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Os mais belos contos para ler

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Os mais belos contos pra ler a dois dos mais famosos autores

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Índice página título

autor (gênero)

tradutor

6 As duas amantes

(novela)

Alfred de Musset Gilberto Galvão

36 Empalhado (conto)

Armand Silvestre Alfredo Ferreira

38 Os pais da horizontal (conto)

Dubut de Laforest Alfredo Ferreira

41 Joana de la Tourduneuf (conto)

Pedro Garcias Alfredo Ferreira

45 Nada de emoção! (conto)

R. O'Monroy Alfredo Ferreira

48 Do que gostam as mulheres (conto)

Silverio Lanza Manuel R. Silva

52 Vingança feminina (novela)

Henri de Régnier Manuel R. Silva

65 A confissão duma senhorita (conto)

Marcel Proust Gilberto Galvão

72 Reveladoras (novela)

Felipe Trigo José Dauster

95 O flagrante delito (conto)

René Maizeroy Alfredo Ferreira

98 Bola-de-Sebo (novela)

Guy de Maupassant Frederico dos Reys Coutinho

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121 A mancha de tinta (conto)

Émile Bergerat Alfredo Ferreira

124 Tempo difícil (conto)

Catillard Gilberto Galvão

126 O rei Davi (conto)

Georges-Armand Masson Gilberto Galvão

128 Adultérios à Sherlock Holmes (conto)

Alex Alexis Gilberto Galvão

133 Palavras de amor (teatro)

Marcel Astruc Gilberto Galvão

135 O marido da romancista (crônica)

Clément Vautel Gilberto Galvão

138 Tristezas do bordel (novela)

Émile Carrère Manuel R. Silva

149 A morte embelecida de Miguel Cortemare (conto)

Pierre Frondaie Gilberto Galvão

151 O terceiro lado do triângulo (conto)

André Birabeau Alfredo Ferreira

154 O home (conto)

August Bailly Frederico dos Reys Coutinho

163 O direito de pernada (teatro)

Cami Alfredo Ferreira

165 O impasse (conto)

Colette F. de Paula Costa

167 Recordação (teatro)

Eugênio Heltai Alfredo Ferreira

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Tradutores

Frederico dos Reys Coutinho

Manuel R. da Silva

F. da Costa

Alfredo Ferreira

Gilberto Galvão

José Dauster

Editora Vecchi

MCMXLVI

1946 Impresso no Brasil

Composto e impresso nas oficinas gráficas da Casa Editora Vecchi Ltdª

Rua do Resende 144, Rio de Janeiro

Digitalizado em setembro de 2011

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As duas amantes Alfred de Musset

I creditas, senhora, que seja possível estar alguém enamorado de duas

pessoas ao mesmo tempo? Se semelhante questão me fosse apresentada

eu responderia que não creio. Entretanto foi o que sucedeu a um de

meus amigos, cuja historia contarei, pra que julgues.

Em geral, quando se trata de justificar um duplo amor, recorremos, logo de início,

aos contrastes. Uma era grande, a outra pequena. Uma tinha quinze anos, a outra trinta.

Resumindo: Se trata de provar que duas mulheres, que não são semelhantes na idade, no

aspecto nem no caráter podem inspirar, ao mesmo tempo, duas paixões diferentes. Não

me sirvo desse pretexto pra me auxiliar aqui, porque as duas mulheres às quais me refiro

se pareciam, ao contrário, um pouco. Uma era, casada, é verdade, e a outra viúva. Uma

rica e a outra muito pobre. Porém tinham quase a mesma idade e eram ambas morenas e

muito pequenas. Se bem que não fossem irmãs nem primas, havia entre elas um

semblante de família: Os mesmos olhos negros, a mesma delicadeza de talhe. Eram dois

manequins femininos. Não te assustes com essa palavra. Não haverá equívoco neste

conto.

Antes de falar mais dessas senhoras, preciso tratar de nosso herói. Em 1825, mais ou

menos, vivia em Paris um moço a que chamaremos Valentino. Era um rapaz muito

singular e cuja estranha maneira de viver poderia fornecer algum assunto aos filósofos

que estudam o homem. Havia nele, assim dizendo, duas personalidades diferentes. A

senhora o tomaria, o encontrando uma vez, por um efeminado da regência. Seu modo

delicado, chapéu fora de propósito, fisionomia de menino-prodígio de espírito

galhofeiro, fariam ressurgir na memória um salto encarnado do tempo ido. No dia

seguinte não verias nele mais que um estudante provinciano passeando cum livro

embaixo do braço. Hoje rodava de carruagem e esbanjava dinheiro, amanhã jantava a

quarenta soldos. Com isso procurava, em todas as coisas, certo grau de perfeição e nada

apreciava que fosse incompleto. Quando se tratava de divertimento, queria que tudo

fosse prazer, e não era homem pra comprar um gozo prum instante de aborrecimento. Se

possuía um camarote pro espetáculo, queria que o carro que o levasse fosse macio, que

o jantar fosse bom e que nenhuma idéia enfadonha se lhe apresentasse à saída. Porém

bebia de bom grado a zurrapa numa taberna de arrabalde e se metia na fila da platéia.

Então era outra personagem e fazia as coisas da maneira mais simples. Porém guardava

nessas extravagâncias certa lógica, e se havia nele dois homens diferentes, jamais se

confundiam.

Esse estranho caráter provinha de duas causas: Pouca fortuna e grande amor ao

prazer. A família de Valentino gozava dalgum recurso, porém nada havia mais na casa

que honesta mediocridade. Doze mil francos por ano gastos com ordem e economia, não

há por que morrer de fome. Mas quando uma família inteira vive desse orçamento, não

há com quê dar festa. Todavia, por um capricho do azar, Valentino nascera com as manias que pode ter o filho dum abastado senhor. Sujeito avarento filho pródigo, é o

ditado. De pais econômicos filho gastador. Assim o quis a Providência, que, entretanto,

o mundo admira.

Valentino fizera o curso de direito e era advogado sem causa, profissão hoje comum.

Com o dinheiro que recebia do pai e o que ganhava de vez em quando, podia ser muito

feliz mas gostava de gastar tudo duma vez e se privar de tudo no dia seguinte. Te

recordas dessas margaridas que as crianças despetalam peça a peça? Muito dizem à

AA

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primeira pétala, Mais ou menos, à segunda, e a terceira Nada. Assim procedia

Valentino com suas jornadas. Porém o mais ou menos não existia, porque não o podia

suportar. Pra te fazer o conhecer melhor é necessário falar um pouco da infância. Valentino

dormia, aos dez ou doze anos, num pequeno quarto envidraçado, atrás da alcova da mãe.

Nesse quarto, de aparência muito triste a entulhado de armários velhos, se encontrava,

entre outros trastes, uma velha pintura num grande quadro dourado. Quando, numa

linda manhã, o sol batia nessa pintura, o menino, ajoelhado na cama, se aproximava dela

com alegria. Enquanto o acreditavam adormecido, aguardando que a hora do mestre

chegasse, às vezes ficava horas inteiras com a fronte pousada no ângulo do quadro. Os

raios luminosos refletindo na moldura dourada o envolviam numa espécie de auréola,

onde surgia seu rosto deslumbrado. Nessa posição tinha mil sonhos. Um êxtase bizarro

se apoderava dele. Quanto mais penetrante se tornava a claridade, mais seu coração se

rejubilava. Quando cumpria, enfim, voltar os olhos fatigados pela luminosidade do

espetáculo, fechava suas pálpebras e seguia, curiosamente, a sucessão dos tons

matizados nessa mancha avermelhada que permanece diante de nós quando fixamos

muito tempo a luz. Depois voltava a seu quadro e recomeçava de melhor maneira. Foi

lá, ele disse, que tomou um gosto apaixonado pelo ouro e pelo sol. Aliás, duas cousas

excelentes.

Seus primeiros passos na vida foram guiados pelo instinto da paixão nativa. No

colégio se relacionava somente com colegas mais ricos, não por orgulho, mas por gosto.

De espírito precoce no estudo, o amor-próprio o impelia menos que certa necessidade de

distinção. Lhe sucedia chorar no meio da aula, quando não tinha, no sábado, seu lugar

no banco-de-honra. Concluía o curso de humanidade e trabalhava com afinco, quando

uma senhora, amiga de sua mãe, lhe deu de presente uma linda turquesa. Em vez de

ouvir sua preleção, olhava o anel reluzir no dedo. Era ainda o amor ao ouro, tão notável

que o pôde tornar um menino curioso. Desde que a criança se fez homem, essa perigosa

tendência imediatamente frutificou.

Apenas conseguiu a alforria e se atirou, irrefletidamente, a todas as extravagâncias

dum rapaz de estirpe. De humor prazenteiro inato, indiferente ao futuro, não concebia a

idéia de ser pobre, não parecia suspeitar. O mundo o fez a compreender. O nome que

usava a permitia tratar de igual a igual os moços que tinham a vantagem da fortuna.

Admitido no meio deles, como os imitar? Os pais de Valentino viviam no campo. Sob

pretexto de estudar de direito, passava o tempo passeando nas Tulherias e no bulevar.

Neste terreno estava à vontade. Porém quando seus amigos o deixavam, pra montar a

cavalo, lhe era forçoso ficar a pé, sozinho e nem tão desapontado. Seu alfaiate lhe dava

crédito. Mas pra que serve a roupa quando o bolso está vazio? Três quartos do dia

passava ali. Demasiado orgulhoso pra viver como parasita, tomava a incumbência de

dissimular seus secretos motivos de modéstia, recusava, desdenhosamente, partida de

diversão onde não podia pagar a cota e se aplicava em receber dos ricos somente em

seus dias de opulência.

Esse papel, dificilmente sustentado, se anulou diante da vontade paterna. Era preciso

escolher uma profissão. Valentino entrou a uma agência bancária. A função de

empregado não lhe agradava, menos ainda o trabalho cotidiano. Ia ao escritório de

cabeça baixa. Era necessário renunciar aos amigos e também à liberdade. Não estava

envergonhado por isso, porém se aborrecia. Quando chegava, como diz André Chénier,

o dia da veia dourada, uma espécie de febre o possuía. Se tivesse dívida a pagar ou

compra útil a fazer, a presença do ouro o perturbava a tal ponto, que perdia o juízo.

Desde que via brilhar em suas mãos um bocado desse raro metal, sentia o coração saltar

e só pensava em correr, se fazia bom tempo. Quando digo correr, me engano. Era

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encontrado, nesse dia, em boa carruagem de aluguel, que o levava ao Rocher de

Cancale. Ali, estendido nas almofadas, respirando a brisa ou fumando cigarro, se

deixava embalar languidamente, sem pensar no dia seguinte. Entretanto, no outro dia

era o homem comum, precisava voltar a ser empregado. Todavia pouco lhe importava,

desde que a todo preço tivesse contentado a imaginação. O rendimento dum mês assim

evaporavam num dia. Passava, dizia, maus momentos sonhando e bons instantes

realizando os sonhos: Fosse em Paris ou no campo, o encontravam com seu prazer,

quase sempre só, prova de que isso não era vaidade de sua parte. Aliás, fazia estroinice

com a simplicidade dum grande senhor que satisfaz um capricho. Eis um bom

empregado, diria a senhora. Pois o puseram na rua.

Com a liberdade e o ócio surgiram tentações de toda espécie. Quando temos muitos

desejos, bastante mocidade e pouco dinheiro corremos grande risco de fazer tolice.

Valentino as fez bem grandes. Sempre levado pela mania de transformar sonho em

realidade, passou a ter as mais perigosas fantasias. Suponho que lhe passava na cabeça

conhecer o que pode ser a vida dum indivíduo que possui 100 mil francos pra gastar

anualmente. Calcules meu espanto, desde que, durante um dia inteiro, supunha nem

mais nem menos que fosse ele a personagem em apreço. Penses aonde isso pode

conduzir com um pouco de inteligência e de curiosidade. O raciocínio de Valentino

sobre sua maneira de viver era, de resto, muito divertido. Pretendia que a cada criatura

viva coubesse de direito certa soma de prazer. Comparava essa quantidade a um copo

cheio que os poupados esvaziavam gota a gota, e que ele bebia em grandes tragos.

Dizia:

— Não conto os dias mas os prazeres. E no dia em que despendo 25 luíses tenho

182.500 libras de renda.

No meio de todas essas loucuras Valentino tinha um sentimento no coração, que o

preservaria: A afeição a sua mãe. É verdade que ela sempre o mimara. É um erro,

dizem. Não entendo disso mas, em todo o caso, é o melhor e o mais natural dos erros. A

excelente mulher que dera a vida a Valentino fez todo o possível pra lhe tornar a

existência agradável. Não era rica, como sabes. Se todos os pequenos escudos

escorregados em segredo nas mãos do filho querido fossem encontrados reunidos de

repente, teriam, certamente, construído uma bela pilha. Valentino, em todas as

maluquices, nunca teve freio além da idéia de não magoar a mãe. Porém essa idéia o

seguia a toda parte. Por outro lado, essa afeição salutar lhe abria o coração a todos os

bons pensamentos, a todos os sentimentos honestos. Era a chave dum mundo do qual

talvez não compreenderia sem isso. Não sei quem disse a primeira vez que um ser

amado jamais é infeliz. Poderia dizer ainda: Quem ama sua mãe jamais é mau. Quando Valentino entrava no quarto, depois de cometida alguma estroinice, arrastando

a asa e puxando o pé, a mãe chegava e o consolava. Quem poderia contar os pacientes

cuidados, as atenções aparentemente banais, as pequenas alegrias íntimas, nas quais a

amizade é provada em silêncio e torna a vida afável e leve! Quero citar um exemplo a

respeito, de passagem:

Um dia em que o atarantado rapaz esvaziara sua carteira no jogo, acabava de entrar

em casa de mau-humor. Os cotovelos na mesa, a cabeça entre as mãos, se abandonava

às idéias sombrias. Sua mãe entrou, trazendo um grande ramalhete de rosa num vaso

com água, que colocou, delicadamente, na mesa ao lado. Ele levantou os olhos pra lhe

agradecer e ela disse, sorrindo: Existem dessas a quatro soldos. Não era caro, como

vês: Todavia o ramalhete era soberbo. Valentino, sozinho, sentiu o perfume tocar o

cérebro excitado. Eu não saberia dizer que impressão teve de tão suave oferenda, tão facilmente apresentada, tão inopinadamente chegada. Pensou na soma que perdera,

perguntou a si o que poderia fazer dela a mão maternal que o consolava de tão boa

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maneira. Seu coração sobrecarregado se fundiu em lágrima e se lembrou das alegrias do

pobre que acabava de esquecer.

Esses prazeres de pobre se lhe tornaram queridos à medida que os conheceu melhor.

Os prezou porque amava a mãe. Olhou pouco a pouco em torno e, tendo experimentado

um pouco de tudo, se sentiu capaz de tudo adivinhar. É uma vantagem? Ainda não

posso dizer. Oportunidade de diversão, oportunidade de sofrimento.

Darei a impressão de fazer um gracejo, se disser que, avançando na existência,

Valentino conseguiu ser a um só tempo mais prudente e mais louco. Entretanto é a pura

verdade. Uma dupla personalidade se desenvolvia. Quando seu espírito aventureiro o

seduzia o coração o retinha no alojamento. Se adoecia, decidido ao repouso, um realejo,

tocando valsa, passava sob a janela e desorganizava tudo. Então saía e, segundo seu

costume, corria atrás do prazer. Um mendigo encontrado no caminho, uma frase tocante

encontrada ao acaso na mixórdia dum drama da moda o faziam pensativo e retornava à

casa. Apanhava a caneta e se sentava pra trabalhar. A pena distraída esboçava nas

margens dum espaldar a silhueta duma linda mulher que encontrara no baile. Um bando

divertido, reunido em casa dum amigo, o convidava a ficar prà ceia e estendia, rindo,

seu copo e bebia nutrido topázio. Em seguida remexia no bolso, percebia que esquecera

a chave, que acordaria sua mãe ao entrar. Se desculpava e voltava a respirar suas rosas

bem-amadas.

Assim era esse rapaz, simples e desmiolado, tímido e orgulhoso, terno e audacioso. A

natureza o fizera rico e o azar o tornara pobre. Em lugar de escolher tomou os dois

partidos. Tudo que tinha de paciência, reflexão e resignação não podia triunfar sobre o

amor ao prazer, e os maiores momentos de insensatez não podiam calar o coração. Não

lutou contra o coração nem contra o prazer que o arrastava. Foi desse modo que se

tornou duplo e que viveu em completa contradição consigo, como mostrei em tempo.

Porém isso é fraqueza, dirás. Ó!, meu Deus, sim. Não se trata dum romano mas não

estamos em Roma.

Estamos em Paris e o assunto é de dois amores. Felizmente, prà senhora, o retrato de

minhas heroínas será mais depressa traçado que o de meu herói. Vires a página.

Entrarão em cena.

II Disse que, dessas duas senhoras, uma era rica e a outra pobre. Já adivinhas por que

ambas choravam por Valentino. Creio ter dito também que uma era casada e a outra

viúva. A marquesa de Parnes, casada, era filha e esposa de marquês. O mais interessante

é que era bastante livre, estando o marido na Holanda, a negócio. Não contava vinte e

cinco anos, estava como rainha dum pequeno reinado no fim do Calçada de Antim. Esse

domínio era um pequeno palácio, construído com perfeito gosto, entre um grande pátio

e um belo jardim. Fora a última extravagância do defunto sogro, grande proprietário e

um pouco libertino, e a casa realmente se ressentia do gosto do velho dono. Se

assemelhava mais ao que se denominava antigamente uma casa de partida que ao retiro

duma moça condenada ao repouso pela ausência do esposo. Um pavilhão circular,

separado da mansão, ocupava o meio do jardim. Esse pavilhão, que não possuía mais

que um cômodo rente ao solo, também tinha somente uma peça e não era, mais que

imenso quarto de toucador mobiliado com refinado luxo. A senhora de Parnes, que

habitava o palácio e passava por muito culta, se dizia que nunca ia ao pavilhão.

Contudo, algumas vezes se via luz ali. Excelente companhia, jantar adequado, ativa

equipagem, criadagem numerosa. Numa palavra: Grande ruído de bom-tom, eis a

mansão da marquesa. Aliás, uma educação completa lhe dera mil aptidões. Com tudo o

que era necessário pra agradar sem espírito, achava meio de o ter. Uma indispensável tia

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a levava a toda parte. Quando se referiam a seu marido dizia que estava a regressar.

Ninguém pensava em murmurar a respeito dela.

Senhora Delaunay, a viúva, muito jovem perdera o marido. Vivia, com a mãe, de

módica pensão obtida com grande dificuldade e penosamente suficiente. Num terceiro

pavimento era preciso subir, à rua do Plat-d'Etain, prà encontrar bordando à janela. Era

tudo que sabia fazer. Sua educação, percebes, fora muito descuidada. Um pequeno salão

era todo seu domínio. Na hora do jantar se rodava àli a mesa de nogueira, relegada

durante o dia à saleta da frente. Na noite um armário de alcova se abria, contendo dois

leitos. De resto, cuidadosa limpeza conservava o modesto mobiliário. No meio de tudo

isso senhora Delaunay apreciava a vida mundana. Alguns velhos amigos do marido

faziam pequenas reuniões onde ela se apresentava, ostentando um recente vestido de

organdi. Como as pessoas sem fortuna não têm estação, essas pequenas festas duravam

todo o ano. Ser pobre, jovem, bonita e honesta não é mérito tão raro que se anuncie,

porém é um mérito.

Quando comuniquei a ti que Valentino amava duas mulheres, não pretendi declarar

que amava igualmente a ambas. Eu poderia me safar da dificuldade, dizendo que amava

uma e desejava a outra, porém não quero recorrer a essas sutilezas que, afinal de conta,

só significariam que desejava ambas. Acho melhor contar simplesmente o que

acontecia no coração.

O que o fez ir, a princípio freqüentemente, às duas casas, foi um motivo bem

mesquinho, a ausência do marido nas duas residências. É certo que uma aparência de

facilidade, ainda que somente aparência, seduz as cabeças juvenis. Valentino era

recebido na mansão de senhora de Parnes porque ela via muita gente mundana, sem

outro motivo. Um amigo o apresentara. Pra ir à casa de senhora Delaunay, que a

ninguém recebia, não fora tão fácil. Ele a encontrara numa dessas pequenas partidas das

quais falei há um momento, pois Valentino ia um pouco a todo lugar. Então viu senhora

Delaunay, a observou, a fez dançar, enfim, num belo dia achou meio de lhe levar um

livro novo que ela desejaria ler. Uma vez feita a primeira visita, se volta sem motivo e

no fim de três meses a gente é da casa. Assim são as coisas. Quem se espantar da

presença dum moço numa casa de família que ninguém procura, algum dia ficará bem

mais espantado ao saber por que pretexto frívolo ele entrou ali.

Talvez te admires, senhora, da maneira como foi apanhado o coração de Valentino.

Foi obra do acaso. Vivera durante um inverno, segundo seu costume, mui loucamente,

porém bastante alegremente. Chegado o verão, como a cigarra, ficou desprevenido. Uns

partiam ao campo, outros iam à Inglaterra ou às estações de água. Há esses anos de

deserção em que todos nossos amigos desaparecem. Uma lufada de vento os carrega e

ficamos sós de repente. Se Valentino fosse mais previdente faria como os outros e

partiria a seu lado. Todavia os prazeres foram caros e sua carteira vazia o retinha em

Paris. Lastimando sua imprevidência, tão aborrecido quanto se pode estar aos vinte e

cinco anos, pensava passar o verão e fazer da necessidade não virtude mas prazer, se

pudesse. Saindo numa manhã a una dessas belas jornadas em que tudo o que é jovem sai

sem saber por quê, só encontrou refletindo sobre o caso dois lugares onde podia ir: À

casa de senhora Parnes ou de senhora Delaunay. Foi às duas no mesmo dia e, tendo

agido gulosamente, ficou inativo no dia seguinte. Não podendo recomeçar as visitas

antes dalguns dias, se perguntou em que data o poderia fazer. Depois disso,

involuntariamente, rememorou o que dissera e ouvira nessas duas horas consideradas

preciosas pra si.

A semelhança da qual falei, e que até então não o tocara, a princípio o fez sorrir. Lhe

pareceu estranho que duas moças em posições tão diferentes, uma ignorando a

existência da outra, tivessem o aspecto de serem duas irmãs. Comparou mentalmente

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seus traços, silhueta e espírito. Cada uma o fez alternativamente amar menos ou gostar

mais da outra. Senhora de Parnes era namoradora, viva, amorosa e folgazã. Senhora

Delaunay também era tudo isso mas não todos os dias, somente no baile e em grau mais

tépido. Sem dúvida, a pobreza era a causa disso.

Entretanto os olhos da viúva às vezes brilhavam com ardente expressão que parecia

se concentrar no repouso, enquanto o olhar da marquesa parecia uma centelha brilhante

mas fugidia. São de fato a mesma mulher, pensava Valentino. É o mesmo fogo, lá

volteando em delicioso braseiro, aqui coberto de cinza. Pouco a pouco foi aos detalhes.

Pensou nas mãos brancas duma roçando no teclado de marfim, nas mãos um pouco

magras da outra caindo de fadiga sobre os joelhos. Pensou nos pés e achou estranho que

a mais pobre fosse a melhor calçada. Ela mesma fazia suas polainas. Viu a senhora de

Calçada de Antim, estendida em sua cadeira de repouso, respirando o ar fresco, com os

braços nus desde a manhã. Indagava de si se a senhora Delaunay também tinha lindos

braços sob as mangas de indiana, e não sei por que estremecia à idéia de ver os braços

nus de senhora Delaunay. Depois pensou nas belas madeixas de cabelo negro de

senhora de Parnes e na agulha de tricotar que senhora Delaunay plantava em sua trança

enquanto conversava. Apanhou um lápis e procurou traçar no papel a dupla imagem que

o preocupava. A força de apagar e de tentar chegou a uma destas semelhanças

longínquas com que a fantasia se contenta algumas vezes mais que cum retrato

verdadeiro. Obtido esse esboço, estacou. Com qual das duas se assemelhava mais? Não

podia decidir. Se dirigiu logo a uma e depois a outra, segundo o capricho de seu

devaneio. Quanto mistério no destino!, pensava. Quem sabe, apesar da aparência, qual das duas mulheres é a mais feliz? É a mais rica ou a mais bonita? É a que será mais

amada? Não. É aquela que amará mais. O que fariam se amanhã acordassem uma no

lugar da outra? Valentino se lembrou do homem que dormia acordado e, sem perceber

que também sonhava em pleno dia, fez mil castelos no ar. Prometeu ir, no dia seguinte,

fazer as duas visitas e levar o esquema pra ver seus defeitos. Ao mesmo tempo

acrescentava, cum traço de lápis, uma mecha de cabelo, uma prega no vestido. Os olhos

eram maiores, o contorno, mais delicado. Pensou novamente nos pés, depois nas mãos,

em seguida nos braços alvos. Pensou ainda em mil outras coisas. Enfim, ficou

apaixonado.

III Ficar apaixonado não é difícil. O difícil é saber dizer que estamos nessa situação.

Valentino, munido de seu desenho, saiu bem cedo no dia seguinte. Principiou pela

marquesa. Feliz acaso, mais raro do que se pensa, quis que a encontrasse tal qual a

sonhara na véspera. Estavam no mês de julho. Num banco de madeira, guarnecido por

almofadas novas, sob uma bela madressilva florida, os braços nus, vestida cum

penteador, assim podia parecer uma ninfa aos olhos dum pastor de Virgílio. Desse modo

apareceu aos olhos do rapaz a clara Isabel, marquesa de Parnes, que o saudou cum

desses amáveis sorrisos que custam tão pouco quando temos belos dentes e lhe mostrou

negligentemente um tamborete muito distante. Em vez de se sentar nesse tamborete ele

o apanhou pra se aproximar. Como procurava onde se colocar, perguntou a marquesa:

— Então aonde irás?

Valentino julgou que sua cabeça estava demasiadamente febril e que a realidade

indomável caminhava mais devagar que o desejo. Parou e, colocando o assento um

pouco mais longe que antes, se sentou, não encontrando muito o que dizer. É preciso

saber que um grande lacaio, de aspecto insolente e rude, estava de pé na frente da

marquesa, e lhe apresentava uma chávena de chocolate fervente que ela começou a

saborear em pequenos goles. A presença desse terceiro, a extrema atenção que prestava

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à senhora, pra não queimar os lábios, o pouco caso com que, em retribuição, ela

considerava o visitante, não eram fatos encorajadores. Valentino tirou, gravemente, o

esboço que conservava no bolso e, fixando os olhos em senhora de Parnes, atentamente

examinou o original e a cópia. Ela perguntou o que fazia.

Ele se levantou, mostrou o desenho e se sentou outra vez, sem dizer. No primeiro

lance de olhos a marquesa franziu as sobrancelhas, como quando procuramos uma

semelhança, depois se inclinou ao lado, como procedemos logo que encontramos. Ela

sorveu o resto do chocolate, o criado saiu e os belos dentes reapareceram com o sorriso.

Finalmente disse:

— Está melhor que o original. Fizeste isso de memória? Como o apanhaste?

Valentino respondeu que tão belo semblante não tinha necessidade de pousar pra que

o pudessem copiar, e que o encontrara no coração. A marquesa fez um leve

cumprimento e Valentino aproximou seu tamborete.

Conversando sobre coisas indiferentes, senhora de Parnes examinava o desenho.

— Acho que há neste retrato uma fisionomia que não é a minha. Diria que se

assemelha a alguém que se parece comigo mas que não foi eu que desejaram esboçar.

Valentino enrubesceu, pra seu pesar, e acreditou sentir que no recôndito da alma

amava senhora Delaunay. A observação da marquesa lhe apareceu um testemunho

disso. Examinou novamente o desenho, em seguida a marquesa, e depois pensou na

jovem viúva:

— Aquela que amo é a mulher com quem este retrato mais se assemelha. Desde que

meu coração guiou minha mão, ela me revelará meu coração.

A conversação prosseguiu. Creio que se tratava duma corrida de cavalo que se

realizara no campo de Marte, na véspera. Disse senhora de Parnes:

— Está distante 4km.

Valentino se levantou e caminhou a ela e disse, ao se aproximar:

— Eis uma linda madressilva.

A marquesa estendeu o braço, apanhou um pequeno ramo florido e o ofereceu,

graciosamente.

— Aceites. Apanhes isto e digas se foi realmente eu a mulher cuja semelhança

procuraste ou se, esboçando outra, a encontraste ao acaso.

Cum pequeno movimento de petulância, Valentino, em lugar de segurar o ramo,

apresentou, rindo, à marquesa, a botoeira de seu paletó, a fim de que ela prendesse ali o

ramalhete. Enquanto ela, de bom grado, se prestava a isso, porém não sem diligência,

ele estava de pé e mirava o pavilhão do qual falei a ti e do qual uma veneziana estava

entreaberta. Se lembrou que senhora de Parnes, segundo diziam, nunca ia àli. Afetava

até certo desprezo a esse aposento galante e rebuscado, que considerava má companhia.

Entretanto Valentino acreditou ver que as poltronas douradas e as brilhantes decorações

não sofriam com a poeira. Nó meio desses móveis de forma grega, soberbos e

incômodos como tudo que vem do império, certa espreguiçadeira evidentemente

moderna pareceu se destacar na sombra. O coração bateu mais forte, não sei por quê,

julgando que a linda marquesa às vezes se servia de seu pavilhão. Então por que a

poltrona estava lá, senão pra se acomodar nela? Valentino segurou uma das alvas mãos

ocupadas em a decorar e a levou aos lábios. O a marquesa que pensou a respeito não sei.

Valentino olhou a espreguiçadeira. Senhora de Parnes mirava o desenho de Valentino.

Ela não retirava a mão e ele a conservara entre as suas. Um serviçal surgiu no topo da

escada: Chegava uma visita. Valentino abandonou a mão da marquesa e, fato bastante

singular, ela fechou bruscamente a persiana.

Recolhida a visita, Valentino ficou um tanto embaraçado porque percebeu que a

marquesa escondeu seu esboço, como se o desprezasse, atirando seu lenço sobre ele. Tal

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fato não estava no cálculo. Tomou a decisão mais rápida, ergueu o lenço e se apoderou

do papel. Senhora de Parnes fez um ligeiro sinal de espanto. Ele disse em voz alta:

— Desejo o retocar. Me permitas o levar.

Ela não insistiu e ele se foi com o desenho.

Encontrou senhora Delaunay, que trabalhava em tapeçaria. Sua mãe estava sentada

perto de si. A pobre mulher, por jardim, possuía algumas flores sobre a janela. Seu

vestido, sempre o mesmo, era de cor sombria porque não possuía roupa matinal. Todo

supérfluo é índice de riqueza. Uma veleidade de falsa elegância a induzia a ostentar,

todavia, brincos de mau-gosto e um colar de crisocal.1 Juntar a isso o cabelo em

desordem e a aparência duma fadiga crônica. Concordarás que a primeira observação

não fornece comparação favorável.

Valentino não ousou, na presença da mãe, mostrar o desenho que trazia. Porém, logo

que soaram as três horas, a velha senhora, que não tinha empregada, se retirou pra

preparar seu jantar. Era o instante que o jovem esperava. Então tirou novamente seu

retrato e tentou a segunda prova. A viúva não possuía grande tato, não se reconheceu e

Valentino, um tanto embaraçado, se viu obrigado a explicar que era ela que ele desejara

retratar. A princípio ela se mostrou assustada, depois encantada e crendo, simplesmente,

que era um presente que Valentino lhe oferecia, despendurou um pequeno quadro em

moldura branca do fogão e tirou dele um medonho Napoleão que ali amarelava desde

que se dispôs a colocar seu retrato na moldura.

Valentino principiou a deixando fazer. Não podia se resolver a atrapalhar esse

movimento de cândida alegria. Contudo o pensamento de que a senhora de Parnes, sem

dúvida, exigiria dele seu retrato o molestava visivelmente. Senhora Delaunay, que

percebeu o engano, acreditou ter cometido uma indiscrição. Estacou, embaraçada,

segurando seu quadro e não sabendo o que fazer. Valentino, que sentia que fizera uma

tolice exibindo esse retrato que não queria ofertar, em vão procurava sair da trapalhada.

Após alguns instantes de constrangimento e de hesitação, o quadro e o papel ficaram

sobre a mesa, ao lado do Napoleão destronado, e a senhora Delaunay recomeçou o

trabalho. Finalmente Valentino disse:

— Desejo que antes de deixar este pequeno esboço, me fosse permitido fazer uma

cópia.

— Creio que não sou mais que uma estouvada. — Respondeu a viúva — Guardes o

desenho que te pertence, se tens nisso interesse. Entretanto não suponho que tua

intenção seja a de o expor em teu dormitório nem de o mostrar aos amigos.

— Certamente que não, porém foi pra mim que o fiz e não desejo o perder

inteiramente.

— Pra que poderá te servir, se me garantes que não o mostrarás a outrem?

— Servirá pra te ver, senhora, e pra falar, às vezes, a tua imagem o que não ouso

dizer pessoalmente.

Ainda que essa frase, a rigor, fosse apenas uma galanteria, o tom em que foi

pronunciada fez a viúva erguer os olhos. Ela lançou sobre o moço um olhar não severo

mas sério. Esse semblante perturbou Valentino, já emudecido com as próprias palavras.

Enrolou o desenho e o meteria no bolso, quando senhora Delaunay se ergueu e o tomou

das mãos, com expressão de tímido gracejo e começou a rir e se apoderou prontamente

do papel.

— Com que direito, senhora, me despojas de minha propriedade? Isso não me

pertence?

1 Ouro falso ou crisocal: Liga de composição semelhante ao ouro de Mannheim. O ouro de Mannheim é composto de cobre, zinco e

estanho. Liga de bela cor amarela, que foi muito usada pra fazer botões e artigos chapeados imitando ouro. Nota do digitalizador.

http://www.ecured.cu/index.php/Anexo:Oro_(Tipos)#Oro_de_Mannheim

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Disse, mui secamente:

— Ninguém tem o direito de fazer um retrato sem o consentimento do modelo.

Ao dizer essas palavras se sentou novamente, e Valentino, a vendo um pouco

agitada, se aproximou e se sentiu mais atrevido. Fosse de arrependimento por ter

deixado transparecer a alegria que sentiu no princípio, fosse de desapontamento ou

impaciência, senhora Delaunay tinha a mão trêmula. Valentino, que acabara de beijar a

mão de senhora de Parnes e que não a fizera tremer por causa disso, segurou, sem

reflexão, a da viúva. Ela o atingiu com um olhar estupefato porque era a primeira vez

que sucedia a Valentino ser tão familiar consigo. Porém, quando o viu se inclinar e

aproximar os lábios de sua mão, se ergueu, o deixou colocar, sem resistência, um longo

beijo sobre sua mitene, e falou com extrema afabilidade:

— Meu caro senhor, minha mãe necessita de mim. Estou pesarosa em te deixar.

O deixou só após essa despedida, sem dar tempo de a reter e sem esperar resposta.

Ele se sentiu bastante inquieto e teve receio de a ter magoado. Não podia se decidir a ir

embora e permanecia de pé, esperando que ela voltasse. Foi a mãe que reapareceu e ele

temeu, a vendo, que sua imprudência custasse caro. Mas nada houve. A boa senhora,

com a fisionomia mais risonha, vinha fazer companhia enquanto sua filha repassava seu

vestido pra ir, na noite, a seu modesto baile. Ele quis esperar um pouco, aguardando

sempre que a linda desconfiada viesse o perdoar. Porém o vestido era, ao que tudo

indicava, muito longo. O momento de se retirar chegou e ele precisou partir sem

conhecer sua sorte.

Novamente em casa nosso temerário não se achou muito descontente da jornada.

Pouco a pouco rememorou todas as circunstâncias das duas visitas. Como o caçador que

descobriu o cervo e que calcula as emboscadas, também o amante reflete nas

oportunidades e raciocina sobre sua fantasia. A modéstia não era o defeito de Valentino.

Começou a concordar consigo, que a marquesa lhe pertencia. Com efeito, não notara em

senhora de Parnes sombra de severidade nem de resistência. Entretanto refletiu que, por

essa mesma razão, bem podia ter dado ligeira mostra de galanteria. Há no mundo

senhoras muito lindas que se deixam beijar na mão, como o papa deixa beijar seu

sapato: É uma caridosa formalidade, tanto mais pros que ela eleva ao Paraíso. Valentino

achou que a falsa prudência da viúva talvez prometia mais, no fundo, que a liberalidade

da marquesa. Senhora Delaunay, depois de tudo, não fora bem enérgica. Retirara

afetuosamente a mão e em seguida fora passar seu vestido. Pensando nele, Valentino

pensou no pequeno baile. Se realizava naquela noite. Se prometeu comparecer.

Passeando no quarto todo e fazendo seus preparativos completos, sua imaginação se

exaltava. Era a viúva que veria, era nela que pensava. Viu sobre sua mesa uma pequena

pasta muito pesada, que ganhara numa loteria. Sobre a capa dessa carteira se via uma

feia paisagem a aquarela, sob vidro, e muito bem montada. Substituiu cuidadosamente a

paisagem pelo retrato de senhora de Parnes. Engano, quero dizer, de senhora Delaunay.

Isso feito, meteu a pasta no bolso, prometendo a tirar no momento oportuno e a fazer

ver a sua futura conquista. Indagava: O que dirá? E o que responderei? Ainda perguntava. Ruminando entredentes algumas dessas frases preparadas pra introdução

que o decoram e que jamais nos dizem, teve a idéia, muito mais simples, de escrever

uma declaração em regra e entregar à viúva.

Eis escrevendo. Quatro páginas se encheram. Todo mundo sabe quanto o coração se

emudece durante esses instantes em que cedemos à tentação de fixar no papel um

sentimento talvez fugidio. É suave, perigoso, senhora, ousar dizer que amamos. A

primeira página que Valentino escreveu estava um pouco fria e muito pouco legível. As

vírgulas estavam no lugares, as alíneas bem assinaladas, todas as coisas que provam um

bocado de amor. A segunda página era já menos correta. As linhas já se apertavam na

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terceira, e a quarta, é preciso convir, estava repleta de erro de grafia.

Como dizer o estranho pensamento que se apoderou de Valentino quando selava a

carta? Era prà viúva que escrevera. Era a ela que falava de seu amor, beijo matinal,

receios e desejos. No momento de apor o endereço percebeu que nenhum detalhe

particular estava na carta, e não deixou de sorrir à idéia de a enviar a senhora de Parnes.

Talvez houvesse, sem saber, um motivo oculto que o levou a executar essa idéia

extravagante. Se considerava, no íntimo do coração, incapaz de escrever semelhante

carta à marquesa e seu coração dizia, ao mesmo tempo, que quando o desejasse poderia

escrever novamente outra a senhora Delaunay. Aproveitou, pois, a ocasião e enviou,

sem mais tardar, a declaração feita prà viúva ao palacete da Calçada de Antim.

IV Era na residência do antigo tabelião, chamado senhor de Andelys, que se realizava a

pequena reunião onde Valentino encontraria senhora Delaunay. A encontrou ali, como

esperava, mais linda e mais garrida que nunca. Apesar do colar e dos brincos, sua

apresentação era quase simples. Um laço de fita furta-cor acompanhava seu belo rosto e

outro do mesmo tom apertava a silhueta flexível e galante. Disse eu que era muito

pequena, morena e que possuía grandes olhos. Também era um pouco magra e nisso

diferia de senhora de Parnes, cuja boa disposição mostrava as mais belas formas

envoltas em tecido de alabastro. Pra me servir duma expressão de estúdio, que meu

pensamento largou aqui, o conjunto de senhora Delaunay estava bem combinado, isto é,

nada era afetado: O cabelo não era muito escuro e a cor não muito branca. Possuía a

aparência duma crioulinha. Senhora de Parnes, ao contrário, era qual uma pintura. Uma

leve coloração de púrpura tingia as faces e reavivava os olhos cintilantes. Nada era mais

admirável que seu espesso cabelo negro emoldurando os belos ombros. Porém vejo que

procedo como meu herói. Penso numa quando é preciso falar da outra. Nos lembremos

de que a marquesa não ia às vesperais do tabelião.

Quando Valentino solicitou à viúva uma contradança, um Estou comprometida bem seco foi toda a resposta que obteve. Nosso estouvado, que ali aguardava, fingiu não

ter entendido, e respondeu Obrigado. Se afastou alguns passos e senhora Delaunay

correu atrás pra dizer que entendera mal.

— Então que contradança me concederás?

Ela corou e, não ousando recusar, folheando um caderninho de baile onde estavam

inscritos seus compromissos:

— Este caderno me engana. — Disse, hesitando — Há uma quantidade de nomes

que ainda não indaguei e que me atrapalham a memória. — Era o momento de sacar a

carteira do retrato. Valentino não falhou:

— Tomes. Escrevas meu nome na primeira página deste álbum. Me será ainda mais

querido.

Senhora Delaunay se reconheceu então. Apanhou a pasta, olhou seu retrato e

escreveu na primeira página o nome de Valentino. A entregando ela disse, mui

tristemente:

— É necessário dizer. Tenho duas palavras imprescindíveis pra dizer mas não posso

dançar contigo.

Passou então a um quarto vizinho onde jogavam, e Valentino a seguiu. Ela se

mostrava excessivamente embaraçada.

— O que perguntarei talvez parecerá bastante ridículo, e acho que terás razão de

considerar assim. Me visitou nesta manhã e me tomou... a mão — Acrescentou,

timidamente — Não sou tão infantil e tola a ponto de ignorar que tão pouca coisa não aflige alguém nem representa algo. No grande mundo onde vives isso não é mais que

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simples polidez. Entretanto estávamos sós e não te decidias. Concordarás comigo, ou,

pra dizer melhor, talvez compreenderás, por amizade a mim.

Ele estacou, em parte medroso e em parte enfastiado pelo esforço que fazia.

Valentino, a quem esse preâmbulo causava um susto mortífero, esperava que ela

continuasse, quando uma idéia súbita lhe atravessou o espírito. Não refletiu mais no que

fazia e, cedendo a um primeiro impulso, exclamou:

— Tua mãe viu?

— Não. — A viúva respondeu com dignidade — Não, senhor. Minha mãe nada viu.

Quando ela acabava de pronunciar essas palavras a contradança começou, seu par a

buscou e ela desapareceu no salão.

Valentino esperou, impacientemente, como pode calcular, que a dança terminasse.

Esse desejado instante enfim, chegou, porém senhora Delaunay voltou a seu lugar e,

ainda que ele tentasse se aproximar, não podia falar a ela. Ela não parecia pensar no que

lhe restava a dizer, mas pensar como o diria. Valentino se fazia mil indagações, que

chegavam todas ao mesmo resultado: Quer me pedir pra não voltar mais a sua casa. Entretanto uma tal proibição, baseada em tão insignificante pretexto, o revoltava.

Considerava isso mais que ridículo. E via no caso uma severidade despropositada ou

uma falsa virtude disposta a se fazer valer.

— É uma delambida ou uma namoradeira. Vejas como se julga aos 25 anos.

Senhora Delaunay compreendia perfeitamente o que se passava no espírito do rapaz.

Bem o previra. Mas o vendo, perdia a coragem. Sua intenção imediata não era defender

sua casa contra Valentino. Entretanto, embora não tendo espírito, tinha bastante coração

e viu claramente, na manhã, que não se tratava duma galantaria e que seria atacada. As

mulheres têm certo tato que as adverte da aproximação do combate. A maior parte delas

se expõe a ele porque se sentem seguras ou porque encontram prazer no perigo. As

escaramuças amorosas são o passatempo das belas ociosas. Sabem se defender e têm,

quando querem, a ocasião de se distrair. Todavia senhora Delaunay era muito ocupada,

bastante sedentária, via muito pouco do mundo, trabalhava muito nos artefatos de

agulha, que deixam sonhar e fazem às vezes devanear. Era bem pobre, resumindo, pra

se deixar beijar na mão. Tudo isso não significa que acreditasse estar em perigo. Porém

o que sucederia amanhã, se Valentino lhe falasse de amor e se, depois de amanhã, ela

fechasse sua casa a ele, e se no outro dia se arrependesse? A tarefa prosseguiria durante

este período? Conseguiria nela, na noite, o número de pontos desejado? (Explicarei isso

mais tarde). Mas, em todo caso, o que diria? Uma mulher que vive quase só está bem

mais exposta que qualquer outra. Não deve ser mais severa. Senhora Delaunay afirmava

que, com risco de ser ridícula, era necessário afastar Valentino antes que seu repouso

fosse perturbado. Queria falar agora, mas era mulher, e ele estava lá. O direito de

presença é o mais forte de todos e o mais difícil de combater.

No momento em que todos os motivos que acabo de indicar brevemente se lhe

apresentavam com energia, ela se ergueu. Valentino estava diante dela e seus olhares se

encontraram. Uma hora depois o rapaz refletia, só e afastado, e também lia nos grandes

olhos de senhora Delaunay cada pensamento que a agitava. A sua primeira impaciência

sucedera a tristeza. Se perguntava se, efetivamente, lá estava uma virtuosa ou uma

casquilha.2 E quanto mais mergulhava em recordação, quanto mais examinava a

expressão tímida e pensativa que estava em sua frente, mas se sentia presa de certo

respeito. Concluía que sua imprudência talvez fosse mais grave do que acreditara.

Quando senhora Delaunay se aproximou, ele sabia o que ela perguntaria. Desejava

evitar o sofrimento dela. Porém a achou muito linda e bastante comovida e considerou melhor a deixar falar.

2 Casquilha: Pequena casca, pedaço de casca. Janota, enfeitado, peralta. Nota do digitalizador

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Não foi sem inquietação que ela se decidiu e que chegou pra explicar tudo. A altivez

feminina, nessa circunstância, manifestava cruel tendência pra se elevar. Era preciso

confessar que estava sensibilizada e, entretanto, não o deixar perceber: Era necessário

dizer que compreendera tudo e, todavia, parecer nada entender. Enfim era preciso dizer

que tinha medo, última palavra que uma mulher pronuncia. E a causa desse receio era

tão insignificante! Desde suas primeiras palavras, senhora Delaunay sentiu que ali só

havia um meio de não parecer fraca nem virtuosa, namoradeira ou ridícula: Ser sincera.

Então falou, e todas as palavras podiam ser reduzidas à frase Te afastes, tenho medo de te amar.

Quando ela se calou, Valentino a mirou ao mesmo tempo com admiração, pena e

inexprimível prazer. Não sei que orgulho o dominava. Nos é sempre grato sentirmos

bater o coração. Abria os lábios pra responder e cem respostas vinham no mesmo

instante. Se enlevava com sua emoção e com a presença duma mulher que se atrevia a

falar dessa maneira. Queria declarar que a amava, desejava prometer obediência,

pretendia jurar jamais a deixar, queria agradecer a ventura, desejava falar de sua

mágoa. Enfim, mil idéias contraditórias, mil tormentos e mil delícias lhe cruzavam o

espírito e, no meio de tudo isso, estava preste a bradar, contra sua vontade: Mas me amas!

Durante todas estas hesitações dançavam um galope no salão. Era à moda de 1825.

Alguns grupos se distanciaram e faziam a volta do apartamento. A viúva se ergueu.

Aguardava sempre a resposta do moço. Singular tentação se apoderou dele, ao ver

passar o alegre desfile: Muito bem! Sim. Juro que me verão em última vez. Assim falando, envolveu com seu braço a cintura de senhora Delaunay. Seus olhos pareciam

dizer: Ainda nesta vez, sejamos amigos. Os imitemos. Ela se deixou arrastar em silêncio, e logo, parecendo duas aves, partiram ao som da música.

Era tarde e o salão estava quase vazio. As mesas de jogo eram ainda freqüentadas.

Mas é preciso saber que a sala de jantar do notário fazia uma volta no apartamento,

então completamente deserta. Os pares não iam mais longe. Giravam em torno da mesa

e voltavam ao salão. Aconteceu que quando Valentino e senhora Delaunay passaram na

sala de refeição, alguns pares não os seguiram. Então se encontraram de repente, sós, no

meio da sala. Um olhar rápido, atirado a trás, convenceu Valentino de que nenhum

espelho, nenhuma porta o podia trair. Apertou a jovem viúva contra o coração e, sem

dizer palavra, pousou os lábios em seu ombro nu.

Um grito lançado por senhora Delaunay causaria um escândalo medonho.

Felizmente, pro afoito, sua companheira se mostrou prudente. Porém ela não pôde se

mostrar enérgica, no mesmo instante, e cairia se ele não a amparasse. Ele a sustentou,

pois, e entrando no salão ela estacou, apoiada em seu braço, podendo apenas respirar. O

que ele daria pra contar os batimentos desse trêmulo coração! Porém a música cessava,

era preciso partir e, ainda que pudesse falar a senhora Delaunay, ela nada quis

responder.

V Nosso herói não se enganara quando receou contar muito depressa com a indolência

da marquesa. Estava ainda, no dia seguinte, entre a vigília e o sono, quando recebeu um

bilhete mais ou menos assim concebido:

Senhor, não sei quem deu a ti o direito de escrever a mim em semelhantes termos. Se não é desprezo é aposta ou impertinência. Em todo caso, devolvo tua carta, que não pode ser endereçada a mim.

Ainda repleto duma recordação mais viva, Valentino dificilmente se lembrava de sua

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declaração enviada a senhora de Parnes. Releu duas ou três vezes o bilhete antes de

compreender claramente o significado. A princípio ficou bastante envergonhado e

inutilmente procurava resposta que pudesse dar ao caso. Se levantando e esfregando os

olhos, suas idéias se tornaram mais nítidas. Achou que essa linguagem não era duma

mulher ofendida. E não fora assim que se exprimira senhora Delaunay. Releu a carta

que lhe enviara e nada encontrou que merecesse tanta cólera. A missiva era apaixonada,

doida talvez, mas sincera e respeitosa. Atirou o bilhete sobre a mesa e prometeu não

mais pensar nele.

— Semelhantes promessas não se cumprem. Talvez não tivesse mais pensado,

efetivamente, se o bilhete, em lugar de ser severo, fosse terno ou somente polido.

Porque a noite da véspera deixara na alma do rapaz um traço profundo. Porém a cólera é

contagiosa. Valentino começou limpando sua navalha no bilhete da marquesa, depois o

destruiu e o atirou no chão, em seguida queimou a declaração. Depois se vestiu e

passeou a grandes passos no quarto. Pediu o almoço e não pôde beber nem comer.

Enfim, pegou o chapéu e foi à casa de senhora de Parnes.

Disseram que ela saíra. Querendo saber se era verdade, respondeu: Está bem. Sei. E rapidamente atravessou o pátio. Tinha o porteiro correndo atrás, quando encontrou a

camareira. A abordou, puxou ao lado e, sem outro preâmbulo, lhe meteu um luís na

mão. Senhora de Parnes estava em casa. Ficou combinado, com a criada, que ninguém

vira Valentino e que o teriam deixado passar por descuido. Ele subiu, atravessou o salão

e encontrou a marquesa só, no dormitório.

Ela pareceu, se é necessário dizer tudo, muito menos colérica que seu bilhete.

Contudo lhe dirigiu, pois a senhora já o esperava, repreensões pela conduta e perguntou,

mui secamente, por que contingência entrava daquela maneira. Ele respondeu, com

expressão natural, que não encontrara criado pra se fazer anunciar e que oferecia, com

toda humildade as mui humildes escusas pela conduta.

— E que desculpas podes oferecer no caso?

A palavra desprezo, que se estava na missiva, chegou ao acaso à memória de

Valentino. Pareceu agradável tomar esse pretexto assim e dizer a verdade. Então

respondeu que a carta insolente da qual se queixava a marquesa não fora escrita pra ela

e que lhe fora dirigida por equívoco. Convencer em semelhante questão não era fácil,

como bem imaginas. Como podemos escrever um nome e um endereço por engano?

Não me encarrego de explicar por que razão senhora de Parnes acreditou ou fingiu

acreditar no que Valentino dizia. Ele contou, aliás mais sinceramente do que ela

pensava, que estava apaixonado por uma jovem viúva e que essa criatura, pelo mais

singular acaso, se parecia bastante com a senhora marquesa, que ele a via

freqüentemente, que a vira na véspera. Numa palavra, lhe disse tudo que podia dizer,

omitindo o nome e alguns pequenos detalhes que percebeste.

Não é a primeira vez que um noviço apaixonado se serve de história desse gênero pra

mascarar sua paixão. Dizer a uma mulher que se ama outra que lhe é semelhante em

tudo é, a rigor, um meio romanesco que pode dar o direito de falar de amor. Mas é

preciso, creio, pra isso, que a pessoa ao pé da qual se empregam semelhante estratagema

ponha no assunto um pouco de boa-vontade. Foi assim que a marquesa o entendeu?

Ignoro. A vaidade ferida, antes que o amor, conduzira Valentino. Antes do amor, a

vaidade elogiada acalmou senhora de Parnes. Chegou a fazer ao rapaz algumas

perguntas sobre a viúva. Se assustava com a semelhança da qual ele falava. Estaria,

dizia, curiosa prà julgar com seus olhos. Qual é sua idade? É menor ou maior que eu? É espirituosa? Aonde costuma ir? Será que já a conheço?

A todas estas perguntas Valentino respondia, tanto quanto possível, com a verdade.

Essa sinceridade apresentava, em cada palavra, o aspecto duma lisonja sonegada. Não é

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maior nem menor que tu. Tem, como tu, esse porte encantador, esses pés incomparáveis, esses belos olhos cheios de fulgor. A conversação, nesse tom, não

desagradava à marquesa. Ouvindo atentamente, com fisionomia destacada, ela se mirava no ângulo dos olhos. Pra falar verdade, essa manobra ofendia horrivelmente

Valentino. Não podia compreender essa semivirtude nem essa semi-hipocrisia duma

mulher que se agastava com uma frase sincera e que se deixava conter através duma

gaza. Vendo as olhadelas que a marquesa enviava a si no espelho, sentia vontade de lhe

contar tudo, o nome, a rua, o beijo do baile, e de exercer desse modo sua completa

vendeta pelo bilhete que recebera.

Uma pergunta de senhora de Parnes aliviou o mau-humor do moço. Perguntou, com

semblante mofador, se podia ao menos dizer o nome de batismo de sua viúva. Júlia,

replicou, prontamente. Havia nessa resposta tão pequena hesitação e tamanha clareza,

que senhora de Parnes ficou chocada. É um nome muito bonito. E a conversação caiu de repente.

Então aconteceu algo talvez difícil de explicar e provavelmente fácil de

compreender. Desde que a marquesa acreditou seriamente que a declaração que a

indignara não era realmente pra si, se mostrou surpresa e quase ferida. Seja porque a

inconstância de Valentino se apresentasse ali mais forte, se ele amava outra, seja porque

ela lastimasse ter mostrado a cólera fora de propósito, a marquesa se tornou sonhadora

e, o que é estranho, no mesmo instante irritada e casquilha. Ela quis retornar a seu

perdão e, procurando querela com Valentino, se sentou ao toucador. Desatou a fita que

envolvia o pescoço, depois a prendeu novamente. Apanhou um pente. Seu penteado

parecia a desagradar. Refez uma madeixa dum lado, suprimindo uma doutro. Enquanto

arrumava o penteado o pente escorregou das mãos e a longa cabeleira negra cobriu as

espáduas.

— Queres que eu chame a camareira?

— Não vale a pena.

A marquesa levantou, com mão impaciente, o cabelo solto e enfiou o pente.

— Ignoro o que fazem meus criados. É preciso que tenham saído todos, porque nesta

manhã eu proibira que deixassem entrar alguém.

— Neste caso cometi uma indiscrição e me retirarei.

Deu alguns passos à porta e sairia efetivamente, quando a marquesa, que voltava as

costas, e aparentemente não entendera sua resposta, disse:

— Me dês uma caixa que está sobre o fogão.

Ele obedeceu. Ela apanhou grampos da caixa e reajustou o penteado.

— A propósito. E o retrato que fizeste?

— Não sei onde está. Porém o encontrarei e, se me permites, darei a ti logo que o

tiver retocado.

Chegou um criado, trazendo uma carta à qual era necessário responder. A marquesa

começou a escrever. Valentino se levantou e entrou no jardim. Ao passar no pavilhão

viu que a porta estava aberta. A camareira que encontrara, ao chegar, limpara ali os

móveis. Ele entrou, curioso pra examinar de perto esse misterioso quarto de vestir que

diziam abandonado. O vendo, a criada começou a rir, com aquele aspecto de proteção

que domina toda criada depois duma confidência. Era jovem e muito bonita. Se

aproximou dela, deliberadamente, e se atirou a uma poltrona.

— Tua patroa não vem aqui às vezes? — Perguntou, com ar distraído.

A ancila3 parecia hesitar pra responder. Continuava a arrumar. Passando diante do

canapé de tipo moderno do qual te falei, creio, disse a meia-voz:

— Eis a poltrona da senhora.

3 Ancila: Serva, escrava. Nota do digitalizador

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— E por que a senhora diz que nunca vem àqui?

— Senhor, é pra que o velho marquês, não se aborreça. Fez das suas neste pavilhão.

Possui má fama no quarteirão. Quando ouvem algazarra aqui, dizem: É o pavilhão de Parnes. Eis por que a senhora se proíbe confessar.

— E o que faz aqui a patroa?

Por toda resposta a camareira sacudiu levemente os ombros, como pra declarar:

Nada de importância. Valentino olhou através da janela pra ver se a marquesa ainda escrevia. Enfiara,

enquanto conversava, a mão no bolso do colete. O acaso quis que nesse momento

atingisse o tesouro. Um capricho de curiosidade passou na mente. Tirou uma moeda

nova de 2 luíses, que reluzia maravilhosamente ao sol, e disse à ancila:

— Me escondas aqui.

Depois do que acontecera, a criada acreditara que Valentino era bem-visto pela

patroa. Pra entrarmos com autoridade em casa duma mulher é preciso certa segurança

de sermos bem recebidos, e quando, após ter forçado a porta, passamos meia hora em

seu quarto, as serviçais sabem o que pensar a respeito. Entretanto a proposta era

atrevida: Se esconder pra surpreender as pessoas é uma idéia de apaixonado e não uma

atitude de amante. A moeda de 2 luíses, por mais brilhante que fosse, não podia lutar

contra o medo de ser despedida. A camareira pensou:

— Porém, afinal de conta, quando estamos tão amorosos nos achamos bem próximos

de nos tornarmos amantes. Quem-sabe? Em vez de ser posta na rua, talvez serei

agradecida.

Apanhou a moeda, suspirando, e mostrou, sorrindo, a Valentino, um vasto armário,

onde ele se precipitou.

— Onde estás agora? — Perguntou a marquesa, que acabava de descer ao jardim.

A criada respondeu que Valentino saíra pelo pequeno salão. A senhora olhou a um

lado e a outro, como pra se assegurar de que saíra. Entrou no pavilhão, lançou uma

olhadela e se retirou após ter fechado a porta a chave.

A senhora talvez achará que narro um conto inverossímil. Conheço pessoas de

espírito, neste século de prosa, que sustentariam gravemente que semelhantes fatos não

são possíveis e que, após a revolução, ninguém se oculta mais num pavilhão. Não existe

resposta a dar a esses incrédulos. É que, indubitavelmente, esqueceram o tempo em que

foram apaixonados.

Quando Valentino ficou só, surgiu a idéia, muito natural, de que possivelmente

passaria ali um dia inteiro. Satisfizera sua curiosidade e depois que examinou, com

vagar, o lustre, as cortinas e os aparadores, sentiu um grande apetite diante dum

açucareiro e duma garrafa.

Disse eu que o bilhete da manhã o impedira de almoçar. Todavia não tinha motivo

pra não jantar. Comeu dois ou três pedaços de açúcar e se lembrou dum velho camponês

a quem se indagava se amava as mulheres:

— Gosto muito duma jovem mas gosto mais duma boa costeleta.

Valentino pensava nos festins, dos quais, no dizer da ancila, o pavilhão fora

testemunha, e, à vista de bonita mesa redonda que ocupava o meio do quarto, teria,

voluntariamente, evocado o espectro dos convidados à ceia do defunto marquês.

Monologando:

— Como estariam bem aqui, numa tarde ou noite de verão, com as janelas abertas,

persianas fechadas, velas acesas, mesa servida! Que tempo feliz quando nossos

ancestrais não precisavam mais que bater o pé no chão pra fazer sair da terra uma boa refeição!

Assim falando, Valentino batia o pé mas nada respondia além do eco da abóbada e o

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gemido de uma harpa esticada.

O ruído duma chave na fechadura o fez voltar precipitadamente ao armário. Era a

marquesa ou a camareira? Ela podia o libertar ou, ao menos, dar um pedaço de pão. Me

acusarás novamente de ser romântico se disser que não sabia qual das duas pensara ver

entrar?

Foi a marquesa quem apareceu. O que faria? A curiosidade foi tão forte que qualquer

outra idéia empalideceu. Senhora de Parnes se afastara da mesa. Fez precisamente o que

Valentino sonhava há pouco: abriu a janela, fechou as persianas e acendeu duas velas. O

dia começava a findar. Ela pousou na mesa um livro que trazia, deu alguns passos

cantarolando e se sentou num canapé.

O que fará? Valentino repetia de si a si. Apesar da opinião da criada, não podia se

proibir de aguardar que descobriria um mistério. Quem-sabe espera alguém? Eu me encontraria desempenhando um bonito papel se chegasse um terceiro. A marquesa abria seu livro ao acaso, depois o fechava, em seguida parecia refletir. O

rapaz acreditou perceber que ela olhava o lado do armário. Através da porta entreaberta

ele seguia todos os movimentos. Um estranho pensamento surgiu de repente: A camareira contara? A marquesa sabia que ele estava ali?

Vejas, dirás, uma idéia bem extravagante e, sobretudo, pouco verossímil. Como

supor que, depois do bilhete, a marquesa, ciente da presença do moço, não o tivesse

feito aparecer à porta ou, ao menos, não o tivesse colocado ela mesma? Principio,

senhora, afirmando que sou da mesma opinião mas devo acrescentar, pra desencargo de

consciência, que não me encarrego de esclarecer idéias desse gênero. Há pessoas que

supõem sempre e outras que nunca supõem, o dever dum historiador é narrar e deixar

pensar os que se divertem com o assunto.

Tudo o que posso dizer é que a declaração de Valentino desgostara a senhora de

Parnes. É provável que ela não pensasse mais no caso. Que, segundo toda a aparência,

ela o acreditasse longe. É mais provável ainda que ela tivesse jantado bem e que viesse

fazer a sesta no pavilhão. Porém é certo que ela começou metendo um dos pés sobre o

canapé, depois o outro, em seguida pousou a cabeça sobre uma almofada, fechou

suavemente os olhos, e me parece difícil, depois disso, crer que não adormeceu.

Valentino teve vontade, como diz Valmont, de experimentar passar por uma

quimera. Empurrou a porta do armário. Um rangido o fez estremecer. A marquesa abrira

os olhos, ergueu a cabeça e inspecionou em torno. Valentino não se movia, como pode

acreditar. Não ouvindo mais e não tendo visto algo, senhora de Parnes adormeceu

novamente. O rapaz avançou na ponta dos pés e, com o coração palpitante, respirando

dificilmente, veio, como Roberto o Diabo,4 até Isabel adormecida.

Não é em tal circunstância que refletimos ordinariamente. Jamais a senhora de

Parnes esteve tão linda. Os lábios entreabertos pareciam mais vermelhos. Um encarnado

mais vivo coloria a face. A respiração, uniforme e calma, lhe levantava suavemente os

seios de alabastro, cobertos dum louro delicado. O anjo da noite não saiu mais belo dum

bloco de mármore de Carrara, sob o cinzel de Miguel Ângelo. Certamente, mesmo se

sentindo ofendida, tal mulher, surpreendida assim, deve perdoar o desejo que inspira.

Todavia ligeiro movimento da marquesa deteve Valentino. Dormia? Essa estranha

dúvida o perturbava, pra seu pesar:

— O que importa? Então é uma cilada? Que capricho e que desatino! Porque o amor

perderia o valor percebendo que é repartido? O que há mais lindo que ela quando

dorme? E mais encantador quando não dorme?

4 Roberto I de Normandia, conhecido também como Roberto O Liberal, Roberto O Diabo e também Roberto O Magnífico (1010 - 3

de Julho de 1035), foi duque de Normandia desde agosto de 1027. Se tornou um conto popular medieval. Nota do digitalizador

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Enquanto falava assim, permanecia imóvel e não podia se impedir de procurar um

meio de saber a verdade. Dominado por esse pensamento, apanhou um fragmento de

açúcar que ainda restava do repasto e, se ocultando atrás da marquesa, o atirou à mão.

Ela não se moveu. Ele empurrou uma cadeira levemente, então um pouco mais

bruscamente. Nada de resposta. Estendeu o braço e fez cair no chão o livro que senhora

de Parnes deixara na mesa. A acreditou acordada dessa vez e se agachou atrás do

canapé. Porém nada se movia. Então se ergueu e, como a veneziana entreaberta expunha

a marquesa ao sereno, a fechou por precaução.

Compreendes que eu não estava no pavilhão e, a partir do momento em que a

persiana foi fechada, me foi impossível observar mais.

VI Não decorreram mais de quinze dias após o acontecimento, quando Valentino, saindo

da casa de senhora Delaunay, esqueceu o lenço sobre uma poltrona. Depois que o rapaz

partiu a viúva apanhou o lenço e, tendo ao acaso olhado a marca, encontrou um I e um P

muito delicadamente bordados. Não eram as letras de Valentino. A quem, pois,

pertencia? O nome de Isabel de Parnes jamais fora pronunciado na rua de Plat-d'Étain e

a viúva, por conseguinte, se perdia em inútil conjetura. Virava o lenço em todos os

sentidos, examinava um canto, depois o outro, como se esperasse descobrir nalguma

parte o verdadeiro nome do proprietário.

E por que tanta curiosidade por algo tão simples? Emprestamos todos os dias um

lenço a um amigo e o perdemos. Isso irá sem comentário. O que há nisso de

extraordinário? Entretanto senhora Delaunay examinava de perto a fina cambraia e nela

achava um aspecto feminino que lhe fazia balançar a cabeça. Entendia de bordado e o

desenho parecia demasiado rico pra sair do armário dum rapaz. Um indício imprevisto a

fez descobrir a verdade. Nas pregas do lenço reconheceu que numa das pontas fora dado

um nó pra servir de porta-níquel, e essa maneira de guardar o dinheiro só pertence, bem

sabes, às mulheres. A viúva empalideceu com a descoberta e, depois de ter, durante

algum tempo, posto no lenço olhares pensativos, foi obrigada a se servir dele pra

enxugar uma lágrima que escorria na face.

Uma lágrima!, dirás, já uma lágrima! Ai dela! Sim, senhora, chorava. O que

acontecera então? Direi. Mas pra isso é preciso voltar um instante sobre nossos passos.

É necessário saber que dois dias após o baile, Valentino fora à casa de senhora

Delaunay. A mãe abriu a porta e respondeu que a filha saíra. Em seguida senhora

Delaunay escrevera uma longa carta ao moço. Lhe recordava seu último encontro e

suplicava pra não mais a ver. Contava com sua palavra, honra e amizade. Não se

mostrava ofendida e não falava do galope. Rapidamente Valentino leu a carta do

princípio ao fim, sem encontrar algo de mais ou de menos. Se sentiu comovido e

obedeceria se a última frase ali não estivesse. Na verdade fora apagada, mas tão

levemente, que se podia ler até melhor. Dizia a viúva, ao terminar sua carta: Adeus. Sejas feliz.

Dizer a um apaixonado que expulsamos: Sejas feliz. O que pensas a respeito? Não

foi pra dizer: Não sou feliz? Na sexta-feira Valentino hesitou muito tempo se iria à casa do notário. Apesar de sua idade e estouvamento a idéia de prejudicar alguém lhe

era insuportável. Não sabia o que decidir, quando repetiu a si: Sejas feliz! E correu à casa de senhor de Andelys.

Por que senhora Delaunay estava lá? Quando nossa personagem entrou no salão a viu

franzir as sobrancelhas com singular expressão. No que diz respeito às maneiras, nela

havia, certamente, alguma garridice. Porém, no fundo do coração, ninguém era mais

simples, mais inexperiente que senhora Delaunay. Ela pôde, vendo o perigo, tentar

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atrevidamente se defender. Mas pra resistir a uma luta sustentada não possuía as armas

necessárias. Nada sabia desses golpes hábeis, desses recursos sempre prontos, por meio

dos quais uma mulher de espírito sabe conter o amor a distância e o afastar ou atrair

pouco a pouco. Quando Valentino lhe beijara a mão, ela monologara: Eis um mau indivíduo pelo qual eu bem poderia ficar apaixonada. É preciso que ele vá embora no momento oportuno. Porém, logo que ela o viu, em casa do notário, entrar

alegremente na ponta dos pés, apertado na gravata e com o sorriso nos lábios, a

saudando, apesar de sua proibição, com gracioso respeito, pensou: Eis um homem mais obstinado e mais ardiloso que eu. Não serei a mais forte diante dele e, desde que ele voltou, talvez me ame.

Dessa vez ela não recusou a contradança. Às primeiras palavras ele percebeu nela

uma grande resignação e notável desassossego. No fundo dessa alma tímida e correta,

existia algum aborrecimento na vida. Embora apreciando o repouso, ela estava fatigada

da solidão. Senhor Delaunay, falecido muito jovem, não, a amara. A tomara pra

governante, antes que pra esposa. e, ainda que ela não levasse dote, ele fizera, a

desposando, um casamento de juízo. A economia, a ordem, a vigilância, a estima

pública, a amizade de seu marido, as virtudes domésticas. Numa palavra, vejas o que ela

conhecia neste mundo. Valentino gozava, no salão de senhor de Andelys, a reputação

que todo rapaz de traje alinhado pode ter na casa dum notário. Falavam como se

tratando dum elegante, dum cliente de Tortoni, e as priminhas sussurravam entre si

histórias doutro mundo, que lhe atribuíam. Ele descera numa chaminé em casa dum

barão, saltara na janela da residência duma duquesa que morava num quinto andar, tudo

por amor e sem se magoar, etc., etc.

Senhora Delaunay tinha muito pouca vontade de escutar essas tolices. Porém talvez

fizesse melhor as escutando, que entendendo algumas palavras do assunto, ao acaso.

Tudo depende, freqüentemente, nesse caso, da maneira pela qual nos apresentamos. Pra

falar como os colegiais, Valentino levava vantagem sobre senhora Delaunay. Em vista

de o repreender por ter comparecido, ela aguardava que ele lhe pedisse perdão. Ele se

defendeu bem, como calculas. Se fosse o que ela acreditava, isso é, um homem

abastado, talvez não tivesse êxito ao pé dela, por que a viúva então o sentiria muito

hábil e muito seguro de sua posição. Contudo tremia, a tocando, e essa prova de amor,

somado cum bocado de receio, perturbava ao mesmo tempo o espírito e o coração da

moça. Não consideravam, em tudo isso, a sala de jantar do notário, ambos pareciam a

ter esquecido. Porém quando chegou o sinal do galope e Valentino foi convidar a viúva,

se tornou bem necessário se lembrarem dela.

Ele me assegurou que durante sua existência não vira rosto mais lindo que o de

senhora Delaunay, quando lhe fez esse convite. A face se ruborizou. Todo o sangue que

ela possuía no coração afluiu em torno dos grandes olhos negros, como pra fazer

sobressair a chama. Ela se levantou um pouco, preste a aceitar e não ousando o fazer.

Ligeiro estremecimento fez moverem as espáduas, que dessa vez não estavam nuas.

Valentino segurava a mão dela. A comprimiu afetuosamente na sua, como pra dizer:

— Não receies mais. Sinto que te amo.

Refletiste na posição duma mulher que perdoa um beijo que lhe furtaram? No

momento em que ela promete o esquecer é quase como se o aceitasse. Valentino ousou

fazer a senhora Delaunay algumas repreensões por sua cólera. Se queixou de sua

severidade, do afastamento em que ela o conservava. Enfim chegou, não sem hesitar, a

falar dum pequeno jardim situado atrás de sua casa, local retirado, de espessa sombra,

onde nenhum olho indiscreto podia penetrar. Uma deliciosa cascata murmurante

protegia o colóquio, a solidão defendia o amor. Nenhum ruído, testemunha nem perigo.

Falar de semelhante recanto no meio da sociedade, ao som da música, no turbilhão

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duma festa, a uma moça que o escuta, que não aceita nem recusa, mas que deixa falar e

que sorri. Á! senhora, descrever assim semelhante lugar, talvez seja mais encantador

que ali estar!

Enquanto Valentino se expandia sem reserva, a viúva escutava sem reflexão. De vez

em quando, aos ardentes desejos ela opunha tímida objeção. Uma vez ou outra ela fingia

não entender, e se uma palavra a atingira, enrubescendo, ela a fazia repetir. A mão,

comprimida pela do rapaz, desejava estar fria e imóvel. Ela estava inquieta e febril. O

acaso, que protege os amantes, quis que, ao passarem na sala de jantar se encontrassem

sós, como da última vez. Valentino não teve o pensamento de perturbar o sonho de sua

deusa, e no lugar do desejo senhora Delaunay viu o amor. O que direi? Esse respeito,

audácia, recinto, baile, a ocasião, tudo se reunia prà seduzir. Ela semicerrou os olhos,

suspirou e nada prometeu.

Eis, senhora, por que motivo senhora Delaunay começou a chorar quando encontrou

o lenço da marquesa.

VII Desde que Valentino esqueceu o lenço não é preciso, entretanto, acreditar que não

tivesse um no bolso.

Enquanto senhora Delaunay chorava, nosso jovem imprudente, que nada sabia da

história, estava muito longe de se sensibilizar. Ele estava num pequeno salão forrado de

madeira, dourado e almiscarado como uma bomboneira, no fundo duma grande poltrona

de damasco violeta. Ouvia, após um bom jantar, o convite à valsa, de Weber e,

saboreando excelente café, olhava, de vez em quando, o colo alvo de senhora de Parnes,

que, com todos os atavios e exaltada, como diz Hoffmann, por uma chávena de chá bem

açucarado, dispunha da melhor maneira as lindas mãos. Não era pela pequena partitura,

é preciso declarar, com inteira justiça, a qual estava perfeitamente atraída. Não sei qual

merecia mais elogio: O sentimental mestre alemão, a inteligente musicista ou o

admirável instrumento de Érard, que devolvia em vibração sonora a dupla inspiração

que o animava.

Terminado o trecho, Valentino se ergueu e, tirando do bolso um lenço:

— Tomes. Agradeço. Eis o lenço que me emprestaste.

A marquesa fez justamente o que fizera senhora Delaunay. Olhou logo a marca. A

mão delicada sentiu um tecido muito grosseiro pra lhe pertencer. Ela também era

entendida em bordado. Porém ali havia tão pouco, nada suficiente, contudo, pra

denunciar uma mulher. Virou duas ou três vezes o lenço, o aproximou, timidamente, do

nariz, o examinou ainda, depois o atirou a Valentino, dizendo:

— Estás enganado. Isso que me apresentas pertence a alguma camareira de tua mãe.

Valentino, que trouxera, por equívoco, o lenço de senhora Delaunay, o reconheceu e

sentiu bater o coração.

— Por que a uma camareira? Porém a marquesa se colocara ao piano. Pouco lhe

importava uma rival que se assoava no grosseiro pano. Ela retomou o presto da valsa e

fez uma fisionomia de não ter entendido.

Essa indiferença espicaçou Valentino. Deu uma volta no quarto e pegou o chapéu.

— Aonde irás? — Perguntou senhora de Parnes.

— A casa de mamãe, entregar a sua criada de quarto o lenço que me emprestou.

— Te verei amanhã! Ouviremos um pouco de música e me darás o prazer de vir

jantar.

— Não. Tenho afazer pro dia todo.

Ele continuava a andar e não se decidia a sair. A marquesa se levantou e foi para ele.

— És um homem singular. Desejas me fazer sentir ciúme.

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— Eu? absolutamente. O ciúme é um sentimento que detesto.

— Por que então se zangaste porque acho neste lenço um aspecto de antecâmara? É

minha falta ou tua?

— Não me zango por isso. Acho tudo muito natural.

Assim falando, ele virou as costas. Senhora de Parnes avançou docilmente, segurou o

lenço de senhora Delaunay e, se aproximando duma janela aberta, o jogou à rua.

— O que fizeste? — Exclamou Valentino. E se precipitou prà impedir. Porém era

muito tarde.

Desejo saber — a marquesa disse, rindo — até que ponto irás e estou curiosa pra ver

se descerás pra o procurar.

Valentino hesitou um instante e enrubesceu de cólera. Desejava punir a marquesa

com alguma resposta mordaz. Porém, como sempre acontece, a cólera lhe perturbava o

espírito. Senhora de Parnes começou a rir gostosamente. Ele enfiou o chapéu na cabeça

e saiu dizendo:

— O procurarei.

Efetivamente, procurou muito tempo. Mas um lenço perdido é logo colhido e foi

inutilmente que caminhou dez vezes dum lado a outro. A marquesa, em sua janela, ria

sempre, vendo o procedimento. Finalmente fatigado e um pouco envergonhado, se

afastou sem levantar a cabeça, fingindo não perceber que fora observado. Na esquina da

rua, todavia, se voltou e viu senhora de Parnes, que não ria mais e o seguia com o olhar.

Prosseguiu na rota, sem saber aonde se dirigia, e tomou, maquinalmente, a direção da

rua Prato de Estanho. A noite estava linda e o céu limpo. A viúva também estava a sua

janela, pois passara um dia triste. Ela disse, logo que ele entrou:

— Preciso ter certeza. A quem pertence um lenço que deixaste aqui em casa?

Há pessoas que sabem iludir e que não sabem mentir. À questão Valentino se

perturbou mui claramente pra que fosse possível se equivocar e, sem esperar que ele

respondesse:

— Ouças. Sabes que te amo. Conhece bastante o mundo e vejo ninguém. Me é tão

improvável saber o que fazes quanto te seria fácil ver claro em minhas menores ações,

se tivesses essa fantasia. Podes me enganar facilmente e impunemente, pois não posso

te vigiar nem deixar de te amar. Te lembres, te suplico, do que direi: Cedo ou tarde tudo

sabemos e, creias, é uma coisa triste.

Valentino a queria interromper. Ela tomou sua mão e continuou:

— Eu não disse o bastante. Não é um fato triste, porém o mais doloroso do mundo.

Se nada é mais agradável que a lembrança da felicidade, nada é mais terrível do que

perceber que a felicidade passada era uma mentira. Nunca pensaste no que pode

significar odiar aqueles que amamos? Concebes algo pior? Reflitas nisso, te suplico.

Aqueles que encontram prazer em iludir os outros se tornam, ordinariamente, vaidosos.

Imaginam, por isso, ter alguma superioridade sobre as vítimas. Ela é bem fugaz e a que

conduz? Nada é tão fácil quanto o mal. Um homem de tua idade pode enganar sua

amada somente pra passar o tempo. Porém o tempo se escoa certamente, a verdade

aparece e o que resta? Uma pobre criatura enganada que acreditou ser amada, feliz. Ela

fez de ti seu único bem. Penses no que te sucederá, se é necessário que ela te tenha ódio!

A simplicidade dessa linguagem emudecera Valentino ao âmago do coração.

— Te amo. Não duvides. Amo somente a ti.

— Tenho necessidade de acreditar. E se dizes a verdade jamais falaremos do que

sofri hoje. Permitas acrescentar uma palavra que é necessário que eu diga. Vi meu pai,

na idade de sessenta anos, saber, de repente, que um amigo de infância o enganara num

negócio. Fora encontrada uma carta na qual esse amigo narrava, de próprio punho, a

perfídia e se vangloriava da triste habilidade que lhe concedera alguns cheques em

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nosso prejuízo. Vi meu pai estupefato e mergulhado no desespero, com a cabeça baixa,

lendo a carta. Estava tão envergonhado como se fosse o culpado. Enxugou uma lágrima

na face, atirou a carta ao fogo e exclamou:

— Como a vaidade e o interesse são coisas insignificantes! Mas como é medonho

perder um amigo!

Se estivesses lá, Valentino, farias o juramento de jamais iludir alguém.

Senhora Delaunay, ao pronunciar essas palavras, deixou escapar alguma lágrima.

Valentino estava sentado perto. Em toda resposta, a atraiu a si. Ela pousou a cabeça em

seu ombro e, tirando do bolso do avental o lenço da marquesa:

— É bem bonito. O bordado é fino. Deixarás pra mim. Não é? A mulher a quem ele

pertence não perceberá que o perdeu. Quando temos um lenço deste, temos vários

outros semelhantes. Quanto a mim, tenho somente uma dúzia e não são maravilhosos.

Me devolverás o meu que levaste e que não te fará honra. Porém guardarei este.

— Pra quê? Não te servirás dele.

— Sim, meu amigo, é preciso que eu me console por o ter encontrado nesta poltrona

e é preciso que ele enxugue minha lágrima até que cesse de rolar.

— Que este beijo as enxugue!

E, apanhando o lenço de senhora de Parnes, o atirou na janela.

VIII Seis semanas se escoaram. E é preciso que seja bem difícil ao homem se conhecer,

pois Valentino ainda não sabia de qual das suas duas amadas mais gostava. Apesar dos

momentos de sinceridade e dos laços de coração que o aproximavam de senhora

Delaunay, não podia resolver a desaprender o caminho da Calçada de Antim. Malgrado

a beleza da senhora de Parnes, seu espírito, graça e prazeres que ele encontrava em sua

casa, não podia renunciar ao cubículo da rua Prato de Estanho. O pequeno jardim de

Valentino via, alternativamente, a viúva e a marquesa passearem no braço do rapaz e o

murmúrio da cascata cobria com seu ruído monótono os juramentos sempre repetidos e

sempre traídos com o mesmo ardor. Então é preciso crer que a inconstância tenha suas

diversões como o amor fiel? Às vezes ainda ouviam rodar a carruagem sem librê, que

conduzia, incógnita, senhora de Parnes, quando senhora Delaunay aparecia, velada, no

fim da rua, caminhando com passo receoso. Oculto atrás do seu zelo, Valentino sorria

desses encontros e se entregava, sem remorso, aos perigosos atrativos da mudança.

É fato quase infalível: Aqueles que se familiarizam com um perigo acabam o

amando. Sempre arriscado a ver sua dupla intriga descoberta por um acaso, obrigado ao

difícil papel dum homem que deve mentir sem parar. Sem se trair, nosso imprudente

ficou orgulhoso dessa estranha posição. Após ter habituado a isso o coração, acostumou

também a vaidade. O receio que o perturbava no princípio, o escrúpulo que o detinham,

ficaram queridos. Deu dois anéis semelhantes a suas duas amigas. Conseguiu de

senhora Delaunay que usasse uma delicada corrente de ouro que escolhera em lugar de

seu colar de crisocal. Pareceu divertido fazer colocar esse colar na marquesa. Conseguiu

o impingir certo dia em que ela ia ao baile. Essa foi, seguramente, a maior prova de

amor que ela lhe deu.

Senhora Delaunay, ludibriada pelo amor, não podia acreditar na volubilidade de

Valentino. Havia certos dias em que a verdade surgia de repente, clara e irrecusável.

Então explodia em reprovação, se fundia em lágrima, desejava morrer. Uma palavra de

seu amado a enganava novamente. Um aperto-de-mão a consolava. Entrava em casa

feliz e tranqüila. Senhora de Parnes, dominada pelo orgulho, não procurava descobrir

algo e não experimentava saber. Dizia: Existe alguma velha paixão que ele não tem coragem de abandonar. E não se dignava se rebaixar a solicitar um sacrifício. O

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amor lhe parecia um passatempo e o ciúme ridículo. Aliás, acreditava que sua beleza

fosse um talismã ao qual ninguém pudesse resistir.

Se te recordas do caráter de nosso herói, como procurei pintar na primeira página

deste conto, talvez compreenderás e desculparás sua conduta, malgrado o que ela tem de

justamente reprovável. O duplo amor que sentia ou acreditava sentir era, assim dizendo,

a imagem de sua vida inteira. Tendo sempre procurado os extremos, gozando as alegrias

do pobre e as do rico ao mesmo tempo, encontrava perto dessas duas mulheres o

contraste que lhe agradava e, realmente, era rico e pobre no mesmo dia. Se, das 7h às

8h, ao sol poente, dois belos cavalos cinzentos entravam a trote ligeiro na avenida dos

Campos Elíseos, conduzindo suavemente atrás de si um cupê forrado de seda como um

quarto de vestir, poderias ver, no fundo da carruagem, uma viçosa e garrida figura

oculta sob um grande capote e sorrindo a um jovem indolentemente estendido a seu

lado: Eram Valentino e senhora de Parnes, que gozavam a aragem após o jantar. Se na

manhã, no nascer do sol, o acaso a conduzisse perto do lindo bosque de Romainville,

encontrarias ali, sob o verde arvoredo duma chácara, dois amantes falando em voz baixa

ou lendo, juntos, la Fontaine e eram Valentino e senhora Delaunay, que acabavam de

caminhar no orvalho. Estiveste, na noite, num grande baile na embaixada da Áustria?

Viu no meio dum circulo brilhante de moças uma beldade mais atrevida, mais cortejada,

mais desdenhosa que todas as outras? Essa cabeça encantadora, coberta cum turbante

dourado, que se move com graça, qual rosa embalada pelo zéfiro, é a jovem marquesa

que a sociedade admira, que o triunfo embeleza e que todavia parece sonhar. Não longe

dali, apoiado a uma coluna, Valentino a observa: Ninguém conhece seu segredo,

interpreta esse olhar nem não advinha a alegria do amante. O brilho dos lustres, o som

da música, os murmúrios dos convivas, o perfume das flores, tudo o penetra, o

transporta, e a imagem radiosa de sua linda amada embriaga seus olhos deslumbrados.

Quase duvidou da felicidade e que tão raro tesouro lhe pertence. Ouviu os homens

dizerem em torno: Que encanto! que sorriso! e repetiu, baixinho, essas palavras. Chegou a hora da ceia. Um jovem oficial corou de prazer ao apresentar sua mão à

marquesa. A rodearam, cada um quer se aproximar e porfia uma palavra de seus lábios.

É então que ela passa perto de Valentino e sussurra: Até amanhã. Quanta delícia em

semelhantes palavras! Entretanto, no dia seguinte, no cair da noite, o rapaz subiu, a

apalpadela, uma escada escura e atingiu, com dificuldade, o terceiro andar e bateu

suavemente e uma pequena porta, que se abriu e ele entrou. Senhora Delaunay, diante

da sua mesa, trabalhava só, o aguardando. Ele se sentou perto dela, que olhou a ele,

tomou sua mão e disse que agradecia a amar ainda. Uma só lâmpada iluminava

fracamente o modesto quartinho. Porém sob essa luz estava um semblante amigo,

tranqüilo e afetuoso. Ali não havia mais testemunho desvelado nem admiração ou

triunfo. Valentino fez mais que não lastimar o mundo. Esqueceu. Entrou a velha mãe, se

sentou em sua poltrona e foi preciso ouvir até 10h as histórias do tempo passado,

acariciar o cãozinho que rosnava, avivar a luz que se extinguia. Às vezes era um novo

romance que era preciso ter a coragem de ler. Valentino deixou cair o livro pra tocar, ao

o apanhar, o pezinho de sua adorada. Outras vezes é um piquê5 a dois soldos a ficha que

é preciso jogar com a boa senhora e ter o cuidado de não possuir muito bom jogo.

Saindo de lá o jovem voltou a pé. Ceou ontem com vinho da Champanha, cantarolando

uma contradança. Ceou nessa noite com uma xícara de leite, fazendo alguns versos a

sua amada. Entrementes a marquesa estava furiosa por lhe terem faltado com a palavra.

Um grande lacaio empoado trouxe um bilhete cheio de terna repreensão e cheirando a

almíscar. O bilhete foi desdobrado, a janela estava aberta, o tempo era lindo, senhora de

5 Piquê: sm Jogo feito com 32 cartas. Casta de tecido feito de dois panos aplicados um sobre o outro e unidos por pontos cujas linhas

formam desenho. Nota do digitalizador. http://www.dicio.com.br/

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Parnes chegaria. Eis nossa estouvada e grande personagem. Dessa maneira, sempre

diferente de si, encontrava meio de ser verdadeiro jamais sendo sincero. E o amante da

marquesa não era o da viúva.

Me disse, num dia em que, enquanto passeávamos, procurava se justificar:

— E por que escolher? Por que essa necessidade de amar de maneira exclusiva?

Censuram um homem de minha idade por estar enamorado de senhora de Parnes? Não é

admirada, invejada? Não elogiam seu espírito e encanto? A própria razão se apaixona

por ela. Por outro lado, que reprovação merece aquele a quem a bondade, a ternura, a

inocência de senhora Delaunay impressionaram? Não é digna de fazer a alegria e a

ventura dum homem? Menos bela, não seria uma preciosa companheira, e como é, há

no mundo namorada mais encantadora? Em que sou culpado por amar essas duas

mulheres, se cada uma merece ser amada? E se é verdade que sou mui venturoso por

influir dalgum modo em sua vida, por que só poderia fazer uma feliz fazendo a desgraça

da outra? Por que o meigo sorriso que às vezes minha presença faz brotar nos lábios de

minha bela viúva deveria ser comprado ao preço duma lágrima derramada pela

marquesa? É eu pecado se a contingência me atirou em seu caminho, se as tenho

aproximado, se me permitiram as amar? Qual escolheria sem ser injusto? Por que uma

mereceria mais que outra ser preferida ou abandonada? Quando senhora Delaunay

declarou que sua existência inteira me pertence, que desejas, pois, que eu responda? É

preciso a banir, desenganar e deixar o desânimo e a dor? Quando senhora de Parnes está

ao piano e, sentado atrás de si, a vejo se entregar à nobre inspiração de seu coração.

Quando seu espírito eleva o meu, me exalta e me faz apreciar, pela simpatia, os mais

requintados gozos da inteligência, é necessário que eu lhe diga que se ilude e que tão

delicioso prazer é criminoso? É mister que eu transforme em ódio ou desprezo a

recordação dessas horas magníficas? Não, meu amigo. Mentirei dizendo a uma dessas

duas senhoras que não mais a amo ou que não a amei. Terei antes a coragem de as

perder juntas do que a de escolher uma.

Percebes que nosso estróina procedia como procedem todos os homens: Não

podendo se corrigir de sua loucura, tentava dar a aparência de razão. Entretanto havia

certos dias em que seu coração se recusava, pra seu pesar, ao duplo papel que

representava. Procurava perturbar o menos possível o repouso de senhora Delaunay.

Porém do orgulho da marquesa teve mais dum capricho a suportar. Essa mulher tem somente espírito e vaidade. Falava a mim a seu respeito, às vezes. Acontecia

também que, deixando o salão de senhora de Parnes, a ingenuidade da viúva o fazia

sorrir e achava que, por sua vez, ela possuía muito pouco orgulho e espírito. Ele se

lastimava de não gozar de liberdade. Algumas vezes um arrebatamento o fazia renunciar

a um encontro. Apanhava um livro e ia jantar sozinho no campo. Noutras ocasiões

amaldiçoava a contingência que se opunha a uma entrevista que solicitava. Senhora

Delaunay era, no íntimo do coração, a preferida. Porém ele ignorava tudo a respeito e

essa incerteza talvez durasse muito tempo se uma circunstância, aparentemente

insignificante, não o tivesse esclarecido de repente sobre seu verdadeiro sentimento.

Era o mês de junho e as tardes no jardim estavam deliciosas. A marquesa, se

sentando num banco de madeira perto da cascata, entendeu um dia de o achar duro.

Disse ela a Valentino:

— Darei presente a ti uma almofada.

Com efeito, no dia seguinte, na manhã, chegou uma elegante poltrona, acompanhada

de bela almofada de tapeçaria, da parte de senhora de Parnes.

Talvez te recordes de que senhora Delaunay trabalhava em tapeçaria. Havia um mês, Valentino a viu trabalhar constantemente numa confecção do gênero, cujo desenho ele

admirara. Não porque o desenho tivesse algo notável. Era, creio, uma coroa de flor,

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como em todas as tapeçarias do mundo. Porém as cores eram encantadoras. Aliás, o que

pode fazer uma mão amada que não consideremos uma obra-prima? Cem vezes, na

noite; perto da luz, o rapaz seguira com os olhos, sobre a talagarça,6 os hábeis dedos da

viúva. Cem vezes, no meio dum entretenimento adorável, parava, observando, em

religioso silêncio, enquanto ela contava os pontos. Cem vezes interrompera essa mão

fatigada e lhe infundira a coragem com um beijo.

Quando Valentino fez transportarem a poltrona da marquesa a uma pequena sala

contígua ao jardim, desceu àli e examinou o presente. Olhando de perto a almofada,

acreditou a reconhecer. A segurou, virou, pôs no lugar e se perguntou onde a vira.

Pensou: Estou doido. Todas as almofadas se parecem, e esta nada tem de extraordinário. Porém uma pequena mancha feita sobre o fundo branco atraiu, de

repente, sua atenção. Não havia como se enganar. Valentino fizera essa nódoa, deixando

cair uma gota de tinta no trabalho de senhora Delaunay, numa noite em que ele escrevia

perto.

Essa descoberta o deixou, como percebes, em grande estupefação. Pensou: Como é possível? Como a marquesa podia enviar a mim uma almofada feita por senhora Delaunay? Examinou ainda: Sem dúvida, eram as mesmas flores e cores. Reconheceu o brilho, a disposição. As tocou como pra ter certeza de que não ser ilusão.

E ficou suspenso, sem saber como explicar a si o que via.

Nem preciso dizer que mil conjeturas, cada uma menos verossímil que a outra, se

apresentaram ao espírito. Ora supunha que o evento pudesse fazer se encontrarem a

viúva e a marquesa, que estavam combinadas mutuamente, e que enviavam a almofada

em comum acordo, pra anunciar que sua perfídia estava desmascarada. Ou que senhora

Delaunay surpreendera sua conversação da véspera no jardim e desejara, pra o

envergonhar, executar a promessa de senhora de Parnes. De qualquer maneira se via

descoberto, abandonado pelas duas amadas ou, no mínimo, por uma. Depois de ter

passado uma hora sonhando, resolveu sair da incerteza. Foi à casa de senhora Delaunay,

que o recebeu como de costume e cujo semblante só exprimia um pouco de espanto por

o ver chegar tão cedo.

A princípio tranqüilizado por essa acolhida, falou algum tempo sobre coisas

indiferentes. Então, dominado pela inquietação, perguntou à viúva se a tapeçaria estava

terminada.

— Sim.

— Onde está?

Ante a pergunta senhora Delaunay se perturbou e enrubesceu.

— Está na casa do negociante. — Disse, muito depressa. Logo recuperou a calma e

acrescentou: — A dei pra montar. A receberei.

Se Valentino ficou assustado ao reconhecer a almofada, ainda mais se mostrou ao ver

a viúva se atrapalhar logo que falou no assunto. Todavia, não se atrevendo a fazer nova

indagação, com medo de se trair, saiu em seguida e foi à residência da marquesa. Porém

essa visita foi ainda menos proveitosa. Quando perguntou sobre a poltrona, senhora de

Parnes, como resposta fez ligeiro aceno de cabeça sorrindo, como se dissesse:

— Estou encantada porque te agrada.

Nosso imprudente entrou em casa, menos inquieto, é verdade, do que ao sair, mas

acreditando quase ter sonhado. Que mistério ou capricho da sorte ocultava essa singular

oferta? Uma faz a almofada e a outra a oferece a mim. Uma passa um mês trabalhando e, ao terminar, a outra se apossa do objeto. Essas duas mulheres jamais se viram e se entenderam pra me pregar uma peça que não parecem pressentir. Certamente havia com que torturar o espírito. Também o rapaz procurava

6 Talagarça: Pano grosso e ralo, no qual se borda. Nota do digitalizador

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de cem maneiras diferentes a chave do enigma que o atormentava.

Examinando a almofada, encontrou o endereço do negociante que a vendera. Num

pequeno pedaço de papel colado num ângulo, estava escrito: A Pai de Família, rua Delfina.

Desde que Valentino leu essas palavras, se julgou certo de chegar à verdade. Correu

à loja do Pai de Família e perguntou se naquela manhã venderam a uma senhora uma

almofada de tapeçaria, que ele desenhou e que reconheceram. As perguntas que fez em

seguida, pra saber quem fizera essa almofada e donde procedia, responderam somente

com restrição. Não conheciam a artífice. Na loja havia muitos trabalhos do gênero.

Enfim nada quiseram dizer.

Não obstante as reticências, percebeu logo, nas respostas do empregado, que

interrogava, um mistério do qual não suspeitava, assim como outros desconhecidos. É

que há em Paris grande número de mulheres, de moças pobres que, tendo na vida uma

posição conveniente e às vezes distinta, trabalham, em sigilo, pra viver. Os

comerciantes dessa maneira empregam, e mediante modesta remuneração, hábeis

profissionais. Muitas famílias que vivem sobriamente, e a cuja residência, no entanto, se

vai tomar chá, são sustentadas pelas filhas da dona da casa. São vistas manejando, sem

parar, a agulha, porém não são bastante ricas pra usarem o que fazem. Quando acabam

de bordar o filó, o vendem pra comprar morim.7 Aquela, filha de nobres avós, orgulhosa

de seu título e nascimento, marca lenço. Esta, que admiras no baile, tão divertida, tão

garrida e tão leve, faz flores artificiais e paga com seu trabalho o sustento de sua mãe.

Outra, um pouco mais rica, procura ganhar com que aumentar seus atrativos. Esses

chapéus inteiramente confeccionados, esses panos bordados que são vistos nas vitrinas

das lojas e que o transeunte negocia ociosamente, são obra secreta, às vezes piedosa, de

mão desconhecida. Poucos homens concordariam com esse serviço, ficariam pobres por

orgulho em semelhantes casos. Poucas mulheres o recusam, quando têm necessidade, e

das que o fazem, nenhuma corou. Acontece que uma jovem encontra uma amiga de

infância que não é rica e que tem precisão dalgum dinheiro. Impossibilitada de poder

lhe servir, lhe indica seu recurso, encoraja, cita exemplo, a leva à casa do comerciante,

lhe arruma uma pequena clientela. Três meses depois a amiga está à vontade e passa a

outra o mesmo trabalho. Esses fatos ocorrem todos os dias. Ninguém sabe deles e é

melhor assim, porque os maledicentes que enrubescem pelo trabalho encontrariam logo

um meio de desonrar o que há no mundo de mais honrado. Valentino indagou:

— Quanto tempo, mais ou menos, é necessário pra fazer uma almofada como a da

qual falo? Quanto recebe a artífice?

— Senhor, pra fazer uma almofada como aquela, são necessários dois meses. Seis

semanas, mais ou menos. A profissional paga sua lã, bem entendido. Por conseguinte, é

tanto menos que ela recebe. A lã inglesa, linda, custa 10 francos a libra. A papoula e a

cereja, custam 15 francos. Presta almofada são precisas 1,5 libra de lã, no máximo, e

pagam 40 ou 50 francos à hábil artífice.

IX Quando Valentino, de volta aos penates, ficou diante de sua poltrona, o segredo que

acabara de conhecer produziu efeito inesperado. Pensando que senhora Delaunay

empregara seis semanas pra fazer essa almofada pra ganhar 2 luíses, e que senhora de

Parnes a adquirira enquanto passeava, ele experimentou um estranho aperto no coração.

A diferença que o destino estipulara entre essas duas mulheres se lhe mostrava, nesse

momento, sob forma tão palpável, que não pôde se esquivar de sofrer. A idéia de que a

7 Morim: Pano de algodão, usado especialmente pra roupa de baixo e roupa branca. Também chamado madapolão. Nota do

digitalizador. http://www.kinghost.com.br/

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marquesa chegaria, se apoiaria neste móvel e roçaria o braço nu sobre o vestígio das

lágrimas da viúva era insuportável presse homem. Apanhou a almofada e a enfiou num

armário. Pensou: Que julgue o que quiser a respeito. Esta almofada me faz pena e não a posso deixar ali.

Senhora de Parnes chegou logo depois e se admirou de não ver seu presente. Em vez

de procurar uma desculpa, Valentino respondeu que não a desejava e que jamais a

utilizaria. Pronunciou essas palavras em tom brusco e sem refletir.

— Por quê?

— Porque me aborrece.

— Em que te desagrada? Disseste o contrário ainda nesta manhã.

— É possível. Entretanto me aborrece. Quanto custou?

— Eis uma bela pergunta! O que te passa na cabeça?

É preciso saber que havia alguns dias Valentino soubera, pela mãe de senhora

Delaunay, que ela estava bastante constrangida. Se tratava duma conta de aluguel a

pagar a um proprietário avarento, que ameaçava ao menor atraso. Valentino, não

podendo fazer, mesmo por uma bagatela, ofertas de serviço, que não se deixasse

entender. Não tinha outro partido a tomar além de ocultar sua atribulação. Após o que

revelara o empregado do Pai de Família, era provável que essa almofada não fosse

suficiente pra tirar a viúva do embaraço. Não era culpa da marquesa. porém a mente

humana é, às vezes, tão extravagante, que o moço quase pretendeu informar a senhora

de Parnes do preço módico de sua compra e, sem atinar com a inconveniência da

pergunta:

— Custou 40 ou 50 francos. — Falou. com azedume — Sabes quanto tempo levaram

pra fazer?

— Se. Tanto melhor porque a confeccionei.

— Tu!

— Eu, e por ti gastei nisso 15 dias. Vejas se me deves algum reconhecimento.

— 15 dias?, senhora. Mas são necessários dois meses de trabalho assíduo para

terminar semelhante confecção. Levarias seis meses pra terminar, se o empreendesses.

— Pareces bem a par do assunto. Donde tanta experiência?

— Duma artífice que conheço e que certamente não se engana.

— Muito bem! Essa artífice não disse tudo. Ignoras que nessas coisas o mais

importante são as flores, e que elas estão preparadas nas casas dos negociantes de

talagarça, onde o fundo é cheio. O mais difícil resta a fazer, porém o mais demorado e o

mais aborrecido está feito. Foi assim que comprei a almofada, que não me custou 40 ou

50 francos, porque esse fundo nada significa. É um trabalho de operária ao qual são

necessárias apenas a lã e as mãos.

A palavra operária não passara despercebido a Valentino.

— Estou bem pesaroso. Porém não o fundo nem as flores são teus.

— E de quem, então? Provavelmente da operária que conheces?

— Talvez.

A marquesa pareceu hesitar um instante entre a cólera e a vontade de rir. Tomou o

último partido e, se entregando ao bom-humor:

— Então digas, te suplico, o nome de tua misteriosa operária, que te fornece tão boas

lições.

— Se chama Júlia. — Respondeu o rapaz. Seu olhar e o som da voz

lembraram,subitamente, a senhora de Parnes que ele lhe dissera o mesmo nome no dia

em que falara duma viúva que amava. Como no momento o acento de verdade com que

respondera perturbou a marquesa, ele se recordou vagamente da história dessa viúva,

que usara como pretexto. Porém assim repetido esse nome pareceu sério.

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— Se é uma confissão que me fazes. Não é correta nem polida.

Valentino não respondeu. Percebia que seu primeiro movimento o levara muito longe

e começava a refletir. A marquesa observou silêncio algum tempo. Esperava uma

explicação e Valentino pensava no meio de evitar dar uma. Finalmente se decidiria a

falar e talvez procurar se retratar, quando a marquesa, perdendo a paciência, se ergueu

inopinadamente:

— É uma rusga ou uma ruptura? — Inquiriu em tom tão violento, que Valentino não

pôde conservar o sangue frio.

— Como queiras.

— Muito bem! — Disse a marquesa, e saiu. Cinco minutos depois bateram na porta:

Valentino abriu e se deparou com senhora de Parnes, de pé no patamar, com os braços

cruzados, enrolada em mantilha e apoiada no muro. Estava com assustadora palidez e

preste a desmaiar. A tomou nos braços, levou à poltrona e se esforçou pràs tranqüilizar.

Pediu perdão pelo mau-humor, suplicou esquecer a cena irritante e se acusou dum

destes acessos de impaciência, cuja razão é impossível esclarecer.

— Não sei o que tinha nesta manhã. Uma triste notícia que recebi me indignara.

Procurei questionar contigo sem motivo. Somente penses no que disse a ti como um

momento de loucura de minha parte.

— Não falemos mais nisso. — Disse a marquesa, voltando a si — e procurares

minha almofada. Valentino obedeceu com repugnância. Senhora de Parnes a jogou no

chão e pousou os pés sobre ela. Esse gesto, como calculas, não foi agradável ao rapaz,

que franziu a sobrancelha sem querer e pensou que, depois de tudo, acabava de ceder,

por fraqueza, a uma comédia feminina.

Ignoro se tinha razão e também por que obstinação pueril a marquesa quis, a toda

força, obter esse pequeno triunfo. Não é sem exemplo que uma mulher, e mesmo uma

mulher de espírito, não deseja se submeter em semelhantes casos. Mas pode ser que

esse seja um mau cálculo de sua parte e que o homem, após ter obedecido, se arrependa

da complacência. É assim que uma infantilidade se torna grave quando o orgulho se

mescla e que às vezes nos confundimos por ainda menos que uma almofada bordada.

Enquanto a senhora de Parnes, retomando o ar gracioso, não dissimulava a alegria,

Valentino não podia desviar o olhar da almofada, que, na verdade, não fora feita pra

servir de tamborete. Contra seu costume, a marquesa viera a pé, e a tapeçaria da viúva,

repelida logo ao meio do quarto, mostrava a impressão empoeirada do borzeguim que a

pisara. Valentino ergueu a almofada, a limpou e colocou sobre uma poltrona.

— Ainda discutiremos? — A marquesa falou sorrindo — Creio que me deixarás à

vontade e que a paz está concluída.

— Esta almofada é branca. Por que a sujar?

— Prà usar e, quando estiver manchada, senhorinha Júlia nos fará outras.

— Ouças, senhora marquesa. Compreendes muito bem que não sou tão ingênuo pra

dar importância a um capricho nem a uma bagatela dessa natureza. Se é verdade que o

desgosto que sinto pelo que praticas possa ter algum motivo que ignoras, não procures o

aprofundar, será o mais acertado. Te achaste indisposta há pouco. Não indago se esse

desmaio foi muito profundo. Obtiveste e o que desejaste. Não experimentes mais.

— Porém talvez compreendas que eu não sou tão néscia pra dar a essa ninharia mais

importância que tu e, se me é necessário insistir, também concluirás que eu desejaria

saber até que ponto é uma bagatela.

— Seja. Mas eu pediria pra responder se é o orgulho ou amor que te impele.

— Um e outro. Ignoras quem sou: A inconstância de minha conduta contigo te deu

de mim uma opinião que te deixo, porque com ninguém a partilharás. Penses em minha

estima como te agradar e sejas infiel se te parecer bem, mas evites me ofender.

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— É talvez o orgulho que fala, senhora. Porém convenhas, então, que isso não é

amor.

— De nada sei. Se não sou ciumenta é certo que é por desprezo. Como só reconheço

a senhora de Parnes o direito de vigilância sobre mim, não pretendo vigiar alguém. Mas

como te atreve a me repetir um nome que deverias calar?

— Por que o silenciaria quando me interrogas? Esse nome não pode fazer corar a

pessoa a quem pertence nem a quem o pronuncia.

— Muito bem! Então acabes de pronunciar.

Valentino hesitou um momento.

— Não. Não pronunciarei em consideração àquela que o possui.

A marquesa se levantou ante essas palavras, apertou a mantilha em torno de suas

formas e disse em tom gelado:

— Penso que foram me procurar. Me conduzas até minha carruagem.

X Marquesa de Parnes era mais que orgulhosa. Era odiosa. Habituada desde a infância

a ver todos os caprichos satisfeitos, abandonada pelo marido, mimada pela tia, elogiada

pelo mundo que a envolvia, o único conselheiro que a dirigia, no meio duma liberdade

tão perigosa, era essa ousadia nativa que triunfava mesmo sobre as paixões. Chorou

amargamente ao entrar em casa. Depois fez vedar a porta e refletiu no que tinha a fazer,

disposta a não sofrer mais.

Quando Valentino, no dia seguinte, foi ver senhora Delaunay, acreditou perceber que

era seguido. Era, efetivamente, e a marquesa logo soube da residência da viúva, seu

nome, e das visitas freqüentes que o rapaz fazia. Não quis se deter nesse ponto, e

inverossímil que possa parecer o meio do qual se serviu, não é menos certo que o

empregou e teve êxito.

Às 7h da manhã chamou a camareira, mandou essa jovem trazer um vestido de linho,

um avental, um lenço de algodão e ampla touca debaixo da qual escondeu, da melhor

maneira possível, seu rosto. Assim disfarçada, cum cesto sob o braço, foi ao mercado

dos Inocentes. Era a hora em que senhora Delaunay costumava ir até ali, e a marquesa

não procurou muito tempo. Sabia que a viúva se parecia consigo e logo percebeu, diante

da banca duma fruteira, uma moça quase de seu porte, de olhos negros e de modesta

conduta, negociando cereja. Se aproximou:

— É senhora Delaunay a quem tenho a honra de falar?

— Sim, senhorita. O que desejas?

A marquesa não respondeu. Sua fantasia estava satisfeita e pouco se importava que

se espantassem com isso. Lançou sobre a rival um olhar estúpido e curioso, a examinou

minuciosamente dos pés à cabeça, depois se voltou e desapareceu.

Valentino não ia mais à casa de senhora de Parnes. Recebeu dela um convite de baile

impresso e acreditou dever ir até lá por conveniência. Quando entrou no palacete ficou

surpreso de ver somente uma janela iluminada. A marquesa estava só e o aguardava.

— Perdoes. O pequeno ardil que empreguei pra te fazer vir. Pensei que não

responderias, talvez, se eu escrevesse pra solicitar um quarto de hora de distração e

tenho necessidade de dizer uma palavra, suplicando responder sinceramente.

Valentino, que naturalmente não guardava rancor e em cujo coração o ressentimento

passava tão depressa como entrava, pretendeu dirigir a conversação a um tom jovial e

começou a galantear a marquesa sobre seu suposto baile. Ela lhe cortou a palavra,

dizendo:

— Vi senhora Delaunay.

E ajuntou, vendo Valentino mudar de fisionomia:

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— Não te assustes. A vi sem que soubesse quem sou e de maneira que não pudesse

me reconhecer. É linda e é verdade que é um pouco parecida comigo. Fales

francamente: Já a amavas quando me enviaste uma carta que foi escrita pra si?

Valentino hesitava.

— Fales, fales sem receio. É o único meio de provar que me estimas.

Pronunciou com tanta tristeza que Valentino emudeceu. Se sentou perto e narrou

fielmente tudo que se passara no coração.

— Já a amava e amo ainda. É a verdade.

A marquesa respondeu, se erguendo. Se aproximou dum espelho e enviou a si um

olhar namorador:

— Nada mais é possível entre nós. Fiz por ti a única ação de minha vida em que não

refleti. Não me arrependo. Porém desejo não estar só pra me recordar dela algumas

vezes.

Tirou do dedo um anel de ouro onde estava incrustada uma água-marinha.

— Tomes. Leves isto pelo amor que tem por mim. Esta pedra se assemelha a uma

lágrima.

Quando apresentou o anel ao rapaz, ele quis beijar sua mão.

— Tomes cuidado. Penses que vi tua adorada. Não recordemos tão cedo.

— Á! Ainda a amo mas sinto que sempre te amarei.

— Acredito. E talvez seja por essa razão que amanhã partirei à Holanda, onde me

juntarei a meu marido.

— Te seguirei. Não duvides. Se deixares a França partirei no mesmo instante.

— Tomes cuidado com isso. Serás minha perda e inutilmente tentarás me rever.

— Pouco me importa. Se eu precisar te seguir a 8km de distância, provarei, ao menos

assim, a sinceridade de meu amor e acreditarás nele, embora contrafeita.

— Porém afirmo que creio. — Respondeu senhora de Parnes, cum sorriso maligno:

— Adeus, pois. Não faças essa loucura.

Estendeu a mão a Valentino e entreabriu, pra se retirar, a porta do dormitório.

— Não cometas essa loucura. — acrescentou, com volubilidade — Ou, se por acaso

a fizeres, escreverás a mim uma linha a Bruxelas, porque de lá podemos mudar de rota.

A porta se fechou sobre essas palavras e Valentino ficou só e saiu do palacete na

maior perturbação.

Na noite não pôde dormir e no dia seguinte, ao pôr-do-sol, ainda não tomara decisão

sobre a conduta a seguir. Um bilhete muito triste, de senhora Delaunay, recebido ao

acordar, o abalara sem o decidir. A idéia de deixar a viúva, seu coração sangrava. Porém

ao pensamento de seguir a pista da audaciosa e casquilha marquesa ele parecia

estremecer de desejo. Observava o horizonte, ouvia rodarem os veículos. As doidas

ações dos tempos idos passavam na memória. O que direi? Pensava na Itália, no prazer,

num bocado de escândalo, em Lozane dissimulado em postilhão.8 Noutro lado, sua

memória inquieta lembrava os receios tão inocentemente declarados, numa noite, por

senhora Delaunay. Que medonha recordação ele lhe deixaria! Repetia a si as palavras da

viúva: Será necessário que um dia eu tenha horror a ti?

Passou o dia inteiro fechado e, depois de esgotar todos os caprichos, todos os

projetos fantásticos da imaginação, pensava:

— Então o que desejo? Se quis escolher entre essas duas criaturas, por que a

incerteza? E se as amo ambas igualmente, por que sou escravo de minha própria

vontade na necessidade de perder uma ou outra? Estou louco? Tenho juízo? Sou pérfido

8 Postilhão: sm (antigo) Encarregado do serviço de posta. Homem que transporta, a cavalo, notícia e correspondência. Por

extensão: Mensageiro. Nota do digitalizador. http://www.kinghost.com.br/

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ou sincero? Tenho muito pouca coragem ou muito pouco amor?

Se colocou ante sua mesa e, apanhando o desenho que fizera, considerou atentamente

o retrato infiel que se assemelhava com suas duas amadas. Tudo o que lhe acontecera

havia meses foi representado em seu espírito: O pavilhão e o quartinho, vestido de

indiana e as brancas espáduas, os grandes jantares e os pequenos almoços, o piano e a

agulha de tricotar, os dois lenços, a almofada bordada. Tudo reviu. Cada hora de sua

vida lhe dava um conselho diferente. Finalmente pensou:

— Não. Não é entre duas mulheres que tenho de escolher, porém entre dois

caminhos que eu quis seguir ao mesmo tempo, e que não podem conduzir ao mesmo

alvo. Uma é a loucura e o prazer, a outra é o amor. Qual das duas devo preferir? Qual

leva à felicidade?

Eu disse, ao iniciar este conto, que Valentino possuía uma mãe a quem amava

ternamente, que entrou no quarto enquanto ele estava mergulhado nesse pensamento.

— Meu filho, te vi triste nesta manhã. O que tens? Posso ajudar? Tens necessidade

de dinheiro? Se não puder te prestar algum serviço, posso ao menos saber de tuas

mágoas e tentar consolar?

Agradeço. Fazia projeto de viagem e me perguntava o que nos deve fazer feliz: O

amor ou o prazer. Esquecera a amizade. Não deixarei meu país. E a única mulher a

quem desejo abrir meu coração é aquela que o pode repartir contigo.

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Empalhado Armand Silvestre

I bordo o chamavam Tomaz, quando o trouxeram da América. Era um

louro, dessa variedade de papagaio particularmente tagarela, de

tamanho médio, com bela plumagem brilhante, acinzentada, uma

cercadura cor-de-rosa nas asas e longa cauda escarlate. A pequena língua, grossa e

negra, era tão bem articulada no bico adunco, que a ave tirava dela todos os sons

imagináveis, desde o tinido cristalino de copos que se entrechocam até o ruído surdo do

canhão distante. Mas o triunfo nesse gênero de imitação era o Com mil diabos! do timoneiro, que repetia, a propósito de tudo, como o próprio timoneiro. Quando

desembarcou no Havre, vindo da América, sua pátria, foi com um Com mil diabos! que saudou a nossa, batendo alegremente as asas.

Tomaz não teria queixa do exílio. Quando madame des Etoupettes o comprou pra sua

filha Amélia, ela saltou de alegria como uma criança, embora tivesse completado

dezoito anos na véspera. Muito em breve, do humilde tugúrio de madeira do qual o

volátil fora o Sílvio Penico, ela o fez passar a uma gaiola magnífica, com varões

dourados, e começou a oferecer as iguarias mais variadas, que a inteligente ave gostava

de saborear sobre os próprios lábios frescos e róseos da dona, pelo que o julgo muito

mais esperto do que se possa imaginar. Foi uma adoração recíproca, do pássaro

reconhecido pela benfeitora, e da moça pelo lindo companheiro, a quem fazia questão

de ensinar as mais belas frases do mundo. Tomaz se prestava a isso de boa-vontade.

Mas nunca deixava de terminar a frase mais graciosa por seu eterno Com mil diabos!, o que diminuía um pouco seu encanto.

— Esse bicho é muito mal-educado! — Não podia deixar de dizer madame des

Etoupettes.

— Não compreendes, mamã. — Respondia, melancolicamente, Amélia, fechando,

entre os belos lábios, o bico incongruente do malcriado.

Casaram Amélia com um de seus primos. Ó! Um perfeito cretino do gênero

esportista, impertinente, ignorante, truculento, visconde Guy de la Mauve. Como uma

criatura tão encantadora consentiu se unir a tal idiota? Talvez porque ignorasse que o

idiota fosse ciumento. Sim, meus caros amigos de ambos os sexos, meus amáveis

leitores e leitoras, meus excelentes discípulos, aquela desagradável personagem tinha a

pretensão de ser o único amado por uma moça encantadora com a metade de sua idade,

cuja cabeleira loura e olhos de cor traiçoeira seriam a inspiração e a dor de vinte poetas

líricos a cujo número eu pertenceria de boa-vontade. Pretensioso palhaço! Vão sei o que

me impede de largar aqui esta história e começar outra, pra não ter de falar dum

indivíduo tão tolo! Mas não! Como representas nela um papel ridículo, acabarei de

contar, pra tua vergonha, Otelo de la Mauve!

Ciumento! O visconde era ciumento! E de quem?, se me fazem favor! Sua esposa era

pura como um lírio, como a água de nascente, como o céu de maio! Era um anjo que o

senhor regedor, míope demais, sem dúvida, pra perceber as asas, unira àquele centauro

degenerado. Ciumento de quem?, então. Á, meu Deus! De Tomaz! Tomou primeiro

birra ao pobre papagaio por causa das carícias que Amélia lhe prodigalizava. E que

birra, meus bons amigos! A pobre ave não podia falar, assobiar, cantar, imitar o tinido

dos copos ou o estampido do canhão, sem que aquele grotesco tivesse verdadeiros

ataques nervosos. Um dia, louco de raiva, deu um tapa no papagaio, que lhe lançou ao

AA

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rosto um ameaçador Com mil diabos! que quase o fez recuar. Porque era poltrão como

um coelho, por muito nobre que fosse.

— Senhora, — disse a Amélia, com a voz estrangulada pela cólera —percorrerei, durante oito dias, as estradas, em minha bicicleta de Veneza, e se, ao voltar, não

encontrar esse maldito papagaio empalhado, juro que o mandarei assar e te obrigarei a

comer o coração.

Senhor visconde conhecia os clássicos e a sombria lenda de François Chateaubriand.9

Amélia chorou muito primeiro, depois desatou a rir como uma louca, a uma idéia

brilhante que tivera. Mandou vir de Paris, porque estamos no castelo de Mauve, um

papagaio empalhado, da mesma raça que o seu e, escondendo a gaiola de Tomás num

celeiro onde sabia que o marido nunca punha os pés, continuou a fazer visita furtiva ao

favorito e a passar, na sua espiritual companhia, as horas de lazer que lhe dava o gosto

esportivo de senhor de la Mauve.

Quando ele voltou do passeio, com as pernas em mau estado e escanchadas como as

do Colosso de Rodes, a cabeça metida entre os ombros, sujo de suor e de poeira, teve

um sorriso malvado de satisfação, ao ver, a um canto da lareira, sua falsa vítima

empalhada.

— Ao menos nunca mais dirás Com mil diabos!

9 François-René de Chateaubriand (Saint-Malo, 4 de setembro de 1768 — Paris, 4 de julho de 1848), nome completo François

René Auguste de Chateaubriand, também conhecido como visconde de Chateaubriand, foi um escritor, ensaísta, diplomata e

político francês que se imortalizou pela magnífica obra literária de caráter pré-romântico. Pela força da imaginação e brilho do

estilo, que uniu a eloqüência ao colorido descritivo, Chateaubriand exerceu uma profunda influência na literatura romântica de raiz

européia, incluindo a lusófona.

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Os pais da horizontal Debut de Laforest

eu homem, eu deveria ter escrito, e Tonieta nos esperaria

na estação.

— Ora! Temos o endereço da pequena.

— Entrar em casa desse senhor e dessa senhora sem os conhecer! Pensas nisso? Os

patrões dirão que os pais não fazem cerimônia...

— Tens sempre medo. Deixes correr o marfim. Abraçaremos Tonieta, e tudo se

explicará.

— Digo que faremos uma tolice!

E enquanto o trem rolava entre colinas floridas, colheitas multicores e cursos dágua

iluminados por um sol brilhante, dois velhos camponeses, tio Firmino e tia Joaninha

Bigassou, apertados um contra o outro num banco de terceira classe, trocavam, em sua

algaravia, frases indecisas. Vinham do confim do Limusã, da vila de Bordes, e iam a

Paris, prà abertura da exposição. O rosto escuro, ossudo e escanhoado, a espinha

dobrada em ângulo reto, pelo esforço do trabalho, Firmino usava um grande chapéu de

feltro e vestia, sob a blusa azul, jaqueta e calça de lã cinzenta. Tinha grandes mãos

robustas, marcadas pelas cicatrizes da ferramenta, e não parecia muito paciente nem

muito gentil, malgrado a inclinação do torso e a humildade servil do olhar. Maior que o

marido, e igualmente seca de membro e escura de rosto, envolta em longa capa, cujo

capuz caído deixava ver uma touca de linho afunilada e tesa como uma mitra de bispo, a

mulher tinha, entre os joelhos ou junto de si, um imenso guarda-chuva de algodãozinho

encarnado, embrulho e um cesto com ave.

Agora, estavam graves e concentrados, e no meio dos túneis, quando apenas

tremeluzia a luz vaga e incerta das lâmpadas, seus rostos terrosos se destacavam

vigorosamente, evocando os retratos de Ribot, com a majestade e a força das sombras

acumuladas.

Gente boa e pobre, os Bigassou. Lavradores de pais a filhos, e vinculados às terras de

Bordes, com prole numerosa, recebiam de boa-vontade algum auxílio da filha mais

velha, a parisiense. A julgavam empregada, com bons patrões. Não teriam aceitado o

dinheiro duma vagabunda, pois Firmino declarava que antes queria ver a filha morta do

que levando uma vida de puta sem-vergonha.

Aquela viagem nada custava aos pais. Tonieta acabava de enviar um vale postal,

insistindo pra que a família avisasse o dia e a hora da chegada. Buscaria os velhos,

alojaria num hotel e pagaria a despesa. Mas vejam-só! Firmino resolvera aproveitar as

reduções tão vantajosas dum trem turístico, e partiram imediatamente.

Às 5h da tarde os Bigassou desembarcavam na estação de Orleãs e, habituados às

cargas e às caminhadas das feiras distantes, carregando as bagagens e, especialmente, o

cesto com ave, fizeram a pé o caminho até a rua Constantinopla. O lavrador perguntou:

— Tonieta Bigassou? — Não temos disso aqui. — Grunhiu a porteira, medindo de alto a baixo o basco.

— Ele insistiu:

— Tonieta Bigassou, de Bordes, a empregada dos senhores...

— Que senhores?

Joaninha e Firmino ignoravam o nome dos patrões de Tonieta, e a porteira se

lembrava que, sob o pseudônimo de Bigassou, senhorita Antonieta de Bordes, a melhor

locatária, recebera carta da província.

--MM

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— Seria senhorita de Bordes?

— Sim. — Responderam ambos. É de Bordes.

— E és a mãe?

— Sou, sim, senhora.

— E o pai?

Bigassou cumprimentou e disse:

— A senhora está contente com a garota?

— Que senhora?

— A patroa de Tonieta.

— Isso não é comigo. No primeiro andar, a porta do meio.

Subiram, lentamente, os degraus, e Joaninha tirou os tamancos, e depois bateu. Uma

jovem e elegante camareira abriu.

— O que quereis?

— Tonieta, senhora. Somos os pais de Tonieta.

— De senhorita Antonieta?

— Sim, senhora.

A mãe se inclinava. Firmino girava o chapéu entre os dedos nodosos.

Informada da visita, a horizontal, uma morena de olhos negros de veludo, lábios

vermelhos e úmidos, pele amorosa e palpitante, se sentiu tremer. Conhecia a rudeza do

pai, seu desprezo pelas decaídas, as devassas. Certamente lhe bateria, mataria, se

adivinhasse o segredo da falsa empregada. Ao terror de senhorita de Bordes se

misturava o desejo de abraçar e acariciar os velhos que amava com toda a ternura.

Então a hetera arrancou o roupão e vestiu seu vestido mais modesto.

— Malvina, dês a mim um avental. Sou a empregada e tu a patroa.

— Senhora, está brincando?

— Nada disso. Vamos, depressa!

De avental branco, ar modesto, a horizontal saltou ao pescoço dos aldeãos.

— Os patrões me autorizaram a vos preparar um excelente jantar. Comeremos na

cozinha. Em seguida vos levarei ao melhor hotel.

Se puseram à mesa, e a parisiense, radiante com a comédia de virtude, repousava de

toda devassidão, sob o honesto olhar do velho. Se sentia rejuvenescida, purificada,

santificada. Uma espécie de embriaguez a invadia. Os queridos pais, aqueles modelos

de honra e de trabalho, não se veriam forçados a corar da vendedora de prazer. Nunca o

dinheiro de Paris seria suspeito na vila de Bordes! Antonieta pedia notícia dos

irmãozinhos, irmãzinhas, vizinhos, bois e carneiros. Os Bigassou a achavam

aformoseada, encantadora, soberba.

À sobremesa, Firmino, um pouco tocado, exprimiu a idéia de agradecer à patroa de

Tonieta, de lhe oferecer seu casal de galinha, e Malvina, cum vestido de cerimônia,

recebeu o presente e os testemunhos de gratidão, cheia de tato e reserva.

Deslumbrados pela magnificência dos corredores, bem encerados, os Bigassou

desciam, seguidos por Antonieta, quando se cruzaram na escada cum senhor gordo, um

dos amantes de senhorita de Bordes.

— É o patrão, o marido da patroa. — Gemeu a horizontal, temendo a cólera paterna.

Firmino abordou o desconhecido, de chapéu na mão.

— Estás satisfeito com a nossa Tonieta?, senhor.

— Muito satisfeito, muito satisfeito. — Balbuciou o homem, interdito.

Os Bigassou saíram. Quando chegavam a um hotel o pai se voltou à filha.

— Teu patrão tem seu pé-de-meia?

— Ó! Tem, sim. E bem cheio!

— Boa casa... Boa casa...

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Se curvou mais a ela, e murmurou ao ouvido:

— Dormes com o patrão?

— Eu?! Não... Não... Juro...

— Pois bem. Fazes mal, pequena.

— Antigamente dizias As decaídas... — Sem dúvida. As decaídas da rua, a rafaméia,

10 mas quando se está numa bela

casa... Fazes mal, pequena. Te lembres de pé-de-meia. Não é?, minha mulher.

E Joaninha concluiu, friamente:

— Nunca se sabe o que pode acontecer. Mais vale prevenir a remediar. Durmas

consigo, Tonieta, durmas consigo...

... A corrompida de Paris, de Sodoma e de Gomorra teve um gesto de nojo, deixou os

dois velhos pícaros e sua moral no meio da rua e fugiu.

10 Rafaméia: sf (de rafa) Camada social inferior, plebe. (Ceará) Miséria, pobreza extrema. Nota do digitalizador.

http://www.netdicionario.com.br/

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Joana de la Tourduneuf Pedro Garcias

enhor Alfredo Bondel!

— Senhora minha sogra?

— Te aproximes.

— Pronto, senhora minha sogra.

— Dentro de três dias serás marido de minha filha.

Terás a grande honra de ficar pertencendo à grande família dos Tourduneuf. Bem sei que tuas maneiras, nome, educação, não estão à altura dessa união. Mas minha filha Joana, educada nos grandes princípios, te educará. Se sente orgulhosa dos antepassados.

Não ignoras que descende de Joana, a donzela de Orleãs!11 Havia mesmo a intenção de fazer figurar esse último título na assinatura do contrato mas um de nossos amigos nos disse que ela o era bastante pra não se tornar necessário proclamar, e que escrever Joana, a donzela, seria um pleonasmo.

— Senhora minha sogra, ao dar este passo, ao pedir a mão da senhorita de la

Tourduneuf, confesso que...

— Quando se tem a infelicidade de se chamar, como tu, Alfredo Bondel, de ter

nascido sem antepassado, sem título, não se deve ter pretensão. Pois bem, saibas,

Alfredo, que é essa ausência de pretensão que deve tua entrada em nossa família. Eu

poderia escolher. Os viscondes afluíam, os barões, os marqueses pululavam. Conheço

mesmo um príncipe, que se atirou a meus pés pra obter a mão de Joana.

— Fui inflexível. Disse a minha filha: Só te casarás com um plebeu, um filho do nada! E por isso te escolhemos. Sabes por quê? Porque é necessário caminhar com a época! Mas entraria aqui em consideração espiritual demais pra ti. Mais tarde, quando a

força de ter convivido conosco, tua inteligência se tiver desenvolvido, então

conversaremos. Por enquanto, te baste saber que não te casarás com Joana se não te

submeteres a minhas ordens.

— Ó, senhora minha sogra, juro...

— Nada de juramento. Vamos aos fatos. Facta manent, verba volant.12 Sabes

latim?

— Não, senhora minha sogra.

A condessa Adelaide Virgínia Vitorina de Tourduneuf, viúva de Latour, ex-

fabricante de gravata de mola metálica, ergueu os braços ao céu, lançou sobre o genro

um olhar de soberano desprezo, soltou um suspiro, e exclamou:

— Nem fala latim! É preciso amarmos muito a igualdade, pra sacrificarmos assim

nosso brasão!... Um tone sobre azul!13

Como um 9 sobre o bacará! Porque, te lembres

que é um 9, meu caro senhor! Alguns invejosos poderão dizer que é um laço de gravata!

É mentira!

Se abriu a porta. Uma bela moça entrou bruscamente, tomando uma atitude mais que

aristocrática ao perceber Alfredo Bondel, que se levantou e ficou apoiado na beira da

cadeira, numa postura cheia de humildade, a cabeça baixa, como na igreja, no momento

da elevação, porque aquela que entrou é Joana de la Tourduneuf, sua noiva!

Se não é bonita, em compensação é muito imponente! Se diria que caminha trazendo

sobre a cabeça uma coroa mal segura.

11 Joana Darco, Jehanne d'Arc 12 Facta manent, verba volant: As palavras voam, os fatos permanecem. Nota do digitalizador 13 Tone, almadia: Embarcação comprida e estreita, em uso na Ásia e África. Nota do digitalizador. http://www.kinghost.com.br/

--SS

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É loura-palha, comprida, seca e pálida. Mas Alfredo Bondel, deslumbrado,

fascinado, a achou soberba.

A vendo, um sentimento infinito de orgulho, de mistura com o amor mais respeitoso,

fez palpitar o coração.

Para ele, que é nada, para ele, que só tem 500 mil miseráveis francos de dote, aquela

linda moça!...

Na noite de núpcia julgará se deitar com toda a nobreza da França.

A mãe prosseguiu:

— Preveniste o tabelião?

— Preveni, minha nobre mãe.

Consente?

— Consente em quê?

— Num subterfúgio, meu genro, que é tempo de lhe comunicar. Se falasse latim a

coisa pareceria clara. Mas como és um ignorante, explicarei em língua vulgar:

Foi combinado entre nossos parentes, que em vosso contrato de casamento não figurará título nosso.

Será lavrado sob os nomes plebeus de... Joana Virgínia Latour, filha de Francisco Latour, fabricante de gravata, e de Vitória Latour, née Moulagaufre.

Não faças objeção. Está decidido. Não quisemos te humilhar. Contudo não esqueças o sacrifício que fazemos, a ti e à república! Está dito. Te levantes. Acabou.

● Se realizou o casamento! Ainda se lembram, em Clamecy, onde as mesas estavam

permanentemente servidas no relvado do castelo, do vestido de noiva de Joana, de seu

ar extra-nobre e da alegria contida de Alfredo Bondel.

Depois da cerimônia... a mãe chamou Alfredo ao vão duma janela.

— Agora, meu genro, o que tencionas fazer nesta noite?

— Minha querida sogra, tenciono fazer minha esposa muito feliz.

— O que queres dizer com essa indecência?

— Mas, minha...

— Tuas malas estão prontas?

— Minhas malas? — Reservaste uma mala-posta?

— Que mala-posta?

— Como, quê mala-posta? Tencionas te portar como um rústico, quer dizer, dormir

simplesmente em nossa casa? Fiques sabendo, senhor, que é costume na alta roda, a

nossa!, fugir com a noiva depois da festa e partir em viagem de núpcia. Felizmente

pensei em tudo. Eis meu itinerário: Ireis diretamente a Nevers, onde tomareis a ferrovia

até Burgos. Chegareis até lá no trem 85, às 11:26h. É uma boa hora. Escolhi Burgos pro

sacrifício porque é uma cidade severa, onde encontrareis a calma e o recolhimento

necessários ao ato matrimonial. Conheces Burgos?

— Não. Mas conheço Nevers. Quando viajava por conta do papá...

— Está bem! Isso chega!

— Me hospedava sempre no hotel Coelho que não tem confiança.

— Está bem, já disse. Isso chega. Nada de reflexão. Não gosto delas. Vás!

E Alfredo, um pouco aturdido, se viu, na noite de núpcia, numa carruagem que o

levou, com a cara-metade, na estrada de Clamecy a Nevers.

O tempo estava nublado e tristonho. Um chuvisco penetrava através dos postigos do

carro puxado por dois cavalos mal-atrelados.

Joana, toda encolhida no canto, nada dizia. Alfredo, em traje de casamento, se

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contentava em repetir, de tempo a tempo:

— Não está calor! Que idéia esquisita! Enfim, se é o costume.

E ria com ar tolo, olhando a desposada. Quis pousar a mão sobre um joelho mas ela o

fulminou com um olhar tão catarina-de-médicis, que o pobre rapaz balbuciou, corando

até as orelhas:

— Perdão! Não sabia. Julgava. Enfim, é um costume muito esquisito.

De repente soltou um formidável espirro.

— Estou constipado. — Disse, timidamente.

— Assoes.

— Deixei o lenço no bolso do sobretudo, que está sobre o piano de senhora tua mãe.

— Então esperes até Nevers.

— Sim, minha mulherzinha.

— Não me chames tua mulherzinha. Chames senhorita Joana!

— Pois sim, já que não há de ser por muito tempo, e, nesta noite, em Burgos. Ó!,

como desejava já estar em Burgos!

Joana, mais nobre que nunca, se encolheu mais e pareceu não compreender.

Enfim a carruagem parou na estação de Nevers.

Alfredo se precipitou.

— Depressa! Depressa! — Exclamou, fazendo parar o primeiro empregado estava —

Duas primeiras a Burgos!

— É muito tarde. O trem partiu há uma hora.

— Como, partiu? Como é isso? Partiu? Minha boa amiga! Compreendes? O trem, o

último trem, partiu!

— Era de se esperar— respondeu, friamente, Joana.

— Que noite de núpcia! Que idéia mais excêntrica! Nos enviar àqui! Chove a

cântaro! Onde dormiremos?

De repente, Alfredo se lembrou de seu hotel. Um raio de luz no horizonte sombrio.

— Cocheiro, sigas ao hotel Coelho que não tem confiança.

Estava um tempo horrível. O cocheiro partiu resmungando. Ignorava, de resto, a que

lado devia ir. Subiram ruas escuras como breu, desceram ladeiras acidentadas, sobre um

calçamento esburacado, que arrancava gritos de terror da desposada.

Alfredo, exasperado, apesar do chubasco, se resignava a tomar os cavalos nas

rédeas... e molhado, espirrando, suado, praguejando. Ao cabo de três quartos de hora

chegaram diante da hospedaria.

Nem precisa dizer que todos dormiam na casa. Se diria que batiam à porta dum

túmulo. Enfim, uma espécie de aldeão criado abriu, cuma vela na mão. Estava em

camisa.

— Ora vejam! É senhor Alfredo!

— Está bem, Pedro. conversaremos amanhã. Depressa, um quarto! O melhor. Uma

boa cama, bem branca. Acendas o fogo, um grande fogo! Me casei nesta manhã. Minha

esposa está na carruagem. Viemos passar aqui nossa primeira noite de núpcia!

— Á! Essa é que está boa! — Respondeu Pedro, a gargalhada. É que, devo dizer,

amanhã é dia de feira!

— A feira nada tem que ver com a situação.

— Perdão! Toda a casa está cheia, da adega ao sótão. Chegam a estar dezessete num

quarto com três camas. Desta vez o pobre Alfredo teve vontade de arrancar o cabelo. E,

na fúria ousou pronunciar essa blasfêmia:

— Diabos levem minha sogra!

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— Escutes. — Disse Pedro, com pena — Só tenho um cantinho pra oferecer. É

minha cama. Fica na água-furtada. Mas, enfim. Sempre é uma cama.

E ao cabo de cinco minutos a nobre desposada foi introduzida num desvão sem

nome, mobiliado cuma cadeira desempalhada e um saco cheio de palha. Disse Pedro:

— Esperes. não há coberta mas tenho uma idéia. Sempre tenho idéia.

Voltou com três guardanapos que foi buscar no escritório.

— Teria querido trazer toalha. Só encontrei isto. Na guerra como na guerra! Não é

verdade? Vos arranjai. Boa noite! Dormirei na estrebaria.

Renunciamos a descrever a atitude indignada de Joana, enquanto o pobre Alfredo

tentava mostrar boa cara ao infortúnio! Enfim, ela se dignou a despir o vestido e se

estendeu na enxerga, conservando as saias de baixo. Ele se preparava pra tirar a roupa.

Joana perguntou:

— O que fazes?, senhor.

— Bem vês, senhorita. Eu...

— Tornes a te vestir!, senhor. Se pensaste nisso, num lugar como este, amanhã

voltarei à casa de minha mãe.

— Não me fales de tua mãe. Se não fosse ela estaríamos muito bem em Clamecy!

De repente, a nobre desposada deu sinais evidentes de ligeiro mal-estar: Se sentou e

olhou, ansiosamente, em volta.

— Procuras algo?, minha boa amiga.

— Sim... Eu... Não... É nada... Queria o utile dulci,14

como diria minha mãe. Mas

isso passará.

Alfredo compreendeu. Também procurou, murmurando:

— É justo. Quando se passaram sete horas de carruagem, tendo bebido champanha

no banquete de núpcia!

Mas debalde procurou, nada achou que substituísse o vaso faltante.

— Esperes. Procurarei Pedro.

Saiu como um louco.

Pedro, acordado, começou a rir de novo.

— É verdade! Esperes. Tenho uma idéia. Como sou cheio de idéia! Voltes a junto de

tua esposa, senhor Alfredo. No escritório tudo está fechado a chave, mas arranjarei uma

coisa que sirva.

Voltou ao cabo de cinco minutos, com ar triunfante.

— Eis o que precisas. — Disse, tirando um litro de sob a blusa.

— Uma garrafa! — Exclamou Alfredo — Muito bem! E minha esposa?

— Te tranqüilizes. Pensei também na senhora. E a prova é que... Olhes. Eis um funil.

Foi, sem dúvida, pra dar uma grande lição de igualdade àquela nobre moça que a

natureza, apesar dos antepassados, a obrigou a se servir daquilo.

Por isso guardou tal rancor ao pobre Alfredo, que só depois de três semanas de

viagem foi que consentiu em se tornar senhora Bondel, e assim mesmo com grande

desdém.

Quanto à nobre sogra, quando soube do incidente, teve uma idéia sublime:

— Me envies o funil sagrado. Escreveu ao genro. É digno de figurar em nosso

brasão, ao lado da garrafa!

Depois desse acontecimento o brasão dos Tourduneuf ficou parecendo esses letreiros

vulgares que se vêem à porta das tabernas e nos quais todos podem admirar uma garrafa

da qual escorre abundante espuma e ler: Boa cerveja de lúpulo.

14 Utile dulci: Útil e agradável. Expressão que significa unir o útil ao agradável. Nota do digitalizador

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Nada de emoção! R. O'Monroy

u conhecia muito bem tio Langale. Todas as vezes que atravessava o

Vidourle na ponte de Sommières (Gard), uma ponte que data dos

romanos, olhem lá! Nunca deixava de parar na tendinha onde ele vendia

caramelo. Não quer isso dizer que, em minha idade, tenha grande preferência por esse

doce acidulado, mas Langale tinha a seu lado, sob o grande guarda-sol vermelho, Isaura,

sua esposa. Ora, enquanto ele, robusto, alto, corado, com um corpo de Hércules,

evocava a idéia dalguns carregadores de Marselha, sua companheira, frágil, esbelta,

conservando com singular elegância os trajes de Arles, parecia uma princesa

transformada por algum malefício.

Era muito pálida, apenas cuma ligeira cor nas maçãs do rosto. Em Sommières se

dizia que sofria do coração.

Isso fora suficiente prà tornar interessante a meus olhos e, enquanto comprava

caramelo eu procurava descobrir o segredo daqueles dois seres tão diversos. Langale,

em suma, tinha o ar dum bom rapaz, um pouco rude, um tanto comum, mas adorando a

esposa, tendo atenção comovedora, que Isaura aceitava com sorriso melancólico e

resignado.

No meio-dia o povo francês é muito dado e gosta de conversar. À custa de comprar

grosa de caramelo eu chegara a ser mais que freguês, um amigo.

Langale me consultava, escutava atentamente meu conselho e depositava em mim

lisonjeira confiança. Quanto à bela Isaura, se mostrava tímida, reservada, porém

erguendo, às vezes, os grandes olhos interessados, quando eu falava de Paris, a cidade-

luz, onde havia tanto movimento, tanto barulho, tanta flor e tanto amor.

Numa bela manhã, passando na ponte, fiquei espantado não vendo a tendinha aberta.

No dia seguinte o negociante estava no lugar, mas sozinho, sem a bela arlesiana. Me

aproximei, muito espantado.

— O que é isso?, caro senhor Langale. Não vejo senhora Isaura. Está doente?

— Está... um pouco... indisposta. Sabes, aquele maldito coração. Á! Com os diabos!

Sou um grande bruto!

O colosso passou, febrilmente, a mão na cabeleira encaracolada. Pressenti um drama

íntimo, e insisti, vivamente interessado:

— Nada disso, senhor Langale. Te conheço bem e sei que és bom, muito bom. Não

estás fazendo justiça a ti.

O negociante deu um murro formidável no balcão da tendinha, fazendo saltar todos

os caramelos dentro dos bocais de vidro, e me disse, com sua voz de barítono e aquele

acento da terra, que faz uma pausa em cada sílaba:

— Escutes, senhor. Me darás opinião. Por Deus! Com toda a franqueza. Quero que

julgues se tenho razão, porque sou um pobre homem e não sei mais. Não sei mais!

Me sentei na pequena cadeira sob o guarda-sol, ocupada geralmente pela bela

arlesiana. O negociante, muito comovido, começou: — Devo dizer, senhor, que encontrei em primeira vez minha esposa há três anos, em

Arles, durante uma viagem que fiz pra renovar o mostruário. Ainda tinha caramelo

branco mas os vermelhos começavam a faltar. Quando vi Isaura com a pequena touca

preta, o chale de seda peito-de-rola, os grandes brincos nas orelhas, me pareceu que o

céu se abria.

Muito altiva, um pouco senhoril, era um tipo diferente dos que encontramos aqui. Fiquei louquinho. Não sei se me amava. Caramba! Nunca se sabe essas

EE

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coisas! Mas, enfim, se mostrava graciosa, gentil, me acolhia sempre sorrindo. Nunca tive a idéia de a fazer minha amante. A respeitava demais pra isso!

Tinha economia. A venda de caramelo era próspera e não houve dificuldade em me conceder a mão que eu pedia. Somente sua mãe me disse, muito grave:

— Meu genro, saibas te comportar com Isaura. Tens o ar de ser violento e parece que a mostarda te sobe facilmente ao nariz. Além disso pareces ter uma força incomum.

Isso é verdade. Torço uma barra de ferro entre os dedos assim, como este caramelo.

— Pois bem. Nossa Isaura sofre duma doença do coração. O médico declarou que uma comoção poderá ser fatal. Portanto, nada de palavrão, nada de raiva. É com essa condição que a ti confio minha filha.

Raiva! Palavrão! Apaixonado como eu estava, não havia risco disso! Terminada a cerimônia, me apossei de minha Isaura como duma presa e me instalei aqui, onde continuei meu pequeno negócio.

Á!, meu caro senhor. Posso dizer, eu meu benefício, que me tornei meigo, mas meigo como um carneiro. Não praguejava, não fumava, não bebia mais. Tentava amaciar a voz muito vibrante pra ouvidos tão delicados. Não é minha culpa se tenho os dedos grandes, um pouco pesados, um pouco desajeitados, mas me arranjava pra lidar com minha mulher com delicadeza infinita, como um bocal de cristal que a gente tem medo de quebrar. Tinha a ela uma timidez de menino, como uma necessidade de proteção e de mimo pruma criatura frágil.

O médico de Sommières a examinara e também me dissera que eram necessários cuidados de toda espécie. Nada de emoção forte, compreendes? Parece que aquelas duas manchas vermelhas que tem nas faces, as viu, com certeza, pois aquilo pode ter um dia conseqüência fatal. Por isso mal ousava lhe tocar. Palavra: Vivia menos como marido que como irmão mas me dava por satisfeito. Na manhã me instalava lado a lado consigo, aí, onde estás, ao bom sol sob o grande guarda-sol encarnado. Os viajantes passavam na ponte, havia sempre movimento, carros, carroças, rebanhos. Não havia possibilidade de se aborrecer. Fazíamos bom negócio e o dia se passava como um sonho.

Entre meus fregueses preferidos, te ponho a parte, senhor, havia o brigadeiro-da-guarda, de nome Rouflard, moreno, muito gentil, casado, e que de tempo a tempo comprava um cartucho de caramelo pros garotos. Rouflard, sempre muito elegante, usava a farda com garbo, com o quepe bem caído sobre uma orelha, as agulhetas de prata e seda reluzindo sobre o largo peito, e até Isaura se divertia brincando com elas, enquanto conversava. Sempre notei que ela lhe dava um bom peso de caramelo, na balança. Mas, enfim, o brigadeiro tinha filho. No ofício de militar ninguém é rico. E eu fechava os olhos.

De resto, ninguém se emenda. Meu pai, velho guarda-caça, me educara no respeito à farda. Rouflard era gendarme, e isso chegava. Eu tinha confiança.

Na manhã, enquanto Isaura ficava em casa, cuidando dos arranjos domésticos, ele passava rapidamente na ponte, com a sacola de couro, trocando comigo somente um bom-dia de amigo. Mas na tarde, ao voltar, tinha tempo de conversar conosco. Então se instalava, descansando sobre um quadril, de pé, muito elegante, fumando cigarro, do qual fazia cair a cinza com pequenas pancadas secas da mão enluvada, divertindo Isaura com suas histórias. Ela não tirava os olhos dele. E eu, cego, nada via, senhor. Nada!

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Ontem, ao passar, o carteiro me disse, rindo, com ar malvado: — A patroa está em casa? — Está. O que tem isso? Continuava rindo. — Parece que ela não se aborrece. — Por quê? — Porque o brigadeiro Rouflard lhe faz companhia. — Mentes, bandido! — Pois então vás te certificar. É a mesma coisa todas as manhãs. Por Deus, o sangue me subiu à cabeça. Vi tudo encarnado. Nem sempre a

gente pode refletir, senhor. Abandonei a tenda, os caramelos, tudo, corri até casa, entrei como um furacão, sem bater e verifiquei que o carteiro falara a verdade! Rouflard, o covarde, fugiu ajeitando as agulhetas, e fiquei cara-a-cara com Isaura, muito branca, na cama. Tão branca que se diria que morreria. Então, a vendo tão pálida, esqueci tudo: Raiva, projeto de vingança e de assassínio porque, um momento pensara em matar e só pensei numa coisa: Com minha irrupção tão brusca eu acabava de lhe causar uma emoção, a terrível emoção que eu tanto prometera à mamã evitar a ela. Me atirei a seus joelhos:

— Te tranqüilizes, meu tesouro. É nada. Suplico, querida: Não fiques perturbada por tão pouco!

E a fiz beber água de flor de laranjeira. Não obstante, compreendas, foi um grande golpe prà coitada! Francamente: Fiz mal?

Olhei o colosso que me contava tudo aquilo com lágrima nos olhos, tão franco, tão

ingênuo em seu amor leal, tão sublime na abnegação inconsciente. Outros, talvez,

teriam achado ridículo o pobre negociante de caramelo. Confesso, me senti comovido, e

disse, muito enternecido, estendendo a mão:

— Tio Langale, és um excelente homem!

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Do que gostam as mulheres Silverio Lanza

então, homem!

Sim. Mas a grande dificuldade é a encontrar.

— Não digas isso.

— Pois se apenas tenho levado blefe!

— Quais?

— Fulaninha tratava de me seduzir depois de se deixar seduzir por um francês.

Sicraninha se deixava pretender enquanto resolvia comigo os preparativos pra nossa

boda. Beltrana já sabes o que era. Me apresentaram à de Tal. Meio resolvido tinha eu o

assunto com os pais e soube que a menina andava de amor cum bobão que freqüentava a

casa. A pequena de Qual tinha o vício das criadas.

— Que vício?

— 1.

— Tudo isso nada significa.

— Pílulas!

— Por que não te casaste com a de Pérez?

— Pela mesma razão que me obrigou a deixar a de Gómez.

— Qual?

— Porque a de Gómez andava com um e a de Pérez com outro.

— Enfim, não pretendes te casar.

— Lógico! Dirás que não posso me casar.

— Queres que procure pra ti uma noiva?

— Se não me cobras muito caro.

— Purita.

— Não parece má pequena.

— Certamente. Não encontrarás criatura melhor educada. Naquela casa não há atado,

enredo nem diversão que possa parecer desonesto. Três ou quatro vezes por ano a

família vai ao teatro. Isso é tudo. Ali só verás gente formal.

— Se tudo isso fosse verdade.

— Vendo, bastará. Te apresentarei nesta noite.

— De acordo.

— A reunião começará às 8:30h e acabara às 10h.

— Um tanto atrasado, me parece, esse costume.

— Queres uma mulher moderna?

— Não, não. Prefiro Purita.

— Depois de cear nos veremos no café, e dali à casa.

— Não há inconveniente.

— Me alegraria que te arrumasses duma vez.

— Mais me alegraria eu.

— Eia! Então até logo. — Até logo. Adeus.

Senhorita: Desde o dia em que te vi meu coração é um vulcão e minha alma também. Estou louco por ti e te peço, de joelho, o sim que desejo. Minha intenção é de me unir a tua pessoa com a bênção de Deus e a autorização de teus pais.

Pensava escrever em verso, o que talvez te agradasse mas outra vez o farei

EE

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se me responderes. Espera da senhorita a vida ou a morte teu adorador que te adora de coração

e é da senhorita seguro servidor e atento amigo. Q. S. P. B., Silvério

Não me recordo de ter escrito carta mais estúpida. Nesta noite, enquanto jogamos

loto, a darei a essa casta-diva da rua da Sertã.

— Quem veio?

— Padre Calamares.

— E por que não entra?

— Está deixando a telha na prateleira do corredor.

— Vós, senhores, dai licença?

— Entres.

— Boa-noite, senhores.

— Boas, Padre.

— Como vais?, senhor Rudesindo.

— Perfeitamente.

— E tu?, dona Rufina.

— Bem, muito obrigada.

— Então não há novidade?

— Não, senhor. Vou bem.

— E a senhora?

— Eu? Por cima de meu marido.

— E Purita?

— Acabando de limpar a prataria.

— Sempre tão trabalhadeira.

— Sim, senhor.

— Há casos...

— Mas, mulher, contarás tudo em seguida.

— Se não queres...

— Nada disso. Com o padre há confiança ilimitada.

— O que é isso?

— Silvério se declarou à menina.

— Viva!

— Sim, senhor. Escreveu a ela uma carta muito bonita. Se vê que é um perfeito

cavalheiro.

— Ora, ora. E vós?

— A pequena já tem a resposta pra dar nesta noite.

— De modo que é de vosso gosto?

— Pois não se apresenta outra coisa. Não é mau partido. Tem uma rendinha, bem

saneada.

— E Purita: O que disse?

— Preferiria um militar, mas não houve oportunidade.

— Te cales, pois vem aí.

— Pois então já está o outro, porque a espera na janela da cozinha.

— Vós, senhores, dai licença?

Já está soando a campainha

Sou feliz porque soube três coisas: Que sou um paleógrafo, que sou um poliglota e

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que serei um marido. Eis a carta de Purita:

Meu extimado amigo: Vi a carta do sinhor e me agradou muinto. O sinhor me obriga dezer le quemié muinto sim pátiquo o sinhor falará aos meus pais cuhando puder. Sua amiga i suas mãos beija.

Purita

Me resignei. Ao menos essa criatura é inocente e me quer deveras. Creio que achei o

que procurava.

— Patrão. Eis teu amigo.

— Que entre logo.

— Silvério!

— A diante.

— Estás doente?

— Estou louco.

— O que te aconteceu?

— Nada.

— Há dois dias que não apareces em casa de Purita. Estão alarmados.

— Nem voltarei mais.

— Por quê?

— Este é o logro 69.

— Mas, homem, te expliques.

— Já explicarei. Preciso desabafar. Começarei. Te prepares pra te horrorizar.

Anteontem bebíamos, em casa de Rudesindo, um vinho muito ruim e muito velho.

Confesso que me subiu um pouco à cabeça. Estávamos jogando loto na tertúlia de todas

as noites. Padre Calamares fez a quina com o número 15 e isso me fez rir porque

exclamou: A menina bonita. Em que hora! Na bola seguinte ganhou dona Rufina, com cara suja.

Eu recordava os jogos que fazíamos em casa de Amparo e comecei a procurar o pé

de Purita, que estava na outra ponta da mesa. Depois me pus a cantar os números por

seus apelidos.

— Pata de cachorro.

— Qual é?

— 3.

— Idade de Cristo.

— Essa sei.

— Qual é?

— 14.

— Não, senhorita. 33.

— A idade de Espronceda.

— Qual é?

— 30.

Homem, vejas que misturar Espronceda com Cristo...

— Os óculos de Maomé.

E continuou a misturada.

— Do que gostam as mulheres.

Purita marcou o número, imediatamente, sem se enganar.

Fiquei meio morto. Pra esconder minha perturbação, segui, cantando ligeiro.

— As bandeiras da Itália. Dois patinhos. O vovô.

— Ai!, Silvério. Não corras tanto, pois não podemos marcar.

Acabou a reunião e vim a casa.

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— E daí?

— Nada.

— Mas qual é o número?

— 0.

— Que horror!

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Vingança feminina Henri de Régnier

A condessa de Baume-Pluvimel

ui íntimo, em vida, de Baltasar Aldramin, que bem pode, depois de morto,

falar por minha boca. Já não tornará a abrir a sua pra rir, cantar, beber

vinho Cinzano,15

mordiscar figo de Pienza, nem proutra coisa porque

descansa sob uma lápide na igreja de Santo Estêvão, com as mãos cruzadas no peito

sobre o rubro orifício do ferimento que pôs fim prematuro a sua existência em 3 de

março de 1779.

Tinha, quando morreu, cerca de trinta anos. Nos conhecíamos desde a infância, como

nossos pais se conheceram desde a sua. Os perdemos quase ao mesmo tempo e quase na

mesma idade. Tão vizinhos estavam nossos palácios que se tocavam e seus reflexos se

confundiam na água do mesmo canal, misturando nela suas diferentes cores. A fachada

do dos Aldramin era branca, adornada com dois desiguais florões de mármore rosa que

pareciam flores petrificadas. A nossa, dos Vimani, era avermelhada. Dois dos três

degraus da porta marinha estavam polidos e gastos pelo uso e o terceiro era resvaladiço

e estava molhado porque a água o cobria e descobria e sucessivamente. Quase todos os

dias Aldramin subia neles, fosse na manhã, meio-dia ou noite, à luz das tochas. Sua

gôndola oscilava ao a impelir com um pé, pra colocar o outro no umbral de minha casa.

O ouvia me chamar desde o começo da escada, porque falava com voz forte e ria muito

e nossas juventudes se uniam livremente então. Geralmente era quem me arrastava aos

prazeres. Punha neles excessivo ardor e necessitava do dia e da noite, que juntava num

só período de tempo, pra satisfazer quantos compunham a substância de sua vida.

Dentre eles o amor ocupava o primeiro lugar.

Queria eu muito a Aldramin e também ele me queria. Éramos vistos juntos em festas

e passeios. Pra estarmos mais perto um do outro encolhíamos amantes que fossem

amigas e quando saíamos de sua casa nos dirigíamos a qualquer restaurante da laguna a

comer marisco e pescado. Nunca faltávamos a diversão que a Cidade Voluptuosa

oferece. Há de todas as classes. Quantas horas passadas nos locutórios dos conventos de

monja, contemplando suas toucas entreabertas e escutando sua palestra ao mesmo

tempo que saboreávamos doces e sorvetes! Quantas noites passadas ante as mesas de

faraó perdendo nosso ouro ou ganhando os alheios cequins! Quantas vezes percorremos

a cidade no carnaval, piruetando e fazendo loucura! Quando saíamos dos bailes de

máscara nossas capas roçavam os muros das estreitas ruas. Empalideciam as estrelas na

celeste aurora e ao chegar aos molhes o ar salino inflava nossos trajes e sob as caretas

pintadas sentíamos, nos rostos congestionados, o sopro de sua carícia matinal.

Assim transcorreram os anos de nossa mocidade. As mulheres de Veneza nos

tornaram amorosos e ligeiros. O balanço das gôndolas embalou nossos ouvidos. Os

cânticos e os risos nos deliciaram com seu doce tumulto. As lembranças daqueles dias

felizes têm, pra mim, mais reflexo e mais variedade que as próprias curvas dos canais.

Creio que poderia ter continuado vivendo indefinidamente assim sem experimentar a

ânsia doutra coisa. Não desejava a modificação de algo do que me rodeava além do

sorriso das mulheres, pra que novos lábios femininos, doces e amantes, se pousassem

nos meus.

Aldramin não pensava assim. Oprimiu meu coração quando vi cerradas as janelas de

15 Cinzano: É um aperitivo mundialmente conhecido e apreciado pelo sabor delicado e inconfundível. A fórmula, baseada em vinhos de alta qualidade e essências de ervas e especiarias de todo o mundo, é mantida em segredo desde o século 18.

Nota do digitalizador. http://www.worldcompany.net.br/

FF

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seu palácio em cuja florida fachada continuavam se abrindo amplamente os florões de

mármore rosa. Aldramin partira a longa viagem. Queria correr mundo. Esteve fora três

anos e regressou inesperadamente, sem que algo nele tivesse mudado. O ouvi me

chamar, numa manhã, no começo da escada, e na noite já estávamos juntos ante uma

mesa de jogo. Reencetamos nossa vida anterior até o dia em que inexplicável

acontecimento o deitou a sempre sob uma lousa, na igreja de Santo Estêvão. Com as

mãos cruzadas sobre o orifício do ferimento. Eis por que necessita de minha boca pra

que ouçais, e eu, Lourenço Vimani, vos repetirei, não o que sei mas o que imaginei, pra

explicar sua morte, o que me pareceu ter me referido num bosque de pinheiro vermelho,

certa noite, o espectro de meu amigo, o veneziano Baltasar Aldramin.

Um dia estava, ó Lourenço!, no molhe dos Schiavoni, com minha amante, senhora Balbi, a quem agradava permanecer ao sol porque seu cabelo adquire assim reflexo dourado que supunha devia me agradar. Nada descuidava que pudesse contribuir pra me unir mais a sua beleza. Pra estar ali o maior tempo possível utilizou o entretenimento de jogar trigo às pombas que revoluteavam em torno dela. Me divertiria mais noutro tempo. Os grãos caíam de sua mão como pó dourado. Porém já era insensível aos atrativos de sua graça e, em vez de admirar, como era razoável, a bela dama, preferia observar os humildes animaizinhos a quem ela alimentava familiarmente. Haveria uma dúzia. Tinham as plumas suaves e as patas escamosas, o bico de coral e o pescoço cinzento. Estavam gordas e bem nutridas, e no entanto picavam o grão com avidez e se fartavam daquele servil alimento. Logo se chegaram a ela novos hóspedes. Se abateram em um vôo pesado e denso. Naquele instante levantei os olhos à resplandecente laguna. Passava por ela uma gaivota prateada. Enérgica e veloz, cortava o ar com as agudas asas e por contraste me pus a refletir sobre mim. Parecia que a ave marinha me dava uma lição sadia. Hoje aqui, amanhã ali, sempre viva e móvel, enquanto as pombas continuavam disputando entre si o presente que caía do céu. Ó!, Lourenço. Compreendi aquela fábula volante.

Então concebi, ó Lourenço! o projeto de ver mundo e de perseguir o prazer em sua cambiante diversidade. Te estreitei em meus braços, a ti, que eras o mais querido e o primeiro de meus amigos. Depois disse adeus a senhora Balbi e fui me entrevistar com meus banqueiros. Depositei em suas mãos serviçais as importâncias necessárias pra me proporcionar, em qualquer lugar aonde fosse, os meios de jogar forte, me vestir na moda do país e realizar o gasto que entendesse.

Parti. Minha gôndola me conduziu a terra firme. Me alegrava pensar que podia ir adiante sem receio de tornar a estar no mesmo lugar, como acontece muitas vezes nas ruas e canais de Veneza, cujas voltas acabam nos levando de novo ao lugar donde viemos, de tal modo que, ao cabo de seus círculos, parece que a pessoa se encontra. Desde aquele momento já não seria assim e estava certo de que o caminho me conduziria àlguma novidade. Já me agradava a de minha carroça. Era ampla e macia. Me instalei comodamente nela. Experimentava um grande sentimento de alegria que se duplicava a cada movimento da roda e a cada árvore que deixássemos a trás. Um cachorrinho que se obstinava em perseguir os cavalos e lhes ladrar furiosamente me fez rir até saltar lágrima, tão disposto estava a me divertir com a menor coisa.

Formara o projeto de me deter no caminho, em casa de meu velho parente André Baldipiero, que não fica a mais de 20km de Mestre, pra me despedir dele. A vila é admiravelmente construída e seus jardins são magníficos. Os trata o próprio senador e faz que neles trabalhem continuamente. O melhor do

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tempo o passa ali. Seu ar é saudável e o velho Baldipiero lhes deve muito da força de sua robusta ancianidade, porque não conhece o que seja um dos achaques próprios das vidas prolongadas, ainda que a sua transpassara em muito os limites correntes. Seus dias estiveram cheios de ilustres ações. Viu o mundo. É um homem rude e delicado que amou muito as mulheres e amou mulheres de todos os países. Ainda tem boa aparência, embora o vejam pouco e viva bastante retirado em sua casa ou na perfumada solidão de seus jardins.

Não obstante me recebera bondosamente, notei no rosto alguma inquietação. Mordiscava, ao falar, o cabo da trança de sua peruca branca, e dava a impressão de que lhe custava muito me ouvir tranqüilamente enquanto lhe explicava minha partida e o objetivo de minha viagem. Aprovou minha resolução e me ofereceu algumas cartas que podiam me ser úteis. Me deixou pràs escrever e vi desaparecer no fundo da galeria sua casaca floreada cujas abas roçavam docemente o mármore, deixando um perfume de almíscar e âmbar.

Por aquele perfume e pelo pequeno desgosto que não pudera dissimular, ocasionado por minha chegada, supus que caíra, indubitavelmente, no meio duma aventura galante contrariada por minha presença. Apesar de sua idade era fama que o senador não se privava dum prazer que durante muito tempo fora sua diversão principal e sua ocupação mais importante. Se afirmava também que pra o satisfazer não recuava ante audácia que o fazia temível a pais e maridos. Nada regateava pra lograr seus prazeres: A força, a astúcia, nem meio direto ou sinuoso. Até se chegara a falar de surpresas e raptos, mas tão bem combinados e executados tão felizmente que só corria acerca deles um rumor, sem algo preciso ou demonstrado. É possível que eu tivesse chegado no momento duma dessas façanhas: Portanto resolvi não importunar mais tempo meu hóspede e me afastar quando obtivesse as cartas que me oferecera e que estava escrevendo. Me daria Roma e Paris, porque eu hesitava em qual das duas cidades começar a viagem. A da França me tentava sobremaneira e me inclinava à empreender em primeiro lugar.

Pensando nesse projeto me pus a me mirar num espelho que pendia duma parede. Me achava nele muito bem. Meu traje de seda, meu jaleco bordado, meus sapatos com fivelas de brilhantes faziam o melhor efeito, capaz de satisfazer o mais difícil. Havia em meus olhos um fogo particular. Me parecia que com tão bom talante poderia aspirar às mais altas fortunas amorosas, porque as belas damas de França passam por não regatear seus favores a quem procura os merecer por alguma dessas delicadezas a que são particularmente sensíveis. Por essa razão eu levava grande quantidade de bracelete de Veneza e muito ponto de renda, sem contar bom número de caixa com miniatura apropriada pra oferecer como presente.

Enquanto passeava nos jardins imaginava mil aventuras que não podiam deixar de me sair ao encontro. Eram as mulheres o natural assunto delas. Via se renovar ante mim os encantos do amor, sem pensar que é igual em todas as partes e que os lugares e os costumes apenas põem nele algumas pequenas diferenças. Apesar disso não duvidava que descobriria novidades maravilhosas e inesperadas. Me assaltavam repentinos desejos que me pareciam me transportar a um país de novela! E me assombraria se me recordassem, de súbito, que estava a poucas léguas de Veneza, nos jardins de senador André Baldipiero, de tal modo sentia que saíra da vida ordinária, me afastara de suas circunstâncias habituais e me colocara na ocasião mais propícia às coisas mais

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agradáveis e mais surpreendentes. Essa espera a um não sei quê imprevisto fazia que os objetos mais simples assumissem, em meu espírito, formas estranhas. Cada volta das avenidas, onde ia sobre fina e apertada areia, me parecia dever preparar alguma perspectiva inopinada. O recortado bugalho16 do buxo me fazia crer que no oco se ocultava um segredo.

Com essas idéias cheguei a uma gruta de rocalha.17 Vides silvestres assinalavam a entrada. Em qualquer outro momento só teria entrado ali pra gozar da subterrânea frescura, porque fora fazia calor, não obstante já passasse muito do meio-dia. Porém dessa vez me arrisquei a entrar, com o coração palpitante, como se as curvas daquele antro rústico devessem me conduzir àlguma parte da qual dependesse senão minha felicidade, ao menos uma série de incalculáveis aventuras.

O interior da gruta oferecia um ambiente agradável. A água se filtrava nas úmidas rocas e caía em dois pilões. Figuraram na abóbada muitas classes de pássaros e animais de bronze que acompanhavam o sonho do solitário passeante. Uma sala mais na sombra se seguia à primeira e a terceira estava completamente escura. Só se ouvia o ruído da água caindo, gota a gota, como se indicasse naquela clepsidra natural as horas monótonas do silêncio. Era tão desigual o terreno que estive a ponto de torcer o pé ao buscar orientação nas trevas. Me introduzi num estreito passadiço, onde não tardei a ter que andar quase dobrado. Se chocavam meus ombros com as pontas da rocalha e começava a me fatigar daquela dificuldade, ideada, sem dúvida, como estratagema destinado a aumentar, quando se saísse daquelas sombras, o prazer de encontrar novamente a claridade do dia e de respirar a pureza do ar. Não me equivocava. A saída da gruta mostrava uma perspectiva admirável, formada pelo conjunto dos jardins vistos da ponta mais vantajosa, pela fachada principal da vila e a disposição da colunata. Se destacava sobre seu céu puro a balaustrada do telhado. Ali se aspirava o amargo odor dos buxos e o açucarado perfume das laranjeiras.

Enquanto aspirava aquele duplo bálsamo, adverti casualmente que de todas as janelas da vila só uma estava cuidadosamente cerrada. Aquela singularidade atraiu minha atenção e me pus a contemplar os fortes postigos. O sol fazia brilhar todos os vidros da fachada. Por que, então, aquele fechamento hermético? A tal ponto chegou minha meditação, quando senti uma mão pousar sobre meu ombro. Era a de senador Baldipiero. Com a outra me estendia as cartas que escrevera pra mim. Agradeci e comuniquei minha intenção de me pôr, imediatamente, a caminho. Ainda restava dia bastante pra pernoitar em Noletta. Com grande assombro meu, não quis consentir nisso e me reteve prà noite. Acabei aceitando e continuamos passeando nos jardins. Me mostrou algumas partes que eu não vira. Pra andar se apoiava num alto bastão de junco negro.

Em realidade não precisava do arrimo do bastão. Era ainda forte e robusto, ainda que as barbas brancas lhe atravessassem com suas duras pontas a pele das faces raspadas. Nos detivemos ante uma estátua que adornava o verdor dum bosquete. Elogiou sua nudez em termos que davam a entender sua afeição às belas formas, e me admirou seu modo de indicar as da ninfa dos

16 Bugalho é uma excrescência arredondada que se forma nalgumas espécies de árvore do gênero Quercus (carvalho, sobreiro e

azinheira). Nota do digitalizador 17 Rocalha: sf Porção de conta pra colar ou rosário. Colar de conta, rocal. Do francês rocaille. Nota do digitalizador.

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bosques com a ponta de seu bastão, cujo punho de ouro brilhava entre os dedos de sua mão forte e peluda.

Chegou a hora do almoço, que foi longo e delicado, servido por criados negros em vasta sala redonda, toda espelhada, na qual iam e vinham, silenciosamente, em torno de nós. As multiplicavam estranhamente os espelhos até chegar a ofender a vista com sua ilusória multidão. Seu cabelo crespo enchia o turbante de seda amarela, onde tremiam movediços penachos. Das orelhas pendiam argolas de ouro. As mãos negras nos serviam esse vinho Cinzano que tanto aprecio. À medida que bebíamos sentia que meu regozijo aumentava, enquanto durante momentos se ia sombreando o rosto do senador. Me olhava comer e beber sem tocar em seu copo nem prato. Meu apetite merecia ser imitado. A viagem o aumentara. Não é preciso procurar força pra ser capaz de fazer frente às ocasiões de todas as classes que podem nos encontrar, a julgar pelos relatos dos que viram o mundo? Nunca me senti mais disposto. O vinho fazia subir ao rosto uma cor vermelha, sadia e abundante, que o senador parecia contemplar, invejoso, ainda que a meu ver nada tivesse a invejar, no que se refere à perfeita conservação do corpo e do espírito.

No entanto, observando mais à luz, me pareceu notar que tinha no rosto visíveis sinais de fadiga. Seria em conseqüência de nosso longo passeio nos jardins, ou doutra causa diferente? Seria melhor a aparência que a realidade no velho Baldipiero? Estava numa idade em que as forças se limitam a sustentar a vida e podem ainda cumprir sua missão durante muito tempo, sempre que não se lhes exija além do conveniente. Pois bem. Se tinha o senador por homem que resistia a deixar de ser jovem e se contava que quando havia ocasião se dispunha a retornar à juventude, se excedendo e talvez sem tanto êxito quanto queria.

Pouco a pouco, durante a conversa começou a se lamentar do que eu já suspeitava. Fez o elogio a minha felicidade e opôs a ela a miséria de envelhecer. Se notava grande amargura. No mais eu o escutava com escassa atenção porque isso me parecia um acidente natural a que todos estamos sujeitos e cujo porvir mais ou menos próximo deve nos servir de estímulo pra gozar do presente o melhor que possamos. Portanto, enquanto falava, continuava eu bebendo vinho Cinzano e comendo fruta. Eram deliciosas as que os negros me ofereciam em canastrinhas de filigrana de prata, e me vali de seu sabor pra gabar a hospitalidade de meu hóspede. Muito elegantemente se escusou de que minha brusca chegada o tivesse impedido de me preparar algumas diversões que não fossem só as de seus jardins e sua mesa e de não poder ajuntar a elas mais que uma palestra com um triste ancião, sem o acessório de convidados ou ao menos o acompanhamento dos músicos. Respondi que não sentia falta duns nem doutros e que a solidão consigo me era muito agradável se não tivesse que me reprovar ter perturbado a sua, e que me aprazia muito uma circunstância como aquela que me valia o favor de sua conversação. Me deixou terminar e depois, movendo a cabeça, agregou que o desvanecia infinitamente minha cortesia e que não duvidava de que naquele momento estava dizendo a verdade, mas que não tardaria, sem dúvida, a pensar doutro modo quando me visse no leito sozinho, entre os lençóis, coisa que não é própria de homem jovem e, sobretudo, dum homem jovem que gosta de mulher.

À palavra mulher pensei, de subitamente e sem saber a razão, na janela fechada que tanto me preocupara quando a vi pouco antes. Então estávamos

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sós na sala dos espelhos. Os criados negros desapareceram sem que notássemos. Me parecia que o lustre balançava ligeiramente e que na radiante oscilação se repetiam multiplicadas nos espelhos suas luzes. Bebera muito vinho Cinzano e enquanto eu descascava um figo de Pienza, ouvia a voz do senador. Se diria que chegava de muito longe, e que em vez de proceder de si procedia de todos os Baldipieros que via em redor de mim nos numerosos espelhos. Estava assombrado, nem me dando conta de que o que determinava meu assombro era a estranha proposição que se me fazia. Não me diziam subitamente que não tinha de fazer mais que me levantar pra que me levassem àquela dependência dos postigos cerrados que tanto me preocuparam anteriormente? Ali me encontraria cuma mulher adormecida num leito. Me comprometi sob palavra-de-honra a não tentar saber quem era nem donde vinha. Foi me dito que encontraria alguma resistência, mas se suspeitava também que eu era homem capaz de a vencer. Era certo: Me embriagava um desejo repentino e furioso. Fiquei em pé. Todos os Baldipieros disseminados nos espelhos se levantaram ao mesmo tempo que eu. Porém só um me tomou a mão e saiu comigo da sala dos espelhos.

Fora, tudo eram sombras na deserta vila. Subimos numa escada de mármore. Ouvi um tilintar de molho de chave. Uma roçou uma fechadura. O lubrificado gonzo duma porta girou brandamente e senti que me empurravam nos ombros a dentro.

Fiquei só na treva, rodeado de profundo silêncio. Comecei a escutar. Me pareceu perceber uma respiração baixa e compassada. Era cálida a obscuridade e estava carregada de perfume. Fui me aproximando da invisível adormecida. Já estava junto dela. Estendi a mão e toquei uma pele desnuda e doce que estremeceu a meu contato, baixei minha outra mão ao acaso e senti os traços dum rosto e uma boca tíbia, entreaberta.

Foi uma noite singular a indecisa. Um combate mudo e terrível. Seu corpo deslizava e fugia à pressão do meu com força e agilidade admiráveis e sem outro rumor além de nossos dentes confundidos. A luta foi longa mais tarde cederam as forças da desconhecida. Recobrou flexibilidade sua cintura e os braços se fatigaram ao mesmo tempo em que se afrouxavam as coxas. O suor lhe umedecia o ventre. O cabelo molhado aderira a minha face. Venci. Durante várias horas permaneci entrelaçado com aquele corpo. O tocava e aspirava o aroma nada vendo dele, com meu rosto colado àquele escuro rosto. Me atormentava o furioso afã de ver como era e o furioso pesar de que jamais poderia saber em conseqüência do estúpido juramento do qual meu tenebroso desejo agora se vingava numa carne indiferente e deliciosa.

Não sei o tempo exato que transcorrera entre aquelas carícias e aquelas idéias. Enfim cheguei junto à porta. A empurrei com o ombro. Resistiu como se alguém estivesse apoiado do lado de fora com todo seu peso. Através dela ouvi um rumor de tecido e de passos ligeiros que fugiam. Empurrei de novo. Se abriu a porta. Ouvi alguns passos em direção ao exterior. Branqueava o amanhecer na extremidade da galeria. Estive a ponto de voltar ao cômodo, pra satisfazer minha curiosidade. Porém me tornou ao espírito a idéia de meu juramento. Desandei a correr e cheguei à escada. O vestíbulo estava deserto. Saí na colunata. O ar estava embalsamado pelo odor matinal das laranjeiras. Já engatada, minha carroça me esperava no pátio. Subi a ela e quando se pôs em marcha adormeci profundamente.

As distrações da viagem foram me tirando, pouco a pouco, do estado onírico

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a que me conduzia a recordação da estranha aventura. Não sabia o que pensar dela e a achava inexplicável. Quem seria aquela mulher desconhecida e silenciosa? O que significava a estranha conduta de senador Baldipiero? Seria eu o instrumento de seu rancor ou de sua vingança? Ou só teria querido me proporcionar um prazer aumentado pelo mistério que o rodeava? Afinal era tido como homem extravagante e eu me inclinava também a o considerar assim. Me perdia em conjectura.

Cheguei a Milão. Minha permanência naquela cidade foi longa. Gozava e conheci o melhor da sociedade. Muitas mulheres me distinguiram e sobretudo uma, que é a que me reteve ali mais dum mês por causa das agradáveis ocasiões de a ver, que me proporcionava no teatro, em passeio ou em sua casa. Me recebia nela na noite, entre luzes, e nada me ocultava de seu rosto nem de seu corpo. Isso prejudicou a recordação de minha desconhecida, de tal modo que quase a esquecera quando empreendi o caminho a França.

Em Paris os encantos desta formosa cidade me pareceram superiores em número e delicadeza a quanto pudesse se imaginar. Ocupava o tempo em diversão de muitas espécies. Tudo era concerto, baile e comédia. As cartas de senador Baldipiero me foram utilíssimas e me relacionaram com muitas pessoas de destaque. O aturdimento em que vivia não me deixava sentir falta de Veneza nem de meus amigos. Também me parecia que se esqueceram de mim e ti, Lourenço, como os demais. Transcorreu assim perto dum ano.

Naquele tempo tinha como amante senhorita Peronval. Era pequena e viva e dançava maravilhosamente. A segui a Londres, aonde a levou sua profissão e aonde me levou por seu gosto. Mas se preocupou em procurar demasiado abertamente milorde Brookball pra que eu concordasse nisso. Nos separamos. De regresso encontrei, em minha casa, junto dum grande pacote chegado da Itália, longa carta de senador Baldipiero. Falava de diversas coisas e me recordava o vinho Cinzano e os figos de Pienza e me explicava como terminara aquela aventura, se escusando por ter me envolvido nela, se bem dum modo que não pôde deixar de me ser agradável. Era certo que eu formaria um estranho juízo seu, porque não é muito comum ceder assim sua praça e àbandonar a outro.

O senador escreveu a mim:

Á!, meu caro sobrinho, alguma vez conhecerás, por experiência própria, a inconveniência dos muitos anos. Me iludira a respeito dos meus e mandei trazer em segredo, e após infinitos trabalhos, do lugar em que vivia, a formosa pequena cujo rosto não chegaste a ver. Levava mais de duas semanas em minha casa e nenhuma vez me encontrara em condição de me aproximar dela como seria oportuno. Dali procedia o mau humor em que me encontraste. Ainda o aumentou tua presença. Porque invejei tua juventude! Então me ocorreu a idéia que mais tarde pusemos em prática. Quando nos sentamos à mesa, na sala dos espelhos, já eu resolvera te abrir a porta da dependência em que repousava a bela cativa. Queria ao menos lhe dar assim a entender que eu era o dono de seus destinos. Também esperava que desse modo e pensando num afortunado rival fugiria de mim o desejo de seu corpo. Em muitos casos foi bastante pra

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me afastar das mulheres amadas o saber que outro as possuíra. O se dar conta da infidelidade duma amante serve freqüentemente de remédio pro amor, e eu esperava daquele subterfúgio um salutar consolo que não de te custaria muito me proporcionar.

Por isso te empurrei à escura dependência. Mas não sei que curiosidade me obrigou a aproximar o ouvido da porta. Escutei vossa luta, estremecimento, suspiro e silêncio. Depressa se reiniciava o combate e ouvia o surdo rumor de vosso erótico pugilato. Ó, surpresa! Uns ciúmes abomináveis atormentaram minha velha carne, que despertava da sonolência. Vinte vezes estive a entrar, e se fugi nas galerias, quando empurraste a porta, foi porque não poderia te ver sem sentir tentação de te matar, ainda que o lamentasse depois por causa do benefício que te devo. O ciúme tem efeito surpreendente. O meu produziu o de me devolver a perdida força.

Tão bem parecia minha prisioneira aceitar sua condição, que deixei de a ter encerrada. Na sala dos espelhos se repetiram inumeráveis vezes sua graça e beleza. Nos jardins houve o rumor de seus passos ligeiros. Foram dias encantadores e a ti os deve minha velhice. Às vezes descíamos à gruta de rocalha e ali sua voz era mais fresca e melodiosa que a água que cai dos resquícios das pedras nos sonoros pilões. Era feliz. Tudo fazia crer que minha amante esquecera seu seqüestro e a precaução com a qual pôs em boa guarda sua beleza. Parecia que lhe agradava aquela vida nova. Tal poder conseguiu alcançar sobre meu espírito que acabei confessando tudo. Soube teu nome e quem eras. Te odeio como me odeias.

Todas as noites me serve uma taça de vinho Cinzano. Que linda está quando sustém, com suas finas mãos, a pança da sombria garrafa! Cai o vinho na taça, que é de cristal antigo, leve, glauco e fresco aos lábios. A aproximo dos meus em deleite. Sei que o vinho que bebo está cuidadosamente misturado com veneno. Ela mesma prepara o imperceptível pó. Vou notando o efeito: Lentamente me esfria o sangue nas veias. Porém minha vida não vale o bastante pra que evite o desenlace um pouco mais cedo. Pra quê negar a uma mulher o prazer de se vingar? Todas as noites bebo, sorrindo, o nefasto copo. Porém tu, querido sobrinho, és jovem e convém seres avisado. Depois de mim é tua vez. Li teu perigo nos olhos dessa mulher estranha. Te ponhas a salvo. Quis te prevenir do perigo que corres e te compensar do mal que te fiz. Talvez não seja tão desagradável quanto pensas. Essa invisível ameaça suspensa sobre tua cabeça te ajudará a gozar de tudo com mais força e mais ardor. A juventude põe demasiada confiança no dia de amanhã.

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Deves me agradecer ter proporcionado a teus prazeres o aguilhão de que careciam. Adeus. Sinto frio nas mãos. É possível que nesta noite o velho Baldipiero beba em última vez.

O senador tinha razão. A partir daquele dia nasceu em mim um sentimento novo. Estava num estado de espírito que nem podia imaginar anteriormente. Havia alguém a quem minha vida estorvava e que se preocupava, ao menos em pensamento, em deter seu curso. Já não era somente a Natureza a, encarregada de fixar a hora de minha morte. Havia alguém que tinha particular empenho em adiantar aquele instante. Minha morte não seria, pra alguém, um acontecimento vulgar mas um favor desejado e obtido de modo ignorado por mim e cujo encontro poderia se apresentar bruscamente em conseqüência de circunstância fortuita. Não estava a meu alcance desviar a invisível ameaça nem prevenir seu efeito. Pelo próprio fato de viver já era vulnerável.

Que transformação! Até então vivera, se assim se pode dizer, do consentimento de todos. Havia em torno de mim um acordo pra me ajudar a viver. Quantos me rodeavam se prestavam gostosamente a isso. Quantas pessoas conhecidas ou desconhecidas trabalhavam direta ou indiretamente pra me proporcionar esse admirável bem da existência! O padeiro que amassava meu pão e o alfaiate que cosia meus ternos não desejavam outra coisa nem perseguiam outra finalidade. Pra mim colhiam e vindimavam. Poderiam se enumerar todos os artífices que contribuem pruma só vida. O homem está no centro dum círculo de esforço. E se passarmos do principal ao supérfluo, não estarão o barbeiro e o mestre de baile dispostos a auxiliar, no prazer e no adorno, essa mesma existência que outros sustentam em sua necessidade? Eu era, assim dizendo, o produto do trabalho de todos. Se caía doente, ali estavam o médico e o boticário pra me atender enquanto a doença durasse ou pra evitar conseqüência. Costumamos zombar dessas boas pessoas e não recordamos os trabalhos que passaram até conseguir nos ser úteis. Não é fácil tarefa conhecer o corpo do homem e obter da Natureza remédios pra ir reparando o que ela pouco a pouco destrui.

Numa palavra: Gozava uma conivência universal que me livrava, até certo ponto, dos perigos e da fadiga que o viver levaria emparelhados consigo se cada um tivesse que atender e sustentar sua própria vida. Se previam e cumulavam minhas necessidades e só me restava o desejo que serve pra manter no homem um movimento salutar. Mas subitamente uma pessoa desconhecida se negava a coadjuvar naquela geral benevolência! E ainda mais que isso, já que pretendia atuar no sentido inverso. Se declarava minha inimiga. Dentre todos aqueles bons desejos se destacava uma vontade que se punha num lado. E o que a vontade queria? Minha morte. A desejava em satisfação duma ofensa da qual eu só fora cego instrumento. Certamente lograria seu propósito. Talvez amanhã mesmo. E com pouca dificuldade, já que eu não conhecia o nome daquela mulher, nem lhe vira o rosto.

Havia em tudo isso elemento o bastante pra turvar minha firmeza. Confesso que passei, em primeiro lugar, esse sentimento, mas logo saí e não tardei a experimentar considerável alegria. Tinha razão o velho senador Baldipiero. Aquela ameaça, suspensa sobre minha cabeça, ameaça bastante remota pra me importunar, me estimulou a viver melhor o presente, já que o futuro era incerto. O rosto das mulheres adquiriu, a meus olhos, novo interesse: Buscava, entre todos, o de minha desconhecida. Embora não fossem alta a

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probabilidade de a encontrar aqui, havia tanta casualidade em toda a história, que bem podia se pensar que continuasse interferindo em meus assuntos até o extremo de me pôr em presença de minha inimiga. A notícia, que recebi pouco depois, da morte do velho Baldipiero, fez com que continuasse, durante algum tempo, com as mesmas preocupações. O ancião me legou, por sua morte, sua vila e todos os móveis que continha.

Não me apressei a ir tomar posse da magnífica herança. Então andava enamorado duma dama de qualidade, à qual galanteava assiduamente. Seu amor me fez esquecer tudo: O legado do senador, a duração de minha ausência e a ameaça de que estava advertido. Que importa o veneno ou o punhal àquele a quem fere o amor com seus fios mais cruéis e atormenta com suas mais venenosas substâncias?

Ao cabo dum ano, aproximadamente, empregado, na maior parte, em viajar pra me esquecer daquela infeliz paixão, experimentei subitamente o desejo de ver novamente meu país e, particularmente, nossa Veneza. Então estava em Amisterdã, que se lhe assemelha por seus canais, mas que não pode se comparar pela cor de seu firmamento nem pelo sorriso de suas mulheres. Estava sentado a uma mesa de jogo, ganhando e perdendo alternadamente, quando, entre as moedas espalhadas sobre o tapete, recolhi um cequim18 de ouro. O tomei entre meus dedos e comecei a lhe dar volta. O leão alado selava seu metal físico. Naquele instante vi nossa Veneza com inumeráveis canais, céu, palácios e campanis.19 Os florões de mármore rosa da morada dos Aldramin, a avermelhada fachada da tua, ó Lourenço!, e seus três degraus marinhos: Me encontrei, bruscamente, no molhe dos Schiavoni, como no dia em que resolvi minha viagem, ao lado de senhora Balbi. A enorme gaivota branca voava no ar transparente e atirava sementes às pombas. Estavam gordas e bem alimentadas. Me imaginava colhendo uma entre minhas mãos: Era tíbia e branca e tinha em seu apunhalado peito uma mancha rubra como de sangue.

Poucas semanas depois estava a caminho da Itália. Não houve incidente na viagem e me detive ao passar, na vila que me legara senador Baldipiero. Fazia bom tempo e os jardins estavam cheios de aroma. Percorri as acomodações precedido dos criados negros que abriam ante mim todas as portas, porém não pude reconhecer aquela em que passara a voluptuosa e perigosa noite cujas fatais conseqüências me comunicou em sua carta o velho senador. Em todos os lados entrava o sol através dos vidros das janelas. Em todos os lados reinava o mesmo ambiente de ordem e de paz. Mandei que me servissem a refeição na sala dos espelhos. Então me perguntava se toda aquela história seria uma ilusão noturna produzida pelo vinho Cinzano. E a própria carta do senador seria uma continuação da mesma pilhéria? Verdade era que o bom homem morrera. Porém sua morte era um acidente muito natural pra que tivesse necessidade de que alguém a acelerasse. Transferi pra mais tarde o esclarecimento de tudo aquilo.

Minha primeira visita em Veneza, ó Lourenço!, Foi pra ti. Como noutro tempo, saltei de minha oscilante gôndola e subi os três degraus do umbral de tua casa, desgastados pelo bater da água. Como noutro tempo, chamei por ti desde o começo da escada e te apressaste a responder. Confesso que experimentei a inesperada sensação de ciúme. Não estavas só. Tinhas a teu

18 Cequim: sm Antiga moeda de ouro, italiana, que valia aproximadamente 2000 réis. Nota do digitalizador. www.dicio.com.br/ 19 Campanil: Liga metálica pra sino. Lugar alto pra sino.

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lado um jovem que se pôs em pé a minha chegada. Era agradável e de bom talante. Tinha na mão um instrumento musical que abandonou, descuidadamente, sobre a mesa, com atitude de distraída familiaridade, enquanto te dirigia um olhar afetuoso. A princípio me desagradou um pouco sua presença. Acaso era teu amigo e me usurpava um lugar a que eu me considerava com exclusivo direito? Porém me sobrepus àquele mau-humor do primeiro instante. Pensei em minha longa ausência e no mal que fizera permanecendo longe de ti durante tanto tempo, e em vez de lhe guardar rancor, manifestei minha gratidão àquele rapaz que te consolara de minha vagabunda infidelidade. Escutou meus cumprimentos com muita dignidade e cortesia e juntaste nossas mãos com as tuas.

Assim me tornei amigo, como tu, de Leonello. Depois soube como vos conhecêreis. Leonello era de Palermo. Dizia que seus pais o mandaram a Veneza pra que se amoldasse aos costumes do século. Já residia ali havia mais dum ano e parecia ter esquecido seu lugar pelo nosso. Sua beleza era bem siciliana. Tinha os olhos vivos, o nariz fino, a boca encantadora sem buço, o talhe flexível e gracioso o andar. Me despertou a atenção a pequenez de sua mão. Com o trato me foi agradando cada vez mais seu caráter, tanto por sua doçura quanto por sua reserva. Não gostava das mulheres e se guardava cuidadosamente delas. Creio que era devoto. Porém mesmo não compartilhando delas, nos acompanhava, com gosto, em nossas diversões.

Tornamos a saborear com entusiasmo as alegrias próprias da juventude. Tocava a nossa seu fim, e no entanto a sua, em todo o esplendor, nos dava em vão exemplo de cordura. Como antes, tornamos a nos sentar às mesas dos cassinos das ilhas e às de faraó. Estávamos alegres. É impossível não estar em Veneza, e tu e eu somos venezianos. Leonello sorria gravemente a nossas loucuras.

O carnaval daquele ano de 1779 foi singularmente brilhante e animado. Abundaram os festejos e organizamos o de ir passar um dia em minha vila. Uma vez que o combinamos, fui antes de vós, pra fazer, de antemão, alguns preparativos. Tu, Leonello e alguns amigos devíeis vos unir a mim no dia seguinte, e no outro congregaria ali numeroso grupo. A estação extremamente doce se prestava a que iluminássemos com lanternas o jardim. Prometia ser agradável o espetáculo.

Fostes fiéis ao encontro. Vos vi chegar na hora combinada, tu e mais cinco amigos nossos. Estáveis fantasiados e ocupáveis magnífico carro. Vos levei a toda parte, a fim de mostrar o que tinha disposto prà festa. Haveria um baile com fogo-de-artifício na gruta de rocalha e uma refeição que seria servida na sala dos espelhos. Nos dirigimos a ela pra experimentar iluminação. Eu tinha Leonello no braço, que ria enquanto se abanicava com sua máscara. Mandei os criados que fechassem as janelas e corressem os cortinados, pra produzir uma obscuridade perfeita e poder assim julgar do brilho dos lustres. Estávamos em sombra. Naquele momento ficara tudo escuro. Gritei à criadagem que se apressasse a acender, pra não estar mais tempo, quando notei que algo frio e agudo penetrava em meu peito e me feria no próprio centro de minha vida, e a boca se me encheu de sangue.

Quando, já com luz, erguemos Baltasar Aldramin, vimos que tinha um punhal

enterrado no peito. A ponta devia ter atingido o coração, porque Aldramin estava morto.

Nós sete, que o rodeávamos, estávamos absortos, estupefatos. Éramos Ludovico

Barbarigo, Nicolo Loredan, Antônio Firmiani, Júlio Bottarolli, Otávio Vernuzzi,

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Leonello, e eu, todos amigos de Aldramin, todos pessoas que dariam a vida pra

preservar a dele, porque o estimávamos e ele a nós. Jamais houvera entre nós rivalidade,

nenhuma desinteligência, nada além de estima e amizade.

Então Baltazar Aldramin suicidara! Sua própria mão cravara o punhal homicida! Mas

por que se matara de tal modo? Não era jovem, rico e feliz? Qual seria a pena que nos

ocultara a todos? Estávamos imóveis e sombrios. Nossos rostos estavam tão pálidos

como o branco cartão das máscaras que ainda tínhamos nas mãos. Aldramin teria

realmente suicidado? Permanecíamos com os olhos fixos em seu cadáver. A mesma

suspeita monstruosa, inevitável, nascia simultaneamente em nosso pensamento. Não

seria um de nós o que, favorecido pelas trevas, dera em Aldramin o golpe mortífero? As

almas têm segredo e há tantas coisas ocultas! Mas nesse caso, quem? Qual era o autor

da obscura façanha? Este ou aquele? Quem?

Um mal-estar silencioso nos oprimia, e como não nos atrevíamos a nos olhar frente-

a-frente, espiávamos nossos olhares nos espelhos que refletiam e multiplicavam nossos

rostos em torno do inanimado corpo de Baltasar Aldramin: Seu cadáver multiplicado

nos espelhos parecia estar nos acusando individualmente.

Depois que se enterrou Aldramin na igreja de Santo Estêvão, onde repousa com as

mãos cruzadas sobre o rubro orifício do ferimento, continuou nos perseguindo a mesma

angústia: Quando nos encontrávamos, Barbarigo, Loredan, Mirmiani, Bottarolli e eu,

experimentávamos involuntária desconfiança uns dos outros. Mal nos atrevíamos a dar

as mãos.

Esse miserável mal-estar nos amargurou até o extremo de chegarem a se desafiar

Bottarolli e Barbarigo. Se bateram por um motivo importância, com o qual ocultaram a

verdadeira razão da peleja. Bottaroli resultou ferido de morte e Barbarigo teve de fugir.

Caí em profunda tristeza. Não podia me consolar da perda de Aldramin. Leonello

procurava me distrair. Tocava maravilhosamente diversos instrumentos musicais e quis

experimentar o efeito que causava em minha melancolia. Jamais pôde meu espírito

conceber suspeita a respeito dele. Sua doçura, sua fraqueza afastavam de tal modo

semelhante idéia que nunca lhe disse do que me preocupava tão dolorosamente.

Encontrei uma vez Loredan. Me perguntou sobre Leonello e respondi que desde algum

tempo ocupava uma dependência em meu palácio. Tomes cuidado com a escuridão!, me recomendou rindo sarcasticamente. A injustiça dessa suspeita me dilacerou o

coração que tão sincera amizade professava a Leonello.

Ao ver que minha pena aumentava a cada dia que passava, Leonello me propôs que

viajássemos. Pretendeu ter negócio em Roma e me disse que recebera cartas de

Palermo, nas quais o incumbiam de os resolver. Fingi acreditar no pretexto, que era só

pra me induzir a mudar de residência. Me desagradava a permanência em Veneza. Os

sinos da igreja de Santo Estêvão, que ficava perto de nosso palácio, me faziam

estremecer. Reavivavam em mim a recordação de Baltazar. Aceitei o projeto de viagem.

Depressa ficaram prontos nossos preparativos. Descemos os três degraus do umbral

desgastados pela água transparente. Me voltei várias vezes pra olhar a branca fachada

do palácio de Aldramin. A chuva avivara os florões de mármore rosa: Pareciam as

cicatrizes de duas finas feridas.

Nos pusemos a caminho eu e Leonello, no mesmo carro. Queríamos ir dormir em

Pienza. Todavia a noite nos surpreendeu bastante longe da cidade, atravessando sombrio

pinheiral. Já saíamos dele quando nosso carro se viu, de improviso, assaltado por um

grupo de ladrões. Os mais audazes agitavam tocha no focinho dos espantados cavalos,

enquanto os outros nos apontavam com o cano das pistolas. Nossos criados tinham

fugido.

Foram vãs nossas tentativas de resistência. Nossas espadas foram inúteis.

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Subitamente se apoderaram de mim e me amordaçaram. Caiu sobre meus olhos uma

venda. A última coisa que vi foi Leonello se debatendo entre os bandidos. Dois homens

me seguraram, um na cabeça e outro nos pés, e me levaram a bastante distância. Me

puseram de pé e me fizeram andar, me empurrando os ombros. Meus passos deslizavam

sobre a terra coberta de agulha de pinheiro. Se detiveram e senti que me despojavam da

roupa. Depois me ataram ao tronco duma árvore. A casca me arranhava as costas. A

resina se colava aos pés.

Ouvi como um pisoteio ali perto. Não tardou a se escutar o ruído duma briga. Sem

dúvida, aplicavam a Leonello o mesmo tratamento que eu acabava de suportar. Porém,

julgando pelo surdo rumor que ouvi, não se prestava tão facilmente a o sofrer. Me fazia

estremecer a idéia de que Leonello pudesse receber durante sua defesa um golpe

traiçoeiro. Queria lhe gritar que nesses momentos o melhor é deixar fazer e que nada se

ganha em resistir ao inevitável. Porém a mordaça que me tapava a boca me deixou

mudo. Enfim silêncio. Supus que os bandidos já terminaram a obra, quando ressoaram

grandes gargalhadas confundidas com ruidosas exclamações. Isso não durou mais dum

instante. Nossos agressores deveram se retirar, satisfeitos, da faina. Só se notava o

murmúrio do vento na crista das árvores. Passavam as noturnas aves com vôo rápido e

apagado. De vez em quando caía uma pinha sobre o fofo chão.

Estávamos, Leonello e eu, num bosque, atados cada um a um tronco de pinheiro.

Não era muito boa a situação, porém eu, em vez de refletir sobre os inconvenientes,

buscava a maneira de a melhorar. Se afrouxara um pouco a venda que me cobria os

olhos e consegui fazer que pouco a pouco fosse escorregando. Olhei ao redor.

Ainda brilhava, já a ponto de se apagar, uma tocha cravada no chão. Iluminava os

troncos avermelhados. A um estava atado alguém. Era Leonello. Um sopro de vento

reanimou a tocha. Sim, era ele. Se destacava na luz, sobre o fundo de sombra, seu corpo

branco. Porém era ilusão noturna ou estranha fantasia? Era o corpo duma mulher e no

entanto era de Leonello. Tinha o rosto voltado e eu só podia ver a nuca e o cabelo curto.

Pra o reconhecer bastaria sua mão. E a sua, pequena e fina, se crispava sobre a cortiça.

Uma mulher! Então senti nascer e despertar em mim cruel e suspeita surpresa. Uma

mulher! Todavia, pra quê semelhante disfarce? Pra quê tal segredo? Uma mulher!

Leonello era mulher! A punhalada, a ferida rubra, Aldramin...

A tocha se apagou bruscamente. A mordaça me apertava os lábios. Porém dentro de

mim se agitavam múltiplas idéias. Nasciam confusas e indecisas e iam, pouco a pouco,

saindo à luz. Se apresentou toda a verdade e me parecia que naquele momento Aldramin

me contava quanto vos repeti.

Na manhã um lenhador que passou ali me pôs em liberdade cortando as ataduras que

me sujeitavam. Desmaiara de fadiga e de dor. Quando voltei a mim estava deitado na

terra. Comecei a recordar o que sucedera. Dirigi o olhar à árvore em que vira amarrado

o que eu julgava ser Leonello. Ninguém estava nela. Sem dúvida a desconhecida pôde

se desamarrar e fugir. Me aproximei do tronco. Uma parte da casca estava desgastada.

Tomei a corda do chão. O lenhador a guardou em seu saco, pra atar feixe, e nos

dirigimos silenciosamente a sua cabana. Me deu tosca roupa, com a qual regressei, sem

contratempo, a Veneza. Soavam no ar cor de púrpura os sinos de Santo Estêvão. A

antiga fachada do palácio de Aldramin copiava na água do canal seus discos de

mármore sanguinolento.

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Confissão duma senhorita Marcel Proust

Os prazeres dos sentidos nos arrastam aqui e acolá mas, passado o momento, o que nos rendem? Remorso e dissipação do espírito. Saímos com a alegria e, freqüentemente, voltamos com a tristeza, e os gozos da tarde contristam a manhã. Assim a volúpia dos sentidos ilude no principio mas na fim fere e mata.

Imitação de Jesus Cristo, livro I, capítulo XVIII

I

No meio do esquecimento que se procura nas falsas alegrias volta mais virginal através da embriaguez o doce perfume melancólico do lilás

Henri de Régnier

nfim se aproxima a liberdade. Certamente fui desastrada, atirei mal, me

deixei fraquejar. Na verdade seria melhor perecer ao primeiro golpe,

mas, enfim, não puderam extrair a bala e as perturbações do coração já

principiaram. Isso não pode durar muito. Não obstante oito dias, essa situação ainda

pode durar oito dias!, durante os quais só poderei me esforçar pra rememorar a horrível

seqüência dos fatos. Se eu não estivesse tão fraca, se tivesse bastante ânimo pra me

levantar, pra partir, desejaria morrer nos Oublis,20

no parque onde passei todos meus

verões até os quinze anos. Lugar nenhum está mais repleto de minha mãe, tanto sua

presença e, ausência ainda mais, o impregnaram de sua pessoa. A ausência não

representa, pra quem ama, a mais certa, a mais eficaz, a mais viva, a mais indestrutível,

a mais fiel presença?

Minha mãe me levava aos Oublis no fim de abril, partia novamente depois de dois

dias, passava mais dois dias em meado de maio, em seguida voltava pra me levar na

última semana de junho. Suas vindas tão curtas eram, pra mim, os acontecimentos mais

agradáveis e mais cruéis. Durante esses dois dias me prodigalizava carícia, da qual,

habitualmente, pra me enrijar e acalmar minha sensibilidade doentia, era bastante avara.

Nas duas noites que passava nos Oublis, vinha dizer boa-noite em meu leito, velho

hábito que perdera, porque eu achava nisso muito prazer e muita tristeza, não dormia

mais a força de a chamar pra me desejar boa-noite outra vez, não insistindo mais, enfim,

não sentindo qual a vantagem do apaixonado desejo, inventando sempre novos

pretextos, pra virar meu travesseiro abrasante, meus pés gelados que só ela poderia

aquecer com as mãos. Tantos momentos ditosos recebiam uma doçura a mais porque eu

percebia que eram aqueles em que era verdadeiramente minha mãe e em que sua

habitual frieza devia custar bastante. O dia em que partia, dia de desespero, quando eu

me agarrava a seu vestido até o trem, suplicando me levar a Paris, eu distinguia muito

bem a sinceridade no meio do fingimento, a tristeza que transparecia sob as repreensões

divertidas e agastadas por minha tristeza tola, ridícula, que desejava me ensinar a me

dominar, mas que ia embora. Ainda me lembro de minha emoção num desses dias de

partida (exatamente essa emoção intata, inalterada pela dolorosa vicissitude de hoje),

um dos dias de partida quando fiz a deliciosa descoberta de sua ternura tão semelhante e

20 O termo francês oubli significa omissão, esquecimento. No texto só pode ser o nome duma loja, memorial ou outro lugar. Nota do

digitalizador.

EE

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tão superior à minha. Como todas as descobertas, fora pressentida, adivinhada, porém

os fatos pareciam se contradizer nesse particular. Minhas impressões mais radiantes são

as dos anos de regresso aos Oublis, chamada porque eu estava doente. Não somente me

fazia mais uma visita, com a qual eu não contara, mas então não era mais que doçura e

carinho espalhados sem dissimulação nem contrariedade. Mesmo naquele tempo

quando esses sentimentos não eram ainda suavizados, enternecidos pelo pensamento de

que um dia me faltassem, essa afabilidade, essa ternura representavam tanto pra mim

que a alegria da convalescença me foi sempre mortalmente triste. Se aproximava o dia

de eu estar bem curada pra que minha mãe pudesse partir novamente, e até lá eu não

sofria demasiado porque ela não retomava a severidade, a justiça sem indulgência de

antes.

Um dia, os tios em casa de quem eu assistia nos Oublis me ocultaram que minha mãe

devia chegar, porque um priminho viera passar algumas horas comigo e eu não estaria

muito entretida com ele na angústia deliciosa da espera. Esse segredo foi, talvez, a

primeira das circunstâncias independentes de minha vontade que foram as cúmplices de

todas as disposições ao mal, que, como todas as meninas de minha idade, e não mais

que elas no momento, eu trazia comigo. Esse priminho que contava quinze anos de

idade, então eu tinha catorze, era já bastante viciado e me ensinou coisas que logo me

fizeram estremecer de remorso e de volúpia. Eu gostava de o ouvir, de deixar suas mãos

acariciarem as minhas, um prazer envenenado na própria fonte. Cedo tive força pra o

abandonar e estava no parque com uma doida necessidade de minha mãe, que só eu

sabia, pobre de mim!, estar em Paris, a chamando em toda parte, pelas idéias, contra

minha vontade. De repente, passando diante duma estacada, a percebi sentada num

banco, sorridente e me abrindo os braços. Ergueu o véu pra me abraçar, me precipitei

contra sua face, a inundando de lágrima. Chorei muito tempo, contando todas essas

coisas vis que necessitavam da ignorância de minha idade pra dizer e que soube escutar

divinamente, sem compreender, diminuindo a importância cuma bondade que aliviava o

peso de minha consciência. Esse peso se aliviava, pouco a pouco. Minha alma

esmagada, humilhada, se tornava cada vez mais leve e poderosa, transbordava. Eu era

toda sentimento. Divina suavidade emanava de minha mãe e de minha inocente

transformação. Senti logo, sob as narinas, um odor tão puro e tão fresco! Era um lilás

cujo ramo oculto pela sombra de minha mãe já florescera e que, invisível, perfumava o

ambiente. Na copa das árvores, as aves cantavam a toda força. Mais alto, entre os cimos

verdes, o céu era dum azul tão profundo que parecia apenas a entrada dum firmamento

onde se poderia subir indefinidamente. Abracei minha mãe. Jamais reencontrei a doçura

desse beijo. Partiu no dia seguinte e essa partida foi mais cruel que todas as anteriores.

Ao mesmo tempo que a alegria, me parecia que era, agora que eu pecara uma vez, a

força, a sustentação necessárias que me abandonavam.

Todas essas separações me ensinavam, contra minha vontade, o seria irreparável, e

que sucederia um dia, se bem que nunca, nessa época, eu seriamente pensara na

possibilidade de sobreviver a minha mãe. Eu estava decidida a suicidar no minuto

seguinte a sua morte. Mais tarde a ausência trouxe outros ensinamentos, ainda mais

amargos, que nos habituamos ao afastamento, que é a maior diminuição da própria

pessoa, a mais humilhante angústia de sentir que não se sofre mais. Aliás, essas lições

deviam ser desmentidas em seguida. Sobretudo penso outra vez, agora, no pequeno

jardim onde eu tomava, com minha mãe, o desjejum e onde existiam incontáveis

pensamentos que sempre pareceram um pouco tristes, graves como as inscrições, porém

suaves e aveludados, freqüentemente malvas, às vezes violetas, quase negros, com

graciosas e misteriosas imagens amarelas, alguns inteiramente brancos e de delicada

inocência. No momento colho todos esses pensamentos em minha lembrança. Sua

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tristeza aumentou por serem compreendidos e sua doçura aveludada jamais

desapareceu.

II

Como pôde toda esta água fresca de recordação jorrar mais uma vez e escorrer em

minha alma impura de hoje sem ficar maculada pelo contato? Que virtude possui esse

odor matinal de lilás pra atravessar tantos vapores fétidos sem se misturar e se

enfraquecer? Como sou desgraçada! Enquanto está em mim, é bem longe, fora de mim

que minha alma de catorze anos se revela ainda. Bem sei que não é mais minha alma e

que não depende mais de mim que ela volte. Todavia não creio que um dia a chorarei.

Era pura, eu tinha de a tornar forte e capaz de mais altos encargos no futuro. Sempre nos

Oublis, depois de ter estado com minha mãe na margem da água cheia de raio solar e de

peixe, durante as horas quentes do dia, ou passeando com ela na manhã e na tarde nos

campos, eu revia, confiante, esse porvir que jamais era tão lindo ao gosto de seu amor,

de meu desejo de lhe agradar e dos poderes, se não da vontade, ao menos da imaginação

e do sentimento que se agitavam em mim, reclamavam tumultuosamente o destino onde

se realizariam e batiam com golpes repetidos na parede de meu coração, como se

quisessem o abrir e se precipitaram fora de mim, na vida. Se no momento eu saltava

com toda minha força, se abraçava mil vezes minha mãe, corria ao longe em sua frente,

qual um cãozinho, ou permanecia indefinidamente atrás pra colher papoula e escovinha,

as levava lançando gritos. Era menos pela alegria do passeio em si e dessas colheitas do

que pra expandir minha felicidade de sentir em mim toda essa vida preste a jorrar, a se

prolongar no infinito, na perspectiva mais vasta e mais encantadora que o extremo

horizonte das florestas e do firmamento que eu desejaria atingir num só pulo. Ramalhete

de escovinha, trevo e papoula, se eu vos carregava com tanto enlevo, os olhos ardentes,

toda palpitante, se me fazíeis rir e chorar, é que eu vos arrumava com toda minha

esperança de então, a qual, todavia, como vós, feneceu, se desvaneceu e, sem ter

florescido como vós, foi atirada à poeira.

O que desolava minha mãe era minha falta de vontade. Eu fazia tudo obedecendo à

impulsão do momento. Desde que foi sempre orientada pelo espírito ou pelo coração,

minha vida, sem ser inteiramente boa, entretanto não foi verdadeiramente má. A

realização de todos meus belos projetos de trabalho, de calma e de razão, nos

preocupava acima de tudo, a minha mãe e a mim, porque sentíamos, ela mais

distintamente, eu confusamente, mas com bastante força, que era só a imagem projetada

em minha vida, da criação por mim e em mim mesma dessa vontade que concebera e

acalentara. Porém sempre eu a adiava ao dia seguinte. Eu me concedia tempo, às vezes

me desolava de o ver passar, mais ainda havia tanto diante de mim! Contudo eu tinha

um pouco de receio e sentia, vagamente, que o hábito de me esquivar assim, de querer,

começava a me pesar cada vez mais forte à medida que ela avançava em anos,

duvidando, tristemente, que as coisas não se transformariam inteiramente dum golpe, e

que não seria pecado contar cum milagre, que não me custaria sofrimento, pra modificar

minha vida e criar minha vontade. Desejar ter vontade não era suficiente. Teria falhado

precisamente o que eu não podia sem vontade: O querer.

III

E o vento furioso da concupiscência faz estalar vossa carne como um velho trapo

Baudelaire

Com dezesseis anos atravessei uma crise que me tornou sofredora. Pra me distrair me

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fiz estrear no mundo. Jovens como eu adquiriram o hábito de irem me visitar. Um era

perverso e malicioso. Tinha maneira ao mesmo tempo suave e atrevida. Foi de quem

fiquei enamorada. Meus pais souberam disso e nada articularam pra não me causarem

muita pena. Passando todo o tempo onde eu não o via, pensando em si, acabei me

rebaixando, me assemelhando a si tanto quanto me era possível. Me induzia a proceder

mal quase por surpresa, pois me habituou a deixar despertar em mim mau pensamento,

ao qual não tive vontade a opor, único poder capaz de os fazer reentrar na sombra

infernal donde saíram. Quando o amor findou, o hábito tomara o lugar e não faltavam

jovens imorais pra o explorar. Cúmplices de minhas faltas, também passavam por seus

apologistas diante de minha consciência. A princípio tive remorso atroz e fiz juramentos

que não foram cumpridos. Minhas amigas me dissuadiram de insistir junto a meu pai.

Lentamente me convenceram de que todas as moças faziam o mesmo e que os pais

somente fingiam o ignorar. As mentiras que incessantemente eu era obrigada a forjar,

minha imaginação as disfarçou imediatamente das aparências dum silêncio que

convinha guardar sobre uma necessidade inelutável. Nesse momento eu não mais vivia

bem. Eu ainda sonhava, pensava, sentia.

Pra distrair e expulsar todos esses maus desejos comecei a penetrar demasiadamente

no mundo. Seus prazeres esgotantes me habituaram a viver em perpétua companhia, e

eu perdi com o gosto da solidão o segredo das alegrias que me deram até ali a natureza e

a arte. Jamais fui tão freqüentemente ao concerto como naqueles anos. Jamais,

inteiramente preocupada com o desejo de ser admirada numa loja elegante, senti menos

profundamente a música. Eu ouvia e nada entendia. Se a entendia deixei de ver tudo que

a música sabe revelar. Meus passeios também foram como tocados pela esterilidade. As

coisas que noutro tempo eram suficientes pra me fazer feliz durante todo o dia, um

pouco de sol dourando a verdura, o perfume que as folhas deixam escapar com as

últimas gotas de chuva, perderam, como eu, doçura e graça. As árvores, o céu e a água

pareciam se desviar de mim e, se permanecendo só consigo frente a frente, eu os

interrogava ansiosamente, não mais murmuravam aquelas respostas vagas que me

enraiveciam. Os seres divinos, que anunciam as vozes das aves, das folhas e do céu se

dignam visitar somente os corações que, habitando em si, são purificados.

Foi então que, procurando um remédio inverso, porque eu não tinha a coragem de

querer o verdadeiro que estava tão perto e, pobre criatura!, tão longe de mim, em mim,

me permiti de novo ir aos prazeres pecaminosos, acreditando reanimar lá a chama

extinta no mundo. Foi em vão. Impedida pelo prazer de agradar, eu dilatava, dia a dia, a

decisão definitiva, a escolha, o ato verdadeiramente livre, a preferência pela solidão.

Não renunciei a um desses dois vícios em benefício do outro. Os mesclei. O que estou

dizendo? Cada um se encarregando de quebrar todos os obstáculos de pensamento, de

sentimento, que deteriam o outro, parecia também o evocar. Entrava no mundo pra me

acalmar depois duma falta, e cometia outra desde que estava calma. Foi nesse momento

terrível, após a inocência perdida, e antes do remorso de hoje, nesse instante quando de

todos os momentos de minha existência menos vali, que fui a mais apreciada de todas.

Me julgaram moça pretensiosa e tola. Entretanto, ao contrário, a cinza de minha

imaginação estava ao gosto do mundo que ali se deleitava. Agora que eu cometia contra

minha mãe o maior dos crimes, me achavam, por causa da maneira ternamente

respeitosa em relação a si, o modelo das filhas. Após o suicídio de meu pensamento,

admiravam minha inteligência, se apaixonavam por meu espírito. Minha imaginação

esgotada, minha sensibilidade exaurida, bastava à sede das mais alteradas da vida

espiritual, tanto essa sede era fictícia e mentirosa como a fonte onde acreditavam a

estancar. Aliás, ninguém suspeitava do crime secreto de minha vida e eu representava a

todos a donzela ideal. Então quantos pais disseram a minha mãe que se minha situação

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fosse mais modesta e pudessem pensar em mim não desejariam outra mulher pra sua

filha! No fundo de minha consciência obliterada eu experimentava, em conseqüência

destes louvores imerecidos, uma desesperada vergonha. Não chegava à superfície e eu

caíra tão baixo que tive a indignidade de referir esses fatos, rindo, aos cúmplices de

meus crimes.

IV

A alguém que perdeu o que jamais se encontra... jamais! Baudelaire

No inverno de meus vinte anos a saúde de minha mãe, que nunca fora vigorosa, ficou

muito abalada. Soube que sofria do coração, sem gravidade, porém era preciso evitar

aborrecimento. Um de meus tios me informou que minha mãe desejava me ver casada.

Um dever preciso, importante, se me apresentava. Eu poderia provar a minha mãe o

quanto a amava. Aceitei o primeiro pedido que me transmitiu com sua aprovação, me

impondo assim, na falta de vontade, a necessidade de me obrigar a mudar de vida. Meu

noivo era justamente o jovem que, por sua extrema inteligência, afabilidade e energia,

podia ter sobre mim a mais ditosa influência. Ademais estava decidido a morar conosco.

Eu não seria separada de minha mãe, o que pra mim foi a pena mais cruel.

Então tive a coragem de relatar todas minhas faltas a meu confessor. Perguntei se

devia a mesma confissão a meu noivo. Teve a piedade de me afastar do intento, porém

me fez prestar o juramento de não mais reincidir nos erros e me deu a absolvição. As

flores tardias que o júbilo fez brotarem em meu coração, que eu acreditava a sempre

estéril, frutificaram. A mercê divina, a graça da mocidade, onde se vêem tantas feridas

cicatrizarem espontaneamente, pelo vigor da idade, me curaram.

Se, como disse Santo Agostinho, é mais difícil voltar a ser casto do que ter sido,

então conheci uma difícil virtude. Ninguém duvidava que eu valia infinitamente mais

que antes e minha mãe beijava todo dia minha fronte, que nunca deixara de crer pura,

sem saber que estava regenerada. Ainda mais, nesse momento, fizeram sobre minha

atitude distraída, meu silêncio e melancolia no mundo, injusta reprovação. Porém não

me irritei por isso, pois o segredo que existia entre mim e minha consciência satisfeita

me proporcionava grande prazer. A convalescença de minha alma, que então me sorria

ininterruptamente cum semblante semelhante ao de minha mãe e me olhava com

expressão de terna reprovação através das lágrimas que secavam, era dum encanto e

languidez infinitos. Minha alma renascia à vida. Eu não compreendia como pudera a

maltratar, fazer sofrer, quase matar. E efusivamente agradecia a Deus a salvar a tempo.

Era o acordo dessa alegria profunda e pura com a fresca serenidade do céu que eu

saboreava na tarde quando tudo terminou. A ausência de meu noivo, que fora passar

dois dias na casa da irmã, a presença ao jantar do rapaz que tinha a maior

responsabilidade em minhas faltas passadas, não projetavam tristeza nessa tarde límpida

de maio. Não havia nuvem no céu que refletisse exatamente em meu coração. Aliás

minha mãe, como se houvesse entre ela e minha alma, embora ignorasse meus pecados,

misteriosa solidariedade, estava quase curada. Dissera o médico: É preciso a tratar

quinze dias, então não haverá recaída possível! Só essas palavras eram, pra mim, a

promessa dum futuro de ventura, cuja suavidade me fazia fundir em lágrima. Naquela

tarde minha mãe usava um vestido mais elegante que de costume, e, na primeira vez

depois da morte de meu pai, portanto mais velha dez anos, acrescentara um pouco de

malva a sua habitual veste negra. Estava toda embaraçada por estar vestida como

quando mais jovem, triste e feliz por romper dor e luto pra me agradar e festejar minha

alegria. Aproximei de seu corpinho um cravo rosa, que a princípio repeliu, mas que

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depois prendeu, porque procedia de mim, duma mão um tanto hesitante, envergonhada.

No momento em que nos acomodaríamos à mesa, atraí a mim, na direção da janela, seu

olhar delicadamente repousado do sofrimento passado, e a abracei apaixonadamente. Eu

me enganara afirmando que jamais encontrara a delícia do beijo dos Oublis. O beijo

dessa tarde foi tão doce como nenhum outro. Ou melhor, foi mesmo o beijo dos Oublis

que, evocado pela atração dum minuto semelhante, deslizou suavemente do fundo do

passado e pousou entre as faces de minha mãe, ainda um pouco pálidas, e meus lábios.

Beberam pela felicidade de meu próximo casamento. Eu só bebia água, por causa da

excitação muito forte que o vinho causava aos nervos. Meu tio declarou que num

momento como aquele eu podia fazer uma exceção. Revejo perfeitamente sua figura

divertida pronunciando essas palavras estúpidas... Meu Deus! meu Deus! Me confessei

totalmente, com bastante calma. Serei obrigada a parar aqui? Nada mais vejo! Sim...

Meu tio afirma que eu bem podia, num momento como aquele, fazer uma exceção. Me

olhou, rindo, ao dizer isso. Bebi depressa, antes de visar minha mãe, com medo que me

defendesse disso. Ela falou suavemente: Nunca devemos dar uma oportunidade ao mal, por pequena que seja. Porém o vinho de champanha estava tão fresco que bebi

ainda outras duas taças. Minha cabeça se tornara muito pesada, ao mesmo tempo eu

tinha necessidade de repousar e de consumir meus nervos. Nos levantamos da mesa.

Jacques se aproximou e me disse, me olhando fixamente:

— Queres vir comigo? Desejo mostrar os versos que fiz.

Seus lindos olhos brilhavam encantadoramente nas faces frescas e lentamente cofiou

o bigode com a mão. Compreendi que me perdia e fiquei sem força pra resistir. Falei,

toda trêmula:

— Sim. Isso me dará prazer.

Foi pronunciando essas palavras, antes mesmo, talvez bebendo a segunda taça de

vinho da Champanha, que cometi o ato verdadeiramente responsável, o ato abominável.

Depois disso, só me abandonei. Fecháramos as duas portas a chave, e ele, com a

respiração em meu rosto, me apertava, as mãos deslizando ao longo de meu corpo.

Agora, enquanto o prazer me dominava cada vez mais, eu sentia despertar, no fundo do

coração, uma tristeza e desolação infinitas. Me parecia que eu fazia chorar a alma de

minha mãe, a alma de meu anjo tutelar, a alma de Deus. Eu nunca pudera ler, sem

frêmito de horror, a descrição das torturas que os celerados impõem aos animais, à

mulher e ais seus filhos. Agora me aparecia confusamente, quando em todo ato

voluptuoso e criminoso há tanta ferocidade da parte do corpo que goza, e em nós tanta

boa-intenção, tantos anjos puros são martirizados e choram.

Logo meus tios terminariam a partida de carta e voltariam. Os defrontaríamos, eu não

cairia mais, era a última vez... Então, sobre o fogão, me vi ao espelho. Toda a vaga

angústia de minha alma não estava pintada sobre minha figura, porém toda ela

respirava, dos olhos brilhantes às faces inflamadas e à boca que se oferecia, uma alegria

sensual, estúpida e brutal. Pensava no horror dalguém que, há pouco me vendo abraçar

minha mãe com melancólica ternura, me visse assim transfigurada em besta. Porém

logo se ergueu no espelho, contra minha figura, a boca de Jacques, ávida sob o bigode.

Confusa até meu recôndito mais profundo, aproximei minha cabeça da sua, quando vi

diante de mim, (Digo tal como foi. Escutai porque posso dizer) sobre a varanda, diante

da janela, vi minha mãe que me olhava, aparvalhada. Não sei se acreditou, nada

compreendi mas tombou a trás e ficou com a cabeça enterrada entre duas barras da

sacada.

Esta não é a derradeira vez que descrevo: Como disse, quase desfaleci. Entretanto eu apontara bem mas atirei mal. Todavia não puderam extrair a bala e os acidentes do

coração principiaram. Somente posso ficar ainda oito dias nesta situação, e até lá não

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poderei deixar de raciocinar sobre o primórdio e de presenciar o fim. Preferiria que

minha mãe me visse cometer outros crimes e mesmo aquele, porém que não notasse

aquela expressão radiante que minha fisionomia mostrava no espelho. Não. Não a pôde

ver... Foi uma coincidência... Foi atacada de apoplexia um minuto antes de me ver...

Não a notou... Não é possível o querer. Deus, que tudo sabia, não o quereria.

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Reveladoras Felipe Trigo

lória se penteava ao espelho, encostada na parede contra o cepo de

carne. No outro extremo da ampla galeria, estendido no canapé de

vime, Rodrigo esperava a irmã com os cromos, pra os pregar nas

folhas novas do álbum, já com orlas prateadas.

— Glória!

— O quê?

— Digas, a minha irmã, que venha.

A criada continuou passando o pente de metal no punhado de cabelo louro, atirado e

aberto em rolos ondulantes sobre os braços nus. A sufocava a reverberação filtrada

naquele ângulo de 1m de altura, na imensa lona que toldava o pátio.

— Glória!

— O quê?

— Não ouviste?

— Calma! Compreendes? Me disse que não poderia vir nesta tarde e me deu os

cromos. Os apanhes. Estão aqui no banco.

I — Pois tragas. Vamos!

— Uaaá! — Fez Glória, se voltando e lhe mostrando a língua.

Donde a senhora teria tirado esses dois filhos tão tolos? Muitas noites vinham à

cozinha ver como descascavam batata, ela e a outra companheira, Vicenta. E, quando

também não estava presente a velha ama Charo, lhes contavam ambas, pra se

divertirem, histórias obscenas, pra rirem ao olhar a cara de tolo de Rodrigo, que não

compreendia, e a cara de Petra, que já ia entendendo demais e se zangava algumas

vezes porque diziam aquelas coisas diante do menino!

Glória o via no espelho, sem deixar de se pentear.

Porém tornou a chamar com energia e ela, enfim, se levantou, devagar, muito

confiada na bondade do rapazote, guapo como uma menina e ingênuo até o incrível,

apesar de ter treze anos.

Assim como irritava, a Rodrigo, ter sempre de se aborrecer antes que as criadas lhe

obedecessem, o entristecia o afastamento cada dia maior de sua irmã. Por isso os olhos

ressumavam lágrima quando Glória se aproximou, levando os cromos no avental, com

os seios mal cobertos pelo corpete solto. O censurou, parando em burlesca admiração:

— Choras porque a senhorita não virá?

— Qual senhorita?

— Ora! Qual senhorita!Senhorita Petra! Tua irmã. Me mandam que a chame assim.

Não observaste que lhe preparam vestidos compridos? És tolo!

— Melhor!

— Não poderá vir porque está escrevendo uma carta a... uma carta pra... Isso não

disse mas sei... Porque está escrevendo uma carta... Uma carta em papel de flor! Se sentou à borda do canapé, pra pôr os cromos no assento.

— Ora, então não sabes a quem escreve? Não sabes... És um bobo!, homem.

— Melhor! — Gritou de novo, cerrando as pálpebras pra desfazer a lágrima.

— Pensas que uma senhorita de quinze anos passará vida brincando com as bonecas?

Terás de brincar sozinho. Veremos. Talvez não saibas por que neste inverno tiraram tua

cama do quarto? Por que tiraram tua cama do quarto de Petra? Não dormíeis juntos?

GG

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— Mas disseram que passei mal e tornaram a me levar!

— Ora! De nada sabes!, garoto. Se observasses! Tens medo da noite, tua ama velha

te conta histórias e ainda te dá o peito. Pobre criancinha! — Exclamou em seguida,

passando uma mão ao outro lado do canapé, pra se inclinar sobre Rodrigo e dar um

beijo — Queres brincar comigo? Queres? Vamos: Digas! Ou queres teta? Olhes, tomes.

Sou tua ama!

Enquanto ele cobria o rosto, dissimulando o pranto e fugindo, Glória, se curvando a

ele, lhe cobria a cabeça com seu cabelo, formando uma redoma.

Rodrigo descarregou um soco naquele seio branco e duro, cujo contato na boca

causara impressão de asco insuperável.

— Sua porca! Imunda! Direi, agora, a mamãe! E também direi que vais te pentear na

copa e que enches os pratos de cabelo. Sua porca! Porca!

Correu, cheio de ira, resmungando, com os punhos cerrados, tropeçando nos móveis

e sem dar importância à moça que, ali sentada, ria, o chamando e dizendo que não

despertasse a patroa. Ora, nem que não soubesse que a ama Charo lhe dava maminha ao

dormir! Pobre criança, que já não brincaria mais com a irmã!

II Contudo, o vira sair tão decidido que, temendo que o tolinho fosse contar, resolveu

observar lá de dentro. Apanhou sua blusa na cozinha e se abotoou. Atou o cabelo.

Na ante-sala achou ninguém, nem na sala. Tudo estava escuro e silencioso, e fechado

o quarto de dona Luz. Quando se retirava, Petra a chamou, entreabrindo a porta do

toucador. A senhorita tornou a fechar. A mandou se sentar. Concluía.

Também Petra se sentou a escrever, afanosamente curvada na mesinha cheia de folha

de papel rasgada, com os pés cruzados a um lado da cadeira, descobrindo, na orla da

saia, os tornozelos e os sapatos finos como luvas. A formosa trança de azul de aço, por

força de ser tão negra, caía nas costas, sobre o chambre de luto leve.

Cerrou a carta num envelope e se dirigiu à criada, tímida, delicada, incendiada de

adorável rubor.

— Pra quem é? — Perguntou, a mantendo no alto numa ponta com dois dedos —

Adivinhes!

— Pro senhor Romão — Glória respondeu, sem vacilar.

— Tomes. Entregues na noite.

Guardando a carta, Glória sorria: Renderia um par de duros do generoso pretendente.

— A senhorita lhe diz que sim?, acaso.

— Adivinhaste. Seremos noivos. — Respondeu a formosíssima jovem, se estirando

na poltrona, onde caíra como quem descansa dum trabalho — Bem, e o quê mais? Aí

digo que o amo, o que não é verdade, porque mal posso o amar quando ainda não falei

consigo. Não creio que me agradará que falemos desta correspondência em que se

empenha minha amiga Pura, porque é a noiva do amigo dele e em que tu te empenhas

sem saber porquê!

— Á!, senhorita. — Bem, me disseram que a chamasse assim. Pra mim dá no

mesmo. — Gostarás quando falar consigo na Alameda, na noite, depois que passar a

Virgem e que puder sair depois de tirar todo o luto. Ali há música. As mamães se

sentam sob as árvores e as moças, vestidas de claro como pomba, dão volta e mais volta

nos jardins, acompanhadas dos noivos as que têm. Depois o teatro, depois os bailes. E o

portão em casa dalguma amiga. Depois... Á! Ainda não viveste!

— Tiveste muitos?

— Namorados? Alguns!

— O primeiro com que idade? Glória mergulhou na recordação, perdida em confusas

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distâncias. depois disse:

— Com treze anos. Mas aquele pode se dizer que não o tive. Antes me teve ele. Na

verdade era noivo de minha prima, um maquinista. Eu estava só, numa tarde, e entrou.

Disse que eu era graciosa e ri. Disse que me amava e ri... e...

Soltou uma gargalhada, contente de poder jogar com intenções equívocas que Petra

não entendesse.

— E nada. Que me arcou naquela tarde, como se eu fosse sua noiva... mais!...

Apenas, fizeram o enxoval minha prima e ele e no mês seguinte se casaram e partiram.

Depois me relacionei com um rapaz muito elegante. — Continuou, apressada pra aturdir

Petra com seu sorriso maligno e não a deixar perguntar — O filho dos patrões. Já sabes.

Levava o chocolate todas as manhãs e o rapaz acabou se enamorando. Numa noite

fomos, mascarados, a um baile, ceamos e me embriagou um pouco. Posso dizer que a

gente se diverte deveras com os namorados!

Petra estava fora de si, quase envergonhada de não sabia quais adivinhações terríveis,

que não podia conciliar com a jovialidade da criada.

— Bem! Tendes outra liberdade! — Replicou, pra atalhar a conversa com assomo de

censura digno, seco, que feriu Glória.

— Como! Mais liberdade? E as senhoritas?. Desde então servi a muitas e poderia

contar de senhoritas muitas e longas histórias. Ó! Nessas coisas não há senhorita que

valha e não é preciso ir a baile. Conhece Salvadora Villareal?

— De vista.

— Pois no portão, Salvadora Villareal, quando eu servia em sua casa, diante do

parque... ora... na meia-noite o namorado a deixou em camisa!

— Em camisa! Ó!, Glória.

— É o que digo. Eu que sei! Porque veio a meu quarto, me despertar, chorando. Sim,

senhorita, não conheces o mundo! Chorando pra me suplicar que fosse pedir suas

roupas aos três: Ao namorado e dois amigos do namorado, que também foram

namorados antes, todos por farra e por brincadeira de aposta... Saindo, quando já estava

nua, de trás duma árvore.

— Ó! Cales! Cales, Glória! Que sem-vergonha! Isso é mentira, Glória! Precisava ser

indecente pra fazer isso!

A mocinha se levantara com nervosa indignação e Glória se aproximou prà pegar no

queixo, sempre sorridente.

— Pobre Petrita! Na verdade não posso me acostumar a te chamar de senhorita.

Entregarei tua carta nesta noite. Pouco a pouco aprenderás o de que uma namorada é

capaz!

Dando sonoro beijo, fugiu.

Petra desmoronou numa poltrona. Vaga repugnância de não sabia quais perspectivas

ingratas a invadia. Teve impulso de chamar a criada e rasgar a carta. Aquela carta

escrita, na verdade, porque sua criada e suas amigas de colégio se obstinaram. Inútil,

falsa, má, pois que mentia nela e por causa dela, como se, efetivamente, fosse o

princípio duma ação censurável, fugia e se escondia de Rodrigo e de sua mãe.

Queria chorar, sufocada pela visão da moça em camisa, nas grades, vista ao mesmo

tempo pelo namorado e pelos outros escondidos atrás das árvores. Vista também por

Petra, aqui, através de sua inocência de anjo, como odioso sofrimento de vergonha e de

desonra no fim duma senda de pecado de amor, negra como a noite!

III Mas, quem chorara lá em cima, no sótão, aonde subiu, fugindo da ingratidão da irmã

que nunca queria brincar, foi Rodrigo. Ia cuspindo, passando as mãos nos lábios, cheio

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de ira, pra apagar a impressão insulsa e abominável do peito que Glória tentara lhe dar,

zombando dele como se fosse um bebê. Se recordava que já fizera o mesmo noutra

ocasião, aquela porca!

Depois, Rodrigo tudo esqueceu durante a sesta, distraído matando vespa e

decalcando um mapa.

O terraço se estendia ao longo da casa. Ali tinha velocípede, com espaço pra correr.

Até o pátio, desde uma balaustrada cheia de vaso de flor, continuando no telhado da

galeria. Uns caramanchões em forma de trapeira, que serviam pra traste e pra evitar o

calor ao andar de baixo, o isolavam da rua. Petra o transformara em jardim, com as

flores, e Rodrigo em ginásio a outra extremidade confinante com a igreja. No outro lado

uma taipa de 2m estabelecia a fronteira com o terraço da hospedaria, que na pitoresca

fachada ostentava o rótulo de hotel das Colônias.

De cadeira e de mesa a um tempo, onde instalava seus papéis e suas figuras, servia

ao menino um dos bancos de tijolo que ao longo dos desvãos se embutiam entre uma e

outra porta. Ia colorindo o mapa. Colhido de surpresa por tremendo badalar que soou

acima de sua cabeça, derramou inesperadamente o copo dágua. Davam 6h no relógio do

Carmo. O desenho se molhara. Depois de o contemplar desoladamente, resolveu o

estender ao sol, no chão, sobre um jornal. Esperaria. Tomou carreira, se pendurou e

subiu, de rins, ao trapézio, ficando sentado tranqüilamente, em suave balanço, a cabeça

encostada à corda, enquanto contemplava de cima os sinos que sempre o assustavam.

Eram os telhados da paróquia, uma região singular e deserta como um cemitério de

bárbaros panteões, a única decoração que o abstraía ali, onde o horizonte se estreitava

em muros próximos em todos os lados. Seguindo o muro que dava ao pátio,

perpendicular ao terraço, uma estreita plataforma corria sobre a parte do edifício

destinado a moradia do pároco. Numa rampa de cal se abriam três escadinhas

irregulares transpondo o desnível dos cruzeiros e a partir deles e duma lanterna, cujas

janelas de cortinas verdes ressaltavam sobre as pedras da meia-laranja do batistério,

começava um labirinto de encruzilhadas e estreitos, como sendas que subiam e desciam

em declives rápidos sobre as abóbadas, atrás dos parapeitos e cornijas e entre as cúpulas

laterais e o grande zimbório que se elevava no espaço, cortando o azul com o bojo

colossal de enegrecidas telhas. Outra escada encostada ao muro do zimbório, em semi-

caracol, levava ao terraço do alto campanário que fazia de torre, onde os arcos, cheios

de ninho de cegonha, exibiam os tijolos como feridas sangrando na argamassa. Nada de

adorno nem de arquitetura. Se tratava do reverso, que só Deus devia ver, do teto de

velho templo, dentro rejuvenescido e faceiro pros fiéis. Os passeios eram de concreto

armado, lisos como as paredes, pra bem das lagartixas. E nas gretas, pilastras,

telhadinhos e buracos, uma fauna volátil se agitava cada vez que o poderoso vibrar dos

sinos perturbava o repouso da sesta, tangidos pela maquinaria do relógio ou pelos

coroinhas se pendurando nas maromas21

da sacristia.

Rodrigo sabia de cor aquelas anfratuosidades. Saltando o tabique, graças ao qual o

sacristão só subia ali de mês a mês, as percorria, a miúdo, em divertidas caçadas a

francelhos22

e pardais. Quando não pelo prazer de trepar e escorregar como numa

excursão entre montanhas, ou, melhor ainda, pra se sentar na torre, sob o sino grande, e

contemplar o panorama da cidade e do campo. A solidão penetrava na alma, causando

uma espécie de crispação de pavor que dava prazer e que suportava bem,

particularmente na tarde, quando o alegre ruído das aves o cercava no ar e ouvia cantar,

ao longe ,nas galerias suas criadas. Porque é de confessar que nunca, na noite, embora

21 Maroma: Corda grossa, calabre. Nota do digitalizador. http://www.kinghost.com.br/ 22 Francelho: sm zoologia. Nome comum de diversas aves-de-rapina do porte do falcão. Nota do digitalizador.

http://www.kinghost.com.br/

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se sentisse bem tomando fresco no terraço, pôde sozinho suportar a visão das molhes

escuras, nem o resplendor do luar, que as coloria dum azul fantástico, fazendo

fosforescer reflexos cristalinos e lançando, de cúpula a cúpula, sinistras manchas de

sombra sob o alto céu.

IV O fez se voltar no trapézio um ruído de garrafas quebradas e de cachorros ladrando.

Viu, no tabique do hotel, uma laranja atirada ao alto, e outra, que começaram a se

cruzar num subir e descer gracioso. Momentos depois não eram três, mas seis ou sete as

laranjas, traçando no ar um arco em que se perseguiam sem cessar.

Incapaz de resistir à curiosidade, saltou do trapézio, pra ver. Nas pontas dos pés e

carregado com a escada branca da percha, a encostou ao tabique, começando a subir

cautelosamente.

No terraço do fundo estava uma menina, loura como as bonecas, cujas melenas

frisadas caíam sobre o guarda-pó de brim, ondulando no gracioso balanceio dos braços,

presas por um diadema de pedras verdes. Estava de costas. Não o percebeu. As laranjas

voavam como uma grinalda sobre sua cabeça, se dilatando, se estendendo, se apertando

outra vez até parecer que chegavam a rodar nas têmporas, obedientes às rosadas mãos

que as impulsionavam com rapidez de encanto, enquanto o talhe flexível e firme se

estendia ou dobrava, ora erguido nas pontas dos pés, ora num e noutro lado, ou com o

busto a trás e o rosto ao céu, joelho no chão, em tão violenta flexão de todo o corpo, que

o sapato branco tocava as pontas da áurea cabeleira. E a formosíssima criatura, sempre

rodeada por aquele aro girador, que parecia a extasiar, fingindo os anéis duma serpente

avermelhada. Perto dum banco havia uma cítara e uma harpa. Diante dela, a

contemplando, presos e mimosos, estavam dois cães são-bernardo.

Cada vez que a menina, se ajoelhando, lançava a cabeça a trás, Rodrigo se ocultava

atrás da cerca. Enfim ela o viu. Os cães rosnavam e ladraram. Ela interrompeu o jogo.

Deslumbrado pelo brilho singularíssimo daquele rosto, também ficou a olhando. Ela

recolhera na saia as laranjas e mostrava as rendas azuis das saias-de-baixo de seda, a

meia perna, estalando a vigorosa panturrilha na meia escocesa.

— Molk! Schut! — Gritou, dando um pontapé no cão que ainda rosnava.

Imediatamente sorriu a Rodrigo, dirigindo uma reverência.

— Quem te ensina isso? — Perguntou, animado pela plácida jovialidade.

— Aprendo. — Respondeu a mocinha, com acento estrangeiro, dulcíssima a voz e

amável.

— Deve ser muito difícil!, creio.

— Ó! Aqui no solo, não. Se pode fazer. É que querem que eu o faça em panneau

sobre Stren, que galopa muito alto.

— Como?

— Correndo em cima do cavalo.

— Assim, cairás! Quem te segura?

— Ninguém. Vou em pé sobre ele. Não me viste no circo?

Sua curiosidade com relação à menina redobrou. Se lembrou de ter lido nas esquinas

anúncios sobre a chegada duma companhia eqüestre.

— Á! És titereira?, então.

— Acrobata e musicista excêntrica. — Retificou a menina, com orgulho ofendido.

Deixou as laranjas no banco, se sentou numa extremidade e apanhou a cítara.

— Vês? Toco isso, violino, harpa, e em garrafas e copos dágua. Volteio, também, em

meu cavalinho Kaiser. Me chamo Élia Deval. Senhorita Élia. Viste os cartazes? Pois,

sou eu!

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Rodrigo se calava, admirado e agora um pouco possuído da vontade de rir ante a

nova reverência cheia de cortesia e de graça da qual a mocinha acompanhou sua

apresentação. Ágil, desembaraçada, tão loura, tão loura e linda, fazia recordar as

princesinhas encantadas dos contos que lia. E senhorita Élia lhe parecia uma fantasia,

uma boneca que risse e tivesse os olhos de vidro verde e dentes de nácar. Mas, que

linda! Sua irmã Petra também era linda de verdade e esta era mais bela ou chocava a

Rodrigo a animação de feira de suas cores. A cítara tinha incrustação de marfim e níquel

e corda de prata. A harpa era dourada e vermelha.

Cruzadas as pernas, o cotovelo no espaldar e a cabeça reclinada na mão, Élia

prosseguia a apresentação. A mãe era inglesa, porém ela viera de Londres com três

anos. Há nove anos residia na Espanha. Agora com outros da companhia: Vivia com

Grossi (um palhaço italiano) e a equilibrista Andréia, que conhecera sua mãe, morta por

um cavalo em Lisboa. Nunca tivera pai. Andréia lhe queria bem: Grossi a segurava

quando Kaiser a derrubava. Aqueles cães dos quais cuidava eram do palhaço. Cada um

valia 6000 francos. No circo se trabalhava demais. Na tarde ensaio e na noite

terminavam muito tarde as funções.

— És espanhol?

Dessa vez Rodrigo riu. Achou graça na pergunta, como se em sua idade se pudesse

ser espanhol, inglês... Respondeu modestamente:

— Nasci nesta casa. Mas andes, depois tocas. Tornes a fazer aquilo: Como se

chama?

— Jogos icários. Nunca viste?

— Nunca fui a um circo nem a teatro. Faz oito anos que morreu meu pai e depois

uma tia minha, estivemos de luto. O que fazes pra que as laranjas não caiam?

— As seguro! Pra aprender se precisa acostumar pouco a pouco.

— Se te visse fazer, aprenderia. Pedirei a mamãe que me leve ao circo. Demorará

muito?

— Não sei.

— Moras ali na hospedaria?

— Sim.

Depois duma pausa ela perguntou:

— E tu, o que és?

— Eu? — Respondeu o menino, rindo — Nada.

Em seguida, sentiu vergonha diante duma menina menor e que já tinha uma profissão

e, ademais, querendo corresponder a suas galantarias, acrescentou (com modéstia cheia

de arrogância no futuro) que nada era ainda, mas que estudava e seria governador como

fora seu pai. Senhor cura, Alberto, lecionava em casa, pois, embora fosse prestar exame

de curso secundário no instituto, tinha matrícula de ensino livre. Na tarde passeava com

senhor cura, e antes com a mãe e a irmã, até a mata da fábrica de eletricidade, ou até a

estrada, onde faziam vala e monte de areia, achatando alfinete quando o trem passava.

Estiveram cerca de quatro anos em sua granja El Galapagar, ao morrer o pai, mas

tiveram de voltar, pra que Petra fosse ao colégio de freira, onde fizera amiga. Por isso

nunca fora a um circo e saía quase sempre com senhor cura.

Se ouviram vozes, subindo da galeria.

— Vês: Me chamam. Alberto está vindo. Andes, jogues um pouco as laranjas pra eu

ver.

Ela obedeceu, sorridente e cortês, com seu hábito de artista complacente com o

público. E começou a explicar, atirando as laranjas devagar:

— Olhes: Assim... se apanha esta com cuidado.. E esta... E esta... Aprenderás. Não é

difícil! Faças primeiro com duas... Prestes atenção: Se atira uma... quando desce a

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outra... uma... a outra... Sem olhar a mão, só a cima... Querendo, prestes atenção, vão

passando de mão... atires a direita... apanhes a esquerda... Assim... assim... assim...

Vamos ver se consegues. Tomas?

Ela atirou as duas laranjas, que Rodrigo apanhou sucessivamente no ar. Com isso

cobrou ânimo. Se firmando na escada, lançou primeiro uma e depois outra ao ar. Ambas

bateram no peito, rodando aos pés de Élia, que ria.

Ele também ria, discípulo dócil, em confissão de inaptidão.

E ela de repente o viu desaparecer como um boneco de surpresa.

— Adeus!

V Escapara para ir buscar Petra e a fazer subir pra que também viesse ver senhorita

Élia, tão pequenina, e que sabia fazer tantas coisas e se manter de pé sobre cavalo a

galope. Diriam à mãe que os levasse ao circo.

Um rumor de conversa o deteve na sala de visita.

Sua mãe e irmã estavam com amigas que vinham cada vez com mais freqüência,

quase todas as tardes. À esquerda, na fresca da porta, viu Petra na sacada, acompanhada

de Aurora Reina, que se lhe tornara antipática desde um dia em que, como Glória, lhe

chamara maricas e Periquito entre elas, lhe mandando que as deixasse e fosse brincar

com os amigos. Como se ele, que só saía com o cura, pudesse ter amigos ou os

quisesse!

Não se atreveu a entrar. Se aproximou na direita até a porta do Balãozinho, onde

estava sua mãe, e reconheceu a voz dona Neves, a mãe de Aurora. Estava também

presente Josefina, aquela senhorita alta e elegante, mais jovem que todas, que o

aborrecia com carícia e beijoca, o pondo no colo constantemente pra o acariciar como a

uma menina de seis anos!

No buraco da fechadura as via, e ouvia o que dona Neves dizia a sua mãe:

— Tens a filha tola por não a deixar se afastar de perto. É preciso viver!, querida. Na

aldeia são indispensáveis lutos de sete anos, mas não aqui. Te fazes de velha antes de

ser. Quem se isola da sociedade é esquecido, e as amizades valem tanto quanto o

dinheiro. Cada coisa em sua idade, amiga Luz! Da mesma forma, esse rapaz que a ronda

é o mais distinto da cidade. Uma sorte pra ela se chegasse a se casar. A deixes com

minha Aurora, que o conhece!

Rodrigo compreendeu que se entrasse estorvaria e que também dona Neves o

mandaria brincar como das outras vezes. Se afastou buscando a ama Charo, pra se

vestir, levando a sensação de que sobrava em toda parte dentro da sua casa, enquanto

essas pessoas estranhas vinham se apoderar das salas e das sacadas e falar de coisas que

não lhe interessavam e que nem devia escutar. A Josefina e dona Neves, tão festejadas

pelos outros, Rodrigo não podia suportar. Se diria que vieram se apoderar de tudo,

mandar nele, em sua casa, em sua irmã e em sua mãe.

A ama o ajudou a se vestir. Chegou senhor cura e passearam essa tarde no forte de

São João, colhendo lírio. Antes de dormir, naquela noite, ficou muito tempo pensando

como-diabo podia a titereira jogar com seis laranjas duma vez.

VI Sentiu a menina no terraço e correu ao tabique.

— Boa tarde, Élia.

— Boa-tarde, Rodrigo.

Élia subia, infalivelmente, depois do almoço, pra cuidar dos cães, macacos e duas

araras. Rodrigo a viu fazer a obrigação de gaiola a gaiola, repreendendo Gut, que

trepava nas grades de arame e nada deixava aos outros, acariciando Molk, que rosnava e

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esticava a corrente, movendo a felpuda cauda ao colocar as enormes patas nos ombros

da menina.

Rodrigo não a interrompeu enquanto ela distribuía os pedaços de dois pães que trazia

na saia. O palhaço a castigaria se não fosse bem-feito. Nas tardes anteriores Élia já

contara a seu amiguinho a crueldade com que lhe batiam por qualquer coisa: Quando

nos ensaios sobre seu cavalinho andava mal, chicoteavam indiferentemente o cavalinho

e ela. E ao narrar a pobrezinha chorava, fazendo chorar também o menino.

Outra tarde, manifestou temor de não poder dar, na noite, na grande série de saltos,

um salto mortal de costas que queriam que desse e que ensaiaram pouco. A encheriam

de chibatada, lá dentro, como sempre que se portava mal na função, e por mais que o

diretor a mimasse na pista ao ver que o público ria carinhosamente...

— Ouças. — propôs Rodrigo, cheio de piedade — Não viste meu ginásio? É aqui e

tem um trampolim de areia. O mau será que caias, se isso é tão difícil. Mas se acreditas

que não, venhas. Ensaies em meu ginásio!

O que dificultava era a taipa, porque Élia não tinha escada. Contudo, lisonjeada com

o convite, bem depressa a pequena artista achou meio de observar se o ginásio servia.

Uma cadeira rasgada, sobre a qual colocou dois velhos caixotes de querosene, permitiu

fazer uma torre móvel, à qual ela trepou em seguida. Magnífico! A família de Rodrigo

não se zangaria?

— Na hora da sesta, com este sol, ninguém vem àqui.

— Está esplêndido!

Num salto, apoiada nas mãos, ficou sentada no cavalete, uma perna, depois outra, e

se atirou, ágil lá de cima, antes de Rodrigo ter tempo de oferecer a escada.

— Puxa! Logo se vê que és ginasta!

— Ó! Verás! Apenas, não poderei fazer algo assim. Esperes. Tens uma corda?

A acharam e com ela prendeu à cintura o rodado das saias o cruzando entre as coxas

e o transformando em gracioso calção.

Depois, ensaiou, causando admiração e espanto ao amiguinho com seus sarilhos na

barra, donde se lançava em voltas no ar. Com suas paradas nas argolas, com seus

equilíbrios no trapézio, em que, de repente, a um hip! selvagem caía a trás, com todo o

corpo, pra ficar pendurada nos pés, com a formosa cabeleira de ouro varrendo o chão. O

trampolim causou a Rodrigo maior medo ainda, porque não se tratava de simples saltos

mortais, mas sim de se lançar direto no alto e dar a volta como uma varinha flexível ou

então cair de cabeça e saber se dobrar com vigoroso impulso a 0,5m do solo, de forma a

se pôr de pé depois de ter rodado sobre a nuca e as costas. O salto de costas,

principalmente, devia ser de imensa dificuldade, porque, conquanto Élia se lançasse

bem sobre a perna direita, não podia girar no ar sem perder a lateralidade, o que a

desesperava e a fazia cair de mau jeito algumas vezes.

— Mas isso é um disparate! Te machucarás! — Repetia o rapazinho, alarmado e

cheio de pena.

Lacrimejou, uma vez que sua amiguinha foi tropeçando até arrastar a cara na areia,

esbarrando nele, que também caiu, quando tentara a segurar.

— Olhes. Não quero ver isso. Não quero que o faças. Sabes? E como se plantara

diante do trampolim pra o impedir, ela replicou:

— Já te dizia que não poderei os fazer na noite. Desorganizarei a série de salto

porque os que vêm atrás terão de parar ou cairão sobre mim. Me baterão muito!

Só então o rapaz compreendeu o horror daquela profissão. Não bastava que a

delicada boneca de olhos verdes fosse uma artista notável em muitas coisas: Lhe pediam

sempre mais, que fizesse mais, que fizesse tudo, senão, lhe davam pauladas e chibatadas

como no cavalinho. O coração se lhe confrangia. Enfim, tirou o lenço e se pôs a chorar

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num canto, amarga e desconsoladamente. Élia se sentou no trampolim e chorou em

silêncio Mas Rodrigo estava sufocado de indignação e ao mesmo tempo de pena e

tornou a se aproximar:

— Escutes. Se não são teu pai nem tua mãe, por que de te baterão?

— Não tenho alguém além deles, desde que morreu minha mãe! — Respondeu Élia,

afastando o lenço e mostrando, entre lágrima, um sorriso.

Seu tom de dura experiência da vida contrastava com a celestial, angélica e amorosa

candura dos olhos, e tendo Rodrigo compreendido a dolorosa necessidade de que

aprendesse, a convidou de novo, se colocando em frente, pra evitar que ela caísse fora

da areia, a ajudando com inocentes conselhos que a faziam sorrir e contemplando,

enfim, o brutal espetáculo daquele salto impossível com a solene atenção que teria se a

visse se preparar pra trágico sacrifício de morte.

VII Desde então se gostaram como dois irmãos e se encontravam todas as tardes no

terraço, saltando a parede.

Assim, quando Élia terminava de cuidar dos animais, se aproximava da taipa e

perguntava, sorrindo:

— Posso subir?

— Sim, subas.

Um instante depois estavam juntos no terraço de Rodrigo. Disse ele numa tarde:

— Tenho de dizer uma coisa. É que te verei no circo. Minha mamã nos levará na

próxima semana, no dia da Virgem, quando tirarmos o luto.

Élia se alegrou. Claro! Que tolice nunca ter visto o circo! Devia se ver tudo, e por

isso ela gostava de viajar. Já tinha visto muitos circos, muitos teatros. Estivera em

Londres, em Berlim, em Barcelona, em Madri e, em pequena, embarcara também pra ir

a Estados-Unidos. O que mais a satisfez foi Saragoça, porque teve amiguinhas no hotel

e a cidade também não a desagradava, conquanto fosse pequena.

Ele a ouvia, assombrado com o ar cosmopolita de seu falar, a olhando, extático e

perdido em mistério de lonjura, como o das bonecas finas trazidas de Paris. Sentado

num dos sofás de tijolo, enquanto a mocinha falava passeando, sem parar e brincando

com suas fitas ou olhando os pés, lhe perguntava coisas de suas viagens, das grandes

cidades, cujos nomes recordava, da geografia, como uma relação de coisas inexistentes.

Mas o certo é que senhorita Élia não sabia dar conta das cidades visitadas, a não ser das

hospedarias ou dos circos, e confundia Berlim, por exemplo, com Lisboa, sem estar

certa se uma ou outra era a capital da Prússia, coisas que faziam Rodrigo sorrir.

— Tomes.

Deu um punhado de caramelo.

— Obrigada. — Replicou a menina, galantemente.

Por felicidade, não tiveram necessidade de lhe bater nas noites passadas, ao repetir a

grande série de salto com seu salto lateral.

— Tocarás música nesta noite? Tens duas coisas. Olhes o programa.

— Sim, dois números: Um de música.

— E o outro?

— O volteio em Kaiser, pra encerrar a função.

— Á! O que é preciso é que o faças quando eu for! Tenho desejo de te ver no cavalo.

De repente, propôs à menina apanhar ninho dos telhados da igreja, como duas tardes

antes, numa excursão corajosamente realizada por ambos.

Escalaram a taipa.

Ao chegarem no terraço da paróquia, sorriram, se guiando um ao outro pela mão,

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sem se atrever a falar até se distanciarem duma clarabóia que Rodrigo já dissera que

dava aos aposentos do cura. Em pouco, se perderam no lado oposto das cúpulas,

seguindo a tortuosa senda traçada na rampa dum cruzeiro. Ali não corriam perigo de ser

descobertos, porque aquela parte dava a outra rua e o edifício da frente era um convento

arruinado.

O zimbório os protegia com sua sombra colossal e o pavimento estava escorregadio e

úmido. Revistavam os buracos nas paredes, nas cornijas, nos telhadinhos, donde

espantavam os pardais. Indistintamente, se levantavam, um ao outro, nos braços, pra

mirar as gretas. De quando em quando um francelho ou um gavião cruzava, fugitivo,

traçando rápidos zigue-zagues no ar. As salamandras trepavam nos muros com seus

corpos gelatinosos, da mesma cor do cimento.

Mas o perigo que surgiu inopinadamente, bloqueando Rodrigo no ângulo inclinado

da esquina, onde o parapeito desaparecia pra fundir a cornija nos adornos duma voluta

sobre a rua, foi um vespeiro que com um fuste acabava de levantar, revistando as telhas.

Centenas de vespas volteavam, irritadas, e o rapaz, antes que o atacassem, atravessou

entre elas, se defendendo, a palmadas, das mais baixas, pra se juntar a Élia e correrem,

porque o enxame os perseguiu bom pedaço.

Se refugiaram no campanário, sem parar de correr e sufocando as gargalhadas.

Bastante tempo estavam fora de casa, só logrando achar ninho seco. Se sentaram sob o

sino grande.

Élia e Rodrigo estavam ali à vontade, cada um dum lado da janela, recebendo o ar

fresco do alto e olhando a enorme profundidade da grande muralha. Dominavam a

cidade e os campos e lhes arrancava grito de alegria o espetáculo das coisas

apequenadas.

— Ó, olha, olha ali, na praça! Que pequeninas as árvores e os homens baixinhos

como formigas!

— Á, prestes atenção! O trem parece de brinquedo. Não é verdade?

Se viam os pátios e os terraços cheios de vaso de flor, no montão interminável de

casas brancas e azuis, entre as quais apareciam algumas ruas estreitíssimas e tortuosas.

Rodrigo indicava os lugares e os edifícios mais altos. Um grande passeio na

extremidade do povoado eram os jardins do parque, onde havia tanques com peixes

vermelhos e muitas rosas. Um edifício alto e velho, a universidade. E o instituto, outro

casarão, diante da fábrica de gelo. Noutro lado, num lugar pitoresco e se destacando

soberbamente, se divisava o grande colégio de irmãs, e além a praça de Touros. Depois,

estenderam a vista nas planícies intermináveis da campina, onde o Guadalvira, após

rodear a cidade com um traço em S, se escondia entre hortas, tornando a aparecer cada

vez mais perdido na distância.

— Vês o rio? Aquela ilha de salgueiro? Pois ali está nosso cercado El Galapar, onde

passei muito tempo.

Contava suas correrias ali, trepando nos carvalhos com sua irmã Petra, como agora

com Élia, nos telhados. Tinham um barco e uma rede, e passavam as horas de calor sob

os salgueiros da ilha, se balançando e matando mosquito.

— Não parece, vista daqui, uma manchinha verde? Pois é grande e os salgueiros,

quando se está debaixo deles, parecem mais altos que daqui de cima, deste campanário.

Ao olhar a cima, seguindo a indicação, Élia pensou que o céu desabava. Um estrondo

estalara diante dela, povoando o ar de tremor metálico. Se abaixara, com terror, no

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tabuleiro do ajimez,23

apertando seus ombros contra o peito do rapaz, que sorria.

Era o sino grande, tocando as vésperas e, como ela compreendera logo, ria também,

de sorte que a segunda badalada apenas a assustou. Sem tempo de se separar de seu

amigo, olhava o sino e continuava sorrindo.

— Escutes. Faças assim.

Enquanto o sino continuava tocando, colocava e retirava, alternadamente, as mãos

aos ouvidos de Élia, pra suavizar em ritmo entrecortado o zumbido formidável. Quando

ela se levantou teve de desprender um anel de seu cabelo, preso num botão da blusa de

Rodrigo.

— Ouças. És tão valente quanto minha irmã. — Disse ele. Élia sorriu.

— Madame Andréa disse que sou como minha mãe.

— Estavas presente quando o cavalo matou tua mãe?

— Sim, estava. Me recordo. Foi Kinder, um potro negro que ainda temos, cuma

estrela na cabeça. Minha mãe montava à alta escola, com traje de amazona, também

preto. Fazia saudação ao terminar um exercício, porém, se sabe que o diretor,

distraidamente, fez sinal à orquestra e, assim que Kinder ouviu o galope, partiu num

salto, atirando minha mãe contra uma coluna.

— O que fizeste?

— Eu? Como sabes, era muito pequena. Corri, gritando, e vi que não perdia sangue

quando a levavam. Uns cavalheiros do público me tomaram nos braços, me afirmando

que ela desmaiara, apenas.

A menina inclinava a cabeça, recordando, e Rodrigo não insistiu, mostrando com o

silêncio o respeito a seu sofrimento. Quis, porém, os interromper e lhe rogou que

explicasse alguns números da função daquela noite, cujo programa tornou a tirar do

bolso.

Élia, com a habitual humildade galante, começou:

— Olhes: A Filha do Ar são vôos em dois trapézios, colocados sobre uma rede.

Sobem os Leotardo, dois irmãos, e depois ela...

VIII Os surpreendeu a voz de Glória, chamando no terraço:

— Rodrigo! Rodrigo!

Glória estranhou não o ver. Porém, guiada pelo rumor da conversa próxima, não

tardou em os descobrir na torre. Quem acompanhava Rodrigo?

Se esconderam.

Maliciosa, Glória insistiu em o chamar, advertindo que o vira.

Rodrigo, então, tranqüilizou sua amiguinha, começando a descer com ela.

Apareceu primeiro ele por cima da cerca. Atrás, Élia, que não ousava descer antes

que o rapaz o fizesse, e olhava Glória sorrindo:

— Bem. O que é? O que queres? Esta é uma menina que mora na hospedaria. —

explicou Rodrigo, a cavalo na parede — Para quê me chamam?

Apesar de tudo, se sentia ruborizado por ter sido descoberto. Ele que, sem saber por

que, ocultara a sua mãe e a Petra as entrevistas do terraço. Ele, que a ninguém no mundo

dissera que durante as noites sonhava com sua linda amiguinha!

— O alfaiate está aí e te provarão um terno. — Respondeu Glória. E acrescentou,

com escárnio:

23 Janela arqueada superiormente, bipartida por um colunelo central e vertical. Nota do digitalizador.

http://www.dicio.com.br/ajimez/

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— Podes apresentar esta menina a tua mãe, que te admirará vendo como caças as

amigas nos telhados.

— Queres? — Perguntou Rodrigo a Élia, ingenuamente, sem notar que a criada

gracejava.

Ó! Não! Já era tarde. Élia teria de ir ao circo, pro ensaio. Brigariam logo com ela, ao

saberem que, sem permissão, estivera em casa estranha.

Glória se torcia de rir, sem deixar de observar a gentileza com que o rapaz levou a

moça loura, dum lado a outro, escada ao ombro, prà ajudar a saltar a cerca.

Depois descia zombando cruelmente de Rodrigo, o pondo de mau-humor ao felicitar

pela namorada que achara à maneira dos gatos, tão linda e que, de certo modo,

compreendia a conveniência da permissão, segundo se devia visitar por dentro ou nos

terraços as casas da vizinhança.

— Bem, homem. Se houver cria me oferecerei como padrinho a Barbastristes:

Cantarás o Miarramamiau.24

IX Enfim chegou a véspera da Virgem, tão ansiada por Rodrigo.

Dona Luz resolvera ir ao circo naquela noite, pra não fazer Petra perder o passeio em

festa na noite seguinte.

Às 9h a carruagem de Josefina parou à porta. Vinha só.

Subiu e foi levada a um gabinete por Vicenta, a outra criada casa.

— As patroas estão acabando de se arrumar.

A arrogante mulher do deputado vestia um traje princesa de seda cáqui, bordado de

escura passamanaria. Soltou a leve estola de gaza, que trazia no braço, e se sentou no

sofá, diante do faceiro espelho ornado.

Sorriu sua imagem elegantíssima. Dois grandes brilhantes faiscavam no róseo lóbulo

das orelhas, cobertas de cabelo escuro e áspero.

Mas sorriu, com amargura infinita de vida e juventude perdidas: O marido passava

meses em Madri, a pretexto das Cortes, a pretexto dos perpétuos assuntos do distrito. Se

casara prà abandonar tão cruelmente, porque os eleitores necessitavam dum agente de

negócio?

Se sentia nervosa, passava agora cinqüenta dias em solidão desesperada de amor,

com aquela sogra fiscal e com aquele sacristanesco secretário velho em casa, nesse

maldito povoado casca-de-noz, onde tudo se sabia e onde a mulher do deputado

infundia veneração de santa consagrada num altar, numa redoma de vidro.

E a santa se deitava, não dormia, se atormentando no martírio de seu temperamento

de brasa, naquele leito imenso e solitário. Isso ela não perdoaria ao marido, tanto menos

quanto, ainda em suas raras temporadas de descanso campestre de homem público (o

que não faria ele em Madri), se convertia o deputado em enamorado ardentíssimo, que a

fatigava, que a esgotava. Exatamente como no princípio do casamento, quando, a força

de loucuras sem nome, despertou nela o hábito dessa ânsia infinita.

Chegava alguém.

Rodrigo, que se pôs a sua frente, lhe estendendo a mão:

— Boa-noite. É tarde. Não? Pois mamãe e Petra ainda não terminaram de se vestir.

— Olá!, Rodrigo. Tens pressa. Não? Não te preocupes, pois a carruagem está ali

embaixo. Mas, como estás crescido!, demônio. Te sentes, dês um beijo.

O puxou na mão e deixou cair sentado no colo, o cobrindo com verdadeira chuva de

beijo.

24 Da obra Canuto Espárrago, de Antonio Ledesma Hernández. Miarramamiau é uma expressão de miado de gato em cantiga

infantil. Nota do digitalizador

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— Arre! És todo um homem, Rodrigo! Quantos anos tens?

— Treze.

O menino tentou passar ao outro lado do assento, um pouco aturdido e com uma

inquietação percorrendo a carne, transmitida daquele trêmulo regaço que o sustentava,

mórbido e abrasador. Com uma inquietação espirada na febre dos beijos e no intenso

perfume das gazas daquele peito que ele amassava com o ombro, porque o braço de

Josefina o cingia tenazmente na cintura. Ela não percebia seu desejo e persistia em o

reter. Isso enraivecia: Ele não era tão pequenino pra que as criadas e as amigas de sua

mãe se empenhassem em continuar o tratando como quando lhe cacheavam os cabelos,

vestido de menina.

— Treze anos! E tens namorada? Porque aos treze anos és muito capaz de ter

namorada!, garoto.

Isso acabou de o ruborizar e ela, então, ria e tornava a beijar, pra o irritar.

— Pobre Rodrigo! Por Deus, que grandes olhos tens! Estás mais desenvolto que

muitos! Fazes ginástica, hem? Logo se nota! Não, não, e breve se terá que deixar de te

beijar diante dos outros, sabes?, de tão homem que te vais fazendo. Muito em breve!

Observaste que já tens sombra de bigode?

O tombara sobre o braço esquerdo em seu transporte de afeto e com a outra mão lhe

segurava o rosto, se inclinava pra o beijar nas faces de tempo a tempo, rindo sempre,

entre exclamações joviais.

— Rodrigote! Rapagão!

Era uma prisão doce que o torturava. O menino, como uma papoula, tinha os olhos

baixos e sentia no corpo, através da seda chiante e escorregadia, o calor de Josefina,

santo como o do próprio regaço de sua mãe, de quem essa senhora era amiga, e que,

contudo, o enchia de vergonha e confusão, de não sabia que coisa que lutava em seu

sangue pra não explodir em seu cérebro como uma revelação maravilhosa e consciente

dalgum enorme mistério da vida. E sentia, também, quando aqueles beijos lhe

apertavam, suculentos, a boca, uma coisa estranha que arrebatou mais, e que não podia

explicar a si. Algo como se o beijassem com beijos que, enfim, não sabia, com beijos

que nunca lhe deram! Qual a razão de tudo isso? Precisamente por ser tão beijoqueira,

essa senhora o entediava e ele nunca a olhava frente-a-frente, de vergonha, raiva ou o

que quer que fosse.

De repente ela o tirou do colo. A porta se abrira, aparecendo Glória, que, ao notar o

brusco gesto, se deteve, sobressaltada, vacilando em entrar.

— Entres, moça. Não estão prontas? O que queres?

— As luvas da senhorita. Sim, já estão prontas.

As luvas estavam em cima dum móvel.

Enquanto Glória foi apanhar, Josefina se curvou a Rodrigo e lhe deu um beijo

fraternal na fronte.

— Isso é engraçado, garoto. Mas na carruagem continuarás contando. Vamos!

Se levantou e saiu atrás de Glória, levando o mantelete no braço.

E como Rodrigo nada contara, ficou um instante arriado no sofá, sufocado de calor e

com os olhos muitos abertos, como se quisesse, num agudo empenho de sua vida,

penetrar naquele imenso mistério que houvesse, fugaz, voejado em redor de si.

X Alcançou a todos na escada.

Na carruagem, aberta, porque estava linda a noite, se sentou perto de sua irmã e

diante de sua mãe. Estava ao lado de Josefina, que lhe contava que despedira a

cozinheira por causa de sua teimosia em pôr alho na sopa. Tão teimosa, que os

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punha ultimamente machucados, pra que eu não visse, e em sua casa a sopa sabia sempre a fósforo.

Quando a carruagem passava perto das vitrinas das casas comerciais o menino

olhava, com receio, Josefina, que continuava sempre a conversa sobre a cozinheira. Mas

no fim duma rua descobriu as luzes do circo e só pensou no que veria, na amiguinha

Élia, que correria sobre o cavalo.

Assim como Rodrigo se assombrara quando Alberto lhe explicou que as estrelas

eram mundos maiores que este nosso mundo, que lhe parecia um globo colossal

rodeado dum céu com pontinhos de luz, agora também o admirava, com muito menos

intensidade, em que pese à pequenez da comparação, que aquele circo, junto de cuja

fachada velha passara muitas vezes, tivesse um recinto capaz de conter tantos dourados,

tantas luzes e tanta gente que ria num escândalo de gargalhadas à vista dos palhaços.

Havia, pois, verdadeiras diversões fora de sua casa. Élia tinha razão e o mundo da

alegria era maior, mais amplo que aquele mundo que ele criou, reduzido aos salgueiros

da ilhota, ao terraço com a vizinhança das cúpulas do Carmo e passeios com o senhor

cura do Vivero.

Viva inquietação o fazia girar a cabeça, com olhos investigadores, como quem

aprendia a suspeitar um mistério oculto em cada coisa insignificante. E, embora já não

pensasse nos beijos e na mentira de Josefina, se diria que ela lhe infundira, na boca,

grande parte de sua curiosidade naquela noite. No esplendor da claridade derramada

pelos globos elétricos e pelas baterias de lâmpadas elétricas que, de coluna a coluna,

percorriam a altura, via os outros camarotes como uma orla móvel de gazas, leques e

trajes claros abraçando a pista e os círculos de cadeiras em volta. Atrás se juntavam os

espectadores na cerca que limitava o passeio com a barreira branca da escadaria, em

cuja névoa de luz subiam as filas de cabeças até se perder em multidão informe sobre o

vermelho sombrio dos adornos.

Rodrigo olhava tudo. O atraíam os saltos e as bofetadas dos palhaços, vestidos de

púrpura e com grandes sóis nas costas. Mas o estrondo das gargalhadas do grande

público, rolando das galerias como descargas de fuzilaria, o fazia se voltar a trás, muito

sério. Em seguida, descobria, na penumbra do teto, trapézios pendurados e estranhos

aparelhos presos por fios de arame, que cruzavam o espaço em todas as direções e,

continuando a desordem de sua atenção, dos parapeitos bordados da galeria alta e desde

os arabescos e purpurinas das sanefas,25

seus olhos caíam no telão do palco, lá defronte,

onde a pálida celagem,26

vista entre grandes cortinas de cetim e veludo pintadas,

emprestava frescura a indolente grupo de deusas. Uma parecia mais loura, em primeiro

lugar, de perfil se espreguiçando, com os braços ao alto e as costas erguidas sobre o

formoso quadril. Precisamente duas vezes os olhares de Rodrigo passaram daquela

mórbida nudez aos lábios de Josefina, indo, afinal como em fuga, aos jogos e

extravagâncias dos palhaços.

XI Em troca, a curiosidade de muitos espectadores dos camarotes e das cadeiras parecia

ter por objetivo o de Rodrigo. Os binóculos procuravam Petrita, divina com o cabelo

escuro partido em bandas e seu vestido claro que aprisionava o talhe, tendo apoiado,

graciosamente, na almofadinha escarlate da varanda o antebraço, coberto pelas uvas, e

em cujos dedos brancos brilhava o nácar dos binóculos. Também procuravam Josefina,

com sua arrogância de mulher formosa e sua distinta altivez de dama virtuosa, sentada

25 Sanefa: sf Tira larga de tecido que se estende sobre a parte superior duma cortina. Nota do digitalizador.

http://www.kinghost.com.br/ 26 Celagem: A cor do céu na alvorada e no crepúsculo. Nota do digitalizador. http://www.kinghost.com.br/

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junto à nobre dona Luz, severamente vestida de preto.

Ao entrar responderam, aqui e ali, os cumprimentos dalgumas pessoas de sua

amizade. Aurora e sua mãe estavam com a família do governador; Pedro Luján, no

camarote de tenente-coronel Romero, e Luís Contreras, numa cadeira de primeira fila,

perto do beco das quadras, onde, quando os palhaços terminaram, dupla fila de criados

de librê deu passagem a um equilibrista, enquanto a orquestra tocava um valsa lenta.

Também estava nas cadeiras Romão de Herrera, o jovem estudante do último ano de

direito e já noivo de Petra.

— Tola, olhes! Voltes a cabeça! —Josefina aconselhava.

E, como a disposição em que se sentaram deixava Petra de costas ao noivo, esperou

que o equilibrista terminasse e propôs à jovem a troca de lugar como o pretexto de

favorecer aos namorados. Não tardou em descobrir algo de ingrato: Próximo de Romão

ocupava outra cadeira o maldito notário eclesiástico, o único homem que, com, sua capa

de beato, ousava lhe fazer a corte. Mas que homem!, grande Deus. Observava que ele a

olhava com atrevimento através de enormes binóculos negros de latão, sob os quais, e

entre suas mãos morenas e ossudas, só se descobrira a boca grande de macho caprino,

com dentes amarelos, rodeada de hirsuta e crespa barba de azeviche. O crânio,

completamente calvo, exceto por cima das orelhas, reluzia como uma velha caveira

polida e pontiaguda.

Era a primeira vez que o via sem chapéu e Josefina chegava ao cúmulo da

repugnância. Aquele homem que, a força de cinismo, queria se impor, sem dissimular

sua fealdade, a enchia de ira. Passava dos cinqüenta anos e, ó, adorador macabro!, não

julgava indispensável prà merecer ao menos limpar aquelas unhas longas e

achocolatadas pelo tabaco, que ostentavam festões de negríssima sujeira?

Raivosa contra ele, seus olhos caíram sobre Rodrigo, muito atento a ver como

transcorria o espetáculo.

XII Soou a música. A formatura de fraque de baeta azul deu passagem a dois novos

artistas. Rodrigo, sentado entre Petra e Josefina, olhou o programa: Irmãos Leotardo, os

filhos do ar. Se vestiam igualmente de cetim celeste, semeado de lantejoula de aço. O

sexo era distinguido apenas pela cabeleira, mais loura e mais comprida, e as pernas

menos musculosas da moça. Da mesma estatura e quase da mesma idade, era

igualmente rosado o rosto de ambos os jovens, que foram acolhidos por demorado

aplauso, que durava ainda quando, da rede, treparam aos trapézios, corda acima, a 15m

do solo.

O resplendor dos globos os feria de perto como espelhos e quando, pouco depois, se

balançavam entre as baterias elétricas, seus corpos resplandeciam de reflexo como

peixes do ar cobertos de luz.

Rodrigo, com ambos os cotovelos na varandinha e o rosto nas mãos, estava absorto

pelo arriscadíssimo exercício. A orquestra silenciara e senhorita Leotardo se atirou ao

trapézio oscilante do irmão, onde a esperava pendurado pelas curvas das pernas, a

segurando nos pulsos. Imediatamente tornou a se desprender a seu trapézio, seguro em

vôo de admirável precisão. Ao saltar dum a outro, lançava pequenos gritos, ressoantes

sobre o silêncio do circo como os gritos da coruja nos templos na meia-noite.

Também Petra parecia maravilhada com o espetáculo, que a fez se esquecer do noivo

e da dignidade, um pouco violenta, que quis antes adotar ao se ver adulada pela

admiração estranha. Isso, sem dúvida, contrariava Romão, que estava de olhos fixos

nela. Mas Petra aparecia aqui, criança como era, com toda a candura de sua alma

excitada na piedade dum perigo, no meio das ânsias egoístas que sua beleza despertava

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nos homens e totalmente alheia, agora, a tais artificiosos namoros e a tais preitos. Os

gritos continuavam caindo da altura, secos, imperativos, solenes, quais avisos de alerta

ante a morte e o corpo ágil da artista cruzava o espaço, enquanto algumas senhoras

bocejavam na platéia e alguns cavalheiros se aborreciam com elegância, lendo jornal.

Continuava calado o grande público, surpreendido em mudo entusiasmo de terror, e

Petra e Rodrigo tornaram, um instante, a se sentir unidos por sua antiga infantil atenção

de carinho.

— Ó, se cai! — Exclamaram, uma vez que a Leotardo se lançava, girando, aos

braços do irmão e, irmãos eles também, se estreitaram instintivamente a mão sobre a

saia de Petra, permanecendo assim em aliança de amor e mostrando sempre, a olhar a

cima, a pureza de anjos no branco azulado dos olhos. Viram, enfim, os voadores

suspensos um no outro, imóveis, pra lançar outro grito sinistro e se precipitarem, em

vigorosa contração, cada qual num lado, no vácuo, cabeça a baixo, dando cambalhotas

na queda até a rede, que afundou os recebendo, os repelindo e fazendo rodar como

pobres passarinhos enredados na malha. A ovação foi delirante. Os fizeram voltar à

pista muitas vezes.

— Vês?, mamãe. — Disse, compassivamente, Rodrigo — Os farão começar de novo

e podem morrer!

Dona Luz acompanhara o trabalho com lágrima nos olhos, pensando que talvez a

mãe das pobres criaturas estivesse assistindo, sufocada de dor.

Contudo, os aplausos significavam, apenas, a ternura do público, e os Leotardo

desapareceram.

Se seguia o intervalo. Um criado o anunciou, apresentando a tabuleta na pista.

XIII Todo o circo se movimentava. As passagens se enchiam de gente. Petra voltava a

olhar em torno do noivo, que parecia a argüir de longe pelo esquecimento de dez

minutos. Suas amigas, que riam e conversavam nos camarotes, aos rapazes que a

contemplavam. Ao lado da pista descobriu o ajudante do general com outros senhores.

Um cavalheiro velho e de face cor de pimenta, entre as mechas de cabelo branco, a

queria comer com os olhos. Tudo isso a obrigou a entrar de novo na realidade. Adotou

seu ar indiferente e grave. Não, as moças bonitas não iam àli ver nem admirar algo,

conforme acabava de lhe repetir Josefina. Iam apenas se convencer de que eram lindas e

o demonstrar, se preocupando com os outros, estudando o modo de conseguir mais

admiradores pra fingir os desdenhar. A magia que produzem sempre os espetáculos em

que o jogo da arte se junta ao jogo solene da vida a abandonou bem depressa, como se

lhe apagava o misticismo das orações quando ia à igreja com Aurora, que a distraía.

Rodrigo tornava a olhar a deusa nua do cenário, os dourados, as luzes, os lábios de

Josefina. A deusa outra vez, os sorrisos de sua irmã dirigidos não sabia a quem, e

enquanto isso a mãe os observava, ou melhor, repousava neles seus olhos de carícia,

contente porque se lhe afigurava estar mais com os dois quando estava ausente e

espalhafatosa e absorvente Aurora, útil, apesar de tudo, segundo diziam, pra ir

habituando Petra à sociedade.

No camarote entraram o coronel e sua filha. Visita de entreato. No lado das cadeiras

Pedro Luján se aproximou pra cumprimentar. As conversações se travaram

imediatamente: De cochichos entre Petra e sua amiga e entre o general e os demais. Mas

a mulher do deputado estava triste, mais nervosa, se irritando ao ver de pé o notário, a

focalizando com seu monstruoso binóculo. Num momento em que dona Ângela

dialogava com o artilheiro ela se aproximou de Rodrigo e lhe perguntou se estava

gostando do circo.

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XIV Chegava o momento de grande expectativa pra Rodrigo. As campainhas anunciavam

o início da segunda parte, cujo primeiro número pertencia a Élia. Firmando bem os

olhos, pôde ver sua cabeleira loura entre o tropel de criados e artistas à porta da quadra,

onde um grande cavalo branco em panneau assomava a cabeça.

A música principiou a tocar um galope, se formaram as filas de serventes e correndo,

inesperadamente, apareceram na pista um palhaço gigantesco e outro minúsculo, de

fraque grená e calção frouxo de seda, tocando violino, indo o gigantão perseguir a

menina. O público prorrompeu num aplauso a Élia, e Rodrigo achava muito graciosa

com movimento contínuo de eletrizada e sorriso na mancha vermelha dos lábios. Ele

também a aplaudia. Mas a pequena artista, que não parava um segundo, rodando ou

correndo sem cessar com Grosai, enquanto os violinos acompanhavam a orquestra num

ritmo desenfreado, não o podia ver. Era uma vertigem, um agitar diabólico de

remoinhos em passos de baile inglês, com sapateados sobre o tablado, em salto e

contorção, em encontros, em cujos tropeções se empurravam rodando, pra se erguer e

correr outra vez, sem cessar a música, cada vez mais viva, mais apressada. E, tocando

sempre, de repente se via senhorita Élia em marcha triunfal nas pernas e no peito do

palhaço, estendido como Gúliver dormindo. Ora ele de pé, esperando que ela subisse

nas coxas prà lançar dos ombros em salto mortal, ou a perseguindo e fugindo a palhaça

por cima da barreira, se atirando mutuamente os violinos, que caíam em vôo, cravados

sob o queixo, a agarrando e a pendurando no braço, pra que tocasse de cabeça a baixo, a

soltando e a fazendo cair de pé como os gatos, até que, enfim, a apanhou na cabeça, nas

costas acima, e música, e galope, e Grossi e senhorita Élia desapareceram, como

entraram, num torvelinho de surpresa, que tão somente deu tempo ao público pra

aplaudir e rir loucamente.

Rodrigo batia palma, juntando seu gozo à aclamação geral; Grossi e Élia voltavam,

agradeciam, já tranqüilos, sem violino. E uma, duas, três vezes, foi Rodrigo, o menino,

(bem o percebera Josefina!), quem recebeu os beijos cheios de graça da pequenina

artista, entusiasmada com o triunfo.

— Arre! está claro que podia saltar parede sem escada!

Visto Petra e Josefina parecerem o interrogar por causa daquelas preferências, que

fizeram voltar a cabeça alguns espectadores, ele teve de explicar:

— Sim, somos amigos. Mora no hotel e nos vimos no terraço. A pobrezinha não tem

mãe!

— Á! Bem, bem!, menino. — Prorrompeu a mulher do deputado longamente,

ficando pensativa.

Começava outro número.

XV O cavalo branco saiu à pista e, enquanto um servente passeava a cavalo, um palhaço

fazia pirueta, em seguida se pondo a namorar a bailarina que devia o montar. Exceto o

fato de que a artista, loura também, era uma graciosa alemã, que agradava aos rapazes

das cadeiras, esse número se tornou aborrecido, evidentemente, com seus saltos e seus

aros de papel que a bela amazona ia rompendo.

Mas de repente o circo ficou no escuro, porque no palco onde o pano de boca se

levantara, devia bailar serpentina a formosa Armida Barton, uma das principais atrações

da festa. Soou a orquestra na treva, se viram na cena relâmpagos de luz drumont27

e nos

27 Luminária Drummond (lâmpada drummond ou também holofote drummond) foi um tipo de iluminação, inventado pelo

engenheiro escocês Thomas Drummond, destinada à iluminação de palcos em teatro e sala musical. Nota do digitalizador.

http://pt.wikipedia.org/

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dois feixes de claridade, focada desde o bastidor, apareceu, como incendiada de fogos

metálicos, uma espécie de mariposa. O público rompeu em demorado aplauso frenético

e depois se fez de novo silêncio, onde brotava, como um conjuro, o fio daquela música

distante.

Rodrigo achava fantástico o quadro. Não se movia. O reflexo dos feixes luminosos,

as mudanças cromáticas, os torvelinhos de ondas vermelhas, azuis, verdes, amarelas,

que envolviam aquele corpo esplendente de fada, apenas entrevisto nos giros do manto

fúlgido e esvoaçante, lhe deram a impressão dum sonho formoso, de fogos-fátuos numa

noite infinita e negra. No melhor momento a artista desaparecia numa faixa de

resplendor escarlates, num clarão que se extinguia e logo tornava a reaparecer noutro

ângulo do palco com os fulgores tenuíssimos, fosforescentes, como a esteira dum astro,

crescendo em rajadas de luz cambiante pra se abrir de novo no seio de incendiado e

furioso mar, cuja marulhada a arrebatava e submergia. E assim, durante longo tempo, o

arrebatou de encanto.

Quando ela desapareceu definitivamente, a orquestra calou e a luz branca do circo

inundou os espectadores, provocando uma loucura desesperada de aplauso, Rodrigo se

alegrou porque achara aquilo extraordinariamente belo e gostaria que o repetissem toda

a noite, embora fosse... Mas sua ansiedade o enganava: O público só queria ver o corpo

da bailarina, não em vão anunciada e célebre como formosa. Voltou a obscuridade e a

artista retornou ao palco, envolta em seu manto cintilante de glória sob o jorro de luz

prateada. Sorriu, abriu o manto e mostrou seu corpo nu, dum rosa transparente e suave,

na gruta que lhe formavam as sedas pálidas onde se recolhia a claridade nacarina de

colossal madrepérola.

E permanecia assim, imóvel, se mostrando, com seu florão de pedraria no diadema

da fronte. Nu, completamente nu, o corpo incomparável.

Quer dizer, completamente nu pra Rodrigo e Petra, que não conheciam a malha de

matiz de carne com que Armida cobria as suas. Pra Rodrigo, sobretudo, que então,

perturbado e envergonhado, não tornou a bater palma quando, ao se cobrir a mulher,

renasceu o escândalo que exigia a ver novamente. Havia de condescender. Era a

condição do êxito. E outra vez, depois outra, e outra, e ressoavam beijos e aquilo não

tinha fim. E até o sorriso e os braços se lhe cansavam de estender o manto, numa fadiga

humilde pra satisfazer a ira sensual de tantos olhos.

Mas estava se recordando da noiva nua que, segundo Glória contara, se mostrava ao

noivo e a seus amigos. Aquilo já não lhe parecia tão inverossímil, visto que essa mulher

se mostrava aqui, diante do povo. Rodrigo, de sua parte, se lembrando dos seios de

Glória e dos lábios de Josefina, cujo hálito na obscuridade estava sentindo, se

perguntava por que acontecia aquilo, por que razão queriam ver o corpo duma mulher. E

a resposta bulia em seu sangue, em seu coração, em sua cabeça ardente, como o

princípio, ainda vago e indeterminado, dum contágio da sensualidade feroz que naquele

momento fazia respirar com violência tantos homens. Ó, por que, por que o beijara Josefina e por que, a contragosto, também ele olhava o corpo de Armida Barton!

A brotar terminantemente ia a resposta, precisa, levantada em clara idéia pelos

instintos que de seu ser inteiro lhe subiam ao cérebro, despertados pela nudez feminina.

Brotaria, saltaria a idéia triunfante de mais um grande mistério da vida. Mas caiu o

pano, pra não se elevar, e o mistério ficou partido no coração do menino.

A luz branca do circo o fez apoiar a fronte sobre a mão pra descansar.

XVI Achou desprovido de interesse, tanto quanto o público, extenuado sob a passada

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obsessão do império dum desejo, o resto do espetáculo. Hércules levantando peso e

dobrando barra, cavalos em liberdade, um homem que imitava com perfeição notável

cantos de pássaro.

— Por que queriam ver o corpo de Armida? Por que soaram tantos beijos no escuro?

Josefina, porém, mais que ninguém, estava fatigada, inquieta. Já antes demonstrara

cansaço.

Lhe ocorreu algo de imprevisto, pois que se levantava.

— Venhas, Rodrigo, me leves. Quero cumprimentar a governadora. Um momento.

Sim? — Se desculpou com dona Luz — Voltarei já.

O menino se levantou e a acompanhou.

Podia ela ir na galeria dos camarotes mas preferiu sair e dar a volta no corredor

deserto de fora da sala.

Não tinha pressa.

— Então és amiguinho daquela moça e sorriste a si e sorriu a ti?

— Sim.

— Que mora na hospedaria ao lado de tua casa? E vos encontrais no terraço?

— Sim.

— Todos os dias?

— Todas as tardes. Na hora da sesta.

Ele a examinava, perplexo.

Ela encurtou o passo mais ainda, mas continuou em silêncio. Depois, sem o olhar,

disse, muito devagar e observando as pontas dos pés ao andar:

— Tu, Rodrigo, devias dizer a tua criada, essa Glória, que não estavas sentado em

meu colo, nem que eu te beijava antes, mas que te aproximaras pra ver esta minha

pulseira, que tem uma virgem de Pilar.

— E por quê? — Interrogou, com medo, o rapaz.

— Porque sim. — Continuou ela, mais lenta e pausada — Eu diria se quisesses ir,

como antes, a minha casa, pra jantar um dia. Nunca vais!

Visto que ele não respondia, ela prosseguiu:

— Eu te diria... Isso é, te repreenderia, Rodrigo, porque já és um homem, um

homem! Não um menino. E me beijaste, antes, de modo singular.

— Eu? — Protestou a última inocência do rapaz.

Mas chegavam.

— Chiu! — Impôs ela.

E abriu a portinhola do camarote.

Rodrigo demorou bastante a chegar ao seu, de volta do corredor, como embriagado,

vacilante.

Se acalmou. Se desvaneceu a perturbação do espetáculo desejado, ao voltar à pista.

XVII Já campeava nela o cavalinho negro cheio de guizo e arreado de correame branco.

Élia apareceu de jóquei, como um rapaz, com a larga blusa e o gorro de cetim verde,

com cabelo encaracolado em trança. Jogava beijo, cumprimentava Rodrigo.

Imediatamente, sem parar de fazer pirueta e reverência, se aproximou de Kaiser,

montou e, ao som da música, empreendeu um galope. Saudava o público, a Rodrigo

também, ao passar com o gorro na mão, tão linda, tão graciosa, que cativava todo

mundo com doce sorriso. No meio do circo estalava o longo chicote do diretor.

Contudo, Rodrigo não demorou a observar que o cavalo parava depois de cada

trabalho, ou galopava mais depressa ou mais devagar, obedecendo antes à orquestra que

ao látego. Repentinamente, viu Élia de joelho sobre o amplo lombo de Kaiser, na

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carreira, enquanto se agarrava com as mãos nas correias com argolas que lhe serviam

pra mudar de posição. Menos mal. Assim era difícil uma queda, contanto que se

segurasse bem. Mas como de repente viu que num dos vaivéns do corpo de Élia, que

acompanhava os violentos impulsos do cavalo, ela se lançava até tocar o chão com a

ponta dos pés, voltando a cima e repetindo isso em duas voltas na pista, começou a

julgar menos simples o exercício. Parado Kaiser, Élia se voltava sempre pra

cumprimentar Rodrigo, até arrancar a novo ritmo da música. Rodrigo se lembrou do

potro negro que matou a mãe de sua amiguinha em Lisboa.

Faltava percorrer a escala inteira da admiração. Por alguma razão se fazia reclamo de

Élia, como assombrosa artista em letras tão grandes quanto as de Barton. Aquela

menina de onze anos executava tudo o que nessa classe de trabalho fizeram até então

jóqueis de vinte anos. Por isso, prescindindo de nimiedade, a viram de pé sobre o

cavalinho, o estimulando com hips! hips! de fingido espanto, enquanto sustentava a

brida e parecia, encurvada, vacilar acompanhando os impulsos do galope. A viram se

erguer, os braços a cima, triunfante e flamejando o gorro ao receber os aplausos.

Depois, se dedicou a uma tarefa incompreensível pra Rodrigo: Se agachava,

desamarrava uma correia e a atirava a trás, na carreira: Se inclinava e tornava a tirar

outro jaez. Enfim, abraçada ao largo pescoço do cavalo, cujos olhos chamejavam, se

despojou dos guizos e da brida, o deixando em pêlo, pra continuar em cima num pé,

como amazona aérea, enquanto Kaiser, alongando a cabeça, corria, veloz, com as ventas

abertas e a crina estendida, como um selvagem fugitivo do pampa. Um salto mortal,

outro. E o público batia palma e enrouquecia de vivas, até que no terceiro salto Élia

pulou do cavalo ao centro da pista, graciosa, sorridente.

A ovação era enorme. Rodrigo sufocava, olhando, quase com ira de dor, Élia, que lhe

sorria. Sua alma protestava contra esses exercícios vertiginosamente bárbaros, que

pareciam reservados exclusivamente pra ela.

Ainda não terminara? A que nova e maior atrocidade a obrigariam, visto aquilo ter

seguido uma gradação até o horrível?

Se tratava dum salto que da arena ela faria pra ir ficar de pé sobre o cavalo correndo.

Sendo a artista tão pequena, era necessário que Kaiser corresse o mais que podia, a fim

de que, ao se estender e se inclinar no círculo da pista, se tornasse mais acessível. Já o ar

louco da orquestra e as chibatadas do diretor o lançaram, velocíssimo, como uma

centelha, na chuva de terra que despediam seus cascos. Élia, que, sem dúvida,

compreendeu a aflição de seu amigo, procurou o tranqüilizar com o mais doce sorriso,

ébria e segura de si, com a lisonja incessante do aplauso. Se perfilou com Kaiser, correu

e se lançou sobre ele, dando penetrante grito.

E o grito encontrou imediatamente um eco formidável e espantoso no circo inteiro,

que se levantou de horror: Se vira Élia resvalar sobre o cavalo, entre suas patas depois,

ali sacudida, pisoteada e lançada ao centro da pista, exânime.

Foi um segundo. Kaiser parou, dando pinote, e o diretor e alguns artistas se

precipitaram à menina.

Rodrigo chorava e batia o pé, desesperado, no tumulto do público. Muita gente

chorava. Choravam as senhoras nos camarotes. Através das lágrimas, quando, iniciada

pela compaixão, uma dispersão geral, Petra, dona Luz e Josefina saíam, Rodrigo ainda

viu o grete verde da menina num lado, enquanto ela era transportada por um grupo de

pessoas, entre cujos corpos se descobria, pendendo, cheia de sangue, a loura cabecinha.

— Como sua mãe! — Pensou Rodrigo, esfregando os olhos com o lenço, depois que

o grupo desapareceu lá dentro. Se sentia covarde pra fugir e ir a ver, pra beijar sua pobre

amiguinha.

— Como sua mãe!

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Uma notícia chegou até a porta. Uma notícia que aumentou sua aflição e que o fez

chorar mais com medo de que morresse:

— Senhorita Élia vivia!

XVIII Calada, sorridente, perversa a curiosidade em sua cara, Glória abriu a porta e entrou

na alcova. Rodrigo voltou a cabeça no travesseiro.

— O quê?! A água!, homem.

— Bem. E minha ama Charo?

— Está dormindo. Que tal o circo? Queres que as velhas estejam despertas nesta

hora?

Colocou sobre a mesinha de cabeceira o copo e a garrafa. Glória não se ia, sorrindo,

enquanto dirigia o olhar ao chão e a alguém que estivesse fora da porta.

— Quem é? — Perguntou Rodrigo, receoso.

Vicenta, a outra criada, entrou nas pontas dos pés com a mesma expressão maligna

no largo rosto de pessoa rude, picado de varíola.

As duas se perguntavam, se convidando mutuamente a perguntar algo, e um acesso

de riso contido as dobrava até os joelhos.

Enfim Glória o encarou, numa seriedade cômica de mestra que repreende:

— Muito bem!, garoto. Não te basta andar caçando nos telhados, como os gatos com

dor de dente, também te escondes com as senhoras elegantes que visitam a mamãe. Se

pode saber o que fazíeis no gabinete?

Conquanto tivesse entrevisto, noutros dias, as intenções de Glória, sem de todo as

compreender, Rodrigo compreendeu a pergunta. E se via nos olhos de Glória uma

decisão velhaca tão intensa que o alucinava.

Enrubesceu em ondas de vergonha que lhe cobriram dum fogo doce as faces e as

têmporas. Despertava seu assombro na maré da vida. O surpreendia o fato de se

ruborizar ao ver Glória surpresa e escandalizada com os beijos de Josefina. Com os

olhos fixos em Glória continuava, hipnotizado com o pressentimento daquele grande

mistério fugitivo na nudez mágica de Barton. Tal mistério se lhe apresentava outra vez

na atitude burlesca dessas duas mulheres, que chegavam caladas no silêncio da noite.

como se as orações de antes de dormir lhe houvessem conjurado essa noite em redor da

cama branca dois diabos ao invés de dois arcanjos.

— O que te fazia dona Josefina? — Vicenta também perguntou, com igual pudicícia

cínica.

Foi o sinal pra que Glória desatasse em horror, em voz baixa, pra não despertar a

ama Charo na alcova contígua:

— Dona Josefina! Ou ele a ela. Eis um santinho-de-pau-oco. Vejas que não partiu

ornato! É claro! Lhe é muito melhor ser tomado como menino, com treze anos no rabo:

Assim, bancando o bobo, se deixa beijar e tentar pelas senhoras, e lhes salta no colo que

é uma bênção divina. E não lhe pago a vantagem do tolo com as cadelas que o mimam e

o beijoqueiam, acreditando que não sabe o que pesca, quando no melhor ele desce dos

telhados, aprendendo, com titereiras, a encomendar crianças em Paris. Se te trouxerem

um, iremos ao batizado. Sabes? Noutra vez digas a dona Josefina que feche por dentro,

pra não envergonhar a gente. Ao mesmo tempo eu e esta avisamos que desde hoje nos

fechamos por dentro, pra não despertarmos, quando menos esperarmos, contigo entre as

pernas.

— Uaá!... Porcas! — Gritou o menino no cúmulo da ira, se sentando na cama,

disposto a gritar — Suas porcas!

Enquanto procurava, com os olhos, algo pra lhes atirar em cima, já as duas saíram

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num furacão de saia, num ruído apressado de riso e pisada, que se perdeu ao longo do

corredor.

Rodrigo permaneceu sentado, com as mãos a trás, apoiadas sobre o travesseiro, na

mesma posição irada na qual o deixaram.

Uma expressão de dor, um ricto, contraía a fronte e distendia os lábios, com os

dentes apertados, com os olhos fixos na contemplação áspera e brusca dum quadro

desagradável. A revelação estava feita por essas reveladoras. A revelação do grande

mistério que algumas vezes fervera no sangue do menino. Mas fora feita com um golpe

violento. De modo brutal, forçado. Nem com a violência passional que horas antes

poderia ter surgido doutras reveladoras, nos beijos colhidos entre os lábios duma mulher

formosa, nem ainda com a violência dum corpo nu, visto repentinamente entre disfarces

de músicas e cores. Fora feita com violência repugnantíssima, canalha e grosseira, das

palavras saltando em deboche, em escárnio. Por isso o menino se sentia triste, sem

compreender, porém, que lhe arrebataram da vida um gozo supremo e infinito de

virgindade, a que o levavam por gradações poéticas e insensíveis, mais tarde, os olhos

verdes doutra menina: A Natureza!

XIX Eram demasiadas as emoções e muito contraditórias.

Amanheceu com febre. O médico disse:

— Febre cerebral, que o prendeu ao leito duas semanas.

Delirava, e no delírios sua pobre irmã não podia estar perto do leito porque o

enfermo dizia coisas incoerentes, com bastante coerência no assombro de Petra, beijos,

bocas de mulher, de Glória que lhe dava o peito... Uma menina que se matava num

cavalo...

Petra chorava, repreendendo Glória na porta da alcova muitas vezes:

— Tu, sim, lhe disseste tudo isso! Tu, como disseste a mim!

A moça se desculpou, enraivecida, contando como a surpreendeu, numa noite,

beijando como louca, ardendo, a muito, dona Josefina. E como Petra via Josefina entrar

e se sentar pra velar o enfermo durante longo tempo. Ia a seu quarto e chorava, chorava,

por não sabia que inocências perdidas por ela e seu irmão, perdidas a sempre.

Josefina continuava passando as tardes ao lado dele, fiel carinhosa do afilhado do

marido. E, quando nalguns momentos Petra e dona Luz saíam, ela beijava, beijava o

fraco convalescente, que se deixava beijar com assombro de delícia e lhe devolvia os

beijos, tendo aprendido, ademais, à afastar dos travesseiros se alguém chegava.

— Sim, queres? Vás, nos domingos, almoçar na minha casa, tolo. São os dias que

passo mais só e me aborreço porque a mãe de teu padrinho nesse dia almoça sempre

com sua filha Estrela. Não irás?

— Sim, irei! — Dizia Rodrigo, em solene agitação.

Em suas insônias dessas noites, eram dois os fantasmas que povoavam suas visões:

Um, o de Élia, pura e doce, branca, muito branca. Outro, o de Josefina, iluminada, em

chama, como o de Armida Barton nua pra que as pessoas a vissem. Mas a idéia de que

ele poderia, talvez ver assim, ele só a mulher de seu padrinho, o enchia de atraentes

horrores infinitos.

Quando Rodrigo se levantou, soube que a companhia do circo partira, estando Élia

passando bem de todos os ferimentos da fronte. Josefina lhe dizia isso sorrindo e ele...

Agora sim!, olhava Josefina de modo sinistro e singular, lhe prometendo, obediente, que

almoçaria na casa dela.

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Afinal, numa manhã se levantou e subiu ao terraço dois dias depois, percorrendo a

igreja, extático, horas inteiras na torre, com a contemplação dos horizontes longínquos

onde Élia desaparecera.

Numa tarde encontrou seu nome, Rodrigo, gravado sobre o tijolo do cavalete no

tabique que dava ao hotel. Élia o escrevera cuma pedra e um prego.

Sua despedida.

Algo assim como o epitáfio duma inocência, traçado pela menina loura que em breve

também a perderia, entre palhaços e cavalos.

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O flagrante delito René Maizeroy

ontinuou Sulpice de Laurière:

— É certo que eu esquecera completamente a data em que devia me

deixar surpreender em flagrante delito cuma amante de ocasião. Como

não tínhamos, pra obter o divórcio, minha esposa e eu, razão séria e plausível, nem

incompatibilidade de gênio, como a gente se arrisca a não comover os juízes mais

indulgentes lhes dizendo que chegamos a um acordo pra seguir cada qual seu rumo, que

temos um feitio muito livre, muito alegre e muito nômade pra continuar jungidos à

canga matrimonial, de comum acordo combináramos a engenhosa farsa da injúria

grave.

Era mais engraçado e mais inédito que outros meios e, de resto, me repugnaria

imiscuir a criadagem naquela comédia, como o fazem tantos outros, ser rude, mesmo na

aparência, com aquele pedacinho de parisiense, tão frágil e tão loura, passar, aos olhos

dalgum estúpido camareiro e dalguma arrumadeira descarada acorridos apressadamente

do vestíbulo por um sganarello28

comum com maneira de carroceiro.

E quando senhor Le Chevrier, essa boa alma dedicada que certamente conhece mais

segredos femininos que o confessor mais em voga, exclamou, muito assustado por me

ver ainda em traje de dormir, e fumando um charuto em lentas baforadas, como um

desocupado sem compromisso e que espera tranqüilamente a hora de se vestir pra ir

jantar no clube:

— Então não te lembras que é hoje, no hotel de Bacia, entre 5h e 6h? Dentro duma

hora senhora de Laurière estará na delegacia da rua da Provença, com o tio e senhora

Cantenac.

Uma hora!

Só me restava uma hora, sessenta curtos minutos, pra me vestir, reservar um quarto,

procurar uma mulher, decidir a seguir imediatamente, a atirar sobre a cama, a pôr em

tais frenesis de desejo, a saturar de tais prazeres que ela, só visse chama, a fim de que

aquela extravagante aventura não parecesse muito suspeita ao comissário.

Uma hora pra executar todos os números dum tal programa, era de fazer perder a

cabeça. E não havia meio de adiar aquela festa obrigatória, de prevenir a tempo senhora

Laurière, de ganhar alguns segundos.

— Já arranjaste ao menos a mulher? — Prosseguiu, cheio de ansiedade, senhor Le

Chevrier.

E pensei logo em todo o rosário de boas amiguinhas. Escolheria Liline Ablette, que

não sabia me recusar alguma coisa; Blandre Rébus, a melhor camarada do mundo; Lalie

Spring, aquela luxuriosa insaciável, sempre buscando novidade? Nenhuma, porque

havia 99% de probabilidade de que todas aquelas gatinhas estivessem no Bois ou em

casa da comadre, atendendo a algum convite, ou na costureira, provando vestido.

— Ora! Pegarás, na rua, a primeira desocupada que apareça!

E a hora ainda não se escoara, quando fechei o ferrolho dum quarto banal, que dava ao bulevar.

A mulher que eu escolhera, no meio da caça lamentável que ela fazia nas calçadas,

ao longo dos cafés, poderia ter, quando muito, vinte anos. Um narizinho brejeiro,

28 Sganarello, o criado que adora contestar o patrão, personagem principal de A escola dos maridos, foi criado por Molière em 1660

e faz parte da obra O cornudo imaginário. Nota do digitalizador. Ler mais em http://www.webartigos.com/articles/26633/1/A-

SARCASTICA-ESCOLA-DE-MOLIERE/pagina1.html#ixzz1Xx9Cdf6y

CC

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arrebitado como numa careta zombeteira, grandes olhos pisados, cheios de

aborrecimento, lábios vermelhos demais e um corpo esguio, indolente e gracioso de

rapariga que farreia demais. Bonita, com roupas íntimas limpas e cheirosas. E uma

prática assombrosa do amor fácil e ao acaso, uma maneira de se despir em dois tempos

e três movimentos, de atirar as roupas à direita e à esquerda, de se deitar de costas,

tendo como única vestimenta as meias de seda e os sapatinhos de verniz, que me

maravilhou como um espetáculo realmente digno de ser observado. Nada de palavreado.

Essa frase primeiro, como um prelúdio:

— Sabes, meu bebê, te expliques logo... Não é que me pareças indigno de confiança,

mas isso me anima, me esquenta...

Dei dois luíses de ouro e me olhou ao mesmo tempo com respeito e gratidão, e o ar

inquieto duma decaída que se pergunta o que o freguês de ocasião exigirá em troca de

generosidade.

Realmente, tudo aquilo começava a me divertir e confesso que me entusiasmava, que

começava a gostar da coisa, tanto mais que tinha a pele branca e lisa como papel-de-

arroz, que parecia experiente e libertina como a melhor das alunas de tia Leprinée, e que

desejava só ser interrompido no entreato, quando bateram grandes pancadas à porta.

A mulher se sentou na cama, muito direita, bruscamente, tão pálida que parecia a

desmaiar.

— Idiotas! Virem assim incomodar a gente num momento deste! — Resmungou,

entredentes.

Afetei a mais completa calma.

— Algum viajante que se enganou de porta, querida. O barulho redobrou e,

subitamente, uma voz de homem articulou muito claramente a frase sacramental:

— Abris, em nome da lei!

Então, se diria que recebera uma descarga duma pilha elétrica, tão depressa pulou da

cama. E enfiando as saias e o vestido apressadamente, de qualquer maneira, como um

animal enjaulado que quisesse fugir, procurou uma saída em todo o quarto. Julguei que

se atiraria na janela, e me precipitei prà segurar.

A infeliz estava como louca, e quando sentiu que as minhas mãos a seguravam na

cintura, gritou com rugidos sinistros na garganta:

— Já compreendo. Me tapeaste. És da cana. Miserável, safado! Esperavas que eu me

deixasse apanhar, que falasse, que mordesse na isca. Porcalhões! Porcalhões!

E bruscamente, passando das injúrias às súplicas, batendo os dentes, lívida, se atirou

a meus joelhos e recomeçou, em voz baixa:

— Escutes, querido: Não pareces mau, não hás de querer que me levem às grades.

Tenho um garoto e uma velha mãe pra sustentar. Me escondas atrás da cama. Não me

denuncies. Pagarei isso, anda, e não terás de que te arrepender.

Eu não compreendia aquilo. De repente a fechadura desparafusada caiu no soalho,

com ruído metálico, e no vão da porta apareceram senhora de Laurière e o comissário de

polícia cingido com a faixa tricolor. Atrás se perfilavam vagamente, na sombra, as

cabeças do tio e do advogado.

A rapariga soltara um grande grito de pavor e avançara ao comissário.

— Juro que não sou culpada! Que não estava com eles. Contarei tudo, se me jurar

que não saberão que fui eu quem deu com a língua nos dentes, se não me liquidarão

também!

O comissário, interdito, farejava alguma história suja, se esquecia de lavrar o auto. O

advogado, se aproximando, murmurou:

— E então, senhor comissário? O que esperas?

Mas ele só se preocupava com a mulher. Citava, com olhar suspeitoso e agudo atrás

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das lunetas com aros de ouro. Disse, em tom seco:

— Teu nome e sobrenome.

— Juliette Randal, ou como me chamam, Jujutte Cabeça-de-Cachimbo.

— Então juras que não és cúmplice, — acrescentou ele, ao acaso, mas sem deixar de

a perscrutar com as pupilas imóveis — que não...

— Juro, senhor comissário. E sou capaz de pôr as mãos no fogo que meu homem,

Ruivo dos Ternos, também nada tem que ver com isso, porque só ficou de vigia

enquanto os outros faziam o serviço. Juro. Posso provar o emprego de minha noite... Foi

Ruivo, que estava chumbado, quem me contou tudo. Mesmo que foi um golpe de

mestre, sem dúvida. Cinco mil francos, no tio Zacarias, só pelas pratas. Ruivo recebeu

sua parte, é verdade, mas não trabalhou com os bandidos. Foi Ninon de Nénimulche

Caixa-sem-Vontade quem segurou as mãos do jardineiro e o esfriou cum golpe de

punhal.

O comissário a deixava falar. Quando ela terminou me interrogou como se eu

pertencesse à quadrilha de Jujutte.

— Teu nome, sobrenome e profissão.

— Marquês Sulpício de Loureiro, capitalista, rua Galileu 24.

— De Loureiro! Á, muito bem! Queiras me perdoar, senhor. A pedido de senhora de

Laurière, constato diante destes cavalheiros que poderão testemunhar, que tendo por

amante a rapariga Juliette Randal, vulgo Jujutte Cabeça-de-Cachimbo. Estás livre,

senhor marquês, e tu, Juliette Randal, respondas a minhas perguntas.

E foi assim, pelo mais prodigioso dos acasos, que os debates de nosso divórcio

tiveram uma repercussão que eu certamente não preveria, que tive de comparecer ao

tribunal judicial como testemunha do famoso caso dos assaltantes de vila, no qual houve

três condenações à morte, agüentar as perguntas dum presidente idiota que me queria, a

toda força, fazer confessar que eu era o amante titular de Jujutte Cabeça-de-Cachimbo, e

que passo, desde então, por apaixonado das sensações inéditas, conhecedor que

chafurda nas camadas mais baixas da estrumeira parisiense.

E nem sei dizer o que essa fama usurpada me rendeu de aventura galante. A mulher é

tão perversa, tão absurda e tão curiosa!

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Bola-de-sebo Guy De Maupassant

urante muitos dias seguidos fragmentos do exército derrotado

atravessaram a cidade. Não era a tropa mas apenas hordas em

debandada. Os homens estavam com a barba crescida e suja, com os

uniformes esfarrapados, e caminhavam com o andar flácido, sem bandeira, sem

formação. Todos pareciam acabrunhados, exaustos, incapazes dum pensamento ou

resolução, marchando apenas pelo hábito e, caindo de fadiga, mal se detinham. Se viam,

principalmente, muitos convocados, criaturas pacíficas, tranqüilos proprietários, que

vergavam ao peso do fuzil. Pequenos moblots,29

cheios de vivacidade, tão fáceis de se

aterrorizar como de se entusiasmar, tão dispostos a atacar quanto a fugir. Depois, entre eles, alguns culotes vermelhos, destroços duma divisão pulverizada numa grande

batalha. Escuros artilheiros enfileirados com esses infantes. E, às vezes, o capacete

brilhante dum dragão de andar pesado, que acompanhava, dificultosamente, a cadência

mais rápida dos soldados de infantaria.

Legiões de francos-atiradores de nomes heróicos: Os vingadores da derrota, os

cidadãos do túmulo, os distribuidores da morte, passavam com ar de bandido.

Seus chefes, antigos comerciantes de tecido ou de cereal, ex-negociantes de sebo ou

de sabão, guerreiros fortuitos, nomeados oficiais por causa dos escudos ou do

comprimento do bigode, cobertos de arma, de flanela e de galão, falavam com voz

atroadora, discutiam planos de campanha, e pretendiam sustentar sozinhos a França

agonizante com os ombros de homenzarrões mas às vezes temiam seus próprios

soldados, indivíduos capazes de tudo, a miúdo, de bravura a toda a prova, saqueadores e

devassos.

Diziam que os prussianos entrariam em Ruão.

A guarda nacional que, havia dois meses, fazia reconhecimentos muito cautelosos

nos bosques vizinhos, às vezes fuzilando suas próprias sentinelas, e se preparando pro

combate quando um coelhinho se mexia entre as urzes, regressara aos lares. Suas armas,

uniformes, todo o aparato mortífero com que ela antes assombrava as lindes das estradas

nacionais no raio de 12km, subitamente desapareceram.

Os últimos soldados franceses acabavam de atravessar o Sena, pra alcançar Pont-

Audemer, passando em Saint-Sever e Bourg-Aehard. Caminhando atrás de todos, o

general, desesperado, sem poder tentar algo com aqueles fragmentos sem unidade,

desatinado no meio da grande derrota dum povo habituado a vencer e desastrosamente

vencido, malgrado sua bravura lendária, caminhava a pé, entre dois ajudantes-de-

ordens.

Depois uma calma profunda, uma expectativa apavorada e silenciosa pairara sobre a

cidade. Muitos burgueses obesos, desvirilizados pelo comércio, ansiosamente

aguardavam os vencedores, temerosos de que fossem tomados por armas seus espetos

de assar ou facões de cozinha.

A vida parecia suspensa, as lojas estavam fechadas, a rua em silêncio. Às vezes um

habitante, intimidado por esse silêncio, se esgueirava rapidamente ao longo das paredes.

A angústia da espera fazia desejar a chegada do inimigo.

Na tarde do dia seguinte ao da partida das tropas francesas, alguns ulanos,30

vindos

29 Moblot: Abreviação de mobile, soldado da guarda nacional móvel 30 Ulano é a designação dos soldados polacos de cavalaria ligeira, armados com lança. O prestígio desse tipo de tropa polaca levou

a, no princípio do século 19, grande parte dos exércitos europeus criar unidades militares semelhantes. Na maioria dos exércitos,

DD

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não se sabe donde, celeremente atravessaram a cidade. Depois, um pouco mais tarde,

uma massa preta desceu da altura de Santa Catarina, enquanto duas outras vagas

invasoras apareciam nas estradas de Darnetal e de Boisguillaume. As vanguardas dos

três corpos, precisamente no mesmo instante, se reuniram na praça do palácio da

Municipalidade e em todas as ruas vizinhas o exército alemão chegava, desdobrando

seus batalhões, que faziam ressoar o calçamento sob seu passo firme e ritmado.

Vozes de comando gritadas numa língua desconhecida e gutural subiam ao longo das

casas, que pareciam mortas e desertas, enquanto atrás das venezianas cerradas havia

olhos espreitando aqueles homens vitoriosos, senhores da cidade, das fortunas e das

vidas pelo direito de guerra. Os habitantes, em seus quartos escurecidos, tinham o

desvario que causam os cataclismos, as grandes convulsões assassinas da Terra, contra

as quais são inúteis toda a sabedoria e toda a força. Porque a mesma sensação retorna

sempre que a ordem estabelecida das coisas é subvertida, que a segurança deixa de

existir, que tudo o que as leis dos homens ou as da natureza protegiam fica à mercê

duma brutalidade inconsciente e feroz. O terremoto esmagando todo um povo sob as

casas que desabam, o rio transbordado e carregando os camponeses afogados com os

cadáveres dos bois e as vigas arrancadas dos telhados, ou o exército glorioso trucidando

os que se defendem, levando prisioneiros demais, saqueando em nome do sabre e

agradecendo a um deus ao som do canhão, são outros tantos flagelos medonhos que

perturbam toda crença na justiça eterna, toda confiança que nos incutem na proteção do

céu e na razão humana.

Mas a cada porta pequenos destacamentos batiam, depois desapareciam nas casas.

Era a ocupação após a invasão. Começava, pros vencidos, o dever de se mostrarem

gentis aos os vencedores.

Ao cabo dalgum tempo, passado o primeiro terror, reinou nova calma. Em muitas

famílias o oficial prussiano comia à mesa. Às vezes era bem-educado e, por cortesia,

lamentava a França, manifestava sua repugnância em participar daquela guerra. Isso lhe

valia o reconhecimento das pessoas. Depois elas podiam, mais cedo ou mais tarde,

necessitar de sua proteção. Lhe dispensando consideração, talvez conseguissem ter

alguns homens a menos pra alimentar. E por que ofender alguém de quem se dependia

inteiramente? Agir assim seria mais temeridade que bravura. E a temeridade não é mais

um defeito dos burgueses de Ruão, como na época das defesas heróicas que tornaram

famosa a cidade. Se refletia, enfim, suprema razão tirada da polidez francesa, que

continuava permitindo ser delicado dentro de casa, contanto que em público não se

tratasse o soldado estrangeiro com intimidade. Fora o conhecimento cessava, mas

dentro de casa se conversava de bom-grado e o alemão cada vez ficava mais tempo, na

noite, se aquecendo à lareira comum.

A própria cidade readquiria, aos poucos, seu aspecto normal. Os franceses ainda não

saíam mas os soldados prussianos pululavam na rua. Aliás, os oficiais dos hússaros

azuis, que arrastavam arrogantemente no calçamento seus grandes apetrechos

mortíferos, não pareciam sentir pelos simples cidadãos desprezo muito maior que os

oficiais de caçador, que, no ano anterior, bebiam nos mesmos cafés.

Contudo havia algo no ar, qualquer coisa de sutil e de desconhecido, uma atmosfera

estrangeira intolerável, como um odor espalhado, o odor da invasão, que enchia as

residências e as praças públicas, alterava o gosto dos alimentos, dava a impressão de se

estar em viagem, muito longe, no meio de tribos bárbaras e perigosas.

Os vencedores muito dinheiro. Os habitantes pagavam sempre. Aliás, eram ricos.

Porém quanto mais opulento se torna o negociante normando, tanto mais lhe custa um

incluindo o exército português, as unidades daquele tipo tomaram a designação de lanceiros. Nos exércitos alemão, austríaco e russo

as unidades de lanceiro mantiveram a designação original de ulanos. Nota do digitalizador. http://pt.wikipedia.org/wiki/Ulano

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sacrifício, uma parcela de sua fortuna, que vê passar a mãos alheias.

Não obstante, a 8km ou 12km abaixo da cidade, se acompanhando o curso do rio, na

direção de Croisset, Dieppedalle ou Biessart, os marinheiros e os pescadores muitas

vezes traziam do fundo da água um cadáver de alemão inchado dentro do uniforme,

morto com uma facada ou um golpe de savate,31

com a cabeça esmagada por uma pedra,

ou jogado nágua do alto duma ponte. O lodo do rio sepultava essas vinganças obscuras,

selvagens e legítimas, heroísmos desconhecidos, ataques silenciosos, mais perigosos

que as batalhas à luz solar e sem o fragor da glória.

Porque o ódio ao estrangeiro arma sempre alguns intrépidos dispostos a morrer por

uma idéia.

Enfim, como os invasores, embora impondo à cidade disciplina inflexível, não

cometeram os horrores que passavam por ter perpetrado ao longo de toda a marcha

triunfal, se criou coragem, e a necessidade de negociar atormentou novamente o coração

dos comerciantes da região. Alguns tinham grandes interesses comprometidos no

Havre, que o exército francês ocupava, e quiseram tentar alcançar esse porto indo, em

terra, até Dieppe, onde embarcariam.

Utilizaram a influência dos oficiais alemães com os quais travaram relação e o

general-comandante concedeu uma autorização pra partirem.

Assim, tendo sido alugada prà viagem uma grande diligência de quatro cavalos, e

tendo se inscrito dez pessoas no estabelecimento do recoveiro, a partida foi marcada a

uma terça-feira na manhã, antes de alvorecer, a fim de evitar ajuntamento.

Havia algum tempo a geada endurecera a terra. Na segunda-feira, cerca de três horas,

grandes nuvens escuras vindas do norte trouxeram a neve, que caiu ininterruptamente

durante toda a tarde e toda a noite.

Às 4:30h da madrugada os viajantes se reuniram no pátio do hotel da Normandia,

onde tomariam o carro.

Ainda estavam muito sonolentos e tiritavam de frio dentro dos agasalhos. Se

enxergava mal na obscuridade e o acúmulo dos pesados trajes de inverno fazia todos os

corpos pareceram párocos obesos com compridas sotainas. Dois homens, porém, se

reconheceram, um terceiro se aproximou, conversaram:

— Levo minha mulher.

— O mesmo faço eu.

— E eu também.

O primeiro comentou:

— Não voltaremos a Ruão. Se os prussianos se aproximarem do Havre passaremos à

Inglaterra.

Todos tinham os mesmos projetos, sendo de gênios parecidos.

Enquanto isso, não atrelavam o carro. Uma pequena lanterna conduzida por um

cavalariço saía, de vez em quando, duma porta escura e desaparecia imediatamente

noutra. Patas de cavalo batiam no chão, amortecidas pelo estrume das camas de palha e

se ouvia, no fundo do edifício, uma voz de homem falando com animais e praguejando.

Um leve murmúrio de guizos anunciou que os arreios estavam sendo manejados. Esse

murmúrio logo se tornou um burburinho claro e contínuo, ritmado pelo movimento do

animal, às vezes desaparecendo, depois voltando num repelão que acompanhava o

barulho abafado dum casco ferrado batendo no chão.

Subitamente a porta se fechou. Todo o ruído cessou. Os burgueses, enregelados, se

calaram. Permaneciam imóveis e tesos.

Uma cortina de flocos brancos, ininterrupta, cintilava sem cessar, baixando sobre a

31 O savate ou boxe francês é um desporto de combate, desenvolvido na França na qual os pés e as mãos são utilizados pra percutir

os adversários e combina elementos de boxe com técnicas de pontapé. Nota do digitalizador. http://pt.wikipedia.org/wiki/Savate

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terra, apagando as formas, salpicando as coisas cuma espuma de neve. E só se ouvia

então, no grande silêncio da cidade calma e sepultada pelo inverno, aquele roçagar

indistinto, flutuante e sem nome da neve que cai, mais sensação que ruído, mescla de

átomos leves que pareciam encher o espaço, cobrir o mundo.

O homem reapareceu com a lanterna, puxando na ponta duma corda um cavalo triste

que não caminhava de bom grado. O colocou junto ao timão, prendeu os tirantes, girou

demoradamente em volta, pra firmar os arreios, porque só podia se servir duma das

mãos, pois com a outra segurava a lanterna. Quando ia buscar o segundo animal,

reparou em todos aqueles viajantes imóveis, que a neve já embranquecera, e lhes disse:

— Por que não subis ao carro? Ao menos estareis abrigados.

Sem dúvida, não pensaram nisso, e correram ao carro. Os três homens instalaram as

esposas no fundo, depois subiram. As outras formas imprecisas e veladas ocuparam os

últimos lugares, sem trocar palavra.

O chão estava coberto de palha na qual os pés se enterravam. As senhoras do fundo,

que trouxeram pequenos aquecedores de cobre cum carvão químico, os acenderam e,

durante algum tempo, em voz baixa, enumeraram as vantagens, mutuamente repetindo

coisas já sabidas havia muito tempo.

Enfim, atrelada a diligência com seis cavalos em vez de quatro, por se ter tornado

mais difícil a tração, uma voz perguntou do lado de fora:

— Todos subiram?

Uma voz respondeu de dentro:

— Sim.

Partiram.

O carro avançava devagar. As rodas se enterravam na neve. A carruagem gemia toda,

com estalidos abafados. Os animais escorregavam, resfolegavam, fumegavam. E o

gigantesco chicote do cocheiro estalava sem cessar, esvoaçando a todos os lados, se

enrolando e desenrolando qual fina serpente, pra subitamente lanhar uma anca roliça

que então se distendia num esforço mais violento.

Mas a claridade aumentava imperceptivelmente. Aqueles leves flocos que um

viajante, legítimo filho de Ruão, comparara a uma chuva de algodão, deixaram de cair.

Uma claridade baça filtrava através de grandes nuvens escuras e pesadas que ainda

faziam mais refulgente a brancura do campo, onde surgia ora uma fileira de grandes

árvores vestidas de geada, ora uma cabana cum capuz de neve.

Dentro do carro as pessoas se olhavam, cheias de curiosidade, à luz triste daquela

aurora.

Bem no fundo, nos melhores lugares, dormitavam um diante do outro, senhor e

senhora Loiseau, negociantes atacadistas de vinho, estabelecidos na rua da Ponte

Grande.

Antigo caixeiro dum patrão arruinado no negócio, Loiseau comprara a massa falida e

fizera fortuna. Vendia a baixo preço péssimo vinho aos pequenos varejistas do campo, e

era tido pelas pessoas de sua relação e amigos como um finório, um verdadeiro

normando cheio de manha e de jovialidade.

Tão firme era a reputação de velhaco, que numa noite, na prefeitura, tendo senhor

Tournel, autor de fábula e de canção, espírito fino e mordaz, uma glória local, proposto

às senhoras, que achava um pouco sonolentas, jogarem uma partida de Loiseau vole,32

o

próprio dito voou nos salões do prefeito e depois, alcançando os da cidade, fizera rir

durante um mês todos os queixos da província.

Loiseau também era célebre por suas facécias de toda natureza, seus gracejos bons

ou maus, e ninguém podia ouvir falar dele sem acrescentar imediatamente:

32 Trocadilho, feito com as palavras oiseau, pássaro, e voler, voar roubar

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— Esse Loiseau é impagável.

De pequena estatura, exibia um ventre que parecia um balão, encimado por um rosto

avermelhado entre duas suíças grisalhas.

Sua mulher, grande, robusta, disposta, de voz alta e decisões rápidas, era a ordem e a

aritmética da casa de negócio que ele animava com sua alegre atividade.

A seu lado estava, mais digno, porque pertencia a uma casta superior, senhor Carré-

Lamadon, homem importante, estabelecido no negócio algodoeiro, proprietário de três

fiações, oficial da legião-de-honra e membro do conselho geral. Durante todo o império

fora chefe da oposição branda, unicamente pra obter melhor preço por sua adesão à

causa que combatia com armas corteses, segundo sua própria expressão. Senhora Carré-

Lamadon, muito mais moça que o marido, era a consolação dos oficiais de boa família

mandados à guarnição de Ruão.

Estava diante do esposo, pequenina, miudinha, bonitinha, encolhida dentro dos

agasalhos, e fitava, com olhar compungido, o interior lamentável da carruagem.

Seus vizinhos, conde e condessa Hubert de Bréville, eram portadores dum dos nomes

mais antigos e nobres da Normandia. O conde, velho fidalgo de aspecto, procurava

acentuar, por artifício de toucador, sua natural parecença com o rei Henrique IV, que,

segundo uma lenda gloriosa prà família, engravidara uma senhora de Bréville, cujo

marido, graças a isso, fora feito conde e governador de província.

Colega de senhor Carré-Lamadon do conselho geral, o conde Hubert representava,

no departamento, o partido orleanista. A história de seu casamento com a filha dum

pequeno armador de Vantes permanecera sempre um mistério. Mas como a condessa

tinha ar extremamente distinto, recebia melhor que todos e passava mesmo por fora

amada por um dos filhos de Luiz Filipe, toda a nobreza a festejava e seu salão

continuava o primeiro da região, o único onde se conservava a galantaria antiga e cuja

entrada era difícil.

Se dizia que a fortuna dos Bréville, toda em bem imobiliário, produzia 500 mil libras

de renda.

Essas seis pessoas formavam o fundo do carro, o lado da sociedade capitalista, serena

e forte. Pessoas honestas e autorizadas que possuem religião e princípio.

Por um acaso singular todas as mulheres ocupavam o mesmo banco. Também eram

vizinhas da condessa duas boas irmãs que debulhavam compridos rosários,

resmungando padre-nossos e ave-marias. Uma era idosa, com o rosto devastado pela

bexiga, como se tivesse recebido à queima-roupa, na cara, uma descarga de metralha. A

outra, muito franzina, tinha uma linda cabeça doentia sobre um peito de tuberculosa,

carcomido por essa fé devoradora que faz os mártires e os iluminados.

Diante das duas religiosas um homem e uma mulher atraíam os olhares de todos.

O homem, bastante conhecido, era Cornudet, o democrata, o terror das pessoas

respeitáveis. Havia vinte anos que mergulhava sua grande barba ruiva nas canecas de

cerveja de todos os cafés democráticos. Devorara com os irmãos e os amigos gorda

fortuna que herdara do pai, antigo confeiteiro, e impacientemente esperava a república,

pra finalmente obter o lugar merecido por tantas consumações revolucionárias. Em 4 de

setembro, talvez em conseqüência dalguma pilhéria, se julgara nomeado prefeito, mas

quando quis tomar posse, os funcionários, que ficaram como únicos senhores da praça,

se recusaram a o reconhecer, o que o forçou à retirada. Excelente rapaz, aliás,

inofensivo e obsequioso, se ocupara, com ardor incomparável, em organizar a defesa.

Fizera cavar buracos nas planícies, derrubar todas as árvores novas das florestas

vizinhas, espalhar armadilha em todos os caminhos e, à aproximação do inimigo,

satisfeito com esses preparativos, se retirara vivamente à cidade. Então pensava se

tornar mais útil no Havre, onde novos entrincheiramentos seriam necessários.

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A mulher, uma dessas chamadas loureiras,33

era célebre por sua gordura precoce, que

lhe valera o apelido de Bola-de-Sebo. Pequena, toda roliça, tão gorda que tinha

toucinho, com dedos intumescidos, estrangulados nas falanges, iguais a rosários de

pequenas salsichas, com pele reluzente e esticada, um busto enorme que estufava o

vestido, continuava, apesar disso, apetecível e desejada, tão agradável de ver era sua

louçania. Seu rosto era uma maçã vermelha, um botão de peônia preste a desabrochar, e

nele se abriam, no alto, dois magníficos olhos negros sombreados por grandes cílios

espessos que punham uma sombra dentro deles. Embaixo uma encantadora boca,

estreita, úmida pro beijo, mobiliada por dentinhos brilhantes e microscópicos.

Além disso, se dizia que era dotada de qualidades inapreciáveis.

Mal a reconheceram correram cochichos entre as mulheres honestas e as palavras

prostituta, vergonha pública foram sussurradas tão alto que ela erguera a cabeça. Então

passeou nos vizinhos um olhar tão desafiador e ousado que logo se estabeleceu absoluto

silêncio e todos baixaram os olhos, com exceção da Loiseau, que a espreitava com ar

provocante.

Mas depressa a conversação recomeçou entre as três senhoras que a presença da

perdida tornara, subitamente, amigas, quase íntimas. Lhes parecia que elas deviam

reunir como um feixe de suas virtudes de esposas pra enfrentar aquela vendida, sem-

vergonha. Porque o amor legal olha sempre com desprezo seu confrade livre.

Também os três homens, que um instinto de conservador aproximara ao verem

Cornudet, falavam sobre dinheiro com certa inflexão de desprezo aos pobres. Conde

Hubert relatava os prejuízos que os prussianos lhe causaram, a perda decorrente do gado

roubado e da colheita perdida, com uma calma de grão-senhor dez vezes milionário a

quem esses estragos preocupariam apenas um ano. Senhor Carré-Lamadon, com muita

experiência na indústria do algodão, tivera o cuidado de mandar 600 mil francos à

Inglaterra, um recurso pra ocasiões extremas das quais não se descuidava. Quanto a

Loiseau, conseguira vender, à intendência francesa, todos os vinhos comuns que

restavam na adega, de modo que o estado lhe devia uma soma formidável que contava

muito receber no Havre.

E todos os três trocavam olhadelas rápidas e amistosas. Embora de condições

diversas, se sentiam irmãos pelo dinheiro, da grande franco-maçonaria daqueles que

possuem, que fazem tilintar o ouro ao meter a mão no bolso da calça.

O carro ia tão devagar que às 10h da manhã ainda não fizeram 16km. Os homens

desceram três vezes pra subir ladeira a pé. Começavam a se inquietar porque deviam

almoçar em Tôtes e perdiam a esperança de àli chegar antes de anoitecer. Cada qual se

esforçava em avistar uma taberna na margem da estrada, quando a diligência se enterrou

num montão de neve e foi preciso duas horas prà desencravar.

O apetite aumentava, perturbava os espíritos, e não aparecia uma tasca,34

negociante

de vinho, porque a aproximação dos prussianos e a passagem das tropas francesas

esfaimadas afugentaram todos os negócios.

Os cavalheiros procuravam se abastecer nas herdades na beira da estrada, mas nem

pão encontraram, porque o camponês desconfiado escondia suas reservas, receoso de

ser saqueado pelos soldados que, nada tendo pra comer, tomavam a força o que

descobriam.

Cerca de 13h Loiseau comunicou que, decididamente, sentia um terrível vazio no

estômago. Havia muito que todos sofriam como ele e a imperiosa necessidade de comer,

aumentando sempre, matara a conversação.

33 Loureira: Mulher que desejava agradar a todos. Provocante, sedutora, coquete. Casta de uva branca do Minho, Portugal. Nota do

digitalizador. http://www.dicio.com.br/loureira/ 34 Tasca: sf Pequeno bar, restaurante simples. Nota do digitalizador. http://www.lexico.pt/tasca/

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De vez em quando alguém bocejava. Outro, quase imediatamente, o imitava. E todos,

cada qual em sua vez, segundo seu caráter, educação e posição social, abriam a boca

barulhenta ou discretamente, levando depressa a mão ao buraco escancarado donde saía

o vapor.

Várias vezes Bola-de-Sebo se inclinou como procurando algo embaixo da saia.

Hesitava um segundo, fitava os vizinhos, depois se erguia tranqüilamente. Os rostos

estavam pálidos e crispados. Loiseau garantiu que daria mil francos por um presuntinho.

Sua mulher fez um gesto como pra protestar e depois sossegou. Sofria sempre quando

ouvia falar em dinheiro malbaratado e nem admitia pilhéria sobre o assunto. Disse o

conde:

— O fato é que não me sinto bem. Como não me lembrei de trazer provisão?

Todos se dirigiam a mesma censura.

Cornudet possuía, entretanto, um cantil cheio de rum e o ofereceu. Recusaram

friamente. Apenas Loiseau aceitou duas gotas e, ao restituir o cantil, agradeceu:

— Sempre é bom, isso aquece e engana o apetite.

O álcool o pôs de bom-humor e propôs fizerem como no naviozinho da canção:

Comerem o viajante mais gordo. Essa alusão indireta a Bola-de-Sebo chocou as pessoas

bem-educadas. Não houve resposta. Somente Cornudet sorriu. As duas boas irmãs

pararam de engrolar seu rosário e, com as mãos metidas nas largas mangas, se

conservavam imóveis, de olhos obstinadamente baixos, sem dúvida oferecendo ao céu o

sofrimento que ele enviava.

Enfim, às 15h, quando estavam no meio de interminável planície, sem aldeia à vista,

Bola-de-Sebo, se abaixando vivamente, retirou, de sob o banco, um grande cabaz

coberto cum guardanapo branco.

Tirou primeiro um pratinho de faiança, um fino copo de prata e depois uma vasta

terrina na qual dois frangos, cortados em pedaço, se impregnaram de gordura e nela

ficaram conservados. E também se viam no cabaz outras boas coisas cobertas: Massa,

fruta, guloseima, provisão preparada pruma viagem de três dias, a fim de que não fosse

preciso recorrer a cozinha de hospedaria. Entre os embrulhos de alimento apareciam

quatro gargalos de garrafa. Ela apanhou uma asa de frango e, delicadamente, começou a

comer cum desses pãezinhos que na Normandia chamam regência.

Todos os olhares convergiam a ela. Depois o odor se espalhou, dilatando as narinas,

fazendo acudir às bocas uma saliva abundante, com contração dolorosa do queixo sob as

orelhas. O desprezo das senhoras àquela perdida se tornava feroz, uma espécie de

vontade de a matar ou de atirar fora do carro, na neve, ela, copo, cabaz e provisão.

Mas Loiseau devorava com os olhos a terrina de frango. Disse:

— Felizmente foste mais previdente que nós. Há pessoas que sabem sempre pensar

em tudo.

Ela ergueu a cabeça para ele:

— Estás servido? É penoso ficar em jejum desde a manhã.

Ele cumprimentou:

— Por minha fé, francamente, não recuso. Não posso mais. Na guerra é como na

guerra. Não é?, senhora.

E, lançando um olhar em torno, acrescentou:

— Em momentos iguais a este é bem agradável encontrar pessoas obsequiosas.

Ele tinha um jornal, que desdobrou pra não sujar a calça, e com a ponta duma faca,

que sempre trazia no bolso, retirou uma coxa toda envernizada de gordura gelatinosa, a

despedaçou com os dentes e mastigou com tão evidente satisfação que no carro houve

um grande suspiro de infortúnio.

Mas Bola-de-Sebo, com voz humilde e doce, convidou as boas irmãs a partilhar a

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merenda. Ambas aceitaram instantaneamente e, sem erguer os olhos, começaram a

comer muito depressa, após balbuciar agradecimento. Cornudet também não recusou o

oferecimento de sua vizinha e eles formaram, com as religiosas, uma espécie de mesa,

abrindo os jornais sobre os joelhos. As bocas se descerravam e fechavam sem parar,

devorando, mastigando e engolindo ferozmente. Loiseau, em seu canto, trabalhava

firme e, em voz baixa, concitava a esposa a o imitar. Durante muito tempo ela resistiu,

depois, após uma crispação que percorreu a entranha, cedeu. Então o marido, torneando

a frase, perguntou a sua encantadora companheira se lhe permitia oferecer um

pedacinho a senhora Loiseau. Ela disse: Certamente, senhor, com um sorriso amável, e estendeu a terrina.

Houve embaraço quando desarrolharam a primeira garrafa de bordô: Só havia um

copo. Depois de o limparem, foi passando de mão a mão. Somente Cornudet, sem

dúvida por delicadeza, pousou os lábios no lugar ainda úmido dos lábios de sua vizinha.

Então, cercados de pessoas que comiam, sufocados pelas emanações das vitualhas,

conde e condessa de Bréville, bem como senhor e senhora Carré-Lamadon, sofreram o

suplício odioso que conservou o nome de Tântalo. Súbito a jovem esposa do industrial

soltou um suspiro que fez se voltarem as cabeças: Estava da cor da neve lá fora. Os

olhos se cerraram, a cabeça tombou: Desfalecera. O marido, desesperado, implorava, a

todos, que a socorressem. Todos perdiam a cabeça, quando a mais idosa das boas irmãs,

amparando a fronte da enferma, escorregou entre seus lábios o copo de Bola-de-Sebo e

a fez engolir algumas gotas de vinho. A linda senhora se moveu, abriu os olhos, sorriu e

declarou, com voz quase inaudível, que se sentia muito bem. Mas, a fim de que não se

repetisse aquilo, a religiosa a obrigou a beber um copo cheio de bordô, e acrescentou:

— É a fome. Nada mais.

Então Bola-de-Sebo, ruborizada e perplexa, balbuciou, fitando os quatro viajantes

que ficaram em jejum:

— Meu-deus! Se eu ousasse oferecer a esses cavalheiros e a essas senhoras...

Se calou, receando um ultraje. Loiseau tomou a palavra:

— Ótimo! Em casos assim todos somos irmãos e devemos nos ajudar mutuamente.

Vamos, senhoras, nada de cerimônia, aceitai. Que-diabo! Sabemos se encontraremos

uma casa onde passar a noite? Na marcha em que vamos não chegaremos a Tôtes antes

de amanhã ano meio-dia.

Hesitavam. Ninguém ousava assumir a responsabilidade do sim. Mas o conde

liquidou a questão. Se voltou à gorda rapariga intimidada e, revestindo seu ar altivo de

fidalgo disse:

— Aceitamos, agradecidos, senhora.

O primeiro passo é que era difícil. Uma vez transposto o Rubicão não houve mais

restrição. Esvaziaram o cabaz. Ainda continha um patê de fígado de ganso, um patê de

calhandra, um pedaço de língua defumada, pêras de Crassane, um bolo dos chamados de

Pont-Lévêque, biscoitinho e uma taça cheia de pepino e alho em vinagre: Bola-de-Sebo,

como todas as mulheres, adorava as coisas picantes.

Era impossível comer a provisão daquela rapariga sem lhe dirigir a palavra. Por isso

se conversou, primeiro com cautela, depois, visto ela se conduzir muito bem, com mais

naturalidade. As senhoras de Bréviile- e Carré-Lamadon, que possuíam grande traquejo

social, se mostraram delicadamente gentis. A condessa, principalmente, revelou essa

condescendência amável das senhoras muito nobres, que nenhum contato pode

manchar, e foi encantadora. Mas a robusta senhora Loiseau, que possuía alma de

gendarme, permaneceu casmurra, falando pouco e comendo muito.

Naturalmente se conversou sobre a guerra. Se relataram ações horrorosas dos

prussianos, rasgos de bravura dos franceses. E todas aquelas pessoas que fugiam

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renderam homenagem à coragem alheia. Em breve começaram as histórias pessoais.

Bola-de-Sebo narrou, com verdadeira emoção, com essa palavra calorosa que às vezes

as perdidas têm pra manifestar seus impulsos naturais, como deixara Ruão:

— A princípio julguei que pudesse ficar. Minha casa estava cheia de provisão e eu

preferia sustentar alguns soldados a me expatriar não sei aonde. Mas quando vi os

prussianos não me pude conter! Me fizeram ferver o sangue nas veias e chorei de

vergonha o dia todo. Ó! Se eu fosse homem! Eu os olhava de minha janela, aqueles

grandes porcos de capacete pontudo, e minha criada me segurava as mãos pra me

impedir de lhes atirar às costas minha mobília. Depois se instalaram em minha casa.

Então saltei ao pescoço do primeiro. Não são mais difíceis de estrangular que outros

quaisquer! E o liquidaria se não me puxassem o cabelo. Depois disso precisei me

esconder. Afinal, quando encontrei uma oportunidade, parti, e aqui estou.

A felicitaram muito. Avultava na estima dos companheiros que não revelaram a

mesma intrepidez. E Cornudet, a ouvindo, conservava um sorriso aprovador e benévolo

de apóstolo, da mesma forma que um sacerdote ou um crente louva a Deus, porque os

democratas de longa barba têm o monopólio do patriotismo como os homens de sotaina

o da religião. Falou em tom doutrinário, com a ênfase que aprendera nas proclamações

todos os dias coladas nas paredes, e concluiu cum trecho de eloqüência no qual

desancava magistralmente aquele crápula Bodunguet.

Mas Bola-de-Sebo logo se zangou porque era bonapartista. Ficou mais vermelha que

uma jinja garrafal e, gaguejando de indignação:

— Gostaria muito de te ver o senhor em seu lugar. Seria uma beleza, sim! Foste tu e

os teus, que traíram esse homem! Só nos restaria deixar a França, se fôssemos

governados por patifes iguais a ti...

Cornudet, impassível, conservava um sorriso desdenhoso e superior, mas se sentia

que as palavras pesadas começariam quando o conde se interpôs e acalmou, não sem

dificuldade, a rapariga exasperada, proclamando, com autoridade, que todas as opiniões

sinceras eram respeitáveis. Não obstante, a condessa e o industrial, que tinham na alma

o ódio insensato das pessoas de bem à república, e essa ternura instintiva que todas as

mulheres dedicam aos governos pomposos e despóticos, se sentiam involuntariamente

atraídas por aquela prostituta cheia de dignidade, cujo sentimento se parecia tanto com

os seus.

O cabaz estava vazio. Às 10h o exauriram sem dificuldade, lamentando que não

fosse maior. A conversação continuou algum tempo, um pouco esmorecida, contudo,

depois de terminada a refeição.

A noite descia, aos poucos, a escuridão se tornou profunda e o frio, mais sensível

durante a digestão, fazia Bola-de-Sebo tiritar, apesar de sua gordura. Então senhora de

Bréville lhe ofereceu o aquecedor, cujo carvão fora muitas vezes renovado durante o

dia, e a outra imediatamente aceitou porque sentia gelarem os pés. As senhoras Carré-

Lamadon e Loiseau deram os seus às religiosas.

O cocheiro acendera as lanternas, que iluminavam com forte claridade uma nuvem

de fumaça sobre as ancas suadas dos cavalos da lauça e, de ambos os lados da estrada, a

neve que parecia se desdobrar sob o reflexo móvel das luzes.

Nada mais se distinguia dentro do carro mas, súbito, houve um movimento entre

Bola-de-Sebo e Cornudet. Loiseau, cujos olhos perscrutavam a sombra, julgou ver o

homem de longa barba se afastar vivamente, como se recebesse uma boa pancada

assestada sem barulho.

Pequenos pontos de fogo surgiram na frente, na estrada. Era Tôtes. caminharam doze

horas, o que, com as duas horas de repouso, divididas em quatro partes, pros cavalos

comerem aveia e respirarem, fazia catorze. Entraram na povoação e pararam diante do

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hotel do Comércio.

Se abriu a portinhola! Um ruído muito conhecido fez os viajantes estremecerem:

Eram as pancadas duma bainha de sabre contra o chão. Imediatamente a voz dum

alemão bradou algo.

Embora a diligência estivesse imóvel, ninguém desceu, como se estivessem na

expectativa de serem trucidados logo na saída. O condutor apareceu então, tendo à mão

uma de suas lanternas, que iluminou subitamente até o fundo do carro as duas fileiras de

cabeças assustadas, cujas bocas estavam abertas e os olhos arregalados de surpresa e

susto.

Ao lado do cocheiro estava, em plena luz, um oficial alemão, um rapaz alto, muito

esguio e louro, apertado na farda como uma moça no espartilho, com um boné chato e

encerado caído ao lado, o que o fazia parecer um moço de recado de hotel inglês. O

bigode imenso, de comprido pêlo espetado, que diminuía indefinidamente de cada lado

e terminava num fio louro tão fino que não se via o fim, parecia pesar sobre os cantos da

boca e, repuxando a bochecha, imprimia nos lábios uma ruga a baixo.

Num francês de alsaciano, convidou os viajantes a saírem, dizendo, em tom seco:

— Desceis, senhoras e cavalheiros.

As duas boas irmãs foram as primeiras a obedecer, com docilidade de santas

mulheres habituadas a toda submissão. O conde e a condessa apareceram depois,

seguidos do industrial e de sua esposa e, após eles, Loiseau, que empurrava, na frente,

sua grande metade. Loiseau, ao pisar chão, disse ao oficial Bom-dia, senhor, muito mais por prudência que por delicadeza. O outro, insolente como todas as pessoas

onipotentes, o olhou sem responder.

Bola-de-Sebo e Cornudet, embora próximos à portinhola, foram os últimos a descer,

graves e altivos perante o inimigo. A gorda rapariga procurava se dominar e permanecer

calma, o democrata atormentava, com mão trágica e um pouco trêmula, a longa barba

arruinada. Queriam conservar a dignidade, compreendendo que nesses encontros todos

representam um pouco seu país. E igualmente revoltados pela dobrez35

dos

companheiros, ela procurava se mostrar mais altiva que as vizinhas, as mulheres

honestas, enquanto ele, sentindo bem que lhe cabia dar o exemplo, continuava, com

toda atitude, sua missão de resistência começada na inutilização das estradas. Entraram

na vasta cozinha da hospedaria e o alemão, depois de fazer com que exibissem a

autorização de partida assinada pelo general-comandante, na qual estavam enumerados

os nomes, os sinais de identificação e a profissão de cada viajante, os examinou

longamente, comparando as pessoas com os dados escritos.

Depois disse, subitamente, Está bem e desapareceu.

Então respiraram. A fome ainda não desaparecera. A ceia foi encomendada. Era

necessário meia hora pra preparar e, enquanto duas criadas pareciam cuidar disso, foram

visitar os quartos. Ficavam todos num comprido corredor que terminava numa porta

envidraçada assinalada por um número de grande tamanho.

Finalmente se sentariam à mesa, quando o hospedeiro se apresentou em pessoa. Era

um antigo negociante de cavalo, um homenzarrão asmático, que tinha sempre assobio,

rouquidão e pigarro na laringe. O pai lhe transmitira o nome de Follenvie.

Ele perguntou:

— Senhorita Elisabete Rousset?

Bola-de-Sebo estremeceu, voltou-se:

— Sou eu.

— Senhorita, o oficial prussiano quer falar contigo imediatamente. — Comigo?

35 Dobrez: Simulação, fingimento, hipocrisia. Nota do digitalizador

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— Sim, se de fato és senhorita Elisabete Rousset.

Ela se perturbou, refletiu um segundo e declarou, resolutamente:

— É possível mas não irei.

Houve um reboliço a sua volta. Cada qual discutia, procurava a causa de semelhante

ordem. O conde se aproximou:

— Faz mal, senhora, porque tua recusa pode acarretar dificuldade considerável, não

apenas a ti mas a todos teus companheiros. Nunca se deve resistir aos mais fortes.

Certamente isso não pode comportar perigo. Se trata, sem dúvida, dalguma formalidade

esquecida.

Todos se juntaram a ele, pediram, insistiram, a admoestaram e acabaram

convencendo, porque todos temiam a complicação que resultaria duma cabeçada. Enfim

ela disse:

— É por vós todos que o farei. Estejais certos!

A condessa tomou sua mão.

— E te agradecemos por isso.

Ela saiu. A esperaram pra se pôr à mesa. Cada qual se lamentava não ter sido

chamado em lugar daquela rapariga violenta e irascível e preparava mentalmente

respostas inócuas pro caso de chegar sua vez.

Mas ao cabo de dez minutos ela voltou, ofegante, vermelha de sufoco, exasperada.

Balbuciando:

— Ó! Que canalha! Que canalha!

Todos se interessavam em saber. Mas ela nada disse e, como o conde insistia,

respondeu, com grande dignidade:

— Não. Isso não te diz respeito. Não posso falar.

Então se sentaram à roda de alta sopeira, donde saía um cheiro de repolho. Apesar

daquele susto a ceia foi alegre. A cidra era boa, o casal Loiseau e as boas irmãs a

beberam por economia. Os outros pediram vinho. Cornudet quis cerveja. Tinha um

modo especial de desarrolhar a garrafa, de fazer o líquido espumar, de o observar

inclinando o copo, que então erguia entre a lâmpada e seus olhos, a fim de bem apreciar

a cor. Quando bebia, a grande barba, que conservara o matiz de sua bebida predileta,

parecia tremer de ternura. Os olhos envesgavam pra não perder de vista a caneca e

parecia se desincumbir da única função à qual nascera. Se diria que intimamente

estabelecia uma aproximação, e como uma afinidade entre as duas grandes paixões que

enchiam toda sua vida: A pale ale36

e a revolução. Certamente não podia saborear uma

sem pensar na outra.

Senhor e senhora Follenvie jantavam na outra cabeceira da mesa. O homem,

arquejando como uma locomotiva arrebentada, tinha pressão demais no peito pra poder

falar enquanto comia mas a mulher nunca estava calada. Contou todas as impressões da

chegada dos prussianos, o que faziam, o que diziam, os detestando, primeiro porque lhe

custavam dinheiro e, depois, porque tinha dois filhos no exército. Se dirigia,

principalmente, à condessa, lisonjeada por conversar cuma aristocrata.

Em seguida baixava a voz, pra dizer coisas delicadas, e o marido, de vez em quando,

a interrompia:

— Farias melhor em te calar, senhora Follenvie.

Mas ela não dava importância e prosseguia:

— Sim, senhora. Essa gente só faz comer batata e porco e depois porco e batata. E

36 Pale ale é uma cerveja de fermentação predominantemente morna e malte claro. É um principais estilos de cerveja do mundo. Ale

é um tipo de cerveja produzida a partir de cevada maltada usando uma levedura de alta fermentação, que fermenta a cerveja

rapidamente, proporcionando sabor adocicado, encorpado e frutado. A maioria das ales contém lúpulo, o que ajuda a equilibrar o

sabor adocicado e preservar a cerveja. O outro tipo principal de cerveja é a lager, de baixa fermentação. Nota do digitalizador.

http://en.wikipedia.org/wiki/Pale_ale e http://pt.wikipedia.org/wiki/Ale_(cerveja)

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não se deve pensar que sejam limpos. Ó, não! Emporcalham tudo, com licença da

palavra. E se os visses se exercitarem horas e dias a fio. Se postam todos num campo e

toca a marchar a diante, a marchar a trás, a volver àqui, a volver àli. Ao menos se

cultivassem a terra e trabalhassem na estrada, em seu país! Mas não, senhora, esses

militares são inúteis! E o pobre povo tem de os sustentar pra eles aprenderem apenas a

trucidar! Não passo duma velha mulher sem educação, é verdade, mas os vendo estafar

o corpo, sapateando da manhã à noite, digo, com meus botões: Por que, enquanto há pessoas que fazem tantas descobertas pra serem úteis, outras se dão tanto trabalho pra serem nocivas? Realmente, não é abominável matar criaturas, sejam

prussianos, ingleses, poloneses ou franceses? Quando a pessoa se vinga dalguém que

lhe fez mal está errada, uma vez que é condenada, mas quando exterminam nossos

rapazes como se fossem caça, com fuzil, está certo, uma vez que se condecora aquele

que destruiu maior número? Não, estais vendo, jamais compreenderei isso!

Cornudet elevou a voz:

— A guerra é uma barbaridade quando se ataca um vizinho pacífico. É um dever

sagrado quando se defende a pátria. A velha mulher abaixou a cabeça:

— Sim. Quando a pessoa se defende é outra coisa. Mas não se deveria antes matar

todos os reis que fazem isso por prazer?

O olhar de Cornudet se inflamou:

— Bravo!, cidadã.

Senhor Carré-Lamadon refletia profundamente. Embora fanático pelos ilustres

cabos-de-guerra, o bom-senso daquela camponesa o fazia meditar na opulência que

trariam a um país tantos braços desocupados e, portanto, perniciosos, tantas forças

mantidas improdutivas, quando deveriam ser empregadas nos grandes trabalhos

industriais, cuja conclusão demandará séculos.

Mas Loiseau, se levantando, foi conversar baixinho com o estalajadeiro. O

homenzarrão ria, tossia, escarrava. O enorme ventre saltitava de alegria com os gracejos

do interlocutor e comprou dele seis tonéis de bordô prà primavera, quando os prussianos

tivessem partido.

Mal acabou a ceia, como todos estivessem prostrados pela fadiga, foram se deitar.

Loiseau, entretanto, que observara as coisas, fez a esposa se recolher, depois colou

ora o ouvido ora o olho ao buraco da fechadura, procurando descobrir o que chamava os

mistérios do corredor.

Ao cabo duma hora aproximadamente, ouviu um roçagar, olhou bem depressa e

avistou Bola-de-Sebo, que parecia ainda mais volumosa num penteador de seda azul,

enfeitado de renda branca. Segurava um castiçal e se encaminhava ao número grande,

bem no fundo do corredor. Mas uma porta, a seu lado, se entreabriu, e quando ela

voltou dali a alguns minutos, Cornudet, de suspensório, a seguiu. Falava baixo, depois

pararam. Bola-de-Sebo parecia impedir, com energia, a entrada de seu quarto. Loiseau,

infelizmente, não ouvia as palavras, mas enfim, como erguessem a voz, pôde entender

algumas. Cornudet insistia fortemente. Dizia:

— Vamos. És tola. O que te importa isso?

Ela parecia indignada e respondeu:

— Não, meu caro. Há momentos em que não se fazem essas coisas. E depois, aqui

seria uma vergonha.

Sem dúvida, ele não compreendia, e perguntou por quê. Então ela se exaltou,

elevando ainda mais a voz:

— Por quê? Não compreendes? Quando há prussiano na casa, talvez no quarto ao lado?

Ele calou-se. Aquele pudor patriótico de meretriz que não se deixava acariciar junto

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ao inimigo, deve ter lhe despertado, no coração, a dignidade enfraquecida, porque, após

a ter somente abraçado, retornou a sua porta na ponta dos pés.

Loiseau, muito excitado, abandonou a fechadura, deu uma cabriola no quarto, pôs o

roupão e ergueu a coberta sob a qual jazia a dura carcaça da companheira que ele

acordou com um beijo, murmurando:

— Me amas?, querida.

Então toda a casa mergulhou em silêncio. Mas logo se ergueu algures, em direção

indeterminada, que tanto podia ser a da adega como a das águas-furtadas, um roncar

poderoso, monótono, regular, um ruído abafado e prolongado, com estremeção de

caldeira sob pressão. Senhor Follenvie dormia.

Como a partida ficara marcada ao dia seguinte, às 8h, todos se encontraram na

cozinha mas o carro, cujo toldo estava coberto de neve, se erguia, solitário, no meio do

pátio, sem cavalo e sem condutor. Em vão o procuraram nas estrebarias, no depósito de

forragem, nas cocheiras. Então todos os homens resolveram percorrer a localidade e

saíram. Se encontraram na praça, tendo ao fundo a igreja e, de ambos os lados, casas

baixas onde se viam soldados prussianos. O primeiro que avistaram descascava batata.

O segundo, mais adiante, lavava o salão do cabeleireiro. Outro, com barba que ia até os

olhos, abraçava um garotinho que chorava, e o embalava nos joelhos, procurando

consolar. E as gordas camponesas, cujos homens estavam no exército da guerra,

indicavam, por meio de sinal, a seus vencedores obedientes, o trabalho que precisavam

fazer: Rachar lenha, preparar a sopa, moer o café. Um até lavava a roupa de sua

hospedeira, uma velha inteiramente entrevada.

O conde, surpreso, interrogou o bedel, que saía do presbitério. O velho rato-de-igreja

respondeu:

— Ó! Esses não são maus. Ao que se diz não são prussianos. São de mais longe. Não

sei bem donde. E todos deixaram mulher e filhos em sua terra. A guerra não os diverte,

acredites! Estou certo que em sua terra também se chora bastante pelos homens que se

foram e disso resultará uma terrível miséria tanto a eles como a nós. Aqui ainda não

somos desgraçados demais, por enquanto, porque não fazem mal e trabalham como se

estivessem em sua casa. Compreendes: As pessoas pobres têm mesmo que se ajudar

mutuamente... Os grandes é que fazem a guerra.

Cornudet, indignado com a cordialidade reinante entre vencedores e vencidos, se

retirou, preferindo se fechar na hospedaria. Loiseau teve um dito pra fazer rir:

Repovoam. Senhor Carré-Lamadon emitiu um conceito sério: Reparam. Mas não se encontrava o cocheiro. Enfim o descobriram no café da aldeia, abancado fraternalmente

com a ordenança do oficial. O conde o interpelou:

— Não te deram ordem pra atrelar hoje às 8h?

— Sim. Mas deram outra depois.

— Qual?

— Para não atrelar.

— Quem deu essa ordem?

— Ora! Ora! O comandante prussiano.

— Por quê?

— Não sei. Vás perguntar. Me proibiram de atrelar, então não atrelo. É isso.

— Quem disse isso foi ele?

— Não, senhor. Foi o estalajadeiro quem me deu essa ordem da parte dele.

— Quando?

— Ontem na noite, quando ia me deitar.

Os três homens voltaram à hospedaria muito inquietos. Perguntaram sobre senhor

Follenvie mas a criada respondeu que o patrão, por causa da asma, nunca se levantava

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antes das 10h. Formalmente proibira que o despertassem mais cedo, salvo em caso de

incêndio.

Quiseram ver o oficial mas isso era impossível, embora residisse na hospedaria.

Somente senhor Follenvie tinha autorização pra lhe falar sobre os negócios civis. Então

esperaram. As mulheres retornaram a seus quartos e se entretiveram com futilidade.

Cornudet se instalou junto a alta lareira da cozinha. Mandou trazer uma das mesinhas

da taberna, uma caneca de cerveja e puxou um cachimbo, que desfrutava, entre os

democratas, consideração quase igual à sua, como se servisse à pátria ao servir a

Cornudet. Era uma magnífico cachimbo de espuma admiravelmente enegrecido, tão

preto como os dentes do dono mas perfumado, recurvo, luzidio, familiar a sua mão e

complementar a sua fisionomia. E permaneceu imóvel, com os olhos ora fixos nas

chamas da lareira, ora na espuma que coroava sua cerveja. E cada vez que bebia

passava, com ar satisfeito, os longos dedos magros no longos cabelo seboso, enquanto

aspirava o bigode franjado de espuma.

Loiseau, sob pretexto de esticar as pernas, foi vender vinho aos varejistas da região.

O conde e o industrial se puseram a conversar sobre política. Previam o futuro da

França. Um acreditava nos Orleãs, o outro num salvador desconhecido, um herói que se

revelaria quando tudo estivesse perdido. Quem-sabe se um du guesclin, uma joana

Darco? Ou outro Napoleão I? Á! Se o príncipe imperial não fosse tão jovem! Cornudet,

os ouvindo, sorria como um homem que sabe o que acontecerá. Seu cachimbo

perfumava a cozinha.

Batiam 10h quando senhor Follenvie apareceu. O interrogaram imediatamente mas

só pôde repetir duas ou três vezes, sem variante:

— O oficial me disse: Senhor Follenvie, proibirá que atrelem amanhã o carro dos viajantes. Não quero que eles partam sem minha ordem. Estás ouvindo? É o bastante.

Então quiseram ver o oficial. O conde lhe mandou seu cartão de visita, ao qual

senhor Carré-Lamadon acrescentou seu nome e todos seus títulos. O prussiano mandou

responder que receberia os dois homens pra lhe falarem depois que almoçasse, isso é,

cerca de 1h.

As senhoras reapareceram e se comeu um pouco, apesar da inquietação. Bola-de-

Sebo parecia enferma e imensamente perturbada.

Acabavam de tomar café quando o ordenança chegou pra buscar es cavalheiros.

Loiseau se juntou aos dois primeiros mas, como se tentasse levar Cornudet, pra

tornar o pedido mais solene, ele declarou, altivamente, que fazia questão de jamais

entrar em relação com os alemães, e retornou à lareira, pedindo outra caneca de cerveja.

Os três homens subiram e foram introduzidos no mais belo quarto da hospedaria,

onde o oficial os recebeu, estirado numa poltrona, com os pés sobre a lareira, fumando

um comprido cachimbo de porcelana e metido num roupão fulgurante, sem dúvida

furtado da residência abandonada dalgum burguês de mau-gosto. Não se levantou, não

os cumprimentou, não os fitou. Era uma magnífica amostra da insolência própria do

militar vitorioso.

Ao cabo dalguns instantes finalmente disse:

— O que desejam?

O conde tomou a palavra:

— Desejamos partir, senhor.

— Não.

— Qual a causa de semelhante recusa?

— Porque não quero.

— Observarei, respeitosamente, senhor, que teu general-comandante nos concedeu

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licença pra partirmos e alcançar Dieppe. Creio não termos feito algo pra merecer teu

rigor.

— Não quero. Eis tudo. Podeis descer.

Tendo-se inclinado, todos os três se retiraram.

A tarde foi lamentável. Não conseguiam compreender aquele capricho do alemão e

as idéias mais singulares perturbavam as cabeças. Todos se conservavam na cozinha,

discutindo interminavelmente, imaginando coisas absurdas. Talvez quisessem os

guardar como refém. Mas com que fim? Pra os levar prisioneiros ou exigir um vultoso

resgate? A esse pensamento os dominou o pânico. Os mais ricos eram os mais

apavorados, se vendo já obrigados, pra comprar sua vida, a esvaziar sacos cheios de

ouro nas mãos daquele soldado insolente. Davam tratos à bola pra descobrir mentiras

aceitáveis, esconder suas riquezas, se fazerem passar por pobres, muito pobres. Loiseau

tirou a corrente do relógio e o guardou no bolso. A noite que descia aumentou as

apreensões. Se acendeu o lampião e, como ainda faltassem duas horas pro jantar,

senhora Loiseau propôs uma partida de 31. Seria uma distração. Aceitaram. O próprio

Cornudet, depois de apagar o cachimbo, por delicadeza, entrou no jogo.

O conde embaralhou as cartas e serviu. Bola-de-Sebo tinha 31 de saída. Depressa o

interesse na partida apaziguou o temor que obcecava os espíritos. Mas Cornudet notou

que o casal Loiseau estava de combinação pra trapacear.

Quando se poriam à mesa, senhor Follenvie reapareceu. Disse com voz roufenha:

— O oficial prussiano mandou perguntar, a senhorita Elisabete Rousset, se já mudou

de opinião.

Bola-de-Sebo permaneceu de pé, muito pálida. Depois, corando subitamente, teve tal

sufoco de cólera, que não podia falar. Enfim explodiu:

— Dirás a esse crápula, a esse obsceno, a esse esqueleto de prussiano, que jamais

quererei. Estás ouvindo bem? Jamais, jamais, jamais!

O gordo hospedeiro saiu. Então Bola-de-Sebo foi rodeada, interrogada, solicitada por

todos a desvendar o mistério de sua visita. A princípio resistiu mas o exaspero logo a

dominou:

— O que quer? O que ele quer? Quer se deitar comigo!

Ninguém se chocou com a expressão, tamanha foi a indignação. Cornudet quebrou a

caneca de cerveja ao a depor violentamente na mesa. Foi um clamor de condenação

contra aquele militar ignóbil, um sopro de cólera, uma união de todos à resistência,

como se fora pedida a cada um parte do sacrifício que exigiam dela. O conde declarou,

repugnado, que aqueles homens estavam procedendo como os antigos bárbaros. As

mulheres, principalmente, demonstraram a Bola-de-Sebo uma comiseração enérgica e

carinhosa. As boas irmãs, que só apareciam às refeições, baixaram a cabeça e nada

diziam.

Jantara, entretanto, quando passou o primeiro furor. Mas se falou pouco, se refletia.

As senhoras se retiraram cedo. Os homens, enquanto fumavam, organizaram um

écarté37

ao qual convidaram senhor Follenvie, a quem tencionavam interrogar

habilmente sobre os meios a empregar pra vencer a resistência do oficial. Mas ele só

pensava em suas cartas e não ouvia nem respondia. Repetia, sem cessar: Ao jogo, senhores, ao jogo. Tão grande era sua atenção, que esquecia de escarrar, o que às

vezes lhe punha no peito notas de órgão. Seus pulmões sibilantes proporcionavam toda

a escala da asma, desde as notas graves e profundas até a rouquidão aguda dos jovens

galos que procuram cantar.

37 Écarté é jogado com baralho de 32 cartas, se excluindo do baralho comum as cartas do 2 ao 6. A carta mais alta é o ás, se

seguindo rei, dama, valete, 10, 9, 8 e 7. É jogado em duplas. O objetivo do jogo é fazer vaza e a partida vai até cinco pontos. Os

jogadores marcam um ponto por três ou quatro vazas feitas e 2 pontos por cinco vazas (capote). Nota do digitalizador.

http://www.reocities.com/

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Se recusou a subir, quando sua mulher, que caía de sono, chegou o procurando.

Então ela partiu sozinha, porque era da alvorada, sempre se levantando com o sol,

enquanto seu homem era do serão sempre pronto a passar a noite com os amigos. Ele

gritou: Ponhas meu caldo de galinha perto do fogo! e voltou à partida. Quando os outros viram que não podiam tirar algo dele, declararam que era tempo de se recolherem

e cada um foi a sua cama.

No dia seguinte se levantaram ainda bastante cedo, com uma esperança imprecisa,

um desejo maior de partir, um terror do dia a passar naquela horrorosa estalagem.

Infelizmente os cavalos continuavam na estrebaria, o cocheiro sempre invisível. Sem

ter o que fazer, foram andar em torno do carro.

O almoço foi muito triste. Se produzira como uma frieza em relação a Bola-de-Sebo,

porque a noite, que é boa conselheira, modificara um pouco as opiniões. Agora

censuravam a rapariga por não ter ido procurar secretamente o prussiano, a fim de

preparar, quando acordassem, uma boa surpresa aos companheiros. O que havia de mais

simples? Quem o saberia?, aliás. Poderia salvar a aparência mandando dizer ao oficial

que se compadecia de sua situação. Pra ela isso tinha tão pouca importância!

Mas ninguém ainda confessara tal pensamento.

Na tarde, como estivessem mortalmente enfadados, o conde propôs um passeio no

arredor da aldeia. Cada um se agasalhou cuidadosamente e o pequeno grupo partiu, com

exceção de Cornudet, que preferia ficar ao pé do fogo, e das boas irmãs que passavam o

dia na igreja ou na casa do pároco.

O frio, que cada dia aumentava mais, castigava cruelmente o nariz e as orelhas. Os

pés ficavam tão doloridos que cada passo era um sofrimento. Quando depararam o

campo, ele lhes surgiu tão medonhamente lúgubre naquela alvura ilimitada, que todos

imediatamente regressaram, com a alma gelada e o coração apertado.

As quatro mulheres caminhavam na frente, os três homens as seguiam um pouco

atrás.

Loiseau, que compreendia a situação, de repente perguntou se aquela rameira os

faria ficar ainda muito tempo em semelhante lugar. O conde, sempre cortês, disse que

não se podia exigir duma mulher um sacrifício tão penoso, que devia ser de sua própria

iniciativa. Senhor Carré-Lamadon fez observar que se os franceses desfechassem, como

se estava falando, uma contra-ofensiva em Dieppe, o encontro só se poderia verificar

em Tôtes. Essa reflexão tornou os dois outros preocupados. disse Loiseau:

— E se fugíssemos a pé?

O conde levantou os ombros:

— Como pensar nisso com esta neve? Com nossas mulheres? E depois seríamos logo

perseguidos, alcançados em 10min e trazidos prisioneiros à mercê dos soldados.

Era verdade. Se calaram.

As senhoras falavam sobre moda mas certo constrangimento parecia as separar.

De repente, na extremidade da rua, surgiu o oficial. Seu vulto alto de vespa

uniformizada se desenhava contra a neve, que fechava o horizonte. Caminhava de

joelhos afastados, com o movimento próprio dos militares que procuram não sujar as

botas cuidadosamente engraxadas.

Se inclinou ao passar junto das senhoras e olhou desdenhosamente aos homens, que

tiveram, aliás, a dignidade de não se descobrir, embora Loiseau esboçasse um gesto pra

tirar o chapéu.

Bola-de-Sebo ficara vermelha até a raiz do cabelo e as três mulheres casadas se

sentiam muito humilhadas pelo fato daquele militar as ter encontrado em companhia

daquela rapariga que ele tratara tão grosseiramente.

Então falaram a seu respeito, de seu aspecto, de sua fisionomia. Senhora Carré-

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Lamadon, que conhecera muitos oficiais e que os julgava como entendidos, não achava

mau aquele. Lamentava que não fosse francês, porque daria um hússaro muito bonito,

por quem todas as mulheres certamente se apaixonariam.

Depois de voltarem à hospedaria não sabiam mais o que fazer. Palavras ásperas

foram trocadas a propósito de coisas insignificantes. O jantar foi silencioso e rápido e

todos subiram pra se recolher, esperando dormir pra matar o tempo.

No dia seguinte desceram com fisionomia fatigada e coração enraivecido. As

mulheres mal dirigiam a palavra a Bola-de-Sebo.

Um sino tocou. Era prum batismo. A gorda rapariga tinha um filho que era criado por

uns camponeses de Yvetot. Não o via, nem uma vez por ano, e nunca pensava nele, mas

o pensamento daquele que seria batizado despertou no coração uma ternura súbita e

violenta pelo seu e ela fez questão de assistir a cerimônia.

Assim que partiu, todos se entreolharam, depois aproximaram as cadeiras, porque

sentiam, perfeitamente, que no fim seria preciso resolver algo. Loiseau teve uma

inspiração: Achava que se devia propor, ao oficial, pra ficar com Bola-de-Sebo apenas,

e deixar os outros partirem.

Senhor Follenvie tomou novamente a incumbência mas desceu quase imediatamente.

O alemão, que conhecia a natureza humana, o expulsara. Tencionava deter todos

enquanto seu desejo não fosse satisfeito.

Então o temperamento plebeu de senhora Loiseau explodiu:

— Mas não morreremos de velhice aqui. Uma vez que a profissão dessa vagabunda é

fazer isso com todos os homens, acho que não tem o direito de se negar a um e depois

se entregar a outro. Digo que esteve com tudo o que encontrou em Ruão, até com os

cocheiros! Sim, senhora, o cocheiro da prefeitura! Bem sei. Compra vinho em nosso

estabelecimento. E hoje que se trata de nos tirar duma dificuldade, essa porca se faz de

rogada! Pois eu acho que esse rapaz está procedendo muito bem. Talvez há muito tempo

esteja abstinente. E aqui estamos nós três, que, sem dúvida, ele preferiria. Mas não! Se

contenta com aquela que pertence a todos. Respeita as mulheres casadas. Pensai bem,

ele é o senhor. Bastaria dizer Quero e podia nos violentar com seus soldados. As duas mulheres sentiram um pequeno arrepio. Os olhos da linda senhora Carré-

Lamadon cintilavam, e estava um pouco pálida, como se já se sentisse violentada pelo

oficial.

Os homens, que discutiam à porta, se aproximaram. Loiseau, furibundo, queria

entregar aquela miserável, de pés e punhos amarrados, ao inimigo. Mas o conde,

descendente de três gerações de embaixador, e dotado dum físico de diplomata, era

partidário da habilidade. Disse que convinha a convencer.

Então conspiraram.

As mulheres se aproximaram, o tom de voz baixou e a discussão se generalizou, cada

um emitindo opinião. Aliás tudo era muito decente. As mulheres, principalmente,

encontravam insinuações delicadas, sutilezas de expressão encantadoras, pra dizer as

coisas mais escabrosas. Um estranho nada compreenderia, tão cautelosa era a

linguagem. Mas, uma vez que a leve camada de pudor que recobre toda mulher de

sociedade não passa da superfície, se expandiam com aquela aventura libertina, se

divertiam loucamente no íntimo, se sentindo em seu elemento, manejando o amor com a

sensualidade dum cozinheiro requintado preparando a ceia doutro.

A alegria voltava espontaneamente, tão engraçada a história parecia, afinal. O conde

se saiu com gracejos um pouco ousados, mas ditos tão bem que faziam sorrir. Loiseau

disse alguns mais pesados que a ninguém chocaram. E o pensamento brutalmente

expresso por sua mulher dominava todos os espíritos: Uma vez que é a profissão dessa rapariga, por que se negaria àquele mais que a outro? A mimosa senhora

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Carré-Lamadon parecia pensar que em seu lugar recusaria aquele menos que qualquer

outro.

O assédio foi longamente preparado, como se tratando duma fortaleza a atacar. Cada

um combinou o papel que representaria, os argumentos que utilizaria, as manobras a

executar. Acertaram os planos dos ataques, as manhas a empregar e as surpresas do

assalto, pra forçar aquela cidadela viva a receber o inimigo na praça.

Cornudet, entretanto, permanecia afastado, alienado do caso.

Uma atenção tão profunda absorvia os espíritos que Bola-de-Sebo entrou

despercebida. Mas o conde sussurrou um leve psiu!, que fez todos os olhos se erguerem.

Ali estava ela. Subitamente se calaram. Um embaraço impediu, a princípio, que lhe

falassem. A condessa, mais habituada que as outras às duplicidades dos salões, a

interrogou: Foi divertido o batismo? A gorda rapariga, ainda emocionada, descreveu tudo, as pessoas, as atitudes, o

próprio aspecto da igreja. Acrescentou:

— Às vezes é bom rezar.

Até o almoço, entretanto, as senhoras se contentaram em ser amáveis com ela, pra

aumentar a confiança e a docilidade aos conselhos.

Mal se sentaram à mesa começaram as insinuações. A princípio foi uma conversação

vaga sobre a dedicação. Exemplos antigos foram citados: Judite e Holofernes, depois,

sem razão, Lucrécia e Sextus, Cleópatra fazendo passar em seu leito todos os generais

inimigos e os reduzindo ao servilismo de escravo. Então relataram uma história

fantástica, surgida na imaginação daqueles milionários ignorantes, na qual as cidadãs de

Roma iam adormecer em Cápua tendo Aníbal entre seus braços, e, com ele, seus oficiais

e as falanges de mercenário. Se citaram todas as mulheres que detiveram os

conquistadores, fizeram de seu corpo um campo de batalha, um meio de dominar, uma

arma, que venceram, com as carícias, heróicas criaturas medonhas ou odiadas, e

sacrificaram sua castidade à vingança e à dedicação.

Se falou, em termos velados, daquela inglesa de ilustre família, que se deixara

inocular uma horrível e contagiosa moléstia pra transmitir a Bonaparte, a quem uma

súbita debilidade salvara miraculosamente, na hora do encontro fatal.

E tudo isso era contado de maneira correta e moderada, na qual às vezes explodia um

entusiasmo intencional, próprio pra provocar a emulação.

No fim se poderia acreditar que o único papel da mulher sobre a Terra era um

perpétuo auto-sacrifício, um abandono contínuo aos caprichos da soldadesca.

As duas boas irmãs não pareciam ouvir, imersas em pensamentos profundos. Bola-

de-Sebo nada dizia.

Durante toda a tarde a deixaram refletir. Mas em vez de a chamarem senhora, como

até então fizeram, chamavam simplesmente senhorita, sem que alguém soubesse bem o

motivo, como se quisessem a fazer descer um degrau na consideração que alcançou, a

fazer sentir sua vergonhosa situação.

No instante em que a sopa era servida senhor Follenvie apareceu, repetindo sua frase

da véspera:

— O oficial prussiano mandou perguntar, a senhorita Elisabete Rousset, se já mudou

de opinião.

Bola-de-Sebo respondeu secamente:

— Não, senhor.

Mas no jantar a coalizão fraquejou. Loiseau teve três frases infelizes. Cada uma dava

tratos à bola pra descobrir novos exemplos e nada encontrava, quando a condessa,

talvez sem premeditação, sentindo uma vaga necessidade de render homenagem à

religião, interrogou a mais idosa das boas irmãs sobre as grandes ações da vida dos

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santos. Ora, muitos cometeram atos que seriam crimes a nossos olhos mas a igreja

absolve facilmente esses delitos quando são praticados prà glória de Deus ou pro bem

do próximo. Era um argumento poderoso. A condessa o utilizou. Então, fosse por uma

dessas combinações tácitas, uma dessas condescendências veladas, na qual prima quem

quer que vista um hábito eclesiástico, fosse apenas em conseqüência duma feliz

incompreensão, duma asneira benfazeja, a velha religiosa trouxe à conspiração um

auxílio formidável. A julgavam tímida e se revelou impetuosa, verbosa, violenta. A ela

as indecisões da casuística não perturbavam. Sua doutrina parecia uma barra de ferro.

Sua fé nunca hesitava. Sua consciência não tinha escrúpulo. Achava muito simples o

sacrifício de Abraão, porque mataria imediatamente pai e mãe a uma ordem vinda do

alto.38

E entendia que nada podia desagradar ao senhor quando a intenção era louvável.

A condessa, se servindo da autoridade venerável de sua cúmplice inesperada, a fez fazer

uma espécie de paráfrase edificante do axioma moral O fim justifica os meios. A interrogava.

— Então, minha irmã: Achas que Deus aceita todos os meios e perdoa o fato quando

o motivo é puro?

— Quem pode duvidar?, senhora. Uma ação censurável em si se torna, muitas vezes,

meritória pelo pensamento que a inspira.

E assim prosseguiam, desvendando os desígnios divinos, prevendo suas decisões, o

fazendo se interessar por coisas que na realidade não lhe diziam respeito.

Tudo isso era velado, hábil, discreto. Mas cada uma das palavras da santa irmã de

tricórnio39

fazia uma brecha na indignada resistência da cortesã. Depois, se desviando

um pouco a conversação, a mulher dos rosários pendentes falou das casas de sua ordem,

de sua superiora, de si, de sua pequena vizinha, a querida irmã São Nicéforo. As

chamaram, ao Havre, pra cuidar, nos hospitais, de centenas de soldados atacados por

bexiga. Descreveu aqueles miseráveis, pormenorizou a moléstia. E enquanto

permaneciam detidas no caminho pelos caprichos daqueles prussianos, morria grande

número de franceses que elas poderiam salvar! Cuidar de militares era sua

especialidade. Estivera na Criméia, Itália, Áustria e, narrando suas campanhas,

subitamente se revelou uma dessas religiosas de tambor e clarim que parecem feitas pra

acompanhar os acampamentos, recolher ferido no torvelinho das batalhas e, melhor que

um chefe, dominar cuma palavra os veteranos indisciplinados. Uma verdadeira boa irmã

rataplã,40

cujo rosto devastado, esburacado, parecia uma imagem dos estragos da guerra.

Ninguém disse algo após ela, tão excelente parecia a impressão causada

Mal terminou a refeição, todos subiram depressa aos quartos, pra só descerem no dia

seguinte, com a manhã adiantada.

O almoço foi tranqüilo. Davam, à semente plantada na véspera, tempo pra germinar e

frutificar.

A condessa propôs um passeio na tarde. Então o conde, como combinado, deu o

braço a Bola-de-Sebo e ficou atrás dos outros, com ela.

Falou em tom familiar, paternal, um pouco desdenhoso, que os homens empertigados

empregam com as perdidas, a chamando minha querida filha, a tratando do alto de sua

posição social, de sua honorabilidade indiscutível. Penetrou logo no cerne da questão:

— Então preferes nos deixar aqui, expostos como ti a todas as violências que

decorreriam duma derrota das tropas prussianas, em vez de admitir uma dessas

condescendências tão freqüentes em tua vida?

Bola-de-Sebo nada respondeu.

38 Segundo o texto bíblico Abraão se dispôs a sacrificar o filho, não os pais. Nota do digitalizador 39 Tricórnio: Chapéu de três pontas. Nota do digitalizador 40 Rataplã: sm Onomatopéia do rufar do tambor. Nota do digitalizador

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A persuadiu pela doçura, raciocínio, sentimento. Soube permanecer o senhor conde,

embora se mostrando cortês quando era preciso, galanteador, amável enfim. Exaltou o

serviço que lhes prestaria, falou da gratidão de todos. Depois, subitamente, a tratando

jovialmente por tu:

— E sabes, minha querida, poderá se gabar de ter saboreado uma linda rapariga,

como não encontrará muitas em seu país.

Bola-de-Sebo nada respondeu e se reuniu aos outros.

Logo que entraram, subiu a seu aposento e não tornou mais a aparecer. A inquietação

era extrema. O que faria? Se resistisse, que perplexidade!

Soou a hora do jantar. Inutilmente a esperaram. Senhor Follenvie, entrando então,

comunicou que senhorita Rousset se sentia indisposta e que podiam se pôr à mesa.

Todos aguçaram o ouvido. O conde se aproximou do hospedeiro e, baixinho:

— E então?

— Sim.

Por decoro, nada disse aos companheiros e se limitou a acenar levemente, com a

cabeça. De todos os peitos logo se exalou um grande suspiro de alívio e em todas as

fisionomias se estampou a alegria. Loiseau bradou.

— Ora, graças! Pago o champanha, se houver na casa.

E senhora Loiseau se sentiu agoniada quando o hospedeiro voltou com quatro

garrafas nas mãos. Subitamente todos se tornaram comunicativos e barulhentos. Uma

alegria irrequieta enchia o coração. O conde pareceu notar que senhora Carré-Lamadon

era encantadora, o industrial dirigiu cumprimento à condessa. A conversação foi viva,

jovial, cheia de graça.

De repente, Loiseau, com a fisionomia ansiosa e erguendo os braços, berrou:

— Silêncio!

Todos se calaram, surpresos, já quase assustados. Então ele aguçou o ouvido

acenando psiu! com ambas as mãos, ergueu os olhos ao teto, tornou a prestar atenção e

continuou, com sua voz natural:

— Vos tranqüilizai. Tudo vai bem.

Hesitavam em compreender, mas depressa sorriram.

Dali a um quarto de hora recomeçou a mesma farsa. A repetiu várias vezes durante o

serão. fingia interpelar alguém no andar de cima, dando conselho com duplo sentido,

extraídos de seu espírito de caixeiro-viajante. Às vezes revestia um ar triste pra suspirar:

Pobre rapariga! ou murmurava, entredentes, com ar enraivecido: Vagabundo prussiano, passes! Ou então, quando ninguém pensava mais nisso, soltava, com voz

vibrante, muitos: Basta! Basta! E acrescentava, como se pensando: — Contanto que a tornemos a ver. Que o miserável não a mate!

Embora esses gracejos fossem de gosto lamentável, divertiam e não chocavam,

porque a indignação depende do meio, como tudo o mais, e a atmosfera que se criara,

aos poucos, em volta, estava carregada de pensamento libertino.

À sobremesa as próprias senhoras fizeram alusões espirituosas e discretas. Os olhares

brilhavam. Se bebera muito. O conde, que até em suas liberdades conservava uma

grande aparência de circunspeção, achou uma comparação muito apressada entre o fim

das invernadas no pólo e a alegria dos náufragos que vêem se abrir um caminho ao sul.

Loiseau, excitado, se ergueu, de taça de champanha em punho:

— Bebo a nossa libertação!

Todos se levantaram, o acalmavam. As duas boas irmãs, solicitadas pelas senhoras,

consentiram em molhar os lábios no vinho espumante que nunca provaram. Declararam

que parecia limonada gasosa mas que, no entanto, era de melhor qualidade.

Loiseau resumiu a situação:

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— É uma infelicidade não termos piano. Poderíamos dançar uma quadrilha.

Cornudet nada dissera, não gesticulara. Parecia imerso em pensamentos muito graves

e, às vezes, puxava, com gesto furioso, a grande barba que parecia querer aumentar

ainda mais. Enfim, cerca de meia-noite, quando se separariam, Loiseau, que

cambaleava, lhe bateu de repente na barriga e disse, gaguejando:

— Não estás te divertindo nesta noite? Nada dizes, cidadão.

Mas subitamente Cornudet levantou a cabeça e, percorrendo o grupo com olhar

coruscante e terrível:

— Digo, a todos, que acabastes de cometer uma infâmia!

Se levantou, alcançou a porta, repetiu mais uma vez:

— Uma infâmia!

E desapareceu.

No princípio isso causou frieza. Loiseau, atônito, não sabia o que fazer mas

readquiriu o sangue frio e então, subitamente, se torceu repetindo:

— Estão muito verdes, meu velho. Estão muito verdes.

Como não compreendessem, notou os mistérios do corredor. Então houve um novo

acesso de formidável alegria. As senhoras se divertiam como loucas. O conde e senhor

Carré-Lamadon choravam de tanto rir. Não podiam acreditar.

— Como? Tens certeza? Ele queria...

— Estou dizendo que vi.

— E ela recusou...

— Porque o prussiano estava no quarto ao lado.

— Não é possível!

— Juro.

O conde sufocava. O industrial comprimia a barriga com ambas as mãos. Loiseau

continuava:

— E, compreendeis: Nesta noite não acha a situação engraçada, nada engraçada.

E todos os três redobravam de gargalhada, doentes, esbaforidos, tossindo.

Com isso se separaram. Mas senhora Loiseau, que era da natureza das urtigas,

chamou a atenção do marido, no momento em que se deitavam, ao fato de aquela

enjoada, a pequena Carré-Lamadon, ter rido amarelo na noite toda:

— Sabes que as mulheres, quando se embeiçam por uniforme, tanto lhes faz que seja

francês ou prussiano. Que miséria!, senhor Deus.

A noite toda perpassaram na escuridão do corredor como estremecimentos, leves

rumores apenas audíveis, que pareciam suspiros, roçar de pés nus, estalidos

imperceptíveis. E certamente só se dormiu alta noite, porque durante muito tempo

passaram réstias de luz sob as portas. O champanha tem desses efeitos. Dizem que

perturba o sono.

No dia seguinte um claro sol invernal fazia a neve resplandecer. A diligência,

finalmente atrelada, aguardava diante da porta, enquanto um exército de pombos

brancos, empertigados em suas penas espessas, com olhos cor-de-rosa, manchados, no

meio dum ponto preto, passeavam, gravemente, entre as pernas dos seis cavalos e

defendiam a vida no estrume fumegante que iam espalhando.

O cocheiro, envolto em pele de carneiro, queimava um cachimbo, na boléia, e todos

os viajantes, muito satisfeitos, mandavam preparar rapidamente provisão pro resto da

viagem.

Faltava apenas Bola-de-Sebo. Ela apareceu.

Parecia um pouco perturbada, envergonhada, e se adiantou, timidamente, aos

companheiros que, todos, num movimento único, se afastaram como se não a vissem. O

conde deu, com dignidade, o braço à mulher e se desviou daquele contacto impuro.

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A gorda rapariga se deteve, estupefata. Então, reunindo toda a coragem, se

aproximou da mulher do industrial com um bom-dia, senhora, humildemente

murmurado. A outra fez apenas, com a cabeça, um pequeno cumprimento impertinente,

com olhar de virtude ultrajada. Todos pareciam ocupados e se conservavam longe dela,

como se Bola-de-Sebo carregasse uma infecção na saia. Depois se precipitaram ao carro

onde foi a última a chegar, sozinha, ocupando, em silêncio, o lugar que fora seu durante

a primeira parte do trajeto.

Fingiam não a ver, não a conhecer mas senhora Loiseau, a olhando de longe, com

indignação, disse, à meia-voz, ao marido:

— Felizmente não estou a seu lado.

A pesada carruagem se pôs em movimento e a viagem recomeçou.

No princípio ninguém falou. Bola-de-Sebo não ousava erguer os olhos. Se sentia

simultaneamente indignada contra todos os companheiros e humilhada por ter cedido,

manchada pelos beijos daquele prussiano entre os braços do qual a lançaram

hipocritamente.

Mas a condessa, se voltando a senhora Carré-Lamadon, logo rompeu o desagradável

silêncio.

— Conheces senhora d'Étrelles. Não?

— Sim. É uma de minhas amigas.

— Que mulher encantadora!

— Sedutora! Uma verdadeira natureza de escol. Muito instruída, aliás. E artista até a

ponta dos dedos. Canta maravilhosamente e desenha com perfeição.

O industrial conversava com o conde. No meio do estrépito das vidraças se ouvia, às

vezes, uma palavra: Cupão, vencimento, prêmios de seguro, a prazo. Loiseau, que surrupiara o velho baralho da hospedaria, ensebado por cinco anos de

contato com as mesas mal limpas, começou uma partida de bésigue41

com a mulher. As

boas irmãs apanharam, no cinto, o comprido rosário pendente, fizeram juntas o sinal da

cruz e de repente seus lábios começaram a se mover vivamente, cada vez mais depressa,

acelerando o murmúrio indistinto como numa corrida de oremus.42

De vez em quando

beijavam uma medalha, se persignavam de novo e recomeçavam o murmúrio rápido e

contínuo.

Cornudet meditava, imóvel.

Ao cabo de três horas de caminhada Loiseau reuniu as cartas e disse:

— Estou com fome.

Então sua mulher apanhou um embrulho amarrado, donde tirou um pedaço de vitela

fria. A cortou corretamente em fatias finas e firmes e ambos começaram a comer.

— E se fizéssemos o mesmo? — Disse a condessa. Os outros concordaram e ela

desembrulhou a provisão preparada pros dois casais. Havia, num desses vasos

alongados, cuja tampa exibe uma lebre em faiança, pra indicar que recobre um patê de

lebre, uns frios saborosos, nos quais alvos filetes de toucinho atravessavam a carne

morena da caça, mesclados a outras viandas cortadas em fatias finas. Um belo quadrado

de gruier,43

embrulhado num jornal, conservava impresso Noticiário na massa

gordurosa.

As duas boas irmãs abriram uma rodela de salsichão, que cheirava a alho, e

41 Bézique ou bézique é um antigo jogo de carta que se alega ser originário do Limusã, França. Ainda popular no Haiti, onde,

invariavelmente, se joga com quatro jogos de 32 cartas, que são adicionados quatro cartas selvagens e um marcador de ponto de

marca conhecida no Haiti. Não está provado, como se diz no Haiti, que foi inventado por Charles Bézique. Podem jogar duas, três

ou quatro pessoas. Os jogadores podem se agrupar em dupla ou sozinho. Nota do digitalizador. http://fr.wikipedia.org/wiki/B%C3%A9sigue 42 Oremus: Convite para orar, feito antes da coleta e outras orações curtas, constante no rito romano. Nota do digitalizador.

http://www.newadvent.org/cathen/11295a.htm 43 Gruier (gruyère) é um duro queijo suíço, originário da cidade de Gruyères e produzido nos cantões de Friburgo, Vaud, Neuchâtel

Jura e Berna. Nota do digitalizador. http://pt.wikipedia.org/wiki/Gruy%C3%A8re

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Cornudet, mergulhando ambas as mãos, ao mesmo tempo, nos imensos bolsos de seu

paletó-casaco, dum puxou quatro ovos cozidos e doutro uma côdea de pão. Quebrou a

casca, a jogou na palha sob seus pés e começou a trincar os ovos, fazendo cair na vasta

barba migalhas dum amarelo-claro que na barba pareciam estrelas.

Bola-de-Sebo, na pressa e no sobressalto do despertar, não pudera cuidar dalguma

coisa e olhava, exasperada, sufocando de raiva, aquelas pessoas que comiam

placidamente. Primeiro a dominou uma cólera tumultuosa e abriu a boca pra gritar a

verdade cuma onda de injúria que lhe subia aos lábios. Mas não podia falar, a tal ponto

o exaspero a sufocava.

Ninguém a olhava, nem se lembrava de si. Se sentia afogada no desprezo daqueles

patifes honestos que primeiro a sacrificaram, depois repeliram, como coisa inasseada e

inútil. Então se lembrou de seu grande cabaz inteiramente cheio de boas coisas que eles

gulosamente devoraram, de seus dois frangos brilhantes de gordura, de seus patês, de

suas pêras, de suas quatro garrafas de bordô. E como sua fúria cedesse de repente, como

uma corda estendida demais, que se parte, se sentiu preste a chorar. Fez esforço terrível,

se inteiriçou, engoliu o soluço como as crianças, mas o pranto subia, brilhava na borda

das pálpebras, e depressa duas grandes lágrimas se destacando dos olhos, rolaram

lentamente nas faces. Outras se seguiram mais rápidas, fluindo como as gotas dágua se

filtrando duma rocha e caindo com regularidade na curva saliente de seu busto.

Permanecia inteiriçada, de olhar fixo, com a face rígida e pálida, esperando que não a

vissem.

Mas a condessa notou e preveniu o marido cum sinal. Ele levantou os ombros como

se dissesse:

— O que queres? A culpa não é minha.

Senhora Loiseau teve um riso silencioso de triunfo e murmurou:

— Está chorando sua vergonha.

As duas boas irmãs voltaram a rezar após enrolarem, num papel, o resto do salsichão.

Então Cornudet, que digeria os ovos, estendeu as longas pernas sobre o banco

fronteiro, se estirou a trás, cruzou os braços, sorriu como um homem que acaba de se

lembrar duma boa piada e começou a assobiar a marselhesa.44

Todas as fisionomias se anuviaram. O canto popular, certamente, não agradava a

seus vizinhos. Ficaram nervosos, irritados, e pareciam preste a uivar como cão ouvindo

um realejo. Ele notou e não parou mais. Às vezes cantarolava mesmo a letra:

Sagrado amor à pátria conduzas e sustentes nossos braços vingadores Liberdade, querida liberdade Combatas com teus defensores!

Se caminhava mais depressa porque a neve estava mais dura. E até Dieppe, durante

as longas horas insípidas da viagem, através das sacudidelas do trajeto, na noite que

descia, depois na obscuridade profunda do carro, ele continuou, com obstinação feroz,

seu assobio vingador e monótono, obrigando os espíritos cansados e exasperados a

acompanhar o canto do princípio ao fim, a recordar cada palavra, que aplicavam a cada

compasso.

E Bola-de-Sebo continuava chorando. Às vezes um soluço incontido passava, entre

dois versos, no meio da treva.

44 A marselhesa (La marseillaise) é o hino nacional francês. Foi composto pelo oficial Claude Joseph Rouget de Lisle, em 1792, da

divisão de Estrasburgo, como canção revolucionária. A canção adquiriu grande popularidade durante a revolução francesa,

especialmente entre as unidades do exército de Marselha, ficando conhecida como A marselhesa. Nota do digitalizador.

http://pt.wikipedia.org/wiki/La_Marseillaise

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A mancha de tinta Émile Bergerat

falecido presidente Mazèdes, de espiritual memória, era, por

excelência, um desses magistrados benévolos e evangélicos a quem se

costuma chamar um bom juiz.

Durante o longo decorrer de sua carreira judiciária se dedicara ao estudo social da

condição verdadeiramente deplorável dessas pobres mulheres que, no século passado,45

eram chamadas madalenetes,46

devido ao nome de sua padroeira cristã Madalena,

cortesã arrependida, no entanto, e padroeira da mais parisiense de nossas igrejas.

Os que leram, e ainda se lêem, as excelentes obras de presidente Mazèdes sobre as

tristes mulheres ditas de prazer, sabem a piedade singular que sua sorte, sem legislação,

inspirava ao velho jurista, que me disse:

Nem são julgadas. São presas aos magotes, como animal, sem serem ouvidas, e os cafres são menos rudes com as cativas que raptam do que nossos policiais com essas pobres filhas de Deus. Contudo há as honestas nesse rebanho de dor. Sim, muito honestas mesmo, senhor pessimista. Se eu contasse...

A mais desgraçada é, sem dúvida, a mulher fichada. Não ignora a que exigência da polícia ela tem de se submeter pra poder exercer o lúgubre ofício. É inscrita num registro secreto da delegacia de costume, e nunca mais, vejas bem, mesmo que se redima cem vezes graças a uma vida exemplar, é seu nome riscado do livro infamante. Eu, que estou falando, vi muitas se arrastarem aos pés do chefe dessa repartição, lhe exibir o filho, perdido pela tara materna, e irem embora, desnorteadas e se encostando às paredes, nada conseguindo. E vejas: Foi então que compreendi que não há mulher desonesta, e que Cristo tinha razão. É perfeitamente exato e científico em fisiologia, que o amor refaz uma virgindade. Quanto à maternidade, as reveste de santidade, nada mais nada menos. Mas vamos adiante.

O registro é secreto, como disse, e é esse o único gesto de piedade do regulamento. Em nenhum caso é facultado. Não aos tabeliães nem à polícia secreta. A ninguém. Só se faz exceção aos juízes da corte suprema, quando o requeiram expressamente, e por motivo imperioso. Ora, aconteceu há alguns anos que, vindo uma dessas causas a meu tribunal, tive de fazer uso de meu privilégio. Se tratava dum caso de assassínio, no qual estava implicada, e inexplicavelmente, uma rapariga de dezoito anos, que chamaremos, se me permites, Luísa. Toda a luz sobre o crime jazia sob esse quesito tenebroso: Luísa era ou não rapariga fichada, e por conseguinte inscrita no formidável registro? Dependia disso uma cabeça, e até duas, porque nesse tempo ainda as decepavam.

Luísa estava inscrita, fichada. Á! Não sabes como se resignavam a esse recurso, o último antes da

intoxicação por gás carbônico ou do mergulho nesse bom rio de esquecimento que corre em volta da catedral de Nossa Senhora! Uma família sem pão, diante

45 Émile Bergerat (29.04.1845, Paris - 13.10.1923, Neuilly-sur-Seine). Este conto, A mancha de tinta (La tache d'encre) foi extraído

do volume Contos de Calibã (Contes de Caliban), editado em 1909. O conto A mancha de tinta pode ter sido escrito no século 20

ou 19. Portanto século passado é o 18 ou 19. Provavelmente 18. Nota do digitalizador. 46 No original madelonnetes: A origem da capela penitencial de Bordéus está no convento de Madalena, fundado no século 15 e

entregue às religiosas de Maria Madalena (as madelonnetes). Nota do digitalizador. http://www.marianistas.org/

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da qual todo crédito se fecha, o desemprego do pai, o desespero da mãe cega a força de lágrima, um irmãozinho pálido de fome, de febre e de frio, a vergonha invencível, e tão característica, nos operários de Paris, de estenderem a mão à caridade pública e, sobretudo, à caridade pública e administrativa, e toda a tragédia, enfim, da miséria, da iníqua miséria! Há, num canto da casa, uma jovem criatura de Deus, inteligente, amorosa, dedicada. Se não é muito bonita tem admirável cabelo louro, e tudo, ó!, tudo!, menos os vender ao detestado tubarão que os cobiça. Então, enrolados no alto da cabeça, enfia neles um pente de dois vinténs, abraça a mamã e o mano, uma, duas, três vezes, e lá vai ela! É Luísa.

Não, não há mulher desonesta, reafirmou presidente Mazèdes. Observei:

— O que talvez haja são sociedades desonestas. Mas, a história de Luísa?

Pois bem. Eis! Um dia em que Têmis me concedera alguns lazeres, que eu empregava jogando migalhas de pão aos peixes do Marne, entrara, pra me refrescar, numa dessas tabernas com latada, que marginam o rio. São os oásis das caravanas fluviais, e a atuação domingueira das famílias de operário em folga. Além dos caramanchões de hera e de vinha brava, que fazem o papel de treliça47 das casas árabes, há nelas ginásios com trapézio e balanço, jogo de quilha e de boliche, todos os divertimentos do ar livre, enfim, ingênuos e caros a nossos pais, nos quais se resumem, à boa gente do povo, todos os prazeres do campo. Um banho no rio, uma travessia de barco até a ilha próxima e o prazer dum guisado de coelho completam, pra eles, o paraíso.

Eu triunfava, naquela manhã, cuma pesca miraculosa, e a idéia de lhe fazer honra ali mesmo, me levara àquele refúgio de marinheiros, ao qual me atraía ainda, confesso, a lembrança de certo vinhozinho do Anju, que eu bem conhecia.

— Eis. — Disse eu ao dono do oásis, lhe entregando meu cesto — Mandes fritar esta

pescada. Quanto ao resto, do melhor!

— Caramba!, senhor presidente. Chegas bem ou mal, conforme tua disposição do

momento. Temos hoje um casamento. Gente do subúrbio, todos alegres, e que já estão

fazendo um barulho dos diabos. De resto, os escutes. Não ficarás tranqüilo em teu

caramanchão.

— A noiva é bonita?

— Qual! Negócio de sentimentalismo. Tem um cabelo magnífico e está radiante de

felicidade. É tudo o que se pode dizer.

— E o marido?

— Um belo rapaz. É carroceiro. Laborioso, direito, franco, digno do pai, que era de

Alagara, como este teu criado. Me parece louco por sua lourinha. E é engraçado,

porque, enfim...

— Por que enfim, o quê?

— Nada. Isso é lá consigo. O rapaz sabe o que faz. Ela nada lhe escondeu, de resto. E

depois, sabes, meu presidente, entre essa gente do povo, é como no campo: Não se

exige a flor de laranjeira. A questão é chegarem a um acordo, e se casam por amor. Mas

olhes, lá vêm eles. São gentis. Hem?

47 No original moucharabieh. A treliça é um dispositivo de ventilação natural induzida, freqüentemente usada na

arquitetura tradicional dos países árabes. A redução da superfície produzida pela malha acelera a passagem do vento, que entra em

contato com superfícies molhadas, bacias ou pratos cheios dágua, que transmitem o frescor ao interior da casa. Nota do

digitalizador. http://fr.wikipedia.org/wiki/Moucharabieh

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Eram mais que gentis. Eram deliciosos de paixão e de alegria amorosa. Por um lindo gesto de inversão conjugal, era ele quem pendia o braço da esposa, e parecia se entregar a seu domínio. O pai e a mãe seguiam atrás. Ela segurando um rapazinho na mão, e os camaradas de oficina formavam o cortejo nupcial do jovem carroceiro. Quanto a ela, a reconhecera à primeira vista: Era Luísa, a rapariga fichada.

Podes calcular como me voltei rapidamente, pra lhe poupar o vexame que o encontro poderia lhe trazer. Eu era, talvez, a única pessoa no mundo a saber, mas enfim, sabia! Vira o registro! Interrogara a desgraçada em meu gabinete de juiz. Toda sua felicidade, sua vida, talvez, dependiam do conflito de nossos olhares entrecruzados. Não, decerto, que tivesse algo a temer de meus lábios selados mas sua própria emoção poderia a trair, justificar ao menos perguntas fatais, contra as quais não teria força pra se defender porque, naquele pobre corpo de mártir, manchado por toda a lama das sarjetas, a natureza, que não ficha as mulheres, depositara uma alma luminosa como o azul dos olhos e incapaz de mentira. Se dissera tudo ao futuro esposo antes do casamento, não dissera aquilo, visto que ele se casava com ela porque a filosofia amorosa do operário parisiense vai até o registro, mas pára ali, e que catástrofe se ele lhe perguntasse aquilo! Ela confessaria!

Só havia um partido a tomar, o mesmo que tomaríeis: Renunciar ao miraculoso peixe à escabeche e ao belo vinhozinho, e se eclipsar à francesa.48 É duro, às vezes, envergar a toga!

Três anos depois eu atravessava uma praça popular, onde brincava uma revoada de garoto, quando ante minha passagem uma operária, sentada num banco, se levantou, correu a pegar no filho, que brincava na areia, o levantou nos braços, mo apresentou e ordenou:

— Digas Obrigado!, senhor juiz. Á! Essas operarinhas de Paris! Me reconhecera, naquela vez, na taberna,

sob meu disfarce de pescador com vara. Não encubro que requisitei de novo, sob um pretexto qualquer, o registro

fatal, e derramei, como por acaso, o vidro de tinta sobre a página em que a jovem mãe era desonrada...

48

Qual é a origem da expressão saída à francesa? (Cristina Ferraz de Souza, Diadema, SP) Ninguém sabe. O certo é que não existe

melhor exemplo, pra ilustrar a velha rivalidade entre França e Inglaterra, que essa expressão, equivalente ao popular sair de fininho,

muito usada em festas e reuniões quando alguém se retira sem se despedir. Isso porque possui duas versões, uma em resposta à

outra. A mais conhecida, sair à francesa (take french leave, no original), foi criada pelos ingleses. A outra, sair à inglesa (filer à

l'anglaise), é exclusividade dos franceses. Com toda a incerteza que cerca sua origem, se acredita que ela nascera como uma gíria

militar, pra se referir a soldados que deixavam o posto sem avisar. É provável que fora dita em primeira vez durante a guerra dos

sete anos (1756-1763), quando as principais potências européias se enfrentaram, encabeçadas dum lado pela França e doutro pela

Inglaterra, afirmou o historiador e professor de francês Alexandre Roche, de Porto Alegre. Mas a rixa entre os dois países é tão

antiga que fica difícil saber qual das duas expressões surgiu primeiro, disse a tradutora e também professora de francês Rosa Freire

d'Aguiar, do Rio de Janeiro. Nota do digitalizador. http://super.abril.com.br/superarquivo/2002/conteudo_120629.shtml

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Tempo difícil Catillard

Primeiro ato Um grande quarto num grande hotel. A janela se abrindo sobre a indolente Mancha. 18h.

Claudina de Mouchoux, 25 anos, está preste a se vestir, sem precipitação. Seu marido, Luiz, na intimidade Lulu, 35 anos, entrou rapidamente, fechou a porta e caiu, abatido, numa poltrona.

LLulu — Ora essa! Perdi nossa última nota de 1000...

Claudina, calma. — O que desejas?, querido. Vamos embora, vamos passar o fim

das férias em casa de minha mãe ou da tua....

Lulu — Mas não podemos ir embora!

Claudina — Por quê?

Lulu — Porque estamos pendurados no hotel. Há seis semanas vivemos aqui, a 300

francos por dia. Faças a conta!

Claudina — Poderíamos explicar..

Lulu — Não! Não!... Um homem como eu.

Claudina — Sim. Evidentemente, é vexatório. E se partíssemos sem dizer?

Lulu — E a bagagem?

Claudina — Deixaríamos todas. Não tenho mais que roupa imprestável.

Lulu, refletindo. — Não! Não! Isso não é possível! Por quem nos tomariam?

Claudina — Num grande hotel como este já devem estar habituados. Compreendas!

Lulu.— Talvez pudéssemos empenhar teu colar.

Claudina — Estás doido! Não posso chegar à casa de mamãe ou da tua sem meu

colar. Seria lindo! E depois jamais o veria.

Lulu — Dês um golpe em tua mãe!

Claudina, rabugenta. — És extraordinário: Golpeies tua mãe! Como se não pudesses golpear a tua.

Lulu, — Então, minha cara, com o correr do tempo, nada mais a fazer: Usei e abusei.

Nos veria morrer de fome, pois dificilmente nos forneceria um pedaço de pão.

Claudina — Em todo caso, mamãe bem me disse, na última vez, que era a última.

Não é que não queira, porém não pode.

Lulu — Falam assim!

Claudina — Não, não e não! Jogas como um maluco e, quando perdes tudo, só tens

uma frase na boca: Ajeites tua mãe! Lulu — Jogo como um maluco! É um modo de falar. Perdeste ao menos tanto

quanto eu.

Claudina — Por tua culpa! Te vendo perder todo o tempo, pensei que ganharias.

Aliás, não é reprovando nossas falhas que poremos dinheiro no bolso. Ficarás aí,

achatado como uma bolacha.

Lulu, enérgico. — É preciso fazer algo!

Claudina — Mas o quê?

Lulu — Entretanto não podemos ficar aqui até outubro. Por preço nenhum!

Claudina — Tenho uma idéia... Me restam 20 luíses. Irei à casa de minha tia Irene,

em Vendome, e será o diabo se eu não conseguir arrancar a grande soma.

Lulu — O que farei enquanto isso?

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Claudina — Me esperarás aqui, guardando a bagagem. É negócio de oito dias.

Lulu — Me aborrecerei, querida, sem ti...

Claudina, sacudindo os ombros. — O que queres?

Segundo ato Uma propriedade, em Vendome. Claudina se prepara pra escrever ao marido

Meu bem-amado Lulu Tuas cartas me causam muita pena. Te enervas e compreendo isso, mas o

que fazer? A cada vez que abordo a questão monetária minha tia me responde: Pois sim, está combinado, quando partires! Entretanto deseja que venhas me buscar: Nada terás de mim enquanto meu sobrinho não vier passar alguns dias aqui. Entretanto não posso dizer que estás pendurado no hotel. É tão provinciana que nos daria nada. Paciência, esperes! Oito dias mais, oito dias menos, na situação em que estamos...

Terceiro ato Lulu, em pijama, lê jornal no quarto. Entra Claudina, vinda da estação

Lulu, a apertando contra o coração. — Ufa! Já estás aqui?

Claudina — Arre! Foi com dificuldade tirar 25 luíses pra minha viagem, dizendo

que vinha procurar a ti...

Lulu, desesperado. — Mas não podemos...

Claudina — Bem sei!

Lulu — O que concluis a respeito?

Claudina — Telegrafes a teu padrinho, o general.

Lulu — Nem me responderá.

Claudina — Vás o ver. Bayeux não é tão longe. Explicarás, de homem a homem.

Lulu — Me pregará uma lição de moral!

Claudina — Tanto pior!

Lulu — E tu?, durante esse tempo.

Claudina — Ficarei aqui. Vigiarei as malas.

Lulu — Sim. Embarcou na manhã seguinte

Quarto ato Mesma cena, dois dias mais tarde

Lulu — Nada! Cai na poltrona. Claudina, movendo as espáduas. — Ó! Os homens... Felizmente titia refletiu. 20 mil

francos, aproximadamente.

Lulu — Bravo! Então enviou os cobres?

Claudina — Todavia, iremos a Vendome por causa dos turistas que visitam os

castelos. Partiremos depois de amanhã. É preciso que eu te apresente um jovem ianque

que deseja te conhecer. Dirás o que quiseres. Minha família, afinal de conta, é mais

elegante que a tua.

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O Velho Testamento, segundo

documentos inéditos Georges Armand Masson

O rei Davi e todos os reis que governaram Israel, Davi é, seguramente, o que

merece mais simpatia e reconhecimento. Com efeito, o podemos

considerar, no triplo domínio da medicina, administração civil e ciência

militar, como autêntico precursor.

Lhe devemos o tratamento da alienação mental por meio da música: Terapêutica de

primeira ordem, atualmente, em nossos asilos, e cuja eficácia foi o primeiro a

demonstrar, acalmando, com os acordes da sua harpa, Saul, agitado pelo espírito

maligno.

Doutra parte, seu gênio administrativo aparece, notavelmente, na invenção do

divertimento da dança à frente da arca, que imaginou logo depois de sua vitória sobre os

filisteus.

Esse passatempo, tão precioso ao povo, que uma paz prematura atirou bruscamente

na ociosidade, é conhecido como dança diante do bufete. Por essa grandiosa inspiração,

Davi se igualou aos maiores ministros atuais.

Enfim esse monarca demonstrou, na arte da guerra, ousadia de concepção, que o fez

pai da estratégia moderna: Numa época em que o kriegsspiel49

se reduzia aos grosseiros

passes corpo-a-corpo, adivinhou toda a futura importância do combate a longa distância,

e, em primeira mão, o empregou em sua luta contra Golias, onde sua ciência balística

teve o sucesso que conhecemos.

Ao lado desses títulos de glória há, na história de Davi, uma pequena aventura que se

apresenta ordinariamente bastante equívoca e pouco digna dum monarca, aliás tão

respeitável: A questão Urias-Betsabé.

Contemplando Betsabé se banhando em sua varanda, Davi mandou os servos a

procurarem e dormiu com ela, pra empregar a expressão imprópria mas decente da

Bíblia, livro dos Reis: E no mesmo instante ela se purificou de seu pecado. Sem

dúvida, essa precaução não foi suficiente, porque em seguida ela mandou dizer a Davi: Concebi.

Ora, Betsabé era casada. Urias, tinha o grau de coronel ou algo semelhante (a Bíblia

não precisa esse pormenor) no exército de Davi. E enquanto sua mulher o iludia

regiamente, é o caso de dizer, esse bravo homem estava na frente de batalha, diante de

Raba, em via de combater os amonitas, que eram uma variedade de filisteus

particularmente perigosos e indigestos.

Nessa condição o recado pneumático de Betsabé a Davi tinha um significado

particularmente grave. Concebi significava Estou muito aborrecida. Davi não ficou

menos maçado ao receber a notícia. Porém seu espírito inventivo lhe forneceu

imediatamente o meio de sair do negócio: Enviou um mensageiro ao quartel-general,

chefiado por general Joabe e mandou dizer, a ele, concedesse a Urias uma licença pra

descanso, o que foi feito.

Urias se apresentou a Davi, acreditando que o rei tinha necessidade sua, mas Davi

disse: Vás a tua casa e laves os pés. Está no texto, não troquei alguma palavra. O

49 Kriegsspiel: (em alemão) Jogo de guerra. Nota do digitalizador

DD

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conselho era claro. Urias não o compreendeu e declarou que não poderia ir dormir com

sua mulher enquanto os amonitas estivessem em Raba. Era difícil a Davi, compreendeis,

explicar o motivo de tanta necessidade de o ver aproveitar a permissão de lavar os pés.

Está bem. Fiques aqui até amanhã. No dia seguinte o convidou a sua mesa e o embriagou. Esperava que os bons manjares e os vapores do vinho vencessem os

escrúpulos patrióticos do capitão (porque nada nos prova que tivesse mais de três

galões). Mas quando a refeição terminou Urias, em lugar de ir a sua casa, foi dormir na

casa da guarda. Esse militar era verdadeiramente cabeçudo. Eu me inclinaria a crer, em

conclusão, que deveria ser, no máximo, ajudante.

Davi se impacientou. Vos ponde em sua situação. É então que mandou levar a Joabe,

por Urias, uma ordem de serviço em envelope fechado, que autorizava o general a o

desembaraçar desse veterano estúpido e, de resto, de duvidosa honestidade. É conhecida

a passagem: Joabe confiou ao caporal Urias perigosa missão, onde ele foi morto. E Davi pôde desposar Betsabé. E essa ação de Davi desagradou ao Senhor.

Porém nós, que não somos mais que pobres mortais, não seremos tão severos. Eu

ousaria afirmar que, nessa ocasião como nas outras, Davi granjeou títulos

imprescritíveis a nossa gratidão. De fato, antes de si a arte de enganar o próximo estava

ainda na infância. Sem dúvida, o adultério já existia (aliás, o contrário não seria crível),

pois está escrito em Levítico XX, 10: Se alguém abusar da mulher alheia e cometer adultério com ela, que ambos adúlteros morram. Mas essa instituição não entrara ainda, oficialmente, no costume, pois não o Gênesis, o Êxodo, o Deuteronômio

nem o livro dos Juízes nos citam exemplo a respeito. Não nos objetai com o caso do

rapto de Sara, porque Abimeleque nem a tocou, e nenhuma vantagem apresenta a

aventura de José com Putifar, pois ela termina em incompatibilidade.

Em conseqüência, é mesmo a Davi que cabe a honra de ter dado ao adultério

existência legal e, como genial precursor, de haver enriquecido com engenhosas

inovações o mecanismo dessa operação que, até então, permanecera em simplicidade

primitiva. Com efeito, encontramos reunidos nesse breve relato todos os elementos

característicos dum completo adultério, tal como se pratica nas civilizações modernas, e

cujo ponto principal reside no consentimento de ambas as partes e não ignorância nem

consentimento da terceira (marido ou esposa legítima). De fato, quando essa condição

não é realizada, e as três partes são igualmente concordes, o ato não constitui mais

adultério propriamente dito, e toma o nome de partilha.

Nos impede agradecer ao bom rei Davi lançar as bases dessa preciosa instituição,

porque a vida sem o adultério seria uma noite sem estrela, uma estrada sem pouso, uma

árvore sem fruto, um pão sem sal.

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Adultérios à Sherlock Holmes Alex Alexis

célebre ex-policial diletante, Jack Pinkpallin, se sentou à mesa, ao

lado de sua mulher bastante jovem e, um tanto aborrecido, exclamou:

— Não me deixam em paz! Quando me casei pretendi pôr fim a

minha carreira de detetive. Já estou com quarenta anos mas todo dia uma porção de

gente continua a vir pra me oferecer os encargos mais extravagantes. Repudio a todos.

Mas nesta tarde não pude recusar. Se trata duma de tuas prezadas amigas.

— Quem é?

— Susana Bréville.

— Á! — Disse Joaninha, saltando — O que lhe sucede?

— Seu marido a trai indignamente. É preciso descobrir a infâmia, o surpreender em

flagrante.

— Pobrezinha! E queres te ocupar com essa tolice?

— Toda lacrimosa, me suplicou, em nome do amor que te consagro... Compreendas.

Deveria aceitar. Será questão de poucos dias. Estou na pista e jamais me engano.

No dia seguinte não foi difícil descobrir o endereço da vivenda que Luciano Bréville

alugava em Passy. Acompanhados pela mulher traída, saíram de carro e se precipitaram

na rua Raynouard.

— Às cinco! — dizia Susana. — O surpreenderemos. Á! o velhaco!

Na rua Raynouard, numa casa elegante e silenciosa, subiram cautelosamente os cinco

andares.

— Chegamos. — Sussurrou Jack Pinkpallin, tirando do bolso um maço de gazua e

empunhando, como de costume, o revólver.

— Não! Não! Guardes a arma! — Exclamou a senhora. — Certamente não desejas

disparar.

Desapontado, o policial escondeu o revólver. Abriu a porta com precaução. Dentro o

silêncio era completo.

— Ainda não vieram. Esperaremos. O golpe será mais estupendo.

Porém não puderam conter um grito de surpresa, entrando no dormitório. Lá estavam

estendidas na cama, sob as cobertas, parecendo dormir tranqüilamente, duas figuras

imóveis.

— Luciano! — Gritou a senhora se precipitando.

O célebre policial ria, satisfeito.

— Eis os adúlteros, na primeira sortida!

— Não! — Exclamou ela, assustada — Olhes: São dois bonecos!

Jack Pinkpallin estarrecido, alongou o nariz. Eram, de fato, dois fantoches.

Depois, se recompondo, disse:

— Luciano aprontou uma pilhéria. Mas sou uma raposa-velha. Ficará proutra

tentativa.

Na noite, à mesa, não ousou relatar seu fracasso.

No dia seguinte Susana Bréville o encontrou em sua casa.

— Achei este estojo sobre a mesa de meu marido. Continha um tufo de cabelo preto.

— O achaste sobre a mesa?

— Exatamente.

— Então sei que a amante de teu marido tem o cabelo louro.

— Por quê?

— Sobre a mesa! Bastante evidente. Era pra te ludibriar.

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— És um gênio...

— Nada mais encontraste?

— Encontrei uma liga escondida num bolsinho.

— Está claro! Esta liga azul confirma que a dama é loura.

Continuou a examinando minuciosamente.

— A mulher tem 26 anos, 1,6m de altura, se banha diariamente, é muito sensual,

temperamento extravagante, vivo, usa meia de seda, lê Pierre Loti, é anti-sufragista,

adora pintura... Que dia é hoje? 15 de maio? Hoje se inaugura o salão no Grande

palácio. Lá estarão. Os capturaremos.

— O que fizeste pra saber?

— Concluí, pelo exame desta liga, que a amante tem predileção à arte. Não poderá

faltar à inauguração duma exposição de pintura.

Na tarde foram ao Grande palácio. Porém, apenas adquiriram a entrada, um servente

foi a encontro do policial.

— Perdoes. És senhor Pinkpallin?

— Justamente.

— Uma senhora me encarregou de entregar este bilhete.

Dilacerou, febrilmente, o invólucro e leu:

Sou muito sensível à arte mas espero que estejas de acordo comigo ao crer ser exagerado falar de arte no salão. Irei, pois, a outro lugar.

A amante de Luciano

Pinkpallin se sentiu aniquilado.

Começou a persuadir Luciano.

— Investiguei os mais célebres arrombadores de Paris, Londres e Nova Iorque.

Ainda te agarrarei!, pequeno insolente. — Pensava, enquanto seguia a presa. Num

momento lhe pareceu a ter descoberto.

Luciano Bréville, após ter procurado inutilmente despistar o policial, desviando em

toda rua, se confundindo com a multidão, penetrando em pátios de dupla saída, se

aproximou dum motorista, trocou algumas palavras misteriosas com ele e entrou num

bar.

— Ganharás 100 francos — sussurrou Pinkpallin, no ouvido do chofer — se me

disseres aonde se dirige aquele cavalheiro.

— À rua Riquet, 11. Porém, antes, esperamos uma mulher.

— Estava desanimado! — Pensou, radiante, o detetive. Telefonou a senhorita Susana

Bréville.

— Venhas de automóvel, já. Estou em Madeleine.

Passados dez minutos ela chegou em carro.

— Onde estão?

— Desapareceram. Uma dama de rosto vendado saltou rapidamente no táxi. Não a

pude ver. Ordenes, ao motorista, pra tocar, a toda velocidade, à Vilette.

— No quarteirão da vida airada, dos apaches?

— Escolheram aquele esconderijo. Foi uma corrida louca através de Paris.

Finalmente alcançaram os pobres e lúgubres quarteirões da Vilette.50

— Aqui entrou um homem acompanhado duma senhora?

O policial perguntou à porteira da rua Riquet, 11, lhe oferecendo 100 francos.

— Sim. Estão no sexto andar, de cima, terceira porta à direita.

50 Parc de la Villette. Complexo que combina natureza, arquitetura lazer, e cultura. É um laboratório de democratização cultural,

onde a arte e a sociedade interagem. Nota do digitalizador. http://www.villette.com/

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— Diabo! Não há ascensorista. — Observou o policial, enquanto subia na escada. —

Sexto andar, 13ª porta, Em ação as gazuas.

— Quem é? — Berrou, dentro, uma voz irritada.

— Nós! — Exclamaram, vitoriosamente, Pinkpallin e senhora Susana.

Entraram... Sobre uma cama pobre, em traje menor, estavam o motorista, a quem o

detetive falara pouco antes, e uma criadinha gorda e feia.

— O que desejam? Cacetes! — Gritava, irritado, o chofer, praguejando. — Vos farei

voarem janela abaixo.

—... o cavalheiro que trouxeste no automóvel até aqui?

— E o que sei a respeito desse senhor? Foi cuidar de seu negócio depois de me pagar

bem. Tanto é verdade que agora repouso. Ordeno que saias, atrevido, bisbilhoteiro,

violador de domicílio!

— É pior que Arsênio Lupin! — Observou, indignado, o célebre detetive. — Desta

vez, porém, não me escaparão mais. Estão seguros.

— Como conseguiste?

— Me fantasiei. Pus cabeleira e barba postiças. Ontem estive o dia todo ao lado de

teu marido, que, certamente, não me reconheceu.

— E depois?

— Depois se impacientou. Entrou numa agência postal e pediu pra telefonar.

Naturalmente, o segui, me escondendo na cabine ao lado. Percebi que dizia: Minha mulher faz vigiarem meus passos... Não é mais seguro nos encontrarmos num apartamento. Aquele imbecil Pinkpallin pode nos descobrir. Me esperes amanhã, às 4h, no café da torre Eiffel... E, pra burlar reconhecimento, me vestirei de cossaco.

— Ótimo! De modo que hoje os podemos surpreender.

— Depressa, o auto, e corramos à torre Eiffel.

Voaram ao campo de Marte e chegaram a tempo de ver O cossaco tomar o ascensor,

que subiu rapidamente.

— Com mil raios! — Berrou o investigador. — Chegou adiantado! O elevador só

subirá novamente um quarto de hora mais tarde. Subamos a escada a pé.

— Ó! São 350 degraus pra chegar ao primeiro pavimento! — Observou, preocupada,

a senhora.

— Tenhas ânimo! O agarraremos. Consideres que em Londres, quando me ocupava

com o famoso mistério do teto negro, precisei subir, em 3 horas, as escadas de 52 casas

de 8 andares, na rua Clark, num total de 11.564 degraus. Enfim consegui encontrar o

teto.

— E prendeste os malfeitores?

— Não. Estavam na portaria. Mas, subas, senhora.

Esbaforidos, exaustos, escorrendo suor, chegaram sem alento ao primeiro andar da

torre.

— Eis ali, no café. Permanecerás fora, pra vigiar a porta principal. Entrarei na porta

de serviço.

— O que aconteceu?

Após 2 horas o policial saiu pálido, iludido.

— Deixaram um bilhete com a caixa: Te aguardamos no segundo pavimento.

Coragem! Ao ascensor!

— Já partiu! — Na escada!

Subiram, o mais rápido possível, os 380 degraus entre o primeiro e o segundo

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pavimentos.

— Morro! Sufoco! — Suspirava senhora Susana, em cada degrau.

No segundo andar um empregado os preveniu de que o cossaco já subira ao terceiro

pavimento.

— Melhorou! Não mais escada. Só elevador.

O enorme ascensor os levou ao terceiro andar.

— Que beleza trabalhar no cimo duma torre de 300m! — Me dizia Pinkpallin, que

readquiria o espírito combativo de seus melhores anos.

Porém uma última surpresa os aguardava: Nenhum traço de cossacos. Desceram da

torre, humilhados.

— Enquanto subíamos desciam. Então se divertindo. Mas não estão distantes.

Contudo os vestígios do cossaco já estavam perdidos. Susana voltou até casa,

fatigada e abatida. Ao entrar, a criada disse:

— Senhor Luciano Brévilie ficou em casa toda a tarde. Uma senhora loura veio o

procurar, há pouco, e saíram juntos.

— Uma mulher loura? Sejas sincera: Nada notaste?

— Sim. Se tratavam por tu e se beijaram. — Susana caiu, desfalecida.

Quero que me partam a cabeça se desta vez eu esmorecer! Me lograram mas o

grande Pinkpallin aprontou uma armadilha que perderá. Estive numa agência

imobiliária e a encarreguei de oferecer a teu marido um apartamento, que já preparei,

em Neuilly. Sem suspeitar, o alugou. E hoje, às 4h, conduzirá até lá a bela

desconhecida. Acredita que podem escapar? Impossível! Há uma só saída. Conheço a

casa, todos os recantos. E nós, por prudência, chegaremos uma hora antes. Nos

esconderemos num armário e, no momento oportuno, zás!, os apanharei!

— Estupendo!

— Iremos já.

O automóvel os levou a Neuilly, ao parque Bineau: Chegaram a uma graciosa e

adorável vila, escondida entre as árvores do parque.

Subiram. Pinkpallin abriu a porta com as conhecidas gazuas. Disse, penetrando na

alcova:

— Eis o campo de luta. Imagines o que acontecerá daqui a pouco!

Se ocultaram num armário e aguardaram. O tempo transcorria lento,

desesperadamente longo. Nenhum rumor suspeito. Faltava ar, se sentiam fatigados pela

posição incômoda, tontos, sufocados.

3h, 4h, 4:30h, 5h... Disse Pinkpallin, às 5:30h:

— Não mais virão. Saiamos.

— Sim, saiamos. Estou sufocada. Escancararam o armário. Susana se deixou cair

numa cadeira, pálida, esfalfada, choramingando:

— Não conseguiremos os descobrir. É mais hábil que nós.

Mortificado, o detetive não sabia o que responder.

— E continuará a me trair, a correr atrás de todas as mulheres.

Rebentou em tal crise de lágrima, que o quarentão Pinkpallin se comoveu e precisou

fazer todo o possível prà consolar.

— Por que me iludes assim? Porventura sou medonha? O que dizes?, Jack.

— Não. O contrário.

— Talvez não tenha graça. Sedução?

— Não. não.

— E eu com tanta necessidade de amor, de carícia!

Sem querer, se abandonava nos braços paternais de Pinkpallin, que, atordoado pela

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prisão no armário, com o perfume daquela mulher e pela comoção, apertava, sempre

mais, o amplexo.

Um beijo, dois, três. Se arrastaram ao leito.

— Jack, me vingues!

Porém, meia hora depois, enquanto a bela Susana misturava ainda, entre os lençóis,

toda a mágoa de mulher traída, a porta se abriu, silenciosamente, e um homem apareceu.

— Luciano! Luciano!

— Sabia que desejavas me encontrar. — Disse Luciano, calmo, a Pinkpallin,

mostrando não perceber o que sucedia. — Te procurei em toda parte. Certamente não

imaginava te encontrar aqui. Me perdes se te incomodo. Então: O que queres de mim?

Apanhou uma cadeira e se sentou ao lado do leito, exibiu um cigarro, acendeu e, com

o melhor sorriso deste mundo, falou, jovialmente:

— Vamos, digas. Sabes que sou teu bom amigo.

Na noite, à mesa, Joaninha perguntou ao marido, que parecia serio e taciturno:

— Tens te interessado por Susana? Eu estaria aborrecida se não a pudesses ajudar,

pobrezinha!

— Não tive tempo. Ademais, tudo foi resolvido amigavelmente, em família. —

Respondeu Jack Pinkpallin, um pouco importunado. E, movendo a cabeça em sinal de

resignação, concluiu: — E depois, tudo envelhece. Terminou o belo tempo do célebre

Jack Pinkpallin. Agora, juro , não quero mais me preocupar com caso.

Pouco depois Joaninha telefonou a Luciano Bréville.

— Não creio que exista mais a temer. Todavia mandes descansar teu chofer russo.

Amanhã te encontrarei, no horário habitual, no lugar do costume.

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Palavras de amor Marcel Astruc

scar — Me amas?

Olga — Ora!

Oscar — Digas que me amas. Gosto que digam que me amam.

Olga — Ora! Ora!

Oscar — Por que não queres dizer?

Olga — Porque não é verdade. Tens tais idéias. Me pergunto o que pôde te fazer crer

em semelhante coisa.

Oscar — Contudo já disseste.

Olga — Pra não eternizar. Julgava que compreendias. É verdade que és tão

demorado nesses assuntos. Então faço tudo o que é possível pra abreviar. Aqui, só

assim.

Oscar — Se não me amas, por que não me amas?

Olga — É como se eu te amasse e perguntasses por que te amo. Não falemos nisso.

Oscar — Entretanto sou um homem delicado, atencioso.

Olga — Vejamos! No restaurante sempre me colocas na corrente de ar. Sirvo pra te

abrigar. Te ajeitas pra tentar me fazer crer que é o melhor lugar e que é por isso que me

dás.

Oscar — Estás certa? Pura coincidência. Não notei.

Olga — Mas eu sim. Quando tomamos um táxi, na entrevia, sobes sempre em

primeiro lugar, por causa dos veículos que vêm em sentido inverso. Não é verdade?

Oscar — Seguramente. Não é verdade!

Olga — Negativas feitas em voz baixa. Passemos a outra coisa: Gosto mais de vinho

branco e preferes tinto. No restaurante dás um jeito pra sacrificar meu gosto por ti. Rogo

que acredites que não insistes quando tenho a generosidade de te dizer que não vejo

inconveniente em que peças uma garrafa de moinho-de-vento.

Oscar — É preciso dizer! Também, nada dizes.

Olga — Parece que a gente te assassinará, quando não se deseja exatamente a mesma

coisa que tu.

Oscar — Em todo caso não podes dizer que não sou generoso. Nunca te recusei

algo.

Olga — Dás mas dás mal. E depois, recordas demasiado o fato. Cada vez em que

falas dum presente que fizeste, ele perde um pouco do valor. Na centésima vez, estás de

tal maneira pago, falando a tal respeito, que não te devem mais, e, propriamente, és

quem começa a dever algo. Dirás que podes sempre fazer outro presente. Somente não

se sabe mais em que preço está. É um fazer conta que não se acaba mais.

Oscar — Te asseguro que não faço conta.

Olga — Mentiroso! Só fazes isso. Tua cabeça é uma máquina aperfeiçoada, que

registra automaticamente. E como és comerciante é raro haver pessoa que sai de tua

casa ainda devendo.

Oscar — Não faço com a intenção de ofender.

Olga — Não ofendes, pesas. A princípio a gente apenas percebe isso. Se toma a

coisa por um capricho de homem gordo, pouco delicado. Depois a gente sente que

respira dificilmente. Tenhas dó! És quem absorve todo o ar. Não observaste, quando

tens companhia à mesa: No fim da refeição estás sempre no lugar de teu vizinho

imediato. De tal maneira o empurraste falando a ele durante o almoço, que tens uma

parte enorme do banquete do lado em que não há alguém, enquanto teu vizinho está

OO

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comprimido contra o comensal do lado.

Oscar — Bem sabes que não sou avarento. Compreendes que aprecio ter convidado.

Olga — É exato, porém tens o mau hábito de o servir com tuas mãos: Isso anula

tudo. Tens o costume de te coçar, e, aliás, outra de tuas manias é acariciar, com a mão, a

sola do sapato. Depois disso tua grande satisfação é partir com ,as mãos enormes, bolos

de massa mais dourada que o mel, pra distribuir os pedaços aos hóspedes.

Oscar — Embora, dessa maneira, os pedaços não os empanturrem!

Olga — Não é razão. É como acontece quando tens companheiros, em teu camarote,

no teatro. Não sei como te prendes ali mas sempre encontras meio de caminhar sobre os

pés deles para retomares teu lugar. Sim, sim. Te surpreendi mais de vinte vezes. Amas

desse modo. E os contemplas nos olhos no mesmo instante. Digas o que queiras. Isso

irrita.

OSCAR — Não sei o que queres dizer. Se isso os constrangesse tanto assim não

voltariam.

Olga — Talvez seja parque apreciam o teatro acima de tudo. Há pessoas com essa

mania. Se percebe que formam a fila de três horas de espera. Aliás, não me interessam.

O que digo é por tua causa, e porque te pretendes generoso. Porém te provarei que não.

Oscar — Será possível?! O que desejas que eu faça? Sim. Sou assim. Aliás,

acreditas que os outros são bem interessantes? E não é só isso. Tenho necessidade de

amassar alguém, de dominar. Compreendes? Doutra maneira uma angústia me atenaza:

Não estou seguro de que existo. Ao passo que comprimindo alguém me sinto viver:

Destruo, logo existo. Ter, diante de mim, um indivíduo que perde a compostura, que se

descontrola, isso me exalta. Experimento um sentimento referto51

de força e de

coragem, que me é necessário pra lutar. O que queres? Não sou um forte. Sei que não

valho grande coisa. Nesse caso, sim, por desgraça, eu chegaria a duvidar de mim!

51 Referto: Abundante, pleno, cheio, repleto. Nota do digitalizador. http://www.dicio.com.br/referto/

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O marido da romancista Clément Vautel

esposo ou amante da mulher que, trajando um disfarce, desce a escada

ao terminar a revista, é, sem dúvida, muito lisonjeado por ouvir, no

passeio, essa exclamação do íntimo de seu vizinho!

— Ela é bem proporcionada, aquela galinha! Tem tudo que é necessário pra fazer

minha felicidade!

Mais vale, certamente, uma linda jovem que exibe o que tem, sem excetuar grande

coisa, a dois mil desconhecidos reunidos, que uma feia que se mostra em camisa a seus

amigos conhecidos, tomados separadamente. Aliás, na platéia existem espectadoras que

não estão algo mais vestidas que a artista do disfarce. Nas praias, no verão, as banhistas

comunicam ao público o que outrora era conveniente reservar ao marido ou ao amante,

digamos a ambos. O próprio Otelo acha isso muito natural. E nada, efetivamente, é mais

natural.

O esposo da romancista está em situação infinitamente mais delicada. E me admiro

que não diga a sua mulher:

— Estiveste insuportável no fim! Levas o impudor até o cinismo e, pra cúmulo, me

fazes desempenhar um papel ridículo. Dessa maneira, é bem simples, requeiro o

divórcio!

Porque a mulher que escreve romance vai muito além da frinéia52

das Folies-

Bocagères53

nas revelações de ordem íntima.

Não somente mostra sua nudez moral a todos os transeuntes, mas ainda faz verem a

de seu marido. Bem melhor, ou bem pior, transporta a alcova à praça pública, com o

leito e todos os acessórios, sem esquecer o bilhete, que, talvez, denomine Pégaso. E

nada nos deixa ignorar de seus passatempos amorosos: Até creio que exagera a respeito.

Sua única concessão ao respeito humano é que muda o prenome de seu infeliz

cônjuge: É Ernesto em família e no romance de sua mulher se torna Tancredo, Rafael ou

Minai, o que é, parece, mais literário.

Também há outros embelezamentos. A senhora se descreve, porém se embelecendo,

se penteando, se não como é, ao menos como acredita ou desejaria ser. Mas há sempre

alguma semelhança na imagem idealizada que traça de si, tanto é verdadeiro que só

podemos imaginar algo que seja um pouco o que já sentimos, vimos e vivemos. As

mulheres, sobretudo, só nos podem falar de si, e isso é, aliás, muito interessante. Não

têm imaginação, ao menos quando escrevem romance, e mesmo as que sempre se

apresentaram, como senhora Benoiton, jamais são, em todo caso, si em pessoa. Não sei

que crítico disse ou diria:

— Não existe Alexandre Dumas mãe!

Acabo de ler ou folhear alguns romances femininos que poderiam ser todos

intitulados: Eu e Eu.

É espantoso! O próprio Jean-Jacques, que pretendia tudo declarar em seu Confissões,

parece um pequeno recatado comparado com essas senhoras.

São somente cópula frenética, busca e complicação voluptuosa, grito apaixonado,

suspiro enlevado, ofego de ninfômana. Aquilo principia, ordinariamente, numa

descrição muito pormenorizada do primeiro aperto. A virgindade em agonia se defende,

52 No século -4 a bela e audaciosa cortesã grega Frinéia foi julgada, em Atenas, por impiedade. Seu advogado, orador brilhante a

despiu diante dos juízes e foi, imediatamente, absolvida. Nota do digitalizador. 53 Folie bergère: Loucura pastoril. Folie bocagère: Loucura bosquímana. O Folie Bergère é uma casa musical parisiense cujo ápice

de fama e popularidade foi de 1890 a 1920. Ainda funciona com espetáculo. Nota do digitalizador

OO

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depois se perde em quinze páginas, sem ponto de parada. E como documentação

fisiológica é, verdadeiramente, bastante completo. Realmente, o leitor tem a impressão

de estar lá!

Quando encontramos essas novelistas, ficamos particularmente surpresos em as

achar um tanto diferentes da imagem que conserváramos de sua pessoa. Sua idade e

físico são falazes! Mas não sucede o mesmo com a maior parte dos romancistas e dos

poetas do amor? Em todo caso, a desenvoltura das romancistas é completa. Elas não

pensam em corar das confidências inauditas que nos fizeram, pondo os pingos em todos

os i. E isso nada tem que nos deva surpreender, sendo a mulher, no fundo, muito mais

livre nos propósitos e passos que o homem. A nudez física ou moral as constrange

menos que a nós: O gesto da vênus de Médicis não é uma defesa mas um requebro, e

foi, certamente, Adão quem, primeiro, arranjou uma folha de figueira à Bela Jardineira.

O marido da romancista, que espírito representa?

Porém o muro da vida privada, foi transformado em larga abertura envidraçada na

qual as pessoas o podem ver de cueca, de jaqueta de flanela e até com vestuário ainda

mais simples.

Todos sabemos o que diz e faz naqueles momentos.

Sabemos até que sua mulher o enganou em tal dia, hora e circunstância, com os

senhores dos quais ela nos descreveu também o nu físico e moral.

Essas confidências aterrorizantes não sussurrou no ouvido duma amiga mais ou

menos discreta. Não escreveu nalgum álbum azul ou amarelo dedicado, como os

últimos álbuns do jornal dos Goncourt, a eterno mistério. Não. As fez imprimir, e

quanto mais vende, mais a satisfação aumenta. A do seu marido também, do outro lado.

— Estamos nos 50 mil exemplares! — Declara o homem, esfregando as mãos.

É um sucesso, porém é preciso ser diabolicamente filosófico pra se acomodar à

situação e, sobretudo, para se regozijar.

Não sei, mas eu, em seu lugar, acharia que esse dinheiro tem um cheiro velhaco.

O marido da romancista tem, é verdade, compensação. Antes de tudo, os direitos

autorais de sua esposa, o que não é sempre despiciendo.54

Compartilha também de sua

celebridade, se a senhora não conservou seu nome de solteira ou não adotou um

pseudônimo às vezes masculino.

Nesse último caso se expõe ao ridículo suplementar de precisar dizer aos

admiradores de Meus repousos sentimentais:

— Se conheço o autor desse romance vivido, Leopoldo de Mimosa? Acredites: É

minha mulher!

Enfim, esse príncipe-consorte pode obter os favores de simples leitoras que,

maravilhadas por suas façanhas livrescas, querem saborear consigo o prazer de serem as

rivais duma célebre mulher de letra.

Somente, lhe acontece, talvez, ouvir dizerem:

— Inspiraste a tua mulher acervos de grossos calhamaços. Por mim, acho que não

mereces mais que um pequeno capítulo!

Aquele que desposou a mais linda mulher de França ou, simplesmente, a rainha das

rainhas, arrisca, evidentemente, mais que qualquer outro, a ser cornudo. Porém, doutro

lado, quantas ocasiões se lhe oferecem de iludir aquela que acredita não ter que recear

rival! Todos os príncipes-consortes têm, a sua disposição, as súditas de sua graciosa

majestade.

Não importa. A função do marido da célebre romancista não deve ser insolente todos

54 Despiciendo: adjetivo Que não tem importância ou cabimento e por isso não merece ser levado em conta. Desprezível. Nota do

digitalizador. http://www.dicionarioweb.com.br/

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os dias. É preciso, pra se sair honrosamente, excepcional dose de resignação, não temer

certos sorrisos e, o que ainda é mais prudente, não ler os calhamaços da senhora.

A felicidade é, o mais das vezes, constituída de ignorância. E isso é ainda mais exato,

por doze francos, sem disfarce.

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Tristezas do bordel Émile Carrère

I

Os narcisos do piano de manivela

elícia Salto-Alto hesitou um pouco antes de admitir, em sua confraria de

princesas da aventura, aquela moça tão pálida e tão envergonhada, que

não fumava nem sabia cantar malaguenha e quando algum homem lhe

falava se punha vermelha como uma papoula.

— Puxa! Esta simplória é mais aborrecida que fazer solitário. — Disse à mãe — Não

ganhará, nem prà água. Sua filha é um anjo-do-lar que malogrou.

— Pois ela verá que é a única fazenda que temos. Se não, só a porta duma igreja.

E desde aquele dia Angelina foi fazer sala em casa de Salto-Alto. Era linda, muito

branca, tinha o cabelo dourado e os olhos azuis. Seu aspecto de senhorita agradou aos

freqüentadores da casa de prazer, e o ganho foi tornando mais compassiva a pastora

daquele rebanho galante.

As companheiras no exercício saboroso e cotidiano eram Rosinha, Branca,

Bichaninha e Amália do Valeriano. Uma ou outra noite ia também Napoleão, mas

costumava sair em brancas nuvens, porque já estava ficando passada.

O cortejo das damas eram dois ou três moços de piano de manivela,55

que

respondiam aos gentis apelidos de Levitosa, Júlio Presumido, e Filipe, o menino das

olheiras, que no tempo era o que falava com Branca, o que lhe moía os ossos e quem

comia o que ganhava seu corpo serrano, coisa que indignava muito a Salto-Alto e suas

dóceis cordeiras.

— Mas não sei o que vos dão os pianistas. Cuidado que estais em forma!

— É que dá muito orgulho ter um noivo como o menino das olheiras.

— Valente menino! — Exclamou Rosinha — É tão fresco, que uma pessoa não pode

falar consigo sem se resfriar. Que Figura de homem! Tão esmirradinho e com umas

olheiras até o cangote.

— É que é um tipo de folhetim.

— Te cales, rapariga. Parece a dama das camélias de calças abotinadas!

— E que cabacinha, a do homenzinho! — Agregou Salto-Alto — Tem que botar o

chapéu com calçadeira.

— E te aplica cada soco que te deixa roxa.

— É o destino da pessoa!

— Vá lá que seja. Mas me acende o sangue ao ver que batem numa mulher, como

outro dia, que te botou um olho na moda.

— E lhe deu na cara. Ladrão! Em mulheres como nós não se pode dar na cara. É

nosso ganha-pão.

Interrompeu a interessante conversa a chegada dum senhor gordo e vestido como um

vendeiro em festa.

— Olá, meu amor. Estava te esperando.

E Bichaninha lhe pregou um beijo na bochecha reluzente.

55 Os pianos de manivela, na época retratada neste conto, eram explorados nas ruas de Madri por gigolôs mui bem vestidos e

embonecados, que ostentavam brilhantes falsos nos anéis. O forte de seu negócio consistia em se postar sob as janelas de certas

senhoritas protegidas por anciãos endinheirados, e tocar maxixe, xote ou valsa da moda. As tais protegidas, a quem seduzia a

garbosa figura dos pianistas, saiam à sacada pra escutar prazenteiramente a música e acabavam obsequiando com moedas de prata e

até notas de banco, que os narcisos do piano de manivela apanhavam, graciosamente, no ar. Nota do tradutor

FF

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— Pensavas que eu não viria? Não te preocupes, mesmo que tarde um pouco. Já

sabes que meu dia é sábado.

Bichaninha e o senhor metódico se perderam no interior.

— Este infeliz é um bom amigo. Nunca chega bêbedo nem abusa das mulheres. É um

homem que dá gosto.

— É, sim. — Replicou, zombeteira, Rosinha.

— Claro, como és uma vagabunda, gostarias mais do Valeriano. Boa-bisca! E pra

quê vem te ver?

— É que tem muita freguesia. E além disso é o que diz: Um homem de valor não pode se deitar assim todo dia. Assim não duraria uma semana.

— Que lástima! — Interveio Pepe Alinhavo, o amante de Salto-Alto, com sua

autoridade de gigolô consorte.

— O que digo é que é uma besteira que vos deixais explorar por esses sem-

vergonhas. E não é que eu me assuste de tomar dinheiro das mulheres. Não é aí. O

homem tem seus vícios e é preciso variar. E quem aliviará a pasta do sujeito melhor que

a pequena que fala conosco? E isso está bem se tratando dum sócio como o degas, digo!

Agora vês esses frescalhões das pianolas!

— Lá isso de pouca-vergonha sabes um grande pedaço, meu querido. —

Argumentou Salto-Alto.

— É muita gente o Pape Alinhavo!

— Pro feijão.

Na meia-noite chegou a mãe de Angelina, buscando sustento da casa.

— Filhinha de minha alma! Nesta noite tiveste boa estrela. Vamos, que deves estar

cansada.

Dona Virtudes tinha um magnífico perfil de água-forte grotesco, envolta em manto

pardo, com manteleta de azeviche. Era viúva dum capitão, ainda que bem pudesse se

intitular viúva da guarnição e até do cabido da mui venerável cidade de Burgos, onde

passou bons anos honrando a Deus e ao rei em ajuntamento com soldados e cônegos.

De seu próprio corpo ela fez quanto pôde tabuleiro de amor, e cuidava de sua menina

com toda a ciência e experiência prà honrada profissão de limpa-bolso e afrouxa-desejo,

com verdadeira unção sacerdotal.

Porém a menina não saiu afiada. Angelina era um pouco romântica. Se punha como

uma cereja ouvindo as piadas do bordel, e recebia, envergonhada, as moedas, depois do

sacrifício, na alcova pecadora.

— Mas a quem, diabo, terá saído essa sonsa? — Exclamava, cheia de santa

indignação, dona Virtudes.

Sem dúvida, a ninguém por linha materna. Com respeito à paterna, quem se meteria

numa investigação tão complicada!?

— Acaso àquele tenente louro ou ao arcipreste56

moreno e gorducho... Só Deus pode

penetrar o arcano de certas coisas!

Mãe e filha sustinham contínuas rixas, sem que se domasse o espírito indócil da

pequena.

— Digo, mamãe, que esta vida não é pra mim. Enquanto se é jovem os homens nos

disputam, e toma farra e lá vêm presente, mas logo a pessoa se vê jogada como um cão,

sem o arrimo dalguém, e se acaba num hospital, como um trapo.

— Á!, menina. Não é pra tanto. Meteu isso em tua cabeça o folhetim de Maria ou a

filha dum jornaleiro. Tomes ducha, que isso é muito ruim.

56 Arcipreste: Título dos vigários de certas igrejas, que lhes confere proeminência sobre os outros vigários. Nota do digitalizador.

http://www.kinghost.com.br/

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II

Canção infantil — Trates de te levantar, que são 4h.

— Andes, mulher, pois não terás tempo de ir ao cabeleireiro.

Angelina abriu os olhos. Estava tão cansada! Na noite anterior tivera tanta farra em

casa de Salto-Alto! Voltou a casa na madrugada, moída, com a alma desfeita, de olhos

inchados, friccionando o rosto pra apagar os beijos macerantes dos bêbedos da noite

anterior, que a possuíram brutalmente. Porém trouxe dinheiro pra sua mãe. Julgava ter

direito a descansar.

Moravam num casebre da estreita rua dos Mancebos, sem mais ventilação que uma

janela sobre o telhado. A casa tinha uma sala e dois quartos. Um era de Angelina,

quando vinha, e outro era ocupado por dona Virtudes, na gostosa companhia de Perico

Castanheda, porque a honrada mulher não podia dormir sem arrulho de varão, costume

ao qual não faltou noite em sua longa existência.

Castanheda era um rufião cinqüentão, corroído das misérias de bordel, que foi seu

corpo calvário onde o bisturi do cirurgião pintou as cruzes. Figadal inimigo do trabalho,

dado ao jogo e à bebida, e a respeito de vergonha, foi a deixando desde moço em

pocilga, meretrício e taberna.

Se presumia bonito, apesar de seu cabelo grisalho e de seu rosto cruzado por uma

cicatriz, e em sua galhardia viveu muito tempo à custa de dona Virtudes, quando ela o

ganhava, e presentemente do garbo de Angelina. Quando voltava embriagado, batia nas

duas mulheres, e quando estava calmo continuava batendo, principalmente na velha, que

agüentava as pancadas com canina, e se chegava a ele, passada a nuvem de ira, a o

cumular de carícia.

Numa noite, quando regressou mais bêbedo que nunca, cismou de se deitar com a

pequena. Angelina o detestava, e se defendeu heroicamente, com as unhas, a dentadas, a

pontapés, numa luta bárbara e repugnante. A velha, numa hedionda nudez, plangia em

meio do quarto:

— Angelina, minha filha, é melhor ceder, senão nos matará a ambas: Que mais te dá!

A menina, com o rosto arranhado, com o peito cheio de sangue, cedeu, enfim, e foi

aquilo uma monstruosa conjunção no leito revolto, onde se uniam o arfar sensual do

bêbedo e os soluços desesperados da pequena, em presença de sua mãe, que via o

quadro com estranha complacência. Foi uma violação da alma. Desde então ela foi

tomando à velha surda aversão.

Naquele dia, após o jantar, saiu à rua. Era maio. As acácias pareciam turíbulos

nupciais. O céu, límpido como um rompimento de glória e, havia nas ruas uma alegria

luminosa, como um hino de ressurreição.

Andou, andou, bebendo a serenidade azul da tarde, se embriagando com a fragrância

da flora nova, se sentindo banhada na alegria primaveril, como numa fonte de luminosa

pureza.

Suavemente se ia sentindo menina, com o ingênuo regozijo daquela remota e límpida

manhã em que fora fazer a primeira comunhão, toda branca como uma margarida, toda

perfumada de castidade na roupa e no coração.

Pelo feitiço da primavera, a alma da prostituta se abria à recordação inefável como

um loto à comunhão da Lua.

Chegou a um jardim público, todo verde e florido, onde cantavam as crianças como

um transbordamento de cristais de riso e de fragrância. Na pracinha se erguia o busto

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dum poeta das crianças e do amor, esculpido em mármore, com sorriso exuviável57

e

longas melenas nevadas. Nos bancos de pedra os velhinhos sorriam ao raio dourado da

tarde. No idílio azul do jardim, cantava maio galante o madrigal das rosas nascentes e o

epitalâmio58

rumoroso dos ninhos.

As vozes infantis esganiçavam as velhas toadas dos jardins, que têm aroma de lenda

e doçura de favo. É o estribilho dum romance que todos cantamos, e que, ao voltar a

nossos lábios, tão longe da infância, nos deixa doce sabor de pranto na boca. Parece que

das ruínas de nosso coração dolorido, ressuscitamos nós próprios, com o cabelo louros

vestidos de rosa e com a alma virginal.

Angelina, sumida em calmante beatitude, subia, como se alada, sobre sua vida negra,

de amarga lascívia, de noites brutais, de carícias cruéis e extenuantes. Se ouvia a voz

ingênua do coro:

Tenho uma boneca a quem muito quero de camisinha azul e dourado bolero

Cantavam as meninas, e a suave toada, branca como os lírios, como os cisnes, como

o trigo branco da eucaristia, talvez se abrisse em suas alminhas brancas como o casto

lírio do anjo, na inefável anunciação de Maria.

O trouxe à rua e ficou resfriada a tenho na cama muito agoniada

Com sua infantil puerilidade, nada era mais humano, mais fundo e mais penetrante

que a voz antiga da modinha. Angelina ia sentindo, no coração, uma espécie de

revelação toda luz, a razão inefável da vida.

— Se eu tivesse um filho!

Profundo estremecimento de felicidade lhe convulsionou a entranha de mulher.

Na louca evolução de seus jogos chegou até ela um menino muito pequeno, todo

risonho, ouro e encaixes e atrás dele, a mãe, jubilosa, querendo o segurar no vestido. O

garoto se refugiou no regaço de Angelina.

— Venhas, filhinho, que incomodas a moça.

Angelina o beijou na fronte. Aquele beijo era o único que dera com lágrima nos

olhos e sabor de coração nos lábios.

— É muito lindo, senhora! O benza Deus!

A mãe riu, com alvoroço.

— É muito mau, me dá muito trabalho. E olhes que o pobrezinho esteve doente neste

inverno.

— Deve ser uma dor muito grande ver um filho doente. Não é?, minha senhora.

O rosto da mãe se transfigurou num gesto de angústia.

— É a dor das dores!

Ia caindo a tarde docemente. A prata mística das estrelas brilhava no fundo das

fontes estáticas. O rouxinol poeta começava a cantar seu noturno de cristal. O último

verso do romance infantil flutuava entre as roseiras em flor. Se foram os meninos,

fecharam o jardim, que mergulhou em místico recolhimento, tal como se tivesse uma

57 Exuviável: adj mf, zoologia Que pode mudar de pele ou epiderme, sem mudar de forma. Nota do digitalizador.

http://www.dicio.com.br/ 58 Epitalâmio: sm Poema lírico lido, recitado em ocasião de casamento ou composto em louvor a ele. Nota do digitalizador.

http://www.dicio.com.br/

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alma religiosa, sob a beatitude de sonho lunar.

— Se eu tivesse um filho! E de quem?

Como um negro turbilhão voltou à realidade de sua vida lastimável. Aquela

interrogação macerante rompeu o cristal encantado de seu sonho.

Ao chegar à casa de prazer, Salto-Alto saiu a seu encontro.

— Andes, pequena, que um amigo está te esperando há mais de 1 hora.

Momentos depois, na alcova prostibular, um beijo grosseiro, entre baba e mordisco,

apagou de seus lábios o beijo doce de inefável iniciação, que deu com toda a alma, na

fronte dum menino, no florido idílio do jardim.

III

O lírio do anjo — Pra mim esta pequena dormiu no ponto. Espies que magrela está ficando, vomita

e tudo a faz enjoar. Pois olhes que em boa te meteste, ingênua!

A mãe, consternada, lhe cravava no rosto suas garras de harpia.

— Mas o que farás com a barriga na boca? E feita uma miniatura? Como te sucedeu

isso?, infeliz! E de quê viveremos quando os homens não puderem se aproximar de ti?

— Olhem que é de perder a cabeça! — Obtemperou Castanheda — Tenho visto

bobas, mas como esta...

O regime alimentício daquela honrada casa corria sério perigo por ter Angelina

ficado grávida.

— Te convenças de que isso não pode ser. É preciso fazer algo pra que não vá

adiante.

A menina teve um feroz gesto de pantera. Levou as duas mãos ao ventre, como quem

se defende, e brilharam as pupilas, com metálica fulguração de punhal.

— O quê?! Será que também não queres isso?, vagabunda. Tencionas deixar tua mãe

morrer de fome?, filha maldita.

E o valentão atenazou os braços da infeliz moça.

Todas as nobres rebeldias se lhe estrangulavam nalma, sufocadas pelo medo.

— É que isso me parece um crime.

— Ora essa! Se sai com cada uma! Como sempre andas lendo dramalhão. Pegaste a

doença da sensibilidade.

— Pois seja o que for. Me repugna fazer tal coisa.

A resposta foi uma tremenda bofetada.

— Farás o que me der na cachimônia,59

cadela!

E as mãos atléticas do rufião se descarregaram, brutalmente, muitas vezes, sobre a

cara de Angelina.

Interveio dona Virtudes e o segurou numa das munhecas:

— Não sejas animal!, homem. Estás lhe dando na cara e logo mais não haverá quem

olhe para ela. Farás o que quisermos. Não é?, minha filha.

Angelina chorava silenciosamente, bebendo a lágrima, e germinava no coração um

ódio negro, desesperado.

Só gozava um pouco de tranqüilidade quando, na madrugada, ao voltar a seu tugúrio,

ficava só, no meio da grande cidade silenciosa. Ia na rua, lentamente, com vagar de

sonâmbula, o pensamento cravado numa idéia fixa duma celeste inefabilidade.

Dentro de si pulsava uma vida que era carne de sua carne, sangue seu, alma de sua

alma! Não tinha pai: Era mais seu que os filhos das outras mulheres. Nada mais doce,

de mais intensa felicidade que quando sentiu em seu seio as suaves e primeiras

59 Cachimônia: Cabeça, cachola, juízo, vontade. Nota do digitalizador

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palpitações, o primeiro movimento do filho que trazia na entranha. Chorava muito

docemente, com pranto que eram estrelas nos olhos e flores no coração. E entre suas

lágrimas, possuída de milagroso êxtase, sonhava ver aquele menino louro do jardim,

que a fizera verter a primeira lágrima maternal, que lhe aparecia, todo branco e risonho,

cum lírio na mão.

IV

Água-forte — Pois é. Mas que má-sorte. Estás sempre marcada por esse sem-vergonha que vive

com tua mãe. E estás mantendo a ambos.

— O que deves fazer é vir. E que busquem a gororoba num quartel.

Angelina não respondia, absorta em sua vida interior. Não queria ir morar

definitivamente em casa de Felícia. Lhe dava medo a terrível cancela que separava a

casa de prazer da alegre liberdade do arreio. Lhe repugnava a vida em comum com

outras, entre obscenidades e brigas, aspirando continuamente o odor acre e violento da

carne desnuda, porque as cordeirinhas de Salto-Alto possuíam o gentil costume de

passear em camisa nas dependências ermida venusiana.

A vida prostibular durante o dia era densa, confrangedora.60

Os rostos sem pintura

tinham uma monstruosidade grotesca, sob as melenas cheirando a suor e a perfume

barato. Tombadas, com mutismo de bestas cansadas, cantarolando alguma copla canalha

e dolente como essas que ouvimos nas esquinas, com infinita angústia, alta noite,

quando as ruas estão mais solitárias.

Quanto dera pra viver sozinha, num quarto muito pequeno e muito branco, donde

visse apenas o céu azul, onde na manhã começasse a coser os trapinhos de quem viria,

límpido o coração e fortalecido pela esperança!

Mas aquele sonho tão lindo era irrealizável. Tudo o que ganhava era recolhido

diariamente por sua mãe, a recriminando se acaso a féria não era boa.

Odiava sua mãe e detestava visceralmente o rufião da velha. Porém lhes tinha um

medo supremo. Á! Sobretudo dele! Se ela o visse morto! As surras contínuas, os

insultos mansamente sofridos, sua pobre vida de mártir pela cobiça dos seus, pela

imunda luxúria dos estranhos! Jamais alguém a tratara com amor.

Desde muito pequena, apenas teria doze anos, sua mãe a levava a um café, a uma

tertúlia com os velhos libertinos, a fim de que se divertisse com eles. Viviam desses

miseráveis escarcéus de amor. Todos os dias tirava umas moedas à custa da prostituição

de sua alma. Antes do transbordamento da puberdade, sendo ainda virgem de corpo,

conhecia todas as caricias extenuantes. Aprendera a acender a voluptuosidade senil de

seus amigos com afagos vergonhosos. Tinha 14 anos quando dona Virtudes contratou o

sacrifício da primeira rosa de sua fresca roseira com um velho amigo que a estafou,

segundo a frase da honrada mulher, porque o sensual comprador, depois de se fartar

com a mocinha, não entregou a importância estipulada. Aquela fraude pôs em perigo a

preciosa vida da velha rameira, que até sentiu febre durante muitas noites.

— Imaginem, fugir em brancas nuvens aquele ladrão, filho duma cadela!

Sempre triste, maltratada, sofrendo o grosseiro capricho e o menosprezo dos que a

prostituíam, Angelina tinha a consciência nebulosa, e o coração cum doloroso farrapo

de bordel.

Muito preocupava os velhos amantes que a pequena estivesse grávida.

Dentro dum mês parecerá um fantasma. Muitos homens não gostam de mulher

assim. Castanheda duvidava:

60 Confrangedora: Opressora, angustiante. Nota do digitalizador

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— Tenho um pouco de medo de a fazer abortar. Podemos nos meter numa enrascada.

Pode morrer e então que teremos arranjado a bóia na colônia durante uma temporada.

— Exagerado! Nem que fosse a primeira que faz um desmancho. O diabo é que a

pequena tomou ódio à operação. Já falei com a parteira e me pede 15 mangos. É muita

gaita. Mas o principal é que consinta.

E Angelina consentiu.

Uma noitinha foram à casa da parteira, entendida em macumbas, hábil na

taumaturgia de beberagem e reza. No quarto andar duma casa duvidosa havia uma

tabuleta que rezava:

Sabina Roldão Alojamento pra embaraçada

Angelina e a harpia entraram numa sala obscura, de mobiliário ruinoso, suja e hostil.

Enormes passarocos dissecados se erguiam sob fanais de cristal. Um gato negro, de

olhos fosforescentes, um desses trágicos e demoníacos gatos negros, camaradas das

adivinhadoras do futuro, cruzou, fantasmagórico, ante as visitantes. Na casa havia um

silêncio profundo e carregado de receio, de turva inquietude. Rondava o espírito naquela

dependência, algo tenebroso e cheio de superstição. Dava medo olhar a lâmina

amarelenta dum espelho empoeirado, como se nele houvessem de se ver refletidas

carantonhas burlescas e perfis alucinantes como num cristal influído de magia negra.

Após curta espera se abriu uma porta, sem ruído, e apareceu ante elas uma figura

esquálida, amarela, alta e translúcida, vestida de negro como uma sombra de pesadelo.

— É esta a pequena que está em apuro?

A voz da bruxa parecia vir de muito longe. Era uma voz penetrante, fria e cruel. Os

olhos fitavam, hipnoticamente, desde as covas violáceas e estendia a mão ossuda, mão

de certa beleza mortuária, cum gesto profético.

Angelina sentia um terror infinito ante aquela sombra de mulher.

— Nada experimentaste pra abortar?

— Não, senhora. A pobre nada fez ainda. Essa criatura não pode nascer. Ela é da

vida. Seu estado afastaria os amigos e morreríamos de fome, pois não temos outra

fortuna além do que ela ganha honradamente. Mas deves nos fazer um abatimentozinho,

por caridade. Quinze cruzeiros é um sacrifício enorme. Não podemos.

— As coisas, pra serem bem feitas, têm que ser bem pagas. Poderia aconselhar uma

beberagem qualquer, como um cozimento de urtiga ou de espiga de centeio. Isso

custaria menos. Mas não garanto o resultado. Produz convulsão horrível na matriz e é

muito perigoso. Podia nos ficar entre as mãos.

Houve um silêncio glacial. Angelina sentia um estremecimento de terror até a ponta

das unhas.

— Quero examinar. Podes me fazer o favor?

A menina viu, com espanto, a mão esquelética, de dedos quimericamente longos, que

se afundavam em sua carne, trêmula de pavor. A mão gelada, adelgaçada pela

contorção, chegava até a entranha, com a suavidade dum réptil.

— Já deve estar completamente formado.

Angelina prorrompeu em soluço, convulsionada, morta. A bruxa sorria.

— E a senhora tem certeza de que não haverá perigo?

— Nenhum. Há dez anos que sou parteira e não tive infelicidade. Calculai as

mulheres que terão passado por minhas mãos!

— E usas sonda?

Sabina Roldão sorriu, orgulhosa de sua macabra destreza.

— Me bastam os dedos.

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Assim, arrancando aos pedaços, destroçando o cérebro, os olhos, os músculos, o

sangue inocente banhando os dedos esqueléticos, longos e amarelos da curandeira, em

que brilhava, sinistro, um rubi.

Aquelas palavras pareciam um salmo diabólico, tinham uma crueldade alucinante e

inumana.

— Pois se decidistes, aqui me tens a vossas ordens. Mas nem um centavo menos,

compreendeis?

Fez uma inclinação de cabeça e saiu da mesma forma que entrara, como uma

aparição.

Já na rua, Angelina pareceu despertar. Era uma noite de julho, toda estrelada, cheia

de jovial clamor de vida. A gente transbordava nas ruas.

— Nunca! Estás ouvindo? Nem que me façais em pedaços. Isso é um crime

horroroso! É uma infâmia monstruosa! Mãe desalmada! Canalha!

Angelina, transfigurada, com os olhos fulgurantes, cuspia as injúrias no rosto de dona

Virtudes, que, com ar de vítima, gemia a toda hora, escondendo seu perfil de harpia no

manto pardo e mal cerzido.

Passavam casais de namorados, se ouvia o pregão dum vendedor de flor, a noite

ardia em amorosa eclosão germinante.

V

A busca humilhante Compreenderam que seria impossível a fazer transigir. Não tornaram a lhe falar de

garrafada nem abortivo. Esperavam.

Angelina ganhava muito pouco. A curva maternal deformava a gentil figurinha,

engrossava a cintura quebradiça. Os amigos zombavam. No tugúrio durante muitos dias

faltou o que comer.

No anoitecer saía a passear o embaraço. A angustiava muito, estava pesada,

aborrecida. Sempre, ao fechar a porta, dona Virtudes clamava suplicante:

— Angelina, minha filha, não quero dizer que os vás pescar. Mas se te aparecer

algum homem... Bem vês como estamos.

E Angelina agora procurava os homens, se exibia, namorava, se dedicava à caça ao

transeunte voluptuoso com verdadeiro frenesi. Porém nada dizia à mãe e ocultava o

dinheiro, bem enrolado no lenço, pra que não tilintasse, durante o dia no peito, sob o

colchão na noite.

Guardava pra seu filho, se entregava ao capricho dos homens quase por gosto, pra

depois fugir com seu filhinho a tentar outra vida, longe de sua mãe e do rufião, longe da

tristeza do bordel.

Ia a um desses cafés de bairro, onde troa uma banda de regimento. Tomava um copo

de leite e escolhia, entre os paroquianos, o mais propício pra atirar seu laço galante. Era

uma faina de sorriso, de piscadela, de olhar. Quando um senhor se insinuava, ela punha

os olhos em branco, umedecia os lábios com a pontinha da língua, ou subia um pouco o

vestido, exibindo a barriga da perna, com o lavrado incitante das meias de seda.

Algumas vezes triunfava. Quase sempre fracassavam as piscadelas e trapaças, e ao sair

do café não a seguia algum. Perdera a noite e, tristemente, de cabeça abatida, voltava a

sua enxovia,61

onde a mãe passava as cruzes dum rosário e dormia o leão-de-chácara,

curando uma das suas habituais bebedeiras.

Uma noite esbarrou cum amigo e o conquistou. Era um senhor velho e pudico, que

não queria ser visto com mulheres na rua. Iam, ela adiante e ele atrás, na outra calçada,

61 Enxovia: Prisão profunda, escura e úmida. Masmorra. Nota do digitalizador http://www.kinghost.com.br/

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como um bom burguês que se deliciava com o fresco da noite, a caminho duma guarita

de prazer, quando se encontrou com o menino das olheiras, que a tomou no braço.

— Me deixes, que irei com aquele gorducho. Me deixes.

— Conseguiste frete, beleza. Pensei que estavas aposentada.

E o cafifa62

não se acanhou de ir atrás deles, os viu se perder num portão escuro. E

aguardou passeando na rua.

Decorrida meia hora, soou a campainha da porta e saiu o casal. Na praça das

Descalças alcançou Angelina.

— Estava te esperando. Sabes? Como vi que ias de serviço...

— O que queres?

— Pouca coisa. Um favorzinho: É que necessito de duas pilas pra ir ao baile de

Padeiros, onde me esperam, e... estou a néris.63

Angelina respondeu, azeda, querendo ir embora:

— Não tenho dinheiro. Sinto muito.

— Então não te explicas? Mas se te vi cum michê,64

coração.

— E o que tem isso? É um capricho.

— Agora sim, me desiludiste! Logo cum velho daquele.

— Há gosto pra tudo!, meu filho.

— O que haverá são murros. Andes! Soltes as duas pilas — E lhe meteu a mão no

bolso — Pro trabalho que te custa ganhar...

— Mas, a troco de quê te darei dinheiro? Acaso és meu amante?

— O que mais querias? Sua tísica! — E forcejava pra tirar o porta-moeda, que no

desenrolar da luta se abriu,deixando cair uma moeda de cinco pesetas, que rolou no

calçamento. O menino das olheiras correu atrás. Ela se atirou sobre a mão do cafifa, o

mordendo, cravando as unhas.

— É minha! Ladrão! É minha!

E o rufião, danado peles arranhões, temendo que viesse alguém, a segurou no

pescoço e bateu com a cabeça na grade do jardinzinho.

— Tomes, pra que não grasnes mais!

Depois fugiu com o dinheiro, nas vielas em penumbra. Quando a moça voltou a si,

começou a andar, com o rosto ensangüentado, angustiadamente, como um pobre animal

sovado.

VI

Junto à roda

Noite outonal. No postigo se via o céu profundo, sem estrela. Plangia o vento nas

janelas.

Angelina dormia, muito pálida, muito franzina, com as mãos cerúleas e os lábios

cárdeos.65

Junto de si um menino lourinho e branco, que vagia brandamente. A velha

velava, sentada sob o candeeiro de ferro, empoeirado. No tapume se projetava a sombra

de seu nariz de áugure e a barbeta enganchada.

Ao resplendor avermelhado da chama, o quarto era mais sinistro, duma pobreza mais

sórdida. — Angelina, estás dormindo?

62 Cafifa: smf, brasileiro Pessoa azarada no jogo ou a quem o jogador atribui sua má-sorte. Nota do digitalizador.

http://www.kinghost.com.br/ 63 Néris, neres: adv popular Nada. Neres de biribitiba, nerusca, neres de neres, Neres de pitibiriba, patavina. Nota do digitalizador.

http://www.dicio.com.br/ 64 Michê: sm Ação de se prostituir. Pagamento que recebe a prostituta. Nota do digitalizador. http://www.dicio.com.br/ 65 Cárdeo, cardão: adj Da cor da flor do cardo, azul-violáceo. Nota do digitalizador. http://www.dicio.com.br/

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A enferma não respondeu. Se ouviu a voz do velho rufião:

— Não há perigo de acordar. Acho que devemos agir o quanto antes.

A velha murmurou:

— Pobre filha! Receio que lhe dê algo ao despertar sem a criaturinha. Por que não

ficas?

— Não é por isso. Pode lhe dar histeria e armar um salseiro.

Dona Virtudes murmurou:

— Quando vir que não há remédio, se conformará. Depois, sigilosamente, se acercou

do leito e tomou o recém-nascido, que abriu os olhos e começou a chorar.

— Te cales, maldito!

E lhe tapou a boca com o xale.

De pontinhas, muito embuçada, ganhou a porta, seguida de seu amante. Cruzaram a

porta dos Mouros, a Fontezinha, e se perderam nas vielas tortuosas e sujas, até a de

Embaixadores. A casa dos Expostos! O pardo casarão era uma massa de sombra na

alegria e bulício da jucunda rua grã-finizada.

— Escutes, sinto um pouco de vergonha. Fico esperando por ti nessa taberna,

tomando um vermute.

Havia muita gente na rua e na porta das lojas. Regressavam a suas casas as

operariazinhas, com seus andares de pássaro, envoltas em xale, pitorescas e

conversadeiras. Algumas comadres palravam nos quícios.66

Os sinos de São Caetano

soavam lentos, plangendo as Vésperas. Junto do grande portão da Maternidade, no

muro, se abria a roda. Ó, abertura da casa de Expostos! Porta da desgraça, do abandono,

do horror das vidas afrontosas! Ali se sepultam os filhos do amor. Assim diz a voz do

povo. Talvez os outros, os legítimos, sejam, acima de tudo, filhos do dever. Pelo

torniquete saltam dos ingratos braços maternos à miséria, ao olvido, à fria caridade

oficial, à solidão do amor. O torniquete da casa de Expostos nos diz que a humanidade é

uma coisa perfeitamente desprezível e repugnante. Os animais inferiores não têm roda

pra seus filhotes.

Soou a campainha, com um toque lúgubre e prolongado. Cessou a algaravia das

comadres, se agruparam os tendeiros, os viandantes.

Junto do torniquete, entre as sombras, esperava a velha, cheia de inquietação.

Tardavam tanto em abrir! Tornou a soar a campainha trágica.

Com clamor hostil, de turva ameaça, o povaréu foi rodeando a velha, que se

encolhia, medrosa. As mulheres falavam forte, com voz de injúria, cintilante nos olhos o

instinto, como um protesto da espécie.

— Grande cachorra será a mãe!

— Parece mentira que haja mulheres pra isso. Não terão entranha!

— Megera ordinária! Arrojar assim um filho! Pois quando o fizeste deves ter

gostado! Mereces a forca!

— Assim lhe sequem os olhos! Há piores que as mulas.

— Com o sacrifício que custa os trazer ao mundo!

O cordão agressivo se estreitava mais e mais. A velha chorava.

— Olhai a bruxa que o traz. O terão dado pruma roupa. É capaz de ser duma

marquesa, que o teve de contrabando. Vagabunda! Que não fosse desonesta!

A voz do povo era, então, a voz de Deus.

A maldição surgia do fundo da entranha das mulheres ante a abominação, com

iracúndia sagrada.

Rangeu o torniquete e cresceu o clamor público. A velha estendeu a criancinha prà

deixar no berço de madeira, quando se ouviu um grito, como um alarido selvagem, e

66 Quício: sm Gonzo de porta. Nota do digitalizador

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umas mãos espectrais se apoderaram, freneticamente, do menino.

Tela desgrenhada, como um espectro, lívida, Angelina fugia com seu filho. A gente

lhe abriu passagem com silêncio compreensivo, com respeito quase religioso:

— Meu! Meu! O filho de minha entranha.

Sua voz tinha uma angústia profunda, uma inefável emoção, como banhada em

pranto.

Desfalecente, febril ao chegar a uma pracinha, se deixou cair num banco. Pensou,

com horror, no perigo conjurado. Que dolorosa emoção ao despertar em seu tugúrio e se

encontrar sem seu filhinho. Que angustioso êxodo até chegar ao torniquete da casa de

Expostos!

Sorriu docemente. Já não tornaria a ver a velha e o rufião! Se afastaria a sempre da

tristeza do bordel!

Depois desabotoou o corpinho e pôs o seio branco e ubérrimo nos lábios do

pequerrucho. Tinha o grupo a angélica doçura dum quadro sagrado. Ao longe se via a

cidade, alegre e acesa como um flor luminosa de otimismo.

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A morte embelecida de Miguel

Cortemare Pierre Frondaie

uando pronunciei o nome de Miguel Cortemare, o rosto de Antonina

Bargès tomou expressão de paixão equívoca. Melhor que uma resposta,

me forneceu a prova de que a comediante amara esse sedutor. Sem

dúvida, poderia me esclarecer sobre seu romanesco desaparecimento. Era preciso

somente a induzir à confidência.

— Miguel Cortemare! Seis sílabas que, pra mim, representam um mundo hoje

extinto. Toda uma época de encantamento frívolo e profundo, heroísmo cotidiano,

delicadeza, elegância, amor!

Antonina Bargès pronunciara essa palavra com delicioso estremecimento. Sorridente,

distante, dava a impressão de escavar o passado, de encontrar ali, numa poeira

esquecida, pérolas puras. Polidamente insistente, voltou ao assalto das últimas reservas:

— Miguel Cortemare já era velho quando o conheceste? 60 anos ou mais?

— 64.

— E eras jovem?

— Acabava de deixar a comédia. Foi em 1895. Seu instinto advinha o mistério e não

te atreves a me interrogar. Estás errado. A ti, meu amigo mais querido, direi tudo:

Miguel Cortemare deixou de existir precisamente na hora escolhida por mim. E sua

partida foi magnífica, sem séquito desprezível, entre adornos bem plantados, ao clarão

do luar.

Eu observava Antonina Bargès enquanto a extraordinária confissão se lhe evolava

dos admiráveis lábios. Certamente, nenhuma perturbação em si. A emoção que a

princípio eu provocara, atirando de improviso o nome de Cortemare, a emoção fugidia e

sempre terna passara. A comediante sorria, orgulhosa dos dentes brilhantes. Estávamos

no centro de delicioso parque. A 100m, sorria a vila, sob delicado véu de glicínia. Se

ouvia, às vezes, muito perto, à esquerda, o apito estridente dum trem de subúrbio, indo a

Paris... Antonina Bargès falou:

— Recordarei sempre a primeira vez que vi Miguel Cortemare. Foi numa festa dada

por marquês de Marseville, em São Cláudio. Na meia-noite a personagem de que

falamos se apresentou, seguida de longo murmúrio de admiração e de simpatia. Eu a via

com os olhos povoados de visão. De tal maneira ouvira proclamarem suas vitórias sobre

minhas irmãs idosas de toda parte, de tal modo soube que ninguém, durante perto de

meio século, lhe fora rebelde, que em torno de si minha imaginação criava todo um

cortejo feminino. Aliás, apesar dos sessenta, Cortemare continuava esplêndido, com o

corpo vigoroso e flexível, qual o dum pastor na juventude. Seu rosto afrontava as rugas.

Havia no olhar desse dom-joão toda a delicadeza moderna e os reflexos da cavalaria. O

que mais dizer? Quando regressei a minha casa o pensamento do herói não me

abandonou mais. Procurava a ocasião de o encontrar, no teatro, num jantar, não importa

onde! Tentativas inúteis. Miguel Cortemare partira às Índias longínquas, precisamente

no dia seguinte à vesperal em casa de Marseville. Então, definitivamente, fui

conquistada, enfeitiçada por esse vencedor, sem saber. Tudo o que disseram,

escreveram, espalharam a seu respeito desde os trinta anos, me foi transmitido não sei

como, por meus amigos. O maravilhoso instinto de Paris me auxiliou. Minha paixão foi

alimentada, supernutrida pelos cuidados de todo mundo. O ruído de minha loucura

chegou até Cortemare. Envaidecido por esta derradeira fortuna, logo que regressou à

QQ

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França e me foi apresentado, me fez proposta de amor.

— Não duvido que foi atendido.

— Não. Eis justamente o drama! Tive, logo ao ver Cortemare, um estranho

sentimento de mal-estar. Durante a viagem sua velhice aparecera, sorrateiramente. O

percebi na primeira vez que se ajoelhou em minha frente. Pra se endireitar, se sentiu

incomodado. Suas articulações estalaram. Assim como a madeira seca ao se aproximar

o inverno. De pé, dom-joão enfunou o peito inutilmente: Era muito tarde! A grande

miragem do passado se extinguia em mim!

— Pobre homem!

— Não é verdade? Alguns dias depois, era outono, despedi Cortemare, abalado por

uma recusa que ele não sabia explicar. Através de minhas janelas, eu o via partir. Na

rua, se julgando livre, caminhava um tanto curvado, com o corpo tragicamente fatigado

na tarde melancólica, no meio do remoinho das folhas mortas. Estremeci. Aquele

vencedor vivera bastante. Sem dúvida logo compreenderia sua decadência repentina,

seu coração sangraria nas mesmas feridas, à maneira dos grandes crepúsculos morosos

que se ensangüentam quando o sol descamba. Então meu amor de moça decidiu que

Miguel Cortemare devia morrer dum só golpe, como se tomba na batalha.

Estupefato, interrompi Antonina Bargès.

— É exato que deste cabo dele?

— Sim. Havia muito tempo eu conhecia um aventureiro pronto pra tudo, porém

bravo, e que, seja à espada ou à pistola, jamais falhava no golpe. Comprei seu talento a

preço de ouro. Tudo foi combinado de antemão entre nós, como um desfecho de teatro.

Certa noite, em meu apartamento, o espadachim, bem ensaiado, me faltou com a polidez

diante de Cortemare, que o esbofeteou. Eu sabia o resultado da aventura. No dia

seguinte, às 5h, ele se bateram em meu parque, justamente no local em que estamos,

sobre a relva que vês. Cortemare foi ferido como eu premeditara, conforme eu pagara

pra que fosse de morte! E ao cair da noite, enquanto a Lua subia nas árvores, expirou

em meus braços, bendizendo o destino, feliz em morrer como vencera, por uma mulher,

por todas as mulheres. Se cometi um crime, o suporto com alma leve. O beijo de meus

lábios na fronte de Cortemare moribundo foi nobre como o adeus da Beleza

Antonina Bargès se calou. Eu estremecia, porém ela já me oferecia o chá.

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O terceiro lado do triângulo André Birabeau

camareira acabava de conduzir senhorita Mado Love, que parecia

muito intimidada, à presença de senhora Bellaine. Certamente Mado é

uma jovem galante e senhora Bellaine é uma mulher do mundo, mas

não é isso o que a pode fazer ficar confusa. Não é de natureza tímida, tem uma posição

bastante elevada na vida galante pra se sentir sempre cheia de orgulho, e as mulheres do

mundo, no tempo que corre, não são mais impressionantes. Não, se ela se sente

acanhada é que... De resto não temos mais que a escutar: Está dizendo por quê.

— Agradeço teres me recebido, senhora. Como te fizera compreender via telefone, se

trata de coisa extremamente importante pra mim. Me sinto um pouco embaraçada pra

começar, porque é muito delicado. Afinal, se não quiseres me responder, não me

respondas. Vejamos, senhora, se eu estivesse a contratar uma cozinheira, um chofer, que

tivesse estado a teu serviço, e viesse te pedir, confidencialmente, informação, darias.

Não é verdade?

— Decerto. É uma coisa muito grave admitir em nossa casa, em nossa intimidade,

alguém que não conhecemos.

— Não é verdade?, senhora. E a quem é impossível julgar à primeira lista, nem pelo

que nos diz. E de quem não se sabe o que pode ser em tal ou qual circunstância. Entre as

mãos de quem a gente se entrega, afinal, e que pode ser perigoso.

— Tens razão, senhorita. E estou pronta a te dar, com toda a sinceridade, toda

informação que desejares. Acabo, em efeito, de mudar de camareira. Se trata de Léonie.

Não é verdade?

— Não, senhora, se trata de Luciano. O senhor Luciano Bergue, que gostaria de

entrar em minha casa como amante.

— Não compreendo, senhorita.

— Compreendes, mas me deixes explicar tudo. Eu tinha como amigo um cavalheiro

muito distinto, muito elegante, muito desembaraçado, muito generoso, somente estava

metido em alto negócio e acontece que está na cadeia. O conheces, de resto. Jantou

muitas vezes em tua casa. É senhor Bolden. Seus aborrecimentos não irão durar muito,

decerto, mas enfim, por enquanto seu lugar junto a mim está livre. Senhor Luciano

Bergue se apresentou. Não me desagrada, estamos de acordo quanto à condição.

Somente não o conheço. Não conheço mais que a aparência. O que me diz de si, o que

me mostra de seu caráter, é perfeito. Mas sabes, tão bem quanto eu, que um homem

antes de nos ter possuído não é o mesmo depois! Ora, senhora, o que dizíamos dos

criados ainda agora, é ainda mais verdadeiro dum amante: Quando se trata de admitir

um desconhecido em nossa casa, todas as precauções são poucas. Por isso vim pedir

informação.

— Infelizmente, senhorita, não estou em condição.

— Está, sim, senhora. Estou bem a par. Imaginemos que se trata dum camareiro. É

mais ou menos isso, aliás, e poderemos falar mais livremente. Sei que Luciano esteve a

teu serviço de dezembro de 1927 a fevereiro de 1929.

— Quem te disse isso?

— Ele. Mostrou cartas tuas.

— Então, há um lado de seu caráter sobre o qual estás bem informada: Não podes

mais ignorar que é um patife.

— Sim, mas isso não me preocupa. O que me aperreia é saber se é, como direi?,

pacífico ou violento. Desde que se absolvem todos os crimes passionais, juro que é bom

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pensar duas vezes antes de brincar com o amor! Quando chega o desgosto, o que se

puxa do bolso não é mais o lenço e sim um revólver. E nem é mais uma questão de

idade: Os amantes mais sérios matam como qualquer jovem apaixonado. Deus me

perdoe, os velhos atiram pra dar a impressão de serem moços! Dar o corte, agora, quer

dizer retirar os cartuchos da pistola! Pois bem, tenho amor à vida. Não quereria estar

exposta a tal desregramento. E o que venho perguntar é exatamente o seguinte: Como se

comporta senhor Luciano Bergue quando é enganado?

Senhora Bellaine hesitava entre se zangar e desatar a rir. Enfim tocou a campainha. E

não foi pra pôr Mado na rua, mas sim pra mandar servir o chá.

— Contarei uma anedota. Julgo que bastará. Um dia senhor Bergue entrou, de

improviso, num quarto onde tinha algum direito de entrar. Na cama havia uma pessoa a

mais. Houve um minuto de silêncio e de imobilidade entre as três personagens. A dama

não se sentia à vontade, o jovem estava bastante inquieto. Quanto ao senhor Bergue... É

um pouco míope, como sabes, e então se voltou um pouco, olhando no vácuo, e disse:

Bom dia. Onde estás? Esqueci os óculos no sobretudo, e não vejo dois palmos adiante do nariz. E saiu pra ir buscar os óculos, fingindo se esbarrar nos móveis. Voltou quando compreendeu que eu tivera tempo de fazer desaparecer o jovem. Posso

acrescentar que, que eu saiba, todas suas amantes o enganaram e não me parece que se

tenham saído mal. Ao menos por causa dele.

— É o homem que me convém! — Exclamou Mado, com força.

E as duas tomaram o chá, tagarelando.

E na primeira vez que senhor Luciano Bergue reviu Mado, teve a agradável surpresa

de encontrar uma pessoa não mais evasiva e de prevenção, mas relaxada, simpática e

acolhedora. Ela lhe disse:

— Me agradas muito. Tenho confiança em ti. Tudo o que sei a teu respeito me

encanta.

Senhor Bergue corou de satisfação e orgulho.

E pouco tempo depois, teve, pra empregar a expressão de senhora Bellaine, direito a

entrar no quarto de Mado.

Entrava nele da maneira mais delicada do mundo. Quero dizer: Depois de se fazer

anunciar.

Se percebia que era um homem de experiência. O telefone lhe parecia inventado e

colocado em cima das mesas de propósito, pra que um cavalheiro sério possa dizer a sua

amiguinha: Chegarei pra te visitar daqui a um quarto de hora. Tinha sempre um

pequeno acesso de tosse antes de abrir uma porta. E a alguém que lhe perguntava uma

vez: Por que não usas sapatos de sola de crepe? respondera: Não foram feitos pra mim.

Um homem muito agradável, enfim, como se pode ver.

E Mado era a mais feliz das mulheres. Experimentava um sentimento delicioso e tão

raro: O sentimento da tranqüilidade. Que outras se rejubilem de viver perigosamente e

só se sintam satisfeitas quando têm pimenta em cima da mesa! Mado se contentava em

se expandir livremente, sem cálculo e sem receio. É algo, na verdade, poder dizer

consigo: Se eu tiver um amante e meu amigo souber disso, não levarei tiro. Não haverá um homem ensangüentado em minha cama. Meu quarto não será invadido pelos policiais. Não terei necessidade de comparecer aos tribunais. O que querem? Nem toda gente gosta dos tribunais. Mado é uma mulherzinha loura,

bastante rechonchuda, que gosta de sono demorado, bom jantar, chocolate com torrada e

quimono folgado.

Por isso não se sentiu grandemente comovida quando ouviu se abrir a porta do quarto

num dia em que, ainda para falar como a senhora Bellaine, na cama havia uma pessoa a

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mais. Contrariada, decerto, porque era bastante aborrecido dar a um homem como

senhor Bergue um espetáculo tão desagradável, mas não comovida. Sem dúvida, senhor

Bergue tossira, como de costume, antes de abrir, mas há momento, não é verdade?, nos

quais os ruídos do mundo não se nos tomam mais perceptíveis. Se endireitou,

envergonhada mas tranqüila, e esperou o que ele diria.

Á! Não esperou muito! E o que ele disse não foi o que ela esperava. Disse os mais

abomináveis grosserias, dessas que um furor súbito faz brotar da entranha dum homem

alucinado. E fez mais: Tinha uma bengala na mão. Tanto na personagem que estava a

mais na cama de Mado quanto na própria Mado, bateu, bateu, até que a bengala se

quebrou.

A personagem fugira, bastante maltratada. Bastante mal-tratada também, Mado

gemia. Arranhões lhe punham no rosto mil picadas ardentes, as espáduas estavam

doloridas, sentia, aqui e ali, a carne inflamar e sobre o seio moço dois ou três círculos

roxos circundavam o círculo cor-de-rosa que era o natural ornamento. A seus pés senhor

de Bergue soluçava.

— Perdão, perdão. — Gemia ele — Fui um louco. Todas minhas amantes me

enganaram, e eu nunca dissera algo. Isso nunca me fizera impressão. Isso nunca me

acontecera. Quer dizer, sim: Na primeira vez. A primeira amante infiel que surpreendi,

foi a mesma cólera brusca: Quebrei uma perna do amante e três dentes dela. Mas depois

disso, nunca mais... Á! Mas eis, já compreendo tudo! Sim, sim. É isso. Explicarei. É que

sempre, sempre, minhas amantes me enganaram com o mesmo tipo de homem. Todas

às vezes que encontrei um amante nos braços duma das minhas queridas, era um jovem

moreno, de olhos pretos, pele lisa e escanhoado. Evidentemente, se os pusessem juntos,

lado a lado, encontraríamos diferenças entre si, mas cada um em separado, era o mesmo.

Então, acabara me habituando. Compreendes? Raciocinara. Minhas amantes, também,

se pareciam entre si. Eram todas como tu, louras, rechonchudas e um pouco moles. E eu

não fazia de propósito pràs escolher assim. Era necessidade de minha natureza. Então eu

acabava por admitir que certa lei, contra a qual eu nada podia, queria que eu escolhesse

amantes louras e rechonchudas e que essas mulheres tivessem necessidade de moços

morenos, de olhos pretos, pele lisa e escanhoados. Era uma lei física, uma necessidade

orgânica, um fato inevitável e científico, que ia além de minha vontade e tornava inútil

revolta. Me inclinara, como se aceita a conformação do próprio rosto ou as exigências

do próprio corpo. E juro, quando via na cama duma das minhas amantes um jovem

moreno, de olhos pretos, pele lisa e escanhoado, nada sentia! Mas hoje, o homem que

estava em tua cama era louro, de olhos azuis, pele branca e barbado. E fui tomado da

mesma fúria que na primeira vez. Compreendes?

Mado abriu um olho tumefato:

— Sim, sim. Mas nesse caso se previne!

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O home Auguste Bailly

ram suas memórias que Ana de Kériven redigia, entretida, com ardor que a

desprendia da vida presente. Não ouvia os ônibus que, descendo e subindo a rua

da Bomba, paravam e tornavam a perna rangendo diante da porta do home.67

Não via, através das vidraças, o jardinzinho retangular onde quatro castanheiros

ofereciam sombra aos pensionistas, onde os lilás que escondiam os muros

desabrochavam as primeiras flores. Outra primavera, mais ardente e mais emocionante,

ressurgia nela, com todas as galas. Escreveu:

— Eu alcançava quinze anos quando tive a revelação do amor.

Nesse instante, bateram à porta.

— Entres!

Esbelta, risonha, rigorosamente trajada de preto, tendo como único enfeite uma gola

de piquê branco, o cabelo louro preso numa rede, Olga Smirnov, sua secretária, entrou

no aposento cuja porta fechou após si.

— Lá fora está um sacerdote, senhorita, que deseja te ver.

— Um sacerdote? Um sacerdote que quer tomar pensão?

— Não sei. Disse que se chama Abade Jégou, secretário de monsenhor le Gallo,

bispo de Dinã.

Ana de Kériven se ergueu a meio, muito comovida.

— De Dinã? Minha diocese! A diocese de todos meus antepassados! Mandes entrar,

minha filha, mandes entrar!

Sentado na borda da cadeira, com as mãos cruzadas sobre os joelhos, de olhos

baixos, o abade Jégou deixava filtrar, entre os lábios apertados, uma voz melodiosa e

sussurrante. Começou a transmitir a senhorita de Kériven as fiéis e afetuosas

lembranças de monsenhor. Depois se congratulou pela honra que lhe era concedida.

Saudava, respeitosamente, a última representante duma família nobre que...

— Família bem decadente! — Suspirou Ana de Kériven.

— Do ponto de vista temporal, querida senhorita, unicamente do ponto de vista

temporal! Porque sabemos que as virtudes cristãs de teus avós revivem em ti, e o solar

de Kériven permanece como testemunha das glórias passadas!

— Que pena! Não mais me pertence. Não ignoras, senhor abade, que a fim de pagar

a dívida de meu pobre pai, precisei vender o castelo e o domínio a um fabricante de

conserva. A descendente dos condes de Kériven, pra ganhar honrosamente a vida,

consagrou o que lhe restava à compra e instalação duma pensão familiar!

— Aliás, é, de certo modo, por causa disso que Monsenhor me incumbiu de te

procurar. Minha missão é, como direi?, diplomática! Sim. Diplomática, em certo

sentido.

— Expliques, senhor abade. — Disse Ana de Kériven, surpresa e assustada.

— Não te inquietes, querida senhorita! Tal missão nada tem que não seja honroso e,

afinal, lisonjeiro. É o seguinte. Hem? Sim. Muitas vezes as famílias mais respeitáveis

contam entre seus componentes, hem! ovelhas desgarradas. E a família de monsenhor

não escapa a essa lei, infelizmente! Tem um sobrinho, evidentemente tudo deve ficar

entre nós!, um sobrinho chamado Pedro le Gallo, cuja mocidade foi tempestuosa. Desde

67 Home: Casa, lar, família, pátria, cidade ou terra natal, habitáculo, ponto de origem, sede, centro, estabelecimento, instituição,

asilo, abrigo, [...] IV vt dar moradia, alojar, conduzir até a casa. No texto se trata de evidente anglicismo, já que não se encontra o

vocábulo em francês. Nota do digitalizador. Dicionário inglês-português Barsa 1973

EE

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a adolescência se entregou ao demônio do jogo com paixão perigosa, tanto mais

perigosa, sob certos aspectos, que uma extraordinária habilidade manual lhe garantia

lucro constante. Assim, graves incidentes ocorreram, sobre os quais não insisto. Pra

resumir, mal atingiu a maioridade, Pedro le Gallo teve de se engajar na infantaria

colonial.

Ali passou quinze anos e acabou de voltar à vida civil. Mas temos todos os motivos pra crer que se corrigira e que não mais é o mesmo homem! Se tratava, contudo, de lhe arranjar uma colocação. Monsenhor conseguiu o empregar como vendedor em casa dum negociante de automóvel. Pedro le Gallo tem excelente aspecto, amável e mesmo, como direi?, de certo modo, sedutor. Portanto, pode lograr êxito.

Em sua bondade paternal, monsenhor resolveu lhe garantir, ainda por cima, casa e comida, sob condição de ser escolha sua a casa que receberia seu parente. Resumindo, querida senhorita, me compreendeste: É em tua casa, nesta residência tão apropriadamente chamada o home, que monsenhor deseja ver o sobrinho instalado. Estaria aqui em terra bretã, se me atrevesse a o dizer, encontraria em ti exemplo de todas as virtudes e, caso queira lhe manifestar alguma benevolência, seria isso, pra ele, um inapreciável benefício espiritual.

Por outro lado, sua clarividência poderia não ser inútil. Não se trata, naturalmente, de espionagem nem de vigilância, mas de, como direi?, de solicitude! Uma solicitude toda familiar que, se preciso fosse, te deixaria em condição de comunicar a monsenhor o que julgasses oportuno comunicar.

Senhorita de Kériven acompanhara com atenção comovida as palavras do abade, que

tocava as fibras mais delicadas. Salvar uma alma!

— Certamente! Certamente, senhor abade! Transmitas a monsenhor minha anuência

e agradecimento. Serei o que deseja que seja: A irmã mais velha de Pedro le Gallo.

Quando ele entrou no escritório da proprietária e se apresentou, senhorita Ana o

olhou com espanto tão pouco disfarçado que ele perguntou, surpreso:

— Não me esperavas?, senhorita. Eu pensava que tudo estivesse combinado!

Ela se dominou imediatamente.

— Pois não! Pois não! Sim, te esperava! Fui informada por monsenhor. Te rogo que

não te zangues! Mas te pareces tão pouco com todos os teus!

Ele começou a rir.

— Á! É isso? Esperava ver um le Gallo do tipo padrão, de cabelo cor de palha, olhos

azuis, baixote, de ombros caídos? Estás decepcionada?

— Ó! Decepcionada! Como podes dizer isso? — Murmurou, faceira — Surpresa,

sim. Tola e agradavelmente surpresa. Um le Gallo moreno, de olhos pretos, confesso

que isso é quase paradoxal!

Exemplar único, querida senhorita. — Disse ele, familiarmente — Certamente uma

de minhas avós concedeu favor a algum capitão espanhol: Carrego os sinais de seu

pecado. Sem dúvida, meu venerado tio te preveniu de que minha alma ainda é mais

negra que minhas pupilas.

— Não acredito nisso! — Suspirou senhorita Ana, conquistada.

E acrescentou, impulsivamente:

— Tenho certeza de que seremos amigos!

Pedro le Gallo sorriu, com um sorriso um pouco enternecido, quase ingênuo. Essas

poucas palavras bastaram. Julgara Ana de Kériven, a sentia cheia de simpatia e adotava,

instintivamente, a atitude que a devia prender.

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— Se me julgas digno de tua amizade, pra mim será uma alegria imensa e a desforra

mais preciosa. Mas não te entregues aos impulsos de tua generosidade, senhorita, peço.

Na vida é preciso ser desconfiado e duro. Sou um forasteiro, um desconhecido. Me

trates nessa qualidade até o dia em que tiver certeza de eu merecer mais.

— Certeza? Já tenho! Minha intuição nunca me engana.

E acrescentou, baixando os olhos:

— As intuições duma mulher, sabes...

Três pancadas leves mas resolutas interromperam essa efusão.

— Entres! Entres.

Olga se limitou a abrir a porta.

— Devo mandar subir a bagagem do cavalheiro, e a levar ao quarto?

— Certamente, minha filha, certamente. — Respondeu Ana, apressada — Eu

chamaria agora mesmo. Mas primeiro as apresentações. Senhor Pedro le Gallo, meu

compatriota, sobrinho de monsenhor, a respeito de quem falei. Senhorita Olga Smirnov,

minha secretária e meu braço direito.

Olga respondeu ao cumprimento de le Gallo, sem estender a mão nem olhar, com

simples aceno de cabeça.

— Queres me seguir?, senhor.

Enquanto ela subia a escada na frente, ele observava, como um conhecedor, o andar

flexível daquele corpo esbelto e harmonioso, as compridas pernas de dançarina, duma

linha tão pura, a massa cintilante do cabelo dourado preso numa rede de larga malha.

Pensou:

— Upa!

Essa simples palavra resumia eloqüentemente, pra si, toda sua impressão.

Indiferente e polida, Olga abriu a porta do quarto, se afastou pra o deixar passar,

chamou a atenção sobre a vista que dava ao jardim, se ofereceu pra modificar a

arrumação dos móveis caso o desejasse, finalmente indicou o horário das refeições, sem

que seu olhar se deixasse surpreender. Pedro sorria levemente. Disse, afinal:

— Agradeço. Tudo está muito bem. Depois, em tom negligente, perguntou:

— És estrangeira?, senhorita.

Então ela ergueu os olhos a ele e, durante um segundo, ele se sentiu, medido e

julgado.

— Sou russa.

— E, sem indiscrição, por que te meteste neste buraco? — Perguntou, a meia-voz.

Ela o olhou outra vez, sorriu imperceptivelmente e levantou os ombros.

— É preciso viver.

Ele começou a rir.

— A quem estás dizendo? Pois bem! Procuraremos viver! ●

Começou então, a senhorita de Kériven, um período de felicidade indefinível. Tinha

a impressão de se banhar fisicamente nele: Era uma atmosfera que a envolvia. Uma

água cariciosa que a carregava, imaterial, flutuante, toda entregue.

Um acaso miraculoso acabava da a fazer conhecer, de aproximar dela, de fazer

participar de sua vida aquele com quem sonhava desde seus mais distantes anos.

As duas refeições que Ana fazia com ele, no meio-dia e na noite, quando ele voltava

do trabalho, constituíam pra ela instantes de perfeita alegria, cotidianamente renovada,

que o hábito, bem longe de embotar, exaltava e aguçava mais. No começo, ela indagara

a si se sua secretária monopolizaria a atenção do hóspede: Tinha 25 anos e era

inegavelmente linda. Mas essa inquietude durara pouco.

Olga Smirnov não procurava atrair a homenagem do novo pensionista, e ele

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manifestava cortesmente essa consideração respeitosa que revela completa indiferença.

Senhorita de Kériven chegou a recear que o tom rigorosamente social das poucas

palavras que trocavam acabasse pesando sobre as refeições, tomadas em comum, uma

atmosfera um pouco protocolar. Uma vez que ela nada tinha a recear da jovem russa,

queria que a ajudasse a fazer Pedro falar, a o distrair, a tornar a vida dele agradável. E

decidiu dar a entender isso.

— Como és fria com nosso comensal!, minha filha. Compreendo muito bem que em

tua idade, em tua situação, tenhas o cuidado de manter os homens a distância, e de não

dar oportunidade a mal-entendido. Mas creias: Se pode ter confiança em Pedro le Gallo.

Sei que sofreu muito. Merece nossa simpatia. Aprecio a razão de sua frieza, minha filha,

aprecio muito, mas talvez seja excessiva. Poderia preocupar nosso hóspede. Então. Ó! É

uma nuança apenas, estás me compreendendo? Não poderias ser um pouco mais... um

pouco mais... dada?... um pouco mais... camarada? Sim, é isso: Camarada. Eis a

palavra! Estou certa de que ele seria sensível a isso.

— Tentarei, senhorita. — Olga simplesmente respondeu.

Dez minutos mais tarde, num canto dum corredor, após um longo beijo silencioso, a

jovem, em voz baixa, informava a Pedro:

— Não te surpreendas se eu me puser, nesta noite, a tagarelar contigo. É coisa

encomendada!

E se esquivou furtivamente.

A partir de então foi um encanto.

A algumas perguntas que Olga fez, discretamente, sobre sua vida colonial, e

senhorita Ana, com sorriso cúmplice, agradeceu a sua secretária o a compreender tão

bem — Pedro le Gallo respondeu sucintamente, mas em tom mais amistoso que de

costume. Ana insistiu.

Então ele consentiu em narrar alguns combates dos quais participara, algumas brigas

nos bairros mal-afamados de Túnis, algumas anedotas em que figuravam, habilmente

desenhados, os retratos, em cores fortes, de contrabandistas de arma e de espiões. As

janelas da pequena sala de jantar do home não davam mais à rua da Bomba, mas ao mar,

ao deserto, aos desfiladeiros montanhosos onde os dissidentes armam, aos comboios,

emboscadas noturnas. O perigo, o heroísmo, os tiros, os gritos dos feridos, compunham

um conjunto decorativo terrivelmente comovente, que fazia pulsar o coração de Ana de

Kériven. Ela pensava que Pedro poderia sucumbir, e em seus olhos brilhava lágrima

contida. Murmurou ela, afinal:

— Que perigos correste! Que meios temíveis atravessaste! Como nossa vida te deve

parecer insípida, medíocre, insuportável!

— Á!, que engano! Não imaginas, ao contrário, a impressão de repouso, de

segurança, de limpeza, sim, de limpeza!, que sinto desde que estou aqui. Não sou

lisonjeador, podes acreditar em mim, quando digo que o home me revelou a felicidade e

a verdade.

— Não lamentas, nem teus amores? — Perguntou senhorita Ana, baixando os olhos e

a voz, com o rosto tomado de súbito rubor.

Ele começou a rir, com um riso rápido e amargo.

— Meus amores? Certamente que não falarei neles! Me deixaram apenas nojo. Aliás,

falar de amor a esse respeito. Á! Não! Aventuras sim. Tristes aventuras. Não as

lamento. Me curaram daquilo que é falso, do que é vil. Acreditarás em mim se disser

que elas me deixam sedento de pureza?

— Sim, acredito! — Respondeu Ana de Kériven, com exaltação, enquanto, distraída

e aparentemente desinteressada da conversação, Olga Smirnov modelava, num bloco de

miolo de pão, uma cabeça de chimpanzé.

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Nenhuma das palavras pronunciadas por Pedro le Gallo descera tão profundamente

na alma de senhorita de Kériven quanto a afirmação daquela necessidade de pureza. A

pureza! Não era essa a única virtude que ela podia declarar sua, plenamente e sem

reserva? Pureza física, pureza moral!

Certamente ela almejara o amor, povoara sua vida solitária com as imagens daqueles

com os quais desejava partilhar. Atravessara crises sentimentais todas as vezes que seus

sonhos se desfaziam em decepção. Porém jamais esses impulsos de sua alma se

mancharam de desejo que a fizesse corar, de pensamento complacentemente

voluptuoso. Como a duquesa Ana, a pequena duquesa de tamanco, cujo prenome era o

seu, ela poderia tomar como símbolo o alvo e arisco arminho, e marcar suas armas com

a mesma divisa: Potius mori quam foedari! Antes a morte que a desonra! Não

constituía essa pureza um encanto mais poderoso e mais duradouro que essas graças do

rosto e do corpo que vemos, dia a dia, se desbotar e se degradar? Não era isso que Pedro

le Gallo quisera dar a entender?

Ela era mais velha que ele, sem dúvida, mas cinco anos apenas! Muitos são os

casamentos que se realizam com desigualdades ainda maiores e que nem por isso são

menos felizes. Por outro lado, os 15 anos de perigo, combate, exílio não valiam 30

duma existência normal? Moralmente, pela experiência que ele acumulara, sofrimento

que suportara, repugnância do passado que o oprimia, Pedro era mais velho que ela, e

ela tinha certeza de que ele o sentia: Tudo lhe provava isso.

Durante as insônias, que se multiplicavam mas que ela prezava por causa de todas as

miragens que faziam surgir, às vezes ousava imaginar o que se tornaria sua vida, a vida

dele! Se o destino ou a providência se tornassem cúmplices de seus sonhos. Todas as

noites, durante os instantes de ócio que se concedia antes de se submeter ao imperioso

dever do bridge, revelava a Pedro parte de seus devaneios, a que podia confessar sem

embaraço mas cuja evocação criava em sua volta a atmosfera na qual queria o

conservar. Dizia:

— Dentro dalguns anos, quatro anos, no máximo cinco, venderei o home, ao qual

não falta admirador. Então terei, não com que resgatar Kériven, mas o bastante pra

adquirir um lindo solar na margem do Rance, e pra ali viver feliz... Irás me ver?, Pedro.

Estou certa de que também sentes, como eu, a nostalgia de nossa terra!

— Não imaginas a que ponto! — Respondeu ele, convictamente — Penses que lá

longe, na África, eu cantava pra mim, na noite, nossas velhas e tristes canções celtas, me

acompanhando ao acordeão! Porque sou — acrescentou sorrindo — exímio no

acordeão! Um dia, caso queiras, o experimentarei! É um instrumento vulgar, sem

dúvida, mas encontro em sua sonoridade toda a poesia de nossas charnecas, das fontes à

sombra dos carvalhos, dos calvários no sopé dos quais, após as peregrinações, os

rapazes e as moças dançam como korrigans!68

Ana de Kériven fremia a essas evocações.

— Sim! Sim! — Exclamava, apaixonadamente — Sim. Tocarás, cantarás pra mim! e

toda nossa Bretanha, com toda nossa mocidade, ressuscitará!

— Ensinarei, se isso te interessar, a música dalgumas canções russas. — Propôs Olga

— Na falta da balalaica o acordeão pode acompanhar perfeitamente. E também as sei

cantar. Oporemos o folclore eslavo ao folclore celta!

— Quem-sabe — insinuou Pedro, — se verificaremos as duas raças possuírem

afinidade?

68 No folclore bretão um korrigan é uma fada ou duende. A palavra significa (korr duende, ig é um diminutivo e o sufixo an é um

hipocorístico) pequeno duende. O nome varia de acordo com o lugar. Entre os outros nomes há kornandon, ozigan, nozigan,

torrigan, viltañs, poulpikan, paotred ar sabad... Nota do digitalizador. http://en.wikipedia.org/wiki/Korrigan

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Se senhorita Ana pudesse adivinhar o significado do rápido olhar que sua secretária e

seu hóspede trocaram, ficaria fulminada. Mas a dominavam seus sonhos. A realidade

lhe escapava.

Fora preciso pouco tempo pra que Pedro le Gallo e a jovem russa se sentissem

irresistivelmente mutuamente atraídos. Essa afinidade, a que Pedro se referira numa

frase cheia de subentendido, era a que logo os aproximou. Numa olhadela se

conheceram e se sentiram iguais e cúmplices.

Ana de Kériven não podia suspeitar, e não acreditaria se ouvisse, que essa Olga tão

discreta e senhora de si, tão sóbria de atitude e distante de todos, fora profissional numa

boate de Xangai e que sua beleza e crueldade provocaram alguns suicídios. Quanto a

Pedro le Gallo, fora, em Túnis, o protetor, bem recompensado, duma velha judia da qual

acabara roubando as jóias. Monsenhor não o ignorava, porque fora quem liquidara a

conta, mas não julgara oportuno informar os fatos a dona do home.

Pedro e Olga nunca se interrogaram acerca de seu passado: Desconfiavam

perfeitamente do que ele seria pra ambos, mas não se preocupavam com isso. Os ligara

poderosa atração física e se sentiam tão perfeitamente concordes de alma quanto de

corpo e talvez não se enganassem quando diziam que sua união era definitiva. Em

primeira vez na vida tinham a impressão de estabilidade e solidariedade.

Todas es noites, depois dos pensionistas do home se recolherem. Pedro ia ao quarto

da amante e só o deixava no alvorecer. Depois de se esgotarem em carícia, conversavam

sobre e futuro. Entre outros projetos havia um que os encantava fortemente: Comprar,

em Passy, um pequeno cabaré russo, a Isba, cujo êxito saberiam garantir, pois possuíam

uma experiência bastante rica e extensa pra saber por que espécie de atrativo, atração,

tentação e facilidade é possível garantir uma clientela escolhida, tanto mais

remuneradora quanto é melhor servida nos vícios mais secretos, sem perder a aparência

de correção e de elegância.

— Ambos faremos dela uma das primeiras boates de Paris! Ganharemos ali um

milhão por ano. E isso nada nos custará!

— Sim, nada. Ó! Realmente nada! Apenas — e Olga ria — é um nada que não

possuímos. Será que conseguirás os 200 mil francos?

— Tentarei.

— Me ouças. — Disse ela, docemente — Refleti. Preparei um plano. Creio que é

bom. É preciso aproveitar esse amor que a velha sente por ti. Um amor que a torna

estúpida como uma garota de 15 anos, que se ajoelha diante da fotografia de seu

querubim. É nosso ás de espada.

— Já pensei nisso. Mas não vejo como agir.

— Vejo. A princípio pensei que poderias te tornar o amante dessa velha lunática.

Não. Nada a fazer! A virtude dos Kériven, a honra ancestral. Impossível! Mas uma vez

que sonha te desposar, uma vez que, sem notar, passa o tempo descrevendo a ti a

existência futura de ambos, nesse solar que ela quer adquirir e onde será senhora Pedro

le Gallo, é preciso, desde já, o fruto está maduro, tratar disso diretamente e, sem

prometer, deixando tudo esperar.

— Talvez. — Disse Pedro le Gallo, meditativo — Resumindo. Se seguirmos a linha

que indicaste, eis como a manobra se desenharia: Também estou apaixonado. Me sinto

velho e prematuramente gasto. Quero mudar de vida. O amor que sinto, amor tímido

que mal ousa se confessar, me torna outra vez virgem. Mas minha dignidade me impede

de desposar uma mulher rica, visto que nada possuo. Primeiro preciso fazer um pequeno

capital. Ora, deparo um negócio magnífico. Por exemplo, se ela perguntar minúcia, uma

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sociedade com meu patrão. Se eu entrar à comandita com 200 mil bagarotes,69

ganharei

500 mil em dois anos. Nesse dia poderei me casar de cabeça erguida! Por isso estou em

via de achar quem me empreste. e espero achar, dentro dalguns meses!

— Perfeito. — Disse Olga —Ela não admitirá que tomes dinheiro emprestado doutra

pessoa. Principalmente não admitirá ter de esperar, quando vir o fim a alcance de sua

mão, e te oferecerá o cheque numa salva de prata. Depois, cáspite!70

— Depois? — Repetiu Pedro — Pois bem, depois daremos o fora. Continuo devedor

seu. Nada prova que não a reembolsarei. O negócio é rigorosamente correto! Nos

restará apenas construir nossa vida!

— Me abraces. — Murmurou Olga, com aquela voz sufocada que ele não podia

ouvir sem se sentir perturbado.

Se inclinou a ela e as bocas se uniram.

Destarte se verificou, nas maneiras de Pedro le Gallo, em sua atitude a com Ana de

Kériven, nas palavras que trocava com ela, uma sensível e gradativa transformação.

Falava menos. Muitas vezes se perdia em súbito devaneio, do qual se arrancava com

visível esforço. Parecia preocupado. A senhorita de Kériven parecia que ele andava

melancólico e ela multiplicava as provas de seu interesse, a manifestação de sua ternura.

Às vezes lhe dizia, quando estavam sozinhos:

— Não és mais o mesmo. Te aflige uma preocupação que não me queres confessar.

Ó! Reconheço que a escondes bem! Mas como poderia me enganar? Sem dúvida não

tenho direito a exigir uma confissão à qual talvez teu orgulho se oponha. Mas a amizade

não cria direito? Penses bem que não estás mais sozinho e não me recuses a alegria de te

ajudar, caso possa!

Ele suspirava. Não respondia. Depois, como impelido por força irresistível, falava,

em temos velados, dessa timidez que provoca no homem, quando ele muito sofreu, uma

invencível desconfiança em si e do que a vida lhe possa trazer. Ele evocava essa

necessidade de ternura, de comunhão espiritual, que lhe pareciam, doravante, a própria

condição da felicidade. Mas será que determinados seres têm direito de a esperar?

Se o passado tão acabrunhante, tão difícil de carregar, ainda mais difícil de esquecer,

não os proíbe pensar nisso? E quando, pra maior desdita, não podem resistir ao

arrebatamento dum amor insensato, dum amor demasiado belo, demasiado puro pra

eles, como não se sentirem abatidos pela tristeza, uma vez que sabem perfeitamente que

mesmo o confessar seria absurdo e lhes é proibido?

Depois, quando via Ana de Kériven desvairada de alegria, preste a se atirar a seus

braços, a deixava precipitadamente, se desculpando de haver falado assim a seu respeito

e prometendo não recomeçar. Era ela, então, logo em seu primeiro encontro, quem o

crivava de pergunta e suplicava que lhe confiasse sua aflição.

Ela não podia duvidar mais: Ele a amava! Ele a amava e, por generosidade, receoso

de que o julgassem interesseiro, talvez também temeroso de que ela o achasse muito

moço, não se decidia à confissão que ela aguardava, que almejava apaixonadamente e

que lhe arrancaria, enfim, caso não pudesse o levar à manifestar! Á! Como a vida seria

bela, e que céus o destino lhe estava entreabrindo!

● Embora perdera, no excesso de sua alegria, todo o contacto com a realidade terrena,

senhorita de Kériven não podia deixar de preparar uma festinha, íntima e calorosa, em

honra a general Mardelet, a quem a chancelaria acabava de conceder, finalmente!, a

69 Bagarote: sm gíria brasileira Nota ou moeda de mil-réis, grana, dinheiro (mais usado no plural). Nota do digitalizador.

http://www.dicio.com.br/bagarote/ 70 Cáspite!: Interjeição de admiração ou aprovação. Bravo! Caramba! Viva! Nota do digitalizador. http://www.dicio.com.br/caspite/

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placa de grande oficial.

Uma refeição magnífica, organizada por Prunier, reuniu em torno do velho guerreiro

todos os pensionistas, aos quais se juntaram Pedro le Gallo, a dona do home que, no

âmago do coração e na febre noturna já o chamava de noivo, e Olga Smirnov. Eram

iguarias as delicadas, excelentes os vinhos, fortes as bebidas e extrema a cordialidade. O

general somente pronunciou algumas palavras, com mais vigor que eloqüência, mas

pediu licença pra apertar a mão de todos os convivas masculinos e abraçar todas as

senhoras. Essa galanteria foi muito apreciada. Durante o sarau que se seguiu, Olga

entoou melodias russas, acompanhada por le Gallo. Seu êxito foi dos maiores.

Audaciosamente decotada, de ombros nus, braços nus, com o louro cabelo liberto da

rede, penteado num rolo que a coroava de ouro, exibia, imprevistamente, uma beleza

soberba e sensual que ninguém suspeitava além de Pedro. General Mardelet se

congestionava visivelmente.

— Á!, senhorita. Á!, senhorita. — Balbuciava ao ouvido de Ana de Kériven — Á!,

bom Deus! Á!, se eu tivesse menos 10 anos, mil raios!

Depois, como a cantora e seu acompanhante agradecessem na última vez, continuou,

com uma convicção concupiscente:

— Á! Darão um casal excepcionalmente bonito! Quando será o casamento?, querida

senhorita. Oferecerei o champanha. Mil raios!

— O casamento? Que casamento? — perguntou Ana de Kériven, estupefata.

— Ê! Ê! O casamento daqueles dois. Tem graça!

— O que estão esperando pra regularizar? Suam amor em todos os poros!

— Regularizar? — Retrucou senhorita Ana, que empalidecera subitamente e que se

sentia como se a esbofeteassem — Regularizar o quê?

O general começou a rir.

— Hahá! Estás te fazendo de desentendida, querida senhorita! Mas isso não dá

resultado! Não. Não dá resultado. Calma, calma!

— Bebeste, general. — Replicou, friamente, senhorita de Kériven.

— Sim. Tem graça! Bebi! Bebi muito bem e agradeço por isso. Jantar notável,

louvado seja Deus! Mas o que bebi nada tem a ver com o que disse. Se realmente não

sabes que esse belo rapaz e essa bela moça passam as noites na mesma cama é que de

fato tua inocência te deixa cega! Aliás, têm toda a razão, os animais! E se eu estivesse

em seu lugar! Mas os cases, então, querida senhorita. Os case então! E depois, por que

não os imitaríamos?

Alguns instantes depois, pretextando certas ordens que precisava, dar, Ana de

Kériven desapareceu.

Às 2h da madrugada, escondida num quarto vazio, avistou Pedro le Gallo, que, de

pijama, entrava, sem bater, no aposento de Olga Smirnov. Dele saiu às 6h, e deu de cara

com a dona do home, que envergava o vestido noturno e seguia diante dele, lívida, de

olhos vermelhos, feição abatida, subitamente transformada numa velha. Ele a fitou sem

dizer, depois, visto ela não falar, acabou perguntando, em tom zombeteiro:

— E então?

— Então? — Respondeu ela, com voz arquejante — Então nada. Te resta apenas te

retirares. Voltarei a meu aposento e só sairei quando partires. Previnas tua... — Hesitou

um instante e repetiu: — Tua... tua amiga, que deixou de estar a meu serviço e que

também deve partir. Tem dinheiro que me pertence, que o guarde. Será sua e tua

indenização.

— Bem... — Se limitou a dizer le Gallo — Havemos de sair desta dificuldade.

— Não duvido. — Respondeu Ana de Kériven, que, dando as costas, se afastou, se

forçando a caminhar firme, sem se apoiar na parede.

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Às 8h ouviu descerem a bagagem: Dois táxis estavam parados diante da porta. Ela os

olhou um instante, depois deixou cair a cortina. Foi então se sentar a sua pequena

secretária e, num jato, escreveu:

Monsenhor, circunstância independente de minha vontade e sobre a qual me seria odioso esclarecer, me obrigou a expulsar do home o sobrinho de Vossa Grandeza.

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O direito de pernada Cami

Primeiro ato

O casamento do vilão A cena representa a choupana do jovem e belo vilão

ovem-e-belo-vilão — Sou feliz porque hoje desposarei minha vizinha, a

Bela-vilã.

Primeiro-rústico-convidado — No entanto a expressão de sua

fisionomia parece melancólica.

Jovem-e-belo-vilão — Pois bem. Sim, meus amigos. Sofro, tenho ciúme, porque

nesta noite, em virtude do direito de pernada, o senhor do castelo feudal partilhará o

leito da Bela-vilã que desposarei hoje.

Segundo-rústico-convidado — É um belo mocetão, ao que parece, mas dá maus

hábitos às jovens desposadas.

Terceiro-rústico-convidado — É verdade. No dia seguinte a meu casamento, minha

esposa, depois de ter passado a noite de núpcia, com o senhor, me submeteu a uma exigência revoltante. Mesmo que seja um servo, as forças humanas têm limite.

Jovem-e-belo-vilão — Mas distingo sobre a estrada empoeirada meu avô-bufão, que

veio assistir meu casamento. Não o vejo desde a idade de cinco meses mas o conheço

pelo traje de barqueiro.

Avô-bufão — Sou eu. Como cresceste desde aquele tempo! Nos preparemos pra

festejar este dia feliz.

Sétimo-servo-convidado — Eis a noiva, que se aproxima.

Coro-dos-rústicos — Viva a desposada!

Segundo ato

A devoção A cena representa a choupana do Jovem-e-belo-vilão

no dia seguinte

Jovem-e-belo-vilão — Eis a aurora. Passei a noite na casa dum vizinho. Não tive

paciência de esperar mais pra vir consolar minha cara esposa. Mas o senhor do castelo

feudal talvez ainda não tenha partido. Entremos nas pontas dos pés. Entrando nas pontas dos pés O que vejo! A porta do quarto nupcial está aberta. minha esposa em sono

profundo, o leito não está em desordem. O que significa?

Bela-vilã acordando — Olhes, meu marido! Jovem-e-belo-vilão — O senhor já partiu?

Bela-vilã — Vi ninguém na noite inteira. O esperei, como é de hábito. Mas não

vendo chegar alguém, adormeci.

Jovem-e-belo-vilão — É incompreensível! O senhor do castelo feudal entrou, no

entanto, em minha choupana, ontem na noite.

Bela-vilã — Chut! Escutes! Alguém sai do quarto pegado.

Jovem-e-belo-vilão espiando no buraco da fechadura — É o senhor do castelo feudal. Sai da choupana com passo cambaleante.

Bela-vilã — Mas o que fazia no quarto contíguo?

Jovem-e-belo-vilão — Nada compreendo! É o quarto onde dorme meu Avô-Bufão!

Voz do senhor-do-castelo-feudal — À fé de cavalheiro! Nunca gente rústica me fez

JJ

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passar tal noitada de amor! E se afasta Jovem-e-belo-vilão — Tu, avô! Então És tu. Mas é horrível!

Avô-bufão entrando — Sim, é horrível!

Jovem-e-belo-vilão — Vós, avô! Éreis então vós! Mas é unia loucura!

Avô-bufão — Sim, ontem na noite o senhor, embriagado, se enganou de quarto, se

deitou a meu lado, e...

Jovem-e-belo-vilão — E não o desenganaste?, avô.

Avô-bufão — Não. Pensando que esse erro providencial faria tua felicidade, me

calei. O senhor do castelo feudal nada percebeu.

Bela-vilã — Sublime ancião!

Avô-bufão soltando um grito — Ó! Mas o que vejo neste espelho? Esta barba! Ó! Compreendo tudo. Não sou teu avô. Sou tua avó!

Jovem-e-belo-vilão — Minha avó?

Avô-bufão — Sim. Era teu avô quem devia vir a teu casamento. Mas na véspera da

partida bebemos tanto pra festejar o alegre acontecimento, que no dia seguinte, na

manhã, com o cérebro ainda obscurecido pelo vapor da embriaguês, em vez de vestir

minha roupa de mulher, me enganei. Vesti o traje de meu marido. Então, me vendo

vestida de homem, me tomei por teu avô e parti, para assistir teu casamento.

Jovem-e-belo-vilão — Mas essa barba... Essa barba...

Avô-bufão — É verdade. Ignoras que teu avô Bufão desposou a mulher-barbada pra

o ajudar no ofício de barqueiro. Sou a mulher barbada, tua avó.

Jovem-e-belo-vilão: — Prefiro isso!

Avó-barbada — Sim, mas tudo bem considerado, meus queridos filhos, não tenho

tanto mérito em ter me dedicado como se eu fosse realmente teu avô.

Jovem-e-belo-vilão — Sim, avó. Tens o mesmo mérito, porque a intenção lá estava.

Avó-barbada, nos abençoes!

Cai o pano

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O impasse Colette

omara a outro homem aquela loura esguia e magnífica, que se

assemelhava a um galgo acorrentado. A seguira a toda parte, a abordara

romanescamente e a raptara. Não sabiam o que acontecera ao outro

homem e não jamais souberam. O outro homem se comportou como vencido correto e

cessou de existir pra eles. O vencedor (admitamos que se chamava Armando, e a mulher

Elza), pouco pensou nisso, pois Elza o amava e, ademais, ele se preocupou apenas em

provar seu amor e ingenuidade organizando essa prisão que se chama a vida a dois. Ela

o ajudou, lisonjeada, como todas as mulheres a quem se pretende seqüestrar

amorosamente. Algumas semanas de hotel e de viagem tiveram como término natural a

vila na beira dum lago, onde, de boa-fé, julgaram atingir o ápice da felicidade.

Certa preguiça, os cuidados com sua beleza e a lentidão dos gestos encurtavam as

horas do dia. As da noite, confiadas ao sono ou ao amor, pareciam breves. Ambos

estabelecendo, em tempo útil, que o silêncio é augusto, podiam se calar impunemente,

até nova ordem. Não saíam, não regressavam, não erravam no bosque, a não ser juntos,

apoiados um no outro, ou ele atrás dela, ela arrastando uma fita, a ponta dum véu, a

ponta duma raia, como uma trela arrebentada.

Não tiveram trabalho em assegurar sua solidão, longe de Paris. O espetáculo do amor

basta pra afastar os melhores amigos. Se pode procurar um homem enamorado, uma

mulher apaixonada, as visitas a um par feliz, que exige sua felicidade, aborrecem e

chocam o prazer com que vamos às diversões moderadas e à sã harmonia.

Viveram, portanto, sós, com a bravura inconsciente e estúpida dos amantes. Ela não

teve medo certos dias, quando na hora do crepúsculo o céu se abaixa, o vento cessa e

espera a tempestade, quando a natureza inteira prepara uma tragédia. Não teve medo de

encontrar em sua frente aquele estranho de ombros largos, sobrecenho feroz e gestos

prontos. Pois a mulher guarda no íntimo uma confiança dedicada a seu raptor.

Quanto a Armando, não pensou no passado da mulher, pois que a tinha junto a si,

noite e dia, e porque ignorava todo o passado daquela a quem amava. Pra Armando o

passado de Elza era um pobre homem, enganado, tragado pela sombra e pelo

esquecimento. Se perguntava, às vezes e como por dever: Mas antes desse pobre homem? E depressa voltava ao presente, sem nuvem nem segredo.

O mal chegou numa manhã, contemplando o lago, atrás duma sebe inflamada de

gerânio rubro, onde Elza cantava a meia-voz, no primeiro andar, enquanto se vestia.

Notou que não conhecia aquela canção e que Elza ainda não a cantara. Se admirou, e

conjeturou que cantando ela pensava numa época remota, em pessoas cujos nomes não

sabia. Talvez um homem desconhecido.

Quando sua amante veio ter consigo, a achou um pouco diferente daquela que

esperava, e disse isso com terna solicitude. Ela respondeu, sem desconfiança, que as

primeiras chuvas do outono a tornavam friorenta, e falou de estufa, de grande fogueira,

de pele, com ar de cobiça e receio faceiro. Então ele deixou de a olhar e, com os olhos

baixos, se pôs a fazer a conta dos meses que acabavam de passar juntos e pensou que

talvez ela tivesse vontade de ir embora. A imagem que fez, da ausência de Elza, o levou

ao tempo quando vivia sem ela, e tremeu pensando que naquele tempo longínquo era

incapaz de viver outra vida. Levantou os olhos a Elza e o coração não se fundiu em

amor mas deu pancadas fortes e penosas, porque pensava:

— Fui um homem como os outros. Elza é uma mulher como todas, salvo que é mais

bela. Aquele de quem a tomei, sem dúvida voltou a ser um homem igual aos outros, um

TT

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homem sem felicidade, um homem normal, triste, superficial. O que me substituir...

Cambaleou mentalmente, deixou de raciocinar e compreendeu que entrava, baixo e

curvado, no ciúme sem objeto, o que a inocência não cura.

Escondeu seu mal como pôde, redobrando de terna exigência. Mas ganhava, com o

cuidado que empregava em matar seu pensamento oculto, uma fadiga cerebral que cedo

atingiu os finos sentidos de sua amante. Lutou, certo de sua fisionomia e palavras, e foi

Elza quem ficou com indisposição, bocejando nervosamente, tremendo ao ver, numa

noite de lua cheia, a sombra de Armando de pé, expressiva e vívida como se fosse um

juiz. Ele observou suas fraquezas, a culpou, com pesar, do desejo de evasão e um dia

injuriou violentamente sua amante, a quem essa explosão tranqüilizou e orgulhou.

Entredentes, resmungava:

— Á! A prisão. O harém aferrolhado.

Ao mesmo tempo duvidava de todos os remédios e, ansioso por uma separação

efêmera, via, contudo, reaparecer, sem gratidão, a mulher cuja presença não podia

dispensar. Agora lhe procurava vício, queria encontrar marcas da idade no rosto alterado

pelo sono, porém a odiava quando, menos bela hoje que na véspera e que no dia

seguinte, ela parecia obedecer a sua vontade hostil.

Viveu na alucinação que castiga os que abusam do amor, lhes inspirando o desejo de

recomeçar o paraíso terreno. Tentou se afastar de Elza sob pretextos fúteis, mas voltou

cada vez mais agitado e mais vingativo, pois não se ausentava muito tempo, pra tomar

pé num terreno de dor normal, a dor da privação, e seu alívio de deixar a amante cedia

imediatamente à intolerável suposição de que ela fugira durante sua ausência.

Um dia em que deixara Elza na vila e quando caminhava sozinho, na beira do lago,

submetendo sua aberração a uma espécie de disciplina sem esperança, ouvia correr atrás

de si e se virando, viu chegar uma criada de Elza, perturbada e descomposta, que parou.

arquejante, a alguns passos.

—"Á!, senhor. A patroa...

Ele gritou num tom distante e artificial:

— A senhora?... Sim? acabou de partir. Não é?

A criada abriu e fechou a boca. Não pôde falar em seguida. Depois articulou algumas

palavras, onde o homem compreendeu que um acidente, a queda nos degraus de

mármore, uma fratura do crânio, a morte instantânea, a morte. Se sentou, aliviado, sobre

o declive da grama. Suspirou:

— Á! Receei...

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Recordação Eugênio Heltai

Cenário O apartamento de solteiro do dramaturgo festejado, que, devido ao fato de sua tragédia O

último... não ter alcançado mais de oito representações, e com o teatro vazio, continua instalado com a mais nobre e severa simplicidade. Nas paredes, cartazes de teatro e coroas de louro, sabre cujas fitas as letras douradas já perderam o brilho. Em lugar bem visível da mesa de

trabalho, um magnífico tinteiro, no qual, visto que o dramaturgo escreve no café, a tinta secou definitivamente. Atrás do tinteiro, uma fotografia duma festejada atriz, tirada momentos antes, duma gaveta, entre muitas outras fotografias de artistas célebres e não. A limpou e colocou,

cuidadosamente, como se estivesse ali havia muitos anos. Ao se levantar o pano, o festejado dramaturgo está estirado no sofá, em posição de elegante

abandono, fumando um cigarro. A porta se abre e entra a artista, a quem o criado, porteiro também nos momentos mais burgueses, fez entrar discretamente.

O dramaturgo festejado pulando do sofá e atirando fora o cigarro — Lenke! Querida Lenke!

A atriz festejada com grande fervor — Já acreditas?

O dramaturgo festejado com grande fervor — Acredito! Ó! Que coisas devem ter

acontecido pra que a senhora... pra que eu... pra que nós... Querida! A quer beijar A atriz festejada com terno protesto — Não! Peço! Neste aniversário, que pra mim é

tão precioso quanto pra ti indiferente, quis tornar a ver este quartinho. És um homem

delicado. Confio em que não deitarás a perder minha emoção.

O dramaturgo festejado um pouco desiludido — Como queiras. Já se vê que o quarto não mudou. Tudo está no mesmo lugar de sempre. Teu retrato também.

A atriz festejada sorrindo — Foste muito amável em o usar pra esta ocasião solene.

Olha, sonhadora, o retrato Cinco anos! Meu-deus! Como eu era criança! E como estava enamorada de ti! Hoje não compreendo, verdadeiramente, como pude estar tão

enamorada.

O dramaturgo festejado com sombria bílis — Está visto que tens sugestões amáveis.

Como pôde estar enamorada de mim! Esqueces que há oito anos (pois o fato ocorreu há

oito anos, e não há cinco), eu também era oito anos mais moço. Tinhas mais sorte que

eu, já que és, ao menos, doze anos mais moça que eu.

A atriz festejada também biliosa — Significa que envelheci muito? O dramaturgo festejado — Não. Unicamente que então diminuías quatro anos em

tua idade. Confessava ter 18, embora, mesmo entre irmãos, já tivesses 22.

A atriz festejada — Vejamos quanto tempo terei ainda de escutar tuas grosserias?

O dramaturgo festejado — É muito fácil remediar isso. Se não queres escutar me

feches a boca com a tua. Quer a beijar novamente

A atriz festejada com mais enérgica resistência — Não! Peço! Deixemos a comédia! Bem vês, quando me recordas que há cinco anos, oito segundo tu, que estive em

primeira vez em tua casa. Nunca teria acreditado que tornaria a pôr os pés nesse

aposento. E agora queres recomeçar no ponto em que terminamos. Então. Não, meu

caro amigo. Nada disso! Vim àqui como quem vai a um cemitério, visitar o túmulo dum

ente querido. Falemos das velhas recordações e... Batendo na mão do escritor abaixo as mãos!

O dramaturgo festejado de novo fino — Como queiras.

A atriz festejada — Te tranqüilizes e escutes. Te sentes aí, junto à mesa, onde

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escreves tuas obras imortais.

O dramaturgo festejado amargamente — Zombas?, meu anjo. És sempre a mesma, cheia de sarcasmo e vazia de sentimento. Foi precisamente por isso que nunca pudemos

nos entender.

A atriz festejada — Nunca? É um exagero. Se nos nunca tivéssemos entendido eu

não estaria aqui agora.

O dramaturgo festejado — Bem. Digamos, pois, que nos entendemos muito pouco.

A atriz festejada — Suponho que não negarás que eu te amava.

O dramaturgo festejado — Não nego. Até me lisonjeio disso, é claro, comigo. Mas

nosso amor era algo tão vago, tão incerto, tão incolor e sem gosto, que...

A atriz festejada o interrompendo — Te proíbo de falar assim de nosso amor! Não

vim àqui pra que me ofendas e espezinhes cruelmente minha recordação. Há beijos que

nunca se esquecem. É preciso que os beijos sejam, também pra ti, algo sagrado.

O dramaturgo festejado Um pouco mais comovido — Meu-deus! sinceramente. Não acreditaria que meu amor fosse, pra ti, tão memorável e apreciado.

A atriz festejada — Pra ti eu não era, claro está, mais que uma aventura igual às

outras.

O dramaturgo festejado protestando — Ó. Uma aventura!

A atriz festejada um pouco emocionada — Meu-deus! Imaginara tudo bem diferente. Quando, depois de termos estado tanto tempo zangados e de não nos falarmos, nos

reconciliamos e resolvi voltar àqui. Talvez fosse a nostalgia, o estranho desejo de voltar

a ver o sítio onde outrora fui tão feliz. Juro que vim àqui com o sentimento mais sincero

e mais honesto. Me sentia cheia de emoção, sumamente enternecida. Voltava a ser a

modesta atriz principiante, que penetra em segredo, com doce tremor, no apartamento

do amante. Acredites que ainda me recordo de cada móvel. Acredites que me sentia

excitada, que voltara a ter 18 anos. segundo tu, 22. Numa palavra: Um prazer divino

vibrou em mim durante todo o trajeto. Julgava que aqui sentiria algo ainda mais belo.

Que me falarias meigamente, docemente, do passado. Que nossa recordação

embelezaria tudo, que eu choraria de felicidade. Numa palavra: Sonhava com algo

impossível, maravilhoso, e encantadoramente estúpido. Em vez disso nos olhamos

como duas feras e nos mordemos maldosamente.

O dramaturgo festejado comovido — Coitadinha! É claro que eu também imaginava tudo assim mas me parece que não iniciamos bem a conversa. Deveríamos ter começado

voltando a nossa recordação, ao primeiro encontro. Ainda te lembras?

A atriz festejada sonhadora — Ó! Como não me lembrarei? O dramaturgo festejado — Era o exame. Ainda eras aluna do conservatório e

representaste a Marta Moisand, de O rato. Eu era um crítico conhecido quando me

apresentei a ti. Me agradaste muito. Depois comecei a te fazer a corte. E de que modo!

A atriz festejada — Antes foram estes os episódios fastidiosos.

O dramaturgo festejado — Também houve outros menos aborrecidos. Quando

vieste a minha casa em primeira vez.

A atriz festejada fechou os olhos. O dramaturgo festejado — Ainda me parece te ver entrar e dizer, balbuciante:

Jures que se conduzirás honestamente. Jures, pela felicidade de ambos. Jurei

e, cum suspiro de fato me conduzi honestamente.

A atriz festejada estremece e murmura, um pouco inquieta — Depois?... Depois?... O dramaturgo festejado — Depois? Deves te lembrar de que não voltaste mais,

apesar do muito que eu te suplicava... Juraste que me amavas, que não amava a alguém

além de mim, mas somente dentro do limite da honestidade e da boa conduta.

A atriz festejada já muito inquieta — Perdão...

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O dramaturgo festejado magnânimo, compreendendo mal a palavra — Perdôo. Embora me sentisse muito amargurado com esse amor, e por isso brigamos.

A atriz festejada febril — Brigamos por isso?

O dramaturgo festejado ainda não chegando à altura da circunstância — Isso não valia a pena, e deves compreender agora. Durante anos não nos falamos. Quanto tempo belo e

precioso perdemos, em vez de... a quer beijar A atriz festejada muito nervosa — Não. Não. Irei embora. Sim. Foi assim. Foi assim

tudo. E peço perdão por ter te recordado essa história infantil e tola. Agradeço teres sido

tão bom, tão amável comigo. Apenas peço que continues guardando, no coração, a

lembrança sagrada de nosso amor puro, como guardarei. Pensarei sempre cum

recolhimento especial em ti. De todos meus apaixonados foste o único que, enfim, que

verdadeiramente amei. Mas agora me deixes. Deixes que eu vá, que fuja, diante de

minha recordação. Compreendo que se ficar aqui desatarei a chorar. Adeus!

O dramaturgo festejado solenemente, idiotamente — Adeus!

A atriz festejada sai correndo. Na escada segura a cabeça entre as mãos e murmura, espantada: — Jesus! Com quem confundiras este homem?!

O dramaturgo festejado só — Pobrezinha! Também creio que fui o único a quem

ela amou de verdade!

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