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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO ADRIANI MILLI RODRIGUES A CRÍTICA TEOLÓGICA DA RELIGIÃO: Um estudo comparativo da crítica da religião nas teologias de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer SÃO BERNARDO DO CAMPO, SP 2009

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

ADRIANI MILLI RODRIGUES

A CRÍTICA TEOLÓGICA DA RELIGIÃO:

Um estudo comparativo da crítica da religião

nas teologias de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer

SÃO BERNARDO DO CAMPO, SP

2009

ADRIANI MILLI RODRIGUES

A CRÍTICA TEOLÓGICA DA RELIGIÃO:

Um estudo comparativo da crítica da religião

nas teologias de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, como parte das exigências para obtenção do título de Mestre. Orientação: Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro Agência de fomento: CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

SÃO BERNARDO DO CAMPO, SP

2009

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________ Presidente: Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro (UMESP)

_________________________________________________________ Examinador: Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet (UMESP)

_________________________________________________________ Examinador: Prof. Dr. Ronaldo Cavalcante (MACKENZIE)

A Ellen, com quem tenho compartilhado a alegria de estudar

AGRADECIMENTOS

A Deus, por me dotar de saúde e perseverança para concluir esse trabalho;

Aos meus pais (Tony e Jô) que me ensinaram a valorizar os estudos;

À minha querida esposa (Ellen) pelo apoio incansável;

À família de minha esposa, que agora é minha família também, pelo carinho e

interesse (Pr. Paulo Nogueira, Nádia e vó Eunice);

Ao Dr. Amin Rodor por abrir as portas para meus sonhos acadêmicos;

Ao Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP) pelos auxílios

incontáveis;

Ao meu orientador (Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro) pela amizade, interesse

e profissionalismo;

Aos professores que fizeram parte da banca examinadora (Dr. Etienne Higuet

e Dr. Ronaldo Cavalcante) pelas relevantes considerações;

À CAPES pelo apoio financeiro.

RODRIGUES, Adriani Milli. A Crítica Teológica da Religião: um estudo

comparativo da crítica da religião nas teologias de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer.

Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. São

Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2009.

RESUMO

A crítica da religião é um tema recorrente no pensamento moderno e aparece até

mesmo na teologia desse período. Nesse contexto, o presente estudo procura

comparar a crítica da religião no pensamento de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer.

Para tanto, a dissertação está organizada em quatro partes principais. Inicialmente, é

feita uma contextualização da concepção ocidental de religião e sua crítica moderna,

inclusive no âmbito teológico. A seguir são descritas a concepção e a crítica da

religião no pensamento de Barth e Bonhoeffer. Finalmente, é realizada uma

comparação entre ambos, que procura delinear aproximações e distanciamentos da

crítica da religião desses dois teólogos. De maneira ampla, as duas críticas apontam

distorções do Cristianismo e indicam propostas de restauração. Como chave geral de

comparação está a percepção de que Barth critica a religião na perspectiva da

revelação enquanto Bonhoeffer faz sua crítica na perspectiva da vida.

Palavras-chave: Karl Barth, Dietrich Bonhoeffer, crítica da religião, cristianismo,

teologia contemporânea.

RODRIGUES, Adriani Milli. The Theological Critique of Religion: a comparative

study on the critique of religion in the theologies of Karl Barth and Dietrich

Bonhoeffer. Master’s Dissertation, Post-Graduate Program in Religious Studies. São

Bernardo do Campo: Methodist University of Sao Paulo, 2009.

ABSTRACT

The critique of religion is a recurrent theme on modern thought and appears even in

the theology of this period. In this context, the present study focus on the comparison

of the critique on religion in Karl Barth and Dietrich Bonheffer’s thought. Therefore,

the dissertation is organized in four main parts. Initially, it’s done a contextualization

of the western conception on religion and it’s modern critique, including the

theological ambit. Next, it’s describe the conception and the critiques of religion on

Barth and Bonhoeffer`s thought. Finally, a comparison it’s made between both

authors, on which delineate approximations and dissimilitudes of the critiques on

religion of this two theologians. In a broad way, these two critiques indicate

distortions of Christianity and proposals of restorations. As a key to comparison is

the perception that Barth criticize religion on the perspectives of revelation, whereas

Bonhoeffer makes his criticism on the perspective of life.

Keywords: Karl Barth, Dietrich Bonhoeffer, Critiques of Religion, Christianity,

Contemporary Theology.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................. 01

CAPÍTULO 1

RELIGIÃO: CONCEITO E CRÍTICA ............................................................. 05

1.1. O conceito ocidental de religião e sua formulação moderna ............................ 05

1.2. Um panorama da crítica moderna da religião .................................................. 07

1.3. A crítica moderna da religião na teologia ....................................................... 12

1.3.1. Percurso bibliográfico e metodológico de Karl Barth .................................. 13

1.3.2. A crítica barthiana da religião na compreensão de seus comentaristas ......... 18

1.3.3. Percurso bibliográfico e metodológico de Dietrich Bonhoeffer .................... 23

1.3.4. A crítica bonhoefferiana da religião na compreensão de seus comentaristas 28

1.4. Resumo do capítulo ........................................................................................ 32

CAPÍTULO 2

A CRÍTICA DA RELIGIÃO EM KARL BARTH ............................................ 35

2.1. A crítica da religião em Carta aos Romanos .................................................. 35

2.1.1. A Religião e a Infinita diferença qualitativa entre Deus e o ser humano ....... 37

2.1.2. A Religião e a Circuncisão: a justificação de Abraão ................................... 43

2.1.3. A Religião e a Lei ....................................................................................... 49

2.1.3.1. O Limite da Religião ................................................................................. 49

2.1.3.2. O Significado da Religião ......................................................................... 52

2.1.3.3. A Realidade da Religião ............................................................................ 54

2.1.4. A Religião e a Igreja .................................................................................... 55

2.1.4.1. A tribulação da Igreja ................................................................................ 56

2.1.4.2. A culpa da Igreja ....................................................................................... 58

2.1.4.3. A esperança da Igreja ................................................................................ 59

2.2. A crítica da religião em Church Dogmatics ..................................................... 61

2.2.1. O problema da Religião na Teologia ............................................................ 62

2.2.2. Religião como ausência de Fé ...................................................................... 69

2.2.3. A verdadeira Religião .................................................................................. 77

2.3. Resumo do capítulo......................................................................................... 85

CAPÍTULO 3

A CRÍTICA DA RELIGIÃO EM DIETRICH BONHOEFFER ....................... 87

3.1. Fundamentação Teológica: até 1931 ............................................................... 87

3.1.1. Escritos do período de estudante (1923-1926) .............................................. 88

3.1.2. Dissertação Doutoral: Sanctorum Communio (1927) ................................... 89

3.1.3. Escritos pastorais: Barcelona (1928)............................................................. 92

3.1.4. Dissertação de Pós-doutorado: Act and Being (1930) ................................... 95

3.1.5. Estudos em Nova York: Union Theological Seminary (1930-1931) .............. 98

3.2. Aplicação Teológica: de 1932 a 1939 ............................................................ 100

3.2.1. Sermões em Berlim (1931-1933) ................................................................ 101

3.2.2. Aula: A Essência da Igreja (1932).............................................................. 102

3.2.3. Aula: Venha a nós o teu Reino (1932) ........................................................ 103

3.2.4. Aula: Criação e Queda (1932-1933) .......................................................... 104

3.2.5. Aula: Cristologia (1933) ............................................................................ 107

3.2.6. Aula: A igreja visível no Novo Testamento (1935-1936) ............................. 109

3.2.7. Discipulado (1937) .................................................................................... 111

3.2.8. Segunda visita aos Estados Unidos (1939).................................................. 114

3.3. Fragmentação Teológica: de 1940 a 1945...................................................... 115

3.3.1. Ética (1939-1943) ...................................................................................... 115

3.3.2. Cartas da prisão (1943-1945) ..................................................................... 122

3.4. Resumo do capítulo....................................................................................... 137

CAPÍTULO 4

COMPARANDO A CRÍTICA DA RELIGIÃO:

KARL BARTH E DIETRICH BONHOEFFER .............................................. 140

4.1. Uma tentativa de síntese da crítica da religião em Karl Barth ........................ 140

4.1.1. A concepção barthiana de religião .............................................................. 141

4.1.2. Características e implicações da crítica barthiana da religião ...................... 143

4.2. Uma tentativa de síntese da crítica da religião em Dietrich Bonhoeffer ......... 146

4.2.1. A concepção bonhoefferiana de religião ..................................................... 147

4.2.2. Características e implicações da crítica bonhoefferiana da religião ............. 149

4.3. Aproximações e Distanciamentos da crítica da religião: Barth e Bonhoeffer . 153

4.3.1. A crítica bonhoefferiana em relação à crítica barthiana: antes de 1944 ....... 153

4.3.2. A crítica bonhoefferiana em relação à crítica barthiana: 1944 ..................... 156

4.3.2.1. Comparação das idéias gerais .................................................................. 156

4.3.2.2. Comparação das referências mútuas ........................................................ 159

4.4. Resumo do capítulo....................................................................................... 168

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 170

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................... 175

INTRODUÇÃO

A crítica da religião1 é um tema recorrente em grande parte do pensamento

moderno. Normalmente, essa crítica tem sido associada ao trabalho filosófico,

sobretudo em sua herança iluminista. Todavia, a crítica da religião também pode ser

encontrada na teologia moderna, especialmente no pensamento de Karl Barth (1886-

1968) e Dietrich Bonhoeffer (1906-1945). Num primeiro olhar, esse fato parece um

tanto contraditório, pois usualmente a tarefa teológica se alinha à defesa da religião,

não à sua crítica. A partir dessa inquietação inicial, faz-se necessário entender o

conteúdo e o objetivo da crítica da religião realizada por esses teólogos.

Nesse contexto, o presente estudo objetiva comparar a crítica teológica da

religião no pensamento de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer. Para alcançar esse

propósito, é necessário cumprir os seguintes objetivos específicos: (1) situar a

concepção da religião e sua crítica moderna; (2) descrever o tema da religião e sua

crítica na teologia de Barth; (3) descrever o tema da religião e sua crítica na teologia

de Bonhoeffer; e (4) verificar aproximações e distanciamentos da crítica da religião

em Barth e Bonhoeffer. Para atender a cada um desses objetivos, este trabalho está

dividido em quatro partes principais.

Com o intuito de situar a concepção da religião e sua crítica moderna, o

primeiro capítulo discute a noção de religião, enquanto categoria ocidental, que recua

às primeiras ocorrências do termo religio até a sua concepção moderna. A seguir há

uma apresentação panorâmica da crítica da religião na modernidade e, finalmente,

uma visão geral da crítica da religião no contexto da teologia moderna, mais

especificamente em Barth e Bonhoeffer.

Por sua vez, o segundo capítulo pretende descrever o tema da religião e sua

crítica na teologia barthiana. Para tanto, há uma observação atenta das principais

referências à religião em Carta aos Romanos (a obra mais famosa de Barth em sua

fase dialético-existencialista), e uma visão detalhada do texto específico sobre a

1 A escolha pela expressão “crítica da religião”, em lugar de “crítica à religião”, se justifica por dois fatores: (1) esta é a expressão mais comumente usada pela literatura consultada; (2) o uso da expressão “crítica à religião” traria, de certo modo, um sentido de simplesmente “falar contra a religião”, ao passo que na expressão “crítica da religião” há uma noção mais séria e abrangente, que se aproxima da idéia de análise e julgamento da religião.

2

religião em Church Dogmatics (a obra mais importante e volumosa de Barth, que se

situa em sua fase antitético-revelacional), a saber, o § 17, que é traduzido na versão

convencional como “The Revelation of God as the Abolition of Religion”.

A seguir, o terceiro capítulo procura descrever o tema da religião e sua crítica

na teologia bonhoefferiana. Diferente de Barth, que geralmente discute sobre a

religião em textos mais específicos de sua obra, Bonhoeffer menciona a religião de

forma fragmentária e não sistemática em seus diversos escritos, especialmente nos

textos anteriores às cartas da prisão. Por isso, esse capítulo apresenta um

levantamento das principais alusões de Bonhoeffer à religião em seus escritos de

maneira geral.

Finalmente, a partir da tentativa de síntese da crítica da religião em Barth e

Bonhoeffer, o quarto e último capítulo representa uma tentativa de articular os

principais conceitos discutidos nos capítulos anteriores (sobretudo no segundo e

terceiro) a fim de que seja possível delinear as principais aproximações e os

eventuais distanciamentos entre a crítica da religião barthiana e bonhoefferiana.

Considerando que, em termos metodológicos, esta pesquisa configura uma

empreitada teórico-bibliográfica, faz-se necessário indicar as principais obras que

serão utilizadas nesse trabalho. Para a discussão que se encontra no primeiro capítulo

acerca do conceito moderno de religião, cuja compreensão foi construída a partir do

Iluminismo, esse estudo conta principalmente com as idéias desenvolvidas por

Wilfred C. Smith.

Quanto aos textos barthianos explorados no segundo capítulo, são usados

basicamente a edição em português de Carta aos Romanos (que equivale à 5ª edição

alemã) e o texto em inglês do § 17 de Church Dogmatics. Esse texto é examinado em

duas versões: a tradução convencional coordenada por G. Bromiley e T. Torrance, e

a tradução recente desse texto específico feita por Garret Green, intitulada On

Religion: the revelation of God as the Sublimation of Religion. O uso dessa nova

tradução justifica-se pelo fato de que a tradução anterior utiliza a idéia de “abolição”

para o termo alemão Aufhebung, que no estilo hegeliano possui um sentido ambíguo,

podendo significar tanto abolição quanto elevação. Barth parece utilizar esses dois

sentidos em uma relação dialética,2 que acaba sendo obliterada por essa tradução. Já

2 Veja a evidente relação dialética entre os dois últimos tópicos desse texto, mesmo na tradução convencional: “Religion as Unbelief” (a religião como descrença) e “True Religion” (a verdadeira religião).

3

a nova tradução prefere traduzir Aufhebung como sublimação, a fim de captar a

ambigüidade do termo.

Por sua vez, os textos bonhoefferianos utilizados no capítulo três

compreendem uma grande quantidade de publicações, tendo em vista o fato de que

esse capítulo faz um levantamento geral do tema da religião nos seus escritos. Essas

diversas publicações são usadas nas traduções para o português, espanhol e inglês. A

publicação mais destacada, no que se refere ao tema da religião, são as cartas da

prisão, que seguem a tradução para o português de Resistência e Submissão (versão

de 2003). Portanto, é possível notar que a principal limitação metodológica desse

trabalho é a utilização das fontes primárias (textos de Barth e Bonhoeffer) a partir de

traduções, e não a partir dos textos na língua original alemã.

No que diz respeito ao uso de intérpretes da teologia barthiana e

bonhoefferiana, a grande maioria se situa no primeiro capítulo, onde há uma

exposição abrangente do pensamento de Barth e Bonhoeffer, e uma apresentação dos

comentários gerais sobre a crítica da religião desses dois teólogos. Eventualmente,

alguns dos intérpretes são inseridos nos capítulos subseqüentes quando há

comentários específicos das idéias presentes nas fontes primárias.

No estudo do pensamento barthiano são explorados os intérpretes tradicionais

- Hans Urs von Balthasar, Geoffrey W. Bromiley e Thomas F. Torrance –, que

enfatizam as mudanças metodológicas da teologia de Barth, bem como as tentativas

recentes de releitura do pensamento barthiano, tais como Gary Dorrien e Garret

Green - que representam um relevante contraponto às interpretações tradicionais,

principalmente na ênfase de que Barth, a despeito de suas mudanças metodológicas,

não perdeu o caráter dialético de sua argumentação ou retórica.

Quanto ao estudo do pensamento de Bonhoeffer, essa pesquisa entende a

idéia de arreligiosidade nas cartas da prisão como continuidade e ampliação de sua

teologia anterior. Segundo esse critério os intérpretes utilizados são: Eberhard Bethge

(grande amigo de Bonhoeffer que editou inúmeras de suas obras e biografia), John D.

Godsey, Cliford J. Green, André Dumas, Ralf K. Wüstenberg e Gustavo Gutiérrez.

No que diz respeito à análise da crítica de Bonhoeffer a Barth, nos termos do

“positivismo da revelação”, também são utilizadas as relevantes contribuições de

Regin Prenter e Andreas Pangritz.

Considerando a importância do tema da religião nos dias atuais, uma das

intuições desse trabalho é de que a crítica desses teólogos, de maneira geral,

4

representa a percepção de uma religião que se reduz a uma compreensão meramente

antropológica ou histórico-social que exclui sua referência ao transcendente, e que se

limita à consciência moral e vida piedosa que se projeta numa perspectiva individual

e abstrata. Se esta intuição estiver correta, então, a crítica da Barth e Bonhoeffer pode

oferecer indicações relevantes para eventuais distorções religiosas na atualidade,

especialmente no contexto do Cristianismo, que parece ter sido o alvo direto dessa

crítica.

CAPÍTULO I

RELIGIÃO: CONCEITO E CRÍTICA

O presente capítulo está organizado em três partes principais. O primeiro

deles aborda o conceito de religião, enquanto categoria ocidental, que recua às

primeiras ocorrências do termo religio até a sua concepção moderna. A seguir, é

apresentado um panorama geral da crítica da religião na modernidade, e os seus

contornos no contexto da teologia moderna, mais especificamente em Karl Barth e

Dietrich Bonhoeffer. Esta tarefa é concebida apenas como contextualização do tema

da religião no quadro geral do pensamento destes teólogos. Para isso, há um esboço

do percurso bibliográfico e metodológico, bem como uma visão geral da crítica da

religião de cada um deles, a partir da perspectiva de seus intérpretes.

1.1. O conceito ocidental de religião e sua formulação moderna

Nascida no berço ocidental, a palavra “religião”, oriunda do termo latino

religio, foi usada em uma variada gama de sentidos. Segundo o amplo estudo de W.

Smith, suas primeiras referências remontam ao século I a.C., em Roma. Neste

período podem ser destacadas as obras de Lucretius e Cícero.3 Todavia, não é

possível obter uma noção definida de religio a partir da referência destes escritores,

pois seu uso é incidental e indireto.4 A primeira vista, Lucretius parece aludir ao

fenômeno em suas práticas e observâncias em De Rerum Natura. Por sua vez, em De

Natura Deorum, Cícero aparentemente usa religio como algo genérico e interior na

vida humana, que se expressa na atitude ou prática de reverência e diligência dirigida

aos deuses.5

3 Marcus Tullius Cícero (106-43 a.C.) foi um estadista e escritor romano, e Titus Lucretius Carus (96-55 a.C.) foi um poeta e filósofo romano que promoveu as idéias epicuristas. 4 Cf. Wilfred C. Smith, The Meaning and End of Religion. Minneapolis: Fortress Press, 1991, p. 23. 5 Veja em português: Lucrecio, Da natureza. Rio de Janeiro: Globo, 1962; M. T. Cícero, Da Natureza dos Deuses. Lisboa: Nova Vega, 2004.

6

Já no período conhecido como era cristã, o termo religio foi amplamente

usado pelos antigos pais da igreja. Mas, novamente, seu uso era incidental e

multifacetado, abrangendo uma ampla variação de significados. O primeiro escritor

cristão que se preocupou em explicar detidamente a noção de religio foi Agostinho.

O título de sua obra, De Vera Religione6, pode trair os palpites de um observador

moderno com relação ao seu conteúdo, ao possivelmente supor que o autor apontará

o cristianismo como verdadeira “religião” em contraste com as outras “religiões”

existentes. Em realidade, o que Agostinho pretende afirmar é a maneira adequada de

se relacionar pessoalmente com Deus. De acordo com essa ênfase, então, o título

poderia ser traduzido por “Da piedade apropriada” ou “Da adoração genuína”.

Portanto, em Agostinho religio “não é um sistema de crenças ou observâncias, nem

uma tradição histórica, institucionalizada ou suscetível de observação externa. Antes

ela é uma confrontação vívida e pessoal com o esplendor e o amor de Deus”.7

No período posterior a Agostinho o termo religio foi pouco usado. No

período da igreja medieval, a palavra mais usada era a “fé”. Por isso, no contexto da

Reforma, Lutero ampliou a ênfase medieval ao afirmar com veemência a salvação

unicamente através da justificação pela fé. Nesse sentido, ele parecia não estar muito

preocupado com a o termo religio ou com a noção de religião.8 Por outro lado,

Zwínglio e Calvino freqüentemente se referiram a este termo. Aliás, o próprio título

da obra magna de Calvino - Instituto Christianae Religionis9 – inclui a expressão

“religião”. Porém, assim como Instituto tem o sentido de instrução e não de

instituição, religio em Calvino não se refere a algum sistema abstrato ou fenômeno

institucional, mas um senso de piedade que leva o ser humano à adoração.

Desse modo, a expressão religio foi utilizada no período da “Idade Média e

na época da Reforma para designar a verdadeira ‘religiosidade’, enquanto sinal de

uma fé clara, e não para denominar um sistema de fé que permitia distinguir um

sistema verdadeiro de um falso.”10 Contudo, a partir do século XVII essa concepção

6 Veja em português: Santo Agostinho, A verdadeira religião. São Paulo: Paulinas, 1992. 7 W. Smith, The Meaning and End of Religion, op. cit., p. 29. Nessa dissertação, todas as traduções de citações para o português seguem tradução livre. 8 Cf. Ibid., p. 31, 35. 9 Veja em português: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 10 Hans Küng, Introdução: O debate sobre o conceito de religião, Concilium, 203, jan. 1986, p. 5. Evidentemente, as indicações de que conceito de religião - no período anterior a modernidade - não se identificava com a noção de um sistema de crenças não significam que o cristianismo desse período não possuía suas crenças ou não prezasse pelo aspecto cognitivo e racional de sua fé. Tal conclusão representaria uma aguda distorção histórica que desconsideraria o Escolasticismo Medieval, as

7

da religião foi alterada. A emergência do Iluminismo representou a submissão de

todas as realidades ao crivo racional. Na modernidade, portanto, a religião que antes

era entendida como parte da dinâmica da vida se transforma em uma sistematização

intelectualista de idéias. Nesse contexto é possível diferenciar as religiões,

simplesmente a partir de seus distintos sistemas de crenças.11 Logo, há na

modernidade uma espécie de redução da religião aos seus aspectos mais objetivos,

sobretudo no âmbito intelectual, que permitem não apenas uma abstração conceitual

da religião, mas também sua crítica.

1.2. Um panorama da crítica moderna da religião

A modernidade não apenas cunhou o conceito atual de religião, mas também

foi o nascedouro de sua crítica. Aliás, o conceito e crítica da religião não apenas se

constituem como tais na modernidade, mas estão diretamente relacionados: a crítica

só pôde ser feita porque, através da formulação conceitual, a religião foi reificada.

Ou seja, ao ser objetivada ela se tornou passível de análise e crítica. Em realidade, há

nessa reificação dois tipos de objetivação, que estão interligados: (1) sistema

intelectual - conceitualização e abstração da religião; e (2) sistema institucional - a

religião vista como uma entidade sociológica na figura da igreja cristã.

O Iluminismo representou o início de um processo de emancipação destes

dois tipos de sistema religioso, que pode ser definido como secularização: (1) a

emancipação intelectual da tutela da autoridade e da tradição; e (2) a emancipação

econômica - transformação dos bens da igreja em bens civis. Nesse contexto a

religião foi submetida à razão crítica, pois “a fé tornou-se objeto de suspeita como

ideologia de ordem ultrapassada”.12 Em termos de emancipação econômica, os novos

núcleos de poder (banqueiros, manufatureiros e comerciantes) olhavam a religião

com desprezo e suspeita, especialmente devido aos laços que a igreja medieval

mantinha junto a “antiga nobreza dominadora e aos velhos donos das terras

declarações doutrinárias dos Concílios da Igreja, e a própria noção de heresia tão presente nessa época. A discussão presente neste capítulo enfatiza apenas que o conceito do termo “religião”, nessa época, não estava, em primeira instância, associado à noção de um sistema de crenças. 11 Peter Harrison ressalta que a ênfase intelectualista do Iluminismo europeu produziu o conceito moderno de “religiões”, que são compreendidas como diferentes “conjuntos de crenças propositadas que poderiam ser imparcialmente comparadas e julgadas.” (P. Harrison, “Ciência” e “Religião”: Construindo os Limites. Revista de Estudos da Religião, n. 1, 2007, p. 2). 12 Urbano Zilles, Filosofia da Religião. São Paulo: Paulinas, 1991, p 12.

8

européias”.13 Aliada ao processo de emancipação econômica, ocorre a emancipação

intelectual, visto que “a jovem burguesia em ascensão favorece - na imprensa e,

particularmente, nas universidades - a propagação de idéias anticlericais, anti-

religiosas, atéias, racionalistas, céticas, agnósticas, materialistas e cientificistas.”14

Logo, a crítica da religião constitui uma das características da filosofia das luzes na

Europa Ocidental, pois “crítica da religião, crítica das Igrejas e crítica da teologia são

elementos imprescindíveis da orientação moderna.”15

Com efeito, antes da modernidade as eventuais críticas da religião não eram

dirigidas à religião em si, mas constituíam denúncias de deturpações e abusos que se

faziam com ela. Mas na época moderna, a crítica ataca diretamente a própria religião.

Levando em conta todo este quadro contextual, é possível compreender a crítica

moderna da religião como um longo processo que, em primeira instância, envolveu

filósofos e literatos, e posteriormente abarcou sociólogos, psicólogos, antropólogos e,

até mesmo, teólogos. Por isso, a crítica da religião pode ser divida em algumas fases.

A primeira delas corresponde à fase Iluminista - de Baruch Spinoza (1632-

1677) a Georg W. F. Hegel (1770-1831) -, que se caracteriza pela gradual redução da

plausibilidade racional da religião. Considerado o fundador da crítica moderna da

religião, a compreensão que Spinoza tinha de religião excluía qualquer tipo de

revelação sobrenatural. Ele entendia a religião como fé filosófica, isto é, religião

natural, e mantinha na religião natural apenas a lei, suprimindo o mito e o rito.16

Nessa fase, talvez o maior crítico da religião tenha sido David Hume17 (1711-1776).

Em seu pensamento, tanto “Deus quanto a religião são obra do sentimento e da

imaginação e, por isso, são expressões irracionais e arbitrárias da consciência

humana”.18 Desse modo, o filósofo escocês adianta muitas das noções que foram

desenvolvidas na crítica da religião dos séculos XIX e XX.

13 Otto Maduro, Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter-relações na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 42. 14 Ibid. 15 Etienne A. Higuet, Teologia e Modernidade: introdução geral ao tema. Teologia e Modernidade. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 13. 16Cf. Battista Mondin, Quem é Deus: elementos de teologia filosófica. São Paulo: Paulus, 2005, p. 82. 17 Hume fala sobre Deus e a religião, principalmente, em duas obras. Em The Natural History of Religion (1757) ele ressalta que a origem da religião está enraizada nos interesses vitais do ser humano, tais como a ânsia pela obtenção da felicidade, o temor da miséria e o medo da morte. Já em Dialogues concerning Natural Religion (1779) ele busca refutar as principais argumentações usadas para provar a existência de Deus. Veja em português veja: História natural da religião. São Paulo: UNESP, 2005; Diálogos sobre a religião natural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 18 B. Mondin, Quem é Deus, op. cit., p. 84.

9

A segunda fase da crítica da religião pode ser chamada de Positivista.

Enquanto a primeira fase contou com uma matriz basicamente inglesa e francesa, de

caráter intelectual, a segunda fase teve uma matriz alemã - iniciando-se com Bruno

Bauer (1809-1882) e Ludwig Feuerbach19 (1804-1872) -, e não se restringiu à ênfase

filosófica e intelectual, mas agregou também perspectivas antropológicas,

psicológicas, sócio-econômicas e outras.20 Esta fase foi marcada por uma avaliação

totalmente negativa da religião: ela não possuía qualquer fundamento racional e

representava um prejuízo extremo ao progresso da humanidade. Se na primeira fase o

elemento sobrenatural da religião fora rechaçado pela crítica filosófica, restando

apenas a religião natural, nesta fase a religião natural também deveria ser anulada.

Uma grande quantidade de pensadores ateístas desse período podem ser enumerados,

mas três deles são geralmente conhecidos como os “mestres da suspeita da

religião”21: Karl Marx (1818-1883), Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Sigmund

Freud (1856-1939). Estes apresentam uma estrita ligação com as idéias de

Feuerbach, mas também possuem uma diferença fundamental em relação a ele.

As maiores críticas da religião, depois de Feuerbach, são variações a partir

dele, pois elas têm como elemento comum a noção de que a religião é uma projeção

alienante de sentimentos ou desejos humanos.22 Contudo, a diferença fundamental

reside no fato de que o objeto principal de análise em Marx, Nietzsche ou Freud não

era a religião em si. Suas preocupações cobriam motivos socioeconômicos,

psicológicos ou filosóficos, e como parte de seu respectivo percurso teórico eles

lidavam com a religião, à medida que esta se relacionava com aqueles objetivos. Em

19 Feuerbach surgiu meteoricamente no cenário europeu entre as décadas de 1840 e 1850. Sua obra, A Essência do Cristianismo (1841), tornou-se, inicialmente, o livro texto de um grupo de pensadores revolucionários tais como Karl Marx e Friedrich Engels. Essa obra foi organizada em duas partes principais: a primeira afirma a antropologia como verdadeira essência da religião, ao passo que a segunda denuncia a teologia como falsa essência da religião. Sua tese central é de que a religião é simplesmente antropologia: “o homem é o início da religião, o homem é o meio da religião, o homem é o fim da religião” (Cf. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1997, p. 223). Feuerbach também escreveu outras obras que discutiam acerca da religião, como por exemplo A Essência da Religião (1846). Mas estas não tiveram a popularidade e o impacto da obra anterior. Para uma compreensão mais ampla da interpretação religiosa no pensamento de Feuerbach veja Van Austin Harvey, Feuerbach and the interpretation of religion. New York: Cambridge University, 1997. 20 Cf. Hugo Assmann e Mate Reyes, Introducción. In: Sobre la religion I: Karl Max Friedrich Engels. Salamanca: Sigueme, 1979, p. 12. 21 Cf. Paul Ricoeur, Freud and Philosophy: an essay on interpretation. New Haven: Yale University Press, 1970, p. 32-33. 22 John Glasse, Barth on Feuerbach. The Harvard Theological Review, v. 57, n. 2, abr. 1964, p. 69.

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Feuerbach, por sua vez, a religião ocupava o lugar central: “nunca houve um

pensador em sua própria época tão preocupado e devotado à crítica da religião”.23

As noções feuerbachianas de projeção e alienação foram fundamentais para

as reflexões de Marx. Enquanto Feuerbach trabalhou apenas com a dimensão

individual e antropológica, Marx colocou estas questões na dimensão política e

socioeconômica. Embora não esteja interessado em elaborar uma teoria sistemática

da religião Marx indica que “a crítica da religião é a condição preliminar de toda a

crítica”.24 Em sua visão a religião era (1) a teoria geral deste mundo (sua lógica sob

forma popular); (2) a sanção moral do mundo; e (3) sua consolação e justificação

universal. É através da religião que o ser humano se realiza na fantasia, quando este

não consegue se realizar concretamente no mundo, pois “a religião é o suspiro da

criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração”.25 Nesse sentido, a religião

precisa ser abolida para que a felicidade ilusória do povo dê lugar à felicidade real. A

crítica da religião é necessária para destruir “as ilusões do homem para que ele pense,

aja, construa a sua realidade como homem sem ilusões chegado à idade da razão”.26

Já em Freud, há uma constante ênfase de que a religião é uma neurose

universal da humanidade.27 Seu argumento é de que a origem psíquica28 da religião

se situa nas ilusões e desejos da humanidade. Frente à esmagadora e indiferente força

da natureza, seguindo um protótipo infantil, o ser humano procura atribuir a ela um

caráter paterno (aqui surge a noção de Deus). Logo, a religião apresenta uma missão

tríplice: (1) “exorcizar os terrores da natureza”; (2) “reconciliar os homens com a

crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte”; e (3)

“compensá-los pelos sofrimentos e privações”.29 Entretanto, ao atingir o estágio de

“maioridade” o ser humano precisa abandonar a neurose infantil – a religião, pois

quanto maior “o número de homens a quem os tesouros do conhecimento se tornam

acessíveis, mais difundido é o afastamento da crença religiosa.”30

23 V. Harvey, Feuerbach and the interpretation of religion. op. cit., p. 3. 24 Karl Marx, Contribuición a la crítica de la filosofía del derecho de Hegel. In: H. Assmann e M. Reyes, Sobre la religion I: Karl Max Friedrich Engels. op. cit., p. 93-94. 25 Ibid. 26 Ibid. 27 Michael Palmer, Freud e Jung: sobre a religião. São Paulo: Loyola, 2001, p. 27. 28 Freud reconhece que o conteúdo de sua crítica da religião não é inédito: “tudo o que fiz - e isso constitui a única coisa nova em minha exposição - foi acrescentar uma base psicológica às críticas de meus grandes predecessores” (O futuro de uma ilusão. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 111). 29 Ibid., p. 97. 30 Ibid., p. 113.

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Quanto à crítica da religião em Nietzsche, é difícil encaixá-lo plenamente na

lista dos críticos modernos ateus. Primeiramente, ele anuncia a pós-modernidade ao

criticar “o mito [moderno] do progresso ligado ao conhecimento científico”.31

Ademais, é difícil classificá-lo estritamente como ateu, haja vista sua admiração

pelas festas pagãs e suas divindades.32 Nietzsche não nega necessariamente o divino,

mas rejeita que esta seja uma realidade separada do ser humano. Talvez, ele possa ser

definido como anticristão, ou anti-metafísico.33 Em sua conhecida afirmação “Deus

morreu!”34, Nietzsche constata “a ausência do divino na cultura do seu tempo,

acusando [...] por essa ausência e morte, o pensamento metafísico”.35 Para ele, o

cristianismo não passa de um platonismo popular que serviu de instrumento de

dominação da igreja e do estado. Retomando a temática da alienação da crítica

moderna da religião, ele assevera que os cristãos se concentram no mundo do além –

o paraíso metafísico – e se esquecem do mundo concreto em que vivem.36

Pretendendo inverter essa situação, ele rotula a crença metafísica do Reino de Deus

como mero consolo e afirma a sacralidade da vida atual: “O Reino dos Céus é um

estado do coração - não algo que vem para além da Terra ou após a morte”.37

Sem desconsiderar a consistência e a relevância de muitos dos argumentos

destes e de outros críticos da religião no período moderno,38 para uma grande parte

dos estudiosos da religião, a visão destes críticos tende a ser reducionista: para todos

os que dissecam “o problema do sagrado com o bisturi da história, [da filosofia,] da

sociologia ou da psicologia, a ponto de contestar todo tipo de ‘transcendentalidade’,

à qual se refere o mundo religioso [...] o objeto da religião se torna ‘imanente’.”39

Nesse sentido, para manter sua própria identidade, os fenômenos religiosos precisam

ser estudados também em escala religiosa, pois, embora as aproximações

psicológicas, sociológicas e históricas sejam importantes e necessárias, elas reduzem

31 Giorgio Penzo, Friedrich Nietzsche (1844-1900): O divino como problematicidade. In: Giorgio Penzo e Rosino Gibellini (Orgs.), Deus na filosofia do século XX. São Paulo: Loyola, 2002, p. 30. 32 Cf. Mauro Araujo de Sousa, A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica? In: Jaci Maraschin e Frederico Pieper Pires (Orgs.), Teologia e Pós-Modernidade: novas perspectivas em teologia e filosofia da religião. São Paulo: Fonte Editorial, 2008, p. 87. 33 Cf. G. Penzo, Friedrich Nietzsche (1844-1900): O divino como problematicidade. op. cit., p. 30, 32. 34 Cf. Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência. São Paulo: Hemus, 1981, p. 125. 35 G. Penzo, Friedrich Nietzsche (1844-1900): O divino como problematicidade. op. cit., p. 32. 36 Cf. M. Sousa, A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica? op. cit., p. 70-72, 85. 37 Friedrich Nietzsche, The Anti-Christ. Radford, VA: Wilder Publications, 2008, p. 50. 38 Para uma relevante contextualização e avaliação das críticas da religião em Feuerbach, Marx, Freud e Nietzsche veja Hans Küng, Does God Exist?: an answer for today. New York: Vintage Books, 1981. 39 Aldo Natale Terrin, Em defesa da autonomia do estudo da religião. O sagrado off limits. São Paulo: Loyola, 1998, p. 18.

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a religião aos aspectos mais objetivos e de possível descrição. Ao fazer sociologia da

religião, Otto Maduro parece entender essa situação, e reconhece que a “definição

sociológica corta [...] boa parte do fenômeno religioso”40, visto que ela expressa apenas um aspecto das religiões: o aspecto do fenômeno social presente em todo fato religioso. Não queremos dizer com isto que, para a sociologia, a religião seja única e exclusivamente um fenômeno social. Embora alguns sociólogos pensem assim e algumas correntes de sociologia também.41

Essa questão parece remeter às diferenças de perspectiva entre os

observadores externos da religião, e aqueles que estão inseridos nela. Céu e [paraíso], para um crente, é um lugar estupendo [...] Para um observador, eles são itens da mente do crente. Para o crente, eles são partes do universo; para o observador, eles são partes da religião.42

Em face desta argumentação, seria possível deduzir que a crítica moderna da

religião seria decorrente dos métodos de análise adotados por “observadores

externos”, que tendem a reduzir e distorcer a religião. Contudo, a posição de Karl

Barth e Dietrich Bonhoeffer parece contradizer esse raciocínio. Certamente, para os

críticos modernos da religião em geral, Barth e Bonhoeffer seriam vistos como

indivíduos que estão imersos na religião, e para os que atacam o reducionismo

religioso daqueles críticos, as ferramentas metodológicas utilizadas por Barth e

Bonhoeffer seriam consideradas aproximações “religiosas”, visto que eles partem da

teologia. Portanto, à primeira vista, Barth e Bonhoeffer não poderiam ser rotulados

como “observadores externos” e nem acusados de utilizar métodos reducionistas.

Dessa forma, é preciso notar como se desdobrou a crítica moderna da religião no

campo da teologia.

1.3. A crítica moderna da religião na teologia

Este estudo privilegia as críticas da religião de Karl Barth e Dietrich

Bonhoeffer ao se referir à crítica moderna da religião na teologia. Com o intento de

contextualizar o tema dessa crítica no quadro geral do pensamento destes teólogos,

há um esboço do percurso bibliográfico e metodológico de ambos e uma noção

básica da crítica da religião feita por eles, a partir da perspectiva de seus intérpretes.

40 O. Maduro, Religião e luta de classes, op. cit., p. 32. 41 Ibid. 42 W. Smith, The Meaning and End of Religion, op. cit., p. 131.

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1.3.1. Percurso bibliográfico e metodológico de Karl Barth

Biograficamente,43 um importante ponto de partida para o estudo da teologia

barthiana se situa no período em que Barth, a partir de 1911, tornou-se pastor da

pequena cidade suíça de Safenwil. Os dez anos que passou ali serviram de maturação

para o seu pensamento, em face de uma série de crises que mudariam sua teologia.

Nessa experiência, ele detectou a inadequação do estudo histórico-crítico da teologia

liberal para responder às necessidades básicas da comunidade onde pregava.

Também ali, Barth acompanhou a primeira guerra mundial e ficou horrorizado com o

apoio de seus antigos professores liberais à política bélica alemã.44 A desilusão e

ruptura de Barth com a teologia liberal marcam a primeira e mais radical mudança

em seu pensamento. Nessa fase de transição teológica, entre 1916 e 1919, Barth

escreveu o Römerbrief (que a partir de agora será chamada de Carta aos Romanos)

em sua primeira edição. Contudo, é a segunda edição dessa obra (1922) que marca

definitivamente o início da nova teologia de Barth, chamada de “teologia da crise”, e

depois de “teologia dialética”.45 Enquanto a leitura de Romanos por Lutero

compreendia a sola fides como contraposição entre a fé e as obras, a releitura de

Barth apontava para a contradição entre a fé e razão, tão defendida pelo Iluminismo e

absorvida pelo liberalismo teológico. Assim, a idéia dominante da Carta aos

Romanos é a divindade de Deus, enquanto realidade que não se reduz a objeto do

conhecimento humano. Nesse sentido, a divindade de Deus se opõe a religião natural

humana.46

Em 1921 Barth ingressou na carreira acadêmica na Alemanha e em 1927 ele

iniciou a publicação de Christliche Dogmatik (Dogmática Cristã) que, à semelhança

de Carta aos Romanos, está permeada de linguagem existencialista kierkegaardiana,

pois Barth considerava que esta era a linguagem mais adequada para traduzir a

43 Suíço, Karl Barth (1886-1968) iniciou seus estudos teológicos com 15 anos em Berna. A seguir, ele estudou nas universidades alemãs de Berlim, Marburg e Tübingen. Na Alemanha ele teve contato com os célebres teólogos do último liberalismo teológico (H. Gunkel, A. Harnack e W. Herrmann). 44 Cf. Eberhard Busch, Karl Barth: His life from letters and autobiographical texts. Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans, 1994, p. 60-125. O manifesto produzido por 93 intelectuais alemães, que incluía os nomes de seus antigos professores, dava suporte à política beligerante de Kaiser Guilherme II, que levou a Alemanha a entrar na guerra em 1914. 45 A expressão “teologia da crise” apontava para duas situações: (1) a crise sócio-econômica e cultural, em tempos de guerra; (2) a Palavra de Deus como juízo divino sobre a tentativa humana de alcançar o sucesso pelas próprias forças. Por sua vez, a expressão “teologia dialética” enfatizava a descontinuidade entre Deus e a criação, o evangelho e a cultura, em contraposição à teologia liberal que tentava harmonizar Deus e o ser humano, fé e cultura. 46 Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX. São Paulo: ASTE, 1999, p. 242-243.

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mensagem cristã à sua geração. Contudo, nessa época Barth enfrentou uma crise

metodológica que fez com que ele abandonasse esse projeto de dogmática, por ter-se convencido da impropriedade do método empregado até então. A experiência vivida com o seu comentário de Romanos se repetia: uma nova edição se fazia necessária, e ainda que Barth pudesse dizer novamente aquilo que havia dito antes, já não podia fazê-lo da mesma forma. [...] Barth concluiu, por fim, que teria de começar novamente, libertando-se dos últimos restos de explicação e de justificação filosófico-antropológicas para a investigação da doutrina cristã.47

A nova mudança metodológica de Barth é marcada por seu estudo de

Anselmo em 1931. Além de indicar essa mudança em How my Mind has Changed48,

Barth explica no prefácio da 2ª edição de seu livro Fé em Busca de Compreensão a

importância desse novo paradigma metodológico para a compreensão da Church

Dogmatics, ressaltando que Balthasar49 conseguiu captar essa mudança: somente uns poucos comentaristas, como por exemplo Hans Urs von Balthazar, perceberam que meu interesse por Anselmo nunca foi uma questão de pouca importância para mim ou [...] perceberam o quanto ele tem me influenciado [...] neste livro sobre Anselmo estou trabalhando com uma chave vital, se não a chave, para um entendimento daquele processo inteiro de pensamento que me impressionou mais e mais, na minha Church Dogmatics, como a única adequada para a teologia.50

Desse modo, Barth se distanciou da dialética-existencialista em favor da

analogia da fé. Nesta nova fase metodológica, de 1932 até o fim de sua vida, Barth se

ocupou com a Die Kirchliche Dogmatik (que a partir de agora será chamada de

Church Dogmatics), que se tornou um projeto maior que sua própria vida, ficando

portanto inacabada. Em seu projeto inicial essa dogmática abrangeria cinco volumes.

Contudo, apenas quatro volumes puderam ser feitos, levando em conta que o quarto

volume não conta com sua última parte. A dogmática pode ser esboçada, em

português, da seguinte forma:51

Volume I - A Palavra de Deus (duas partes)

I/1: A Palavra de Deus como critério da Dogmática (1932)

I/2: A Revelação de Deus, a Sagrada Escritura, o Anúncio da Igreja (1938) 47 Ricardo Quadros Gouvêa, Prefácio à 1ª edição brasileira. In: Karl Barth, Fé em busca de compreensão: fides quaerens intellectum. São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 11. 48 Cf. Karl Barth, How my Mind has Changed. In: Walter Altmann (Org.), Dádiva e Louvor: artigos selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 410. 49 Veja Hans Urs von Balthasar, The Theology of Karl Barth: exposition and interpretation. San Francisco: Ignatius Press, 1992. 50 K. Barth, Fé em busca de compreensão, op. cit., p. 19-20. 51 Há um esboço detalhado de toda a estrutura da Church Dogmatics em John D. Godsey, Karl Barth's table talk. Scottish Journal of Theology Occasional Papers, n. 10, 1963. As datas aqui indicadas se referem ao texto original em alemão. A tradução inglesa se deu entre 1936-1969.

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Volume II - Deus (duas partes)

II/1: A Obra da Criação (1940)

II/2: A Eleição Gratuita de Deus - O Mandamento de Deus (1942)

Volume III - A Criação (quatro partes)

III/1: A Obra da Criação (1945)

III/2: A Criatura (1948)

III/3: O Criador e a sua Criatura (1950)

III/4: O Mandamento do Criador (1951)

Volume IV - A Reconciliação (quatro partes)

IV/1: O Objeto e os Problemas da Doutrina da Reconciliação. Jesus Cristo, o Senhor

como Servo (1953)

IV/2: Jesus Cristo, o Servo como Senhor (1955)

IV/3: Jesus Cristo, a Verdadeira Testemunha (1959)

IV/4: Trataria da ética da reconciliação, examinando detalhadamente a doutrina dos

sacramentos (inacabada)

O quinto e último volume, que não pôde ser escrito, falaria sobre a Redenção.

De forma específica, o capítulo número dois do primeiro volume trata da “Revelação

de Deus”. Este capítulo, por sua vez, subdivide-se em três seções: (1) “O Deus

triúno”, (2) “A Encarnação da Palavra” e (3) “O Derramamento do Espírito Santo”.

Justamente no contexto desta terceira seção está o §17 que se intitula, na versão

inglesa, “The Revelation of God as the Abolition of Religion”. Portanto, na Church

Dogmatics, este é o texto mais importante acerca da temática da crítica da religião.

Nesta última fase de sua teologia, Barth não ficou absorto na produção

bibliográfica, muito embora essa tenha sido o período mais profícuo de seus escritos.

Seu engajamento junto à comunidade remonta ao seu pastorado em Safenwil. Além

de ser socialista ele também ajudou as operárias de algumas fábricas têxteis a se

organizarem para conseguirem melhores condições de trabalho. Agora, no contexto

preliminar à Segunda Guerra mundial, a postura de Barth não foi diferente. Sua

oposição ao nazismo foi traduzida em práticas que levaram ao estabelecimento da

Igreja Confessante e à Declaração Teológica de Barmen.52 O resultado não poderia

ser diferente: em 1935 Barth foi expulso da Alemanha. Ele decidiu, então, se

52 Veja uma descrição detalhada da atuação política de Barth contra o nazismo em Daniel Cornu, Karl Barth: teólogo da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971.

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estabelecer na Basiléia, sua cidade natal, onde prosseguiu sua atividade teológica, e

ampliou volumosamente a quantidade de seus escritos.

Tendo em vista o grande volume de produção bibliográfica53 de Barth, suas

obras podem ser classificadas em quatro grupos principais:

• Obras exegéticas – a mais importante foi Carta aos Romanos (2ª ed., 1922)

• Obras históricas – a mais significativa do ponto de vista metodológico foi o

livro sobre Anselmo, Fé em busca de Compreensão (1931); mas a mais

extensa foi Die Protestantische Theologie im XIX Jahrhundert54 (1947), que

pinta o quadro da teologia protestante no período Iluminista e retrata os

grandes teólogos do século XIX, de Schleiermacher a Ritschl.

• Obras dogmáticas – a mais importante foi Church Dogmatics.

• Obras políticas – vários escritos.

Considerando os objetivos do presente estudo, os textos de Carta aos

Romanos e o §17 (“The Revelation of God as the Abolition of Religion”) de Church

Dogmatics representam a maior concentração da crítica da religião. Entretanto, a

leitura deles não pode desconsiderar as mudanças metodológicas da teologia

barthiana expressa nos períodos pré-dialético, dialético e da analogia da fé. Ou em

termos mais específicos, nas fases liberal-socialista (1904-1914), dialético-

existencialista (1917-1927) e antitético-revelacional (a partir de 1931).55

Nesse contexto das mudanças metodológicas de Barth, faz-se necessário

atentar para a conferência que ele apresentou em 1956, aos 70 anos de idade, na

Associação de Ministros Reformados. Nela ele expôs uma revisão crítica de todo o

seu pensamento. A partir do texto dessa conferência, A humanidade de Deus56, é

possível compreender as duas últimas fases da teologia de Barth como as duas

reviravoltas de sua teologia, com suas respectivas especificidades. A primeira delas

situa-se nos primórdios da teologia dialética. Ela foi uma ruptura radical, “uma

guinada de 180 graus”, pois tencionava recuperar a divindade de Deus diante da

teologia liberal. O texto mais representativo desta época foi Carta aos Romanos.

53 O levantamento bibliográfico completo de Karl Barth até dezembro de 1955 apontava 406 títulos. (Cf. Battista Mondin, Os grandes teólogos do século vinte: os teólogos protestantes e ortodoxos. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 21) 54 Há uma tradução em inglês de onze capítulos desta obra, intitulada From Rousseau to Ritschl. 55 Cf. R. Gouvêa, Prefácio à 1ª edição brasileira, op. cit., p. 12 56 Cf. Karl Barth, A humanidade de Deus. In: Walter Altmann (Org.), op. cit., p. 389-405.

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Nela, a divindade de Deus pode ser assim esboçada: a) Deus é Deus, e não é o

mundo; b) o mundo é mundo, e não é Deus: nenhuma via conduz o mundo a Deus; c)

o encontro de Deus com o mundo é krisis (juízo), e é um tocar o mundo de maneira

tangencial. Já a outra reviravolta, que é a 3ª fase de seu pensamento, foi em realidade

um movimento de retração em face à forte guinada da reviravolta anterior. Nela

Barth visava reconhecer a humanidade de Deus. Os textos que revelam essa retração

se encontram na Dogmática. Em comparação com o esboço anterior, esta reviravolta

é assim caracterizada: a) Deus é Deus, mas é Deus para o mundo: ao Deus que é o

totalmente Outro sucede a figura de Deus que se faz próximo do mundo; b) o mundo

é mundo, mas é um mundo amado por Deus: passa-se do conceito da infinita

diferença qualitativa aos conceitos de aliança, reconciliação, redenção; c) Deus

encontra o mundo em sua Palavra, em Jesus Cristo.57

Em alguns textos anteriores ao A humanidade de Deus, Barth já demonstrava

insatisfação acerca da maneira como sua teologia era retratada por outros. Esse

descontentamento é evidente nos prefácios escritos pelo teólogo suíço nas edições

alemã e inglesa da obra de Otto Weber acerca de sua Dogmática.58 No prefácio da

edição alemã (1950) ele indica não apenas que muitos não estavam entendendo

devidamente suas idéias, mas que estes tiravam conclusões de sua teologia sem ler

seus escritos.59 No prefácio da edição inglesa (1952), ele expressa que a imagem que

muitos fazem dele não passa de caricaturas desenhadas de maneira apressada, e que

estas são rápida e precipitadamente aceitas, bem como reproduzidas

interminavelmente. Ele afirma que dificilmente se reconheceria nos rótulos de “neo-

ortodoxia”, “Deus como totalmente Outro”, “distinção infinitamente qualitativa de

Kierkegaard”, “condenação da cultura e da civilização”. Em seu desabafo, Barth

apela que as pessoas leiam os seus textos com maior atenção e amplitude, para que as

conclusões não sejam precipitadas e distorcidas.60

Tal compreensão e precaução metodológica são úteis na análise de Carta aos

Romanos (correspondente à 2ª fase) e na análise da Church Dogmatics

(correspondente à 3ª fase), a fim de encontrar similaridades e mudanças de conteúdo,

ênfase ou linguagem. Após um panorama geral do pensamento barthiano, seu método

57 Cf. Rosino Gibellini, A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002, p. 30. 58 Cf. Otto Webber, Karl Barth's Church Dogmatics. Philadelphia: The Westminster Press, 1953. 59 Cf. Ibid., p. 9-10. 60 Cf. Ibid., p. 7.

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teológico e suas obras produzidas, é importante considerar a compreensão que

diversos estudiosos possuem da sua crítica da religião.

1.3.2. A crítica barthiana da religião na compreensão de seus comentaristas

Contemporâneo de Barth, Paul Tillich relata que, no seu retorno à Alemanha

em 1948, ele foi imediatamente atacado ao usar o termo “religião” em seus escritos e

conferências. Nesse contexto ele explica que: depois dos escritos de Barth contra os cristãos nazistas, essa palavra queria dizer arrogância humana expressa na tentativa de se chegar a Deus. Aos poucos [...] as pessoas foram entendendo que a revelação só chega ao homem quando este a recebe, e que qualquer recepção da revelação é religião, seja em forma mais interiorizada ou mais secularizada, e que, enquanto religião, sujeita-se constantemente à deformação.61

Além de demonstrar o impacto da crítica barthiana da religião na Alemanha

daquela época, Tillich explica o conceito barthiano de religião, em contraposição à

revelação: “todos os nossos esforços para chegar a Deus são qualificados de religião,

e é precisamente contra a religião que se levanta a revelação de Deus. Começa aí a

guerra contra o uso da palavra “religião” na teologia”.62 A crítica da religião de Barth

estava em direta conexão com sua negação da teologia natural. Por conta de sua

ênfase na doutrina do pecado, a partir da leitura de Lutero e Paulo, Barth cria que a

imagem de Deus no ser humano havia sido totalmente destruída. Por isso ele

rejeitava a noção de a priori religioso de Troeltsch.

Alguns anos antes da publicação alemã do primeiro volume da Church

Dogmatics, W. Pauck escreveu um artigo que aborda a crítica barthiana da religião.

Certamente esse texto se referia à crítica contida em Carta aos Romanos. Após

discorrer sobre a posição dialética que identifica Deus como sendo o “totalmente

outro”, que não pode ser identificado com nada que seja humano, o autor critica a

posição de Barth como sendo próxima ao platonismo e neo-kantianismo que leva ao

agnosticismo e uma religiosidade puramente moral: um Deus distante que não tem

61 P. Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX. op. cit., p. 243. 62 Ibid. Tillich contesta o rótulo de “teologia dialética” para o pensamento de Barth, especialmente na sua relação entre revelação e religião: “Trata-se de um termo inadequado. Essa teologia, no seu início profético, era paradoxal; depois se sobrenaturalizou. Mas nunca foi dialética. A dialética supõe um progresso interno que vai de um estado a outro impulsionado por dinâmica própria.” (Ibid.)

19

nada que ver com a realidade humana não tem relevância para os problemas e

desafios humanos, e também tira da religião seu aspecto experimental e místico.63

Ao analisar o nascimento da teologia dialética, H. Zahrnt também comenta

sobre a crítica da religião: Barth decreta uma sentença de morte à história da religião

e à moralidade. Isso representa uma condenação do cristianismo. É neste ponto que a

eloqüente impaciência de Barth chega ao seu clímax e as comparações se tornam

mais agudas.64 De maneira específica, ele afirma que embora a crítica de Barth à

religião seja dirigida a todo e qualquer tipo de religião, seu principal ataque é contra

o cristianismo, contra a igreja: “O comentário fundamental de Barth sobre a religião,

que representa a culminação do pecado humano, é de alguma forma intensificado,

multiplicado quando ele chega à igreja.” 65 Zahrnat conclui que a Carta aos Romanos

pode ser considerada, em grande parte, um catálogo de defeitos eclesiais.

Por sua vez, J. Moltmann entende que, no contexto da crítica moderna da

religião, Barth indicou energicamente que não se pode identificar a fé com a religião.

A partir da compreensão dos profetas e os apóstolos, a fé bíblica tem adotado uma

atitude eminentemente crítica frente à religião, visto que o principal inimigo do ser

humano não é a incredulidade, mas a superstição, a idolatria e a auto-justificação.

Moltmann assevera que a crítica filosófico-moderna da religião era dirigida

fundamentalmente contra a religião da sociedade: o cristianismo burguês. Aliás,

Feuerbach, Marx, Freud e Nietzsche pouco sabiam das outras grandes religiões da

humanidade. Do mesmo modo, a crítica de Barth focalizava o cristianismo que havia

se tornado “religioso”, e não às outras religiões: a crítica barthiana não representa,

necessariamente, uma afronta ou intolerância às religiões não-cristãs.66

Editor da Church Dogmatics para a língua inglesa, T. Torrance comenta a

crítica da religião presente em Carta aos Romanos, ressaltando a profunda

concepção que Barth tinha do pecado, em virtude de suas leituras de Lutero e

Paulo.67 Nesse contexto, o pecado é visto como uma categoria essencialmente

religiosa, e é precisamente dentro da religião que o pecado toma a sua forma

63 Cf. Wilhelm Pauck, Barth's Religious Criticism of Religion. The Journal of Religion, v. 8, n. 3, jul. 1928, p. 453-477. 64 Cf. Heinz Zahrnt, The question of God: protestant theology in the twentieth century. New York: Harvest Book, 1969, p. 34. 65 Ibid., p. 36. 66 Cf. Jürgen Moltmann. La Iglesia, fuerza del Espiritu: hacia una eclesiología mesiánica. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1978, p. 190-191. 67 Cf. Thomas F. Torrance, Karl Barth: an introduction to his early theology, 1910-1931. London: SCM, 1962, p. 63.

20

suprema. Assim, na oposição entre religião e graça, dialeticamente a religião exprime

a relação negativa do ser humano com Deus, ao passo que a graça descreve a relação

positiva daqueles que se colocam ao lado de Deus.68

O outro editor da Church Dogmatics para a língua inglesa é G. Bromiley. Sua

obra de introdução à teologia de Barth se limita a sumariar todas as doze partes da

Church Dogmatics.69 Portanto, nessa obra Bromiley comenta o § 17 de Church

Dogmatics que se refere à relação entre revelação e religião. Antes de se deter no

texto em si, ele reconhece que Barth freqüentemente tratou da relação entre revelação

e religião, desde o período inicial de seu trabalho como ministro e teólogo. Quanto

ao título da versão inglesa do § 17 - “The Revelation of God as the Abolition of

Religion” - a palavra alemã traduzida por “abolition” é Aufhebung, que pode

significar, num estilo bem hegeliano, tanto “abolição” quanto “elevação”. Bromiley

enfatiza: “sem dúvida Barth tinha esse duplo significado em mente”70. Quanto ao seu

conteúdo, o primeiro tópico do texto estabelece a problematização da religião: Ela se

iguala à revelação? Qual é sua relação com a revelação? Para abordar esses

questionamentos o segundo tópico apresenta o lado negativo da religião: a religião

como descrença. No testemunho bíblico contra ela se apresenta através da idolatria

no Antigo Testamento, ao passo que em Romanos e Atos essa contradição se

expressa pela contradição entre religião e revelação. A revelação como ato de

reconciliação de Deus se opõe à auto-justificação das obras do ser humano (religião),

e em contrapartida a religião se opõe à obra revelada de Deus. Finalmente, o último

tópico aborda acerca da verdadeira religião, o lado positivo da religião. Assim, a

religião pode ser elevada tanto quanto abolida (Aufhebung). No contexto de

Romanos, e de acordo com a declaração protestante desde Lutero, a justificação pela

fé entra em cena: a religião precisa ser “justificada” para ser verdadeira religião.71

Hans Küng é outro teólogo que tem grande interesse na teologia de Barth.

Aliás, sua própria tese doutoral tratou sobre a doutrina da justificação em Karl Barth.

Ele explica que, para Barth, o Deus a quem a razão humana percebe em seu

conhecimento natural - seja através da filosofia, da teologia ou até mesmo nas

religiões do mundo – não passa de uma projeção humana. Nesse ponto Barth afirma

68 Cf. Ibid., p. 65, 68. 69 Cf. Geoffrey W. Bromiley, An Introduction to the Theology of Karl Barth. Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans, 1979. 70 Ibid., p. 29. 71 Cf. Ibid., p. 29-30.

21

que Feuerbach está absolutamente correto: o Deus do conhecimento natural é a

criação de uma fantasia ideológica humana. O ser humano não pode conhecer a

Deus, a menos que o próprio Deus se faça conhecido. Não há nenhum conhecimento

de Deus da parte humana sem a revelação divina.72 Contudo, Küng chama a atenção

para o pensamento de Barth em relação às outras religiões na última parte totalmente

concluída da Church Dogmatics (IV/3). Ali, ele ressalta a aceitação “atormentada”

de Barth, ao consentir que outras religiões também podem ser “luz”, e pelo menos

indiretamente estarem relacionadas “com a revelação e a graça de Deus, como

também, em sentido contrário, o cristianismo apresenta em suas várias facetas

humanas traços comuns com outras religiões.”73

Refletindo novas linhas de interpretação da teologia barthiana, G. Dorrien74

questiona o que ele chama de leitura dominante de Barth, que o coloca na ala

conservadora da neo-ortodoxia. Tal visão é reforçada pelo entendimento de que

Barth abandonou o método dialético em favor de um pensamento dogmático

conservador. Segundo Dorrien, o desenvolvimento teológico de Barth tem sido

tratado com alguns exageros, sobretudo na demasiada ênfase em suas “dramáticas”

conversões metodológicas: a ruptura com a teologia liberal e adoção da dialética, a

ruptura com a dialética e a incorporação da analogia dogmática. Para ele, o único

rompimento decisivo na teologia de Barth foi com o liberalismo teológico. Nesse

sentido, Dorrien lamenta que as influentes interpretações de Barth desenvolvidas por

Balthasar e Torrance, descrevam radicalmente a conversão do pensamento dialético

para o dogmático. Dorrien defende que Barth não descartou o pensamento dialético:

ele utilizava a argumentação analógica em seus escritos da teologia da crise, assim

como continuou a empregar argumentos dialéticos na Church Dogmatics. A dialética da divindade velada e não velada permaneceu crucial no seu pensamento. [...] Ele persistentemente rejeitou tratar a presença ou ausência de Deus de maneira não-dialética. Ele evitou o falso objetivismo que deriva de uma não-dialética ênfase na presença, mas também recusou fossilizar o slogan de sua própria teologia da crise em termos do “Deus totalmente outro”.75

Semelhantemente, Garrett Green ressalta a importância do pensamento

dialético barthiano, enquanto estrutura argumentativa, na abordagem da religião no §

72 Cf. H. Küng, Does God Exist?, op. cit., p. 516. 73 Cf. H. Küng, Introdução: O debate sobre o conceito de religião, op. cit., p. 8. 74 Cf. Gary Dorrien, The Barthian Revolt in Modern Theology: theology without weapons. Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 2000, p. 3-5. 75 Ibid., p. 3.

22

17 de Church Dogmatics. Por considerar que a tradução inglesa obliterou a estrutura

dialética da argumentação barthiana presente nesse texto, Green decidiu fazer uma

nova tradução do § 17.76 No “Prefácio do Tradutor”, Green enumera algumas razões

para a revisão e nova tradução desse texto. A mais importante delas é equívoco que a

tradução fez ao traduzir o termo alemão Aufhebung por “abolição” em “The

Revelation of God as the Abolition of Religion”. Green reconhece que não se deve

julgar os tradutores da Church Dogmatics tão duramente, visto que este vocábulo

confronta qualquer tradutor com um dilema: não existe uma palavra inglesa que

possa reproduzir a ambigüidade do termo alemão. Este mesmo termo é usado

dialeticamente nos textos de Hegel e, portanto, Barth também o utiliza de forma

ambígua e dialética, conforme pode se perceber na própria estrutura do texto. Assim,

a partir da experiência de tradução de Hegel para o inglês, Green sugere como

tradução mais adequada para Aufhebung, o termo “sublimação”. No seu ponto de

vista, a tradução convencional deixou aos leitores de língua inglesa a falsa impressão

de que Barth substitui a religião pela revelação, ou de que Barth não pensa que o

Cristianismo seja uma religião. Green também acredita que essa distorção colabora

vigorosamente para que Barth seja evitado nos Estudos em Religião de fala inglesa.

Em seu artigo Challenging the Religious Studies Canon: Karl Barth's Theory

of Religion, Green também faz uma importante análise da religião em Barth, tanto

em Carta aos Romanos quanto no § 17 de Church Dogmatics. Em sua análise da

Carta aos Romanos, ele observa paralelos entre os tópicos do comentário do capítulo

7 da primeira (1919) e segunda (1922) edições:77

Edição de 1919 Edição de 1922

Romanos 7:1-6 O Novo Ser O Limite da Religião

Romanos 7:7-13 A Lei e o Romantismo O Significado da Religião

Romanos 7:14-25 A Lei e o Pietismo A Realidade da Religião

De igual modo, na análise do § 17 de Church Dogmatics ele percebe uma

estrutura tripla que inclui uma argumentação dialética, já prefigurada pelo termo

alemão Aufhebung, que se evidencia nos tópicos no texto: 1) o problema da religião

na teologia; 2) religião como descrença (tese); 3) a verdadeira religião (antítese). 76 Cf. Karl Barth, On Religion: the revelation of God as the Sublimation of Religion. Translated and Introduced by Garret Green. London/New York: T&T Clark, 2006. 77 Cf. Garret Green, Challenging the Religious Studies Canon: Karl Barth's Theory of Religion. The Journal of Religion, v. 75, n. 4, out. 1995, p. 475.

23

Green conclui que o grande equívoco da interpretação da religião em Barth ocorre

quando é destruído o equilíbrio entre os vetores da tese e antítese. Portanto, tomar

suas declarações fora do contexto dessa estrutura pode levar às conclusões errôneas

de que Barth advoga a abolição da religião ou nega que o cristianismo seja uma

religião.

1.3.3. Percurso bibliográfico e metodológico de Dietrich Bonhoeffer

O estudo do pensamento de bonhoefferiano não pode estar separado do

contexto de sua vida. Em Bonhoeffer teologia e biografia se misturam e andam de

mãos dadas como nenhum outro teólogo do século XX.78 Isso está evidente não

apenas em seu pensamento, mas também no caráter de suas obras. Em termos de

pensamento, um exemplo muito elucidativo dessa realidade é a sua própria crítica da

religião, que ficou inacabada por conta de sua morte prematura. Talvez, se ele

vivesse algum tempo mais, suas idéias acerca do cristianismo arreligioso poderiam

ser melhor delineadas. No que diz respeito às características de suas obras, deve-se

destacar o aspecto epistolar de sua teologia – por razões de conveniência ou

necessidade –, que demanda o reconhecimento do caráter fragmentário dos escritos

bonhoefferianos.79

Bonhoeffer (1906-1945) nasceu em Breslau, cidade natal de Schleiermacher.

Curiosamente, enquanto Schleiermacher julgou ter encontrado na religião

(sentimento humano de absoluta dependência) o caminho verdadeiro do cristianismo

no período romântico, o conterrâneo Bonhoeffer, em sentido oposto, considerou “ter

achado na não-religião uma oportunidade para a fé em sua época tecnológica”.80 Sua

família era da alta burguesia, sendo seu pai psiquiatra e neurologista. Em 1923, com

17 anos de idade, Bonhoeffer iniciou seus estudos teológicos em Tübingen e no

mesmo ano seguiu para Berlim. Seu precoce talento impressionou A. Harnack, que

78 Cf. R. Gibellini, A Teologia do Século XX, op. cit., p. 106. 79 Érico João Hammes, Cristologia e Seguimento em Dietrich Bonhoeffer. Teocomunicação, v. 21, n. 94, 1991, p. 507. Na introdução de uma compilação de cartas e diários de Bonhoeffer, Alemany afirma que “não é casual o fato de que o primeiro e mais forte impacto produzido pelo pensamento de Dietrich Bonhoeffer ao ser conhecido além das fronteiras de seu país e de sua igreja, foi exercido precisamente por um punhado de cartas.” (Dietrich Bonhoeffer, Redimidos para lo humano: cartas y diarios [1924-1942]. In: José J. Alemany [Org.]. Salamanca: Sigueme, 1979, p. 11). 80 André Dumas, Dietrich Bonhoeffer: uma igreja para os não religiosos. In: André Dumas, Jean Bosc, e Maurice Carrez (orgs.), Novas fronteiras da teologia: teólogos protestantes contemporâneos. São Paulo: Duas Cidades, 1969, p. 101.

24

queria fazer de Bonhoeffer um historiador da igreja, mas o jovem estudante tinha

interesse em outra área. Em 1927, aos 21 anos, Bonhoeffer concluiu seu doutorado

em teologia sistemática, ao escrever Sanctorum Communio, publicada em 1930.

Nesta dissertação, sua análise eclesiológica da estrutura comunitária da igreja

procurou combinar as divergentes perspectivas do “historicismo e a sociologia de um

lado, e a teologia da revelação de outro”.81 Em outras palavras, Bonhoeffer buscava

conciliar suas duas maiores influências: a teologia liberal - aqui expressa pelo

historicismo de Ernest Troeltsch – e a teologia dialética de Karl Barth. Se para o

ponto de vista sociológico de Troeltsch, a igreja era definida como uma comunidade

empírica de pessoas, e para a teologia de Barth a igreja representa uma comunidade

espiritual daqueles que recebem a Palavra de Deus; a síntese de Bonhoeffer em

Sanctorum Communio indicava que a igreja é um fenômeno espiritual, mas também

sociológico. Tal síntese eclesiológica se dá através da perspectiva cristológica: a

igreja é “Cristo existindo como comunidade”.

Após um ano de atividade pastoral em Barcelona, Bonhoeffer retornou a

Berlim em 1929 para habilitar-se82 ao magistério. Se na dissertação anterior o

assunto foi a realidade da igreja, agora o tema foi a concretude da revelação. A

primeira reuniu teologia e sociologia, a segunda reuniu teologia e epistemologia. Akt

und Sein (1930 - publicada em 1931 - chamada a partir de agora de Act and Being),

buscou reunir dois paradigmas filosóficos usados na teologia para a compreensão da

revelação: a filosofia transcendental do ato e a filosofia do ser (ontologia). Sua

educação em Berlim havia chamado sua atenção para a importância que o

transcendentalismo de Kant e a ontologia de Heidegger, para as questões teológicas.

Com efeito, ele suspeitava que Barth afirmava a majestade de Deus a partir do

transcendentalismo kantiano. Assim, parece que ele desejava superar a posição de

Barth, que entendia a revelação apenas como ato, mas também a ontologia da

ortodoxia católica e protestante, que considera que a revelação já ocorreu de uma vez

por todas, estando entificada na doutrina.83 Ele procurava reunir “irmãos hostis”,

teólogos do ato e teólogos do ser - barthianos e luteranos.84 Para Bonhoeffer, a revelação já aconteceu e, ao mesmo tempo, é superveniente [...] ela não é ou ato ou ser, e sim ato e ser: como ser, já aconteceu, e dessa forma

81 Eberhard Bethge, Dietrich Bonhoeffer: a biography. Minneapolis: Fortress Press, 2000, p. 82. 82 Na Alemanha, para que se tornar catedrático é preciso, normalmente, preencher dois pré-requisitos: escrever outra tese após o doutorado (habilitação) e ser convidado pela Universidade. 83 R. Gibellini, A Teologia do Século XX. op. cit., p. 107. 84 Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 133.

25

garante-se a continuidade; como ato, é superveniente e acontece sempre de novo, assegurando assim a existencialidade.85

Vistos em conjunto, Act and Being e Sanctorum Communio contêm muitas

idéias incipientes que seriam desenvolvidas e aplicadas, quinze anos depois, na

“interpretação arreligiosa” das cartas da prisão.86 Além disso, nestas duas obras

bonhoefferianas, Barth sempre aparece como uma das principais referências.

Embora habilitado para o ensino, antes de assumir função de docência em

teologia sistemática na Universidade de Berlim, Bonhoeffer passou um ano no Union

Theological Seminary em Nova York para estudos suplementares. De volta a Berlim

em 1931 ele se envolveu em atividades docentes, pastorais e ecumênicas. Se o

caminho seguido por Barth foi da atividade pastoral à teologia, o percurso de

Bonhoeffer foi exatamente o inverso: “da cátedra universitária à atividade pastoral,

na qual o teólogo acabará por se empenhar totalmente.”87 Entre 1932 e 1933 ele

ministrou um curso na Universidade de Berlim sobre os três primeiros capítulos de

Gênesis. Ao tratar da Criação e Queda (Schöpfung und Fall, publicado em 1933 – a

partir de agora será chamado de Creation and Fall), a obra se divide em três partes

que atendem a cada um dos três primeiros capítulos de Gênesis, e há menções ao

tema da religião principalmente na terceira parte.

No verão de 1933 Bonhoeffer ministrou o curso de Cristologia em Berlim.

Este foi o “ponto alto da carreira acadêmica de Bonhoeffer”88. Embora os

manuscritos originais das aulas tenham se perdido, Bethge pôde reconstruí-las a

partir dos apontamentos de vários alunos.89 Historicamente esse curso coincide “com

o turbulento período de consolidação do nazismo no poder e da submissão da Igreja

evangélica à política racista do mesmo”90. O prólogo da obra reconstruída por Bethge

revela que as aulas tiveram direta ligação com os acontecimentos políticos, mesmo

que isso nunca fosse explicitamente mencionado. A nota tônica do estudo foi a

afirmação do senhorio do “Cristo presente” como única autoridade a ser seguida.

Uma forte advertência para a igreja submissa ao estado nazista. Para ele, “a questão

cristológica só pode estabelecer-se cientificamente no âmbito da Igreja”, pois é “ali

onde se pressupõe que subsiste com pleno direito a pretensão de Cristo de ser o 85 Ibid., p. 107-108. 86 Cf. Ibid., p. 135. 87 R. Gibellini, A Teologia do Século XX. op. cit., p. 108. 88 E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer: a biography. op. cit., p. 219. 89 O material, em sua primeira edição, foi publicado na década de 1960. 90 E. Hammes, Cristologia e Seguimento em Dietrich Bonhoeffer. op. cit., p. 498.

26

Logos de Deus, ali onde se pergunta por Deus porque já se sabe quem é Deus”91.

Mas esta tarefa não estava sendo cumprida. A igreja não representava um lugar

privilegiado para se encontrar com Cristo. No contexto político alemão, ela se tornou

herética ao capitular ante a imposição discriminatória do nazismo, olvidando, o

senhorio exclusivo de Cristo.92

A constatação do fracasso da igreja já estava presente em 1932. Quando

participou do International Youth Conference na Suíça, seu tema foi: “A Igreja está

morta”. Seu argumento teve confirmação em 1933, quando Hitler assumiu o poder e

a Igreja evangélica oficial aceitou o parágrafo ariano que proibia a ordenação de

pastores de origem judaica. Com todos estes eventos, Bonhoeffer hesitou quanto ao

caminho que deveria escolher: “Poderia permanecer na Universidade. Mas a ciência

universitária lhe parecia agora um tanto fora de tempo. Poderia exercer o pastorado,

mas a igreja alemã aceitara o parágrafo ariano”93. É bem verdade que nessa época

floresceu a Igreja Confessante, que pretendia ser uma versão cristã não-nazista, mas

Bonhoeffer duvidava que ela pudesse extrapolar a linha intra-eclesiástica.94 Por isso,

na segunda metade de 1933 ele aceitou o cargo de pastor na igreja alemã de Londres,

com um duplo propósito: “relacionar a Igreja Confessante alemã com o movimento

ecumênico e, ao mesmo tempo, obrigar o movimento ecumênico a viver em estado

de confissão e não apenas em estado de amizade inter-eclesiástica.”95

Mas em 1935, a pedido da Igreja Confessante, Bonhoeffer retornou à

Alemanha para assumir um clandestino seminário para pastores desta igreja, em

Finkenwald. O seminário esteve em funcionamento até 1937, quando foi fechado

pelo nazismo e Bonhoeffer foi proibido de ensinar ou publicar livros. No período em

que dirigiu o seminário, Bonhoeffer escreveu dois livros: Nachfolge (publicado em

1937 - traduzido para português como Discipulado) e Gemeinsames Leben

(publicado em 1939 - traduzido em português como Vida em Comunhão). Com

Nachfolge, que literalmente significa “seguimento”, a “cristologia acadêmica torna-

se cristologia prática”96. A tônica da obra é que o discipulado não se caracteriza pela

assimilação de um conteúdo doutrinário, mas pela obediência. Se no final do 91 Dietrich Bonhoeffer, Quien es y quien fue Jesucristo? Su historia y su misterio. Barcelona: Ariel, 1971, p. 17. 92 Cf. E. Hammes, Cristologia e Seguimento em Dietrich Bonhoeffer. op. cit., p. 499-500. 93 A. Dumas, Dietrich Bonhoeffer: uma igreja para os não religiosos. op. cit., p. 104. 94 Dumas explica que “a igreja confessante nunca se constituiu em igreja autônoma. Sempre foi um movimento de confissão dentro das igrejas evangélicas alemãs.” (Ibid., p. 105) 95 Ibid. 96 R. Gibellini, A Teologia do Século XX. op. cit., p. 109.

27

primeiro período de sua vida, conforme retratavam Sanctorum Communio e Act and

Being, Bonhoeffer pressentia que a teologia não se fundamentava suficientemente na

igreja, no final da segunda etapa da vida, conforme retratava Discipulado, ele

“achava que a confissão da igreja não se preocupava o bastante com o mundo”.97

À medida que o contexto político alemão tornava-se cada vez mais

conturbado, e os mecanismos de correção social apresentavam-se impotentes,

Bonhoeffer convencia-se de que o pacifismo era uma postura ilegítima. Era

necessário viver a fé cristã na co-responsabilidade social e política, usando, até

mesmo, o recurso extremo da conspiração contra a autoridade totalitária. Logo, em

1938 Bonhoeffer iniciou seus contatos com a resistência alemã e quando a guerra se

iniciou em 1939, ele resolveu entrar para o serviço de contra-espionagem. Tais ações

o levaram a refletir demoradamente nas questões éticas. Assim, no período de contra-

espionagem (1939 a 1943) Bonhoeffer se dedicou à produção de Ética98. Acusado de

alta traição, Bonhoeffer foi preso em 5 de abril de 1943. No cárcere, ele manteve

intensa correspondência com a noiva, com os pais e com Bethge. A coletânea de

cartas da prisão, que abarca os anos de 1943 a 1945, apresenta idéias teológicas

fragmentárias e inacabadas, mas que constituem um importante legado da teologia

bonhoefferiana, apontando para o seu último estágio de amadurecimento teológico. É

nesse material que Bonhoeffer explicita as idéias do cristianismo arreligioso.

Estudada a partir do ponto de vista da continuidade, a teologia bonhoefferiana

deve ser entendida através do conjunto de suas obras. Uma leitura isolada de seus

textos pode levar a reduções ou distorções de suas idéias. Isso não representa, no

entanto, uma desconsideração das diversas etapas de evolução de seu pensamento.

Essa, talvez, seja uma forma equilibrada de reconhecer a continuidade e a novidade.

Em cada uma das etapas de seu pensamento um elemento novo é acrescentado aos

que já se encontram presentes anteriormente. O resultado é a ampliação do

significado de todos os elementos, antigos e novos.99 Segundo J. Godsey a teologia

de Bonhoeffer pode ser dividida em três fases: Fundamentação teológica, Aplicação

teológica e Fragmentação teológica. A primeira fase (1906-1931) corresponde à

produção acadêmica de Sanctorum Communio e Act and Being, a segunda (1932-

97 A. Dumas, Dietrich Bonhoeffer: uma igreja para os não religiosos. op. cit., p. 106. 98 Por causa de sua prisão, Bonhoeffer não conseguiu terminar esta obra (que considerava a grande obra de sua vida). Ela foi editada, a partir de seus manuscritos, por Bethge em 1948. 99 Cf. Prócoro Velasques Filho, Uma Ética para os nossos dias: origem e evolução do pensamento ético de Dietrich Bonhoeffer. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 1977, p. 18.

28

1939) compreende as obras de interpretação das Escrituras, tais como Creation and

Fall, Discipulado, Tentação e Vida em Comunhão e, finalmente, a terceira fase

(1940-1945) corresponde à produção fragmentada de Ética e as cartas da prisão.100

De forma geral, em termos metodológicos, a evolução de seu pensamento

compreende a relação entre cristologia e eclesiologia. Até 1931 a cristologia se

subordinava à eclesiologia. Contudo, a partir desta época a eclesiologia foi submetida

à cristologia, que assume a centralidade de sua teologia.101 Após um panorama geral

do percurso bibliográfico e metodológico de Bonhoeffer é importante sublinhar a sua

crítica da religião, a partir da perspectiva de alguns de seus comentaristas.

1.3.4. A crítica bonhoefferiana da religião na compreensão de seus

comentaristas

Talvez, o intérprete de Bonhoeffer mais conhecido seja seu amigo, cunhado,

biógrafo, editor e comentarista Eberhard Bethge. Dentre seus escritos,

principalmente dois deles são fundamentais para esta dissertação. O primeiro é a

volumosa biografia de Bonhoeffer. O outro é o ensaio intitulado Bonhoeffer’s

Christology and His “Religionless Christianity”. Na biografia, ele afirma que “em

Tegel Bonhoeffer nunca intentou [...] escrever uma monografia histórica ou

sistemática do fenômeno da religião”102. Na maior parte de sua vida e teologia

Bonhoeffer seguiu a tradicional distinção barthiana entre fé e religião. Essa visão

tornou-se comum entre um grande número de teólogos na Igreja Confessante.

Contudo, nos escritos da prisão Bonhoeffer trata o termo “religião” de forma

diferente de Barth. Enquanto o teólogo suíço considerou a religião como uma

característica basicamente humana, para o teólogo alemão ela é historicamente

transitória. Bethge também levanta algumas características da concepção

bonhoefferiana da religião: metafísica, individualismo, parcialidade, privilégio, tutela

e dispensabilidade.103 Em seu ensaio, Bethge coloca a interpretação arreligiosa do

cristianismo dentro de uma moldura cristológica. Isso demonstra que a visão 100 Cf. John D. Godsey, The theology of Dietrich Bonhoeffer. London: SCM, 1960. De forma semelhante, A. Dumas também entende a vida e teologia de Bonhoeffer em 3 estágios que se aproximam em muito da classificação de Godsey: o Bonhoeffer universitário, o Bonhoeffer confessante e o Bonhoeffer questionador do futuro (Cf. A. Dumas, Dietrich Bonhoeffer: uma igreja para os não religiosos. op. cit., p. 108). 101 Cf. P. Velasques Filho, Uma Ética para os nossos dias. op. cit., p. 17. 102 E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer: a biography. op. cit., p. 871. 103 Cf. Ibid., p. 872-879.

29

arreligiosa não representa uma ruptura em seu pensamento, mas está diretamente

relacionada com seu pensamento anterior. Nesse sentido, a compreensão cristológica

bonhoefferiana é a base para a construção de sua crítica da religião.104

O teólogo britânico J. Godsey foi um dos precursores na interpretação do

pensamento de Bonhoeffer no mundo de fala inglesa. Ele também entende o

cristianismo arreligioso como uma espécie de clímax da cristologia bonhoefferiana.

Godsey ressalta que todas as vezes que Bonhoeffer explica o seu conceito de

religião, ele se refere a um pensamento metafísico, interior, subjetivo e

individualista. Logo, a interpretação religiosa do cristianismo seria uma espécie de

sistema de verdades abstratas.105 Além disso, Godsey advoga que “o problema da

interpretação arreligiosa não é meramente hermenêutico, mas envolve toda a

existência da própria igreja. Ela não é uma interpretação que se preocupa com a

religião, mas com a vida.”106 Por isso, a interpretação dos conceitos bíblicos não

deveria ser feita numa linguagem metafísica ou psicológica, nem em termos de um

sistema de doutrinas abstratas, ou da experiência interna dos indivíduos, mas em

termos de um envolvimento responsável com a vida. Para Godsey, Bonhoeffer

focaliza a crítica da religião principalmente em termos da interpretação e linguagem

da psicologia ou psicoterapia e da filosofia existencialista.

No continente americano um dos principais intérpretes de Bonhoeffer é

Clifford J. Green. Para ele, “Bonhoeffer separa completamente o cristianismo e a

‘religião’.”107 Além disso, ele percebe uma diferenciação notável entre a

compreensão de religião em Barth e em Bonhoeffer. Enquanto Barth utiliza

categorias teológicas como “idolatria” e “auto-justificação” em sua crítica da

religião, Bonhoeffer aborda a religião de um modo mais antropológico, numa forma

específica da história. Desse modo, Bonhoeffer descreve maneiras particulares em

que pessoas “religiosas” se comportam na situação atual, ao invés de propor uma

teoria geral da religião. Logo, as razões para Bonhoeffer separar completamente o

cristianismo da religião apresentam diferenças em relação ao pensamento de Barth,

principalmente porque Bonhoeffer possui uma definição ou compreensão da religião

104 Cf. E. Bethge, Bonhoeffer's Christology and His “Religionless Christianity”. In: Peter Vornink II (org.), Bonhoeffer in a World Come of Age, Philadelphia: Fortress Press, 1968, p. 46-72. 105 Cf. J. Godsey, The theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 249. Curiosamente, esse trabalho foi escrito inicialmente como uma dissertação orientada por Karl Barth em 1958 (cf. Clifford J. Green, Bonhoeffer: a theology of sociality. Grand Rapids / Cambridge: William B. Eerdmans, 1999, p. 11). 106 J. Godsey, The theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 264. 107 C. Green, Bonhoeffer, op. cit., p. 258.

30

que é distinta.108 A percepção da crítica bonhoefferiana da religião a partir de uma

perspectiva antropológica permite que Green faça uma correlação entre a crítica

bonhoefferiana e a crítica não teológica da religião na modernidade, tais como a

crítica freudiana e a crítica marxista da religião.

Outro importante intérprete é o teólogo francês André Dumas, que denomina

Bonhoeffer como teólogo da realidade. Ele entende que Bonhoeffer representa uma

resposta do século XX “a duas grandes vozes alemãs do século XIX: Feuerbach e

Nietzsche”109. Enquanto esses pensadores enfatizam que a figura de Deus se

sustentava a partir da fraqueza humana, Bonhoeffer afirmava exatamente o inverso: é a fraqueza de Jesus Cristo crucificado que encontra o homem cheio de poder. Se as religiões tendem a humilhar o homem diante da onipotência divina, o cristianismo, nesse caso, não pode ser considerado religião. Não procura como as religiões importunar os homens, que já vivem tão abandonados, com as questões últimas, situadas nos confins do mundo, tais como o mal, a morte e o além, mas quer, bem no centro da vida, pregar e mostrar um Deus crucificado.110

Ele comenta que, em Bonhoeffer, “Jesus Cristo é único lugar onde se pode

ver Deus e o mundo como não separados”. Por isso, “o cristianismo não se pode

confundir com as religiões de mistério, que ensinam uma redenção bem longe da

terra. A igreja viverá, como Jesus Cristo, a responsabilidade do real até seu último

limite”111. Para Dumas, Bonhoeffer se preocupa mais do que Bultmann e Barth, com

os problemas que estão ligados à realidade, e não tanto com as questões relativas ao

conhecimento ou inteligibilidade, como aqueles. Desse modo, para fugir do risco do

limitado intelectualismo que ronda os que estão muito preocupados com as

categorias do saber, Bonhoeffer busca conceber uma eclesiologia a partir do mundo

não religioso. “A confissão sem imitação acaba em puro verbalismo idealista.”112

Por sua vez, H. Zahrnt percebe uma conexão entre a crítica da religião de

Barth e de Bonhoeffer. Para ele, Bonhoeffer assimilou a crítica barthiana que

distinguia de forma radical a religião humana da revelação divina. Contudo, o autor

entende que Bonhoeffer não ficou limitado a essa compreensão. Especialmente nas

cartas da prisão ele foi decisivamente além da crítica barthiana. Isso porque, na visão

de Zahrnt, Barth restringiu seu criticismo da religião ao campo da dogmática, mas

108 Cf. Ibid., p. 259. 109 André Dumas, Dietrich Bonhoeffer: uma igreja para os não religiosos. op. cit., p. 99. 110 Ibid., p. 99-100. 111 Ibid., p. 111. 112 Ibid., p. 114.

31

Bonhoeffer ampliou seus traços, delineando-a a partir de suas conclusões práticas, e

relacionando-a com a situação histórica concreta. Desse modo, Bonhoeffer chegou à

conclusão de que a religião era apenas uma expressão transitória do cristianismo, que

fora historicamente condicionada.113 Quanto à hermenêutica utilizada para a

interpretação não-religiosa dos conceitos bíblicos, Zahrnt acredita que o fato de que

Bonhoeffer nunca tenha chegado a uma conclusão acerca desse assunto pode ser

explicado não apenas através da constatação das circunstâncias desfavoráveis da

prisão, mas sobretudo a partir do reconhecimento da complexidade desse tipo de

empreitada. Por conta das transformações e mudanças constantes na sociedade, a

interpretação não-religiosa da Bíblia não é algo que uma pessoa realiza ou deixa de

realizar, não é algo acabado, definitivo, mas continua a requerer esforços renovados.

Isso não significa que a interpretação não-religiosa proposta por Bonhoeffer não

possui nenhum fundamento. A chave para essa interpretação é, em realidade, uma

interpretação cristológica. Seu tema básico é a teologia crucis.114

Outro importante intérprete alemão é Ralf K. Wüstenberg.. Ao considerar a

grande quantidade de estudos e conclusões acerca do pensamento bonhoefferiano, ele

afirma que o termo “arreligioso” se tornou um slogan degenerado que foi aplicado às

mais diversas tendências teológicas, onde cada um buscou interpretá-lo à sua

maneira. Mas ele adverte que todos aqueles que falham em perceber o fundamento

cristológico de Bonhoeffer, o interpretam de um modo profundamente incorreto,

especialmente no tópico da interpretação não-religiosa. Todavia, ele também entende

que embora muitos autores tenham colocado devidamente a noção cristológica como

base para o entendimento da interpretação não-religiosa, existem poucas indicações

acerca do que isso significa concretamente.115 Assim, ele justifica a importância de

seu estudo, que aponta a teologia da vida como categoria central da teologia

bonhoefferiana da prisão.

No contexto latino americano, o teólogo Gustavo Gutiérrez escreveu um texto

sobre Bonhoeffer, apontando para os limites da teologia moderna.116 Ele explica que

a primeira grande guerra (1914-1918) questionou o otimismo e a segurança fácil da

sociedade burguesa, e pôs fim à chamada la belle époque. Assim, a teologia liberal, 113 Cf. H. Zahrnt. The question of God. op. cit., p. 134. 114 Cf. Ibid., p. 157. 115 Cf. Ralf K. Wüstenberg, A theology of Life: Dietrich Bonhoeffer's religionless Christianity. Grand Rapids, MI / Cambridge U.K.: William B. Eerdmans, 1998, p. xiv. 116 Cf. Gustavo Gutiérrez, Os limites da teologia moderna: um texto de Bonhoeffer. In: A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 314-328.

32

elaborada aos moldes da Ilustração e da burguesia, entrou em declínio. Com efeito,

os esforços de Barth, Bultmann e Tillich destacam-se pela busca de novos caminhos

teológicos que sejam mais promissores que o imediato passado teológico falido.

Entretanto, “Bonhoeffer considera que nenhum deles consegue realmente pegar o

touro pelos chifres, pois nenhum responde realmente ao mundo maior, resultando em

um longo processo histórico que tem suas raízes na baixa Idade Média.”117 Ao

retornar ao caminho trilhado por Schleiermacher, a ênfase na interpretação religiosa

do mundo de Tillich foi considerada inadequada. Por sua vez, Barth, embora tenha

sido elogiado como aquele que iniciou a crítica da religião, não conseguiu levar essa

crítica até as últimas conseqüências. Nesse contexto, Gutiérrez traça as principais

diferenças da crítica da religião em Barth e em Bonhoeffer. Enquanto que para Barth

a religião era vista como resultado do esforço humano, em Bonhoeffer a

interpretação religiosa do cristianismo era historicamente situada, um fenômeno

ocidental que fora superado pela maioridade da humanidade. Se para Barth a religião

era algo inerente ao ser humano, para Bonhoeffer ela pertencia a uma etapa histórica: para Barth, a religião é de certo modo uma tentativa de apoderar-se de Deus. Para Bonhoeffer, trata-se muito mais de um modo de entender Deus como dominador da pessoa humana. No primeiro caso, poder do ser humano sobre Deus; no segundo, poder de Deus sobre o ser humano.118

1.4. Resumo do capítulo

Em relação à dissertação em geral, este capítulo assume um caráter contextual

dos principais conceitos e idéias abordados neste estudo. O primeiro conceito

discutido foi a noção de religião no ambiente ocidental, desde o uso do termo religio

no período antigo até a formulação moderna do termo “religião”. A ênfase principal

dessa discussão foi que na modernidade houve uma redução da compreensão da

religião aos seus aspectos mais objetivos, sobretudo no âmbito intelectual, que

permitiram não apenas a abstração conceitual da religião, mas também sua crítica. O

segundo conceito discutido foi a crítica da religião na modernidade. A partir de uma

visão panorâmica foi descrito um longo processo que envolveu filósofos, sociólogos,

psicólogos, antropólogos e outros. À semelhança do reducionismo do conceito de

religião na modernidade, a crítica da religião também representou uma empreitada

117 Ibid., p. 317. 118 Ibid., p. 323-324.

33

reducionista deste fenômeno, pois contemplou ferramentas metodológicas de corte

racionalista, que se fixavam apenas nos aspectos mais objetivos da religião.

A seguir, o capítulo considerou a crítica moderna da religião na teologia,

especificamente em Barth e Bonhoeffer. Em relação ao percurso bibliográfico e

metodológico de Karl Barth foram destacadas as duas produções mais importantes de

sua teologia, que marcam respectivamente as duas principais fases (normalmente

chamadas de “dialética” e “analogia da fé”) de seu pensamento: Carta aos Romanos

e Church Dogmatics. A partir da perspectiva de seus comentaristas, alguns traços da

crítica barthiana da religião foram salientados. Estes podem ser divididos em dois

blocos principais: (1) o conteúdo da crítica; (2) o objeto da crítica. Em termos de

conteúdo, a crítica de Barth compreende a religião como um tipo de arrogância

humana que pretende chegar a Deus. Por isso, ela se contrapõe à revelação de Deus,

à fé e à graça, e se identifica com a superstição, a idolatria e a auto-justificação.

Barth enfatiza que a revelação de Deus atua como a abolição e elevação (dialética

hegeliana de aufhebung) da religião. Esta é a noção básica da justificação pela fé

aplicada à religião: ela precisa ser “justificada” para ser verdadeira religião. Com

respeito ao objeto da crítica, muitos comentaristas sublinham que o principal alvo do

ataque de Barth é a igreja, que havia se tornado “religiosa”.

No percurso bibliográfico e metodológico de Bonhoeffer foi indicada a noção

de continuidade de sua teologia em relação às fases de seu pensamento. Suas obras

podem ser agrupadas em três fases principais: fundamentação, aplicação e

fragmentação teológica. No que se refere à crítica bonhoefferiana da religião, seus

comentaristas destacam principalmente (1) as características da noção de religião e a

base da interpretação arreligiosa; (2) a herança barthiana da crítica da religião e suas

diferenças em relação a Barth. As características da religião em Bonhoeffer parecem

estar ligadas a um tipo de pensamento metafísico e individualista. Desse modo,

enquanto a interpretação religiosa do cristianismo seria uma espécie de sistema de

verdades abstratas, sua interpretação não-religiosa possui uma moldura cristológica.

Com relação à herança barthiana, na maior parte de sua vida e teologia Bonhoeffer

seguiu a tradicional distinção de Barth entre fé e religião, mas nos escritos da prisão

existem variações entre eles. Ali, a religião não parece ser para Bonhoeffer uma

característica humana, mas algo historicamente transitório. Ademais, enquanto Barth

utiliza categorias teológicas para sua crítica, Bonhoeffer adota uma linguagem mais

antropológica. Logo, a crítica de Barth se restringiu ao campo da dogmática, ao

34

passo que Bonhoeffer ampliou seus traços, delineando-a através de conclusões

práticas e da situação histórica concreta.

Portanto, após essa visão contextual abrangente, cabe um estudo mais detido

da crítica da religião de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer a partir de seus próprios

textos, que será realizado nos próximos capítulos.

CAPÍTULO II

A CRÍTICA DA RELIGIÃO EM KARL BARTH

Para a compreensão da crítica da religião no pensamento de Karl Barth, faz-

se necessário examinar os dois principais textos onde ele trata sobre este tema. O

primeiro deles é Carta aos Romanos - obra que trouxe Barth para o cenário da

teologia do século XX – e o § 17 de Church Dogmatics, que é intitulado em sua

tradução convencional como “The Revelation of God as the Abolition of Religion”.

2.1 A crítica da religião em Carta aos Romanos

De maneira geral, o texto de Carta aos Romanos é a mensagem da

justificação pela fé, conforme defendida pelos reformadores protestantes do século

XVI, com uma roupagem existencialista dos séculos XIX e XX. Além de incluir

várias citações de Lutero e Calvino nesta obra, no prefácio à 2ª edição (1921) Barth

afirma sua admiração pela exegese de Lutero e a interpretação sistemática de

Calvino.119 Do mesmo modo, existem na obra inúmeras referências a Kierkegaard,

bem como uma ênfase existencial na interpretação de temas bíblicos.120 Também no

prefácio à 2ª edição, Barth declara: “se eu tenho um sistema [metodológico], este é

119 Para esse prefácio, utilizamos a versão em inglês (Karl Barth, The Epistle to the Romans. London: Oxford University Press, 1965, p. 7), pois a versão brasileira de Carta aos Romanos inclui apenas os prefácios à 1ª, 5ª e 6ª edições. 120 Barth entende que a chave de compreensão dos temas bíblicos centrais não é histórica, mas existencial: a queda de Adão não representa um evento histórico, segundo o qual a humanidade atualmente sofre suas conseqüências, mas é um pecado transcendental; semelhantemente, a justificação que Cristo trouxe ao mundo não se refere a uma data histórica, mas é ubíqua, perene e transcendental (cf. K. Barth, Carta aos Romanos. São Paulo: Novo Século, 2005, p. 265). Do mesmo modo, para ele, a visão escatológica do Novo Testamento não trata de uma noção temporal, nem se alinha à visão de um fim do mundo catastrófico (cf. Ibid., p. 766). A ressurreição futura “alcança a criatura que recebeu a graça, na totalidade de seu ser. [...] Este ‘futuro’ não tem o sentido vulgar de tempo, como se devêssemos esperar por datas, para a sua efetivação; esse ‘futuro’ pode referir-se e de fato envolve tanto o passado como o presente e o futuro.” (Ibid., 343). Por isso, Barth considera que os temas bíblicos devem ser considerados, na melhor das hipóteses como parábolas, visto que as palavras humanas são mera analogia (cf. Ibid., p. 766-767), pois se situam na ambigüidade da realidade humana (cf. Ibid., p. 344). Este é o reconhecimento da “inadequação da fala humana para expressar a verdade divina” (Ibid., p. 520).

36

limitado ao reconhecimento do que Kierkegaard chamou de ‘infinita diferença

qualitativa’ entre tempo e eternidade, e minha consideração de que há nisto um

significado tanto negativo quanto positivo: ‘Deus está no céu, e tu estás na terra’.”121

Portanto, a idéia central que permeia toda a Carta aos Romanos é o conceito

kierkegaardiano de “infinita diferença qualitativa” aplicado ao contexto da relação

entre Deus e o ser humano.122

Por sua vez, a religião é um tema recorrente em Carta aos Romanos. Ele

praticamente aparece nas principais discussões presentes no conteúdo da obra, e está

diretamente ligado ao arcabouço do assunto da justificação pela fé e ao pressuposto

da infinita diferença qualitativa. No prefácio à 5ª edição (1926), Barth relata a

surpresa que teve quando percebeu o inesperado impacto de seu livro na teologia da

época.123 Sua explicação para esse fato, então, resume-se na constatação de que esta

obra trouxe à luz algo que “a teologia e a Igreja de nosso tempo precisassem

ouvir.”124 O início do prefácio parece traduzir de forma sintética o que,

especificamente, precisava ser ouvido pela teologia e pela igreja: “tudo o que escrevi

contra a presunção humana – e por demais humana – sobretudo sobre a vanglória

religiosa, sua causa, sua roupagem, seu efeito”.125 Esta afirmação reúne os principais

elementos que se conectam ao conceito de religião presentes nesta obra - presunção

humana e vanglória –, bem como suas características e implicações – causa,

roupagem e efeito.

Como o tema da religião aparece em praticamente todos os assuntos

discutidos no livro, para fins didáticos, este trabalho buscou dividir a análise deste

tema a partir de alguns pontos centrais nos quais há uma grande concentração de

referências à religião que atravessam a apresentação de temas que se relacionam

diretamente com ela. Tal divisão não pressupõe que sejam encontradas diferentes

percepções em relação à religião. Muito pelo contrário, há uma constante repetição

dos mesmos conceitos. Mas em cada uma delas, algumas nuanças podem ser

121 Prefácio de K. Barth à 2ª edição, em inglês (The Epistle to the Romans. op. cit., p. 10). 122 Barth traça um paralelo direto entre este conceito kierkegaardiano, que promove a representação de Deus em sua “sua total obscuridade” (K. Barth, Carta aos Romanos. op. cit., p. 148), e a ênfase dos reformadores protestantes no “Deus absconditus”. Ele assevera que o cerne da Epístola aos Romanos é que o Deus absconditus é o Deus revelatus em Jesus Cristo (cf. Ibid., p. 649). Embora não se possa negar que Barth discute o Deus revelatus, é evidente na leitura de seu texto que há uma ênfase bem maior no Deus absconditus, o Deus “desconhecido”. 123 Cf. Ibid., p. 16. 124 Ibid. 125 Ibid., p. 15. Grifo nosso.

37

percebidas, permitindo uma visão mais abrangente e detalhada da religião e sua

crítica.

A primeira abordagem a ser privilegiada é a relação da religião com o

conceito central da “infinita diferença qualitativa” entre Deus e a realidade humana.

De fato, esta relação fornece a principal e mais ampla noção de religião que permeia

toda a obra. Por sua vez, as demais abordagens contribuem na indicação de

importantes detalhes e particularidades do entendimento da religião: a ligação entre

religião e circuncisão, conforme esboçada na experiência de Abraão; a conexão da

religião e a lei; e a correspondência entre a religião e a igreja.

2.1.1 A Religião e a Infinita diferença qualitativa entre Deus e o ser humano

Logo no início de sua obra, Barth assevera que a mensagem transmitida por

Paulo na Carta aos Romanos é o evangelho de Deus. Esta não é uma mensagem

religiosa, ou notícia sobre a divinização humana, mas é a mensagem de um Deus

totalmente diferente do ser humano. Por isso, ninguém pode chegar a ter

conhecimento dele,126 pois as fontes do conhecimento humano são incapazes de

percebê-lo ou alcançá-lo. O conhecimento de Deus vem unicamente a partir dele

(revelação),127 e precisa ser recebido pelo ser humano através da fé.

Desse modo, não há choque nem concorrência entre o evangelho de Deus e as

teorias da ciência ou a sabedoria da cultura, pois a mensagem divina não é uma

verdade que está ao lado das outras, mas é a verdade que questiona as outras.128 A

verdade de Deus é totalmente distinta das verdades do mundo. Semelhantemente, o

poder e a força divina não representam a força da natureza – como uma espécie de

força suprema do mundo, a somatória de todas elas, ou a origem delas - nem da alma

humana, mas é algo totalmente diverso. O seu poder não é superior a elas, ele está

além delas.129 O ponto onde Barth pretende chegar com todas essas constatações

acerca da infinita distinção divina em relação ao ser humano, é o de que “Deus é o

Deus desconhecido”130.

126 Cf. Ibid., p. 28. 127 Para Barth, só é possível conhecer Deus a partir da revelação divina em Jesus Cristo (cf. Ibid., p. 30). 128 Cf. Ibid., p. 38. 129 Cf. Ibid., p. 39-40. 130 Cf. Ibid., p. 39.

38

O motivo pelo qual Deus é totalmente diferente e desconhecido se dá pelo

fato de que a unidade que o ser humano tinha com Deus foi profundamente destruída.

O ser humano está em cativeiro neste mundo. Não há luz adicional que possa ser

encontrada no aprofundamento do conhecimento humano. Assim, postular entender o

mundo em unidade com Deus, a partir de uma percepção que não venha unicamente

de Deus, representa uma condenável arrogância religiosa que, em realidade, produz

um afastamento ainda maior de Deus.131 Nesse contexto, pode ser entendido um

conceito básico do pensamento barthiano em sua interpretação de Romanos: a fé.

Para Barth, a fé representa “o respeito ante o incógnito divino, e o amor a Deus, com

plena consciência da diferença qualitativa entre Deus e os homens”132. Desse modo,

a “fé pressupõe a aceitação sem conhecimento”133, ela “é um salto no incerto, no

escuro, no espaço vazio”134. Barth cita Lutero: A fé orienta-se às coisas invisíveis; para dar a oportunidade à fé, é necessário que tudo o que se há de crer esteja oculto, e esse ocultamente é tanto mais profundo quanto o objeto da fé fica em franca oposição ao sentido da vista, da sensação dos sentidos, do senso, e da experiência.135

A pessoa que opta pela fé decide “abrir mão de sua confiança na sabedoria, na

ciência, nas coisas certas e palpáveis do mundo e do conforto que este oferece, para

depender exclusivamente da graça de Deus” 136. Logo, as expressões “abrir mão” e

“dependência” indicam o que Barth tem em mente quando fala de fé. Para ele, a fé

genuína “é vacuidade; é a verdadeira fé que se curva perante o que nunca haveremos

de ser, ou haveremos de ter ou poderemos fazer.”137 Em outros termos, “a fé é a fonte

que promove no homem a vontade de esvaziar-se; a fé é a comovida persistência na

negação.”138 Novamente, Barth cita Lutero: “Só o preso é liberto, só o fraco é

robustecido, só o humilde é exaltado; só o que está vazio se farta; apenas o nada se

torna algo”139.

A partir dessa percepção, a fé se apresenta como uma realidade que “não é,

jamais, idêntica à ‘religiosidade’”140. A contraposição barthiana entre fé e religião

131 Cf. Ibid., p. 41-42. 132 Cf. Ibid., p. 44. 133 Ibid., p. 127. 134 Ibid., p. 147. 135 Ibid., p. 43. 136 Ibid., p. 163. 137 Ibid., p. 132. 138 Ibid., p. 48. 139 Ibid., p. 50. 140 Ibid., p. 45.

39

implica que “toda experiência religiosa que se apresentar como sendo mais do que

um vazio, que pretender ter conteúdo e traduzir a posse ou o gozo de Deus”141

constitui “uma traição a Deus. E o nascedouro do ‘Não-Deus’, o surgimento dos

ídolos [...] esquece-se o homem de que tudo o que é passageiro, embora seja em

semelhança, é apenas semelhança. A glória de Deus é trocada pela imagem de seres

perecíveis”142. Assim, Barth aponta que quando a religião pretende possuir um

conteúdo ou posse de Deus, há o nascimento do Não-Deus, isto é, o surgimento dos

ídolos. Tal abordagem indica uma noção paralela ao texto onde Barth distingue a

mensagem de Deus e a mensagem religiosa, que se caracteriza pela divinização do

ser humano. Este paralelo se torna mais nítido quando Barth destaca que quando ignoramos [...] a separação que existe entre nós e Deus, é porque, ou não temos compreensão de nosso estado por absoluta insensibilidade espiritual e moral, ou é porque fazemos de Deus nosso igual, quer trazendo-o ao nosso nível ou fazendo-os iguais a ele [...] Levanta-se a meio caminho entre “cá e lá” entre nós e o totalmente outro, a neblina [d]a opacidade religiosa na qual [...] se erigem acontecimentos humanos animalescos em experiência divina.143

Esta chamada “neblina da opacidade religiosa” possui como elemento gerador

a loucura humana de que possa existir algum tipo de unidade ou possibilidade de

ligação entre Deus e os homens aquém da ressurreição,144 em outros termos, a

negação da infinita diferença qualitativa. O resultado disso é o rebaixamento de Deus

ao nível humano ou a ascensão humana ao nível de Deus, a divinização do ser

humano. Nesse caso, ocorre a idolatria, o surgimento do “Não-Deus”.

Nesse caso, quando o ser humano supõe colocar Deus no trono do mundo, ele

está, em realidade, entronizando a si mesmo. Ao afirmar sua crença em Deus, ele se

preocupa apenas com sua própria justificação, buscando honrar si mesmo e tirar

proveito disso. Sua religiosidade consiste na solene confirmação que faz de si

mesmo.145 Na perspectiva do autor, esta é a rebeldia humana que chama de Deus o

que, na realidade, representa o próprio ser humano. Servir a este deus significa viver

segundo os próprios desejos,146 pois em realidade “não se não se trata de Deus,

porém das nossas necessidades pelas quais queremos que Deus se oriente.”147 Para

141 Ibid., p. 61. 142 Ibid., p. 62. 143 Ibid., p. 60-61. 144 Cf. Ibid., p. 61. 145 Cf. Ibid., p. 52. 146 Cf. Ibid., p. 53. 147 Ibid., p. 52.

40

Barth isto constitui a arrogância religiosa: falar em Deus pensando em si mesmo.148

Nesse ponto o teólogo suíço se aproxima de Feuerbach ao afirmar que esse tipo de

“divindade” nada mais é que a projeção dos próprios desejos e anseios do ser

humano.

Na visão barthiana, nesse processo de “elevação” humana e menosprezo da

distância que o separa de Deus, há uma confusão entre eternidade e temporalidade,149

substitui-se “a verdade divina pelo mundo material”150. A troca de Deus pelo mundo

explica o motivo pelo qual “o mistério de Deus se opõe à arrogância religiosa”151. No

contexto da mensagem da justificação pela fé, a infinita diferença qualitativa entre

Deus e o ser humano se alinha à noção de disparidade entre a justiça humana e a

justiça divina (que figuram como os respectivos títulos dos capítulos dois e três da

obra). Dentro dessa moldura, a chamada arrogância religiosa parece estar em paralelo

com a busca de auto-justificação humana, ou seja, por suas próprias obras.

Em termos de justiça humana, a compreensão barthiana é bastante enfática:

“os fatos e os feitos gerados pela atividade humana em sua existência, posição e

expansão, são sempre oriundos do ser humano, e como tais, estão eivados de

irreverência e insubmissão.”152 No mundo dos humanos não existe qualquer distinção

entre “santos” e “ímpios”. Aliás, é justamente quando alguém pretende ser santo que

o deixa de ser.153 Barth ressalta que o indivíduo religioso típico “se caracteriza como

pessoa melhor que as demais”154. Mas sua pergunta retórica desvela a real situação

desse tipo de indivíduo: “que vantagem terá alguém na hora do julgamento, por ter

morado à beira do leito do rio se o canal está seco?”155 Mas não é apenas o autor que

percebe “o canal seco”. Na concepção barthiana, o próprio mundo não religioso

também percebe a verdade e não se deixa enganar, recusando-se “a seguir o Deus dos

‘religiosos’”156. Nas palavras do teólogo suíço, “Deus é apenas uma ideologia

quando os homens tomam emprestado os pontos de vista divinos, porém sem

Deus”157.

148 Cf. Ibid., p. 55. 149 Cf. Ibid., p. 52. 150 Ibid., p. 64. 151 Ibid., p. 66. 152 Ibid., p. 75-76. 153 Cf. Ibid., p. 78. 154 Ibid., p. 83. 155 Ibid., p. 100. 156 Ibid., p. 102. 157 Ibid.

41

Nesse sentido, o autor acrescenta que o critério aparentemente lógico e válido

de separação das pessoas por categorias - religiosas e irreligiosas, morais e imorais –

se torna plenamente inapropriado.158 Falar em humanidade significa, discorrer sobre

a humanidade perdida,159 pois “a justiça humana, em si mesma, é presunção”160.

Barth sublinha que esta perspectiva antropológica não designa algum tipo de

pessimismo, mas constitui uma “feroz aversão às ilusões; decidida recusa a curvar-se

perante ‘tabernáculos vazios’”161.

No entanto, o teólogo suíço ainda levanta outra questão: o que dizer das

pessoas que consideram possuir um entendimento de Deus, que presumem buscar a

Deus através das qualidades pessoais de seu caráter, especialmente quando essas

qualidades forem altamente dignas de consideração e respeito - uma conduta

autêntica, inteligente, nobre, amorável, singela e espiritual?162 Ele responde que tais

características podem ser louvadas e apreciadas, mas apenas em termos de religião,

moral e cultura, ou seja, unicamente a partir de seu significado no mundo.163 Esta é a

noção que não perde de vista a oposição entre a justiça humana e a justiça divina, isto

é, a perspectiva da infinita diferença qualitativa entre Deus e a humanidade: toda a

justiça humana está sob o “Não” de Deus, o julgamento divino.

Dessa forma, tudo o que não for mera vacuidade e carência permanece diante

do “Não” divino, e “não passa de cinza ou pó perante Deus, como todas as coisas

deste mundo”164. Em suas palavras, os que têm fé segundo os critérios deste mundo,

Deus os considera incrédulos. Os que são definidos como justos pelo mundo, são

vistos como injustos na perspectiva divina.165 Sobre essas pessoas religiosas Barth

escreve: “acaso, com teu religioso mundanismo, terias menos a temer da ira de Deus

do que os outros? Não é essa [tua] religiosidade o aprisionamento da verdade, a

permuta do imperecível com a figura do perecível, ocorrendo no teu caso de maneira

idêntica à do outro”166. Mas diante do “Não” divino “o teu ‘fazer’ será o que ele é:

tua legalidade, um furto [...] tua pureza, um adultério [...] tua religiosidade, vã

158 Cf. Ibid., p. 95. 159 Cf. Ibid., p. 125. 160 Ibid., p. 105. 161 Ibid., p. 129. 162 Cf. Ibid., p. 125. 163 Cf. Ibid., p. 129. 164 Ibid., p. 166. 165 Cf. Ibid., p. 98. 166 Ibid., p. 100.

42

presunção”167. Portanto, o que do ponto de vista humano é chamado de religião e

moralidade, diante do juízo de Deus é nada mais que caos e anarquia.168 Segundo

Barth, o julgamento de Deus é a negação do mundo, o protesto divino contra o seu

modo de ser.169 Quando este juízo ocorrer “os vales se erguem e as colinas se

abaixam. A ‘guerra’ entre os bons e maus chega ao fim. Os homens deixam de estar

em campos opostos, para se colocarem todos na mesma linha”170. O juízo divino

torna-se fundamental para, nas palavras de Barth, desmascarar as mentiras da

religião: Voltando o olhar a Deus, o Juiz, não ficam acaso, desmentidas todas as referências, todas as comparações e todas as relações entre o aqui e o além? [...] a materialização e a humanização do que é divino, em história religiosa ou sagrada, não tem qualquer relação com Deus.171

Todavia, o julgamento não é simplesmente destruição, mas restauração.172

Pois o “Sim” de Deus está incluído no seu “Não”, o livramento contido no

julgamento. Deus fala de vida para o ser humano justamente em sua morte.173 Mais

uma vez, Barth se reporta a um pensamento de Lutero: “quando Deus, pois, vivifica

faz morrer; quando justifica, ele o faz culpando-nos; quando nos conduz ao céu, fá-lo

conduzindo-nos ao inferno.”174 O teólogo suíço entende que é exatamente “quando o

homem [...] nada encontra em si mesmo senão a sua impureza ante a luz divina;

quando o homem já não pensa em outro sacrifício a oferecer senão o seu próprio

espírito atemorizado e o seu coração despedaçado, então Deus vem como vencedor

triunfal.”175

De acordo com o autor, as mesmas trevas da indignação e ira divina que se

aproximam daqueles que pretendem deter a verdade em sua arrogância e justiça

própria, representam a luz de um novo dia para aqueles que perseveraram na fé,176

isto é, na vacuidade. Aliás, o “Não” de Deus está diretamente associado com o

esvaziamento: “há uma possibilidade para o homem salvar-se da ira de Deus: é

167 Ibid., p. 101. 168 Cf. Ibid., p. 166. 169 Cf. Ibid., p. 50. 170 Ibid., p. 113. 171 Ibid., p. 116. 172 Cf. Ibid. 173 Cf. Ibid., p. 138. Barth explica que “na ira de Deus vemos a sua justiça; na crucificação vemos a ressurreição; na morte, a vida; vemos o “Sim” contido em “Não” [...] no julgamento vemos o dia da salvação que se aproxima” (Ibid., p. 245). 174 Ibid., p. 43. 175 Ibid., p. 119. 176 Cf. Ibid., p. 95.

43

quando toda pretensão humana é anulada, abatida por Deus; quando Deus dá o seu

“Não”, como resposta definitiva; quando a ira de Deus se torna inevitável; quando

Deus é reconhecido como Deus!”177 Nesse sentido, Barth salienta que a vacuidade da

experiência da fé se diferencia da religião: “os fiéis que perseveram em Deus,

perseveram no Reino de Deus somente se, e enquanto, perseverarem sem

preocupação da religiosidade” 178. Em sua concepção a religião precisa ser suprimida: quando reconhecerem que Deus e somente ele tem razão; quando a sua religião suprimir esta mesma religião; quando a sua piedade revelar a inexistência dessa mesma piedade; quando sua sobranceria psicológica e intelectual descer ao nível a que são rebaixadas todas as preeminências humanas; quando os homens que galgaram os mais altos píncaros [da glória e reputação humanas] percebem que todos são culpados perante Deus [...] Só então Deus confirmará sua fidelidade ao homem que não se deixou iludir pela infidelidade humana.179

Barth sublinha a supressão da religião no contexto da própria supressão de

tudo o que é humano: “nossa experiência é a que não é; nossa religião subsiste na sua

supressão; nossa lei consiste na anulação de toda experiência, posse, ação e

conhecimento humano”.180

2.1.2 A Religião e a Circuncisão: a justificação de Abraão

Para discutir a relação entre a religião e a circuncisão, Barth utiliza como

exemplo prático a justificação de Abraão, cuja figura é diretamente relacionada com

a fé no ambiente judaico-cristão. Inicialmente, o autor reconhece a “proclamada”

justiça de Abraão: um homem de conduta invejável, cuja religiosidade e genialidade

sublinham a importância da orientação moral de sua vida. Todas as suas qualidades

realmente justificam a fama que ele adquiriu diante do fórum da história universal.

Com efeito, Barth reconhece que a justiça de Abraão é, de fato, digna de glória

perante a humanidade, mas não diante de Deus.181

À luz da infinita diferença qualitativa entre Deus e a humanidade, todos os

atributos e pretensas qualidades de Abraão constituem, em essência, motivos para a

ira divina. Segundo Barth, com toda a sua justiça humana, ele é apenas um “ímpio”

perante Deus e, assim como o resto da humanidade, está sob o “Não” divino. 177 Ibid., p. 106. 178 Ibid., p. 136. 179 Ibid., p. 133. 180 Ibid., p. 166. 181 Cf. Ibid., p. 184.

44

Entretanto, através da fé Abraão toma ciência de sua condição, reconhecendo estar

sob a crise que vem de Deus (julgamento), mas “dentro desta crise Abraão opta pelo

temor do Senhor e, dentro do ‘Não’ passa a ver e a ouvir o ‘Sim’ de Deus.”182 Desse

modo, o motivo de sua justificação, o “Sim” de Deus, não se dá a partir de suas

obras, mas de sua fé. “Ele é o que é como crente no poder daquilo que ele não é, pois

naquilo que ele é [o religioso esclarecido, o herói ético, espiritual] desponta

vigorosamente a revelação de sua fé e esta, sim, mostra o que ele não é”183. Seguindo

a noção de que “o ser humano participa do divino através daquilo que ele não é”184,

Barth assevera que “a Abraão, o varão de obras, não é atribuída a recompensa de

suas obras”, pois a justificação representa uma “ação divina inteiramente livre,

totalmente desvinculada do homem, daquilo que o homem seja, faça ou possua”.185

Na visão do teólogo suíço, a justificação de Abraão, realizada unicamente

através da fé, provê uma perspectiva diferenciada da “contabilidade religiosa” do

relacionamento entre Deus e a humanidade, que pressupõe uma correspondência

direta entre a ação humana e a ação divina: a prática humana de obras que sejam

agradáveis a Deus e a retribuição ou pagamento divino como resposta a essas obras.

Esta contabilidade suscita a possibilidade de o ser humano reivindicar, de algum

modo, a retribuição de Deus. Portanto, a possibilidade de o ser humano se gloriar

daquilo que ele é, possui ou faz, “está latente em todas as religiões”186. No entanto,

na contabilidade da fé a situação é radicalmente diferente: “não existem obras

humanas que possam gerar o beneplácito divino ou que possam desencadear a ação

de Deus”187. Toda a realidade humana está sujeita ao “Não” divino, mas também é

convidada à possibilidade “Sim” que se abre pela fé. Não são as obras humanas que

constituem o ponto de partida para a justificação divina, “é na origem divina da fé

que encontramos a justificação que ela proporciona e a explicação de sua

peculiaridade: ser ela algo novo, diferente, que se contrapõe a toda realidade

religiosa”188.

Não obstante, embora os valores histórico e espiritual não constituam

qualificações que conquistem a justificação divina, eles merecem o reconhecimento

182 Ibid., p. 191. 183 Ibid., p. 187. 184 Ibid., p. 188. 185 Ibid. 186 Ibid., p. 167. 187 Ibid., p. 168. 188 Ibid., p. 197.

45

humano. Barth explica que, embora as obras de Abraão não sejam contabilizadas no

“Livro da Vida” (da justificação divina), certamente elas são registradas com mérito

no “Livro da História da Religião” que relaciona a dignidade e a glória dos grandes

homens, das nobres personalidades. Ademais, “é lícito e é útil que se proclame tudo

o que se puder dizer de verdadeiro, de bom, de glorioso, a respeito de Abraão e de

vultos iguais a ele”189. Esta atitude condiz com a “contabilidade humana”: “a honra e

a gratidão com que a humanidade homenageia Abraão e seus pares, não é favor, mas

retribuição justa; é o pagamento de uma dívida que a humanidade contrai com um e

com outros, em diferentes graus, no correr da história”190. Mas Barth acrescenta:

“porém, se nesta retribuição, Deus for inserido [...] não se trata do verdadeiro Deus,

mas do espírito deificado do próprio homem”191. Para ele, é preciso distinguir

adequadamente a contabilidade religiosa da contabilidade da fé, pois a fé apresenta

total distinção da religião: descobrimos, na fé, a verdade de toda religião [...] todavia nenhures é ela idêntica às realidades palpáveis, psicológicas e históricas das experiências religiosas. A fé jamais se mescla, interfere, ou se confunde com o desenvolvimento contínuo do ser humano, de suas possibilidades e suas obras; nem se transforma em caminho, ou meio, no correr da vida material, na vida eclesiástica, na religião192

Por intermédio de suas perguntas retóricas o teólogo suíço questiona a

reivindicação de que a religião, em sua realidade histórica, seja a condição essencial

para um relacionamento positivo entre Deus e o ser humano. Questiona também a

pretensão de que a religião represente a base da fundamentação divina do ser

humano, ou constitua o único lugar da revelação divina.193 Tais questionamentos se

apóiam na evidência de que a justificação de Abraão não ocorreu quando ele era um

indivíduo circunciso, judeu ou conhecedor e participante da religião. Ao contrário,

ele foi justificado enquanto incircunciso, independente de sua religião, convicção

teocrática ou posição na história da igreja, mas na simplicidade de sua

humanidade.194 Com efeito, “a circuncisão não foi reconhecida por Deus como

meritória de qualquer atribuição de justificação”195. Ela era apenas “um acessório

189 Ibid., p. 188. 190 Ibid. 191 Ibid., p. 189. 192 Ibid., p. 197. 193 Cf. Ibid., p. 198. 194 Cf. Ibid., p. 199. 195 Ibid.

46

visível, na aparência do mundo religioso”196. Para Barth, se houver qualquer noção

de justificação contida na circuncisão, esta será meramente uma justificação

religiosa, sem nenhuma ligação com a justificação imputada por Deus.197

Nesse sentido, a conclusão barthiana é que “o vocacionamento dos homens

por Deus, precede aos contrastes entre a circuncisão e a incircuncisão, a religiosidade

e a irreligiosidade, entre o pertencer e o não pertencer a uma Igreja”.198 Barth

considera que do ponto de vista histórico-religioso Abraão ainda não era um “judeu”,

mas um gentio - um “ímpio” digno de morte -, há aqui uma realidade distinta do

raciocínio tipicamente religioso: A fé que encontramos em Abraão ainda não é religião nem o fenômeno histórico-espiritual da crença. A fé é o fator inicial das manifestações; ela é a origem comum de todos eles, porém não é nem religiosa e nem irreligiosa; nem santa, nem profana, contudo, é sempre ambas essas coisas, tem as duas posições, simultaneamente.199

O autor indica que “a linha da vida que demarca o relacionamento do homem

com Deus, precisa ser compreendido como sendo também a linha da morte da

religião”200. A obra divina da justificação não possui qualquer relação com a religião,

visto que esta, “em sua realidade histórica, nem é premissa nem é condição essencial

para um relacionamento positivo entre Deus e os homens. Esse relacionamento parte

de Deus [... e] é a premissa da realidade histórica da religião”.201 Assim, a religião

não é a premissa nem a caracterização do relacionamento positivo entre Deus e a

humanidade, antes é esse relacionamento (que se origina em Deus) que constitui a

premissa da existência da religião. Nesse contexto, embora a fé não se confunda com

a religião, ela representa “o início de todo o conjunto religioso – eclesiástico, seu

modo de fazer, ter e agir”202. Barth parece negar à religião qualquer pretensão de

origem ou conteúdo, mas sublinha sua existência enquanto resultado ou efeito.203

196 Ibid. Barth parece enxergar o batismo cristão de forma paralela à circuncisão judaica, pois ele fala do batismo como “um fato do mundo aparente da religião” (Ibid., p. 294), um sinal “de insuficiência, de vacuidade, de nulidade, de total desvalia” (Ibid., p. 297). 197 Cf. Ibid., p. 199. 198 Ibid. 199 Ibid. 200 Ibid., p. 198. 201 Ibid., p. 200. 202 Ibid., p. 198. 203 Esta noção parece evidente na afirmação de que Abraão “exibe uma religiosidade mais consciente, moral mais pura e o resultado valoroso de uma fé heróica.” (Ibid., p. 183. Grifo nosso)

47

Aliás, “Abraão também participa deste mundo de aparências – a circuncisão, a

religião, a igreja – que retratam a revelação”204.

Na visão do teólogo suíço, a circuncisão, a religião e a igreja (utilizados por

Barth praticamente como sinônimos) assumem o caráter de lembrança física. A

circuncisão serve para lembrar Israel de sua divina eleição, como povo escolhido e

enviado. Ademais, a igreja “é o incontornável conteúdo histórico da obra de Deus

para com os homens, sua condução, sua canalização”205. Por sua vez, a religião

representa “o inevitável reflexo espiritual [...] do milagre da fé, que se realiza na

alma.”206 No entanto, este sinal de lembrança não deve se confundir com a realidade

divina em si. Isso representaria olvidar a infinita diferença qualitativa entre a

realidade divina e a realidade humana. Embora seja a realidade divina que oferece o

sentido e a forma do conteúdo histórico-espiritual (circuncisão, religião e igreja), este

conteúdo sempre estará “em correspondência com algo diferente que vem do

além”207 e para ele aponta. “Se isto for esquecido; se a Igreja e a religião não

conservarem as suas vistas voltadas humildemente para o paradigma do além, correm

o risco de projetarem-se às alturas sem atingirem o seu objetivo.”208

Desse modo, igreja e religião são símbolos e “sinetes inconfundíveis que

trazem à lembrança a fundamentação que o homem encontra em Deus”209, eles

apontam o pacto entre Deus e a humanidade que ainda não foi cumprido e pelo qual

se espera a efetivação. A religião - e também a igreja, que é usada nesse contexto

como sinônimo de religião - pode ser entendida como “sinal, testemunho, imagem,

lembrança, indicação, [...] a manifestação histórica de toda impressão da revelação,

de toda referência a ela, que está sempre além de toda realidade da própria

história.”210 Segundo Barth, foi Deus quem determinou a existência e a finalidade

204 Ibid., p. 201. Na discussão de Barth há um nítido paralelo entre a circuncisão de Abraão e o batismo cristão. Para ele, uma pessoa batizada - que tenha a mesma disposição de fé de Abraão - não deve ser considerada meramente como religiosa, mas alguém que recebeu a graça de Deus. É bem verdade que ela terá experiências religiosas: provavelmente pertencerá a alguma igreja, terá suas crenças, manterá uma vida oração, e nutrirá um elevado comportamento ético-religioso. Numa perspectiva histórica concreta, essa pessoa terá seu lugar no ambiente da religiosidade humana, e seu tipo característica será compatível com os que são estudados e catalogados pela história e a psicologia das religiões. Entretanto, todas essas características funcionam como sinais e testemunhas da graça divina, e não um produto do poder da obediência humana que caracteriza a religião (Cf. Ibid., p. 326-327). 205 Ibid., p. 201. 206 Ibid. 207 Ibid. 208 Ibid. 209 Ibid. 210 Ibid., p. 200.

48

destes símbolos. Seu período de existência situa-se entre o Alfa e o Ômega, o

princípio e o fim. Neste intervalo de tempo eles devem ser unicamente “sinal” e

“testemunho”. Aliás, “foi também neste sentido que Abraão recebeu o sinal da

circuncisão; o sentido do passado e do futuro; e passou a participar do mundo

eclesiástico-religioso, visível.”211 Tal comparação da religião com a circuncisão

fornece algumas características importantes da compreensão barthiana da religião: A significação da circuncisão de Abraão não está nas características ou qualidades intrínsecas do ato, mas no relacionamento que ele indica; a circuncisão não tem valor em si, se não o de testemunho, cujo sentido eterno se destaca na linha da morte, onde também se revela a transitoriedade do mundo religioso. Circuncisão, religião e igreja são sinais visíveis e testemunhas, não por seu conteúdo positivo, porém pelo seu teor negativo, isto é, na medida [em] que forem compreendidos e confirmados na renúncia, no perecer incessante, na anulação do homem perante Deus, que efetivamente simbolizam. 212

De acordo com esta compreensão, “o significado da circuncisão, da religião e

do ‘eclesiasticismo’ de Abraão, é indireto e não convida à circuncisão, mas convida à

fé.”213 A circuncisão não é o início de sua justificação, mas o testemunho desse

início. O foco não está na religiosidade de Abraão, mas na justiça invisível que a ele

foi imputada. Nos termos barthianos, estes símbolos temporais e finitos necessitam

apontar para a eternidade que existe antes e depois de todas as coisas temporais

(inclusive deles mesmos).214 Por isso, Barth ressalta a importância da delimitação

funcional desses símbolos: Enquanto a circuncisão, a religião e a Igreja servirem a este fim e guardarem no seu relacionamento com Deus a humildade que este fim impõe, enquanto humildemente reconhecerem sua mundanalidade, enquanto tiverem a consciência de que pertencem a este mundo, enquanto nenhuma outra pretensão tiverem se não a de serem expressões de “fé do incircunciso”, têm elas condições [de se candidatarem] à justificação divina nessa instrumentalidade [...] Todavia, se a religião e a Igreja pretenderem ser mais do que a simples “fé do incircunciso”; se a arrogância religiosa quiser elevar-se à categoria de um valor real [...] serão inqualificáveis grandezas humanas dentro do próprio mundo que desejam superar. 215

O teólogo suíço acrescenta que, nesse caso, quando a religião pretende ser

mais que uma testemunha ou indicação do além - considerando-se uma realidade em 211 Ibid., p. 202. 212 Ibid. 213 Ibid., p. 203. 214 Cf. Ibid. 215 Ibid., p. 203-204. Barth sublinha que “toda religião, enquanto estiver do lado de cá, enquanto for histórica, contemporânea, realidade palpável, está sujeita a essa regra, e dela não escapa a religião legítima, sincera, profunda” (Ibid., p. 213).

49

si -, tal pretensão de grandeza absoluta que busca a semelhança com Deus “se traduz

em impiedade e injustiça que suscita a ira de Deus.”216 É no contexto dessa pretensão

religiosa que Barth destaca que “nenhuma atitude humana é mais duvidosa, mais

arriscada, mais sujeita à crítica, do que a religiosa”217. É justamente onde estiverem as mãos postas; onde houver a sensação viva da presença de Deus; onde se falar das coisas divinas e onde estiver a pregação; onde houver a construção de templos e onde as obras forem motivadas por ideais e razões as mais dignas; onde houver missão e mensagem da ordem mais elevada; é aí, que domina o pecado [...] quando não estiver presente, também, a maravilha, o milagre do perdão, quando o temor do Senhor não estabelece a distância que medeia entre a criatura e o Criador.218

Para o autor, o único lugar onde a religião ganha real importância é no

contexto da graça divina: “É pela graça que Abraão é Abraão. É pela graça que a lei

tem significado; que a história tem sentido; e que a religião é uma verdade.”219 Com

efeito, a indicação de que pela graça a religião se torna uma verdade parece se

aproximar da discussão sobre “a verdadeira religião” no § 17 de Church Dogmatics.

2.1.3 A Religião e a Lei

Assim como Barth estabelece uma relação entre a religião e a circuncisão ao

comentar o capítulo 4 de Romanos, que se refere à justificação de Abraão, ele

também traça um paralelo entre a religião e a lei, tendo em vista que a lei constitui o

tema central do capítulo 7 de Romanos. De fato, a religião permeia todo o seu

comentário deste capítulo, cujos subtítulos são: o limite da religião, o significado da

religião e a realidade da religião.

2.1.3.1 O Limite da Religião

Ao abordar o tema do limite da religião, o autor parte do pressuposto de que a

religião é a última possibilidade humana. O teólogo suíço realça que “neste mundo; é

na religião que a humanidade alcança [...] o seu clímax”220. Ademais, “de positivo a

favor da religião, só se pode dizer que é nela que a humanidade tem a sua mais

216 Ibid., p. 213. 217 Ibid., p. 214. 218 Ibid. 219 Ibid., p. 218. 220 Ibid., p. 285.

50

profunda, mais pura e mais duradoura possibilidade”221 Isso significa que dentre

todas as atividades humanas, a religião possui “o sentido mais profundo, o mais puro;

entre todas as possibilidades humanas, é a religião que tem o maior poder vital e a

maior capacidade transformadora.”222 Nesse sentido, Barth enfatiza que é necessário

reconhecer “que o relacionamento com Deus tem também o seu lado humano,

subjetivo, histórico”223, ou seja, religioso. Aliás, é digno de apreciação o fato de que

“existem homens religiosos; que o caráter formado pela religião, o pensamento

inspirado nela, e as obras que ela motiva, se expressam em milhares de formas, obras

e frutos que entram para a história.”224 Em realidade, a religião também representa

uma das formas pelas quais Deus se vale para preparar o ser humano para que este se

converta e para “acompanhá-lo depois dessa mudança de rumo; é pela religião que

Deus leva o homem – consciente ou inconscientemente, a tomar uma posição.”225

Embora seja possível criticar algumas manifestações religiosas, esta será

“uma crítica relativa, e teremos que nos silenciar, embora também nossa aprovação

seja apenas relativa.”226 Essa aprovação relativa se dá porque - apesar de seu relativo

direito de reconhecimento, confissão e defesa -, a religião ainda constitui uma

“possibilidade humana, um aspecto histórico e real do homem, manifesto em seu

conteúdo psíquico, intelectual, moral e social e que é totalmente [inter-relacionada]

com o mundo e, portanto está também na penumbra do pecado e da morte.”227 Barth

salienta que “o respeito e a admiração que a religião merecer neste mundo não deve

obliterar a visão real de que qualquer absolutismo, transcendentalismo, e ligação

direta com Deus são ilusórios, fúteis, irreais”228. Assim, por ser humana, a religião é

considerada pelo autor uma possibilidade restrita, limitada, estreita e ineficaz.229

O teólogo suíço destaca que o véu da religiosidade está sobre toda a

humanidade, seja de forma mais densa para uns ou mais tênue para outros.230 “Como

seres humanos que somos, vivendo neste mundo, não podemos estar indenes à

influência religiosa.”231 Ele explica que a inevitável recordação humana de sua

221 Ibid., p. 284. 222 Ibid., p. 283. 223 Ibid., p. 282. 224 Ibid., p. 282-283. 225 Ibid., p. 283. 226 Ibid. 227 Ibid. 228 Cf. Ibid., p. 284. 229 Cf. Ibid., p. 355. 230 Cf. Ibid. 231 Ibid., p. 356.

51

ruptura com Deus cria experiências históricas e morais que impelem à religião.

Ademais, a própria graça divina acarreta tais experiências e, por isso, “não está

dissociada da religião, da moral, do eclesiasticismo e da dogmática que se

cristalizaram em torno dessas experiências.”232 Desse modo, a pretensa tentativa de

apresentar absoluta indiferença à religião, caracteriza uma empreitada imprudente e

pouco promissora, segundo o exemplo de Barth: “embora possamos passar de um

compartimento para outro, não poderemos sair da casa.”233 Todos os seres humanos

estão envolvidos nesta problemática da religião, nada se pode fazer para sair dessa

situação. Ainda assim, o autor aponta uma possível saída: se estivermos mortos com Cristo, sepultados com ele, se, vistos desde a cruz, já não pertencemos a este mundo mas ‘formos o que não somos’, isto é, se houvermos, realmente, sido arrancados do jugo da lei, então já não estamos presos às possibilidades que a religião oferece, nem às suas exigências; então já estamos livres de toda e qualquer imposição humana234

Esta saída caracteriza a condição paradoxal – tradicionalmente conhecida na

escatologia do Novo Testamento como o “já” e o “não ainda” - daqueles que, embora

ainda continuem envolvidos na trama dos acontecimentos religiosos. Pela graça da

reconciliação divina já se acham existencialmente na origem e no final da história.235

Nesse contexto, seria possível, então, afirmar que o ser humano está libertado? O

autor explica que se o sentido expressão “libertado” indicar algum tipo de

característica ou qualidade visível, então estaremos novamente no campo da religião,

e a resposta será negativa.236 Em realidade, não sabemos o que dizemos e dizemos o que não sabemos quando afirmamos que o lugar onde estamos, em que nos achamos, não é território sujeito à lei, ou então, se dissermos que a religião é uma possibilidade superada, ultrapassada, liquidada. Contudo, o afirmamos! O afirmamos como o acontecimento do ‘impossível’237

Nas palavras de Barth, essa afirmação do impossível é movida pela verdade

que nos atinge como uma flecha lançada do outro lado do rio, uma verdade que vem

diretamente da parte de Deus.238 Por isso, ele ressalta, a afirmamos como

232 Ibid., p. 355. 233 Ibid., p. 356. 234 Ibid., p. 360. 235 Cf. Ibid., p. 365. 236 Cf. Ibid. 237 Ibid. 238 Cf. Ibid., p. 366.

52

“prisioneiros, todavia livres; como cegos, porém vendo”.239 À luz dessa possibilidade

impossível há o vislumbre do limite da religião. Segundo o autor, sua fronteira

extrema está na linha da morte, que “separa o campo das possibilidades humanas

daquilo que [só] é possível a Deus; é nessa linha que se faz a distinção entre a carne e

o espírito; entre a temporalidade e a eternidade”.240 Ele acrescenta: “Ainda bem que a

religião tem de morrer. É em Deus que nos libertamos dela.”241 Barth explica que a

morte da religião ocorre no contexto da rendição e oferecimento de todas as

possibilidades humanas a Deus no Gólgota. A despeito de tudo o que a pessoa

religiosa seja, faça ou tenha, no Gólgota ela tributa somente a Deus a honra, o louvor

e a glória. Enquanto realidade histórico-espiritual que se projeta através da conduta

humana, a religião, vista a partir da cruz, é algo que precisa ser removido.242

Portanto, é na linha limite de todas as possibilidades religiosas que “terminam as

possibilidades humanas e começa a possibilidade de Deus”.243 É ali na afirmação da

possibilidade impossível que “seremos religiosos como se não o fôssemos”.244

2.1.3.2 O Significado da Religião

Barth inicia sua discussão sobre o significado da religião asseverando que a

religião presume oferecer ao ser humano o mesmo tipo de relacionamento com Deus

que a graça oferece. É possível perceber aqui uma relação proporcionalmente

inversa: ao passo que a graça significa “o relacionamento de Deus com o homem”,245

a religião representa a “destemida presunção do ser humano que se estende para

Deus”.246

À luz dessa presunção a religião poderia facilmente ser identificada com a

noção de “pecado”.247 No entanto, o teólogo suíço advoga que igualar religião e

pecado representa uma confusão de conceitos. Quem pensa que a religião significa

pecado ainda não compreendeu o real sentido da religião. Barth explica que a 239 Ibid. 240 Ibid. 241 Ibid. 242 Cf. Ibid., p. 360. 243 Ibid., p. 368. 244 Ibid. 245 Ibid., p. 354. 246 Ibid., p. 372. 247 Barth define pecado da seguinte forma: “Pecado é um assalto a Deus. Este assalto se perpetua sempre na ousada transposição da “linha da morte” que foi traçada ante nós [...] no endeusamento do ser humano. Este assalto a Deus se dá quando erigimos o Deus deste mundo, o “Não-Deus” para nosso Deus, na romântica suposição de que poderemos ter acesso direto a Deus, sem passar – como ímpios e rebeldes que somos – pela porta estreita da morte” (Ibid., p. 261)

53

“religião é a atividade humana pela qual todas as suas demais possibilidades ficam,

notoriamente, expostas à luz de uma crise profunda, radical, que evidencia o pecado

e o torna real.”248 Desse modo, “quando desconsideramos a religião [...] então o

pecado já não tem destaque; a sua silhueta se perde por falta de pano de fundo”.249 A

religião não é o pecado, mas é através da religião que o pecado se torna evidente.

Pois é especialmente na religião que a criatura manifesta a sua rebelião contra

Deus.250 O teólogo suíço usa a queda humana para exemplificar esse princípio:

quando o ser humano estendeu sua mão à arvore do conhecimento para buscar aquilo

que não era (conhecedor do ‘Bem’ e do ‘Mal’ como Deus), ele encontrou sua própria

limitação, percebeu quem realmente era – seus olhos se abriram para enxergar sua

distância e distinção de Deus. Assim, Barth considera que esta foi uma experiência

religiosa. A prédica da serpente pôs a afirmação divina em dúvida – “certamente não

morrereis” -, ao propor uma espécie de ligação direta do ser humano com Deus.251

Através deste exemplo é possível perceber que o contraste existente entre

criatura e Criador, que é encoberto pelo pecado, somente se torna evidente na

religião.252 Nesse sentido, Barth entende que “quanto mais conseqüente for a nossa

religiosidade, quanto mais nos aprofundarmos nela, mais densa e mais profunda será,

sobre nós, a sombra da morte”.253 Para ele, ao atender à cobiça que está acima de

todas as cobiças (a religião) - o desejo de voltar à ligação direta com Deus que foi

perdida e alcançar a semelhança de Deus -, o ser humano percebe que no final de sua

maior possibilidade, ele está de mãos vazias e ainda mais afastado de Deus.254

Portanto, a religião representa “o ponto onde todas as possibilidades humanas [...]

ficam expostas à luz divina”,255 este é o seu significado. É somente no homem religioso que vem à tona que o ser humano é carnal e pecaminoso; que ele é um obstáculo a Deus, que está sob a ira divina. É na religião que se revela a total insuficiência do saber humano, a sua instabilidade, a sua absoluta superficialidade; é na religião que se patenteia a fraqueza da vontade humana256

248 Ibid., p. 375. 249 Ibid. 250 Cf. Ibid., p. 380. 251 Cf. Ibid., p. 386-387. 252 Cf. Ibid., p. 388. 253 Ibid., p. 396. 254 Cf. Ibid., p. 397-398. 255 Ibid., p. 395. 256 Ibid., p. 285.

54

2.1.3.3 A Realidade da Religião

A caracterização da realidade da religião tem como ponto de partida a noção

de que a “finalidade da religião é testificar o poder e o domínio que o pecado exerce

sobre a criatura humana neste mundo: também a pessoa religiosa é pecadora e o é

justamente como religiosa.”257 À luz dessa noção, o autor apresenta dois tipos de

religião que se contrapõem. A primeira é a religião do romantismo, que busca se

apresentar como meio de dignificar os conhecimentos humanos como ‘obras de Deus

que acompanham todos os atos humanos qual música divina’, conforme afirmou

Scheleiermacher.

A outra é chamada de a religião propriamente dita, conforme praticada por Jó,

Paulo, Lutero, Kierkegaard. Em seu caráter não-retórico ela reage tenazmente à

religiosidade inócua e insossa do romantismo, questionando toda a atividade humana

e os acontecimentos na história do mundo. Esta religião está longe de ser o lugar

agradável onde se encontra o bem estar do ser humano, mas é o ponto onde se revela

e se reconhece a enfermidade humana. Ela “não pretende ser o coroamento do ser

humano ou a expressão de sua plena realização.”258 Muito pelo contrário, esse tipo de

compreensão reconhece que “a realidade da religião é luta e escândalo, pecado e

morte”.259 Entende também que “a religião não traz a solução nem a resposta à

pergunta vital da criatura neste mundo”,260 antes ela “é a infelicidade sob a qual,

provavelmente, terá de gemer secretamente, toda criatura que se chama humana”.261

Em linguagem figurada, Barth assevera que o segredo que a religião

romântica busca encobrir não pode ser oculto em todo o tempo: a dinamite que ele

enterra entre flores - as flores tão enfatizadas e elogiadas pelo romantismo -

explodirá um dia,262 pois a realidade da religião é a morte.263 De fato, para Barth o

ser humano religioso – que é o ser humano enquanto viver – carrega em seu corpo a

lembrança constante de que pertence à morte. “A realidade da religião é o espanto de

si mesmo que ela desperta no homem”.264

De maneira geral, a relação entre a religião e a lei apresenta uma visão

profundamente negativa da religião. Ela representa o limite da possibilidade humana, 257 Ibid., p. 400. 258 Ibid., p. 401. 259 Ibid., p. 402. 260 Ibid. 261 Ibid. 262 Cf. Ibid., p. 414. 263 Cf. Ibid., p. 393. 264 Ibid., p. 415.

55

seu significado se expõe no poder que o pecado exerce sobre a humanidade, e sua

terrível realidade é a morte. Mas, no pensamento barthiano, é no contraste dessa

negatividade que se apresenta o “Homem Novo”, Jesus Cristo, aquele que está além

das possibilidades humanas, além do ser humano religioso.265 Portanto, estar “em

Cristo” é a condição de liberdade, a solução do enigma da vida humana que se sente

esmagada pela peso insuportável da religião.266

Pois estar “em Cristo” implica co-participação na supressão do ‘velho

homem’.267 Significa, dialeticamente, estar na interrogação de Cristo “e, por isso,

também em sua resposta; estar em seu “Não” e, portanto em seu “Sim”; em seu

pecado e, por isso, em sua justificação; em sua morte e, por isso, em sua vida.”268

Essa nova vida envolve a habitação do Espírito no ser humano, o que para Barth

representa a ressurreição:269 “O Espírito que recebemos ao sair da morte para a vida é

a supressão [da] duplicidade. A nova criatura, Cristo em nós, prevalece em sua

singularidade”.270 Para o autor, se a religião se caracteriza pela duplicidade - o

dualismo entre o ser humano interior (se compraz na lei divina) e exterior (se opõe à

lei divina), o além e o aquém, o ideal e o material -271 a nova criatura se caracteriza

pela singularidade. Esta é a realidade do ser humano que está em paz, adotado como

filho, redimido e liberto de todas as antinomias, uno em Deus.272

2.1.4 A Religião e a Igreja

Como foi visto na discussão acerca da relação entre religião e circuncisão,

Barth utiliza os termos religião e igreja quase como sinônimos. Em seu comentário

sobre os capítulos de Romanos que se referem a Israel, Barth traça um paralelo direto

265 Cf. Ibid. 266 Cf. Ibid., p. 446. 267 Cf. Ibid., p. 428. 268 Ibid., p. 442. 269 Cf. Ibid., p. 456. A compreensão barthiana da ressurreição parece ser paradoxal. De um lado está a declaração que denota a possibilidade da vida atual: a ressurreição “é um modo de ser, ter e de agir da nova criatura que se relaciona com a maneira de ter, ser e agir da criatura velha” (Ibid., p. 354). De outro, estão as afirmações de uma possibilidade que está além da vida atual: “Vemos o transcorrer da nossa vida à sombra do Dia de Jesus Cristo, que ainda não raiou, mas está infinitamente próximo.” (Ibid., p. 473); “o nosso tempo é o tempo do presente século e [...] a eternidade é o Dia de Jesus Cristo, que não é ‘um’ dia mas o Dia de todos os dias e que existe desde antes, após e acima dos dias de nossa vida” (Ibid., p. 483). É provável que esse paradoxo se alinhe à noção escatológica do “já” e “não ainda”, que também pode ser percebido na discussão acerca do “Limite da Religião”. 270 Ibid., p. 464. 271 Cf. Ibid., p. 414. 272 Cf. Ibid., p. 505.

56

entre Israel, a igreja e o mundo religioso,273 pois ele entende a igreja como religião

organizada.274 Dessa forma, é possível perceber que quando Barth discute sobre a

igreja, ele está, de fato, falando sobre a religião. Aliás, esta relação de identificação

se torna ainda mais evidente através da comparação de duas afirmações: o “mais

lindo pináculo das atividades humanas – a Religião [...] produz a ira de Deus”275; e

“no pináculo das possibilidades humanas, o ponto mais alto será sempre a torre da

Igreja”276. Assim como a abordagem barthiana da religião, em seu comentário sobre

a lei, está disposta em três partes - o limite, o significado e a realidade da religião -,

as considerações acerca da igreja estão organizadas em três etapas: a tribulação, a

culpa e a esperança da igreja.

2.1.4.1 A tribulação da Igreja

O autor salienta que, na igreja, o ‘mundo do além’ se transforma em um

mundo metafísico que representa apenas uma simples extensão do mundo concreto.

Tal transformação permite que o mundo do além possa ser conhecido pelo ser

humano. Semelhantemente, na igreja, Deus se desvincula do ‘Princípio’ e ‘Fim’ que

o ser humano desconhece, e é levado para o centro do conhecimento humano. Assim,

“a Igreja apresenta a fé, o amor e a esperança, a nossa filiação a Deus e o Reino de

Deus como se fossem ‘coisas’ que se poderiam ter, ser, esperar ou obter pelo nosso

esforço.”277 Em outros termos, “a Igreja é a tentativa mais ou menos geral e enérgica

de humanizar aquilo que é divino”,278 pois procura “transformar o caminho

incompreensível e inevitável, em vereda que pode ser entendida.”279

De outro modo, Barth ressalta que se a igreja deseja ser fiel ao evangelho,

mais alto ela exclamará o “Não” divino, apontando para a “cruz da renúncia, do

sofrimento, da vergonha, da dor e da aflição”,280 ao proclamar “a absoluta

necessidade de o homem perder a sua vida para ganhá-la.”281 Segundo o teólogo

suíço, só assim, a igreja não servirá de ópio para o povo, antes proporcionará seu

despertamento. Em uma perspectiva ideal, a igreja visível representa o corpo de

273 Cf. Ibid., p. 515. 274 Cf. Ibid., p. 528. 275 Ibid., p. 328. 276 Ibid., p. 526. 277 Ibid., p. 516. 278 Ibid. 279 Ibid. 280 Ibid., p. 517. 281 Ibid.

57

Cristo. Nesse sentido, o autor salienta que aqueles que dela participam não objetivam

simplesmente a entrada no céu, mas almejam amar a Deus. A “entrada” no céu não é

pretendida em primeira instância, pois eles “já não confiam em seus dotes, seus bens

materiais, seu saber, seu estofo moral, sua espiritualidade, sua fé; não buscam nem

pedem recompensa, porque sabem que nada merecem.”282 Apenas vivem na

esperança, através da fé, crendo que somente Deus é poderoso para salvá-los.

Contudo, Barth reconhece que, de forma concreta, a igreja faz parte do

mundo humano e, por isso, é natural que ela caia repetidamente no pecado

fundamental, na “origem específica da queda do homem: o desejo de tornar-se igual

a Deus”.283 Aliás, “quanto mais a criatura tratar de seu relacionamento com o Criador

mais será o seu anseio de aproximar-se dele diretamente, contornando a cruz.”284 A

percepção dessa tendência natural permite, portanto, o reconhecimento de que “a

Igreja, sendo constituída por membros ainda sujeitos ao ‘corpo desta morte’, está em

natural oposição ao próprio Evangelho”.285 Nesse contexto, em linguagem figurada,

Barth indica que a tentativa de abandonar a igreja e entrar num bote salva-vidas para

fugir da catástrofe inevitável que lhe ameaça não faz qualquer sentido. Assim como

não há qualquer vantagem em se colocar como inimigo ou detrator dela. Para o

teólogo suíço, não é a troca ou o abandono da confissão religiosa que transforma o

ser humano, mas a graça dada por Deus.286 toda e qualquer polêmica anti-religiosa só tem sentido se o seu objetivo for a afirmação de que só a Deus pertence a honra e jamais o polemista [...] ao alçar a sua voz para lembrar a si mesmo e à Igreja da eternidade, o Profeta [Paulo] prefere estar em todo instante do tempo presente com a Igreja [...] no inferno, a estar com os pietistas [...] em um céu que não existe. [...] Cristo está lá onde se reconhece inconsolavelmente que fomos banidos de sua presença287

Dessa forma, o autor sublinha a relativa importância do papel da igreja no

contexto da justificação divina, pois “é justamente na realidade da Igreja que se

contempla o invisível e é nesta conjuntura humana que os olhos se abrem para ver a

Deus.”288 É depois que o ser humano chega “ao extremo do beco sem saída do

humanismo eclesiástico, que se pode considerar o tema ‘Deus’ de forma séria e

282 Ibid. 283 Ibid., p. 518. 284 Ibid. 285 Ibid., p. 523. 286 Cf. Ibid. 287 Ibid., p. 524. 288 Ibid., p. 525.

58

radical.”289 Assim, “a atividade Eclesiástico-Religiosa não pode ser evitada [... pois]

no presente século o relacionamento não-eclesiástico entre criatura e Deus é tão

impossível quanto a inocência paradisíaca.”290 Logo, Barth assevera: “não podemos

contornar a Igreja e [...] fora dela não podemos prosseguir”.291

Na visão barthiana, a tribulação da igreja ocorre precisamente na tensão

existente entre a sua perspectiva ideal, encontrada na sua vocação divina, e sua

realidade humana, natural e concreta. De acordo com sua realidade humana, a igreja

pretende “alcançar o cumprimento da promessa [divina] deste lado da existência e,

como tudo o que é humano, quer viver para sempre e triunfar.”292 Mas na perspectiva

de sua vocação divina, ela “precisa viver da promessa e diminuir sempre para que

[Cristo] cresça.”293 Contudo, embora essa tribulação seja a fonte de sua aflição, ela é

também a fonte da esperança da igreja.

2.1.4.2 A culpa da Igreja

Barth explora o tópico da culpa da igreja na perspectiva da tendência natural

de sua realidade humana, conforme abordado na questão da tribulação da igreja.

Nesse sentido, são esboçadas diversas críticas à igreja a partir de um eixo comum: a

falta do elemento da fé.

O autor utiliza o pensamento de Lutero ao afirmar que a igreja necessita “ter a

ousadia de começar pela ‘escuridão’ da fé”.294 Mas ele considera que ao longo dos

séculos a igreja não apresentou esse tipo de coragem, preferindo orientar-se pela

visibilidade das obras. Para ela, a atitude de fé exibida em Hebreus 11 pareceu

acentuadamente perigosa e desumana. Ela não deseja ser estrangeira no mundo, nem

isolada na solidão do deserto. Por isso, nas palavras de Barth a igreja não se

conforma em permanecer no ponto inicial do Cristianismo – a paixão do Cristo

abandonado –, onde os ponteiros do relógio do tempo ainda não marcavam a

ressurreição. Ela tem muita pressa. Está faminta da alegria da festa nupcial.295

Assim, ao contrário da proposta de vacuidade da fé, a igreja busca ser

popular, moderna, atualizada, triunfante, altiva. Mas desse modo, Barth indica que

289 Ibid. 290 Ibid., p. 521. 291 Ibid., p. 525. 292 Ibid., p. 536. 293 Ibid. 294 Ibid., p. 568. 295 Cf. Ibid.

59

ela nunca será a igreja de Deus, pois não conhece nem almeja o arrependimento.296

Por outro lado, a proposta da fé aponta a necessidade de a igreja “despertar e viver

[a] religião que seja [apenas] sinal e testemunho”.297 Barth enfatiza essa vacuidade

afirmando que é preciso “estar com as mãos vazias para agarrar aquilo que, na

realidade, somente mãos vazias podem segurar”.298

Deve-se enfatizar, no entanto, que a abordagem barthiana da culpa da igreja

não pode ser entendida como uma crítica puramente anti-eclesiástica ou anti-

religiosa. O autor deixa claro que “quando falamos da Igreja, falamos de nós

mesmos”,299 porque “fazemos parte desta Igreja culposa”.300 Assim, ao tratar da

culpa da igreja, “todos aqueles que levam o incontornável problema da Igreja a sério

tanto são acusados como acusadores.”301

2.1.4.3 A esperança da Igreja

Ao ponderar sobre a esperança da igreja, o teólogo suíço expõe a chave de

entendimento da problemática da aparente rejeição de Israel aliada à salvação dos

gentios, conforme registrada nos capítulos 9 a 11 de Romanos, que é aplicada

diretamente ao contexto da igreja e da religião. A base inicial para a exposição de tal

chave é a reiteração da realidade ambígua da igreja, visto ser ela também o “lugar

onde a inimizade do homem contra Deus vem a público”.302 Barth entende que a

igreja gera e desenvolve uma criatura piedosa que através de todo o seu

conhecimento, suas obras e orações, se sente justificada diante de Deus,303 pois

presume ter encontrado “um caminho direto entre os homens e Deus”.304

No entanto, o autor pondera que enquanto o indivíduo religioso segue por este

pretenso caminho direto, este percebe que outros, que não são da igreja, antes estão

fora dela, que estavam em um caminho indireto, receberam aquilo que ele buscava,

experimentaram o poder da ressurreição. Esta mensagem do caminho indireto, então,

testifica a inutilidade do caminho direto, a catástrofe da justiça ou retidão humana.305

296 Cf. Ibid., p. 571. 297 Ibid., p. 578. 298 Ibid., p. 586. 299 Ibid., p. 572. 300 Ibid., p. 573. 301 Ibid., p. 572. 302 Ibid., p. 642. 303 Cf. Ibid. 304 Ibid., p. 643. 305 Cf. Ibid., p. 646.

60

Segundo a linguagem bíblica, os gentios que antes eram rejeitados, agora

foram eleitos.306 Surge o que Barth chama de “Igreja de Jacó”.307 Ao passo que os

judeus e as pessoas de igreja, que antes eram eleitos, agora foram rejeitados. Estes

formam a “Igreja de Esaú”. O autor comenta que a revelação divina, primeiramente,

privilegiou a Israel (a igreja). Mas ao invés de buscar amar a Deus e ao próximo, este

se materializou como Esaú, “procurando valer-se do seu direito nato de

primogenitura”,308 e se ensoberbeceu como Faraó, ao confiar em seu poderio real e

seus bens materiais.309 Portanto, os papéis então se invertem. O antigo depositário da

promessa divina, o ser humano religioso buscou para si a justificação meritória e se

opôs a Deus, despertou sua ira. Assim, sacrificado e abandonado dentro da igreja, o

ser humano religioso dá lugar à justificação forense dos não-religiosos.310

Mas Barth enfatiza que através do “endurecimento” e “rejeição” dos que

pertencem à igreja e da “eleição” dos que dela não fazem parte. Deus fala a ambos:

rejeitados e eleitos. Em primeiro lugar, os atualmente eleitos perceberão que se Deus

não poupou aqueles que presumiam “adorá-lo na exteriorização do culto, muito

menos poupará a eles que nem isto fazem”.311 Por sua vez, os religiosos rejeitados

entenderão que se Deus usou “de misericórdia para com aqueles que não

306 Em sua interpretação existencial, Barth não aplica aos termos “rejeição” e “eleição” uma noção histórica que busque dissociar dois grupos de seres humanos, representados por gentios e judeus. Em realidade, para Barth a eleição ou predestinação “é o segredo do ser humano e não desta ou daquela pessoa” (Ibid., p. 538). Por isso, rejeição e eleição parecem funcionar de maneira dialética: “Deus é o princípio e, por isso também o último. Deus rejeita, por isso também elege; Deus condena e por isso, também agracia. Deus leva ao inferno e por isso também conduz para fora dele.” (Ibid., 606). 307 Cf. Ibid., p. 647. Em sua contraposição entre “Igreja de Esaú” e “Igreja de Jacó”, Barth enxerga na primeira a igreja visível e conhecida, enquanto que a segunda se refere a uma igreja impossível (do ponto de vista humano), invisível e desconhecida (cf. Ibid., p. 530). Mas conforme a nota anterior explicita, Barth não procura categorizar historicamente dois tipos de igreja ou pessoas, mas vê aqui uma relação dialética: “Jacó é o Esaú invisível e Esaú o visível Jacó” (Ibid., p. 538). 308 Ibid., p. 645. 309 Cf. Ibid. 310 Cf. Ibid., p. 645. Em sua discussão acerca da oposição entre “igreja” (religiosos) e “mundo” (gentios, não-religiosos), Barth não entende que essas categorias devam ser interpretadas como grandezas históricas, mas sim dialéticas. Portanto, no raciocínio dialético “Igreja” e “Mundo” são mantidos unidos pela infinita diferença qualitativa entre Deus e o ser humano – “ali significa a rejeição e aqui a eleição. Este vínculo torna [...] impossível dissociar a humanidade para formar os dois respectivos grupos.” (Ibid., p. 624). A partir desse esclarecimento, é possível perceber que as contínuas contraposições que caracterizam as discussões de Barth não devem ser interpretadas como grandezas históricas: nova criatura/ velha criatura; eleição/rejeição; judeus/gentios. (cf. Ibid., p. 639). Nessa teologia dialética, a figura de Jesus Cristo exerce o papel fundamental de síntese: “Enquanto a temporalidade e a eternidade, retidão humana e Justiça divina, o ‘aquém’ e o ‘além’, são definitiva e indubitavelmente separados entre si, em Jesus, também nele são eles unidos e unificados, em Deus” (Ibid., p. 172). 311 Ibid., p. 645.

61

[confessavam...] ostensivamente o seu santo nome, tanto mais se compadecerá deles,

que o confessam e porfiam por servi-lo.”312

Desse modo, Barth interpreta a atitude de Deus em “rejeitar” o ser humano

religioso, constitui também um ato de amor e misericórdia para com ele. Talvez, só

com o quadro vívido do perdão e da compaixão divina em favor dos não-religiosos

que nada possuíam para justificar esse perdão, ele possa cair em si, e buscar nada

mais que esvaziamento e carência da graça de Deus. Utilizando uma frase de

Nietzsche, Barth pondera: “Só onde existem túmulos, há ressurreições” (Nietzsche), mas há ressurreições onde sempre existem túmulos. Onde a Igreja estiver extinta (não por força do desejo – ou voto – humano, mas pelo julgamento divino!) aí ela tem o seu início; quando ela for destituída completamente da razão (da justificação), aí começa sua razão. Onde e quando todas as Igrejas estiverem liquidadas (por Deus!), aí e então todas elas subsistem; aí e então todas são indicação, soleira de entrada, flecha indicativa da outra margem do rio; testemunhas da esperança, mensageiros da filiação em Cristo, tabernáculos de Deus entre os homens.313

Na perspectiva barthiana, a chave de compreensão de todo o livro de

Romanos se encontra neste terrível e inquietante axioma: “Porque Deus a todos

encerrou na desobediência, para que tenha compaixão de todos.”314 Esta afirmação

deixa nítida a implicação de que não há caminho direto para Deus. Na linguagem

barthiana, não é possível agarrá-lo ou amarrá-lo, nem entrar em relacionamento de

reciprocidade com ele. Portanto, a partir da perspectiva deste axioma, especialmente

em suas implicações, nas palavras de Barth, a falácia da religiosidade humana é

desmascarada e anulada.

2.2 A crítica da religião em Church Dogmatics

Como mencionado anteriormente, o tema da religião aparece na Church

Dogmatics, de forma específica e concentrada, no § 17, que é traduzida na versão

convencional como “The Revelation of God as the Abolition of Religion”. Neste

texto, a discussão de Barth acerca da relação entre revelação e religião está

estruturada em três partes principais: (1) o problema da religião na teologia; (2) 312 Ibid. 313 Ibid., p. 640. 314 Ibid., p. 648. Citação de Romanos 11:32. Há aqui uma direta conexão entre este axioma e o que para Lutero representava o ponto central desta epístola e de toda a Escritura: “Porque não há distinção, pois todos pecaram e carentes estão da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” Romanos 3:22-24 (Ibid., p. 149).

62

religião como ausência de fé; e (3) a verdadeira religião. Este trabalho contemplará a

apresentação desse texto a partir de uma leitura comparada, em inglês, da tradução

convencional de Church Dogmatics e a nova tradução provida por Garrett Green em

On Religion.

2.2.1 O problema da Religião na Teologia

Barth inicia sua problematização da religião na teologia destacando que o

evento da revelação de Deus, tanto a realidade quanto a possibilidade do evento da

revelação se dá unicamente a partir da existência e da ação de Deus.315 Tal percepção

impede qualquer tentativa de compreensão dual da revelação, isto é, a noção de que

sua realidade se encontra em Deus, mas sua possibilidade no ser humano; ou em

outros termos, a atribuição do evento da revelação a Deus, mas o seu ponto de

contato ao ser humano. Assim, para Barth este evento não se caracteriza pela

reciprocidade entre Deus e o ser humano, entre a graça e a natureza. Logo, na visão

do autor, não se pode considerar Deus como substância, e o ser humano como forma

da revelação.316

Contudo, o teólogo suíço reconhece que a revelação é um evento que

encontra o ser humano, e por isso, em certo sentido, ela ganha a forma da existência,

experiência e atividade humana. É precisamente neste ponto que surge o problema da

religião.317 Assim, se a revelação assume a forma de um fenômeno humano, ele pode

ser compreendido histórica e psicologicamente, e estudado em sua natureza,

estrutura, e valor assim como outros fenômenos humanos. Seguindo essa perspectiva,

o autor indica que esse entendimento da revelação parece ser, necessariamente,

apenas uma esfera particular no universo da religião. Desse modo, o Cristianismo ou

a “religião cristã” seria apenas um predicado para um sujeito que pode ter outros

predicados, pois ao lado do Cristianismo há o Judaísmo, Islamismo, Budismo,

Xintoísmo e todos os tipos de animismo, totemismo e religiões ascéticas, místicas e

proféticas. Nesse caso, nos termos barthianos, o Cristianismo figura como uma face

ao lado de outras faces humanas.318

315 Cf. Karl Barth, Church Dogmatics. I/2. Edinburgh: T&T Clark, 1956, p. 280. 316 Cf. Ibid. 317 Cf. Ibid. 318 Cf. Ibid.

63

Segundo esse ponto de vista, Barth assevera que o ser humano,

universalmente - portanto além dos limites do Cristianismo -, parece se sentir

confrontado por certas forças superiores que exercem influência sobre o mundo.

Parece que, em todas as épocas e lugares, a cultura humana em geral, e a existência

humana em particular, está relacionada com algo último e decisivo que caracteriza

um poderoso rival de sua própria vontade e poder. Nesse sentido, tanto a “cultura

como a existência parece ser determinada, ou parcialmente determinada, pela

reverência a algo ostensivamente maior que o homem, por algum Outro ou

Totalmente Outro, por um Supremo Relativo ou mesmo Absoluto.”319

Da mesma forma, em quase todas as épocas e lugares há a noção da realidade

e possibilidade de consagração ou santificação da vida humana com base em um

esforço individual ou social que se refere a um evento que vem do além, que

geralmente resulta na representação concentrada do objeto ou alvo do empenho, ou

da origem do evento, em imagens de deuses. Barth ressalta que é difícil encontrar um

tempo ou lugar onde o ser humano não afirme ouvir a voz da divindade, cuja

mensagem deve ser investigada e proclamada,320 e não esteja consciente da

obrigação de oferecer adoração através das formas concretas de culto, tais como o

uso de imagens e símbolos dos deuses, sacrifícios, atos de expiação, orações,

costumes ou formação de congregações ou igrejas. Ele também identifica temas

comuns que permeam universalmente a mentalidade humana nas diversas religiões: o

início e fim do mundo, origem e natureza do ser humano, lei moral e religiosa,

pecado e redenção. Portanto, a própria prática da piedade representa uma postura

universal do ser humano nas várias religiões.321

O que Barth procura salientar em todas essas observações é que o

Cristianismo não se difere das outras religiões. Em sua revelação Deus entra na

esfera onde sua própria realidade e possibilidade está cercada por inúmeros paralelos

e analogias de realidades e possibilidades humanas. Assim, a revelação representa a

presença e o ocultamento de Deus no mundo da religião humana. Pela revelação de si

mesmo, o particular de Deus está oculto na universalidade humana, o conteúdo

divino na forma humana. Na medida em que represente a revelação de Deus ao ser

humano, as realidades de Deus em si mesmo, o derramamento do Espírito Santo, e a 319 Ibid., p. 282. 320 Cf. Ibid. Barth cita alguns exemplos: os Vedas para os hindus, Avesta para os persas, Tripitaka para os budistas, Corão para os islâmicos e a Bíblia para os cristãos. 321 Cf. Ibid.

64

encarnação da Palavra, de certo modo podem ser percebidas a partir do fenômeno

humano religioso, pois estas realidades se encontram ocultas ao lado de outros

conteúdos desse fenômeno, que por outro lado inviabilizam a percepção direta do

conteúdo da particularidade divina.322

Através dessas considerações, o teólogo suíço questiona a possibilidade de

isolar o Cristianismo do mundo da religião, sublinhando, em certa medida, a crítica

de Strauss323 àqueles que defendem o caráter sobrenatural e revelacional do

Cristianismo. Desse modo, o autor propõe entender o Cristianismo “também” como

religião, isto é, “também” como realidade e possibilidade humana. Ao fazer tal

proposição, ele procura explicar o que significa exatamente o termo “também” nesse

contexto. Segundo Barth existem duas formas de explicá-lo.324 Mas antes de

apresentar as duas possibilidades, é necessário clarificar a questão central: Barth não

discute aqui se a revelação divina deve ser considerada também como religião

humana, e então uma religião entre outras, pois negar essa asserção significaria

desconsiderar o aspecto humano da revelação e, por conseguinte, negar a revelação

como tal. Em realidade, o foco do pensamento de Barth está em como interpretar e

aplicar essa asserção. A primeira possibilidade dessa interpretação e aplicação se

caracteriza pelo uso da religião como parâmetro para explicar a revelação de Deus,

ao passo que, inversamente, a segunda possibilidade envolve a interpretação da

religião cristã e das outras religiões pelo que é chamado de revelação de Deus.325

A partir dessas duas possibilidades, o teólogo suíço expõe uma série de

temas contendo duas perspectivas divergentes, cuja primeira perspectiva se alinha

respectivamente à primeira possibilidade (o parâmetro da religião), enquanto que a

segunda perspectiva se alinha à segunda possibilidade (o parâmetro da revelação):

(1) considerar a religião como “o” problema da teologia e (2) considerá-la apenas

como “um” problema na teologia; (1) considerar a igreja como uma sociedade

religiosa e (2) considerá-la como uma situação na qual mesmo a religião é

“sublimada” no mais abrangente sentido da palavra; (1) considerar a fé como uma

forma da piedade humana e (2) considerá-la como uma forma do julgamento e da

322 Cf. Ibid., p. 282-283. 323 David Friedrich Strauss (1808–1874) foi o teólogo alemão que ficou conhecido como pioneiro da investigação histórica de Jesus. 324 Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 283. 325 Cf. Ibid., p. 283-284.

65

graça de Deus, a qual é natural e concretamente conectada à piedade do ser humano

em todas as suas formas.326

Em sua análise histórica, o autor identifica que o Protestantismo moderno dos

séculos XIX e XX, desenvolvido a partir de suas raízes dos séculos XVI e XVII,

optou pela primeira perspectiva, isto é, decidiu explicar a revelação do ponto de vista

da religião, e não a religião do ponto de vista da revelação. Nesse sentido, Barth cita

Paul de Lagarde327 ao ressaltar que o termo religião é introduzido nesse contexto em

oposição à palavra fé, pressupondo o criticismo deísta do conceito cristão tradicional

da revelação.328 Ao voltar seus olhos para a história da teologia, Barth enfatiza que,

no período medieval, Tomás de Aquino falava da religião no contexto da fé cristã.

Sua noção de religião não contemplava qualquer manifestação que estivesse fora do

Cristianismo. Portanto, a religião enquanto conceito genérico ao qual o Cristianismo

estaria subordinado, como um entre outros, é completamente estranho para Aquino.

Posteriormente, depois do surgimento do humanismo, Calvino falou da religião

cristã, inclusive no título de sua obra magna. Mas ele não tinha a intenção de fazer do

Cristianismo um predicado de algo neutro e universalmente humano. De fato, o que

ele descreve como religião pura e real nas Institutas é a fé aliada ao temor de Deus.

O seu conceito de religião deriva-se das Escrituras, na qual o universal é sublimado

no particular, a religião na revelação, e não vice-versa. A religião, para ele, recebe

seu conteúdo e sua forma da revelação, no contexto do Cristianismo.329

Na compreensão barthiana, embora a problemática da religião em seu

relacionamento com a revelação apareça como assunto importante já desde o

surgimento da Renascença,330 de maneira geral, não há uma discussão sistemática do

conceito de religião desde os antigos teólogos ortodoxos luteranos e reformados,331

até a ortodoxia luterana e reformada da segunda metade do século XVII. Ali, o

326 Cf. Ibid., p. 284. 327 Paul Anton de Lagard (1827-1891) foi um teólogo alemão, geralmente considerado anti-semita e anti-capitalista. Para uma discussão geral da oposição entre a fé a religião na teologia veja John Thornhill, Is religion the enemy of faith? Theological Studies, v. 45, 1984, p. 254-274. 328 Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 284. 329 Cf. Ibid., p. 285. 330 Barth indica que o problema já havia sido colocado na Idade Média por Claudius de Turin, John Scot Erigena e Abelardo. Mas ele se tornou importante apenas depois do despontar da Renascença. (Cf. Ibid., p. 284). 331 Barth destaca aqui os nomes de J. Gerhard, L. Hutters na ala luterana e Bucan, H. Alting, Gomaruse Voetius, J. Coccejus na ala reformada (Cf. Ibid., p. 285).

66

conceito de religião ainda é preenchido apenas pelas Escrituras. Portanto, não há

como apontar algum desvio da linha adotada por Calvino nesse período.332

No entanto, a mudança começa a ocorrer com o florescimento do chamado

Neoprotestantismo, um movimento da ortodoxia racional do início do século XVIII.

O autor ressalta as idéias de dois teólogos desse período: Salomon van Til (1643-

1713) da ala reformada, e J. Franz Buddeus (1667-1729) do lado luterano.

Panoramicamente, van Til concebia a religião enquanto categoria universal, natural e

neutra, que servia de pressuposição e arcabouço para todas as religiões. Por sua vez,

Buddeus falava de uma religião natural no ser humano que servia como base para o

conhecimento do Ser supremo.333 Em linhas gerais, ao discorrerem sobre a natureza e

o papel de uma religião natural, van Til e Buddeus utilizavam conceitos da Teologia

Natural, enfatizando consideravelmente o uso da razão e do intelecto humano.

Todavia, ambos reconheciam a necessidade de resguardar o espaço e a primazia da

revelação. Van Til, por exemplo, apontava que o princípio da religião ou da razão

não deve ocupar o mesmo lugar do princípio da fé. Em sua diferenciação, ele

entendia que a religião é simplesmente um conhecimento inicial do ser humano

acerca de si mesmo e de Deus. Já Buddeus esclarecia que a religião natural não é

suficiente para alcançar a salvação, indicando a indispensável necessidade de

completar a limitação religião natural com a revelação.334

Contudo, para Barth, as implicações de suas idéias elevaram a religião ao

posto de elemento central do pensamento teológico, que por sua vez passou a

representar a pressuposição, o critério, o arcabouço necessário para o entendimento

da revelação. Desse modo, o novo ponto de partida teológico que foi sugerido desde

a Renascença se tornou uma realidade. Enquanto a religião assumiu-se como

categoria humana neutra e universal, a revelação foi entendida meramente como a

confirmação histórica do que o ser humano pode conhecer sobre si e sobre Deus.335

Com efeito, van Til e Buddeus não queriam obliterar a revelação. De certo modo,

eles e outros teólogos daquela geração sabiam salvaguardar os direitos da revelação.

Aliás, o principal objetivo deles era encontrar uma concordância entre o dogma

tradicional bíblico e os postulados da religião natural, permitindo a afirmação de uma

genuína religião da revelação. O resultado esperado era estabelecer a religião cristã 332 Cf. Ibid., p. 287. 333 Cf. Ibid., p. 288. 334 Cf. Ibid., p. 289. 335 Cf. Ibid.

67

como a mais adequada resposta do mundo religioso por ser a religião da revelação,

merecendo, por isso, prioridade sobre as outras religiões. De maneira geral, expressa

Barth, eles não fizeram nenhum desvio notável da linha ortodoxa do século XVII.336

Mas o autor entende que, ao inverterem o ponto de partida da teologia, os

efeitos foram ganhando forma e força. A filosofia de Christian Wolff nivelou razão e

revelação. O racionalismo kantiano reduziu a religião natural à ética natural, e

praticamente anulou a revelação, que foi concebida como realização do poder moral

da razão. Inversamente, Schleiermacher tentou encontrar na religião (entendida como

sentimento) a essência da teologia, percebendo a revelação como uma impressão

particular que produz um sentimento particular, e então uma religião particular. Por

sua vez, na perspectiva de Hegel e Strauss a religião cristã e natural era apenas uma

forma preliminar, para ser sublimada dentro do conhecimento absoluto da filosofia.

Já em Feuerbach há espaço para a religião natural apenas como expressão ilusória

dos desejos do coração humano. Na análise da religião natural, E. Troeltsch procurou

comparar de forma apreciativa as várias religiões do mundo no contexto do

fenômeno da história universal das religiões, e chegou à conclusão de que o

Cristianismo é ainda relativamente a melhor religião.337

Para Barth, todos esses exemplos rápidos e gerais dão testemunho da invasão

da igreja e da teologia pela religião natural, algo que van Til e Buddeus nunca

poderiam ter sonhado. Mas, para o teólogo suíço, eles e a respectiva geração que os

acompanhou devem ser considerados como os pais da teologia Neoprotestante, um

caminho muito diferente daquele trilhado e indicado pela tradição da Reforma.338

Portanto, na perspectiva barthiana da história da teologia, todos esses exemplos

traçados no parágrafo anterior são simples variações de um único tema introduzido

principalmente por van Til e Buddeus: não é a religião que deve ser entendida à luz

da revelação, mas a revelação entendida à luz da religião. Em realidade, para Barth,

todas as ênfases e tendências da teologia moderna podem ser reduzidas a esse

denominador comum. É por isso que ele chama o Neoprotestantismo de

“religionismo”.339

A partir de sua análise histórica, o teólogo suíço afirma que a teologia

protestante nunca teria praticado a inversão da relação entre revelação e religião se 336 Cf. Ibid., p. 289-290. 337 Cf. Ibid., p. 290. 338 Cf. Ibid. 339 Cf. Ibid., p. 291.

68

não tivesse hesitado exatamente no ponto em que os Reformadores mais

enfaticamente confessavam e defendiam: Jesus Cristo como Senhor do ser humano.

Nesse sentido, o ser humano pertence a Jesus Cristo e vive para servi-lo em seu

reino.340 De fato, os séculos XVI a XVIII contribuíram para uma percepção bastante

diversa desse princípio. Esse foi o grande período em que o ser humano europeu

retomou uma aspiração que caracterizava a Antigüidade greco-romana: a descoberta

das potencialidades humanas, na qual também se insere a redescoberta da religião e

sua ênfase. Especialmente nos século XVII e XVIII o ser humano se tornou o centro,

a medida e o fim de todas as coisas. Na linguagem de Barth, ao participar desse

paradigma antropocêntrico, a teologia moderna julgou que poderia levar o ser

humano a sério a partir de outro ponto de vista, que não fosse o reino e o senhorio de

Cristo, tornando-se um capítulo especial que precede a palavra de Deus falada ao ser

humano. O resultado inevitável dessa empreitada foi a negação ou omissão da real

substância da fé.341

O autor indica que a grande catástrofe da teologia moderna protestante foi a

perda de seu objeto: a revelação em toda a sua singularidade. Nisso se perdeu

também a semente da fé que poderia remover montanhas, mesmo as montanhas da

cultura humanista moderna. Essa perda se evidencia pela troca da revelação pelo

paradigma da religião.342 Nesse sentido, talvez a expressão barthiana que melhor

caracterize a postura dessa teologia é a “falta de fé”. Através dessa exemplificação

histórica, Barth esclarece que a tentativa de classificação sistemática da revelação e

da religião, que busca estabelecer algum tipo de relação entre elas como se estas

estivessem em esferas comparáveis, representa um erro crucial. Em realidade, esse é

o ponto de vista da religião, a visão humana que tende a subordinar a revelação à

religião. Logo, quem procura comparar ou conciliar revelação e religião não

entendeu ainda o que é a revelação, que se define, no pensamento do teólogo suíço,

pela soberania de Deus lidando com o ser humano.343

Para Barth, é o ponto de vista da analogia da fé que provê o parâmetro

adequado para entender a revelação e a religião. Mais especificamente, o paradigma

cristológico da encarnação da Palavra: em Jesus Cristo, Deus e ser humano formam a

unidade de um evento completo. Semelhantemente, a unidade da revelação divina e a 340 Cf. Ibid., p. 292. 341 Cf. Ibid., p. 293-294. 342 Cf. Ibid., p. 294. 343 Cf. Ibid., p. 294-295.

69

religião humana constitui um evento - que ainda deve ser completado. Em ambos

Deus é o sujeito do evento. Assim como no primeiro caso, o homem Jesus não existe

antecipadamente de forma abstrata, mas somente na unidade do evento cujo sujeito é

Deus, também no segundo caso o ser humano com sua religião deve ser visto

estritamente como o ser humano que segue a Deus, isto é, que é precedido por

Deus.344 Resumidamente, o que Barth procura estabelecer em sua discussão do

problema da religião na teologia é que: em Sua revelação Deus está presente no meio do mundo da religião humana. Mas é importante ver o que significa dizer que Deus está presente. Esta é basicamente uma tarefa de re-estabelecer a ordem dos conceitos revelação e religião de tal modo que a relação entre eles torne-se compreensível novamente como idêntica ao evento entre Deus e o homem no qual Deus é Deus – isto é, o Senhor do homem, que somente ele julga, justifica e santifica – mas também que o homem é homem de Deus – isto é, aceito e recebido por Deus através de sua severidade e bondade. Lembrando a doutrina cristológica da encarnação, e aplicando-a logicamente, nós falamos da revelação como a sublimação da religião.345

2.2.2 Religião como ausência de Fé

Essa seção é introduzida pela asserção de que a avaliação teológica da

religião e das religiões precisa ser muito cautelosa em seus julgamentos.346 Ao

entender a religião como uma expressão e atividade basicamente humana, o teólogo

suíço se opõe à noção de “essência da religião”347 (que procura encontrar sua

natureza única, singular) que constitui um critério para comparar e “mensurar” as

religiões, considerando algumas superiores e outras inferiores. Do ponto de vista da

revelação divina, afirma Barth, só é possível fazer um uso incidental de alguma

definição imanente da essência da religião. Portanto, o autor afirma a impossibilidade

344 Cf. Ibid., p. 297. 345 Karl Barth, On Religion, op. cit., p. 52. A única diferença substancial entre a tradução deste parágrafo feita por Green e o texto inglês tradicional é que o primeiro traduz “revelation as the sublimation of religion”, enquanto que o outro traduz “revelation as the abolition of religion”. (Cf. Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 297). Essa opção de tradução da Dogmática é praticamente constante no texto. Green, no entanto, compreende que o termo alemão Aufhebung deve ser compreendido à luz do pensamento dialético de Barth, que contempla a abolição mas também a elevação. Portanto, a opção de tradução por “sublimação” assume uma noção mais abrangente daquilo que Barth quer realmente expressar. 346 Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 297. 347 Provavelmente essa seja uma alusão à questão da essência (Wesen) da religião do século XIX, expressa principalmente por L. Feuerbach em A Essência do Cristianismo e nas aulas de Adolf von Harnack em 1900 sobre “A Essência do Cristianismo” (veja essa aula em A. Harnack, What Is Christianity. New York: Harper & Row, 1957). Cf. nota 43 do tradutor em K. Barth, On Religion, op. cit., p. 131.

70

de distinção entre o Cristianismo e as outras religiões a partir do conceito de essência

da religião.348

Desse modo, ao invés de seguir o raciocínio do conceito de “essência da

religião”, que define a religião pelo que ela necessariamente possui, Barth prefere

adotar uma perspectiva contrária. Ele enxerga a religião a partir do que ela

necessariamente não tem ou lhe falta: a religião é ausência de fé.349

Isso significa que a religião é a grande preocupação do ser humano sem

Deus.350 Seguindo essa compreensão, Barth cita Lutero: “a piedade do homem é

absoluta blasfêmia contra Deus e o grande pecado que o homem comete. [...] os

caminhos nos quais o mundo estima como adoração a Deus e como piedade – são

piores aos olhos de Deus do que qualquer outro pecado. Isto se aplica aos padres e

monges e ao que parece bom aos olhos do mundo, todavia, é sem fé.”351

O teólogo alemão menciona que a proposição de que a piedade humana é uma

marca característica da ausência de fé da religião, aponta para o julgamento da divina

revelação sobre todas as religiões, especialmente a cristã. Entretanto, não é possível

traduzir especificamente, em termos humanos, o julgamento divino de que a religião

é ausência de fé, enquanto julgamento de tudo que é humano. De outro modo, o

entendimento da religião como ausência de fé pode ser vista unicamente a partir do

ponto de vista da revelação como atestada nas Escrituras Sagradas, sobretudo em

dois aspectos esclarecedores que nelas se encontram: (1) A revelação é o auto-

oferecimento e a auto-apresentação de Deus; (2) A revelação é o ato pelo qual Deus

reconcilia o ser humano consigo.352

A percepção de que a revelação representa o auto-oferecimento e a auto-

apresentação de Deus indica que, ao encontrar o ser humano, a revelação confirma a

completa futilidade da tentativa de conhecer a Deus pela perspectiva humana. Em

outros termos, a revelação diz ao ser humano algo que ele nunca viria saber a partir

de outras fontes de conhecimento. Portanto, o conhecimento humano de Deus se

348 Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 298. 349 Cf. K. Barth, On Religion, op. cit., p. 55. Green explica que o termo alemão utilizado por Barth como chave para toda a discussão dessa seção é Unglaube. Este é o oposto do termo Glaube, que pode ser traduzido como crença ou fé. A Church Dogmatics optou traduzi-lo como unbelief (incredulidade, descrença). No entanto, o contexto do uso deste termo indica que Barth não está primariamente pensando na religião em termos de falta de crenças, mas pela sua falta de fé (faithlessness). Cf. nota 3 do tradutor em Ibid., p. 134-135. 350 Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 300. 351 Ibid. Este é um trecho do sermão de Lutero sobre I Pedro 1:18 de 1523. Cf. Luther’s Works, vol. 30: The Catholic Epistles, ed. Jaroslav Pelikan. St. Louis: Concordia, 1967, p. 36-37. 352 Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 300-301.

71

torna possível apenas porque Deus se ofereceu e se apresentou ao ser humano,

deixando-se conhecer.353

Contudo, Barth explicita que a revelação não alcança o ser humano em um

estado neutro. Antes, ela o alcança como pessoa religiosa, isto é, o alcança no meio

de sua própria tentativa de conhecer a Deus através de sua ótica e esforço. Em

realidade, em correspondência à revelação, a atitude humana mais adequada deveria

ser a fé - o reconhecimento do auto-oferecimento e a auto-apresentação de Deus, o

reconhecimento de que na ótica divina, as obras humanas são vãs. Logo, à luz de tal

reconhecimento o ser humano deveria privar-se de todas as tentativas de alcançar a

verdade, permitindo que ela fale por si mesma a ele, deixando-se ser alcançado por

ela.354

Todavia, a atitude humana religiosa é contrária à atitude ideal da fé. Do ponto

de vista da revelação, a religião humana apresenta-se como resistente a ela. Isso

significa que a religião torna-se a iniciativa pela qual o ser humano se antecipa àquilo

que Deus faz em sua revelação. Assim, a ação divina é substituída pela obra humana.

Em lugar da realidade divina oferecida e apresentada pelo próprio Deus através da

revelação, a religião coloca uma imagem de Deus desenvolvida arbitrária e

deliberadamente pelo próprio ser humano. Nesse sentido, Barth cita o pensamento

esboçado por Calvino que considera a genialidade humana como uma “fábrica de

ídolos”: “o homem é tentado a expressar externamente em obras o Deus que ele

concebeu internamente. Portanto, a mente concebe um ídolo, ao passo que a mão lhe

dá a luz.”355 No conceito barthiano, a imagem de Deus é uma realidade vista ou

pensada segundo a qual o ser humano assume e afirma o Real, o Último, o Decisivo.

Do ponto de vista da revelação, a religião humana contradiz a revelação. Por isso,

Barth caracteriza o ser humano religioso da seguinte forma: Se ele tivesse fé ele teria escutado, mas na religião ele fala. Se ele tivesse fé ele permitiria que algo fosse dado a ele; mas na religião ele toma algo por si mesmo. Se ele tivesse fé ele deixaria o próprio Deus ser Deus; mas na religião ele ousa alcançar Deus. Por causa dessa ousadia, a religião é a contradição da revelação, a expressão concentrada da falta de fé humana, isto é, a atitude e atividade diretamente oposta à fé. [...] ao criar o próprio objeto que ele só pode criar porque e se o próprio Deus criar para ele: o conhecimento da verdade, o conhecimento de Deus.356

353 Cf. Ibid., p. 301. 354 Cf. Ibid., p. 301-302. 355 Ibid., p. 302. Cf. J. Calvino, As Institutas da Religião Cristã, op. cit., 1. 11. 8. 356 K. Barth, On Religion, op. cit., p. 58.

72

Dessa forma, na religião o ser humano resiste e se fecha para a revelação

criando um substituto para ela, antecipando algo que deveria ser dado em revelação

pelo próprio Deus. Novamente, Barth cita Calvino ao salientar que na religião os

homens “não compreendem a Deus da maneira como ele se oferece, mas o imaginam

assim como o haviam criado com sua própria presunção.”357 Nesse caso, o ser

humano cria para si uma ficção, um anti-Deus, que nada tem a ver com Deus. Mas

essa ficção só pode ser reconhecida como tal a partir da verdade que vem da

revelação, ressalta Barth.358 Mas o teólogo suíço assevera que, assim como a religião

previamente contradisse a revelação, a revelação também contradiz a religião. A

revelação sublima a religião, do mesmo modo que a religião anteriormente sublimou

a revelação. Nos termos barthianos, da mesma forma que a fé não pode se prender a

uma falsa fé, mas deve contradizê-la – sublimá-la – como falta de fé, como um ato de

contradição.359 Quando a revelação entra em cena, seus raios de luz iluminam e

expõem a religião como oposição à revelação, como falsa religião que não tem fé.360

Nesse ponto se insere o segundo aspecto da revelação: o auto-oferecimento e

a auto-apresentação é o ato pelo qual Deus reconcilia o ser humano consigo. O autor

salienta que este ensino radical sobre Deus (o primeiro aspecto), é ao mesmo tempo a

sua ajuda radical (o segundo aspecto) que vem à humanidade injusta, profana,

amaldiçoada e perdida. Tal percepção mantém como pressuposto fundamental o fato

de que o ser humano não pode se ajudar seja parcial ou totalmente.361

A ligação entre os dois parágrafos anteriores se dá devido ao conceito

barthiano de que essa ajuda divina (isto é, sua revelação) ocorre enquanto

contradição. Em primeiro lugar, tendo em vista que na compreensão de Barth o único

meio de revelação divina é Jesus Cristo, o que a revelação em Jesus faz para ajudar o

357 K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 303. Cf. J. Calvino, As Institutas da Religião Cristã, op. cit., 1. 4. 1. 358 Cf. Ibid. 359 Cf. K. Barth, On Religion, op. cit., p. 59. Green ressalta que esta sentença relaciona duas das idéias mais importantes e controversas de Barth. A primeira delas é a de que, ao negar implicitamente que a revelação ‘se prende’ à religião (knüpft ... an), ele está enfatizando novamente seu conhecido argumento sobre o “ponto de contato” (Anknüpfungspunkt) para a revelação, de seu famoso debate com Emil Brunner (para entender melhor essa discussão veja Garrett Green, Imagining God. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1998, p. 29-33). A outra questão é mais uma vez o conceito de sublimação (Aufhebung). Especificamente neste contexto o aspecto negativo da sublimação - a suspensão ou mesmo abolição - parece ser privilegiado, mas para Barth o conceito é sempre dialético. Curiosamente, nesse parágrafo Barth não apenas repete sua tese central - de que a revelação sublima a religião - mas também declara explicitamente que a religião sublima a revelação. Cf. nota 11 do tradutor em K. Barth, On Religion, op. cit., p. 135. 360 Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 307. 361 Cf. Ibid.

73

ser humano não se caracteriza como ampliação ou aperfeiçoamento das tentativas de

compreender e apresentar Deus segundo os padrões humanos. Antes, tudo isso é

substituído pelo oferecimento e apresentação do próprio Deus. Aliás, considerando

que só em Cristo Deus reconcilia o mundo consigo, ele substitui todas as tentativas

humanas de reconciliação com Deus, todas as tentativas humanas de justificação,

santificação, conversão e salvação.362

Por sua vez, a segunda maneira pela qual a revelação contradiz a religião é

melhor compreendida na análise de como a religião contradiz a revelação, e

finalmente como ela contradiz a si mesma. O teólogo suíço ressalta que as religiões

possuem como característica universal a tentativa de se antecipar a Deus, fazendo

dele sua própria imagem, que primeiramente é espiritual, depois intelectual, e

finalmente visual. Essa é a necessidade humana de objetivar a Deus, condicionando-

o pela própria existência humana.363 A imagem desses deuses criados reflete a busca

pela garantia das necessidades e capacidades do ser humano, que em realidade está

sozinho e depende de si mesmo, de sua vontade e de seus feitos. Nesse sentido, na

visão barthiana, a fraqueza e a desobediência, o desamparo e a arrogância, a tolice e

a fantasia, estão próximos uns dos outros. O que o ser humano aspira nessa

empreitada é a justificação e santificação como suas próprias obras. Por isso, ele se

fecha para Deus, aliena-se dele e até mesmo se coloca em direção oposta a ele.364

Com esse quadro em mente, Barth diferencia uma pessoa piedosa de um

cristão genuíno, conforme menciona Lutero. Em suas palavras, a pessoa piedosa

pode ser louvada por suas qualidades, mas ainda assim continua sendo um filho de

Adão, alguém que está sob a sina do pecado e da morte. Por outro lado, um cristão

verdadeiro é diferente. Ele não é chamado de filho de Adão, mas de filho de Deus.

Ele depende do seu Salvador, e por esse motivo acredita possuir a graça de Deus, a

vida e a redenção eterna. Em outras palavras, nada disso foi alcançado, tomado, ou

obtido por seu próprio trabalho, virtude ou piedade.365 Tal caracterização do cristão

genuíno indica a atitude que provém da fé. O teólogo suíço compreende que alguém

pode entender a fé mais como confiança, ou mais como obediência, ou primeiro

como confiança e depois como obediência, ou de forma contrária, mas uma coisa é

certa: só é possível entendê-la do ponto de vista de seu objeto: Jesus Cristo. 362 Cf. Ibid., p. 308. 363 Cf. Ibid. 364 Cf. Ibid., p. 308-309. 365 Cf. Ibid., p. 310. Essas idéias estão no sermão de Lutero sobre S. João 16:5-15 de 1545.

74

Ademais, ele pondera que, no sentido do Novo Testamento, fé significa a sublimação

da autodeterminação humana. Por sua vez, o pecado sempre é ausência de fé, a essa

ausência de fé é sempre a fé do ser humano em si mesmo. Esta é, precisamente, a fé

que existe na religião.366

Mas além de contradizer a revelação, o autor salienta que a religião contradiz

a si mesma. Esse é o problema imanente da religião. Por sua própria luta, o ser

humano religioso se torna confuso. Ele mesmo se contradiz em seu pensamento e

vontade, se tornando frustrado, mas também excedido ou ultrapassado por uma

forma supostamente superior e mais refinada de religião ou forma de pensar. Então,

não somente ele, mas todo o sistema religioso vigente é questionado, deslocado e

colocado em perigo – é assim que ele chega a desistir de sua religião. Barth provê

dois exemplos extremos para expor o problema de contradição da religião: o

misticismo e o ateísmo. Ademais, estes exemplos também servem para corroborar a

noção barthiana de que todas as religiões são idolatria e obras de justiça, até mesmo

o pretenso estágio superior de religião que parece desejar combater a idolatria e as

obras de justiça pelos seus próprios poderes e métodos.367

Antes de colocar seus exemplos, Barth esboça algumas considerações

contextuais que serão úteis para suas aplicações. Primeiro ele declara que as duas

características principais e primitivas que são comuns a todas as religiões são (1)

representação da divindade e (2) o cumprimento da lei. É através delas que o ser

humano normalmente busca a satisfação das necessidades religiosas. Ambas

representam a necessidade humana da verdade superior e da certeza dentro dele, as

quais o ser humano acha que pode conquistar por si mesmo.368

Portanto, em sua busca corajosa de alcançar a verdade ele adapta a divindade

de acordo com a sua própria imagem, e ao buscar sua própria certeza ele procura

justificar-se e santificar-se de acordo com o que encontra na lei. No entanto, ao tentar

encontrar sua satisfação, ele já se encontra satisfeito. É por isso que a satisfação

religiosa é meramente provisória, pois ela representa uma expressão ou repetição de

algo que ele já possuía ou já estava vivendo. Aliás, a própria necessidade religiosa é

apenas uma realidade relativa. Pois, se necessário, o ser humano pode viver sem a

divindade que ele criou, sem o seu trabalho de justificação e santificação, visto que a

366 Cf. K. Barth, On Religion, op. cit., p. 71. 367 Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 314. 368 Cf. Ibid., p. 315.

75

religião funciona como a imagem no espelho, daquilo que o ser humano por si

mesmo é e tem. Logo, este quadro salienta a não necessidade e a fraqueza das

religiões.369

Então, no cenário histórico surge uma nova religião, que obviamente

apresenta uma nova imagem de Deus e uma nova lei. Esta é proclamada, aprovada,

alcança escopo histórico e se forma em lugar da velha religião. A autocontradição e a

impossibilidade da religião até então vigente se torna visível, por conta de mudanças

na existência humana, e sua morte é necessária para o surgimento de uma nova

religião. Em sua fraqueza e não necessidade, aquela religião se tornou duvidosa e a

sua lei opressiva. Mas essa crise religiosa transforma-se, em realidade, na busca de

uma nova religião.370

No entanto, essa nova rota religiosa, em certo ponto, se divide em duas

estradas chamadas misticismo e ateísmo. O misticismo caracteriza a libertação

humana da busca externa da satisfação das necessidades religiosas. Isso significa que

os místicos desejam internalizar e espiritualizar tudo o que foi ensinado e praticado

numa religião particular. Pois para eles, tudo o que for externo é mera imagem e

forma. Desse modo, o misticismo não ataca a religião aberta e diretamente. Ademais,

ele presume apresentar uma verdadeira amizade com Deus. Sua tarefa é fazer com

que a tradição religiosa testemunhe contra si mesma. Em conexão com esta tradição,

o misticismo irá afirmar aparentemente o oposto, clamando a liberdade somente para

esta interpretação da tradição, nunca a liberdade somente para abolir a tradição. Com

sua própria maneira, afirma Barth, o misticismo sinceramente ama a tradição, bem

como todo o seu sistema de religião externo. Assim, o autor questiona: o que seria o

misticismo sem sua contraparte do dogmatismo e da ética da tradição religiosa? O

que seria desmantelado, esvaziado, reduzido, negado, quando tal tradição religiosa

não mais existir? Para o Barth, o misticismo vive de sua contraparte.371

Semelhantemente, o ateísmo representa um movimento de negação da

tradição religiosa. Contudo, o teólogo suíço interpreta que, enquanto o movimento de

negação do misticismo é indireto e sutil, a atitude do ateísmo é aberta e direta. Ele

está em conflito aberto com a religião: ele ama a iconoclastia, a negação do dogma, a

emancipação moral. Nega a existência de Deus e validade da lei divina. Ele vive por

369 Cf. Ibid., p. 315-316. 370 Cf. Ibid., p. 317. 371 Cf. Ibid., p. 319-320.

76

e pelo não; só sabe como demolir. Barth considera que a força de sua lógica é mais

pujante que a do misticismo. Mas, de certo modo, sua intensidade é mais modesta.

Embora esteja contente em negar a Deus e sua lei, ele negligencia o fato de que fora

da religião também existem diferentes dogmas da verdade que podem a qualquer

momento se tornar religiosos. Nesse sentido, o ateísmo afirma a realidade da

natureza, história, cultura e moralidade humana. Estas são as autoridades e poderes

às quais o ateísmo tem o hábito de se aliar na luta contra a religião. Assim, o ateísmo

contrapõe a existência e a validade dessas autoridades à pretensa existência e

validade de Deus e sua lei. Mas afirmar tais autoridades, pondera Barth, o ateísmo se

expõe ao perigo de que também a partir delas surjam novas religiões, disfarçadas ou

não, que utilizam, portanto, o mesmo suporte que foi dado por ele.372

De forma geral, para o autor, a crítica contra a religião praticada

principalmente pelo misticismo e ateísmo expõe as fraquezas e a necessidade relativa

da religião. Contudo, elas levam ou à prática das antigas religiões ou à formação de

novas formas religiosas. No caso do misticismo há uma notável combinação de

negação e afirmação religiosa. Já no ateísmo, sua negação não pode impedir novas

formas de religião, se é que ele não as esteja preparando a partir da legitimação de

autoridades que podem se tornar religiosas. Portanto, a religião tem demonstrado

extrema habilidade inerente frente aos desafios e críticas. Historicamente, Barth

constata que a morte de uma religião é causada pela vitória ou surgimento de outra

religião, e não necessariamente devido aos ataques do misticismo ou ateísmo.373

Contudo, na perspectiva do teólogo suíço a fraqueza e a necessidade relativa

da religião não são tão efetivamente fatais como parecem ser. Aliás, o misticismo e o

ateísmo não estão na posição de mostrar como e de que maneira poderia ser

diferente, porque sua existência está ligada à existência da religião. Sem religião não

há ateísmo nem misticismo. É ela que provê as fontes de subsistência dos

argumentos e esforços deles. Usando a ironia de Barth, eles se opõem à religião do

mesmo modo como a nascente de água se opõe à correnteza, ou a raiz à árvore, ou o

recém nascido do adulto crescido. Um suposto misticismo ou ateísmo puro não

representam a verdadeira crise da religião, porque eles mesmos se inserem no

“círculo mágico religioso”, expressa Barth. Nesse sentido, a crise real da religião só

pode vir de um lugar que esteja fora desse “círculo mágico”, ou seja, fora do ser

372 Cf. Ibid., p. 321. 373 Cf. Ibid., p. 323.

77

humano, apenas através da revelação de Deus. Unicamente nela o veredicto da

ausência de fé e idolatria poderia abalar o ser humano inteiro, de tal modo que ele

não possa mais fugir de um refúgio para o outro. Portanto, nas palavras do autor, a

sublimação da religião se dá em um domínio diferente do âmbito do misticismo e do

ateísmo, que representam esforços inofensivos quando comparados à ação da

revelação divina, pois não conseguem aniquilar a “fábrica humana de ídolos”.374

2.2.3 A verdadeira Religião

A partir das considerações das duas discussões anteriores, Barth conclui que

só é possível falar em “religião verdadeira” nos termos de um “pecador justificado”,

pois a religião nunca é uma verdade em si mesma. Para o teólogo suíço, o conceito

de uma religião verdadeira em si, implica um conceito de ser humano bom em si, o

que representa uma noção antropológica inconcebível no pensamento barthiano. Mas

embora nenhuma religião seja verdadeira ela pode tornar-se verdadeira, do mesmo

modo que o ser humano não é bom nem justo, mas pode tornar-se justificado.375

Nesse sentido, a graça é o agente pelo qual a religião se torna verdadeira,

assim como através dela o ser humano é justificado. Em outros termos, a religião

verdadeira também é uma “criatura da graça”, e na ótica de Barth essa graça nada

mais é do que a própria revelação de Deus. Diante dela nenhuma religião se

apresenta como verdadeira, do mesmo modo como nenhum ser humano é justo na

sua presença. Diante dela, ambos estão sujeitos ao julgamento de morte. Porém,

segundo a dialética barthiana, assim como esse juízo dá vida ao que está morto e

justiça ao que é injusto, uma religião verdadeira é criada aonde só existia uma

religião falsa. Para o autor, esta é a sublimação da religião pela revelação, que

significa não apenas sua negação (acusação de ausência de fé), mas também sua

elevação pela revelação (justificação e santificação).376

De acordo com a analogia barthiana, existe uma religião verdadeira assim

como existem pecadores justificados. Apenas dentro dessa analogia o teólogo suíço

declara que a religião cristã é a verdadeira religião. Contudo, ele sublinha que em

nenhum momento de sua discussão ele procurou estabelecer uma distinção entre

374 Cf. Ibid., p. 324-325. 375 Cf. Ibid., p. 325. 376 Cf. K. Barth, On Religion, op. cit., p. 85.

78

Cristianismo e as outras religiões, nem mesmo na seção acerca da religião como

ausência de fé. Enquanto religião não há para o Cristianismo uma posição especial,

um lugar protegido do julgamento.377 Em outras palavras, sua discussão não deve ser

entendida como polêmica contra as religiões não cristãs. Segundo Barth, a revelação

divina se dirige contra toda a sorte de religião.378

Assim, o autor pondera que a verdade da religião cristã começa com o

reconhecimento de que ela também está sob o julgamento de que a religião é

ausência de fé, e que a absolvição dele não ocorre devido ao valor interno do

Cristianismo, mas unicamente pela graça divina, proclamada e efetivada em sua

revelação. Para Barth, este julgamento contempla toda a atividade cristã - sua

concepção de Deus, teologia, adoração, formas de comunidade e ordem, moralidade,

poesia e arte – que está no mesmo nível da atividade humana de outras religiões.

Nesse sentido, o teólogo suíço enfatiza que a atividade cristã não é o que ela pretende

ser, ela não constitui um trabalho de fé, não representa obediência à revelação de

Deus. Por isso, o Cristianismo, assim como as outras religiões, nada mais é do que

ausência de fé do ser humano que está em oposição à revelação divina, onde a

idolatria e justificação própria imperam.379

O autor, então, provê uma lista de exemplos bíblicos de ausência de fé do

povo que se dizia pertencer ao Deus verdadeiro. No Antigo Testamento, por

exemplo, Barth salienta a experiência vivida pelo povo de Israel ao pé do Monte

Sinai - que representava a efetivação de sua aliança com Deus -, quando Arão

proclamou o “festival de Yahweh”, mas o que realmente estava ocorrendo era uma

celebração idolátrica que incluía um bezerro de ouro.380 Ademais, praticamente toda

a atividade profética vétero-testamentária denunciava a idolatria no meio do povo de

Israel.381 Semelhantemente, no Novo Testamento o autor menciona vários exemplos

de falta de fé nas pessoas que professavam seguir a Deus. O mesmo Pedro que

ousadamente procurou defender a Jesus cortando a orelha direita de Malco,382

377 Barth fala aos cristãos que é necessário aplicar esse julgamento primeiramente, e de forma mais penetrante, a si mesmos. A aplicação do julgamento aos outros, aos não cristãos, deve ser feito somente à medida que os cristãos possam se reconhecer neles (Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 327). 378 Cf. Ibid., p. 326. 379 Cf. Ibid., p. 327. 380 Cf. Êxodo 32:1-10. No verso 5 Arão fala da “festa ao Senhor”. 381 Em especial, Barth destaca as figuras de Amós e Jeremias (Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 328-329). 382 Cf. S. João 18:10.

79

também negou a Jesus três vezes. De maneira geral, os discípulos discutiam a

recorrente questão acerca de quem seria o maior no reino dos céus.383 Os filhos de

Zebedeu, em especial, pediram a Jesus um elevado posto no reino.384 Tais

demonstrações de autoconfiança e ambição são desmascaradas pelo desespero em

meio à tempestade, e pela subseqüente constatação de Jesus de que eles não tinham

fé.385 Posteriormente, os discípulos são chamados por Jesus de “geração

incrédula”386. Barth comenta que eles possuíam uma religião, mas nessa religião há

ausência de fé. É por isso que o apelo de Jesus a Tomé é que este deixe a carência de

fé e a incredulidade, e seja crente, fiel.387 A própria igreja cristã apresenta evidências

de falta de fé: o caso de Ananias e Safira,388 Simão o mágico389, e outros exemplos.

Para Barth, esses exemplos caracterizam o Cristianismo em sua fraqueza, não

em sua força, caracterizam uma religião contraditória, marcada pela mesma ausência

de fé, idolatria, e justiça própria que está presente em todo o mundo da religião.

Contudo, o teólogo suíço também destaca a importância do reconhecimento dessa

fraqueza. Nesse ponto, Barth cita a atitude de Paulo ao se “gloriar de sua fraqueza” e

na declaração de que “quando sou fraco, então é que sou forte”, pois o poder de Deus

“se aperfeiçoa na fraqueza”.390 Essas noções claramente se alinham ao conceito de

justificação pela fé, onde a graça de Deus atua na incapacidade humana. Por isso, o

autor indica que o poder do Cristianismo reside precisa e exclusivamente em sua

fraqueza. A glória do Cristianismo está em sua humilhação, não em sua exaltação.391

Entretanto, em sua avaliação histórica, Barth ressalta que essa não tem sido a postura

do Cristianismo, principalmente no seu relacionamento com as outras religiões. Ele

enxerga tal realidade em três estágios históricos: a igreja antiga, medieval e moderna.

No período anterior a Constantino392, o Cristianismo era uma religião ilícita.

Essa época foi caracterizada pela “fraqueza” apostólica: os cristãos não possuíam

qualquer crédito externo, em termos de status político, social ou cultural. Eles se

encontravam sozinhos com a sua fé lutando com uma força externa intensamente

383 Cf. S. Mateus 18:1. 384 Cf. S. Marcos 10:37. 385 Cf. S. Mateus 8:26. 386 Cf. S. Marcos 9:19. 387 Cf. S. João 20:27. 388 Cf. Atos 5:1-10. 389 Cf. Atos 8:13-23. 390 Cf. II Coríntios 12:9-10. 391 Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 333. 392 Imperador romano que reinou entre 306-337 d.C. Em 312 ele se tornou cristão.

80

superior. Em um primeiro olhar, eles lutavam por uma causa perdida, mas a graça foi

suficiente para resistirem à pressão da perseguição. Contudo, em meio à forte pressão

do mundo pagão da Antigüidade tardia, os cristãos - especialmente os Apologistas e

os antigos Pais da igreja - foram tentados a afirmar a vantagem do Cristianismo em

relação às outras religiões da época.393 Uma espécie de competição das qualidades do

Cristianismo em relação às características das outras religiões: uma sabedoria mais

elevada, uma melhor moralidade, uma humanidade superior. Mas a despeito destas

falhas, Barth afirma que a graça de Jesus Cristo, que é a verdade do Cristianismo,

não esteve totalmente oculta nos ensinos e na proclamação da igreja desse período.394

Depois de Constantino, a noção de corpus christianum expressa na unidade

entre igreja e império foi a proposta aparentemente mais promissora feita ao

Cristianismo. Mas, se no período da igreja primitiva houve a tentação de

superioridade intelectual e moral do Cristianismo, agora havia também a tentação de

superioridade política. Aliás, Barth indaga: onde estava a mensagem da graça, como

a verdade do Cristianismo, nos dias das Cruzadas? Poderiam os não cristãos,

especialmente os judeus e islâmicos, encontrar na igreja da Idade Média um poder

verdadeiramente diferente daquele em que o ser humano quer demonstrar sua

superioridade diante de outros? Eles puderam ver na igreja o poder do evangelho que

humilha e abençoa todos os homens? Em que medida os oponentes da igreja

puderam perceber que as ações e atitudes dessa igreja objetivavam a glória de Deus,

e não a glória da própria igreja? O teólogo suíço ressalta que, de maneira geral, o

corpus christianum foi desleal à graça de Cristo, e uma orgulhosa busca de exaltação

própria.395

A chamada Modernidade, que se iniciou com as influências e tendências da

Renascença e da Idade Média tardia, se caracteriza pela dissolução da unidade entre

império e igreja. Barth salienta que, nesse novo período, o ser humano ocidental

pensa ter alcançado a maturidade, descobrindo-se capaz de seguir seu próprio

caminho. A política, as ciências, a sociedade e a arte estão aos seus pés. Ele não está

mais ligado à igreja, e nada mais parece sugerir que ele precisa ligar-se a ela

novamente. Em tais circunstâncias, o autor ressalta que, ao contrário das favoráveis 393 Barth salienta que na leitura dos apologistas do segundo e terceiro séculos há uma notável impressão de justiça própria do Cristianismo frente às outras religiões, talvez como forma de compensar espiritualmente a forte pressão externa que eles enfrentavam (Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 333). 394 Cf. Ibid., p. 333-334. 395 Cf. Ibid., p. 334-335.

81

condições da Idade Média, a igreja cristã não podia mais impressionar a consciência

mundial, a não ser no contexto de uma sociedade religiosa. Assim, o Cristianismo

confinou-se à prestação de serviços para novo esplendor secular do ser humano

ocidental, provendo especificamente educação e ordem para essa nova sociedade. O

teólogo suíço sublinha que, ao fazer uma reconsideração de si mesmo e de suas

possibilidades nesta nova situação, o Cristianismo falhou em não se lembrar daquela

fraqueza na qual, mesmo sozinha, seria forte em todos os tempos. Ao invés disso, ele

reconheceu a auto-suficiência do ser humano moderno e se contentou em perguntar

como o Cristianismo poderia colaborar com ele.396

Para Barth, é neste contexto de auto-suficiência do ser humano moderno e da

subordinação do Cristianismo a seu serviço, que surge o conceito genérico de

religião, que também foi aceito pelo mundo não-cristão. Com a busca da “essência

do Cristianismo” este passou a ser comparado com as outras religiões, e

normalmente considerado como a base mais adequada para uma visão de mundo

coerente, para a manutenção da moralidade, para satisfazer as últimas necessidades

do ser humano. De modo geral, ele foi considerado a plataforma ideal para a

realização dos elevados ideais do ser humano moderno. Nesse terceiro estágio

histórico, pretendendo alcançar relevância e espaço, o Cristianismo entregou sua

verdadeira mensagem da graça às contínuas flutuações da cultura moderna. Nas

palavras de Barth, ela foi lançada de uma mão suja a outra, parecendo uma verdade

humana – em dado momento absolutista e autoritária, então individual e romântica,

depois liberal, nacional e até mesmo racial – mas nunca como a verdade divina que

julga e abençoa.397

A partir desses exemplos ao longo das eras, o que se torna visível é a tentativa

do Cristianismo de validar sua religião como sagrada em si mesma.398 Por isso, o

teólogo suíço questiona se essa seria realmente uma atitude condizente com as

características da verdadeira religião. Como resposta, ele se reporta à passagem

bíblica da luta de Jacó com Deus.399 Na interpretação barthiana, Jacó era um inimigo

da graça. Em meio à luta, Deus deslocou sua coxa. Embora não fosse derrotado por

Deus ele se tornou permanentemente enfraquecido pela ação divina. Nessa luta, Jacó

não queria se desprender de Deus até que fosse abençoado. E, de fato, ele recebeu a 396 Cf. Ibid., p. 335-336. 397 Cf. Ibid. 398 Cf. Ibid., p. 337. 399 Cf. Gênesis 32:22-32.

82

benção do enfraquecimento. Ao lutar com Deus, ao vê-lo face a face, Jacó chamou

aquele lugar de Peniel, porque ainda assim sua vida foi preservada. Em realidade, o

teólogo suíço salienta que é também em Peniel que a verdadeira religião cristã é

conhecida, o lugar onde o ser humano permanece totalmente oposto a Deus. Isso

significa que a verdade da religião cristã não é uma questão de verdade imanente da

religião em particular, mas unicamente uma realidade provida pela graça. Por isso,

Barth entende que a face histórica de uma religião da graça não é muito diferente das

outras religiões, pois ela é justificada e transformada em uma religião verdadeira

somente pela graça, nunca por seus próprios esforços.400

Desse modo, o autor destaca que entre as religiões somente uma coisa é

decisiva em relação à verdade ou falsidade: o nome de Jesus Cristo. É somente nesse

ponto que a igreja se torna forte. Essa é a verdade da religião cristã,401 pois a graça de

Deus é a mesma coisa que o nome de Jesus Cristo. Nele ocorre a revelação de Deus

entre os homens, a reconciliação do ser humano com Deus. Portanto, os participantes

da verdadeira religião não se elevam a nenhum degrau significante da história

religiosa, nem escapam da acusação divina da idolatria e justiça própria. Eles não

presumem possuir a religião verdadeira por si mesmos. Antes, Barth ressalta, eles

vivem da graça de Deus, que é o real agente que os eleva acima do nível da história

das religiões.402

Contudo, o teólogo suíço entende que a noção desse relacionamento entre o

nome de Jesus Cristo e a religião cristã necessita ser esclarecida através de quatro

perspectivas: criação, eleição, justificação e santificação. Em primeiro lugar, este

relacionamento tem que ver com um ato da criação divina. Isso significa que

unicamente este nome cria a religião cristã, não apenas do ponto de vista histórico,

mas também no sentido contemporâneo. Em outros termos, o autor tem em mente a

noção de creatio continua (criação contínua). Na visão barthiana, a religião cristã

nunca teria entrado na história sem o poder criativo do nome Jesus Cristo. De outro

modo, sem este nome, a igreja cristã perderia a substância e, portanto, sua capacidade

de viver. Com esse quadro em mente, Barth gosta de pensar na existência histórica

da igreja como um “anexo” da natureza humana de Jesus Cristo, segundo a analogia

400 Cf. Ibid., p. 338-339. 401 Cf. Ibid., p. 343. 402 Cf. Ibid., p. 345.

83

da igreja como corpo de Cristo, onde ele é a cabeça celestial que está ligada às

formas terrestres de seus membros.403

Em segundo lugar, o relacionamento entre o nome de Jesus Cristo e a religião

cristã tem que ver com um ato de divina eleição. O Cristianismo não possui, nem

nunca possuirá uma realidade própria. Em si mesmo ele é apenas uma mera

possibilidade humana entre muitas outras. Isso significa que ela não possui

absolutamente nada que possa indicar sua dignidade a fim de que ela seja escolhida

pelo nome de Jesus Cristo como religião verdadeira. Em realidade, essa escolha se

baseia na livre eleição divina, em sua infinita misericórdia. O teólogo suíço

acrescenta que assim como existe a creatio continua, também existe uma continua

electio (eleição contínua). Através dessa eleição imerecida, a igreja não representa

apenas uma sociedade religiosa qualquer, antes é o próprio corpo de Cristo. Para

Barth, o fato de a eleição fazer da religião cristã uma religião verdadeira, previne

toda e qualquer tentativa de procurar “provar” a superioridade do Cristianismo a

partir de um ponto de vista histórico.404

Em terceiro lugar, o relacionamento entre o nome de Jesus Cristo e a religião

cristã tem a ver com um ato de divina justificação, ou perdão dos pecados. No

contexto do julgamento feito pela revelação de Deus, todas as religiões são

declaradas idolatria e obras de justiça própria. Para entender melhor o que ocorre

com o Cristianismo nesse julgamento, Barth faz uso de uma analogia do sol e da

terra: quando o sol ilumina a terra, em uma parte da terra é dia e outra é noite. A terra

em si é a mesma em ambos os lugares. O dia nada tem a ver com a particularidade da

terra como tal, é fruto da atuação do sol. Do mesmo modo, quando a luz do

julgamento de Deus incide sobre o mundo da religião humana, para uma parte desse

mundo (a religião cristã) não é noite, mas dia; não é religião falsa, mas verdadeira.

Estimada em si mesma ela não passa de uma religião humana – idolatria, justiça

própria, ausência de fé, pecado. Portanto, a justificação só ocorre no nome de Jesus

Cristo.405

Em quarto lugar, o relacionamento entre o nome de Jesus Cristo e a religião

cristã tem que ver com o ato de santificação divina. Unicamente porque foi

justificada nesse nome a religião cristã se diferencia das outras religiões, pois

403 Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 346-348. 404 Cf. Ibid., p. 348-350. 405 Cf. Ibid., p. 352-355.

84

segundo Barth ela é formada e moldada por ele para trabalhar a seu serviço e torna-se

a manifestação histórica dos meios de sua revelação. Em linguagem figurada, o autor

enfatiza que embora a luz em si seja exclusivamente o nome de Jesus Cristo, ela

carrega o reflexo dessa luz. Nesse sentido, a religião cristã é diferenciada,

caracterizada de modo peculiar. Mesmo sendo uma religião como outras, à luz dessa

justificação, criação e eleição ela não pode ficar neutra, indiferente ou sem

significado. Por isso, Barth a considera um significante e eloqüente sinal ou

proclamação. Não pelas qualidades inerentes na religião humana, mas em virtude da

divina nomeação pela qual ela se torna um evento no meio do mundo da religião

humana. Assim, o teólogo suíço esclarece que ela toma parte na verdade somente na

medida em que aponta e proclama algo que não está em si mesma, mas no nome de

Jesus Cristo. Ela não possui nada de santo em si mesma. Mas ela se torna o espaço

sacramental criado pelo Espírito Santo, no qual Deus, cuja Palavra se tornou carne,

continua a falar através do sinal de sua revelação. Portanto, na perspectiva de Barth,

a igreja, a religião cristã ao ser santificada, constitui um sinal visível da revelação

divina, assim como no Antigo Testamento a lei representava um sinal da graça e

eleição de Yahweh, uma testemunha da aliança,406 e como no Novo Testamento, a

santificação da igreja é apresentada como o ministério da reconciliação divina, cujos

participantes refletem a glória de Deus.407 Nesses termos, Barth assevera que

considerar a santificação significa levar a sério a fé e a obediência ao nome de Jesus

Cristo: É perfeitamente verdadeiro que os cristãos são pecadores e que a igreja é uma igreja de pecadores. Mas se eles são pecadores justificados [...] então em virtude da mesma Palavra e Espírito que os justifica, eles também são pecadores santificados. Ou seja, eles são colocados sob disciplina. São colocados sob a ordem da revelação. Eles não são mais livres em toda a sua pecaminosidade.408

406 Barth salienta que a aliança feita por Deus, em sua graça e eleição, com o povo de Israel teve uma evidência, um selo visível que podia ser percebido tanto por Israel quanto pelas nações ao redor: a lei. Evidentemente a aliança não teve lugar com o estabelecimento da lei, pois ela tomou lugar antes da lei. Mas a aceitação e observância da lei foram a garantia recorrente de que esse povo era o povo da aliança. Assim, a lei significou a santificação do povo - em resposta à graça de Yahweh -, a conseqüência necessária da revelação da graça, a forma histórica inevitável da qual não podia se separar. Em outros termos, a santificação significou sua separação visível enquanto nação histórica, sua diferenciação e caracterização como povo de Deus (Cf. Ibid., p. 359). 407 Cf. Ibid., p. 358-360. 408 Ibid., p. 360.

85

2.3. Resumo do capítulo

Em Carta aos Romanos, a abordagem barthiana da religião tem como pano de

fundo o conceito de infinita diferença qualitativa entre Deus e o ser humano.

Segundo essa perspectiva, Deus é o Deus desconhecido que não se identifica com

nenhuma realidade do mundo. Mas de forma arrogante, a religião pretende conhecer

o Deus desconhecido, e acaba por elevar o ser humano ao nível de Deus, criando

uma divindade que é, em realidade, a projeção dos desejos e atributos humanos.

Logo, os termos “arrogância” e “presunção” humana parecem sintetizar a noção

barthiana da religião nesse contexto.

Por sua vez, a relação entre religião e circuncisão situa a religião no quadro

maior da doutrina da justificação pela fé. Nesse sentido, a justificação é obra divina e

não se confunde com a “contabilidade” religiosa, expressa na pretensão de que as

obras humanas demandem a retribuição divina. Todavia, Barth reconhece a religião

como “marco da fé”. O relacionamento de fé que se origina em Deus, representa a

premissa e o início da religião, que não é a base ou o conteúdo desse relacionamento,

mas um símbolo ou sinal dele. O valor não está na religião em si, mas naquilo que

ela aponta ou simboliza.

No contexto da relação entre a religião e a lei, há uma visão extremamente

negativa da religião. A religião é uma característica intrinsecamente humana e como

tal constitui o clímax das possibilidades humanas. Mas como todas as possibilidades

humanas, a religião é limitada, restrita e ineficaz. Nela se manifesta a rebelião contra

Deus, cujo resultado é a morte. Mas é justamente essa morte e superação da religião,

provocada pelo “Não” divino, que constitui a libertação do ser humano. O limite

religioso e humano é o lugar onde começa a possibilidade de Deus, a possibilidade

impossível de o ser humano ser religioso como se não fosse.

Finalmente, a relação entre religião e igreja evidencia a crítica da religião no

sentido de crítica eclesiástica, que entende a igreja como religião organizada. A

igreja enfrenta a tensão de sua vocação divina (símbolo vazio e provisório) e sua

realidade humana e natural (desejo de triunfo e eternidade). Sua culpa consiste em

optar pelo desejo humano. Mas ao criticar a igreja Barth se reconhece como acusador

e acusado, que faz parte desta igreja culpada. Ademais, a essa igreja culpada Deus

rejeita em seu julgamento, que dialeticamente também representa a eleição divina da

igreja. Liquidada e justificada por Deus, a igreja/religião pode ser símbolo e

testemunha da esperança.

86

Por sua vez, em Church Dogmatics Barth discute sobre o problema da

religião na teologia, apresentando seu conceito de religião em oposição ao conceito

de religião do protestantismo moderno, cuja diferença básica reside no seu

relacionamento com o conceito de revelação: utilizar a revelação como paradigma

para interpretar a religião (Barth); ou utilizar a religião como paradigma para

interpretar a revelação (protestantismo moderno). Em realidade, para Barth, a escolha

desse paradigma constitui a diferença básica entre a teologia teocêntrica e a teologia

antropocêntrica. Desse modo, a crítica barthiana tem como alvo a noção de religião

do protestantismo moderno, que leva à teologia antropocêntrica e à oposição ao

conceito de justificação pela fé.

Além disso, ao falar sobre a religião como ausência de fé, ao invés de definir

a religião pelas suas características básicas (raciocínio do conceito de essência da

religião), o autor prefere defini-la partir do que lhe falta: a fé. Essa acusação constitui

o julgamento divino sobre todas as religiões, inclusive a cristã. Para Barth, do ponto

de vista da revelação, a religião é a iniciativa pela qual o ser humano se antecipa e

contradiz o que Deus faz em sua revelação. Em lugar da realidade apresentada pelo

próprio Deus, a religião coloca uma imagem de Deus desenvolvida pelo próprio ser

humano, o que reflete a sua busca de se justificar e se santificar pelos próprios

esforços humanos.

Finalmente, ao discutir sobre a verdadeira religião, Barth utiliza como

categoria central a noção de justificação pela fé: só é possível falar em religião

verdadeira nos termos de um pecador justificado. A religião nunca é verdadeira em si

mesma, mas ela pode se tornar verdadeira a partir da justificação divina. Esta é a

sublimação da religião pela revelação: sua negação (religião como ausência de fé) e

elevação (justificação e santificação). Dentro dessa compreensão, Barth declara o

Cristianismo como verdadeira religião. Em si mesma, a religião cristã não é distinta

das outras religiões. Ela também é ausência de fé do ser humano que está em

oposição à revelação divina, idolatria e justificação própria. Este é o Cristianismo em

sua fraqueza, não em sua força. Contudo, é exatamente na fraqueza que está a sua

força, visto que no conceito de justificação pela fé a graça de Deus atua na

incapacidade humana. Para Barth a única coisa decisiva para a verdade da religião é

a graça expressa no nome de Jesus Cristo, que cria, elege, justifica e santifica a

religião.

CAPÍTULO III

A CRÍTICA DA RELIGIÃO EM DIETRICH BONHOEFFER

O estudo do tema da religião em Bonhoeffer necessita ser realizado de forma

diferente do caminho adotado no capítulo anterior para a compreensão da religião em

Barth. Enquanto o teólogo suíço expressou suas principais considerações sobre a

religião em textos específicos de sua obra, o teólogo alemão menciona a religião de

forma fragmentária e não sistemática em seus diversos escritos. Portanto, este

capítulo procurará realizar um levantamento das alusões de Bonhoeffer à religião em

seus escritos de maneira geral, a partir de uma perspectiva histórica.

Para fins de organização dessa considerável quantidade de material que

oriunda de diversas situações, textos e períodos históricos, o presente capítulo fará

uso da classificação delineada por J. Godsey409 da teologia de Bonhoeffer, que a

estrutura em três fases principais: (1) Fundamentação Teológica: até 1931; (2)

Aplicação Teológica: de 1932 a 1939; e (3) Fragmentação Teológica: de 1940 a

1945. As considerações do presente capítulo não serão derivadas da obra de Godsey,

apenas sua divisão dos períodos históricos da teologia de Bonhoeffer será utilizada

para a estruturação dos tópicos que se seguem.

3.1 Fundamentação Teológica: até 1931

Neste período chamado de Fundamentação Teológica são explorados os

seguintes escritos bonhoefferianos: os do período de estudante (1923-1926); a

dissertação doutoral, Sanctorum Communio (1927); os escritos pastorais em

Barcelona (1928); a dissertação de pós-doutorado, Act and Being (1930); e,

finalmente, os escritos produzidos no período de estudos em Nova York (1930-

1931). 409 Essa classificação já foi mencionada no primeiro capítulo dessa dissertação. Veja a estrutura do comentário de J. Godsey da teologia de Bonhoeffer já no sumário de sua obra (especialmente os três primeiros capítulos) em The theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit.

88

3.1.1 Escritos do período de estudante (1923-1926)

De maneira geral, em seu período de estudos Bonhoeffer parece manter uma

postura favorável em relação à religião. Em uma carta escrita aos seus pais numa

viagem à Itália em 1924, por exemplo, ele considera o Cristianismo uma religião

mundial, assim como o Budismo.410 Por sua vez, no ano de 1925 ele enfatiza

positivamente a religiosidade de Lutero em um trabalho monográfico sobre

“Sentimentos de Lutero acerca de sua Obra”: “A despeito do mais enfático

pessimismo acerca do mundo, sua distintiva segurança religiosa interior permanece

intacta – um fato que não podemos olvidar.”411

Em outro trabalho acadêmico daquele mesmo ano acerca da “Interpretação

Histórica e Pneumatológica das Escrituras”, Bonhoeffer esboça uma relação entre a

religião cristã e a revelação divina: “A religião cristã se sustenta ou sucumbe pela

crença em uma revelação divina histórica e perceptivelmente real, uma revelação

onde aqueles que têm olhos para ver podem ver e aqueles que têm ouvidos para ouvir

podem ouvir.”412 Ademais, nesse mesmo estudo ele relaciona religião e igreja ao

afirmar a “representação empírica da religião na forma de igreja e congregação”.413

No entanto, nas suas notas acerca da aula de Lutero sobre a Carta aos

Romanos, Bonhoeffer assevera que a “lógica teológica intenta se livrar do

psicologismo. Ela não fala do pecado e da revelação como elementos da consciência.

Antes, ela fala destes como realidades da revelação.”414 Essa oposição ao conceito de

“psicologismo” parece representar um ataque à noção do a priori religioso

desenvolvido por Ernst Troeltsch (principalmente em suas obras Psychologie und

Erkenntnistheorie e Zur Frange dês religiösen Apriori), que em conexão com Kant

concebia psicologicamente a religião como uma lei a priori da consciência.415

Portanto, é possível perceber aqui uma crítica incipiente e indireta da religião no

ataque de Bonhoeffer ao a priori religioso de Troeltsch.416

410 Cf. Carta aos pais (Tripoli, 9 de Abril de 1924) em Dietrich Bonhoeffer, The Young Bonhoeffer: 1918-1927. Dietrich Bonhoeffer Works (DBW) v. 9, Minneapolis: Augsburg Fortress, 2003, p. 118. Em nota os editores explicam que a data correta é 9 de Maio (veja p. 116). 411 Ibid., p. 280. 412 Ibid., p. 280. 413 Ibid., p. 298. 414 Ibid., p. 300. 415 Cf. a nota 2 (sobre “psicologismo”) dos editores em Ibid. 416 A crítica ao conceito de a priori religioso reaparece em Act and Being e nas cartas da prisão. Cf. D. Bonhoeffer, Act and Being. New York: Harper & Brothers, 1961, p. 46-47; D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal, 2003, p. 369-370.

89

No ano de 1926, em comemoração aos 75 anos de Adolf von Harnack

completados em 7 de Maio, os estudantes que participavam de seu seminário

prepararam um trabalho monográfico sobre o conceito de alegria no Novo

Testamento. Este conceito era especialmente apreciado por Harnack.417 Organizador

e editor desse estudo, Bonhoeffer menciona positivamente a religião em conexão

com a fé, no contexto do conceito de alegria no Evangelho de João: Em João, euaggelion significa completa alegria na unidade com Cristo aqui e agora, assim como a superação do mundo e do sofrimento do mundo; aqui também, alegria não é primariamente uma expressão emocional tal como uma alegre agitação, mas é essencialmente idêntica à “certeza da fé”. Ela é, também, uma inalienável, religiosa, e estável possessão, que é sempre criada ou nutrida ao refletir sobre a luz que veio ao mundo. [...] Para o Evangelho de João a inteira alegria em Cristo reside nessa percepção. [...] O cristão não é, como no caso de Paulo, ligado a terra pela expectativa da parousia, mas tem em cada momento a vida eterna e a perfeita alegria.418

Naquele mesmo ano, Bonhoeffer pregou um sermão sobre Salmo 127:1 (“Se

o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam”) no qual afirmou

que Deus edifica a casa dando-nos a sua graça. “Quando Deus confirma a nós

mesmos e nossas ações, nosso trabalho [...], nosso empenho de melhorar nossa

economia, saúde, moralidade e religião.”419 É nítida aqui a ligação que Bonhoeffer

estabelece entre religião e moralidade sob um prisma aparentemente positivo.

Desse modo, até o ano de 1926 praticamente não existe crítica da religião nos

escritos de Bonhoeffer. Em certo sentido, a religião é vista por ele de maneira

favorável, que se relaciona com uma disposição de fé interior e uma postura moral,

assim como assume uma forma empírica através da igreja. Contudo, Bonhoeffer

prefere entender a religião na perspectiva da revelação, não da noção psicológica de

um a priori religioso na consciência humana.

3.1.2 Dissertação Doutoral: Sanctorum Communio (1927)

Em sua tese doutoral de 1927, Bonhoeffer indica duas formas equivocadas de

se compreender a igreja: (1) historicizante, que confunde a igreja com uma

comunidade religiosa; (2) religiosa, que confunde a igreja com o reino de Deus.

417 Cf. nota 1 dos editores sobre “Joy” in Early Christianity: Commemorative Paper for Adolf von Harnack, em D. Bonhoeffer, The Young Bonhoeffer, op. cit., p. 370. 418 Ibid., p. 381. 419 Ibid., p. 474.

90

a primeira negligencia o fato de que as novas relações básicas estabelecidas por Deus são verdadeiramente reais, e aponta ao invés disso aos “motivos religiosos” que de fato levam à comunidade empírica (o impulso missionário, a necessidade de comunicar, etc.). [...] A segunda se engana ao não levar a sério o fato de que os seres humanos estão ligados à história.420

De acordo com o pensamento bonhoefferiano, enquanto a primeira forma é

chamada de abordagem sociológica, a segunda se encontra na abordagem teológica

típica de círculos religiosos. “Nenhuma delas, contudo, entende a realidade da igreja,

que é simultaneamente uma comunidade histórica e algo estabelecido por Deus.”421

Embora o termo “religiosa” seja empregado para definir a segunda postura, de

confundir o reino de Deus com a igreja e desprezar o fato de os seres humanos

participarem da história, de forma geral, em Sanctorum Communio Bonhoeffer

menciona a religião mais no contexto da postura historicizante, expressando a noção

de religião enquanto fenômeno histórico e sociológico.

Ao mencionar uma certa compreensão sociológica que considera a igreja uma

associação voluntária de pessoas com um “interesse religioso”, ao qual elas buscam

em encontros regulares, o autor compara esse tipo de compreensão de igreja com um

clube de música que regularmente reúne pessoas para os concertos. Sua conclusão é

a de que, nessa perspectiva, “a igreja existe para o livre divertimento de cada

indivíduo.”422 Nesse sentido, o teólogo alemão estabelece negativamente uma relação

entre interesse religioso e satisfação de necessidades ou desejos individuais. Aliás, a

percepção de individualismo se aproxima do que Bonhoeffer comenta acerca do

egoísmo do ser humano a partir da queda. Mas, nesse caso, ele fala do

desaparecimento da moralidade e da religião no seu sentido próprio (isto é, em seu

desenvolvimento proporcionado pelo amor) e uma presença meramente formal

destes, certamente marcados pelo egoísmo. Enquanto a forma do espírito previamente cresceu do amor, a queda substituiu o amor pelo egoísmo. Isso deu início ao rompimento da comunhão imediata com Deus, e similarmente na comunhão humana. Com essa mudança de direção, a completa orientação da humanidade foi alterada. Moralidade e religião em seu sentido próprio desapareceram da natureza humana, e estão agora apenas formalmente visíveis nas estruturas da ordem legal e na religião natural.423

420 D. Bonhoeffer, Sanctorum Communio: a theological Study of the Sociology of the Church. DBW 1, Minneapolis: Augsburg Fortress, 2009, p. 125. 421 Ibid., p. 126. 422 Ibid., p. 253. 423 Ibid., 107.

91

Ao considerar as questões de individualismo e egoísmo, o autor se opõe à

visão de Schleiermacher da igreja como uma satisfação de necessidades religiosas,

que postula a necessidade dos indivíduos de se comunicarem como a razão básica

para a formação da comunidade religiosa. Nesse sentido, Bonhoeffer critica a noção

de igreja como satisfação de necessidades individuais, pois nesse caso a igreja seria

construída individualmente.424 De forma geral, em Sanctorum Communio ele

combate o individualismo em favor da perspectiva de comunidade.

Em contraposição às formas equivocadas de entendimento da igreja, o autor

apresenta a noção que sintetiza a compreensão histórico-sociológica e a teológico-

revelacional: a igreja é “Cristo existindo como igreja-comunidade”425. Assim, “a

igreja é a presença de Cristo do mesmo modo que Cristo é a presença de Deus. O

Novo Testamento conhece uma forma de revelação, ‘Cristo existindo como igreja-

comunidade’”.426 Desse modo, Bonhoeffer traça um relacionamento direto entre

Cristo e a igreja. Mas essa relação não concebe Jesus Cristo como fundador da

comunidade religiosa cristã. Ele não foi o fundador de uma religião empírica, por

assim dizer. Para o autor, o crédito dessa fundação pertence aos apóstolos em um

período posterior.427 Nesse sentido, ele ressalta que Jesus trouxe, estabeleceu e proclamou a realidade da nova humanidade. [...] não é uma nova religião recrutando seguidores – essa é a figura de um tempo posterior. Antes, Deus estabeleceu a realidade da igreja, da humanidade perdoada em Jesus Cristo – não religião, mas revelação, não comunidade religiosa, mas igreja.428

Portanto, Bonhoeffer alinha o conceito de religião à noção de comunidade

empírica histórico-sociológica, e o conceito de igreja à noção de revelação. Muito

embora fique explícita a distinção entre religião e revelação, comunidade religiosa e

igreja, o que Bonhoeffer deseja fazer aqui é precisamente evitar a perspectiva

reducionista e parcial do cristianismo ao campo exclusivamente sociológico. Tendo

em vista a tese central da obra em questão, que busca reunir a visão de comunidade

histórica e revelação divina, Bonhoeffer afirma que “há uma conexão necessária

entre revelação e religião assim como entre comunidade religiosa e a igreja. Hoje em

dia isso é freqüentemente negligenciado.”429

424 Cf. nota editorial 18 em Ibid., p. 159. 425 Cf. Ibid., p. 121, 198, 140-141. 426 Ibid., p. 140-141. 427 Ibid., p. 152. 428 Ibid., p. 153. 429 Ibid.

92

De maneira geral, em Sanctorum Communio, o teólogo alemão fala da

religião principalmente na perspectiva sociológica, uma comunidade religiosa

empírica. Nesse sentido, ele critica a noção de religião enquanto satisfação egoísta e

individual. Há também uma clara distinção entre religião e revelação, comunidade

religiosa e igreja, mesmo que Bonhoeffer reconheça uma relação entre esses pares.

3.1.3 Escritos pastorais: Barcelona (1928)

Logo após concluir seu programa doutoral, Bonhoeffer atuou como pastor

assistente em Barcelona no ano de 1928. Nessa atividade ele ocasionalmente

mencionou o tema da religião em aulas e sermões. Em um sermão sobre Romanos

11:6, em 11 de Março, Bonhoeffer falou da religião como a tentativa humana mais

grandiosa e mais nobre para atingir o eterno, em meio a ansiedade e inquietude do

coração.430 Semelhantemente, no sermão sobre Lucas 12:49, em 24 de Junho, ele

definiu a religião e a moralidade como o tesouro mais precioso produzido pela

humanidade. Contudo, essa afirmação se situa no contexto onde, nos termos

bonhoefferianos, o fogo divino queima todas as produções humanas que possam

conferir a ele qualquer glória.431 Por sua vez, no sermão sobre 2 Coríntios 12:9, de 9

de Setembro, Bonhoeffer discute o significado da religião no contexto do

cristianismo em contraste com as outras religiões. Em sua distinção da religião de

Deus e a religião do ser humano, ele destaca no primeiro caso o amor e a auto-

doação expressa na cruz, e no segundo a busca da felicidade a partir de um

paradigma antropocêntrico: Por que existe a religião? Qual é o seu real significado e propósito? Se nós colocarmos essa questão para as várias religiões ao redor do mundo, nós obteremos uma resposta: para fazer o ser humano feliz, tanto externa quanto internamente. A felicidade e a religião pertencem um ao outro assim como o brilho e o ouro; a religião que não faz uma pessoa feliz não é religião. Isso significa, no entanto, que a religião é concebida da perspectiva do ser humano como centro do mundo. Mas o que a Bíblia tem a dizer sobre isso? Ela aponta para um único evento, um único sinal para nossa reflexão: a cruz de Jesus. Aqui, algo sem precedentes aconteceu: a equação entre religião e felicidade é rompida de uma vez por todas na cruz, onde Deus morre por amor ao ser humano. Ou alguém talvez queira dizer acerca da felicidade interior, onde Jesus, o emissário de Deus, morre clamando, “Meu Deus, por que me desamparaste?” Religião e felicidade, tanto interna quanto externa, se rompem neste momento, quando o céu foi rasgado e sobre a cruz apareceu a nova,

430 Cf. Dietrich Bonhoeffer, Barcelona, Berlin, New York: 1928-1931. DBW 10, Minneapolis: Augsburg Fortress, 2008, p. 482. 431 Cf. Ibid., p. 497.

93

desconhecida, e incompreensível palavra: graça, amor, não como um novo evento na terra, mas como uma nova palavra de Deus [...] Isso claramente distingue o cristianismo de todas as outras religiões desde o início. Aqui há graça, lá felicidade; aqui cruz, lá a coroa; aqui Deus, lá o ser humano. [...] Você escolhe a religião de Deus ou a religião do ser humano?432

Em 13 de Novembro o teólogo alemão ministrou uma aula sobre “A tragédia

do profético e seu significado permanente”. Nela, Bonhoeffer advertiu acerca do

perigo do abuso da religião. Ele caracteriza essa violação ou abuso através da

menção de pessoas que acreditam possuir a religião à semelhança da possessão de

algum bem pessoal ou nacional. Em suas palavras, “violar a religião significa crer

que temos posse dela. Não somos nós que possuímos a Deus, antes Deus é quem nos

possui. Não são os seres humanos que têm Deus a seu dispor, mas Deus que tem os

seres humanos a seu dispor.”433 Assim, valendo-se de uma afirmação paradoxal,

Bonhoeffer conclui: “Ser religioso significa reconhecer que nunca se pode ser

religioso; ter Deus significa perceber que o ser humano nunca pode ter Deus.”434

Essas considerações do teólogo alemão indicam de certo modo uma abordagem

positiva da religião, associando-a de forma geral com a noção de fé em Deus e

dependência dele.

Por outro lado, na aula de 11 de Dezembro sobre “Jesus Cristo e a Essência

do Cristianismo”, o teólogo alemão esboça uma postura diferente em relação à

religião. Nessa aula Bonhoeffer se pergunta acerca do lugar que Cristo ocupa nas

principais questões da vida das pessoas e da sociedade. Ele lamenta que Cristo não

esteja no centro dessas questões, antes esteja, nos termos bonhoefferianos, confinado

a um mero espaço religioso localizado na restrita província espiritual da vida das

pessoas: A questão que está diante de nós hoje é se em nossos dias Cristo ainda permanece no lugar onde as decisões são feitas a respeito dos mais profundos assuntos que nós estamos enfrentando, a saber, a respeito de nossas próprias vidas e a vida de nosso povo. [...] Todos nós sabemos que, em termos práticos, Cristo tem sido eliminado de nossas vidas. Embora nós ainda construamos seu templo, nós vivemos em nossa própria casa. Cristo, ao invés de estar no centro de nossas vidas, tem se tornado uma coisa da igreja, ou da religiosidade de um grupo de pessoas. Para a mente dos séculos dezenove e vinte, a religião toma parte da conhecida sala de visitas, dentro do qual alguém pensa em ficar um pouco, e então imediatamente retorna para o lugar de trabalho. [...] Nós não o entendemos [a Cristo] se fizermos um quarto para em uma mera província

432 Ibid., p. 497. 433 Ibid., p. 336. 434 Ibid., p. 522-523.

94

de nossa vida espiritual, mas apenas se nossa vida for orientada a partir dele435

Adicionalmente, ele também aborda nessa aula a impossibilidade do

conhecimento humano de Deus, com uma linguagem muito próxima da

argumentação de Barth. Nesse sentido, Bonhoeffer enfatiza que Deus é

completamente superior e diferente do mundo, totalmente diferente da natureza

humana e absolutamente inacessível à compreensão e a vontade do ser humano. Por

isso, Deus deseja apenas uma postura das pessoas: a completa pobreza interior, o

completo desconhecimento, ou seja, uma vacuidade que só ele pode preencher.436

Nesse contexto, qualquer tentativa de conhecimento humano de Deus figura

precisamente como um conhecimento limitado, relativo e antropomórfico. Assim, o

desejo humano de crer constitui um desejo acompanhado de motivos e objetivos

humanos. Em outros termos, o caminho religioso do ser humano a Deus conduz à

construção de um ídolo no próprio coração humano, que o cria a sua própria imagem.

Portanto, Bonhoeffer conclui que nenhum conhecimento, moralidade ou religião

pode levar o ser humano a Deus. Em suas palavras, “mesmo a religião é puramente

uma peça de nossa própria natureza corporal, como Lutero uma vez indicou – não há

absolutamente qualquer caminho que leve o ser humano a Deus, pois tal caminho é

em última análise baseado nas capacidades humanas.”437 O teólogo alemão

acrescenta que a religião e a moralidade contêm o germe do excesso de confiança, do

orgulho e da arrogância. Pois através dele as pessoas buscam se elevar ao nível

divino. “Nesse sentido, religião e moralidade podem se tornar os inimigos mais

perigosos que atuam contra a vinda de Deus ao ser humano, os mais perigosos

inimigos da mensagem cristã das boas novas.”438

Nesta aula, Bonhoeffer também compara o Cristianismo com as outras

religiões. Novamente, as semelhanças entre sua argumentação e o pensamento de

Barth são notáveis. Ele assevera que o Cristianismo, enquanto religião, não é de

Deus. Em linhas gerais, ele afirma que a religião cristã é simplesmente mais um

exemplo da inútil tentativa humana de criar um caminho até Deus, à semelhança do

Budismo e outras religiões. Portanto, os cristãos não têm do que se orgulhar com o

seu cristianismo, pois ele é basicamente humano. O teólogo alemão ressalta que 435 Ibid., p. 342. 436 Cf. Ibid., p. 352. 437 Ibid., p. 353. 438 Ibid.

95

Cristo não trouxe uma nova religião, antes ele trouxe Deus. Por isso, os cristãos não

vivem da religião, mas da graça de Deus que vem a cada pessoa que esteja com o

coração aberto para recebê-la. Bonhoeffer conclui que “o presente de Cristo não é a

religião cristã, mas a graça e o amor de Deus que culminou na cruz.”439

Panoramicamente, em seu período pastoral em Barcelona, o teólogo alemão

discute sobre a religião enquanto qualidade humana, sobretudo ao lado da

moralidade. Ele também retrata a religião como busca da felicidade interior, o que se

aproxima de sua noção de satisfação dos desejos individuais. Tal percepção da

religião se contrasta com Deus e sua graça. Ademais, em suas aulas, Bonhoeffer em

certo momento menciona a religião numa perspectiva positiva, ao relacioná-la com a

fé e dependência de Deus, enquanto em outro momento afirma que a religião de

forma geral, inclusive o Cristianismo, é a pretensa e arrogante tentativa humana de

chegar a Deus.

3.1.4 Dissertação de Pós-doutorado: Act and Being (1930)

Em Act and Being, Bonhoeffer comenta sobre a religião especialmente no

contexto de sua crítica ao transcendentalismo e a ontologia, enquanto formas de

compreensão da revelação. Nesse contexto, ele salienta que no idealismo de maneira

geral há uma profunda identidade entre o Eu e Deus, isto é, a noção de essência

divina no ser humano. Quando o Eu olha profundamente para dentro de si mesmo ele

encontra a religião, que representa a revelação da mente divina. Nesse sentido, o

autor conclui, principalmente a partir de Hegel, que a revelação se constitui naquilo

que a razão humana pode aprender de si mesma.440 Dessa forma, o teólogo alemão

aponta duas conseqüências dessa noção: (1) Deus está encarcerado na consciência

humana; e (2) a religião equivale à revelação, pois não há espaço para a fé e a

Palavra de Deus, visto serem estas repugnantes à razão. Em sua crítica ao idealismo,

Bonhoeffer ressalta que tais proposições são teologicamente intoleráveis.441 Portanto,

nesse trecho, o teólogo alemão claramente faz uma contraposição entre religião e

revelação. Enquanto a primeira é mencionada em relação a racionalidade e

consciência humana, a outra aparece ligada à fé e a Palavra de Deus.

439 Ibid., 358. 440 Cf. D. Bonhoeffer, Act and Being, op. cit., p. 41. 441 Cf. Ibid.

96

Além disso, à semelhança de suas notas acerca da aula de Lutero sobre a

Romanos em 1924, o autor tece duras críticas ao conceito de a priori religioso.

Embora esse conceito tenha sido cunhado basicamente por E. Troeltsch, Bonhoeffer

se refere especialmente à abordagem de Reinhold Seeberg, seu professor em Berlim.

Essencialmente, Seeberg fala do a priori religioso como uma disposição mental

formal que não tem conteúdo em si mesmo. Antes, o conteúdo positivo da fé é ditado

pela revelação, ao passo que o a priori representa única e simplesmente a capacidade

intrinsecamente humana de tomar consciência do ser e da atividade de Deus - que

está além do mundo – habilitando, desse modo, o ser humano a receber dentro da

alma o conteúdo da revelação divina. Assim, Bonhoeffer explica que, segundo essa

teoria, o ser humano é capaz de receber a Deus dentro de si mesmo através da

experiência, dos sentimentos, ou da intuição.442

Ademais, ele afirma que o a priori religioso é dito ser fundamentalmente

aberto à vontade divina, constituindo uma espécie de espaço no ser humano, através

do qual o conteúdo da revelação divina possa fluir. “Em outras palavras, revelação

deve se tornar religião, e é essa a sua natureza. Revelação é religião.”443 Parece

evidente que, nesse contexto, o descontentamento bonhoefferiano com o conceito de

a priori religioso se expressa na oposição à tentativa de identificação entre revelação

divina e religião humana. Do mesmo modo, em diversos momentos o teólogo alemão

procura distinguir a fé e a religião. Para ele, “atos religiosos simplesmente não são

idênticos à fé”444, pois a “fé é algo essencialmente diferente da religião.”445

Em sua discussão acerca da doutrina do ser humano, no último capítulo dessa

obra, Bonhoeffer assevera que “a Palavra de Deus demanda fé”446. O conhecimento

de que o ser humano é um ser pecaminoso em sua totalidade é acessível unicamente

por meio da fé na revelação divina. Como em Sanctorum Communio, o autor afirma

que através do conhecimento da revelação é possível saber que o ser humano se

apartou da comunhão com Deus e também da comunhão com o semelhante.447 Desse

modo, estando agora sozinho e na condição da mentira (alheio à verdade da

revelação), o que o ser humano entende por mundo, em realidade, é o “seu mundo”,

o que ele entende por Deus representa, de fato, um objeto religioso. Nesse sentido, o 442 Cf. Ibid., p. 46. 443 Ibid. 444 Ibid., p. 132. 445 Ibid., p. 94. 446 Ibid., p. 156. 447 Cf. Ibid.

97

que ele chama de Deus é a sua propriedade, tendo em vista que o próprio ser humano

é seu criador e mestre.448 Certamente, essa consideração de Bonhoeffer se aproxima

daquilo que Barth fala da religião, especialmente em sua ênfase na prática idolátrica

do ser humano que se colocar como criador de Deus. Entretanto, Bonhoeffer conduz

essa discussão na perspectiva do individualismo.

Ao procurar enfatizar a distinção entre revelação e religião assim como fé e

religião, o teólogo alemão sublinha a pertinência teológica com que Barth reprova a

confusão que Schleiermacher faz entre religião e graça.449 Contudo, ele também

aponta o perigo da posição de Barth: procurar estabelecer no ato de crer, apenas, o

ponto em que se descobre a fé, apresentando assim o “desejo da fé”, por parte do ser

humano, apenas como um reflexo do ato da fé. De outro modo, Bonhoeffer entende

que a fé e o “desejo de fé” estão juntos no mesmo ato. O segundo não é um mero

reflexo do primeiro. A diferença, para Bonhoeffer, é de que a fé propriamente dita se

fundamenta na comunhão com Cristo.450 A partir dessa premissa, o teólogo alemão

compreende o relacionamento entre fé e religião de maneira diferente da percepção

do teólogo suíço. A atividade religiosa humana, nos termos do “desejo de fé”, se

relaciona com a fé dada por Deus a partir da comunhão com Cristo: dentro da comunhão de Cristo a fé toma forma na religião, e então a religião é aqui chamada de fé, pois quando eu olho para Cristo, eu posso e devo dizer para minha consolação “Eu creio” – apenas para certamente acrescentar, quando eu torno a olhar para mim mesmo, “ajuda-me na minha falta de fé”. Toda oração, toda busca por Deus em sua Palavra, toda adesão a sua promessa, toda súplica por sua graça, toda esperança na cruz, todo esse reflexo é “religião”, “desejo de fé”; mas em comunhão com Cristo, embora ainda seja obra humana, ela é a fé dada por Deus, fé da vontade de Deus, que pode ser realmente encontrada pela misericórdia de Deus.451

Portanto, embora Bonhoeffer rejeite a concepção do idealismo ontológico que

compreende a revelação essencialmente como religião – identificação essa que se

expressa principalmente na noção de a priori religioso -, ele também se opõe à

proposta do transcendentalismo que, como em Barth, procura entender a fé como

algo totalmente alheio e diferente da religião. Na visão do teólogo alemão essas duas

posições apresentam um acento individualista bastante agudo.452 Conforme a

448 Cf. Ibid. 449 Cf. Ibid., p. 176. 450 Cf. Ibid., p. 175. 451 Ibid., p. 176. 452 Cf. Kurt Appel e Nicoletta Capozza, “Estar-aí-para-outros” como participação da realidade de Cristo: sobre a eclesiologia de Dietrich Bonhoeffer. Teocomunicação, v. 36, n. 153, 2006, p. 586.

98

indicação explícita do título da segunda parte da obra, em sua ênfase na importância

do relacionamento e da comunhão, Bonhoeffer aponta a igreja, enquanto

comunidade, como concretização e atualização da revelação divina.

3.1.5 Estudos em Nova York: Union Theological Seminary (1930-1931)

No período em que ficou estudando nos Estados Unidos – entre Setembro de

1930 e Junho de 1931 -, Bonhoeffer continuou escrevendo acerca da relação entre

teologia e filosofia, empreitada que basicamente constituiu o seu trabalho em Act and

Being.453 No ensaio intitulado “Sobre a Idéia Cristã de Deus” ele assevera: “A

justificação é a pura auto-revelação, o puro caminho de Deus ao homem. Nenhuma

religião, nenhuma ética, nenhum conhecimento metafísico pode servir de

aproximação do homem a Deus. Todos estes estão sob o julgamento de Deus, são

obras do homem.”454 Assim, nesse trecho o autor apresenta a obra de Deus em favor

da humanidade (a justificação, a auto-revelação) em contraposição à inutilidade das

obras humanas que buscam se aproximar de Deus por seus próprios esforços. Nesse

contexto, a religião aparece negativamente relacionada à ética e a metafísica.

De forma semelhante, em um trabalho monográfico intitulado “A Teologia

da Crise e sua atitude em relação à Filosofia e a Ciência”, Bonhoeffer procura

separar a atividade teológica do trabalho filosófico, especialmente através do

conceito teológico de revelação: “deve ficar claro o que tencionamos ser, teólogos

cristãos ou filósofos [...] a teologia cristã precisa conhecer a premissa própria e

constante de todo o seu pensamento, e que o filósofo não reconhece: a premissa da

revelação de Deus em Cristo ou, em termos objetivos, a fé em sua revelação.”455

Nessas considerações, o autor coloca Barth na tradição dos teólogos cristãos e, por

contraste, situa a religião no âmbito da filosofia. Nas palavras de Bonhoeffer, Barth

se encontra “na tradição de Paulo, Lutero, Kierkegaard, na tradição do genuíno

pensamento cristão. Cometemos injustiça contra Karl Barth se nós o consideramos

como um filósofo”.456 Ele explica que “a categoria que Barth tenta introduzir na

teologia em seu stricto senso e que é tão recusado por parte de todo o pensamento em

453 Cf. R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 5. 454 D. Bonhoeffer, Barcelona, Berlin, New York, op. cit., p. 461. 455 Ibid. Em nota os editores explicam que Bonhoeffer considera que a revelação de Deus em Jesus Cristo constitui o “objeto” de todo o pensamento de um teólogo cristão (cf. nota 10). 456 Ibid.

99

geral, e especialmente no pensamento religioso, é a categoria da palavra de Deus, da

revelação diretamente de cima, de fora do homem.”457

Assim, ao citar Barth, o teólogo alemão enfatiza que segundo a lógica da

Bíblia, “a vinda de Deus destrói todas as tentativas humanas [de ir até ele], que

condena toda moralidade e religião, por meio das quais o homem procura tornar a

revelação de Deus supérflua.”458 Portanto, há uma “grande antítese da palavra de

Deus e a palavra do homem, da graça e da religião, de uma categoria puramente

cristã e uma categoria religiosa geral”.459 Dessa forma, Bonhoeffer indica que a

religião ou o pensamento religioso, assim como a filosofia, não reconhecem a

premissa central da teologia cristã, a saber, a revelação de Deus em Jesus Cristo.

Aliás, para Bonhoeffer, fora dessa revelação o pensamento humano de maneira geral

não é capaz de obter o conhecimento de Deus: A tentativa da Cosmologia, isto é, de uma interpretação [...] do mundo com base na ciência natural, nunca pode ir além dos limites do pensamento humano. A Cosmologia pode chegar à hipótese de um fundamento último do mundo e chamá-lo de “Deus”, tudo o que nós podemos dizer em nome da teologia cristã é que esse Deus não é o Deus da revelação460

Por sua vez, em seu relatório de um ano de estudos nos Estados Unidos

preparado para o escritório da federação da igreja alemã (órgão que subsidiou os seus

estudos no Union Theological Seminary), Bonhoeffer descreve sua percepção da

teologia e do estilo de vida da cultura norte-americana. Ele afirma que a chave para

essa compreensão foi o reconhecimento do conceito pragmático de verdade, que

permeia o pensamento norte-americano. Como conseqüência desse pragmatismo, há

naquele lugar “um entendimento da vida puramente individualista que oferece a

felicidade para cada indivíduo, mas contém muito pouco além disso.”461 O teólogo

alemão acrescenta que essa noção é corroborada pela história intelectual e política da

América retratada por Thomas C. Hall em The Religious Background of American

Culture.462 Segundo Bonhoeffer, a tese de Hall é de “que o protestantismo americano

457 Ibid., p. 467. 458 Ibid., p. 466. 459 Ibid., p. 468. 460 Ibid., p. 475. 461 Ibid., p. 312. 462 Cf. Ibid. Os editores explicam que embora Bonhoeffer cite esse título, ele de fato se referia a The Religious Background of American Culture (cf. nota 24). Thomas Hall foi professor de história e cultura norte-americana na Universidade de Göttingen na Alemanha. O livro foi publicado em 1930, aproximadamente a época em que Bonhoeffer estava nos Estados Unidos. Cf. Thomas Cuming Hall, The Religious Background of American Culture. Boston: Little, Brown, and Company, 1930.

100

é mais velho que o protestantismo da Reforma e, portanto, sustenta um caráter

definitivamente individualista de pessoas sem igreja, o que concorda muito bem com

a impressionante influência do pragmatismo.”463

De fato, o teólogo alemão confessa que este livro foi muito importante para a

sua compreensão da situação da igreja norte-americana. Através dele, Bonhoeffer

pôde entender como era possível o fato de as igrejas nos Estados Unidos, de forma

geral, não possuírem um credo, um dogma ou um sistema dogmático: “as diversas

denominações não diferem no credo, mas nos ritos ou, às vezes, somente em sua

posição social.”464 A explicação bonhoefferiana dessa situação aponta como motivo

básico a premissa do individualismo religioso.465 Nesse caso, ao contrário do que ele

indicava como situação ideal em Sanctorum Communio, “a igreja não mais

representa o lugar onde a congregação ouve e prega a palavra de Deus”466. Ao invés

disso, a Palavra de Deus recebe importância secundária, pois esse tipo de igreja

representa essencialmente uma “entidade social para esse ou aquele propósito.”467

Como é possível perceber a partir dessas declarações, Bonhoeffer

repetidamente relaciona a religião e o individualismo no contexto da igreja norte-

americana. Aliás, “o conceito de ‘individualismo religioso’ é para Bonhoeffer um

conceito chave para o entendimento e a crítica da teologia americana.”468

3.2 Aplicação Teológica: de 1932 a 1939

No período denominado Aplicação Teológica são explorados diferentes tipos

de escritos de Bonhoeffer: sermões Berlim (1931-1933); aulas ministradas entre

1932 e 1936 (A Essência da Igreja, Venha a nós o teu Reino, Criação e Queda,

Cristologia e A Igreja visível no Novo Testamento); a obra Discipulado (1937); e,

por último, uma carta escrita em sua segunda visita aos Estados Unidos (1939).

463 D. Bonhoeffer, Barcelona, Berlin, New York, op. cit., p. 312. 464 Ibid., p. 316. 465 Cf. Ibid. 466 Ibid., p. 317. 467 Ibid. 468 R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 165 (nota 25).

101

3.2.1 Sermões em Berlim (1931-1933)

Em 29 de Novembro de 1931, Bonhoeffer fez uma prédica sobre Lucas

12:35-40. Nela, o teólogo alemão discutiu sobre o ser humano do futuro. Para ele, os

acontecimentos daqueles tempos apontavam para um momento crucial na história do

mundo. Em suas palavras, “a técnica e a ciência transformaram-se em poderes

independentes, que ameaçam destruir a humanidade. Elas se elevam às alturas e seus

demônios habitam o céu dos deuses do nosso tempo”469. Logo, “os enredamentos dos

povos arrastam os mesmos para a destruição, e parece que não existe alguém capaz

de frear esse destino”470. Nesse contexto, ele destaca que “no reconhecimento da

derrota do ser humano diante dessa realidade nasce a esperança por um novo tipo de

gente, por um renascimento, por um ser humano do futuro.”471. Em seu ponto de

vista, o texto bíblico de Lucas, escolhido para essa prédica, fala justamente desse

processo de criação de um novo ser humano. Mas esse novo ser humano não se

refere ao “ser humano político, nem do ético e muito menos do religioso, mas do ser

humano que espera atento, do ser humano esperançoso”472. Com efeito, ao falar da

necessidade da esperança, Bonhoeffer conclui: “se em algum momento uma geração

teve que aprender a esperar, esta é a nossa geração. Esperar por uma situação política

melhor, por uma conjuntura melhor, por emprego, por trabalho, por uma nova moral,

por uma nova religião”473. Portanto, o teólogo alemão fala da religião de seus dias a

partir de uma perspectiva negativa, associada a fatores políticos e morais

desfavoráveis. Ademais, essa discussão possui como pano de fundo o avanço da

ciência que tem o poder de alterar a conjuntura mundial.

Já em 1933 Bonhoeffer fez um sermão sobre Êxodo 32. Ao comentar sobre o

momento em que os israelitas esperavam Moisés descer do Monte Sinai, e a

concomitante situação em que suas necessidades “religiosas” os levaram à confecção

de um bezerro de ouro, sob a liderança de Arão, Bonhoeffer exclama: “Vamos

sacerdote Arão, cumpra com sua obrigação; veja algo para o culto. Deus nos deixou

aqui sozinhos, mas nós precisamos de deuses! Nós precisamos de religião! Se você

não pode prevalecer com o Deus vivo, então faça-nos deuses você mesmo!”474 Em

sua ênfase negativa da necessidade “religiosa” do povo, ele acrescenta: “mantenha a 469 Dietrich Bonhoeffer, Prédicas e alocuções. São Leopoldo: Sinodal, 2007, p. 8. 470 Ibid. 471 Ibid. 472 Ibid. 473 Ibid, p. 9. 474 Dietrich Bonhoeffer, Berlin: 1932-1933. DBW 12, Minneapolis: Augsburg Fortress, 2009, p. 474.

102

religião do povo viva, dê a eles condições de culto. Eles realmente querem

permanecer como uma igreja, com deuses, sacerdotes e religião, mas uma igreja de

Arão – sem Deus.”475 Assim, nesse sermão ele também retrata negativamente a

religião, que se encontra associada ao culto prestado aos deuses feitos por mãos

humanas. Além disso, ele fala de uma forma de igreja com religião, mas sem Deus.

3.2.2 Aula: A Essência da Igreja (1932)

No curso dado sobre “A Essência da Igreja” no segundo semestre de 1932,

Bonhoeffer parece colocar a crítica da religião em uma linguagem eclesiológica. Ele

critica, por exemplo, (1) a noção de igreja que se situa em lugares “privilegiados”;

(2) a igreja que se coloca na “periferia”, e não no centro do mundo; (3) e o conceito

de igreja que se relaciona com o individualismo religioso.

No primeiro caso ele salienta que a igreja não tem o poder de converter um

lugar histórico em um lugar de Deus, pois quem tem o poder para determinar isso

não é o ser humano, mas o próprio Deus. Em realidade, essa argumentação

bonhoefferiana serve como preparação para sua asserção central: “este lugar [isto é, o

lugar de Deus], não é nem a igreja nacional nem a burguesia”476. Em outros termos, a

igreja de Deus se “renuncia a instalar-se em lugares privilegiados.”477

Além disso, ela não deve estar na periferia, mas no centro do mundo. Nesse

sentido, ele se pergunta acerca do motivo pelo qual muitas pessoas não nutrem uma

visão positiva da igreja. Sua resposta indica que essa perspectiva se baseia no fato de

que “a igreja só aparece à distância, na periferia da vida”478. Assim, “quando a vida

do indivíduo se encontra em pontos culminantes ou em momentos críticos

(nascimento, confirmação, matrimônio, morte), então se apresentam os pontos

culminantes da atividade eclesial. Aí se deve buscar preferencialmente a igreja.”479

Em contraste com essa realidade prática, o teólogo alemão ressalta que “quando

Deus fala com sua comunidade, ela é simplesmente o centro de todos os lugares

humanos.”480

475 Ibid. 476 Dietrich Bonhoeffer, Creer y Vivir. Salamanca: Sigueme, 1974, p. 28. 477 Ibid. 478 Ibid., p. 29. 479 Ibid. 480 Ibid., p. 28.

103

Há também nesta aula uma crítica à noção de igreja no pensamento de

Schleiermacher. Bonhoeffer explica que, em Schleiermacher, a igreja representa uma

reunião voluntária de cristãos devotos. Esta não é em realidade uma igreja, mas a

piedade ou religiosidade particular dos indivíduos.481 Igualmente, a crítica à

religiosidade individual aparece como fator preponderante na distinção que

Bonhoeffer traça entre igreja e comunidade religiosa. Em suas palavras, O erro de tomar a igreja como uma comunidade religiosa é hoje quase universal. A igreja é uma realidade da fé. Quando em lugar da realidade da fé se coloca o ideal da experiência, já não temos que ver com a igreja, mas com a comunidade religiosa. Nesta, a comunhão é sempre algo secundário frente à religiosidade do indivíduo.482

No pensamento eclesiológico bonhoefferiano, tanto a essência quanto a

necessidade da igreja não se relacionam ou derivam do conceito de religião.483 Desse

modo, não é possível formar um conceito de comunidade eclesial a partir do conceito

de religião, pois este último permanece sempre em sua ênfase “individualista e

atomística.”484 Contudo, Bonhoeffer constata que em seus dias havia inúmeras

propostas para a renovação e desenvolvimento da vida comunitária da igreja,

especialmente no Movimento da Juventude e no Ecumenismo. Porém, na sua visão,

todas elas se baseavam na vida piedosa ou na religiosidade individual, ao invés da

noção de igreja da fé.485 Sua conclusão é de que, em contraposição à humanidade

redimida em Cristo, “com as vivências religiosas permanecemos na humanidade de

Adão. A pobreza da fé não pode ser compensada com ricas experiências.”486

3.2.3 Aula: Venha a nós o teu Reino (1932)

Em 1932 Bonhoeffer fez uma conferência, intitulada “Venha a nós o teu

Reino” na fundação Hoffbauer em Potsdam-Hermannswerder, Alemanha. Nela o

teólogo alemão indica duas posturas dos cristãos de seu tempo, que representam

indiretamente uma crítica da religião: fugir do mundo ou se secularizar. Em

realidade, esses dois caminhos significam, no final das contas, a mesma coisa: “já

481 Cf. Ibid., p. 32. 482 Ibid., p. 56. 483 Cf. Ibid., p. 58. 484 Ibid., p. 59. 485 Cf. Ibid. 486 Ibid., p. 60.

104

não cremos no reino de Deus”487. Bonhoeffer explica que no primeiro caso “nós

fugimos do mundo a partir do momento em que descobrimos o estratagema de

sermos religiosos, e inclusive cristãos”.488 No segundo, “[sucumbimos] à

secularização, entendida como secularização piedosa, cristã. Não aludimos ao

ateísmo nem à cultura bolchevista, mas à deposição cristã de Deus como senhor da

terra.”489 É possível notar na argumentação do teólogo alemão o perigo de dois

extremos do Cristianismo: distanciar-se do mundo ou acomodar-se ao mundo. Em

ambos os casos o cristão se esquece de que Deus é o senhor do mundo. Além disso, a

religião aparece ligada aos dois casos. No primeiro, o teólogo enfatiza a enganação

ou estratagema de “sermos religiosos”, enquanto que no segundo ele fala da

secularização, não em termos de ateísmo ou arreligiosidade, mas de piedade ou

religiosidade cristã. Além disso, este é mais um exemplo da abordagem

bonhoefferiana que procura evitar extremos. Em Sanctorum Communio ele deseja

escapar de duas compreensões da igreja que se contrapõem (comunidade

exclusivamente histórico-sociológica ou igreja como sinônimo de reino de Deus), e

em Act and Being ele quer evitar as noções extremas da revelação propostas pelo

transcendentalismo e pela ontologia. Aqui também ele aponta os extremos da fuga do

mundo e da acomodação ao mundo. De fato, em todas essas abordagens o tema da

religião se faz presente.

3.2.4 Aula: Criação e Queda (1932-1933)

As aulas sobre “Criação e Queda”, no inverno de 1932-1933, consistiram em

uma interpretação teológica de Gênesis 1 a 3. De forma específica, o título do

comentário bonhoefferiano sobre Gênesis 3 (o capítulo bíblico que retrata a queda

humana) foi traduzido para o inglês como “A questão religiosa”490 ou “A questão

487 Ibid., p. 101. 488 Ibid. 489 Ibid., p. 102. 490 Cf. Dietrich Bonhoeffer, Creation and Fall: a Theological Interpretation of Genesis 1-3. New York: Macmillan, 1976, p. 64. Essa versão segue a tradução publicada pela SCM Press em 1959. As citações feitas nessa dissertação seguem essa tradução, simplesmente pela opção do uso do termo “religião”.

105

piedosa”491. Em realidade, o termo original alemão emme pode significar “religiosa”,

“piedosa”, “devota”.492

Nessa discussão, Bonhoeffer enfatiza principalmente a pergunta feita pela

serpente (“É assim que Deus disse?”). Ele a considera “a primeira conversa sobre

Deus, a primeira conversa religiosa e teológica”493. No ponto de vista do teólogo

alemão, nesse contexto, a serpente só é má enquanto serpente religiosa, a sua

maldade se expressa apenas em sua religiosidade. Aliás, para Bonhoeffer, a pergunta

feita por ela é profundamente religiosa.494 Ele explica que, à primeira vista, essa

pergunta parece indicar uma boa intenção: “a serpente declara conhecer mais sobre

Deus do que o homem, que depende apenas da Palavra de Deus. A serpente conhece

um Deus maior e mais nobre que não precisa de tais proibições.”495

Entretanto, o teólogo alemão também indica o que realmente essa pergunta

representou: “A questão da serpente foi totalmente religiosa. Mas com a primeira

pergunta religiosa no mundo, o mal entrou em cena. Onde o mal aparece em sua

impiedade [ou não-religiosidade] ele é ineficaz, ele é um demônio, não precisamos

temê-lo.”496 Contudo, o perigo se encontra justamente quando o mal aparece de

forma religiosa: “Nessa forma ele não focaliza o seu poder, mas nos distrai para

outro lugar onde ele realmente deseja avançar. E aqui ele está coberto com os trajes

da religiosidade. O lobo vestido de cordeiro, Satanás em forma de anjo de luz: essa é

a forma apropriada do mal. ‘Deus disse?’, esta é claramente a pergunta

impiedosa.”497 Ademais, Bonhoeffer explica o real sentido da maldade contida nessa

pergunta: Essa é a pergunta que parece inocente mas através dela o mal nos vence, através dela nós nos tornamos desobedientes a Deus. Se nós percebêssemos essa questão em sua real impiedade nós seríamos capazes de resistir a ela. Mas esse não é o modo de atacar os cristãos. A eles deve-se trazer o próprio Deus, a eles deve ser mostrado um Deus melhor e mais maravilhoso do que eles parecem conhecer, e eles vão cair. O que há de realmente mal nessa pergunta? Absolutamente, não é o que está sendo perguntado. Antes, é a falsa resposta contida dentro da pergunta, [...] que ataca a atitude básica da criatura em relação ao Criador. Espera-se que o

491Cf. Dietrich Bonhoeffer, Creation and Fall. DBW 3, Minneapolis: Augsburg Fortress, 2004, p. 103. Essa versão segue a nova tradução publicada em 1997 pela Fortress Press para as Obras de Bonhoeffer. 492 Cf. nota 1 em Ibid. 493 Dietrich Bonhoeffer, Creation and Fall. New York: Macmillan, 1976, p. 69. 494 Cf. Ibid., p. 67. 495 Ibid., p. 66. 496 Ibid., p. 67. 497 Ibid.

106

homem julgue a palavra de Deus ao invés de simplesmente ouvi-la e obedecê-la.498

O ponto central dessa pergunta é a sugestão de que o ser humano precisa

examinar a Palavra de Deus, interpretando-a por si mesmo.499 A despeito de sua

forma de apresentação religiosa, essa pergunta é um ataque direto a Deus.500 Embora

a serpente fale religiosamente sobre Deus, isto é, com um aparente conhecimento

profundo sobre os segredos dele, logo a seguir essa religiosidade é “desmascarada

em um ataque aberto: ‘Deus disse?’ ‘Sim ele disse ... mas por que ele disse isso?’ [...]

A Palavra de Deus é mentirosa … porque você não irá morrer’.”501 A afirmação da

serpente de que o ser humano não morreria, de que a Palavra de Deus era mentirosa,

e que o ser humano se tornaria como Deus aguçou a curiosidade e o desejo humano.

Então, Bonhoeffer indica em que sentido o ser humano se tornou como Deus, ao

desobedecer a sua Palavra. No pensamento do teólogo alemão essa é uma

religiosidade diferente, que não se contenta com a Palavra dada por Deus, mas quer

ir além desta, buscando o conhecimento de Deus por si próprio. Nos termos

bonhoefferianos, é a desobediência humana em forma de obediência.502

Em linhas gerais, há uma certa ambigüidade na forma como Bonhoeffer

emprega o conceito de religião nesse contexto. Num primeiro olhar, parece que ele

usa o termo “religião” de maneira negativa, ao dizer, por exemplo, que a pergunta da

serpente é uma pergunta religiosa, que sua maldade é uma maldade religiosa, de que

essa pergunta religiosa se opõe à Palavra de Deus, fazendo com que o ser humano a

desobedeça e busque o seu próprio conhecimento de Deus. Contudo, deve-se levar

em conta que o teólogo alemão está enfatizando aqui a sutileza da maldade. Embora

ela tenha um conteúdo negativo, contra Deus, ela está revestida com uma roupagem

positiva, que está a favor de Deus, e por isso ela tem condições de persuadir e

enganar o ser humano. Assim, na argumentação de Bonhoeffer, problemático é o

conteúdo da pergunta, não necessariamente a sua forma. Nesse sentido, a religião

estaria sendo retratada de forma relativamente positiva. Porém, é preciso admitir que

esse sentido não é tão fixo e claro. Aliás, o teólogo alemão também fala de uma certa

498 Ibid. 499 Cf. Ibid., p. 66. 500 Cf. Ibid., p. 68. 501 Ibid., p. 69. 502 Ibid., p. 73.

107

forma de religiosidade, na qual o ser humano se torna como Deus, se opondo a sua

Palavra, e praticando a desobediência com a aparência de obediência.

3.2.5 Aula: Cristologia (1933)

As aulas de Cristologia, apresentadas no verão de 1933, tiveram como pano

de fundo o período turbulento de consolidação do nazismo que contava com a

submissão da igreja evangélica. De acordo com Otto Duzdus, em seu Prólogo da

obra reconstruída por Bethge, elas representaram em certo sentido uma orientação à

“agitada questão acerca do que a teologia e a Igreja deveriam fazer diante da

‘revolução popular’ ocorrida na Alemanha”503. Em linhas gerais, a orientação

indicava Cristo como senhor da igreja, em lugar da política nazista. Em termos de

conteúdo, as aulas contaram com três partes principais: na introdução Bonhoeffer

discutiu os pressupostos metodológicos da cristologia, depois enfatizou o conceito de

“Cristo presente” e, finalmente, abordou acerca do Cristo Histórico.504 De fato, o

tema da religião aparece praticamente em todas essas partes, direta ou indiretamente.

Ao introduzir seus pressupostos metodológicos, o teólogo alemão explica

dois tipos de abordagem da cristologia, que podem ser sintetizados em duas

diferentes perguntas: “como?” ou “quem?”. A pergunta pelo “como” transforma a

pessoa em “coisa”, algo que deve ser enquadrado nos esquemas mentais prévios de

quem questiona. Por outro lado, a pergunta pelo “quem” denota a aceitação da

singularidade e alteridade do outro.505 Assim, enquanto a pergunta pelo “como”

indaga pela imanência, a pergunta pelo “quem” indaga pela transcendência. A

pergunta pela imanência esgota Cristo no âmbito da lógica humana, excluindo sua

transcendência. Por isso, a última pergunta reduz a razão humana aos seus limites

devidos, abrindo-a para o transcendente. Esta é a pergunta mais adequada para a

cristologia, pois Cristo é “uma pessoa, um homem, não um objeto de

demonstração”506 que só pode ser aceito pelo reconhecimento de sua alteridade. Com

efeito, Bonhoeffer chama a adequada pergunta pelo “quem” de “a pergunta religiosa

503 D. Bonhoeffer, Quien es y quien fue Jesucristo?, op. cit., p. 9. 504 Betghe explica que estava prevista uma terceira parte da obra, “O Cristo eterno”. No entanto, não existem apontamentos dela, pois já havia terminado o semestre. Cf. nota 3 em Ibid., p. 88. 505 Cf. Ibid., p. 14. 506 Ibid.

108

por excelência”507. Portanto, a religião parece ser retratada positivamente nesse

contexto.

Na sua discussão sobre o “Cristo Presente”, o teólogo alemão afirma que

Cristo só pode ser pensado na comunidade. Ele “está presente como comunidade e na

comunidade”508. Por isso, a igreja é a forma de existência do Cristo presente “no

espaço e no tempo”509. À semelhança de sua argumentação no curso sobre A

Essência da Igreja, Bonhoeffer ressalta que a presença da pessoa de Cristo -

enquanto comunidade eclesial - necessita estar no centro, do ponto de vista temporal

e espacial, da existência humana, da história e da natureza.510 Contudo, novamente

em conformidade com a ênfase daquela aula, ele destaca que ao invés de estar no

centro da vida humana, a igreja tem procurado se situar em lugares privilegiados, e

mais uma vez ele menciona nesse contexto a igreja nacional e a burguesia: Parece como se, para o mundo do proletariado, Cristo estivesse já encerrado junto a Igreja e a sociedade burguesa. Não existe, pois, nenhum motivo para situar em um lugar privilegiado o encontro com Jesus. A Igreja veio a ser uma organização embrutecida que sanciona o sistema capitalista. Mas precisamente nesta circunstância jaz a possibilidade de que o mundo proletário separe nitidamente o Jesus de sua Igreja, visto que Jesus não é culpado do que a Igreja veio a ser. Jesus sim, Igreja não. [...] O que significa que o proletariado, em seu mundo de desconfiança, diga: “Jesus foi um bom homem”? [...] O proletário não diz: “Jesus é Deus”. Mas, ao afirmar que Jesus foi um bom homem, está dizendo mais do que quando o burguês afirma: “Jesus é Deus”. Para o burguês Deus é algo que pertence à Igreja. Mas nos galpões de uma fábrica, Jesus pode estar presente como socialista, e nas tarefas políticas, como idealista, e na existência proletária, como um bom homem. Jesus luta nas fileiras proletárias contra o inimigo, contra o capitalismo.511

Ao falar sobre o “Cristo Histórico”, Bonhoeffer destaca a inseparabilidade da

humanidade do Jesus histórico e o Cristo divino. À luz de sua introdução

metodológica, as tentativas de isolar, distinguir ou entender a união dessas naturezas

foram resultados da pergunta pelo ‘como’. Mas a tentativa de responder essa

pergunta, ou seja, a busca de explicar a encarnação, fracassa, pois “nada pode se

saber nem de Deus nem do homem antes que Deus se haja feito homem em Jesus

Cristo”512. Se a ênfase unilateral na divindade de Jesus (expressa no docetismo)

destrói sua humanidade, a univocidade de sua humanidade (expressa no ebionismo)

507 Ibid., p. 16. 508 Ibid., p. 39. 509 Ibid., p. 40. 510 Cf. Ibid., p. 41-43. 511 Ibid., p. 20. Grifo nosso. 512 Ibid., p. 76.

109

anula sua divindade. Assim, Bonhoeffer identifica a teologia liberal com o

docetismo, visto que sua principal falha foi tentar separar Jesus e Cristo, na sua busca

pelo Jesus Histórico.513 Nesse contexto ele parece criticar a noção de a priori

religioso, implícita na idéia “de personalidade religiosa do homem”: Na teologia protestante mais recente surgiu novamente o docetismo com uma força inusitada, embora sob uma forma distinta. Agora o interesse se concentra no Jesus histórico. Mas no lugar do antigo pensamento especulativo sobre Deus, aparece agora um conceito especulativo da história. Agora é a história que é portadora de determinadas idéias e valores religiosos. A história é a manifestação das idéias supra-históricas. Um de seus valores é, por exemplo, a idéia da personalidade religiosa do homem com ‘a força persistente de sua consciência de Deus.’514

3.2.6 Aula: A igreja visível no Novo Testamento (1935-1936)

Em sua aula no seminário em Finkenwalde sobre “A igreja visível no Novo

Testamento”, no semestre de inverno, entre 1935 e 1936, Bonhoeffer procurou

discutir sobre como a comunidade de Cristo vem a ser igreja. Em sua ênfase, que

ecoa as palavras de Sanctorum Communio, de que a igreja não é meramente uma

comunidade religiosa, mas uma comunidade sob a guia do Espírito Santo, o teólogo

alemão adverte acerca de dois perigos que ameaçam o verdadeiro caráter da igreja:

que ela se torne um conceito abstrato ou se secularize.515 Tais perigos encontram

paralelo direto com as expressões “fugir do mundo” e “secularização” descritas na

aula “Venha a nós o teu Reino”, e foram diretamente aplicados à realidade da igreja

protestante no contexto do nazismo da época.

Nesse sentido, ao explorar o conceito de Nova Comunidade, realizada a partir

do Espírito em sua nova criação, Bonhoeffer salienta que esta é a comunidade que

participa da união com Cristo. Com efeito, ela é a segunda criação, depois da velha e

corrompida criação, que se expressa na nova condição do ser humano em

comunidade. Assim, uma parte do mundo é novamente criada à imagem de Deus.

Contudo, o teólogo esclarece que isso não representa o estabelecimento de uma nova

religião, mas o estabelecimento da igreja.516

513 Cf. Ibid., p. 53-59. 514 Ibid., p. 57. Ao utilizar a expressão “força persistente de sua consciência de Deus”, Bonhoeffer está citando Schleiermacher em A Fé Cristã (“Der christliche Glaube”), §94. 515 Cf. Dietrich Bonhoeffer, A Testament to Freedom: the Essential Writings of Dietrich Bonhoeffer. In: Geffrey B. Kelley (Org.). San Francisco: HarperSanFrancisco, 1995, p. 153. 516 Cf. Ibid., p. 154.

110

No pensamento bonhoefferiano, a implicação básica dessa noção é de que na

nova criação há o envolvimento da vida em sua totalidade. Desse modo, Bonhoeffer

não está falando sobre “colocar o religioso diante do profano, mas em colocar o ato

de Deus diante do religioso como também do profano”517. Em suas palavras, “aqui

está a diferença essencial entre a igreja e a ‘comunidade religiosa’. A ‘comunidade

religiosa’ está preocupada em dividir a vida entre o religioso e o profano; ela está

preocupada com uma ordem de valor e status.”518 Nesse caso, a comunidade religiosa

acaba por funcionar como um fim em si mesmo, ao colocar o “religioso” como o

valor mais elevado dado por Deus.519

Por outro lado, “a igreja como parte do mundo e da humanidade criados

novamente pelo Espírito de Deus, demanda obediência total ao Espírito que

novamente cria ambos, o religioso e o profano.”520 Então, devido ao fato de que “a

igreja está interessada em Deus, no Espírito Santo, e na Palavra de Deus, ela não está

[...] especificamente interessada na religião, mas na obediência à Palavra, à obra do

Pai, ou seja, na finalização da nova criação por meio do Espírito.”521 Assim,

Bonhoeffer explica que a igreja não é composta de “questão religiosa ou interesse

religioso”522, “mas da obediência à Palavra da nova criação da graça”523.

Tais considerações indicam que “a igreja não é constituída por fórmulas

religiosas, por dogma, mas por meio da ação prática daquilo que é ordenado. O puro

ensino do evangelho não é um interesse religioso, mas um desejo de executar a

vontade de Deus para a nova criação.”524 O teólogo alemão categoricamente conclui

que “na igreja, o Espírito Santo e a obediência tomam o lugar do ‘religioso’.”525

Algumas características do que Bonhoeffer entende por religião, nesse contexto,

aparecem de forma bastante evidente. Em primeiro lugar, ele explicita que a igreja

compreende a totalidade da vida, ao passo que a religião é vista como algo parcial.

Por contraste, a religião não está preocupada com Deus, nem com a nova criação do

mundo, e muito menos com a obediência às ordens divinas.

517 Ibid., p. 155. 518 Ibid. 519 Cf. Ibid. 520 Ibid. 521 Ibid. 522 Ibid. 523 Ibid. 524 Ibid. 525 Ibid.

111

3.2.7 Discipulado (1937)

Como diretor do seminário em Finkewalde, Bonhoeffer publicou em 1937 o

livro Discipulado, escrito a partir de estudos preparados para seus alunos acerca do

Sermão da Montanha de Mateus 5-7. Nessa obra, o quadro que melhor retrata sua

crítica da religião é a contraposição entre “graça barata” e “graça preciosa”. Nesse

sentido, a religião é associada à graça barata. Essa graça é referida como inimiga

mortal da igreja. Ela é a “graça como doutrina, como princípio, como sistema;

significa perdão de pecados como verdade geral”526. Ou seja, uma graça que se

expressa apenas no plano das idéias, mas que não traz diferenciação na atitude e vida

prática. Considerando que o foco desse livro é o seguimento de Jesus, ou

discipulado, a graça barata se caracteriza como um cristianismo que não segue a

Jesus, que não pratica as obras de seu mestre. Por isso, Bonhoeffer questiona a

atuação eclesial (ou falta dela): “examine-se, pois, a Igreja dos discípulos de Jesus

para ver se ela deu aos rejeitados e desonrados pelo mundo um sinal do amor de

Jesus, amor que quer conservar, sustentar, proteger a vida”527.

Com efeito, ele constata que a graça barata caracterizava os cristãos, pois

estes não se distinguiam do mundo: “Viva, pois, o crente como vive o mundo,

coloque-se em tudo, em pé de igualdade com o mundo, e não se atreva – sob pena de

ser acusado de heresia entusiasta! – a ter, sob a graça, uma vida diferente da que

tinha sob o pecado”.528 É possível notar nesse trecho uma aproximação com a noção

de secularização, vista como acomodação cristã ao mundo, que Bonhoeffer indicou

na aula Venha a nós o teu Reino em 1932.

Em contraposição à graça barata, que é a graça sem o seguimento, está a

“graça preciosa” que chega ao crente por meio do chamado ao seguimento: Ela é o tesouro oculto no campo, por amor do qual o ser humano sai e vende com alegria tudo quanto tem; a pérola preciosa, para cuja aquisição o comerciante se desfaz de todos os seus bens; o senhorio régio de Cristo, por amor do qual o ser humano arranca o olho que o faz tropeçar; o chamado de Jesus Cristo, pelo qual o discípulo larga as suas redes e o segue.529

Nesse sentido, Bonhoeffer assinala que a vitória de Lutero na história da

Reforma foi precisamente o reconhecimento de que sua vida não se caracterizava

pela graça preciosa, mas pelo “apurado instinto religioso do ser humano para

526 Dietrich Bonhoeffer, Discipulado. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 9. 527 Ibid., p. 76. 528 Ibid., p. 9. 529 Ibid., p. 10.

112

descobrir onde é que a graça pode ser conseguida mais barata.”530 Ele conseguiu

distinguir a diferença entre esses dois tipos de graça, ao notar que “mesmo nos

caminhos e obras mais piedosos, o ser humano não poderia subsistir perante Deus

porque, no fundo, procura-se sempre a si próprio.”531

Assim, a direta identificação entre a graça barata e a crítica da religião ocorre

justamente na descrição bonhoefferiana da vida de Lutero. Curiosamente, no trabalho

monográfico escrito em 1925 sobre os “Sentimentos de Lutero acerca de sua Obra”,

Bonhoeffer retratou positivamente a religiosidade de Lutero. Agora, no entanto,

também no contexto de Lutero, a religião parece ser negativamente considerada.

Aqui, a religião aparece em oposição ao discipulado.532 Enquanto o discipulado é

definido como um comprometimento com Cristo, o “conhecimento religioso geral da

graça ou do perdão” - associado, por exemplo, a um conceito de Cristo ou a um

sistema doutrinário – caracteriza-se como algo hostil ao discipulado.533 Assim, o

conhecimento religioso é identificado com a abstração que se opõe à atitude prática.

Nessa obra, Bonhoeffer também ressalta a noção de rompimento da relação

imediata com o mundo, como característica crucial do discipulado. Essa noção deriva

da concepção de que o discípulo só se relaciona diretamente com Jesus Cristo, e por

intermédio de Jesus, o mediador, ele pode se relacionar indiretamente com o mundo. No chamado de Jesus, encontra-se já realizado o rompimento com as circunstâncias naturais em que o ser humano vive. Não é o discípulo que provoca esse rompimento, mas o próprio Cristo já o concretizou ao pronunciar seu chamado. Cristo libertou o ser humano de sua relação imediata com o mundo e o transportou para uma relação imediata consigo mesmo.534

Em outros termos, o autor ressalta que “a pessoa que foi chamada por Jesus

aprende [...] que tem vivido iludida na sua relação com o mundo. Essa ilusão chama-

se ‘relação imediata’.”535 Com efeito, o teólogo alemão provê um exemplo bíblico

desse princípio – a experiência de Abraão -, e é precisamente nesse exemplo que a

religião é inserida na discussão. Bonhoeffer enfatiza que Abraão aceita o chamado tal como foi pronunciado; não procura interpretá-lo ou espiritualizá-lo; aceita a palavra de Deus e está pronto a obedecer. Contra toda a relação imediata natural, contra toda relação imediata ética, contra toda relação imediata religiosa, ele vai ser obediente à Palavra de Deus.

530 Ibid., p. 14. 531 Ibid. 532 Cf. R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 14-15. 533 Cf. D. Bonhoeffer, Discipulado, op. cit., p. 21. 534 Ibid., p. 51. 535 Ibid., p. 53.

113

Leva o filho para sacrificar; está disposto a concretizar de modo visível esse rompimento oculto, por amor ao Mediador.536

Portanto, nesse contexto, a religião está associada a questões éticas, à

interpretação e espiritualização que se opõem à Palavra de Deus, promovendo

desobediência a essa Palavra e rejeição do chamado ao discipulado.

Por sua vez, ao abordar o tema das bem-aventuranças, Bonhoeffer diferencia

aqueles que aceitaram o chamado de Jesus ao discipulado, dos líderes da religião

(fariseus e autoridades judaicas), especificamente na bem-aventurança dos humildes

de espírito, dos pobres. Desse modo, o autor descreve os discípulos como quem nada

possui. Não possuem segurança, propriedades nem pátria. Também não podem

recorrer a nenhum poder, experiência ou conhecimento espiritual próprios. Por amor

do mestre, perderam tudo. Com efeito, “seguindo-o, perderam-se a si mesmos e,

conseqüentemente, tudo o que os poderia enriquecer. Estão tão pobres, inexperientes

e néscios que nada mais lhes resta senão confiar naquele que os chamou.”537 De

outro modo, os “representantes e pregadores da religião do povo” desfrutam de uma

situação cômoda: “estes homens poderosos e admirados, alicerçados firmemente no

mundo, na cultura, no espírito da época, na religiosidade popular”538. Contudo, Jesus

não lhes considera bem-aventurados. O reino dos céus se destina aos que se tornaram

pobres ao aceitarem o chamado ao discipulado.539 Nessa distinção, a religião é

retratada em termos de comodidade (acomodação ao mundo e a cultura da época) em

oposição à carência e privações do discipulado.

Em outro ponto de seu texto, Bonhoeffer também distingue a prática concreta

do discipulado da abstração do conhecimento religioso à luz da encarnação do Filho

de Deus. Em suas palavras, “uma verdade, uma doutrina, uma religião não exigem

espaço próprio. Elas não têm corpo. São ouvidas, estudadas, compreendidas. Isso é

tudo.”540 Todavia, o Filho de Deus feito ser humano “precisa não somente de ouvidos

ou corações, mas seres humanos verdadeiros para o seguirem.”541 Mais uma vez, o

conceito de religião está relacionado com o pensamento doutrinário abstrato que

carece de materialização e concretude.

536 Ibid., p. 55. 537 Ibid., p. 60. 538 Ibid. 539 Cf. Ibid. 540 Ibid., p. 158. 541 Ibid.

114

Finalmente, o teólogo discute sobre a restauração da imagem de Deus no ser

humano. Nesse sentido, ele advoga que “o alvo e o destino do ser humano não é que

ele aprenda novamente a conceituar Deus corretamente [...] mas que, como um todo,

como criatura viva, volte a ser imagem de Deus.”542 Bonhoeffer deseja enfatizar a

noção de totalidade. “Corpo, alma e espírito, toda a estrutura do ser humano deve

levar a imagem de Deus na terra.”543 Portanto, a solução apontada para a restauração

é a encarnação do Filho de Deus, visto que “o alvo não poderia ser atingido por uma

nova idéia, por uma religião melhor.”544 A implicação básica dessa argumentação é

de que, ao contrário da encarnação, a religião não é capaz de produzir a restauração

da humanidade na perspectiva de totalidade. Ela aparece restrita ao campo das idéias.

3.2.8 Segunda visita aos Estados Unidos (1939)

No rápido período em que esteve nos Estados Unidos em 1939 (junho e julho

aproximadamente) Bonhoeffer escreveu uma carta para Bethge no dia 18 de junho.

Nela existem declarações muito incisivas acerca de sua oposição a um “culto

religioso” que participou na igreja de Riverside, qualificado como “simplesmente

insuportável”545. O teólogo alemão resume todo o culto, em tom bastante negativo,

como “uma celebração da religião [que se apresenta como] agradável, abundante e

satisfeita consigo mesma”546. Na sua visão, todo o culto representou uma idolatria do

religioso que, em suas palavras, desperta as “aptidões da carne” (isto é, o que há de

mal no ser humano), que deveriam ser disciplinadas por força da Palavra Deus. O

teólogo expressa que “uma pregação semelhante se faz a alguém egoísta, libertino,

indiferente. Será que as pessoas realmente não sabem que elas viveriam bem, ou

melhor, sem a religião [?]”547 Além disso, ele afirma: “talvez os anglo-saxões sejam

mais religiosos que nós, mas certamente não são mais cristãos, se aceitam de bom

grado esse tipo de sermão.”548 De maneira geral, novamente Bonhoeffer contrapõe a

religião à palavra de Deus, e também a religião ao cristianismo. Além disso, a

religião aparece ligada às noções de satisfação própria, egoísmo e libertinagem.

542 Ibid., p. 199. 543 Ibid. 544 Ibid., p. 200. 545 D. Bonhoeffer, Redimidos para lo humano, op. cit., p. 138. 546 Ibid. 547 Ibid. 548 Ibid., p. 138-139.

115

3.3 Fragmentação Teológica: de 1940 a 1945

No período denominado Fragmentação Teológica são explorados os escritos

que, em geral, são fragmentários e inacabados, e correspondem aos últimos anos da

vida de Bonhoeffer: os manuscritos de Ética (1939-1943) e as cartas da prisão (1943-

1945). Por terem sido escritos na última fase do pensamento teológico

bonhoefferiano, de certo modo, eles constituem as mais importantes e explícitas

referências do teólogo alemão ao tema da religião e sua crítica.

3.3.1 Ética (1939-1943)

O período de redação dos manuscritos de Ética compreende a conspiração

contra o estado nazista (1939/1940) à sua prisão em abril de 1943. No prefácio de

1948 da primeira a quinta edição, Bethge explica que essa obra não corresponde ao

trabalho que Bonhoeffer tencionava publicar. Contudo, devido à sua prisão e morte,

tudo o que restou foram manuscritos fragmentários e inacabados que, por sua vez,

foram compilados e publicados postumamente em 1949.549

No capítulo “O amor de Deus e a decadência do mundo”, escrito entre 1939 a

1940,550 o autor menciona a religião como a tentativa humana de buscar o

restabelecimento de sua unidade com Deus: Onde este desejo irrompe [isto é, o desejo de restabelecimento da unidade perdida], como na união sexual, onde duas pessoas se tornam uma só carne (Gn 2.24), e na religião, onde o ser humano procura a sua unidade com Deus, onde, pois, se rasga o encobrimento, justamente ali o pudor cria sua mais profunda ocultação.551

Por sua vez, no capítulo “Ética como formação”, escrito em 1940, o teólogo

alemão discute sobre a relação entre Deus e o mundo, a partir da perspectiva

cristológica de totalidade, não de separação: “quem olha para Jesus Cristo vê, de

fato, Deus e o mundo em um só; doravante não pode ver mais Deus sem o mundo,

nem o mundo sem Deus.”552 Essa noção encontra paralelo com a declaração

bonhefferiana acerca do postulado de totalidade e exclusividade de Cristo expresso

no texto “Igreja e Mundo” (escrito entre 1939 e 1940), que ressalta que em Cristo se

reúnem elementos que poderiam ser chamados de religiosos e seculares, por assim

549 Cf. Dietrich Bonhoeffer, Ética. São Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 9-10. 550 Para a datação dos textos de Ética veja “Prefácio da sexta edição reorganizada” em Ibid., p. 11-12. 551 Ibid., p. 17. 552 Ibid., p. 44.

116

dizer: “Ele é o centro e a força da Bíblia, da Igreja, da teologia mas também da

humanidade, da razão, do direito, da cultura. A ele tudo deve retornar; só sob a sua

proteção tudo pode prosperar.”553

Seguindo essa perspectiva, ainda no texto “Ética como formação”,

Bonhoeffer insere a figura da igreja como a forma pela qual Cristo age e se relaciona

com o mundo. Precisamente no contexto da discussão da igreja como corpo de

Cristo, o teólogo alemão faz uma diferenciação entre igreja e comunidade religiosa:

“Jesus Cristo adquire forma em sua Igreja. É a forma do próprio Jesus Cristo que

ganha forma aqui. [...] o Novo Testamento chama a Igreja de corpo de Cristo. O

corpo é a forma. A Igreja, portanto, não é uma comunidade religiosa de admiradores

de Cristo, mas o Cristo que tomou forma entre os seres humanos.”554 Assim,

enquanto a comunidade religiosa é caracterizada pela passiva e abstrata postura de

admiração, a igreja é descrita de maneira ativa e concreta como “forma de Cristo”.

Além disso, Bonhoeffer concebe a igreja em relação a existência humana como um

todo, incluindo os seus mais variados relacionamentos que assume no mundo, ao

passo que a religião diz respeito apenas a algumas “funções” do ser humano, estando

associada, por exemplo, a alguns programas de formação ética: A Igreja é o ser humano humanizado, julgado e ressuscitado para uma nova vida em Cristo. Ele não trata, por isso, primeira e essencialmente das assim chamadas funções religiosas do ser humano, e sim do ser humano como um todo na sua existência no mundo e com todos os seus relacionamentos. A causa da Igreja não é a religião, mas a forma de Cristo e seu tomar forma num grupo de pessoas. Se cairmos no menor desvio desta visão, estaremos, inevitavelmente, recaindo naqueles programas de formação ética ou religiosa do mundo das quais partimos nesta análise.555

Também em “Ética como formação”, o autor traça um panorama histórico do

cristianismo ocidental, especialmente na Europa, no tópico “Herança e Decadência”.

Além de este tópico incluir relevantes referências à religião, ele também fornece um

quadro geral da perspectiva bonhoefferiana da história ocidental. Ele inicia essa

discussão enfatizando que a herança ocidental da Antigüidade grego-romana

apresenta uma dupla relação com Cristo. Enquanto a herança romana constituiu uma

ligação entre Antigüidade e Cristianismo, a herança grega representou hostilidade,

oposição a Cristo. Desse modo, ao passo que o relacionamento da Europa ocidental

(sobretudo França, Holanda, Inglaterra e Itália) com a Antigüidade foi mediado pela

553 Ibid., p. 36. 554 Ibid., p. 51. 555 Ibid., p. 51-52.

117

herança romana, o dos alemães foi marcado pela herança helênica. Semelhantemente,

se a herança romana chegou ao século XX por meio da Igreja Católica Romana, o

acesso ao helenismo se dá pela Reforma, que fomentou o acesso às fontes gregas.556

Bonhoeffer também indica a relativa importância da Antigüidade na cultura

ocidental, especialmente em termos de educação e política, a partir de uma

perspectiva cristã. Nesse sentido, os humanistas da Europa ocidental procuraram

conciliar Antigüidade e Cristianismo. Por outro lado, “na Alemanha, a tensão, para

não dizer rompimento, entre Antiguidade e cristianismo foi muito sentida nesse amor

ao helenismo [...]. De Winkelmann a Nietzsche há aqui uma atualização

conscientemente anticristã da herança grega.”557 No ponto de vista bonhoefferiano,

esses dois tipos de relacionamento com Antigüidade proporcionam diferentes

compreensões da relação entre mundo natural e a graça divina: na Reforma há a

oposição entre elas, enquanto na herança romana há conciliação.558

A partir dessa contraposição, Bonhoeffer relata que a unidade cristã medieval

na Europa, sintetizado pelo termo corpus christianum, foi fragmentada pela Reforma.

Com efeito, essa não foi a intenção inicial de Lutero, mas por força das

circunstâncias este caminho tornou-se inevitável. Assim, o corpus christianum se

decompôs em seus dois principais componentes: o corpus Christi (a igreja) e o

mundo. Segundo a visão luterana estes são dois reinos distintos que não podem ser

confundidos, misturados nem separados. Aliás, Deus é senhor de ambos. Ele governa

o mundo através do ofício espiritual e da autoridade secular.559 Por sua vez, a

fragmentação do corpus christianum no período moderno foi acompanhada pelo

rápido início do processo de secularização. Para Bonhoeffer, no lado protestante

houve uma interpretação equivocada da doutrina dos dois reinos: Exalta-se a Reforma como a libertação do ser humano no que diz respeito a sua consciência, razão, cultura, como a justificação do mundano em si. A fé bíblico-reformatória em Deus desdivinizava o mundo radicalmente. Com isso, preparou–se o campo para o florescimento das ciências racionais e empíricas, e, enquanto os cientistas dos séculos XVII e XVIII ainda eram cristãos de fé, com o desaparecimento da fé em Deus só restou um mundo racionalizado e mecanizado.560

556 Cf. Ibid. 557 Ibid. 558 Cf. Ibid. 559 Cf. Ibid., p. 57. 560 Ibid., p. 58.

118

Já no lado católico, o processo de secularização se apresentou em rápidas

investidas revolucionárias, anti-eclesiásticas e anticristãs. Nesse sentido, a Revolução

Francesa tornou-se símbolo do ocidente moderno. Para o teólogo alemão essa

revolução é definida como “a revelação do ser humano liberto com seu poder enorme

e em sua mais terrível desfiguração”.561 Segundo essa definição, são apresentados

dois lados de uma mesma moeda: a positiva noção de liberdade humana e sua

negativa desfiguração. Paradoxalmente, emergem “o culto à razão, a divinização da

natureza, a fé no progresso e a crítica da cultura, a revolta da burguesia e a rebelião

da massa, nacionalismo e hostilidade à Igreja, direitos humanos e terror ditatorial –

tudo isso irrompe caoticamente como algo novo na história do Ocidente.”562

Positivamente, “a razão libertada se projetou até uma magnitude

inimaginável. Sua livre aplicação criou uma atmosfera de veracidade, clareza e

lucidez.”563 Fundamentalmente, a razão se tornou hipótese de trabalhou. Sua maior

produção foi o incomparável desenvolvimento tecnológico. Historicamente falando,

a tecnologia do ocidente moderno exerce um papel inédito no mundo. Ela abandona

a função de servidora e assume o papel de senhorio. Nas palavras de Bonhoeffer,

“das pirâmides egípcias aos templos da Grécia, das catedrais da Idade Média até o

século XVIII a tecnologia era questão de artesanato. Ela servia à religião, aos reis, à

arte e às necessidades cotidianas do ser humano.”564 Contudo, nessa nova conjuntura

“a tecnologia do Ocidente moderno libertou-se de qualquer relação de serviço. [...] a

tecnologia vira um fim em si mesma”.565

Em realidade, há uma inversão da relação entre religião e tecnologia. Antes a

tecnologia incipiente estava a serviço da religião. No entanto, no contexto ocidental

moderno a desenvolvida tecnologia se sobrepõe à religião, representando até mesmo

uma ameaça para ela. Tal compreensão é sustentada a partir de duas afirmações

bonhoefferianas. Na primeira delas ele assevera que “a arrogância humana [...]

procura criar um contramundo contra aquele criado por Deus e vê na tecnologia, que

supera limites de tempo e espaço, uma iniciativa contrária a Deus.”566

Adicionalmente, o autor descreve o uso da tecnologia fora do ambiente ocidental, no

mundo islâmico, ressaltando que naquele ambiente a tecnologia “permanece 561 Ibid. 562 Ibid. 563 Ibid. 564 Ibid. 565 Ibid. 566 Ibid., p. 59.

119

totalmente a serviço da fé em Deus e da construção da história islâmica. Ibn Saud

teria dito numa entrevista: ‘Mandei buscar máquinas da Europa, mas a irreligiosidade

eu não quero’.”567 Nessa relação entre religião e tecnologia, Bonhoeffer parece

retratar a religião sob um prisma favorável.

Negativamente, o desejo de liberdade absoluta defendido pela revolução

moderna conduziu o ser humano à mais intensa servidão, pois de senhor das

máquinas ele se tornou seu verdadeiro escravo. Nas palavras de Bonhoeffer, a criatura volta-se contra o seu criador – estranha repetição da queda do ser humano. A libertação da massa desemboca no horroroso império da guilhotina. O nacionalismo inevitavelmente conduz à guerra. A libertação do ser humano, como ideal absoluto, leva à autodestruição humana.568

Assim, o autor comenta sobre a realidade do mundo moderno, desde a

Revolução Francesa, a partir de um ponto de vista religioso: A nova unidade que a Revolução Francesa trouxe para a Europa e a cuja crise estamos assistindo hoje é [...] completamente diferente do ateísmo de isolados pensadores gregos, indianos, chineses e ocidentais. Não é a negação teórica da existência de um deus. Antes, ela própria constitui-se em religião, religião por hostilidade a Deus. É precisamente nisso que é ocidental. Não pode livrar-se de seu passado, tem que ser essencialmente religiosa. [...] A impiedade ocidental estende-se desde a religião do bolchevismo até o interior das Igrejas cristãs. [...] Sob todas as formas possíveis de cristianismo, sejam nacionalistas, socialistas, racionalistas ou místicas, ela se volta contra o Deus vivo da Bíblia, contra Cristo. Seu Deus é o novo ser humano, não importando se a ‘fábrica do novo ser humano’ é bolchevista ou cristã. A diferença fundamental para com todo o paganismo é que ali se adoram deuses sob a forma humana, ao passo que aqui, sob a forma de Deus, de Jesus Cristo até, adora-se o ser humano.569

Portanto, aqui Bonhoeffer identifica a religião com o endeusamento do ser

humano praticado pelo mundo moderno, seja no ambiente eclesiástico ou anti-

eclesiástico. Teologicamente, ele explica que “a grande descoberta de Lutero

referente à liberdade do cristão e a errônea doutrina católica da boa essência do ser

humano acabaram juntas no endeusamento do ser humano” 570. De qualquer modo.

em sua crítica da religião, por assim dizer, Bonhoeffer se dirige aos círculos

eclesiásticos e anti-eclesiásticos. Ele afirma que ao lado da impiedade que se

expressa em linguagem anti-religiosa e anti-eclesiástica, está a impiedade de

aparência religiosa-cristã. Na sua visão, a primeira forma representa, em certo

567 Ibid. 568 Ibid., p. 61. 569 Ibid. 570 Ibid.

120

sentido, uma reação à segunda, um protesto contra a impiedade devota que corrompe

as igrejas.571 Citando Lutero ele afirma que talvez Deus prefira “ouvir as

imprecações dos ímpios do que o aleluia dos piedosos.”572

Por isso, o autor declara em algumas páginas a confissão de culpa da igreja.

Aqui, a crítica da religião assume explicitamente a forma de crítica eclesiástica.

Todavia, ele entende a confissão como atitude fundamental para receber o perdão e a

justificação divina. Ademais, “a justificação do Ocidente apartado de Cristo está

unicamente na justificação divina da Igreja”573. Assim, ele aponta a quebra dos dez

mandamentos por parte da igreja, sua apostasia de Cristo. Nos termos

bonhoefferianos a igreja: (1) não tem sido suficientemente clara na pregação de Jesus

Cristo; (2) cometeu desvios e fez perigosas concessões; (3) usou mal o nome de

Cristo e passivamente assistiu a injustiça e a violência sob o manto do seu nome; (4)

desprezou o dia santo e esvaziou os seus cultos; (5) não teve coragem de proclamar a

dignidade divina dos pais contra auto-endeusamento da juventude; (6) viu a violência

brutal e arbitrária, o sofrimento físico e psíquico de inocentes, a opressão, ódio e

assassinato, sem erguer a voz em seu favor, nem achar caminhos para socorrê-los; (7)

não se opôs vigorosamente à licenciosidade sexual e ao escárnio da castidade; (8)

silenciosamente assistiu a corrupção dos poderosos e a exploração dos pobres; (9)

abandonou o caluniado a sua própria sorte sem mostrar o erro do caluniador; (10)

aspirou honrarias, posses e segurança, estimulando assim a cobiça das pessoas.574

Outro conceito importante presente nessa obra de Bonhoeffer, que se

relaciona indiretamente com a religião, é a ligação entre o que ele chama de “As

últimas e as penúltimas coisas”, escrito entre 1940-1941. Ao invés de utilizar pares

tradicionais tais como “natural-sobrenatural”, “sagrado-profano”, “cristão-secular”, o

teólogo alemão prefere usar as categorias “último-penúltimo”. Normalmente, os

pares tradicionais indicam uma concepção da realidade dividida em duas esferas,

provocando compreensões distorcidas da relação de Cristo e o mundo, enfatizando

ou a oposição excludente ou a autonomia de um em relação ao outro. No primeiro

caso, por exemplo, o mundo seria destruído por Cristo, enquanto que no outro ele

seria totalmente independente de Cristo, não afetado por ele.575 Mas no par escolhido

571 Cf. Ibid., p. 62. 572 Ibid. 573 Ibid., p. 68. 574 Cf. Ibid., p. 67 575 Cf. Ibid., p. 74-75.

121

por Bonhoeffer há uma dependência, e não distanciamento ou exclusão mútua. O

autor explica que não há penúltimo em si mesmo. O penúltimo não possui existência

própria. Sua existência é condicionada pelo último. Assim, o penúltimo deve ser

preservado por causa do último.576

De maneira concreta, um ser humano que está privado “das condições que

fazem parte do ser gente, a justificação de tal vida por graça e fé, ainda que não

impossibilitada, é seriamente dificultada.”577 Se, por exemplo, “o escravo é privado

de disponibilidade de tempo a ponto de não poder mais ouvir a pregação da Palavra,

em todo caso não pode ser levado à fé justificadora por esta palavra de Deus.”578

Desse modo, é necessário cuidar do penúltimo a fim de preparar o caminho para a

Palavra, o último. Bonhoeffer salienta: o faminto precisa de pão, o desabrigado de moradia, o injustiçado de direito, o isolado de comunhão, o indisciplinado de ordem, o escravo de liberdade. Deixar o faminto com sua fome, alegando que na miséria o irmão estaria mais perto de Deus, seria blasfemar a Deus e ao próximo. Por causa do amor de Cristo, que tanto vale para o faminto quanto para mim, repartimos o pão com ele, compartilhamos o teto. [...] Providenciar pão para o faminto é preparação para a vinda da graça.579

No entanto, o teólogo alemão esclarece que ele não está pensando

necessariamente em uma reforma nas condições do mundo - isso seria pensar no

penúltimo como existência própria - mas na vinda de Cristo, no último.580

Em direta relação ao pensamento de totalidade da noção “último-penúltimo”,

Bonhoeffer escreveu o texto “Cristo a realidade e o bem”, entre 1940 e 1941. Nele,

há também a oposição à idéia de “duas esferas, das quais uma é divina, santa,

sobrenatural, cristã, a outra, porém, mundana, profana, natural, não cristã. [... onde] o

todo da realidade se decompõe em duas partes”.581 Segundo o autor, na concepção

bíblica - embora a igreja não seja idêntica ao mundo, o cristão ao mundano, o natural

ao sobrenatural, nem o revelacional ao racional - não existem duas realidades, mas

apenas uma: a realidade de Deus revelada em Cristo: “como partícipes de Cristo

estamos simultaneamente na realidade de Deus e na do mundo.”582 Embora

Bonhoeffer não confunda as categorias, ele também não as separa.

576 Cf. Ibid., p. 78. 577 Cf. Ibid. 578 Cf. Ibid. 579 Cf. Ibid., p. 80. 580 Cf. Ibid. 581 Ibid., p. 111. 582 Ibid.

122

a Igreja só pode defender seu espaço próprio lutando não por ele, mas pela salvação do mundo. Do contrário a Igreja se transforma em “sociedade religiosa” que luta em causa própria e, com isso, deixou de ser Igreja de Deus e do mundo. Assim, a primeira incumbência daqueles que pertencem à Igreja de Deus não é ser algo para si mesmos, criar, por exemplo, uma organização religiosa ou viver uma vida piedosa, mas ser testemunhas de Jesus Cristo para o mundo.583

De acordo com essa declaração, novamente ele diferencia a igreja de uma

sociedade religiosa. A igreja trabalha no sentido da totalidade, a salvação do mundo,

a preocupação com o outro; por outro lado, a sociedade religiosa busca defender sua

esfera, trabalha em causa própria. Se na igreja existem testemunhas de Cristo para o

mundo, na sociedade religiosa existem pessoas com vida piedosa, num foco

individual.

3.3.2 Cartas da prisão (1943-1945)

A coletânea de cartas da prisão abarca os anos de 1943 a 1945. A despeito de

apresentarem idéias teológicas fragmentárias e inacabadas, elas constituem um

importante legado da teologia bonhoefferiana, e apontam para o seu último estágio

de amadurecimento teológico. Na carta de 21.11.43, Bonhoeffer comenta

positivamente a instrução de Lutero de “benzer-se com a cruz” na oração matutina e

noturna: “nisso reside algo objetivo pelo qual se anseia de maneira bem especial

aqui.”584 Com efeito, o autor menciona que isso pode soar estranho para Bethge, mas

ele conclui: “Não te assustes! Certamente não sairei daqui como homo religiosus!

Muito pelo contrário, aqui a minha desconfiança e o meu medo da ‘religiosidade’

ficaram maiores do que nunca. O fato de os israelitas nunca pronunciarem o nome de

Deus constantemente me dá o que pensar e entendo isso cada vez melhor.”585 Assim,

o teólogo afirma seu distanciamento da religiosidade, associando-o ao fato de os

israelitas não pronunciam o nome de Deus, e diferenciando sutilmente a religiosidade

da prática da oração, no “benzer-se com a cruz”.

Por sua vez, a carta de 30.4.44 representa um dos textos mais importantes

sobre a crítica da religião bohoefferiana. Aqui ele fala pela primeira vez sobre a

583 Ibid., p. 114. 584 D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 184. Em nota editorial há a descrição da bênção matutina de Lutero: “Pela manhã, quando te levantares, podes benzer-te com o sinal da sagrada cruz e dizer: Em nome do Pai, Filho e Espírito Santo! Amém.” (Ibid.) 585 Ibid.

123

noção de arreligiosidade, expressa a partir da idéia básica que o ocupa de forma

incessante: “o que é o cristianismo ou ainda quem é de fato Cristo para nós hoje.”586

A partir dessa idéia central, ele passa a desenvolver sua perspectiva histórica da

religião: Foi-se o tempo em se podia dizer isso para as pessoas por meio de palavras – sejam teológicas ou piedosas; passou igualmente o tempo da interioridade e da consciência moral, ou seja, o tempo da religião de maneira geral. Rumamos para uma época totalmente arreligiosa; as pessoas, sendo como são, simplesmente não conseguem mais ser religiosas. Também aquelas que sinceramente se dizem “religiosas” de modo algum praticam o que dizem; portanto, é provável que com o termo “religioso” estejam referindo-se a algo bem diferente.587

Bonhoeffer afirma que a religião constitui uma característica de um

determinado período histórico que está terminando. Ele também associa a religião a

(1) palavras teológicas ou piedosas e a (2) interioridade e consciência moral. Como

evidência dessa realidade, o autor indica o fato de que as pessoas supostamente

religiosas não praticam o que dizem. Nesse sentido, o teólogo alemão lamenta que,

em geral, toda a pregação e teologia cristãs se basearam na noção de a priori

religioso. Através dessa noção o cristianismo sempre foi considerado uma forma,

talvez a verdadeira, da religião.588 Mas, ele questiona: o que será do cristianismo se

essa sua acariciada noção fundamental for anulada? E “se um dia evidenciar-se que

esse a priori nem existe, mas foi uma forma de expressão historicamente

condicionada e passageira do ser humano, se, portanto, as pessoas tornarem-se

radicalmente arreligiosas [...] ?”589 Em realidade, Bonhoeffer entende que esse tempo

já chegou, e uma das maiores evidências disso é o fato de que, em sua perspectiva, a

Segunda Guerra mundial, diferente de todas as outras guerras, não provocou uma

reação “religiosa”.590 Essa evidência aliada à evidência do parágrafo anterior dão a

impressão de que a conclusão bonhoefferiana do mundo arreligioso se dá a partir de

sua observação da atitude e prática dos que se dizem religiosos, e não

necessariamente dos que se assumem como não-religiosos.

Portanto, Bonhoeffer traça duas possibilidades de atuação do Cristianismo

nessa nova conjuntura histórica e cultural. A primeira delas seria simplesmente

586 Ibid., p. 369. Em suas aulas de cristologia, em 1933, a pergunta pelo “quem” era considerada uma questão religiosa por excelência que pergunta pela transcendência. 587 Ibid. 588 Cf. Ibid. 589 Ibid., p. 369-370. 590 Cf. Ibid., p. 370.

124

ignorar a irreversível situação de arreligiosidade mundial e continuar utilizando uma

abordagem religiosa: “assaltar um punhado de pessoas infelizes num momento de

fraqueza e [...] violentá-las religiosamente”591. Nesse contexto, a abordagem religiosa

trabalha basicamente a partir da infelicidade e fraqueza das pessoas. Mas Bonhoeffer

não está satisfeito com esse método, pois ele é incapaz de afirmar o senhorio de

Cristo no mundo arreligioso. Para ele, o caminho mais adequado seria aceitar o fato

de que a forma ocidental do cristianismo foi apenas “um estágio preliminar de uma

arreligiosidade total”592. Essa opção, no entanto, exige uma revisão completa do

Cristianismo. Em suas palavras, o que seria a igreja nessa concepção do cristianismo

arreligioso? Qual seria o significado da liturgia, da prédica, do culto? Como seria a

vida cristã nesse contexto? O autor não possui as respostas para essas questões (nessa

carta há mais perguntas que respostas!), mas ele indica algumas intuições.593

Primeiramente, Bonhoeffer sugere que a religião funcionou, até então, apenas

como uma roupagem do Cristianismo, com aspectos distintos nas diferentes épocas.

Em uma carta escrita para Bethge em 25 de junho de 1942, o autor confessa que no

contexto de sua atividade no “setor mundano” ele sente uma crescente resistência e

repugnância em relação a tudo o que é religioso. Em suas palavras, “eu não sou de

natureza religiosa. [...] em Deus, em Cristo, tenho que pensar continuamente; a

autenticidade, a vida, a liberdade e a misericórdia me importam muito. As roupagens

religiosas que me trazem muito incômodo.”594 Nesse sentido, ele diferencia as

“roupagens religiosas” dos temas como Deus, Cristo, autenticidade, vida, liberdade e

misericórdia. Portanto, esses temas permanecem no cristianismo arreligioso.

Em segundo lugar, Bonhoeffer enfatiza positivamente a crítica da religião

feita por Barth, pois ele foi “o único que começou a pensar nessa direção”595.

Entretanto, sua crítica ao teólogo suíço é de que ele “acabou não aprofundando nem

concluindo esse pensamento, mas deteve-se num positivismo da revelação que, em

última análise, permaneceu essencialmente no nível de restauração. Para o

trabalhador arreligioso não houve nenhum avanço decisivo.”596 Bonhoeffer elogia a

intuição inicial de Barth, mas entende que seu pensamento não foi adequadamente

concluído nem aprofundado devido ao seu “positivismo da revelação”. 591 Ibid. 592 Ibid. 593 Cf. Ibid., p. 370-371. 594 D. Bonhoeffer, Redimidos para lo humano, op. cit., p. 174. 595 D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 370. 596 Ibid., p. 370-371.

125

Em terceiro lugar, o autor enfatiza que falar de Deus “sem religião”, ou de

maneira “mundana”, implica na não utilização dos “pressupostos temporalmente

restritos da metafísica, da interioridade”597. Semelhantemente, uma igreja “sem

religião”, embora deva manter o sentido neotestamentário de ekklesia (convocados

dentre outros), não pode conceber que seus membros sejam considerados “como

preferidos em sentido religioso, mas como, pelo contrário, totalmente pertencentes ao

mundo”598. Desse modo, nesse contexto, a religião é associada às noções de Deus em

termos de metafísica e interioridade, e às noções de igreja em termos de pessoas

privilegiadas. Nesse sentido ele afirma que “Cristo não é mais, então, objeto da

religião, mas algo bem diferente, de fato Senhor do mundo.”599 De fato, a religião

denota aqui a idéia de algo restrito.

Em quarto lugar, ele intui que dois elementos seriam importantes para pensar

o cristianismo arreligioso: (1) a “disciplina arcana” e (2) o seu conceito de “último-

penúltimo”.600 À semelhança do significado latino de arcanus (misterioso, oculto),

não é muito fácil saber o que exatamente Bonhoeffer quer dizer com a disciplina

arcana no cristianismo arreligioso. Esta foi uma prática da igreja primitiva que surgiu

com Orígenes que, devido ao que os cristãos chamavam de zombaria do mundo,

instituiu reuniões fechadas para os crentes receberem os sacramentos bem como a

confissão de fé e o Pai-Nosso.601 De maneira geral, essas reuniões compreendiam a

segunda parte da liturgia, nas quais eram celebradas a Comunhão, e o Credo Niceno

era cantado. Normalmente, as pessoas não-batizadas não participavam delas.602

Segundo Bethge, os estudantes de Finkenwald, dentre outros, ficaram surpresos

quando Bonhoeffer tentou reativar essa prática da igreja primitiva. Ademais, Bethge

entende que a menção à disciplina arcana evidencia que Bonhoeffer nunca pensou

em abandonar os costumes mais tradicionais da igreja cristã.603 Em outros termos,

Bonhoeffer parece não querer anular a identidade histórica da igreja cristã. Do

mesmo modo, a presença do seu conceito de “último-penúltimo” parece impedir a

conclusão de que o seu foco esteja no mundo arreligioso em si, pois ele se ocupa com

o mundo (“o penúltimo”) com o foco no “último”.

597 Ibid., p. 371. 598 Ibid. 599 Ibid. 600 Cf. Ibid., p. 371-372. 601 Cf. nota editorial 18 em Ibid., p. 372. 602 Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 881. 603 Cf. Ibid.

126

Em quinto lugar, Bonhoeffer reflete sobre o papel da religião à luz da questão

paulina da circuncisão, que não mais pensa na circuncisão judaica como condição

essencial de salvação. Em suas palavras, “a questão paulina a respeito de se a

peritomé [circuncisão] seria condição para a justificação significa hoje, a meu ver, se

a religião seria condição para a salvação. A liberdade em relação à peritomé é

igualmente a liberdade em relação à religião.”604

Finalmente, o autor também rejeita a forma religiosa de se falar sobre Deus.

Ele confessa ser mais atraído pelas pessoas arreligiosas que as religiosas: “na

presença de pessoas arreligiosas ocasionalmente consigo mencionar Deus com toda a

tranqüilidade e quase naturalidade.”605 Por outro lado, para Bonhoeffer, falar de Deus

com pessoas religiosas parece soar de forma inautêntica. Ele afirma se sentir

desconfortável e sufocado quando as pessoas usam uma terminologia religiosa. Por

isso, ele evita mencionar o nome de Deus num círculo religioso. É possível ter uma

idéia do que o teólogo alemão quer dizer com “terminologia religiosa” sobre Deus: As pessoas religiosas falam de Deus quando o conhecimento humano acaba (às vezes já por preguiça para pensar) ou quando as forças humanas falham – trata-se, a rigor, sempre do deus ex machina mobilizado por elas como solução aparente para problemas insolúveis ou como força para cobrir a falha humana, portanto sempre aproveitando-se da fraqueza humana ao topar com os limites humanos. Isso forçosamente só se mantém assim até que as pessoas, por suas próprias forças, ampliem um pouco mais os limites, tornando Deus como deus ex machina dispensável; aliás falar de limites humanos me parece questionável (a morte, que as pessoas quase não temem mais, e o pecado, que elas quase não compreendem mais, ainda seriam limites genuínos?). Sempre tenho a impressão de que, com isso, só estamos sempre ansiosamente tentando salvaguardar espaço para Deus; - eu gostaria de falar de Deus não nos limites, mas no centro, não nas fraquezas, mas na força, portanto não na morte e na culpa, mas na vida e no bem das pessoas. Nos limites, parece-me mais adequado calar e deixar que o insolúvel permaneça sem solução.606

Assim, a terminologia religiosa sobre Deus, para Bonhoeffer, significa falar

de Deus apenas nos limites do conhecimento e nas fraquezas e dificuldades do ser

humano. Esse é o deus ex machina,607 uma espécie de Deus “tapa-buracos” que

explica o que o ser humano não pode explicar e faz o ser humano não consegue

fazer. Reiterando algumas idéias já presentes em seus escritos anteriores, o autor

604 D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 372. 605 Ibid., p. 373. 606 Ibid. 607 Significa literalmente “o Deus que sai da máquina”. “No teatro da Antigüidade, tratava-se de uma figura que aparecia ‘de repente’ com o auxílio de um dispositivo mecânico e resolvia problemas de forma ‘sobrenatural’.” (Ibid., p. 373, nota editorial 24).

127

prefere falar de Deus no centro, não nos limites; na vida e no bem das pessoas, ao

invés da morte e da culpa. Isso é uma intuição daquilo que a linguagem não-religiosa

deve abordar. Aliás, para Bonhoeffer essa é a visão do Antigo Testamento: “Deus é

transcendente no centro de nossa vida. A igreja não está onde a capacidade humana

falha, nos limites, mas no centro da realidade. Isso está de acordo com o Antigo

Testamento, e neste sentido ainda lemos o NT muito pouco a partir do AT.”608

Na carta de 5.5.44 o teólogo alemão inicia sua discussão sobre a

arreligiosidade com um comentário a respeito do ensaio de Bultmann,

“Demitologização do Novo Testamento”. Ele considera que os ali chamados

conceitos mitológicos (milagre, ascensão, etc.) não podem ser separados dos

conceitos de Deus, fé, etc., como pretende Bultmann. Assim, Bonhoeffer ressalta que

“não se pode separar Deus e milagre [...] mas precisamos poder interpretar e

proclamar a ambos de forma ‘não religiosa’.”609 Ademais, o autor explica que falar

de maneira religiosa “significa falar por um lado de forma metafísica e, por outro, de

forma individualista. Ambas as formas não atinam nem com a mensagem bíblica

nem com o ser humano atual.”610 Como exemplo, ele utiliza a pergunta individualista

pela salvação da alma. Segundo o teólogo alemão, essa pergunta praticamente

desapareceu do cenário do século XX, sendo substituída por perguntas mais

relevantes. Além disso, ele assevera que essa pergunta também não é bíblica. A

salvação da alma não ocorre no Antigo Testamento, que possui como centro a justiça

e o reino de Deus na terra. O que está em pauta no pensamento bíblico “não é o além,

mas este mundo e como ele é criado, conservado, estruturado em leis, reconciliado e

renovado.”611 Mas ele não diz isso “no sentido antropocêntrico da teologia liberal,

mística, pietista e ética, mas no sentido bíblico da criação e da encarnação, da

crucificação e ressurreição de Jesus Cristo.”612

Nesse contexto, Bonhoeffer novamente elogia a iniciativa de Barth, por ser o

primeiro teólogo a encetar a crítica da religião. Mas o autor lamenta que o teólogo

suíço tenha substituído a religião pela “doutrina positivista da revelação”. Para o

teólogo alemão, a abordagem barthiana trata dos conceitos e doutrinas cristãs

(nascimento virginal, trindade, etc.) como igualmente necessárias e significativas

608 Ibid., p. 374. 609 Ibid., p. 379. 610 Ibid., p. 380. 611 Ibid. 612 Ibid.

128

para o todo, “o qual deve ser engolido por inteiro ou não é engolido de jeito nenhum.

Isso não é bíblico. Há níveis de conhecimento e níveis de importância; isto é, deve-se

restabelecer uma disciplina arcana por meio do qual os mistérios da fé cristã sejam

protegidos de profanação”613. Ao utilizar a disciplina arcana como uma espécie de

corretivo para o positivismo da revelação, estaria Bonhoeffer sugerindo que alguns

conceitos cristãos deveriam ficar restritos ao ambiente da igreja e outros serem mais

acessíveis para o mundo em geral? Com efeito, ele continua criticando o positivismo

barthiano da revelação ao enfatizar que, nesse pensamento, “no lugar da religião está

agora a igreja – o que em si é bíblico -, mas o mundo, de certa forma, é deixado por

sua própria conta e abandonado à sua própria sorte. Este é o erro.”614 Portanto, ele

critica Barth por não se preocupar suficientemente com o mundo. O teólogo alemão

também confessa que toda essa argumentação funcionou mais como um meio de

organização e esclarecimento próprio das suas idéias incipientes, e menos como um

meio de informação para a Bethge a respeito delas. Ademais, ele afirma estar

trabalhando com a interpretação arreligiosa dos conceitos de fé, penitência,

justificação, santificação e renascimento, a partir da perspectiva véterotestamentária

e de S. João 1:14 (“e a palavra se tornou carne”).615 Isso indica uma tentativa de

tornar tais conceitos mais concretos para o mundo arreligioso.

Em maio de 1944 Bonhoeffer escreveu algumas reflexões para o batismo de

Dietrich W.R. Bethge, o filho de Bethge que recebeu o seu nome. Já no final das

reflexões, o autor expressa que o significado de conceitos tais como renascimento e

Espírito Santo, reconciliação e redenção, cruz e ressurreição, amor ao inimigo, vida

em Cristo e seguimento de Cristo, ficou tão distante e difícil que “quase não ousamos

falar disso. Nas palavras e nos ritos tradicionais, intuímos algo bem novo e

revolucionário, sem poder ainda captá-lo ou expressá-lo”616. Portanto, o autor sugere

que a linguagem não-religiosa tem como ponto de partida as palavras e ritos

tradicionais da igreja. Quanto à constatação da distância e dificuldade de

compreensão dos conceitos cristãos, o teólogo alemão sublinha o fracasso da igreja,

“que nestes anos lutou apenas pela sua própria preservação como fosse um fim em si

mesma, [e] é incapaz de ser portadora da palavra reconciliadora e redentora para os

613 Ibid. 614 Ibid., p. 380-381. 615 Cf. Ibid., p. 381. 616 Ibid., p. 397.

129

seres humanos e para o mundo.”617 Essa descrição da igreja se encaixa naquilo que

Bonhoeffer chama em seus escritos anteriores de “comunidade religiosa”. Mais uma

vez, a razão do fracasso da linguagem religiosa é identificada primariamente com o

fracasso da igreja, não com a mudança do mundo em si. O teólogo alemão conclui

suas considerações ao sonhar e intuir que, quando Dietrich Bethge estiver crescido, a

igreja terá mudado bastante. Nessa mudança, a linguagem não-religiosa é retratada

como uma forma de expressão da Palavra de Deus que tem poder para libertar e

transformar as pessoas no mundo: Não é de nossa alçada prever o dia – mas esse dia virá – no qual pessoas serão novamente vocacionadas para expressar a palavra de Deus de tal maneira que o mundo seja transformado e renovado por ela. Será uma nova linguagem, talvez totalmente arreligiosa, mas libertadora como a linguagem de Jesus, diante da qual as pessoas se assustam e, ainda assim, são dominadas pelo seu poder, a linguagem de uma nova justiça e verdade, a linguagem que proclama a paz de Deus com as pessoas e a aproximação do seu reino.618

Na carta de 29.5.44 Bonhoeffer reforça a idéia de que o Cristianismo deve

trabalhar com a totalidade da vida. Ele menciona que a maioria das pessoas não

consegue pensar na vida em sua multidimensionalidade, “elas passam ao largo da

plenitude da vida e da integralidade de sua existência própria; tudo [...] desfaz-se em

fragmentos”619. Em contrapartida, o Cristianismo nos coloca “em diversas dimensões

da vida simultaneamente; abrigamos, por assim dizer, Deus e o mundo inteiro dentro

de nós”620. Assim, o autor vê a necessidade de “arrancar as pessoas do pensamento

unilinear”, pois “a vida não é reduzida a uma única dimensão, mas permanece sendo

multidimensional, polifônica”.621 Além disso, Bonhoeffer menciona algumas

impressões da leitura de “Cosmovisão da Física”622 de Wizsäcker, que solidificaram

a noção de que Deus não deve ser usado como “tapa-buracos” dos limites do

conhecimento humano. Tendo em vista a gradual expansão do conhecimento

617 Ibid. 618 Ibid., p. 398. 619 Ibid. 620 Ibid. 621 Ibid., p. 414. 622 Em nota editorial há uma tradução de um trecho dessa obra alemã (Zum Weltbild der Physik, p. 112s): “Para Kepler, as descobertas positivas da ciência apontam para deus, enquanto que para Newton são justamente suas lacunas que deixam espaço para Deus. Mas essas lacunas costumam ser preenchidas no desenvolvimento posterior [...] Deus e os conceitos desbotados e semi-religiosos que recentemente têm sido muitas vezes empregados em seu lugar assinalam sempre [...] pontos inconclusos da ciência e, por essa razão, encontram-se, em vista do avanço do conhecimento, numa constante e pouco honrosa retirada.” (Ibid., p. 415, nota 6). Nesse contexto, as idéias de Bonhoeffer parecem se alinhar à posição de Kepler, em contraposição a Newton.

130

científico ao longo dos anos, cada vez mais Deus é deslocado para fora, encontrando-

se num “movimento de constante retirada”. O teólogo alemão não está preocupado

com uma possível ameaça do conhecimento científico sobre o entendimento de Deus,

antes sua crítica se situa na abordagem adotada pela igreja ao falar sobre Deus.

Ademais, ele entende que tanto em meio às limitações do conhecimento científico

como nas questões da morte, sofrimento e culpa, as “pessoas de todas as épocas

conseguiram resolver essas questões também sem Deus, e simplesmente não é

verdade que só o cristianismo tenha a solução para elas”623. Assim, o autor reafirma: Deus tem que ser conhecido não apenas nos limites de nossas possibilidades, mas no centro da vida; Deus quer ser conhecido na vida e não apenas na morte, na saúde e na força e não apenas no sofrimento, na ação e não apenas no pecado. [...] A partir do centro da vida certas perguntas até mesmo caem por terra [... assim como suas] respostas624

Outro texto de relevância para a compreensão do cristianismo arreligioso é a

carta de 8.6.44. Bonhoeffer confessa que suas idéias sobre esse assunto ainda são

rudimentares, e que está sendo guiado mais pelo instinto que pela clareza de

pensamento. Desse modo, o autor procura se situar a partir da história, sobretudo no

movimento moderno em direção à autonomia humana (na ciência, sociedade e

estado, arte, ética e religião). Segundo ele, esse movimento que se iniciou por volta

do século XIII, na Renascença, “chegou a uma certa completeza na nossa época” 625.

O ser humano atual foi aprendendo a dar conta de si mesmo sem apelar para Deus

como “hipótese de trabalho”, seja nas questões científicas, artísticas, éticas e também

religiosas. Como ele percebeu que “sem Deus” tudo funciona tão bem quanto antes,

Deus vai sendo constantemente afastado da vida (tanto no aspecto científico quanto

na esfera humana em geral) e o ser humano vai ficando cada vez mais seguro de si.

Bonhoeffer ressalta que os pensamentos católico e protestante entendem essa

realidade como uma grande apostasia mundial. Assim, como reação a esse crescente

sentimento de segurança da humanidade, a apologia cristã procura demonstrar ao

mundo que afirma ter atingido a maioridade, que em realidade ele não é capaz de

viver sem Deus, como seu “tutor”. Embora essa apologia não tenha condições de

623 Ibid. 624 Ibid., p. 415-416. Bonhoeffer está analogamente pensando nas questões inúteis levantadas pelos amigos de Jó (Cf. Jó 27:12). 625 Ibid., p. 434. Em nota editorial há a indicação de que essas idéias derivam da leitura de Weltanschauung und Analyse des Menschen seit Renaissance und Reformation (em português algo como “Cosmovisão e Análise do ser humano desde a Renascença até a Reforma”) de Wilhelm Dilthey (Cf. nota 10 em Ibid.)

131

argumentar a partir da maioria das questões da vida e do mundo, “restam ainda as

chamadas ‘questões últimas’ – morte, culpa – às quais apenas ‘Deus’ pode dar uma

resposta e por causa das quais ainda se necessita de Deus, da igreja e do pastor. Mas

o que acontecerá se um dia elas não mais existirem como questões desse tipo, ou

seja, se também elas forem respondidas ‘sem Deus’?”626.

Além de reprovar tal abordagem da apologia cristã, o autor também critica o

que ele chama de “rebentos secularizados da teologia cristã” – filósofos

existencialistas e psicoterapeutas – por procurarem convencer o ser humano seguro,

feliz e satisfeito consigo mesmo, de que em realidade ele se encontra numa situação

desesperadora da qual somente eles podem salvá-lo. Em suas palavras, “onde há

saúde, força, segurança, simplicidade, eles farejam um fruto maduro para [...] pôr

seus ovos ruinosos.”627 Todavia, no pensamento bonhoefferiano esse tipo de

iniciativa não atinge o ser humano comum, que no dia-a-dia está no trabalho e com a

sua família, pois este “não tem tempo nem vontade de ocupar-se com o seu desespero

existencial e contemplar a sua talvez modesta felicidade sob o aspecto da ‘aflição’,

da ‘preocupação’, da ‘desgraça’.”628 De maneira geral, Bonhoeffer expressa três

críticas a esse modelo de apologia cristã. Em primeiro lugar ele a considera “sem

sentido”, por tentar retroceder à puberdade um indivíduo que se tornou adulto,

buscando fazê-lo depender de coisas que ele não mais depende, e lançá-lo em

problemas que para ele não são mais problemas. Em segundo lugar, o autor julga que

esse modelo é “deselegante”, por explorar a fraqueza de alguém que não concordou

livremente com isso. Finalmente, ele chama essa abordagem de “não cristã”, pois

nela “Cristo é confundido com um certo estágio de religiosidade do ser humano”629.

Ao reprovar essa abordagem, o teólogo alemão deseja pensar em um meio de

relacionar adequadamente “Cristo e o mundo que atingiu a maioridade”. Em sua

breve análise de tentativas já realizadas nessa direção, Bonhoeffer enfatiza

principalmente os esforços da teologia liberal, de P. Tillich, de K. Barth, da Igreja

Confessante, e de Bultmann. Com efeito, o autor elogia a teologia liberal

(especialmente Troeltsch) por ter reconhecido a importância dessa questão e não

fazer “girar a roda da história para trás”630. Por outro lado, o seu ponto fraco “foi ter

626 Ibid., p. 435-436. 627 Ibid., p. 436. 628 Ibid. 629 Ibid. 630 Ibid., p. 437.

132

cedido ao mundo o direito de determinar qual é o lugar de Cristo dentro dele”631.

Quanto a Tillich, embora Bonhoeffer destaque a bravura de sua iniciativa, ele

considera que este “quis entender o mundo melhor do que o mundo se

compreendia”632 ao procurar compreendê-lo em termos religiosos. Por sua vez, o

autor afirma que Barth foi o primeiro a reconhecer o erro dessas outras tentativas,

que buscavam preservar um espaço para a religião no mundo, e que seu grande

mérito foi a contraposição entre Deus e a religião, “pneuma contra sarx” (o espírito

contra a carne), na segunda edição de Carta aos Romanos, a despeito de “todas as

cascas neokantianas!”633. Ademais, em sua dogmática, Barth capacitou a igreja a

implementar essa distinção. Contudo, Bonhoeffer destaca que a principal limitação

barthiana consiste na falta de orientação concreta da interpretação não-religiosa dos

conceitos teológicos. Por isso, o autor reafirma, a teologia da revelação de Barth se

torna positivista (“positivismo da revelação”). Além de Barth, Bonhoeffer também

critica a postura da Igreja Confessante, que se esqueceu da “abordagem barthiana e

passou do positivismo para a restauração conservadora”634. Positivamente a Igreja

Confessante manteve os grandes conceitos da teologia cristã, nos quais estão

contidos os elementos do profetismo e culto autênticos. Porém, negativamente, “as

duas coisas não são desdobradas, permanecem distantes, porque lhes falta a

interpretação”635. Por fim, o autor ressalta o fato de que “Bultmann parece ter

percebido de alguma forma a limitação de Barth, mas a entende erroneamente nos

moldes [do reducionismo] da teologia liberal”.636 Entretanto, em sua crítica a

Bultmann, Bonhoeffer salienta que os conceitos do Cristianismo devem ser mantidos

em seus “conteúdos integrais, inclusive os conceitos ‘mitológicos’ – o NT não é uma

roupagem mitológica de uma verdade geral! – porém esses conceitos precisam ser

interpretados de uma forma que não pressuponha a religião como condição da fé (cf.

a peritomé em Paulo!).”637

Nesses comentários panorâmicos, Bonhoeffer indica parte daquilo que ele

pensa em termos de cristianismo arreligioso. Embora ele compartilhe com a teologia

liberal e P. Tillich a intenção de relacionar o Cristianismo com um mundo que

631 Ibid., p. 436. 632 Ibid., p. 437. 633 Ibid., p. 438. 634 Ibid. 635 Ibid., p. 439. 636 Ibid. 637 Ibid.

133

atingiu a maioridade, ele discorda do caminho adotado por eles. Por sua vez, embora

ele compartilhe com Barth e a Igreja Confessante o caminho adotado por eles na

crítica da religião, ele discorda da ausência de interpretação não-religiosa dos

conceitos teológicos. E, então, embora ele concorde com Bultmann na necessidade

de interpretação dos conceitos do Cristianismo, ele discorda da forma como ele

procurou interpretá-los.638

Na carta da 27.6.44, o teólogo alemão volta a tratar do tema da religião nos

termos do Antigo Testamento. À semelhança de sua ênfase na carta de 5.5.44 de que

a salvação individual da alma não é um assunto tratado no Antigo Testamento, aqui o

autor argumenta que “a fé no AT não é uma religião de redenção. Porém, o

cristianismo sempre é caracterizado como uma religião de redenção.”639 Ele também

afirma que o Antigo Testamento trata da libertação de Israel do Egito e também da

Babilônia em termos de “redenções históricas, isto é, aquém do limite da morte [...]

Israel é libertado do Egito para que possa viver diante de Deus na terra como seu

povo.”640 Por outro lado, as religiões que trabalham com a idéia de redenção,

inclusive o Cristianismo, enfatizam a superação do limite da morte através de uma

eternidade a-histórica. Nesse sentido são feitas interpretações metafísicas do Sheol e

do Hades. No entanto, a esperança cristã da ressurreição reforça a idéia de um ser

humano ligado à sua existência na terra, ao contrário da superação metafísica das

religiões da redenção. Assim, o cristão “não tem sempre [...] à disposição uma última

escapatória das tarefas e dificuldades terrenas para dentro da eternidade, mas tem de

degustar plenamente a vida terrena, assim como Cristo”.641 O teólogo alemão conclui

que essas noções de “redenção têm sua origem nas experiências limítrofes do ser

humano. Cristo, porém, toca o ser humano no centro da vida.”642 De fato, Bonhoeffer

evita a discussão cristã da vida após a morte, por se tratar de uma questão limite.

Ademais, ele associa essa discussão com o pensamento metafísico e faz um discurso

638 Com respeito a essa discussão teológica, Bethge enfatiza que, em Tegel, Bonhoeffer não contou com qualquer biblioteca de teologia moderna. Isso significa que nesses escritos ele praticamente dependeu apenas da memória. Logo, o estímulo para sua abordagem da teologia moderna não se originou do desejo de combater os escritos desses teólogos, antes suas considerações emergiram incidentalmente, à medida que ele ia avançando nas suas reflexões. Bethge informa, por exemplo, que tudo o que Bonhoeffer conheceu de Tillich foi que havia sido publicado antes do período nazista. Semelhantemente, Bethge entende que Bonhoeffer também não deu a atenção devida ao pensamento de Bultmann. (Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 857-858) 639 D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 455. 640 Ibid. 641 Ibid. 642 Ibid.

134

muito semelhante às críticas da religião na filosofia moderna, que consideram a

crença na salvação individual da alma como alienação do mundo.

Por sua vez, na carta de 30.6.44 o teólogo alemão retoma a discussão de que,

no mundo que atingiu a maioridade, Deus é cada vez mais empurrado para fora.

Segundo ele, desde Kant só restou o espaço além do mundo (isto é, metafísico) para

Deus, e a teologia se restringiu a tratar de um Deus ex machina que lida apenas com

as questões últimas, que lhe restaram. Em realidade, Bonhoeffer critica essa postura,

especialmente ao afirmar que quando não conseguem “levar a pessoa a encarar e

caracterizar sua felicidade como sua desgraça, sua saúde como sua doença, sua força

vital como seu desespero, então o latim dos teólogos se esgota.”643 De outro modo,

ele ressalta que “quando Jesus transformava pecadores em bem-aventurados, tratava-

se de pecadores de fato; mas ele não fazia primeiro de cada ser humano um pecador.

Ele os chamava para longe do seu pecado e não para dentro [dele]”.644 O autor

acrescenta que “Jesus nunca questionou a saúde, a força, a felicidade de um ser

humano como tais e as considerou uma fruta podre [...] Jesus reclama para si e para o

reino de Deus toda a vida humana em todas as suas manifestações. [... Ele] reivindica

para si o mundo que atingiu a maioridade.”645

Na carta de 8.7.44 Bonhoeffer ressalta que “a expulsão de Deus para fora do

mundo, da dimensão pública da existência humana, levou à tentativa de mantê-lo

ainda pelo menos na esfera ‘pessoal’, ‘interior’, ‘privada’.”646 Entretanto, “a Bíblia

não conhece a nossa distinção entre exterior e interior. [...] Ela visa sempre o [...] ser

humano inteiro.”647 Para o autor, “a descoberta da chamada interioridade só ocorre

na Renascença (provavelmente com Petrarca). O ‘coração’, no sentido bíblico, não é

o interior, mas o ser humano inteiro como ele é diante de Deus.”648 Algumas

conclusões do cristianismo arreligioso são, de certo modo, delineadas

incipientemente na carta de 16.7.44. Ao tratar desse assunto, Bonhoeffer inicialmente

menciona o processo de autonomia do mundo (o empurrar Deus para fora) em

diversas frentes - teologia, filosofia, moral, política, física.649 Assim, sua constatação

643 Ibid., p. 459. 644 Ibid. 645 Ibid. 646 Ibid., p. 464. 647 Ibid. 648 Ibid., p. 466. 649 Na teologia, Herbert von Cherbury afirmou a suficiência da razão para o conhecimento religioso. Na moral, Montaigne e Bodin estabeleceram regras de vida em lugar dos mandamentos. Na política, Maquiavel separou a política da moral. Na filosofia, o deísmo de Descartes concebeu o mundo como

135

da superação de Deus como hipótese de trabalho em praticamente todas as áreas,

leva-o a indagar: ainda há espaço para Deus? Sua resposta: em nossa maioridade, o

próprio Deus nos faz reconhecer que não. “Deus nos faz saber que temos de viver

como pessoas que dão conta da vida sem Deus.”650 Com efeito, o ponto central da

argumentação bonhoefferiana é a cruz: “Deus deixa-se empurrar para fora do mundo

até a cruz; Deus é impotente e fraco no mundo e exatamente assim, somente assim

ele está conosco e nos ajuda.”651 Para ele, isso constitui o “ponto de partida da

‘interpretação mundana’”652, isto é, não-religiosa: Cristo não ajuda em virtude da sua onipotência, mas da sua fraqueza, do seu sofrimento! [...] A religiosidade do ser humano o remete, na sua necessidade ou aflição, ao poder de Deus no mundo, Deus é o deus ex machina. A Bíblia remete o ser humano à impotência e ao sofrimento de Deus; somente o Deus sofredor pode ajudar. 653

O teólogo alemão entende que esse tipo de raciocínio “é a inversão de tudo o

que o ser humano religioso espera de Deus.”654 Através dele o autor também delineia

as implicações para a vida cristã no contexto arreligioso, no qual “ser cristão não

significa ser religioso de uma determinada maneira, tornar-se alguém [...] com base

em alguma metodologia, mas significa ser pessoa; Cristo não cria em nós um tipo de

ser humano, mas o próprio ser humano. Não é o ato religioso que produz o cristão,

mas a participação no sofrimento de Deus na vida mundana.”655 Nessa contraposição

entre religião e Cristianismo ele acrescenta: “nada de metodologia religiosa; o ‘ato

religioso’ sempre é algo parcial, a ‘fé’ é algo inteiro, um ato da vida. Jesus não

conclama para uma nova religião, mas para a vida”656. Bonhoeffer reconhece que

ainda não está clara a maneira como se apresenta a participação na impotência de

Deus no mundo. Aliás, ele enfatiza que suas idéias ainda estão muito desajeitadas e

carecem de melhor expressão.657 Sua expectativa era de que futuramente ele pudesse

articular melhor essas noções, mas a história de sua vida evidentemente indica que

isso não foi possível. De qualquer modo, ele conclui a carta afirmando que “o mundo

um mecanismo que funciona por si mesmo se a intervenção de Deus. Na física moderna, o caráter infinito do mundo foi colocado em dúvida. Cf. Ibid., p. 484-486. Em nota os editores indicam que essa perspectiva bonhoefferiana é fruto da influência de suas leituras de W. Dilthey. 650 Ibid., p. 488. 651 Ibid. 652 Ibid. 653 Ibid. 654 Ibid., p. 489. 655 Ibid. 656 Ibid., p. 491. 657 Cf. Ibid.

136

que chegou à maioridade é mais sem-Deus e, por isto mesmo, talvez esteja mais

próximo de Deus do que o mundo menor de idade”658.

Finalmente, em 3.8.44 (data segundo Bethge) Bonhoeffer escreveu o esboço

de uma obra que provavelmente exploraria em detalhes sua noção de cristianismo

arreligioso. A obra se dividiria em três blocos principais. O primeiro, intitulado

“Balanço do cristianismo”, discutiria: (1A) a maioridade do ser humano; (1B) a

arreligiosidade do ser humano que chegou à maioridade; (1C) igreja evangélica

(pietismo como última tentativa de preservar o cristianismo evangélico como

religião); ortodoxia luterana (tentativa de manter a igreja como agência de salvação);

igreja confessante (teologia da revelação; empenho pela “causa” da igreja, mas pouca

fé pessoal em Cristo; nenhum risco em favor dos outros); (1D) moral do povo. Na

seqüência, o segundo bloco “O que é a fé cristã de fato”, incluiria: (2A)

mundanalidade e Deus; (2B) quem é Deus? (a experiência de Jesus em favor dos

outros como transcendência; fé como participação neste ser de Jesus; relação com

Deus não como relação religiosa com um ser mais elevado, mas uma nova vida na

existência para os outros); (2C) interpretação dos conceitos bíblicos (criação, queda,

reconciliação, fé, nova vida, coisas últimas) a partir de 2B; (2D) Culto (seria descrito

posteriormente); (2E) e (2F) O que cremos de fato? (o problema do credo

apostólico). Já o último bloco, “Decorrências”, trabalharia com as implicações

eclesiológicas: igreja é “estar aí para os outros”; ela deve presentear todo o seu

patrimônio aos necessitados; os pastores devem viver exclusivamente de doações da

comunidade (podendo eventualmente exercer uma profissão secular); a igreja deve

reconhecer a importância do exemplo humano, e do seu exemplo.659

Embora esse esboço apresente as idéias de maneira pontual, Bonhoeffer

acrescenta e esclarece algumas questões relevantes em sua visão do cristianismo

arreligioso. Em primeiro lugar está sua crítica eclesiástica em “1C”. Nenhuma das

igrejas mencionadas (evangélica, luterana, confessante) se encaixa em seu conceito

de igreja, todas elas se aproximam do seu conceito de religião. Em segundo lugar

está seu conceito de Deus e cristão em “2B”. Ele define transcendência como Jesus

vivendo em função dos outros, e a fé e a relação com Deus como “existir para os

outros”, ao passo que a religião entende Deus como um ser mais elevado, distante.

Em terceiro lugar destaca-se sua compreensão de como funciona a igreja no

658 Ibid. 659 Cf. Ibid., p. 509-513.

137

cristianismo arreligioso. A definição de igreja, à semelhança da transcendência, da fé

e do relacionamento com Deus, se resume em existir para os outros. Por isso, ela não

possui patrimônio financeiro (tudo é dado aos pobres), e os pastores não possuem

uma fonte de renda (dependência de doações ou outro trabalho). Bonhoeffer também

coloca uma grande ênfase na importância do exemplo da igreja e das pessoas.

3.4 Resumo do capítulo

Inicialmente foram apresentadas as referências de Bonhoeffer à religião até

1931: período de estudos e primeiras experiências pastorais. No período de estudante

(1923-1926), a religião é vista favoravelmente como disposição de fé interior e

postura moral, assumindo uma forma empírica através da igreja. Mas ele prefere

entendê-la a partir da revelação, e não da noção de a priori religioso. Em Sanctorum

Communio (1927), a religião é retratada principalmente no sentido sociológico,

empírico. Nesse contexto, ele a critica como satisfação egoísta e individual, e

estabelece uma distinção entre religião e revelação, comunidade religiosa e igreja.

Atuando como pastor em Barcelona (1928), ele retrata a religião como busca da

felicidade interior, em contraste com a graça divina. Embora a considere

positivamente em certo momento (em termos de fé e dependência de Deus), ele

também chama a religião de arrogante tentativa de chegar a Deus. Por sua vez, em

Act and Being (1930) Bonhoeffer rejeita a identificação entre revelação e religião,

presente na noção de a priori religioso, e também se opõe ao transcendentalismo que

encerra a fé como algo totalmente diferente da religião. Ambas as posições são

individualistas, e desprezam a comunidade eclesial. Em seus estudos nos Estados

Unidos (1930-1931) ele critica a religião individualista da igreja norte-americana.

Em seguida foram apresentadas as referências que Bonhoeffer fez à religião

entre 1932 e 1939: um período de maior maturidade teológica. Nos sermões em

Berlim (1931-1933) ele refere-se negativamente à religião, num contexto

considerado por ele como decadência política e moral. Bonhoeffer critica a religião

como forma de culto aos deuses feitos por mãos humanas. Na sua aula sobre A

Essência da Igreja (1932) ele critica eclesiologicamente a religião: a igreja se situa

em lugares “privilegiados” (igreja nacional e burguesia), não se encontra no centro

das questões do mundo, e se concentra nas necessidades individuais. Na aula Venha

a nós o teu Reino (1932) Bonhoeffer critica a religião ao apontar dois extremos: a

138

fuga do mundo e a acomodação ao mundo. Em ambos os casos o cristão se esquece

de Deus como senhor do mundo. Já em Criação e Queda (1932-1933), embora em

alguns momentos ele trate a religião positivamente, o autor se refere a ela em termos

do ser humano que se opõe à Palavra Deus, praticando a desobediência com a

aparência de obediência. Em Cristologia (1933) ele parece retratar positivamente a

religião ao definir como religioso a adequada pergunta cristológica pelo “quem”.

Bonhoeffer também critica a igreja por se situar em lugares de privilégios. Na aula A

igreja visível no Novo Testamento (1935-1936), a comunidade religiosa, diferente da

igreja, funciona como um fim em si mesmo e trata a vida de forma parcial. Em

Discipulado (1937) a religião é associada à graça barata, se expressa de forma

abstrata e está em oposição ao discipulado de Cristo. Em sua segunda visita aos

Estados Unidos (1939) o teólogo contrapõe a religião à palavra de Deus e ao

cristianismo, ligando-a às noções de satisfação própria, egoísmo e libertinagem.

Finalmente, a apresentação das últimas referências bonhoefferianas à religião

se refere ao período de 1940 a 1945. Em Ética (1939-1943), a comunidade religiosa

se caracteriza como passiva e abstrata, enquanto a igreja assume uma forma ativa e

concreta que se relaciona com a existência humana como um todo (busca salvar o

mundo). A religião procura defender sua própria esfera, trabalhando em causa

própria. Por isso, ela promove a vida piedosa das pessoas, num foco individual,

olvidando o testemunho de Cristo para o mundo. Ao tratar da relação entre religião e

tecnologia, inicialmente Bonhoeffer parece retratar favoravelmente a religião, mas

em seguida a considera o endeusamento do ser humano no mundo moderno, tanto no

espaço anti-eclesiástico como eclesiástico. Nesse último caso, ele fala da impiedade

de aparência religiosa-cristã e faz uma declaração de confissão de culpa da igreja.

Nas cartas da prisão (1943-1945), o autor critica a religião a partir de sua questão

central: “que é o cristianismo ou quem é Cristo para nós hoje?”. Ele considera a

religião como um período histórico que está chegando ao fim. Ademais, Bonhoeffer

relaciona negativamente a religião com a piedade, interioridade, individualismo,

consciência meramente moral, pessoas privilegiadas, pensamento metafísico, e com

o conceito de a priori religioso. Em suas indicações de um cristianismo arreligioso,

ele enfatiza a importância da “disciplina arcana” e do conceito de “último-

penúltimo”, e critica a forma religiosa de falar de Deus apenas nos limites do

conhecimento e nas fraquezas e dificuldades do ser humano. Para Bonhoeffer, Deus

deve estar no centro, não nos limites da vida. Nesse sentido, ele afirma a necessidade

139

de tornar os conceitos cristãos mais concretos para o mundo arreligioso,

principalmente à luz da encarnação de Cristo e do Antigo Testamento. Além disso,

ao se perguntar sobre o espaço de Deus em um mundo que cada vez mais o empurra

para fora, Bonhoeffer constata que essa também é uma perspectiva teológica: Deus

deixa-se empurrar para fora do mundo até a cruz, ele é impotente e fraco e somente

assim ele está conosco e nos ajuda. Assim, enquanto na religião o ser humano busca

o poder de Deus, o cristão busca a participação nos sofrimentos de Deus neste

mundo. O cristianismo real se caracteriza pelo “existir para os outros”. Por isso, uma

igreja arreligiosa não possui patrimônio financeiro, pois oferece tudo aos pobres.

CAPÍTULO IV

COMPARANDO A CRÍTICA DA RELIGIÃO:

KARL BARTH E DIETRICH BONHOEFFER

O presente capítulo representa basicamente uma tentativa de articular as

principais idéias e conceitos apresentados, sobretudo nos dois capítulos anteriores, a

fim de comparar a crítica da religião em Barth e Bonhoeffer. Para tanto, o capítulo se

divide em três partes principais. As duas primeiras procuram sintetizar a crítica da

religião de cada teólogo, enquanto a última busca delinear as possíveis aproximações

e os eventuais distanciamentos entre a crítica barthiana e bonhoefferiana da religião.

Considerando que o tema da religião em Barth se encontra praticamente

sistematizado, a tentativa de síntese de sua crítica baseia-se nas considerações do

segundo capítulo. Por outro lado, devido à fragmentariedade do pensamento

bonhoefferiano em relação à religião, a tentativa de síntese dessa crítica toma como

base as considerações do terceiro capítulo e também as contribuições de comentários

específicos de R. Wüstenberg, E. Bethge e C. Green.

Com respeito às aproximações e distanciamentos da crítica barthiana e

bonhoefferiana da religião, este trabalho se baseia principalmente nas fontes

primárias desses autores (especialmente as idéias apresentadas nos dois capítulos

anteriores e nas sínteses deste capítulo), mas conta também com a colaboração de A.

Pangritz e Regin Prenter – sobretudo para discussão da expressão “positivismo da

revelação” -, e dos comentaristas utilizados para a síntese da crítica bonhoefferiana.

4.1. Uma tentativa de síntese da crítica da religião em Karl Barth

A tarefa de reunir idéias a respeito de um mesmo tema, mas que oriundam de

textos que pertencem a períodos distintos do pensamento de um autor, parece

constituir uma atividade que desconsidera as diferenças metodológicas da evolução e

alterações de sua teologia em nome da coerência e unidade de suas idéias. Como

141

visto na seção metodológica sobre Barth no primeiro capítulo desta dissertação,

Carta aos Romanos e Church Dogmatics são obras que pertencem a diferentes fases

metodológicas do pensamento barthiano. Contudo, a despeito dessas mudanças é

possível perceber em Barth a continuidade do pensamento dialético na fase da

analogia da fé de Church Dogmatics, não necessariamente como paradigma

metodológico, mas como estrutura de raciocínio.660 Essa compreensão de

continuidade não funciona apenas como pressuposição teórica mas também pode ser

evidenciada na semelhança da abordagem dialética da religião em Carta aos

Romanos e Church Dogmatics. Assim, embora a tentativa de síntese das noções de

Barth, concernentes à crítica da religião que aparecem nessas obras, não seja uma

tarefa fácil, existem semelhanças notáveis entre os conceitos a despeito da nítida

diferença de linguagem. Ademais, a leitura conjunta de ambos os textos parece

fornecer um quadro teórico que oferece melhor compreensão dos detalhes que são

apresentados nos textos específicos. De fato, a linguagem filosófica existencial que

marca a obra anterior não aparece de maneira tão incisiva na Dogmática, contudo,

panoramicamente, os conceitos se repetem em uma linguagem cristológica.

4.1.1 A concepção barthiana de religião

Em Church Dogmatics Barth indica o ponto de partida metodológico para a

sua compreensão da religião: a revelação divina, conforme o entendimento da

tradição da Reforma. Portanto, alguns conceitos fundamentais que permeiam suas

considerações são: a revelação de Deus em Jesus Cristo, a doutrina cristológica (com

precedência da divindade de Cristo em relação à sua humanidade), e a compreensão

protestante da justificação pela fé. Outro eixo fundamental do seu pensamento, que

aparece com mais evidência em Carta aos Romanos, e que em conexão com os

conceitos anteriores exerce aguda influência sobre sua compreensão da religião, é o

660 Além dos autores que foram citados no primeiro capítulo - Garry Dorrien, The Barthian Revolt in Modern Theology, op. cit. e Garret Green, Challenging the Religious Studies Canon: Karl Barth's Theory of Religion, op. cit. - existem outros estudos que identificam a continuidade da estrutura do pensamento dialético em Barth: Cf. Bruce L. McCormack, Karl Barth’s Critically Realistic Dialectical Theology: Its Genesis and Development, 1909-1936. New York: Oxford University Press, 1997, p. 312; George Hunsinger, How to Read Karl Barth: The Shape of His Theology. New York: Oxford University Press, 1993, p. 69; Graham Ward, Barth, Derrida and the Language of Theology. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 94; William Stacy Johnson, The Mystery of God: Karl Barth and the Postmodern Foundations of Theology. Louisville, KY: Westminster John Knox, 1997, p. 31.

142

pressuposto calvinista finitum non est capax infiniti (o finito não é capaz de conter o

infinito).661 A partir desse pressuposto, Barth entende que Deus não pode ser

identificado com qualquer realidade no mundo e também não pode ser entendido

pela racionalidade humana, o que reforça a total dependência humana da revelação

divina e ressalta a distância entre Deus e o ser humano.

Nessa perspectiva, o teólogo suíço utiliza a doutrina cristológica da

encarnação como analogia para explicar como a revelação de Deus está presente no

mundo da religião, e indicar como se dá a relação entre revelação e religião. O que

ele deseja mostrar, com isso, é que a junção da revelação e da religião representa

uma unidade entre Deus e o ser humano, do mesmo modo que a encarnação de Jesus

Cristo, que no seu entendimento, é a unidade entre Deus e o ser humano. Ademais,

ele intenta indicar que, nessa unidade, o divino tem precedência sobre o humano.

Essa ênfase é importante no contexto da doutrina da justificação pela fé, pois desse

modo Deus se apresenta como senhor do ser humano, que julga, justifica e santifica,

ao passo que o ser humano é aceito e recebido por Deus. Contudo, outra implicação

desse pensamento é que a religião, enquanto realidade humana, só adquire real

sentido por meio da presença ou intervenção da revelação divina.

Portanto, no quadro maior da justificação pela fé, a religião em si representa

as obras e esforços humanos. De fato, Barth considera que na perspectiva humana a

religião representa o limite máximo da atividade humana, isto é, o clímax das suas

mais elevadas possibilidades, a atividade mais pura e poderosa para a transformação

humana. Além disso, ela representa o aspecto subjetivo e histórico do relacionamento

do ser humano com Deus. Todavia, a partir da ótica da revelação divina, a religião é

limitada e sujeita à morte, assim como todos os outros esforços humanos. Embora

Barth entenda que a religião em si não seja igual ao pecado, é através dela que o

pecado humano se torna evidente, visto que de maneira geral ela representa o esforço

humano de justificar a si mesmo. No contexto da justificação pela fé, a tentativa

humana de justificar-se pelas próprias obras caracteriza uma atitude de presunção e

rebelião contra Deus, que não reconhece a incapacidade humana.

Desse modo, se o conceito barthiano de religião se alinha panoramicamente à

noção de justificação pelas obras, é evidente que ela esteja em oposição à justificação

661 Veja como Barth defende o princípio calvinista finitum non est capax infiniti em contraposição à noção luterana de communicatio idiomatum, em Karl Barth, An Introductory Essay. In: Ludwig Feuerbach, The Essence of christianity. New York: Harper TorchBooks, 1957, p. xxiii-xxiv.

143

pela fé: a oposição do humano contra o divino, a oposição da piedade humana contra

a graça divina. Assim, a religião tende a se contrapor à revelação e à fé. Entretanto,

com todas essas características, Barth não entende que o ser humano deve abandonar

a religião. Aliás, na visão barthiana essa seria uma “possibilidade impossível”.

Enquanto o ser humano viver nesse mundo ele estará acompanhado de todas as

limitações que lhe são inerentes, e portanto sempre terá a religião. Nesse ponto, é

importante salientar a relação que Barth estabelece entre a igreja e a religião: a igreja

nada mais é do que a religião organizada. A despeito de o teológico suíço incluir

todas as religiões do mundo em seu conceito de religião, ele coloca uma ênfase maior

no cristianismo. É por isso que ele praticamente identifica a religião com a igreja.

Assim como Barth ressalta o caráter provisório da igreja, ele também afirma a

existência provisória da religião.662 Para ele, Deus determinou sua existência entre o

Alfa e o Ômega, o princípio e o fim. Considerando essa determinação divina, é

possível perceber que a religião, assim como a igreja, pode e deve assumir um papel

na relação entre Deus e o ser humano. Nesse sentido, a religião deve funcionar como

um “marco da fé” do relacionamento que Deus iniciou com o ser humano, figurando

meramente como um símbolo ou sinal, e não como base ou substância desse

relacionamento. Para Barth a religião precisa ser apenas um símbolo vazio e

provisório. Mas para chegar a esse ideal, no quadro da justificação pela fé, a religião

necessita ser “justificada”. Para entender essa questão é preciso ter uma compreensão

mais abrangente da crítica barthiana da religião.

4.1.2 Características e implicações da crítica barthiana da religião

A partir das considerações acerca do conceito barthiano de religião, é possível

notar que sua crítica se insere principalmente na compreensão da religião como

tentativa humana de justificação pelas obras, que se opõe à graça divina. Outro

aspecto que pode ser percebido é o da identificação entre a crítica da religião e a

crítica da igreja. Nesse sentido, é importante destacar que à luz de sua compreensão

dialética da religião a crítica barthiana toma forma na negação da religião,

662 Para uma compreensão mais ampla do conceito barthiano de provisoriedade da igreja veja Claudio de Oliveira Ribeiro, A provisoriedade da igreja: uma contribuição da eclesiologia de Karl Barth ao protestantismo brasileiro. Rio de Janeiro, 1994. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Cláudio de Oliveira Ribeiro, A provisoriedade da Igreja: uma contribuição teológica de Karl Barth. Fragmentos de Cultura, IFITEG, v. 8, p. 443-470, 1998.

144

compreendida como crise ou juízo divino sobre tudo o que é humano, mas essa

crítica possui como contraponto a afirmação da religião, entendida como justificação

divina ou “sublimação” da religião.

Além de formular essa crítica baseado em seu próprio conceito de religião,

Barth também investe outra crítica ao conceito de religião mantido principalmente

pelo protestantismo moderno. Assim, o teólogo suíço critica o ponto de partida dessa

teologia, a saber, o uso da religião como paradigma para interpretar a revelação, que

acaba por considerar a revelação uma mera particularidade no universo da religião.

Na visão barthiana essa noção representa o abandono do reconhecimento do senhorio

de Cristo. Para ele, essa teologia se alinha ao paradigma antropocêntrico do mundo

moderno que procura enxergar o ser humano em sua autonomia e capacidade, em

detrimento da subordinação ao reino e senhorio de Cristo. De fato, essa noção de

religião representa para Barth uma evidência da negação da fé.

Com efeito, é no ponto da fé que há uma convergência entre a crítica

barthiana da religião feita a partir do conceito de religião do protestantismo moderno

e a partir do seu próprio conceito de religião: em ambos a religião se apresenta como

falta de fé. No primeiro caso, o protestantismo moderno procurou estabelecer um

conceito de “essência da religião”, buscando encontrar os traços e características

básicas do conceito genérico de religião, a fim de utilizá-lo como paradigma para

classificar as religiões específicas, à medida que elas apresentam tais características.

Contudo, Barth discorda de tal noção. Ele considera que todas as manifestações

religiosas em si estão no mesmo patamar. Todas elas se igualam por aquilo que não

possuem: a fé.

Barth percebe a ausência de fé da religião principalmente na sua contradição

à revelação de Deus. Isso significa que enquanto Deus se oferece e se apresenta ao

ser humano religioso, este procura se antecipar à revelação de Deus e conhecê-lo a

partir de sua própria perspectiva ou esforço. Como na visão de Barth essa

possibilidade de conhecimento divino inexiste, o que realmente o ser humano faz é

projetar um deus humano que esteja de acordo com os seus desejos. Isso representa

idolatria, pois o ser humano coloca no lugar de Deus um deus feito à sua própria

imagem e semelhança, isto é, coloca a si mesmo. Essa é uma tentativa de substituir a

ação divina pela obra humana, ou seja, uma tentativa de salvação pelas obras, não

pela fé na graça e na revelação de Deus em Jesus Cristo.

145

Nesse contexto, Barth utiliza a crítica da religião como crítica eclesiástica.

Ele enfatiza que a igreja não deseja ser estrangeira no mundo, isolada no deserto,

nem quer estar como o Cristo abandonado na cruz. Antes, ela deseja a altivez e a

popularidade. Ela é culpada de materialização e ensoberbecimento. Assim, a religião

é vista como presunção humana que se orgulha de suas próprias capacidades ou

possessões espirituais, expressos na noção de alta moralidade e piedade. Entretanto,

nesse ponto Barth esclarece que ele não deseja promover o abandono da igreja ou da

religião. Esta não é uma polêmica anti-religiosa ou anti-eclesiástica, pois ele também

está incluído nessa igreja culpada. Em sua crítica ele se considera acusador e

culpado, crítico e criticado.

De qualquer modo, Barth salienta que a igreja (isto é, a religião) busca

afirmar sua força, exibir suas qualificações. Tal postura é exatamente contrária ao

seu conceito de fé. Em Barth a fé tem o sentido de vacuidade, esvaziamento.

Diferente da arrogância e presunção do ser humano religioso que busca demonstrar o

que possui, o ser humano guiado pela fé sente-se vazio de toda piedade,

intelectualidade ou possessão. A fé é o reconhecimento da fraqueza e carência

humana que assume sua dependência da revelação e justificação divina. Essa

compreensão é totalmente compatível com a noção de justificação pela fé, onde a

graça divina atua justamente na fraqueza humana.

Em realidade, na visão barthiana a postura de arrogância e presunção suscita a

ira de Deus, pois na perspectiva divina essa atitude é entendida como desejo de se

elevar e se colocar no lugar do próprio Deus. Por isso, a religião, em sua arrogância e

falta de fé, atrai o julgamento divino. É aqui que aparece a noção dialética de Barth,

expressa no “Sim” e “Não” em Carta aos Romanos, e na “Sublimação” (que inclui

negação/abolição e elevação) da Church Dogmatics. Assim, o julgamento é

interpretado no contexto da justificação pela fé: o despojamento da igreja/religião via

rejeição divina traz vida a partir da morte. A falácia da presunção religiosa é

desmascarada e anulada. A negação da religião tem como base a demonstração de

sua “ausência de fé”. Mas a crise da religião é também a sua sublimação. A religião é

elevada através da justificação e santificação divina. É assim que a religião (Barth

fala aqui do cristianismo), que nunca é verdadeira em si mesma, se torna verdadeira.

Esvaziada por Deus, a religião se torna símbolo e testemunha da esperança, como

reflexo da glória de Deus ela é um sinal, uma proclamação de algo que não está em si

mesma.

146

Logo, para Barth, o valor da religião não está nela, mas naquilo que ela

aponta ou simboliza. Nesse sentido, enquanto a religião não tiver a pretensão de ser

mais do que mera indicação ou testemunha da revelação, ela terá condições de

receber a justificação divina. Esse é o reconhecimento do limite humano, que

também é o lugar onde começa a possibilidade de Deus, a “possibilidade impossível”

de o ser humano ser religioso como se não fosse.

4.2. Uma tentativa de síntese da crítica da religião em Dietrich Bonhoeffer

À semelhança das considerações tecidas nos parágrafos introdutórios da

tentativa de síntese da crítica da religião em Barth, o critério de continuidade do

pensamento teológico de Bonhoeffer é o que permite, em certo sentido, o

agrupamento de abordagens da religião que oriundam de distintas fases da evolução

de seu pensamento, sem desconsiderar as importantes diferenças que existem entre

tais fases.663 Novamente, esse critério não assume simplesmente o caráter de

premissa teórica, mas pode ser observado, por exemplo, em argumentações que

aparecem tanto nos seus primeiros escritos quanto nos últimos, cuja proximidade e

semelhança são notáveis, a despeito de eventuais mudanças de ênfase. Apenas para

citar alguns, especificamente na abordagem da religião destacam-se a oposição ao

conceito de a priori religioso, que é mencionada desde os seus escritos de estudante

até as cartas da prisão, assim como a enfática distinção entre igreja e comunidade

religiosa que constantemente aparece em seus escritos. Contudo, isso não significa

que em Bonhoeffer existe o mesmo nível de coesão no tratamento da religião que há

em Barth. A fragmentariedade do pensamento bonhoefferiano, sobretudo na

abordagem do tema da religião, se apresenta, por exemplo, na ambigüidade da

consideração desse tema. Como pondera R. Wüstenberg, não há como estabelecer de

forma rígida e sistemática as diferenças da crítica da religião nas diferentes fases de

seu pensamento.664 De qualquer modo, numa perspectiva geral, é possível perceber

663 Os principais intérpretes da teologia de Dietrich Bonhoeffer assumem a continuidade de seu pensamento: cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit.; J. Godsey, The theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit.; C. Green, Bonhoeffer, op. cit.; R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit.; Andre Dumas, Une Theologie de la realite: Dietrich Bonhoeffer. Geneve: Labor et Fides, c1968. 664 Como Wüstenberg conclui, “mesmo durante o estágio da teologia dialética, nós encontramos elementos de um entendimento da religião que cronologicamente pertencem a um período anterior a 1927, e que portanto está sob a influência da teologia liberal. Declarações positivas, declarações de crítica, e declarações sobre arreligiosidade não apenas seguem apenas uma linha evolutiva de

147

uma tendência tríplice em suas considerações da religião: antes de 1927 (seu tempo

de estudante) as referências à religião são positivas, de 1927 a 1944 há o predomínio

da crítica da religião, e em 1944 aparecem as discussões sobre a arreligiosidade.665

4.2.1 A concepção bonhoefferiana de religião

Em Bonhoeffer não há propriamente um conceito de religião. De acordo com

E. Bethge e R. Wüstenberg, ele não procurou formular uma teoria sobre a religião ou

sistematizar seu entendimento dela, preferindo enxergá-la a partir de vários

ângulos.666 Portanto, ao invés de falar no conceito de religião bonhoefferiano, é mais

adequado trabalhar com a sua concepção ou entendimento da religião.

Como destaca Bethge, em seus escritos iniciais Bonhoeffer utiliza a

eclesiologia como ponto de partida para sua teologia, que ao longo dos escritos

posteriores vai sendo anexada à cristologia.667 Portanto, a igreja é um elemento

indispensável para a compreensão de sua concepção da religião, assim como a sua

teologia como um todo, mesmo que progressivamente ela seja interpretada

cristologicamente. De fato, o foco na eclesiologia permite que Bonhoeffer enfatize

vigorosamente o tema do relacionamento social, tanto no contexto interpessoal

quanto na relação entre o ser humano e Deus. Nesse sentido, C. Green destaca que a

analogia relationis é a forma na qual a analogia fidei aparece na teologia de

Bonhoeffer. Para ele, a imagem de Deus no ser humano é concebida no contexto da

relação social, não como atributo individual.668 Essa chave de leitura da teologia

bonhoefferiana torna-se bastante evidente na sua abordagem da religião. No período

de estudante, em que ele basicamente retrata a religião de forma positiva, a igreja é

apontada como forma empírica da religião. Contudo, nesse período ele ainda fala da

religião em identificação com a fé e a moralidade.

A partir de 1927 ele parece tratar a religião a partir de outro enfoque. Em

Sanctorum Communio há uma distinção da igreja e da religião, onde a segunda é

negativamente caracterizada pelo individualismo. Em Barcelona (1928), ele fala da desenvolvimento, mas também ocorrem sistematicamente justapostas.” (R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 27). 665 Cf. Ibid., p. 26. Wüstenberg indica, respectivamente, prováveis influências marcantes em cada uma dessas três etapas: a teologia liberal, Karl Barth e Wilhelm Dilthey. 666 Cf. Ibid., p. 27; E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 871. 667 Cf. Eberhard Bethge, The Challenge of Dietrich Bonhoeffer’s Life and Theology. In: Ronald Gregor Smith (Org.), World Come of Age. Philadelphia: Fortress Press, 1967, p. 37. 668 Cf. C. Green, Bonhoeffer, op. cit., p. 190, 193.

148

religião como busca individual da felicidade interior, enquanto qualidade

intrinsecamente humana que presume criar um caminho direto para Deus. Mas essa

abordagem negativa da religião não é constante. Nessa época ele também associa a

religião à noção de fé em Deus e dependência dele. Já em Act and Being (1930) o

autor ressalta a comunidade eclesiástica como forma adequada de compreensão da

revelação, em contraste com as outras formas de entendimento dessa doutrina, que

acabam por manter um foco individualista.

O entendimento da religião como individualismo também caracteriza a

experiência de Bonhoeffer em Nova York (1930-1931), ao perceber a realidade da

igreja norte-americana. Nesse contexto, ele também associa a religião à ética e ao

pensamento metafísico. Aliada à noção de individualismo, na aula sobre A Essência

da Igreja (1932), o teólogo alemão fala da religião em termos de lugar privilegiado,

em contraposição à idéia de que a igreja deve se colocar no centro do mundo. Em

Criação e Queda (1932-1933), a religião também é descrita como oposição humana

à Palavra de Deus, que procura obter o seu próprio conhecimento individual de Deus.

Novamente, a ambigüidade na abordagem da religião reaparece em Cristologia

(1933), onde a adequada pergunta pelo “quem” é Cristo, é qualificada

favoravelmente como religiosa.

Associado ao conceito de individualismo, na aula A igreja visível no Novo

Testamento (1935-1936), Bonhoeffer aborda a religião como algo parcial, que se

contrasta com a noção de que a igreja compreende a totalidade da vida. A idéia de

parcialidade também se associa, em Discipulado (1937), à ênfase da religião como

restrita ao campo das idéias, à abstração doutrinária. Já em Ética (1939-1943), o

autor parece reunir essas percepções da religião e indica que a sociedade religiosa,

principalmente em seu individualismo e parcialidade, trabalha apenas em causa

própria, defendendo unicamente sua esfera, não o mundo em sua totalidade, o que

estimulava a vida piedosa num foco individual. Nessa mesma obra, ao tratar

negativamente da ameaça da tecnologia à religião no texto “Herança e Decadência”,

ele identifica a religião com o endeusamento do ser humano moderno, uma ênfase no

fato de o ser humano se colocar no lugar de Deus por meio da religião.

Mas, no final de sua vida (abril de 1944) surge, de acordo com Bethge, uma

espécie de nova teologia bonhoefferiana com respeito à abordagem da religião.669

669 Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 855.

149

Nessa nova fase aparece pela primeira vez o tema da arreligiosidade. Ademais, nela é

exposta uma maior quantidade de características que são associadas à religião.

Muitas apresentam direta relação com características indicadas anteriormente, ao

passo que outras são desenvolvidas nesse novo período. Além disso, praticamente

não mais existem referências positivas à religião. Duas perspectivas fundamentam

sua concepção da religião nesse período, a saber, as perspectivas histórica e

antropológica.

Na primeira perspectiva, a religião é designada como característica básica de

um período histórico que estaria acabando. Considerando que as fases teológicas de

Bonhoeffer não são estabelecidas de maneira rígida e sistemática, já em 1939 ele

falava positivamente da possibilidade de as pessoas viverem sem religião. Assim, a

religião não constitui algo intrinsecamente antropológico, mas apenas o traço de um

determinado período do mundo ocidental. Por isso, o autor refere-se à religião como

uma “roupagem” histórica do cristianismo. Várias são as características dessa

roupagem: piedade, individualidade, consciência moral, pensamento metafísico,

interioridade, privilégio e parcialidade.

A partir da perspectiva antropológica, Bonhoeffer compreende que a religião

se fundamenta na fraqueza e infelicidade das pessoas, especialmente nas “situações

limite” (culpa, morte). Por isso, a abordagem religiosa procura falar de um Deus

poderoso que, de forma compensatória à fraqueza humana, resolve as questões que o

ser humano não pode resolver. Contudo, esse tipo de Deus (chamado de ex machina)

fica restrito às questões limite, pois nas situações em que o próprio ser humano pode

resolver os problemas - e essa capacidade humana vai aumentando cada vez mais no

mundo que “atingiu a maioridade” -, não há a necessidade de Deus. Assim, na

religião, Deus fica cada vez mais restrito aos limites da vida humana.

Tais características indicam a disfuncionalidade de um cristianismo que está

atrelado à religião. Essa disfuncionalidade pode ser mais bem compreendida a partir

da crítica bonhoefferiana da religião e suas implicações básicas.

4.2.2 Características e implicações da crítica bonhoefferiana da religião

O primeiro indício de crítica da religião em Bonhoeffer aparece, de maneira

indireta, na oposição ao conceito de a priori religioso já no período de estudante.

Nesse sentido, o teólogo alemão abre espaço para a idéia de que o conhecimento

150

humano de Deus se dá a partir da revelação do divino. No período posterior a 1926, a

crítica bonhoefferiana da religião coloca de um lado a revelação, a fé e a igreja, e de

outro a religião. Já nesse período a religião é acusada, sobretudo, de individualismo,

oposição à Palavra de Deus, parcialidade e abstração.

Mas em abril de 1944 tais idéias foram aprofundadas e ampliadas, naquilo

que constituiu o estágio final, porém inacabado670, da crítica bonhoefferiana da

religião: a idéia de arreligiosidade. Dois eixos principais fundamentam essa idéia – o

conceito de que o mundo ocidental atingiu a maioridade e a necessidade de

interpretação não-religiosa dos conceitos cristãos, em face da inadequada abordagem

religiosa. O primeiro se alinha à perspectiva histórica da concepção bonhoefferiana

da religião, ao passo que o segundo eixo se alinha à perspectiva antropológica.

Entretanto, conforme ressalta Bethge, nenhum desses eixos constitui a questão

central de Bonhoeffer, nem mesmo a idéia de arreligiosidade. De fato, essas são

noções auxiliares de sua preocupação cristológica principal:671 “quem é de fato

Cristo para nós hoje?” Em virtude da conexão direta que Bonhoeffer estabelece entre

cristologia e eclesiologia (“Cristo existindo como igreja-comunidade”), essa pergunta

também é formulada eclesiologicamente: “o que é o cristianismo para nós hoje?”

O primeiro eixo, influenciado principalmente pela análise histórica de

Wilhelm Dilthey, reconhece a maioridade do mundo ocidental. Esse conceito é

comum ao pensamento filosófico moderno, especialmente em Kant, e aponta para a

autonomia do ser humano que atingiu sua maturidade, e não mais depende da tutela

da religião. De forma notável, essa concepção representa uma inovação no

pensamento bonhoefferiano. Aliás, em seu texto “Herança e Decadência” ele

descreve negativamente o processo que leva o ser humano à autonomia, e então ao

niilismo. Nesse contexto, a autonomia humana está em oposição ao cristianismo, e é

denominada de “endeusamento do ser humano”. Por outro lado, na discussão de

arreligiosidade das cartas da prisão, Bonhoeffer não trata do mundo adulto num tom

670 Bethge ressalta que a discussão bonhoefferiana da arreligiosidade não é um fruto maduro, mas uma tentativa ainda vaga. Considerando que essa discussão durou apenas cerca de um ano, ele explica que nos livros anteriores havia um intervalo de três a quatro anos entre as primeiras idéias e o texto final, o que permitia a maturação dos conceitos. No entanto, isso não diminui a validade das idéias sobre a arreligiosidade apresentadas nas cartas da prisão, pois também no caso das obras anteriores as visões iniciais eram sempre muito claras. Posteriormente as teses básicas eram substanciadas e exemplos eram providos. Assim, a discussão da arreligiosidade nas cartas da prisão contém as idéias essenciais do pensamento de Bonhoeffer. O seu ponto de partida já estava definido. (Cf. Ibid., p. 862-863) 671 Cf. Ibid., p. 854, 865-866.

151

negativo. Ali, a autonomia humana não se contrapõe ao Cristianismo. Antes, o erro

do cristianismo religioso é justamente não reconhecê-la.

Contudo, como Bethge e C. Green destacam, duas ressalvas devem ser feitas

acerca dessa noção bonhoefferiana. A primeira delas é de que sua afirmação da

maioridade do mundo não implica necessariamente uma perspectiva de evolução

moral da humanidade ou de uma visão otimista da história que enfatiza o progresso

do mundo.672 É preciso lembrar que ele enfrenta a dura realidade de um mundo em

guerra, e que nesse contexto ele enxerga a importância da interferência da igreja nas

situações de sua época. Em segundo lugar, Bonhoeffer não faz simplesmente uma

análise histórica do mundo ocidental, nem procura discuti-la na perspectiva da

filosofia moderna.673 Sua abordagem é basicamente teológica, e é por isso que o

conceito de mundo adulto o leva à proposta de interpretação não-religiosa dos

conceitos cristãos.

No período anterior a 1944, a crítica bonhoefferiana da religião enfatizava

principalmente o caráter individualista da religião - a partir do conceito de analogia

relationis – e oposição entre religião e fé – compreendida principalmente a partir do

conceito de revelação divina e expresso em termos de oposição à Palavra de Deus e

presunção humana. Entretanto, especialmente em 1944, como Wüstenberg salienta,

esse tipo de oposição entre religião e fé recebe uma nova interpretação, a partir de

seu conceito de totalidade da vida, que já aparece em vários de seus escritos

anteriores.674 Essa ênfase se torna evidente numa frase de Bonhoeffer: “o ‘ato

religioso’ sempre é algo parcial, a ‘fé’ é algo inteiro, um ato da vida. Jesus não

conclama para uma nova religião, mas para a vida.”675 Com efeito, o autor interpreta

a fé em termos do conceito de totalidade da vida. Assim, nessa nova perspectiva,

dizer que a religião se opõe à fé, não significa necessariamente que ela se opõe à

Palavra de Deus (presunção humana), mas que ela se opõe à vida em sua totalidade.

É nessa perspectiva que se insere a tentativa de interpretação não-religiosa

dos conceitos cristãos, pois a religião se opõe à autonomia humana do mundo adulto,

e isso também significa se opor à vida humana em sua totalidade. Como Bethge

enfatiza, o conceito religioso do Deus ex machina, que atua na fraqueza humana,

672 Cf. Ibid., p. 866; C. Green, Bonhoeffer, op. cit., p. 252. 673 Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 867. 674 Cf. R. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 100, 145. 675 D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 491.

152

retrata a religião como uma “farmácia espiritual”676. Duas são as conseqüências

desse conceito. Em primeiro lugar, a religião fica restrita às questões-limite, levando

o ser humano a buscar Deus apenas nesses momentos. Isso faz da religião algo

episódico, um mecanismo para emergências, e não algo constante que esteja centro

da vida. Em segundo lugar, esse conceito de Deus poderoso e ser humano fraco faz

com que a religião funcione como uma forma de escapismo da vida real e da

responsabilidade madura do ser humano para com o mundo.677

Por isso C. Green entende que, nesse contexto, Bonhoeffer critica a religião e

busca uma reinterpretação não-religiosa do Cristianismo e seus conceitos. Através

dela, o Cristianismo deve das questões periféricas para centro, do episódico para o

constante, da parcialidade para a totalidade, da separação entre igreja e mundo para a

totalidade da igreja e do mundo em Cristo (sem confundi-los), do individualismo e

do ambiente privilegiado para o “existir para os outros”, da interioridade e do

subjetivismo para a responsabilidade na vida pública, do alienante pensamento

metafísico que projeta um reino de Deus a-histórico para a vida responsável nesse

mundo.678

Mas para interpretar o Cristianismo dessa nova maneira, o teólogo alemão

entende que é preciso inverter a concepção religiosa de Deus e do ser humano.

Através da perspectiva da theologia crucis, o autor deseja conceber a idéia de uma

humanidade forte (o mundo que se tornou adulto) e um Deus fraco (o sofredor da

cruz). Segundo esse ponto de vista, a idéia de um Cristo sofredor, fraco, anula a visão

de um Deus poderoso e ao mesmo tempo afirma a força e a autonomia humana. Em

outros termos, o Cristo fraco estimula as pessoas a usarem sua força de maneira

responsável no mundo adulto. Nesse caso, C. Green ressalta que em certo sentido

essa noção bonhoefferiana parece responder aos grandes críticos modernos que

argumentam que o cristianismo (e a religião em geral) desumaniza e aliena as

pessoas, roubando-lhes sua força e responsabilidade.679

Wüstenberg salienta que, com o foco na vida, a crítica bonhoefferiana aponta

que a religião e sua linguagem são incapazes de expressar a relevância do Evangelho

de Jesus para a vida presente.680 Por isso, a interpretação não-religiosa dos conceitos

676 Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 875. 677 Cf. C. Green, Bonhoeffer, op. cit., p. 260, 263. 678 Cf. Ibid., p. 271. 679 Cf. Ibid., p. 272. 680 Cf. R. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 123.

153

cristãos busca retirar a tradicional abstração religiosa e trazê-los para a vida concreta.

Por sua vez, a implicação básica desse novo conceito de Deus fraco é que a igreja

também deve se tornar fraca. Como o Cristo da cruz se dedicou totalmente à vida

humana, a fé é interpretada como participação nos sofrimentos de Cristo expressa na

auto-entrega em favor dos outros (“existir para os outros”). Aliás, se a igreja é

“Cristo existindo como comunidade”; ela deve participar em seus sofrimentos, ela

deve enfraquecer. Nesse sentido, Bonhoeffer conclui que a igreja deve estar

destituída de qualquer posse ou poder - apenas “existir para os outros”.

4.3. Aproximações e Distanciamentos da crítica da religião: Barth e Bonhoeffer

A comparação da crítica da religião em Barth e Bonhoeffer, neste trabalho,

adotará como percurso básico a discussão das aproximações e distanciamentos de

Bonhoeffer em relação a Barth. Alguns argumentos justificam essa abordagem: (1) a

crítica barthiana da religião se encontra praticamente sistematizada, enquanto que a

crítica bonhoefferiana é fragmentária e inacabada; (2) de maneira geral, o período

específico dessa discussão barthiana (1922-1938)681 antecede cronologicamente à

bonhoefferiana (1927-1944)682 e (3) os textos desses autores, bem como os seus

intérpretes, geralmente apontam para uma certa influência da crítica da religião de

Barth em Bonhoeffer, não o contrário.

Entretanto, a adoção desse percurso não deseja fazer do teólogo alemão um

refém da abordagem barthiana. Antes, a comparação deles evidenciará “a

independência e originalidade da compreensão da religião em Bonhoeffer”683. Além

disso, considerando que a crítica bonhoefferiana pode ser panoramicamente dividida

em duas fases principais - antes de 1944 e 1944 -, esse modelo propiciará uma

comparação que faça justiça às diferenças dessas fases.

4.3.1. A crítica bonhoefferiana em relação à crítica barthiana: antes de 1944

Segundo Bethge, entre 1924 e 1925 Bonhoeffer teve o primeiro contato com

os escritos de Karl Barth, mais especificamente com o livro The Word of God and 681 O ano inicial se refere à Carta aos Romanos (2ª ed.), e o final à Church Dogmatics I/2. 682 O ano inicial se refere à redação de Sacntorum Communio, e o final às cartas da prisão. 683 R. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 97; Cf. John Godsey, Barth and Bonhoeffer: the Basic Difference. Quarterly Review, n. 7, 1987, p. 21.

154

the Word of Man, publicado em alemão em 1924. De fato, o teólogo alemão não

apenas leu o material, mas também indicou a sua leitura e enviou cópias dele.684 Mas

como Wüstenberg explica, embora ele tenha citado Barth várias vezes nos escritos de

estudante, sobretudo entre 1925-1926, tais referências ao pensamento barthiano não

se relacionam à discussão da religião, mas às noções de revelação, escatologia e

pneumatologia.685 Aliás, como enfatizado anteriormente, antes de 1927 praticamente

não há crítica da religião em Bonhoeffer.

Todavia, já nesse período é possível perceber aproximações em relação à

crítica da religião em Barth, especialmente na sua oposição ao conceito a priori

religioso. Isso se alinha à visão barthiana da revelação que nega qualquer ponto de

contato no ser humano e, portanto, qualquer tentativa de teologia natural. Ademais,

há a identificação da religião com a moralidade e a compreensão de que a religião

toma forma através da igreja. Contudo, nesse período existem mais distanciamentos

em relação à Barth que aproximações, visto que há em Bonhoeffer uma visão

positiva da religião. Ele considera, por exemplo, a fé uma possessão religiosa e

coloca a revelação no mesmo nível da religião.

Entretanto, a partir de 1927, quando a crítica da religião aparece de maneira

direta nos escritos bonhoefferianos, as aproximações de Barth se tornam notáveis,

sobretudo na distinção entre religião e fé, religião e revelação. Em termos de

enfoque, há uma diferenciação entre eles devido às diferenças no ponto de partida de

suas respectivas teologias. A partir da revelação, Barth fala da religião

principalmente no contexto da atitude do ser humano em relação a Deus. Por outro

lado, a partir da eclesiologia e a ênfase na analogia relationis, Bonhoeffer, além de

falar da religião como oposição humana à Palavra de Deus também discute a religião

na perspectiva do relacionamento interpessoal. É nesse sentido que ele distingue a

igreja da comunidade religiosa, ao criticar a religião como satisfação de necessidades

individuais. Há aqui um distanciamento em relação a Barth, pois este fala da igreja

como forma empírica da religião e não considera a questão do individualismo em sua

crítica. 684 Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 73. Para uma descrição detalhada dos primeiros contatos de Bonhoeffer com a teologia de Barth veja Ibid., p. 73-77. Já o primeiro texto bonhoefferiano lido por Barth foi um artigo sobre Karl Heim, que Bonhoeffer enviou à Barth em 1932 (Cf. Ibid., p. 180). Para uma descrição detalhada sobre o relacionamento entre Barth e Bonhoeffer (encontros, cartas e comentários teológicos mútuos) veja Ibid., p. 175-186; Andreas Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer. Grand Rapids, MI / Cambridge U.K.: William B. Eerdmans, 2000, p. 15-70. 685 Cf. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 34.

155

As aproximações mais evidentes de Barth aparecem no período que o teólogo

alemão passou em Barcelona. Nesse contexto, Bonhoeffer caracteriza a religião

como a tentativa humana mais nobre para atingir o eterno; fala de Deus como

completamente superior e diferente do mundo; enfatiza que o conhecimento humano

de Deus é limitado e antropomórfico. Por isso, por meio da religião o ser humano

procura um caminho direto para Deus, e acaba criando um ídolo a sua própria

imagem. Ele também afirma a religião como característica intrinsecamente

antropológica que, em seu orgulho e arrogância, pretende se elevar ao nível divino.

Nesse contexto, o teólogo alemão considera o cristianismo como mais uma tentativa

humana de criar um caminho até Deus, assim como todas as outras religiões. Essa

discussão se alinha profundamente ao pensamento barthiano. Contudo, é preciso se

lembrar da ambigüidade da abordagem bonhoefferiana, pois mesmo nessa época ele

menciona a religião positivamente, associando-a com a fé e a dependência de Deus.

Nesse caso, há um distanciamento notável de Barth. Semelhantemente, a

denominação positiva da pergunta “religiosa” pelo “quem” na cristologia também

representa um distanciamento da noção barthiana.

Assim como Barth, Bonhoeffer expressa a crítica da religião como crítica

eclesiológica. Se para Barth a igreja é culpada pela postura de ensoberbecimento, ao

invés de vacuidade perante Deus, Bonhoeffer direciona a crítica na perspectiva do

relacionamento humano: a igreja se situa em lugares privilegiados, não no centro da

vida. Desse modo, ambos retratam a religião como pretensão de garantia de salvação,

mas Bonhoeffer interpreta essa atitude do ponto de vista do individualismo. Logo,

enquanto Barth critica a piedade religiosa que deseja assegurar a salvação por meio

da moralidade, Bonhoeffer mantém essa perspectiva, mas também adiciona a noção

de que a vida piedosa mantém um foco individualista.

A partir da importância da idéia de individualismo na crítica da religião

bonhoefferiana surgem outras noções que atestam a independência de seu

pensamento em relação a Barth. Uma delas é a ênfase na parcialidade, uma vez que a

religião limita-se à sua própria esfera, ao invés de abarcar a totalidade da vida. Outra,

é a identificação do conhecimento religioso com a abstração, que se opõe à atitude

prática. Além disso, em 1939 ele já fala positivamente na possibilidade das pessoas

viverem sem religião. Essa afirmação representa uma notável evolução em seu

pensamento, que será profundamente desenvolvida em 1944, e se opõe ao seu

156

discurso em Barcelona, que seguia a argumentação barthiana ao considerar a religião

uma característica intrinsecamente antropológica.

No entanto, isso não significa que o maior distanciamento que Bonhoeffer

virá a ter em relação à Barth em 1944 já esteja completamente presente no final da

década de 30 ou no início da década de 40. Em “Herança e Decadência”, por

exemplo, Bonhoeffer interpreta o desenvolvimento do mundo moderno como uma

ameaça ao Cristianismo, retratando a busca da autonomia humana como religião que

busca o endeusamento do ser humano. Diante disso, é possível concluir que essa

argumentação se aproxima da interpretação que Barth faz da modernidade,

especialmente em sua ênfase de que o antropocentrismo moderno constitui a

oposição do ser humano ao senhorio de Cristo no mundo.

4.3.2. A crítica bonhoefferiana em relação à crítica barthiana: 1944

Considerando a maior densidade que o pensamento bonhofferiano adquire em

1944 com respeito ao tema da religião, bem como as inquietantes lacunas que essa

teologia última e inacabada deixou, faz-se necessário discutir as aproximações e

distanciamentos de Bonhoeffer e Barth em duas partes: a comparação de suas idéias

gerais e a comparação das referências mútuas que esses teólogos fazem em relação

ao tema da religião.

4.3.2.1 Comparação das idéias gerais

No ano de 1944, a crítica bonhoefferiana da religião se distancia ainda mais

da abordagem de Barth. A principal característica desse distanciamento é o fato de

que a crítica da religião de Bonhoeffer desembocou na idéia de arreligiosidade. Em

Barth, a crítica da religião representa apenas um pólo de sua argumentação dialética.

Essa crítica é o “Não” (de Carta aos Romanos) e a “Abolição” (de Church

Dogmatics), o juízo divino contra a religião. Contudo, esse juízo traz em

contrapartida o “Sim” divino e a “Elevação” da religião. Em outros termos, a crítica

barthiana é apenas um trecho inicial do percurso que tem como ponto final a

justificação da religião (a “verdadeira religião”). Em Bonhoeffer a situação é bem

diferente. Ele não trabalha com o pensamento dialético, mas desenvolve sua crítica

numa perspectiva progressiva e linear. Assim, como Wüstenberg enfatiza, ao invés

de sua crítica negativa da religião levar a algum tipo de transformação positiva da

157

religião, sua noção de arreligiosidade representa, de fato, uma radicalização da crítica

da religião.686 Provavelmente, foi nesse sentido que Bonhoeffer criticou Barth por

não ter “concluído” a crítica da religião, isto é, não ter levado às suas conseqüências

últimas.

Uma das principais diferenças de Bonhoeffer em relação à Barth, que

permitiu esse distanciamento foi a compreensão bonhoefferiana de mundo adulto.

Ainda assim é possível encontrar nela leves similaridades com Barth. Em primeiro

lugar, o conceito de mundo adulto em Bonhoeffer não é o ponto central de sua

teologia em 1944. Como já comentado anteriormente, esse conceito exerce função

auxiliar para a questão do senhorio de Cristo no mundo. Para isso ele recorre à

compreensão de mundo adulto. Barth também associa sua crítica da religião à

questão cristológica. Ele também está preocupado com o senhorio de Cristo, e fala da

religião como presunção humana que se opõe a ele. Por outro lado, Bonhoeffer

critica a religião devido ao fato desta procura confinar o senhorio de Cristo ao

restrito espaço eclesial (parcialidade), o que impede a busca pelo seu senhorio no

mundo (totalidade). Como Barth considera a religião um traço intrinsecamente

antropológico, a única possibilidade para senhorio de Cristo, frente a oposição

humana, seria o arrependimento e a justificação do ser humano religioso. De outro

modo, Bonhoeffer, que considera a religião como um modo de vida e pensamento de

certas pessoas, percebe a anulação da religião como o único caminho para o senhorio

de Cristo no mundo. Há aqui uma diferença na compreensão da relação entre a

religião e o ser humano. Em Barth a religião é um fenômeno antropológico que não

está ligado à história mas à hamartologia. Assim como, segundo a compreensão

protestante, o ser humano não pode ficar sem pecado, ele também não pode ficar sem

religião. Já Bonhoeffer entende a religião como um fenômeno construído

historicamente, uma característica ou roupagem que permeou especialmente o

cristianismo, mas que pode e deve ser abandonado.687

A análise teológica da circuncisão é um exemplo bastante claro sobre essa

diferença. Ambos discutem sobre o sentido da circuncisão em Paulo no contexto da

crítica da religião, e concordam que a circuncisão não representa um requisito ou

garantia de salvação. Eles também fazem um paralelo entre a circuncisão e a religião,

686 Cf. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 60, 93; A. Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 93. 687 Cf. Ibid., p. 64.

158

indicando portanto que a religião também não é requisito nem garantia de salvação.

Ambos enfatizam que, assim como a circuncisão, a religião é um fenômeno

provisório. Entretanto, eles seguem caminhos diferentes na conclusão dessa análise.

Barth fala sobre a circuncisão e a religião como sinais vazios (sem mérito humano) e

provisórios que indicam a justificação divina. Assim como a circuncisão foi uma

prática provisória, a religião deve existir apenas no contexto histórico humano. No

mundo redimido por Cristo, que não se confunde com a realidade histórica, a

humanidade estará livre da religião. Por sua vez, Bonhoeffer fala da provisoriedade

da circuncisão e da religião numa perspectiva histórica, não numa visão de redenção

a-histórica. Nesse sentido, assim como a circuncisão, a religião não é mais

necessária. É nesse ponto que se insere sua interpretação do mundo adulto.

O teólogo alemão reconhece o processo de autonomia humana no contexto do

desenvolvimento do mundo moderno. Para ele, é a religião que insiste em não

admitir essa realidade, restringindo o senhorio de Cristo à parcialidade do

circunscrito espaço eclesiástico, da interioridade e individualidade humana, do

mundo abstrato e metafísico, da fraqueza e infelicidade humana (morte, culpa, etc.).

Assim, a oposição da religião à autonomia humana acaba se opondo também ao

senhorio de Cristo no mundo. Por sua vez, o raciocínio barthiano é distinto. Barth

discorda da noção de mundo adulto. Para ele, o mundo moderno “pensa” que chegou

à maturidade, mas “dia após dia [se] prova exatamente o contrário”.688 A pretensa

autonomia evidencia o endeusamento humano que se opõe ao senhorio de Cristo, e

isso é identificado como religião. Nesse sentido, a religião e a idéia de autonomia

humana se contrapõem ao senhorio de Cristo. É por isso que Barth fala da anulação

da religião somente em termos de justificação, que representa o despojamento

humano de qualquer sentimento presunçoso de autonomia ou independência, e o

reconhecimento de sua fragilidade e total dependência de Deus.

Diretamente ligadas às compreensões distintas acerca do mundo, estão as

diferentes concepções de Deus em relação ao ser humano. Na perspectiva do teólogo

suíço é necessário reconhecer a fraqueza humana e sua conseqüente necessidade do

Deus poderoso. Para Bonhoeffer, essa é uma concepção religiosa e equivocada de

Deus e do ser humano. Na sua visão é preciso reconhecer a força e autonomia da

688 K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 401.

159

humanidade, e a fraqueza e o sofrimento de Deus, pois só um Deus fraco e sofredor

pode ajudar a humanidade a se despertar para sua própria autonomia e força.

As noções de provisoridade da religião (histórica ou a-histórica), autonomia

ou não do mundo, e fraqueza ou força de Deus também encontram paralelo com as

referências mútuas de Barth e Bonhoeffer em relação ao tema da religião.

4.3.2.2 Comparação das referências mútuas

A mais importante referência mútua entre Barth e Bonhoeffer, no que diz

respeito ao tema da religião, é a crítica que Bonhoeffer dirige a Barth sob o rótulo de

“positivismo da revelação”, que suscitou a reação de Barth em anos posteriores.

Como Wüstenberg ressalta, esse rótulo aparece em três cartas da prisão no ano de

1944, com as seguintes datas: 30 de abril, 5 de maio e 8 de junho. Todas elas se

inserem no contexto da crítica bonhoefferiana da religião. Ademais, elas

compartilham a mesma estrutura de argumentação: Bonhoeffer (1) discute sobre a

crítica da religião, (2) elogia Barth por ter sido o único a iniciar essa crítica, e (3) o

critica por seu “positivismo da revelação”.689

Segundo Benkt-Erik Benktson690, ao mencionar que Barth foi o único a

iniciar a crítica da religião, é provável que Bonhoeffer, ao falar do “início” da crítica,

esteja se referindo ao texto “Biblical Questions, Insights, and Vistas” de 1920. Além

de este texto estar em The Word of God and the Word of Man691 (primeiro material

barthiano que ele teve contato), ele apresenta similaridades com a crítica

bonhoefferiana da religião nas cartas da prisão. Dentre elas, Barth menciona

positivamente as pessoas não-religiosas em comparação com as religiosas: “Tem

havido freqüentemente homens não-religiosos que sentiram toda a importância e

seriedade da questão sobre Deus, de forma muito mais intensa, e expressaram-na de

maneira muito mais incisiva que a maioria dos piedosos mais profundos e

zelosos.”692 Semelhantemente, ele ataca o ambiente religioso: “A polêmica da Bíblia

[...] não é direcionada contra o mundo sem Deus [ateu, ímpio] mas contra o mundo

689 Cf. R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 60. 690 Essa é uma interessante interpretação de Benkt-Erik Benktson ressaltada por E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit.. p. 77; A. Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 91-92; R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 31-32. 691 Cf. Karl Barth, The word of God and the word of man. New York: Harper and Row, 1957, p. 51-96. 692 Ibid., p. 56.

160

religioso”.693 Separa Jesus da religião – “Jesus simplesmente não tem nada que ver

com religião”694 – e fala do seu senhorio na vida e no mundo em contraposição à

religião: Deus “não é uma forma da história religiosa, mas o Senhor de nossa vida, o

eterno Senhor do mundo”.695

No que diz respeito à crítica do “positivismo da revelação”, na carta de abril

Bonhoeffer menciona que Barth não aprofundou nem concluiu a crítica da religião,

mas deteve-se no “positivismo da revelação”. Por isso, não houve nenhum avanço

decisivo para as pessoas arreligiosas.696 Em maio é dito que, em sua crítica, Barth:

substitui a religião pelo positivismo da revelação; estabeleceu um mesmo nível de

importância para todas as doutrinas cristãs (ênfase no nascimento virginal e trindade)

afirmando uma lei da fé, um “pegar ou largar”, ao invés de proteger algumas delas

por meio da disciplina arcana; e colocou a igreja no lugar da religião, abandonando o

mundo à sua própria sorte.697 Por sua vez, na carta de junho o teólogo alemão ressalta

que em Carta aos Romanos (2ª ed.) Barth adequadamente afirmou Jesus contra a

religião, pneuma contra sarx (espírito contra a carne), na Dogmática capacitou a

igreja para a implementação dessa distinção. Contudo, Bonhoeffer conclui que seu

“positivismo da revelação” consiste na ausência de qualquer orientação concreta para

a interpretação não-religiosa dos conceitos teológicos.698

E. Busch indica que Barth só veio tomar conhecimento da crítica do

“positivismo da revelação” com a primeira publicação das cartas da prisão em 1951.

Devido ao enigma que, em certo sentido, elas representavam, surgiram interpretações

variadas e contraditórias. Mas a partir dali, o rótulo de “positivismo da revelação”

passou a ser usado contra Barth de inúmeras formas. Por isso, além de não

compreender o sentido nem o motivo dessa crítica de Bonhoeffer, Barth questionou

se a publicação dessas cartas foi algo realmente positivo.699

Na carta escrita em 1952 para o superintendente Herrenbnick,700 Barth

ressalta a surpresa que teve com as cartas de Bonhoeffer: “o que exatamente ele quis

dizer com o ‘positivismo da revelação’ que ele encontrou em mim? [...] como

693 Ibid., p. 70. 694 Ibid., p. 88. 695 Ibid., p. 74. 696 Cf. D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 370-371. 697 Cf. Ibid., p. 380. 698 Cf. Ibid., p. 438. 699 Cf. E. Busch, Karl Barth, op. cit., p. 381. 700 Karl Barth, From a Letter to Superintendent Herrenbnick. In: Ronald Gregor Smith (Org.), World Come of Age, op. cit., p. 89-92.

161

funciona o programa de linguagem não-religiosa”?701 Para Barth, o teólogo alemão

não deixou qualquer indício de como colocar os conceitos bíblicos em “outras

palavras”. Uma de suas hipóteses é de que essa tenha sido uma advertência contra a

repetição de frases e idéias bíblicas tradicionais que são sem sentido para o “mundo”.

Barth também ficou inquieto com a questão de quando ele teria se expressado em

termos de “pegar ou largar” com respeito à doutrina do nascimento virginal. Segundo

a interpretação do teólogo suíço, embora não tenha ficado claro o que Bonhoeffer

queria dizer com a participação nos sofrimentos de Deus, essa noção parece ser uma

variação de sua ênfase no conceito de imitatio, que não foi apenas pensado, escrito,

mas também vivido pelo teólogo alemão. De qualquer modo, Barth considera que

Bonhoeffer não deixou algo tangível e concreto com respeito a essas questões, e

conjectura que mesmo para o teólogo alemão elas não eram claras.702 Em certo

sentido, Barth pensa que tais conceitos eram prematuros, dadas as características de

Bonhoeffer: “ele era impulsivo, um pensador visionário que de repente era tomado

por uma idéia à qual ela dava uma vívida forma”703.

Além disso, numa carta escrita para Eberhard Bethge em 1967,704 Barth

agradece a gentileza do envio de uma cópia da biografia de Bonhoeffer, e acrescenta

que ele estudou atentivamente todas as páginas. O teólogo suíço confessa que

somente por meio dessa leitura descobriu que ele fora tão importante para o

pensamento e a vida de Bonhoeffer. No entanto, Barth expressa que mesmo a obra de

Bethge não havia clarificado alguns pontos em Bonhoeffer que ele ainda considerava

obscuros, a saber, a disciplina arcana, o mundo adulto, a interpretação não-religiosa e

a crítica do positivismo da revelação. Nesse contexto, o teólogo suíço conjectura se

Bonhoeffer apenas não lançou frases atraentes, das quais nem ele mesmo sabia o que

significavam. Na perspectiva barthiana, as cartas da prisão representam uma agitada

peregrinação intelectual que apontou direções totalmente diferentes. Ele conclui que

o teólogo alemão seria completamente mal compreendido se fosse interpretado

apenas à luz dessas passagens.705

Embora Barth afirme repetidamente sua incompreensão da crítica do

positivismo da revelação, R. Prenter indica que uma visão geral do seu entendimento 701 Ibid., p. 90. 702 Cf. Ibid., p. 91. 703 Ibid., p. 90. 704 Cf. Karl Barth, To Rector Eberhard Bethge, Rensdorf near Neuwied. In: Jürgen Fangmeier, Hinrich Stoevesandt (Orgs.). Karl Barth: Letters 1961-1968. Edinburgh: T&T Clark, 1981, p. 250-252. 705 Cf. Ibid.

162

da revelação pode indicar algumas noções que provocaram a oposição

bonhoefferiana, sobretudo no contexto de sua crítica da religião. De maneira geral, a

concepção barthiana da doutrina da revelação possui três características básicas:

atualismo, analogismo e universalismo.706 O atualismo compreende que, em sua

distinção total do mundo pecaminoso, a Palavra revelada de Deus não pode entrar no

mundo nem estar nele. Assim, ao chegar ao mundo ela é transformada em algo do

mundo, em religião. O ser humano pecaminoso imediatamente encarcera a revelação,

por meio da religião, como se ela fosse uma realidade temporal. Em realidade, ela

não existe na extensão do tempo, mas apenas toca o mundo humano pecaminoso e se

quebra na existência humana. Isso significa que “Deus está no mundo humano

apenas em cada ato específico de sua auto-revelação. [...] não há espaço para a

existência do revelado ou do revelador no mundo.”707 Por isso, a revelação não

ocorre na extensão do tempo, mas em um instante, em um ato que permanece único,

e como o seu contato com o mundo acaba distorcendo sua realidade é necessário que

esse ato se repita periodicamente. Há, portanto, uma ambígua correlação entre

religião (aspecto humano) e revelação (aspecto divino): positivamente, ela tem sua

origem na revelação divina, mas negativamente ela a distorce, procurando fazer do

divino uma possessão humana. Cada impressão da revelação – que Barth chama de religião – constitui a materialização e a humanização do divino [...] Esse é o aspecto negativo da relação entre revelação e religião. A revelação é sempre submersa na religião, por isso a revelação de Deus [...] precisa ser dada novamente [...]. Cada impressão da revelação, sendo uma realidade humana temporal e espiritual, não é mais que um traço de uma revelação anterior. [... Por sua vez,] o aspecto positivo da relação entre revelação e religião [... aparece] na medida em que a religião [...] sempre aponte para a revelação, então a despeito de toda a sua oposição à revelação ela também presta algum tipo de serviço a ela.708

Por sua vez, o analogismo trabalha com a noção de correspondência derivada

da ênfase barthiana na analogia fidei. No analogismo Barth destaca o positivo de

Deus no negativo humano, isto é, a capacidade de a vida humana ser uma parábola,

uma referência, uma testemunha de algo maior a despeito de sua negatividade.

Porque não pode haver, no tempo, um encontro real entre Deus e o ser humano -

visto que a revelação de Deus vem apenas como um ato de sua auto-revelação -

706 Cf. Regin Prenter, Dietrich Bonhoeffer and Karl Barth's Positivism of Revelation. In: Ronald Gregor Smith (Org.), World Come of Age, op. cit., p. 105. 707 Ibid., p. 106. 708 Ibid., p. 110.

163

existem apenas analogias, imagens, sinais, daquele ato. Assim, “a revelação de Deus

se torna temporal ou um fato apenas em analogia.”709

Finalmente, o universalismo representa a conseqüência lógica dos dois

conceitos anteriores: “se a realidade da revelação é negada na extensão do tempo e

ligada ao ato momentâneo da auto-revelação de Deus [...] cada decisão humana é

também análoga à eterna decisão de Deus”.710 Essa perspectiva leva Barth à idéia de

predestinação ou salvação universal.711 Aliás, como enfatizado no segundo capítulo

dessa dissertação, ao falar de “igreja” e “mundo” o teólogo suíço não se refere a

grandezas históricas, ou seja, diferentes grupos de pessoas, mas sim a uma realidade

dialética (rejeição e eleição) de toda a humanidade.

De fato, Prenter entende que essas três características resumem o método

dialético de Barth que se apresenta, enquanto estrutura de pensamento, tanto em

Carta aos Romanos quanto em Church Dogmatics.712 Nesse sentido, já em Act and

Being, onde “aparecem os primeiros sinais da crítica à Barth”713, Bonhoeffer se opõe

precisamente ao atualismo barthiano. Ao mencionar que “Deus não é livre do

homem, mas para o homem”714 e que “Deus está aqui [...] não como não-objetividade

eterna [...] mas que pode ser captado na sua Palavra dentro da Igreja”715, o teólogo

alemão deseja afirmar que, no mundo, Deus não é apenas ato (como defende Barth),

mas possui existência no tempo, a saber, Cristo existindo em forma de igreja-

comunidade. Para Prenter, por trás do atualismo de Barth, Bonhoeffer suspeita que

exista um transcendentalismo que coloca Deus apenas na esfera da cognição, e não

da existência humana. Por isso, enquanto Barth se concentra na questão do ato e da

cognição716 da fé - a fé em busca de compreensão de Anselmo -, Bonhoeffer deseja

enfatizar a existência, e não apenas o ato, a ação, e não apenas a cognição.717 Parece

que o teólogo alemão quer dizer que a cognição da fé precisa levar à ação, e não ficar

709 Ibid., p. 115. 710 Ibid., p. 116. 711 Veja a ênfase que Barth coloca na “reconciliação universal” em A humanidade de Deus, texto que funciona como revisão de sua teologia. Cf. K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 403. 712 Cf. R. Prenter, Dietrich Bonhoeffer and Karl Barth's Positivism of Revelation, op. cit., p. 119. 713 Ernst Feil, The Theology of Dietrich Bonhoeffer. Minneapolis: Fortress Press, 2007, p. 170. 714 D. Bonhoeffer, Act and Being, op. cit., p. 90. 715 Ibid., p. 90-91. 716 A ênfase na relação entre fé e cognição leva Barth a interpretar o batismo cognitivamente e a se opor ao batismo infantil. Cf. Karl Barth, The Teaching of the church regarding baptism. London: SCM Press, 1965. 717 Cf. R. Prenter, Dietrich Bonhoeffer and Karl Barth's Positivism of Revelation, op. cit., p. 124, 128.

164

meramente no pensamento especulativo. Por isso, ele salienta que Deus não é Deus

em si (ênfase na cognição), mas Deus para o ser humano (ênfase na ação).

Nessa perspectiva, Prenter indica que provavelmente Bonhoeffer rotula como

positivismo da revelação a simples apresentação ao mundo dos conceitos bíblicos e

cristãos para uma mera aceitação cognitiva, sem mostrar claramente como eles se

relacionam com a existência, com a vida no mundo.718 Portanto, nesse contexto, o

teólogo alemão aponta em suas cartas que a crítica barthiana da religião não trouxe

ganho algum para as pessoas arreligiosas, ao invés disso criou uma “lei da fé”, um

“pegar ou largar”719, abandonando o mundo à sua própria sorte. Com efeito,

Bonhoeffer reconhece que nem todos os conceitos da fé podem ser diretamente

relacionados com vida concreta, e então, nesse caso, a disciplina arcana exerce papel

fundamental para preservar esses mistérios da fé da “profanação”.720 Nesse sentido,

Bonhoeffer critica o positivismo da revelação de Barth, que coloca todas as doutrinas

em um mesmo nível de importância, apresentando-as para a aceitação cognitiva, ao

invés de estabelecer níveis de importância através da disciplina arcana, para proteger

os mistérios.

Como tentativa de entender esse princípio, A. Pangritz ressalta que em suas

aulas sobre a teologia recente, no inverno de 1932/33, Bonhoeffer fez uma distinção

entre doutrina, proclamação, e confissão na igreja. Enquanto a doutrina e a

proclamação são apresentadas ao público, a confissão é um evento que ocorre apenas

na congregação, pois a confissão apresentada ao mundo é uma tentativa perigosa.721

Com efeito, parece haver um paralelo entre a proteção do mistério pela disciplina

arcana e a confissão que se restringe à igreja. Além disso, é interessante notar como

ele entende o estudo da Cristologia em termos de mistério a ser mantido: “a doutrina

de Cristo começa no silêncio [...] o silêncio ante o inefável [...] Falar de Cristo

significa calar, calar acerca de Cristo significa falar [...] falar dele no silencioso

âmbito da igreja. Nosso cultivo da cristologia que exercemos aqui no humilde

silêncio da comunidade sacramental e adoradora”.722 Logo, há uma distinção

718 Cf. Ibid., p. 94, 101, 105. 719 A. Pangritz explica que na carta de 5 de maio de 1944 a expressão literal em alemão é “coma, pássaro, ou morra!” (Friss, Vogel, oder stirb!). Desse modo, Bonhoeffer estaria acusando Barth de deixar os “pássaros” no mundo de fora da igreja “morrerem” se eles se recusarem a “comer”. Cf. A. Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 139. 720 Cf. D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 380. 721 Cf. A. Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 100. 722 D. Bonhoeffer, Quien es y quien fue Jesucristo?, op. cit., p. 13.

165

metodológica entre a inadequada pergunta pelo “como” (a pergunta objetiva da

imanência) e a correta pergunta pelo “quem” (a pergunta pela transcendência).723

Portanto, para Pangritz, Bonhoeffer considera que Barth quer entender e

apresentar algumas doutrinas por meio da pergunta pelo “como”, não pelo “quem”,

isto é, Barth não mantém o mistério, sobretudo nas doutrinas do nascimento virginal

e da trindade.724 Semelhantemente, Barth também reconhece a importância de se

manter o mistério, mas não como Bonhoeffer. Para ele, a proclamação das doutrinas

faz parte da atitude da fé. Apenas em casos de dúvida o silêncio deve ser praticado: afirmar a doutrina do nascimento virginal é parte da fé cristã real. Isto requererá [... que] alguns que pessoalmente não entendem essa ordenança [...] tratem seus caminhos privados como caminhos privados e não façam disso um objeto de sua proclamação [...] eles devem ao menos respeitar o dogma guardando silêncio a respeito dele.725

Por meio dessa distinção entre Barth e Bonhoeffer, Pangritz pensa que o

teólogo alemão quer advertir o suíço acerca do perigo de falar demais na dogmática,

não respeitando o mistério.726 Nesse caso, provavelmente, ele não deseja priorizar o

elemento puramente cognitivo na interpretação doutrinária: ou elas são diretamente

relacionadas à vida (interpretação não-religiosa) ou o mistério delas é mantido

(disciplina arcana). Com efeito, a disciplina arcana é um elemento indispensável na

crítica bonhoefferiana da religião em 1944. Em um primeiro olhar, ela parece ser um

elemento contraditório, pois se a proposta da interpretação não-religiosa deseja evitar

a divisão de esferas, a disciplina arcana faz exatamente isso. Ela restringe certas

práticas e conhecimentos doutrinários ao ambiente eclesial. Mas para Bethge, a

disciplina arcana representa o contraponto necessário à interpretação não-religiosa.

Embora exista a ênfase na totalidade, o teólogo alemão não quer fazer da igreja e do

mundo a mesma coisa. Assim, a interpretação não-religiosa e a disciplina arcana são

meios de correção mútua: a disciplina arcana sem a interpretação não-religiosa

produziria um monasticismo litúrgico ou um gueto religioso, enquanto a

interpretação não-religiosa sem a disciplina arcana não passaria de um jogo

intelectual.727

723 Cf. Ibid., p. 14-19. 724 Cf. A. Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 106. 725 K. Barth, Church Dogmatics, I/2. op. cit., p. 181. 726 Cf. A. Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 114. 727 Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit.. p. 881, 844.

166

Contudo, Barth discorda da divisão bonhoefferiana que mantém certos

conteúdos para a igreja (os mistérios da disciplina arcana) e apresenta outros para o

mundo arreligioso (segundo a interpretação não-religiosa). Na visão do teólogo suíço

isso representa uma equivocada divisão entre linguagem para os “de dentro” (a

igreja) e linguagem para os “de fora” (o mundo arreligioso): “o mais convicto dos

cristãos precisa e irá sempre de novo reconhecer a si próprio como ‘alguém de fora’.

[...] Habitantes do mundo de hoje são ambos, somos todos nós.”728 Essa perspectiva

se alinha ao pensamento barthiano de que a igreja não se refere a um certo grupo de

pessoas, mas ao pólo dialético da eleição divina da humanidade, tendo em vista a sua

ênfase no universalismo. Nesse caso, a crítica bonhoefferiana de que Barth focaliza a

igreja e se esquece do mundo parece não fazer sentido. O próprio teólogo suíço

questiona: “o perigo de uma negação abstrata do mundo no qual alguns parecem ver-

me cair hoje, certamente menos do que nunca é preocupação minha”.729 Ele também

indaga como é possível explicar, a partir dessa crítica, o seu engajamento na Igreja

Confessante e na Declaração de Barmen.730

No entanto, Barth admite que sua ênfase na infinita diferença qualitativa entre

Deus e o ser humano foi dita de maneira desumana: “não soubemos tratar com

cuidado e integridade a nova percepção da divindade de Deus [...] o ‘totalmente

outro’ nos fascinava”731. Ele reconhece que essa era uma imagem abstrata que

agredia o ser humano, e tinha mais semelhança com os deuses dos filósofos do que

com o Deus da Bíblia.732 Em sua afirmação de que a compreensão da divindade de

Deus deve incluir sua humanidade, Barth responde indiretamente a crítica

bonhoefferiana: a divindade de Deus [...] não é uma prisão, na qual ele pudesse existir apenas em si e para si. [...] sua liberdade de ser em si e para si mas também conosco e por nós, de se impor mas também de se entregar, de ser bem elevado mas também bem baixo, de ser não só todo-poderoso mas também misericórdia onipotente, não só senhor mas também servo, não só juiz mas também, ele próprio, o julgado, o eterno rei do ser humano mas também seu irmão no tempo. Tudo isso sem nada perder de sua divindade!733

728 K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 401. 729 K. Barth, How my Mind has Changed, op. cit., p. 411. 730 Cf. Ibid., p. 413-414. 731 K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 393. 732 Cf. Ibid. 733 Cf. Ibid., p. 396.

167

Nesse contexto, o único sentido da crítica bonhoefferiana de que Barth se

esquece do mundo, se insere no quadro da compreensão do penúltimo e último.

Levando em conta a compreensão dialética da igreja e o universalismo é difícil

afirmar que Barth desconsidera o mundo. Entretanto, na perspectiva do conceito de

penúltimo e último é possível afirmar que Barth enfatiza favoravelmente o mundo

enquanto mundo reconciliado e salvo por Cristo, isto é, a na noção de último. Esta

não é, como Bonhoeffer deseja, uma ênfase nas condições atuais do mundo, segundo

a idéia do penúltimo (como preparação para o último). Ademais, Barth entende a

redenção em si como realidade a-histórica, enquanto Bonhoeffer quer entendê-la

historicamente. De fato, o teólogo alemão aponta a disciplina arcana e o conceito de

penúltimo e último como elementos importantes para sua interpretação não-

religiosa,734 e ambos parecem se conectar à sua crítica de Barth.

Todavia, assim como em certo sentido Bonhoeffer tende a exagerar na crítica

de que Barth “abandona o mundo à sua própria sorte”, o teólogo suíço também

subestima a proposta bonhoefferiana de interpretação não-religiosa. Na sua tentativa

de entender tal proposta, Barth parece reduzi-la a uma mera linguagem verbal que

procura colocar os conceitos bíblicos em “outras palavras”, uma espécie de tradução

da fé para o mundo.735 Contudo, como Prenter salienta, Bonhoeffer não quer

trabalhar apenas com a apresentação do conteúdo da fé, mas com o seu próprio

conteúdo. Os conceitos cristãos não necessitam ser traduzidos, pois em certo sentido

a mensagem já se encontra neles. O teólogo alemão não deseja reduzir o conteúdo

tradicional da fé.736 Diferente de Bultmann, ele deseja “manter os conteúdos

integrais”.737 Aliás, ele procura usar a própria Bíblia como paradigma para a

interpretação não-religiosa desses conteúdos, especialmente o Antigo Testamento e

S. João 1:14,738 para prover uma ênfase concreta e histórica, segundo a perspectiva

da encarnação. Há, portanto, uma vigorosa preocupação com a vida concreta que

realça a transcendência de Deus no centro da vida, a prática da justiça, a participação

nos sofrimentos de Deus na vida, a fé como um ato da totalidade da vida, a definição

da igreja como “existir para os outros”, e a importância do exemplo da igreja.739 De

734 Cf. D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 372. 735 Cf. K. Barth, From a Letter to Superintendent Herrenbnick, op. cit., p. 90-91; K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 401-402. 736 Cf. R. Prenter, Dietrich Bonhoeffer and Karl Barth's Positivism of Revelation, op. cit., p. 102. 737 Cf. D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 439. 738 Cf. Ibid., p. 381, 455-456. 739 Cf. Ibid., p. 374, 398, 489, 491, 512.

168

forma geral, o teólogo alemão indica que a interpretação não-religiosa dos conceitos

cristãos visa um engajamento na vida concreta, à luz da encarnação, que

evidentemente pode ser visualizado na sua própria biografia.

Desse modo, nota-se que enquanto Barth critica a religião na perspectiva da

revelação, Bonhoeffer faz sua crítica na perspectiva da vida. Enquanto Barth

contrapõe a religião à fé, entendendo esta última como postura principalmente

cognitiva diante de Deus, Bonhoeffer também contrapõe a religião à fé, mas

compreendendo a fé essencialmente como engajamento na totalidade da vida

concreta.

4.4. Resumo do capítulo

A tentativa de síntese da crítica da religião em Karl Barth indicou que o ponto

de partida metodológico dela é a doutrina da revelação e, adicionalmente, a

compreensão protestante da justificação pela fé. Nesse contexto, a religião é

identificada com a igreja, compreendida como um traço essencialmente

antropológico no mundo pecaminoso, e constitui a presunçosa tentativa humana de

se justificar por meio de suas próprias obras. Essa presunção humana atrai o juízo

divino que compreende a crítica barthiana da religião, e visa abolir a religião. Mas,

dialeticamente é na negação que se encontra a sua afirmação, isto é, a elevação da

religião. Assim, abolida, ela pode funcionar positivamente como um símbolo vazio e

provisório da ação divina que, em outros termos, representa o reconhecimento da

limitação humana e da poderosa ação da divindade de Deus.

Por sua vez, a tentativa de síntese da crítica da religião bonhoefferiana

indicou como ponto de partida metodológico a eclesiologia, que foi gradativamente

absorvida pela cristologia, e a ênfase na analogia relationis. Nesse sentido, a religião

é negativamente vista como característica de um período histórico, uma “roupagem”

do cristianismo que se apresenta em termos de individualismo, interioridade, mera

consciência moral, abstração, privilégio e parcialidade. Ela também se fundamenta

na fraqueza das pessoas e procura falar do poder de Deus para superar as situações

limite, deixando-o restrito às limitações humanas, longe do centro da vida. Através

da percepção de um mundo adulto e arreligioso, Bonhoeffer pensa no senhorio de

Cristo no mundo. Para isso ele procura desenvolver a interpretação não-religiosa dos

conceitos cristãos como tentativa de se separar a igreja e a fé da religião, visando um

169

cristianismo comprometido com a vida concreta, que participe nos sofrimentos de

Cristo e objetive unicamente “existir para os outros”.

A abordagem das aproximações e distanciamentos da crítica da religião entre

Barth e Bonhoeffer destacou como aproximações da crítica bonhoefferiana em

relação à crítica barthiana, antes de 1944, a oposição de Bonhoeffer ao conceito a

priori religioso e a visão barthiana de revelação; a identificação da religião com a

moralidade; a distinção entre religião e fé, religião e revelação; a visão da religião

como arrogância humana que pretende se elevar ao nível divino; a crítica da religião

como crítica eclesiológica; a idéia de religião como pretensão de garantia de

salvação; e a interpretação da modernidade antropocêntrica como oposição ao

senhorio de Cristo no mundo. Já os distanciamentos compreendem a distinção de

Bonhoeffer entre religião e igreja, e sua ênfase na religião como individualismo,

lugar de privilégios, parcialidade e abstração.

Em 1944, a crítica da religião bonhoefferiana se distancia ainda mais da

abordagem de Barth, principalmente porque em seu método dialético a crítica

barthiana é apenas um trecho inicial do percurso que tem como ponto final a

justificação da religião. Já Bonhoeffer chega à radicalização da crítica da religião, a

idéia de arreligiosidade. Embora ambos estejam interessados no senhorio de Cristo

no mundo, Barth propõe para isso a justificação do ser humano religioso, enquanto

Bonhoeffer defende a anulação da religião. Barth vê a noção moderna de mundo

adulto como oposição ao senhorio de Cristo, ao passo que Bonhoeffer enxerga o

reconhecimento do mundo adulto como atitude necessária para o senhorio de Cristo

no mundo. Barth deseja enfatizar a fraqueza humana e necessidade do Deus

poderoso, enquanto Bonhoeffer ressalta a fraqueza e o sofrimento de Deus como

impulso para o despertar da autonomia e força humana. De maneira geral, Barth

critica a religião na perspectiva da revelação, Bonhoeffer faz sua crítica na

perspectiva da vida. Ambos contrapõem a religião à fé, mas Barth concebe a fé

principalmente de forma cognitiva, ao passo que Bonhoeffer a enxerga como

engajamento na vida concreta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho constituiu uma tentativa de comparação da crítica teológica da

religião no pensamento de Karl Barth (1886-1968) e Dietrich Bonhoeffer (1906-

1945). No sentido de alcançar esse propósito geral, algumas etapas específicas

tiveram que ser cumpridas.

Para situar a concepção da religião e sua crítica moderna, o primeiro capítulo

traçou a noção de religião no ambiente ocidental, enfatizando que na modernidade

houve uma redução da compreensão da religião aos seus aspectos mais objetivos, o

que permitiu sua abstração conceitual e também sua crítica. Desse modo, a crítica

moderna da religião cobriu um longo processo que envolveu, sobretudo, os campos

da filosofia, sociologia, psicologia, antropologia e, finalmente, da teologia. No

contexto da crítica teológica da religião, este capítulo também apresentou o percurso

bibliográfico e metodológico de Barth e Bonhoeffer, bem como os comentários da

crítica barthiana e bonhoefferiana da religião, tecidos por alguns de seus intérpretes.

Com o intuito de contextualizar o tema da religião e sua crítica na teologia de

Barth, o segundo capítulo discutiu a religião em Carta aos Romanos e no § 17 de

Church Dogmatics. Nesses textos, de modo geral, Barth critica o protestantismo

moderno por utilizar a religião como paradigma de interpretação da revelação. Para

ele, a religião é um traço antropológico que indica a limitação humana e a sua

“ausência de fé”, representando a arrogante tentativa de divinização do ser humano

que busca justificar-se pelos próprios esforços. A crítica da religião se opõe a essa

presunção individual e também eclesiástica. Mas, à luz do conceito de justificação

pela fé, Barth fala da “verdadeira religião”, a sublimação da religião pela revelação:

sua negação (ausência de fé) e elevação (justificação). Justificada, ela pode ser um

símbolo vazio e provisório da graça divina.

Ao procurar contextualizar o tema da religião e sua crítica na teologia de

Bonhoeffer, o capítulo três indicou que no seu período de estudante a religião foi

discutida favoravelmente – embora este já criticasse a noção de a priori religioso –,

mas a partir de 1927 ela foi geralmente considerada de forma negativa. Ele a

contrapõe à revelação, à fé e à igreja, criticando-a pelo seu individualismo, oposição

171

à Palavra Deus, parcialidade, abstração, e por se situar em lugares privilegiados. No

final de sua vida, em 1944, Bonhoeffer considera a religião como um período

histórico que está chegando ao fim, relacionando-a negativamente com a piedade

individual, interioridade, mera consciência moral e o pensamento metafísico.

Ademais, a religião fala de Deus apenas nos limites do conhecimento e nas fraquezas

e dificuldades do ser humano. Nesse contexto, ele propõe o cristianismo arreligioso,

caracterizando-o parcialmente, uma vez que sua teologia ficou inacabada devido a

sua morte prematura.

A partir da tentativa de síntese da crítica da religião em Barth e Bonhoeffer, o

quarto capítulo buscou delinear aproximações e distanciamentos entre eles.

Panoramicamente, as aproximações compreendem a identificação da religião com a

moralidade, a pretensa garantia de salvação, e a crítica da religião como crítica

eclesiológica e oposição à fé. Já os distanciamentos aparecem na distinção de

Bonhoeffer entre religião e igreja, e sua ênfase na religião como individualismo,

lugar de privilégios, parcialidade e abstração. Embora ambos pensem no Senhorio de

Cristo no mundo, a proposta de Barth, em sua crítica dialética, objetiva a justificação

da religião, enquanto a proposta de Bonhoeffer, em sua crítica linear, intenta a

anulação da religião. De maneira geral, Barth critica a religião na perspectiva da

revelação, Bonhoeffer faz sua crítica na perspectiva da vida.

Com base nas idéias desenvolvidas nesses capítulos é possível esboçar, de

maneira abrangente, alguns paralelos entre a crítica da religião barthiana e

bonhoefferiana.

De certo modo, ambas foram influenciadas pelo contexto das guerras

mundiais: a primeira guerra para Barth, e a segunda para Bonhoeffer. Para Barth, a

primeira guerra representou o fracasso da teologia moderna e seu foco

antropocêntrico ou “religionístico”.740 O questionamento da visão otimista do mundo

moderno expressa pela fé no progresso humano - compartilhada pela teologia

moderna em sua ênfase na moralidade – partiu da decepção de Barth ao ver muitos

de seus professores participarem do manifesto que dava suporte à política beligerante

alemã. Desiludido com a “moralidade humana”, Barth deseja fazer uma teologia que

tenha Deus como ponto de partida, não o homem. No contexto da guerra, pode-se

dizer que Barth critica a “religião” (o emblema da teologia liberal) porque ela fez

740 Cf. K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 390-391.

172

algo que não deveria ter feito: o apoio à guerra. Logo, o foco da crítica barthiana é a

constatação da maldade humana. Por sua vez, Bonhoeffer se opõe ao individualismo

e pietismo da religiosidade. Mas, no contexto do impacto da segunda guerra, o

teólogo alemão radicaliza sua crítica da religião ao chegar à idéia de arreligiosidade,

principalmente porque a religião deixou de fazer algo que deveria ter feito: oposição

ao nazismo e interesse por suas vítimas. Desse modo, o foco de Bonhoeffer na sua

crítica é levar as pessoas a tomarem uma atitude, daí sua ênfase na autonomia e força

humana. Assim como Barth, ele ressalta a submissão humana à vontade de Deus,

mas essa submissão deve levar à resistência - atitude responsável contra iniciativas

ou poderes que desafiam o Senhorio de Cristo no mundo.

Associado ao contexto da guerra, outro paralelo emerge: o papel central da

cristologia (conforme o entendimento de Calcedônia) na crítica da religião. Em

Barth, a encarnação de Cristo serve como paradigma para a compreensão da relação

entre a revelação divina e a religião humana. Já em Bonhoeffer ela é o paradigma da

relação entre Deus e o mundo. Mas como reação à teologia antropocêntrica moderna,

Barth tende a enfatizar a divindade de Cristo, ao passo que Bonhoeffer, na sua

proposta de resistência, deseja enfatizar a humanidade de Jesus Cristo (sua

humilhação), o homem para outros. Por isso, a preocupação bonhoefferiana com o

penúltimo, com o mundo adulto, faz com que ele trabalhe mais com a idéia

cristológica da encarnação, seguindo a theologia crucis: “temos o exaltado

unicamente como crucificado, ao impecável como carregado com todas as culpas, ao

ressuscitado só como humilhado.”741 Sua theologia crucis indica a representação

vicária da igreja, enquanto presença de Cristo no mundo, que assume a

responsabilidade pelos outros. Por outro lado, a ênfase de Barth na justificação

divina faz com que ele se concentre no mundo reconciliado com Deus, o que para

Bonhoeffer representaria a idéia de último. Tal realidade, para Barth, só pode ser

vislumbrada como analogia ou parábola, um símbolo da realidade vindoura. Desse

modo, a idéia cristológica que se destaca é a ressurreição, a theologia gloriae: “nós

não temos apenas uma theologia crucis, mas uma theologia resurrectionis e,

portanto, uma theologia gloriae, ou seja, uma teologia da glória do novo homem

atualizado e introduzido em Jesus Cristo”.742 As respectivas ênfases cristológicas na

theologia crucis e theologia gloriae revelam a perspectiva com a qual estes teólogos

741 D. Bonhoeffer, Quien es y quien fue Jesucristo?, op. cit., p. 86. 742 Cf. Karl Barth, Church Dogmatics. IV/2. Edinburgh: T&T Clark, 1958, p. 355.

173

discutem a religião. Enquanto Barth vê a religião a partir de cima, Bonhoeffer a

enxerga a partir de baixo. O próprio Bonhoeffer afirma a importância de ter

aprendido a “olhar os grandes eventos da história do mundo a partir de baixo, da

perspectiva dos excluídos, [...] dos maltratados, dos destituídos de poder, dos

oprimidos e dos escarnecidos, em suma, dos sofredores.”743

No contexto amplo da crítica moderna da religião, as críticas teológicas de

Barth e Bonhoeffer parecem fazer uso de algumas noções da crítica moderna em

geral. Mas isso não significa que eles se enquadram completamente ao pensamento

moderno, pois, em certo sentido, eles também questionam a sua lógica. Barth utiliza

a crítica moderna ao falar da religião como projeção dos ideais e das necessidades

humanas, interpretando-a teologicamente como idolatria. No entanto, ele se opõe ao

otimismo do ideal moderno de progresso, ressaltando a corrupção humana. Ademais,

Barth combate o paradigma iluminista moderno que coloca a racionalidade como

base do conhecimento, afirmando que o sujeito humano não é o ponto de partida do

conhecimento sobre Deus. Por sua vez, Bonhoeffer parece utilizar a crítica moderna

ao enfatizar a noção de autonomia humana no mundo adulto. Embora sua ênfase não

signifique necessariamente um otimismo em relação ao progresso moral, é possível

notar um forte otimismo em relação ao desenvolvimento técnico e científico, através

do qual o ser humano aprendeu a dar conta de si mesmo e tem plenas condições de

resolver as questões-limite da vida (morte, sofrimento, culpa). Contudo, Bonhoeffer

supera a lógica moderna na sua crítica ao pensamento metafísico e a abstração, ao

individualismo e interioridade, e à parcialidade, em detrimento da totalidade da vida.

Evidentemente, as abordagens barthiana e bonhoefferiana incluem aspectos

que representam interessantes contribuições. A crítica de Barth aponta para a

importância do reconhecimento da crise e corrupção da humanidade, ressaltando os

limites do conhecimento e da atividade humana. Nesse sentido, destaca-se sua

perspectiva da fé enquanto humildade e esvaziamento de qualquer presunção ou

arrogância. De outro modo, a crítica de Bonhoeffer salienta a importância do

engajamento na totalidade da vida concreta, procurando eliminar todo o traço de

abstração, individualismo, subjetivismo e parcialidade. Nesse contexto, sua visão da

fé é notável: ação concreta em prol da vida, responsabilidade pelos outros.

743 D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 43.

174

Entretanto, a comparação entre os dois teólogos parece revelar algumas

limitações em suas respectivas abordagens. À luz da crítica bonhoefferiana, a

abordagem de Barth pode ser considerada um tanto abstrata, pois apresenta uma

postura relativamente passiva das pessoas, ao invés de motivar algum tipo de ação.

Associado a isso, suas considerações parecem se alinhar a uma perspectiva

individualista, que não contempla o relacionamento com os outros. Ademais, a

afirmação da realidade atual do reino de Deus apenas como analogia ou parábola

nega a presença e atuação da graça divina no mundo, e acaba retratando um reino

metafísico. Isso indica uma certa ausência de orientação concreta no que diz respeito

à atitude das pessoas em relação ao mundo enquanto realidade presente.

Por outro lado, à luz da crítica barthiana, a abordagem de Bonhoeffer parece

incorrer em certas simplificações. As definições de transcendência divina, fé,

relacionamento com Deus, e igreja se resumem no “existir para os outros”. Embora

seja necessário reconhecer a importância do “existir para os outros”, resumir todos os

conceitos bíblicos a essa noção representa um certo reducionismo do Cristianismo à

ética. Embora Bonhoeffer afirme a disciplina arcana como corretivo para o

reducionismo, sua busca em tornar os conceitos cristãos concretos tende a eliminar

os “mistérios” da fé. Além disso, o fato de Bonhoeffer defender a perspectiva “de

baixo” não deveria levá-lo à percepção da seriedade das questões-limite (morte,

sofrimento), ao invés de entendê-las como quase que resolvidas pelo mundo adulto?

Nesse sentido, por que o “vigoroso mundo adulto” precisaria de um Deus fraco e

sofredor? Evidentemente, a idéia bonhoefferiana de levar o discurso sobre Deus dos

limites para o centro da vida é bastante interessante, mas parece que, para isso, ele

acaba desprezando as questões-limite da existência humana.

Considerando que o presente estudo representou apenas uma tentativa de

comparação das abordagens barhtiana e bonhoefferiana por meio de um trabalho

basicamente descritivo, tais considerações acerca de suas possibilidades e limitações

constituem apenas intuições preliminares e incipientes, que necessitariam ser

ampliadas por estudos posteriores que contemplem uma análise detida da estrutura e

das implicações dessas abordagens.

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