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CONTOS POPULARES DO TIBETE OS MAIS BELOS DIÁLOGOS NA LITERATURA BUDISTA O ESPÍRITO E A NATUREZA MENSAGEM DE SUA SANTIDADE O XIV DALAI LAMA http://br.groups.yahoo.com/group/digital_source/

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CONTOS POPULARES DO TIBETE

OS MAIS BELOS DIÁLOGOS NA LITERATURA BUDISTA

O ESPÍRITO E A NATUREZA

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE O XIV DALAI LAMA

http://br.groups.yahoo.com/group/digital_source/

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Título: CONTOS POPULARES DO TIBETE

Seleção: Jayang Rinpoche

Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida

Capa: Camila Mesquita

Editor: Antônio Daniel Abreu; Produção Gráfica: Kleber Kohn

ÍNDICE

O Espírito e a Natureza

Mensagem de Sua Santidade o XIV Dalai Lama

O Tibete e o Budismo

A Criação

Opame, Chenrezik y Dolma

O Primeiro Rei do Tibete

Padmasambhava e a Echarpe da Felicidade

De como Asanga chegou a ver o Buda Futuro

O Castelo do Lago

O Moço que se Negava a Matar

O Homem Bom

O Transformador do Tempo

O Tesouro Perdido

A Oração que foi Escutada

A Árvore-Sombrinha

Os Amantes

A Rã

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O ESPÍRITO E A NATUREZA

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE O XIV DALAI LAMA

Creio que viestes aqui com algum tipo de expectativa, porém, no essencial,

nada tenho a oferecer-vos. Tentarei, simplesmente, compartilhar com vocês algumas

das minhas experiências e visões.

Cuidar do Planeta não exige nada de especial ou sagrado, é como cuidar da

nossa própria casa. Não temos outro Planeta como casa depois deste. Apesar de

existirem aqui uma série de problemas e desequilíbrios, esta é a nossa única

alternativa, não podemos ir para outro Planeta. Tomemos como exemplo a Lua; desde

os tempos antigos, seu aspecto é belo, porém, se alguém vai instalar-se lá para viver,

pode ser horrível. Esta é a minha opinião. Nosso Planeta azul é muito melhor e muito

mais atrativo. Portanto, devemos cuidar do lugar onde vivemos, nossa casa, o

Planeta.

Apesar de tudo, o ser humano é um animal social. Com muita freqüência

costumo repetir junto aos meus amigos, que eles não têm necessidade de estudar

filosofia, esses temas complicados e acadêmicos. Simplesmente, ao observar com

freqüência estes inocentes animais, como os insetos, formigas, abelhas, etc, em geral,

tenho um certo tipo de respeito para com eles. Por quê? Eles não têm nenhuma

religião, constituição, força política, nada. No entanto, vivem em harmonia com a lei da

existência, as leis da natureza.

O que sucede com os seres humanos? Temos grande capacidade de

inteligência e sabedoria porém, com freqüência, a utilizamos de forma incorreta. Como

conseqüência realizamos ações que vão contra a natureza básica humana.

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Analisada de um certo ponto de vista, a religião é um luxo. Se dispomos de

uma religião, pode ser positivo, porém, se ficarmos sem ela, podemos sobreviver mas,

sem o afeto humano, somos incapazes de viver.

Se, o bem, o mal e o ódio tal como o amor e a compaixão fazem parte da

mente, continuo acreditando que a força dominante da nossa mente é a compaixão e

o afeto humano. Por essa razão normalmente chamo a essas qualidades de

"espiritualidade", não no sentido religioso. A ciência e a tecnologia junto com o afeto

humano é construtiva. A ciência e a tecnologia a serviço do ódio, é destrutiva.

Quando se pratica uma religião de forma genuína, esta não é algo que passa

a estar no exterior mas sim no nosso coração. A essência de toda e qualquer religião é

a bondade de coração aberto. Às vezes refiro-me ao amor e à compaixão, como uma

religião universal. Esta é a minha religião. As filosofias complicadas, com freqüência

trazem mais problemas e contradições. Se essas complicadas filosofias são úteis para

desenvolver um coração bondoso, então usemo-las plenamente; se, pelo contrário, se

convertem num obstáculo para gerar essa bondade de coração, o melhor é

abandoná-las. Isto é o que sinto.

Se observarmos a natureza humana com detalhe, o afeto é a chave para a

bondade. A mãe natureza, em minha opinião, é um símbolo de compaixão. Todos

temos uma semente de energia bondosa dentro de nós. Realizar a compaixão

depende unicamente de cuidar dela ou não.

Discurso de Sua Santidade o Dalai Lama em Middlebury sobre o tema:

Espírito e Natureza, em 14 de setembro de 1990.

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O TIBETE E O BUDISMO

Durante o período que compreendeu, mais ou menos, o último quartel do

século passado e a primeira metade do atual, o Tibete exerceu, sobre muitos espíritos

ocidentais, uma considerável fascinação. Fascinação de dupla natureza, diríamos: a

que se vinculava a seu epíteto de "país das neves"¹, por uma parte, e a que respondia

à sua condição de "país de monges"², por outra, acentuadas ambas pelo difícil acesso

ao Tibete — fator que o envolvia — ainda mais, numa aura de mistério.

Assim, pois, cedendo a essa dupla fascinação, a busca do exótico, de um

lado, e a busca do espiritual, do outro, se orientaram, em certa ocasião, para um

objetivo comum; e, além disso, ambas apareceram, muito freqüentemente,

combinadas de forma mais ou menos inextricável. As conotações particulares, com as

quais o Tibete aparecia mostrado aos olhos do Ocidente que, intrigado, o ia

descobrindo, convertiam-no no ponto de convergência de uma nostalgia sentida e

expressada de diferentes maneiras, mas que, fundamentalmente, se pode reputar

como única: a nostalgia das origens, a nostalgia daquele "Pardes", no Éden, ao

Oriente, à qual, talvez, muito além da simples alegoria, o Tibete estivesse, realmente,

em condições de corresponder.

E, para um Ocidente excêntrico, submerso nas sucessivas ondas da

modernidade, o Tibete representava de forma eminente o outro prato da balança,

intrigante e incômodo ao mesmo tempo, atraente e problemático. Intrigante, porque o

Tibete nos fazia pressentir "o que nós somos", e incômodo, porque nos obrigava a

abandonar aquilo "que queríamos ser". Ante o avanço e o estabelecimento das

democracias, o Tibete oferecia uma teocracia incontestada; ante o progressismo, uma

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total fidelidade à tradição; ante a extensão a todas as ordens de uma visão secular

das coisas, a impregnação do sagrado em todas elas.

Assim, a questão do Tibete, como quer que fosse abordada, devia pôr

sempre em discussão a alternativa modernidade-tradição e tudo o que ela comporta.

Só que, tal alternativa, contrariamente ao que se possa pensar, é algo mais do que o

resultado de uma opção por qualquer uma das duas ordens de valores, à vontade

intercambiáveis. Na realidade, ela traduz o contraste entre a não-escolha e a escolha,

mas ao contrário do que hoje se pretende. Pode-se afirmar — e nisto deve-se ver algo

mais do que um uso arbitrário de palavras — que não se escolhe a modernidade, mas

se cede a ela, enquanto que se escolhe, sim, a tradição, se opta por ela. O "povo

escolhido" é, da mesma maneira, o povo "que elege". Uma comunidade tradicional é,

metafisicamente, uma matriz que se tem preparado para acolher uma semente

espiritual concreta e para dar-lhe forma.

O Ocidente se encontrava, pois, ante um dilema que não era capaz de

resolver e no qual constantemente haveria de tropeçar. O Tibete, dissemos antes, era

sentido obscuramente como um anseio, e, ao mesmo tempo, representava um

problema difícil. Mas o Ocidente, finalmente, acabou encontrando uma solução para

as duas alternativas. Por meio de caminhos sutis, mais misteriosos "que o caminho

que o peixe segue sob as águas", o Ocidente viu-se livre do problema transmitindo a

outros a sua resolução. Com a "sacrílega invasão do Tibete" (Marco Polo), o implícito

denunciador da modernidade passava a ser integrado nolens volens ao mundo

moderno, ou, mais precisamente, ao lado mais sinistro deste. E, com a diáspora que

veio depois, o Ocidente passou a dispor, e nos marcos de sua própria cultura, dos

elementos nos quais acreditava se cifrasse aquele anseio. Assim, hoje, o personagem

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com o qual Somerset Maugham quis desenhar a atração do Ocidente pelo Tibete

poderia encontrar a este em sua própria cidade, "vantagem" esta de duplo "fio".

O Ocidente cria fórmulas, vive delas e eventualmente as exporta. Dessa

maneira, acredita que, se o Comunismo ou o "American way of life" são exportáveis e

implantáveis em solos vários, também o tibetano pode ser uma semente que dê frutos

em outras culturas. Mas, esta conceptualização é artificial, e abstrair "o tibetano" do

seu contexto original é desconhecer sua autêntica natureza. Uma realidade espiritual

como a que o Tibete expressava se acha misteriosa e indecifravelmente unida a um

marco humano e geográfico determinado, fora do qual os elementos que a integram

correm o risco de perder a força de coesão que os aglutina e lhes dá a sua eficácia³.

Assim, pois, entendemos que, a um nível global, o Ocidente tem saído

igualmente perdendo com a nova situação criada a partir de 1959, e achamos que a

única atitude de seguros frutos para o próprio Ocidente, atitude tão nobre quanto

utópica, verdade seja dita, dadas as circunstâncias, seria a de tentar que "o tibetano"

fosse restituído ao Tibete.

Foi dito antes que uma comunidade tradicional era uma matriz preparada

para acolher uma semente espiritual concreta. O Tibete o foi para o budismo, e, mais

particularmente, para o budismo tântrico, que nele achou o receptáculo privilegiado

para a sua melhor floração. Não obstante, a equação Tibete = budismo tântrico não é

absoluta em nenhum dos dois sentidos. Nem a realidade do Tibete se reduz à de ser

uma expressão da essência dessa via espiritual, nem a realidade desta se esgota, por

sua vez, na expressão que recebeu do Tibete.

Dentro das fronteiras do Mahâyâna, foi-se desenvolvendo uma corrente

particular que, integrando diversos elementos que se encontram igualmente no seio

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do hinduísmo, chegou a se constituir numa "terceira via", numa terceira "colocação em

movimento da roda do Dharma", e ofereceu um caminho rápido, um atalho, para

chegar ao objetivo final perseguido por todas as escolas budistas. Se o Mahâyâna se

baseia nos sütras, que recolhem os sermões dos últimos anos da vida do Buda

Sâkya-muni — nos quais aparece de forma explícita a dimensão misericordiosa e

esotérica do Dharma —, o budismo tântrico se baseia nos tantras. Os tantras são

textos para os quais não se reivindica uma filiação determinada e cuja função consiste

em indicar os meios "técnicos" a serem utilizados para alcançar o fim proposto. Meios

entre os quais poderíamos distinguir: os relacionados mais especificamente com a

Ioga, os que se enquadram no Dhyâna (meditação), e aqueles que podem ser

denominados "alquímicos", isto é, aptos para trans-mudar as disposições "naturais" da

alma, para espiritualizá-las, de acordo com a perspectiva geral do tantrismo, para o

qual as paixões não são más em si mesmas, e não devem, portanto, ser destruídas,

mas sim, "convertidas", ou seja, reconduzidas à Verdade, da qual, em determinadas

ocasiões, não são senão expressões aberrantes.

O conjunto destes meios se integra num esquema tríplice, que corresponde

ao "Tríplice Mistério do Corpo, da Palavra e da Mente": por uma parte, os "ritos de

consagração" (ou iniciações: abhiseka); por outra, as invocações de mantras; e,

finalmente, as práticas de meditação. Conhece-se esta via como Mantrayâna ou,

sobretudo, como Vajrayâna ("Veículo diamantino"), o qual é reconhecido pelo símbolo

que o distingue em especial: o vajra. Este, originariamente, representava o raio, como

atributo do deus hindu Indra, um equivalente do Zeus grego; metafisicamente,

simboliza o princípio masculino da manifestação universal. A idéia subjacente a esta

palavra, não obstante, é a de imutabilidade e indestrutibilidade; assim, na perspectiva

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budista, se a entende como aplicada à "senhora das pedras" (isto é o que exatamente

quer dizer a sua tradução tibetana: dorje I rdo I rje I): o diamante. Serve para

simbolizar o método espiritual (upâya; tibetano, thabs), a força invencível e pura que

opera o milagre de que "cheguemos a ser o que somos". O vajra se concretiza num

objeto ritual à maneira de cetro, o qual é o distintivo específico do lamaísmo, a forma

tibetana do budismo tântrico.

O budismo tântrico, entretanto, como foi dito anteriormente, não esgota a sua

realidade na do lamaísmo. Nascido na índia e cultivado em centros tão prestigiosos

como a Universidade de Nâlandâ, um dos centros máximos da irradiação do budismo

mahâyâna, o budismo tântrico teve, certamente, no Tibete um depositário providencial,

que, fazendo-o seu, o preservou de uma possível extinção. As devastações efetuadas

nos séculos XI e XII pelos invasores islâmicos haviam causado um dano irreparável

aos centros budistas da índia e transferido ipso facto ao Tibete a condição de centro

do budismo mahâyâna. De qualquer maneira, paralelamente à implantação do

budismo tântrico no Tibete, ocorreu também a sua implantação no Japão,

fundamentalmente por parte daquele que fora um dos expoentes máximos da

espiritualidade budista: Kükai, conhecido por seu título póstumo de Kôbô Daishi. Este

criou, no início do século IX, a escola que é, provavelmente, a forma mais

quinta-essenciada do budismo tântrico: o shingon, escola que continua, hoje,

plenamente florescente no Japão. O que nos parece mais interessante destacar a este

respeito é o fato de Kükai ter recebido este ensinamento de mestres chineses, os

quais, por sua vez, haviam-no recebido diretamente de mestres hindus de Nâlandâ.

Por outro lado, essa particular amálgama do budismo tântrico com formas

mágico-chamânicas ancestrais, amálgama que caracteriza o lamaísmo e lhe dá o seu

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timbre peculiar, tampouco é exclusiva deste, pois aparece igualmente no shingon

japonês. Isto parece indicar que essa amálgama responderia mais a uma íntima

solidariedade, possível de se encontrar na própria natureza das coisas, do que a uma

mera integração circunstancial de elementos presentes em determinadas condições

de tempo e de lugar.

De qualquer maneira, a "originalidade" do Tibete estaria no fato de ele ter-se

identificado majoritariamente como povo com essa forma espiritual concreta, e de ter

extravasado nela todo o seu "gênio", produzindo uma síntese única e exemplar, de

uma riqueza, sob todos os aspectos, extraordinária.

Na consciência tibetana, distinguem-se duas ordens: a que depende de uma

Lei divina (Lha-chos) e a baseada numa tradição humana (mi-chos). Na primeira

categoria entram, na história tibetana, não apenas os últimos mil e duzentos anos,

regidos pelo Dharma (chos), em tibetano búdico, mas, também, o período

indeterminado anterior, regido pelo que se conhece como religião Bon. Tudo o que faz

referência a esta permanece ainda muito pouco esclarecido, e acaba sendo muito

difícil distinguir, particularmente, o que ela poderia ter sido em sua fase pré-budista, e

o que hoje ela é. Para os seus praticantes, a Bon atual é a mesma que em suas

origens, as quais coincidiriam com as do Tibete como povo; para os budistas,

entretanto, o que hoje se conhece como Bon não é mais do que uma heterodoxia

budista, surgida como reação ao triunfo do budismo no Tibete — e este é, certamente,

o aspecto sob o qual o budismo tibetano, em geral, tem sido apresentado pelos

estudiosos ocidentais que dele se têm ocupado. De todo modo, parece existir, sim,

uma vinculação entre o Bon pré-budista e as origens do povo tibetano como tal, pois

este último procederia concretamente do que hoje é o Tibete ocidental,

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particularmente a região do Monte Kailas, que continua sendo hoje a região Bon por

excelência.

Além disso, não é possível estabelecer uma categorização rígida em torno

das duas noções de lha-chos e de mi-chos, pois, em função dos elementos de que se

dispõe, sua linha de demarcação é imprecisa. Por um lado, parece que somente o

budismo poderia reivindicar o primeiro qualificativo; mas, por outro lado, é provável

que o budismo tenha chegado a gozar do mesmo apenas por extensão, pois este

corresponderia por definição ao Bon. Entretanto, caberia, ainda, distinguir entre um

"Bon do céu" (gnam-Bon), primordial e atemporal, e o "Bon da esvástica" (g-yung

drung Bon), de origens históricas. De qualquer forma, mesmo o primeiro destes não

teria uma vinculação exclusiva com as origens míticas do Tibete, as quais estariam

representadas, de igual maneira, pelos dois elementos básicos que compõem o

mi-chos: os "contos míticos" (sgrung) e as lendas ou "enigmas" (Ide 'u). Assim, um

texto tibetano nos diz que, durante a vida do primeiro soberano mítico do Tibete,

apareceram conjuntamente o lha-chos, os sgrung e os lde'u, entendendo-se pelo

primeiro o "Bon do céu". Mas, e para aumentar a confusão, no relato sobre esse

primeiro rei mítico do Tibete contido na presente coleção, vê-se que, ao chegar esse

personagem ao Tibete, já havia neste "sacerdotes da antiga religião".

Em todo caso — e este é justamente o dado que nos interessava destacar

em especial —, o que sempre aparece designado como michos (que poderíamos

traduzir como "sabedoria popular"4) são esses sgrung e lde'u vinculados a um

passado mítico, assim como a instituição que tem como missão conservá-los e

transmiti-los: a dos bardos (sgrung-mkham). Parece-nos particularmente significativo

o fato de estudiosos ocidentais terem designado com o nome de "bardos" os cantores

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tibetanos de contos míticos, pois as analogias que estes apresentam com os bardos

celtas são notáveis. Estes últimos, transmissores dos ensinamentos dos druidas —

que prolongavam, de certo modo, a própria função destes como sacerdócio não

vinculado a uma religião histórica, mas a uma sabedoria primordial — encontram um

fiel reflexo nos sgrung-mkham tibetanos. Estes continuaram a existir depois da

instauração definitiva do budismo no Tibete, e, assim, a situação deste parece-nos

insinuantemente análoga à que se encontra na Idade Média em certos povos celtas

cristianizados, nos quais os vestígios da antiga ordem permeavam ainda todas as

camadas da tradição.

E a este respeito, parece-nos particularmente digno de nota o fato de o tema

por excelência dos bardos tibetanos ser o da saga do rei Gesar de Ling, personagem

equivalente ao Artur céltico; saga onde, quanto ao mais, aparecem muitos elementos

perfeitamente homologáveis aos que nos oferece o ciclo do Graal.

A narração dos contos possuía, no Tibete, o caráter de rito e devia ser

praticada respeitando uma série de requisitos. Quem a ela se dedicava devia possuir

uma série de condições também especiais, pois sua função era de grande

responsabilidade, da qual dependia, em grande parte, a preservação do que hoje

chamaríamos de indícios da identidade de um povo. O bardo tibetano, que se vestia

com um estranho chapéu, de caráter marcadamente simbólico e parecido ao dos

bufões das cortes medievais, não somente era poeta, cantor e músico, de memória

perfeitamente treinada, mas era também um chama, que, como os famosos oráculos

(chos-skyong) lamaicos, recebia sua inspiração em estados de transe.

Entretanto, nessa tarefa de transmitir a informação tradicional, os bardos não

estavam sozinhos: monges errantes, narradores ambulantes manipa e os próprios

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peregrinos participavam dessa incumbência.5 Por outro lado, o próprio povo, dotado

dessa magnífica e quase prodigiosa memória que somente se dá nas culturas de

tradição oral, mantinha vivas e enriquecia, sem com isto desvirtuá-las, as narrações

tradicionais. Tem-se dito que a narração de contos foi o equivalente, no Tibete, da

nossa televisão. Isto, muito mais do que um chiste, vem revelar uma autêntica

analogia, pois ambas — narração de contos e televisão — vieram para cumprir, com

efeito, o mesmo encargo: transmitir os mitos de uma cultura. Só que, no caso dos

contos tibetanos, os mitos informavam autenticamente sobre a realidade das coisas, e

a sua narração se ajustava também a esta realidade, razão pela qual se podia dizer

que no Tibete "o Céu escutava os contos".6

Queríamos referir-nos agora ao Tibete em sua condição de pátria de eleição

do budismo tântrico. Nesta dimensão, deve incluir-se não somente o Tibete estrito,

mas, também, as demais zonas de população tibetana situadas ao longo dos

Himalaias (como Ladakh, Zaskar, Lahul, a oeste; Mustang, no centro; e Bhután,

Darjeeling e Sikkim, a este, entre outras) e a Mongólia, que recebeu o budismo

tântrico do Tibete mais tardiamente.

O budismo tibetano, o lamaísmo, é, fundamentalmente, como havíamos dito

antes, uma amálgama do budismo tântrico hindu com a religião e as crenças

populares autóctonas, de tipo mágico-chamânicas. Reconhece-se o lamaísmo pela

função primordial que nele desempenha a figura do lama (blama), quem, em rigor, é o

mestre espiritual; entretanto, o mesmo título é também aplicado ao que chamaríamos

de "dignidades eclesiásticas". Embora o lamaísmo constitua um corpo homogêneo,

comporta, no entanto, urna diversidade interna, fruto basicamente da maior ou menor

importância dada aos distintos elementos que o integram. Estruturado, na maior parte

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— embora não de forma exclusiva — em torno do modelo de vida monástica essa

diversidade se traduz na existência de distintas ordens: quatro, fundamentalmente,

que são as que assumem a função ativa, poderíamos dizer, com respeito à custódia e

à prática da doutrina budista. O povo simples participa disso de uma forma adaptada

às suas possibilidades, dado o caráter propriamente iniciático dessa via; mas o seu

"gênio" tem posto a marca peculiar que possuem as manifestações exteriores da

mesma, as quais dão forma à imagem que dela se possui no Ocidente.7

No entanto, por ser o resultado da inteiração recíproca do substrato religioso

e cultural com a doutrina budista, é difícil determinar, por este motivo, o que

corresponde, no lamaísmo, a desenvolvimentos próprios da doutrina budista, e o que

corresponde a contribuições do substrato religioso e cultural. Da mesma forma,

inversamente, acaba sendo difícil decidir até que ponto esse substrato foi modificado

pelo budismo, ou está apenas recoberto de uma roupagem búdica ao ser expressado.

Esta dificuldade é melhor apreciada, mais precisamente, nos relatos da presente

coleção, nos quais se observa como temas ancestrais estão expressos em termos

budistas ou receberam uma orientação budista.

O budismo não penetrou no Tibete, foi convidado para ele — ponto este que

estimamos da maior significação. Estabelecido o budismo, havia já muito tempo, em

Cachemira, na China e nas zonas da Ásia Central em contato com o Tibete, este

permaneceu à margem de sua irradiação até meados do século VII da nossa era. Foi,

então, quando o rei do Tibete, Song-tsen Gampo (Srong-brstan-sgampo), que por este

motivo passou a ser considerado o primeiro chosrgyal (Dharma-raja, em sânscrito),

deu os primeiros passos para a introdução do budismo no Tibete. Esta iniciativa veio a

ser propiciada, ao que parece, pela condição de budistas de duas de suas esposas:

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uma princesa chinesa, Wen-ch'eng, e uma princesa nepalesa, Bhrikutim, as quais

teriam convencido o rei nesse sentido. Tudo isto, entretanto, não é mais que o

translado de uma realidade espiritual: tradicionalmente, as duas princesas são

consideradas como sendo a encarnação de Târâ, à qual nos referiremos a seguir, e ao

próprio rei como a encarnação de Avalokitesvara.8

Târâ, divindade menor do hinduísmo, passou a ter um papel destacado no

budismo tântrico. Neste, Târâ é, fundamentalmente, uma personificação do aspecto

feminino da Misericórdia9. Não obstante, é comum que apareça representada, na

iconografia tibetana, sob vinte e um aspectos agrupados ao redor de um único

aspecto central,10 no qual se considera o mentor de Vairocana (ou Amoghasiddhi,

segundo as escolas), a personificação da "budeidade" universal. Além disso, faz-se,

com freqüência, a distinção entre a Târâ branca (sita-Târâ); tibetano, sgrol-dkar) e a

Târâ verde (syma-Târâ; tibetano, sgrol-ljang), as quais são, respectivamente, a

padroeira da Mongólia e a padroeira do Tibete. E teriam sido justamente estes dois

aspectos os que se encarnaram, respectivamente, na princesa chinesa e na princesa

nepalesa, fazendo com que Târâ se tornasse a "responsável" pela introdução do

budismo no Tibete. Vejamos como isto pode ser explicado:

Târâ é, também, assimilada a outra divindade, Prajnãâpâramitâ

personificação de Prajnâ — a beatitude e a misericórdia inerentes à Sabedoria, ou à

sabedoria do coração, cujo equivalente poderíamos encontrar na designação da

Virgem Maria como Sedes Sapientiae. E, dos dois pólos — entre os quais se articula

toda a doutrina do budismo mahyâ-na — prajnâ é o pólo feminino; o outro, o pólo

masculino, é upâya. Cada um deles se baseia naquilo que são, respectivamente, os

autênticos fundamentos dessa via: o Vazio (sünyatâ)u e a compaixão ativa (karuná).

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Prajnâ, expressão do Vazio, representa a femi-nidade do princípio, a

receptividade primordial, que se abre à ação do upâya (que, neste caso, poderíamos

assimilar ao logos spermatikós) a fim de que, com a união de ambos, seja alcançada a

iluminação espiritual. E assim, pois, fazendo de Târâ a sua padroeira, o Tibete a faz,

poderíamos dizer, o seu epônimo — a expressão da sua própria disponibilidade para

acolher o upâya búdico. Em tibetano, Târâ é conhecida como Dolma ("Salvadora"), ou,

mais especificamente, como a "fiel Dolma" (damtshig sgrol-ma). Pois bem, darn-tshig

(sânscrito, samaya, o voto de fidelidade) representa (diz-nos o Lama Anagarika

Govinda) a "consagração ao Buda em seu próprio coração", e designa a atitude de

devoção popular como na meditação iniciática. Assim, a Târâ verde, como padroeira

do Tibete, simboliza, acreditamos, a própria consagração deste ao budismo, o seu

"convite" para o mesmo.

Voltando ao plano histórico, diríamos que a implantação do budismo no

Tibete ainda demoraria muito a se tornar definitiva, e teria de sofrer numerosas

vicissitudes. Vamos nos restringir a dizer, unicamente, que, entre as figuras principais

na consecução dessa implantação, destaca-se a de Pad-masambhava,12 a quem,

geralmente, se considera como o autêntico responsável pela mesma; e que uma das

figuras mais exemplares foi o famoso asceta Milarepa, que passou a assumir, de certo

modo, a condição de modelo da espiritualidade tibetana. Mais recentemente, uma das

figuras decisivas na história do lamaísmo foi Tsong-kha-pa (1357-1419), o grande

reformador ortodoxo do budismo monástico. Criador da ordem Gelugpa (Dge-lugs-pa),

ou ordem dos "bonés amarelos", como é comumente conhecida, Tsong-kha-pa insistiu

no celibato dos monges e estabeleceu, de forma geral, uma maior disciplina

monástica. A partir de 157, o chefe da ordem Gelugpa passou a ostentar o título de

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Dalai-Lama e a soberania do Tibete, por concessão do soberano mongol Altai-Khan,

situação que perdurou até que os comunistas chineses se apoderassem do Tibete.

Outro particular ao qual gostaríamos de nos referir é o de que,

concomitantemente a essa primeira iniciativa a favor da adoção do budismo, o rei

Song-tsen Gampo mandara a Cachemira um de seus ministros, Thonmi Sambhota, a

fim de que trouxesse a escrita e a gramática hindus. Com a adoção e a adaptação

destas,13 criou-se o tibetano literário (que permanece intacto até hoje), o qual haveria

de servir, fundamentalmente, para a magna tarefa de verter ao tibetano todos os

textos budistas que se pudessem obter. Com isso, criou-se o cânone budista tibetano,

dividido em dois corpus: o Kanjur (Bka-gyur), que recolhe os ensinamentos de Buda e

que se compõe tradicionalmente de 108 volumes; e o Tanjur (Bstan-gyur), o qual

contém os comentários e consta de mais de 300 volumes. Entre os dois, estão

compilados quase 5.000 textos, que não incluem, entretanto, tudo o que ainda pode

ser encontrado de inspiração búdica na tradição tibetana: hagiografia, teatro, contos,

poemas, máximas etc.

* * *

Na seleção dos relatos que compõem este livro, oferece-se um mostruário

básico dos campos cobertos pelos relatos populares tibetanos. Desde os mitos

cosmogônicos até as fábulas de animais, passando pelas lendas e pelas histórias

edificantes, estes relatos nos oferecem, além disso, um breve mosaico do povo

tibetano, das suas formas de vida e das suas crenças. Mas nos falam, sobretudo, da

sua fidelidade à Verdade, fidelidade que tem levado milhares de tibetanos a um exílio

Page 18: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

voluntário, acompanhando a sua cabeça visível. Se a Shekhinah acompanhou o povo

de Israel em seu exílio, sem dúvida a "fiel Dolma" acompanha o fiel Tibete no seu.

Notas

1. A designação de "País das neves do Norte" (kha-bacanj, aplicada ao Tibete,

assim como a de "Teto do mundo" (que divide com o Pamir, devem ser entendidas

primordialmente como designações simbólicas, e não como expressão de uma

simples contingência. Além disso, o Tibete não é particularmente rico em neves.

Constituído em sua maior parte por uma árida meseta, conta com precipitações muito

escassas.

2. Ou "Nação dos santos", qualificativo não só exagerado, mas absurdo, que

também chegou a circular. Nem o Tibete era um imenso Athos como se parecia

acreditar, nem tampouco era literalmente o Paraíso, único lugar que poderia justificar a

segunda designação. O Tibete era uma nação de homens que se regiam conformes

com a Verdade e que viviam compenetrados da consciência da transitoriedade das

coisas — e isto é muito mais do que se pode conseguir nas condições atuais da

humanidade.

3. É semelhante ao que ocorre com o Japão. O Ocidente "ocidentalizou” este

país e depois quis tirar proveito de elementos isolados de sua cultura tradicional,

desde o Zen ao Ikebana, para dar dois exemplos.

4. Mas não no sentido banal que hoje pode ser atribuído a esta expressão,

mas no de uma sabedoria vinculada à essência de um povo como tal. Metafisicamente,

toda coisa existente é um "saber", ou melhor, a expressão de um modo de

conhecimento, e isto vale igualmente para um ente coletivo.

Page 19: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

Inclinamo-nos mais a ver no mi-chos tibetano uma ordem baseada numa

sabedoria atemporal e, poderíamos dizer, inertes; e não uma ordem profana, baseada

numa "lei" que o povo se dá a si mesmo. Do mesmo modo, tampouco o associaríamos

a um estado de "paganismo", como o da Arábia pré-islâmica, por exemplo.

5. Devemos citar igualmente, neste contexto, os mistérios sacramentais

(a-che-lha-mo, em tibetano), forma de teatro de uma importância extraordinária no

Tibete.

6. Para todo o relativo ao parágrafo que acabamos de tratar, seria de grande

proveito consultar a importante obra de R. A. Stein, Recherches sur 1'epopée et le

barde au Tibet, P.U.F. "Bibliothéque de 1'Institut des Hautes Études Chinoises", vol.

XIII, Paris, 1959.

7. Estas manifestações, desde as bandeirolas de preces até as danças de

máscara (Cham), passando pelas decorações dos santuários domésticos,

caracterizavam a "paisagem budista do Tibete, tanto quanto as manifestações

estritamente monásticas.

8. A propósito deste, veja-se a nota 1 do segundo relato deste livro.

9. Veja-se, igualmente, a este respeito, o segundo relato.

10. Neste, sempre se a representa com a cor verde, enquanto que, nos

outros vinte e um, recebe as cores branca, vermelha e amarela.

11. Veja-se nota 1 do primeiro relato.

12. Veja-se a seu respeito o quarto relato, particularmente a nota 1.

13. Atualmente, existe uma diferença considerável entre a pronúncia do

tibetano coloquial e a ortografia que se fixou para o tibetano literário com este modelo.

Daí, as duas formas com que correntemente aparecem transcritos os nomes

Page 20: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

tibetanos: uma, que representa a pronúncia real, e outra, que é uma transliteração da

sua forma escrita.

A CRIAÇÃO

No princípio era a Vacuidade¹, um imenso vazio sem causa e sem fim. Deste

grande vazio, levantaram-se suaves redemoinhos de ar, que, depois de incontáveis

eons, tornaram-se mais densos e pesados, e formaram o poderoso cetro duplo do raio

— o Dorje Gyatram².

O Dorje Gyatram criou as nuvens; estas, por sua vez, criaram a chuva. A

chuva caiu durante muitos anos, até formar o oceano primogênio, o Gyatso.3 Depois,

tudo ficou calmo, tranqüilo e silencioso, e o oceano ficou límpido como um espelho.

Pouco a pouco, os ventos voltaram a soprar, agitando suavemente as águas

do oceano, batendo-as continuamente, até que uma leve espuma apareceu na sua

superfície. Assim como se bate a nata para fazer manteiga do mesmo modo as águas

do Gyatso foram batidas pelo movimento rítmico dos ventos para transformá-las em

terra.

A terra emergiu como uma montanha, e ao redor de seus picos o vento

sussurrava incansável, formando uma nuvem atrás da outra. Das nuvens caiu mais

chuva, mas, desta vez, mais forte ainda e carregada de sal; daí se originaram os

grandes oceanos do universo.

O centro do universo é o Rirap Lhunpo (Sumeru),4 a grande montanha de

quatro caras, feita de pedras preciosas e cheia de coisas maravilhosas. Existe rios e

Page 21: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

arroios no Rirap Lhunpo, e muitas espécies de árvores, frutos e plantas, pois o Rirap

Lhunpo é especial: é a morada dos deuses e dos semi-deuses.

Rodeando o Rirap Lhunpo, há um grande lago, e, em volta deste, um círculo

de montanhas de ouro. Depois do círculo de montanhas de ouro, existe outro lago,

também cercado de montanhas de ouro, e, assim, sucessivamente, até se

completarem lagos e sete círculos de montanhas de ouro.5 E, mais além do último

círculo de montanhas, está o lago Chi Cyatso.

No Chi Cyatso se encontram os quatro mundos, cada um deles semelhante a

uma ilha, com sua forma particular e seus diferentes habitantes.

O mundo do Este é o Lu Phak, que tem a forma de meia-lua. As pessoas do

Lu Phak vivem quinhentos anos e são pacíficas; não há contendas no Lu Phak. Seus

habitantes têm corpos gigantescos e caras em forma de meia-lua. Entretanto, não são

tão felizes como nós, pois não têm nenhuma religião para poder seguir.

O mundo do Oeste se chama Balang Cho e sua forma é a do sol. As pessoas

do Balang Cho são, como as do Lu Phak, de grande estatura e vivem quinhentos anos.

Suas caras têm também a forma do sol. Dedicam-se à criação de diversas espécies

de gado.

A terra do Norte tem a forma quadrada e se chama Dra Mi Nyen. As pessoas

de Dra Mi Nyen são de caras quadradas e vivem mil anos ou mais. Em Dra Mi Nyen, a

comida e a riqueza são abundantes. Tudo o que um homem necessita nos seus mil

anos de vida é obtido sem esforço ou padecimento. Vivem com luxo, sem precisar de

nada. Mas, durante os sete últimos dias de sua vida, a dor e o tormento anímicos

acometem os seres de Dra Mi Nyen; e é, então, que recebeu um sinal de que estão

para morrer. Visita-os uma voz — uma voz terrível — que lhes sussurra como vão

Page 22: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

morrer e que monstruosos sofrimentos terão de suportar nos infernos, depois da morte.

Em seus últimos sete dias de vida, todas as suas riquezas e posses diminuem, e eles

experimentam um sofrimento maior do que o nosso numa vida inteira. Dra Mi Nyen é

conhecida como a "Terra da Voz Pavorosa".

O nosso próprio mundo fica ao sul e se chama Dzambu Ling.6 No começo,

ele foi habitado por deuses de Rirap Lhunpo. Não havia dor nem enfermidades, e os

deuses nunca necessitavam de comida. Viviam a contento, passando seus dias em

profunda meditação. Não havia necessidade de luz em Dzambu Ling, pois os deuses

emitiam uma luz pura de seus próprios corpos.

Certo dia, porém, um dos deuses reparou que na superfície da terra havia

uma substância cremosa; provando-a, sentiu que era deliciosa ao paladar; por isso,

animou os outros deuses a que a experimentassem também. Todos os deuses

gostaram tanto da substância cremosa, que não quiseram mais saber de comer outra

coisa. Sucedeu, porém, que quanto mais comiam, mais se reduziam os seus poderes.

E já não foram mais capazes de permanecer sentados em profunda meditação. A luz,

que antes brotava resplandecente de seus corpos, começou, a pouco, a se extinguir,

até que, por fim, desapareceu por completo. O mundo ficou submerso em trevas e os

grandes deuses do Rirap Lhunpo se converteram em seres humanos.

Foi, então, que, na escuridão da noite, apareceu, no céu, o sol. E, quando o

sol se apagava, a lua e as estrelas iluminavam o céu e davam luz ao mundo. O sol, a

lua e as estrelas surgiram devido às boas ações passadas dos deuses, e são, para

nós, a lembrança permanente de que o nosso mundo foi, um dia, um lugar lindo e

tranqüilo, sem cobiças, sofrimentos e dor.

Quando o povo de Dzambu Ling esgotou a provisão da substância cremosa,

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começou a comer os frutos da planta nyugu. Cada um tinha a sua própria planta, que

produzia um fruto semelhante ao das messes. E todo dia, quando o fruto já havia sido

comido, aparecia outro — um por dia — e isto bastava para satisfazer a fome dos

seres de Dzambu Ling.

Certa manhã, um homem despertou e descobriu que a sua planta, em vez de

produzir um único fruto, havia dado dois. Tomado de avidez, o homem comeu os dois

frutos. No dia seguinte, porém, a sua planta estava vazia. Necessitando satisfazer a

fome, o homem roubou o fruto da planta de outro homem; e assim foram fazendo

todos, pois um teve que roubar o outro para poder comer. Com o roubo, chegou a

cobiça, e todos, temendo não ter o que comer, começaram a cultivar mais e mais

plantas nyugu. Com isso, tiveram de trabalhar cada vez mais, a fim de se

assegurarem de que haveria o suficiente para comer.

Coisas estranhas começaram a ocorrer em Dzambu Ling. O que antes havia

sido uma tranqüila morada de deuses do Rirap Lhunpo, estava agora cheio de

homens que conheciam o roubo e a cobiça. Um dia houve em que um homem

começou a sentir certo mal-estar nos órgãos genitais e, por isso, os cortou:

converteu-se, assim, numa mulher. Essa mulher manteve contato com homens e logo

teve filhos, os quais, por sua vez tiveram mais filhos. Em pouco tempo, Dzambu se

encheu de gente, e essa gente teve que se procurar comida e um lugar para viver.

Juntas, as pessoas de Dzambu Ling não conseguiam viver em paz. Havia

brigas e roubos, e os homens do nosso mundo começaram e experimentar um

sofrimento autêntico profundo, que nascia do estado de insatisfação em que se

encontravam. O povo percebeu que, para sobreviver, tinha que se organizar. Todos se

reuniram e decidiram eleger um chefe, a quem chamaram de Mang Kur — que

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significa "muita gente o tornou rei". Mang Kur ensinou o povo a viver numa relativa

harmonia, com uma terra própria onde construir uma casa e cultivar alimentos.

E assim foi como o nosso mundo veio a existir: como, de deuses, nos

convertemos em seres humanos, sujeitos à enfermidade, à velhice e à morte.7

Quando contemplamos o céu, de noite, ou recebemos o cálido brilho do sol,

deveríamos recordar que, se não fossem as boas ações dos deuses da preciosa

montanha de Rirap Lhunpo, viveríamos numa total escuridão; e, se não fosse a cobiça

de uma pessoa, nosso mundo não conheceria o sofrimento que hoje experimenta.

Notas

1. Sünyatâ, em sânscrito, e stong-pa-nyd, em tibetano. Noção capita! da

doutrina budista, que concebe o Princípio supremo, a Realidade última, não de modo

objetivo, a partir de seus reflexos na manifestação (porque estes reflexos incluem

também, embora por desvio, o nosso pensamento e o nosso ego, que são

precisamente os escolhos a serem transpostos); mas, de modo subjetivo, a partir da

experiência dessa Realidade no interior de nós mesmos. Assim, a Realidade última se

identifica com esse mistério de infinitude que se descobre no íntimo das coisas, com

esse mar de bem-aventurança onde a sede (trhnâ) de existir se aplaca

definitivamente; e que, ao permitir a saída da falsa plenitude da existência, se mostra

como um "vazio" (sânya). Partindo do ensinamento inicial da não-permanência das

coisas, e de sua ausência de realidade própria (anâtman; páli, anattâ), chegou-se, na

metafísica do Mahâyâna, a este postulado essencial da "Vacuidade", como

fundamento de tudo o que existe, postulado que constitui um dos dois pólos desta

forma de budismo, sendo o outro o da compaixão (karunâ) do bodhisattva em relação

Page 25: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

a todos os seres.

Esta doutrina foi formalizada por Nâgârjuna, no século II, e constitui o sistema

chamado "Do caminho médio" (Mâdhyamika), ou, também, Sünyavâda, em virtude do

seu princípio básico.

2. O vajra duplo (visva-vajra, também chamado karma-vajra) é, como a

svastika, um símbolo da ação do Princípio com respeito ao mundo manifesto. Está

formado pela união de dois vajra-s dispostos em cruz.

No budismo mahâyâna, que, de acordo com a sua perspectiva, "inverte",

poderíamos dizer, a orientação, o vajra duplo é o emblema do Dhyâni Buddha

Amoghasiddhi; este expressa a plenitude e a realização completa do caminho do

bodhisativa, e é, igualmente, o Senhor do elemento "ar" ou "vento" (vâyu), o qual não

é senão o "spiritus" que "adejava sobre a superfície das águas" no Gênesis.

3. Poderíamos assinalar, a título de informação, que esta palavra tibetana

Gyatso (rGya-mtsho), que significa grande oceano, serve de apelativo para o que, no

Ocidente, é conhecido como Dalai Lama, pois "Dalai" não é senão uma forma

inglesada do mongol "tale", que significa a mesma coisa. Assim, pois, o nome do atual

Dalai Lama é, em tibetano, Tenzin Gyatso (Bstan-dzin-rgymtsho).

4. É o monte Mêru da tradição hindu, a montanha "polar", o eixo do mundo, o

ponto fixo ao redor do qual se efetua a rotação do mundo. Como centro do mundo,

corresponde ao Paraíso terrestre do atual ciclo da humanidade (Manyantara).

Identifica-se com o monte Kailas (Kailâsa), em tibetano Gang Tisé, situado no

Tibete ocidental e centro de peregrinações, tanto para os hindus como para os

budistas.

5. São igualmente os sete dyípas da tradição hindu, que emergem

Page 26: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

sucessivamente no transcurso de determinados períodos cíclicos, tendo todos por

centro o monte Mêru.

6. O Jambu dyípa da tradição hindu. Identificado popularmente com a índia,

por estar esta, geograficamente, justo ao sul do monte Kailas, corresponde, na

verdade, ao nosso mundo terreno, em seu conjunto e em seu estado atual.

7. É praticamente a mesma explicação das origens do homem e da sua

queda que oferece um texto budista páli — o Agganna-Sutta —, cuja síntese, de

Frithjof Schuon (lmages de VEsprit, Paris, 1982, pp. 102-103. n. 48), consideramos

interessante citar: "A materializaçao progressiva do homem e do seu contorno se deve

ao fato de que os homens primordiais e "pré-materiais" — que brilhavam como astros

com luz própria, moviam-se nos ares e alimentavam-se de Beatitude — se puseram a

comer a terra, quando a superfície terrestre emergiu das águas. Esta terra primordial

era colorida, perfumada e doce, mas os homens, alimentando-se dela, perderam sua

irradiação; foi, então, que apareceram o sol e a lua, o dia e a noite... Mais tarde, a terra

deixou de ser comestível e se limitou apenas a produzir plantas comestíveis. E, mais

tarde ainda, somente se pôde comer um número reduzido de vegetais. Daí ter tido o

homem de se alimentar a preço de duras fadigas. As paixões e os vícios, e, com eles,

as adversidades, haviam entrado, progressivamente, no mundo".

E o mesmo autor menciona, em outro lugar (Tour d'horizon d'anthropologie

intégrale, "Connaissance des Religions", vol. l/n." 4, Mars 1.986, p. 159): "O homem

original não foi um ser simiesco, quase incapaz de falar e de se manter em pé. Foi um

ser quase imaterial, encerrado numa aura ainda celeste, mas colocada na terra, e que

se parecia à 'carroça de fogo' de Elias e à nuvem que envolveu a Cristo em sua

ascensão."

Page 27: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

Enquanto respire um único ser vivo,

onde quer que ele esteja,

aí, compadecido,

o Buda aparecerá,

encarnado.

NGON TOK GYEN

OPAME, CHENREZIK Y DOLMA

O Buda celeste Opame (Amithâba), olhando para baixo desde a sua Terra

Pura, contemplou o mundo e viu o sofrimento de todos os seres. Opame sentiu uma

grande compaixão por eles. Deste sentimento de compaixão nasceu Chenrezik

(valakiteshvara), a encarnação da compaixão, o Senhor da Compaixão.1 As

montanhas se abriram e a água saiu em torrentes, cobriu a terra e correu até o

Oceano Índico. Chenrezik apareceu numa ilha no centro de Lhasa, e, vendo o

sofrimento dos seres, fez o voto de ajudá-los a alcançarem o Nirvana, a realidade

última, a paz. Chenrezik fez o voto de não abandonar este mundo sem que todos, até

mesmo a última fibra de erva, alcançassem a paz.

Havia no lago muitos seres e todos eles clamavam por um corpo. Ouvindo

suas vozes, Chenrezik deu-lhes os corpos que pediam. Mas os corpos eram todos

iguais, e, por isso, os seres suplicaram por se diferenciarem uns dos outros. Chenrezik

Page 28: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

deu, então, a cada um dos seres um corpo distinto, cada um deles característico e

diferente dos demais.

Chenrezik, o Senhor da compaixão, pregou o Dharma, o ensinamento de

todos os Budas, a fim de que todos os seres do lago, em número incontável,

pudessem alcançar o Nirvana. Muitos seres o alcançaram. Mas, cada vez que

Chenrezik voltava ao lago, havia muitos mais seres, muitos e muitos mais que os que

já havia podido ajudar. De novo, Chenrezik pregou o Dharma, e, de novo, muitos

alcançaram o Nirvana.

Quando Chenrezik contemplou o lago pela terceira vez e tornou a ver tantos

seres necessitando ajuda, encheu-se de desespero. E compreendendo a

impossibilidade da tarefa que se havia imposto, clamou ao Buda celeste Opame para

que revogasse o seu voto, pois agora considerava a tarefa demasiado grande para

que ele, sozinho, pudesse realizá-la. Em seu desespero e compaixão, o corpo de

Chenrezik se fragmentou em inumeráveis pedaços.

Vendo a sua situação, Opame reconstruiu o seu corpo, dando-lhe ainda mais

poder para ajudar a todos os seres vivos. Chenrezik tinha agora onze cabeças,

coroadas pela cabeça do próprio Opame, e mil braços, e ainda um olho onividente na

palma de cada mão.2

Mas, mesmo assim, inclusive com os mil braços e com as onze cabeças,

Chenrezik considerou impossível a realização da sua tarefa. Os seres eram

incontáveis e suas mentes estavam completamente toldadas por pensamentos

impuros. Chenrezik chorou. E, de uma lágrima cristalina de sua face, nasceu Dolma

(Târâ), para ser-lhe sua ajuda.3

Assim, pois, não existe um só ser, por insignificante que seja, cujo sofrimento

Page 29: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

não chegue a ser visto por Chenrezik ou por Dolma, e que não possa ser atingido por

sua compaixão.

Notas

1. Amithâba ("luz infinita"), em tibetano Opame (Od-d pag-med), é um dos

chamados Chyâni Buddas no budismo tântrico. Estes são aspectos universais,

arquetípicos da "bu-deidade", tal como se mostram o espírito em meditação (dhyâna).

A Terra Pura é o chamado Paraíso Sukhâvati ou. Ocidental, no qual reside

Amithâba, e que tem dado nome a uma via espiritual centrada na invocação do nome

deste, via particularmente florescente no Japão.

Avalokitesvara é como uma extensão de Amithâba, uma emanação sua. Seu

nome significa "o senhor que olha para baixo com compaixão", e é, pois, a

personificação deste ato de Amithâba.

É a figura mais popular do panteão budista tibetano, e seu mantra (fórmula de

invocação) é a oração por excelência de todo tibetano; está presente por igual na

devoção popular e nas práticas iniciáticas.

Avalokitesvara, em tibetano Chenrezig (Spv-an-ras gzigs), é igualmente uma

figura de primeira ordem em todas as áreas do budismo mahâyâna, como a China e o

Japão, onde, na iconografia, assume um aspecto semifeminino algumas vezes, e

abertamente feminino em outras, em virtude da doçura misericordiosa que encarna.

Na China, é conhecido como Kuan-Yin, e, no Japão, como Kannon.

É um bodhisattva ao qual se atribuem diversas encarnações, e não apenas

no mundo dos homens, pois sua compaixão abarca todos os mundos. Em particular,

considera-se o Dalai Lama como uma manifestação terrenal sua.

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E uma das figuras mais representadas na iconografia budista, principalmente

com esta forma (à qual nos aludiremos mais adiante, em nosso relato), de onze

cabeças e mil braços, na qual recebe o nome Ekadasmukha.

2. Traduzimos dessa maneira "all-seeing eye". A propósito desta designação

e de seu simbolismo, pode ser consultado R. Guénon, Símbolos fundamentais da

ciência sagrada, cap. LXXXII, "O olho que a tudo vê", pp. 384-386, Buenos Aires,

1960.

3. Esta é uma das diferentes versões que existem sobre o nascimento de

Dolma, a respeito de quem pedimos a remissão do leitor ao que foi dito em nossa

Introdução.

O PRIMEIRO REI DO TIBETE

Na época em que os tibetanos eram governados por doze chefes sem

importância, havia muito descontentamento e muitas contendas, pois eles não tinham

um chefe único e eram uma nação dividida. Foi durante esse período que o rei de

Vatsa, na índia, teve um filho. A criança, porém, não era um menino normal, pois havia

nascido com sobrancelhas de cor turquesa, pálpebras salientes e mãos espalmadas.

O rei estava muito aflito e toda a corte se mostrava assustada com o estranho

menino. Assim foi que, querendo livrar-se dele, o rei ordenou que o colocassem numa

caixa de cobre e que o lançassem ao Rio Ganges. Quando isto se efetivou, o rei e a

rainha, assim como todos os do palácio, suspiraram aliviados por se verem livres,

finalmente, daquele embaraçoso engendro da natureza.

Page 31: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

O menino, entretanto, não morreu, pois foi achado por um camponês. Este,

ao abrir a caixa e encontrar dentro dela a estranha criancinha, encheu-se de amor por

ela e a levou para a sua casa, a fim de que vivesse como alguém de sua família.

Dessa maneira, o menino passou uma infância feliz, amado e cuidado pelo camponês

e por sua mulher.

Quando o menino se tornou moço, o camponês achou que já era hora de que

conhecesse as suas estranhas origens. Contou-lhe, então, a história de como ele

havia sido encontrado numa caixa de chumbo às margens do wanges. E, para que o

rapaz não tivesse a impressão de que havia sido abandonado, o camponês tratou de

convencê-lo de que ele era alguém muito especial: na verdade, um "poderoso",

nascido de berço rico. O moço, entretanto, se entristeceu muito ao ouvir a história do

camponês, pois sempre havia acreditado que fazia parte da família deste, a quem

considerava como pai. Em sua aflição, o rapaz fugiu em direção aos Himalaias e

cruzou a fronteira do Tibete, onde passou dias e dias sozinho, ao abrigo das

montanhas.

Nesse lugar, o moço acabou encontrando alguns sacerdotes tibetanos da

antiga religião. Estes, ao verem o estranho jovem, tomaram-no por um deus, pois, ao

lhe perguntarem quem era, ele respondera, simplesmente: "Um poderoso".1 E quando

lhe pediram para dizer de onde havia vindo, o rapaz indicara a direção da índia, do

outro lado das montanhas — e os sacerdotes acreditaram que estivesse indicando os

céus. Devido ao obstáculo da língua, os sacerdotes abandonaram os esforços para

comunicar-se com ele; apenas fizeram com que o moço fosse colocado numa cadeira

de madeira, que quatro homens carregaram às costas. E os sacerdotes declararam:

"Vamos constituí-lo em senhor nosso".

Page 32: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

E assim foi como ficou sendo conhecido "o poderoso da cadeira de mãos" e

como o Tibete teve constituído o seu primeiro rei.2

Notas

1. Este epíteto (em tibetano btsan-po) passou a ser aplicado a todos os reis

do Tibete.

2. Este personagem lendário é conhecido em tibetano como Nyakhri Tsampo

(Nyag-khri btsan-po).

Toda "felicidade que existe no mundo nasceu inteiramente do desejo do bem

aos outros.

Toda a infelicidade que existe nasceu do egoísmo.

PRECEITOS BUDISTAS

PADMASAMBHAVA E A ECHARPE DA FELICIDADE

Esta é uma história que se conta de Padmasambhava, o famoso mestre

hindu, a quem se deve, mais que a nenhum outro, a introdução do budismo no Tibete,

há mais de 1.200 anos.1

Conta-se que o rei do Tibete, que não era budista, andava muito ressentido

com o respeito e a veneração que o povo do Tibete mostrava para com o grande

mestre hindu Padmasambhava. Parecia-lhe, na verdade, que reverenciavam mais a

Padmasambhava do que a ele mesmo. Assim, o rei decidiu assegurar-se de que,

quando o grande mestre o visitasse, todos os chefes do país veriam aquele a quem

Page 33: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

tanto honravam render homenagem a seu rei.

No dia da visita de Padmasambhava, todos os cortesãos foram congregados

para vê-lo render homenagem ao rei; este, com ansiedade, também esperava para

conhecer o grande mestre. O altivo rei mal pôde ocultar o seu grande prazer quando

Padmasambhava levantou os braços como que para prostrar-se diante do trono real;

mas, ao invés disso, das mãos de Padmasambhava saíram chamas que alcançaram

as roupas do rei, queimando-as em segundos. Enquanto os cortesãos tratavam de

apagar as chamas a golpes, o rei, sufocado pela fumaça que subia das pregas de sua

echarpe cerimonial, retirou-a dos ombros. Comprovando o grande poder do mestre, o

rei lançou-se aos pés de Padmasambhava em submissão, e lhe ofereceu a echarpe

em sinal de humildade. Padmasambhava aceitou a echarpe, mas logo a devolveu ao

rei, colocando-a ao redor do seu pescoço, como um signo da bênção e da vitória da

autoridade sacerdotal sobre o poder temporal.

E assim, diz-se no Tibete, terra de poucas flores, que Padmasambhava

estabeleceu o oferecimento de katas, ou echarpes de felicidade, como demonstração

de respeito.2

Notas

1. Padmasambhava (o "nascido do loto"; em tibetano, Padma Jungna

(Padma 'byung-gnas), conhecido popularmente como Guru Rimpoché, é um dos

nomes fundamentais do budismo tibetano.

Considerado uma encarnação de Amithâba e tido por alguns como outro

Buda terrenal — chegando, inclusive, a eclipsar o Buda Sâkya-muni, foi um mestre

tântrico hindu convidado ao Tibete, a meados do século VII, pelo rei Khri-srong Lde

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brstan, para combater os demônios hostis ao budismo, aos quais, efetivamente,

Padmasambhava subjugou e pôs a serviço do budismo como divindades protetoras.

A tradição o considera um dos 84 mahâsiddhas (em tibetaro, dub-tob

Gru-Thob ou iogues "perfeitos", aqueles que obtiveram a "potência maravilhosa"

(siddhi), força de transmutação alquímica. São figuras semilegendárias, que se

encontram já no hinduísmo, e cujo número, simbólico, expressa plenitude, totalidade.

Suas biografias, escritas numa linguagem chis (o sandhyâ-bliâsâjs&e conservaram na

tradição tibetana melhor que na hindu.

Tem-se por lugar de seu nascimento Uddiyâna (a atual Swat, no Paquistão,

mas igualmente nome de uma região simbólica). Uma das histórias que falam a seu

respeito é a de que, aos oito anos, apareceu sentado sobre um loto, no centro do lago

Riwalsar (em tibetano, Pedma-mtsho), no Estado hindu de Himachal Pradesh.

Padmasambhava fundou no Tibete, no ano 787, o mosteiro de Samye

(bSan-yas), e dirigiu uma equipe de tradutores. Os Nying-mapa (os "antigos"), a

primeira ordem budista do Tibete, consideram-se seus sucessores diretos.

2. A kata (kha-ntags) é urna tira comprida de tecido, geralmente branca, uma

espécie de longa echarpe, que pode ser confeccionada com diferentes tipos de tecido,

desde seda até gaze atesada com pó de arroz. Literalmente, significa "tecido que une"

e simboliza o laço que se estabelece entre aquele que a oferece e o que a recebe. Era

tradicional no Tibete o oferecimento de katas nas mais variadas circunstâncias e

comemorações. Colocavam-se katas nos altares, ao redor das imagens, dos tankas

etc, e ofereciam-nas como demonstração de respeito aos superiores, e também entre

iguais, como expressão do desejo de estabelecer uma relação autêntica ou de

comprometer-se reciprocamente com algum tipo de obrigação. Eqüivaleria, neste

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sentido, ao aperto de mão ocidental, o qual, antes de se haver trivializado, tinha um

profundo valor humano. De certo modo, também no Tibete o oferecimento de katas se

havia trivializado, porquanto eram entregues, por exemplo, a ganhadores de provas

esportivas, e mais como uma demonstração de cortesia, de etiqueta social, do que

como um gesto autenticamente espiritual.

Quando se oferece uma kata a um lama, este pode devolvê-la e pô-la em

volta do pescoço daquele que a oferece, como sinal de bênção (tal como faz

Padmasambhava no nosso relato), e, ao mesmo tempo, de laço espiritual entre

ambos.

Assim, pois, poder-se-ia dizer que a kata simboliza, entendida num sentido

amplo, a idéia de religião, assim como também a que expressa a palavra árabe

barakah.

O que você escreve com tinta,

com pequenas letras negras,

pode perder-se inteiramente

pela ação de uma única

gota de água.

Mas o que está escrito

no seu coração estará aí

por toda a eternidade.

TSANGYANG CYATSO

* Tshangs-dbyangs-rgya-mtsho, sexto Dalai-lama (1683-1706).

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DE COMO ASANGA CHEGOU A VER O BUDA FUTURO

Asanga, o douto filósofo, de todo o coração decidido a realizar a sabedoria

interior, meditou em solidão durante muitos anos. O objeto de sua meditação era

Champa (Maitreya), o Buda do futuro, que reside no céu Tushita aguardando a sua

descida à terra. Asanga sempre fora perseverante em seus esforços, mas, depois de

tantos anos de fervorosa meditação, ele mesmo já começava a sentir-se frustrado em

seu empenho por alcançar a sabedoria a que aspirava.

Certo dia, quando passeava pelo exterior de sua caverna, Asanga se fixou

nuns quantos pássaros que pousavam numa rocha proeminente que ficava próxima.

Justamente onde as asas dos pássaros, ao pousarem, roçavam a rocha, Asanga

notou uma profunda fenda. Isto o levou a refletir sobre os incontáveis anos que

deveriam ter sido necessários para que, pelo único efeito do roçar suave das asas dos

pássaros, se produzisse uma cavidade como aquela.

Ao voltar à sua cova, Asanga, com os sentidos aguçados pela meditação

profunda, ouviu o brando gotejar da água sobre a pedra. Examinando-o mais de perto,

percebeu um pequenino regato que seguia rocha adentro: com os anos, o delicado

gotejar da água havia aberto uma profunda passagem na rocha. "Se as asas dos

pássaros e o gotejar da água podem perfurar a rocha — pensou Asanga —, então

também eu, com a meditação, posso perfurar as distintas camadas da consciência, e

alcançar, dessa maneira, a sabedoria."

E assim, Asanga continuou meditando, mas meditando sem resultado algum.

Parecia-lhe que, quanto mais ardentemente buscava obter a sabedoria, e quanto mais

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apaixonadamente tratava de invocar a Champa, mais impossível isso se tornava.

Um dia, Asanga deixou sua caverna para ir à busca de comida. No caminho,

encontrou um homem que esfregava uma barra de ferro maciço com um pedacinho de

algodão. Asanga perguntou-lhe o que estava pretendendo obter com aquilo, e ele

respondeu que ia fazer uma agulha. Asanga se surpreendeu muito por achar possível

fazer uma agulha apenas esfregando uma grossa barra de ferro com um pouquinho

de algodão macio; mas, quando expressou isso ao homem, este respondeu:

"Se alguém está realmente resolvido a fazer uma coisa, não fracassará em

seu empenho, mesmo quando a tarefa possa parecer impossível."

Asanga recobrou novas forças, ao considerar que a sua tarefa não era mais

difícil do que a daquele homem, e voltou à sua caverna animado a continuar a sua

meditação.

Depois de haver estado meditando durante doze anos, Asanga decidiu-se,

finalmente, a abandonar seu retiro e deixar de meditar sobre Champa, pois este não

se lhe apresentara nunca, nem mesmo depois de tanto tempo de esforços.

Ao deixar seu retiro, Asanga encontrou um cachorro ganindo de dor por

causa de uma ferida no dorso — um dorso infestado de vermes. Asanga sentiu uma

grande compaixão pelo cachorro e desejou aliviar-lhe os sofrimentos. Sabia, porém,

que se lhe tirasse os vermes, estes iriam morrer, pois não teriam de onde comer. Para

salvar o cão, Asanga decidiu tirar-lhe os vermes, e, quanto a estes, iria colocá-los em

sua própria carne, para que pudessem continuar vivendo. Asanga já se dispunha a

retirar os vermes com a mão, mas deteve-se e pensou: "Se os tirar com os dedos,

poderia esmagá-los". De modo que, fechando os olhos, inclinou-se para retirar os

vermes lambendo a ferida. No mesmo instante em que a sua língua tocava o cachorro,

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este desapareceu, e, em seu lugar submerso numa bolsa de deslumbrante luz,

apareceu Champa, o Buda futuro.

Tomado de emoção, Asanga assim falou a Champa:

— Durante tantos anos e de tantas formas, tentei vê-lo, sem que o senhor se

mostrasse a mim, e agora, quando meu anseio desapareceu, por que se mostra

diante de mim?

Champa respondeu:

— Porque somente agora é que, através do seu grande ato de compaixão, a

sua mente está realmente pura e, portanto, apta para ver-me. Na verdade, eu sempre

estive aqui.

Então, Champa ordenou a Asanga que o levasse sobre os ombros até a

cidade para que outras pessoas pudessem vê-lo. Assim o fez Asanga, mas o povo,

com a consciência obscurecida por pensamentos impuros, não pôde ver a Champa, e

acreditou que Asanga estivesse louco quando proclamava que levava Champa sobre

seus ombros. Mas uma anciã conseguiu ver um cachorrinho sobre as costas de

Asanga, e foi imediatamente acumulada de riquezas. E um pobre carroceiro de mulas

chegou a entrever os dedos do pé de Champa, e, desde aquele momento, teve poder

e paz interior.

Champa levou, então, a Asanga ao céu Tushita, onde pôde receber o

ensinamento e obter a sabedoria que, durante tantos anos, o havia evitado.1

Nota

1. Asanga natural de Purusapura (a atual Peshawâr, no Paquistão), não

tibetano, pois, mas hindu, é um dos maiores filósofos do budismo. É considerado o

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criador, junto com seu irmão Vasudandhu, do sistema Vijnânavâda ou Vijnâptimâtra,

base doutrinai da escola Yogâcâra (Hossô, no Japão); e, também, junto com o sistema

Mâdhyamika, de todo o budismo mahâyâna.

Tradicionalmente, o seu ensinamento é considerado como sendo "o samadhi

(a meditação criativa) de Maitreya", e assim, seu suposto irmão, Maitreyanâtha

("nâtha" significa "senhor"), não seria senão o próprio Buda futuro, como fica claro em

nosso relato.

Maitreya, em tibetano Champa (Byams-pa), é o nome que recebe o

bodhisattva que aparecerá, um dia, como o novo Buda em nosso mundo, e que, da

mesma forma que Sâkyamuni, "fará girar a roda do Dharma, quando esta se houver

detido".

É considerado uma emanação do Dhyâni Budda Amoghasiddhi, e seu nome

deriva de maitrí, que significa a simpatia universal para com todos, a infinita

benevolência e o amor.

O CASTELO DO LAGO

Na terra do Tibete havia um belo lago rodeado de colinas e montanhas. Era

tão belo e de águas tão claras, que os que passavam perto dele ficavam boquiabertos

de admiração. Alguns diziam que, quando o sol estava alto e projetava sobre a

tranqüila massa de água as sombras dos picos das montanhas, parecia como se

houvesse um castelo no lago, um castelo de proporções tão enormes que tomava

toda a água. Assim, pois, o lago passou a ser conhecido como "o lago do castelo".

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Criaram-se muitas histórias sobre o lago e seu castelo. Às vezes se dizia que,

quando a lua tremeluzia e as estrelas refulgiam como diamantes na água, se podia ver

uma estranha gente sair do lago, gente com olhos de fogo e cabelos soltos que caíam

como folhas molhadas ao redor de seus rostos. Ou, então, dizia-se, também,

apareciam ferozes cães, que estraçalhavam as carnes dos viajantes solitários que

caminhavam incautamente por suas praias.

Mas, como costuma ocorrer com as lendas, o pai conta à filha e a mãe ao

filho, e, assim, durante gerações e gerações, até que as histórias se ampliam cada

vez mais e mais, e acabam por dizer muito mais do que pretendeu quem as contou

pela primeira vez. E aconteceu que, logo, foi aceito por todos que havia, mesmo, um

castelo no lago, e que o castelo tinha um rei. Este rei, dizia-se, possuía muitos

servidores, homens que, por alguma desgraça, haviam caído no lago, ou que haviam

sido capturados enquanto caminhavam sozinhos por suas margens, e que depois,

foram obrigados a permanecer a serviço do rei.

Certo dia, um jovem pastor estava guardando seus iaques no lado oriental do

lago, quando sentiu vontade de comer algo; por isso, deixou o seu rebanho e desceu

até a margem do lago. Depois de ter molhado o rosto com água fresca, sentou-se

apoiado contra uma grande rocha; tirou um queijo e um pão de cevada do surrão,

acendeu um pequeno fogo para esquentar seu chá com manteiga, e se pôs a comer.

Enquanto comia, Rinchen — que assim se chamava, o pastor começou a

pensar em sua vida. Sua mãe era uma mulher cruel, que sempre o havia forçado a

trabalhar muito, a fim de que ela pudesse comprar vestidos novos e comer bem. E,

quanto a ele, tinha de contentar-se com uns poucos farrapos e com as sobras de

comida que a mãe não queria mais. Considerando a vida que levava, Rinchen se pôs

Page 41: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

a chorar. As lágrimas lhe escorriam pela face e os soluços agitavam todo o seu corpo.

Não conseguiria trabalhar mais do que já vinha fazendo, e, entretanto, sua mãe

continuaria a querer mais e mais.

O jovem pastor já começava a guardar as suas coisas, quando, ao levantar

os olhos, viu um homem de pé junto à margem do lago. Era um homem alto e vestia

uma chuba1 negra da qual jorrava água — o que dava a impressão de que havia

acabado de sair do lago. Recordando as histórias que tinha ouvido sobre o lago do

castelo e os servidores do rei, Rinchen se sentiu tomado de pânico, e já se ia embora

correndo, quando o homem falou:

— Por que você estava chorando daquele modo?

Rinchen se voltou para o homem e percebeu que ele possuía uma expressão

bondosa e afável. A sua voz era doce e melodiosa. Todo o medo que o pastor sentira

antes pareceu abandoná-lo, e ele se aproximou do homem alto, de chuba negra, que

estava na margem do lago. Este repetiu a pergunta. Rinchen contou-lhe, então, sobre

sua mãe e sobre como esta o obrigava a trabalhar cada vez mais para mantê-la e

seus gostos exigentes.

— Entre comigo no lago — disse o homem —, pois o rei é um homem bom e

talvez possa ajudá-lo a resolver o seu problema.

O jovem pastor sentiu que o medo lhe voltava, pois estava certo de que se

entrasse no lago jamais poderia sair dele. O homem alto percebeu o medo do rapaz e,

num tom suave, que era como música para os ouvidos, convenceu-o de que não havia

nada a temer.

— Sou um dos servidores do rei — disse o homem. Eu vou levá-lo diante do

rei e cuidarei para que aqui volte são e salvo.

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O jovem pastor pensou por um momento: "Que posso eu perder? Minha mãe

é tão cruel, que até a morte me seria melhor do que passar o resto da minha vida

como o seu escravo". E, assim, afastando o medo, Rinchen seguiu o servidor do rei e

entrou no lago.

A água era morna e acolhedora, e o rapaz se surpreendeu de que pudesse

respirar com a mais completa liberdade. O servidor do rei pediu-lhe que fechasse os

olhos enquanto o conduzia pela água até o castelo. Quando pararam e Rinchen abriu

os olhos, viu que se encontrava numa grande sala, primorosamente enfeitada com

ouro, prata reluzente e madrepérola. No fundo da sala havia um trono, e, neste, estava

um homem: o rei.

O rei fez sinal ao jovem pastor para que se aproximasse. Ao fazê-lo, Rinchen

percebeu que não estava sozinho, na sala, com o servidor e o rei, mas que a cada

lado do trono havia mais servidores, todos eles vestidos com chubas negras como a

do homem alto que lhe havia falado à beira do lago. Quando chegou aos pés do trono

do rei, um dos servidores se aproximou e colocou um tamborete baixo diante do trono,

para que o rapaz se sentasse nele. Timidamente, Rinchen se sentou e ficou

observando os lacrimejantes olhos azuis do rei.

— Por que você está aqui? perguntou o rei com uma voz profunda que mais

parecia o distante reboar de um trovão. O pastor contou, então, a sua história, tal

como a relatara ao servidor, à beira do lago.

O rei foi escutando o que o jovem lhe contava e, quando Rinchen terminou o

seu relato, voltou-se para o seu corpo de servidores e fez sinal a um deles para que se

aproximasse. O servidor se aproximou do rei e se inclinou diante dele, enquanto este

lhe sussurrava algumas instruções. O jovem pastor aguçou o ouvido, mas não pôde

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ouvir o que o rei dizia. O servidor abandonou a sala e voltou depois de alguns minutos

trazendo um cão.

— Tome este cão — disse o rei ao pastor —, mas cuide para sempre dar-lhe

de comer antes que você mesmo o faça. Isto é muito importante.

Rinchen pegou o cão e, com os olhos fechados, deixou-se conduzir até a

beira do lago. Quando abriu os olhos, estava sozinho com o animal.

O jovem pastor foi embora para casa e com ele seguiu o cão. A partir daquele

dia, tudo o que Rinchen desejava sempre aparecia diante dele. Ao despertar pela

manhã, descobria que havia posto cevada na caixa da cevada, manteiga na caixa da

manteiga, e dinheiro na caixa do dinheiro. Inclusive, apareciam roupas novas em seu

guarda-roupa. Era muito feliz e sempre cuidava muito bem do cão, seguindo as

instruções do rei de dar de comer ao animal antes que ele mesmo comesse.

A mãe de Rinchen, que andava muito intrigada com a súbita e inexplicável

riqueza do filho resolveu, um dia, sair ela mesma com o rebanho de iaques, para ver

se podia descobrir a fonte de tanta fartura. E enquanto a mãe se achava fora, o jovem

pastor decidiu observar o cão, pois também estava curioso por saber como o animal

conseguia obter o dinheiro e a comida. Escondendo-se na casa, observou o cão: este

entrou, aproximou-se da lareira e, depois, se pôs a sacudir-se violentamente.

Imediatamente, a pele do cão caiu ao chão, deixando a descoberto uma

formosa mulher a quem Rinchen jamais havia visto. Ela andou até a caixa da cevada,

levantou a tampa e pôs dentro a cevada, que não se via de onde saía. Depois, fez o

mesmo com a gaveta da manteiga, a do chá e a do dinheiro, tirando do nada tudo o

que o rapaz e a mãe necessitavam.

Rinchen não se pôde conter. Agarrou a pele do cão e a lançou ao fogo. A

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formosa mulher tentou impedir que o fizesse, mas já era tarde, pois a pele ardeu

rapidamente e logo não foi mais do que um grande monte de cinzas.

Temeroso de que o filho do chefe visse a mulher e a quisesse por esposa,

para ocultar a sua beleza, Rinchen cobriu o rosto dela com fuligem e a reteve em casa,

longe dos olhares do povo.

Em pouco tempo, o jovem pastor tornou-se muito rico, e a sua riqueza foi-o

deixando excessivamente ousado. "Por que me preocupo? — perguntou-se. Tenho

muito dinheiro, e o filho do chefe não se atreverá a roubar-me esta mulher, pois posso

pagar-me armas e homens". Pensando desse modo, Rinchen limpou a fuligem do

rosto da bela mulher e a levou à cidade para mostrá-la ao povo, pois se orgulhava da

sua beleza.

O filho do chefe estava na cidade e viu a mulher. Cativado por ela, tomou a

firme determinação de fazê-la sua esposa e enviou homens para buscá-la. Muito aflito,

o jovem pastor pediu ajuda aos homens da cidade, mas nem um só quis atendê-lo.

Muito triste, Rinchen foi à margem do lago, sentou-se junto à grande rocha e

se pôs a chorar. Como na vez anterior, apareceu o servidor do rei.

— Por que está chorando desta vez? — perguntou.

— Porque perdi a minha mulher —, respondeu o rapaz. E contou ao servidor

toda a história de como havia lançado ao fogo a pele do cão e mantido escondida dos

olhares do povo a formosura da mulher.

Contou, também, que, por se ter tornado imprudente e demasiado seguro,

havia lavado o rosto da jovem, descobrindo-lhe, assim, a beleza para o filho do chefe;

e, com isso, a havia perdido para sempre.

O servidor pediu a Rinchen que o seguisse de novo ao lago, pois o rei tinha

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de conhecer essa história.

— Talvez o rei possa ajudá-lo outra vez, disse ao jovem pastor, e este logo se

encontrou ante o trono e aos pés do rei do lago.

Depois de escutar a história de como Rinchen havia perdido a bela mulher, o

rei estendeu-lhe uma caixinha e disse:

— Leve esta caixa — e o pastor a pegou. Agora, vá ao alto de uma colina e

chame à guerra o filho do chefe. Quando este tiver congregado as suas tropas na

base da colina, abra a caixa e grite: A luta!

Assim fez o pastor. E quando abriu a caixa e gritou:

— À luta! —, milhares de homens saíram dela e avançaram sobre os

soldados do filho do chefe e os derrotaram.

Rinchen recuperou sua bela mulher e a tomou por esposa. Enriqueceu ainda

mais com a metade das terras do chefe e se converteu num chefe rico e benévolo. O

jovem pastor devolveu a caixa ao rei do lago, agradecendo-lhe, e viveu em proveitoso

contato com ele pelo resto de sua vida.

Nota

1. A chuba, palavra da mesma origem que as espanholas "juba", "jubón" ou

"chupa" (e o francês "jupe" recebidas do árabe, é a roupa típica dos povos tibetanos. É

um roupão de lã, como uma espécie de túnica ou toda cruzada, de cor

ver-melho-escura, que se amarra na cintura, formando uma bolsa (ambac) sobre o

peito, na qual se transportam os objetos mínimos necessários aos deslocamentos de

lugares. As mangas da chuba, quando não são levadas recolhidas, ultrapassam as

mãos pelo menos um palmo.

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O MOÇO QUE SE NEGAVA A MATAR

Era uma vez um moço que se chamava Tashi. Tashi não era capaz de se

ajustar aos costumes do mundo. Por mais que seu pai se esforçasse, jamais havia

conseguido que o moço caçasse para obter comida. Tashi se negava a tirar a vida de

quem quer que fosse, e tampouco comia a carne que seu pobre pai levava para casa

para a panela familiar.

Tashi tinha três irmãs, que se haviam casado com homens ricos. Amiúde

seus pais se lamentavam da má sorte que haviam tido por terem ficado sozinhos com

um filho que não seria capaz de sustentá-los em sua velhice, um filho que não queria

caçar, e que era, por natureza, muito dócil e pacífico.

— Deveria ter-se tornado monge — dizia a mãe —, porque, de que nos serve

este nosso filho? Quando formos velhos, teremos que mendigar às nossas filhas e aos

nossos vizinhos para não morrermos de fome.

Esta era a queixa constante dos pais de Tashi, mas, mesmo assim, o moço se

negava a tirar uma vida.

— Toda vida é sagrada — dizia; não posso matar outro ser.

Certo dia, o pai de Tashi insistiu para que o rapaz saísse com ele para

caçarem juntos. Caminharam durante muitos quilômetros e o pai já estava muito

cansado. Havia sido um dia bastante ruim, pois tudo o que havia conseguido pegar

tinha sido um coelhinho. E o pai pensou: "É este meu filho, ele me da azar".

O moço estava sentado numa rocha, e enquanto comia sua pobre ração de

fruta e queijo, ia gravando a oração de Chenrezik — OM MANI PADME HUM — numa

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rocha que havia ao lado. Ao largo do caminho, havia outras rochas, nas quais os

viajantes também tinham gravado esta oração, pois o caminho conduzia a um

santuário muito visitado pelos que passavam por ali.1

Chenrezik, a divindade tutelar e padroeira do Tibete, o Senhor da Compaixão,

recebia uma grande devoção da parte do povo.

Quando o pai de Tashi viu o que seu filho estava fazendo, também se pôs a

articular em silêncio a poderosa oração, e o fez repetidas vezes, enquanto desfiava,

em suas mãos, as contas já gastas do seu rosário. Tirar a vida de alguém era uma

coisa contrária às suas crenças como budista, mas ele precisava conseguir comida

para a sua mulher; por isso, tratava de matar os animais o mais humanamente

possível, rogando por eles ao fazê-lo. Mas era evidente para o pai que nunca iria

conseguir que seu filho raciocinasse como ele. O rapaz jamais tiraria uma vida, por

mais fome que passassem, e o pai não via saída alguma para esta situação.

Pai e filho seguiram caminhando ainda um pouco mais, sempre atento, o

primeiro, para ver se conseguia descobrir algum animalzinho ou ave. De repente, por

entre as árvores, viu algo que lhe fez conter a respiração. Ali, no campo que beirava o

caminho, estava uma enorme lebre. Era realmente a melhor oportunidade que se

havia apresentado para ele, desde há muitas semanas; por isso, decidiu não deixá-la

escapar de maneira alguma. Pegando a sua funda, arrastou-se entre as árvores para

ter uma perspectiva melhor do animal. A lebre corria em direção a eles, e suas pernas

traseiras davam-lhe tal velocidade, que era impossível ao pai fazer bem a pontaria.

De repente, a lebre se deteve, como que percebendo que havia perigo.

Mexeu nervosamente o nariz, olhou para um lado e para o outro e aguçou o ouvido.

Estava tão perto que o rapaz podia vê-la perfeitamente. O mesmo acontecia com o pai,

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que já estava prestes a atirar uma grande pedra com a sua funda. Mas Tashi se

levantou e gritou: "Não, pai, não! Não a mate!" E a lebre, dando um grande salto no ar,

desapareceu num segundo e se escondeu de seu irritado agressor num campo de

cevada.

O pai ficou como que atônito durante uns minutos. Sua cara estava pálida e

lufadas de cólera subiam-lhe desde dentro. "Por quê?, perguntou ao filho. Por que

você fez aquilo?". Tashi ficou perturbado, pois viu que seu pai estava mais irado do

que nunca e que, provavelmente, a maior surra da sua vida já estava esperando por

ele.

O pai não pôde dominar-se por mais tempo. Apanhando uma grande rocha,

avançou em direção ao filho. "Eu vou matar você" — disse —, eu vou matar você,

você, meu único filho". Dizendo isto, o pai se dispôs a lançar a pedra na cabeça de

Tashi, mas este retrocedeu assustado, rogando ao pai que lhe poupasse a vida. Bem

ao lado do caminho, havia uma encosta rochosa, e, ao lado desta, se abria uma

pequena caverna. A abertura era somente uma estreita rachadura, mas o rapaz se

enfiou por ela e conseguiu escorregar até o seu interior, antes que o pai lhe atirasse

violentamente a pedra na cabeça. A pedra atingiu Tashi na perna e o moço gritou de

dor.

Uma vez dentro da caverna, Tashi viu que estava a salvo, pois a abertura era

demasiado pequena para que seu pai pudesse passar por ela. Tashi não podia fazer

idéia das dimensões do seu cárcere de rocha, pois estava escuro e era muito difícil

enxergar dentro dele. Avançando palmo a palmo, ao longo de uma das pontiagudas

paredes, chegou ao fundo da caverna, que estava apenas a uns metros da entrada.

AJi, com a perna sangrando, se estendeu no solo e... perdeu a consciência.

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Muitas horas depois, Tashi voltou a si ao ouvir o ruído de passos, e se

levantou. A dor o fez recordar tudo o que o havia levado até ali. O ruído de passos se

tornava mais forte. Quis gritar pedindo ajuda, mas sua voz estava muito fraca e

somente um leve murmúrio saiu dos seus lábios. Algum tempo depois, reunindo todas

as forças que pôde, Tashi gritou, e desta vez mais alto. Os passos se detiveram e ele

pôde escutar vozes que falavam em voz-baixa desde o exterior da caverna.

De repente, apareceu uma cabeça na abertura, dois olhos procuraram

caverna adentro e uma voz gritou para que saísse.

— Não posso mover-me — disse Tashi, estou ferido, e me é difícil caminhar

os poucos metros que me separam da entrada da caverna.

A cabeça desapareceu e logo foi substituída por outra. Depois, um pequeno

corpo vestido com um hábito passou pela abertura e avançou de rastros pela caverna

até Tashi. Este pôde ver que se tratava de um monge, que avançava até ele com os

braços estendidos para levantá-lo e levá-lo a um lugar seguro. Uma vez fora da

caverna, Tashi viu que eram três monges. Eles viajavam juntos em peregrinação aos

lugares santos.

Os monges o levaram a um matagal de plantas delicadas, puseram-no no

solo e cuidaram da sua perna. Depois de repartirem com ele a sua comida, os monges

pediram a Tashi que lhes contasse a sua história, como havia chegado àquela

situação tão penosa. O moço contou-lhes tudo, referindo-se à sua recusa a caçar, e

dizendo-lhes como, no fim, seu pai, desesperado, havia pensado em matar a seu

único filho.

Os monges escutaram em silêncio. Depois, o monge principal convidou o

moço a acompanhá-los em suas viagens. E Tashi assim o fez, vestido com o hábito de

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um monge mendicante.

Ao fim de alguns dias, os peregrinos chegaram à casa da irmã mais velha de

Tashi. O monge principal se aproximou da casa, chamou à porta e, quando apareceu a

moça, pediu-lhe uma esmola. Depois de dar comida aos monges errantes, quando

estes já se preparavam para partir, a moça perguntou se não teriam encontrado, por

seu caminho, seu irmão desaparecido. Disse-lhes que estava desaparecido há muitos

dias e que a família estava muito preocupada. O monge principal respondeu-lhe que

não o haviam visto, mas que, se isso viesse a acontecer, logo tratariam de dar alguma

notícia aos familiares.

A irmã mais velha de Tashi não reconhecera o irmão com o hábito de monge.

Pouco depois, chegaram à casa da segunda irmã do rapaz. De novo, o

monge principal se aproximou da casa e pediu uma esmola. Esta lhes foi dada. E

foi-lhes perguntado, também, se haviam encontrado o irmão desaparecido. O monge

principal respondeu que não e seguiram seu caminho.

Quando chegaram à casa da irmã menor de Tashi para pedir uma esmola; ela

reconheceu imediatamente o irmão desaparecido e o estreitou em seus braços,

pedindo-lhe que permanecesse com os que lhe queriam bem.

As três irmãs se reuniram na casa da irmã menor e fizeram um banquete para

celebrar a volta de Tashi. Os monges foram muito obsequiados pelos parentes do

rapaz, os quais lhe pediram que permanecessem como convidados todo o tempo que

quisessem. Os monges, entretanto, agradeceram o convite e deixaram a casa da irmã

mais nova de Tashi para prosseguirem a sua viagem.

Tashi agradeceu às irmãs por toda a sua ajuda e por todo o seu interesse,

mas pediu-lhes que o abençoassem, pois desejava partir e levar a sua própria vida. As

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irmãs se entristeceram ao ver seu único irmão sair para enfrentar o mundo e

deram-lhe, como presente, um cavalo mágico que falava.2 Tashi pegou o cavalo e se

dirigiu para as regiões mais remotas do país.

Ainda não havia ido muito longe, quando alcançou uma vasta planície. O

cavalo lhe disse, então: — Mate-me. Estenda a minha pele sobre a planície e espalhe

as minhas cerdas por todas as partes, para que o vento as leve aos confins desta

planície.

O rapaz ficou horrorizado e negou-se a matar o cavalo. Em lugar disso,

depositou seu fardo no chão, comeu o que suas irmãs lhe haviam dado e se dispôs a

passar a noite ali. Mas, durante a noite, enquanto Tashi dormia, o cavalo lançou-se de

um precipício escarpado e matou-se.

Quando Tashi se levantou, pela manhã, procurou o cavalo, mas não o

encontrou em parte alguma. Explorando toda a planície, o rapaz chegou ao precipício

e, olhando para baixo, viu o corpo destroçado do cavalo. Sentindo invadir-lhe uma

tristeza enorme e pensando na conversa na noite anterior, Tashi decidiu fazer o que o

cavalo lhe havia pedido. Pegou a pele, estendeu-a no centro da planície, e depois

espalhou as cerdas do cavalo por todas as partes, lançando-as ao ar para que o vento

as levasse até os confins mais distantes da planície.

Imediatamente, a pele do cavalo se converteu numa grande mansão e as

cerdas se converteram em ovelhas e iaques, que pastaram pela planície até se

perderem de vista. O cavalo tornou a aparecer a Tashi e assim lhe falou:

— Você tem mostrado uma grande compaixão para com todos. Esta é a sua

recompensa.

Dizendo estas palavras, o cavalo partiu a galope e desapareceu ao longe. E

Page 52: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

Tashi notou que no chão, por onde os cascos do cavalo haviam tocado, haviam

aparecido montinhos de ouro.

Inspecionando a sua nova casa, Tashi pensou nos pais e se perguntou como

estariam se arranjando para sobreviver. Decidiu-se a ir vê-los e a trazê-los para

viverem com ele na mansão. "Meus pais nunca hão de precisar buscar por comida,

nunca mais", disse a si mesmo.

E assim pensando, o moço se vestiu novamente com o hábito de monge, pois

não queria que seus pais soubessem de sua recém-adquirida fortuna. Depois,

apanhou duas tortas e se dirigiu à casa dos pais. Ao chegar a esta, encarapitou-se no

telhado, espiou por uma pequena janela e viu os pais acocorados diante do fogo.

Tashi deixou cair uma das tortas. Sua mãe a agarrou, dizendo: "É um presente dos

deuses!" Mas o pai, esfaimado, arrancou a torta das mãos da mãe, e se pôs a comê-la

com avidez. Tashi deixou cair, então, a outra torta para a mãe. Depois, desceu do

telhado e chamou à porta. Sua mãe abriu-a e, imediatamente, reconheceu o filho.

Estreitou-o nos braços e pediu-lhe que não voltasse a deixá-los. O pai, embargado de

emoção, pediu perdão a Tashi.

Tashi contou-lhes sobre sua nova casa e sobre sua riqueza, e os levou a viver

com ele, na planície. Ali, colocou a mãe num trono de ouro puríssimo; fez o pai

sentar-se num trono de prata puríssima. E quanto a ele, o único filho varão, sentou-se

num trono de madrepérola puríssima, também.

Notas

1. A propósito do mantra de Avalokitesvara (Chenrezik), a fórmula sagrada

por excelência do budismo tibetano, gostaríamos de citar as palavras do Lama

Page 53: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

Anagarika Govinda: "Está nos lábios de todos os peregrinos, na reza dos moribundos,

na confiança dos vivos. É a melodia eterna do Tibete, que o homem religioso percebe

no murmúrio dos regatos, no rumor das cascatas ou no fragor das tempestades; e que

saúda o ser humano desde os rochedos e desde as pedras-mam, que o acompanham

por todas as partes, ao largo dos caminhos e dos escarpados desfiladeiros".

(Fundamentos da Mística tibetana, Madri, 1975, p. 29). É numa dessas "pedras-mani"

que grava Tashi em nosso relato; existem em grande número no Tibete e nas regiões

limítrofes, Podem tratar-se de pedras isoladas ou de pequenos muros, e quando um

budista passa junto a uma delas, deve contorná-la no sentido das agulhas do relógio,

deixando-a sempre à sua direita, como se faz com os chôrten e outros símbolos

sagrados. Para uma boa ilustração de uma pedra-mani, consulte-se Javier Gómez

Rea e Dedvan Sen: Himalaia, os mosteiros dos auras. Coleção "O Universo do

Espírito", n." 1, Madri, 1985, pp. 20-21.

2. O tema do "cavalo que fala" é muito freqüente nas lendas tibetanas, e se

encontra vinculado, em particular, à figura do rei Gesar de Ling e ao mito de

Sambhala.

O HOMEM BOM

Era uma vez um homem muito bom e generoso. Suas obras faziam-no

querido e admirado por todos. Certo dia, chegou a seu povoado um lama muito

famoso. O homem pediu para falar com o famoso lama, e quando este desejo lhe foi

concedido, prostrou-se aos pés do santo homem e lhe falou assim:

Page 54: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

— Queria chegar a ser um iluminado, cheio de compaixão e sabedoria, para

poder ajudar a todos os seres vivos e dedicar a minha vida ao ensinamento de Buda.

Que devo fazer?

O lama viu que o homem era sincero em suas intenções. Recomendou-lhe,

então, que fosse às montanhas e que passasse a sua vida orando e meditando. Deu

ao bom homem uma oração especial para invocar e lhe explicou que se assim

procedesse continuamente e com grande devoção, então, poderia estar certo de que

se converteria num iluminado, capaz de ajudar a todos os demais com sua sabedoria

e compaixão.

O homem fez tal como o lama lhe havia recomendado. Partiu para as

montanhas que rodeavam o povoado, entrou numa caverna e se pôs a meditar com o

maior fervor. Durante muitos anos, foi perseverante, mas, apesar disso, não obteve a

iluminação.

Passados vinte anos, o famoso lama visitou novamente o povoado. O homem

bom soube da sua chegada e desceu da sua caverna nas montanhas para obter uma

audiência com ele.

Teve de esperar muitos dias, pois muita gente fazia fila para ver o famoso

lama e obter a sua bênção. Finalmente, lhe foi concedido ver o santo homem. Depois

de lhe ter rendido homenagem prostrando-se três vezes aos seus pés, e de ter-lhe

oferecido uma echarpe branca, o bom homem contou ao lama a sua situação:

— Tenho estado há vinte anos orando e meditando como o senhor me

recomendou — disse —, mas ainda não obtive a iluminação. Devo estar fazendo algo

errado. O lama adotou um porte solene e perguntou ao homem:

— O que eu lhe disse que fizesse?

Page 55: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

O homem bom contou-lhe tudo o que havia estado fazendo durante os vinte

anos.

— Oh! — disse o lama — temo que isso não tenha servido para nada. Foi

errado o que eu lhe disse, e agora nunca mais obterá a iluminação.

O homem bom ficou desesperado, e, lançando-se aos pés do lama, chorou.

— Sinto muito, disse o lama, mas não posso fazer nada por você.

O homem bom, que já estava muito velho, sentiu que havia perdido vinte

anos de sua vida. De volta à sua caverna, perguntava-se: "Que vou fazer? Durante

todos estes anos, acreditei que poderia obter a iluminação e agora devo abandonar

toda a esperança de alcançar esse objetivo.

Sentou-se sobre a laje que, durante vinte anos, tinha sido seu travesseiro,

sua cama e sua mesa, cruzou as pernas, fechou os olhos e pensou: "Vou continuar

com a minha oração e com a minha meditação, porque, que outra coisa, se não isso,

poderia fazer agora?"

Assim, pois, sem nenhuma esperança de obter a iluminação, pôs-se a

meditar e a invocar as orações que se haviam tornado tão familiares a ele, durante

todo aquele seu longo retiro. E, imediatamente, obteve a iluminação. Viu o mundo em

toda a sua realidade. Tudo estava claro. Compreendeu, por fim, que havia sido

apenas a sua ânsia por obter a iluminação que o impedira de alcançá-la. Agora,

poderia ajudar a todos os seres vivos a encontrarem a paz, graças a sua sabedoria e

sua compaixão. Agora, abandonaria a sua caverna e voltaria ao mundo para espalhar

os ensinamentos de Buda.

Saiu da sua caverna e contemplou o povo lá embaixo. Tantas vezes o havia

visto antes, mas nunca com tanta claridade como agora. Por um momento, acreditou

Page 56: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

ouvir o doce riso do famoso lama, enquanto levantava os olhos para o céu e

contemplava o imenso arco-íris que se estendia sobre os picos nevados.1

Nota

1. Neste relato vemos um exemplo da colocação de prática, por parte do lama,

de uma das virtudes (ou perfeições: paramitâ-s) do bodhisattva: a upâya-kausalva ou

"habilidade nos meios".

O TRANSFORMADOR DO TEMPO

Era uma vez um homem sábio. Viajava por toda a vasta terra do Tibete, e se

detinha nos povoados e cidades onde quer que se requeressem seus serviços. Podia

predizer o futuro, podia vaticinar a uma família os dias mais favoráveis para viajar ou

comerciar, e podia, inclusive, mudar o tempo. O homem sábio era muito admirado e as

pessoas lhe pagavam muito bem os seus serviços.

A julgar por seu aspecto, dever-se-ia desculpar a quem pensasse que era

pobre. Os que o conheciam sabiam muito bem que não era assim. Ouvindo-o falar,

podia-se tomá-lo facilmente por um homem de cabeça louca, mas aqueles que iam lhe

pedir ajuda, tinham, sem dúvida, outra idéia. Esse homem estranho, com sua chuba

andrajosa, um tamboril duplo e uma conca feita de um crânio pendurados no

cinturão,1 não era nem pobre nem estúpido. Possuía, segundo diziam alguns,

poderes mágicos. Ele usava estes poderes para o bem de todos os seres, mas — e

isto era o essencial do caso — se alguém ousasse criar-lhe dificuldades, ele podia

Page 57: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

desviar seus poderes mágicos para outros usos, e acabar, assim, com qualquer

oposição. Era conhecido por todo o mundo como o "transformador do tempo".

Se alguém tivesse podido ver, por acaso, o que continham a chuba e o surrão

do transformador do tempo, teria descoberto muitos tesouros, pois, ao não ter

residência fixa, ele viajava com todos os seus pertences de um povoado a outro. Vê-lo

celebrar uma cerimônia era algo que ensinava muito, e o povo se congregava para

observar quando o transformador do tempo parecia entrar num estado de transe,

golpeando o seu tambor com ritmos sempre cambiantes e fazendo gestos com a mão

livre2 para invocar o poder dos deuses. Sentava-se horas cantando em oração com

uma voz grave e profunda que parecia provir das próprias entranhas da terra, pedindo

aos deuses que derramassem seu poder e sua bênção sobre os que assistiam à

cerimônia. O sorriso do transformador do tempo era como o sol. Todo o seu rosto se

iluminava e seus olhos refletiam um calor que ninguém podia deixar de perceber.

Certo dia, depois de terminar uma cerimônia de bênçãos sobre uma família, o

transformador do tempo apanhou os obséquios de comida que a família lhe ofereceu e

se dispôs a dirigir-se para outro povoado situado a várias jornadas de marcha.

Enquanto isso acontecia, o transformador do tempo era observado por uma lebre

muito grande, a qual, com os olhos cheios de avidez e o estômago protestando de

fome, contemplava o homem e a sua comida com inveja.

"Vou encontrar um modo — pensou — de roubar a comida desse trapaceiro

esfarrapado". E, assim, com a cabeça ocupada em elaborar um plano, a lebre seguiu

o transformador do tempo em sua viagem.

Não haviam chegado muito longe ainda, quando a lebre ouviu um bater de

asas e sentiu umas delicadas patas pousarem-se nas suas costas. Era uma urraca.

Page 58: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

— Olá, lebre, disse a urraca. Você tem podido achar comida?

— Não, respondeu a lebre, e estou fraca e faminta. A comida anda muito

escassa.

— Sei disso muito bem, minha amiga — disse a urraca. Vamos viajar juntas;

quem sabe, assim, a nossa sorte muda.

Dito isso, a urraca levantou vôo e seguiu a lebre em sua viagem.

No dia seguinte, a lebre e a urraca se encontraram com um raposo. A urraca

se perturbou e ficou subindo e baixando pelo ar.

— Este raposo me está parecendo muito fraco — disse a urraca à lebre. Se

ele morrer, poderemos nos dar um banquete de carne de raposo.

— Olá, raposo! — disse a lebre. Aonde você vai?

O raposo levantou a cabeça e falou assim à lebre:

— Tenho muita fome e meus filhos também.

Ando buscando comida.

— Venha conosco — disse a lebre —, se formos juntos a situação pode

melhorar.

E assim, a lebre, a urraca e o raposo caminharam juntos, mas somente a

lebre sabia que estavam seguindo os passos do transformador do tempo.

Por fim, chegaram a um bosque, cuja sombra das árvores foi um alívio para

os três animais. A urraca se deteve para pegar algumas bagas de um arbusto, mas

estas não foram do agrado da lebre e do raposo, que afastaram seus focinhos com

repugnância.

Foi aí que, atrás de uma grande árvore, enxergaram a imponente figura de

um lobo. Petrificados de terror, a lebre e o raposo permaneceram totalmente imóveis;

Page 59: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

quanto à urraca, guinchando atemorizada, levantou vôo e foi pousar-se no ramo mais

alto de uma árvore. O lobo, perturbado pelo barulho da urraca, virou-se e ficou diante

do olhar assustado dos outros dois animais.

— Não se assustem — grunhiu o lobo —, sou demasiado velho para caçar.

A lebre avançou cautelosamente, pouco a pouco:

— Como você come se não pode caçar?, perguntou.

— Esse é o problema — respondeu o lobo —, pois tenho filhotes para

alimentar. E baixando os olhos tristemente, acrescentou: Já não sou tão forte e veloz

como era.

— Venha conosco — disse a lebre, com seus grandes olhos brilhando de

emoção —, tenho um plano que pode ser de ajuda para todos nós.

— E qual é o plano? — perguntou a urraca, que tinha abandonado seu lugar

seguro para participar da conversa.

— Vocês vão ver — disse a lebre. Na nossa frente está indo um

transformador do tempo.

— Um transformador do tempo! — repetiram em coro os demais animais. E

de que modo ele pode ser de ajuda para nós?

— O transformador do tempo não é um homem pobre — prosseguiu a lebre.

Já o tenho visto guardar muita comida nas suas bolsas.

Ao ouvirem isto, os demais animais experimentaram um súbito interesse.

— Pois bem, o que eu sugiro é que você, amigo — disse indicando o raposo

—, se deite numa vala e finja estar morto. A urraca fará ruído para atrair o

transformador do tempo para você. Quando ele deixar suas coisas para ir ver você, o

lobo e eu, que somos os mais fortes, lhe tiraremos as coisas e escaparemos.

Page 60: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

— Mas, que acontecerá se ele me apanhar e me matar? — perguntou o

raposo, que preferia não ser quem iria ficar na vala.

— Ele não vai apanhar — piou a urraca. Você pode saltar por cima das suas

costas e escapar.

De má vontade, o raposo concordou com o plano:

— Mas, primeiro, disse, temos que alcançar o transformador do tempo, e

nenhum de nós está podendo ir tão depressa, devido à nossa fraqueza por falta de

comida.

A lebre esteve um momento pensativa e logo disse:

— O transformador do tempo se dirige a um povoado próximo. Pois bem, se

formos pelo rio, o alcançaremos antes que ele chegue ali.

Os animais se dirigiram ao rio e, por sorte, encontram um grande tronco que

boiava perto da margem. A lebre, o raposo e o lobo subiram ao tronco e logo

deslizaram pela água em velocidade crescente, enquanto a urraca voava sobre suas

cabeças, pronta para avisá-los quando divisasse o transformador do tempo.

Quando a urraca viu que já haviam passado na frente do transformador do

tempo um trecho considerável, fez sinal aos animais para que descessem à terra. Isto

não foi nada fácil, pois se viram obrigados a abandonai" o tronco e a alcançar,

nadando à margem — uma experiência da qual a lebre poderia muito bem ter-se

poupado.

Tal como a lebre havia planejado, o transformador do tempo, ao ouvir os

gritos da urraca e ao vê-la voando sobre uma vala, deixou suas coisas e se aproximou

para investigar. Quando viu o raposo esticado no fundo da vala, pensou que devia

estar morto. "Tem um bonito pêlo — pensou o transformador do tempo —, vou

Page 61: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

esfolá-lo". Mas, justo no instante em que introduzia a mão em sua chuba para pegar a

faca, o raposo, incapaz de permanecer quieto um minuto mais, saltou fora da vala e

escapou.

E, quando o transformador do tempo, surpreso, se virou para ver o raposo

fugindo, pôde ver, também, rapidamente, o lobo e a lebre que desapareciam ao longe,

levando as coisas dele, e eram seguidos nisso pelo raposo e pela urraca, afogueados.

Quando os animais se sentiram seguros, detive-ram-se para repartir os

pertencentes do transformador do tempo. A astuta lebre se encarregou dos trâmites. À

urraca deu o chapéu do transformador do tempo. Ao lobo deu as botas; e ao raposo, o

grande tambor ritual. Para si mesma, deu-se toda a comida.

Os animais ficaram tão contentes com suas novas posses, que nem

perceberam que haviam sido enganados pela astuta lebre, e todos partiram alegres,

cada qual segurando firmemente seus mal-ad-quiridos lucros.

Mas, nem tudo saiu bem para os animais. O lobo, com suas botas novas, saiu

para caçar ovelhas. Mas, impossibilitado por seu pesado calçado de correr ligeiro,

tropeçou, e quase acaba morto ao ser pisoteado pelas ovelhas.

A urraca, com o enorme chapéu que quase lhe cobria o corpo inteiro,

sentou-se embaixo de um iaque. Este lhe soltou um "bolo" enorme em cima do chapéu,

apanhando a urraca e causando-lhe quase a morte por asfixia.

O raposo foi para a sua casa a reunir-se com a família, que esperava

ansiosamente o seu regresso. Sua mulher e seus filhos se encontravam numa ponte

que passava por cima de um impetuoso rio, esperando para dar-lhe boas-vindas. Ao

aproximar-se da ponte e ver a família esperando-o ali, o raposo se pôs a golpear o seu

tambor ritual tão fortemente, que seus filhos, assustados, se atiraram ao rio e se

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afogaram.

Pouco tempo depois, todos os animais voltaram a se reunir. O raposo, a

urraca e o lobo contaram seus infortúnios, mas a lebre permanecia sentada em

silêncio, à sombra de uma grande árvore. Depois que os animais contaram suas

histórias, todos eles se voltaram com ansiedade para a lebre. Esta falou assim:

— Amigos meus, cometemos um erro grave. O transformador do tempo tem

poderes mágicos e, ao roubarmos seus pertences, atraímos a desgraça sobre nossas

próprias cabeças. Vocês todos pensaram que saíram prejudicados, mas, olhem só

para mim. E, dizendo isto, a lebre saiu da sombra da árvore que a havia mantido

oculta até então. Também eu saí prejudicada, disse, pois. enquanto comia a comida

do transformador do tempo, parti o lábio.

Os animais ficaram sem fala ao verem a rachadura no lábio da lebre, que

chegava até o nariz. E a lebre continuou:

— Assim, todos os seres, humanos ou animais, quando me virem, saberão

que fazer o mal somente traz sofrimentos para aquele que o faz.

E até hoje, passadas tantas gerações, a lebre leva ainda no lábio o sinal

herdado de sua astuta antepassada.

Notas

1. Trata-se, respectivamente, do damaru (palavra da mesma origem que

"tambor", e o kapâla (aparentada com o grego kephalé, "cabeça"). O primeiro é um

objeto ritual, que reproduz o "som da imortalidade". O kapâla (tibetano, thod pá) é o

crânio de libações que contém a água da vida, objeto simbólico que vemos, na

iconografia tibetana, acompanhando figuras como Padmasambhava ou Naropa, o

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mestre de Marpa, ou divindades terroríficas como Mahâkâla ou Cakra-samvara. 2.

Trata-se de mudrás (tibetano, phyag-rgya), gestos rituais executados com as mãos. O

sentido literal desta palavra é o de "carimbo", e, por analogia, designa uma atitude

interior conformada a uma realidade arquetípica. Encontramos estes gestos nas

íóguicas, na dança e na iconografia hindus, cuja essência, comum às três, foi

"transvasada" ao budismo, onde encontrou uma plasmação quase sacramentai na

imagem de Buda.

O TESOURO PERDIDO

O sol poente se afundava detrás dos picos gelados das montanhas,

tornando-os vermelhos como brasas. Nos terraços das casas de Lhasa, os meninos

faziam subir seus papagaios de vivas cores, presos a fios polvilhados de pó de vidro.

Corriam e saltavam, entrecruzando-se — e os papagaios iam seguindo seus

movimentos —, e riam, em alvoroço, tentando cortarem-se, uns dos outros, os fios dos

papagaios. Um menino de uns seis anos estava sentado junto ao tio, um monge

vestido de hábito marrom. Observavam o papagaio do menino subindo cada vez mais

no céu. Mantido pelo vento, estava tão alto, que parecia que não se movia. Sem

deixar de olhar o papagaio, o menino disse:

— Me conte um conto, tio.

O monge sorriu ternamente.

— Uma história antiga, vamos!

E o monge começou, então:

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"Um pai disse a seu filho:

— Vou morrer logo, meu filho. Leve o meu ouro para a sua casa. É seu. Mas

lembre-se de que não deve confiar em ninguém. Nem sequer na sua esposa.

O pai acreditava que o filho — cujo nome era Sonam — soubesse seguir seu

conselho e que compreendesse como acontecem as coisas no mundo.

Sonam tinha um grande amigo, de nome Tamchu. Quando crianças, tinham

ido junto à escola, e, todas as tardes, brincavam do jogo de volante com o pé. Tamchu

vivia na aldeia próxima, com a mulher e dois filhos pequenos.

Certo dia, Sonam decidiu sair em peregrinação ao mosteiro santo. Antes de

partir, lembrou-se de que, quando vivo, o pai lhe havia dito que não confiasse em

ninguém. Mas, ao pensar no amigo Tamchu, não pôde admitir que as palavras do pai

devessem ser aplicadas também a este. Não, a Tamchu, não. E assim, levou suas

duas bolsas de pepitas de ouro à casa do amigo e lhe disse:

— Tamchu, por favor, guarde-me o ouro enquanto eu estiver fora. Este é o

ouro que meu pai me deixou, ao morrer.

Tamchu respondeu:

— Oh, sim, naturalmente. Guardarei o seu ouro com muito cuidado, e,

quando voltar de sua peregrinação, você aqui o encontrará. Você não tem por que se

preocupar. Somos bons amigos, não somos?

— E assim — continuou o monge —, passou-se um ano e Sonam voltou da

sua peregrinação. Foi à casa de Tamchu e pediu ao amigo:

— Você pode me devolver o ouro, Tamchu?

— Oh, eu sinto tanto, Sonam! Aconteceu uma desgraça, uma grande

desgraça! O ouro se converteu em areia! — respondeu Tamchu, olhando o amigo com

Page 65: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

cara de quem estava desesperado.

Mas, Sonam, enquanto o amigo lhe contava o estranho acontecimento, não

pareceu surpreso e, depois de alguns minutos de silêncio, disse:

— Está bem, Tamchu, não se preocupe. Você fez tudo o que pôde para vigiar

o meu ouro.

E os dois amigos comeram juntos em paz, como se a perda do ouro tivesse

sido esquecida por completo. Ao entardecer, Sonam disse ao amigo:

— Tamchu, eu gostaria de cuidar dos seus filhos durante uns meses, já que

não tenho minha própria família. Gostaria de dar-lhes boa comida e boa roupa. Eles

seriam muito felizes em minha casa.

— Muito boa idéia, Sonam!, disse Tamchu, pensando:

"Embora ele tenha perdido todo o seu ouro nas minhas mãos, ainda quer

cuidar de meus filhos. Sem dúvida, é uma ótima pessoa". E, assim, acrescentou:

Naturalmente, Sonam. Você pode levar meus filhos pelo tempo que quiser.

Sonam levou as crianças para a sua casa e tratou deles muito bem. Mas

comprou dois macaquinhos e pôs neles os nomes dos meninos. Durante os dias que

se seguiram, adestrou os monos para que, quando ele chamasse: "Tendzin, venha

aqui!", o macaquinho maior corresse para ele; e, quando chamasse: "Thupten, venha

aqui!", o macaquinho menor também fosse em direção a ele. Os macaquinhos

entenderam muito bem e aprenderam muito rapidamente.

Passado o tempo, quando Tamchu foi buscar os filhos, Sonam mostrou uma

cara muito triste ao amigo:

— Oh, eu sinto tanto, Tamchu — disse. Aconteceu uma desgraça, uma

grande desgraça! Seus filhos se converteram em macacos!

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Tamchu ficou muito triste e chamou os filhos por seus nomes. Imediatamente,

apareceram os dois macaquinhos e correram para ele. Tomaram a mão de Tamchu e

dançaram à sua volta, como se fossem menininhos. Tamchu ficou desolado e

perguntou ao amigo:

— Sonam, que podemos fazer? Como podemos fazer com que estes

macacos se convertam de novo em meus filhos?

Sonam mostrou-se pensativo por uns instantes e depois respondeu:

— Isso é fácil, meu amigo, mas vamos precisar de muito ouro,

— De quanto? — perguntou Tamchu.

— De umas duas bolsas de pepitas de ouro, pelo menos,

— Tão logo possa, trarei as bolsas de ouro — disse Tamchu, e saiu correndo

para sua casa.

Mais tarde, voltou e deu o ouro ao amigo. Sonam o pegou e disse a Tamchu

que esperasse enquanto ele subia ao andar de cima.. No fim de alguns momentos,

desceu.

— Aqui estão, Tamchu.. Transformei os macacos em sereshumanos de novo,

em seus filhos..

Tamchu ficou encantado por recobrar seus filhos, mas olhou com vergonha

para Somam. Logo depois, porem, os dois amigos caíram no riso.'"

Ao terminar a história, o próprio monge começou a rir, ao ver como o fio do

papagaio de seu sobrinho havia sido cortado enquanto escutava o relato. Ambos

contemplaram o papagaio que flutuava sobre o vale e voava para os dourados

telhados de Potala

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CUIDADO COM O MEL QUE É OFERECIDO SOBRE UMA FACA AFIADA!

Você há de saber que esta vida é

o minúsculo borrifar

de uma gota de água.

Uma bela criatura que desaparece

no mesmo instante

em que começa a existir.

Portanto, marque você mesmo a sua meta,

e aproveite ao máximo cada dia

e cada noite para alcançá-la.

TSONG-KHAPA

A ORAÇÃO QUE FOI ESCUTADA

O pequeno cômodo brilhava à luz das lamparinas de gordura colocadas com

esmo sobre a mesinha baixa diante do altar. Neste, podiam-se distinguir os objetos

sagrados: os livros santos envolvidos num pano, a imagem de Buda, um retrato

emoldurado do Dalai lama, xícaras de ofertório de prata; e, na parede do fundo, com a

fumaça do incenso enroscando-se à sua volta, o tanka1 que reproduzia a divindade

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tutelar e padroeira do Tibete: Chenrezik, o bodhisattva da compaixão, com onze

cabeças e mil braços. Pelas outras paredes do pequeno cômodo, havia quadros de

outras divindades, todas elas objeto de devoção para o povo do Tibete. Havia uma

representando Dolma, o aspecto feminino da compaixão, e Jamyang (Manjushri), o

bodhisattva da sabedoria.2

Esse cômodo, o oratório, era o mais rico da pequenina vivenda. O povo do

Tibete era muito religioso, e suas vidas giravam em torno dos ensinamentos de Buda,

tal como estes haviam sido explicados pelos grandes mestres e santos que tinham

alcançado o estado final de iluminação. As pessoas acreditavam que os grandes

santos, embora tendo chegado ao estado de iluminação, ainda se preocupavam pelo

bem de todos os seres, e que aqui permaneciam para protegê-los e guiá-los em seu

caminho por esta e por suas outras vidas futuras.

Assim o acreditava também uma velhinha que estava sentada num canto da

capela, a desfiar nos dedos as contas do seu rosário e a repetir, lentamente, a oração

de Chenrezik: OM MANI PADME HUM. Uma e outra vez, a poderosa oração brotava

dos seus lábios. A anciã vivia preocupada, pois era uma viúva sem dinheiro nem

terras: tudo o que possuía no mundo era a sua única filha.. E ela achava que, sem um

dote pata oferecer, a moça jamais iria ser pretendida pelos homens ricos da região, e,

portanto. iria viver a vida inteira na miséria. Não era por sua própria vida que ela se

preocupava, pois a sua vida quase já se havia consumido, mas desejava, de todo o

coração que a vida de sua filha pudesse ser próspera e feliz. Por isto é que rezava.

E sucedeu que um homem pobre, de uma aldeia vizinha, tinha ouvido falar da

filha da anciã, e, quando a vira, ficara tão impressionado com a sua beleza, que

determinou faze-la sua esposa. Ele sabia que não seria fácil que a mãe da moça

Page 69: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

consentisse no casamento da filha com um homem de uma condição tão humilde

quanto a sua. Por isso, tramou fazer com que a mãe acreditasse que era um homem

próspero e rico.

Escondendo-se na capela da casa da velhinha, ele esperou que ela entrasse,

fizesse as suas oferendas de alimentos e se sentasse num canto a rezar. A anciã

rezava e rezava com fervor, pedindo aos deuses que mandassem um rico marido para

tomar sua filha em casamento. O pobre homem ficou escutando até que ela

terminasse o pedido. E, no exato momento em que ela se dispunha a deixar a capela,

ele falou:

A velhinha se assustou ao ouvir a voz. E, como não visse ninguém mais no

local, acreditou que fosse a voz dos deuses. Ouviu a voz dizer-lhe que, no dia

seguinte num cavalo branco, apareceria um homem rico para pedir-lhe a filha em

casamento.

A anciã não cabia em si de contentamento. Ela e a filha limparam a casa

inteirinha, a fim de deixá-la preparada para receber o homem rico que os deuses iam

enviar para marido da moça. Depois de preparar a comida, a velhinha foi dizer aos

vizinhos que ficassem prevenidos para a grande festa do dia seguinte, pois que a sua

única filha ia se casar com um homem rico.

E, no outro dia, a anciã e a filha se levantaram bem cedo. Os pássaros

cantavam e o azul do céu contrastava com o vermelho dos picos das montanhas,

banhados pela luz do sol que nascia A velhinha e a moça estavam emocionadas e

contentes. Sentaram-se na parte de fora da pequena casa e ficaram esperando a

chegada do homem do cavalo.

Não muito tempo depois, ele apareceu no horizonte. E, enquanto o homem

Page 70: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

se aproximava a cavalo da casa, a filha ia sentindo a angústia cansada pelos súbitos

pressentimentos que a dominavam. Perguntava-se como seria ele, se elegante e bom;

se a sua vida de casada iria ser tranqüila e feliz como ela sempre havia desejado; e

perguntas como estas lhe vinham a mente. Mas depois lembrou que este homem era

uma dádiva dos deuses, de modo que ela não deveria sentir temor algum.

Até que, enfim, homem pobre, vestido com roupas que os vizinhos lhe

haviam emprestado e montado no cavalo branco que era o único que possuía parou

diante da casinha da anciã. Desmontou, sorriu para a moça e tomou a mão dela entre

as suas. Contendo a emoção com muita dificuldade, a velhinha pediu ao homem que

entrasse na casa e descansasse um pouco. Ele assim o fez. E, depois de terem

conversado por algum tempo, ele pediu à anciã a mão de sua filha em casamento.

O regozijo foi grande. Celebrou-se a festa e todos os vizinhos e amigos

vieram para desejar ao casal a maior felicidade, pois dava para se perceber que

aquele casamento havia sido mesmo determinado pelo céu.

O homem pobre chamou a moça e, colocadas as poucas coisas que

pertenciam a ela num baú, os dois partiram rumo à humilde casa dele, numa aldeia

vizinha. Durante a viagem, o homem começou a se inquietar pela impostura que havia

praticado. Tinha medo que a moça gritasse e berrasse quando soubesse que ele não

era, em absoluto, um homem rico, mas, sim, um camponês muito humilde; temia,

também, que ela fugisse e ele a perdesse para sempre.

Preocupado por esses pensamentos, o homem pobre concebeu um plano.

Tirou as coisas da moça do baú e as enterrou. Depois, disse a ela que se enfiasse no

baú, pois iria fazer-lhe uma surpresa quando chegassem à casa. Quando a moça já

estava dentro do baú, o homem o fechou à chave e o colocou numa valeta que havia

Page 71: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

num caminho da floresta. Depois, se dirigiu à sua casa.

Chegando lá, o homem pobre foi correndo aos vizinhos mais próximos, e,

contando-lhes que trazia para casa uma recém-casada, logicamente nervosa,

preveniu-os de que, se ouvissem gritos e berros durante a noite, não se

preocupassem. Depois, pôs ferrolhos novos e fortes na casa, a fim de que a moça não

pudesse escapar.

Enquanto o homem pobre estava em sua casa, um homem rico e de

influência foi dar justo no lugar onde a moça estava fechada no baú, esperando a volta

do marido. O homem rico e influente ordenou a seus servidores que abrissem o baú, e,

quando viu a moça dentro, ficou tão impressionado com a sua rara e delicada beleza,

que a levou com ele. Dentro do baú, no lugar da moça, deixou um urso feroz.

O homem pobre voltou em busca da esposa; amarrou uma corda em volta do

baú e o arrastou até a sua casa. Já dentro desta, abriu o baú e... ficou aterrado diante

do urso feroz — de uma ferocidade que, naturalmente, se havia exacerbado durante o

trajeto dentro do baú e pela violência do tratamento. O homem pobre gritou e berrou a

mais não poder, pedindo ajuda, enquanto o urso o atacava, mas os vizinhos não

fizeram caso do barulho, pois o próprio homem os havia prevenido a respeito.

E assim, o homem pobre, que havia tramado todo aquele embuste com a

pretensão de ser um deus, acabou morrendo nas garras de um urso selvagem. E a

moça viveu para sempre mais feliz do que nunca, como esposa de um homem rico e

influente. As orações da anciã haviam sido escutadas.

Notas

1. Um tanka (thang-sku, "algo que se enrola") é uma pintura sobre tela

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geralmente de algodão, que num dos bordos, ou em ambos, leva uma ripa ou uma

vara de bambu que permite possa ser enrolada. Quase sempre a pintura é

emoldurada com um brocado de seda.

A confecção de um lanka está sujeita a regras precisas, transmitidas pela

tradição, e nada deve à improvisação ou ao subjetivismo. Os lankas, no geral, são de

tema sagrado e constituem, rigorosamente, da mesma forma que os ícones cristãos,

suportes de medição. Não obstante, os narradores ambulantes também levavam

lankas com representações de caráter épico e narrativo, que ilustravam lendas

populares e acontecimentos.

2. Manjusrí (em tibetano, 'Jam-d pai) é um bodhisattva que personifica a

Sabedoria da mente completamente iluminada. Aparece sempre, na iconografia

tibetana, brandindo na mão direita uma espada flamígera, a qual corta a raiz da igno-

A ÁRVORE-SOMBRINHA

Havia uma vez um homem chamado Palden. Era um grande viajante.

Percorrera o mundo inteiro e vira coisas magníficas e maravilhosas. Um dia, quando

atravessava a sua terra natal — o Tibete —, encontrou um grande bosque, em cujo

centro, numa clareira, se levantava uma árvore enorme. Era belíssima, de folhas

verde-escuras e se estendia como uma sombrinha por sobre toda a terra à sua volta.

Sentindo-se cansado, Palden decidiu deitar-se sob a árvore-sombrinha.1

Acomodando-se entre as raízes salientes, logo adormeceu. De repente, despertou

sobressaltado. Era noite fechada e havia um grande alvoroço. Sem fazer nenhum

Page 73: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

ruído, mudou de posição para poder observar melhor e ficou escondido detrás do

enorme tronco da árvore-sombrinha. O que viu o assustou muito: ali, na escuridão da

noite, como estrelas do firmamento, brilhavam centenas de olhinhos: os olhos de

muitos animais, das mais variadas espécies.

Sigilosamente, Palden se levantou e, com muito cuidado, para não espantar

os animais, subiu pelos galhos da árvore-sombrinha e, desde ali, ficou espiando o que

se passava embaixo. Um enorme leão das neves emergiu da escuridão, e foi

sentar-se sob a árvore, seguido logo de um lobo, um urso, um macaco, aves e muitos

outros animais. Todos os animais que viviam nos arredores do grande bosque tinham

enviado um representante à reunião.

O leão das neves, que era sem dúvida o chefe,2 passou os olhos pela vasta

assembléia e disse:

— Boa-noite a todos!

E, como resposta, todos os animais saudaram o leão e se cumprimentaram

uns aos outros, com suas vozes e gorjeios.

Palden ficou tão pasmo com o que viu, que quase caiu dos galhos da árvore

quando o leão falou. Segurando-se firmemente num galho forte, foi contemplando —

olhos desorbitados — a reunião dos animais.

— Digam-me — disse o leão —, que tal foi o dia de hoje para vocês?

— Eu sinto muita fome, respondeu um lobo.

Caminhei muitos quilômetros, hoje, e não consegui comida suficiente.

— Já eu tive sorte — disse a tartaruga —, passei um dia ótimo, nadando e

brincando entre as ramagens.

Todos os animais contaram o seu dia e, enquanto o faziam, o leão

Page 74: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

acrescentava os seus comentários, confirmava com a cabeça ou a balançava em sinal

de desgosto; de vez em quando, dava algum conselho ao animal que o precisava.

Passado algum tempo, já se ia fazendo silêncio e todos os animais se

preparavam para voltar aos seus territórios, quando se escutou um surdo rouquido:

— Perdão, disse uma voz baixa. Tratava-se de um macaco muito velho e

enrugado, que se levantou e se dirigiu para o auditório:

— Tenho um relato triste para contar a vocês, hoje. Está relacionado com a

estupidez dos humanos.

— Conte-nos, então — disse o leão. Que foi que fizeram, hoje, os humanos?

O macaco continuou:

— Bem, para falar a verdade, o que eu gostaria mesmo é de ser humano

também — disse, pois, se o fosse, poderia fazer muito mais pela felicidade dos outros.

Mas, sendo as coisas como são, eles, os humanos, jamais escutam os chios de um

velho macaco.

— Vamos logo com essa história — disse o raposo com impaciência, e um

rumor de descontentamento se levantou dentre a multidão.

O leão das neves levantou uma das garras para impor silêncio:

— Deixem que o macaco conte o seu relato, disse.

— Bem — disse o macaco —, há uma família que vive junto do rio. Eles têm

uma filha, uma única filha, que está muito doente. Já faz três meses que ela sofreu um

ferimento na perna, e seus pais não sabem como curá-lo. Pois bem, se eu fosse

humano — continuou —, lhes diria como curar a perna da menina.

Todos os animais concordaram com a cabeça, pois todos conheciam muito

bem a estupidez dos humanos. E o macaco prosseguiu:

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— Diante da casa, há uma grande rocha sob a qual vive uma rã. A rã está

muito doente e não pode se mover por falta de água. Pois bem, se os pais da menina

recolhessem essa rã, a colocassem num pratinho de ouro do santuário doméstico e a

levassem ao rio, a perna de sua filha sararia rapidamente.

— É certo, falou o leão das neves. O macaco conhece o meio de curar a

perna ferida da menina.

Mas, das outras vezes que tentamos falar com os humanos, eles não nos

quiseram escutar, aliás, nunca nos escutam. Por isso, agora, que se arranjem

sozinhos!

Depois que todos os animais se foram, Palden desceu da árvore-sombrinha.

Estava muito pensativo e se perguntava o que devia fazer.

— Os animais me ensinaram o caminho a seguir — pensou. Devo encontrar

essa família e ajudá-los a curar a perna de sua filha.

Quando Palden chegou à casa, o sol já havia aparecido no céu e a manhã ia

avançando. Foi até a porta e chamou. Seu chamado foi logo atendido pelo pai da

menina, que o olhou intrigado e perguntou o que queria.

— Sou médico — disse Palden. — Vim ajudar à sua filha.

O pai se afastou para deixar Palden entrar na casa e o conduziu até o leito

onde jazia a filha, pálida e enferma, à beira já da morte. Palden se ajoelhou junto ao

leito e tomou a mão da menina entre as suas.

— Vou fazer com que você fique boa de novo, sussurrou-lhe. Mas a menina

não o ouvia. Palden viu que tinha que se apressar se quisesse salvar-lhe a vida.

Dirigindo-se ao exterior da casa, Palden encontrou a pedra grande. Afastou-a,

com jeito, uns centímetros, e ali estava a rã, desidratada e morrendo por falta de água.

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Palden pediu ao pai da menina que lhe trouxesse uma echarpe branca limpa sobre um

pratinho de ouro do santuário doméstico. Então, com muito cuidado, apanhou a rã e a

colocou no pratinho, tal como o macaco havia mencionado.

Passando o pratinho ao pai da menina, Palden lhe disse que levasse a rã ao

rio e que a colocasse no fundo:

— Se o senhor assim o fizer e se a rã se recuperar, a sua filha se salvará.

O pai não compreendia a medicina que o estranho doutor lhe aconselhava,

mas, como havia experimentado de tudo para curar a menina, e sem resultado,

procedeu tal como aquele homem lhe pedia.

Ao voltar do rio, o pai não coube em si de contentamento, ao ver que sua filha

tinha se levantado da cama e já ajudava à sua mãe na cozinha. Voltando-se para

Palden, o pai disse:

— Tudo o que tenho de valor é seu, é só dizer o que quer, pois o senhor

salvou da morte a nossa única filha, e todo o ouro do mundo não seria suficiente para

pagar-lhe o bem que nos fez.

— Eu não quero nada, disse Palden, a não ser trazer felicidade às pessoas.

O pai insistiu para que Palden ficasse e que comesse com eles, pelo menos.

Prepararam uma grande festa em sua honra. Todos os vizinhos vieram e, nessa tarde,

houve grande alegria no bosque, pois todos acreditaram que se houvesse realizado

um milagre.

Ao cair da noite, Palden se despediu da família e, levando consigo os

presentes com que o haviam acumulado, dirigiu-se novamente ao centro do bosque, à

clareira na qual se erguia a árvore-sombri-nha. Quando chegou à árvore, a reunião já

havia começado. Todos os animais estavam congregados e contavam ao leão das

Page 77: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

neves as suas histórias. Lentamente e sem fazer ruído, Palden se encarapitou na

árvore e subiu pelos galhos até ficar escondido da vista de quem quer que fosse.

Dessa vez, foi um tigre que falou dos humanos, contando sobre uma família

que vivia no outro lado do bosque, longe do rio.

— São tão ignorantes — disse o tigre —, que todos os dias percorrem

quilômetros e quilômetros até o rio, para se abastecerem de água.

Uma vez mais, os animais concordaram com a cabeça e soltaram grunhidos

de compreensão, enquanto o tigre continuava o seu relato:

— Pois bem, se eu estivesse em seu lugar, arrancaria o grande toco de

árvore que há junto à casa deles, cavaria até um metro de profundidade, e dali tiraria

toda a água que necessitasse.

Palden escutava. Quando os animais terminaram, desceu da árvore e

adormeceu profundamente. Contudo, ao despertar, recordou perfeitamente o relato do

tigre, na noite anterior. "Foi um sonho?", perguntava-se; mas, quando levantou os

olhos na direção dos galhos da árvore-sombrinha, persuadiu-se de que o que havia

ouvido era absolutamente real, e de que tinha de encontrar a família que necessitava

de água tão desesperadamente.

Palden chegou à casa da família no mesmo momento em que o sol se

escondia detrás do horizonte, mas ainda havia luz suficiente para ver o grande toco.

Aproximou-se do mesmo para inspecioná-lo e viu que estava profundamente fincado

ao solo. "Será preciso a força de uns cinqüenta homens para arrancar este toco —

pensou —, pois ele está com as raízes enterradas fundo no solo. Sentou-se junto ao

toco, tirou um pouco de comida da sua chuba, comeu, e logo voltou a dormir.

Raiou a aurora. Os pássaros do bosque cantavam e alguns sinais de

Page 78: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

movimento dentro da casa indicavam que a família já se havia levantado e se

preparava para a jornada. Palden foi até a porta de entrada da casa e chamou,

pedindo aos de dentro que o deixassem entrar.

Quando a mulher da casa respondeu ao seu chamado, Palden lhe pediu um

pouco de água, mas ela disse que a que tinham já não era suficiente sequer para eles

mesmos; e, sendo assim, não podia dar nem uma gota a estranhos.

— Temos que andar muitos quilômetros todos os dias —disse —, pois

vivemos longe do rio e não temos outra fonte perto de casa.

— Talvez eu possa ajudá-los — disse Palden —, pois sou perito nestas

questões.

— E o que o senhor vai querer por isso? — perguntou a mulher. — Se nos

ajudar a encontrar água, tudo o que temos será seu.

— Tudo o que eu quero — disse Palden — são vinte e cinco metros de corda

e doze iaques. Com isso proporcionarei a vocês toda a água que possam necessitar.

A mulher chamou o resto da família e, juntos, pegaram os iaques e a corda.

Palden tomou a corda, amarrou-a ao toco de árvore, e depois a prendeu aos doze

iaques. Conduzindo os iaques, fez com que eles puxassem e puxassem, até que,

finalmente, o toco foi arrancado do chão. Então, pediu à mulher que chamasse todos

os vizinhos mais próximos e que lhes dissesse que trouxessem pás para cavar.

Todos se juntaram e se revezaram para cavar o buraco deixado pelo toco. Em

pouco tempo, a água apareceu. Água de fonte, água de manancial, clara e fresca, que

encheu o buraco e jorrou abundante pelo solo.

Todos gritavam, riam, saltavam de contentamento, abraçando-se uns aos

outros, cheios de felicidade. De repente, uma voz gritou dentre a multidão: "Silêncio!"

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Fez-se silêncio entre todos, pois o ancião que havia lançado a ordem era

sábio e muito reverenciado por seu povo.

— Durante sessenta e cinco anos — disse, dirigindo-se a Palden —, tratei de

ajudar a essa gente.

Vi crescerem seus filhos e os filhos de seus filhos.

Vi morrer muita gente. Entretanto, nem eu nem nenhum outro foi capaz de

fazer o que você fez.

Você é alguém muito especial — continuou. Deve ser, então, o chefe do

nosso povo, pois trouxe muita alegria a seus corações e, mesmo assim, não está

pedindo nada para si mesmo.

Palden respondeu:

— Darei o melhor de mim para conduzir o povo do bosque e fazer a todos

felizes. Agradeço-lhes por me pedirem isso. Na verdade, eu sou apenas um pobre

homem.

Assim que disse isto, a multidão levantou Palden e o levou aos ombros por

todo o bosque, proclamando-o seu novo chefe.

Passaram alguns anos. Palden vivia feliz entre o seu povo. Sucedeu, então,

que um velho amigo seu, inteirado da sua sorte, decidiu fazer-lhe uma visita, no

bosque, para investigar como Palden havia chegado a ser tão famoso e querido.

Palden deu boas-vindas ao amigo, recebendo-o de braços abertos.

— O que o trouxe aqui, Kunjo? — perguntou.

— Desejo saber — respondeu Kunjo — o que fez você para ter tanta sorte.

— Oh! foi tudo muito simples — disse Palden.

E contou ao amigo tudo sobre a história da árvore-sombrinha e as reuniões

Page 80: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

dos animais.

Kunjo escutou atentamente o relato de Palden e, considerando o quanto

gostaria de ser, também, chefe de um povo, decidiu encontrar a árvore-som-brinha e

escutar os animais em seu colóquio. "Isso vai me fazer muito rico e famoso — pensou

Kunjo; — terei todo o ouro e a prata que desejar".

E assim, nessa mesma tarde, despedindo-se de Palden, dirigiu-se à clareira

do centro do bosque e subiu aos galhos da árvore-sombrinha para esperar a chegada

dos animais.

Pouco tempo depois, dentro da noite iluminada apenas pelos tênues raios de

lua que se filtravam entre os galhos das árvores, chegaram os animais.

Bem no momento em que iam começar a reunião, ouviu-se um estalido nos

galhos da árvore-sombrinha. O leão das neves olhou para cima justo no instante em

que Kunjo caía aos pés de um urso enorme.

— Pois vejam só! — disse o urso. Com que então, temos alguém para

escutar a nossa reunião!

E, estreitando o homem em seus poderosos braços, espremeu-o tanto e tanto,

que o último alento escapou do corpo de Kunjo e este morreu.

As aves e todos os (outros) animais banquetearam-se, naquela noite. E,

quando o sol saiu, tudo o que restava do pobre Kunjo eram uns poucos ossos, que as

aves carniceiras, com seus bicos, se encarregaram de deixar limpinhos.

Notas

1. Em inglês, conhece-se com o nome de "Umbrella Tree" ("árvore

guarda-chuva" ou "árvore-sombrinha") uma árvore americana do gênero das

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magnólias (Magnolia tiipetala), bastante alta e de folhas muito grandes, que oferecem

um magnífico abrigo contra a chuva. Mas esta classificação se estende, igualmente, a

outras árvores de características parecidas. Assim, pois, e dado que em nosso conto

não se podia tratar desta árvore, pois o refúgio que oferece ao seu protagonista não é

tanto da chuva, mas do sol, preferimos traduzi-la como "Árvore-sombrinha".

2. Não existem leões no Tibete, e desde o ponto de vista zoológico, esta

designação de "leão das neves" poderia ser aplicada, talvez, ao írbis, conhecido como

"pantera das neves", que é própria desta região da Ásia Central. De qualquer maneira,

no Tibete o leão ocupa um lugar destacado como animal simbólico, de acordo, quanto

aos demais, com a significação especial que tem o leão no budismo. E a presença do

leão como animal simbólico na tradição popular tibetana era muito ampla; em algumas

festas, como a do Ano Novo, celebrava-se a "Dança do Leão". Pois bem, a figura

realmente importante nessa tradição era a da "Leoa branca das neves", ou "dos

geleiros", que era considerada a personificação destes últimos. E a água que escorria

deles, reputada como medicinal, era conhecida como o "leite da leoa branca dos

geleiros".

OS AMANTES

Era uma vez o jovem filho de uma família pobre. Tratava de ganhar a vida

arrancando o que podia do terreno ao redor da casa e guardando o pequeno rebanho

de iaques que sua família possuía.

Pelo fato de viver no lado sul, onde a grama crescia pobre e rala,

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freqüentemente o rapaz tinha de percorrer um longo caminho pelo rio, até o lado norte,

onde a grama era verde e viçosa, e onde havia montanhas e vales nos quais o seu

rebanho podia se apascentar. A viagem levava muitos quilômetros, e o moço tinha que

alcançar um baixio do rio, a fim de poder cruzá-lo sem perigo.

Foi durante uma dessas freqüentes viagens para o lado norte do rio, que ele

encontrou uma formosa jovem. Também ela guardava o rebanho da família, cujo

número de iaques era muito superior ao dele. Assim, o moço logo soube que ela não

era pobre. Logo, começaram a se falar. Costumavam descansar ao sol, enquanto

seus animais vagavam pelo vale. Falavam de suas vidas, de suas famílias, de seus

sonhos e de suas esperanças para o futuro. Ele se inteirou de que ela tinha três

irmãos e de que se revezava com eles para guardar o rebanho. Toda vez que ele

cruzava o rio, olhava se ela estava ali; algumas vezes, sim, outras, um dos irmãos

estava em seu lugar.

O jovem casal se enamorou. A moça sabia que a mãe iria ter um grande

desgosto quando soubesse dos seus sentimentos, pois desejava que ela se casasse

com o filho de uma família vizinha, e tudo estava quase acertado.

Assim, os dois seguiram vendo-se em segredo. Freqüentemente, o jovem

cantava para ela: eram canções do Tibete, canções de amor, canções sobre o

povoado onde ele vivia. E um dia, o moço tirou um dos longos brincos de turquesa que

usava e, delicadamente, o entrelaçou nos cabelos dela, de forma a que ficasse

escondido. Com isto, os dois se tornavam noivos. Entretanto, quando o rapaz assim

agiu, ela havia experimentado uma grande tristeza, pois sabia que sua mãe jamais iria

consentir na união dos dois.

Um dia, a mãe da menina, que já suspeitava de algo pelo desejo desta de sair

Page 83: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

sempre com o rebanho, insistiu para que ela ficasse em casa para tomar banho e

lavar-se o cabelo. Quando a mocinha desatou o cabelo, o brinco de turquesa caiu no

chão e a mãe reparou nele. Pôs-se uma fúria e obrigou a menina a revelar-lhe quem

lhe havia dado o brinco.

No dia seguinte, a mãe disse ao filho mais velho:

— Apanhe esta flecha, e, quando encontrar aquele homem terrível, mate-o.

O filho mais velho pegou a flecha, mas, quando encontrou o rapaz, não pôde

matá-lo. Em vez disso, gritou-lhe:

— Fuja! Eu matarei um corvo e levarei à minha mãe a flecha manchada de

sangue.

E assim o fez. Quando a mãe viu a flecha, disse ao filho que a levasse ao

lama do povoado. O lama devolveu a flecha com o recado de que na ponta da mesma

havia sangue de corvo, e não sangue humano. A mãe se aborreceu muito. Disse,

então, ao segundo filho:

— Apanhe esta flecha e mate-o!

O segundo filho apanhou a flecha, mas, da mesma maneira, quando

encontrou o rapaz, não teve coragem de matá-lo. Em vez disso, gritou-lhe:

— Fuja! Eu matarei um esquilo e levarei à minha mãe a flecha manchada de

sangue.

E assim o fez. Quando a mãe viu a flecha, ordenou ao segundo filho que a

levasse de novo ao lama do povoado. O recado desta vez foi de que o sangue da

ponta da flecha tampouco era sangue humano.

A mãe não conseguia mais conter-se. Seu ódio em relação ao moço era tão

intenso, que não ia descansar enquanto não o visse morto. Procurou o filho mais novo

Page 84: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

e lhe disse:

— Se você matar aquele homem com esta flecha, eu o recompensarei com o

ouro que seu pai me deixou. Mas, se você não o fizer, vou tomar a sua vida no lugar

da dele.

O filho mais novo pegou a flecha e, quando encontrou o moço, sentiu-se

muito aflito. Não desejava matá-lo, mas sabia que a sua própria vida estava

dependendo disso. "Se eu levar a flecha com sangue humano — pensou —, tudo

sairá bem: minha mãe pensará que matei o rapaz. Vou disparar a flecha contra a

perna dele apenas para feri-lo". Mas, o que ele não sabia era que a mãe havia

colocado veneno na ponta de flecha antes de entregá-la a ele.

E o filho mais novo correu, tirou a flecha da perna do rapaz e a levou à mãe.

Desta vez, o recado que se recebeu do lama foi de que o sangue da flecha era

humano. A mãe não coube em si de contente.

— Por fim, disse, livrei-me da ameaça.

O rapaz ferido estava sofrendo muito: a perna piorava dia a dia e o veneno

penetrava cada vez mais no seu corpo. Já não podia andar com o seu rebanho, mas

descia à margem do rio e falava aos gritos com a moça, em meio ao ruído das águas

desordenadas.

— Como está a sua perna, hoje? — perguntava-lhe ela.

E ele respondia:

— A dor do meu coração é muito maior do que a estou sentindo em minha

perna.

A mocinha se afligia e a saúde do rapaz piorava. Um dia, ao perguntar-lhe

como estava, ele respondeu:

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— Amor meu, logo não estaremos mais juntos nesta vida, pois creio que esta

noite eu vou morrer. Se amanhã, quando você descer à margem do rio, houver um

arco-íris, vai saber, então, que eu morri.

No dia seguinte, ela desceu correndo para a margem, mas, já muito antes de

chegar, viu o arco-íris no céu. Soube, então, que ele estava morto. Sentou-se à

margem do rio e chorou até partir-lhe o coração. De repente, escutou, docemente, a

voz do moço, que não saía de nenhuma parte, mas que a contornava. Cantava assim:

"O rio tem crescido muito e muito, e nada detém a impetuosa canção das

suas águas. Urna vez que nós nos prometemos mutuamente, inimigo algum pode

impedir a nossa união."

A mocinha voltou a casa, onde a mãe a esperava. Lançou-se a seus pés,

chorando. Suplicou que a deixasse ir ao funeral do rapaz, prometendo-lhe que,

quando tudo houvesse terminado, se casaria com o homem que a mãe escolhesse

para ela. A mãe, então, consentiu, e ambas, e mais uma criada, foram ao funeral.

Quando chegaram, o moço jazia numa pira funerária, mas, por mais que a

família o tentasse, não havia conseguido que seu corpo ardesse.

A moça desvestiu, então, a sua túnica, e a jogou sobre o corpo do rapaz.

Imediatamente, se levantou uma chama. A seguir, ela lançou os seus sapatos sobre o

corpo, e a chama subiu mais alto ainda. Depois, voltando-se para a criada, pegou o

azeite de mostarda que tinham trazido com elas e o derramou sobre o seu próprio

corpo. E assim fazendo, entrou na pira funerária que ardia intensamente. E a mãe

pôde contemplar, com horror, como a filha se estendia sobre o corpo em chamas de

seu amante.

Quando as chamas se apagaram, os ossos do casal se haviam fundido entre

Page 86: Contos Populares do Tibet - Os Mais Belos Diálogos na Literatura Budista.pdf

si. A mãe da moça e a do rapaz discutiram sobre como separar os restos mortais, para

que os que pertencessem a cada um deles pudessem ser enterrados no lado

respectivo do rio. A mãe da menina perguntou:

— O que era que dava mais medo a seu filho, neste mundo?

E a mãe do rapaz respondeu:

— As serpentes.

— E à minha filha, as rãs, disse a primeira.

Assim, colocaram uma serpente e uma rã sobre os restos mortais dos jovens,

que se separaram, pois os ossos respectivos se deslocaram segundo o medo dos

distintos animais: os do rapaz, para o lado sul, e os da mocinha, para o lado norte.

Logo, em ambos os pontos onde foram enterrados os restos mortais,

cresceram duas árvores, que se tornaram muito grandes. Seus galhos se estenderam

por cima do rio e se entrelaçaram. A mãe da moça mandou que os cortassem. Mas,

pouco tempo depois, nasceram, no lugar das árvores, dois arbustos, e, em cada um

deles, pousava um pássaro. Os pássaros cantavam um para o outro através do rio, e

voavam um em direção ao outro, descendo para brincar nas frescas águas.

A mãe da moça fez matar os dois pássaros e arrancar os dois arbustos pela

raiz. Quando os espíritos dos dois pássaros subiam em direção ao céu, o macho disse

à fêmea:

— Parece-me que não vamos estar juntos nunca.

— Mas é claro que estaremos — respondeu o pássaro fêmea. — Você vai

para as regiões do sal, e eu irei para as regiões do chá.

E assim o fizeram. Deste modo, agora, cada vez que alguém faz chá tibetano

com sal e manteiga, os dois amantes se reúnem.1

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Nota

1. O chá tibetano é preparado fervendo-se as folhas do chá, que vão em

pães; passa-se a infusão a uma vasilha e se acrescenta sal e manteiga, batendo-se a

mistura. É consumido, habitualmente, junto com tsampa (rtsan-pa), farinha de cevada

tostada, que é amassada com o chá formando como que umas bolas.

A RÃ

Os raios do sol nascente acendiam os gelados picos das montanhas que

contornavam as onduladas colinas, e estas iam dar num vale todo feito de uma

quantidade imensa de campos das cores mais variadas.

Esta cena se refletia nos enormes olhos negros de uma grande rã, que

permanecia sentada, imobilizada sempre, a não ser por algum pestanejar, de vez em

quando. Seu corpo tinha mais de um palmo de comprimento, e a sua pele sarapintada

de cor ver-de-oliva lhe dava uma camuflagem perfeita por entre as pedras empilhadas

na base de um alto poste de bandeiras de preces. A rã observava atentamente os

movimentos de uma anciã que acendia, com cuidado, um monte de ramos de

zimbro.1

Situada bem diante da porta de sua casinha nas periferias de um povoado, a

anciã fazia orações junto ao fogo de incenso. Seus fatigados lábios se moviam no

rosto curtido e profundamente enrugado. Seu avental indicava que era uma mulher

casada, e estava tão coberto de pó, que suas riscas de diferentes cores já haviam

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desbotado e estavam quase desfeitas, como dando a explicação dos seus muitos

anos de viuvez.

Enquanto a anciã contava as invocações com o seu rosário de madeira já

gasto, a rã se aproximou silenciosamente, aos saltos, até onde ela se encontrava. No

começo, a anciã não a viu, mas depois, tendo a sensação de que estava sendo

observada, virou-se e deu com a mirada imperturbável de uma grande rã. Tratava-se,

pensou a anciã, de um exemplar realmente magnífico, com a sua pele lisinha esticada

sobre os membros comprimidos, e com os seus enormes olhos negros quase ocultos

pelas salientes pálpebras. A rã soltou um canto forte, e, depois, devagar, mas muito

claramente, falou:

— Senhora, eu a tenho estado observando.

A anciã ficou atônita. Nunca ouvira dizer que uma rã falasse. E a ficou

olhando assustada.

— Eu me perguntava — prosseguiu a rã — se a senhora consentiria, de bom

grado, em ser minha mãe.

Entre incrédula e nervosa a anciã começou a rir, mas respondeu:

— Como poderia um animal ser filho meu?

A rã inchou, então, o seu saco bucal, coaxou forte muitas vezes, e depois

voltou a dizer:

— Eu estou falando sério. Iria ficar muito agradecida à senhora, se aceitasse

ser minha mãe. E, dizendo isto, deu um salto e veio postar-se bem junto aos pés da

anciã.

A velhinha, agora, estava certa de que se tratava de uma brincadeira. Mesmo

assim, não quis ferir os sentimentos da rã. Respondeu-lhe que, embora fosse uma rã

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muito formosa, ela não poderia, de forma alguma, consentir em ser sua mãe.

— Eu sou um ser humano — disse —, você deve buscar também uma rã para

que ela, sim, seja sua mãe.

A rã pestanejou lentamente e continuou com o olhar fixo na anciã — olhos

feitos bolas de mármore negro. A viúva se sentiu perturbada: seus dedos começaram

a desfiar as contas do rosário e seus lábios se moviam numa invocação que pedia

proteção. Sem dúvida, era realmente muito estranho que uma rã fizesse uma proposta

como aquela. Começou a crer, então, que talvez se tratasse de um espírito maligno. A

rã nem se movia. Acomodada aos pés da viúva, e coaxando de vez em quando, não

tirava, nem por um segundo, os olhos do rosto da anciã.

— Vá embora! — disse a viúva. Aqui não é o lugar de uma rã. Estou dizendo

a verdade, é preciso que você se vá!

A viúva notou, então, quão expressivos estavam os olhos da rã, quando esta,

tristemente, voltou a dizer:

— Por favor, senhora, eu lhe peço, seja minha mãe.

A viúva começou a sentir-se invadida por uma grande raiva. Gritou, então, à

rã, que se fosse, que a deixasse em paz; e não a olhava sequer nos olhos, enquanto

falava. E quando, finalmente, se virou de novo para olhá-la, somente pôde perceber a

visão rápida do dorso da rã, enquanto esta se afastava, a grandes saltos, em direção

ao monte de pedras da base do mastro da bandeira de preces, primeiro, e, depois,

para desaparecer ao longe.

Na tarde seguinte, a anciã estava sentada no terraço de sua casa, ocupada

em classificar seus documentos para o cargo que tinha no mercado do povoado. Fez

uma pausa para beber um pouco de chá numa tigela revestida interiormente de prata,

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e, quando estava aproximando dos lábios a vasilha de madeira, teve a sensação de

que não estava só. Dois grandes olhos a observavam com descarada intimidade. A

viúva continuou bebendo o seu chá e ia pensando em como poderia safar-se da rã.

Esta estava no beirai do telhado, pendurada pelas longas patas traseiras, e cocava,

indolentemente, a pálpebra esquerda com uma das patas dianteiras.

A viúva fez de conta que não havia notado a presença da rã, mas justo no

momento em que terminava o seu chá, a rã repetiu o seu pedido:

— Senhora, senhora, por favor, seja minha mãe!

— “Demônios! — disse a anciã para si mesma. — Você nunca me deixará em

paz?" E, dirigindo-se à rã, fritou:

— Não! Já lhe disse! Por que está brincando comigo?

— Senhora, disse a grande rã com tom carinhoso —, eu não estou brincando.

Eu quero mesmo que a senhora seja minha mãe.

A viúva balançou a cabeça e ia se dirigindo para os inclinados degraus que

baixavam do terraço, quando, antes que pudesse descer, a rã continuou:

— Poderíamos levar uma vida muito feliz juntas, se a senhora fosse minha

mãe.

Suplicante, a viúva disse a rã:

— Não quero, de modo algum, ter uma rã por filho; por favor, deixe-me em

paz e vá perturbar em outro lugar.

A rã olhou a anciã com tristeza nos olhos. Para surpresa sua, a viúva

descobriu que essa mirada lhe fazia sentir-se culpada. Virando as costas, desceu os

inclinados degraus de madeira, deixando a rã sentada no terraço.

Durante todo o dia seguinte, a anciã esteve tentando tirar a rã da cabeça,

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mas a visão dos seus olhos profundos não saía do seu pensamento. "Deve ser uma rã

mágica que está tratando de enfeitiçar-me", pensou.

Ao entardecer, quando a anciã voltava do rio trazendo o seu balde de couro

cheio de água, a rã saltou ao seu lado. E, desta vez, para sua própria surpresa, a

viúva se alegrou ao vê-la.

— Senhora — disse a rã, enquanto seguiam pelo caminho solitário —, será

minha mãe?

A viúva não respondeu imediatamente, mas se perguntou, como o havia feito

muitas vezes, durante o dia, o que poderia fazer, e o que estaria realmente

acontecendo, para que a rã quisesse tão persistentemente que ela fosse sua mãe.

"Por mais que a mandasse embora pensou —, acaba sempre voltando". E o rosto tão

curtido da viúva sorriu, e desenharam-se profundas rugas na sua pele que mais se

assemelhava a um pergaminho. "Como a minha atitude mudou!" dizia-se, e lhe

pareceu, pela expressão dos olhos da rã, que esta, estava sabendo dos seus

sentimentos. Será que a teria realmente enfeitiçado? Não obstante, não sentia temor;

tinha apenas uma sensação de afeto.

E se eu me converter realmente em sua mãe, que vai você fazer como filho2

de uma pobre viúva?

Muitas coisas, senhora; farei muitas coisas pela senhora. Será, então, minha

mãe?

Um pouco preocupada ainda com a situação, a viúva respondeu:

— Muito bem, serei sua mãe.

Ao ouvir isto, a rã reagiu saltando e pulando alegremente à frente da viúva,

até chegarem à casinha desta.

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Como anoitecesse, a viúva acendeu as lamparinas de azeite de mostarda

com uma pedra de faísca e perguntou à rã:

— Onde vai querer dormir, meu filho?

— Dormirei muito à vontade na lareira, mãe.

Ao amanhecer, a anciã despertou e olhou para a rã: esta se espreguiçava na

cinza ainda um tanto quente do forninho de argila, e deu a impressão à anciã de estar

muito satisfeita. Isto não deixou de surpreendê-la, pois acreditava que uma rocha

úmida fosse um leito muito mais apropriado a uma rã.

— Bom dia, mãe, a senhora dormiu bem?

— Mais ou menos — respondeu a viúva, enquanto lavava o rosto na água fria

de seu balde de couro. Depois, com o velho fole, avivou o fogo de excrementos de

iaque3 no braseiro de latão, e em cima dele pôs a grande chaleira de cobre para

esquentar. Com uma concha, serviu cevada tostada em duas xícaras grandes

colocadas sobre a mesinha baixa de madeira. Depois, juntou à cevada tostada um

pouco de chá espesso e manteigoso. Enquanto punha a xícara no chão diante da rã, a

viúva pensava em como esta iria fazer para comer, e se preparava para perguntar-lhe

isso, quando viu que a rã já estava de cócoras e amassava a cevada e o chá com

grande destreza.

— Mãe, disse a rã —, necessitamos de queijo.

E de onde eu vou tirar o queijo, meu filho, se não tenho dinheiro para

comprá-lo?

— Não se preocupe, mãe — respondeu a rã (e a viúva teve a impressão de

que a rã sorria) —, eu conseguirei um pouco.

— E como você vai trazê-la? Você é muito pequena.

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— Eu me arranjarei.

Falava com tanta confiança em si mesma, que a viúva não pôde evitar o riso.

E, como a rã já estivesse ansiosa por partir, a anciã deu-lhe a sua bênção e disse:

— Pois bem, vá. Que Chenrezik o proteja e que você possa conseguir o

queijo que quer. Depois, a observou desde a soleira da porta, enquanto a rã, com

grandes saltos, se encaminhava para o mercado.

Oculta por um grande arbusto, a rã deu uma olhada no animado mercado.

Logo ficou coberta pelo pó levantado pelas patas dos iaques, das mulas e dos cavalos

dos comerciantes, que carregavam as suas bestas de carga e se dispunham a partir

da estalagem do lugar.

O povo se apinhava em torno das bancas. A rã abandonou a proteção do

arbusto e começou a perambular por ali, até encontrar exatamente o que buscava.

Sem vacilar, saltou diretamente sobre o lombo de uma mula carregada com fardos de

queijo. A mula escoiceou ao sentir a rã sobre o lombo, mas se tranqüilizou a uma

ordem firme desta.

Os aldeãos não podiam crer no que seus olhos estavam vendo, e logo se

ajuntou uma multidão. Mas ninguém tentou fazer nada para tirar a rã do lombo da

mula, e tampouco para deter a mula no seu trote pelo povoado com a rã, a qual,

aparentemente, tinha o total domínio da situação, mantendo-se equilibrada no lombo

da mula. Todos concordavam quanto ao fato de que uma mula montada por uma rã

era realmente um acontecimento demasiado estranho para que alguém quisesse

interferir. Mas, o que os fazia não entrarem de acordo era se aquilo significava um

bom augúrio ou não, e a maioria estava convencida de que se tratava de algum

demônio maligno.

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Quando a viúva escutou a mula no lado de fora, precipitou-se para a porta e

viu que a rã, com efeito, havia trazido para casa uma copiosa provisão de queijo.

Inclusive depois de descarregar e armazenar as sacas, e ainda quando já estavam

comendo o queijo, a viúva não podia acreditar:

— Mas, não pode ser que você, sozinho, tenha feito isso! Não acredito!

A rã disse sorrindo:

— E, por acaso, isto é mais surpreendente do que o fato de que eu seja seu

filho?

A viúva, séria, respondeu:

— Você é, de fato, meu filho, e, sendo meu filho, tenho o direito de saber

quem você é.

A rã se limitou a coaxar e a rir baixinho.

— Você não é um ser humano — disse a viúva —; entretanto, não pode ser

uma rã, você é alguma coisa especial. Mas a rã não respondeu; apenas sorriu

melancolicamente. No dia seguinte, depois de terminado o desjejum, a rã comunicou

que havia tido outra idéia. A anciã disse, rindo:

— De que se trata desta vez?

— Mãe, respondeu a rã, o que eu necessito agora é de uma esposa.

Por um momento, a viúva se entristeceu muito, pois não podia imaginar que

alguma fêmea fosse gostar da vida que seu "filho" estava levando; e ela conhecia

muito bem a vida para saber que a rã não poderia negar à sua esposa o tipo de vida

que esta, sem dúvida alguma, quereria levar.

— Está bem, meu filho — disse a viúva sorrindo — faça como quiser, mas

tome cuidado ao escolher a sua esposa. Despedindo-se da mãe, a rã iniciou, então, a

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sua aventura: atravessou de um salto a entrada da casa e saiu à luz do sol.

Tendo passado dois dias, a viúva começou a ficar preocupada e se

perguntava se havia feito bem em deixar a rã ir em busca de esposa. Pôs-se a pensar

em todas as coisas que lhe podiam ocorrer, a ela, uma pequena rã, sozinha no mundo,

presa fácil de tantos animais selvagens; podia, inclusive, já estar morta. A viúva

esperou. Passaram-se muitos dias, mas a rã não deu sinal de vida. A anciã se

ocupava de seus trabalhos com tristeza, e foi aí, então, que comprovou quão

profundos já eram seus sentimentos por seu recém-obtido "filho".

A rã, por sua vez, não tinha intenção alguma de se casar com outra rã; por

isso, visitou todas as casas das imediações nas quais sabia haver alguma moça

casadoura. E, depois de julgar cuidadosamente todas as candidatas possíveis, não

teve boa impressão de nenhuma delas. Na manhã do quarto dia, espreitou por uma

janela de papel-arroz o interior de uma bela casa, propriedade de um comerciante. A

rã tinha ouvido falar da formosa filha deste, e, no final dessa manhã, depois de ter

observado a jovem, soube que tinha encontrado aquela a quem tomaria para esposa.

Agora apenas restava fazer os preparativos, e a rã se sentia muito feliz.

Foi em busca do pai da moça e, quando o encontrou, a rã subiu, de um salto,

a um dos assentos tapizados que havia no quarto em que o comerciante estava

trocando a roupa. O habitual aspecto preocupado deste se intensificou ao ver a rã.

"Como teria chegado aqui?" perguntou-se, olhando a rã e calçando as botas

de feltro que lhe chegavam aos joelhos. Para seu espanto, a rã respondeu à pergunta:

Vim saltando e, às vezes, andando.

— Quem é você? — perguntou o comerciante, segurando o punho da espada.

E o que você é?

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— Sou apenas uma rã. Vim vê-lo e falar-lhe.

A voz melodiosa da rã tinha um tom tão doce, que o medo e a agressividade

do comerciante desapareceram. Mesmo assim, ele continuava cauteloso e confuso ao

perguntar:

— Quem é você? Deve ser um rei das rãs. E, sem esperar resposta, vestiu

depressa a sua chuba cinza, deixando solta uma das mangas.

Então, a rã falou assim:

— Vim — disse com uma voz cheia de firmeza — pedir-lhe a mão de sua filha

em casamento.

O comerciante pegou com raiva seu cinturão trançado e o amarrou à cintura,

arregaçando a chuba, para que lhe ficasse até os joelhos, segundo é costume no

Tibete oriental.

— Não sei o que você é — disse —, se demônio ou espírito; mas, seja o que

for, você não pode se casar com minha filha.

Desesperado, o comerciante se perguntava como poderia fazer chegar uma

mensagem a seu irmão, que era lama, e que saberia como vencer aquele demônio-rã.

A rã viu que o comerciante não ia ser fácil de ser convencido. Por outro lado,

tinha que admitir que a maioria dos pais ia ser igualmente difícil de se convencer

quanto à permissão de casar a filha com uma rã.

Se o senhor não permitir que sua filha se case comigo — disse a rã —, eu

tossirei.

O comerciante pensou que isso não iria constituir ameaça alguma, e lhe

disse:

— Pois que seja. Tussa!

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Pareceu ao comerciante que a rã sorria... Logo, esta aspirou ar com um som

agudo, e tossiu, ou fez o que o comerciante pensou que fosse tossir. Mas, do fundo da

garganta da rã, saiu um rugido estrondoso, que derrubou o comerciante no chão e

abalou a casa toda. Cambaleando, o comerciante tirou da espada, com a intenção de

matar a rã. O animal cravou-lhe o olhar com seus olhos negros e voltou a tossir, no

exato momento em que o comerciante ia decepá-lo com um golpe. O rugido encheu o

espaço, o quarto se rachou, os móveis se partiram e a baixela caiu ao chão. A espada

do comerciante se quebrou e a casa ficou devastada.

De súbito, a porta se abriu e entrou a esposa do comerciante, aterrorizada. E

o comerciante respondeu à pergunta de sua esposa antes mesmo que esta a

formulasse:

— Ela tossiu, disse, indicando a rã. E, dirigindo-se a esta: Por favor,

permitiremos que se case com a nossa filha, mas, não tussa mais, eu lhe peço.

A esposa do comerciante começou a chorar ao ouvir as palavras do marido, e,

logo em seguida, ambos viram, horrorizados, que a rã estava aspirando novamente o

ar. Mas, desta vez, o que se ouviu não foi um forte rugido, mas sim um suave suspiro,

como que uma brisa refrescante; e, por um momento, marido e mulher se sentiram

consolados e acariciados.

— Olhe! disse a esposa do comerciante, enquanto tocava a parede que se

havia rachado com a tremenda tosse da rã. Olhe! repetiu, passando a mão pela lisa

superfície.

A fenda se havia fechado como se nunca houvesse existido! O comerciante e

sua esposa notaram, então, que, no momento em que a rã soltara o seu suspiro, tudo

aquilo que havia sido quebrado ou estragado tinha voltado à sua condição anterior.

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A esposa do comerciante deixou-se cair pesadamente num dos assentos

baixos tapizados do pequeno quarto. Vestia uma chuba de brocado, com um grande

prendedor de prata com adornos de coral para o tarro pendurado na cintura.

Nervosamente, mexia e remexia o relicário de turquesa em forma de estrela, que

levava à volta do pescoço,4 e discutia com o marido, tratando de convencê-lo, com

súplicas. "Teria ele ficado louco? Como poderia a filha casar-se com uma rã?"

A rã saltou sobre um banco que havia em frente do casal, e falou ao

comerciante e à sua mulher, com uma voz melodiosa e musical, uma voz clara e

precisa, como o ruído de um pedaço de gelo ao se quebrar. Era, com efeito, uma voz

estranha, e eles se sentiram impelidos a escutar.

— Os seres humanos, os animais, as aves, e inclusive as rãs — disse —

participam todos de uma só força espiritual, de modo que vocês não devem se

preocupar.

"E possível — pensou a esposa do comerciante — que os seres divinos e os

santos possam ver que todos nós somos um só". Mas, a seus olhos, ali e naquele

momento, isso distava muito de ser daquela forma, e não podia aceitar a idéia de que,

no fundo, todos os seres fossem uma mesma coisa.5

— Vemos que você é uma rã muito especial — disse o comerciante, mas

você nos pede a nossa única filha. Se você a levar, é possível que nunca mais a

vejamos. Estava de pé, diante da rã, e novamente considerava o curioso encanto que

a envolvia, inclusive quando estava quieta, como naquele momento em que estava

escutando.

— Os senhores não perderão sua filha — disse a rã. —E ela terá tudo o que

desejar.

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A mulher do comerciante olhou a rã com olhos suplicantes, e esta pôde ver as

lágrimas que brilhavam nos seus olhos, a ponto de transbordarem e deslizarem pelas

faces.

— Qualquer outra coisa! — exclamou a mulher. — Nós lhe daremos nossa

casa, nossas posses, tudo o que desejar, mas, por favor, nossa preciosa filha única,

não! Mas a rã disse:

— Se não me derem sua filha, chorarei. Parecia tão triste, que a mãe da

moça sentiu que uma onda de compaixão lhe invadia o peito. Quando a rã terminou de

falar, de seus olhos saltaram duas lágrimas, e os pais, horrorizados, viram como as

lágrimas se convertiam numa torrente impetuosa, a qual, num instante, invadiu toda a

casa e as terras circundantes, como se cada lágrima fosse um oceano. O casal saltou

para uma caixa que passava flutuando e, quando esta chegou à escada que levava ao

terraço, saltaram e se agarraram a este, onde já os esperava o resto da casa. A rã os

seguiu, com as lágrimas fluindo ainda dos olhos.

— Por favor, pare de chorar, gritou o comerciante, enquanto seus criados o

olhavam assombrados.

A esposa do comerciante gemia ao ver toda a cevada, a farinha — e suas

melhores roupas — saindo flutuando da casa.

— Por favor, pare de chorar — repetiu o homem.

— Não chore mais e poderá casar com a nossa filha.

A rã coaxou e parou de chorar. Assim que a água se evaporou de sua pele,

toda a água da casa e dos campos circundantes secou. Roupas, farinha e grãos

estavam secos, como se nunca houvessem sido atingidos pelas águas torrenciais. O

comerciante e sua esposa observaram como seus criados recolhiam os móveis e

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utensílios, e os restituíam a casa.

A rã notou que numa árvore se haviam refugiado um raposo, uma galinha e

um gato: o medo da água havia criado a harmonia entre estes animais antagônicos

por natureza.

Depois, olhou com expectativa para o comerciante, mas a cara deste

somente refletia inquietação. Sua mulher tratava de fazê-lo ver que não podiam deixar

que a filha se casasse com uma rã. "Nos envergonharíamos — dizia — Como

poderíamos dizer que ela estava casada com uma rã?"

— Não é necessário que se preocupem — disse a rã. — Não vêem que todos

os seres, humanos ou animais, são um só?

Mas não, eles não poderiam pensar dessa maneira! E a rã descobria, em

seus olhos, o que eles não se atreviam a declarar; sabia que pensavam que a rã era

um dos seres mais inferiores, e que nem sequer uma rã tão especial quanto ela teria o

mínimo direito à mão de sua filha.

O comerciante ordenou a um dos seus criados que trouxesse um grande baú

com cobertura metálica.

— Olhe! — disse à rã. E tirou uma grande chave e abriu o baú, pondo à

mostra uma quantidade enorme de peças de prata. Leve tudo isto para você.

A rã olhou o tesouro com desdém.

— Não é o seu tesouro o que eu quero — disse — mas a sua filha. Depois,

coaxou e riu.

Os pais da moça se assustaram, mas disseram:

— Você não pode conseguir a nossa filha e, ainda assim, ri?

A rã riu a gargalhadas e, ao fazê-lo, elevaram-se chamas por toda a casa, as

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quais começaram a consumir o prédio. Nenhum dos esforços que os criados faziam

para apagar o fogo tinha o mínimo efeito sobre este.

— Por favor, você está acabando com a nossa casa! — gritaram em uníssono

o comerciante, sua mulher e os criados. A rã riu mais forte ainda, e as chamas

aumentaram em intensidade.

— Você terá a nossa filha — gritaram o comerciante e a mulher. — Você é

realmente uma rã muito especial. Nossa filha será sua mulher.

A rã coaxou e ao deixar de rir, as chamas se extinguiram. Tudo aquilo que

havia estado ardendo com tanta fúria ficou ileso.

Enquanto o comerciante e sua mulher foram comunicar à filha o seu destino,

a rã cantava com o vento que acariciava as bandeiras de preces que ondeavam num

ângulo do telhado. Quando a rã voltou a ver a filha do comerciante, considerou que

era, de fato, uma beldade, com a sua tez branca e as feições delicadas emolduradas

pelo longo cabelo solto, da cor do azeviche. Seus olhos mostravam uma inteligência

viva e sua voz era doce e delicada. Ela sorriu educadamente para a rã, mas sem

nenhuma afeição, e esta compreendeu que o coração da moça estava transbordante

de infelicidade.

— Devemos nos preparar para partir para a minha casa — disse a rã. — Não

fica longe. Creio que você vai gostar.

A moça voltou-se rapidamente para esconder as lágrimas, e a rã continuou:

— Lembre-se do que eu vou lhe dizer e trate de compreender que eu posso

fazê-la feliz, muito feliz. Lembre-se de que somos um só.

Mas a moça não conseguiu dizer nada. Olhou a rã uns instantes e se

perguntou, desesperada, como poderia levar uma vida de casada com uma rã. Por

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bonita que fosse, não seria nunca senão uma rã, uma rã!

A rã foi refrescar-se no arroio, nadando feliz entre as plantas aquáticas e

saltando de pedra em pedra. A jovem esposa se preparava para a viagem. A moça

chorava enquanto a mãe a ajudava a pôr as roupas e os objetos em cofres de viagem

de madeira revestidos de latão.

— Escute-me, Shoden-la — disse o pai, puxando-a para um lado e

secando-lhe as lágrimas com o lenço. — Você tem que ser muito corajosa. E lhe

apertou os ombros para incutir-lhe ânimo.

— Sim, Pa-la. Tentarei. Mas... uma rã! Que será de mim? Seus olhos se

encheram de lágrimas de desespero.

— Escute-me, há uma possibilidade. A voz do pai era muito baixa e rápida,

como se temesse que a rã, com seus extraordinários poderes, pudesse ouvi-lo.

— No caminho até a casa dele, você terá uma oportunidade. Choden a

olhava perplexa. Você deve matá-lo. Então ficará livre. A menina balançou a cabeça

energicamente. Deve fazê-lo, minha filha.

Trata-se de uma espécie de demônio, estou convencido. Você deve se livrar

dele.

— Mas como poderia eu matá-lo? Ele logo se daria conta de meus planos —

disse a moça ao pai.

Já viu os poderes que tem.

De um armário decorado com intricados adornos de flores pintadas, o pai

tirou três bolsas de couro, dizendo:

— Você não vai precisar de nenhuma arma para matar a rã...

— Mas, como, Pa-la? perguntou a moça em aflição. O pai deu-lhe as três

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bolsas de pele.

— Guarde-as cuidadosamente na chuba — disse. — Uma contém pedaços

de turquesa, outra, pedaços de prata, e a terceira, pedaços de ouro. Durante a viagem,

golpeie a rã na cabeça com um deles. Não serve usar uma pedra comum, não teria

efeito sobre um demônio. Mas uma destas matérias matará a rã e dará liberdade a

você.

— Vou tentar, Pa-la, disse a moça tristemente.

Algumas horas mais tarde, a rã e sua noiva começaram a viagem. A

equipagem de Choden tinha sido amarrada com correias sobre duas bestas de carga,

e a rã conduzia o cavalo da moça.

Esta estava assombrada com a velocidade da rã e com a distância que

venciam. Não parecia cansar-se nunca, embora — considerava a moça — o fato de

andar a saltos devesse ser uma forma muito fatigante de deslocar-se. Durante algum

tempo viajaram em silêncio. Choden ia se tornando cada vez mais consciente do

silêncio, que se acentuava pelo ruído dos cascos do cavalo e das mulas sobre o solo

pedregoso, e por sua respiração, áspera pelo esforço.

Estes eram os únicos ruídos que se percebiam na vasta planície pedregosa

em que haviam penetrado. Muito ao longe, se levantavam picos nevados e,

dominando tudo, abarcando tudo, estava o céu azul-turquesa. Era, pensava a moça, o

silêncio do céu. Sabia que os peregrinos que viajavam aos lugares santos haviam sido

conscientes desse silêncio — um silêncio que podia ser palpado e que era, segundo

alguns, o dos deuses.

Depois de ter viajado muitas horas, Choden compreendeu que tinha de

sobrepujar o medo e matar logo a rã, se queria ver-se livre dela. Já estavam muito

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longe da casa de seus pais. E quando o sol se afundava detrás das montanhas e as

sombras se estendiam, pegou, de sua chuba, o maior pedaço de turquesa que estava

na bolsa de pele. Estava muito assustada, mas, com toda a sua força, o atirou na rã,

que se encontrava poucos passos adiante. O pedaço de turquesa foi dar-lhe, na rã,

fortemente na cabeça, mas, para espanto da moça, rebotou, sem nada causar. A rã

pareceu não sentir nada, mas chegou a ver a turquesa e deu um pulo para recolhê-la.

Deu-a, então, à moça, e esta pensou: "Este demônio vai me castigar". Mas, somente

viu uma expressão ri-sonha nos seus olhos.

— Isto deve ter caído de você — disse a rã. — Guarde-o bem.

Choden pegou a turquesa que a rã lhe estendeu, agradeceu-lhe em voz baixa,

e continuaram o caminho. A moça se sentia confusa e assustada.

Outra jornada de viagem passou, antes que Choden pudesse adquirir

suficiente coragem para tentar de novo matar a rã. Desta vez, escolheu um pedaço de

prata. Tinha ouvido dizer que muitos demônios e espíritos haviam sido afugentados

com êxito graças a armas rituais feitas de prata. Mas, desta vez, Choden decidiu não

jogar. Conduzindo o cavalo, aproximou-o com cuidado da rã e, então, com toda a

força, deu-lhe com o pedaço de prata na cabeça. Soou como se houvesse golpeado

algo de ferro, e, com o impacto, a prata saltou-lhe da mão e uma dor intensa

percorreu-lhe o braço. Mas a rã, para espanto da moça, não pareceu sentir o mais

leve golpe. Não houve nem um segundo de vacilação em seus rápidos e regulares

saltos.

A jovem esposa estava agora realmente muito assustada, e, para seu maior

espanto, a rã se deteve de repente, deu uma olhada para trás e viu o pedaço de prata.

Uma vez mais, recolheu com cuidado o tesouro e o devolveu à sua esposa.

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— Você pode precisar disso algum dia.

A rã falava sossegadamente, mas a moça não podia olhá-la nos olhos, e se

enrubesceu de perturbação e sentimento de culpa. Chegou à conclusão de que não

havia realmente nada a fazer. Devia é dar-se por muito feliz, uma vez que a rã só lhe

havia respondido com benevolência. "De fato, pensou — é uma pena muito grande

que seja uma rã, pois realmente parece muito boa. Mas, de qualquer maneira, não

passa de uma rã, ainda que, aparentemente, tudo leve a crer que seja uma rã

mágica".

Enquanto viajavam, a moça se perguntava como iria ser a sua vida com esse

seu marido. Onde viveriam? Naturalmente, essa casa da qual a rã falava não podia

estar no mundo dos homens, pois neste não há lugar para uma rã, ainda que seja uma

rã mágica. Tratou de trazer à memória o tipo de casa que tinham as rãs, e somente

pôde pensar em águas sombrias e insalubres. Mas, de algum modo, tinha a

impressão de que, por não ser uma rã comum, era provável que vivesse em algum

dos céus, ou — pensou também — em algum dos infernos. Porém, a moça não

pensava em ir a nenhum dos dois, pois achava o mundo, ainda, um lugar belo e

interessante, e estava certa de ter, ela mesma, muito pouco em comum com os

deuses.

Até que, desesperada, Choden decidiu que devia experimentar o ouro. Não

era este o metal dos deuses, símbolo de tudo o que é sagrado? Assim, pegou da

bolsa o maior pedaço de ouro. Esperou até que o cavalo estivesse bastante perto da

rã, e, então, fechando os olhos, descarregou com as duas mãos o pedaço de ouro

sobre a cabeça dela. "Sem dúvida, desta vez — pensou ela — devo tê-la matado".

Mas o ouro soou como se houvesse golpeado uma nuvem. A rã, imperturbável, seguia

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saltando. Choden se pôs a chorar em silêncio. Só então, se deu conta de que seu

cavalo havia parado. Enxugou as lágrimas e olhou a rã.

— Tome, encontrei o que você perdeu — disse esta, estendendo-lhe o

pedaço de ouro. — Você tem que parar de ir perdendo o seu tesouro.

A voz da rã era delicada e a moça sentiu quão digna de amor ela lhe soava.

Sorriu, como resposta, e começou a sentir-se à vontade em sua companhia. Na

verdade, pensando-o bem, suas lágrimas haviam sido lágrimas de desabafo, mais do

que outra coisa, e estava muito contente de não ter causado nenhum dano à rã.

Porque, ferir uma rã com uma natureza tão bondosa não podia ser nada bom. Talvez,

disse a si mesma, a sua vida iria ser muito melhor do que ela havia imaginado.

— Mãe, mãe! Abra a porta, por favor.

A viúva não podia acreditar que a rã houvesse voltado, e chorava de alegria

enquanto abria a porta para dar boas-vindas ao "filho". Ficou atônita ao ver que,

efetivamente, a rã havia tido êxito em sua busca de uma esposa — coisa que não

podia caber na sua mente de anciã. A esposa era formosa e seus olhos — pensou —

estavam inflamados de amor: devia se tratar, sem dúvida, de uma fada.

A casa da rã não era, em absoluto, o que sua esposa havia esperado. Mas,

embora fosse muito mais humilde que a de seus pais, era, contudo, um lugar quente e

acolhedor; e Choden comprovou, para surpresa sua, que era muito feliz. Aquela noite,

os três festejaram e falaram. A rã contou à viúva as suas aventuras e esta lhes

informou, que fazia dias, estavam chegando ao povoado pessoas de todas as partes

da província, inclusive desde os vales mais remotos, para tomarem parte nas corridas

de cavalos. Quase todo o mundo se achava acampado junto ao rio, em tendas de

campanha; e, no dia seguinte, iriam começar as corridas.

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Cedo, na manhã seguinte, a rã, sua esposa e sua "mãe" se dispuseram a

assistir ao primeiro dia das corridas. Entretanto, a rã disse que tinha algumas coisas

para fazer, e lhes pediu que fossem na frente, que logo se juntaria a elas. Choden e a

viúva se surpreenderam, mas foram aos festejos, deixando a rã sozinha em casa.

Por um pequeno furo que fez na janela de papel-arroz, a rã as observou até

que se perdessem de vista. Durante alguns minutos, a rã ficou pensativa no centro do

quarto. Depois, inchou seu saco bucal e, num instante, se transformou num elegante

jovem. O único sinal de sua forma anterior era uma pele de rã que estava, enrugada, a

seus pés. Pegou um pouco de sal de uma caixinha e jogou com cuidado sobre a pele;

depois, a pendurou num gancho, num lugar escuro.

Na cavalariça, havia dois cavalos que pertenciam à viúva. Pegou o melhor

deles, com a esperança de que a anciã, com sua vista fraca, não o reconhecesse nas

corridas. Na festa, a pista de corridas estava cercada de tendas enfeitadas, e a maior

parte do dia era passada em cantos, bailes, comi lanças e jogando-se o mah-jong.

Mas, tudo se interrompia quando a corrida estava para começar. No transcurso de

uma destas, os competidores tinham que superar provas de habilidade, como a de

disparar uma flecha num alvo móvel, recolher uma echarpe do chão com os dentes,

ou abrir-se passagem com uma espada diante de um boneco que fazia às vezes de

adversário.

Os dias do festival transcorriam muito agradavelmente e, aos poucos, um

homem foi-se destacando claramente como campeão. Mas esse homem era um

mistério para todos. Ninguém sabia quem era ou de onde procedia, e nunca se o

podia encontrar depois de uma corrida. Era tal a sua destreza e tão denso o mistério

em torno dele, que se murmurava que era um dos deuses. E a esposa da rã tinha a

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impressão, cada vez mais forte, de que conhecia o elegante jovem. Em diversos

momentos, durante o festival, a rã havia estado com elas, e algumas vezes a moça lhe

tinha comunicado essa impressão; mas a rã havia se limitado a rir.

No quinto dia do festival, Choden concebeu um plano secreto. O jovem

elegante estava competindo outra vez na corrida, e, antes que esta terminasse, a

moça foi correndo, tão depressa quanto pôde, até a casa da viúva. Como de costume,

a rã havia dito que com o passar do tempo, o amor do jovem pela esposa aumentou

cada vez mais, e ele acabou ficando feliz por permanecer no mundo dos homens.

Sabia que muitos contariam a sua história e aprenderiam, assim, que todas as coisas

se distinguem apenas por sua "pele", por sua "forma", mas que todas as coisas são,

na realidade, de uma única natureza.

Notas

1. A fumaça aromática do zimbro constitui o incenso que se eleva de

incontáveis lugares no Tibete. Esta é outra das práticas que remontam a um passado

ancestral. O zimbro (tibetano, sug-pa) era uma árvore sagrada e queimar os seus

ramos era um sacrifício {bsang).

2. A concordância nos obrigaria aqui a falar de "filha", mas, ainda à custa de

forçar um pouco a expressão, somos obrigados a falar de "filho" pelos motivos que se

tornarão evidentes na continuação do relato.

3. O combustível habitual nas lareiras tibetanas eram os excrementos de

iaque.

4. Era costume muito corrente entre os tibetanos levarem um ou vários

relicários. Seu conteúdo podia ser: diminutas imagens sagradas, minúsculos

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moinhozinhos de oração, "conjuros" (fórmulas escritas em papel) etc.

5. Idéia central do budismo tântrico. Todos os seres participam da mesma

natureza essencial de Buda (Tathâgata), e a condição de Buda está contida em germe

(garbha) em cada um deles, germe que faz possível a iluminação. Assim, todos os

seres são uma mesma coisa enquanto Tathâgata-garbha, ou seja, enquanto

portadores todos eles de um mesmo germe de Budeidade.

6. A "rã" de nosso relato se trata, provavelmente, de uma nâga (tibetano, klu).

As nagas são divindades aquáticas que podem adotar a forma humana. Vivem num

reino subterrâneo com palácios resplandecente de pedras preciosas, e são

consideradas guardiãs de tesouros. Geralmente, são representa das como serpentes.