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Cristiano Brandão Vecchi A mutação constitucional Uma abordagem alemã DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DEPARTAMENTO DE DIREITO Programa de Pós-Graduação em Direito Rio de Janeiro Dezembro de 2005

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Cristiano Brandão Vecchi

A mutação constitucional Uma abordagem alemã

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

DEPARTAMENTO DE DIREITO Programa de Pós-Graduação em Direito

Rio de Janeiro Dezembro de 2005

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Cristiano Brandão Vecchi

A mutação constitucional Uma abordagem alemã

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. José Ribas Vieira

Rio de Janeiro Dezembro de 2005

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Cristiano Brandão Vecchi

A mutação constitucional Uma abordagem alemã

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional do Departamento de Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. José Ribas Vieira Orientador

Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Adrian Sgarbi Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Cláudio Pereira de Souza Neto UFF-RJ

Prof. João Pontes Nogueira Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências

Sociais - PUC-Rio

Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 2005

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Cristiano Brandão Vecchi Graduou-se em Direito na PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) em 2000. É advogado e assessor jurídico da Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro.

Ficha catalográfica

CDD: 340

Vecchi, Cristiano Brandão

A mutação constitucional: uma abordagem alemã / Cristiano Brandão Vecchi; orientador: José Ribas Vieira. – Rio de Janeiro: PUC; Departamento de Direito, 2005.

v., 148 f.: il.; 29,7 cm 1. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito. Inclui referências bibliográficas. 1. Direito – Teses. 2. Direito Constitucional. 3. mutação

constitucional. 4. processo informal 5. transformação da Constituição. I. Vieira, José Ribas. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.

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Aos meus pais, Victor Hugo Vecchi e Aladyr Brandão Vecchi, aos professores do Programa de Pós-Graduação da PUC e a todos os meus colegas da turma de 2003.

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Agradecimentos

- ao Professor José Ribas Vieira, pela disponibilidade sempre demonstrada, pela infinita

paciência e generosidade.

- aos integrantes do Corpo Docente do Programa de Pós-Graduação em Teoria Geral do

Estado e Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica, pelas preciosas lições

recebidas nas disciplinas do Curso de Mestrado.

- aos Professores que participaram da Comissão Examinadora.

- aos funcionários do Departamento de Direito, especialmente à Carmen, Marcos e

Anderson, pela ajuda sempre atenciosa na resolução dos assuntos administrativos.

- à Equipe da Biblioteca da Procuradoria Geral do Município, especialmente a sua Diretora

Célia Escobar, pelo empréstimo de obras raras da Biblioteca Afonso Arinos.

- aos amigos que fiz no mestrado, especialmente ao Carlos Bruno, pelo help na língua

inglesa.

- ao Dr. Eduardo de Oliveira Gouvêa, pelo incentivo moral e material.

- ao Dr. Lêo Bosco Griggi Pedrosa, pelo empréstimo de obras valiosas de sua biblioteca.

- ao Dr. Paulo Mendonça, referência na minha formação profissional e pessoal, pela ética,

pelo exemplo, e pelo permanente incentivo.

- ao Miraldes e à Edna, amigos de advocacia pública, com os quais aprendi a encontrar

soluções práticas que melhor atendem ao interesse público.

- ao Luciano Giovaneli, amigo de todas as horas.

- ao Marcelo Barbosa, pelo auxílio em informática nas horas mais improváveis.

- ao Luciano Almeida, pelo empréstimo de seu computador na reta final da dissertação.

- ao meu irmão Maurício Brandão Vecchi, exemplo de trabalho e dedicação aos estudos,

não obstante a escassez de recursos.

- a Lucimar, meu amor.

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Resumo

Vecchi, Cristiano Brandão; Vieira, José Ribas. A mutação constitucional: uma abordagem alemã. Rio de Janeiro, 2005. 148p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A dissertação é resultado de pesquisa teórica sobre a temática da mutação

constitucional. Pretende-se resgatar as origens do conceito de mutação constitucional, que

surgiu em finais do século XIX e princípios do XX, na Alemanha. Constatou-se que a

doutrina constitucional não trata de maneira uniforme o fenômeno da mudança informal da

Constituição. As primeiras investigações a tratar do tema da mutação constitucional foram

produzidas no marco da Constituição do Império Alemão de 1871, sob um prisma

especificamente formalista, nas obras de Laband e Jellinek. O trabalho também descreve e

analisa as divergências no tratamento teórico da mutação constitucional, já sob a República

de Weimar (1919-1933). Autores como Smend e Heller explicam o fenômeno sob um

prisma antiformalista, trabalhando com a idéia de constituição dinâmica. Hsü Dau-Lin

(1932) contribui com um estudo mais completo e sistemático do tema da mutação

constitucional. Para entender os pressupostos do conceito de mutação constitucional,

dedicaram-se algumas linhas à exposição de diferentes conceitos de constituição. A parte

final aborda as modalidades de mutação constitucional não só com base na doutrina

clássica, mas também apresentando a contribuição de autores contemporâneos. A

metodologia utilizada é bibliográfica. Viu-se que sob o ângulo estritamente formalista da

Constituição não é possível explicar de forma satisfatória o fenômeno da transformação

informal da Constituição.

Palavras-chave

Direito Constitucional; mutação constitucional; processo informal; transformação

constitucional; mudança constitucional.

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Summary

Vecchi, Cristiano Brandão; Vieira, José Ribas (Advisor). The Constitutional Mutation: a German approach. Rio de Janeiro, 2005. 148p. MSc. Dissertation - Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The dissertation is resulted of theoretical research on the theme of the constitutional

mutation. It is intended to rescue the origins of the concept of constitutional mutation, that

appeared in the ends of century XIX and principles of the XX, in Germany. It is evidenced

that the constitutional doctrine does not deal equally with the phenomenon of the informal

change of the Constitution. The first inquiries to deal with the subject of the constitutional

mutation had been produced in the landmark of the Constitution of the German Empire of

1871, under a prism specifically formalist, in the workmanships of Laband and Jellinek.

The work also describes and analyzes the divergences in the theoretical treatment of the

constitutional mutation, already under the Republic of Weimar (1919-1933). Authors as

Smend and Heller explain the phenomenon under a prism antiformalist, working with the

idea of dynamic constitution. Hsü Dau-Lin (1932) contributes with a more complete and

systematic study of the subject of the constitutional mutation. To understand the requisites

of the concept of constitutional mutation, some lines had been dedicated to the exposition

of different concepts of constitution. The final part does not only approaches the modalities

of constitutional mutation on the basis of the classic doctrine, but also presents the

contribution of contemporaries authors. The used methodology is bibliographical. It is the

conclusion that under the angle strictly formalist of the Constitution is not possible to

explain properly the phenomenon of the informal transformation of the Constitution.

Keywords Constitutional law; constitutional mutation; informal process; constitutional

transformation; constitutional change.

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Sumário

1. Introdução

2. Constituição

2.1. Constituição em sentido jurídico (racional normativo)

2.2. Constituição em sentido sociológico

2.2.1 A resposta de Hesse

2.3. Constituição em sentido político

2.4. Constituição no sentido formal e ideologia garantista

2.5. Constituição no sentido material

2.6. Constituições quanto à reforma

2.6.1. Constituições imutáveis

2.6.2. Constituições fixas

2.6.3. Constituições rígidas e flexíveis

2.6.3.1. Explicação terminológica

2.6.3.2. Confusão entre rigidez constitucional e

estabilidade

2.6.3.3. Constituições flexíveis e controle de

constitucionalidade

2.6.3.4. Regime jurídico da constituição e mutabilidade

2.7. Permanência-mudança no direito constitucional

2.8. Lei em sentido formal e lei em sentido material (Paul

Laband)

2.9. Constituição e realidade constitucional

2.9.1. Matéria constitucional e realidade constitucional:

analogias e diferenças

2.9.2. A mutação constitucional como efeito da não

recepção formal de elementos da realidade constitucional

2.9.3. Estática e dinâmica constitucionais

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3. Mutação constitucional: origem do conceito

3.1. Introdução

3.2. A mutação constitucional como problema

3.3. A constatação das mutações constitucionais por Paul

Laband

3.4. Noção e conceito de mutação constitucional: Georg

Jellinek

3.5. A mutação como parte de um conceito dinâmico de

Constituição

3.6. Importância dos autores da época de Weimar na

reflexão sobre o problema da mutação informal da

Constituição

3.6.1. A mutação como elemento de um conceito

ambivalente de Constituição: Rudolf Smend

3.6.1.1. O Estado como integração espiritual

3.6.1.2. A Constituição como constante mutação

3.6.1.3. Integração e interpretação constitucional

3.6.2. Normalidade e normatividade: Hermann Heller

3.6.3. A contribuição de Hsü Dau-Lin

3.6.3.1. Classificação das mutações constitucionais

3.6.3.2. Mutação através da prática estatal que não viola a

Constituição. O problema das lacunas constitucionais

3.6.3.3. Mutação como impossibilidade de exercício de

determinadas atribuições descritas na Constituição. O

problema da mutação por desuso

3.6.3.4. Reforma material da Constituição e mutação

constitucional

3.6.3.5. Mutação constitucional por meio de interpretação

3.6.3.6. Mutação constitucional e direito consuetudinário

3.6.3.7. Mutação constitucional e regras convencionais

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3.6.3.8. Mutação constitucional como violação da

Constituição

3.6.3.9. Mutação da Constituição como problema

constitucional

3.6.4. Essência da mutação constitucional

4. 1. Problema terminológico

4.2. A necessidade política como transformadora da

Constituição

4.2.1. O conceito jurídico de necessidade. Estado de

exceção e mutação constitucional

4.3. Atos normativos e mutação constitucional

4.4. O problema do costume constitucional

4.5. Mutação pelas práticas constitucionais

4.5.1. Convenções constitucionais

4.6. Constituição e interpretação constitucional

4.6.1. Interpretação e aplicação

4.6.2. Realização, interpretação e concretização da

Constituição

4.6.3. Normatividade

4.6.4. Interpretação e linguagem

4.6.5. Dificuldades de investigação do conceito semântico

da norma

4.6.6. Sentido da norma e convenções lingüísticas

4.6.7. A interpretação constitucional

4.6.8. Interpretação e mutações constitucionais

4.7. Limites da mutação constitucional

5. Conclusão

6. Referências Bibliográficas

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1 Introdução

O nosso interesse sobre o tema da mudança constitucional iniciou já no

curso de graduação em Direito, concluído na PUC em 2000, com a apresentação

de monografia final de curso versando sobre os limites da revisão constitucional.

Neste trabalho, ocupamo-nos de problemas relacionados com a reforma

constitucional. Constatamos que toda Constituição, para subsistir, precisa ser

adaptável à evolução da sociedade, sob pena de soçobrar diante da realidade. Por

isso, é comum que o poder constituinte originário preveja um órgão competente

para efetuar as modificações – poder reformador -, respeitados os limites

revisionais. Nesta linha, as cláusulas pétreas são instrumentos válidos para

proteger a Constituição, revelando o que o constituinte entendeu como “núcleo

fundamental”, que não pode ser suprimido pelo poder reformador. A existência de

um cerne intangível é uma forma de assegurar a permanência da Constituição. As

cláusulas pétreas, no entanto, não estão imunes às controvérsias. Dependendo da

situação histórica, elas podem mesmo antecipar a ruptura constitucional, ao invés

de assegurar a sua permanência ou estabilidade. Daí termos constatado que as

limitações não são absolutas nem irremovíveis, podendo até mesmo ser superadas,

em alguns sistemas, por processos de “dupla revisão” (Jorge Miranda), ou seja,

primeiro o poder revisor elimina as cláusulas de limites, obedecendo para tanto a

procedimentos formais, e depois, com a participação do poder constituinte (o

povo), faz-se a mudança material da Lei Maior.

A presente investigação representa, até certo ponto, uma continuidade da

monografia da graduação. Estamos convictos de que nem a rigidez constitucional

nem a instituição de cláusulas pétreas são suficientes para impedir a mudança

informal da Constituição. Pelo contrário, a realidade política, a vida concreta da

sociedade, suas necessidades e valores cambiantes ensejam, freqüentemente,

alterações de significado de normas constitucionais e mudanças em elementos

centrais do Estado, sem que para isso se promovam alterações formais na

Constituição.

Em que pese a doutrina reconheça a existência de mutações

constitucionais na história constitucional do Brasil, o tema foi pouco explorado

em teses acadêmicas.

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O projeto de dissertação original propunha um estudo comparado das

teorias da mutação constitucional, visando fazer um mapeamento da doutrina

representativa de três modelos distintos: o norte-americano, o europeu (Alemanha,

França, Espanha e Portugal) e o brasileiro. No decorrer das pesquisas, verificamos

que a empreitada exigia, para ser coerente, uma investigação direta das fontes

estrangeiras, não apenas limitada à doutrina, mas que envolvesse também o exame

de documentos histórico-constitucionais.

Por ocasião da defesa do projeto, contudo, a Professora Ana Lúcia de Lyra

Tavares, preocupada com a viabilidade da pesquisa, sugeriu a limitação da

temática à origem do conceito de mutação constitucional, típico da doutrina

alemã. Reconhecemos que o plano inicial, de fato, era demasiado arrojado em

função da escassez de tempo.

O roteiro provisório foi reformulado e a pesquisa então se direcionou para

as origens do conceito de mutação constitucional, que nos reporta à Alemanha

imperial de finais do século XIX e princípios do XX, período em que foram

produzidos os primeiros trabalhos teóricos a tratar do tema.

O levantamento da documentação bibliográfica a respeito desse tema no

Brasil revelou, lamentavelmente, a existência de escasso material. Para se ter uma

idéia, só encontramos dois livros a esse respeito: FERRAZ, Anna Cândida da

Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações

constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986;

BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional, São Paulo: Saraiva, 1997.

Em que pese o reconhecido valor das obras mencionadas, entendemos que

ainda falta, na literatura brasileira, uma obra que aborde de forma mais adequada a

origem do conceito de mutação constitucional.

A presente dissertação, de certa forma, pretende suprir essa lacuna,

apresentando a contribuição de alguns autores alemães que são imprescindíveis

para um entendimento mais profundo acerca do problema das mudanças informais

da Constituição. De alguma forma, pensamos ter contribuído também com a

pesquisa de literatura mais atualizada sobre o tema.

A doutrina constitucional não trata de maneira uniforme o fenômeno das

transformações informais da Constituição. Sabe-se que o conceito de mutação

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constitucional foi originalmente formulado por Paul Laband, no marco da

Constituição do Reich alemão de 1871. O trabalho pretende descrever e analisar as

divergências no tratamento teórico da mutação constitucional, enfocando também

os pontos mais relevantes da obra de autores da época da República de Weimar

(1919-1933). Autores como Smend e Heller explicam o fenômeno sob um prisma

antiformalista, trabalhando com a idéia de constituição dinâmica. Hsü Dau-Lin

(1932) contribui com um estudo mais completo e sistemático do tema da mutação

constitucional.

Plano da dissertação

A problemática do tema exige sejam colocados e definidos, como

pressupostos prévios, algumas noções e conceitos fundamentais de teoria da

constituição, tais como os de constituição, rigidez constitucional, realidade

constitucional, dinâmica e estática etc., o que é tratado no Capítulo 2.

Como já o dissemos, um tratamento mais adequado do tema escolhido

exige uma investigação sobre as origens do conceito, o que será tratado no

Capítulo 3.

A parte final (Capítulo 4) aborda, além do problema terminológico,

algumas modalidades de mutação constitucional, não só com base na doutrina

clássica, mas também trazendo a contribuição de autores contemporâneos.

Metodologia e referências bibliográficas

A metodologia utilizada é bibliográfica. Procuramos abordar o tema

servindo-nos de trabalhos jurídicos de inegável valor para a ciência do direito,

tanto de autores nacionais como estrangeiros. As obras principais foram escritas

em língua alemã, a qual o autor não domina. As traduções utilizadas, no entanto,

são de reconhecido valor. Sempre que o tradutor tenha mantido ou feito referência

ao termo original, assim o indicaremos.

As citações do texto, quando de autores estrangeiros, foram mantidas

quase todas na versão estudada (espanhola), facilmente compreendida pelos

falantes de língua portuguesa. Preferimos na maior parte das citações não fazer a

tradução do espanhol para o português, para evitarmos algum equívoco e para não

cometermos o inconveniente de fazer uma tradução da tradução.

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As obras são indicadas nas notas de rodapé precedidas do nome do autor,

salvo quando este já tenha sido mencionado no texto. Citam-se apenas o autor, o

título da obra e a página. As referências completas constam da bibliografia geral

no fim do volume. Usamos da abreviatura de praxe (op. cit.), sempre que isso não

prejudique a imediata identificação da obra. Sempre que fizemos a citação de

alguma passagem a partir de outra fonte, isto é, citação de segunda mão, foi

porque tal recurso se mostrou necessário, sendo devidamente precedida da

expressão apud.

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CONSTITUIÇÃO

Sumário: 2.1. Constituição em sentido jurídico (racional normativo). 2.2. Constituição em sentido sociológico. 2.2.1. A resposta de Hesse. 2.3. Constituição em sentido político. 2.4. Constituição no sentido formal e ideologia garantista (constitucionalismo). 2.5. Constituição no sentido material. 2.6. Constituições quanto à reforma. 2.6.1. Constituições imutáveis. 2.6.2. Constituições fixas. 2.6.3. Constituições rígidas e flexíveis. 2.6.3.1. Explicação terminológica. 2.6.3.2. Confusão entre rigidez constitucional e estabilidade. 2.6.3.3. Constituições flexíveis e controle de constitucionalidade. 2.6.3.4. Regime jurídico da constituição e mutabilidade. 2.7. Permanência-mudança no direito constitucional. 2.8. Lei em sentido formal e lei em sentido material (Paul Laband). 2.9. Constituição e realidade constitucional. 2.9.1. Matéria constitucional e realidade constitucional: analogias e diferenças. 2.9.2. A mutação constitucional como efeito da não recepção formal de elementos da realidade constitucional. 2.9.3. Estática e dinâmica constitucionais.

Não há um significado único para a palavra “constituição”. Aliás, esta

palavra, mesmo quando empregada em relação à organização ou modo de ser do

Estado, acepção que nos interessa, admite variadas formulações e leituras.

Certamente não é possível estabelecer um conceito de constituição que não seja

polêmico. Apesar disso, para uma adequada investigação teórica da temática da

mutação constitucional, parece-nos imprescindível o conhecimento preliminar de

algumas distintas concepções sobre a constituição, que aqui serão abordadas de

forma bastante sucinta.

Não é necessário, neste trabalho, abordar todos as noções e elaborações

doutrinárias acerca da constituição. Possivelmente, ficarão de fora muitas

formulações teóricas significativas para o direito constitucional. Reconhecendo

que toda limitação tem um certo grau de arbitrariedade, porque sempre se está a

correr o risco de excluir aspectos e/ou elementos para uns mais, para outros menos

relevantes, cumpre-nos observar a exigência de toda pesquisa acadêmica no

sentido de limitar o tema investigado, em busca de uma análise que traga

resultados mais proveitosos. Neste sentido, serão descritas apenas algumas

concepções e classificações que parecem, a nosso ver, mais diretamente ligadas ao

tema da mutação constitucional. O conhecimento de diferentes maneiras de ver a

constituição tornará mais claras algumas divergências terminológicas e de

tratamento doutrinário em relação ao problema da mutação constitucional.

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Neste capítulo, algumas linhas serão dedicadas à classificação das

constituições segundo o regime jurídico de reforma (rigidez e flexibilidade),

incorporada à teoria constitucional.

Parece-nos indispensável também cuidar dos sentidos formal e material da

Constituição, bem como da relação entre Constituição e realidade constitucional,

da tensão permanência-mudança no direito constitucional, estática e dinâmica

constitucionais.

2.1

Constituição em sentido jurídico1 (racional normativo)

Na concepção jurídica, a Constituição pode ser definida como uma

superlei escrita, que tende a limitar o poder mediante sua divisão, para garantir

uma esfera de autonomia de liberdade.2 Esse conceito forma-se historicamente em

finais do século XVIII, na esteira dos movimentos constitucionalistas. Tais

movimentos, de cunho liberal, defendem um programa de organização estatal, no

qual estejam assegurados conteúdos específicos – declaração de direitos

individuais e estrutura equilibrada dos poderes do Estado. A Constituição aqui se

apresenta essencialmente como norma jurídica, como lei fundamental de

organização do Estado e da vida jurídica do país.3 “Este concepto responde al

intento de someter el poder al Derecho, de reglamentar el poder en su estructura,

ejercicio y en su extensión por el orden jurídico para limitarlo”.4

Segundo García-Pelayo, esse conceito, racional e normativo, “concibe la

constitución como un complejo normativo establecido de una sola vez y en el que

de una manera total, exhaustiva y sistemática se establecen las funciones

fundamentales del Estado y se regulan los órganos, el ámbito de sus competencias

y las relaciones entre ellos. La constitución es, pues, un sistema de normas”.5

Assim, a Constituição consiste basicamente numa escolha ordenada e coerente de 1 Essa denominação é seguida por José Afonso da SILVA: Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 29-31. 2 Luis Sanchez AGESTA, Principios de Teoría Política, p. 330-331. 3 José Afonso da SILVA, Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 29. 4 Luis Sanchez AGESTA, Principios de Teoría Política, p. 334. 5 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 34.

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princípios fundamentais, baseados na razão, que asseguram ao indivíduo uma

posição justa, ficando o poder organizado subordinado à Constituição.6

É característico do conceito racional apenas considerar como constituição

aquela expressa juridicamente e de forma escrita, que estabelece uma ordem

objetiva e permanente. Acredita-se que só o Direito escrito oferece garantias de

racionalidade e segurança em face da arbitrariedade da administração. O costume

aqui é associado à irracionalidade. É inerente ao conceito racional a distinção

entre poder constituinte e poder constituído. Se a finalidade principal da

constituição é assegurar os direitos individuais, parece necessário garantir que os

poderes constituídos não possam modificar eles próprios o esquema

constitucional, cabendo tão-somente ao poder constituinte decidir sobre a

constituição.7

A concepção jurídica foi desenvolvida e refinada no pensamento de

Kelsen. Ele concebe a constituição em dois sentidos: no lógico-jurídico e no

jurídico-positivo. No primeiro sentido, a constituição significa norma fundamental

hipotética. É bastante conhecida a concepção escalonada do ordenamento jurídico

na teoria de Kelsen. Existe a necessidade teórica de uma Norma Fundamental

(Grundnorm), hipotética, no topo da pirâmide jurídica, que assegure a unidade do

sistema no seu movimento de criação. A função desta regra é precisamente

instituir um primeiro órgão de criação do direito, e neste sentido forma a

Constituição no significado teórico ou ideal da palavra, a que chamou

“Constituição hipotética”. Ela funciona como fundamento lógico transcendental

de validade da constituição jurídico-positiva. No segundo sentido, mais lato e

material, dirá Kelsen, “a Constituição é um sistema de normas que regula a

criação de outras normas. Num sentido mais restrito, só nela se compreendem as

regras sobre a criação das normas jurídicas dos graus superiores, especialmente

das leis. Neste sentido, a Constituição é somente, por assim dizer, a forma de

criação do direito; é um simples quadro, que só adquire um conteúdo positivo por

intermédio das leis, que vierem a ser elaboradas de acordo com as suas

prescrições”.8 A Constituição “é o conjunto das normas que regulam a situação

6 Giuseppe de VERGOTTINI, Derecho Constitucional Comparado, p. 136. 7 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 39-40. 8 Hans KELSEN, Teoria Geral do Estado, p. 99-100.

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dos órgãos superiores do Estado e as relações entre o poder público e os

indivíduos que lhe estão submetidos”.9

José Afonso da Silva apresenta uma síntese da concepção kelseniana de

constituição jurídico-positiva, que “equivale à norma suprema, conjunto de

normas que regulam a criação de outras normas, lei nacional no seu mais alto

grau; ou certo documento solene, conjunto de normas jurídicas que somente

podem ser alteradas observando-se certas prescrições especiais. Conceito que bem

revela a preocupação normativa da teoria pura do Direito”.10 Erich Kaufmann11

diz que o formalismo normológico de Kelsen consiste numa fuga à realidade, fuga

para ver-se livre da acabrunhante e esmagadora variedade infinita que se acha

contida na realidade. Em que pese o mérito de Kelsen, pensador que conseguiu

elevar a ciência jurídica ao mais alto grau de rigor lógico, seu formalismo

excessivo “não se compadece com a experiência jurídica, especialmente no campo

do direito constitucional, onde se verifica tanta influência da realidade social,

política e ideológica...”.12

2.2

Constituição em sentido sociológico

O conceito sociológico de constituição, segundo García-Pelayo, baseia-se

nas seguintes afirmações: “a) la constitución es primordialmente una forma de ser,

y no de deber ser; b) la constitución no es resultado del pasado, sino inmanencia

de las situaciones y estructuras sociales del presente, que para una gran parte del

pensmiento del siglo XIX – y no solamente para Marx – se identifica con

situaciones y relaciones económicas; c) la constitución no se sustenta en una

norma trascendente, sino que la sociedad tiene su propia ‘legalidad’, rebelde a la

pura normatividad e imposible de ser domeñada por ella; el ser, no de ayer, sino

de hoy, tiene su propia estructura, de la que emerge o a la que debe adaptarse el

9 Hans KELSEN, Teoria Geral do Estado, p. 101. 10 José Afonso da SILVA, Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 31. 11 Erich KAUFMANN, Kritik deu neukantischen Rechtsphilosophie, p. 26. Apud Paulo BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, p. 173-174. 12 José Afonso da SILVA, Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 31.

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deber ser; d) en fin, si en lo que respecta al Derecho la concepción racional gira

sobre el momento de validez, y la história sobre el de legitimidad, la concepción

sociológica lo hace sobre el de vigencia”.13

A principal figura do século XIX a representar esta concepção sociológica

da constituição é Ferdinand Lassalle. Na sua famosa conferência acerca da

“Essência da Constituição” (em 16 de abril de 1862), Lassalle assinalou a

diferença entre a Constituição real ou verdadeira, que é a Constituição na sua

essência - a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação -, e a

Constituição escrita ou formal - a folha de papel.14 A Constituição de um país é o

reflexo das relações de poder nele dominantes: o poder militar (Forças Armadas),

o poder social (latifundiários), o poder econômico (banqueiros, grande indústria,

grande capital) e, em menor medida, o poder intelectual (consciência coletiva e

cultura geral). Todas essas forças ativas da sociedade são fragmentos do poder,

dotados de capacidade decisória e influência suficientes para se projetarem das

relações reais para a folha de papel - Constituição escrita. Os fatores reais do

poder compõem o substrato fático da Constituição, das leis e das demais

instituições da sociedade, que expressam, por conseguinte, a correlação de forças

resultantes da combinação dos fatores reais de poder. Esses são os fatores que

fazem a verdadeira Constituição (a essência), a Constituição real do país. O

documento que chamamos de Constituição (a jurídica), nada mais é do que uma

folha de papel. Lassalle exemplifica que a Constituição escrita e reverenciada não

passa de um pedaço de papel, imaginando a hipótese de um incêndio que

consumisse todas as Constituições e leis de um país, destruísse todos os arquivos

do Estado, todas as bibliotecas públicas e particulares, de tal forma que não

sobrasse sequer um exemplar das leis do país, o que traria a necessidade de fazer

outra Constituição e outras leis para governá-lo.15 Lassalle indaga se, diante

dessas circunstâncias, o legislador seria livre para criar novas leis, mudando a

realidade a partir de um novo Direito. A resposta é negativa, pois a Constituição é

a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação.16 A Constituição escrita

será boa quando corresponder à constituição real e tiver suas raízes nos fatores do

13 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 46-47. 14 Ferdinand LASSALLE, A Essência da Constituição, p. 37. 15 Ferdinand LASSALLE, op. cit., p. 30. 16 Ferdinand LASSALLE, op. cit., p. 37.

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poder que regem o país.17 De nada serve o que se escreve numa folha de papel, se

não se justifica pelos fatos reais e efetivos do poder.18

“Juntam-se esses fatores reais do poder, os escrevemos em uma folha de papel e eles adquirem expressão escrita. A partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito - instituições jurídicas. Quem atentar contra eles atenta contra a lei, e por conseguinte é punido.”19

Nesse antagonismo entre a Constituição escrita e a Constituição real,

Lassalle dirá que a primeira sucumbirá necessariamente diante da realidade. Por

isso, Hesse20 afirma que a idéia de um efeito determinante exclusivo da

Constituição real não significa outra coisa senão a própria negação da

Constituição jurídica.

Para Lassalle, as questões constitucionais não são questões jurídicas, mas

sim questões políticas:

“Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas de poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar”. 21

Há quem diga que essa concepção, defendida por Lassalle, acabou por

deslocar a Constituição de sua posição de supremacia e inverteu as regras que o

constitucionalismo clássico construiu. Ou seja, não é a Constituição que controla e

institucionaliza o poder, submetendo-o às regras preestabelecidas, mas é o poder,

através de seus fragmentos (fatores reais do poder), que determina a Constituição

e faz as suas normas.22

17 Ferdinand LASSALLE, op. cit., p. 59. 18 Ferdinand LASSALLE, op. cit., p. 64. 19 Ferdinand LASSALLE, op. cit., p. 37. 20 Konrad HESSE, A Força Normativa da Constituição, p. 11. 21 Ferdinand LASSALLE, op. cit., p. 67. 22 Raul Machado HORTA, Permanência e mudança na Constituição, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, 1, p. 213.

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2.2.1.

A resposta de Hesse

Konrad Hesse, sem negar a influência dos fatores reais de poder, rejeita,

todavia, a concepção lassaliana. Sente-se incomodado com a idéia de que o

Direito Constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa,

cumprindo-lhe tão somente a miserável função - indigna de qualquer ciência - diz

o autor, de justificar as relações de poder dominantes. Se a Ciência da

Constituição adotasse, em definitivo, a tese de que a Constituição real é o que

importa, admitindo a Constituição real como decisiva, isso a descaracterizaria

como ciência normativa, convertida para uma simples ciência do ser. Assim, não

haveria como diferençá-la da Sociologia ou da Ciência Política.23

Hesse24 adverte que a separação radical entre norma e realidade, no plano

constitucional, entre ser (Sein) e dever ser (Sollen) é um equívoco. Diz o

professor alemão:

“Eventual ênfase numa ou noutra direção leva quase inevitavelmente aos extremos de uma norma despida de qualquer elemento da realidade ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo. Faz-se mister encontrar, portanto, um caminho entre o abandono da normatividade em favor do domínio das relações fáticas, de um lado, e a normatividade despida de qualquer elemento da realidade, de outro”.

Inocêncio Mártires Coelho,25 baseado nos ensinamentos de Hesse,

comenta que, se recusarmos à Constituição esse caráter deontológico e essa força

normativa, reduzindo-a a um simples reflexo dos chamados fatores reais de poder,

estaremos, conseqüentemente, retirando-lhe a dimensão reformadora que

indiscutivelmente possui, enquanto instrumento de transformação social.

A idéia central é de que a Constituição real e a Constituição jurídica estão

em uma relação de coordenação, elas se condicionam mutuamente, mas não

23 Konrad HESSE, A Força Normativa da Constituição, p. 11. 24 Konrad HESSE, A Força Normativa da Constituição, p. 14. 25 Inocêncio Mártires COELHO, Konrad Hesse: uma Nova Crença na Constituição, Revista de Informação Legislativa, n. 110, p. 54.

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dependem, pura e simplesmente, uma da outra. Portanto, Hesse impugna a

concepção de Lassalle, pois este entendia haver uma subordinação completa da

Constituição jurídica (folha de papel) à realidade fática. A norma constitucional,

para Hesse, tem uma pretensão de eficácia (Geltungsanspruch), que obviamente

está ligada às condições históricas (naturais, técnicas, econômicas e sociais) de

sua realização, numa relação de interdependência. A pretensão de eficácia de uma

norma constitucional, no entanto, não se confunde com as condições de sua

realização, associa-se a essas condições como elemento autônomo. Em outras

palavras, a pretensão de eficácia constitucional imprime ordem e conformação à

realidade política e social.26

A Constituição impõe uma ordem jurídica, baseada na razão,

estabelecendo comandos que transformam a realidade, mas cuja eficácia está

limitada pelas tendências dominantes do seu tempo.27 Entretanto, a normatividade

da Constituição se converterá em força ativa a partir do momento em que os

principais responsáveis pelo seu cumprimento estejam com disposição e vontade

orientadas para a concretização dos seus comandos:

“Mas, a força normativa da Constituição não reside, tão-somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral - particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung).”28

26 Konrad HESSE, A Força Normativa da Constituição, p. 15. 27 Konrad HESSE, A Força Normativa da Constituição, p. 18. 28 Konrad HESSE, A Força Normativa da Constituição, p. 19.

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23

Hesse condiciona o êxito de qualquer programa normativo à existência de

uma vontade de Constituição.29 Onde não houver essa vontade de Constituição, a

sua normatividade jamais terá força de criar e manter a normalidade. Portanto, é

preciso recuperar a crença no valor intrínseco da Constituição, mantendo-se fiel a

suas normas, como condição para sua eficácia e realização.

2.3

Constituição em sentido político

Carl Schmitt classifica os sentidos da Constituição do Estado (unidade

política de um povo) em quatro grupos: absoluto, relativo, positivo e ideal.

Constituição em sentido absoluto pode significar a concreta maneira de ser

resultante de qualquer unidade política existente. Neste sentido, a todo Estado

corresponde uma certa unidade política e ordenação social, princípios de unidade

e ordenação e uma instância decisória em casos críticos de conflitos de interesses

ou de poderes. O Estado não tem uma Constituição segundo a qual se forma e

funciona a vontade estatal, o Estado é Constituição, ou seja, uma situação presente

de ser, um status de unidade e ordenação, sua vida concreta, sua alma e sua

existência individual. É também forma de governo, forma especial de domínio,

forma das formas, princípio do vir a ser dinâmico da unidade política, formação e

ereção da unidade, força e energia subjacente e operante na base. Num sentido

absoluto, a Constituição também pode significar uma regulação legal

fundamental, um sistema de normas supremas e últimas, norma das normas, é

algo normativo, dever ser.30

Em sentido relativo, a Constituição é definida a partir de características

externas e acessórias; portanto, formais. É a lei constitucional em particular. Uma

pluralidade de leis constitucionais é igualada pela forma. Tudo o que está numa

Constituição é igual, isto é, igualmente relativo. Todas as prescrições particulares

são ao mesmo tempo fundamentais só por constarem formalmente da

29 Inocênco Mártires COELHO, op. cit., p. 59. 30 Carl SCHMITT, Teoría de la Constitución, p. 29-36.

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Constituição, e não porque sejam autênticas decisões fundamentais. Inclui-se

nesse sentido relativo a Constituição formal, a escrita, a rígida.31

O sentido positivo de Constituição só é possível, segundo Carl Schmitt, a

partir da distinção entre Constituição e Lei constitucional. “Não é admissível

dissolver primeiro a Constituição numa pluralidade de leis constitucionais

concretas e depois determinar a lei constitucional por algumas características

externas ou acaso pelo procedimento de sua reforma”.32 A Constituição em

sentido positivo surge mediante um ato do poder constituinte. Este ato constitui a

forma e o modo da unidade política, cuja existência é anterior. Portanto, a unidade

política não surge porque se tenha dado uma Constituição. A Constituição em

sentido positivo contém apenas a determinação consciente da concreta forma de

conjunto pela qual se pronuncia ou decide a unidade política. Tal Constituição é

uma decisão consciente que a unidade política, através do titular do poder

constituinte, adota por si mesma e se dá a si mesma.33

“La Constitución no es, pues, cosa absoluta, por cuanto que no surge de sí misma. Tampoco vale por virtud de su justicia normativa o por virtud de su cerrada sistemática. No se da a sí misma, sino que es dada por una unidad política concreta. Al hablar, es tal vez posible decir que una Constitución se establece por sí misma sin que la rareza de esta expresión choque en seguida. Pero que una Constitución se dé a sí misma es un absurdo manifesto. La Constitución vale por virtud de la voluntad política existencial de aquel que la da. Toda especie de normación jurídica, y también la normación constitucional, presupone una tal voluntad como existente”.34

Toda lei, inclusive a lei constitucional, fundamenta-se na Constituição,

mas sua validade depende, em última instância, de uma decisão política prévia,

adotada por um poder ou autoridade politicamente existente. Carl Schmitt coloca

o político acima do jurídico.

“Toda unidad política existente tiene su valor y su ‘razón de existencia’, no en la justicia o conveniencia de normas, sino en su

31 Carl SCHMITT, Teoría de la Constitución, p. 37-44. 32 Carl SCHMITT, Teoría de la Constitución, p. 45. 33 Carl SCHMITT, Teoría de la Constitución, p. 46. 34 Carl SCHMITT, Teoría de la Constitución, p. 46.

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existencia misma. Lo que existe como magnitud política, es, juridicamente considerado, digno de existir”. 35

O verdadeiro conceito de Constituição, para Carl Schmitt, é esse no

sentido positivo. Na realidade, trata-se de um conceito decisionista de

Constituição material. As leis constitucionais são expressões normativas que

pressupõem uma decisão criadora. Em Schmitt, “é o poder político como vontade

quem está formando o Direito. Frente à posição kelseniana, que tende a estabilizar

uma ordem normativa vigente, este conceito schmittiano impulsiona a ação de um

poder revolucionário que está acima do Direito”.36 Schmitt acentua que só é

possível distinguir Constituição e lei constitucional “porque a essência da

Constituição não está contida em uma lei ou em uma norma. No fundo de toda

normatização reside uma decisão política do titular do poder constituinte, é dizer,

do Povo na Democracia e do Monarca na Monarquia autêntica”.37

Cabe mencionar que a distinção schmittiana entre Constituição e lei

constitucional tem aplicação prática, especialmente em relação à mudança

constitucional. Isto porque as leis constitucionais podem sofrer alterações e ser

substituídas por outras, mas a Constituição, enquanto decisão fundamental da

unidade política, não pode ser alterada. Da mesma forma, durante o estado de

exceção a Constituição é intangível, ao passo que as leis constitucionais podem

ser suspensas.38

Em sentido ideal, a Constituição identifica-se com um determinado

conteúdo político e social, em que se propõe, como ideal, um certo programa de

organização estatal, a partir de um ponto de vista que se considera legítimo. Essa

concepção é muito comum em momentos de acirrada disputa política, adotando-se

apenas um determinado modelo de constituição como autêntico.39

35 Carl SCHMITT, Teoría de la Constitución, p. 46. 36 Luis Sánchez AGESTA, Principios de Teoría Política, p. 336. 37 Carl SCHMITT, Teoría de la Constitución, p. 47. 38 Carl SCHMITT, Teoría de la Constitución, p. 49-50. 39 Carl SCHMITT, Teoría de la Constitución, p. 58-62.

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26

2.4

Constituição no sentido formal e ideologia garantista (constitucionalismo)

A constituição formal ou escrita está originariamente ligada à ideologia

liberal, defendida nas revoluções burguesas deflagradas na América do Norte e na

Europa, entre finais do século XVIII e a metade do século XIX. A constituição foi

concebida como uma Carta solene, com um conteúdo específico, que visava

garantir os valores da burguesia.

Denomina-se constitucionalismo o conjunto de doutrinas que

aproximadamente a partir de meados do século XVII se dedicaram a recuperar no

horizonte da constituição dos modernos o aspecto do limite e da garantia.40

Lembra-nos Vergottini41 que o processo de elaboração de muitos conceitos

fundamentais para o constitucionalismo moderno se deu no século XVII, na

Inglaterra, onde se discutiram conceitos e instituições como soberania popular,

limitações constitucionais, separação de poderes, função do bicameralismo, além

da tradicional posição das liberdades individuais em face do poder.

“La Idea de la forma escrita se consolido durante la Revolución francesa y se mantuvo cuando la Restauración preferirá abandonar el vocablo ‘Constitución’ evocador de la ideología revolucionaria, a favor del término Carta (Francia, 1814) o de Estatuto (España, 1834; Piamonte, 1848). Algo semejante ocurre cuando el documento escrito no tiene pretensiones de plenitud porque sólo regula algunas instituciones constitucionales (Leyes constitucionales francesas de 1875, Leyes fundamentales de Israel de 1958) o se considera, cuando se elaboró como solución constitucional transitoria (Ley fundamental de Bonn de 1949 a la espera de la reunificación alemana, artículo 146)”. 42

O movimento constitucionalista defendia, pois, uma acepção ideal de

constituição, pois baseada numa ideologia liberal, que se opunha ao absolutismo e

tinha como bandeira de luta a limitação do poder monárquico e a adoção de uma

constituição escrita. Os adeptos do constitucionalismo passaram a monopolizar a

expressão constituição, que só seria adequada aos ordenamentos jurídicos que 40 Maurizio FIORAVANTI, Constitución. De la Antigüedad a nuestros días, p. 85. 41 Derecho Constitucional Comparado, p. 135. 42 Giuseppe de VERGOTTINI, Derecho Constitucional Comparado, p. 135.

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27

incorporassem o seu programa. Regime constitucional passou a ser sinônimo de

governo baseado na divisão de poderes e no reconhecimento de uma esfera

inviolável de liberdades individuais.43 Os constituintes franceses de 1789

inseriram esse conceito de Constituição ideal na Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão:

“Art. 16. Toda sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”.44

A separação de poderes pode ser vista, neste contexto, como um princípio

necessário para prevenir a opressão; pois, “le pouvoir arrête le pouvoir”.

Mas esse conceito liberal-democrático de constituição tendia a ser absoluto

na medida em que eventuais ordenamentos que se deram Constituições com

inspirações e conteúdos diversos foram considerados “não constitucionais”.45

Portanto, existem cartas políticas que não apresentam tais elementos ou

características, ou seja, não há nelas divisão de poderes nem declaração de

direitos.46 Tal constatação pode ser feita ainda que nos limitemos a analisar as

constituições européias do século XIX, período em que se difundiu fortemente o

constitucionalismo.

Em suma, na perspectiva formal, a Constituição é definida por aspectos

formais ou externos. Leva-se em consideração, assim, que as normas façam parte

de um documento solene chamado Constituição e que tenham sido estabelecidas

por um órgão competente para tanto, ao qual se dá o nome de poder constituinte.

Com o fenômeno das Constituições escritas, o critério formal passou a prevalecer,

facilitando sobremodo a tarefa de quem queira identificar as normas

constitucionais de um dado ordenamento jurídico. Destarte, basta compulsar a

Constituição do país para encontrar suas normas constitucionais.

43 Nelson de Sousa SAMPAIO, O poder de reforma constitucional, p. 20-1. 44 “Déclaration des droits de l´homme, article XVI: Toute Société dans laquelle la garantie des droits n’est pás assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n’a point de Constitution”. 45 Giuseppe de VERGOTTINI, Derecho Constitucional Comparado, p. 134. 46 Luis Sanchez AGESTA (Principios de Teoria Política, p. 335) cita o exemplo da Constituição francesa de 1799, na qual não existe divisão de poderes nem declaração de direitos. O autor ressalta, ainda, que a Constituição inglesa é consuetudinária, e portanto também não exibe o caráter legal e escrito que compõe o conceito de constituição formal, assim como um grande número de constituições, como a espanhola de 1876, não possui nenhum dispositivo de salvaguarda de seu conteúdo em face do legislador ordinário.

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A concepção de Constituição como garantia das liberdades fundamentais

tinha sua razão de ser no modelo de Estado liberal, primeiro em sua versão

oligárquico-censitária e, depois, na versão democrática. Contudo, outras

ideologias foram ganhando terreno, até que o modelo liberal foi contestado e

freqüentemente superado pelo surgimento do Estado dos sovietes e do Estado

autoritário fascista e, a seguir, por modelos ecléticos adotados pelos Estados de

recente independência.47

À falta de uma concepção uniforme de Constituição e diante da

insuficiência já tantas vezes reconhecida do critério formal para a identificação

dos seus princípios essenciais, surge para o jurista a necessidade de investigar

além do texto, de pesquisar os elementos e instituições que compõem a matéria

constitucional.

2.5

Constituição no sentido material

É necessário investigar os ordenamentos constitucionais positivos para

conhecer o conteúdo de uma Constituição. Para isso, deve-se levar em conta não

só a parte formalizada em um texto solene (Constituição formal), mas também a

que compreende a chamada Constituição substancial. Constituição formal e

Constituição substancial não estão necessariamente em contraste. Além do texto

da Constituição formal, o conteúdo deve ser perquirido em outros textos escritos,

bem como nos costumes constitucionais, no que se deduz de convenções

constitucionais ou de modificações tácitas da Constituição (a chamada

Constituição real ou vivente etc.).48

Na perspectiva material ou substancial, entende-se que a Constituição

compreende um determinado conteúdo que a define como tal, ou seja, abrange um

conjunto de normas essencialmente constitucionais, indispensáveis para a

organização do Estado: estrutura do Estado, organização de seus órgãos e os

47 Giuseppe de VERGOTTINI, Constituição: In: BOBBIO, Norberto et alli. (org.), Dicionário de Política, vol. 1, p. 258. 48 Giuseppe de VERGOTTINI, Derecho Constitucional Comparado, p. 132-133.

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direitos fundamentais. Neste passo, é oportuno mencionar a clássica distinção de

Carl Schmitt49 entre Constituição e leis constitucionais. Para ele, Constituição

propriamente dita só existe no sentido material (decisões políticas fundamentais:

estrutura e órgãos do Estado, direitos individuais, vida democrática etc.), os

demais dispositivos inseridos no documento que denominamos Constituição

entram no conceito de leis constitucionais.

Na Inglaterra, por exemplo, não se conhece a Constituição no sentido

formal, uma vez que lá as normas constitucionais não se distinguem das outras

pela forma, pela origem nem pelo processo de reforma. Ali o estudioso do Direito

Constitucional terá de defrontar-se com realidade mais complexa, pesquisar entre

os costumes, precedentes e atos do Parlamento, a matéria que se conecte

diretamente com as linhas mestras da estrutura do Estado britânico. 50 Isso explica

a diferença no tratamento doutrinário do direito constitucional histórico: mais

empírico na Inglaterra, mais teórico na Europa continental.51

Tendo em vista os dois aspectos pelos quais se vislumbra a Constituição,

dependendo do critério adotado, teremos a Constituição material ou a

Constituição formal. Daí dizer Paulo Bonavides52 que a Constituição, em seu

aspecto material, diz respeito tão-somente ao conteúdo das determinações mais

importantes, para serem designadas rigorosamente como matéria constitucional.

Por outro lado, a Constituição, em seu aspecto formal, confunde-se com a forma

escrita, e passa a ser vista como o documento que enfeixa as normas superiores,

independente do seu conteúdo. Vê-se, deste modo, que se buscou o

aperfeiçoamento do conceito de Constituição formal, acrescentando-se outro

elemento distintivo da mesma, qual seja, o da rigidez.

Enfim, a distinção entre normas substancialmente constitucionais e normas

apenas formalmente constitucionais pode ser encontrada no mesmo sistema

jurídico. Um exemplo clássico é a nossa Constituição do Império (1824):

“Art. 178 - É só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos Direitos Políticos e individuais dos

49 Teoría de la Constitución, p. 45 e s. 50 Nelson de Sousa SAMPAIO, O poder de reforma constitucional, p. 22-3. 51 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 159. 52 Paulo BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, p. 81.

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cidadãos; tudo o que não é constitucional pode ser alterado, sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinárias.”

Conviviam dentro da mesma Constituição normas materialmente

constitucionais e normas (apenas formalmente) constitucionais. Para alterar-se

norma materialmente constitucional seguia-se um procedimento rígido, para os

demais preceitos o sistema seria flexível. Esse regime eclético, que combina

rigidez e flexibilidade, foi chamado de misto.53

A doutrina da Constituição em sentido material realça o papel das forças

políticas na fixação dos princípios organizativos e funcionais basilares para a vida

de um ordenamento. Isto reforça uma idéia dinâmica de constituição, à medida

que se desenvolve o jogo das forças políticas e sociais, vivas e atuantes dentro do

ordenamento estatal. A doutrina da Constituição material demonstra, aliás,

“que o princípio normativo que origina e justifica um ordenamento, isto é, a Constituição por excelência, consiste na força normativa da vontade política, com aplicação realista do princípio de efetividade (princípio que, se bem que com perspectiva diversa, é também usado, em última instância, pela própria doutrina normativista, ao procurar encontrar, voltando atrás, uma justificação última para as normas gradualmente dispostas em um sistema). A Constituição material tem, portanto, condições de se apresentar como a real fonte de validade do sistema (e, conseqüentemente, também da Constituição formal), de lhe garantir a unidade como fundamento de avaliação interpretativa das normas existentes e de preencher suas lacunas, de permitir identificar os limites da continuidade e mudança do Estado, sendo ela o parâmetro de referência”.54

2.6

Constituições quanto à reforma

Quanto ao processo de reforma, as Constituições podem ser classificadas

em: imutáveis, fixas, rígidas e flexíveis.55

53 Oswaldo Aranha BANDEIRA DE MELLO, A teoria das constituições rígidas, p. 55. 54 Giuseppe de VERGOTTINI, Constituição: In: BOBBIO, Norberto et alli. (org.), Dicionário de Política, vol. 1, p. 260. 55 Adotamos, no caso, a classificação proposta por Nelson de Sousa Sampaio, em obra que, entre nós, tornou-se um clássico na temática da reforma constitucional: O poder de reforma constitucional, p. 47-70.

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2.6.1

Constituições imutáveis

As Constituições imutáveis são aquelas que ostentam a pretensão de serem

eternas, porque não podem ser revogadas nem reformadas legitimamente por

nenhum poder. Conforme ensina Nelson de Sousa Sampaio:

“assentam sobre a crença de que só existe uma única manifestação da atividade constituinte. Esta ter-se-ia exaurido numa só expressão, ou atingido sua forma definitiva e imutável, de modo que não seria concebível, nem legítima, nenhuma recorrência do poder constituinte”. 56

O Código de Hamurabi talvez seja o exemplo mais interessante de normas

inalteráveis, garantidas por sanções divinas e gravadas no seu código de pedra:

“Nos dias que hão de vir, e para todo o sempre, o governante que estiver no País observará as palavras de justiça que estão escritas sobre meu obelisco. Ele não alterará o direito do Estado, por mim formulado, ou as leis do País, por mim promulgadas, nem danificará minhas esculturas”.57

As constituições imutáveis estão associadas em geral com a vontade

divina, de modo que sua alteração pode ensejar inclusive um severo castigo de

ordem sobrenatural.

Algumas constituições, por falta de previsão a propósito de sua

reformabilidade, acabaram gerando interpretações de que não seriam reformáveis

(portanto, estariam na categoria das imutáveis). Outra interpretação possível, na

ausência de um poder reformador, é que a constituição pode ser revisada tal qual a

lei ordinária, o que a enquadraria na classe das flexíveis.

Esse tipo de Constituição foi por nós mencionado por simples interesse

histórico; pois, com a secularização do direito, e firmado o princípio da soberania

popular, é difícil imaginarmos que uma Constituição, surgida num momento

56 Nelson de Sousa SAMPAIO, op. cit., p. 47. 57 Nelson de Sousa SAMPAIO, op.cit., p. 48.

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histórico determinado, possa querer lograr a intangibilidade eterna, afastando o

direito das gerações futuras de se auto-regularem.

2.6.2

Constituições fixas

As Constituições fixas são aquelas que só podem ser modificadas por

manifestação do poder constituinte originário.58 Em geral, não apresentam a

disciplina do processo revisor, como as primeiras constituições modernas. Os

exemplos mais lembrados são as Constituições originais de alguns Estados norte-

americanos e também a Constituição francesa do Ano VIII (1799), obra de

Sieyès.59 Essa espécie também só apresenta interesse histórico, pois, hoje em dia,

as constituições prevêem um órgão especial de reforma, o que as caracteriza como

rígidas.

2.6.3

Constituições rígidas e flexíveis

Parafraseando Oswaldo A. Bandeira de Mello,60 as Constituições escritas,

em um corpo único, nacionais e limitativas das competências, só apareceram, de

forma duradoura, com o advento das idéias que, no século XVIII, influíram nas

revoluções americana e francesa, espalhando-se depois, por imitação desses

países, pelas Américas e Europa.

Deve-se a James Bryce a origem da clássica distinção entre constituições

rígidas e flexíveis, classificação que se incorporou à Teoria da Constituição.

Bryce fez um estudo comparativo,61 publicado em 1901, no qual acentuou a

diferença fundamental entre as constituições antigas e as modernas. As sociedades

58 Nelson de Sousa SAMPAIO, op. cit., p. 39. 59 Nelson de Sousa SAMPAIO, op. cit., p. 55. 60 Oswaldo Aranha Bandeira de MELLO, A Teoria das Constituições Rígidas, p. 35. 61 BRYCE, James. Constituciones flexibles y constituciones rígidas, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1988.

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antigas adotaram constituições do tipo flexível, que se ligam à primeira forma de

organização política de tais sociedades. Os Estados modernos possuem

constituições do tipo rígido, onde as leis principais e fundamentais, denominadas

Constituição, estão num patamar hierarquicamente superior às leis ordinárias ou

comuns e não são modificáveis pela autoridade legislativa ordinária.62

Bryce encontrou os melhores exemplos de constituições flexíveis em

sociedades de temperamento conservador, “... que respeitavam o antigo,

estimavam os precedentes e gostavam de fazer as coisas à maneira como seus

antepassados as fizeram”. São as nações de caráter conservador as que possuem,

geralmente, as condições que possibilitam o nascimento e o desenvolvimento de

uma Constituição flexível.63 Constituem terreno propício às constituições flexíveis

as comunidades rurais – “onde quase todos os homens são cidadãos e possuem

meios econômicos suficientes e quase iguais, não existem os motivos habituais

para levar a efeito mudanças políticas”64 -; e as sociedades aristocráticas – devido

ao nível educacional mais elevado de seus membros, o que é mister para manejar

os precedentes e conhecer bem os costumes; mas também em virtude da liberdade

que se permite aos altos funcionários, cujas ações não estão totalmente reguladas,

os poderes são amplos e legalmente indefinidos, propiciando aos governantes

atuar com bastante independência, impor sua vontade e levar a cabo seus

desígnios, sem que se sintam constrangidos pelo temor de transgredir a lei.65

A partir da laicização do direito e da consolidação da soberania popular,

percebe-se uma evolução do pensamento político. Na antiguidade e no medievo,

por influência de instituições religiosas na sociedade política, prevalecia a

explicação mítica de que a ordem do Estado espelhava a vontade de Deus. Essa

visão de mundo é abandonada na modernidade. As constituições rígidas aparecem

num momento histórico de maior progresso da civilização, marcando uma etapa

relativamente avançada de desenvolvimento político. Surgem no momento em que

se faz a distinção das leis fundamentais do Estado.

A Constituição rígida implica maior dificuldade para sua modificação em

relação às demais normas jurídicas. Essa rigidez emana do princípio da

62 James BRYCE, Constituciones flexibles y constituciones rígidas, p. 13. 63 James BRYCE, Constituciones flexibles y constituciones rígidas, p. 29. 64 James BRYCE, Constituciones flexibles y constituciones rígidas, p. 29. 65 James BRYCE, Constituciones flexibles y constituciones rígidas, p. 43-44.

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supremacia da Constituição. O sempre lembrado Oswaldo A. Bandeira de Mello66

resume muito bem as características desse sistema:

“Portanto, no sistema das Constituições rígidas, a Constituição é a autoridade mais alta, e derivante de um poder superior à legislatura, o qual é o único poder competente para alterá-la. O poder legislativo, como os outros poderes, lhe são subalternos, tendo as suas fronteiras demarcadas por ele, e, por isso, não podem agir senão dentro destas normas. Além do governo, as Constituições rígidas limitam ainda o povo organizado politicamente, isto é, o corpo eleitoral, influenciado pelas agitações momentâneas.

(...)

Restringe a atividade dos representantes, não os autorizando a tocar nas disposições constitucionais e subordinando-os a elas. Restringe-se a si própria, exigindo, para as revisões das Constituições, formalidades especiais e maiorias tão amplas que impossibilitem exprimir situações efêmeras, sem assento nos princípios da moralidade nacional e nas conquistas sociais da humanidade”.

Além de a Constituição rígida ostentar a condição de documento superior e

permanente, ela se impõe ao legislador que, necessariamente, tem de observá-la,

porquanto os atos legislativos devem se conformar com ela.

A Constituição rígida é sempre escrita, mas nem toda constituição escrita é

rígida. A Constituição flexível pode ser escrita, mas, de regra, sublinha Celso

Bastos,67 é costumeira.

A Constituição flexível, por seu turno, não exige forma especial de

revisão, o que a coloca em pé de igualdade com as demais normas jurídicas. A seu

respeito, Oswaldo A. Bandeira de Mello68 subministra a lição que se transcreve:

“Assim, nenhuma distinção faz entre lei constitucional e lei ordinária, quer quanto à formação, quer quanto à validade das mesmas. Os órgãos para a legislação ordinária estabelecem, por idênticos processos, aquela que tem caráter constitucional. O parlamento pode tudo fazer, exceto transformar o homem em mulher, como diz o adágio popular, consagrando a frase jocosa de um jurista.”

Os estudos acerca do poder reformador terão ensejo no que toca às

Constituições rígidas, pois são sempre escritas e obedecem a um procedimento

66 Op. cit., p. 48. 67 Celso Ribeiro BASTOS, Curso de Direito Constitucional, p. 29. 68 Op. cit., p. 51-2.

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especial para modificação, mais dificultoso se comparado ao procedimento

simples de alteração das leis ordinárias.

2.6.3.1

Explicação terminológica

Bryce utiliza expressões “metafóricas”, como ele próprio assinala, para

designar cada um dos tipos de constituição:

“... Las del primer tipo [flexíveis] pueden ser llamadas cambiantes, y estáticas las del segundo [rígidas]. Quiérese decir que las primeras, durante el curso de legislación ordinaria, cambian de modo constante e imperceptible, sin conocer el reposo, mientras que las del tipo más moderno permanecen fijas y estables en sus sitios. Pueden también describirse las primeras como fluidas, y las segundas, como sólidas o cristalizadas.

Cuando queremos cambiar69 la composición de un líquido, lo vertemos en algún otro líquido o disolvemos un sólido en él y agitamos la mezcla. Pero si deseamos alterar la composición de un sólido, debemos primero disolverlo o fundirlo, y después, una vez que lo tengamos en estado líquido o gaseoso, tenemos que mezclar o extraer de él la otra sustancia, según el caso.

La analogía entre dos procesos y aquellos por los que una Constitución del tipo más antiguo y otra del más moderno cambian respectivamente, pueden justificar esos nombres.

Pero existe otra metáfora más sencilla que, aunque no perfecta, parece preferible. Las constituciones del tipo más antiguo pueden llamarse flexibles, porque poseen elasticidad y se adaptan y alteran sus formas sin perder sus características principales. Las constituciones del tipo más moderno no poseen esta propiedad, porque su estructura es dura y fija. Por lo tanto, no hay inconveniente en darles el nombre de constituciones rígidas. Por estos dos nombres las designaremos para los fines de nuestra investigación”. 70

69 “Cambio mecánico, no necesariamente químico” assinala Bryce, em nota de pé de página (op. cit., p. 13 nota 3). 70 James BRYCE, Constituciones flexibles y constituciones rígidas, p. 13-14.

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2.6.3.2

Confusão entre rigidez constitucional e estabilidade

É importante afastar a falsa impressão de que no sistema de Constituição

flexível se alteram as normas constitucionais com maior freqüência, pois a mera

facilidade formal não garante a mudança.71 Há que se destacar a força das

tradições e da cultura, além da solidez das instituições políticas. Na Inglaterra as

normas constitucionais têm invejável longevidade. Segundo Bryce,72 é um mérito

e uma marca distintiva das constituições flexíveis a sua elasticidade, que lhe

permite adaptar-se a diferentes circunstâncias, sem que se rompa sua estrutura.73

Em outras palavras: a constituição dobra mas não quebra. O valor da elasticidade

residiria precisamente em proporcionar os meios necessários para evitar ou

reduzir ao mínimo as revoluções.74 No entanto, essa característica pode ser

problemática, de modo que, em determinadas circunstâncias, “a elasticidade das

constituições pode provocar uma crise e converter-se num perigo ao impelir o

povo em direção à mudança fácil”.75

Se por um lado essa adaptabilidade constitui uma vantagem das

constituições flexíveis, por outro, a insegurança constitui um defeito. Em

contrapartida, a estabilidade de que em tese gozam as constituições rígidas, é

compensada pela desvantagem de sua menor capacidade para modificar-se em

face de necessidades imperativas da situação econômica, social e política.76

Nelson de Souza Sampaio77 ressalta que a distinção entre constituições

rígidas e flexíveis cinge-se ao campo jurídico, haja vista que, no plano sociológico

ou da realidade, pode-se dar o fato de uma Constituição qualificada de flexível ser

de mais difícil ou mais lenta reforma do que outra classificada, juridicamente,

como rígida. Por conseguinte, não é pelo estudo das dificuldades jurídicas de sua

alteração que se pode prever a estabilidade das Constituições. Daí Bryce ter 71 James BRYCE, Constituciones flexibles y constituciones rígidas, p. 26 e s. 72 James BRYCE, Constituciones flexibles y constituciones rígidas, p. 31. 73 A propósito dessa elasticidade, Bryce trabalha basicamente com exemplos históricos das Constituições de Roma e da Inglaterra, mostrando a capacidade de adaptação constitucional à realidade cambiante (op. cit., p. 32 e s.). 74 James BRYCE, Constituciones flexibles y constituciones rígidas, p. 36. 75 James BRYCE, Constituciones flexibles y constituciones rígidas, p. 39. 76 James BRYCE, Constituciones flexibles y constituciones rígidas, p. 99. 77 Nelson de Sousa SAMPAIO, op. cit., p. 62.

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afirmado que a estabilidade de qualquer Constituição depende menos de sua

forma que das forças sociais e econômicas que lhe dão sustentáculo; e que a

Constituição se mantém inalterável quando se apóia no equilíbrio destas forças e

com ele esteja condizente.78

2.6.3.3

Constituições flexíveis e controle de constitucionalidade

As leis integrantes de um ordenamento jurídico de constituição flexível

também se sujeitam ao controle de constitucionalidade, o que nos faz relativizar o

princípio da supremacia constitucional como fundante da rigidez constitucional.

Se a flexibilidade constitucional não admite a distinção formal entre lei

constitucional e lei ordinária, isto não implica a inexistência de diferença material

entre ambas. Assinala Jorge Miranda:79

“Perante uma Constituição flexível, não se posterga, nem é mais diluída a incidência material das suas normas sobre as leis, as quais lhes ficam logicamente subordinadas. Não obstante criadas e revogadas de qualquer forma e ser, porventura, comunicável o objecto, são inconfundíveis as funções. Há limites intrínsecos a que se sujeitam as normas e os actos jurídico-públicos; e também por isso é a Constituição, e não a lei, dentro do Estado, a norma jurídica (ou sob outro aspecto, o acto jurídico) superior; pode haver inconstitucionalidade em Constituição flexível.

Em última análise, a dicotomia rigidez-flexibilidade constitucional vale muito mais no plano histórico e comparativo do que no plano dogmático. Bryce e Dicey sugeriram-na, aliás, como melhor expressão de uma linha divisória nítida entre situações histórico-jurídicas específicas, como contribuição para um conhecimento mais realista dessas situações, das suas origens e das suas condições de subsistência. Por ela apercebemo-nos de que a Constituição, mesmo a Constituição em sentido formal do Estado do século XIX, não contém um quadro de soluções desenraizadas e é susceptível de assumir mais que uma representação”.

78 James BRYCE, Constituciones flexibles y constituciones rígidas, p. 28. 79 Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, p. 126.

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2.6.3.4

Regime jurídico da constituição e mutabilidade

A diferença que se percebe entre os dois tipos de Constituição - rígidas e

flexíveis - não autoriza a interpretação de que uma seria naturalmente imutável e a

outra, mutável. Esta a lição de Biscaretti di Ruffia:

“... esa diferenciación no pretende contraponer a las Constituciones por naturaleza inmodificables (lo cual sería absurdo en un texto fundamental destinado a regular la vida de una sociedad humana en contínuo progreso) otras eminentemente mudables, sino que lo que hace es distinguir aquellas Constituciones escritas, cuyo contenido puede cambiarse sólo con normas emanadas mediante procedimientos más complejos y solemnes de aquellas legislativas ordinarias (o sea, con leyes formales constitucionales), de otras, en las cuales el mismo resultado se puede conseguir con los procedimientos legislativos normales (es decir, con leyes formales ordinarias)”.80

A mudança é fenômeno inevitável. A distinção de que tratamos, neste

tópico, apenas significa que um tipo de Constituição (a rígida) prevê um

procedimento especial de alteração, com limites próprios, e a Constituição

flexível, para ser caracterizada como tal, é aquela alterada por procedimento

legislativo normal ou comum.

2.7

Permanência-mudança no direito constitucional

A doutrina clássica de Constituição, concebida para consolidar um

determinado modelo liberal-democrático, colocou ênfase no seu aspecto estático,

não obstante a história constitucional tenha revelado, em todos os tempos, a

importância dos fatores político-sociais na mudança, no falseamento, na

substituição e na violação dos textos constitucionais.

Nos primórdios do constitucionalismo já se tinha consciência da

impossibilidade e inconveniência de estabelecer-se Constituições eternas. 80 Paolo BISCARETTI DI RUFFIA, Derecho Constitucional, p. 272.

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“Declaration des droits de l’homme adoptée para la Convention Nationale de 29 mai 1793 [corrigimos: no original estava 1973]. El Article premier 30 afirmó: Un peuple a toujours le droit de revoir, de réformer et de changer sa Constitution. Une génération n’a pas le droit d’assujetir à ses lois les générations futures”.81

Segundo Verdú, o reconhecimento da tensão permanência-mudança é

tardio na França, pois somente depois da Segunda Guerra Mundial se tem

apontado o problema da mudança da realidade constitucional. Para Verdú, isso se

deve à equivocada tese de que a realidade constitucional e seu correspondente

direito (normas e instituições) se encontram contidos, expressa ou indiretamente,

nos textos legais básicos, ignorando-se a incidência do costume e das forças

políticas.82

As mutações constitucionais podem ser mais efetivas e em determinadas

circunstâncias mais freqüentes que as revisões formais.83

“Las revisiones constitucionales formales enfrentan a las fuerzas políticas a veces de modo drástico y, en el fondo, desvalorizan el texto constitucional en la medida que cada corriente política organizada pretende apropiarse de él. Además, lo que desean es proteger, mediante la rigidez, determinados contenidos organizativos y socioeconómicos. Entonces resulta que aunque defiendan el cambio constitucional recorriendo el iter formalizado, lo hacen para una vez culminado petrificarlo: en definitiva, anteponen la permanencia al cambio e ignoran la perpetua dialéctica permanencia-cambio que caracteriza a toda Constitución vital que dura porque cambia y cambia para durar”.84

As mutações constitucionais, à medida que respeitem a letra e o espírito da

Constituição, integram-se ao texto constitucional, atualizando-o, silenciosamente

e sem rupturas, de acordo com a mutável realidade política. Neste sentido, as

mutações se adequam perfeitamente à natureza jurídico-política de toda

Constituição política.85

Em certo sentido, diz Verdú, “as mutações constitucionais introduzem

doses flexíveis na Carta constitucional, em geral formalmente rígidas,

81 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 138 nota 2. 82 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 142. 83 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 145. 84 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 145. 85 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 145.

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convertendo-as em elásticas, como tem sucedido com a Constituição norte-

americana”.86

O formalismo constitucional normalmente levanta obstáculos ao caminho

das mutações constitucionais, podendo provocar resultados violentos: golpes de

Estado, revoluções com a conseqüente substituição da Carta fundamental.

2.8

Lei em sentido formal e lei em sentido material (Paul Laband)

Atribui-se a Paul Laband a distinção entre lei em sentido formal e lei em

sentido material, que, segundo Verdú, transportada para o campo do Direito

Constitucional, originou a diferenciação entre Constituição em sentido formal e

Constituição em sentido material. “A lei (Gesetz) pode diferenciar-se como

fixação consciente de uma norma, como proposição jurídica objetiva ou como ato

produzido formalmente segundo as regras estabelecidas pela Constituição”.87

Com base em lição de Maurizio Fioravanti,88 Verdú nos explica que, na doutrina

alemã anterior, o direito constituía o antecedente lógico e histórico do Estado. Isso

significa que o Estado só poderia ser pensado como expressão de uma ordem

ético-jurídica objetiva. “A lei não era ato de vontade do Estado, senão concreção,

em termos institucionais, dos valores históricos consolidados por toda a

coletividade. Era seu simples revestimento formal. Em conseqüência, era

inconcebível pensar que a lei tivesse um duplo sentido: formal e material”. 89

“Cuando madura la concepción del derecho como expresión de una voluntad dominadora, producto del Staatsgewalt, la distinción labandiana asume su plenitud: de la noción de ley en cuanto resultado de cierto camino histórico de la colectividad se separa, autónomamente, la noción de ley en cuanto acto autoritario del Estado-persona, emanado según los procedimientos previstos por la Constitución.

Es el elemento formal – continúa FIORAVANTI – el que siempre define a la Gesetz que constituye su osamenta fundamental, mientras su contenido se

86 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 145. 87 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 146. 88 Giuristi e Constituzione política nell’ottocento tedesco, Giuffrè, Milano, 1979, pp. 306 e ss. Apud Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 146. 89 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 146-147.

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convierte en algo accidental fruto de una postura variable del Estado frente a los problemas concretos de la colectividad.”90

Verdú continua com Fioravanti:

“El componente jurídico de la vida asociada, fuente de sus certezas y de

su estabilidad ya no lo suministra los genéricos valores éticos e histórico-

políticos, sino la presencia, formalmente definida del Estado-persona. Lo

‘jurídico’ se identifica con el estado no tanto en su veste de intérprete de las

fuerzas morales y sociales de la colectividad, cuanto en su dimensión de sujeto

jurídicamente definible y calculable”.91

O formalismo labandiano, através da dicotomia lei em sentido formal - lei

em sentido material, conduz ao imobilismo jurídico-político, ao statu quo.92 Para

entender melhor o desenvolvimento do formalismo na Alemanha, a partir da

diferenciação apresentada por Laband, parece útil ressaltar o contexto histórico

que favoreceu o aspecto formal do direito. Quando ocorreu a unificação do

império alemão, configurou-se um poder político central legiferante segundo a

Constituição. “Una ley del Estado no está signada con el crisma de ‘juridicidad’

en cuanto refleja el ordenamiento prevalente en la colectividad sobre el objeto

determinado de que se trata, los valores consolidados históricamente a propósito

de aquel concreto problema, en definitiva, en cuanto un cierto contenido, sino sólo

en la medida que fue emanada conforme a ciertos procedimientos previstos por la

Constitución. Se expulsan de ésta todos los significados políticos que tiendan a

dar una idea de la Constitución en cuanto reflejo de los principios base sobre los

que se funda la vida de cierta colectividad para reducirla a un puro y simple

complejo de procedimientos que regulan la actividad estatal”.93

90 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 147. 91 FIORAVANTI, Maurizio. Giuristi e Constituzione política nell’ottocento tedesco, Giuffrè, Milano, 1979, p. 308. Apud Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 147. 92 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 147. 93 FIORAVANTI, Maurizio. Giuristi e Constituzione política nell’ottocento tedesco, Giuffrè, Milano, 1979, p. 348-349. Apud Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 147.

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2.9

Constituição e realidade constitucional

Em todo o vasto campo da experiência jurídica, é no direito constitucional

que se apresenta com maior clareza o contraste entre a força das leis e a força dos

fatos. Os fatos podem confirmar a Constituição “no papel”. Mas não raro o papel

e a realidade serão totalmente inconciliáveis. Nem sempre, todavia, será fácil se

aperceber de que o texto normativo da Lei Maior não produziu os efeitos

desejados pelo constituinte ou não se fez efetivo na realidade que pretendeu

normatizar. García-Pelayo tem razão ao afirmar que talvez “... en ninguna esfera

jurídica se manifieste tanto como en el Derecho constitucional la verdad de

aquella proposición de Bierling de que el Derecho es un deber ser existente

(seindes Sollen), y quizá también en ninguna esfera jurídica sea tan grande el

abismo como es posible que lo sea en Derecho constitucional, entre va validez y

la vigencia94 del Derecho, pues en ninguno desempeña tan amplio papel el poder

normativo de lo fáctico y de las decisiones extralegales (aunque no

necesariamente antilegales)”.95 É sem dúvida paradoxal que as normas supremas

da ordem jurídica sejam as de eficácia menos efetiva e mais sujeitas ao

desrespeito e à inaplicabilidade.96

Portanto, estamos convencidos de que é imprescindível o conhecimento da

realidade constitucional para uma adequada compreensão, interpretação e

aplicação da Constituição. 97

Felizmente, o Direito Constitucional parece ter evoluído o bastante para

agregar elementos da realidade antes desprezados por uma visão excessivamente

formalista. Por isso, afigura-se fundamental estudar a tensão Constituição-

realidade constitucional, suas relações e influxos. Verdú sintetiza com muita

propriedade a importância dessa questão:

94 Para evitar confusões, é preciso atentar para a diferença de significados entre o termo “vigencia” dos autores de fala espanhola e a “vigência” na terminologia brasileira. No Brasil, o termo vigência é empregado no sentido de validade técnico-formal, enquanto que vigencia para os juristas de língua espanhola é sinônimo de eficácia. Cf.: Miguel REALE, Lições Preliminares de Direito, p. 105 nota 1. 95 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 31. 96 José Afonso da SILVA, Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 16. 97 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 73.

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“- La dicotomía Constitución-realidad constitucional supone una provechosa renovación del estudio del derecho constitucional, en la medida que corrige las excesivas formalizaciones de la doctrina positivista, de suerte que capta la realidad y proceso políticos normativizados e institucionalizados por el derecho fundamental.

- En ese sentido, la dicotomía Constitución-realidad constitucional tiene alcance epistemológico y didáctico indudable porque el conocimiento científico del derecho constitucional es más completo y profundo, configura y distribuye mejor los problemas, por ejemplo, los elementos de la realidad constitucional (ideologías, partidos, sindicatos...) no son meros datos simplemente complementarios. Están imbricados en el mismo ordenamiento fundamental, sus normas e instituciones los contemplan, regulan y experimentan su influjo.

No cabe duda que su consideración y explicación clarifica el estudio y comprensión del derecho constitucional.

- La interpretación de las normas constitucionales y su concreción en cuanto realización de aquéllas está condicionada por la realidad constitucional.

- Igualmente, la organización y funcionamiento de los órganos e instituciones fundamentales, es incomprensible ignorando la presencia y acción de las fuerzas políticas.

- A mayor abundamiento, la dicotomía Constitución-realidad constitucional, explica, satisfactoriamente, el fenómeno de las mutaciones constitucionales (Verfassungswandlungen) en cuanto imposición, y/o modulación de la Constitución cuando el texto escrito fundamental no coincide o se ajusta mal a la realidad constitucional y entonces muda, o cambia de alcance, sin alterarse literalmente y sin afectar a su telos”.98

Verdú observa que a realidade constitucional não é independente do direito

constitucional. Isto significa que ela “não é uma objetividade alheia à

Constituição”. Se por muito tempo a realidade constitucional foi ignorada pela

maioria, isto se deve, em grande parte, a interesses políticos e econômicos. Ao

consolidar-se no poder, a burguesia procurou salvaguardar, por meio de normas e

instituições jurídicas, seus interesses capitalistas. Não o fez, todavia, com explícita

referência, mas encoberta por formas jurídicas com a finalidade de alcançar

equilíbrio e estabilização (direitos e liberdades individuais, separação de poderes,

igualdade formal perante a lei). Destarte,

“En la medida que la realidad constitucional contradictoria va influyendo e presionando (partidos, sindicatos, ideas y movimientos socialistas, corrientes de izquierda demoliberales), la burguesía acepta el cambio del Estado liberal de Derecho en Estado social de Derecho. Así se insertan, en las Constituciones, los

98 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 74.

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derechos económicosociales, los partidos, los sindicatos, la huelga y la planificación. Empero, la doctrina sea por apego a la tradición científica, sea por temor a la pérdida del perfil jurídico de la disciplina invadida por la Sociología y/o la Ciencia política y hasta por convencimiento ideológico, considera que conviene frenar el ascenso de la realidad constitucional al ámbito científico. De este modo mantiene la convicción ingenua pero interesada que impedirá su imposición en la política. El hecho es que ha tardado mucho en admitir la realidad constitucional”. 99

É um equívoco querer separar como coisas totalmente estanques,

Constituição e realidade constitucional. Na verdade, “tanto a Constituição como a

realidade constitucional são realidades jurídicas”. São “elementos jurídico-

políticos intimamente interrelacionados seja nos momentos de estabilidade, seja

em tempos de crise e enfrentamento entre ambos os membros da dicotomia”.

Neste último caso, onde ocorre um contraste e uma tensão entre Constituição e

realidade constitucional, esta tende a impor outro ordenamento fundamental.

Quando essa mudança não acontece ou atrasa, a Constituição torna-se irreal,100 ou

semântica, na terminologia de Loewenstein.101

Segundo Verdú, todo ordenamento constitucional (no sentido tradicional

de garantidor da liberdade) descansa numa realidade constitucional, que ele define

nos seguintes termos:

“la realidad constitucional consiste en un conjunto de elementos que se interrelacionan sea colaborando u oponiéndose entre sí, sea complementándose encaminado a formar, sustentar y modular el Estado y la sociedad. (...) consiste en un conjunto de factores sociopolíticos que influyen sobre la Constitución condicionándola, manteniéndola, modulándola, transformándola y, a veces, sustituyéndola”.102

Da definição acima, Verdú deduz as seguintes características da realidade

constitucional: dinâmica, condicionante, potencializadora, moduladora do

ordenamento constitucional.103

99 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 74-75. 100 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 76. 101 Karl LOEWENSTEIN, Teoría de la Constitución, p. 218-222. 102 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 78. 103 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 78.

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2.9.1

Matéria constitucional e realidade constitucional: analogias e diferenças

Com a finalidade de tornar ainda mais claro o perfil do que se entende por

“realidade constitucional”, Verdú compara-a, didaticamente, com outra categoria

incorporada à dogmática constitucional, a denominada “matéria constitucional”,

oriunda da dicotomia Constituição formal/Constituição material. Esclarece o

jurista espanhol que matéria constitucional é uma categoria doutrinária elaborada

de acordo com o que se considera ser conteúdo imprescindível de uma certa

ordem constitucional. A realidade constitucional é, por seu turno, uma categoria

que advém da ciência política, e que foi incorporada ao direito constitucional.

Assemelham-se essas duas figuras por serem elementos ou conteúdos em face das

normas jurídicas que as envolvem, estando ambas relacionadas com aspectos

ideológicos, institucionais, sócio-econômicos (forma e organização política,

direitos individuais e sociais etc.). Diferenciam-se, por outro lado, pelo fato de

que a matéria constitucional está contida em grande parte na faceta institucional e

no texto da Constituição e das leis orgânicas ou complementares da Constituição;

enquanto que a realidade constitucional seria algo mais complexo e abrangente,

cujos elementos nem sempre são acolhidos pela Constituição formal, como

sindicatos, grupos de pressão, movimentos sociais, ecologistas, igrejas etc.).104

2.9.2

A mutação constitucional como efeito da não recepção formal de elementos da realidade constitucional

A resistência dos grupos políticos dominantes em admitir, formal e

institucionalmente, elementos da realidade constitucional pode trazer, como

conseqüência, a produção do fenômeno da mutação constitucional.

104 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 78-80.

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Pedro de Vega chama a atenção para duas circunstâncias que não podem

ser olvidadas no estudo da mutação constitucional. Em primeiro lugar, a

dinamicidade imposta ao ordenamento constitucional pela realidade política e

social, rendendo ensejo às transformações e modificações do mesmo, seja através

da reforma, seja através da mutação, em ambos os casos como necessidade

inexorável de adaptação da realidade jurídico-normativa à realidade histórica. Em

segundo lugar, mutação e reforma são, num certo sentido, termos complementares

e excludentes. À medida que um ordenamento se veja submetido a reformas

contínuas, a mutação deixará de ter sentido. Ao revés, onde se tem receio de

recorrer à reforma, proliferam inelutavelmente como substitutivos as mutações

constitucionais.105

2.9.3

Estática e dinâmica constitucionais

A idéia de permanência tem estado estreitamente ligada à idéia de

constituição, desde o momento em que a estabilidade passou a considerar-se um

atributo da Carta Política. Uma das formas históricas de assegurar a permanência

da Constituição consistiu em considerá-la imutável ou, pelo menos, reforçada por

especiais garantias de estabilidade.

“O jusnaturalismo106 racionalista do século XVIII, em virtude de seus próprios supostos filosófico-políticos (imutabilidade e universalidade da razão, contrato social), teve de afirmar também a imutabilidade das normas constitucionais, exigindo, de modo geral, o consensus omnium, o consensus unanimitotius nationis”.107 (traduzimos)

Quando as premissas do conceito racionalista começam a ruir diante da

experiência histórica, surge a idéia da superlegalité constitutionnelle, que

105 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 180-181. 106 Uma boa síntese do Jusnaturalismo ao longo da história e de suas variadas formulações pode encontrar-se em Guido FASSÒ: Jusnaturalismo. In: BOBBIO, Norberto et. al., Dicionário de Política, p. 655-660. 107 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 129-130.

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substituirá a tese da imutabilidade do conteúdo para assegurar a sua permanência

como forma.108

Tendo em vista que as constituições históricas (flexíveis) tem como nota

característica seu caráter dinâmico, como mostrou Bryce, é no marco das

constituições rígidas que ganha contornos especiais a questão da permanência do

conteúdo normativo (estática). A estática constitucional deve ser compreendida

num sentido relativo, conjugando-se a idéia de duração com a de mudança de

acordo com os procedimentos previstos na Constituição. Com efeito, na prática as

constituições não são alteradas apenas nos limites do processo formal de revisão,

mas constantemente o são por caminhos variados, permanecendo inalterado o

texto constitucional. García-Pelayo aponta duas características essenciais da

constituição, que, a seu ver, explicariam esse fato:

“A) En primero lugar, en el hecho de que la constitución no sea uma normatividad abstracta, sino la estructura normativa concreta de un Estado, es decir, de una individualidad histórica que existe en cuanto que perpetuamente se renueva, estructura normativa que forma parte integrante de la existencia del Estado y que emerge de esta existencia. Por consiguiente, la constitución ha de participar de ese devenir, que es esencial a la vida del Estado.

B) En segundo lugar, en una circunstancia fuertemente vinculada a este carácter individual de la constitución y que hemos destacado anteriormente, a saber: la relación condicionadora y condicionante de la constitución con las restantes estructuras del Estado y de la sociedad. Mas si estas estructuras sociales, económicas, políticas, jurídicas, etc., están sujetas a movilidad, es claro que esta movilidad ha de proyectarse también sobre la estructura constitucional”.109

García-Pelayo chama a atenção para um aspecto primordial para o

entendimento das mutações constitucionais, diz ele que “la esencia de uma

constitución no radica, sin más, en unas palabras, sino en el significado atribuido a

las palabras del texto com relación a las situaciones concretas. Por eso, una

constitución, escrita o no escrita, no es nunca una obra totalmente acabada, sino

una apertura de posibilidades para que los hombres realicen su convivencia. De

aquí que, sin variar los textos, se haya pasado de un constitucionalismo

monárquico a un régimen parlamentario; de un predominio del legislativo al del

108 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 130-131. 109 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 132.

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ejecutivo; de un Estado más próximo a la Confederación a un Estado más

próximo al unitario...”.110

García-Pelayo menciona os possíveis caminhos por onde a constituição se

converte em um processo dinâmico:

a) A língua viva. Toda norma é formulada por meio de palavras. As

palavras de uma língua viva quase sempre têm seu conteúdo alterado ao longo do

tempo, não sendo, portanto, uma forma com um conteúdo fixo. Os significados

das palavras podem alterar-se, seu conteúdo pode aumentar ou reduzir. A vida de

uma língua, diz García-Pelayo, “no se manifiesta solamente en la creación de

nuevas palabras, sino también en la integración de nuevos pensamientos o en la

sustracción de los antigos a las palabras ya existentes”. Por isso, conclui com

muita propriedade o citado jurista espanhol, “es erróneo el critério de que la forma

escrita daría a la constitución una estabilidad y precisión permanentes. Como han

reconocido las Iglesias, sólo una lengua muerta (latín, griego, eslavo antiguo)

sería el medio adecuado de expresión para normas con un contenido fijo e

inmutable. Pero cuando la norma se expresa en lengua viva, sus prescripciones

quedan sometidas a los cambios de significación de las palabras, que se

convierten así en vía de penetración de nuevos pensamientos, ideas y conceptos, y

de la transformación del sentido de la constitución con arreglo a ellos”.111

b) A Constituição só pode regular os aspectos fundamentais da vida

estatal. A Constituição não deve ter a pretensão de disciplinar de forma detalhada

o conteúdo constitucional. Sempre existirão lacunas a serem preenchidas, não

sendo possível prever de forma exaustiva todas as situações, todos os possíveis

casos e todas as questões de competência que possam surgir. Os problemas que

aparecem na vida política de um Estado nem sempre poderão ser solucionados

pela reforma constitucional. Daí a necessidade de soluções que complementem a

Constituição, sanando suas omissões, mas não raro apresentando uma mudança na

mesma.112

c) Os preceitos constitucionais têm uma intenção determinada que

correspondem à realidade do tempo de sua promulgação. Mas ditos preceitos

110 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 132. 111 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 133. 112 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 134.

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podem ser utilizados com intenção distinta quando variam as relações de poderes

ou quando se apresentam novas finalidades para a ação política, e então a

ordenação que produzem ao conectar-se com o resto dos preceitos constitucionais

é distinta da estrutura anterior. 113

d) A superlegalidade constitucional, isto é, a superioridade da Constituição

formal sobre as leis ordinárias ou sobre os demais modos de produção normativa

não significa que modificações sofridas nas instâncias inferiores do ordenamento

não afetem a Constituição. O sentido da Constituição pode depender em grande

medida de normas jurídicas criadas pelos métodos ordinários. A lei ordinária pode

aparecer como complemento da constituição, não só com relação às leis de caráter

adjetivo, mas também no caso de leis de caráter substantivo (ex: leis eleitorais).

Segundo García-Pelayo, o caso mais patente de modificação da constituição

formal por preceitos legislativos tem lugar com as chamadas “leis de defesa do

Estado”. Na maioria dos casos, estas leis anulam praticamente as garantias

individuais estabelecidas pela constituição.114

As concepções históricas e sociológicas da constituição acentuam o

momento dinâmico da Constituição.

García-Pelayo indaga como é possível a unidade da constituição? O que é

que em meio as mudanças nos permite reconhecê-la como um mesmo ser?

Responde-nos o jurista: o fato de que seja a estrutura na qual se manifesta a

unidade jurídico-política de um povo, de maneira que, com tal ou qual conteúdo a

Constituição é sempre ordenação dessa unidade.

Nessas considerações de García-Pelayo acerca da dinâmica constitucional,

percebemos uma clara influência do pensamento de Hermann Heller, mas

sobretudo de Rudolf Smend.

No próximo capítulo, veremos que é principalmente na doutrina desses

dois autores alemães que se acham os fundamentos da dinâmica constitucional,

onde encontramos uma compreensão singular para o fenômeno da mutação

constitucional.

113 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 134-135. 114 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 135.

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3

MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL: ORIGEM DO CONCEITO

Sumário: 3.1. Introdução. 3.2. A mutação constitucional como problema. 3.3. A constatação das mutações constitucionais por Paul Laband. 3.4. Noção e conceito de mutação constitucional: Georg Jellinek. 3.5. A mutação como parte de um conceito dinâmico de Constituição. 3.6. Importância dos autores da época de Weimar na reflexão sobre o problema da mutação informal da Constituição. 3.6.1. A mutação como elemento de um conceito ambivalente de Constituição: Rudolf Smend. 3.6.1.1. O Estado como integração espiritual. 3.6.1.2. A Constituição como constante mutação. 3.6.1.3. Integração e interpretação constitucional. 3.6.2. Normalidade e normatividade: Hermann Heller. 3.6.3. A contribuição de Hsü Dau-Lin. 3.6.3.1. Classificação das mutações constitucionais. 3.6.3.2. Mutação através da prática estatal que não viola a Constituição. O problema das lacunas constitucionais. 3.6.3.3. Mutação como impossibilidade de exercício de determinadas atribuições descritas na Constituição. O problema da mutação por desuso. 3.6.3.4. Reforma material da Constituição e mutação constitucional. 3.6.3.5. Mutação constitucional por meio da interpretação. 3.6.3.6. Mutação constitucional e direito consuetudinário. 3.6.3.7. Mutação constitucional e regras convencionais. 3.6.3.8. Mutação constitucional como violação da Constituição. 3.6.3.9. Mutação da Constituição como problema constitucional. 3.6.4. Essência da mutação constitucional.

Neste capítulo, pretendemos apresentar em linhas gerais a origem do

conceito de mutação constitucional. Os primeiros trabalhos teóricos a tratar da

mutação constitucional surgem no marco da Constituição bismarckiana. A

mutação foi vista como um problema para os positivistas formais, albergados na

Escola Alemã de Direito Público, uma vez que as mudanças constitucionais

ocorriam concretamente sem a observância do processo formal de alteração das

normas da Constituição. Entre as duas guerras mundiais, a visão formalista é

fortemente questionada na Alemanha, desenvolvendo-se estudos nos quais o

fenômeno da mutação constitucional é colocado não mais como um problema,

mas como elemento integrante do próprio conceito de Constituição dinâmica e

material, que privilegia os aspectos da realidade político-constitucional. O

presente trabalho não comporta, por razões óbvias, uma análise exaustiva dessa

riquíssima doutrina alemã. No entanto, pretendemos descrever e analisar algumas

concepções que ajudam a entender a origem e as controvérsias em torno do tema.

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3.1

Introdução

O problema das mutações constitucionais começou a ser estudado em

finais do século XIX e princípios do XX, por autores ligados à Escola Alemã de

Direito Público. Foi Paul Laband quem estabeleceu a distinção entre “reforma

constitucional” (Verfassungänderung) e “mutação constitucional”

(Verfassungswandlung). Ele formulou esta última expressão para designar o

fenômeno da mudança de significado ou sentido da Constituição, sem que seja

alterado o seu texto. Embora a Constituição já fosse concebida como Lei (Gesetz)

destinada a dar continuidade e estabilidade aos elementos fundamentais do

Estado, Laband constatou que ela podia transformar-se à margem dos mecanismos

formais de reforma.1 Jellinek também verificou - a partir da observação de que as

Constituições de muitos Estados sofrem profundas modificações - que a

estabilidade das leis fundamentais não é maior que a das outras.2

A problemática da mutação constitucional surgiu com um enfoque

especificamente formalista nas obras de Laband e Jellinek, sendo percebida como

um contraste entre as normas jurídicas escritas e a situação jurídica real,

caracterizada principalmente como desvalorização das normas jurídicas das

instituições afetadas.3 Jellinek exprimiu sua posição positivista formalista ao

definir a reforma constitucional por um prisma de juridicidade exclusiva: “através

de um ato intencional de vontade que modifique o texto da Constituição”.

Segundo Paulo Bonavides, “isso quer dizer que o jurista [leia-se: Jellinek]

sufocava ou reprimia o sentido criador e modificador contido no chamado

‘espírito da Constituição’, de natureza dinâmica e flexível, para unicamente

realçar o aspecto estático e rígido e só admitir a introdução de preceitos

constitucionais materiais por via formal. Como não importa a espécie de conteúdo

que vai ser posto na Constituição, tudo é admissível, desde que se não viole a

forma elaborativa estabelecida, essência de toda a juridicidade. As Constituições

1 URRUTIA, Ana Victoria Sánchez. “Mutación constitucional y fuerza normativa de la Constitución: una aproximación al origen del concepto”, Revista Española de Derecho Constitucional, Año 20. Núm. 58. Enero-Abril 2000, p. 105-135. 2 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 5. 3 DAU-LIN, Mutación de la Constitución, p. 24 e 29.

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formais, vistas tão-somente pelo ângulo avalorativo do positivismo e de sua

metodologia, caíram debaixo da crítica impiedosa dos antiformalistas”. 4

Ana Victoria Urrutia destaca, entretanto, que parte da doutrina alemã de

entre as duas guerras procura integrar a mudança informal a um conceito

complexo de Constituição. Nesta linha, Heller e Smend descrevem a Constituição

como um ente dinâmico, em constante movimento, que interage continuamente

com a realidade política. E Hsü Dau-Lin utiliza o sistema conceitual de Smend

para ordenar de forma sistemática todas as possibilidades nas quais podem

produzir-se mutações constitucionais.5

Para entender o problema e a origem do conceito, parece-nos muito útil

seguir o roteiro traçado por Ana Victoria Urrutia, na descrição e análise dos

pontos mais relevantes dessas formas de conceber a Constituição.6

3.2

A mutação constitucional como problema

A história da Alemanha é marcada por várias tentativas de unificação, só

obtida no final do século XIX, com a formação do Império Alemão.7 Essa

composição não se fará de forma tranqüila. A Prússia assume posição hegemônica

em detrimento da Áustria, que é excluída do novo Império. O Império (Reich)

será formado por Estados (Länder) muito distintos entre si: desde os Grandes

Ducados como Mecklemburgo-Schwerin, onde existia ainda o absolutismo,

passando pela Prússia, que era uma monarquia limitada, até cidades livres, como

Hamburgo, que eram repúblicas.8

4 Paulo BONAVIDES, Curso De Direito Constitucional, p. 173. 5 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 106. 6 A estruturação do presente capítulo, portanto, será muito similar a do trabalho da Professora de Direito Constitucional da Universidade de Barcelona, Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 105-135. Em muitos aspectos, a análise aqui empreendida também coincidirá com o teor do estudo citado, até mesmo em função da pesquisa ter se direcionado basicamente para as mesmas fontes bibliográficas. 7 Sobre as características políticas da unidade alemã: GUILLEN, Pierre. O Imperio Alemão de 1871 a 1918. In: NÉRÉ, Jacques (Org.). História Contemporânea. Trad. Octávio Mendes Cajado, São Paulo: Círculo do Livro, s.d., p. 315-327. 8 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 106.

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A estrutura federal da Alemanha foi a fórmula encontrada para a

organização do império que permitiu preservar os particularismos locais, as

tradições regionais, seus reis e dinastias, embora os Estados passassem agora a

fazer parte do grande conjunto nacional, constituído por Bismarck. Havia 22

Estados monárquicos e 3 cidades livres que continuaram a existir com suas

instituições próprias; delegando ao Reich, entretanto, algumas de suas atribuições:

negócios exteriores, exército, alfândegas, moeda. Os Estados do Sul e do Centro

desejam preservar sua autonomia, ao passo que a Prússia receia dissolver-se no

Reich. Essa situação levou Bismarck a manter a estrutura federal adotada pela

Confederação da Alemanha do Norte.9

No plano federal, o poder legislativo é dividido entre duas casas: o

Reichstag, eleito pelo sufrágio universal, e o Reichsrat, assembléia de delegados

dos Estados. O governo imperial é dirigido pelo chanceler (Kanzler) nomeado

pelo imperador (Kaiser) e só responsável perante ele. Alguns problemas parecem

insolúveis e são recorrentes até 1918:

“a colaboração entre as duas Assembléias, as relações entre o governo prussiano e o governo imperial, a conciliação entre as aspirações contraditórias do Reichstag eleito pelo sufrágio universal e do Landtag da Prússia, dominado pela aristocracia, a partilha dos encargos fiscais entre o Reich e os Estados”.10

A Constituição do Império Alemão de 1871 inaugura uma nova ordem

jurídica, que, logicamente, se sobrepõe às confederações anteriores e ao regime

organizativo de cada um dos Estados membros. Ocorre que, como observa

Jellinek,11 a Constituição imperial gerou uma situação anormal nos Estados

federados. Isto porque a grande maioria dos Estados manteve suas constituições

locais, embora seus dispositivos já tivessem sido total ou parcialmente revogados

pelo direito do Reich. Além disso, a Constituição imperial tinha caráter

fragmentário, pois não continha todas as instituições fundamentais do Império.

Sublinha Ana Victoria Urrutia que é no marco histórico da Constituição

imperial alemã que surgem os primeiros trabalhos teóricos sobre o problema da

mutação constitucional. A autora aponta quais seriam os pressupostos necessários 9 Pierre GUILLEN, op. cit., p. 315. 10 Pierre GUILLÉN, op. cit., p. 315-316. 11 Op. cit., p. 12-13.

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para o desenvolvimento desse tema na Europa: um certo grau de rigidez da

Constituição e sua compreensão como instrumento normativo.12

Neste contexto, autores ligados à Escola Alemã de Direito Público13 se

interessam pelo problema das mutações constitucionais.

“Esta escuela fundada por Gerber y Gierke inicia una tradición ‘científica’ en Alemania dentro de la cual se inscriben juristas como Laband y Jellinek. La Escuela alemana de Derecho Público propugnaba como punto de partida metodológico la separación entre derecho y política. El derecho público, según esta escuela, debía ser estudiado de manera aislada sin tener en cuenta los fenómenos políticos cambiantes. En este contexto, no deja de resultar paradójico14 que sean precisamente dos autores destacados de esta tradición los que inicien el estudio del contraste entre lo descrito en las normas constitucionales y el funcionamiento real del Estado constitucional”. 15

Lembra Paulo Bonavides que os positivistas formais podem defender

satisfatoriamente a juridicidade das Constituições enquanto o texto escrito esteja

em consonância com a realidade. Mas quando norma e fato se divorciam, gerando

crise e perplexidade, deságua-se no problema da mudança constitucional.

“A mudança sempre ocorre, mas o positivismo não sabe e nem pode explicar em que medida ela se atém apenas a variações levadas a cabo juridicamente mediante alteração formal de textos”.16

12 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 107. 13 Sobre a Escola Alemã de Direito Público, vale consultar: VILLARROYA, Joaquín Tomás. “La dirección dogmática en el derecho político”, Revista de Administración Pública, Madrid: Instituto de Estudios Políticos, núm. 79, Enero-Abril 1976, pp. 67-89; PEREZ ROYO, Javier. “El proyecto de Constitución del Derecho Publico como ciencia en la doctrina alemana del siglo XIX”, Revista de Estudios Políticos, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, núm. 1, 1978, pp. 67-97. 14 Jellinek parece justificar indiretamente a compatibilidade do tema estudado com os postulados da Escola de Direito Público, quando, no prólogo de sua obra, “Reforma y Mutación de la Constitución”, op. cit., p. 3, afirma o seguinte: “El curso de esta investigación se mueve en los linderos entre el Derecho constitucional y la política. Siempre he sostenido la separación metódica y la unión científica de ambas disciplinas”. 15 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 107-108. 16 Paulo BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, p. 173.

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3.3

A constatação das mutações constitucionais por Paul Laband

Espantado com o modo como se vinham processando as mudanças da

Constituição do Reich alemão, sem o acionamento dos mecanismos institucionais

de “reforma constitucional” (Verfassungänderung), Paul Laband criou o conceito

de “mutação constitucional” (Verfassungswandlung). Ao contrário de outros

autores, ele trabalha com a premissa de que a Constituição é norma jurídica em

sentido estrito:

“Las Constituciones son leyes, las cuales proporcionan a la continuidad del derecho una especial firmeza y estabilidad, que ningún aspecto de la legislación ordinaria puede ofrecer y, en este sentido, son la codificación de lo más fundamental del derecho estatal”.17

Em que pese essa visão normativa da Constituição, que implica a

observância de formas jurídicas prescritas para alterar o texto vigente, Laband

reconhece que a ação do Estado pode transformá-la sem necessidade de sua

modificação formal. Além disso, de todas as disposições presentes na

Constituição, algumas oferecem apenas escasso interesse para a maioria da

população e possuem significado subordinado e passageiro; mas outras há que

dizem respeito à essência do Estado, e que, no entanto, experimentam uma

modificação radical e significativa mesmo que o texto da Constituição não sofra

nenhuma alteração redacional.18 Verdú observa que as mutações da Constituição

do império enumeradas por Laband possuem o significado e alcance político que

as próprias instituições do Reich exigiam; deixando, porém, o texto constitucional

intacto.19

Ao analisar os casos de mutação constitucional mais importantes na

vigência da Constituição imperial da Alemanha, Laband percebeu três caminhos

17 Paul LABAND, Die Wandlungen der Deutschen Reichverfassung, publicado no “Jahrbuch der Gehe-Stitung zu Dresen”, 1895, págs. 149-186. O fragmento citado foi extraído da sua reimpressão em Laband: Abhandlungen und Rezensionen, vol. 1, Leipzig, 1980, p. 574. Apud Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 108. 18 Paul LABAND, Die Wandlungen der Deutschen Reichverfassung, op. cit., p. 575. Apud Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 108. 19 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 165.

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distintos de alteração informal da Constituição: 1) por meio de leis que regulam

elementos centrais do Estado não previstos ou previstos de maneira colateral pela

Constituição;20 2) leis que modificam elementos centrais do Estado em

contradição com o conteúdo da Constituição; 3) usos e costumes dos poderes

públicos que modificam elementos centrais do Estado.21

No primeiro caso, a inexistência de uma regulação contemplando as

instituições centrais do Estado rendia ensejo à transformação da realidade

constitucional à margem do processo formal de alteração da Constituição.22

Um caso importante de mutação constitucional, através da legislação e

prática política em contradição com o texto da Constituição do Reich, comentado

por Laband, diz respeito à função do Chanceler, a quem competia referendar os

atos do Kaiser, conferindo-lhes validez. Era justamente pelo fato dessa

competência constitucional ter sido atribuída ao Chanceler que se deduzia ser ele

o responsável pela ação política do Estado. Ocorre que nos primeiros anos de

vigência da Constituição imperial o Chanceler do Reich era ao mesmo tempo o

Chanceler da Prússia. Considerando a extensão e a diversidade administrativa do

Reich, era impossível que uma única pessoa pudesse exercer essa função. Por isso,

na prática, admitiu-se que o referendo pudesse ser realizado pelos chefes das

administrações do Reich. É de notar-se que em 1879 surge uma lei criando a

figura do Generalvestreter (Lugar-tenente), para substituir em situações especiais

o Chanceler do Reich. Contudo, na realidade, salienta Laband,23 o

Generalvertreter foi nomeado sem que estas circunstâncias ocorressem.24

20 A doutrina registra que várias leis do Império mudavam o ordenamento fundamental à medida que estabeleciam competências do poder central (Reich), criavam instituições destinadas a executar funções políticas do Império, bem como dispunham sobre direitos e liberdades individuais em face do poder estatal ou dos membros da federação. Cf.: Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 165. 21 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 108. 22 Ana Victoria Sánchez URRUTIA (op. cit, p. 108-109) sintetiza diferentes problemas observados por Laband, geradores de mutações constitucionais: “La inexistência de definición de la posición política de los ministros del Reich, la no previsión de un procedimiento de incorporación de nuevos territórios a la Unión Alemana, la regulación constitucional imperfecta y escasa de las finanzas del Reich y la vaga e incompleta previsión constitucional de los criterios de distribución competencial entre los Länder y el Reich suponían que su situación real sólo pudiese ser deducida del contenido de las leyes del Reich. Así, para Laband, la mayoría de las leyes suponían, en la práctica, un cambio de la situación constitucional del Reich.” (Paul LABAND, Die Wandlungen der Deutschen Reichverfassung, op. cit., págs. 575-576.) 23 Paul LABAND, Die Wandlungen der Deutschen Reichverfassung, op. cit., p. 577-578. Apud Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 109. 24 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 109.

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Ressalte-se que Laband considerava impossível exercer controle jurídico

sobre os processos informais de alteração da Constituição. O eminente jurista

sustentava que “la regla según la cual las leyes ordinarias deben estar siempre en

armonía con la Constitución y no deben ser incompatibles con ésta, constituye un

postulado de política legislativa, pero no un axioma jurídico...”. 25 Em face disso,

Ana Victoria Urrutia deduz que Laband atribuía à Constituição força normativa,

mas não superioridade hierárquica sobre as leis do Parlamento.26

3.4

Noção e conceito de mutação constitucional: Georg Jellinek

Uma das obras básicas da literatura jurídica alemã sobre o assunto em

pauta, traduzida para o espanhol, é Reforma y mutación de la Constitución,27 de

Georg Jellinek, originada da conferência que o autor proferiu a 18 de março de

1906 na Academia Jurídica de Viena. Neste estudo, Jellinek, inspirado em

Laband,28 adotou a “intencionalidade” como critério para distinguir a mutação da

reforma constitucional.

“Por reforma de la Constitución entiendo la modificación de los textos constitucionales producida por acciones voluntárias e intencionadas. Y por mutación de la Constitución, entiendo la modificación que deja indemne su texto sin cambiarlo formalmente que se produce por hechos que no tienen que ir acompañados por la intención, o consciencia, de tal mutación”.29

Depreende-se do conceito acima que a reforma constitucional, para

Jellinek, é um ato de vontade. Esse conceito é bastante amplo, pois abrange

25 Paul LABAND, Das Staatsrechts des deutschen Reiches, vol. II. Apud Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 110. O fragmento foi traduzido livremente pela autora citada, a partir da consulta à versão francesa: Le Droit Public de l’Empire Allemnd, vol. 2, Girard & Brière, Paris, 1901, p. 314. 26 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 110. 27 JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Trad. Christian Förster. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991. (orig. Verfassungsänderung und Verfassungswaandlung. Eíne staatsrechtlich-politische Abhandlung von Georg Jellinek, Berlín, Verlag von O. Häring, 1906). 28 LABAND, Paul. Wandlungen der deutschen Reichsverfassung, 1895, p. 2 e ss. Apud Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 7. 29 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 7.

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hipóteses não necessariamente ajustadas com o Direito. Assentam numa vontade

dirigida, são atos jurídicos. Mesmo a subversão total da Constituição, através de

uma revolução, enquadra-se no conceito de reforma jellinekiano.30 O que

caracteriza a mutação, por seu turno, é a falta de consciência do efeito da

mudança.31

Jellinek sustenta que as leis constitucionais, assim como as ordinárias,

podem ser reformadas de três maneiras: (1) podem ser ab-rogadas; (2) podem

receber outro texto; (3) ou podem substituir-se por leis posteriores.32 A primeira

hipótese é bastante clara, a Constituição é inteiramente revogada. A segunda

pressupõe uma revisão parcial da Constituição, onde se altera apenas parte do

texto. A terceira diz respeito à denominada reforma constitucional tácita (ou

material), em que as novas leis constitucionais derrogam a parte do texto original

que não seja com elas compatível. Este seria o caso da Constituição dos Estados

Unidos (1787), cujo texto original continua preservado, não obstante seu conteúdo

tenha sofrido diversas modificações em virtude das emendas que se acrescentaram

à Constituição.

Jellinek é pouco sistemático na descrição do fenômeno da mutação

constitucional, como observa Ana Victoria Urrutia. Isto porque ele recolhe de

maneira pouco ordenada dados sobre as mudanças informais das Constituições de

sua época.33 Ele menciona diversas vias de mutação constitucional, como através

de atos normativos, interpretação, prática parlamentar, administrativa e

jurisdicional, necessidade política, desuso, lacunas e integração, usos e costumes.

3.5

A mutação como parte de um conceito dinâmico de Constituição

O período compreendido entre a primeira e a segunda guerra mundial é

particularmente fecundo em relação ao direito público na Alemanha. Nesta época

se registram a excepcional dogmática racional de Kelsen e as concepções da 30 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 9. 31 DAU-LIN, op. cit., p. 29. 32 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 11. 33 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 111.

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dinâmica constitucional de Heller e Smend,34 além de outros autores e trabalhos

importantes.

A Constituição de Weimar de 11 de agosto de 1919 marca o começo de

uma transição para a democracia na Europa do século XX. Este novo código

constitucional alemão adquiriu um valor histórico e passou a servir de referência

para outras constituições democráticas sucessivas, porque, ao lado dos direitos

individuais clássicos, assegurou também direitos coletivos.35 Pode-se dizer que a

Constituição de Weimar inicia, na Europa, uma transição do Estado Liberal

Clássico para o Estado Social de Direito.36 37

A Constituição de Weimar já inicia o seu articulado declarando que o

poder constituinte pertence ao povo: “Art. 1º O Império (Reich) Alemão é uma

República. O Poder Político emana do povo”.38 A partir de Weimar, as

constituições democráticas do século XX buscam superar os limites da forma

constitucional estatal e parlamentar, pois não se restringem mais ao ordenamento

dos poderes e à remissão à lei para garantir os direitos. Elas pretendem,

principalmente:

“significar la existencia de algunos principios fundamentales generalmente compartidos, que el ejercicio del poder soberano constituyente del pueblo ha colocado en la base de la convivencia civil. A partir de aquí comienza una nueva historia que, en buena medida, consiste en la búsqueda de los instrumentos institucionales necesarios para la tutela y para la realización de estos principios fundamentales”.39

34 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 113-114. 35 Vale registrar que “o projeto de Constituição elaborado por Hugo PREUSS era “neutro” politicamente, pois não continha um capítulo sobre os direitos fundamentais. Apesar de ser favorável à concepção social da democracia e à proteção dos direitos sociais, Preuss tinha receio que as disputas ideológicas em torno das diferentes visões de direitos fundamentais ameaçassem a unidade nacional e a organização democrática do povo alemão. Foi a Assembléia Constituinte de Weimar, com base na proposta de Friedrich Naumann, que acrescentou a segunda parte da Constituição, que dispunha sobre os direitos e deveres dos alemães”. (Gilberto BERCOVICI, Constituição e estado de exceção permanente, p. 28). 36 Maurizio FIORAVANTI, Constitución. De la antigüedad a nuestros días, p. 149-150; Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 114. 37 É importante ressaltar que a Constituição Mexicana de 31 de janeiro de 1917 também faz parte desse tipo histórico de Constituição, caracterizada pela garantia de direitos sociais. 38 Fonte: Textos Históricos do Direito Constitucional, Jorge MIRANDA (org. e trad.), p. 271. 39 Maurizio FIORAVANTI, op. cit., p. 150.

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Em que pese a afirmação dos direitos fundamentais (Grundrechte), a

Constituição de Weimar não instituiu nenhum verdadeiro e autêntico controle de

constitucionalidade.40 Na verdade, a crítica acentuava que a jurisdição

constitucional prevista na Constituição de Weimar apresentava lacunas.41 Não

havia controle centralizado de constitucionalidade, mas apenas diferentes sistemas

parciais:42

a) O controle da primazia do direito do Império (Reich) sobre

o direito dos Estados (Länder), previsto no art. 13.43 Segundo Ana

Victoria Urrutia,44 este controle era exercido de forma abstrata pelo

Tribunal do Reich (Reichgerichtshof) e normalmente o objeto de controle

eram as leis dos Länder, mas indiretamente se chegou a situações de

controle das leis do Reich. O Tribunal decidia sobre a compatibilidade do

direito estadual com o direito federal, mediante requerimento do Governo

central ou de um Governo estadual.45

b) O controle dos conflitos constitucionais nos Estados, dos

conflitos entre Estados ou entre estes e o ente central (Reich).46 Este

controle era exercido pelo Tribunal de Justiça do Estado (Staatsgerichthoft

des deutsches Reichen). Existia também a previsão de criar tribunais

similares em cada um dos Länder.47 Portanto, não se outorgou ao Tribunal

de Justiça do Estado o monopólio da jurisdição constitucional, confiando-

se-lhe apenas três dos quatro tópicos principais (questões constitucionais

no âmbito de um Estado, responsabilidade ministerial, questões federais e

40 Maurizio FIORAVANTI, op. cit., p. 151. 41 Gilmar Ferreira MENDES, Jurisdição Constitucional, p. 9. 42 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 114. 43 Constituição de Weimar (1919), Art. 13: “O direito do Império prevalece sobre o direito dos estados. Em caso de dúvida ou de desacordo acerca da conciliação de uma disposição jurídica dos estados com o direito do Império, a autoridade central competente do Império ou do Estado pode, nas condições a fixar por uma lei do Império, suscitar a decisão de um Tribunal de Justiça Superior do Império”. O dispositivo citado da Constituição alemã foi retirado de: Textos Históricos do Direito Constitucional, Jorge MIRANDA (org. e trad.), p. 272. 44 Op. cit., p. 114. 45 Gilmar Ferreira MENDES, Jurisdição Constitucional, p. 8. 46 Constituição de Weimar (1919), Art 19: “Os litígios constitucionais que se suscitem num estado desprovido de tribunal competente para os dirimir e, outrossim, os litígios entre os diferentes Estados ou entre o Império e um estado, contanto que não sejam de direito privado, são decididos, a requerimento de uma das partes, pelo Tribunal de Justiça de Estado para o Império Alemão, salvo se puderem ser decididos por outro tribunal do Império. O Presidente do Império executa a decisão do Tribunal de Justiça de Estado”. Fonte: Textos Históricos do Direito Constitucional, Jorge MIRANDA (org. e trad.), p. 273. 47 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 114.

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controle normativo na relação entre o direito estadual e federal – arts. 19

e 59 da Constituição de Weimar).48

c) Controle difuso dos juízes. A propósito deste tipo de

controle, ressalta Urrutia que “los jueces controlaban el derecho

preconstitucional en virtud de la cláusula derogatoria de la Constitución

(art. 178.2). También, aunque de manera difusa, controlaban la primacía

del derecho federal sobre el derecho de los Länder. En el transcurso de la

vigencia de la Constitución de Weimar se atribuyeron la facultad del

control de la constitucionalidad de las leyes. La sentencia que marca y

define de manera más relevante esta atribución es la Sentencia del

Reichgericht de 5 de noviembre de 1925”.49 50

O famoso artigo 48,51 o mais polêmico da Constituição de Weimar, merece

um comentário à parte. Há quem diga que “não é possível compreender a

ascensão de Hitler ao poder sem uma análise preliminar dos usos e abusos desse

artigo nos anos que vão de 1919 a 1933”.52 Esse dispositivo, que conferiu ao

Presidente do Reich poderes extremamente amplos e abriu caminho para os

ditadores, foi introduzido na Carta de Weimar em razão do clima de desordem e

de rebeliões que se seguiu ao fim da guerra. O próprio Schmitt escreveu, em 1925,

que “nenhuma constituição do mundo havia, como a de Weimar, legalizado tão

facilmente um golpe de Estado”.53 Os governos da República de Weimar fizeram

uso continuado do art. 48, declararam estado de exceção e promulgaram decretos 48 Gilmar Ferreira MENDES, Jurisdição Constitucional, p. 8. 49 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 115. 50 Neste sentido: Gilmar Ferreira MENDES, op. cit., p. 9: “A admissibilidade do controle judicial incidental de constitucionalidade somente foi reconhecida no acórdão do Reichsgericht de 4 de novembro de 1925. 51 Constituição de Weimar (1919), art. 48: “No caso de um estado não cumprir os deveres que lhe são prescritos pela Constituição e pelas leis do Império, compete ao Presidente decretar a intervenção, ainda que com o auxílio da força armada. No caso de perturbação ou ameaça graves à segurança e ordem pública no Império compete ao Presidente decretar as medidas necessárias ao restabelecimento da ordem e da segurança, mesmo com o recurso à força armada. Para este fim, pode suspender, total ou parcialmente, os direitos fundamentais dos artigos 114.º, 115.º, 117.º, 118.º, 123.º, 124.º e 153.º. Estas medidas devem ser levadas pelo Presidente imediatamente ao conhecimento do Parlamento, o qual pode exigir um relatório circunstanciado acerca delas. Verificando-se urgência, o governo de qualquer estado pode, dentro do território deste, adoptar medidas provisórias da mesma natureza das que estão indicadas no § 2.º” Fonte: Textos Históricos do Direito Constitucional, Jorge MIRANDA (org. e trad.), p. 277. 52 Giorgio AGAMBEN, Estado de exceção, p. 28. 53 Carl SCHMITT, Staat Grossraum Nomos. Berlim, Duncker & Humblot, 1995, p. 25. Apud Giorgio AGAMBEN, Estado de exceção, p. 28.

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de urgência em mais de 250 ocasiões. Em várias oportunidades, o governo

recorreu ao art. 48 para enfrentar a queda do marco, “confirmando a tendência

moderna de fazer coincidirem emergência político-militar e crise econômica”.54

Carl Schmitt sustenta que a ditadura comissária do Presidente do Reich, com base

no art. 48, tem a finalidade de preservar e defender a segurança e a ordem pública,

e, portanto, a Constituição existente.55

Quanto à reforma constitucional na época de Weimar, Urrutia destaca dois

tipos de problemas distintos:

“Por un lado, el problema del quebrantamiento (rotura) de la Constitución, es decir, de las decisiones adoptadas por el Parlamento con la mayoría suficiente para reformar la Constitución y que suponían una excepción en su aplicación en un caso concreto. Por otro lado, el problema de las reformas constitucionales tácitas (materiales), heredado de la práctica consolidada bajo la Constitución del Imperio de 1871: la técnica para aprobar una reforma constitucional sin especificar qué parte de la Constitución se reemplazaba”.56

3.6

Importância dos autores da época de Weimar na reflexão sobre o problema da mutação informal da Constituição.

Parece-nos que uma abordagem adequada do conceito de mutação

constitucional não pode prescindir de algumas contribuições da doutrina

constitucional produzida na época de Weimar. Importa ter presente o influxo

direto da cultura político-social da Alemanha de então no Direito Constitucional

weimariano, destacando-se alguns elementos históricos, como a herança do

Império guilhermino, os efeitos da derrota militar e a efervescência social

posterior. Os problemas vividos neste ambiente cultural provocam a atenção de

juristas antiformalistas (como TRIEPEL, SCHMITT, HELLER, KIRCHEIMER,

KAUFMANN, ULRICH SCHEUNER e RUDOLF SMEND), que procuram dar

54 Giorgio AGAMBEN, op. cit., p. 28-29. 55 Carl SCHMITT, Teoría de la Constitución, p. 126. 56 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 115-116.

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respostas a questões político-sociais adrede ignoradas pelos positivistas – que as

consideram questões “metajurídicas”.57

Portanto, a descrição e a análise de parte dessa doutrina se justifica porque

“constitui um antecedente direto para caracterizar os elementos do fenômeno da

mutação constitucional”.58 As diferentes concepções sobre a mudança

constitucional em Weimar refletem o clima de instabilidade daquela época.59

Neste contexto, investiga-se a relação existente entre a dinâmica política e a

Constituição escrita. De certa maneira, as doutrinas em seu conjunto constituíram

uma reação em face dos postulados da Escola Alemã de Direito Público. Autores

como Smend e Heller convertem o conceito de mutação elaborado por Laband, e

desenvolvido por Jellinek, em um elemento da teoria da Constituição. Dau-Lin

reformula o conceito para dar-lhe sistematicidade.60

3.6.1

A mutação como elemento de um conceito ambivalente de Constituição: Rudolf Smend

3.6.1.1O Estado como integração espiritual

A partir de uma nova perspectiva sobre a Filosofia do Estado e da Teoria

do Estado, Smend cria uma teoria dinâmica da Constituição. Ele introduz na teoria

constitucional o método científico-espiritual em lugar da análise meramente

jurídica.61 Smend baseia-se na filosofia de Theodor Litt acerca de uma teoria geral

das ciências do espírito.

57 Pablo Lucas VERDÚ, La lucha contra el positivismo jurídico en la Republica de Weimar, p. 24-25. 58 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 116. 59 A instabilidade constitucional do período em tela é atribuída, não raro, “à própria estrutura da Constituição de Weimar, freqüentemente denominada ‘compromisso constitucional’ (Verfassungskompromiss) ou ‘constituição programática’, carente, portanto, de definições políticas que permitissem o seu cumprimento em determinadas direções”. Cf.: Gilberto BERCOVICI, Constituição e estado de exceção permanente, p. 27. 60 Todo o parágrafo do texto baseia-se em Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 116. 61 Paulo BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, p. 178. No lugar citado, Bonavides afirma, referindo-se a Smend: “Em verdade, a obra desse constitucionalista funda o que não hesitamos em denominar teoria científico-espiritual da Constituição e mudança constitucional,

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Smend figura entre os principais críticos do logicismo formalista, que

parte de Laband, e que atinge seu ápice na obra de Kelsen. Smend rejeita o

postulado essencial de Kelsen, qual seja: a contraposição entre ser e dever ser.62 A

teoria integrativa de Smend (Integrationslehre) pode ser vista como uma tentativa

de superar o contraste rígido entre norma e fato, deslocando o problema para o

debate sobre estática e dinâmica na teoria do Estado.63 É sem dúvida um autor que

enfatiza radicalmente o caráter dinâmico do Estado e da constituição.

Para o autor da teoria integrativa:

“todo formalismo jurídico precisa de una elaboración metodológica previa de los contenidos materiales – por no decir, sociológicos y teleológicos – que son la premisa y la base de sus normas. Lo que la teoría jurídica del Estado precisa es, pues, una teoría material del Estado. Una teoría del Estado que, independientemente de todo lo anterior, posee además una justificación propia, en cuanto ciencia del espíritu que abarca el ámbito cultural y espiritual de la dinámica estatal”.64

Smend65 aborda o problema das “insolúveis” dicotomias, recorrentes na

teoria material do Estado: a relação entre indivíduo e comunidade, indivíduo e

Estado, individualismo e coletivismo, personalismo e transpersonalismo. Essas

contraposições são um problema típico da filosofia social e da sociologia

alemães,66 que, para Smend, levantam questões estruturais, presentes em todas as

ciências do espírito, e insolúveis à medida que se contrapõe de forma substantiva

o “eu” frente ao todo social.

“Esta contraposición radical y la objetivación independiente de ambas esferas es, a causa de su propia tendencia a la espacialización mecanicista, común a todo pensamiento poco desarrollado. Para el teórico social formado en una mentalidad estrictamente jurídica se añade a ello además la inercia que conlleva la construcción jurídica de esferas aisladas, como pueden ser, por ejemplo, de un lado, la de la persona física, y, de otro, la de la persona jurídica”. 67

com fortes reflexos sobre a teoria dos constitucionalistas da Escola de Zurique, nomeadamente Hsü Dau-Lin, que ninguém exageraria se o considerasse um discípulo de Smend”. 62 Pablo Lucas VERDÚ, La lucha contra el positivismo jurídico en la Republica de Weimar, p. 28. 63 Paulo BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, p. 178-179. 64 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 47-48. 65 Constitución y Derecho Constitucional, p. 48 e s. 66 Pablo Lucas VERDÚ, La lucha contra el positivismo jurídico en la Republica de Weimar, p. 55. 67 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 49.

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Smend ressalta que “esta estrutura mental mecanicista não se pode aplicar

a nenhuma ciência do espírito”.68

O Estado para Smend não é algo material e estático. As formas espirituais

coletivas, como o Estado, não constituem substâncias estáticas senão uma unidade

de sentido da realidade espiritual, isto é, atos espirituais.69 A integração é o núcleo

essencial da dinâmica do Estado que consiste na constante renovação de um

complexo número de suas manifestações.70

Segundo Smend, a história da Filosofia do Estado demonstra “... que con

mucha frecuencia los resultados concretos que han perdurado a lo largo del

tiempo son inversamente proporcionales al esfuerzo teórico y metodológico

empleado”.71

O Estado é uma realidade espiritual. O indivíduo forma parte desta

realidade espiritual. O Estado não pode construir-se partindo do indivíduo e indo

do particular ao geral, senão que deve conceber-se como uma relação que se cria

retroalimentando-se. É uma relação dinâmica de refluxo mútuo.72

“Cuando Smend habla del espíritu (Geist) o de las ciências del espíritu (Geistwissenschaften), se refiere más bien a ‘lo humano’ y a ‘las ciencias humanas’, aunque desde un punto de vista muy especial. Dentro de una tendencia filosófica alemana se distingue entre ciencias de la naturaleza y ciencias del espíritu. Las primeras serían las ciencias naturales y las segundas ciencias sociales o humanas. Sin embargo, el optar por referirse específicamente al ‘espíritu’ o a las ‘ciencias del espíritu’ significa una concepción muy concreta. El espíritu es concebido como una realidad viviente, viva, como una totalidad compleja que se opone a lo estático y a lo simple. El espíritu no es solo el ser humano sino una idea dinámica de él en constante interación con su entorno. Así, la noción que Smend aprehende de Th. Litt supone que el único modo de comprender a la persona ‘... es integrarla al mundo concreto, es decir, en analizarla en relación al conjunto de actuaciones y reacciones que estabelecen entre ella y su ubre histórico cultural en la cual se define (...) Mundo y persona se hacen y se construyen en la medida que, a través de un proceso histórico en evolución se integran’. Vid. voces ‘Espíritu, espiritual’ y ‘Th. Litt’, en J. FERRATER MORA: Diccionario de Filosofía, vol. 2, págs. 1013-1020 y vol. 3.”73

68 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 49. 69 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 62. 70 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 62-63. 71 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 47. 72 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 119. 73 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 119 (nota 41).

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O Estado não é um fenômeno natural que deva ser simplesmente

contrastado, mas sim uma realização cultural que como tal realidade da vida do

espírito é fluida, necessitada continuamente de renovação e mudança, posta

continuamente em dúvida.74 O Estado não constitui uma realidade imóvel,

estática, cuja única forma de manifestação externa consista em expedir leis,

acordos diplomáticos, sentenças ou atos administrativos. Pelo contrário, a única

maneira de conceber a existência do Estado é incluí-lo na realidade espiritual,

como parte de um processo dinâmico, como “forma espiritual coletiva”. O Estado

só existe em e através deste “contínuo processo de laboriosa configuração social”

(que pode ser valorado indistintamente como progresso ou como deformação).75

O Estado existe e se desenvolve exclusivamente neste processo de contínua

renovação, “vive de um plebiscito que se renova a cada dia”. Este processo, que é

o núcleo substancial da dinâmica do Estado, Smend denomina de “integração”.76

[Integração na realidade].

O que se disse acima é a chave da realidade estatal; e, portanto, o ponto

donde hão de partir tanto a teoria filosófica como a teoria jurídica do Estado.77

“Así, el individuo es el núcleo constitutivo del Estado pero su vinculación sólo

puede ser explicada partiendo de su naturaleza dialéctica. La realidad estatal no

puede explicarse aisladamente desde el individuo o sobre la base de una noción

finalista del Estado”.78

Um problema realçado por Smend consiste no caráter ambíguo da

realidade ou dinâmica estatal, que cumpre a função de realizar tanto valores do

espírito como do direito positivo. O jurista alemão ainda esclarece que são dois

momentos inseparáveis desde a perspectiva filosófico-estatal.

“El derecho constitucional es únicamente una positivización de las posibilidades y funciones propias del mundo del espíritu, y, por tanto, no se entiende sin aquéllas; y a la inversa, éstas no son realizadas de forma plena y permanente sin su positivización jurídica. Por ello mismo la perspectiva filosófico-estatal ha de centrarse en sus constitutivos esenciales, limitándose a considerar el orden jurídico positivo como su consecuencia necesaria, mientras que por el contrario la perspectiva jurídico-constitucional habrá de preocuparse especialmente del derecho positivo, ahora bien, teniendo en cuenta que para

74 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 61. 75 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 62. 76 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 62-63. 77 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 64. 78 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 120.

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hacerle justicia al derecho positivo hay que verlo en su dependencia respecto de aquellos constitutivos esenciales”.79

A integração se realiza segundo modelos estruturais distintos, que Smend

classifica em três tipos: integração pessoal,80 integração funcional81 e integração

material.82 A esfera da integração pessoal é aquele processo determinado pelo

líder ou pelo caudilho, a burocracia política ou as elites políticas. À integração

funcional pertencem as “formas de vida que tendem a criar um sentido coletivo”.

A integração material se daria através de objetivos comuns que justificam a

existência do Estado. Urrutia resume otimamente este tipo de integração:

“La integración material se puede relacionar con las teorías de los elementos del Estado en su contenido simbólico. En este sentido, el territorio y la historia común son elementos de la integración material; no en el sentido en que los concebía la teoría de los elementos del Estado, sino como variables interdependientes y dinámicas. En general, concluye Smend, toda dinámica estatal forma parte del sistema de integración”.83

3.6.1.2

A Constituição como constante mutação

Para Smend, a Constituição é “la ordenación jurídica del Estado, mejor

dicho, de la dinámica vital en la que se desarrolla la vida del Estado, es decir, de

su proceso de integración”.84 Citando Ehmke, Paulo Bonavides ressalta que o

sentido integrativo desse processo está relacionado com valores, e se confirma da

maneira pela qual Smend se ocupa dos direitos fundamentais que refletem um

determinado sistema de cultura. 85

O problema que se apresenta é, antes de mais nada, o da específica

natureza do Estado enquanto objeto da ordem jurídica através de sua Constituição.

79 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 66. 80 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 70-78. 81 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 78-93. 82 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 93-105. 83 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 120-121. 84 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 132. 85 Horst EHMKE, Grenzen der Verfassungsänderung, Berlin, 1953, p. 55. Apud Paulo BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, p. 179.

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“... toda realidad vital espiritual contiene, por una parte, un elemento orgánico y vital, un estado psicológico concreto, y, por otra, una estructura inteligible e ideal, un principio de formalización inmanente y atemporal. Cualquier ciencia del espíritu que atienda únicamente al elemento vitalista y organicista siguiendo la metodología monista propia de las ciencias de la Naturaleza o que, por el contrario, se ocupe exclusivamente del contenido atemporal o ideal, como hace la lógica de normas de la Escuela de Viena,86 no llega a captar la verdadera naturaleza de su objeto; es necesario considerar al objeto, por el contrario, en toda su ambivalencia, como estructura orgánica e ideal, desde la perspectiva de un pensamiento que abarque ambas dimensiones”. 87

Enquanto direito positivo, a Constituição é norma, mas também

realidade.88 A normação, a constituição de um grupo social e de sua organização

não é uma simples regulação de uma estrutura dada e permanente, e de suas

manifestações exteriores. É a forma que dá fundamento a tal grupo, permitindo-

lhe sua contínua criação e renovação.89

Mas a característica fundamental da Constituição do Estado - que portanto

a distingue de outros estatutos constituintes de outras associações - é ser uma

ordem integradora. A sua existência não depende, como ocorre com a maioria das

outras associações, de um poder externo. A atividade do Estado não é

conseqüência de uma decisão alheia a ela mesma ou de um motor que a mantém

em funcionamento, ou seja, não se origina de uma causa exógena. Trata-se antes

de um processo de integração por meio do qual determinados valores materiais se

incluem em um sistema de integração.90

Bonavides lembra que Smend não suscitou expressamente o problema dos

limites da reforma constitucional. Em compensação, examinou a maneira como as

Constituições mudam ou tendem a mudar na medida em que atuam para

concretizar sua função integrativa. “As forças extraconstitucionais operam

mudanças fora do direito constitucional, introduzindo novos fatores na vida da

Constituição, de modo que o constitucionalista parece pressentir já a importância

que o poder executivo veio a tomar em nossos dias, polarizando, em alguns 86 Os ataques à teoria normativa do Estado, representada pela Escola de Viena, foram respondidos por KELSEN, in O Estado como integração: um confronto de princípio. Trad. Plínio Fernandes Toledo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. [orig. Der Staat als integration, publicado por Verlag von Julius Springer, 1930]. 87 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 131. 88 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 135-136. 89 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 137. 90 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 140.

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69

sistemas, toda a atividade estatal a expensas dos demais poderes e não raro com

sacrifício das partes formais da Constituição”.91

Bonavides considera que Rudolf Smend foi um dos mais agudos em

assinalar a importância da mudança constitucional realizada fora dos processos

formais explícitos e técnicos de reforma da Constituição.

Smend foi acusado de haver subestimado o momento normativo da

realidade estatal e de haver excluído o Direito do círculo dos fatores de integração

do Estado, ao considerar a Justiça e a Legislação, “num certo sentido corpos

estranhos à Constituição”.92 Neste ponto, a posição de Smend seria totalmente

diferente da sustentada por Heller, que considerava o Direito o fator integrativo

mais importante - se o poder forma o Direito, também o Direito forma o poder.93

Adverte Verdú, por seu turno, que

“sería inexacto sostener que SMEND intentó disolver la normatividad constitucional en magnitudes culturalistas. Por el contrario, en su comentario de la Constitución de Weimar (...) subrayó que ésta era la ley fundamental vigente de la vida política de entonces, y que debía ser leída con plena conciencia de que contenía normas jurídicas obligatorias – no del Código Civil o penal -, sino de la Constitución para todos los alemanes”. 94

Rudolf Smend também descreve o problema das mutações constitucionais

em sua obra capital, aqui citada. Para ele, é evidente que o Estado não limita sua

vida tão-somente àqueles momentos da realidade contemplados pela Constituição

para ter em conta toda a enorme gama de impulsos e de motivações sociais da

dinâmica política, integrando-os progressivamente. Tampouco a Constituição

poderia abranger todas as funções vitais do Estado que lhe compete regular. Isto

porque, como ocorre com toda dinâmica política, esses elementos básicos da vida

de um Estado resultam da totalidade que todo elemento individual possui, e, ao

91 Paulo BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, p. 179. 92 Horst EHMKE, Grenzen der Verfassungsänderung, Berlin, 1953, p. 58-59. Apud Paulo BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, p. 180. 93 Paulo BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, p. 180. 94 Pablo Lucas VERDÚ, La lucha contra el positivismo jurídico en la Republica de Weimar, p. 23-24.

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mesmo tempo, atuam dialeticamente, manifestando a totalidade supra-individual

do Estado.95

“Este gran dinamismo de la vida política no puede ser aprehendido y normado plenamente por unos cuantos artículos recogidos en la Constitución, las más de las veces de corte esquemático, y que, en ocasiones, son el producto de una recepción jurídica de tercera o cuarta mano; en todo caso, los artículos de la Constitución inspiran la dinámica política, que, por lo que se refiere a su capacidad integradora, puede resultar estimulada; bien entendido que la finalidad integradora se realiza fuera de los canales institucionales. En estos casos la función integradora, característica tanto de la naturaleza esencialmente valorativa del espíritu como de las propias normas constitucionales, se realiza, a pesar de estas aparentes divergencias, de un modo más pleno, amén de ser así más fiel el genuino sentido de la Constitución, que a través de una regulación exhaustiva y pegada al texto constitucional, pero que a la postre no es sino muestra de una escasa vida constitucional”.96

Em outra parte do referido livro, Smend acentua novamente o caráter da

“variabilidade da Constituição”, referindo-se aí ao problema das mutações

constitucionais.

“Este cambio puede tener lugar fuera del propio Derecho constitucional, siempre que se dé dentro del ámbito social de las fuerzas espontáneas que presupone e incluso calcula, sin llegar a regular, la Constitución, el llamado ámbito de las fuerzas ‘extraconstitucionales’ (TRIEPEL, Die Staatsverfassung und die politischen Parteien, p. 24), en especial el de la dinámica de los partidos políticos. El cambio puede afectar incluso a la misma Constitución, en el sentido de llegar a modificar gradualmente la relación de rango y peso que se establece entre los distintos factores, instituciones y normas constitucionales (por ejemplo, KEOLLREUTTER, Der deutsche Staat als Bundesstaat und als Parteienstaat, p. 29). Puede incluso introducir un factor nuevo en la vida constitucional; este sería el caso, si de facto se diera una limitación del parlamentarismo, predicha por Hellpach (Neue Rundschau, julio de 1927, pp. 3 e ss.), debido a la creciente actividad impositiva y legislativa de los ministros. En los últimos casos se trata de ‘reformas constitucionales’97 en sentido propio, que modifican el contenido de la Constitución en un sentido material. Resulta evidente que estos cambios no están ligados a las condiciones que exige para su creación el Derecho consuetudinario. Ello se debe al propio carácter de la Constitución, que regula constantemente el sistema integrativo que responde a su orientación. Esta correspondencia representa el principio que determina, no sólo la actividad del

95 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 132-133. 96 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 133. 97 A versão espanhola traduziu o termo Verfassungswandlun por “reforma constitucional”, o que não é correto, como anota Verdú (La lucha contra el positivismo jurídico en la Republica de Weimar, p. 105 nota 219), pois desde Laband e Jellinek a doutrina alemã distingue entre Verfassungsänderung (reforma expressa da Constituição) e Verfassungswandlung (mutação constitucional).

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legislador, sino también la continua validez del Derecho constitucional establecido”. 98

Estas considerações sobre a dinâmica constitucional foram recepcionadas

por Dau-Lin, que definiu o fenômeno da mutação como a incongruência entre as

normas constitucionais e a realidade constitucional. O jurista chinês absorveu as

três formas de mutação ou transformação da Constituição mencionadas pelo

mestre: a mutação pode ocorrer fora do próprio Direito Constitucional, no âmbito

social das forças espontâneas ou “extraconstitucionais”; o câmbio pode afetar a

Constituição modificando gradualmente a relação de peso e hierarquia que se

estabelece entre os diferentes fatores, instituições e normas constitucionais; ou

inclusive pode introduzir um fator novo na vida constitucional.99

3.6.1.3

Integração e interpretação constitucional

Um dos méritos da teoria integrativa ou científico-espiritual é haver

alargado, como nenhuma outra anteriormente, as possibilidades interpretativas da

Constituição. Isso é possível graças a uma metodologia mais “política” do que

“jurídica”.100

Rudolf Smend interpreta a Constituição segundo seu sentido e essência. A

Constituição é a ordem da totalidade vital do Estado e de seu permanente processo

de integração. O sentido da Constituição se apóia na constante mudança de toda

realidade vital do Estado. Por isso, a interpretação constitucional tem de ser

elástica, complementadora e cambiante. As mutações constitucionais são

conseqüências necessárias da essência e objetivo da Constituição.101

98 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 201-202. 99 Pablo Lucas VERDÚ, La lucha contra el positivismo jurídico en la Republica de Weimar, p. 118. 100 Paulo BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, p. 179-180. 101 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 215.

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“Lo propio y característico de las fórmulas constitucionais es justamente su elasticidad y su enorme capacidad autotransformadora y supletoria de sus propias lagunas”.102

Para que se faça uma correta interpretação da Constituição em seu sentido

global é necessário resolver antes o problema da delimitação de seu conteúdo real

e do método a seguir para sua correta interpretação. A primeira questão a

enfrentar diz respeito à distinção entre direito político e direito administrativo:

“el Derecho político es un Derecho fundamentalmente integrador y el Derecho administrativo es un Derecho esencialmente técnico. La idea fundamental que guía a las normas de Derecho político es la interacción integradora de las instituciones y de las funciones estatales para formar así la vida estatal en su conjunto, y la de las normas de Derecho administrativo debe ser la administración en sí, la consecución técnica de sus propios fines concretos que siempre atañirán a la prosperidad”.103

A separação entre o que é direito político e o que é direito administrativo é

relevante na interpretação da norma jurídica, porque se deve levar em conta o todo

ao que a norma pertence. Interpreta-se mal um preceito quando existe um erro

referente à totalidade a que pertence. É um equívoco considerar que um preceito

legal tem o mesmo sentido e a mesma aplicação prática independentemente de sua

pertinência ao contexto do direito público ou ao do privado, ao direito formal ou

ao material, ao político ou ao técnico-administrativo.104

Smend ressalta que “el método formalista prescinde en este punto de una

fundamentación consciente en una teoría del Estado basada en las ciencias del

espíritu, de una teoría que verse sobre la esencia material concreta de su objeto

como punto de partida para el trabajo jurídico. Este método aplica a su objeto los

conceptos jurídicos ‘generales’ que le son familiares, sobre todo aquellos

pertenecientes a un Derecho de asociación de tipo más bien jerárquico. De este

modo se trocea el Derecho constitucional en un conglomerado de normas y de

institutos particulares, que son incluidos bajo los esquemas generales usuales al

102 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 134. 103 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 194. 104 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 195.

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ser estudiado su contenido según el grado de poder jurídico-formal y según las

obligaciones formales que contienen”.105

Com isso, deixa de se observar a diferença fundamental entre o Direito

Constitucional e todas as demais matérias do âmbito jurídico. Para Smend, o

intérprete da Constituição deveria ser capaz de reconhecer nos textos

constitucionais, do preâmbulo ao dispositivo final, que se trata das leis vitais que

regem um objeto concreto. Este objeto, por sua vez, não é algo estático, mas um

processo vital unitário que produz esta realidade continuamente, isto é, que se

trata de leis de sua integração.106 A partir dessa colocação, Smend formula as

regras gerais que considera as mais importantes para orientar a interpretação

constitucional:

a) os fatos particulares do direito político não devem ser

considerados em si mesmos e de forma isolada, mas como elementos

pertencentes a um contexto significativo que cobra vida através deles,

como elementos pertencentes ao todo funcional da integração.107

b) As diversas normas de direito político constituem, tomadas

em seu conjunto, o sistema do contexto integrativo, do qual se deriva um

valor distinto de cada uma delas com respeito ao sistema e, portanto, uma

diferença de categoria.108 Para Smend, a Constituição abriga normas de

distinta importância, dentre as quais, as que expressam princípios

ocupariam um patamar superior.109

c) A variabilidade da Constituição, i.e., a possibilidade de

ocorrência de mutações. As mutações podem afetar elementos externos à

Constituição formal, mas que impliquem alteração em seu funcionamento,

como seriam as transformações dos partidos políticos. Ou pode afetar a

Constituição no sentido de chegar a modificar gradualmente a relação de

hierarquia e peso que se estabelece entre os distintos fatores, instituições e

normas constitucionais.110

105 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 197-198. 106 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 198. 107 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 198. 108 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 200-201. 109 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 124. 110 Rudolf SMEND, Constitución y Derecho Constitucional, p. 201-202.

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Urrutia111 resume as idéias dominantes na teoria da interpretação

smendiana, destacando a noção de movimento como parte do conceito de

Constituição, elemento a ser considerado na atividade interpretativa, juntamente

com a idéia de globalidade. É preciso ter a consciência permanente de que cada

elemento pertence a um todo e de que só pode ser entendido plenamente por

referência a essa globalidade a que pertence. Em outras palavras: os detalhes só

podem ser entendidos a partir da visão de conjunto. Para Smend, uma das causas

por que se abusou dos poderes ditatoriais previstos no art. 48 da Constituição de

Weimar foi sua interpretação fragmentada. O não se haver interpretado o art. 48

em seu conjunto, haja vista que, englobado dentro da Constituição de Weimar,

produziria sérias dificuldades em sua aplicação.

3.6.2

Normalidade e Normatividade: Hermann Heller

Hermann Heller concebe a constituição como uma totalidade, na qual se

encontram em relação dialética o estático e o dinâmico, a normalidade e a

normatividade. Ele destaca a unidade do conceito de constituição, mas

reconhecendo a autonomia das partes integrantes.112

“A constituição de um Estado coincide com a sua organização113 enquanto esta significa a constituição produzida mediante atividade humana consciente e só ela. Ambas referem-se à forma ou estrutura de uma situação política real que renova constantemente por meio de atos de vontade humana. Em virtude desta forma de atividade humana concreta, o Estado transforma-se em uma unidade ordenada de ação e é então quando adquire, em geral, existência. Ao adquirir a realidade social ordenação e forma de uma maneira especial, é quando o Estado aparece na sua existência e modo concretos”.114

Heller identifica-se com Lassalle por também acreditar que a Constituição

material (real) consiste nas relações reais de poder. Mas assinala que as relações

111 Op. cit., p. 125. 112 Manuel GARCÍA-PELAYO, op. cit., p. 87. 113 Heller define organização como a “ação concreta de dar forma à cooperação dos indivíduos e grupos que participam no todo, mediante a supra-, sub- e co-ordenação dos mesmos”. (Teoria do Estado, p. 295.). 114 Hermann HELLER, Teoria do Estado, p. 295.

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reais de poder estão em constante movimento, transformando-se a cada momento,

gerando, como organização e constituição, a unidade e ordenação do Estado.115

“Toda organização humana perdura enquanto constantemente renasce. A sua realidade atual consiste na efetividade presente da conduta dos membros ordenada para a ação unitária. A sua realidade potencial tem a sua expressão na probabilidade relativamente previsível de que a cooperação entre os seus membros torne a produzir-se de modo semelhante no futuro. A configuração atual da cooperação, que se espera seja mantida de modo análogo no futuro, pela qual se produz de modo constantemente renovado a unidade e ordenação da organização, é o que nós chamamos Constituição no sentido da ciência da realidade”.116

Para Heller, a ciência do Estado e do Direito não deve esquecer nunca o

caráter dinâmico do seu objeto. A Constituição permanece através da mudança de

tempos e de pessoas em função da probabilidade de se repetir no futuro a conduta

humana com ela concorde. A Constituição supõe, portanto, a probabilidade de

uma repetição de condutas, ou seja, a normalidade.

“Assim como não se podem considerar completamente separados o dinâmico e o estático, tampouco podem sê-lo a normalidade e a normatividade, o ser e o dever ser no conceito da Constituição. Uma Constituição política só se pode conceber como um ser a que dão forma as normas. Como situação política existencial, como forma e ordenação concretas, a Constituição só é possível porque os partícipes consideram essa ordenação e essa forma já realizadas ou por realizar-se no futuro, como algo que deve ser e o atualizam; seja que a forma de atividade ajustada à Constituição se tenha convertido para eles, por meio do hábito, em uma segunda natureza, em conformação habitual do seu próprio ser apenas considerada como exigência normativa consciente; seja que os membros motivem a sua conduta de modo mais ou menos consciente, por normas autônomas ou heterônomas”.117

Heller explica melhor essa idéia quando decompõe a Constituição total em

seus elementos parciais: a) a mera normalidade (ou Constituição não normada), e

b) a normalidade normada jurídica e extrajuridicamente (ou Constituição

normada).

A) A Constituição não normada ou a mera normalidade. O Estado não é

um simples resultado da técnica organizadora, mas está profundamente enraizado

115 Hermann HELLER, Teoria do Estado, p. 295. 116 Hermann HELLER, Teoria do Estado, p. 295-296. 117 Hermann HELLER, Teoria do Estado, p. 296.

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no ser do homem.118 Mesmo que os membros do grupo não tenham consciência,

as motivações naturais e culturais comuns originam, constante e regularmente,

“uma normalidade puramente empírica da conduta que constitui a infra-estrutura

não normada da Constituição do Estado”.119 São comportamentos indiferentes ao

valor, que se realizam independentemente da norma, e que estão em conformidade

com uma regra empírica de previsão; normalidades sem as quais é impossível

qualquer convivência.120

B) A Constituição normada em seu duplo sentido jurídico e extrajurídico.

A Constituição é baseada na norma, no dever-ser, tanto de índole jurídica como

extrajurídica (costume, moral, religião, urbanidade, moda etc.).121 Não só se

registra um fato, mas também se lhe outorga uma valoração. Normalidade pura e

normatividade não formam territórios separados, senão unidos por uma relação

reciprocamente condicionante.122 Há uma relação de complementação e

reciprocidade entre ser e dever-ser na Constituição total: a normalidade cria

normatividade e a normatividade cria normalidade. Se por um lado a normalidade

fática é capaz de produzir uma normatividade, por outro a normatividade,

mediante seu complemento axiológico e juridicamente exigido, produz uma

normalidade na conduta.123 Essa condicionalidade recíproca, contudo, não se

manifesta apenas no modo de produção, mas também no plano da efetividade ou

da eficácia, à medida que a norma é cumprida naturalmente, porquanto sua

existência mesma expressa uma situação real de normalidade.

No sistema conceitual de Heller, a norma constitucional pode transformar-

se de maneiras distintas: pela mudança de conteúdo dos elementos normados não

jurídicos (princípios constitucionais e princípios gerais do direito), ou como

conseqüência das mutações constitucionais que supõem a superação dos

elementos normados pela normalidade.124

É preciso realçar que dentro da Constituição normativa se distinguem

normas constitucionais jurídicas e normas constitucionais não jurídicas.

118 Manuel GARCÍA-PELAYO, op. cit., p. 87-88. 119 Hermann HELLER, Teoria do Estado, p. 297-298. 120 Manuel GARCÍA-PELAYO, op. cit., p. 88. 121 Hermann HELLER, Teoria do Estado, p. 298. 122 Manuel GARCÍA-PELAYO, op. cit., p. 88. 123 Manuel GARCÍA-PELAYO, op. cit., p. 88. 124 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 117.

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As normas constitucionais jurídicas, isto é, a Constituição jurídica, podem

manifestar-se ora como simples abstração ou sistematização de uma realidade

empírica, ora como um querer e um dever-ser oposto ao ser social existente.125

García-Pelayo126 assinala que as normas constitucionais jurídicas podem

manifestar-se, outrossim, em forma consuetudinária ou legislada, com predomínio

de uma forma ou de outra, segundo as condições históricas e culturais.

“O conteúdo e o modo de validez de uma norma não se determinam nunca somente por sua letra, nem mesmo pelos propósitos e qualidades de quem as dita, mas sobretudo pelas qualidades daqueles a quem a norma se dirige e que a observam”.127

As normas constitucionais extrajurídicas confundem-se com os princípios.

Segundo Heller, os princípios éticos do Direito, legitimados pela sociedade, têm

grande importância para a Constituição jurídica do Estado. Esses princípios

podem ter validade geral e apriorística, mas normalmente estão condicionados

pela história e pela cultura correspondente. Esses princípios não possuem

concreção suficiente para sua imediata aplicação na decisão judicial, mas servem

como regra interpretativa para o juiz e como pauta para o legislador.128 Heller cita

como exemplo o princípio da igualdade,129 que, originariamente, referia-se apenas

aos homens; depois, em algumas sociedades, passou a referir-se também às

mulheres. Na primeira metade do século XIX significava só igualdade dos direitos

políticos, ampliou-se depois para igualdade social etc. A ausência de conteúdo

preciso seria a característica que faz possível que os princípios evoluam e

desempenhem uma função transformadora dentro da Constituição.

“É justamente essa falta de determinação do conteúdo que capacita esses princípios jurídicos a desempenharem uma função perpétua na Constituição. Um preceito jurídico positivo dirá, segundo o que hoje se reclama da segurança jurídica, o seguinte: em tais circunstâncias o homem deve comportar-se de tal modo. Com isso, o preceito jurídico válido garante uma previsibilidade maior da conduta social que o princípio jurídico que é menos preciso. Mas justamente esta precisão do preceito jurídico opõe-se à necessária capacidade de acomodação e à continuidade dos preceitos jurídicos. Que a permanência da norma possa ser harmonizada com a mudança ininterrupta da realidade social, deve-se, em grande

125 Manuel GARCÍA-PELAYO, op. cit., p. 88. 126 Op. cit., p. 88. 127 Hermann HELLER, Teoria do Estado, p. 302. 128 Hermann HELLER, Teoria do Estado, p. 302-303. 129 Hermann HELLER, Teoria do Estado, p. 304.

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parte, a que a normalidade social que se expressa nos princípios jurídicos vai-se transformando na corrente imperceptível da vida diária. Mediante a evolução gradual dos princípios jurídicos pode acontecer que, não obstante permanecer imutável o texto do preceito jurídico, o seu sentido experimente uma completa revolução, embora fique salvaguardada a continuidade do Direito perante os membros da comunidade jurídica (cf. Freyer, Theorie d. obj. Geistes, 1928, pp. 122 e ss.). Tal mudança de significação do preceito jurídico realiza-se graças aos preceitos jurídicos mutáveis, que vêm a ser a porta por onde a realidade social valorada positivamente penetra todos os dias na normatividade estatal. Visto que tradição e revolução supõem só oposições relativas, torna-se possível a permanência e capacidade de acomodação da normatividade a respeito da normalidade e pode assim conceber-se a constituição total do Estado como ‘forma comprimida que vivendo se desenvolve’”.130

A Constituição estatal, jurídica, escrita, é dotada de uma força obrigatória

sobre todos os membros do grupo a que se destina. Por isso, “só se podem criar

uma continuidade constitucional e um status político se o criador da norma se

considerar também ligado por certas decisões, normativamente objetivadas, dos

seus predecessores. Só mediante o elemento normativo se normaliza uma situação

de dominação atual e plenamente imprevisível convertendo-se em uma situação

de dominação contínua e previsível, isto é, em uma Constituição que dura além do

momento presente”.131

“Sem a permanência das normas sociais não existe permanência do status social, não existe Constituição. Problema especial é determinar de que modo se pode harmonizar a permanência das normas com a mudança constante da realidade social”.132

Para Heller,133 a normatividade pretende adequar-se à normalidade. O

Estado, porém, não consegue criar normas eficazes em todos os casos. O êxito

obtido na maioria das situações é o que garante a continuidade do ordenamento

jurídico. Pode ocorrer que a normalidade não seja incorporada nem pelas normas

não jurídicas (princípios) nem pelo juridicamente disciplinado, mantendo-se,

aliás, em plena contradição com elas. Em outras palavras, a normatividade pode

130 Hermann HELLER, op. cit., p. 304-305. 131 Hermann HELLER, Teoria do Estado, p. 301. 132 Hermann HELLER, Teoria do Estado, p. 301. 133 Teoria do Estado, p. 305-306.

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perder sua capacidade normalizadora e o uso social – a realidade não normada -,

pode revelar-se mais forte que a norma estatal.134

“A criação de normas pode dar lugar a uma normalidade correspondente a ela na maioria dos destinatários das normas, em muitos ou em poucos, ou só nos tribunais e demais autoridades ou, finalmente, nem nestes sequer. Com bastante freqüência, o uso social, a realidade social não normada ou normada extrajuridicamente, revela-se mais forte que a normação estatal”.135

Este fenômeno chamou a atenção de um setor da doutrina - em especial a

Escola Alemã de Direito Público, na qual se destaca Jellinek - para o problema

das mutações constitucionais, ou seja, mudanças que ocorrem à margem do

processo formal de alteração do texto constitucional.136 Heller critica, todavia, a

doutrina da mudança de Jellinek, por entender que cuida dos casos menos

importantes de mutações das normas constitucionais por relações sociais de poder

que as contradizem.137

3.6.3

A contribuição de Hsü Dau-Lin

A doutrina em geral reconhece que o estudo mais completo e

sistematizado sobre a temática das mutações constitucionais foi elaborado pelo

chinês Hsü Dau-Lin,138 publicado no ano de 1932, no contexto da produção

teórica da doutrina constitucional da República de Weimar. É deveras

surpreendente que, nos anos 1930, um jurista de formação oriental fosse tão bem

informado e enfronhado na doutrina alemã. Pablo Lucas Verdú, um dos tradutores

da referida obra para o espanhol, lamenta que existam poucas informações sobre a

biografia desse jurista chinês, considerando-o um observador “exótico”, que foi

134 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 118. 135 Hermann HELLER, Teoria do Estado, p. 306. 136 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 118. 137 Hermann HELLER, Teoria do Estado, p. 306. 138 DAU-LIN, Hsü. Mutación de la Constitución, trad. Christian FÖRSTER, Oñati: IVAP – Instituto Vasco de Administración Pública Herri-Arduralaritzaren Euskal Erakundea, 1998. (orig. Die Verfassungswandlung Walter de Gruyter, Berlin und Leipzig, 1932)

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capaz de produzir uma obra imprescindível para o entendimento do assunto aqui

tratado.139 140

Dau-Lin define a mutação constitucional (Verfassungswandlung) como

uma contraposição produzida, em muitas Constituições escritas, com a situação

jurídica real. É o fenômeno que revela a incongruência existente entre as normas

constitucionais por um lado e a realidade constitucional por outro.141 É a tensão

entre a Constituição escrita e a situação constitucional real.

“El significado de ese problema resulta de la naturaleza e intención de la Constitución escrita. Porque en el caso de una mutación de la Constitución, ésta como tal se cuestiona en su significado fundamental: Aquí normas que deben abarcar la vida estatal en su totalidad y exigen que su validez sea superior a la de las leyes ordinarias se reducen a letra muerta. En efecto, la realidad para la cual se emanaron estas normas, ya no coincide con ellas. Reina una tensión entre la Constitución escrita y la situación real constitucional.”142

Observa Dau-Lin143 que o problema da mutação da Constituição adquire

especial relevo nos países dotados de Constituição formal rígida, o que não se

cogita no caso de Constituições não escritas, como na Inglaterra, onde a vida

estatal real é sua Constituição mesma. Por conseguinte, o problema da mutação da

Constituição estriba na relação entre a Constituição escrita e a situação

constitucional real, ou seja, entre normas e realidade no campo do direito

constitucional.

Para Urrutia,144 a grande contribuição de Dau-Lin consiste no fato de ele

haver se preocupado em estudar especificamente as mutações constitucionais, ao

passo que outros só se referiam ao conceito de maneira genérica como parte do

conceito de Constituição (Smend), ou apenas para mostrar a existência do

fenômeno e sua perplexidade frente a ele (Laband, Jellinek).

139 Pablo Lucas VERDÚ, Una aportación ejemplar a la teoría de las mutaciones constitucinales: la obra de Hsü Dau-Lin. Este trabalho é o prólogo à tradução espanhola de Hsü DAU-LIN, op. cit., p.12. 140 Ao abrir o prólogo de sua obra acerca da mutação constitucional, Dau-Lin já revela sua impressão como observador externo e confessa de plano sua desconfiança contra o sistema jurídico positivo da ciência jurídica ocidental, citando um axioma da filosofia do direito e o Estado de Confúcio, que diz o seguinte: há homens governantes e não direito (lei) que governe, op. cit., p. 21. 141 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 29. 142 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 30. 143 Op. cit., p. 30. 144 Anna Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 126.

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3.6.3.1

Classificação das mutações constitucionais

Partindo da premissa de que a mutação constitucional é a relação

incongruente entre norma e realidade, Dau-Lin145 divisa quatro tipos de mutação

da Constituição:

1.° Mutação da Constituição mediante uma prática estatal que não viola

formalmente a Constituição;

2.° Mutação da Constituição mediante a impossibilidade de exercer certos

direitos estatuídos constitucionalmente;

3.° Mutação da Constituição mediante uma prática estatal contraditória

com a Constituição;

4.° Mutação da Constituição mediante sua interpretação.

É importante ressaltar o esforço teórico de Dau-Lin voltado para

sistematizar o estudo das mutações constitucionais. O conceito amplo de mutação

constitucional por ele adotado - incongruência entre norma e realidade

constitucional – permitiu-lhe, ademais, abranger uma variada gama de casos desse

fenômeno. Dau-Lin comenta vários exemplos históricos para cada categoria de

mutação, procedimento que, sem dúvida, confere ainda maior valor à classificação

por ele proposta. Entre a Constituição guilhermina e a republicana de Weimar,

muito se escrevera sobre as mutações constitucionais. Contudo, havia muita

controvérsia em relação ao modo de explicá-las. Faltava um trabalho de maior

envergadura que sintetizasse todas as posições existentes, e que explicasse de

forma mais satisfatória a natureza desse fenômeno. Deve-se a Hsü Dau-Lin o

mérito de tê-lo feito.

Dau-Lin traça como marco teórico de suas investigações os regimes

jurídicos de Constituições rígidas. Ele situa o problema da mutação constitucional

na relação entre a Constituição escrita e a situação constitucional real.

Diferentemente de Jellinek, que dá exemplos de mutação constitucional na

Inglaterra, Dau-Lin entende que onde não há Constituição escrita toda discussão

145 Op. cit., p. 31.

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sobre reforma e mutação da Constituição é ociosa.146 Essa delimitação em suas

pesquisas favoreceu uma elaboração mais sofisticada de diferentes e conseqüentes

relações entre norma e realidade. Quando norma e realidade estão numa relação

de congruência, o direito constitucional se afigura válido e eficaz. Essa

congruência se verifica tanto quando (1) “la realidad sigue a la norma: validez

normal del derecho constitucional”, quanto na hipótese em que (2) “la norma

sigue a la realidad: reforma de la Constitución”. Por outro lado, a situação de

incongruência entre norma e realidade configura a mutação da Constituição, que

se traduz nas seguintes hipóteses: (1) “realidad sin norma: práctica que

formalmente no viola a la Constitución; (2) “norma sin realidad: impossibilidad

de ejercer derechos estatuidos por las normas”; (3) “Norma con realidad:

relación incorrecta entre ambas – (3.1) “la realidad contradice a la norma:

práctica anticonstitucional”; (3.2) “la realidad tergiversa a la norma, la

reinterpreta: la mutación interpretadora”. 147

3.6.3.2

Mutação através de prática estatal que não viola a Constituição. O problema das lacunas constitucionais.

Os casos de mutação constitucional mediante uma prática estatal que

formalmente não viola a Constituição, examinados por Dau-Lin, não seriam

verdadeiras lacunas constitucionais. Trata-se simplesmente de relações jurídicas

que não encontram regulação constitucional. No entanto, Dau-Lin se pergunta se,

nesta hipótese, poder-se-ia enquadrar as lacunas constitucionais. Ao colmatar-se

as lacunas de forma ilícita se estaria produzindo uma mutação constitucional, já

que a nova situação fática careceria de fundamento constitucional? Que seriam as

lacunas constitucionais?

Jellinek foi o primeiro autor a relacionar o problema das lacunas

constitucionais com a mutação da Constituição. Para ele, a lacuna constitucional é

um fato não contemplado pela Constituição. Se constatada tal omissão do

146 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 44. 147 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 31.

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legislador constitucional, faz-se normalmente uma reforma da Constituição

(modificação consciente, intencional), com vistas a regular esse fato. No entanto,

se não se promove semelhante reforma constitucional, permanecendo uma relação

jurídica constitucional consuetudinária, sem alteração do texto da Constituição,

então se configura uma mutação constitucional.148

“Es cierto que este descubrimiento, imprevisto, de la existencia de lagunas constitucionales puede producir una mutación de la Constitución si la situación fáctica induce a un reconocimiento del Derecho consuetudinario y se le atribuye un significado normal. Pero, por regla general, la comprobación de lagunas Constitucionales corresponde al legislador, porque la reforma de la Constitución es el camino más seguro para colmar completamente tales lagunas”.149

Esse formalismo de Jellinek deriva de seu conceito de mutação

constitucional. Dau-Lin, porém, critica-o, suscitando uma série de questões que

levariam a posição de Jellinek, em última instância, a conseqüências

impossíveis.150

O tema das lacunas no direito é um dos que mais despertam discussões

com os formalistas. Dau-Lin, como se sabe, é um pesquisador e crítico do

formalismo jurídico.151 É interessante a passagem transcrita abaixo:

“En el fondo toda la desesperación formalista de la teoría de las lagunas constitucionales, es resultado natural del desconocimiento del sentido cultural de la Constitución: si se ignora el sentido sistemático de la Constitución, los artículos constitucionales se reducen necesariamente a prescripciones particulares; el ajustarse a la letra implica naturalmente la insuficiencia (existencia de lagunas) de los preceptos jurídicos frente a la plenitud vital de la realidad estatal.”152

Para Dau-Lin, a noção de lacuna se infere de um conceito formalista de

Constituição. Em princípio, quem concebe a Constituição como uma unidade 148 Essa interpretação é ratificada por DAU-LIN, op. cit., p. 64-65. 149 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 56. 150 DAU-LIN, op. cit., p. 65. 151 DAU-LIN é autor de um importante ensaio sobre o formalismo da teoria constitucional na literatura anterior à Primeira Guerra Mundial: “Formalistischer und antiformalistischer Verfassungsbegriff”, in Archiv des öffentlichen Rechts, Tübingen 1932, vol. 2. Cf.: Pablo Lucas VERDÚ, Una aportación ejemplar a la teoría de las mutaciones constitucinales: la obra de Hsü Dau-Lin. Este trabalho é o prólogo à tradução espanhola de Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 8. Cf. também DAU-LIN, op. cit., p. 64 (nota 61). 152 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 64.

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espiritual de sentido, tal como ele o faz, não pode sustentar a existência de lacunas

constitucionais.153

O problema das lacunas do direito e da lei surgiu na virada do século XIX

para o século XX.154 O assunto já nasceu polêmico, pois repleto de questões

controvertidas, que vão desde a discussão sobre a real existência das lacunas, da

sua natureza, de como se colmatam, da natureza das proposições jurídicas obtidas

para preenchê-las, da distinção entre colmatar lacunas e interpretar a lei, até as

mais elaboradas diferenciações e conseqüências teóricas.

É interessante notar que o problema das lacunas, ou seja, onde não há para

um caso concreto uma resposta satisfatória, terá um peso diferente de acordo com

a natureza da norma questionada. As conseqüências jurídicas da ausência da

norma e o modo de colmatá-la variam conforme a sua diversa natureza.

Há quem entenda que seria equivocado tratar da mesma forma as leis

constitucionais e as leis ordinárias, sendo imprescindível não olvidar a natureza

peculiar da Constituição. Daí a necessidade de se compreender que a

“... Constitución es la regulación legal del Estado en cuanto totalidad, que abarca la vida cultural y jurídica estatal entera: su intención apunta a la normación del orden social, no a la regulación de relaciones jurídicas particulares. Tal es la diferencia esencial entre la ley constitucional y la ordinaria. (...) Este sentido de la Constitución nos explica la índole peculiar de las leyes constitucionales, su ‘estado incompleto’ que a menudo se intenta encontrar, sus ‘lagunas conscientes’. Puesto que esa naturaleza peculiar apunta a la totalidad del Estado, entonces no puede ser su tarea adecuada regular exhaustivamente las relaciones jurídicas particulares de la realidad vital del Estado. Fija, solamente directrices fundamentales (principios), según los cuales el ordenamiento concreto tiene que formarse y el orden social desarollarse. Por conseguiente, no es sólo técnicamente imposible incluir bajo estas directrices fundamentales también prescripciones sobre todas las relaciones jurídicas particulares, además, la inclusión de semejantes prescripciones no es necesaria según el concepto de la Constitución. Del mismo modo sería ideológicamente falsa la pretensión de insertar semejantes prescripciones; porque el objeto de la Constitución, como regulación jurídica, es la totalidad estatal; los distintos detalles, si no afectan en una medida importante al ordenamiento jurídico o al orden social, son totalmente indiferentes según el derecho constitucional.” 155

153 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 127. 154 Sobre a literatura jurídica deste período, ver amplas referências em DAU-LIN, op. cit., p. 51-52. 155 DAU-LIN, op. cit., p. 57-8.

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Assim como é impossível enclausurar todas as normas de direito civil num

código civil, ou de direito penal num código penal, tampouco é viável imaginar

que a Constituição, qualquer que seja, consiga ser completa. Portanto, é natural

que existam lacunas constitucionais, ou, em outras palavras, que alguma questão

essencial ou fundamental para a vida do Estado fique sem resposta.

Não há nenhum exemplo na história política de uma coincidência total

entre o ordenamento jurídico e a realidade da vida estatal.156

3.6.3.3

Mutação por impossibilidade de exercício de determinadas atribuições descritas na Constituição. O problema da mutação por desuso.

Tópico assaz delicado no estudo da mutação constitucional concerne à

possibilidade de ocorrência de mutação de norma da Constituição por desuso ou

inaplicação. Pode deveras uma norma constitucional perder sua validade jurídica

por impossibilidade de aplicação? Como?

Jellinek foi o primeiro a apontar este tipo de mutação constitucional, que

denominou de “mutação da Constituição por desuso de faculdades estatais”

((Verfassungswandlung durch Nichtausübung). Dau-Lin157 critica essa

denominação, considerando-a equivocada. Sustenta o jurista chinês que, na

realidade, a Constituição não se transforma pelo simples desuso, mas pela

impossibilidade de cumprir-se, de sorte que o desuso seria apenas uma das causas.

Neste caso, ainda que se quisesse exercer certos direitos, a prática política e as

exigências da realidade o impediriam. Dau-Lin também comenta criticamente os

exemplos dados por Jellinek.158

Acreditando Jellinek que a Constituição se transforma segundo o modo

como se exerce o poder estatal, ele propôs uma questão que lhe pareceu

fundamental: isto também ocorre quando não se exerce uma competência do

156 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 63. 157 Op. cit., p. 36. 158 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 36 e s.

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mesmo poder? Eis a indagação que serviu de mote para análise desta virtual

espécie de mutação, por desuso de competência constitucional. 159

Buscando exemplos que comprovassem essa hipótese, Jellinek procede ao

exame, inicialmente, do direito de veto do monarca britânico, a fim de verificar se

o mesmo caíra em desuso. O exemplo é polêmico porquanto colhido de um país

que não possui Constituição escrita.160 Ao cabo da análise, Jellinek chega à

conclusão de que esse direito de veto real não desapareceu totalmente;161

inferindo, também, que “... de ninguna manera puede concluirse que por el

desuso de una competencia del poder estatal, las correspondientes prescripciones

constitucionales y legales resulten obsoletas”.162

A posição de Laband, expressa em Staatsrecht (II, p. 75) é a seguinte:

“Mientras que el Estado mantenga el mandato que cierta proposición jurídica debe ser válida, los súbditos y las autoridades no pueden desatenderlo y aún menos anularlo e incumplirlo”.

Jellinek considera que o Direito supremo do Estado é, em sua essência,

imprescritível; nisso, porém, reside a dificuldade em determinar, concretamente,

em que medida um poder nunca exercido de fato tem relevância jurídica ou

não.163 Ou seja, em algum caso particular determinado preceito constitucional,

formalmente vigente mas nunca aplicado, seria capaz de cumprir seu propósito

normativo?

Jellinek então levanta a questão da responsabilidade ministerial, prevista

em várias Constituições como princípio, mas dependente, para sua aplicação, de

uma formulação positiva em lei especial jamais editada. A situação jurídica é

configurada da seguinte maneira: a Constituição declara que os ministros são

responsáveis mas não define a medida dessa responsabilidade. A disciplina

satisfatória da matéria fica dependendo da edição de legislação complementar.164

159 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 45. 160 Para DAU-LIN (op. cit., p. 36, e nota 11), embora seja importante a idéia suscitada por Jellinek, o exemplo que este examina é infeliz, porque toda discussão sobre mutação, para o jurista chinês, está condicionada pela existência de uma Constituição escrita. 161 Georg JELLINEK, op. cit., p. 50. 162 Georg JELLINEK, op. cit., p. 51. 163 Georg JELLINEK, op. cit., p. 51. 164 Georg JELLINEK, op. cit., p. 52.

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Aqui Jellinek suscita um problema fundamentalmente distinto daquele relativo ao

desuso.165 Aliás, tal problema refere-se basicamente a preceitos constitucionais

que não são auto-aplicáveis, demandando, para ser concretizados, legislação

complementar. Em tese, o exemplo lembrado por Jellinek seria até mais adequado

para tratar de inércia da autoridade normativa do que propriamente do problema

relativo ao desuso do direito.

Poderia um direito “imutável” cair em desuso? A experiência histórica tem

revelado que não existe direito imutável. Entretanto, vale ressaltar que na doutrina

jusnaturalista assim como no direito canônico sustentava-se a existência de

normas jurídicas a salvo de qualquer poder terrestre, pois estariam num patamar

superior ao da humanidade.166 Essa questão parece de todo superada nas

civilizações culturalmente mais evoluídas, nas quais não é mais comum

encontrarem-se juristas ou filósofos que perfilhem a existência de um direito

natural ou divino, sobreposto ao direito positivo. Salvo em Estados teocráticos,

prevalece atualmente a consciência de que o direito é um fenômeno histórico-

cultural. Nesta perspectiva, a normatividade e a reformabilidade são traços

característicos da Constituição contemporânea. Mesmo com a possibilidade de

reforma nas Constituições modernas, que em geral são escritas, é compreensível

que se dote a Carta Magna de mecanismos de proteção. Neste sentido, avulta a

superioridade da Constituição em relação às leis infraconstitucionais, que aliás se

deduz de um regime jurídico rígido (no qual se estabelece um procedimento

dificultoso de alteração), bem como do controle de constitucionalidade de atos

normativos inferiores, e também pela guarda de determinados direitos (cláusulas

pétreas), que podem representar conquistas históricas que a comunidade tem

interesse em preservar.167

165 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 36. 166 Cf.: Hsü DAU-LIN (op. cit., p. 67) resume este ponto de vista, cuja origem remonta a Santo Tomás, nos seguintes termos: “Esta cuestión acerca de la obsolescencia de preceptos jurídicos implica, a su vez, una concesión, es decir que el derecho tiene naturaleza variable. Para la doctrina iusnaturalista y según también el derecho canónico, hay ciertas proposiciones jurídicas, - no ideas jurídicas-, que se sustraen a cualquier poder terrestre, pues están por encima de toda la humanidad, tienen validez eterna: son la ‘lex naturalis’ y la ‘lex divina’, ambas emanaciones de la ‘lex aeterna’, que es idéntica con el ser de Dios. Según esta concepción habría que distinguir, antes, si se plantea una mutación de un precepto jurídico, si éste pertenece al ámbito del ‘jus divinum’ o al de la ‘lex humana’ (lex positiva)”. 167 Neste trabalho, não é necessário refletir sobre a existência de limites explícitos ou implícitos à reforma constitucional. Tampouco se pretende gastar mais linhas com a discussão sobre a existência de eventuais direitos que não poderiam ser invalidados por desuso. Apenas queremos acentuar, com Peter Häberle (“Normatividad y reformabilidad de la Constitución desde la

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É interessante observar que Dau-Lin, seguindo a doutrina tedesca,168

concebe o conceito de validade num duplo sentido: validade no sentido jurídico-

técnico e validade social ou validade no sentido filosófico-jurídico. No primeiro

sentido, a validade está no plano normativo e corresponde ao conceito de vigência

ou validade formal. No segundo sentido, a validade está no plano social e

corresponde ao conceito de eficácia ou efetividade.169

“La validez en el sentido técnico-jurídico, significa la positividad de una proposición jurídica, la obligatoriedad para las personas a las que se aplican las normas, que están sometidas a ellas. Una ley que se ha producido y publicado regularmente exige su cumplimiento y aplicación. Esta ley es válida. Es válida en un ámbito determinado, a partir de cierto momento, a menudo, también, con cierta duración. Es ‘válida’ en el sentido técnico-jurídico.

En cambio, la validez en el sentido filosófico-jurídico es el efecto, la eficacia de una proposición jurídica en la vida de la realidad social. En este sentido, una proposición jurídica es válida solamente si se aplica de hecho: si no ‘está solamente en el papel’. Esta validez se expresa, por un lado, en su cumplimiento por los sometidos a las normas, y, por otro lado, en su aplicación – en el caso de incumplimiento – mediante las normas que hay que aplicar”.170

Essa distinção só é relevante no estudo da mutação constitucional à

medida que se investiga como um preceito constitucional, válido juridicamente,

perde sua eficácia. Segundo Dau-Lin, para a finalidade de pesquisa dos problemas

de mutação constitucional não há interesse na validade técnico-jurídica, que é a-

perspectiva de las ciencias de la cultura”, in Anuario de Derecho Constitucional LatinoAmericano, edición 1999, p. 387): “El ideal del Estado constitucional, basado en principios como los de dignidad humana, democracia, división de poderes, sistema jurídico, social y cultural es una conquista cultural del mundo occidental, como resultado de procesos culturales evolutivos y manifestación de la ‘tradición cultural’ compendiada en el conjunto de las norma clásicas y otros textos normativos. Al mismo tiempo, ese ideal de Estado enfrenta el reclamo de no retroceder en el nivel cultural alcanzado que, por el contrario, debe preservar y acrecentar”. 168 M. B. MAYER, Rechtsphilosophie, 2ª ed., Berlín, 1926, p. 56 e s. Apud Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 68. 169 Cf. Miguel REALE, Lições Preliminares de Direito, 22ª ed., São Paulo: Saraiva, 1995, pp. 108, 112 e 114 (grifamos): “Vigência ou validade formal é a executoriedade compulsória de uma regra de direito, por haver preenchido os requisitos essenciais à sua feitura ou elaboração” (op. cit., p. 108). “A eficácia se refere ... à aplicação ou execução da norma jurídica, ou por outras palavras, é a regra jurídica enquanto momento da conduta humana” (op. cit., p. 112). “Validade formal ou vigência é, em suma, uma propriedade que diz respeito à competência dos órgãos e aos processos de produção e reconhecimento do Direito no plano normativo. A eficácia, ao contrário, tem um caráter experimental, porquanto se refere ao cumprimento efetivo do Direito por parte de uma sociedade, ao ‘reconhecimento’ (Anerkennung) do Direito pela comunidade, no plano social, ou, mais particularizadamente, aos efeitos sociais que uma regra suscita através de seu cumprimento”. (op. cit., p. 114). 170 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 68.

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problemática, mas tão-somente na eficácia.171 Numa concepção puramente

normativista, o problema da vigência confunde-se com o dos requisitos formais

indispensáveis a que uma regra de direito adquira ou perca vigor (legitimidade do

órgão que editou a norma, compatibilidade com outros de maior hierarquia,

respeito à distribuição das competências, sanção, promulgação e publicação).172

Nessa visão de juridicidade estrita (normativista) afasta-se o exame da eficácia,

que está no plano da realidade jurídica, dos fatos. Apenas no plano abstrato das

normas é possível fazer um controle puramente jurídico. Não se admite que o fato,

tão-só, invalide a norma jurídica. Nesta circunstância, ao jurista restaria

“comprobar la existencia formal de uma proposición jurídica contrapuesta a uma

conducta no correspondiente del sujeto”.173 Também neste ponto Dau-Lin

revela-se crítico do formalismo jurídico:

“Sin embargo, este método normológico no hace justicia al objeto que tratamos. La jurisprudencia es, ante todo, una ciencia del derecho vivo, una ciencia de la realidad jurídica, no es una teoría pura del conocimiento del concepto del derecho, ni la doctrina de la idea jurídica abstracta. El concepto de la validez social sigue siendo imprescindible para la jurisprudencia positiva, aunque la filosofía jurídica no le conceda importancia específica.”

(omissis)

“Si consideramos, desde un ponto de vista de la realidad jurídica, una norma jurídica carente por completo de validez social, que no tiene existencia material, con la pérdida de su validez social, desaparece, también, su contenido de valor y sentido. Su significado para la contemplación de las normas jurídicas positivas, se limita sólo a su existencia formal, a su realidad escrita.

Este fenómeno a saber: cómo una proposición jurídica pierde su entero significado real mediante la pérdida de la validez social es una inversión del proceso consuetudinario de la formación de derecho. Aquí ha surgido, paulatinamente, una proposición jurídica material – sin registro formal – allí una proposición jurídica que poco a poco se hace ‘obsoleta’, a pesar de que sigue existiendo formalmente, pierde su validez, se hunde materialmente. Si en general se sostiene la tesis que una proposición jurídica consuetudinaria es jurídica y real, entonces hay que admitir, consecuentemente, que una proposición jurídica que deviene obsoleta en realidad ya no es una proposición jurídica”.174

O fenômeno do desuso de uma norma jurídica representa a inversão do

processo de formação do direito consuetudinário. Se o direito consuetudinário se

171 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 69. 172 Cf. Miguel REALE, Filosofia do Direito, p. 597. 173 Hans KELSEN, Hauptprobleme der Staatsrechtslehre, pp. 49 e s. Apud Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 69. 174 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 69-70.

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forma a partir de uma prática social reiterada no tempo, ocorrendo a

transformação de uma regra material em formal; no desuso acontece justamente o

contrário, ou seja, uma regra jurídica formal perde paulatinamente seu conteúdo

normativo material, tornando-se obsoleta.

O estudo conseqüente do fenômeno da mutação constitucional leva-nos a

questionar a postura dogmática daqueles que insistem em afirmar a validade da

norma jurídica apenas levando em conta o critério lógico-formal. Isso sem dúvida

privilegia o valor supremo da segurança jurídica. Ocorre que o distanciamento

entre o direito escrito “no papel” e a realidade social (incongruência entre a

Constituição e a realidade) permite afirmar que uma norma possa perder sua

validade jurídica em função da perda de sua eficácia.

Mas não é fácil determinar o momento em que uma norma jurídica passa a

ser considerada envelhecida ou obsoleta.

Apesar dessa dificuldade, Dau-Lin analisou um caso emblemático de

desuso do direito de dissolução do Parlamento pelo Presidente da República na

França. Trata-se do art. 5º da Lei Constitucional de 25 de fevereiro de 1875, que

atribuía ao Presidente da República francesa o poder de dissolver a Câmara dos

Deputados de acordo com o Senado. Esse era um direito que fortalecia

essencialmente a figura do Presidente francês como Chefe de Estado e se

fundamentava na necessidade de contrapeso à onipotência do Parlamento. Com

efeito, desde que foi instituído, o direito de dissolução só se aplicou uma única

vez, pelo Presidente MacMahon, em 1877.

Em Verdú encontramos a melhor exposição desse problema:

“El conflicto entre el Presidente Mac-Mahon con la Cámara de diputados de mayoría republicana (16 de maio de 1877) suscita una carta del mariscal al Presidente Del Consejo, Jules Simon, que em el fondo es una revocación. Jules Simon dimite y el duque de Broglie forma un gobierno que no apoya la Cámara. Esta afirma, con el voto de 363 diputados, el principio del gobierno parlamentario y vota un orden del día contra el gobierno de Broglie.

Autorizado por el Senado, Mac-Mahon disuelve la Cámara de diputados, el 25 de junio de 1877, pero las elecciones del 14-28 de octubre del mismo año reenvían a la Cámara una myoría republicana. Mac-Mahon se someterá y dimitirá el 30 de enero de 1879.

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Las consecuencias de la crisis serán: la pérdida del derecho del Jefe del Estado a revocar al presidente del Consejo, la desuetudo del derecho de disolución; el debilitamiento del Jefe del Estado.

Elegido Presidente Grévy, esto supondrá – según PRELOT – no sólo la elección de un nuevo Jefe de Estado, además, de una nueva Constitución. Así, como 1830 implicó el paso de la monarquía limitada a la parlamentaria, en 1879 se consolidará la República definitivamente y se producirá el cambio del parlamentarismo dualista al parlamentarismo monista”.175

O ato do Presidente MacMahon que dissolveu a Câmara foi considerado

pela doutrina majoritária inconstitucional,176 gerando uma crise política que

culminou com a demissão do Presidente. A partir dessa experiência traumática

para a história do parlamento francês, passou-se a considerar tal faculdade

presidencial ilegítima, quedando a norma em desuso. Com isso, o direito de

dissolução, formalmente previsto no art. 5º da lei constitucional, não foi mais

aplicado e passou a não mais existir na realidade constitucional. O desuso

continuou na IV República, consagrando-se abertamente o princípio da

supremacia parlamentar na França.177

Assim, constata-se que um direito formalmente vigente pode ter sua

existência real questionada, pelo fato de que seu exercício ou sua aplicação prática

se faz impossível.178 A norma pode perder completamente seu caráter jurídico

ainda que sua existência formal permaneça sem alteração.179

Impende destacar que inércia e desuso não são conceitos idênticos. Para

Anna Cândida Ferraz “o desuso consiste na inobservância (a) consciente, (b)

uniforme, (c) consentida, (d) pública e (e) reiterada, por longo tempo de uma

disposição constitucional”.180 Segundo esta autora, à diferença da inércia - que

pressupõe paralisação temporária e provisória da norma, que, a qualquer

momento, pode ser aplicada -, o desuso constitucional pressupõe paralisação

definitiva, caracteriza-se pelo animus interveniente na não aplicação da norma ou

do instituto, acompanhado da inaplicação prolongada no tempo. Essa

diferenciação teórica reside fundamentalmente no animus, que torna

175 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 141. 176 Neste sentido, conferir extensa bibliografia mencionada por DAU-LIN: op. cit., p. 37-38. 177 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 187. 178 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 38. 179 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 73. 180 Anna Cândida da Cunha FERRAZ, op. cit., p. 234.

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extremamente difícil sua distinção prática. Como se sabe, para considerar-se uma

norma constitucional definitivamente revogada, é preciso haver reforma

constitucional com esse efeito. Portanto, é possível haver a reaplicação da norma

considerada em desuso.

Para Jorge Miranda não é aceitável, sequer como hipótese, o desuso de

uma Constituição no seu todo, um costume de eficácia negativa que levasse à

cessação da vigência de uma Constituição formal. O desuso pode se dar, para o

jurista português, apenas em relação a certa ou certas normas constitucionais.181

3.6.3.4

Reforma material da Constituição e mutação constitucional182

Segundo Dau-Lin, a maior parte dos casos de mutação constitucional se

dão por meio da reforma material da constituição, problema tipicamente

alemão.183 Dau-Lin está a tratar, no caso, da espécie de mutação constitucional por

meio de uma prática estatal contrária à Constituição.

A reforma material da Constituição caracteriza-se pela presença de dois

requisitos: por um lado, a observância da forma agravada para modificá-la; e, por

outro, que permaneça inalterado o texto constitucional.184 Portanto, “reforma da

Constituição” significa aqui obtenção da maioria qualificada; “materialmente”,

significa não tocar o documento constitucional.

Na doutrina alemã, a reforma material da Constituição também foi

designada por outros nomes, como reforma “indireta”, ou “tácita”, ou “silente”, da

Constituição. Quando a reforma implicava alteração do texto constitucional,

denominava-se a isso reforma formal da Constituição. Portanto, o critério

tradicional para diferenciar os dois tipos de reforma era simples: modificação ou

não do texto constitucional.

181 Jorge MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, p. 383. 182 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 75-85. 183 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 75. 184 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 77.

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A reforma material da constituição, por sua vez, distingue-se em três

espécies:185 a) reforma material expressa;186 b) reforma material tácita;187 c)

reforma eventual ou inconsciente da Constituição.188

No primeiro caso, a lei é aprovada com maioria qualificada, assinalando-se

isso expressamente na publicação.

No segundo caso, reforma “silenciosa” da Constituição, observa-se

conscientemente o processo prescrito para a revisão constitucional, mas a lei, ao

ser publicada, não enuncia expressamente que foi seguida a forma agravada de

mudança. A maioria da doutrina admitia a validade da reforma material, mesmo

na hipótese onde não houvesse expressa indicação da mudança. Esta posição

prevaleceu porque não existia, no direito positivo, nenhuma disposição normativa

que prescrevesse a obrigatoriedade de que tal alteração devesse ser explícita.189

“Los contrarios a la reforma material de la Constitución esencialmente partían de la naturaleza y del concepto de la misma. Subrayaron, a veces, la autoridad suprema de la Constitución en virtud de su naturaleza, no obstante se adherían al positivismo formalista de la doctrina anterior a la guerra: no sólo la práctica del Imperio siguió sosteniendo la reforma material de la Constitución [Cfr. LABAND, Staatsrecht, II, pág. 42], tampoco la legislación de la posguerra escapó a esta tesis, incluso el celo en mantener la defensa de la Constitución de la doctrina constitucional, después de la revolución, no se atrevió a romper completamente con ella”.190

No terceiro caso, reforma “eventual” ou “inconsciente”, o conteúdo da lei

está em contradição com a Constituição, mas isso não é constatado no curso do

processo legislativo. A lei é aprovada com a maioria necessária para a reforma

constitucional. Coloca-se em dúvida, então, a validade dessa lei. Segundo Dau-

Lin, a doutrina majoritária entendia que essa lei era inválida, pois, do ponto de

vista jurídico, é necessária uma vontade dirigida particularmente para a questão.191

185 Neste ponto, DAU-LIN se fundamenta em JESELSOHN: Verfassungsänderung, p. 32 e s. 186 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 78-80. 187 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 80-84. 188 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 84-85. 189 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 82. 190 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 81-82. 191 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 84-85.

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3.6.3.5

Mutação constitucional por meio de interpretação192

Dau-Lin sustenta que podem ocorrer mutações constitucionais mediante

interpretação constitucional. Segundo ele, o problema da interpretação da

Constituição está muito próximo da realidade, sendo de fundamental importância

na prática e na teoria do direito constitucional norte-americano, onde essa

modalidade de mutação acontece com mais freqüência. O autor faz uma série de

considerações sobre as características da interpretação constitucional nos Estados

Unidos, mencionando ampla literatura jurídica a esse respeito. Não convém aqui

reproduzir suas reflexões sobre o tema, bastando consignar, todavia, que é nos

Estados Unidos que as mutações constitucionais (transformations) se produzem

na maioria dos casos seguindo o caminho da interpretação da Constituição, devido

ao poder de controle de constitucionalidade das normas e à enorme dificuldade de

efetuar uma reforma constitucional.

É interessante também a observação que fez Dau-Lin sobre a ausência de

discussão entre os juristas norte-americanos no que tange à adequação das

mutações ao direito. “Ninguém tem querido afirmar, sequer aproximadamente,

que a interpretação constitucional com suas doutrinas da ‘loose construction’ e

dos ‘implied powers’ é uma infração da Constituição, tal como se afirma na

doutrina alemã, onde se impugna, em geral, a juridicidade deste modo de

interpretar”.193

Por fim, Dau-Lin adverte que seria um grave erro sustentar que o direito

consuetudinário e a interpretação constitucional são simplesmente as únicas

possibilidades da mutação da Constituição. “A interpretação transformadora da

Constituição produz uma mutação da mesma (...) e se deve à instância habilitada

para isso, a sua posição na vida estatal nacional, a sua função real e a sua doutrina

evoluída e formada paulatinamente”.194

192 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 87-102. 193 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 101. 194 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 102.

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3.6.3.6

Mutação constitucional e direito consuetudinário

Dau-Lin examina detalhadamente as teorias existentes sobre o direito

consuetudinário,195 e rejeita a idéia de que elas possam explicar satisfatoriamente

a mutação da Constituição. Essas teorias teriam um valor doutrinário, mas não

correspondiam plenamente à realidade jurídica. Recorrer ao direito

consuetudinário para justificar a mutação constitucional parece resultado da

transferência de categorias do direito privado para o âmbito do direito público,

que teve lugar na doutrina positivista alemã. Outro problema é que, em muitos

casos, também não ocorreria o fenômeno da observância prolongada no tempo,

elemento indispensável para caracterizar o costume jurídico. O reconhecimento do

caráter consuetudinário da mutação constitucional por parte de uma instância

judicial também não tem o mesmo efeito que teria no direito privado.196

3.6.3.7

Mutação constitucional e regras convencionais197

Dau-Lin também critica os autores que tentam explicar as mutações com

base na categoria das conventions of the Constitution, típica do direito inglês. Para

ele, essa categoria não seria exportável para o direito continental, pois elas

funcionavam com base em premissas aplicáveis apenas ao sistema britânico. O

mesmo valia para os usages of the Constitution, do direito norte-americano.198

195 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 109-125. 196 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 131. 197 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 127-146. 198 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 131.

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3.6.3.8

Mutação constitucional como violação da Constituição

Para Dau-Lin, a natureza das mutações constitucionais não é explicada

satisfatoriamente nem quando associada ao direito com pleno valor, direito

consuetudinário, nem à regra convencional inferior às normas jurídicas autênticas,

nem muito menos quando é considerada, pura e simplesmente, uma violação à

Constituição.

Esta teoria é conseqüência natural de uma concepção positivista do direito.

Apóia-se na autoridade exclusiva da proposição jurídica escrita em toda a vida

jurídica e estatal.199

Uma das maneiras de explicar o problema das mutações constitucionais

como infração à Constituição aparece na doutrina francesa. Dau-Lin observa que

na França não havia uma reflexão sobre o problema das mutações constitucionais.

Apenas Maurice Hauriou teria se preocupado com a questão, entendendo que a

mutação constitucional significava um “falseamento da Constituição”. Por

oportuno, transcreveremos abaixo passagem significativa que localizamos em

obra do referido autor francês.

“Los falseamientos de la Constitución. – Las tres clases200 de reglas de que se puede componer el derecho de la Constitución, son susceptibles de reaccionar unas sobre otras en diversas sentidos, y de estas relaciones pueden derivarse falseamientos de la Constitución, llamados así porque no entrañan cambios regulares del derecho de la Constitución.

(...) una disposición establecida en la Constitución escrita rígida no puede modificarse en derecho por una ley orgánica posterior. En el conflicto entre la legalidad y la superlegalidad ordinaria, es claro que la superlegalidad debe prevalecer.

(...) el caso más habitual de falseamiento de la Constitución se debe al conflicto entre las prácticas y costumbres, en que se desenvuelve el juego de los mecanismos gubernamentales, y las disposiciones de las leyes orgánicas o aún las de mismas leyes constitucionales rígidas. Todos saben que, por ejemplo, el juego de nuestra Constitución de 1875 – en el medio siglo que lleva de existencia – se

199 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 147. 200 Os três elementos que compõem o direito constitucional francês, de que fala Hauriou, são: a superlegalidade constitucional, para os princípios fundamentais das liberdades públicas e para as relações essenciais dos poderes públicos; as simples leis orgânicas, para a organização da maior parte dos poderes públicos; e as práticas e costumes da Constituição. (Princípios de Derecho Público y Constitucional, p. 331).

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ha falseado considerablemente por las prácticas seguidas, especialmente en lo que se refiere a los poderes del presidente de la República en sus relaciones con las Cámaras: su derecho de disolución de la Cámara de los diputados, como su derecho de pedir una segunda deliberación de una ley, aunque están determinados en el artículo 5.° de la ley constitucional de 25 de Febrero de 1875 y en el artículo 7.° de la de 16 de Julio de 1875, se consideran caídos en desuso.

Conviene fijar el principio de que los falseamientos de la Constitución sólo crean estados de hecho y no estados de derecho; que no modifican el Derecho y que, por lo tanto, es lícito – desde que sea posible – la vuelta a las prescripciones y prerrogativas de la Constitución. En el Derecho francés, no cabe admitir ni que las disposiciones constitucionales puedan derogarse por disposiciones legales ordinarias, ni que se deroguen por el no uso o por el uso contrario”.201

Sabe-se que na França havia um domínio da concepção positivista, desde a

grande revolução, que depositava sua fé na autoridade da lei, e na lei como única

fonte de direito, na lei como vontade soberana do povo. Dau-Lin destaca a

variedade dos direitos consuetudinários locais (coutumes) e a desconfiança nas

más decisões judiciais como fatores que contribuíram para que, à época da

revolução francesa, se pusesse toda a esperança de uma melhora da situação do

Estado nacional, do aperfeiçoamento do sistema jurídico, no domínio absoluto das

leis objetivas. Tais exigências práticas de um império da lei, por seu turno,

reforçaram-se por meio de outra exigência doutrinária: a separação de poderes

(Montesquieu).202

Daí se pode compreender que o problema da mutação constitucional, que

coloca o direito positivo numa situação desconfortável, tenha sido desprezado

pela teoria constitucional francesa. Quando o tema era abordado, considerava-se

um fenômeno puramente fático, sem relevância jurídica.

3.6.3.9

Mutação da Constituição como problema constitucional

Para Dau-Lin, as teorias que tentaram resolver o problema da mutação

constitucional - a teoria do direito consuetudinário; a doutrina das regras

201 Maurice HAURIOU, Princípios de Derecho Público y Constitucional, p. 331-333. 202 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 151-152.

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convencionais; e a que interpreta a mutação como violação da Constituição -

padecem todas do mesmo erro, qual seja: a incompreensão do próprio valor da

Constituição.203

Por isso, Dau-Lin entende ser impossível uma compreensão metódica da

questão através da construção de conceitos tradicionais.

A raiz da questão, ou melhor, a chave para compreender o fenômeno da

mutação está na natureza da Constituição. Dau-Lin adota o conceito smendiano de

Constituição, baseado na idéia central de que o valor singular da Constituição e do

direito constitucional não pode ser compreendido com a construção de conceitos

da jurisprudência formalista. A afirmação de Smend de que a Constituição é a

ordem jurídica estatal, mais exatamente da vida na qual o Estado tem sua

realidade vital, ajusta-se a qualquer Estado e Constituição, pois há, em todo

ordenamento jurídico, um sistema significativo indiscutível na vida política do

Estado. A Constituição regula toda a existência do Estado, imprime a cada

individualidade estatal seu selo específico.204 A mutação constitucional deve

entender-se como produto da unidade de sentido que é o Estado e o caráter

evolutivo de sua realidade vital.205

Esta característica da Constituição como regulação jurídica da totalidade

da vida estatal, sua propriedade singular, coloca-a numa posição especial em

relação às normas jurídicas de outros campos do direito. Opera-se tal

diferenciação de três modos:

1. Insuficiência dos preceitos constitucionais em face da necessidade da

vida estatal e elasticidade de suas normas206

Embora o sentido da Constituição seja abarcar o Estado como totalidade,

Dau-Lin nega a idéia de uma regulação completa e exaustiva das relações

jurídicas existentes e possíveis no Estado por meio de sua Constituição. Isto não é

tecnicamente viável, nem é o propósito da Constituição. As normas

constitucionais apenas descrevem seu objeto de modo esquemático e só em pontos

concretos. Segundo Dau-Lin, é natural que as normas constitucionais

203 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 155. 204 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 157. 205 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 132. 206 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 158-159.

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esquemáticas se afiguram insuficientes diante da realidade jurídica estatal,

porquanto não é possível regular plenamente os inúmeros fenômenos vitais do

Estado; isto de forma alguma constitui uma deficiência ou aporia.

A par disso, a Constituição terá de lançar mão de formulações que

admitem interpretação elástica. Trata-se de exigência inevitável da situação

política sempre que se estabelece uma Constituição. Por isso, é comum

encontrarmos fórmulas que satisfazem na mesma medida exigências contrapostas,

permitindo várias leituras dos pontos controvertidos. Tais fórmulas dilatórias,

compromissos autênticos ou não, acham-se amiúde na legislação constitucional.

Essa imperfeição e elasticidade fazem com que a Constituição não possa

pretender, como sustentou Smend, uma validez rígida e heterônoma semelhante

ao direito das organizações subordinadas, pois tem que esquematizar muitos casos

particulares.

As normas constitucionais se distinguem das demais normas jurídicas pela

sua intencionalidade, pois estas últimas pretendem dominar totalmente o objeto

regulado, além de exigirem uma validez rígida e heterônoma.

2. Autofinalidade do Estado em sua qualidade de objeto juridicamente

regulado por sua Constituição207

A autofinalidade do Estado, que o diferencia das outras organizações e

instituições jurídicas, consiste na tarefa de conservar-se e fortalecer-se para sua

realização. Para Dau-Lin, o caráter de autofinalidade do Estado ganha importância

com relação a sua Constituição. Se esta tem o sentido de compreender o Estado

em sua totalidade vital, então também seria seu fim imanente conservar o Estado e

a integridade de seu âmbito de ação.

Seguindo Jellinek e Smend, diferencia-se o Estado das outras corporações:

“Efectivamente, si el Estado establece, significativamente, la tarea de conservarse y fortalecerse, si tal autoconservación, es uno de los valores propio del Estado de manera categórica para su realización, entonces se diferencia de las demás asociaciones en que ‘son en general medios facultativos para conseguir ciertos fines particulares objetivos’ (SMEND, cit., p. 85). Fácilmente se reconoce

207 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 159-160.

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que allí, se trata de la finalidad en sí, aquí solamente de instituciones con un objetivo determinado.”208

Desta forma, também se evidencia a posição especial do direito

constitucional frente aos outros setores do direito. No direito constitucional se dá

o valor de auto-conservação do Estado como princípio regulador para sua

consideração jurídica em face do direito das outras associações.209

3. Limitação da Constituição relativamente a sua eficácia sobre as forças

e garantias que lhe são imanentes210

Seguindo a posição de Smend, Dau-Lin argumenta que o Estado se

distingue de outras associações porque “sua existência não se garante por um

poder situado fora dele, como ocorre na maioria das demais associações; não se

põe em marcha por um motor ou juiz situado fora de seu próprio sistema, não é

sustentado por uma causa ou garantia heterônoma”; ao revés, realiza-se segundo

sua própria legalidade axiológica.211

Disso se depreende outra diferença entre a Constituição, como obra

legislativa, das outras normas jurídicas. O Estado é o poder de última instância

para restabelecer a ordem da vida jurídica, não sendo concebível a existência de

uma instituição situada acima dele ou normas jurídicas positivas acima das

normas constitucionais.

Dau-Lin chega à conclusão prática que os órgãos supremos do Estado não

podem ser controlados nem detidos, em seu funcionamento, por instância alguma.

Quem controla o órgão controlador? E se as normas constitucionais não contam

com nenhuma medida orientadora sobre as normas vigentes, então faltaria no

campo do direito constitucional uma delegação para colmatar as lacunas da lei.

Assim, a causa última deste fenômeno apareceria na própria legalidade da

realização da vida estatal e na qualidade da Constituição como regulação jurídica

desta vida estatal.212

208 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 159-160. 209 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 160. Vide interpretação, no sentido do texto, in Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Constitucional, vol. IV, p. 196. 210 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 160-161. 211 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 160. 212 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 161. Vide também Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Constitucional, vol. IV, p. 196.

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3.6.4

Essência da mutação constitucional

O fundamento último da mutação constitucional reside na natureza do

Estado como realidade vital.213 Esta realidade, por sua vez, condiciona uma

possibilidade e uma necessidade de transformar o Estado e suas instituições. Essa

transformação é crucial para sua Constituição, para a regulação jurídica de sua

forma de existir, que progride constantemente.214

“Esta exigencia que la vida estatal impone a su Constitución, se satisface sólo insuficientemente al establecer la posibilidad de una mutación constitucional. Causas humano-psicológicas y de técnica legislativa producen, juntas, el efecto que la mutación de la Constitución sólo ocurre en raras ocasiones”.215

Isso se comprovaria, afirma Dau-Lin, nos Estados Unidos mediante

interpretação constitucional e a prática dos usages of the Constitution, na França

daquela época em razão das normas esquemáticas contarem apenas com 25

artigos, e na Alemanha através da prática da reforma material da Constituição.

Dau-Lin conclui que onde a reforma da Constituição ocorre com pouca

freqüência, ali se dão mutações constitucionais.216

Para o ilustrado autor chinês, as mutações constitucionais não só decorrem

de uma necessidade do Estado enquanto realidade vital, mas também são em parte

queridas e favorecidas pela própria Constituição, como resultado de sua tripla

especificidade: a incompletude e elasticidade das normas constitucionais; as

peculiaridades do Estado como objeto de regulação jurídica e a falta de uma

instância superior que garanta sua existência.217

Dau-Lin faz uma diferenciação entre mutação constitucional em sentido

formal e mutação constitucional em sentido material. Tal distinção é decorrente da

dupla natureza da própria Constituição. A mutação constitucional em sentido

213 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 161. 214 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 162. 215 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 163. 216 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 163. 217 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 163 e s.

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formal ocorre quando a situação constitucional real já não se coaduna com o

direito constitucional positivo, há uma mutação do texto. Por outro lado, a

mutação constitucional material se dá quando se desenvolvem relações jurídicas

na realidade da vida estatal em contradição com o sistema, quer estejam estas

relações implicadas com as normas ou unicamente imbricadas com o sentido

indicado na Constituição. Aqui tem lugar a mutação do sistema ou de seu

significado. 218

“... hay mutaciones constitucionales permitidas y exigidas por la Constitución. Son, precisamente, complemento y ampliaciones del sistema significativo propuesto por ella de manera ideal, y hay mutaciones constitucionales, que por cierto no son intencionadas o deseadas por la Constitución, pero que no pueden impedirse ni suprimirse: son mutaciones del sistema de sentido propuesto por ella o de algunas instituciones normativizadas de intenciones manifestadas en el sistema”.219

Segundo Dau-Lin, a explicação para os dois tipos de mutação

constitucional é a mesma, qual seja: fundamentam-se na peculiaridade valorativa

do direito constitucional; na imperfeição das normas constitucionais em face das

reais necessidades da vida estatal, em sua regulação elástica, na natureza

teleológica do Estado, na auto-garantia da Constituição e na impossibilidade de

fiscalizar os órgãos supremos do Estado.220

218 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 169. 219 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 176. 220 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 176.

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4

Sumário: 4.1. Problema terminológico. 4.2. A necessidade política como transformadora da Constituição. 4.2.1. O conceito jurídico de necessidade. Estado de exceção e mutação constitucional. 4.3. Atos normativos e mutação constitucional. 4.4. O problema do costume constitucional. 4.5. Mutação pelas práticas constitucionais. 4.5.1. Convenções constitucionais. 4.6. Constituição e interpretação constitucional. 4.6.1. Interpretação e aplicação. 4.6.2. Realização, interpretação e concretização da Constituição. 4.6.3. Normatividade. 4.6.4. Interpretação e linguagem. 4.6.5. Dificuldades de investigação do conceito semântico da norma. 4.6.6. Sentido da norma e convenções lingüísticas. 4.6.7. A interpretação constitucional. 4.6.8. Interpretação e mutações constitucionais. 4.7. Limites da mutação constitucional.

4.1

Problema terminológico

Cabe aqui fazer algumas considerações acerca da terminologia utilizada no

estudo das mudanças constitucionais, que, talvez, ajudem a prevenir eventuais

confusões. Uma primeira observação refere-se à variedade de expressões que

indicam fenômenos ligados a mudanças constitucionais. A escolha terminológica

depende em alguma medida das idiossincrasias de cada autor, circunstância que, a

princípio, parece nos colocar diante de uma babel lingüística e nos impõe certa

reserva na comparação dos dados lingüísticos de diferentes sistemas.

Devemos estar advertidos, ainda, de que muitas vezes as palavras deitam

raízes históricas numa determinada língua, mas acabam circulando como conceito

jurídico abstrato, sofrendo freqüentemente modificações de acordo com a

tradução feita para uma língua particular.

Além disso, não raro se percebem diferenças de significado entre palavras

idênticas, em decorrência da escolha política do poder nacional. Como é cediço, a

criação da norma jurídica é prerrogativa do poder político, enquanto a definição

dos conceitos necessários ao conhecimento da norma jurídica e a sua classificação

é tarefa primordial da doutrina.

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A origem do termo “mutação constitucional” nos remete ao vocábulo

alemão “Verfassungswandlung”, criado por Laband.1 A tradução desta expressão

alemã não é uniforme, o conceito que se tem do fenômeno tampouco. Pedro Cruz

Villalon observa que o primeiro conceito a sofrer alteração de significado

(Bedeutungswandel) é precisamente o de “mutación” ou “mudanza”

constitucional. Neste sentido, ele nos dá notícia da variação existente nas

traduções para o castelhano do vocábulo alemão em tela:

“Los comienzos de la traducción al castellano han sido un tanto erráticos: La traducción de F. DE LOS RIOS de la ‘Teoría General del Estado’, de Georg JELLINEK (reimpresión de 1978, buenos Aires, páginas 405 y ss.) se inclina por el término ‘modificación’; la de L. LEGAZ LACAMBRA de la ‘Teoría General del Estado’, de Hans KELSEN (reimpresión de 1979, México, pág. 332) se inclina por ‘cambio de constitución’; la de Luis TOBIO de la ‘Teoría del Estado’, de Herman HELLER (México, 1934, pág. 278) se inclina por ‘reforma constitucional’. Quizá a la vista de este estado cosas GARCIA-PELAYO propuso en su ‘Derecho constitucional comparado’ (cit. n. 53, pág. 137) el término ‘mutación constitucional’, seguido por A. GALLEGO ANABITARTE en su traducción de la ‘Teoría de la Constitución’, de Karl Loewenstein (cit. n. 51, pág. 165). Siguiendo este intento de afianzar una sola versión castellana, la traducción del trabajo de HESSE se atiene estrictamente al término propuesto por GARCIA-PELAYO, por encima de la personal preferencia por el término ‘mudanza constitucional’ que me permito emplear ocasionalmente en esta nota de forma alternativa. Por lo demás, la doctrina alemana utiliza indistintamente los términos ‘Verfassungswandlung’ y ‘Verfassungswandel’.”2

A tradução de García-Pelayo numa expressão complexa - “mutación

constitucional”3 - acabou se consagrando, sendo hoje a mais utilizada pela

doutrina hispânica.4

Verdú5 explica que Wandlung significa, em alemão, câmbio, mutação,

transformação e transubstanciação (mistério da Eucaristia). Esta última acepção,

diz o citado autor, corrobora a influência de palavras teológicas no direito 1 Wandlungen der deutschen Reichsverfassung; Dresde 1895. Apud DAU-LIN, Hsü. Op. cit., p. 29. 2 O fragmento citado é de Pedro CRUZ VILLALON, na “Introducción” (versão castelhana) da obra de HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. XXVI, nota 60. 3 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho Constitucional Comparado, p. 137. 4 Podemos citar, dentre outros, dois trabalhos em língua espanhola bastante interessantes que utilizam a expressão “mutación constitucional” para referir-se ao fenômeno aqui estudado: VEGA, Pedro de. La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, Madrid: Tecnos, 2000, p. 179-215; e URRUTIA, Ana Victoria Sánchez. “Mutación constitucional y fuerza normativa de la Constitución: una aproximación al origen del concepto”, Revista Española de Derecho Constitucional, Año 20. Núm. 58. Enero-Abril 2000, p. 105-135. 5 Prólogo à tradução espanhola do livro de Dau-Lin, p. 13-14.

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constitucional, conforme o notaram Kelsen6 e Schmitt.7 É sintoma, aliás, de que

“las mutaciones constitucionales realizan una ‘transubstanciación’ de las normas

constitucionales; transforman el contenido normativo, respetando su texto”.8

Acreditamos que a locução “mutação constitucional”, utilizada por autores

de língua portuguesa, seja uma recepção direta da tradução espanhola “mutación

constitucional”, facilitada pela proximidade das línguas e pelo prestígio na

comunidade jurídica internacional do jurista espanhol que a traduziu do alemão.

Há de se destacar, contudo, que a mutação constitucional também recebeu

outros apelidos para designar o mesmo fenômeno: processos informais ou não

formais, processo indiretos ou oblíquos de mudança constitucional, mudança

material, mudança constitucional silenciosa (stillen verfassungswandlungen),

meios difusos de alteração constitucional, vicissitude constitucional tácita,

transição constitucional etc.

Jorge Miranda denomina a mutação de vicissitude constitucional tácita. O

autor entende por vicissitudes constitucionais “quaisquer eventos que se projetem

sobre a subsistência da Constituição ou de algumas das suas normas”.9 Tendo

como um dos diferentes critérios de recorte classificatório o modo ou forma

através da qual se produzem as modificações, o autor chegou a divisar, dentre as

vicissitudes constitucionais, aquelas que seriam: expressas – o evento

constitucional produz-se como resultado de ato a ele especificamente dirigido

(reforma); e tácitas – o evento é um resultado indireto, uma conseqüência que se

extrai a posteriori de um fato normativo historicamente localizado (mutação).10

São vicissitudes tácitas o costume constitucional, a interpretação evolutiva da

Constituição e a revisão indireta.11

Canotilho utiliza indistintamente as expressões mutação e transição

constitucional ao referir-se ao problema da “revisão informal do compromisso

6 Ensayos sobre Jurisprudencia y Teología, México: BÉFDP, 2003. 7 Teología Política. Em: Carl Schmitt, Teólogo de la Política, México: Fondo de Cultura Económica, 2001. 8 Pablo Lucas VERDÚ, Prólogo à tradução espanhola do livro de Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 14. 9 Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo II, p. 109. 10 Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo II, p. 109-110. 11 Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo II, p. 112, 116-117.

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106

político formalmente plasmado na constituição sem alteração do texto

constitucional”.12

Machado Horta reconhece uma relação epistemológica entre permanência,

mudança e mutação constitucional. Para além do tratamento conceitual já

consagrado na Teoria da Constituição, o autor aborda o significado dos vocábulos

utilizados por quem se propõe a enfrentar a fecunda temática das transformações

constitucionais. Isso confirma que o problema terminológico é de fato o primeiro

obstáculo a ser superado no desenvolvimento do estudo das mutações. Para

Machado Horta:

“... as mutações constitucionais abrangem no seu conteúdo mais amplo as mudanças da Constituição, entendidas como espécies do comportamento constitucional daquele gênero. A permanência da Constituição é o contrário da mutação, em relação antitética, enquanto a mudança compreende as formas concretas de mutação constitucional, para incorporar mutações formais, previstas na Constituição, como instrumento da modificabilidade do texto constitucional, em procedimento distinto da mutação constitucional, no sentido estrito, concebida, esta última, como mudança não-formal da Constituição, provindo de convenções e usos parlamentares, em convívio com o texto, que a mutação altera no seu espírito e significado, sem tocar na regra escrita. O sentido abrangente da mutação constitucional se ajusta à idéia da Constituição rígida e supera o entendimento tradicional, elaborado em função da Constituição flexível e da concepção historicista das instituições. A correlação entre permanência, mutação e mudança constitucional decorre da incidência no objeto de conhecimento comum, a Constituição...”13

Podemos destacar, do fragmento supracitado, que Machado Horta concebe

o vocábulo “mutação” em dois sentidos distintos, um amplo e outro estrito.

Mutação no sentido amplo seria antítese de permanência, abrangendo tanto as

mudanças formais quanto as informais. A palavra “mudança”, por sua vez, é

utilizada como forma concreta de mutação. Mutação no sentido estrito é a

mudança não-formal da Constituição.

Pedro de Vega é outro autor que destaca a falta de uniformidade no

tratamento e na terminologia que a doutrina estrangeira utiliza a respeito das

mutações constitucionais. Na França, faz-se alusão ao fenômeno da mutação

constitucional sob a ampla epígrafe do costume (coutume constitutionnele). Já na 12 José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1101. 13HORTA, Raul Machado. “Permanência, Mutações e Mudança Constitucional”, Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Edição 2 de 1999, Ano XVII, p. 1. http://www.tce.mg.gov.br/revista. Acesso em 8-3-2005.

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Itália é mais freqüente denominá-lo de modificação constitucional tácita

(modificazioni tacite della Constituzione). Na Alemanha, houve uma elaboração

mais completa e rigorosa das modificações não formais da Constituição, sob a

expressão consagrada de mutação constitucional (Verfassungswandlung).14

É de destacar-se, ainda, que Anna Cândida da Cunha Ferraz utiliza a

expressão mutação constitucional somente para “todo e qualquer processo que

altere ou modifique o sentido, o significado e o alcance da Constituição sem

contrariá-la; as modalidades de processos que introduzem alteração

constitucional, contrariando a Constituição, ultrapassando os limites

constitucionais fixados pelas normas, enfim, as alterações inconstitucionais são

designadas por mutações inconstitucionais.”15 Na visão desta autora, portanto, o

termo “mutação constitucional” só é apropriadamente utilizado quando presentes

os seguintes requisitos: a) houver alteração de sentido, do significado ou do

alcance da norma constitucional; b) a mutação for compatível com a letra e com o

espírito da Constituição; e c) a alteração da Constituição se processar por modo ou

meio diferentes das formas organizadas de poder constituinte instituído ou

derivado.16

4.2

A necessidade política como transformadora da Constituição17

Jellinek destacou o papel da necessitas como fonte criadora do direito. O

jurista alemão trabalha com a premissa de que os acontecimentos históricos

ligados a elementos centrais do Estado, e que perturbam seus fundamentos,

ensejam amiúde necessidades políticas que atuam como elementos

transformadores da Constituição. Por isso, disse ele que

“Las usurpaciones y las revoluciones provocan en todas partes situaciones en las que el Derecho y el hecho, aunque tienen que distinguirse

14 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 179. 15 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. Editora Max Limonad, 1986, p. 10. 16 Anna Cândida da Cunha FERRAZ, op. cit, p. 11. 17 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 29-35.

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estrictamente, se transforman el uno en el otro. El fait accompli – el hecho consumado – es un fenómeno histórico con fuerza constituyente, frente al cual toda oposición de las teorías legitimistas es, en principio, impotente”.18

É importante ressaltar que, na concepção jellinekiana, a necessitas não

surge apenas nos momentos cruciais da história do Estado, verificando-se não raro

no curso normal da vida estatal, ou seja, na experiência quotidiana dos povos,

quando algumas circunstâncias acabam por transformar a organização estatal, sem

que se altere o texto da Constituição.

O jurista analisa diferentes casos de mutação ocorridos na vigência da

Constituição do Reich alemão (1871), documento que ele considera emblemático

em razão da peculiar origem e formação do império.

Pois bem, Jellinek ilustra sua explanação, inicialmente, com o seguinte

exemplo, colhido na vigência da Constituição imperial, que dispunha:

“corresponde al Emperador convocar al Bundesrat y al Reichstag, inaugurarlos,

suspender sus sesiones y clausurarlas”. O jurista alemão explica que a

convocação do Bundesrat e do Reichstag acontecia anualmente, e podia ocorrer a

convocação tão só do Bundesrat para a preparação dos trabalhos. O contrário,

todavia, não era admitido, i. e., convocar-se apenas o Reichstag sem chamar o

Bundesrat.19 20

Jellinek observou que a última convocação do Bundesrat ocorrera

precisamente em 22 de agosto de 1883,21 e “desde então este colégio não mais se

fechou”. Assim, em clara contradição com o texto expresso da Constituição,

converteu-se o Bundesrat, na prática, em uma Câmara permanente.

18 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 29. 19 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 30. 20 Os dispositivos pertinentes da Constituição imperial de 16 de abril de 1871, reproduzidos adiante, foram extraídos da versão italiana, única à qual tivemos acesso: LANCHESTER, Fulco. Le Costituzioni tedesche da Francoforte a Bonn: introduzione e testi, Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 165. Todas as vezes que aqui nos referirmos ao texto da Constituição imperial alemã de 1871, ou reproduzirmos parte dela, será com base na supracitada tradução italiana. Eis as disposições: “Art. 12 –L’Imperatore convoca, apre, proroga e chiude il Bundesrath e il Reichstag. Art. 13 – Il Bundesrath ed il Reichstag, sono convocati tutti gli anni. Il Bundesrath può essere convocato senza il Reichstag per la preparazione dei lavori, ma il Reichstag non può essere convocato senza il Bundesrath. Art. 14 – La convocazione del Bundesrath deve aver luogo ogni volta che essa è chiesta da un terzo dei voti che lo compongono”. 21 É mister enfatizar que o escrito de Jellinek data de 1906.

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Mas por que razão teria ocorrido essa mutação constitucional?

Jellinek esclarece que o organismo em questão exercia diversas funções

(legislativas, administrativas e judiciais) em medida sempre crescente, de sorte

que suas atividades já não poderiam interromper-se, segundo ele, por mais tempo

que as de um ministério ou de um tribunal. Juridicamente, não pairava dúvida de

que a instituição deveria reunir-se e funcionar apenas durante um determinado

lapso anual, quando convocada. Diante desse fato, o mais espantoso era que

alguns juristas passavam ao largo da questão, parecendo não se darem conta da

conversão do Bundesrat em um colégio permanente, e, portanto, com status bem

diverso do que lhe fora conferido pelo diploma constitucional. De qualquer forma,

a ninguém se afigurou inconstitucional o fato de o Bundesrat ter se tornado uma

assembléia permanente.22

Outra mutação, esta de maior significado histórico, é atinente à posição do

chanceler23 do Reich na primeira fase de sua experiência como chanceler federal

da União alemã do Norte. Informa Jellinek que o chanceler do Reich reunia em si

três diferentes qualidades jurídicas: 1ª) Presidente do Bundesrat; 2ª)

Plenipotenciário da Prússia no Bundesrat; e 3ª) Ministro do Reich responsável

perante o Imperador.

Segundo a Constituição do Reich (arts. 9 e 16)24, “só os membros do

Bundesrat ou os comissários delegados pelo Bundesrat, podem apresentar-se nas

sessões do Reichstag, e só eles tem o direito de pedir a palavra representando as

opiniões de seu Governo ou as propostas do Bundesrat”. Ademais disso, salienta

Jellinek, “o Bundesrat é plenamente irresponsável perante o Reichstag, já que

evidentemente é um fator legislativo frente a outro”.25 Neste caso, o chanceler do

Reich só podia pedir a palavra na qualidade de plenipotenciário da Prússia, jamais

22 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 30-31. 23 Chanceler era a denominação do chefe de governo da Alemanha unificada no séc. XIX, nomeado pelo kaiser (imperador) e só responsável perante ele. 24 “Art. 9 – Ogni membro del Bundesrath ha diritto di intervenire al Reichstag e di esservi sentino ogni volta che lo desidera onde esporre l’opinione del suo Governo, quand’ anche questa non sia adottata dalla maggioranza del Bundesrath. Nessuno può nello stesso tempo esser membro del Bundesrath e del Reichstag. Art. 16 – Le proposte che devono essere deferite al Reichstag in ragione delle decisioni del Bundesrath, gli sono transmesse in nome dell’Imperatore. Queste proposte sono sostenute dai membri del Bundesrath o da commissari speciali nominati dal Bundesrath”. (LANCHESTER, Fulco. Le Costituzioni tedesche da Francoforte a Bonn: introduzione e testi, Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 164-165). 25 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 32.

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como ministro do Reich. Ocorreu que o príncipe Bülow, em certa ocasião, violou

o disposto na Constituição ao expor a política exterior do Reich ao Reichstag.

Como essa política não é assunto da Prússia, pode-se considerar que ele exorbitou

de sua competência. Jellinek salienta, por outro lado, que o chanceler do Reich

podia proibir, nas sessões do Reichstag, qualquer crítica contra ele a propósito de

suas palavras e atos porque sua presença no Reichstag se justificaria apenas como

membro do Bundesrat, sem responsabilidade. No entanto, diz Jellinek, nunca

ocorreu do Presidente do Reichstag advertir o chanceler sobre os limites

constitucionais de sua posição na Câmara. Tornou-se comum, aliás, que o

Reichstag se atribuísse o direito de interpelar diretamente o chanceler. Este, por

sua vez, representava no Reichstag, de fato, a política do Império alemão, e não a

do estado da Prússia, membro da Federação. Havia portanto um claro contraste

entre o texto constitucional e a situação real.26

A lei da lugar-tenência (ou substituição), de 17 de março de 1878, criada

por Bismarck, é outro exemplo de mutação operada mediante necessitas. Esta lei

conferiu ao imperador a faculdade de nomear substitutos do chanceler. Ocorre que

o chanceler não tinha condições de gerir as tarefas de todas as autoridades do

Reich. Era humanamente impossível assumir, sozinho, a responsabilidade de

todos os assuntos de um Império à época formado por sessenta milhões de

habitantes. Assim sendo, a instituição dos substitutos (por natureza temporários)

impunha-se como uma necessidade real (e permanente), pois, sem os quais, o

chanceler não daria conta de todas as necessidades da administração do Reich.

Laband27 também sublinha o caráter permanente do instituto do lugar-tenente.

Neste contexto, a Constituição imperial, que caracterizava o chanceler como único

ministro responsável, já não poderia compatibilizar-se com a realidade.28

É de notar-se, ainda, que Jellinek observou essas mutações sem deixar de

assinalar a posição da doutrina majoritária, que, até então, comentava os

dispositivos pertinentes da Constituição bismarkiana sem atentar para as

mudanças essenciais que estavam acontecendo no sentido originário do texto

constitucional.

26 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 33-34. 27 Paul LABAND, Wandlungen, p. 17, Staatsrecht, I, p. 359. Apud Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 35 nota 52. 28 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 34-35.

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4.2.1

O conceito jurídico de necessidade. Estado de exceção e mutação constitucional.

A idéia de necessidade é freqüentemente invocada para justificar o estado

de exceção. O adágio latino necessitas legem non habet (a necessidade não tem

lei) pode ser entendido em dois sentidos opostos: “a necessidade não reconhece

nenhuma lei” e “a necessidade cria sua própria lei” (nécessité fait loi).29 A origem

desse princípio pode ser encontrada na formulação do Decretum de Graciano,

onde aparece duas vezes: uma na glosa e outra no texto.

“A glosa (que se refere a uma passagem em que Graciano limita-se genericamente a afirmar que ‘por necessidade ou por qualquer outro motivo, muitas coisas são realizadas contra a regra’, pars I, dist. 48) parece atribuir à necessidade o poder de tornar lícito o ilícito (si propter necessitatem aliquid fit, illud licite fit: quia quod non est licitum in lege, necessitas facit licitum. Item necessitas legem non habet).30

Mas é no texto seguinte de Graciano (pars III, dist. I, cap. II), relativo à

celebração da missa, que esse entendimento parece ficar mais claro. Depois de

haver explicado que o sacrifício deve ser oferecido sobre o altar ou em um lugar

consagrado, Graciano acrescenta:

“É preferível não cantar nem ouvir missa a celebrá-la nos lugares em que não deve ser celebrada; a menos que isso se dê por uma suprema necessidade, porque a necessidade não tem lei” (nisi pro summa necessitte contingat, quoniam necessitas legem non habet).”31

Do que se viu acima, o filósofo italiano Giorgio Agamben conclui: “Mais

do que tornar lícito o ilícito, a necessidade age aqui como justificativa para uma

transgressão em um caso específico por meio de uma exceção”.

Agamben mostra também como esse princípio é comentado por Tomás de

Aquino na Summa theologica, evidenciando que também ali a teoria da

29 Giorgio AGAMBEN, Estado de exceção, p. 40. 30 Giorgio AGAMBEN, Estado de exceção, p. 40. 31 Giorgio AGAMBEN, Estado de exceção, p. 40.

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necessidade aparece como uma teoria da exceção (dispensatio), em virtude da

qual um caso particular escapa à obrigação da observância da lei. O fundamento

último da exceção não é propriamente a necessidade, mas o princípio segundo o

qual

“toda lei é ordenada à salvação comum dos homens, e só por isso tem força e razão de lei [vim et rationem legis]; à medida que, ao contrário, faltar a isso, perderá sua força de obrigação [virtutem obligandi non habet]”.32

Depois de haver esclarecido que é estranha ao mundo medieval a idéia de

que uma suspensão do direito pode ser necessária ao bem comum, Agamben

afirma que somente com os modernos o estado de necessidade tende a ser incluído

na ordem jurídica e a apresentar-se como verdadeiro “estado” da lei.

“O princípio de que a necessidade define uma situação particular em que a lei perde sua vis obligandi (esse é o sentido do adágio necessitas legem non habet) transforma-se naquele em que a necessidade constitui, por assim dizer, o fundamento último e a própria fonte da lei. Isso é verdadeiro não só para os autores que se propunham a justificar desse modo os interesses nacionais de um Estado contra um outro (como na fórmula Not kennt kein Gebot usada pelo chanceler prussiano Bethmann-Hollweg e retomada no livro homônimo, de Josef Kohler [1915]), mas também para os juristas, de Jellinek a Duguit, que vêem na necessidade o fundamento da validade dos decretos com força de lei emanados do executivo no estado de exceção”.33

O estado de exceção, de que também trata García-Pelayo ao referir-se à

“normalização de medidas anormais”, é apontado pelo jurista espanhol como fator

de transformação constitucional. “Mas sea porque la situación real imaginada

como excepcional se haya convertido en normal, sea porque los partidos utilicen

como instrumento tales posibilidades excepcionales, aunque en realidad no lo

exija la situación, el hecho es que lo excepcional se convierte en normal y lo

normal tiende a convertirse en normativo, y con ello es patente que se verifica una

transformación en la estructura constitucional”.34 O autor citado considera que o

problema se agrava ao levar-se em conta que, junto ao direito de necessidade

“intra constitucional”, tem surgido também um direito de necessidade “extra

32 Giorgio AGAMBEN, Estado de exceção, p. 41. 33 Giorgio AGAMBEN, Estado de exceção, p. 43. 34 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 136.

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constitucional” – distinção que toma emprestada de W. Kägi35 – não dentro, mas

“junto” ou “sobre” o texto constitucional, direito que pode ser justificado

baseando-o na “essência”, na “norma suprema não escrita”, nos “princípios”, etc.,

da constituição, ou pode ser considerado como “ato jurídico irregular”, como

“superioridade momentânea dos fatos”, etc.; porém, ao repetir-se de modo normal

produz uma alteração na constituição vigente, esteja ou não em desacordo com os

princípios que a informam.

Um exemplo típico desse processo seria a transferência de competência do

legislativo para o executivo, alterando o esquema previsto na distribuição de

competências constitucionais.36 Tal exemplo seria perfeitamente aplicável à

realidade constitucional brasileira, onde o Presidente da República tem exercido a

função de verdadeiro legislador através da edição de inúmeras medidas

provisórias, com força de lei (CF: art. 62), para regular situações do interesse do

governo, e, muitas vezes, sem que estejam devidamente presentes os pressupostos

de relevância e urgência que justificariam a medida. Mesmo com a aprovação da

Emenda Constitucional n° 32, de 11/9/2001 - que alterou o art. 62 da Constituição

Federal, disciplinando de forma detalhada o uso das medidas provisórias – ainda

constitui um grave problema político o uso reiterado dessa faculdade

constitucional pelo Presidente. É comum que os trabalhos das Casas Legislativas

do Congresso Nacional fique paralisado em virtude da apreciação prioritária que

se deve fazer das medidas provisórias (CF: art. 62, § 6°, acrescido pela EC n°

32/2001), ficando em segundo plano a deliberação sobre projetos de leis dos

deputados e senadores.

35 W. KÄGI: Die Verfassung als rechtliche Grundordnung dês Staates. Zurich (1945?), p. 115. Apud Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 137 (nota 28). 36 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 137.

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4.3

Atos normativos e mutação constitucional37

José Afonso da Silva destaca que a mutação pode ocorrer por atos

praticados pelo poder público visando à complementação de normas

constitucionais (leis, atos executivos, políticas públicas), entendendo que só são

válidas mutações emanadas desses atos quando expandem normas constitucionais

que requeiram integração para sua aplicação.38

Certo de que as mutações podem surgir como conseqüência de atos

legislativos, Vega destaca três circunstâncias que convém considerar.

Em primeiro lugar, ele fala da natureza das normas constitucionais que,

não raro, limitam-se a enunciar princípios, cuja aplicação concreta exige um

provimento legislativo posterior (através de lei ordinária). Seria o caso das normas

de eficacia diferida (Pierandrei), suscetíveis de interpretações e realizações

diversas, podendo ocasionar a criação de mutações.

Em segundo lugar, o autor enfatiza que as Constituições modernas são

produto do consenso de forças políticas antagônicas que concorrem na sua

elaboração. Por isso, muitas vezes encontramos, na mesma Constituição,

dispositivos ambíguos e contraditórios. Vega fornece um exemplo de normas

contraditórias da Constituição espanhola: artigo 38 (no qual se reconhece a

economia de mercado) e os artigos 128 e 131 (onde se protegem especialmente os

interesses do setor público e da planificação). Trata-se de situação que

potencializa o aparecimento de mutações; pois, na medida em que o legislador

privilegie uma das perspectivas, ou a economia de mercado, ou a planificação,

estará fatalmente criando uma mutação constitucional em relação à outra norma.

Por derradeiro, Vega destaca a existência de disposições constitucionais

que delegam ao legislador ordinário a tarefa de desenvolver seus próprios

preceitos. Isso pode levar a duas conseqüências: a) essa legislação não se

estabelece, o que daria lugar a “mutações por impossibilidade de exercício ou por

37 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 190-195. 38 José Afonso da SILVA, Poder Constituinte e Poder Popular, p. 288.

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desuso das competências atribuídas na Constituição” (Dau-Lin); b) essa

legislação nasce, mas devido à distribuição das forças políticas, a mutação

constitucional aparece na medida em que se amplie ou se restrinja o sentido da

norma fundamental.

A abundância de declarações de princípio, a ambigüidade de muitos

dispositivos do texto constitucional e a remissão permanente de várias matérias ao

legislador ordinário são fatores responsáveis pela criação de mutações no

ordenamento constitucional espanhol, por meio de atos normativos.39

Ao par desses fatores, outro elemento a que o autor atribui especial

relevância no ordenamento espanhol é a chamada “lei orgânica”. Trata-se de uma

categoria de lei prevista no artigo 81 da Constituição espanhola de 1978:

“Artigo 81º - 1 – São leis orgânicas as leis relativas ao desenvolvimento dos direitos fundamentais e das liberdades públicas, as leis que aprovem os estatutos de autonomia e o regime eleitoral geral e as outras leis previstas na Constituição.

2 – A aprovação, a modificação ou a revogação das leis orgânicas exigirá maioria absoluta do Congresso, em votação final sobre o conjunto do projeto”.40

É de notar-se que os conteúdos reservados às leis orgânicas têm a natureza

de norma materialmente constitucional, favorecendo, destarte, que se operem

modificações constitucionais sem que seja seguido o procedimento especial da

reforma.41

Ainda no tocante às leis orgânicas, Vega faz uma importante observação,

dizendo que na Alemanha e na Itália as leis desse tipo são consideradas dentro da

categoria de “lei constitucional”, o que, na opinião do autor, seria mais razoável,

contribuindo inclusive para remediar as dificuldades e problemas que a rigidez

constitucional poderia sofrer com o advento das leis orgânicas. As leis

constitucionais, nos países citados, estão na mesma categoria formal da

39 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 192. 40 O texto integral do artigo 81 da Constituição da Espanha foi extraído da versão portuguesa de Jorge MIRANDA, in Constituições de diversos países, vol. I, 3ª ed., Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986, p. 305. 41 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 192-193.

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Constituição, o que implica dizer que as mutações das quais falamos seriam, em

realidade, impossíveis. Isto é,

“Las leyes constitucionales podrán presentarse en ciertos casos como auténticas reformas de la Constitución, pero nunca como modificaciones no formales de la misma”.42

Vega43 assinala que “num sistema constitucional rígido, qualquer

modificação que se estabeleça na legalidade fundamental, à margem do

procedimento de reforma, não admite outra interpretação possível que a de

entendê-la como uma violação da Constituição. Por isso não cabe falar de

mutações criadas diretamente por atos normativos. Uma lei com conteúdos

materiais opostos à norma fundamental não gera uma mutação, senão simples e

plenamente uma hipótese de inconstitucionalidade. A mutação aparece tão-

somente quando como conseqüência de um ato normativo (ou de sua ausência)

que, jurídica e formalmente, não contém uma inconstitucionalidade manifesta, se

produzem efeitos na realidade política e social contrários aos que caberia deduzir

de uma atuação direta e uma interpretação imediata de determinados textos

constitucionais”.44

O fragmento acima transcrito confirma o que o autor espanhol, alhures, já

afirmara, isto é, que o campo de atuação das mutações é o da realidade e não o da

normatividade.

A mutação seria, então, o resultado de uma prática (surgida

espontaneamente, ou como efeito de um ato normativo) que contradiz o

significado de certos preceitos da Constituição. É neste contexto, dirá Vega, que o

conceito de mutação se poderia fazer equivalente ao de convenção constitucional.

O autor ressalta ser sintomático que Hatschek, excelente conhecedor do Direito

constitucional britânico, tenha se servido da experiência e do significado das

regras convencionais (Konventionalregeln), para expor e resolver a temática da

mutação constitucional (Verfassungswandlung).

42 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 193-194. 43 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 200-208. 44 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 200.

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4.4

O problema do costume constitucional45

García-Pelayo salienta que o costume tem uma importância considerável,

qualitativamente, no direito constitucional. Para ele, o costume cumpriria uma

tripla função no direito constitucional: completá-lo, colmatando as lacunas da

constituição formal; adaptar os preceitos da Constituição a novas situações e

convicções que estão na base de toda interpretação constitucional; e modificar, às

vezes radicalmente, as atribuições dos órgãos e instituições constitucionais.46

É compreensível que a doutrina procure investigar a relação existente entre

mutação constitucional e costume à medida que o fenômeno da mutação é situado

na esfera dos fatos e não na órbita das normas.

Verdú sublinha dois aspectos importantes do costume constitucional: “1)

El derecho constitucional consuetudinario es la compensación social del derecho

constitucional escrito; es la confirmación que la legalidad constitucional necesita

para ser eficaz; el complemento de factores extrajurídicos, como ha demostrado

SCHINDLER. 2) La costumbre y los usos constitucionales son factores

dinamizadores del cambio constitucional. Las mutaciones constitucionales se

verifican, en gran medida, por aquellos”.47 O costume constitucional, devido a sua

espontaneidade e socialidade, dinamiza e flexibiliza a Constituição.48

Não obstante o valor e o significado do costume como fonte subsidiária do

Direito, há controvérsias no tocante à importância do costume no campo do

direito constitucional. Pedro de Vega, por exemplo, assume uma postura bastante

crítica em face da problemática singular do costume no âmbito constitucional,

contestando a tradição francesa que tende a recorrer ao costume para explicar o

fenômeno da mutação.49

45 Cf.: No Brasil, relacionando o costume constitucional com o tema da mutação constitucional: Anna Cândida da Cunha FERRAZ, Processos informais de mudança da Constituição, p. 174-211; Uadi Lammêgo BULOS, Mutação constitucional, p. 174-194. 46 Manuel GARCÍA-PELAYO, Derecho constitucional comparado, p. 136. 47 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 157. 48 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 161. 49 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 195-200.

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Ressalta-se que o costume é caracterizado pela existência de dois

elementos: por um lado, a repetição inveterada de comportamentos (elemento

material50, ou objetivo, ou fático, ou externo51) e a convicção de que esses

comportamentos tem força jurídica vinculante (elemento espiritual52, ou subjetivo,

ou psicológico, ou interno53). Assim sendo, usos, condutas e práticas de natureza

social adquirem, através da opinio juris vel necessitatis, uma evidente dimensão

jurídica.54

Pedro de Vega suscita algumas complicações e contradições do costume

no direito constitucional.

Em primeiro lugar, o costume, enquanto fonte não formal, não admite

gradação; ao contrário das fontes escritas, que obedecem ao princípio da

hierarquia (Constituição, leis ordinárias, regulamentos etc.). Conseqüentemente,

não se pode contrapor o costume constitucional a outro tipo de costume, pois não

há subordinação entre eles. Essa dificuldade não está presente quando tratamos de

leis escritas, onde a lei constitucional, enquanto lei superior, é contrastada com a

lei ordinária. Também só existirão (se é que existem) costumes constitucionais

ratione materiae, isto é, os derivados de usos, comportamentos e práticas de

natureza constitucional.

Outra contradição denunciada por Vega é atinente aos atores que

protagonizam as práticas e comportamentos que criam os costumes

constitucionais, que seriam precisamente os titulares dos órgãos e poderes do

Estado. A contradição se evidencia se atentarmos para o fato de que as normas

fundamentais se destinam basicamente a ordenar e controlar o comportamento

desses atores. Nestas circunstâncias, dirá Vega, “conferir valor jurídico autônomo

a práticas políticas que, em qualquer caso, há que presumir ordenadas e reguladas

pelo ordenamento constitucional, representa um contra-senso inadmissível”.55

Apelar para a categoria jurídica do costume para explicar ou tentar

justificar as mutações constitucionais, como faz um importante setor da doutrina

50 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 196. 51 Uadi Lammêgo BULOS, Mutação constitucional, p. 174. 52 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 196. 53 Uadi Lammêgo BULOS, Mutação constitucional, p. 174. 54 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 196. 55 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 197.

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francesa56, não possui o menor fundamento lógico, pela simples razão de que as

normas consuetudinárias carecem no Direito Constitucional do significado e do

alcance que adquirem em outros ramos do Direito.57

Vega também se recusa a aceitar o costume como fonte legitimadora das

transformações constitucionais. Para ele, a concepção da Escola Histórica é na

verdade conservadora. A espontaneidade e a autonomia que o historicismo

outorga ao costume em face da lei não passa de uma mistificação. Até porque essa

espontaneidade e autonomia não ocorrem no Direito Constitucional, onde os

atores das práticas políticas não são tanto os cidadãos, mas sim os titulares dos

órgãos e poderes do Estado.58

Para Vega, não tendo o costume relevância no direito constitucional, então

seria imprestável para explicar juridicamente o fenômeno da mutação. No entanto,

o referido jurista reconhece a importância do elemento material em que o costume

descansa, isto é, os comportamentos, usos e práticas políticas. Neste caso, porém,

não estaríamos mais diante de fatos jurídicos, mas de regras de natureza político-

social, como são as convenções.59

Para Jorge Miranda, o costume tem um papel secundário nas Constituições

modernas, onde se tem a pretensão de regular a totalidade das relações políticas,

entrando o costume onde a Constituição não chega ou não é efetiva.60

Há três espécies de costume em face da lei: costume secundum legem,

praeter legem e contra legem.

O costume secundum legem traduz-se por práticas tidas por obrigatórias,

previstas ou admitidas pelo direito positivo, cronologicamente anteriores, ou

posteriores à lei constitucional, observadas pelos destinatários da mesma.

As normas costumeiras praeter legem podem ser interpretativas e

integrativas de preceitos constitucionais escritos, com função de clarificação,

desenvolvimento e adequação às necessidades de evolução social. Geralmente as

56 O autor não explicita quais seriam os juristas franceses que compõem o referido setor da doutrina. 57 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 198. 58 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 198-199. 59 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 199-200. 60 Jorge MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, p. 384.

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normas costumeiras aparecem mais claramente nas matérias de organização

política.61

O costume contra legem ou contra Constitutionem é repelido, por

princípio, pela Constituição formal. No entanto, pode-se dar a formação de

costume contrário à Constituição, sobretudo em questões ligadas à interpretação

de preceitos constitucionais, ausência ou deficiência de mecanismos de garantia.

Em qualquer caso, para que, através de costume, uma norma constitucional caia

em desuso ou seja substituída por outra, Jorge Miranda entende que “tem de haver

a consciência de que não se trata de simples derrogação por momentânea

necessidade; tem de haver a consciência de que um novo sentido é adotado para

valer em situações futuras idênticas e de que este sentido genérico ou

generalizante não tem ou já não tem a marca da inconstitucionalidade; e essa

consciência não pode ser apenas entre os titulares dos órgãos do poder, tem de se

manifestar outrossim entre os cidadãos e traduzir-se num mínimo de aceitação por

parte deles”. 62

Em que pese a controvérsia doutrinária em torno dos usos e costumes em

matéria constitucional, certo é que as normas constitucionais não se encerram na

Constituição formal. Através dos costumes, das práticas, a Constituição parece

evoluir como um organismo vivo, em constante transformação, sendo de suma

importância para o jurista conhecer não só o documento escrito e solene a que

chamamos Constituição, mas também a realidade constitucional e todos os seus

elementos e circunstâncias.

Por ser permeável à realidade e às transformações sociais, o costume

constitucional permite silenciosa e constante adaptação da Constituição ao tempo

e às circunstâncias presentes, sendo virtual fator de mutação constitucional.63

61 Jorge MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, p. 385. 62 Jorge MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, p. 386. 63 Anna Cândida da Cunha FERRAZ, op. cit., p. 211.

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121

4.5

Mutação pelas práticas constitucionais.

O termo prática constitucional, num sentido amplo, abrange, além dos

costumes e usos constitucionais, figuras afins, como as praxes, os precedentes e as

convenções.64

As praxes são usos a que falta a convicção de obrigatoriedade (o elemento

psicológico do costume), dentro das quais se destacam as praxes parlamentares.

Os precedentes (não jurisprudenciais) correspondem a decisões políticas,

mediante as quais os órgãos do poder manifestam o modo como assumem as

respectivas competências em face de outros órgãos ou de outras entidades.65

Quanto à natureza das convenções, há uma dificuldade maior em defini-la, pois

existem certas peculiaridades em função do sistema jurídico a que pertençam.

4.5.1

Convenções constitucionais 66

Leciona o jurista português Jorge Miranda:

“Nos sistemas de matriz francesa, as convenções não parece que sejam mais do que usos, embora (como o nome indica) revestindo a feição mais complexa de acordos ou consensos, explícitos ou implícitos, entre os protagonistas da vida política-constitucional. Já nos sistemas de matriz britânica (e, porventura, no norte-americano), dir-se-ia situarem-se em nível diferente: ou a meio caminho entre usos e costume, ou como expressão de uma juridicidade não formal e específica (sem juridicidade e sem outras sanções além das da responsabilidade política) ou como ordem normativa sui generis, irredutível às categorias habitualmente estudadas”.67

Jellinek realçou o papel dos usos parlamentares e das convenções na

temática da mutação constitucional. Neste ponto, ele se reporta a um fenômeno

64 Uadi Lammêgo BULOS, Mutação constitucional, p. 172. 65 Jorge MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, p. 387. 66 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 37-43. 67 Jorge MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, p. 387.

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tipicamente britânico. Sua preocupação maior gira em torno das competências

políticas dos órgãos supremos do Estado, definidas a partir de comportamentos

reiterados dos agentes políticos, e que, ao longo do tempo, se consolidam sem que

haja uma regulação completa e suficiente sobre seu conteúdo.

E. A. Freeman foi o autor que pela primeira vez estabeleceu a distinção

entre Law of the Constitution e Conventions of the Constitution,68 desenvolvida

posteriormente por Dicey,69 tornando-se com o tempo, patrimônio comum dos

políticos e juristas ingleses. Para entender essa distinção, é necessário saber que

no sistema jurídico inglês os tribunais têm a função de criar e formar o direito. O

que se reconhece judicialmente é norma jurídica; o que não se reconhece

judicialmente não é norma jurídica. Este é o conteúdo real, objetivo, da distinção

entre law of the Constitution e conventions of the Constitution. Portanto, o critério

que as diferencia, a qualidade de norma jurídica, não se encontra no objeto

tratado, mas na sua aplicação judicial, ou seja, em um reconhecimento fora dela.70

A idéia de “regra convencional” surge da prática constitucional,

adquirindo força normativa conforme seu exercício vai se tornando efetivo e

duradouro. Essas regras convencionais modelam a ética política. Elas podem ser

consideradas até certo ponto normas jurídicas, à medida que seu conteúdo é

reconhecido e garantido para o exercício do poder estatal, “embora na maioria dos

casos não tenham caráter vinculante senão flexível, porque se adaptam sempre às

relações políticas que mudam continuamente”.71 Isso explicaria por quê, em

algumas circunstâncias políticas, a inobservância de certas convenções não

constitua violação jurídica. Segundo DICEY:

“El derecho constitucional en cuanto denominación que aún se usa en Inglaterra, aparece para incluir todas las reglas que, directa o indirectamente, atañen a la distribución o ejercicio del poder soberano en el Estado” [Introduction to the Study of the Law of the Constitution, 8ª ed., London, 1927, p. 22]. No obstante, estas reglas que integran el derecho constitucional incluyen dos clases de principios, o máximas, de carácter totalmente distinto (p. 23).

68 The Growth of the English Constitution, 1872, p. 109 e ss. Apud Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 38 nota 53. 69 Introduction to the study of the law of the Constitution, 6ª ed., p. 341 e ss. Apud Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 38 nota 53. Também Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 131. 70 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 135-136. 71 Georg JELLINEK, Reforma y mutación de la Constitución, p. 39.

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Una serie de reglas son en sentido estricto ‘derecho’ puesto que son reglas tanto escritas como no escritas, que son dictadas mediante estatutos o derivadas de una masa de costumbres, tradiciones o de creación judicial conocidas como common law; son dictadas con carácter obligatorio por los tribunales; estas reglas constituyen el Constitutional law en el sentido propio de las palabras del término, y pueden, en virtud de la distinción, llamarse colectivamente, ‘el derecho de la Constitución’.

La otra clase de reglas consiste en convenciones, entendimientos, hábitos, o prácticas que aunque puedan regular la conducta de los diversos miembros del poder soberano, o del Ministro o de otros funcionarios, en realidad no son leyes en absoluto, puesto que no pueden hacerse valer por los tribunales.

Esta parte del derecho constitucional, puede merced a la distinción, denominarse las ‘convenciones de la Constitución’, o ‘constitutional morality’ (Introduction, cit., p. 23)”.72

Se para Dicey as convenções73 não são regras de direito porque não são

aplicáveis pelos tribunais (enforced), Jellinek, ao contrário, considera as

convenções como direito, enquanto contêm normas reconhecidas e garantidas para

o exercício do poder estatal. No entanto, a divergência entre Dicey e Jellinek, no

caso, parece centrar-se apenas no critério definidor do direito, visto que ambos

consideram as convenções como normas não coercíveis.74

Jellinek tem o mérito de perceber a importância do direito flexível, que

convive com o formalismo constitucional na Europa, e que influi na estrutura e

funcionamento do Estado, na distribuição constitucional do poder, regulando seu

exercício de acordo com determinadas circunstâncias. Algumas instituições

fundamentais do Estado, como, por exemplo, o Primeiro Ministro e o Gabinete na

Inglaterra, podem existir ainda que não tenham sido instituídos por lei. Aliás,

Dicey considerava as convenções constitucionais mais importantes que a lei.75

72 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 131-132. 73 Como exemplos de conventions of the Constitution, Dicey cita os seguintes: “El Rey tieneque asentir y no puede vetar um proyeto de ley aprobado por las dos Cámaras del Parlamento, la Cámara de los Lores no puede presentar proyetos de índole económico. Cuando los Lores actúan como Tribunal de Apelación, los Pares que no son juristas no participan en las decisiones de la Cámara”; “Los ministros dimiten si pierden la confianza de la Cámara de los Comunes, etc. (Introduction to the Study of the Law of the Constitution, 8ª ed., London, 1927, p. 26)”. E como característica comum ensina DICEY: “Las convenciones de la Constitución, consideradas como un todo, son costumbres, o entendimientos sobre el modo mediante el cual los diversos miembros del cuerpo legislativo ejercen discrecionalmente la autoridad, a esto se llama prerrogativa de la Corona o privilegios del Parlamento (op. cit., p. 424)”. Apud Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 132. 74 Ana Victoria Sánchez URRUTIA, op. cit., p. 112-113 (nota 24). 75 Hsü DAU-LIN, op. cit., p. 133.

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Outro jurista alemão, Julius Hatschek,76 profundo conhecedor do direito

constitucional britânico, ajudou a entender a natureza do fenômeno da mutação

constitucional na Alemanha, aplicando seus conhecimentos sobre as conventions.

As regras convencionais se diferenciam das jurídicas porque sua sanção é

puramente social, não se apóiam, pois, na força do Estado.77 Segundo Verdú:

“Hatschek78 describe las reglas convencionales (Konventionalregeln), como normas no jurídicas que valen por su efectividad (Faktizität). Estas normas afectan no sólo al derecho constitucional, además a todo el derecho político y, especialmente, al derecho internacional. Representan, en el proceso de creación jurídica, un estadio previo del derecho; no derivan de las fuentes jurídicas oficiales, pero no por ello son menos eficaces”.

Embora as convenções sejam típicas do direito inglês, elas também estão

presentes no âmbito de Constituições escritas e rígidas.

Para Vega, são três as questões a resolver ao abordarmos o tema das regras

convencionais: seu verdadeiro significado; tipos e formas de atuação; e, por

último, sua relação com a normatividade constitucional.

No que tange ao significado e natureza das convenções, há de considerar-

se que elas são “simples regras que estabelecem práticas políticas, mas carentes

de todo tipo de coercibilidade jurídica”. Portanto, diferentemente do costume,

que dá lugar a uma norma juridicamente sancionável, as convenções, quando

rompidas, não produzem nenhuma conseqüência ou sanção jurídica. Segundo

Jennings: “the convention may be broken with impunity”.79

Dito isso acerca de sua destruição ou ruptura, cabe salientar que as

convenções, ao contrário do costume jurídico, que requer uma prática repetida ao

longo do tempo, podem criar-se muito mais facilmente. A essa característica das

convenções Vega chamou de ductilidade (ductibilidad).80 Como diz Rescigno81,

76 Julius HATSCHEK, Konventionalregeln oder über die Grenzen der naturwissenchafflichen Begriffsbildung im öffentlichen Recht, en Jahrbuch des öffentlichen Rechts der Gegenwart, vol. III, Verlag von J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), Tübingen, 1909, p. 1 e ss. Apud Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 166. 77 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 167. 78 Julius HATSCHEK, konventionalregeln, cit., p. 4. Apud Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 166. 79 JENNINGS, The law and the constitution, Londres, 1938, p. 131. Apud Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 202. 80 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 203.

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as regras convencionais surgem de um só precedente, geradas por poucos sujeitos

(que ocupam situações de poder) e não necessitam do transcurso do tempo para

poder ser considerados como tais.

As convenções são regras informais, que não necessitam estabelecer-se por

escrito, mas às vezes também são revestidas desta solenidade.

Há de se observar, ainda, como pressuposto indispensável de sua própria

existência, o reconhecimento prévio de um marco legal (Nas palavras de Jennings:

“it is perfectly true that the conventions presuppose the law”)82. As convenções

cumprem a finalidade, segundo afirmam Marshal e Modie, de regular a forma nas

quais as normas legais devem ser aplicadas (it may be Said that convention are

non legal rules regulating the way in which legal rules shall be applied).83

As convenções se produzem sempre em relação com uma lei escrita

(ampliando, reduzindo ou eliminando seu conteúdo). Onde não há lei escrita não

pode haver convenção.84

As regras convencionais podem gerar-se nas mais variadas matérias e

hipóteses do espectro constitucional, o que pode ser confirmado na prática política

de vários países. Em muitos casos, a convenção resulta de um simples acordo

entre sujeitos em situações privilegiadas de poder,85 que vão se consolidando com

o tempo, e embora úteis nunca chegam a tornar-se coercíveis. No caso brasileiro,

poderíamos tomar como exemplo de convenção a instituição do “líder do

governo”, tanto na Câmara como no Senado. Para alguns, isso até feriria o

princípio da separação dos poderes. Mas na prática política brasileira isso é muito

comum, existindo também o “líder da oposição”.

81 RESCIGNO, G. Ugo. Le convenzioni constituzionali, Padova, 1972, p. 166 ss. Apud Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 203. 82 JENNINGS, op. cit., p. 82. Apud Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 204. 83 MARSHALL e MOODIE, Some problems of the Constitution, Londres, 1959, p. 30. Apud Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 204. 84 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 207. 85 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 207.

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4.6

Constituição e interpretação constitucional

Os que se dedicam ao estudo da Constituição, em geral, tendem a buscar

uma interpretação alijada do dogmatismo estrito bem como do empirismo

exagerado. Há um vasto campo a ser explorado, todavia, entre as posições

propícias à busca da única interpretação possível até as que caem no mais puro

relativismo.

A norma jurídica, e especialmente a norma constitucional, seria algo mais

que uma proposição lingüística estampada em um papel, que por isso não poderia

esgotar sua aplicação na interpretação ou no entendimento de um texto?

Ensina Guastini86 que a interpretação87 pode ter pelo menos dois sentidos

distintos: (1º) ato de vontade ou decisão – consiste na atribuição (ou adscrição) de

um significado a um texto, especialmente quando realizada por um órgão de

aplicação do direito; (2º) ato de conhecimento – consiste no descobrimento (ou

descrição) dos significados que um texto potencialmente contém, quando

hipoteticamente realizada por um jurista completamente “desinteressado”.

Convém notar que essas duas atividades interpretativas não se definem em função

do texto interpretado, mas de acordo com a condição subjetiva do intérprete, pois

86 Riccardo GUASTINI, Estudios sobre la interpretación jurídica, p. 113. 87 Embora pareça despiciendo, assinale-se que o autor está a tratar de “interpretação jurídica”, que pertence ao gênero da interpretação textual. O vocábulo interpretação, neste contexto, denota a “atividade de averiguar ou decidir o significado de algum documento ou texto jurídico, ou bem o resultado ou produto dessa atividade: o significado mesmo. Que a interpretação seja uma atividade de averiguação ou de decisão é uma questão controvertida, a que as diversas teorias da interpretação oferecem respostas diferentes”. (Riccardo GUASTINI, op. cit., p. 2-3). Portanto, quando tomamos as fontes do direito como objeto a ser interpretado, estamos pressupondo que “interpretar” significa esclarecer o conteúdo ou o campo de aplicação de uma norma. Comumente, usamos falar que estamos a interpretar uma determinada norma. No entanto, esse modo de expressar-se é incorreto, pois, para sermos precisos, o objeto da interpretação não é exatamente a norma, mas sim o texto normativo. A norma seria já o significado que o texto normativo contém, i.e., o produto da atividade interpretativa (Riccardo GUASTINI, op. cit., p. 3). Por esta razão, acrescenta Guastini (op. cit., p. 6), é inoportuno utilizar a mesma expressão, “norma”, para designar coisas distintas. “Podemos chamar ‘disposição’ a todo enunciado pertencente a uma fonte do direito e reservar o nome de ‘norma’ para designar o conteúdo de sentido da disposição, seu significado, que é uma variável dependente da interpretação” (op. cit., p. 11).

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“ninguém pode plausivelmente sustentar que uma interpretação seja uma coisa ou

outra segundo a identidade do texto interpretado”.88

4.6.1

Interpretação e aplicação

Interpretação e aplicação são duas atividades distintas e inconfundíveis.

Basicamente, podemos estabelecer três diferenças bastante nítidas entre essas duas

atividades, conforme acentua Guastini. 89

Em primeiro lugar, o agente do verbo “interpretar” pode ser qualquer

sujeito (ex: um jurista ou um cidadão comum), ao passo que o verbo “aplicar”

concerne apenas àqueles sujeitos que atuam em órgãos denominados de aplicação

(ex: juízes e funcionários administrativos).

Em segundo lugar, o objeto da interpretação são os textos normativos

(disposições ou enunciados lingüísticos), enquanto que a aplicação tem por objeto

normas em sentido estrito (conteúdo de sentido dos textos normativos, seu

significado). A aplicação pressupõe a interpretação.

Em terceiro lugar, o termo aplicação (especialmente em se tratando de

órgãos jurisdicionais) designa um conjunto de operações que incluem, além da

interpretação propriamente dita, a qualificação de um fato concreto (hipótese de

incidência), voltada para a decisão de uma controvérsia específica.

4.6.2

Realização, interpretação e concretização da constituição

Impende acentuar, agora, as diferenças de sentido de alguns conceitos

fundamentais, relacionados com a temática da interpretação e da concretização

constitucional. Para isso, reportamo-nos a Canotilho, que bem sintetiza estas

88 Riccardo GUASTINI, Estudios sobre la interpretación jurídica, p. 113. 89 Riccardo GUASTINI, Estudios sobre la interpretación jurídica, p. 9-10.

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definições básicas, transcritas adiante, e que foram extraídas do seu festejado

Curso de Direito Constitucional:

“Realizar a constituição significa tornar juridicamente eficazes as normas constitucionais. Qualquer constituição só é juridicamente eficaz (pretensão de eficácia) através da sua realização. Esta realização é uma tarefa de todos os órgãos constitucionais que, na actividade legiferante, administrativa e judicial, aplicam as normas da constituição. Nesta ‘tarefa realizadora’ participam ainda todos os cidadãos ‘pluralismo de intérpretes’ que fundamentam na constituição, de forma directa e imediata, os seus direitos e deveres”.90

“Interpretar uma norma constitucional consiste em atribuir um significado a um ou vários símbolos linguísticos escritos na constituição com o fim de se obter uma decisão de problemas práticos normativo-constitucionalmente fundada. Sugerem-se aqui três dimensões importantes da interpretação da constituição: (1) interpretar a constituição significa procurar o direito contido nas normas constitucionais; (2) investigar o direito contido na lei constitucional implica uma actividade – actividade complexa – que se traduz fundamentalmente na ‘adscrição’ de um significado a um enunciado ou disposição linguística (‘texto da norma’); (3) o produto do acto de interpretar é o significado atribuído”.91

“Concretizar a constituição traduz-se, fundamentalmente, no processo de densificação de regras e princípios constitucionais. A concretização das normas constitucionais implica um processo que vai do texto da norma (do seu enunciado) para uma norma concreta – norma jurídica – que, por sua vez, será apenas um resultado intermédio, pois só com a descoberta da norma de decisão para a solução dos casos jurídico-constitucionais teremos o resultado final da concretização. Esta ‘concretização normativa’ é, pois, um trabalho técnico-jurídico; é, no fundo, o lado ‘técnico’ do procedimento estruturante da normatividade. A concretização, como se vê, não é igual à interpretação do texto da norma; é, sim, a construção de uma norma jurídica”.92

4.6.3

Normatividade

É da compreensão da norma como estrutura formada por dois elementos -

(i) o programa normativo e (ii) o domínio normativo - que deriva o sentido de

normatividade constitucional, entendida como efeito global da norma num

determinado processo de concretização. Isto é, a normatividade não é uma

“qualidade” da norma, mas o efeito do procedimento metódico de concretização.93

90 J. J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1074. 91 J. J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1074-75. 92 J. J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1075. 93 J. J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1090.

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O programa da norma (ordem ou comando jurídico) diz respeito aos dados

lingüísticos normativamente relevantes do texto, captados a nível semântico e

também mediante outros elementos, tais como a sistemática do texto normativo, a

genética do texto, a história do texto, a teleologia do texto.94 O domínio da norma

(dados reais) aponta para a realidade material, formada por elementos de diversa

natureza (jurídicos, econômicos, sociais, políticos, psicológicos, sociológicos).

Salienta Canotilho que a análise do domínio da norma será tanto mais necessária:

“(a) quanto mais uma norma reenvie para elementos não-jurídicos e, por

conseguinte, o resultado de concretização da norma dependa, em larga medida, da

análise empírica do domínio de norma e (b) quanto mais uma norma é aberta,

carecendo, por conseguinte, de concretização posterior através dos órgãos

legislativos.”95

4.6.4

Interpretação e linguagem

O problema da interpretação está estreitamente vinculado ao problema da

linguagem. O jurista suíço Hans Georg Lüchinger96 mostra como toda

interpretação se baseia na insuficiência expressiva da linguagem.

“Não existe uma linguagem que consiga descrever de modo inequívoco e absoluto o mundo real e ideal. A linguagem não pode operar sem conceitos gerais. Toda linguagem é uma aproximação da realidade. Ademais, entre o pensamento e sua expressão lingüística existe sempre certo espaço vazio que só pode colmatar-se mediante a interpretação”.97

A imperfeição dos preceitos jurídicos é condicionada pela imperfeição

lingüística. Isto explica a multiplicidade de significados possíveis que se pode

extrair de um texto normativo. A interpretação aparece como princípio regulador

94 J. J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1092. 95 J. J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1093. 96 Hans Georg LÜCHINGER: Die Auslegung der schweizerischen Bundesverfassung, Polygraphischer Verlag A. C., Zürich, 1954, pp. 5-6. Apud Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 213 (nota 152). 97 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 213.

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130

das perplexidades ou inseguranças lingüísticas e pode transcender o significado

literal, caracterizando-o não já como interpretação, senão como mandato ou

exigência.98

4.6.5

Dificuldades de investigação do conteúdo semântico da norma

A investigação do conteúdo semântico da norma jurídica é particularmente

difícil no âmbito do direito constitucional, em virtude de diferentes motivos.

É comum dizer-se que a constituição abriga, muitas vezes, enunciados

lingüísticos polissêmicos ou pluri-significativos (exs.: conceitos de Estado, povo,

lei, trabalho); vagos ou indeterminados (ex: idoso, jovem, família, interesse

público, reputação ilibada, bem comum); além dos conceitos de valor (ex:

dignidade da pessoa humana, solidariedade).

Essas dificuldades de modo algum constituem problemas intransponíveis.

A linguagem jurídica a ser interpretada, condição prévia à aplicação das normas,

possui, sem dúvida, um certo grau de indeterminação; todavia, tal característica

pode ser convertida numa importante vantagem prática, como diz García Amado.

Isto porque é precisamente esse nível de indeterminação que possibilita que os

conteúdos das normas sejam atualizados por via interpretativa, dentro de limites

semânticos permitidos pelo uso social de cada momento.99 Daí a importância

crescente das teorias da argumentação jurídica, cabendo ao intérprete definir o

alcance preciso dos enunciados lingüísticos, tarefa que lhe exige lançar mão de

métodos e critérios interpretativos admissíveis,100 i.e., que desfrutam de um

98 Pablo Lucas VERDÚ, Curso de Derecho Político, vol. IV, p. 213. 99 Juan Antonio García AMADO, Ensayos de Filosofía Jurídica, p. 82-83. 100 García AMADO (op. cit., à pág. 93) tece as seguintes considerações acerca da admissibilidade do método interpretativo: “Cada método interpretativo generalmente admitido lo está en razón de su sustrato valorativo. Cuando en la ciencia natural, por ejemplo, se privilegian los métodos experimentales sobre otros posibles, como la adivinación, el espiritismo o la fe religiosa, se hace así por cuanto que se da prioridad al valor verdad, concretado en la idea de verdad empíricamente contrastable. De la misma manera, cuando en la metodología jurídica se consideran válidos ciertos métodos, se hace así porque se estima que sirven a los valores básicos que justifican el derecho y su práctica. Detrás de los métodos admisibles de interpretación está la valoración positiva de cosas tales como su seguridad jurídica, el respeto a la autoridad legítima, la coherencia del sistema jurídico o la sintonía del derecho con las necesidades y opiniones

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consenso na comunidade. Nesta linha, a decisão interpretativa será tanto mais

aceitável quanto melhor esteja fundamentada, de sorte que a opção interpretativa

suscite “a menor suspeita possível de decisão caprichosa e arbitrária do

intérprete”. Acresça-se que, em face de termos legais dotados de indeterminação,

“não há mais objetividade possível que a das razões, os argumentos, e sua

qualidade e capacidade de convicção”.101

4.6.6

Sentido da norma e convenções lingüísticas

Considerando que o significado de um enunciado lingüístico é fixado

através de convenções lingüísticas, suscita-se, de plano, o problema decorrente de

se tomar em consideração duas convenções lingüísticas diferentes. Diferentes,

aliás, num duplo sentido, como mostra apropriadamente Canotilho: “(1) escolha

entre a convenção baseada no uso científico e a convenção baseada no uso

normal; (2) escolha entre a convenção (científica ou normal) linguística do tempo

em que surgiu a lei constitucional e convenção do tempo da sua aplicação

(historicismo e actualismo)”.102

A propósito, lembra-nos Canotilho, fundado em C. J. Antieau,103 que os

dois cânones de “constitutional construction” mais utilizados na jurisprudência e

doutrina americanas têm sido os seguintes: “(1) as palavras ou termos da

constituição devem ser interpretadas no seu sentido normal, natural, usual,

comum, ordinário ou popular; (2) quando se utilizam termos técnicos eles devem

ter o sentido técnico.” 104

sociales (lo que algún autor ya clásico denominaba el valor de ‘adecuación’). ¿ Y por qué se consideran inapropiados como métodos de interpretación el estético o teológico? Porque servirían a valores que no se consideran propios del ordenamiento jurídico, sino personales de cada individuo, una vez que en la era moderna el gusto estético y el sentimiento religioso han pasado a verse como manifestaciones de la conciencia subjetiva. Por eso, invocarlos acarrea la sospecha cierta de subjetividad, lo que en el campo jurídico es sinónimo de arbitrariedad, de no consideración de argumentos aptos para la convicción y aceptación general en cuanto orientados a un interés general. 101 Juan Antonio García AMADO, Ensayos de Filosofía Jurídica, p. 85. 102 J. J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1091. 103 Cf.: Constitutional Construction, London/Rome/New York, 1982, pp. 11 ss, 18 ss. Apud J. J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1091 nota 16. 104 J. J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1091 nota 16.

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4.6.7

A interpretação constitucional105

Riccardo Guastini106 reflete acerca das peculiaridades (se é que existem,

adverte o autor) da interpretação constitucional. Tais peculiaridades decerto não se

referem à natureza da atividade interpretativa enquanto tal. Isto é, o ato de

interpretar uma norma constitucional não difere essencialmente do ato de

interpretar qualquer outra norma. As particularidades da interpretação

constitucional, por conseguinte, não seriam qualitativas.

Pode acontecer, todavia, que diferentemente das outras leis, a Constituição

esteja sujeita (1) à interpretação de agentes especiais (juízes constitucionais); (2)

que haja a necessidade, ou pelo menos a conveniência, de que se lance mão de

técnicas interpretativas específicas; e (3) que os textos constitucionais possam

render ensejo a problemas interpretativos diversos dos ordinários que nascem da

interpretação das leis.

Tais particularidades, para serem adequadamente examinadas, reclamam o

desenvolvimento de questões condicionadas por diferentes variáveis, o que

transcende o propósito deste limitado trabalho.

Dito isso, faremos apenas uma abordagem perfunctória de alguns

problemas concernentes à interpretação constitucional, articulando-a com o

problema das mutações constitucionais.

4.6.8

Interpretação e mutações constitucionais

Uma das formas de mutação constitucional, acentuadas constantemente

pela doutrina, é justamente por meio de interpretação dos termos da Constituição,

de modo que os preceitos podem adquirir um conteúdo distinto daquele em que

105 A propósito, cf. Jerzy WRÓBLEWSKI, Constitución y teoría general de la interpretación jurídica. 106 Ricardo GUASTINI, Estudios sobre la interpretación jurídica, p. 113-137.

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inicialmente foram pensados. Essa função modificadora da interpretação recai

basicamente na autoridade judicial. Como exemplo deste tipo de mutação, Pedro

de Vega comenta a interpretação que a Suprema Corte Norte-Americana

emprestou ao vocábulo “comércio” na fixação da competência do Congresso para

regular tanto o comércio interestatal como o intraestatal.107

O problema a ser examinado neste tópico respeita aos limites da

interpretação constitucional. Interessa-nos, particularmente, investigar se através

da interpretação do texto constitucional podemos chegar a mutações

constitucionais.

A interpretação constitucional é aceita por muitos como um processo

eficaz de mutação da Constituição.108 Segundo Bulos, a mutação por interpretação

do produto legislado pode ocorrer em três contextos diferentes: a) contexto

técnico-lingüístico; b) contexto antinômico; c) contexto lacunoso.109

Em que situações se configuraria a hipótese de mutação constitucional por

via da interpretação? Responde Anna Candida Ferraz:

“Sempre que se atribui à Constituição sentido novo; quando, na aplicação, a norma constitucional tem caráter mais abrangente, alcançando situações dantes não contempladas por ela ou comportamentos ou fatos não considerados anteriormente disciplinados por ela; sempre que, ao significado da norma constitucional, se atribui novo conteúdo, em todas essas situações se está diante do fenômeno da mutação constitucional. Se essa mudança de sentido, alteração de significado, maior abrangência da norma constitucional são produzidas por via da interpretação constitucional, então se pode afirmar que a interpretação constitucional assumiu o papel de processo de mutação constitucional”.110

Canotilho reconhece a necessidade de uma permanente adequação

dialética entre o programa normativo e a esfera normativa, o que justificaria a

ocorrência de mutações constitucionais (que ele também chama de transições

constitucionais). Entretanto, tais mudanças não devem contrariar os princípios

estruturais (políticos e jurídicos) da constituição. Ele admite, portanto, alterações

de sentido de normas constitucionais dentro dos limites comportáveis pelo

107 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 188. 108 Cf., por todos, Uadi Lammêgo BULOS, Mutação constitucional, p. 93 e s. 109 Uadi Lammêgo BULOS, op. cit., p. 123 e s. 110 Anna Candida da Cunha FERRAZ, Processos informais de mudança da constituição, p. 56-57.

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programa da norma da constituição, afastada uma mudança radical de sentido das

normas constitucionais. O jurista português adverte, outrossim, para o perigo de se

legitimarem alterações constitucionais que se traduzem na existência de uma

realidade constitucional inconstitucional.

Do mesmo modo, Canotilho chama a atenção para as tentativas de se

“constitucionalizar” - através de uma interpretação constitucional criadora, com

base na força normativa dos factos - uma alteração constitucional em inequívoco

contraste com a constituição escrita. Por fim, quanto ao papel do legislador

infraconstitucional, salienta que, “entre uma mutação constitucional obtida por via

interpretativa de desenvolvimento do direito constitucional e uma mutação

constitucional inconstitucional há, por vezes, diferenças quase imperceptíveis,

sobretudo quando se tiver em conta o primado do legislador para a evolução

constitucional (B. O. Bryde: Verfassungsentwicklungsprimat) e a impossibilidade

de, através de qualquer teoria, captar as tensões entre a constituição e a realidade

constitucional”.111

Se a interpretação constitucional supre, por um lado, a necessidade de

adaptação do texto constitucional à realidade cambiante, contribuindo, assim, para

a permanência e estabilidade constitucional; por outro lado, a atividade

interpretativa não está isenta de riscos, havendo a possibilidade de se promoverem

verdadeiras mutações inconstitucionais, sem que para isso se toque na letra da

constituição.

O mais grave é que se torna extremamente delicado o controle das

mutações, havendo a possibilidade de que uma mudança de sentido de um

dispositivo constitucional, implementada por meio de um ato interpretativo,

provoque verdadeiro retrocesso constitucional.

Uma forma de estancar mutações ilegítimas talvez possa ser encontrada na

ampliação da participação popular em decisões de maior relevo constitucional, o

que, ao menos, parece contribuir para o aprimoramento da democracia

constitucional. Pelo menos, há de se perseguir um caminho legítimo para

mudanças constitucionais, através de manifestações oportunas do povo, quando,

111 J. J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1102-1103.

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135

em momentos especiais, esteja em jogo a decisão de questões cruciais para o seu

destino e para a vida estatal.

Anna Cândida da Cunha Ferraz descreve algumas situações em que se

pode identificar claramente a ocorrência de mutação constitucional por via

interpretativa. A autora ressalta, contudo, que as hipóteses enumeradas não são

exaustivas. Ei-las:

“a) quando há um alargamento do sentido do texto constitucional, aumentando-se-lhe, assim, a abrangência para que passe a alcançar novas realidades; b) quando se imprime sentido determinado e concreto ao texto constitucional; c) quando se modifica interpretação anterior e se lhe imprime novo sentido, atendendo à evolução da realidade constitucional; d) quando há adaptação do texto constitucional à nova realidade social, não prevista no momento da elaboração da Constituição; e) quando há adaptação do texto constitucional para atender exigência do momento da aplicação constitucional; f) quando se preenche, por via interpretativa, lacunas do texto constitucional.”112

Anna Cândida Ferraz também menciona fatores que influem na

interpretação constitucional como processo de mutação. Seriam eles: “o caráter

sintético, genérico e esquemático das normas constitucionais; a linguagem do

texto constitucional; as lacunas e obscuridades da Constituição; as diferentes

categorias de normas constitucionais; os diferentes métodos interpretativos; o

conteúdo político ou a natureza política das normas constitucionais.113

A interpretação constitucional legislativa. Vimos a diferença entre

interpretação e aplicação do direito. A interpretação legislativa é ressaltada pela

doutrina como uma espécie da interpretação orgânica. “A interpretação

constitucional legislativa consiste na atividade desenvolvida pelo órgão, dotado de

poder legislativo, que busca o significado, o sentido e o alcance da norma

constitucional para o fim de, fixando-lhe o conteúdo concreto, completá-la e,

conseqüentemente, dar-lhe aplicação. O órgão legislativo recebe da própria

Constituição o comando imperativo para atuar a norma constitucional”.114

A interpretação constitucional legislativa é requerida pela própria

Constituição, quando remete ao legislador infra-constitucional a atividade de

112 Anna Cândida da Cunha Ferraz, op. cit., p. 58-59. 113 Anna Cândida da Cunha Ferraz, op. cit., p. 60-62. 114 Anna Cândida da Cunha FERRAZ, op. cit., p. 65.

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regular alguma matéria específica tratada apenas em linhas gerais pelo texto

constitucional, demandando assim um ato normativo inferior para sua aplicação.

Sua importância foi acentuada por Milton Campos, que reconhecia na

atividade de complementação legislativa um processo constante e fecundo de

mutação. Para ele, a boa e duradoura Constituição deve ser sintética, contendo

apenas os preceitos fundamentais da organização nacional, a declaração de

direitos e a limitação de poderes, que dão as diretrizes da legislação comum.115

Nem todas as Constituições, porém, exibem estas características. Em geral as

Constituições dependem em larga medida da complementação legislativa.

Segundo Milton Campos, “nessa complementação legislativa está o segredo do

êxito da Constituição como verdadeiro instrumento de governo”.116 Deveras, os

melhores programas constitucionais podem converter-se num elenco de promessas

não cumpridas caso o legislador não lhes dê disciplina adequada nem meios de

execução. Em outras palavras, as soluções constitucionais podem ser, e

freqüentemente o são, prejudicadas pela inércia e pela incompetência.

Anna Cândida Ferraz acentua características particulares da interpretação

constitucional legislativa: “é (a) direta ou primária, (b) permanente, (c) limitada,

(d) mutável, (e) não é definitiva, (f) é obrigatória quanto ao exercício, porém é (g)

discricionária quanto ao momento de agir e à escolha das opções, alternativas ou

conteúdo concreto da norma, (h) é espontânea, e (i) tem força vinculante”.117

4.7

Limites da mutação constitucional118

Pedro de Vega entende que a contraposição entre realidade jurídica

(normatividade) e realidade política (faticidade) está na base da problemática das

115 Milton CAMPOS, op. cit., p. 19. 116 Milton CAMPOS, op. cit., p. 20. 117 Anna Cândida da Cunha FERRAZ, op. cit., p. 67. 118 Ver: Konrad HESSE, Escritos de Derecho Constitucional, p. 85-112; Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 208-215; Uadi Lammêgo BULOS, Mutacão constitucional, p. 87-92.

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137

mutações constitucionais. Segundo ele, esse conflito pode ser resolvido numa

versão mais simples e esquemática, a partir de três possibilidades: 119

1) O fático triunfa sobre o normativo. Levada a hipótese aos extremos,

pode considerar-se que haveria uma perda de toda força normativa da ordem

constitucional, ocorrendo a destruição do conceito jurídico de Constituição. Para

evitar essa conseqüência, surgiu a necessidade de se reconhecer limites às

mutações.

2) Numa segunda hipótese, o conflito entre o fático e o normativo pode ser

resolvido a partir de duas alternativas: a) a legalidade constitucional assume

formalmente, por via da reforma, as transformações operadas previamente na

realidade mediante mutações, desaparecendo a tensão entre faticidade e

normatividade; b) a força das normas se faz valer plenamente sobre a força dos

fatos. Em ambos os casos, prevalece o valor da legalidade. Nesta linha, dirá Vega:

“a mutação constitucional existe e se tolera pelo sistema na medida em que o conflito entre realidade e normatividade é latente. Quando o conflito estala, e a contraposição entre o fático e o normativo exige uma decisão inexorável, a lógica do Estado constitucional impõe o triunfo da legalidade”.

3) Uma terceira opção, mais realista, não trabalha com a contraposição

extrema entre realidade jurídica (normatividade) e realidade política (faticidade),

mas sim com a idéia de que é necessário estabelecer seu acoplamiento. Não se

trata aqui nem de salvar a legalidade nem tampouco de impor uma faticidade. O

desafio seria encontrar a fórmula, sem destruir a nenhuma, para que ambas

possam coexistir.120

Na Alemanha de Weimar, tentou-se construir com variado sucesso teorias

constitucionais que visavam superar o positivismo legalista clássico. Neste

contexto surgiram, como vimos no capítulo anterior, a teoria constitucional de

Smend, bem como a formulação de Heller, que estabeleceu a distinção entre

normatividade e normalidade constitucional. Também é digno de nota, em outro

119 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 208 e s. 120 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 211.

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contexto cultural, a concepção de Constituzione in senso materiale, do italiano

Mortati.121

Impende destacar a exigência histórica de formulação de uma teoria

constitucional que abarque tanto a realidade normativa quanto a realidade política

que as normas devem regular. Ao menos no plano doutrinário, ressalta Vega:

“lo que se pretende es que la confrontación entre la realidad política y realidad jurídica quede disuelta en una realidad englobante y más amplia, que sería la realidad constitucional, y en la que entrarían por igual los supuestos fácticos (la normalidad en la terminología de Heller) y los normativos (la normatividad)”.122

Nesta linha se enquadra o contributo teórico de F. Müller, mostrando que

no Direito Constitucional, assim como em qualquer processo de conhecimento, a

relação sujeito-objeto vem condicionada pela atuação recíproca de um sobre o

outro. Por conseguinte, não se pode explicar a norma sem o objeto de sua

regulação. No pensamento de Müller, a estrutura da norma constitucional é

determinada sempre por dois elementos: um programa normativo

(Normprogramm), que constitui a parte integrante da norma em si, e um âmbito

normativo (Normbereich), que expressa a realidade ordenada e regulada por ela. O

programa normativo conforma a realidade e vice-versa. Note-se que a realidade

constitucional é uma realidade complexa e englobante, na qual confluem e

aparecem intercompenetradas faticidade e normatividade.123

Para Vega, é interessante perceber claramente que o reconhecimento da

realidade constitucional, como uma realidade englobante e superior, supõe a

assimilação e a justificação dentro dela das mutações constitucionais. É nesta

síntese superior – a realidade constitucional – que se resolveria definitivamente o

conflito entre legalidade e faticidade.124

O problema dos limites das mutações se coloca precisamente quando a

tensão entre faticidade e normatividade atinge um grau que põe em perigo a noção

121 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 211. 122 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 212. 123 F. MÜLLER, “Thesen zur Struktur von Rechtsnormen”, in Archiv für Rechts und Sozialphilosophie, LVI, 1970, p. 500 ss. Apud Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 213. 124 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 214.

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139

de supremacia constitucional. Então, a única alternativa possível, neste caso, seria

converter a prática convencional (a mutação) em norma através da reforma, ou

negar o valor jurídico da mutação, em nome da legalidade existente. Em qualquer

das hipóteses, a mutação enquanto tal desapareceria, e a supremacia da

Constituição estaria a salvo do perigo de destruição.125

125 Pedro de VEGA, La reforma constitucional y la problemática del poder constituyente, p. 215.

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5

CONCLUSÃO

Existem diversas noções sobre a constituição enquanto modo de ser do

Estado. Dependendo da concepção teórica adotada em relação à Constituição, é

possível perceber as diferenças no modo de ver e explicar o fenômeno da mutação

constitucional.

Vimos que algumas concepções favorecem um perfil estático da

Constituição, com uma preocupação maior sobre o papel da Constituição

normativa na continuidade e estabilidade das normas e instituições políticas do

Estado.

A idéia de permanência tem estado estreitamente relacionada com a noção

de Constituição, desde o momento em que se passou a considerar a estabilidade

como atributo da Constituição.

A realidade constitucional é complexa, abrangendo tanto conteúdos

materiais e institucionais como formais e normativos. A Constituição formal e a

realidade constitucional não podem ser separados como elementos totalmente

estanques, pois estão intimamente relacionados tanto nos momentos de

estabilidade quanto nos de crise.

O conceito de mutação constitucional foi engendrado no bojo da doutrina

alemã do direito público, em finais do século XIX e princípios do XX, ao

constatar-se a existência de um problema, qual seja, a incongruência entre a

realidade constitucional e a Constituição formal. Verificou-se que as normas

constitucionais passavam por um processo de mudanças informais, sem alteração

formal da letra da Constituição.

Não obstante a maioria das Constituições estabeleça um mecanismo

agravado e dificultoso de alteração de suas normas - o que se convencionou

chamar de rigidez constitucional - tal garantia se revelou insuficiente para

prevenir a mudança informal.

A doutrina alemã produzida no período entre as duas guerras concebe o

fenômeno da mutação constitucional como um elemento integrante da noção de

Constituição.

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Nesta linha, destaca-se a obra de Rudolf Smend, que não vê o fenômeno

da mutação constitucional como uma disfunção do sistema. Ao revés, a mutação é

incluída como elemento central no conceito de Constituição. Esta é concebida

como movimento, como processo de integração. As mutações constitucionais

aparecem como conseqüência inerente ao movimento de integração, na qual os

elementos vitais do Estado sofrem uma transformação informal. Na obra de

Smend, pode-se ver já um embrião da doutrina constitucional que preconiza a

abertura interpretativa, tendo em vista o caráter esquemático e elástico das normas

constitucionais.

Hermann Heller incorpora a mudança informal à concepção dinâmica de

Constituição, descrevendo a existência de elementos normados não jurídicos, que

jogam um papel fundamental na transformação da Constituição, sem que, para

isso, sejam acionados os mecanismos formais de revisão constitucional. Ele trata

da relação dialética entre o estático e o dinâmico, entre a normalidade e a

normatividade. No entanto, ele também percebe a mutação constitucional como

um fenômeno que pode transcender o conteúdo da Constituição normada,

rompendo a desejável harmonia entre a realidade constitucional e o

constitucionalmente normado.

Hsü Dau-Lin contribui substancialmente na sistematização do

conhecimento sobre as mutações constitucionais. Valendo-se do acervo conceitual

de Rudolf Smend, descreve de forma sistemática o processo de mutação

constitucional. Há de se destacar que ele propõe uma classificação bastante útil

para enquadrar os casos de mutação constitucional.

As teorias formalistas não conseguem explicar de forma satisfatória o

problema da mutação constitucional, porque tendem a desprezar os elementos

dinâmicos.

Na verdade, os autores contemporâneos que se debruçaram sobre o tema

da mutação constitucional não conseguiram avançar muito além do conhecimento

construído pela doutrina alemã no período entre as guerras. Todos os estudos que

enfocam os aspectos dinâmicos da Constituição tomam por base os conceitos

produzidos por autores dessa época. Atualmente, tem-se discutido mais os limites

das mutações constitucionais, bem como os critérios de controle sobre as

mudanças informais.

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Ainda hoje, os modos de transformação constitucional encontram

explicação mais satisfatória na doutrina que confere maior importância aos

aspectos da dinâmica constitucional.

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6

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