. [...].559

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de

manifestar-se sobre a questão, concluindo pela ilegalidade da majoração da pena-

base com supedâneo em juízo próprio de etapa precedente ao da individualização

da pena:

[...] III. Individualização da pena: constrangimento ilegal: habeas corpus de ofício. 1. Ausência de constrangimento ilegal na consideração do fato de o recorrente estar respondendo a outros processos, o que, segundo a jurisprudência da Corte, configura maus antecedentes, circunstância não considerada em nenhum outro momento da fixação da pena. 2. Manifesto constrangimento, contudo, decorrente da ilegalidade da majoração da pena-base pela culpabilidade considerada "incisiva", sob o fundamento de que o recorrente era "plenamente imputável, cônscio da reprovabilidade de sua conduta, sendo que outra lhe era exigida", pressupostos do elemento

558 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.

187-188. 559 Trecho do voto do Des. Rel. Alvarino Egídio da Silva Primo. Tribunal de Justiça de Goiás,

Apelação Criminal nº 23475-9/213 (200201760058), Segunda Turma Julgadora da Primeira Câmara Criminal, j. em 31/10/2006.

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subjetivo do crime. 3.Concessão de habeas corpus de ofício, para que o Tribunal a quo proceda a nova fixação da pena, reduzindo-a, como entender de direito. (Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 427.339/GO, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 05/04/2005, DJ 27/05/2005, p. 21) (grifo nosso)

4.3.1.2 motivos do crime

São as forças mais remotas da conduta, pois constituem “a força

psicológica que desencadeia a vontade, acionando a conduta,” se confundindo às

vezes com a finalidade da conduta, como se dá quando o agente furta para obter um

ganho econômico, enquanto em outras hipóteses compreendem situações bem

distintas, que é o que ocorre, exemplificativamente, na hipótese do homicídio

perpetrado por motivo de relevante valor moral, em que o alvo visado pelo agente é

a morte da vítima.560

Embora se concorde com Nucci, quando afirma a impossibilidade de

afastamento do “critério moral” para averiguar se o motivo foi mais ou menos nobre,

menos ou mais repugnante,561 isto não transmuda os motivos em critério relativo ao

autor, pois permanecem fator da atitude interna do agente que se manifesta de

forma imediata sobre a conduta típica.

Caso determinado motivo se encaixe em uma circunstância agravante

(Código Penal, artigo 61, inciso II, alínea a – “ter o agente cometido o crime […] por

motivo fútil ou torpe”), não poderá ele ser valorado a título de circunstância judicial,

dado o seu caráter subsidiário, donde será apreciado na segunda fase da

individualização judicial da pena, salvo se esta motivação integrar uma qualificadora

(hipótese do homicídio qualificado, Código Penal, artigo 121, §2º - “se o homicídio é

560 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte geral - vol. 1. São Paulo: Saraiva,

1991, p. 163. Ou ainda: “o motivo é o que se encontra na base da decisão. Fator propulsor da vontade, que comporta um juízo de maior ou menor censura.” ROSA, Fábio Bittencourt da. A pena e sua aplicação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 668, jun. 1991, p. 248.

561 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 221.

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cometido: I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo

torpe; II – por motivo fútil”), por força do que dispõe o caput do artigo 61 do Código

Penal.

Ademais, se o motivo tipificar uma circunstância atenuante (Código Penal,

artigo 65, inciso III, alínea a – “ter o agente […] cometido o crime por motivo de

relevante valor moral ou social”), será ele sopesado na fase subseqüente à da

fixação da pena-base; há ainda hipóteses em que a motivação é prevista como

causa especial de aumento de pena (exemplos: no crime de induzimento, instigação

ou auxílio a suicídio, a pena é duplicada “se o crime é praticado por motivo

egoístico,” nos termos do artigo 122, parágrafo único, inciso I do Código Penal; no

delito de redução a condição análoga à de escravo, a pena é aumentada de metade,

caso cometido “por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem,”

conforme o disposto no artigo 149, §2º, inciso II do Código Penal), quando, então,

somente poderá ser levado em consideração na terceira fase da dosimetria da pena.

Estas observações se prestam para não incidir o julgador no vedado bis in

idem.

4.3.1.3 circunstâncias do crime

Como o termo circunstância na temática da aplicação da pena se presta

para designar situações legais diversas - nominar as diretivas do artigo 59, caput

como um todo (circunstâncias judiciais), açambarcar as hipóteses configuradoras

das agravantes e atenuantes (circunstâncias legais), causas de aumento e

diminuição da reprimenda -, já que seu sentido alcança tudo o que está em redor

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das elementares do tipo, poderia o legislador, para evitar eventuais confusões no

uso do vocábulo, ter aqui utilizado a expressão “particularidades do fato.”562

Compreendem, dentre outras, “os meios e o local do crime, o tempo de

sua duração, as relações entre autor e vítima, a atitude manifestada durante a

conduta delituosa (insensibilidade, indiferença, frieza, comoção, arrependimento),”563

mas desde que este dado acessório não configure expressamente alguma outra

modalidade de circunstância, que por imposição legal, há de ter seu exame

postergado para as fases subseqüentes de fixação da pena, exatamente para evitar

a dupla valoração sobre um mesmo fato e dada a natureza subsidiária das

circunstâncias judiciais.

Assim, por exemplo, se há o “emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura

ou outro meio insidioso ou cruel” (meios do crime), tais maneiras de agir, porque

previstas expressamente como agravante (Código Penal, artigo 61, inciso II, alínea

d), somente serão valoradas na segunda fase de fixação da pena, não a título de

circunstância do crime (primeira etapa); se o abandono de incapaz se dá “em lugar

ermo” (local do crime), este dado não pode ser sopesado a título de circunstância do

crime, já que previsto como causa especial de aumento (Código Penal, artigo 133,

§3º, inciso I); idêntico raciocínio se aplica quando, no crime de seqüestro e cárcere

privado, “a privação da liberdade dura mais de 15 (quinze) dias” (duração do evento

– Código Penal, artigo 148, §1º, inciso III); se um crime de roubo em residência é

perpetrado durante o repouso noturno de seus moradores, esta singularidade do fato

deverá ser apreciada a título de circunstância do crime, porém, se a conduta de 562 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 214. 563 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte geral - vol. 1. São Paulo: Saraiva,

1991, p. 164. Boschi apresenta, dentre outros exemplos, “a prática de crime violento em meio à multidão, gerando perigo para muitas pessoas; [...] a prática de crime com ousadia, ou com emprego de equipamentos altamente sofisticados, indicando profissionalismo. BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 215.

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subtração de coisa alheia móvel com ânimo definitivo não envolver violência à

pessoa, aquela mesma circunstância somente terá lugar na valoração judicial na

terceira fase, vez que consignada como causa especial de aumento do crime de

furto (Código Penal, artigo 155, §1º), e assim por diante.

Vale ainda ressaltar que se qualquer característica do fato – como uma

especial relação entre autor e vítima – vier prevista como elementar do crime, jamais

poderá ser valorada a título de circunstância do crime para exasperar a pena-base,

já que o integra. É o que se dá com a descrição da conduta configuradora do crime

de abandono de incapaz (Código Penal, artigo 133), pois caso o abandono pelo

autor não recair em pessoa que esteja sob seu cuidado, guarda, vigilância etc, a sua

conduta não mais se encaixará no referido tipo penal, daí não se tratar de dado

acessório (o mesmo raciocínio pode ser desenvolvido para o crime de maus tratos –

Código Penal, artigo 134).564

4.3.1.4 conseqüências do crime

Refere-se à extensão do dano (material ou moral) causado pela violação

do bem jurídico tutelado pelo legislador. Desta forma, comportam graus diversos a

este título “o estupro de maior de idade, e de menor, ainda que não criança, com as

implicações de ordem psicológica no desenvolvimento da personalidade da

vítima.”565

564 Ainda para ilustrar a vedação suscitada: se em um crime de extorsão mediante seqüestro a vítima

contar menos de 18 anos de idade, esta sua singularidade revela-se inidônea para exasperar a pena-base como circunstância desfavorável, porquanto já vem prevista como uma das situações geradoras da tipicidade derivada (Código Penal, art. 159, §1º), cujo ponto de partida punitivo é exasperado em um terço (mínimo de doze anos de reclusão) com relação ao tipo fundamental do caput (mínimo de oito anos de reclusão).

565 ROSA, Fábio Bittencourt da. A pena e sua aplicação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 668, jun. 1991, p. 248.

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Obviamente que aí se inserem unicamente os desdobramentos da

conduta que transcendem o próprio fato típico, sob pena de incorrer o magistrado no

intolerável bis in idem, como anota Boschi:

Inviável na dosimetria da pena-base do homicídio valoração negativa das conseqüências, porque a morte da vítima é condição para que o tipo se perfectibilize; a incapacidade para o trabalho não pode ser considerada como circunstância judicial no crime de lesões corporais gravíssimas (art. 129, §2º, inciso I) porque integra o tipo; no infanticídio, o estar a vítima à mercê da ré é circunstância tida como natural ao delito. Já o desamparo da prole; os inconvenientes dos reiterados tratamentos médicos para correção ou eliminação da grave perturbação emocional da vítima podem ser perfeitamente considerados.566

Em tempos de mensalões e mensalinhos, máfia dos sanguessugas e

tantos outros escândalos envolvendo altas e diferenciadas esferas do poder,

partilha-se do entendimento de Greco, no sentido de que nesta modalidade

criminosa assume especial relevo o sopesamento das conseqüências do delito pela

amplitude dos estragos causados à sociedade:

Os crimes contra a Administração Pública, em nossa opinião, encontram-se no rol daqueles cujas conseqüências são as mais nefastas para a sociedade. Os bandidos de colarinho branco, funcionários de alto escalão na Administração Pública, políticos inescrupulosos e tantos outros que detêm uma parcela do poder, quando efetuam suas subtrações dos cofres públicos causam verdadeiras devastações no seio da sociedade. Escolas deixam de receber merendas, hospitais passam a funcionar em estado precário, obras deixam de ser realizadas, a população miserável perece de fome, enfim, são verdadeiros genocidas, uma vez que causam a morte de milhares de pessoas com suas condutas criminosas.567

4.3.1.5 comportamento da vítima

Até o advento da reforma da Parte Geral do Código Penal, o

comportamento da vítima não figurava dentre as circunstâncias judiciais, merecendo

566 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 215. 567 GRECO, Rogério. Curso de direito penal: volume I (Parte Geral). 7. ed. Rio de Janeiro: Impetus,

2006, p. 606-607.

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consideração como atenuante,568 além de figurar esparsamente na Parte Especial

do Código de 1940, por exemplo, como privilegiadora no crime de homicídio569 e

causa geradora de perdão judicial na injúria.570 Nas duas primeiras hipóteses o

comportamento da vítima não poderá ser sopesado para auxiliar o processo de

individualização da pena-base, porque as circunstâncias judiciais sempre têm

caráter subsidiário, somente incidindo caso o componente não se enquadre em

outra modalidade de circunstância.

Ausente a hipótese comentada, sob esta circunstância analisar-se-á se o

comportamento da vítima, de alguma forma, contribuiu ou não para o cometimento

da infração penal.

Se contribuiu, será considerado em benefício do réu; em caso negativo,

pesará em desfavor do acusado. Carvalho Neto lembra que a maioria da doutrina

aborda esta circunstância sempre sob a ótica de favorecer o acusado –

comportamento da vítima como fato propiciador da atividade criminosa -, quando

comporta igualmente o exame da não-contribuição da vítima, apto a exasperar a

pena-base.571

Talvez esta visão parcial da circunstância encontre explicação pela

terminologia empregada na Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código

Penal (Lei nº 7.209, de 11/07/1984), que aborda a novidade do comportamento da

vítima apenas como passível de incentivar a conduta criminosa, não desestimulá-la:

568 Artigo 48 do Código Penal de 1940: “São circunstâncias que sempre atenuam a pena: [...] IV – ter

o agente: [...] c) cometido o crime [...] sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima.” PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed., 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 447-448. Esta hipótese foi recepcionada pela nova Parte Geral do Código Penal (artigo 65, inciso III, alínea c).

569 Código Penal, artigo 121, §1º: “Se o agente comete o crime […] sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.”

570 Código Penal, artigo 138, §1º: “O juiz pode deixar de aplicar a pena: I – quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria.”

571 CARVALHO NETO, Inácio de. Aplicação da pena. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 56.

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Fez-se referência expressa ao comportamento da vítima, erigido, muitas vezes, em fator criminógeno, por constituir-se em provocação ou estímulo à conduta criminosa, como, entre outras modalidades, o pouco recato da vítima nos crimes contra os costumes.

4.3.2 Relativos ao autor

Estes elementos, “ao estabelecerem valoração eminentemente moral,

ferem o postulado ilustrado da secularização.”572

Boschi discorda, porque é exatamente o exame de todas as

circunstâncias judiciais que fornecerá o panorama completo do fato (comportamento

e seu autor), permitindo ao juiz ajustar a culpabilidade ao homem de carne e osso

que está sendo apenado, e destarte, concretizando o princípio da igualdade de

todos perante a lei e o princípio da individualização da pena.573

O juiz realmente deve levar em consideração todas as particularidades do

fato, pois isto é individualizar a pena, mas para ajustá-la àquele homem concreto o

que interessa é o que diz de perto com o delito praticado e desde que passível de

comprovação empírica. Assim, se o agente é dado à prática de crimes, se não

possui emprego, se bate na mulher, nada disso deve ser valorado negativamente,

porque em nada interessa para apurar o grau de censuralidade do agente por um

outro fato concreto e pelo qual está sendo julgado. Utilizando uma expressão que os

juízes adoram – “a insensibilidade moral com que o agente atuou” – digamos, num

crime de estupro: se no caso concreto, as provas demonstram que o agente

extrapolou no sofrimento infligido à vítima (isto é, superou o sofrimento inerente à

própria conduta de manter conjunção carnal não consentida com uma mulher, se é 572 CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito e garantismo:

considerações a partir do princípio da secularização. In: CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. Primeira parte, p. 32.

573 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 188.

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que passível de medição), este plus somente poderá ser valorado a título de

circunstância do crime, não para denotar “personalidade fria e calculista”, pois o juiz

não dispõe de dados, nem formação para elaborar este juízo. Num crime de furto,

por exemplo, que relevância tem para o fato em si ele possuir outras condenações,

ainda por crimes contra o patrimônio (antecedentes)?

Em suma, os antecedentes, a conduta social e a personalidade são

conceitos extremamente fluídicos, que antes funcionam para justificar penas

arbitrárias, do que para individualizar uma pena minimamente legítima, servindo na

maioria das vezes para predeterminar um juízo de condenação. Com efeito, não

raras vezes é tão forte a impressão que os antecedentes, a personalidade e a

conduta social causam no espírito do julgador, que a sua resolução íntima pela

opção condenatória vem determinada basicamente por estes vetores.

Reiterando o entendimento pela inconstitucionalidade dos três vetores –

antecedentes, conduta social e personalidade -, tecem-se algumas considerações a

respeito de cada um, com a intenção de traçar-lhes contornos minimamente

aceitáveis, com destaque para os antecedentes.

4.3.2.1 antecedentes

O conceito de antecedentes sofreu uma redução na sua abrangência com

a entrada em vigor da nova Parte Geral do Código Penal, pois até então

compreendia ele os antecedentes propriamente ditos e a conduta social.574 Não se

afirma aqui tratar-se de uma relação de gênero (antecedentes) e espécie (conduta

social), até porque a conduta social demanda avaliação mais aberta, mas apenas se

quer reforçar a limitação do alcance dos (maus) antecedentes.

574 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte geral - vol. 1. São Paulo: Saraiva,

1991, p. 162.

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São considerados antecedentes (desabonadores ou não), como o próprio

termo indica, apenas os “acontecimentos anteriores ao fato, relevantes como

indicadores de aspectos positivos ou negativos da vida do autor e capazes de

influenciar a aplicação da pena.”575

As divergências doutrinárias e jurisprudenciais situam-se na acepção dos

maus antecedentes (extraindo-se, por via de conseqüência, o conceito de bons

antecedentes por exclusão). Não se trata de qualquer acontecimento pretérito da

vida do réu, cingindo-se aos fatos penais, sob pena de associarem-se os mesmos

elementos valorativos aqui e no exame da conduta social.576 Em suma, trata-se da

“sua vida pregressa em matéria criminal.”577

Ainda na tentativa de traçar-lhe contornos mais restritos, há de se

responder à indagação: adentram no conceito de antecedentes desabonadores

todos os fatos registrados na folha penal do réu, ou apenas aquelas situações

jurídicas já definitivamente esclarecidas em seu desfavor? A respeito do tema, Cirino

dos Santos aponta duas posições, as quais refletem, respectivamente, o

amesquinhamento de princípios constitucionais e a sua máxima efetividade:

[...] 1) a posição tradicional considera maus antecedentes a existência de inquéritos instaurados, de processos criminais em curso, de absolvições por insuficiência de provas, de extinção do processo por prescrição abstrata, retroativa ou intercorrente e de condenação criminal sem trânsito em julgado ou que não constitui reincidência; 2) a posição crítica considera

575 SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba:

ICPC; Lumen Juris, 2005, p. 111. 576 Apesar do claro desdobramento legal operado entre antecedentes e conduta social, exatamente

para permitir que o processo de individualização da pena-base seja o mais transparente possível, não raro se vê a confusão entre os dois parâmetros, contaminando os antecedentes com valorações que pertinem à conduta social. Cita-se, a título de exemplo: “[...] na análise dos antecedentes deve ser levado em consideração tudo aquilo que aconteceu de positivo e de negativo na vida do réu antes do fato. O bom comportamento no meio em que vive. As boas ações que realizou.” FERREIRA, Gilberto. Aplicação da pena. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 84. Confira-se também: FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 336-337.

577 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 197.

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maus antecedentes somente condenações criminais definitivas anteriores que não configuram reincidência, excluindo todas as outras hipóteses.578

Para os partidários da primeira corrente, ampliadora do conceito de maus

antecedentes, não há violação à Constituição porque o legislador ordinário quer que

o juiz investigue a este título a maior ou menor propensão do réu para delinqüir, sem

levar em consideração se ele é ou não culpado. Desta forma, todas aquelas

ocorrências ainda não definidas, somada à sentença condenatória irrecorrível não

configuradora da reincidência, porque indicativas da maior periculosidade do

condenado (ou “a maior afinidade do réu com a prática delituosa,” eufemismo

utilizado por Bitencourt),579 revelam-se idôneas para majorar a pena-base a título de

maus antecedentes. Tanto foi esta a intenção do legislador, que ele reservou para a

etapa subseqüente apenas a reincidência (que pressupõe uma sentença

condenatória transitada em julgado anteriormente à prática do delito ora objeto de

sentenciamento), deixando no espectro dos antecedentes, destarte, todas as demais

ocorrências que ali não se encaixem, pois caso contrário teria utilizado no artigo 59,

caput, do Código Penal “condenações anteriores irrecorríveis”, não um termo mais

elástico como “antecedentes”.580

Veja-se que os argumentos utilizados partem sempre da legislação

ordinária – artigo 59, caput, do Código Penal – cuja última alteração data de 1984,

578 SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba:

ICPC; Lumen Juris, 2005, p. 111-112 (grifo do autor). Filiam-se à primeira teoria: COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte geral - vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 162; FERREIRA, Gilberto. Aplicação da pena. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 84-85. Além do autor citado diretamente, defendem o posicionamento crítico: CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito e garantismo: considerações a partir do princípio da secularização. In: CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, primeira parte, p. 49-50; BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 201-202; NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 199; SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 305-306.

579 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral, vol. 1. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 516.

580 Ibid., p. 516. Em edições mais recentes o autor mudou a sua posição.

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anterior, portanto, à Constituição Federal vigente, para então concluírem pela sua

não-violação. Será que não ouviram falar da supremacia da Constituição e da sua

máxima efetividade, ambos princípios interpretativos específicos das normas

constitucionais?

Os defensores da teoria crítica apresentam como suporte principal o

princípio da presunção de inocência, insculpido no artigo 5º, inciso LVII, da

Constituição Federal, mediante o qual “ninguém será considerado culpado até o

trânsito em julgado de sentença penal condenatória,”581 a vigorar com a mesma

intensidade independentemente da natureza do crime atribuído à pessoa em

decorrência do princípio constitucional da isonomia (artigo 5º, caput), já que em

momento algum a Lei Fundamental distingue entre mais-inocente e menos-

inocente.582

Adota-se aqui a teoria crítica, prestigiando sem reservas o princípio da

presunção de inocência, segundo o qual a alteração do status jurídico do

interessado somente opera-se com o advento de uma sentença condenatória

irrecorrível: “ele era inocente antes do indiciamento, continuou inocente depois da

denúncia e assim ficou até a decisão final, pois só uma decisão final condenatória

alteraria esse status.”583

Com esta visão principiológica fica fácil refutar a pretensão ampliativa

acerca dos antecedentes: inquéritos e/ou ações penais ainda em tramitação nada

mais são do que hipóteses de trabalho, cuja conclusão ainda se desconhece,

podendo ser ou não favoráveis ao réu ora destinatário da sentença condenatória; 581 Princípio que já integrava, há mais de um século, a Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão (1789) e que não se confunde, como pensam muitos juízes, com a mera presunção de não-culpabilidade (de alcance mais restrito), própria do discurso fascista, que considerava a liberdade individual como uma mera concessão do Estado e de acordo com o interesse da coletividade, conforme: SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 288.

582 Ibid., p. 296. 583 Ibid., p. 302.

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sentença absolutória em outro processo significa que o Estado não conseguiu

comprovar a veracidade dos fatos atribuídos ao acusado, e, transitada em julgado,

porquanto benéfica ao processado, não admite reforma.584 Em todas estas situações

o estado de inocência permanece íntegro, independentemente dos motivos que

levaram a uma não-condenação definitiva do réu pelo Estado.

Ancorando o entendimento de que ações penais em andamento não

configuram maus antecedentes:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PACIENTE CONDENADO POR CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ALEGADA NULIDADE NA DOSIMETRIA DA PENA. Impossibilidade de considerar-se como maus antecedentes a existência de processos criminais pendentes de julgamento, com o conseqüente aumento da pena-base. Recurso parcialmente provido para, mantida a condenação, determinar que nova decisão seja proferida, com a observância dos parâmetros legais. (Supremo Tribunal Federal, Recurso em Habeas Corpus nº 83.493/PR, Primeira Turma, Rel. p/ acórdão Min. Carlos Britto, j. em 04/11/2003, DJ 13/02/2004, p. 14).

No sentido de condenações anteriores, quando não passíveis de incidir a

título de reincidência, poderem ser consideradas como maus antecedentes:

EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PACIENTE CONDENADO POR ROUBO, EM REGIME INICIAL FECHADO. ALEGADO CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONSISTENTE NA APLICAÇÃO DE PENA ACIMA DO MÍNIMO EM FACE DE CONDENAÇÕES ANTERIORES, CONSIDERADAS A TÍTULO DE MAUS ANTECEDENTES, PORQUANTO TRANSCORRIDO O PRAZO DA PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL DA REINCIDÊNCIA. PRETENSÃO DE REDUZIR-SE A CONDENAÇÃO AO MÍNIMO LEGAL PREVISTO, COM A FIXAÇÃO DO REGIME ABERTO. O Supremo Tribunal Federal tem entendimento pacificado quanto à possibilidade de a condenação criminal que não pôde ser considerada para o efeito de reincidência - em face do decurso do prazo previsto no art. 64, inciso I, do CP -, ser considerada a título de maus antecedentes quando da análise das circunstâncias judiciais na dosimetria da pena. Precedentes. [...]

584 “quando se dá a absolvição, isso significa que o Estado não logrou demonstrar que os incômodos

produzidos ao acusado tinham algum fundamento. Se houvesse esse fundamento, certamente o réu teria sido condenado. Ou seja: o Estado, que não conseguiu obter a procedência da ação no processo anterior, ‘vinga-se’ do mesmo acusado, adicionando à pena do segundo fato, agora provado, algo por conta do processo anterior (no qual, repita-se, esses mesmos fatos não lograram ser comprovados)!” SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 307.

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Recurso ordinário desprovido. (Supremo Tribunal Federal, Recurso em Habeas Corpus nº 83.547/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, j. em 21/10/2003, DJ nº 221, de 14/11/2003, p. 24).

Não são poucos, no entanto, os argumentos constitucionais para paralisar

no tempo os efeitos destes maus antecedentes, à semelhança do que ocorre com o

período de purgação da reincidência (Código Penal, artigo 64, inciso I), cuja

aplicação por analogia se impõe. Ora, a Constituição Federal veda a pena perpétua

por afrontosa ao princípio humanitário, o que significa não conviver o nosso modelo

político-jurídico com qualquer conseqüência penal perene, que estigmatize ad

perpetum a pessoa destinatária da atividade repressiva estatal. Como para os

antecedentes não caracterizadores da reincidência a legislação penal é silente sobre

o espaço temporal durante o qual repercutirão, lança-se mão do artigo 64, inciso I,

que considerou o prazo de cinco anos um lapso seguro para denotar uma

criminalidade meramente ocasional.585

4.3.2.2 conduta social

Segundo Costa Júnior, não se trata de um novo componente

individualizador da reprimenda, mas um simples desdobramento dos antecedentes

do Código Penal de 1940, devendo ser entendido como

[...] o papel que o acusado teve em sua vida pregressa, na comunidade em que se houver integrado. Se foi um homem voltado ao trabalho, probo, caridoso, altruísta, cumpridor dos deveres, ou se transcorreu os seus dias ociosamente, exercendo atividades parasitárias ou anti-sociais. Será ainda considerado o comportamento do agente na família, no ambiente de trabalho, de lazer ou escolar. Alguns se adaptam às normas de convivência

585 CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito e garantismo:

considerações a partir do princípio da secularização. In: CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, primeira parte, p. 51-53; BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 203.

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social, outros reagem, manifestando condutas de agressividade ou inconformismo.586

A acepção conferida pelo doutrinador permite concluir, sem grandes

dificuldades, que o condenado somente terá valorada positivamente a sua conduta

social, se revelar qualidades superiores à maioria absoluta dos homens, beirando a

santidade!

Separado dos antecedentes, não pode o juiz pinçar alguma(s) das

condenações não caracterizadoras da reincidência e considerá-la como conduta

social censurável (o mesmo valendo para vedar a valoração negativa como

reveladora de personalidade voltada para a prática de crimes, expressão tão grata à

parcela da magistratura).

Greco bem distingue uma circunstância judicial da outra:

[...] conduta social é diferente de antecedentes criminais, pois a primeira é a análise do comportamento do agente diante da sociedade “afastando tudo aquilo que diga respeito à pratica de infrações penais”; por isso os antecedentes criminais não podem ser amoldados na figura da conduta social. [...] Pode acontecer, até mesmo, que alguém tenha péssimos antecedentes criminais, mas, por outro lado, seja uma pessoa voltada à caridade, com comportamentos filantrópicos e sociais invejáveis.587

Tal constatação reforça a tese de que o modo de ser do agente no

mundo, além de não guardar relação passível de verificação com o fato criminoso,

presta-se somente para utilizá-lo como pretenso exemplo a não ser seguido pelos

demais membros da comunidade.

Vetando a consideração negativa da conduta social (e da personalidade)

porque invasiva da esfera do ser do agente: 586 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte geral - vol. 1. São Paulo: Saraiva,

1991, p. 163. 587 GRECO, Rogério. Curso de direito penal: volume I (Parte Geral). 7. ed. Rio de Janeiro: Impetus,

2006, p. 603.

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FURTO. ATENUANTE: PODE DEIXAR A PENA AQUÉM DO MÍNIMO. ANTECEDENTES: PROCESSOS EM ANDAMENTO NÃO O SÃO AGRESSÃO AO ESTADO DE INOCÊNCIA. PERSONALIDADE E CONDUTA SOCIAL: NÃO PODEM VIR CONTRA O CIDADÃO. INVASÃO À INTIMIDADE. Deram provimento (unânime). (Apelação Crime Nº 70014670822, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 10/05/2006).

4.3.2.3 personalidade

Segundo Costa Júnior, tal diretiva guarda íntima vinculação com a

conduta social, pois é o meio social que envolve o agente o responsável pela

pressão que o fará reagir “de forma passiva ou agressiva.”588

Não há como concordar com esta definição(?) simplista, pois delimitar

razoavelmente os contornos da personalidade é tarefa da qual sequer psicólogos e

psiquiatras conseguiram se desincumbir a contento.

Popularmente, personalidade acaba por se confundir com caráter ou

temperamento (ambos são em verdade componentes da personalidade), consistindo

“na impressão mais destacada ou saliente que o indivíduo cria nos outros.”589 Aliás,

é neste sentido vulgar que grande parte dos julgados termina por avaliar a

personalidade do acusado:

[...] de um modo geral, da leitura das sentenças e dos acórdãos, fácil é a percepção de que os membros do Poder Judiciário, em cumprimento à dicção do artigo 59 do CP, limitam-se a fazer afirmações genéricas do tipo “personalidade ajustada”, “desajustada”, “agressiva”, “impulsiva”, “boa” ou “má”, afirmações que nada dizem tecnicamente, salvo em nível de temperamento ou de caráter.590

588 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte geral - vol. 1. São Paulo: Saraiva,

1991, p. 163. 589 CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito e garantismo:

considerações a partir do princípio da secularização. In: CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, primeira parte, p. 55.

590 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 207. Sequer preenchem o postulado da motivação da sentença.

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Dentre as três circunstâncias judiciais relativas ao autor (ao direito penal

de autor), a personalidade é inegavelmente a que apresenta a maior dificuldade de

controle racional de sua valoração pelo juiz, vez que a mais complexa, a mais

dinâmica, cuja mínima compreensão requer conhecimentos nas áreas da

antropologia, psicologia, psiquiatria etc, porque engloba todos os traços emocionais

e comportamentais caracterizadores do indivíduo em sua vida diária, desde que em

condições normais.591

Só esta universalidade a ser trabalhada evidencia as dificuldades – até o

momento insuperáveis – de o juiz aquilatar, de forma minimamente responsável, a

personalidade do réu, até porque inviável o estabelecimento de um padrão de

personalidade aprioristicamente, destinado a servir de comparação.592

Todavia, mais interessante do que a constatação da inexistência de

condições mínimas para o julgador estabelecer um juízo sobre a personalidade do

réu, é reafirmar, que embora fosse outra a realidade a respeito daquela carência de

meios, persistiria a ilegitimidade de sua valoração, porquanto violadora do princípio

da secularização, um dos pilares do modelo republicano brasileiro, e, por via de

conseqüência, de um direito penal típico de um Estado Democrático de Direito,

como já assentou, em mais de uma oportunidade, o Tribunal de Justiça do Estado

do Rio Grande do Sul, merecendo aqui menção a ementa da lavra do

Desembargador Amilton Bueno de Carvalho, por açambarcar, na mesma

oportunidade, os limites impostos ao julgador no exercício do seu livre

convencimento:

591 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. rev. atual. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 205-207. 592 Ibid., p. 209.

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PENAL. PROCESSUAL PENAL. [...] SISTEMA ACUSATÓRIO. LIMITES DEMOCRÁTICOS AO LIVRE CONVENCIMENTO. PENA. DOSIMETRIA. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS. PERSONALIDADE. INACEITÁVEL NO SENTIDO PERSECUTÓRIO, EM RESPEITO AO PRINCÍPIO DA SECULARIZAÇÃO, VALORAÇÃO NEGATIVA DOS ANTECEDENTES. INCONSTITUCIONALIDADE. - O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL, NO SISTEMA JURÍDICO PENAL DEMOCRÁTICO (FATALMENTE ACUSATÓRIO), E REGIDO POR PRINCÍPIOS PRIMÁRIOS: IMPARCIALIDADE, JUIZ NATURAL, INÉRCIA DA JURISDIÇÃO. ALÉM DE OUTROS, DE CUNHO PROCESSUAL, INTIMAMENTE LIGADOS AOS PRIMEIROS, COMO DO CONTRADITÓRIO, E DO LIVRE CONVENCIMENTO, QUE TEM AINDA OUTROS COMO PRESSUPOSTOS: PUBLICIDADE, ORALIDADE, EQUIDISTÂNCIA, ETC. - NESTE SENTIDO, NÃO HÁ QUE SE FALAR EM LOCAL DE ATUAÇÃO PRIVATIVA, PESSOAL, OFICIOSA, QUE DENOTE QUALQUER EXCESSO DE SUBJETIVISMO. O TRABALHO DO JUIZ DEVE – EM OBSERVAÇÃO AOS LIMITES PRINCIPIOLÓGICOS A ELE IMPOSTOS – SER REALIZADO DE FORMA QUE EVITE, AO MÁXIMO, ESPAÇOS TEMERÁRIOS, ABERTOS A ARBITRARIEDADE E A INJUSTIÇA: [...]. - NESTA DIRECAO, EIS, EM SUMA, O ASPECTO QUE SE PRETENDE AQUI REFORÇAR: O CONVENCIMENTO SÓ ATINGE CERTO GRAU DE LIBERDADE, QUANDO ALCANÇADO POR MEIO DE INSTRUMENTO DEMOCRÁTICO. NA ESPÉCIE, O AMBIENTE CONTRADITÓRIO! SEM ELE A CONVICÇÃO – MARCADA PELA INQUISITORIEDADE – JAMAIS SERÁ LIVRE E A DEMOCRACIA DESAPARECE! - A VALORAÇÃO NEGATIVA DA PERSONALIDADE É INADMISSÍVEL EM SISTEMA PENAL DEMOCRÁTICO FUNDADO NO PRINCÍPIO DA SECULARIZAÇÃO: ‘O CIDADÃO NAO PODE SOFRER SANCIONAMENTO POR SUA PERSONALIDADE - CADA UM A TEM COMO ENTENDE’. - OUTROSSIM, O GRAVAME POR VALORAÇÃO DOS ANTECEDENTES É RESQUÍCIO DO INJUSTO MODELO PENAL DE PERICULOSIDADE E REPRESENTA ''BIS IN IDEM'' INADMÍSSIVEL EM PROCESSO PENAL GARANTISTA E DEMOCRÁTICO: CONDENA-SE NOVAMENTE O CIDADÃO-RÉU EM VIRTUDE DE FATO PRETÉRITO, DO QUAL JA PRESTOU CONTAS. [...] (Apelação Crime nº 70004496725, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 07/08/2002) (grifo nosso)

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CONCLUSÃO: REPENSANDO O ARTIGO 59 DO CÓDIGO PENAL PARA A

FIXAÇÃO DA PENA-BASE PRIVATIVA DE LIBERDADE

Restou assentado ao longo do trabalho que a fórmula política adotada

pela República Federativa do Brasil e seu núcleo substancial limitam o poder

jurisdicional em seu aspecto mais contundente, qual seja, o exercício do poder

punitivo.

Apesar do instrumental constitucional posto à disposição do julgador, a

práxis jurisdicional está a gritar o longo caminho a ser ainda percorrido para que o

arcabouço constitucional garantístico alcance a sua plena efetividade. No entanto,

tal constatação, longe de desanimar os atores jurídicos, há de servir de perene

estímulo a um redimensionamento do direito penal e processual penal, não mais

como instrumentos de força simbólica a reafirmar a autoridade, mas sim, como

mecanismos de tutela das liberdades do indivíduo, erigido pela Constituição Federal

como o protagonista da vivência social.

Para alcançar este delicado equilíbrio entre autoridade-liberdade no curso

de uma relação processual penal que culmine com a aplicação de uma pena

privativa de liberdade, exige-se do magistrado uma tomada de posição perante a

vida e o Direito, vedando-lhe a aplicação acrítica do ordenamento, distante da

realidade dos homens a que ele se destina, no caso, o acusado, em franca

desvantagem perante o sistema penal.

Uma bússola razoavelmente segura para alcançar este desiderato é a

presença no julgador de um sentimento constitucional, de uma vontade de

Constituição, que pressupõe sua permanente atualização enquanto obra aberta que

é a novos valores, mas, sobretudo, que seja a sua carga axiológica o ponto de

partida e chegada de toda interpretação – aqui no sentido de redefinição – de todo e

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qualquer instituto objeto de normas infraconstitucionais, pois somente assim será

razoável e racionalmente contido o poder jurisdicional.

Trazendo tais ponderações para a realidade normativa do artigo 59, do

Código Penal (cuja redação é anterior à ordem constitucional vigente), naquilo que

diz respeito especificamente à fixação da pena-base privativa de liberdade – as

circunstâncias judiciais enumeradas no seu caput -, duas alternativas se

apresentam, uma de lege lata, outra de lege ferenda.

A primeira requer uma nova maneira de interpretá-lo. Para tanto, reforça-

se inicialmente que o manejo pelo juiz dos oito critérios ali estabelecidos, não pode

tangenciar o campo do arbítrio, pois vigora no sistema processual brasileiro a

discricionariedade regrada ou vinculada, reforçada pela obrigatoriedade

constitucional de fundamentar qualquer opção com carga decisória. E motivar, não é

limitar-se a aplicar o direito que entende cabível ao caso concreto, um mero

silogismo, mas antes um exercício argumentativo lastreado em dados concretos

passíveis de refutação. Não se pode negar, entretanto, que resta ainda ao julgador

nesta seara uma ampla margem de discricionariedade, quer em decorrência da

amplitude entre as margens mínima e máxima punitivas previstas em abstrato, quer

em razão dos elementos abertos previstos naquele dispositivo. É sobre este saldo

discricionário que o novo esforço interpretativo se debruça – sem a intenção de

extirpar o poder criador do juiz -, mediante o manuseio articulado do direito penal de

ato e a teoria unificadora dialético-preventiva de Roxin.

Pois bem, o direito penal de ato, enquanto voltado para o fato praticado

pelo agente, e não para o agente do fato, restringe a resposta penal ao fato

individual e objetivamente considerado, vedando a valoração negativa de qualquer

critério atinente à forma de condução de vida do acusado, que no espectro do artigo

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59, caput, do Código Penal, alcança os antecedentes, a conduta social e a

personalidade do agente.

Ao sustentar que a pena serve aos fins de prevenção especial e geral

(aquela prevalecendo sobre esta), mas que tais finalidades encontram seu limite

máximo intransponível na medida da culpabilidade (elemento pinçado da teoria

retributiva, porém em relação de dependência com as necessidades preventivas)

Roxin autoriza concluir que os fins preventivos (aí se inserem os parâmetros

passíveis teoricamente de denotar a periculosidade do agente, novamente os seus

antecedentes, a sua conduta social e personalidade) somente podem ser invocados

para rebaixar a pena da medida da culpa, e não ir além desta medida.

Neste passo, antecedentes, conduta social e personalidade do acusado

nunca podem ser sopesados negativamente. Como a pena-base parte do mínimo

legal, sob pena de dúplice violação a princípios constitucionais – invertendo de

maneira intolerável o da presunção de inocência e violando o da culpabilidade, que

repele qualquer agravação de pena despida de argumentação calcada em dados da

realidade dos autos -, essas três diretrizes não podem igualmente pesar a favor do

condenado, porquanto o inciso II, do artigo 59, obriga que a quantidade da pena-

base não extrapole, para menos ou para mais, os limites cominados em cada

preceito sancionador, não esquecendo, além disso, que as circunstâncias judiciais

não se compensam.

Na prática, portanto, o juiz irá simplesmente operar com as cinco diretivas

do direito penal de ato – culpabilidade do agente (que se entende esvaziada de

conteúdo, porque acaba por ser preenchida pelas outras quatro), motivos,

circunstâncias e conseqüências do crime, e o comportamento da vítima,

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descartando as três atinentes ao direito penal de autor, sustentando-as

inconstitucionais por violadoras dos princípios da secularização e da culpabilidade.

Fica assim preservada a supremacia constitucional e opera-se um direito

penal punitivo consentâneo com os desdobramentos próprios de um Estado

Democrático de Direito. O mínimo a exigir-se do julgador, para tanto, é que não

interprete as normas jurídicas de forma estática e neutra, pois o que irá determinar o

seu grau de aptidão para efetivamente resolver os conflitos de interesses próprios da

vida em sociedade é exatamente a sua aplicação jurisdicional, atividade que

pressupõe um comprometimento com a realidade em que as normas são inseridas.

Repensando o próprio texto do artigo 59, agora na alternativa de lege

ferenda, propõe-se uma nova redação, em que a fixação da pena-base passa a

englobar duas operações: primeiramente, o juiz sopesará apenas as diretrizes

próprias de um direito penal de ato, quais sejam, aqueles fatores da atitude interna

do agente que se manifestam de forma imediata na conduta típica – motivos,

circunstâncias e conseqüências do crime, além do comportamento da vítima -, aqui

abrigadas sob o critério genérico da culpabilidade, mas devidamente demarcado,

valorando-as positiva ou negativamente; num segundo momento e caso a pena-

base tenha sido fixada acima do mínimo legal, faculta-se ao juiz mitigá-la através do

manejo das circunstâncias ligadas ao direito penal de autor – antecedentes, conduta

social e personalidade -, quando, pela especial e positiva maneira de ser do

acusado, aquele quantum estabelecido provisoriamente (apenas a título de

retribuição pela culpabilidade) revelar-se exacerbado perante as finalidades

preventivo-especial e geral da pena.

Desta forma, ainda adotando como marcos teóricos o direito penal de ato

e a teoria sobre as finalidades da pena de Roxin, segue-se a proposição:

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Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade pelo ato objetivamente

considerado, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação

do crime:

[...]

Parágrafo único. Observado o disposto no inciso II, poderá o juiz, levando

em consideração exigências preventivas, reduzir a pena-base pelos antecedentes,

conduta social e personalidade do agente.

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