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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO RICARDO BOONE WOTCKOSKI A PAIXÃO DE CRISTO SEGUNDO SÃO MATEUS: ESTRATÉGIAS NARRATIVAS SÃO BERNARDO DO CAMPO 2013

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  • UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO

    FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO

    RICARDO BOONE WOTCKOSKI

    A PAIXO DE CRISTO SEGUNDO SO MATEUS:

    ESTRATGIAS NARRATIVAS

    SO BERNARDO DO CAMPO

    2013

  • RICARDO BOONE WOTCKOSKI

    A PAIXO DE CRISTO SEGUNDO SO MATEUS:

    ESTRATGIAS NARRATIVAS

    Dissertao apresentada em cumprimento s exigncias do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio, para obteno do grau de Mestre. rea de concentrao: Linguagens da Religio Orientador: Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira

    SO BERNARDO DO CAMPO

    2013

  • FICHA CATALOGRFICA W912p

    Wotckoski, Ricardo Boone A paixo de Cristo segundo So Mateus: estratgias narrativas / Ricardo Boone Wotckoski.-- So Bernardo do Campo, 2013. 101fl. Dissertao (Mestrado em Cincias da Religio) Faculdade de Humanidades e Direito, Programa de Ps Cincias da Religio da Universidade Metodista de So Paulo, So Bernardo do Campo Orientao de: Paulo Augusto de Souza Nogueira 1. Bblia N.T. Mateus Crtica e interpretao 2. Jesus Cristo Paixo e morte I. Ttulo CDD 232.96

  • A dissertao de mestrado intitulada: A PAIXO DE CRISTO SEGUNDO SO MATEUS:

    ESTRATGIAS NARRATIVAS, elaborada por RICARDO BOONE WOTCKOSKI, foi

    apresentada e aprovada em 19 de setembro de 2013, perante a banca examinadora composta

    por Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira (Presidente/UMESP), Profa. Dra. Ana Lcia

    Trevisan (Titular/UMESP), Prof. Dr. Jos Luiz Izidoro (Titular/CES-JF).

    Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira Orientador e Presidente da Banca Examinadora

    Prof. Dr. Helmut Renders Coordenador do Programa de Ps-Graduao

    Programa: Ps-Graduao em Cincias da Religio

    rea de Concentrao: Linguagens da Religio

    Linha de Pesquisa: Teologia das Religies e Cultura

  • Dedico este trabalho minha famlia,

    em especial, minha esposa Lilian

    e filhos Patrick e Paulo Roberto,

    que me apoiaram e incentivaram

    em todas as fases desse projeto.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, Senhor e Doador de toda boa ddiva.

    CAPES, pelo suporte financeiro que ancorou esse projeto.

    Ao Claretiano Centro Universitrio, pelo apoio fundamental ao cumprimento das atividades

    acadmicas do curso.

    Ao Instituto Ecumnico de Ps-Graduao (IEPG), pela acolhida durante o perodo de

    cumprimento dos crditos do curso.

    Ao corpo administrativo da Universidade Metodista de So Paulo, pelo atendimento sempre

    generoso e convvio amistoso.

    Ao Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira, pela dedicao e contribuies valiosas.

    Prof.a Dr.a Ana Lcia Trevisan, pelas importantes contribuies ao enriquecimento deste

    trabalho de pesquisa.

    Aos professores do Programa, pelo conhecimento e experincia compartilhados.

    Aos colegas de curso, pelo convvio fraterno e contribuies indelveis minha formao

    humana.

    minha famlia, pela compreenso nas ausncias e apoio ao tempo dedicado pesquisa.

  • Assim como em toda experincia real, tambm na experincia literria que d a conhecer pela primeira vez uma obra at ento desconhecida h um saber prvio, ele prprio um momento dessa experincia, com base no qual o novo de que tomamos conhecimento faz-se experiencivel, ou seja, legvel, por assim dizer, num contexto experiencial (JAUSS, 1994, p. 28).

  • WOTCKOSKI, Ricardo Boone Wotckoski. A paixo de Cristo segundo So Mateus: estratgias narrativas. So Bernardo do Campo. 2013. 101 p. Dissertao (Mestrado em Cincias da Religio), Faculdade de Humanidades e Direito Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio da Universidade Metodista de So Paulo, So Bernardo do Campo.

    RESUMO

    A literatura um tipo de conhecimento que faz uso da palavra com a finalidade de projetar realidades possveis. Para tanto, a mimese literria tem na experincia vivencial a verossimilhana que torna possvel a apreenso da obra literria como fenmeno interpretativo. Nesse processo de composio, o gnero literrio converte-se no conjunto de convenes que o autor se vale para fazer-se inteligvel a seu pblico. As narrativas bblicas e, em especial, o Evangelho Segundo So Mateus, possuem elementos que permitem sua leitura como obras literrias prprias da Antiguidade, cujas estratgias narrativas se mostram construtoras de representao verossmil da realidade. Para tanto, o narrador do Evangelho Segundo So Mateus utilizou-se daquelas convenes que se conformavam ao horizonte de expectativas de seu pblico e que articulam experincias advindas da literatura greco-romana e da literatura judaica. No caso da Paixo de Cristo Segundo So Mateus, o narrador empreende um conjunto de estratgias narrativas que favorecem sua conduo da leitura da narrativa de acordo com sua perspectiva. Nesse processo, vale-se de uma estrutura que combina a biografia greco-romana quela j consagrada na literatura bblica. Dessa forma, a Paixo de Cristo nos apresentada como parte final da histria, numa perspectiva paradigmtica e, ao mesmo tempo, como realizao das Escrituras, que figuram e profetizam a respeito de Jesus e a natureza redimensionadora e universalizadora da salvao.

    Palavras-chave: Bblia e Literatura. Evangelho Segundo So Mateus. Gneros Literrios. Paixo de Cristo. Recursos Narrativos.

  • WOTCKOSKI, Ricardo Boone Wotckoski. A paixo de Cristo Segundo So Mateus: estratgias narrativas. So Bernardo do Campo. 2013. 101 p. Dissertao (Mestrado em Cincias da Religio), Faculdade de Humanidades e Direito Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio da Universidade Metodista de So Paulo, So Bernardo do Campo.

    ABSTRACT

    Literature is a kind of knowledge that makes use of the word in order to project possible realities. Therefore, mimesis has in literary life experience verisimilitude that makes it possible to grasp the literary phenomenon as interpretive. In the process of composition, the literary genre becomes the set of conventions that the author uses to make himself intelligible to his audience. Biblical narratives and in particular, the Gospel According to St. Matthew, have elements that allow their own reading as literary works of antiquity, whose narrative strategies are shown construction of believable representation of reality. To this end, the narrator of the Gospel According to St. Matthew used those conventions that conformed to the horizon of expectations of your audience and articulate experiences arising from the Greco-Roman literature and Jewish literature. In the case of Christ's Passion According to St. Matthew, the narrator undertakes a set of narrative strategies that favor its conduct of reading the narrative according to your perspective. In this process, it is a structure that combines the Greco-Roman biography to that already established in biblical literature. Thus, the Passion of Christ is presented as the final part of the story, a paradigmatic perspective and at the same time as carrying out the Scriptures, that appear and prophesy about Jesus and resizeing and universalizing nature of salvation. Keywords: Bible and Literature. Gospel According to St. Matthew. Literary genres. Passion of the Christ. Narrative features.

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Ocorrncias do verbo (entregar) em Mateus 26-27...................

    52

    Quadro 2 Os eventos da Paixo e seus marcadores moldurais.....................................

    68

    Quadro 3 As situaes de conflito, personagens e desfechos dos eventos da Paixo...

    69

    Quadro 4 Contedo exclusivo do relato da Paixo Segundo Mateus...........................

    74

  • SUMRIO

    INTRODUO .................................................................................................. 13 1 BBLIA E LITERATURA: CONCEITOS FUNDAMENTAIS........................

    16

    1.1 INTRODUO................................................................................................... 16 1.2 LITERATURA: CONCEITOS E ESPECIFICIDADES......................................

    16

    1.2.1 O que Literatura?............................................................................................ 17 1.2.2 A Questo dos Gneros Literrios.....................................................................

    18

    1.2.3 A Representao do Real na Literatura............................................................. 21 1.3 A BBLIA COMO LITERATURA: A REPRESENTAO DO REAL NA PERSPECTIVA DAS NARRATIVAS BBLICAS....................................................

    23

    1.4 O EVANGELHO SEGUNDO SO MATEUS COMO GNERO LITERRIO...............................................................................................................

    33

    1.4.1 A Biografia na Antiguidade Greco-Romana..................................................... 34 1.4.2 Os Evangelhos Cannicos e a Questo do Gnero Literrio............................ 35 1.4.2.1 O Evangelho Segundo So Mateus como ................................... 37 1.5 RESUMO............................................................................................................. 38 2 A PAIXO DE CRISTO SEGUNDO SO MATEUS: ANLISE LITERRIA.............................................................................................................

    41

    2.1 INTRODUO................................................................................................... 41 2.2 TRADUO DOS CAPTULOS 26-27 DE SO MATEUS.............................

    41

    2.2.1 A Paixo de Cristo Segundo So Mateus.......................................................... 42 2.3 ANLISE DO ENREDO: A NARRATIVA EM MOVIMETNO........................

    51

    2.3.1 Jesus em Betnia............................................................................................... 54 2.3.2 O Contrato de Judas com os Principais Sacerdotes ......................................... 56 2.3.3 Preparativos e Celebrao da Ceia Pascal......................................................... 57 2.3.4 Jesus Prediz seu abandono e a Negao de Pedro............................................ 59 2.3.5 Jesus no Jardim do Getsmani.......................................................................... 60 2.3.6 Jesus Perante o Sindrio e a Negao de Pedro................................................ 62

  • 2.3.7 Jesus Perante Pilatos e a Morte de Judas.......................................................... 63 2.3.8 A Crucificao e a Morte de Jesus.................................................................... 65 2.3.9 A Paixo de Cristo em Mateus: Estratgias Narrativas.....................................

    67

    2.4 A TEMATIZAO DA PAIXO DE CRISTO EM SO MATEUS: ONTEM E HOJE......................................................................................................................

    72

    2.5 RESUMO............................................................................................................. 80 3 A PAIXO DE CRISTO NO EVANGELHO SEGUNDO SO MATEUS: CONTEXTUALIZAO.......................................................................................

    83

    3.1 INTRODUO................................................................................................... 83 3.2. O EVANGELHO SEGUNDO SO MATEUS COMO NARRATIVA: ESPECIFICIDADES.................................................................................................

    83

    3.3 A CENTRALIDADE DA PAIXO DE CRISTO NO EVANGELHO SEGUNDO SO MATEUS......................................................................................

    88

    3.4 RESUMO............................................................................................................. 91 CONSIDERAES FINAIS.................................................................................. 93 REFERNCIAS....................................................................................................... 96 OBRAS CONSULTADAS....................................................................................... 99

  • INTRODUO

    A Bblia, coleo de livros escritos originalmente em hebraico, aramaico e grego,

    rene textos de diversos autores, que viveram em diferentes perodos da histria da Palestina e

    proximidades, fazendo uso e combinando gneros e estilos literrios bem variados. Nela,

    portanto, encontramos textos em prosa e em versos, contendo: narrativas, leis, poesias,

    literatura sapiencial, profecias, epstolas e cartas, literatura apocalptica, dentre outros.

    Foi a coleo desses variados gneros e tipos literrios que deu origem ao cnon da

    Bblia hebraica para o judasmo, Antigo Testamento para o cristianismo, e do Novo

    Testamento, conjunto de escritos originrios do cristianismo do primeiro sculo que,

    paulatinamente, foram inseridos no cnon cristo e que, ao lado do Antigo Testamento,

    vieram a compor sua Bblia Sagrada.

    Da variedade de textos religiosos judaicos circulantes na Antiguidade, os judeus

    reuniram em seu cnon apenas os escritos em lngua hebraica e aramaica, excluindo aqueles

    redigidos fora da Palestina, os chamados deuterocannicos. As tradies protestantes, na

    mesma direo, aceitaram apenas os livros da Bblia hebraica no cnon de seu Antigo

    Testamento. J a tradio Catlica Apostlica Romana preservou os deuterocannicos,

    entendendo-os como literatura prpria edificao espiritual. A Bblia figura, ento, entre os

    cristos, como livro sagrado, cuja autoria comporta dupla origem: divina e humana. Divina no

    seu contedo teolgico; humana, na forma de articular esse conhecimento de modo inteligvel

    a seu pblico.

    Em decorrncia de seu carter sagrado, a Bblia, durante muitos sculos, foi lida numa

    perspectiva distinta de como se leem outras obras literrias. Interessava aos seus estudiosos a

    descoberta da mensagem divina contida em seu texto, todavia, muitas vezes, fazendo-se uso

    de abordagens que nasceram dentro das diferentes tradies crists e que desconsideravam a

    natureza literria de seus textos.

    Por outro lado, os estudiosos da literatura pouca ateno dispensaram Bblia, vista

    como livro da religio e, portanto, de valor literrio questionvel. Esse cenrio mudou, no

    sculo XIX, quando ganhou impulso em crculos teolgicos o estudo da Bblia referenciado

    pelo Mtodo Histrico-Crtico, que procurou imprimir um carter cientfico anlise da

    Bblia.

  • No que diz respeito aos Evangelhos, a Crtica das Formas foi a abordagem utilizada

    com frequncia para atender demanda por uma pesquisa pautada por critrios cientficos da

    Bblia. No entando, sua tnica no repousava ainda sobre a abordagem literria da Bblia, mas

    na busca pelas tradies orais e escritas que, harmonizadas nos Evangelhos, deram origem

    sua redao final.

    Para a Crtica das Formas, os pequenos gneros literrios harmonizados pelos

    Evangelhos visavam a atender necessidades especficas das comunidades a que estavam

    vinculadas e no a registrar a vida de Jesus tal qual teria realmente se dado. Assim, concluiu-

    se que os Evangelhos no passariam de uma tentativa artificial de articular as diferentes

    tradies orais a respeito de Jesus, que circulavam entre as comunidades crists primitivas e

    que, consequentemente, seriam desprovidos de qualquer valor histrico. A investigao da

    Bblia nesses termos, portanto, tinha fins historicistas, o que resultou na concluso de que os

    evangelhos careceriam de credibilidade.

    No sculo XX, no entanto, as pesquisas a respeito da linguagem e as novas abordagens

    literrias influenciaram consideravelmente o estudo da literatura bblica, propondo sua

    anlise de modo integrado e valorizando sua literariedade. Essa tendncia permitiu inovaes

    no estudo da Bblia, lanando sobre essa um olhar que a considera patrimnio literrio

    modelador da cultura ocidental. A Nova Crtica teve papel fundamental nesse processo ao

    propor o estudo do texto literrio como um objeto em si e contribuiu para despertar o interesse

    pelo estudo da Bblia como literatura.

    Nesse novo cenrio, diversos estudiosos da literatura se mostraram propensos leitura

    da Bblia nesses termos. A. Auerbach (1971), por exemplo, traou um comparativo entre a

    literatura clssica e a Bblia, chegando concluso de que esta rica em motivos e efeitos que

    imprimem em seus textos literariedade. Northrop Frye (2004), na mesma direo, argumenta

    que foi a Bblia mais que a tradio clssica que influenciou os escritores da literatura

    mundial na estruturao de suas obras. De posicionamento semelhante, Robert Alter e Frank

    Kermode (1997) pontuam que a Bblia, alm de conter boa literatura, a matriz de diferentes

    gneros da literatura ocidental. E. Auerbach (1971), N. Frye (2004), R. Alter e F.

    Kermode (2007), portanto, so representativos daquela parcela da crtica

    literria que prope uma revitalizao do estudo da Bblia por meio de sua

    leitura segundo categorias literrias.

  • Nesta pesquisa, voltaremos nossa ateno Bblia na perspectiva apontada pelos

    autores citados no pargrafo anterior. Para tanto, procederemos a anlise literria da narrativa

    da Paixo de Cristo conforme o Evangelho Segundo So Mateus.

    No primeiro captulo, explicitaremos os conceitos e referenciais que suportam nossa

    pesquisa. Num primeiro momento, apresentaremos os conceitos de literatura e gnero literrio

    com os quais a presente pesquisa dialoga. Na sequncia, pontuaremos a importncia que tem

    o gnero literrio tanto para quem produz como para quem recebe a obra literria. Em seguida,

    abordaremos a relao entre realidade e fico na obra literria a partir do conceito de mimese

    literria e sua implicao para a interpretao de uma obra dessa natureza. Feitas essas

    consideraes iniciais, voltaremos nossa ateno aos referenciais metodolgicos que

    orientaro nossa anlise da Paixo Segundo So Mateus a partir de categorias literrias. Por

    fim, discutiremos a questo do gnero literrio a que o Evangelho Segundo So Mateus se

    articula em sua estrutura discursiva.

    No segundo captulo, aplicaremos os conceitos e referenciais indicados no

    captulo anterior. Iniciaremos vertendo para a lngua portuguesa o original grego da Paixo de

    Cristo em Mateus, que corresponde aos captulos vinte e seis e vinte e sete desse Evangelho.

    Na sequncia, comentaremos o enredo, destacando aqueles recursos narrativos que colaboram

    para a conduo da interpretao da narrativa. Depois, destacaremos aquelas especificidades

    do Evangelho Segundo So Mateus que o diferenciam dos demais sinticos e que, portanto,

    indicam de modo explcito a perspectiva com que seu narrador nos apresenta a paixo e morte

    de Jesus.

    No captulo trs, voltaremos nossa ateno Paixo de Cristo enquanto parte

    de um enredo maior, que o Evangelho Segundo So Mateus e sua centralidade no processo

    de interpretao da realidade figurada em sua composio lingustica.

    Por fim, na concluso, sintetizaremos os resultados colhidos com essa atividade de

    anlise, destacando sua aplicabilidade e relevncia para os estudos acadmicos e religiosos da

    Bblia.

  • 1 BBLIA E LITERATURA: CONCEITOS FUNDAMENTAIS

    1.1 INTRODUO

    O presente captulo tem por objetivo delimitar o embasamento terico-metodolgico

    que orientar nossa anlise da Paixo de Cristo conforme narrada no Evangelho Segundo So

    Mateus. Nele investigaremos a plausibilidade de se concretizar tal anlise das narrativas

    bblicas a partir de categorias literrias.

    Para tanto, iniciaremos nossa investigao pela conceituao de literatura com a qual

    nos voltaremos narrativa bblica em estudo. Na sequncia, nosso esforo se dar no sentido

    de explicitar o conceito de gnero a que esta pesquisa se vincula e sua importncia para a

    atividade de anlise literria.

    Em seguida, nossa ateno se voltar questo da Bblia como literatura e a

    aplicabilidade da mimese literria a suas narrativas. Por fim, apresentaremos uma sntese da

    questo controversa do gnero literrio dos evangelhos, optando por aquela hiptese que

    melhor condiz com sua abordagem como literatura.

    1.2 LITERATURA: CONCEITOS E ESPECIFICIDADES

    Conceituar a literatura uma demanda que se mostra complexa, pois se configura

    como ponto controverso entre os estudiosos da Teoria Literria. questo to antiga e com

    respostas to variadas quanto a prpria literatura. Todavia, trata-se de uma indagao

    importante, pois o conceito de literatura que tomarmos por referncia em nossa pesquisa, por

    conseguinte, determinar quais textos julgaremos possurem os requisitos necessrios para

    figurarem entre os considerados literrios e com quais pressupostos deles nos aproximaremos

    em nossa anlise.

    Levando em considerao o acima exposto, antes de avanarmos em nossa pesquisa,

    indicaremos o conceito de literatura que nortear nossa anlise e, a partir desse, as

    especificidades que circundam o texto literrio e que consideramos fundamentais pesquisa

  • da Bblia como literatura e, em especial, do Evangelho Segundo So Mateus e sua narrativa

    da Paixo de Cristo.

    1.2.1 O que Literatura?

    A especulao em torno do conceito de literatura e de quais textos poderiam ser

    considerados literrios levou produo de inmeros tratados sobre o tema e deu origem a

    uma rea especfica dos estudos literrios: a Teoria Literria, tambm conhecida como Teoria

    da Literatura, Crtica Literria ou Potica.

    Assim, diferentes conceitos j foram forjados, procurando estabelecer a linha divisria

    entre o texto literrio e o no-literrio. J se pensou, por exemplo, que a literariedade estava

    relacionada inspirao potica de determinados escritores. Segundo essa concepo,

    determinados autores, dotados de certo estilo e formas definidas de composio, seriam os

    produtores por excelncia da literatura. A relao do texto com o seu tema tambm j foi

    critrio determinante a ser considerado na anlise da literariedade de determinado texto. Para

    essa concepo, haveria temas prprios literatura, enquanto outros no. Por fim, a relao do

    texto com o leitor passou a critrio balizador da literariedade de uma obra. Segundo essa

    concepo, o texto literrio teria como elemento marcadamente literrio a capacidade de

    produzir determinadas sensaes em seus leitores.

    Todavia, autor, forma, tema e leitor tomados isoladamente no so suficientes para

    determinar a literariedade de um texto. Alm disso, no respondem o que vem a ser a

    literatura, apenas indicam critrios adotados para julgar um texto como literrio ou no.

    Com relao a tais critrios tomados de forma isolada, na atualidade, definies

    fechadas em torno de formas, temas e sensaes esto superadas. Alm disso, entende-se que

    a literatura tende a se manifestar nas mais variadas formas. , portanto, fruto da capacidade

    criativa e imaginativa. a arte que faz da palavra sua matria-prima. Em outras palavras:

    [...] a Literatura fornece um tipo singular de experincia, porquanto trabalha com a imaginao, que produz formas de vida possvel e diferente da nossa. E tal experincia, colhida no contacto com a imaginao criadora do escritor, enriquece nossa maneira de ver a realidade, uma vez que a Literatura, caminhando antes da vida, lhe vai insinuando os rumos que pode trilhar. Desse modo, o homem se aperfeioa com a assimilao de experincias ficcionais antecipadoras ou reveladoras de dimenses e situaes para alm de seu mundo comum (MOISS, 2003, p. 43).

  • A literatura, portanto, pode ser entendida como um tipo de conhecimento. Como tal, a

    obra literria nos oferece uma forma de apreender que permite ao ser humano conhecer a si

    mesmo, o outro e o mundo pela apreenso de realidades possveis com as quais confrontado

    e desafiado a se posicionar.

    Se partirmos do pressuposto de que a literatura o conhecimento que utiliza a palavra

    de um modo particular, diverso de outras reas do conhecimento, precisaremos admitir que

    sua anlise exige uma abordagem e metodologia que levem em conta sua natureza e suas

    especificidades como saber.

    A preocupao em se estabelecer meios de se relacionar com o saber literrio j se

    fazia presente na Antiguidade. Plato (1997) e Aristteles (2005)1 , por exemplo, ocuparam-se

    com essa temtica ao proporem a diviso das obras literrias em gneros.

    Mas o que vem a ser os gneros literrios? Como veremos a seguir, trata-se de uma

    questo no menos complexa, mas fundamental para a Teoria Literria e, por isso, tem

    merecido a ateno de pensadores desde a Antiguidade.

    1.2.2 A Questo dos Gneros Literrios

    Segundo Massaud Moiss (2003, p. 65), os gneros literrios so formas estruturadas e

    ordenadas que guiam e orientam nossa leitura. Trata-se de uma questo fundamental, portanto,

    porque definir com que expectativas nos aproximamos de determinada composio literria.

    No entanto, o que parece ser um facilitador, apresenta-se como matria complexa e tornou-se

    talvez a maior problemtica da Teoria Literria.

    Aristteles (2005), a quem j fizemos referncia, lanou as bases da Teoria Literria

    ao propor uma diviso trplice da literrios em trs gneros: o pico, o lrico e o dramtico.

    Em linhas gerais, os gneros literrios permitiriam agrupar as obras em categorias conforme

    as peculiaridades em comum que compartilhassem em sua estrutura.

    Desde ento, essa temtica suscita acalorada discusso entre os historiadores da

    literatura. Tornou-se, por exemplo, a grande problemtica literria do sculo XVI. A

    1 Plato viveu entre 427-347 a.C. Aristteles entre 384-322 a.C.

  • controvrsia dominante girava em torno da imutabilidade dos gneros, por um lado, e da

    flexibilidade de sua categorizao, por outro (MOISS, 2003, p. 40). A questo s avanou

    significativamente com o alvorecer do Romantismo, em fins do sculo XVIII. A noo de

    gnero literrio como uma forma fixa e absoluta d lugar, ento, ideia de que os gneros

    literrios so cambiveis, abertos e geradores de subgneros e novos gneros.

    Como consequncia da reflexo em torno do tema, na atualidade, h uma tendncia

    em se conceber os gneros, no como categorias fechadas, mas como passveis de

    intercmbios geradores de novas possibilidades. Nessa perspectiva, os gneros seriam

    convenes das quais o autor de uma obra literria se vale para dialogar com o horizonte de

    expectativas do pblico de sua poca e, dependendo da amplitude de sua obra, com o pblico

    de pocas posteriores. Dessa forma, a literatura como acontecimento cumpre-se

    primordialmente no horizonte de expectativas dos leitores, crticos e autores, seus

    contemporneos e psteros, ao experienciar a obra. (JAUSS, 1994, p. 26).

    Com isso, no se quer dizer que se deva ignorar as convenes j experienciadas nas

    obras anteriores. Pelo contrrio, para que o autor consiga fazer-se entender h de considerar o

    j experienciado e, assim, a partir do estabelecido, projetar novas perspectivas.

    Assim como em toda experincia real, tambm na experincia literria que d a conhecer pela primeira vez uma obra at ento desconhecida h um saber prvio, ele prprio um momento dessa experincia, com base no qual o novo de que tomamos conhecimento faz-se experiencivel (sic), ou seja, legvel, por assim dizer, num contexto experiencial. Ademais, a obra que surge no se apresenta como novidade absoluta num espao vazio, mas, por intermdio de avisos, sinais visveis e invisveis, traos familiares ou indicaes implcitas, predispe seu pblico para receb-la de uma maneira bastante definida. Ela desperta a lembrana do j lido, enseja logo de incio expectativas quanto a meio e fim, conduz o leitor a determinada postura emocional, e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral de compreenso vinculado, ao qual se pode, ento e no antes disso -, colocar a questo acerca da subjetividade da interpretao e do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores (JAUSS, 1994, p. 28).

    Essa proposio reitera a necessidade de se articular a obra literria a um gnero antes

    de sua anlise, pois, captar a ateno do leitor por meio de uma conveno que se articula ao

    gnero, estilo e forma, impe ou mesmo sugere um horizonte de expectativas. Para Jauss

    (1994), essa objetivao do horizonte de expectativas pode ser obtida mesmo que

    implicitamente por meio de trs fatores:

  • a partir de normas conhecidas ou da potica imanente ao gnero; em segundo, da relao implcita com obras conhecidas do contexto histrico-literrio; e, em terceiro lugar, da oposio entre fico e realidade, entre a funo potica e a funo prtica da linguagem, oposio esta que, para o leitor que reflete, faz-se sempre presente durante a leitura, como possibilidade de comparao [] (JAUSS, 1994, p. 29).

    Dessa forma, a capacidade de determinada obra alcanar o horizonte de expectativas

    de seu pblico determinar a sua literariedade. Quanto maior a capacidade da obra de atender

    e superar esse horizonte de seu pblico, tambm o ser com relao ao carter esttico. E

    quando a investigao do modelo esttico inverificvel explicitamente na obra, torna-se

    necessria sua investigao indireta, ou seja, entend-la a partir do rol de obras conhecidas do

    pblico de sua poca.

    H de se considerar neste ponto a mediao que se estabelece na oposio entre o

    velho e o novo, que permite ao pblico superar seu horizonte de expectativas em direo a

    novas respostas questes antigas. Processo esse que nem sempre se d de imediato, mas

    pode ter lugar em pocas posteriores, quando a obra atinge um pblico cujo horizonte de

    expectativas permitir tal experincia. Ou seja:

    Pode acontecer a de o significado virtual de uma obra permanecer longamente desconhecido, at que a evoluo literria tenha atingido o horizonte no qual a atuao de uma forma mais recente permita, ento, encontrar o acesso compreenso da mais antiga incompreendida (JAUSS, 1994, p. 44).

    A novidade, portanto, no repousa exclusivamente sobre o aspecto estilstico da obra

    literria, mas tambm sobre o histrico. Diz respeito a quais momentos histricos fazem a

    diferena, no s esttica, mas tambm no contedo, ampliando o entendimento do antigo.

    Nesse contexto, Jauss (1994, p. 49) introduz ao debate o conceito de reocupao,

    que pode emergir tanto do interior da obra quanto do exterior histrico-social. Articula-se

    nesse ponto literatura sua funo social, que consiste na percepo do mundo por meio da

    leitura.

    O horizonte de expectativa da literatura distingue-se daquele da prxis histrica pelo fato de no apenas conservar as experincias vividas, mas tambm antecipar possibilidades no concretizadas, expandir o espao limitado do comportamento social rumo a novos desejos, pretenses e objetivos, abrindo assim novos caminhos para a experincia futura (JAUSS, 1994, p. 52).

  • A atualizao da forma literria, portanto, s ter xito pleno se contribuir para novas

    experincias emancipadoras. Ou seja:

    Ela capaz tambm de possibilitar uma nova percepo das coisas pr-formando o contedo de uma experincia revelado primeiramente sob forma literria. A relao entre literatura e leitor pode atualizar-se tanto na esfera sensorial, como presso para a percepo esttica, quanto tambm na esfera tica, como desafio reflexo moral. A nova obra literria recebida e julgada tanto em seu contraste com o pano de fundo oferecido por outras formas artsticas, quanto contra o pano de fundo da experincia cotidiana de vida (JAUSS, 1994, p. 53).

    Portanto, como arte da representao, a literatura pode contribuir para a vida social

    quando nos permite compreender sua funo emancipadora do ser humano. Mas em que

    consiste essa representao? Seria uma reproduo ou imitao do cotidiano e suas mltiplas

    situaes e conflitos que se encadeiam nos eventos que assinalam a vida da pessoa humana?

    Na sequncia, delimitaremos o entendimento de representao aplicado literatura e do qual

    nos valeremos na anlise da Paixo de Cristo Segundo So Mateus.

    1.2.3 A Representao do Real na Literatura

    A ideia da literatura como representao ou mimese da realidade tambm acompanha a

    Crtica Literria desde a Antiguidade. Plato e Aristteles, por exemplo, identificam-na como

    elemento constitutivo da criao literria. Todavia, enquanto Plato (1997, p. 336) a emprega

    como imitao do mundo das ideias e, portanto, aplicvel a toda a atividade humana,

    Aristteles (2005, p. 242-243) a utiliza como elemento esttico. Desde ento, o conceito de

    mimese inaugurado por Aristteles constantemente retomado, interpretado e aplicado

    anlise literria, todavia, nem sempre unnime em sua interpretao.

    Para Costa (2003, p. 6), por exemplo, com Aristteles, a mimese deixa de ser mera

    imitao da experincia cotidiana para tornar-se o elemento emancipador da literatura como

    fonte de conhecimento.

    De ontolgica, a arte passa a ter, com ele, uma concepo esttica, no significando mais imitao do mundo exterior, mas fornecendo possveis interpretaes do real atravs de aes, pensamentos e palavras, de experincias existenciais imaginrias. Afastada da perfeio, da divindade e da verdade primignia, a mmese afirma-se como a representao do que poderia ser, assumindo o carter de fbula.

  • O critrio do verossmil, que merece a crtica de Plato por ser apenas iluso da verdade, torna-se, com Aristteles, o princpio que garante a autonomia da arte mimtica (COSTA, 2003, p. 6).

    Na atualidade, essa questo passa pelo embate que se trava na tentativa de conceituar a

    realidade, distinguindo-a do que seria imaginrio e fantasioso e, por conseguinte, indigno de

    crdito. Todavia, essa distino entre factual e fico, especialmente no que se refere

    historiografia e a literatura, questionada hoje pela nova histria, que as entende como

    pontos de vista socialmente situados.

    Assim, segundo essa perspectiva, o que percebemos da realidade so representaes de real, textos sempre parciais que interagem formando quadros mutveis, sendo que a nenhuma dessas imagens podemos chamar Verdade e Realidade (pensadas de uma maneira absoluta). A realidade constitui-se, assim, como uma rede de representaes que d um sentido ao mundo tornando-o compreensvel ao olhar humano (um sentido sempre fragmentado e efmero). E da trama desse tecido, que as diversas formas de arte, as narrativas ficcionais e at mesmo as narrativas historiogrficas vo retirar a matria para a composio de seus textos (VALESKA, 2003, p. 50).

    Portanto, quer nos deparemos com um texto considerado historiogrfico ou de fico,

    estamos diante de uma representao que permite ao receptor significar o mundo a partir de

    uma perspectiva narrativa. A mimese, nesse contexto, articula-se verossimilhana, ou seja,

    diz respeito a uma realidade esteticamente manifesta na obra literria por meio de uma

    coerncia aceitvel ao leitor.

    Todavia, a verossimilhana no se caracteriza como mera imitao do mundo

    cotidiano, mas resulta de um processo especfico de construo a partir de determinadas

    regras e visando a determinados efeitos (COSTA, 2003, p. 53). Conforme argumenta Feron

    (2012, p. 51), a mimese se estabelece a partir da estrutura que articula os elementos internos

    da obra, permitindo a participao do leitor no processo de significao.

    O filsofo francs Paul Ricoeur (1994) tambm se ocupou com essa temtica. Para o

    autor, a mimese opera em trs estgios, que ele chama, em sua obra intitulada Tempo e

    Narrativa (1994), de mimese I, mimese II e mimese III. A primeira diria respeito

    compreenso de mundo comum ao escritor e ao leitor. A segunda, criao literria

    propriamente dita e que se articula fundamentada na experincia vivencial presente na

  • mimese I. A terceira, articula-se em torno da participao do leitor no processo de

    interpretao da obra.

    Dessa forma, a narrativa (mimese II) serve de mediao entre o tempo cotidiano

    (mimese I) e o tempo do possvel (mimese III). Em sntese: o texto um conjunto de

    instrues que o leitor individual ou pblico executa de modo passivo ou criador. O texto s

    se torna obra na interao entre texto e receptor. (RICOEUR, 1994, p. 118).

    A mimese, portanto, concretiza-se como elemento de transformao do velho em

    novas possibilidades interpretativas. Processo que Costa (2003, p. 71) sintetiza nos seguintes

    termos: O princpio estruturador dessa nova ordem o verossmil (interno), o qual permite

    que a engrenagem ficcional construa-se como um todo, com a unidade pensvel de

    possibilidades referenciais.

    So-nos apresentados, na obra literria, portanto, mundos possveis. Na narrativa, um

    mundo possvel consiste, conforme o conceito apresentado por Umberto Eco (2008, p. 109),

    em um conjunto de indivduos dotados de propriedades. Visto que algumas dessas

    propriedades ou predicados so aes, um mundo possvel pode ser visto tambm como um

    curso de eventos.

    Vale ressaltar a ttulo de concluso deste tpico que, na literatura, dada

    materialidade dos eventos no prprio texto, a nfase recai no no contedo, mas no como nos

    apresentado em sua estrutura. No caso da narrativa, temos um narrador que escolhe o que,

    como e de que perspectiva nos contar a histria.

    Feitas essas consideraes, no prximo tpico abordaremos a plausibilidade da leitura

    da Bblia, especialmente suas narrativas, a partir de categorias literrias.

    1.3 A BBLIA COMO LITERATURA: A REPRESENTAO DO REAL NA

    PERSPECTIVA DAS NARRATIVAS BBLICAS

    A partir dos conceitos at aqui expostos, em que a literatura nos apresentada como

    um tipo de conhecimento que articula categorias tais como gnero, mimese e verossimilhana,

    possvel aplic-la s narrativas bblicas?

    Trata-se de um debate que suscita controvrsias entre telogos e crticos literrios. Por

    um lado, observa-se a desconfiana com que ambos trataram essa temtica ao longo dos

  • ltimos sculos. Magalhes (2000, p. 45), por exemplo, ao refazer o percurso do dilogo entre

    teologia e literatura, observa que, na Europa, sobretudo a partir do Iluminismo do sculo

    XVIII, a literatura buscou um distanciamento da religio. Para o autor, esse distanciamento se

    traduziu em uma trincheira.

    Em grande parte, o que temos aqui uma espcie de concorrncia entre teologia e literatura, entre religio e arte, entre esttica literria e tica religiosa, para estabelecer que campo de conhecimento humano estaria em melhores condies de representar a transcendncia humana, seus sonhos de superao e o desvelamento de suas intuies mais profundas (MAGALHES, 2000, p. 45).

    No contexto norte-americano, no entanto, a abordagem do tema tm conduzido a

    horizontes mais produtivos. A Bblia vista como um compendio de obras em que a

    criatividade literria e a capacidade esttica foram marcos de seus redatores. Em outros

    termos, a tentativa de colocar as bases da f crist nos marcos no da tradio crist e do

    dogma eclesistico, mas da produo literria, da beleza potica, da operosidade esttica e da

    construo de estilos literrios refinados [...] (MAGALHES, 2000, p. 47).

    Nessa perspectiva, a Bblia tornou-se objeto de estudo a partir de categorias literrias,

    o que se traduz num ponto nem sempre pacfico para a teologia tradicional, pois, ao longo da

    histria do cristianismo, a Igreja tem providenciado os critrios pelos quais a Bblia deva ser

    lida e interpretada.

    Esse cenrio comeou a mudar no sculo XIX quando ganhou impulso em crculos

    teolgicos o estudo da Bblia referenciado pelo Mtodo Histrico-Crtico que, influenciado

    pelo Positivismo, procurou imprimir um carter cientfico atividade hermenutica. No que

    diz respeito aos Evangelhos, a Crtica das Formas foi a abordagem utilizada com frequncia

    para atender demanda por uma pesquisa cientificista da Bblia.

    A Crtica das Formas tem como pressuposto que as narrativas evanglicas resultam da

    harmonizao de diversas fontes orais que passaram por reedies at chegarem forma

    assumida no cnon bblico. Dessa forma, a atividade do exegeta consistiria em identificar as

    diferentes tradies harmonizadas na construo final do texto. Com esse processo, esperava-

    se desmitologizar, por exemplo, os Evangelhos e identificar em seu ncleo o Jesus histrico.

    Alm disso, a Crtica das Formas entendeu que os pequenos gneros literrios

    harmonizados pelos Evangelhos visavam a atender necessidades especficas das comunidades

  • a que estavam vinculados e no a registrar a vida de Jesus tal qual teria realmente se dado.

    Assim, concluiu-se que os Evangelhos no passariam de uma tentativa artificial de articular as

    diferentes tradies orais a respeito de Jesus que circulavam entre as comunidades crists

    primitivas e que, consequentemente, seriam desprovidos de qualquer valor histrico.

    Caberia investigao do estudioso da Bblia, portanto, a busca pela historicidade da

    narrativa bblica e no de sua literariedade. A pesquisa dos eventuais gneros menores que

    comporiam a redao final dos Evangelhos objetivava, portanto, identificar aquilo que seria

    lendrio e o que efetivamente corresponderia aos fatos. Haveria, nas narrativas evanglicas,

    portanto, aquilo que diria respeito ao Jesus histrico (real) e ao Jesus da f (imaginrio).

    No que diz respeito ao valor literrio das narrativas, considerou-se que os evangelhos

    pertenceriam baixa literatura. Em outras palavras, uma literatura carente das tcnicas

    desejveis produo de uma literatura de qualidade (BULTMANN, 2000, p. 433).

    Em contrapartida, o interesse da Bblia como literatura impulsionado pela Nova

    Crtica americana, pergunta, no pela historicidade, mas pela tecitura do texto. Ao abordar a

    questo nessa perspectivas, encontramos crticos literrios que avaliam as narrativas bblicas

    como resultado da habilidade criativa e imaginativa de seus redatores em representar o real.

    Fundamental para esta abordagem da Bblia foi Erich Auerbach (1892-1957). Em

    Mimesis: a representao da realidade na literatura ocidental (1971), por exemplo, aponta para

    elementos importantes presentes nas narrativas bblicas que as diferenciam de outras

    produes literrias da Antiguidade e que as tornam inaugurais de um estilo em que o

    cotidiano trabalhado de modo a apresentar personagens verossmeis e complexos o

    suficiente para elevar a Bblia categoria de uma literatura modelar na forma de apresentar o

    real e, portanto, concretizar sua funo mimtica.

    Dessa forma, Auerbach (1971, p. 15) identifica nos personagens bblicos uma carga de

    individualidade que no se pode encontrar, por exemplo, na literatura homrica. Considera

    que a construo dos personagens nesses termos elemento singular das narrativas bblicas

    em geral. Segundo o autor:

    Humilhao e exaltao so muito mais profundas ou elevadas do que em Homero, e, fundamentalmente, andam sempre juntas [...] Percebe-se claramente como a ampliao da oscilao pendular est em relao com a intensidade da histria pessoal justamente as situaes extremas, nas quais somos abandonados ou ficamos desesperados alm de toda medida, nas quais, alm de toda medida, somos

  • felizes ou exaltados, conferem-nos, quando as superamos, um cunho pessoal que se reconhece como resultado de um intenso devir, de uma rica evoluo. [...] (AUERBACH, 1971, p. 15).

    E ainda:

    [...] os prprios seres humanos dos relatos bblicos so mais ricos em segundos planos do que os homricos; eles tm mais profundidade quanto ao tempo, ao destino e conscincia. Ainda que estejam quase sempre envolvidos num acontecimento que os ocupa por completo, no se entregam a tal acontecimento at o ponto de perderem a sua permanente conscincia do que lhes acontecera em outro tempo e em outro lugar; seus pensamentos e sentimentos tm mais camadas e so mais intrincados (AUERBACH, 1971, p. 9).

    Diferentemente da regra clssica em que o cotidiano e seus personagens s poderiam

    ser retratados de modo cmico, nas narrativas bblicas, o cotidiano e suas mltiplas

    possibilidades que fornecem os elementos necessrios representao do real de modo

    inovador e verossmil.

    Auerbach (1971, p. 17) observa em sua anlise que as narrativas bblicas se articulam,

    compondo um nico plano discursivo figural que une passado e futuro, produzindo uma

    unidade em que Deus o personagem principal, do primeiro ao ltimo livro da Bblia. O

    cotidiano ali vivenciado, portanto, contempla a realidade significada.

    [...] como consequncia da unidade de estrutura religioso-vertical, no podia surgir uma diviso consciente dos gneros literrios [lendrio e histrico]. Todos eles pertencem mesma ordem geral; tudo o que no pudesse ser encaixado nela, ainda que fosse mediante a interpretao, no tinha lugar algum [...] Assim, o Velho Testamento, enquanto se ocupa do acontecer humano, domina todos os trs mbitos: lenda, relato histrico e teologia histrica exegtica (AUERBACH, 1971, p. 17).

    As narrativas bblicas, portanto, conservam elementos que tornam possvel a

    representao da realidade, configurando-se como obras de alcance literrio. Dentre esses

    elementos, podemos citar como exemplo o realce de certas partes e o escurecimento de outras,

    que se configura como elemento sutil, mas importante recurso narrativo. Em outras palavras:

    [...] s acabado formalmente aquilo que nas manifestaes interessa meta da ao; o restante fica na escurido. Os pontos culminantes e decisivos para a ao so os nicos a serem salientados; o que h entre eles inconsistente; tempo e espao so indefinidos e precisam de interpretao; os pensamentos e os sentimentos permanecem inexprimidos: s so sugeridos pelo silncio e por discursos

  • fragmentrios. O todo, dirigido com mxima e ininterrupta tenso para um destino e, por isso mesmo, muito mais unitrio, permanece enigmtico e carregado de segundos planos (AUERBACH, 1971, p. 9).

    Para Auerbach (1971, p. 9), a observao de elementos tais como o realce de certos

    aspectos em detrimento de outros, a aparente falta de conexo entre eventos, as sugestes, a

    multiplicidade de planos, dentre outros, so importantes tcnicas que tornam as narrativas

    bblicas altamente alusivas e literariamente enriquecidas.

    Dessa forma, Auerbach (1971, p. 12) procura demonstrar, por meio de exemplos,

    como as narrativas bblicas apresentam elementos que as qualificam como literatura, cujo

    principal recurso a aluso, recurso esse que permitiu que as Escrituras fossem

    reinterpretadas como figura dos eventos narrados na literatura crist nascente do primeiro

    sculo do cristianismo. Nesse sentido, a interpretao figural:

    [..] estabelece uma relao entre dois acontecimentos ou duas pessoas, na qual um deles no s se significa a si mesmo, mas tambm ao outro e este ltimo compreende ou complementa o outro. Ambos os plos da figura esto separados temporalmente, mas esto, tambm, como acontecimentos ou figuras reais, dentro do tempo. [...] (AUERBACH, 1971, p. 62).

    Em Figura, obra anterior Mimesis, Auerbach j discutira o conceito de interpretao

    figural e sua aplicabilidade literatura bblica. Na referida obra, o autor demonstra a

    importncia que a interpretao figural teve na efetivao da mimese bblica. Foi por meio

    dela, por exemplo, que os cristos do primeiro sculo e seguintes estabeleceram uma relao

    direta das Escrituras 2 com o Novo Testamento. Uma relao de continuidade, visto que,

    mesmo que os personagens e eventos das Escrituras tiveram um significado prprio, tambm

    figuravam um segundo com abrangncia maior, no Novo Testamento (AUERBACH, 1997, p.

    46).

    Desse modo, eventos e personagens reais cumprem, na literatura bblica, uma funo

    espiritual, cujo sentido pleno se alcana por meio da interpretao. Pois:

    No s as figuras so provisrias, como so tambm a forma provisria de algo eterno e atemporal; apontam no s para o futuro concreto, mas tambm para algo

    2 Antigo Testamento para o cristianismo.

  • que sempre existiu e existir; apontam para algo que necessita de interpretao, que na verdade ser preenchido no futuro concreto, mas que j est presente, preenchido pela providncia divina, que no conhece diferenas de tempo. Esta dimenso eterna j est figurada nelas, que, dese modo, so ao mesmo tempo uma realidade fragmentria provisria e uma realidade eterna velada (AUERBACH, 1997, p. 51).

    A interpretao figural, portanto, apresenta-se como um elemento estruturador da

    realidade, no quela passada, nem a presente, mas a que se configura no mbito da

    interpretao. Portanto, nos escritos do cristianismo primitivo, sua presena fundamental

    para o estabelecimento do real. Parte da experincia vivida dentro da cultura, intermediada

    pela elaborao criativa de seus textos seguramente literrios e desemboca na interpretao de

    seus receptores. Todo processo conduzido pelas estratgias narrativas de seus autores, que

    providenciaram os elementos geradores de significados condizentes com o horizonte de

    expectativas de seu pblico.

    Com relao s estratgias narrativas dos autores bblicos, o crtico literrio norte-

    americano Robert Alter (2007) trouxe significativa contribuio. Para o autor, a literatura

    um tipo de conhecimento que faz uso de certo repertrio identificvel em suas diferentes

    construes literrias. E no caso das narrativas bblicas, seus redatores criaram um conjunto

    de tcnicas inovadoras e surpreendentemente flexveis para a representao imaginativa da

    individualidade humana (ALTER, 2007, p. 175).

    Tais tcnicas pressupem certo conceito de ser humano e de Deus que perpassa as

    narrativas bblicas. Ou seja:

    [...] toda pessoa criatura de um Deus onisciente, mas deixada ao sabor de sua incomensurvel liberdade; feita imagem de Deus por uma questo de princpio cosmognico, mas quase nunca como um fato tico perfeito; e cada exemplo individual desse complexo de paradoxos que se estende do znite ao nadir do mundo criado exige uma considerao especialmente perspicaz em sua representao literria (ALTER, 2007, p. 175).

    Alm disso, as narrativas bblicas articulam-se na perspectiva de que o homem vive

    num tempo de constante transformao e em constante e complexo relacionamento com Deus

    e com o prximo. Alter (2007, p. 42), ento, prope a fuso entre literatura e teologia, sendo

    que o entendimento desta depende totalmente da anlise literria da narrativa bblica, pois

    uma viso literria das operaes narrativas pode nos ajudar, mais que qualquer outra coisa,

  • a ver de que maneira essa percepo se traduz em histrias que exerceram influncia to

    poderosa e duradoura em nossa imaginao (ALTER, 2007, p. 43).

    Entende ainda que, como na literatura em geral, tambm a narrativa bblica trabalha

    com certas convenes em que:

    [...] um conjunto intrincado de acordos tcitos entre o artista e o pblico relacionados com a organizao interna da obra de arte medeia o complexo processo de comunicao da arte. O conhecimento das convenes nos permite identificar padres significativos, ou simplesmente agradveis, de repetio, simetria e contraste; diferenciar o verossmil do fantstico; compreender os sinais de orientao numa obra narrativa, verificar o que inovao e o que deliberadamente tradicional em cada nexo de criao artstica (ALTER, 2007, p. 79).

    Para Alter (2007, p. 27), portanto, foram convenes como essas que determinaram a

    escolha de palavras, motivos, personagens, aes e temas das histrias bblicas.

    Consequentemente, o autor prope uma metodologia de anlise que pressupe determinadas

    convenes implcitas nas narrativas bblicas, que ainda so perceptveis ao estudioso de

    nossos dias e que podem ser elucidativas. Assim, o autor defende, dentre outras possibilidades,

    a observao de quatro elementos geralmente articulados pelo narrador nas histrias bblicas;

    e que sintetiza nos seguintes termos:

    [...] refiro-me s numerosas modalidades de exame do uso engenhoso da linguagem, das variaes no jogo de idias, das convenes, dices e sonoridades, do repertrio de imagens, da sintaxe, dos pontos de vista narrativos, das unidades de composio e de muito mais; em suma, refiro-me ao exerccio daquela mesma ateno disciplinada que, por diversas abordagens crticas, tem iluminado, por exemplo, a poesia de Dante, as peas de Shakespeare, os romances de Tolsti (ALTER, 2007, p. 28-29).

    Embora no tenha a pretenso de ser a palavra final a respeito do tema, o autor

    apresenta a sua proposta como uma possibilidade na anlise das narrativas bblicas levando

    em considerao categorias literrias.

    Uma questo que o autor considera importante na anlise literria das narrativas

    bblicas, por exemplo, a economia de palavras:

    [...] tudo o que relatado essencial para a histria, mas certas pistas especiais so sugeridas pelo ritmo com que se descrevem as aes. Na narrao bblica do essencial, os verbos tendem a ocupar um lugar dominante, e, de vez em quando, nos deparamos com sbitas e densas concentraes ou sries ininterruptas de verbos,

  • geralmente ligados a um nico sujeito, indicando uma intensidade, rapidez ou atividade deliberada e obstinada [...] (ALTER, 2007, p. 126).

    Nesse sentido, o narrador funciona como instrumento de ordenao dos dilogos e de

    transio entre as unidades temticas centrais do texto. Em sntese:

    [...] descrever aes essenciais para o desenvolvimento do enredo (outros tipos de ao raramente so relatados), que no poderiam ser fcil ou adequadamente indicadas no dilogo; comunicar dados secundrios que, a rigor, muitas vezes no fazem parte do enredo, uma vez que no envolvem aes (isto , so dados de natureza essencialmente expositiva); repetir, confirmar, subverter ou focalizar afirmaes dos personagens, feitas em discurso direto (uma narrao presa ao dilogo) (ALTER, 2007, p. 121).

    A economia de detalhes a que est vinculada a narrao bblica se estende tambm

    caracterizao de seus personagens, geralmente indicada por aluses, o que requer um olhar

    minucioso do interprete para perceber as sutilezas que os redatores bblicos nos impem em

    suas narrativas. Tais sutilezas se articulam geralmente a tcnicas tais como:

    [...] a utilizao de palavras-chave temticas, a reiterao de motivos; a sutil definio de personagens, relaes e motivaes pelo dilogo; a explorao, especialmente nos dilogos, da repetio literal e da variao significativa; as mudanas de posio do narrador, da reticncia estratgica e sugestiva eventual sntese onisciente; o uso ocasional da montagem de fontes diferentes para captar a natureza multifacetada do sujeito ficcional (ALTER, 2007, p. 261).

    Nesse contexto, o narrador bblico, por exemplo, expe o personagem at o limite

    de sua intencionalidade, preservando sempre algum mistrio a ser revelado em tempo

    oportuno ou que fica a cargo do leitor impor suas prprias dedues a respeito. No faltam,

    nas narrativas bblicas, no entanto, possibilidades interpretativas para aes e atitudes de seus

    personagens.

    Sua ndole pode ser revelada pelo relato das aes, da aparncia, dos gestos, da postura e da roupa que usam; por intermdio dos comentrios de outros personagens; pelo discurso direto, pelo monlogo narrado ou pelo monlogo interior; ou ainda pelas afirmaes do narrador sobre o modo de ser e as intenes dos personagens, que podem ser feitas de maneira categrica ou motivada pelo contexto (ALTER, 2007, p. 177).

  • Dessa forma, as histrias bblicas nos apresentam narradores oniscientes e em terceira

    pessoa, que partilham do conhecimento divino, mas extremamente seletivos e reticentes em

    alguns momentos em sua forma de nos apresentar as atitudes, motivaes e aes de seus

    personagens.

    Nessas narrativas em que o narrador se mostra seletivo e econmico, ganha relevncia

    o dilogo, do qual se torna dependente o narrador que o explica ou confirma numa espcie de

    paralelismo (ALTER, 2007, 102). Esses dilogos esto geralmente associados a eventos ou

    acontecimentos fundamentais ao enredo. Nesse caso, a narrativa desacelera, possibilitando

    que se observe:

    [...] a interao dos personagens ou grupos de personagens, com toda a sua carga de motivaes, objetivos, traos de personalidade, condicionamentos polticos, sociais ou religiosos, e significados morais e teolgicos que emanam de suas falas, gestos e atos (ALTER, 2007, p. 103).

    Os narradores bblicos, observa Alter (2007, 107), evitam o discurso indireto.

    Preferem que seus personagens expressem sua ao e reao nos eventos a que esto inseridos.

    Desse modo, sempre que um processo real de cogitar possibilidades, esmiuar sentimentos,

    ponderar alternativas ou tomar decises constitui o momento crtico do evento narrativo, usa-

    se o discurso direto. (ALTER, 2007, p. 108-109).

    Na narrativa bblica, portanto, o campo das aes levado ao nvel da fala. Assim, o

    no verbal verbalizado, convertendo-se numa tcnica para se alcanar o sentido mais

    profundo do texto. A isso articula-se a repetio de palavras ou de expresses que:

    [...] no raro ganha sabor, eminncia e relevncia temtica que no encontramos com facilidade nas outras tradies narrativas a que estamos acostumados. O recurso de repetio mais saliente o uso da leitwort3, na palavra-chave temtica, a fim de enunciar e desenvolver os significados morais, histricos, psicolgicos e teolgicos da histria (ALTER, 2007, p. 265).

    Mais que em outras culturas, as repeties se converteram, nas narrativas bblicas,

    numa conveno fundamental para se compreender sua temtica, pois:

    3 Termo difundido pelo filsofo judeu Martin Buber (1878-1965) para designar a tcnica de repetio de palavras usada pelos escritores da Bblia Hebraica.

  • A narrativa bblica nos mostra, assim, um sistema cuidadosamente integrado de repeties, algumas baseadas na recorrncia de fonemas, palavras ou pequenas frases, outras ligadas a aes, imagens e idias que fazem parte do universo dos relatos que reconstrumos como leitores, mas que no so necessariamente urdidos na textura verbal da narrativa. verdade que esses dois tipos de repetio produzem efeitos diferentes, mas os escritores hebreus os usaram muitas vezes juntos para reforar um ao outro e criar um todo ordenado (ALTER, 2007, p. 147).

    Dessa forma, nas narrativas bblicas, o leitor pode se deparar, por exemplo, com a

    repetio de radicais de certas palavras, criando-se um jogo fontico, semntico que remete ao

    tema da histria. Ou recorrncia de uma imagem, ou de uma ao ou de um objeto, ou de

    uma ideia que assumem um valor simblico ou, no caso desta ltima, de ordem moral,

    psicolgico, legal, poltico, histrico ou teolgico (ALTER, 2007, p. 147).

    Outra conveno comum s narrativas bblicas a recorrncia do que Alter chama de

    cena-padro.

    Trata-se de um episdio que se desenvolve em um momento crucial da trajetria do heri e que se compe de uma sequncia fixa de motivos. quase sempre associada a determinados temas recorrentes; a cena-padro no vinculada a Leitwrter especficas, embora um termo ou uma expresso recorrentes possam ajudar a marcar a presena de uma cena-padro especial (por exemplo, a anunciao do nascimento do heri, os esponsais beira do poo, a provao no deserto) (ALTER, 2007, p. 148).

    Desse modo, determinados temas so frequentemente vinculados a cenas que revelam

    similaridade. Um exemplo dessa recorrncia o nascimento do heri de uma mulher estreo

    ou por algum outro motivo impedida de dar luz. Essa forma de lidar com determinados

    temas so essenciais para explicar algumas cenas que se apresentem, num primeiro momento,

    sem sentido ao leitor de nossos dias, mas so aluses que permitem o emprego da

    interpretao figural.

    Nas narrativas bblicas, portanto, a linguagem assume uma coerncia que se baseia na

    relao intricada da palavra com a realidade que constri e na qual se converte. Para Alter

    (2007, p. 233), em suma, pode-se agrupar as convenes utilizadas pelos redatores bblicos na

    construo dessas intricadas realidades verbais em quatro categorias: palavras, aes, dilogos

    e narrao. Sendo que as aes, em geral, de algum modo so remetidas ao plano verbal,

    geralmente ao plano do discurso direto.

  • A anlise das narrativas bblicas a que o autor desafia o estudioso da Bblia, portanto,

    pressupe uma complexidade literria maior que aquela alcanvel pela anlise terminolgica

    de vocbulos isolados, para deles extrair o significado teolgico da composio literria.

    A partir dessas consideraes, a presente pesquisa trabalhar com a hiptese da

    plausibilidade de se analisar as narrativas bblicas segundo categorias literrias. Pois,

    conforme argumentam Alter e Kermode (1997, p. 12):

    As foras das narrativas do Gnesis ou da histria de Davi, as complexidades e refinamentos das narrativas da Paixo poderiam ser estudadas por mtodos desenvolvidos na crtica literria secular. A eficincia dessa nova abordagem [...] tem sido amplamente demonstrada. A crtica bblica profissional foi profundamente afetada por ela; porm, o que ainda mais importante, o leitor em geral tem agora diante de si uma nova concepo da Bblia como obra de grande fora e autoridade literria, obra sobre a qual se pode perfeitamente acreditar que tenha podido moldar as mentes e vidas de homens e mulheres inteligentes por mais de dois mil anos.

    Dessa forma, tambm o Evangelho Segundo So Mateus e, em especial, a Paixo de

    Cristo nele relatada, integra o conjunto de narrativas bblicas que Auerbach (1971) e Alter

    (2007) propem abordagens literrias. Pois, sua anlise como literatura pode mostrar-se

    reveladora da mimese literria.

    Feitas essas consideraes, convm voltarmos nossa ateno questo do gnero

    literrio a que se vincula o Evangelho Segundo Mateus para, em seguida, procedermos sua

    anlise literria.

    1.4 O EVANGELHO SEGUNDO SO MATEUS COMO GNERO LITERRIO

    A questo da categorizao da literatura em gneros no secundria, pois, como j

    mencionamos neste captulo, orienta autor e pblico na composio e na recepo do texto.

    Uma vez que nossa anlise tem como pressuposto a literariedade da narrativa bblica, torna-se

    mister uma reflexo a respeito do gnero literrio a que se vinculam os evangelhos e, em

    especial, o Segundo So Mateus.

    No que se refere aos gnero literrio dos evangelhos, at fins do sculo XIX e incio

    do sculo XX, havia certo consenso de que estes compunham um gnero que florescera no

    seio do cristianismo primitivo. o caso, por exemplo, de Bultmann (2000, p. 430), para quem

  • os evangelhos se estruturariam em termos de um gnero utilizado pela primeira vez pelo

    redator do Evangelho Segundo So Marcos.

    Em tempos recentes, no entanto, o consenso outrora existente se diluiu frente a

    estudos defensores da plausibilidade de se considerar os evangelhos como biografias greco-

    romanas (), gnero que circulou, na Antiguidade, em paralelo historiografia, mas distinta

    desta no que se refere ao foco de seu relato. Pois, enquanto a historiografia voltava-se a

    questes de natureza coletiva como a histria de uma guerra, de uma cidade ou de um povo, a

    biografia tinha como foco um indivduo e a descrio de seu carter paradigmtico.

    1.4.1 A Biografia na Antiguidade Greco-romana

    Biografia greco-romana, portanto, o nome utilizado pelos pesquisadores dessa

    temtica para designar um gnero literrio que se tornou corrente no Imprio Romano, no

    primeiro sculo, e que tem sua origem na Grcia, no sculo V a.C. Trata-se, na verdade, de

    um nome utilizado como referncia a um conjunto de obras que, quando comparadas,

    apresentam considervel variedade em sua estrutura e funo, mas com elementos genricos

    comuns que permitem sua categorizao num gnero de natureza flexvel e com tendncia

    diversificao.

    Momigliano (1993, p. 11) a define, por exemplo, como o relato da vida de um homem,

    de seu nascimento sua morte. Dosse (2009, p. 123) acrescenta que se trata de um relato em

    que se retrata a maneira de viver de um indivduo. Para Aune (1988, p. 107) o gnero

    biogrfico, em especial o do perodo romana, tinha como foco o carter, realizaes e

    relevncia para a posteridade de um indivduo exemplar, de seu nascimento sua morte, com

    nfase em sua vida pblica.

    Segundo Aune (1998, p. 110), a biografia greco-romana uma forma literria que

    permite a insero de formas breves e expandidas no meio de sua narrativa maior. Dentre as

    formas breves, observou a insero de creias (ditos e aes dentro de um quadro narrativo

    breve), gnomai (ditos proverbiais) e aponemoneumatica (creias expandidas). Como exemplos

    de formas longas o autor cita a novela, o discurso e o dilogo.

    Para Burridge (2004, p. 77), a biografia greco-romana caracteriza-se como gnero

    flexvel e aberto adaptaes e desdobramentos, mantendo uma relao de sobreposio com

  • outros gneros da Antiguidade como a historiografia, a retrica, o elogio, a filosofia moral, a

    polmica, o romance ou relato. Alm disso, as biografias greco-romanas comportam

    subgneros que podem ser identificados quando comparadas em termos de contedo, estrutura

    ou influncia de outros gneros da poca.

    Em sua pesquisa, Burridge (2004, p. 240) observou ainda que os gneros literrios no

    se apresentam como formas puras, mas possuem uma origem mista. Isso significa que, para

    atender o horizonte de expectativas de seu pblico, precisam partir de um gnero j existente,

    inteligvel ao seus destinatrios. Num segundo momento, o modelo inicial recebe novos

    elementos. Numa terceira fase, h a reinterpretao radical do modelo, conduzindo a novas

    perspectivas. Depois disso, o gnero originrio morre ou deixa de ser escrito na forma vigente.

    Temos ento o desenvolvimento de um novo gnero.

    Dessa forma, seria impossvel, como nota Burridge (2004, p. 51), do ponto de vista

    literrio, considerar os evangelhos como gneros puros. Tambm seria um equvoco nos

    aproximarmos da literatura antiga pressupondo sua adequao aos gneros atuais. Antes

    mister perguntarmos pelas expectativas com as quais seus autores se aproximaram de seu

    pblico imediato. Em outras palavras, nossa indagao deve levar em conta os gneros

    literrios daquela poca.

    Burridge (2004, p. 231) considera ainda que a biografia greco-romana, levando-se em

    considerao sua natureza flexvel, capacidade de se adaptar e de dialogar com outros gneros,

    compartilha com os evangelhos cannicos caractersticas comuns que permitem a insero

    destes na categoria de gnero biogrfico antigo ou greco-romana.

    1.4.2 Os Evangelhos Cannicos e a Questo do Gnero Literrio

    Em sua investigao das caractersticas genricas da biografia greco-romana,

    Burridge (2004, p. 148) dedica-se, num primeiro momento, anlise de cinco biografias

    anteriores aos evangelhos, do perodo helenstico, e cinco do perodo romano. Em sua anlise,

    o autor observou que, redigidas geralmente em prosa, com nmero mdio de sete mil

    palavras, tm no indivduo biografado o sujeito da maioria de suas formas verbais, sendo seu

    carter retratado por meio de suas palavras e aes.

  • Alm disso, apresentam uma sequncia semelhante: relato resumido e em ordem

    cronolgica da vida do biografado, intercalado por unidades literrias menores: anedotas,

    histrias, discursos e citaes, de fontes orais e escritas as mais variadas. Todavia, para o

    autor, a caracterstica determinante reside no fato de centrar sua atividade narrativa em torno

    da vida de seu protagonista, embora apresentem certa variedade no modo e na escolha dos

    aspectos da vida do biografado a serem retratados. Em alguns casos, por exemplo, h uma

    distribuio equilibrada dos diferentes perodos da vida do indivduo; em outros, foca-se um

    em especial. Ha ainda as que concentram a narrativa nas aes do biografado e seguem uma

    ordem cronolgica de sua vida (BURRIDGE, 2004, p. 184).

    H ainda aquelas biografias que focam em determinados temas, ensinamentos ou

    virtudes, sem preocupao com a ordem cronolgica dos eventos narrados, geralmente

    utilizadas para retratar a vida de escritores, filsofos ou pensadores e que, para Burridge

    (2005, p. 7) so com essas que os evangelhos cannicos mais se aproximam no que se refere

    sua estrutura e organizao temtica. O autor observou, por exemplo, que os evangelhos

    cannicos tendem anedota, organizadas em torno de colees de materiais que revelam os

    ensinamentos e feitos de Jesus.

    Aune (1988, p. 122), alm de corroborar que os evangelhos so compatveis com a

    biografia greco-romana em termos de forma e funo, acrescenta que sua funo entre seu

    pblico imediato fora legitimar sua f e prticas fundamentadas no papel paradigmtico de

    seu fundador, semelhante funo exercidas pelas biografias greco-romanas de origem

    helenstica. Conclui o autor que os evangelhos, por isso, representam uma adaptao das

    convenes biogrficas greco-romanas com o intuito de apresentar a vida de Jesus e seu

    significado teolgico.

    Alm disso, o estudo comparativo de Burridge (2004, p. 240) entre a biografia greco-

    romana e os evangelhos cannicos concluiu que estes apresentam uma estrutura muito

    prxima da biografia greco-romana de feio filosfica. Semelhantes a estas, aqueles

    configuram-se como narrativas de tamanho mdio, com sumrio cronolgico do surgimento

    de Jesus, seus feitos pblicos, ltima semana, morte e ressurreio. Trazem tambm diferentes

    unidades literrias menores selecionadas a partir de fontes orais e escritas, que colaboram para

    retratar o carter de Jesus e os seus ensinamentos. Alm disso, a geografia e os conflitos da

    narrativa esto centrados em Jesus, que se apresenta como paradigma pessoal e doutrinrio.

  • So caractersticas como estas, portanto, que aproximam os evangelhos cannicos da

    biografia greco-romana e que, para Burridge (2004; 2005), so suficientes para classific-los

    como seu subgnero.

    A plausibilidade de se interpretar os evangelhos como derivao da biografia greco-

    romana tambm so atestadas por estudiosos do Novo Testamento como, por exemplo,

    Koester (2005a, p. 142), que admite a possibilidade, dada a influncia da cultura helenstica,

    de os primeiros cristos terem olhado para os evangelhos como biografias greco-romanas.

    Para Berger (1998, p. 312), Apesar da limitada quantidade de fontes [] a biografia

    helenstica to multiforme que poderia abranger tambm os evangelhos. J que sua forma

    literria tem numerosos elementos em comum com biografias antigas, os evangelhos podem ser classificados como um gnero biogrfico [...].

    Feitas estas consideraes com relao s caractersticas genricas que os evangelhos

    cannicos compartilham com a biografia greco-romana, na sequncia, voltaremos nossa

    ateno ao Evangelho Segundo So Mateus e seu gnero literrio.

    1.4.2.1 O Evangelho Segundo So Mateus como

    Embora na maioria das Bblias, o Novo Testamento inicie com o Evangelho Segundo

    So Mateus, as pesquisas dos ltimos dois sculos sugerem que o Evangelho Segundo So

    Marcos fora escrito primeiro. Mateus e Lucas, por outro lado, teriam Marcos como uma de

    suas fontes. Nesse caso, fizeram uso independente do contedo de Marcos, aprimorando seu

    estilo. Alm disso, Marcos no fora a nica fonte utilizada por Mateus e Lucas, pois estes

    incluem, cada um a seu modo, considervel material ausente naquele.

    A pesquisa das fontes levantou a hiptese de que Mateus e Lucas tenham usado de

    modo independente uma segunda fonte em que tiveram acesso ao contedo ausente em

    Marcos. Nomeada de fonte Q, compreenderia uma coleo de ditos de Jesus que teriam

    circulado entre as comunidades crists. A existncia de tal fonte, no entanto, no pode ser

    comprovada, o que nos permite pensar tambm na possibilidade de um material excedente

    originrio de histrias que chegaram de modo independente a Mateus e Lucas via tradio

    oral (BURRIDGE, 2005, p. 11).

  • Alm do material comum aos trs evangelhos e daquele compartilhado por Mateus e

    Lucas, h um terceiro exclusivo de Mateus: seu relato a respeito de Jos e do nascimento de

    Jesus, a visita dos sbios do Oriente, algumas sees de ensinamentos de Jesus e

    particularidades de seu relato dos eventos de sua ltima semana, morte e ressurreio.

    Burridge (2005, p. 11-12), observa que esse material acentua a semelhana de Mateus com a

    biografia greco-romana. Ou seja, inicia com uma exposio cronolgica da origem e chegada

    vida pblica de Jesus, intercalada por uma exposio sistemtica de seus ensinamentos, e

    conclui com a narrativa do final de sua vida, marcada por sua morte paradigmtica.

    Mateus, todavia, no se configura como mero imitador do gnero biogrfico greco-

    romano. Como observa Kermode (1997, p. 418), a estrutura de seu evangelho revela uma

    preocupao notadamente literria, o que significa dizer que usa de criatividade e imaginao,

    o que permite que nos apresente Jesus segundo Mateus, revelandose original.

    Isso se d, sobretudo, pelo uso de estratgias narrativas, que conduzem o leitor numa

    perspectiva geradora de possibilidades interpretativas da vida de Jesus como realizao das

    Escrituras.

    Mateus nos impe de diversas maneiras os temas do excesso, da transformao e da autoridade pela qual o excesso exigido e a transformao obtida. Ele tem de mostrar tambm que tudo isso feito em prol da realizao; no fim do tempo, o que deve ser visto realizado a Lei [...] Mateus queria mostrar que Jesus era o novo Israel, suas palavras e feitos ecoando a histria do antigo. Sua histria deve ter detalhes que a situam em seu prprio momento no tempo; mas ele careceria de significado se no parecesse tambm a transformao de uma histria mais antiga conhecida por garantia divina [...] (KERMODE, 1997, p. 424).

    Os eventos narrados por Mateus, portanto, so singulares demonstraes do tema da

    realizao figural. O relato da Paixo, em especial, como veremos no prximo captulo,

    constitui-se no momento de maior tenso desse projeto de interpretao das Escrituras a que

    se prope seu narrador.

    Dessa forma, a anlise literria da Paixo de Cristo a partir dos padres identificados

    por Burridge (2004), Auerbach (1971) e Alter (2007) oferecem subsdios significativos

    investigao de como Mateus articula diferentes recursos familiares a seu pblico com o fim

    de imprimir a esta narrativa o alargamento e a realizao das Escrituras na pessoa de Jesus.

    Esta pesquisa se pauta pelo entendimento de que, por meio de um enfoque literrio, os

    eventos que antecedem crucificao so reveladores de como Mateus procurou atingir o

  • horizonte de expectativas de sua audincia imediata e sua competncia para dialogar com as

    posteriores.

    1.5 RESUMO

    Neste captulo procuramos delimitar o embasamento terico-metodolgico que

    orientar nossa anlise da Paixo de Cristo conforme narrada no Evangelho Segundo So

    Mateus.

    Tomamos como pressuposto a plausibilidade de se concretizar tal anlise a partir da

    percepo das narrativas bblicas como obras literrias. Para tanto, iniciamos pela

    conceituao de literatura e sua categorizao em gneros literrios. Na sequncia,

    procuramos esclarecer o conceito de gnero literrio a que esta pesquisa se pautar e sua

    importncia no mbito da anlise de um texto literrio. Feitas estas consideraes, voltamo-

    nos questo da Bblia como literatura e aplicabilidade da mimese literria a suas narrativas.

    Por fim, discutimos a questo controversa do gnero literrio dos evangelhos, com enfoque no

    Evangelho Segundo So Mateus.

    Partimos do pressuposto de que a literatura um tipo de conhecimento que faz uso da

    palavra com a finalidade de projetar realidades possveis e que a mimese literria, que busca

    na experincia vivencial a estruturao de sua narrativa, conduz ao verossmil, que, por sua

    vez, torna-se apreensvel na interpretao da obra literria.

    Na sequncia, apresentamos a funo que desempenha o gnero nesse processo de

    composio e leitura da obra literria. Apropriamo-nos do conceito de gnero literrio como

    conjunto de convenes que o autor se vale para garantir a audincia de seu pblico, com o

    fim ltimo de guiar a leitura e a interpretao de sua obra. Com isso, pontuamos sua

    importncia no processo de produo e leitura do texto literrio. Alm disso, salientamos a

    impossibilidade, do ponto de vista da literatura, de um gnero literrio nascer sem precedentes

    que indiquem como se aproximar de seu pblico. Dessa forma, para dialogar com uma

    audincia necessrio valer-se de convenes decifrveis, o que equivale dizer que identificar

    um gnero literrio requer a comparao com outras obras correntes de sua poca.

    Indagamos ainda pela plausibilidade da leitura das narrativas bblicas segundo

    categorias literrias. Para tanto, buscamos estabelecer elementos que esto presentes nas

  • narrativas bblicas e que permitissem sua anlise como literatura. Pontuamos que nossa

    aproximao da narrativa bblica como mimese permite nela identificar estratgias narrativas

    que se mostram construtoras de representao verossmil da realidade.

    Na sequncia, indagamos pelo gnero literrio do Evangelho Segundo So Mateus,

    que o objeto de nossa pesquisa. Apontamos para a necessidade de buscar em seu contexto

    temporal e cultural a sua identidade literria, pois foi nestes que surgiram os Evangelhos.

    Nesse ponto, optamos pela relao dos evangelhos com a biografia greco-romana.

    Observamos algumas caractersticas genricas desse gnero que se fazem presentes nos

    evangelhos e, em especial, no Evangelho Segundo So Mateus.

    Por fim, conclumos que, embora o Evangelho Segundo So Mateus apresente

    caractersticas tanto na forma como no contedo que o identifique com a biografia greco-

    romana, seu redator sobrepe ao gnero sua capacidade criativa e imaginativa ao imprimir seu

    estilo e introduzir a interpretao figural da realidade e estratgias narrativas prprias da

    literatura bblica. Dessa forma, volta-se ao horizonte de expectativas de seu pblico, guiado-o

    em sua interpretao das possibilidades proporcionadas pelo saber literrio.

  • 2 A PAIXO DE CRISTO SEGUNDO SO MATEUS:

    ANLISE LITERRIA

    2.1 INTRODUO

    No captulo anterior fizemos algumas consideraes gerais a respeito do conceito de

    literatura que estamos considerando nesta pesquisa e sua aplicabilidade s narrativas bblicas.

    Tambm tecemos algumas consideraes a respeito do gnero literrio, sua importncia no

    processo de anlise literria e optamos por considerar o Evangelho Segundo Mateus como um

    gnero que tem a biografia greco-romana como estruturadora de sua sequncia narrativa.

    Como referncia para nossa anlise literria das narrativas bblicas, buscamos

    subsdios nas propostas assentadas por Erich Auerbach (1971) e Robert Alter (2007). No

    presente captulo, voltaremos nossa ateno Paixo de Cristo Segundo Mateus, procurando

    nela evidenciar os recursos narrativos utilizados por seu redator em sua empreitada literria.

    Com isso esperamos identificar as categorias literrias com as quais a narrativa se articula

    com o intuito de se aproximar do horizonte de expectativas de seu pblico imediato.

    Para atingir nosso propsito, iniciaremos com a traduo do texto em anlise, ou seja,

    os captulos vinte e seis e vinte e sete de Mateus para, em seguida, procedermos sua anlise

    literria, em especial, sua recorrente aluso s Escrituras como figura, o uso de certas palavras,

    o modo particular de apresentar as aes, a tendncia de verbalizar as aes e a tcnica de

    narrao oscilante entre a oniscincia e a discrio.

    Alm disso, evidenciaremos as principais particularidades no contedo da Paixo

    Segundo Mateus em comparao com os demais evangelhos sinticos. Entendemos que essas

    particularidades evidenciaro a habilidade literria de seu redator de conduzir seu pblico na

    recepo literria.

    2.2 TRADUO DOS CAPTULOS 26-27 DE SO MATEUS

    A seguir apresentamos a traduo livre do texto em estudo, que ter como referncia a

    quarta edio revisada do Novo Testamento Grego, editado por Barbara Aland et. al. Dados

  • os objetivos desse trabalho, que consiste na anlise dos recursos narrativos do texto, e dentre

    estes a repetio mrfica, nossa traduo procura, sempre que possvel, manter a equivalncia

    semntica de seu vocabulrio. Em alguns momentos, esse critrio poder soar de modo

    desagradvel ao leitor acostumado com recursos lingusticos que minimizam esse tipo de

    repetio. No entanto, entendemos que a metodologia aqui adotada dar relevncia nossa

    anlise.

    2.2.1 A Paixo de Cristo Segundo So Mateus

    26.1E aconteceu que, quando Jesus terminou todas essas palavras, disse aos seus

    discpulos:

    - 2Sabeis que daqui a dois dias acontecea a a Pscoa, e o Filho do Homem entregueb para ser crucificado. 3Ento se reuniram os principais sacerdotes e os ancies do povo, no ptio do sumo

    sacerdote dito Caifs, 4e tramaram juntos prederem com engano a Jesus e matarem-no. 5Todavia, diziam:

    - No durante a festa, para que no acontea tumulto entre o povo.

    6Todavia, permanecendo Jesus em Betnia, em casa de Simo, o Leproso, 7aproximou-

    se dele uma mulher tendo um alabastro de perfume muito caro e o colocou sobra a sua cabea

    reclinada. 8Todavia, vendo isso os seus discpulos, indignaram-se dizendoc:

    - Para que esse desperdcio? 9Pois isso poderia ser vendido por muito e dado aos

    pobres.

    10Ao tomar conhecimento disso, Jesus lhes disse:

    - Por que estais a criar problema mulher? Pois ela praticou uma boa obrad para

    comigo. 11Pois, sempre tendes os pobres convosco. Todavia, a mim nem sempre tendes.

    4 A preferncia pela traduo do verbo por acontecer segue um padro que assinala sua repetio ao longo da narrativa da Paixo em Mateus. Um hebrasmo que assinala o efeito de sentido do real aos fatos narrados.

    5 O verbo (entregar) ocorre treze vezes no relato da Paixo, sempre se referindo entrega de Jesus para ser crucificado (conferir Quadro 1- Ocorrncias do verbo em Mateus 26-27).

    6 abundante o uso do verbo (dizer) aps um verbo que expresse ao. Essa construo colabora para a verbalizao das aes, uma caracterstica das narrativas bblicas.

  • 12Colocando, pois, este perfume sobre o meu corpo, para o meu sepultamento ela o fez. 13Em

    verdade vos digo: onde quer que seja proclamado este evangelho, em todo o mundo, o que

    ela fez tambm ser falado em sua memoria.

    14Ento, indo at os principais sacerdotes um dos doze, dito Judas Iscariotes, 15disse:

    - Que quereise me dar se eu o entregar?

    E eles estabeleceram trinta moedas de prata. 16E, desde ento, ele buscava

    oportunidade para entreg-lo.

    17E no primeiro dia dos zimos, os discpulos aproximaram-se de Jesus, dizendo:

    - Onde queres que te preparemos a Pscoa para comer?

    18Ao que ele disse:

    - Ide cidade, a certa pessoa e dizei-lhe: O Mestre diz: o meu tempo est prximo.

    Em tua casa fao a Pscoa com os meus discpulos.

    19E os discpulos fizeram como lhes orientou Jesus e prepararam a Pscoa.

    20Ao cair da tarde, Ele reclinou-se mesa com os doze 21e, enquanto comiam, disse-

    lhes:

    - Em verdade vos digo que um de vs me entregar.

    22E entristecendo-se muito comearam a dizer um aps o outro:

    - No sou eu, sou, Senhor?

    23Ao que ele disse como resposta:

    - O que coloca a mo na tigela comigo o que me entregar. 24De fato, o Filho do

    Homem vai como est escrito acerca dele. Todavia, ai daquele homem por quem o Filho do

    Homem entregue. Melhor seria que no tivesse nascido.

    25Todavia, Judas, aquele que o entregaria, disse como pergunta:

    - No sou eu, sou, Rabi?

    Ele lhe disse:

    - Tu o disseste.

    7 O verbo 3a pessoa singular, 1o aoristo mdio do indicativo de (praticar obra ou ao) est associado ao adjetivo (bonita que) possui sentido tico (fazer o bem) e no esttico (de boa aparncia). Por isso, optamos pela traduo obra, que melhor enfatiza essa perspectiva.

    8 O verbo 2a pessoa do plural, presente indicativo ativo de (querer, desejar) recorrente no relato da Paixo e contrasta o desejo motivado pela maldade dos lderes religiosos com o desejo de Jesus de realizar a vontade de Deus. Esse contraste colabora para acentuar o antagonismo entre Jesus e os lderes religiosos, como veremos no captulo 3.

  • 26E enquanto eles comiam, Jesus pegou um po e, tendo-o abenoado, partiu-o e,

    dando-o aos discpulos, disse:

    - Pegai, comei! Isto o meu corpo!

    27E, pegando um clice e agradecendo, ele lho deu dizendo:

    - Bebei dele todos! 28Pois isto o meu sangue, da aliana, por muitos derramado para

    perdo de pecados. 29Eu vos digo que, a partir de agora, de modo nenhum, beberei deste fruto

    da videira, at aquele dia, quando dele bebo convosco novo no reino do meu Pai.

    30E aps cantar um hino, saram para o Monte das Oliveiras.

    31Ento Jesus lhes disse:

    - Todos vs ficareis escandalizados comigo esta noite, pois est escrito: Ferirei o

    Pastor e sero espalhadas as ovelhas do rebanho. 32Todavia, aps ser levantado, eu irei adiante

    de vs para a Galileia.

    33Todavia, Pedro lhe disse como resposta:

    - Mesmo que todos fiquem escandalizados por tua causa, eu nunca ficarei

    escandalizado.

    34Afirmou-lhe Jesus:

    - Em verdade te digo que esta noite, antes do galo cantar, trs vezes me negars.

    35Disse-lhe Pedro:

    - Mesmo que seja necessrio eu morrer contigo, no te negarei.

    E assim disseram todos os discpulos.

    36Ento Jesus chegou com eles a um lugar chamado Getsmani e disse aos seus

    discpulos:

    - Sentai aqui enquanto eu vou ali mais adiante orar.

    37E levando Pedro e os dois filhos de Zebedeu, comeou a entristecer-se e a angustiar-

    se. 38Ento lhes disse:

    - A minha alma est excessivamente triste at a morte. Permanecei aqui e vigiai

    comigo.

    39E, indo um pouco adiante, caiu sobro o seu rosto orando e dizendo:

    - Meu Pai, se possvel for, passa de mim este clice. Todavia, no como eu quero, mas

    como tu queiras.

    40E ao voltar at os discpulos, achou-os dormindo. E disse a Pedro:

  • - Como no pudestes vigiar uma hora comigo? 41Vigiai e orai para que no entreis em

    tentao. Porque o esprito est pronto, a carne, todavia, fraca.

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