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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL CURSO DE PSICOLOGIA A QUESTÃO DA INSEGURANÇA E OS NÚCLEOS HABITACIONAIS SEGREGADOS: PERCEPÇÕES SOBRE O BECO DOS TRILHOS E OS BAIRROS SOARES, RIO BRANCO E SÃO LUÍS DEIVIT ROBERSON TRINDADE DA SILVA Cachoeira do Sul, Dezembro de 2005.

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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL

CURSO DE PSICOLOGIA

A QUESTÃO DA INSEGURANÇA E OS NÚCLEOS HABITACIONAIS SEGREGADOS:

PERCEPÇÕES SOBRE O BECO DOS TRILHOS

E OS BAIRROS SOARES, RIO BRANCO E SÃO LUÍS

DEIVIT ROBERSON TRINDADE DA SILVA

Cachoeira do Sul, Dezembro de 2005.

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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE E DO BEM-ESTAR

CURSO DE PSICOLOGIA

A QUESTÃO DA INSEGURANÇA E OS NÚCLEOS HABITACIONAIS SEGREGADOS:

PERCEPÇÕES SOBRE O BECO DOS TRILHOS

E OS BAIRROS SOARES, RIO BRANCO E SÃO LUÍS

DEIVIT ROBERSON TRINDADE DA SILVA

ORIENTADORA: PROF. Ms. GISELE TROMMER MARTINES

Monografia em Psicologia I e II

Cachoeira do Sul, Dezembro de 2005.

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Agradecimentos

A meus pais, Mário e Noela, porque acima de tudo me proporcionaram algo que

ninguém poderá tirar: a oportunidade de ter recebido uma boa formação.

À minha tia, Lena, pelo apoio incondicional e carinho em todas as horas.

À minha noiva, Gabriele, pelo amor, compreensão e sobretudo pela paciência com que

tem me “agüentado” nesses últimos meses.

A meus irmãos, Dailton e Andrei, e toda a minha família, pela compreensão nos

momentos em que deixamos de estar juntos: foi por uma boa causa.

À minha orientadora, Gisele Martines, pela prontidão e confiança em meu trabalho.

Aos oito sujeitos de pesquisa, pela disposição em participar do estudo.

Aos colegas do Banco do Brasil, que incentivam e colaboram com meus estudos,

facilitando horários e relevando as saídas repentinas.

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Resumo

Este estudo tem o objetivo de investigar os sentidos produzidos sobre o sentimento de

insegurança denunciado pela mídia de Cachoeira do Sul em relação à população da região

centro-leste do município, especificamente dos bairros Soares, Rio Branco e São Luís e do

Beco dos Trilhos. A partir de entrevistas com dois moradores de cada um dos bairros

mencionados foi constatado haver nos habitantes do município, assim como em muitos locais

exemplificados pela literatura, o crescimento de sentidos correspondentes ao incremento da

individualidade e isolamento das pessoas. O método de investigação utilizado é a pesquisa

qualitativa e as entrevistas semi-estruturadas guiam a coleta de dados. A análise foi realizada

através do método de práticas discursivas e produção de sentidos e a análise dos dados

baseada no mapa de associações de idéias. Sendo a violência uma das maiores preocupações

do ser humano, faz parte do instinto de autopreservação se preparar para enfrentar ameaça. A

alternativa encontrada tem sido o recolhimento das pessoas à residência. Ao mesmo tempo em

que essa atitude evita ao máximo à exposição a perigos, restringe a liberdade do cidadão

urbano. Ao longo deste estudo, esses resultados são enfocados sob a ótica psicanalítica do

desamparo, a questão da segurança sob uma abordagem filosófica existencialista e por fim a

partir do entendimento da psicologia social. A partir dessas perspectivas, este estudo se

configura como instrumento de reflexão sobre o tema, e contribui para a assunção de uma

ótica mais promissora sobre o assunto.

Palavras-chave: insegurança, individualidade, social, violência.

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Lista de Figuras

1. Figura 1 – Localização Geográfica da Residência dos Participantes................................... 41

Lista de Tabelas

1. Tabela 1 – Dados de Identificação dos Participantes........................................................... 42

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Sumário

Introdução................................................................................................................................ 08

1. Problemas........................................................................................................................... 10

2. Objetivos............................................................................................................................ 11

2.1. Geral................................................................................................................. 11

2.2. Específicos....................................................................................................... 11

3. Revisão Bibliográfica......................................................................................................... 12

3.1. Um olhar psicanalítico sobre a atualidade........................................................ 12

3.2. A sedução do efêmero e as implicações na identidade.................................... 17

3.3. Exposição e insegurança: o individualismo como norma................................ 20

3.4. Um violento contra-ataque............................................................................... 24

3.5. A sub-habitação como raiz da violência.......................................................... 28

3.6. Baixa renda e preconceito................................................................................ 32

3.7. A manifestação da insegurança em Cachoeira do Sul...................................... 35

3.8. O início da polêmica........................................................................................ 37

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4. Método............................................................................................................................... 39

4.1. Pressupostos teórico-metodológicos.................................................................39

4.2. Participantes da Pesquisa................................................................................. 40

4.3. Coleta e Registro de Dados.............................................................................. 43

4.4. Análise e Interpretação dos Dados................................................................... 45

4.5. Instrumentos de Pesquisa................................................................................. 48

5. Resultados e Discussão................................................................................................ 49

5.1. Insegurança: quando o lar se transforma em prisão......................................... 49

5.2. Criminalidade: o ser humano cada vez mais acuado........................................ 61

5.3. Pobreza x violência: um olhar sobre o Beco e seu entorno.............................. 71

5.4. Urbanização: solução ou extinção do convívio?.............................................. 76

Considerações Finais................................................................................................................ 81

Referências............................................................................................................................... 86

Apêndices................................................................................................................................. 90

Apêndice A................................................................................................................... 90

Apêndice B................................................................................................................... 91

Apêndice C................................................................................................................... 92

Apêndice D................................................................................................................... 94

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Introdução

A violência, em termos globais, é uma das maiores preocupações do ser humano.

Provavelmente só não é tão ansiogênica quanto às constantes catástrofes climáticas que o

planeta vem sofrendo nos últimos anos. São guerras, atentados terroristas, assaltos, roubos,

seqüestros, estupros, assassinatos, e de tempos em tempos surge uma nova modalidade de

barbárie que não era nem cogitada há algum tempo. Exemplo disso são os atentados de 11 de

Setembro, às torres gêmeas do World Trade Center, nos Estados Unidos; em Madri, na

Espanha ou em Beslan, na Rússia, noticiados em todos os jornais do mundo.

O sentimento de desproteção diante do mundo está longe de emergir como um fato

novo. Sigmund Freud já se perguntava em 1930 até quando o desenvolvimento cultural do

homem conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano

de agressão e autodestruição, para ele, inato e subjugado pela cultura. O homem se torna cada

vez mais apreensivo e preparado para se defender. Faz parte do instinto de autopreservação se

preparar para enfrentar ameaças. As alternativas acabam se resumindo a duas: estar sempre

alerta e pronto para reagir ou recolher-se à residência e evitar ao máximo de exposição a

perigos. Daí surgem os condomínios fechados, a crescente procura por prédios e apartamentos

vigiados com guaritas, as cercas elétricas, os muros altíssimos com cacos de vidro, e assim

por diante. O cidadão restringe sua liberdade para evitar se expor.

Há muitos anos a urbanização dos grandes centros vem mostrando um problema sem

proporções, que ultrapassa a capacidade logística e de controle da administração pública.

Estes fatores condicionam as pessoas a estarem sempre preparadas para se defender e proteger

sua família. O problema é traduzido pela aparência de verdadeiras fortalezas que algumas

residências adquirem.

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Atualmente, em Cachoeira do Sul, um fato tem merecido destaque nas manchetes de

jornais locais, pois diz respeito ao primeiro levante contra o enclausuramento dos cidadãos em

suas próprias casas no município. Em função do aumento da criminalidade demonstrado pelas

estatísticas publicadas nos jornais locais, moradores de classe média alta dos bairros Rio

Branco, São Luís e Soares se uniram para exigir que o poder administrativo municipal lhes

ofereça segurança e tranqüilidade. O fator decisivo indicado para a resolução da questão é a

tomada de alguma atitude em relação a um espaço urbano denominado Beco dos Trilhos,

recentemente rebatizado pela Prefeitura de bairro Virgilino Jaime Zinn, como ponto de

partida do processo de urbanização. O espaço é circundado pelos três bairros de classe média

alta e apontado como o ponto de origem e escoadouro de grande parte dos problemas.

A contraposição entre os moradores dos diferentes locais, que constituem na região

centro-leste da cidade, traz à tona uma visível sensação de mal-estar. À medida que o bairro

pobre desponta como núcleo gerador da violência, emerge um movimento de insatisfação dos

moradores do Beco, que reclamam a manutenção de sua subjetividade e para que não hajam

rotulações indevidas.

É o sentimento de estar exposto e inseguro que remete a este estudo. Justifica-se um

trabalho com o objetivo de identificar os sentidos empreendidos nas práticas discursivas dos

moradores tanto do Beco quanto dos bairros nobres a respeito do assunto insegurança.

Pretende-se reconhecer nos moradores do local, situações que causam apreensão e levantar

entre as práticas discursivas a existência ou não de sentidos referentes à aproximação entre

pobreza e violência. O propósito é – através dos relatos de cidadãos comuns – organizar os

sentidos produzidos no local, a fim de perceber como os moradores encaram a situação na

prática.

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1. Problemas

A que remetem as práticas discursivas dos moradores dos bairros Soares, Rio Branco e

São Luís e do Beco dos Trilhos em Cachoeira do Sul em relação à insegurança?

O sentimento de insegurança denunciado pela mídia local em relação aos moradores

dos bairros Soares, Rio Branco e São Luís e do Beco dos Trilhos condiz com os sentidos

produzidos pelos moradores?

O sentimento de insegurança – caso confirmado – remete à proximidade dos bairros

Soares, Rio Branco e São Luís ao Beco dos Trilhos?

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2. Objetivos

2.1. Geral

Identificar os sentidos presentes nas práticas discursivas dos moradores dos bairros

Soares, Rio Branco, São Luís e do Beco dos Trilhos com relação às notícias de crescimento

da insegurança que assola esta região do município.

2.2. Específicos

Descobrir como os moradores percebem a situação da criminalidade e da segurança

em âmbito da própria residência, do bairro e do município que habitam.

Verificar se há relação entre o sentimento de insegurança dos moradores dos bairros

Soares, Rio Branco, São Luís e do Beco dos Trilhos denunciado pela mídia e a proximidade

com a população de baixa renda.

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3. Revisão Bibliográfica

3.1. Um olhar psicanalítico sobre a atualidade

Sigmund Freud (1930 / 1988) há 75 anos, já declarava que os homens adquiriram

sobre as forças da natureza tal controle que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se

exterminar uns aos outros, até o último homem. Esta questão, por si já constitui bom motivo

para discussão. Entretanto, o foco central do trabalho de Freud (1930 / 1988) sobre a

civilização não está nessa frase, mas no fato de que os homens: “sabem disso e é daí que

provém grande parte da atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade”. Em termos

globais, trazendo essas afirmações à nossa época, bons exemplos disso são a recém finalizada

guerra entre Iraque e Estados Unidos e a Guerra Fria com a antiga União Soviética.

No primeiro caso a luta foi justificada pelo presidente americano George W. Bush por

motivos de preocupação com o bem-estar mundial e a fabricação de armas químicas por um

país governado pelo ditador Saddam Hussein. Além de “libertar” o povo iraquiano, o mundo

seria livrado de uma ameaça. Enrustida aí, clara apreensão com o petróleo, força motriz da

economia do planeta e sobre o qual o Oriente Médio possui maior domínio, devido às

privilegiadas jazidas que a natureza lhe ofereceu (JP, 08.04.2003, p. 6).

Durante a primeira guerra “interativa” da história, televisionada diariamente, muito se

comentava sobre as forças militares e bélicas iraquianas e se levantava suposições sobre sua

agressividade e capacidade dos soldados de morrerem defendendo o ditador, a exemplo dos

kamikazes japoneses na Segunda Guerra Mundial. Por esses motivos, especialistas alertaram

que a guerra podia durar muito tempo (JP, 21.04.2003, p. 6). Isso não aconteceu devido ao

esmagador poder de fogo americano. Com o fim do conflito, ainda não foram encontradas as

tão faladas armas químicas. É até provável que os Estados Unidos - para não serem

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desmoralizados por terem iniciado uma guerra sem motivo, baseada somente em hipóteses -

fossem capazes de “plantá-las” no Iraque para dar satisfação ao mundo (JP, 08.04.2003, p. 6).

Na verdade, de acordo com os noticiários e a imprensa escrita e audiovisual, o que se

encontrou no Iraque foi uma população pobre, esfomeada, sem as mínimas condições de

higiene, e com pouquíssimas oportunidades de recomeçar sua vida. Tudo o que resta são os

alimentos distribuídos pelos soldados americanos, após eles mesmos terem bombardeado

casas e cidades, devastando completamente o pouco que o povo ainda tinha: cultura e

identidade. O país está dividido em diversas facções que não chegam a acordo e os

“benfeitores” americanos insistem em participar do governo a ser instaurado. A Guarda Real,

como era denominada a temida tropa de elite de Saddam Hussein era composta de soldados

sem armamentos, sem tecnologia, com capacetes furados e roupas em farrapos. A dúvida

sobre o reerguimento do país ainda é a mesma de quando o poder estava nas mãos do ditador.

(JP, 21.04.2003, p. 6).

No caso da Guerra Fria, a imprensa noticiou anos e anos de duelo entre os Estados

Unidos e a União Soviética numa corrida armamentista que causava inquietação em todo o

mundo diante da ameaça nuclear atômica e a destruição completa da população do planeta.

Nesse caso também não havia uma razão real aparente para o contraponto, a não ser a

desconfiança e uma possível vulnerabilidade a um ataque pelos dois lados.

Neste ponto, nos encontramos novamente com idéias de Freud: a questão fatídica para

a espécie humana é saber até que ponto seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a

perturbação da vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição,

inato e “domado” pela cultura. Se for verdade que o processo civilizatório se aproxima e se

complementa no desenvolvimento individual, é impossível desprezar o ponto até o qual a

civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto e o quanto ela pressupõe exatamente a

não-satisfação de instintos poderosos (Freud, 1930 / 1988).

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Os argumentos de Freud (1930 / 1988) partem não da agressividade, mas de um

sentimento que os seres humanos têm de elo com o mundo, que proporciona uma sensação de

eternidade, utilizado pela religião de forma canalizada para dar um sentido à vida. Ao

contrário do que pensava na época, Freud chegou à conclusão de que esse sentimento teria

origem na relação do ego com o exterior, que previamente ele considerava como bem

demarcada. Até o momento, essa tese era apenas refutada nos casos em que o indivíduo está

apaixonado e se considera “unido” ao objeto de amor, revivendo uma situação semelhante ao

recém nascimento, quando o mundo externo não está diferenciado e a criança percebe as

coisas como uma extensão de seu próprio corpo.

É apenas quando a falta dos objetos de prazer - como a falta do seio da mãe - começa a

ser notada e só reaparece depois do choro, que o mundo externo vai sendo construído e surge

a tendência do ego a isolar-se do sofrimento ou desconforto, dando origem ao que Freud

chama de princípio do prazer. Com o início da diferenciação entre ego e objeto começa a

surgir o princípio da realidade, que finalmente nos separará do mundo externo. Apesar dessa

divisão, é preservada uma espécie de vínculo entre o indivíduo e o mundo e gerada uma

sensação de desamparo, que remete à relação paterna, assumida agora pelo destino (Freud,

1930 / 1988).

Para Freud (1930 / 1988) essa sensação de desproteção acontece porque “a vida, tal

como a encontramos, é árdua demais para nós, proporciona-nos muitos sofrimentos,

decepções e tarefas impossíveis”. Em função disso, o ser humano formula medidas paliativas

para suportar as imposições vitais, a exemplo da arte, da religião e dos tóxicos, que graças à

importância da fantasia em nosso aparelho psíquico conseguem diminuir a sensação de

pequenez diante da imensidão do mundo.

De acordo com Birman (2001), sob o desamparo, o sujeito se encontra diante da

pressão constante das forças pulsionais, que o atingem em diferentes direções e o inundam. O

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indivíduo é tomado pelo excesso e obrigado, por um lado, a realizar um trabalho de ligação

das forças irruptivas, constituindo um campo de objetos capazes de oferecer possibilidades de

satisfação e, por outro, se impor a exigência de nomeação das forças.

Birman (2001) afirma que na experiência do desamparo cabe ao sujeito a tarefa

imperiosa de dominar satisfatoriamente as intensidades que lhe acometem, ao mesmo tempo

em que direciona os excessos pulsionais para derivações simbólicas. Enfim, tudo isso se

recoloca de maneira permanente e renovada. A pulsão como força constante se apresenta de

forma repetida. O sujeito se encontra na posição inevitável de angústia do real, que pode ter

um efeito traumático caso ele não consiga transformá-la em angústia do desejo, já que o efeito

do impacto pulsional é sempre a angústia.

Giddens (1991) fala de uma segurança ontológica, que abriga aspectos da confiança e

processos de desenvolvimento que parecem se aplicar a todas as culturas e aparenta ter sido

abalada com o advento da modernidade. Esse sentimento se refere à crença que a maioria dos

seres humanos tem na continuidade de sua auto-identidade e a na constância dos ambientes de

ação social e material circundantes, uma sensação de fidedignidade de pessoas e coisas. Trata-

se de um fenômeno emocional, enraizado no inconsciente. “Na sociedade moderna, o eu é

frágil, quebradiço, fraturado, fragmentado – tal concepção é provavelmente a visão

predominante nas discussões em curso sobre o eu e a modernidade” (Giddens, 1991, p. 157).

Bauman (1998) assinala que todo tipo de ordem social produz fantasias dos perigos

que ameaçam a identidade e cada sociedade gera fantasias elaboradas conforme sua própria

medida ou o tipo de ordem social que se esforça em ser. Essas fantasias tendem a ser imagens

espelhadas da comunidade que as gera, enquanto a imagem da ameaça tende a ser um auto-

retrato da sociedade com um sinal negativo, o que equivale à projeção da ambivalência

interna da sociedade sobre seus próprios recursos, a maneira como vive e perpetua seu modo

de viver.

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A sociedade insegura da sobrevivência de sua ordem desenvolve a mentalidade de

fortaleza sitiada. Mas os inimigos que lhe sitiaram os muros são os seus próprios

“demônios interiores” – os medos reprimidos e circundantes que lhe permeiam a vida

diária e a “normalidade”, e que, no entanto, a fim de tornar suportável a realidade

diária, devem ser dominados, extraídos do cotidiano vivido e moldados em um corpo

estranho, um inimigo tangível com que se possa lutar, e lutar novamente, e lutar até

sob a esperança de vencer (Bauman, 1998, p. 52).

A reflexividade da modernidade se estende ao núcleo do eu, que se torna um projeto

reflexivo. Apesar de transições nas vidas dos indivíduos sempre terem demandado

reorganização psíquica, em épocas anteriores essas passagens ocorriam através de rituais. A

mudança de identidade era claramente indicada, porém, em nível de coletividade, as coisas

permaneciam mais ou menos as mesmas, geração após geração. Na era moderna, por

contraste, o eu alterado tem que ser explorado e construído como parte de um processo

reflexivo de conectar mudança pessoal e social (Bauman, 1998).

Birman (2001) concorda com essas afirmações. Para o autor, a modernização do social

impôs exigências para a subjetividade. Esta deve ser permanentemente remodelada em

conseqüência dos processos de transformação contínua da ordem social. O mundo tradicional

é desmapeado, perde seu traçado de linhas claras e precisas e adquire uma dimensão de

infinitude, onde rotas e os caminhos se multiplicam numa espécie de espiral ascendente. A

família, as novas valorizações da infância e da adolescência, a masculinidade, a feminilidade

e a sexualidade foram expostas a um árduo processo cultural de redescrição, na passagem do

sujeito da ordem tradicional para a moderna. Esses fatores colaboraram para o aumento da

incerteza do indivíduo, exposto a uma maior quantidade de opções e escolhas. A insegurança

e a angústia se multiplicam e se transformam, assumindo novas formas. O ser humano se

sente exposto, desamparado.

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3.2. A sedução do efêmero e as implicações na identidade

De acordo com Bauman (1998) os demônios interiores da sociedade pós-moderna

nascem dos poderes de sedução do mercado consumidor. O que se tem registrado

ultimamente como criminalidade cada vez maior não é um produto de mau funcionamento ou

negligência, nem de fatores externos à sociedade, mas o próprio produto da sociedade de

consumidores. Quanto mais elevada a “procura do consumidor”, isto é, quanto mais eficaz a

sedução do mercado, mais a sociedade é segura e próspera. Simultaneamente há o hiato entre

os que desejam e os que podem satisfazer os seus desejos, ou entre os que foram seduzidos e

passam a agir do modo como essa condição os leva a agir e os que foram seduzidos mas se

mostram impossibilitados de agir do modo como se espera.

Nesse contexto, Bauman (1998) enfatiza que a sedução do mercado, transmitida em

todas as direções, é ao mesmo tempo “igualadora” e “divisora”. Isto significa que – apesar de

a mensagem ser transmitida a todos – existem mais daqueles que podem ouvi-la do que

daqueles que podem reagir do modo como a mensagem sedutora pretendia. Os que não

podem agir segundo os desejos induzidos são diariamente confrontados com o deslumbrante

espetáculo dos que podem fazê-lo. O consumo abundante é a marca do sucesso e a estrada

que conduz ao aplauso. Possuir e consumir determinados objetos e adotar certos estilos de

vida são condições necessárias para a felicidade. Em contrapartida, não se pode declarar

guerra ou combater à tendência do mercado de elevar os sonhos e desejos dos consumidores a

um estado de frenesi. Por mais prejudicial que essa tendência se revele à ordem, há uma

espécie de regulamentação normativa que orienta à elevação do desejo do consumidor (p. 56).

Nesse sentido, o autor supracitado define que a própria liberdade está se

transformando nos direitos e não mais em sua satisfação, só podendo durar enquanto

permanecer irrealizada. “O ímpeto de consumo, exatamente como o impulso de liberdade,

torna a própria satisfação impossível. Necessitamos sempre de mais liberdade que temos,

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mesmo que a liberdade de que achamos que necessitamos seja liberdade para limitar e

confinar a liberdade atual” (Bauman, 1998, p. 175).

Essas afirmações podem ser comparadas às questões levantadas por Freud (1930) em

relação ao desejo referente ao impulso instintivo original do id, que nunca conseguirá assumir

satisfação plena e acaba gerando conflitos com o ego.

Larsch (in Bauman, 1998) ressalta que o mundo construído de objetos duráveis foi

substituído pelo de produtos projetados para obsolescência, onde as identidades podem ser

adotadas e descartadas como uma troca de roupa. O grande problema é que mantendo as

opções abertas todo trabalho de construção da identidade torna-se inútil, pois não há

comprometimento com a própria história.

Se o consumo é a medida de uma vida bem-sucedida, da felicidade e mesmo da

decência humana, então foi retirada a tampa dos desejos humanos: nenhuma

quantidade de aquisições e sensações emocionantes tem qualquer probabilidade de

trazer satisfação de maneira como o “manter-se ao nível dos padrões” outrora

prometeu: não há padrões a cujo nível se manter – a linha de chegada avança junto

com o corredor, e as metas permanecem continuamente distantes, enquanto se tenta

alcançá-las. Muito adiante, recordes continuam a ser quebrados. Deslumbradas e

desconcertadas, as pessoas ficam sabendo que, nas companhias recém-privatizadas, e

assim “liberadas”, de que se lembram como instituições públicas que eram austeras e

constantemente famintas de dinheiro, os atuais diretores recebem salários calculados

em milhões, enquanto os que perderam os cargos de diretores são indenizados, mais

uma vez em milhões de libras, por seu trabalho desleixado e malfeito. De todos os

lugares, por intermédio de todos os meios de comunicação, a mensagem surge forte e

clara: não existem modelos, exceto os de apoderar-se de mais, e não existem normas,

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exceto o imperativo de “saber aproveitar bem as cartas de que se dispõe” (Larsch, in

Bauman, 1998, p. 56).

Giddens (2002) enfatiza que a confiança entre as pessoas é ambivalente e a

possibilidade de rompimento está sempre presente nas relações de intimidade do mundo

moderno. Laços pessoais podem ser rompidos e laços de intimidade podem voltar à serem

contatos impessoais, como no caso amoroso rompido, quando o íntimo torna-se de súbito

novamente um estranho.

Bauman (1998) acrescenta que os efeitos psicológicos desta nova concepção

conduzem a uma incerteza assustadora. Nenhum emprego é garantido, nenhuma posição é

segura, nenhuma perícia é de utilidade duradoura. A experiência e a prática se convertem em

responsabilidade logo que se tornam haveres e carreiras sedutoras se revelam suicidas. Os

direitos humanos não trazem mais a aquisição do direito a um emprego, por mais que bem

desempenhado, e meio de vida, posição social e reconhecimento da utilidade podem

desvanecer-se da noite para o dia e sem se perceber.

Giddens (2002) salienta que essa condição de incerteza prejudica o desenvolvimento

da segurança ontológica, que necessita de ambientes relativamente seguros da vida diária para

sua manutenção e é sustentada pela rotina. Atualmente, os hábitos que fornecem segurança

em sua maioria vêm carecendo de significado moral e tanto podem ser experimentadas como

práticas “vazias” quanto parecer esmagadoras. No momento em que rotinas são radicalmente

rompidas, ou alguém decide alcançar maior controle reflexivo sobre sua auto-identidade, o

sujeito pode sentir-se particularmente abandonado em momentos decisivos, porque em tais

momentos os dilemas morais e existenciais se apresentam de maneira urgente. “É como se o

indivíduo enfrentasse o retorno do recalcado, mas provavelmente lhe faltam os recursos

psíquicos e sociais para lidar com as questões assim apresentadas” (p. 155).

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3.3. Exposição e insegurança: o individualismo como norma

O conceito de cultura do narcisismo de Christopher Larsch (Birman, 2001; Giddens,

2002) caracteriza um consistente modelo da sociedade atual. Nessa teoria, o mundo está

centrado no eu da individualidade, sendo essa sempre auto-referente. Assim, o sujeito busca a

estetização de si, e essa busca é transformada na finalidade crucial de sua existência.

Larsch (in Giddens, 2002), relaciona o fenômeno do narcisismo à natureza

apocalíptica da vida social moderna. As pessoas não se preocupam mais com riscos globais

porque essa discussão acabou sendo banalizada e a possibilidade de controle de um cenário

mais amplo caiu por terra. Desta forma, a maioria das pessoas concentra suas atividades em

“estratégias de sobrevivência” privatizadas, preocupações puramente pessoais para o auto-

aperfeiçoamento psíquico e corporal. Larsch (in Giddens, 2002), relaciona essa situação a

uma evaporação da história, uma perda da continuidade no sentido de fazer parte de uma

sucessão de gerações que se perde no passado e se projeta no futuro. Contra esse pano de

fundo as pessoas anseiam por segurança psíquica e por uma sensação – sempre fugidia – de

bem-estar, que como foi relatado anteriormente, nunca poderá ser alcançada.

Birman (2001) salienta que o mundo e o desejo das pessoas tentam harmonizar

demandas das pulsões e efetividade de satisfação, mas o conflito continua a desestabilizar o

sujeito. O indivíduo busca a harmonia ideal e o equilíbrio possível, para afastar, custe o que

custar, o desamparo produzido pelo conflito e dominar o mal-estar social promovido por este

desamparo.

Para Birman (2001) esse contexto vai ao encontro da teoria da Sociedade do

Espetáculo de Debord (1997), onde a exigência do espetáculo é o catalisador dos laços sociais

e se caracteriza como reguladora fundamental do espaço social. As culturas do narcisismo e

do espetáculo construíram um modelo de subjetividade em que se silenciam as possibilidades

de reinvenção do indivíduo e do mundo. O desejo sucumbe frente à exaltação dos emblemas

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narcísicos do eu, na demanda de autocentramento e de espetáculo. O sujeito é descentrado do

campo da consciência e lançado aos pólos do inconsciente e das pulsões. O problema é que,

como a demanda do desejo parte do ambiente, o sujeito autocentrado acaba efetivamente fora-

de-si, pois é exterioridade por excelência. Ele acaba perdendo as relações com tempo e

história e o que importa é a pontualidade do momento, do estrito tempo no presente, que se

avoluma na sua existência. A memória tende ao silêncio e o futuro se estreita, pois a ênfase é

atribuída apenas ao presente.

Bauman (1998) chama atenção para o fato de que, como tudo o mais, a imagem de si

mesmo se parte numa coleção de instantâneos, e cada pessoa deve evocar, transportar e

exprimir seu próprio significado, mais freqüentemente do que abstrair os instantâneos do

outro. Ao invés de construir sua identidade, gradual e pacientemente, o ser humano se insere

em uma série de “novos começos”, que se experimentam com formas instantaneamente

agrupadas, mas facilmente demolidas, pintadas umas sobre as outras (p. 36).

Essa é a identidade que se ajusta ao mundo em que a arte de esquecer é um bem não

menos, se não mais, importante do que a arte de memorizar, em que esquecer, mais do

que aprender, é a condição de contínua adaptação, em que sempre novas coisas e

pessoas entram e saem sem muita ou qualquer finalidade do campo de visão da

inalterada câmara de atenção, e em que a própria memória é como uma fita de vídeo,

sempre pronta a ser apagada a fim de receber novas imagens, e alardeando uma

garantia para toda a vida exclusivamente graças a essa admirável perícia de uma

incessante auto-obliteração. (Bauman, 1998, p. 36)

Lipovetsky (1998) distingue três fases essenciais na história da moral ocidental, as

quais, aportariam na “era do após-dever”, que corresponde a alterações da identidade. A

primeira fase corresponde ao momento teológico da moral, onde somente através da Bíblia os

homens podem conhecer a verdadeira moral. A segunda fase inicia no final do século XVII e

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o objetivo é encontrar as bases da moral independente de dogmas religiosos, a partir de

princípios estritamente racionais e universais, inclusive para os ateus. No entanto, mesmo

desvinculando-se da religião, este processo de secularização manteve dela uma das figuras

essenciais: o dever absoluto, a ética do sacrifício. Em troca do “dever da religião”, nasceu a

“religião do dever”, que pregava abnegação e devoção às instituições, como a família, nação

ou história, ainda de maneira austera e disciplinadora (p. 30).

A terceira fase, chamada por Lipovetsky (1998) de pós-moralista, iniciou somente no

século XIX, e finalmente abandonou o caráter rígido de submissão ao dever. Em

contrapartida, passou-se a estimular mais os desejos, o ego, a felicidade, o bem-estar

individualista, optando-se pela felicidade e pelos direitos subjetivos em detrimento do dever.

“A cultura da ética de sacrifícios, que vigorou amplamente até meados do nosso século, foi

liquidada. As nossas sociedades de consumo-comunicação de massa deixaram de exaltar

sistematicamente os mandamentos difíceis; funcionam agora fora da forma dever, fora da

obrigação moral intransigente e disciplinadora” (Lipovetsky, 1998, p. 31).

O grande problema levantado pelo autor supracitado é que as sociedades do após-

dever passaram a contribuir para a dissolução das formas de autocontrole dos indivíduos,

priorizando resultados em curto prazo e inclinando-se para a transgressão dos princípios

éticos. A pós-moralidade constrói um individualismo sem regras, avariado, desestruturado,

sem futuro, à medida que se afundam as instâncias de controle social, como a Igreja, o

sindicato, o partido, a família, a escola.

Apesar destas afirmações, Lipovetsky (1998) acredita que o sentido da indignação

moral não foi erradicado porque ao lado do individualismo irresponsável, “cada um por si”, se

recomporia um individualismo responsável, ligado a valores éticos. Isto quer dizer que ao

invés de ser admitida uma atitude extremamente liberal, como ocorre no discurso, na prática

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essa situação não perdura. “O mundo da autonomia pós-moralista não leva à desordem sem

freio dos costumes: a cultura do após-dever funciona como um ‘caos organizador’” (p. 32).

Mesmo não significando que a moral foi soterrada, o autor acima acredita que ela não

se mantém nos mesmos termos anteriores. Agora, desfazendo as formas tradicionais de

obrigação, ela implica em uma exigência de iniciativa e responsabilidade que se subjetiva no

próprio indivíduo. Contudo, a idéia de uma moral difícil, regular ou opressora não condiz com

a realidade. Atualmente a moral em voga reconhece os “deveres negativos”, como não matar,

não roubar, não causar sofrimento; mas não os “deveres positivos”, como causas exteriores ao

indivíduo e que partem da sociedade, a exemplo da corrupção e outras condutas não-éticas

menos agressivas. É o que Lipovetsky (1998) chama de “moral à la carte”, composta de

normas indolores, como se o indivíduo escolhesse o que prefere para considerar moral.

Segundo Birman (2001), o que caracteriza a onipotência é o direito que o sujeito

acredita ter a tudo o que é bom. Tudo de mal está sempre no outro ou fora de si, ou seja, tudo

o que é prazeroso está dentro do indivíduo e o que é desprazeroso está em sua exterioridade.

Essa posição ao que Freud (1930 / 1988) chama de ego ideal, regulado pela economia

narcísica primária da libido. Ao mesmo tempo em que acredita poder impor suas leis, o

sujeito não se submete a nada que lhe seja exterior, inclusive crê que possa subjugar os outros.

Para Freud (1930) a civilização tem que utilizar reforços supremos a fim de

estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sobre

controle por formações psíquicas reativas, conferidas em um fenômeno denominado

“narcisismo das pequenas diferenças”. Se analisarmos subgrupos que convivem próximos,

poderemos notar que pela união entre seus componentes, são criadas investidas contra outros

subgrupos. Na contrariedade ao outro grupo, o indivíduo canaliza sua contrariedade aos

companheiros e “unido no amor se volta contra os outros”. Não é fácil abandonar a inclinação

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para a agressão. Ela não se apresenta sempre fisicamente, mas pode vir como calúnias, por

exemplo, ou pelo desprezo de um grupo para com outro.

Freud (1930 / 1988) argumenta que a tendência para a agressão constitui, uma

disposição instintiva original e auto-subsistente, e se caracteriza como o maior impedimento à

civilização evoluir ainda mais. Já em sua origem ela é retratada pela luta entre o Eros (instinto

de vida) e Tanatos (instinto de morte). Como forma de inibir a agressividade natural o ser

humano a introjeta, internaliza e envia de volta para o lugar de onde veio: o próprio ego. A

agressividade é assumida por parte do eu, que se coloca contra todo o resto como superego.

Então, através da consciência, põe novamente em ação contra o ego a mesma agressividade

rude que o ego teria pretendido satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos.

3.4. Um violento contra-ataque

A ameaça de hostilidade que carregamos conosco faz com que seja despertada

desconfiança diante de outras pessoas, de que elas poderão ser agressivas, e por isso ficamos

na defensiva. É uma busca contínua por segurança que a vida em conjunto - apesar de suas

regras e limites - não proporciona. O homem abdica de seu caráter selvagem, mas o instinto

de autopreservação nunca poderá ser abandonado.

De acordo com Freud (1930 / 1988) a privação das satisfações não se faz

impunemente e essa perda precisa ser suficientemente compensada para não acarretar sérios

distúrbios. Diante de abdicações para se enquadrar à civilização o ser humano precisa dar um

sentido à vida, necessita de uma recompensa, um prêmio depois de tanta renúncia, e acaba

vivendo na esperança de uma indenização.

Birman (2001) aponta que no Brasil, no nível das classes médias e das elites, a

perversão do sujeito se transforma em estetização da existência, onde não há mais lugar para

coisas básicas, como o amor, a amizade, o afeto gratuito e até mesmo o desejo.

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A única coisa que interessa às individualidades é circunscrever rigidamente o território

medíocre de sua existência à custa do gozo predatório sobre o corpo do outro, a quem

tratam como anônimos e sem rosto. As individualidades não se afeiçoam mais aos

corpos que lhe possibilitam prazer e gozo, meras mediações que são para o incremento

das suas imagens narcísicas (Birman, 2001, p. 284).

No nível das classes populares, segundo o autor supracitado, devido à impossibilidade

das individualidades terem respeitados direitos básicos de cidadãos e serem reconhecidos

como tal, assiste-se à crescente utilização da agressividade como forma básica de tornar

possível a sobrevivência diante da violência instituída pelos dispositivos de poder e formas de

ação das elites.

A violência é a única forma de esses grupos sociais poderem afrontar a arrogância, a

impunidade e o saqueamento corsário do Estado realizado pelas elites políticas,

industriais e financeiras do país, que estão muito mal acostumadas a serem protegidas

pelo Estado à custa da predação daqueles grupos (Birman, 2001, p. 284).

Oliven (1982) encara a violência urbana como uma forma individualista de subversão

da ordem social, que acaba sendo expressa por comportamentos desviantes Os “bandos de

adolescentes pobres” que se envolvem na maioria dos assaltos e roubos à mão armada,

chamados de “marginais”, são um subproduto do processo selvagem de acumulação de capital

do país, que recorrem a modos não-ortodoxos para obter sua riqueza que existe lado a lado

com a espantosa pobreza em qualquer cidade brasileira. “Recorrer ao crime é naturalmente

uma reação praticada por uma minoria. A maioria da população urbana brasileira tem de agir

nos limites das normas e chegar a um convívio com as regras vigentes” (p. 122).

Chauí (1996) afirma que é possível uma análise da violência popular, onde transpareça

sua ambigüidade fundamental: longe de ser uma luta para ser considerado pessoa trata-se da

luta para ser considerado sujeito, isto é, alguém dotado de direitos. A autora recorre a uma

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definição do espaço popular em três mundos simultâneos, elaborado por Da Matta (1982). O

mundo da rua é o espaço formal, legal, da individualidade anônima, do mercado e da

sociabilidade capitalista. O mundo da casa corresponde ao mundo pessoal, onde se possui

identidade reconhecida, regido por valores de lealdade e amizade, respeito e fidelidade aos

parentes, compadres, amigos e vizinhos, tecidos por relações de favor e onde se transmitem

experiências e informações. O outro mundo é a região do sagrado, dos milagres e aparições,

no qual se promete justiça final.

Da Matta (1982) também defende que a violência popular corresponde a um esforço

para repor a pessoa ao lugar do indivíduo, opor alguém a ninguém, ou reconquistar a

personalidade concreta contra a cidadania abstrata, ou seja, a rua precisa ser reconfigurada

com os atributos da casa, e a casa deixar de ter os riscos da rua. Isto significa a equiparação de

valores tanto no microcosmo que a casa representa, quanto no âmbito macro da rua.

Chauí (1996) discorda de Da Matta (1982), quando se trata dos problemas brasileiros.

Para a autora, no Brasil não há cidadania plena e universal, ainda que abstrata, pelo menos no

que se refere às camadas populares. Na verdade o que ocorre é uma contraviolência popular.

Se realiza uma revolta antiliberal da “casa” contra a “rua”, que representa o privilégio do

privado sobre o público. Segundo Chauí (1996) é como se a marca da violência dos

dominantes impusesse a “sua casa” à “nossa rua” (p. 136).

Ela se efetua como revolta contra a “rua deles”, em nome de uma rua ideal que poderia

ser a nossa rua. Cremos que é porque o direito aos direitos é recusado pela rua deles,

isto é, pela sociedade global, que a “periferia” organiza o pedaço no qual prevalecem

apenas as relações do “mundo da casa”, mas estas se combinam para criar uma outra

rua (Chauí, 1996, p. 136,137).

Oliveira (1993), através das entrevistas realizadas com moradores de favelas do Rio de

Janeiro, também detectou o que parece ser um senso de pertinência a um grupo ou classe

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social, cuja “condição fundamental de sobrevivência se vincula a uma espécie de sentimento

gregário defensivo e agressivo ao mesmo tempo: é um ‘nós’ contra ‘eles’, os que não moram

na favela, os do ‘asfalto’” (p. 33).

Kowarick (1980) é da mesma opinião que Chauí (1996) em relação à cidadania das

classes populares brasileiras. Não é somente a cidadania, entendida como um rol mínimo e

imprescindível de direitos, que está ausente. Ele destaca que a condição de morador urbano,

se não representa acesso a determinados bens, abre, em princípio, o caminho para reivindicar

sua obtenção, mas com as populações de baixa renda isso não é possível.

A condição de favelado representa uma vulnerabilidade que o atinge não apenas

enquanto morador: atinge-o também no cerne dos direitos civis, pois mais fácil e

freqüentemente pode ser confundido com ‘malandros’ ou ‘maloqueiros’ que

constituem objeto especial da ação policial. E muitos são confundidos, o que faz que,

mesmo aqueles que não tenham passado pela experiência, interiorizem a iminência do

perigo. Foco de batidas policiais, a favela é também estigmatizada pelos habitantes

“bem comportados” como antro de desordem que destoa da paisagem dos bairros

melhor providos, precisando ser removida para que a tranqüilidade volte a reinar no

quotidiano das famílias que se sentem contaminadas pelo perigo da proximidade dos

barracos (Kowarick, 1980, p. 92).

Para Birman (2001) já não há sentido em se considerar a agressividade nas classes

populares como formas reveladoras da destrutividade inerente ao ser humano. Ele considera a

progressão da violência popular no Brasil como positiva, na medida em que demonstra uma

forma de contrapoder face aos dispositivos instituídos do poder e de sobrevivência dessas

individualidades no campo do capitalismo selvagem. O fato de as classes populares se

voltarem para a violência diante do quadro social existente no Brasil implica à ausência de

mecanismos institucionais e organização política legítima.

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A violência popular é uma forma legítima de sobrevivência das individualidades face à

institucionalidade discutível dos dispositivos sociais da justiça e da polícia, que não

reconhecem os direitos de cidadania desses grupos sociais. Já vai muito longe o tempo

em que se encaravam essas formas de violência da perspectiva do crime. Como

violência legítima das individualidades, como exercício positivo do contrapoder das

classes populares, esta violência não pode ser absolutamente criminalizada (Birman,

2001, p. 285).

3.5. A sub-habitação como raiz da violência

A cada dia, a partir de noticiários televisivos, jornais e revistas, somos bombardeados

com uma grande quantidade de informações que retratam o aumento da criminalidade e da

intolerância. Isto acontece em todos os campos: assaltos a residências, lojas e bancos,

assassinatos por crimes passionais, brigas de trânsito, discussões entre vizinhos, atentados

terroristas, rebeliões em presídios e abrigos para menores, etc.

Segundo Oliven (1982), a preocupação com a marginalidade urbana na América

Latina começou a se desenvolver depois da Segunda Guerra Mundial quando núcleos de

populações, vivendo em condições precárias e geralmente ocupando solos ilegalmente,

começaram a aparecer na periferia da maior parte das grandes cidades. No Brasil esses

núcleos são chamados de favelas.

Torres (2004) destaca uma projeção feita pela Organização das Nações Unidas (ONU),

prevendo que em 2030, um quarto da população mundial estará vivendo em favelas. O Brasil

é o país latino-americano onde se concentra o maior número delas e, portanto, esse fato deve

chamar a atenção de todas as áreas da psicologia brasileira. Pochmann (2004) destaca que

apenas 26% dos brasileiros vivem em “ilhas territoriais” que podem ser associadas à inclusão

social, embora se encontrem rodeadas por um “mar revolto” da exclusão social (p. 24)

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De acordo com Chauí (1996) em nosso país a população das grandes cidades se divide

entre do “centro” e da “periferia”. Isto acontece não apenas no sentido espacial-geográfico,

mas social, designando bairros afastados onde estão ausentes todos os serviços básicos (luz,

água, esgoto, calçamento, transporte, escola, posto médico). Entretanto, esta situação também

é encontrada no centro, isto é, nos bolsões de pobreza que caracterizam as favelas (p. 58).

Blay (1979), que realizou estudos nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, explica

que as favelas surgiram no Brasil como loteamentos precários da periferia que acabaram

sendo absorvidos pela cidade e se tornaram bairros.

De acordo com Alves (1990) o processo de favelização se intensificou a partir dos

anos 30, com a invasão de terrenos públicos ou privados, com a industrialização funcionando

como atrativo aos migrantes. O que era residência provisória se tornou definitiva. No Rio de

Janeiro, um dos estados onde as favelas já fazem parte do cenário, o recenseamento de 1920

foi o primeiro a registrar uma favela: 839 casas no Morro da Providência. Na década de 60,

um terço da população do Rio vivia em favelas e hoje se estima que 1,5 milhões de pessoas

moram em cerca de 520 aglomerações de casas e barracos.

Se tomarmos como base a população do Rio estimada para 1990 – 6.016.700 – a

proporção de favelados gira em torno de 25%, bem superior ao índice de 10 anos atrás,

14,2%. E talvez fosse maior ainda, sem as remoções de pelo menos 80 favelas entre os

anos 60 e 70 (Alves, 1990, p. 16).

Para Meyer (1979), esta atitude desesperada de instalação física da população de baixa

renda nas cidades gera núcleos de habitação segregados, que se estendem a todas as demais

atividades. A favela que proliferou no Brasil na década de 50 tem características marcantes de

fenômeno ilegal. A implantação ocorre junto às zonas mais urbanizadas. Nesses locais a

oferta de trabalho é maior e é possível eliminar o transporte para ir ao trabalho. A

ostensividade das favelas revela a incapacidade dos mecanismos urbanos de assimilar

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adequadamente essas populações, constituindo uma permanente denúncia das práticas sociais

contraditórias que ameaçam a ordem urbana estabelecida.

Blay (1979) acrescenta que em seguida à ocupação intensiva do espaço, a população

se organiza para obter da municipalidade a extensão de serviços urbanos como luz, água,

segurança e transporte. Normalmente essas reivindicações não chegam a ser atendidas.

Pochmann (2004) revela que o não estabelecimento do Estado de bem-estar social no Brasil

definiu que os excluídos do mercado de trabalho permaneçam sem acesso às condições

básicas de vida, disponibilidade de moradia decente, saúde, transporte, previdência e

educação pública, entre outros.

Pochmann (2004) frisa que esse quadro foi ainda mais agravado pela adoção de

políticas de corte neoliberais a partir de 1990, quando passou a ser restringido o sistema de

proteção social. .Ao mesmo tempo, condições gerais de produção e reprodução da exclusão

social tornam-se ainda mais complexas. Em geral, o processo de desconstrução das políticas

sociais anteriormente estabelecidas ocorreu sem a simultânea construção de algo superior.

Meyer (1979) entende que a multiplicação desses núcleos de habitação no seio da

cidade traduz a patologia do crescimento urbano. A ameaça não paira apenas sobre a ordem

político-econômica estabelecida, mas traz consigo uma grande quantidade de problemas

sanitários que atingem toda população.

Kowarick (1980), que realizou um estudo junto às favelas do município de São Paulo,

pensa que a favelização revela solução de sobrevivência porque representa diminuição nos

gastos com moradia e transportes, além de economia no tempo de locomoção. Montar um

barraco, por exemplo, desde que haja terreno disponível, acaba por se tornar mais acessível

em termos de rapidez e custo do que construir ou comprar uma moradia.

Oliven (1982) concorda com Kowarick (1980) e acrescenta que é possível perceber a

favela não como um problema, mas uma “solução” à necessidade de abrigo e à sub-habitação.

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Esses núcleos de habitação são apenas indicadores da situação complexa caracterizada por

desemprego e subemprego. Mesmo assim, geralmente a primeira reação ao “problema” da

marginalidade é encará-lo como restrito à precariedade da habitação, já que esta é o aspecto

mais visível da questão (p. 110).

Apesar de sua limitação explicativa e das críticas que lhe foram dirigidas, este tipo de

abordagem habitacional é ainda empregado com freqüência. É obviamente mais

cômodo falar sobre favelas do que sobre pobreza. Existe, assim, uma tendência de

tratar a favela não como a categoria habitacional que ela é, mas como se ela fosse uma

entidade social. Toda esta abordagem ecológica proporciona, é claro, um tema

constante para uma série de instituições e pessoas que têm interesse em deixar a

questão concentrada neste nível em vez de encaminhá-la para um nível social mais

amplo (Oliven, 1982, p. 41).

Kowarick (1980) salienta que o padrão de moradia reflete o processo de segregação e

discriminação presente numa sociedade plena de contrastes que perpassa todos os patamares

da pirâmide social em que os mais ricos procuram se diferenciar e se distanciar dos mais

pobres. No entanto, é a favela que recebe de todos os outros moradores da cidade um estigma

que condensa os males de uma pobreza que, por ser excessiva, é tida como viciosa e, no mais

das vezes, considerada perigosa: “A cidade olha a favela como uma realidade patológica, uma

doença, uma praga, um quisto, uma calamidade pública” (p. 93).

Para Oliven, (1982), o que acontece no Brasil é que os diferentes modos de enfrentar

necessidades são freqüentemente rotulados de “problemas urbanos”, como o “problema das

favelas”, o “problema do setor informal”, etc. Na realidade eles seriam “soluções”, mesmo

que precárias, a situações e problemas com os quais as classes baixas urbanas se defrontam.

Embora estas soluções muitas vezes destoem dos modos “racionais” de resolver problemas,

na verdade elas funcionam como integrantes da lógica do sistema econômico e social (p. 92).

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3.6. Baixa renda e preconceito

A discussão da moradia remete à aquisição de uma visão agressiva das favelas que

corresponde ao preconceito. De acordo com Blay (1979), dentre os vários julgamentos sobre a

população que habita favelas resiste o que supõe ser esta composta por indivíduos que não

trabalham e vivem de expedientes ou roubos. Um estudo realizado pela autora em 1979

investigando as características profissionais e econômicas da população favelada de São

Paulo, apesar de desatualizado, serve para mostrar como essa percepção não condiz com a

realidade. Os resultados demonstram que, em oposição a este preconceito, essa população é

composta de uma percentagem de trabalhadores mais elevada do que a taxa encontrada na

própria cidade: a taxa de atividade encontrada nas favelas foi de 55,9% ao passo que no

município de São Paulo o resultado foi de 39,3%.

Pochmann (2004) comenta que nas últimas décadas a decepcionante expansão do

emprego assalariado foi acompanhada da queda na taxa de assalariamento formal, o que

resultou na diminuição relativa do emprego assalariado no total das ocupações. De outro lado,

a economia nacional produziu fundamentalmente ocupações precárias (assalariados sem

registro em carteira, autônomos e ocupados não remunerados) e desemprego em excesso. Para

os anos de 1980 e 2000, o desemprego aumentou mais de 13% ao ano, enquanto as ocupações

informais cresceram 2,4% como média nacional.

Alves (1990) aponta uma “visão míope” de que a favela não passa de uma violenta

aglomeração de pessoas, amontoadas em barracos, disputando a proteção de quadrilhas de

traficantes. Em geral, o que se chama indistintamente de favelas, quase sempre em tom

pejorativo, são bairros pobres, erguidos de forma clandestina, que se consolidam através da

luta solitária de seus moradores (p. 15).

Kowarick (1980) acrescenta que, inúmeros dados mostram que a favela é um

microcosmo onde se espelha o conjunto de situações sócio-econômicas e culturais que

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caracteriza os habitantes pobres da cidade. “Lá, como em qualquer outro lugar, existe

desorganização social, e condutas não sancionadas, mas como em qualquer outro lugar onde

morem famílias de baixa renda, existe o trabalhador braçal que vende sua força de trabalho no

mercado a preços quase sempre irrisórios” (p. 159).

Para explicar essa contradição, Blay (1979) afirma que apesar de a população que

reside na favela ser trabalhadora, em 1979, quando a investigação foi realizada, 77,5% dos

chefes de família ganhavam até dois salários mínimos apenas.

Com este nível de renda torna-se inviável qualquer tipo de moradia urbana adequada.

E como as cidades médias e pequenas, objeto da atual política de planejamento

urbano, vão reproduzir as mesmas condições de trabalho e de remuneração,

certamente não se poderá evitar a reprodução das favelas resultantes daquelas

condições básicas. Pode-se prever então que o fenômeno das favelas se difunda e

amplie por todo o interior do Estado, mesmo nos locais onde elas ainda não existem

(Blay, 1979, p. 175).

Quase 30 anos depois, Pochmann (2004) confirma o discurso acima: a insuficiência

dos baixos salários obrigou até mesmo a elite do operariado industrial a combinar o seu modo

de vida com normas de consumo e produção informal, bem como a autoconstrução em

favelas. O emprego do operariado nos setores mais modernos da economia nacional terminou

vinculando-se direta e indiretamente às velhas formas de trabalho e produção precárias e

atrasadas.

Segundo Kowarick (1980) a precariedade das condições de vida, por si só, já impede a

classificação do favelado como cidadão urbano. A favela é percebida como um atestado

potencial de má conduta. Até nas relações de trabalho o favelado é estigmatizado, visto que

algumas empresas deixam de empregar um indivíduo pelo fato de morar numa favela.

Também é comum que nas residências das classes mais abastadas não se aceite ou até mesmo

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se demita uma empregada doméstica quando a patroa descobre a origem domiciliar daquela

que convive nos quartos dos fundos das moradias burguesas.

O autor citado acima, concorda que na favela existam mendigos, prostitutas ou

delinqüentes, mas como em qualquer outro bairro pobre da cidade, impera o trabalhador

assalariado ou autônomo que leva adiante a engrenagem produtiva. Mesmo assim, o fato de

ser favelado tem desqualificado o indivíduo da condição de habitante urbano e retira-lhe as

condições de exercício de defesa que se processa em torno da questão de moradia.

Ocupante de terra alheia, o favelado passa a ser definido por sua situação de

ilegalidade e sobre ele desaba o império draconiano dos direitos fundamentais da

sociedade, centrados na propriedade privada, cuja contrapartida necessária é a

anulação de sua prerrogativa enquanto morador. Assim, nem nesse aspecto mínimo o

favelado tem aparecido enquanto cidadão urbano, surgindo aos olhos da sociedade

como usurpador que pode ser destituído sem possibilidade de defesa, pois contra ele

paira o reino da legalidade que assenta o direito de expulsá-lo (Kowarick, 1980, p. 91).

Entretanto, o autor citado acima pensa que o bairro pobre não deixa de ser problema,

pelo menos em dois sentidos: porque choca o bom cidadão e porque, na medida em que com a

expansão da cidade a área começa a se valorizar, diante da ausência de direito de propriedade,

o favelado precisa juntar suas coisas e se instalar em outro lugar até que a cidade o expulse

novamente. Na medida em que choca a sociedade, a favela alarma a consciência tranqüila,

que adivinha no amontoado de barracos um foco de delinqüência, promiscuidade e vadiagem.

Oliveira (1993) refere que os moradores se ressentem do preconceito. Esse sentimento

é reforçado pelos meios de comunicação, que consolidam, através de generalizações, a

imagem da favela como local perigoso, onde vivem bandidos. A autora acredita que a

imprensa reforça a imagem negativa, tanto para quem mora no local como para quem mora

fora. A veiculação de notícias sobre transgressões de moradores da favela pela imprensa,

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influencia e compõe a imagem do morador sobre a comunidade, pois se associam a fatos

conhecidos.

Enfatiza-se a discriminação sentida pelo morador, divulgando a criminalidade

vinculada à favela, embora ela seja impune em outros meios sociais. Priorizam-se as

notícias sobre a violência no morro, não divulgando com a mesma ênfase o cotidiano

da favela e de suas organizações comunitárias. Os moradores percebem a importância

disso na formação da opinião pública sobre seu local de moradia (Oliveira, 1993,

p.48).

3.7. A manifestação da insegurança em Cachoeira do Sul

Em Cachoeira do Sul a situação não é diferente. Nos últimos meses a questão do

crescimento da violência tem recebido destaque especial nos meios de comunicação. Ao todo,

o município conta com três emissoras de rádio AM, três emissoras FM, um canal de televisão

com franquia da rede Shop Tour, e dois jornais de circulação diária, denominados Jornal do

Povo e O Correio. Este estudo detém-se a pesquisar especificamente edições do Jornal do

Povo publicadas no período de Janeiro de 2003 a Novembro de 2005.

Para Spink (2000), os grandes jornais diários são ótimas vitrines para as idas e vindas

dos sentidos. Eles tendem a guardar suas edições durante anos, o que permite aos

pesquisadores voltarem a eles de forma mais ordenada, buscando compreender nas entrelinhas

dos movimentos políticos, econômicos e sociais as sutis, e às vezes não tão sutis, alterações

nas práticas discursivas.

Simultaneamente ao crescimento das estatísticas de violência, o Jornal do Povo em

especial, passaram a veicular notícias sobre o início de uma união entre cidadãos residentes

nos bairros Soares, Rio Branco e São Luís. O objetivo dos moradores que representam a parte

nobre da cidade é tomar uma atitude frente à sensação insegurança que ronda os locais.

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A indicação do foco da violência tem recaído sobre um espaço urbano denominado

Beco dos Trilhos, habitado por cerca de 300 famílias de baixa renda, totalizando cerca de

1.800 pessoas. Se levarmos em conta que conforme o Censo do IBGE de 2002 o município de

Cachoeira do Sul tem 88.384 habitantes, cerca de 2% da população reside no Beco.

O local é circundado pelos bairros nobres da cidade na zona centro-leste de Cachoeira

do Sul. De acordo com o Relatório do projeto Beco dos Trilhos (2003), realizado pela Ulbra –

Campus Cachoeira do Sul, a região corresponde a uma área que até o final da década de 60

era ocupada pela antiga Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA). Daí o nome Beco dos

Trilhos: o percurso da área, que mede em torno de cinco quilômetros de extensão, remete ao

percurso da malha ferroviária.

O Beco inicia no Alto do Amorim, zona leste da cidade, e se estende no sentido oeste

cortando a cidade ao meio até o Bairro Fátima, nas imediações da Vila Militar e das

instalações das Guarnição Federal. Com a desativação das estradas de ferro do Brasil, em

1980, por usucapião, a área passou a ser propriedade do município.

É preciso salientar que nem todo o espaço correspondente ao Beco dos Trilhos é

ocupado pela população carente. O núcleo populacional está localizado entre as ruas Isidoro

Neves da Fontoura e Presidente Vargas. O percurso inicia na rua atrás da Delegacia de

Polícia, há cerca de três quarteirões das ruas Sete de Setembro e Júlio de Castilhos, centro

urbano-comercial do município, e se estende por cerca de cinco quarteirões através de uma

única ruela, sem outras vias transversais. No local não há saneamento básico como água

tratada ou serviço de esgotos e as ruas não são pavimentadas. Toda a área é ocupada

irregularmente e por conseqüência não consta do mapa do município.

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3.8. O início da polêmica

Segundo o Jornal do Povo, que noticia uma série de relatos de moradores dos bairros

nobres sobre o sentimento de insegurança, a urgência na tomada de alguma atitude para

conter a violência em Cachoeira do Sul vem surgindo desde 2003. Neste ano, um grupo de

moradores dos bairros Soares, Rio Branco e Santo Antônio entregou ao promotor de justiça

do município uma lista com o nome de pelo menos 160 moradores solicitando providências

contra o aumento da criminalidade, caracterizada por pequenos delitos, como arrombamentos

de residências e veículos. O abaixo-assinado foi entregue ao secretário de Segurança do Rio

Grande do Sul para que fosse realizada uma reunião com os moradores, mas a reunião acabou

não acontecendo. (JP, de 25 e 26.12.2004, p. 18).

Em dezembro de 2004, outro documento exigindo providências foi entregue à

Promotoria de Justiça. A notícia nos jornais acabou gerando grande discussão sobre o assunto

e várias manifestações da população, inclusive com opiniões enviadas ao Jornal do Povo

jornais. Cerca de um mês depois, no dia 24 de Janeiro de 2005, o tema foi novamente posto

em questão, quando o Jornal do Povo veicula uma proposta de união entre os moradores dos

bairros nobres contra a insegurança. As queixas foram levantadas em uma reunião que

contou com a presença do delegado regional de polícia, oficiais da Brigada Militar e de

vereadores da cidade.

No dia 10 de Março de 2005 é fundada a Associação dos Moradores dos Bairros Rio

Branco, Soares e São Luís, que, conforme o Jornal do Povo, tem como objetivo encontrar

uma “solução para a convivência entre os chamados ‘bairros sitiados’ e o Beco dos Trilhos”.

Aparentemente para aliviar a tensão causada pelos contrapontos, nos dias 19 e 20 de Março o

Jornal do Povo publicou uma série de bons exemplos de moradores do Beco, mostrando o

outro lado da situação e procurando desestigmatizar os moradores do local.

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Ao ser pressionada pela mídia e pela nova associação de moradores, a Prefeitura

Municipal de Cachoeira do Sul retomou o que foi chamado de “processo de urbanização da

área”, iniciado pela administração anterior, inclusive com um levantamento demográfico do

local. O processo envolve a abertura de ruas e a remoção de pelo menos 20 famílias. A

Secretaria Municipal de Trabalho e Ação Social (Stas) foi acionada para realizar novo

trabalho de levantamento de dados e traçar o perfil das famílias a serem remanejadas. No mês

de Outubro o nome “Beco dos Trilhos” foi alterado para “Bairro Virgilino Jaime Zinn”, com

o sentido de humanizar da região.

É interessante ressaltar que desde o início a questão vem sendo acompanhada de perto

pela mídia. O Jornal do Povo chega a publicar uma enquete promovida através de internet

onde 59 votantes voluntários responderam “Qual a melhor solução para o Beco dos Trilhos do

Rio Branco?”. Do total de votos, 33,90% pensa ser melhor remover as famílias para uma nova

área; 32,20% acreditar ser melhor urbanizar a área sem remover as famílias; 20,34% prefere

desenvolver projetos sociais com os moradores; 11,86% quer exigir presença mais constante

da Brigada Militar e 1,69% vota em deixar como está. (JP, 03.03.2005, p. 3). Resta agora

saber como a população reagirá às decisões práticas tomadas pela Prefeitura Municipal.

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4. Método

4.1. Pressupostos teórico-metodológicos

O método de investigação utilizado neste trabalho é a pesquisa qualitativa. A

entrevista semi-estruturada guia a coleta de dados, que são analisados através do método de

práticas discursivas e produção de sentidos. A técnica de interpretação das entrevistas é

baseada no mapa de associações de idéias (Spink, 2000).

A abordagem qualitativa foi escolhida com o objetivo de aprofundar a compreensão do

grupo social, sem ficar retido à representatividade numérica. Conforme Goldenberg (2000),

muitos cientistas acusam a pesquisa qualitativa de não apresentar padrões de objetividade,

rigor e controle científico. Isto porque a abordagem não possui testes adequados e

fidedignidade, assim como não produz generalizações que visem à construção de um conjunto

das leis do comportamento humano. Para o autor, outra crítica diz respeito à falta de regras de

procedimento rigorosas para guiar as atividades da coleta de dados, o que pode dar margem

para que o viés do pesquisador venha a modelar os dados que coleta, que, portanto, não

podem ser usados como evidência científica.

Em defesa do método, Becker (2000) enfatiza que na discussão sobre a

representatividade dos dados coletados através de uma pesquisa qualitativa está embutida a

questão da possibilidade (ou não) de sua generalização, a partir do modelo das ciências

naturais que se impõe como paradigma. Para o autor as abordagens qualitativas não se

preocupam em fixar leis para produzir generalizações. Goldenberg (2000) explica que os

dados da pesquisa qualitativa objetivam a compreensão profunda de certos fenômenos sociais

apoiados no pressuposto da maior relevância do aspecto subjetivo da ação social.

Contrapõem-se, assim, à incapacidade da estatística de dar conta dos fenômenos que não

podem ser identificados através de questionários padronizados.

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Triviños (1987) salienta que o pesquisador qualitativo considera a participação do

sujeito como um dos elementos de seu fazer científico. Ele se apóia em técnicas e métodos

que reúnem características sui generis, que ressaltam sua implicação e da pessoa que fornece

as informações. Conforme o autor, a pesquisa de caráter qualitativo não admite visões

isoladas, parceladas, estanques. No entanto, se desenvolve em interação dinâmica

retroalimentado-se, reformulando-se constantemente, de maneira que, por exemplo, a Coleta

de Dados num instante deixa de ser tal e se transforma na Análise de Dados. Esta, em seguida,

é veículo para nova busca de informações.

As idéias expressas por um sujeito numa entrevista, verbi gratia, imediatamente

analisadas e interpretadas, podem recomendar novos encontros com outras pessoas ou

a mesma, para explorar aprofundadamente o mesmo assunto ou outros tópicos que se

consideram importantes para o esclarecimento do problema inicial que originou o

estudo. Não obstante o que anteriormente foi expresso, a Coleta e a Análise de Dados

são tão vitais na pesquisa qualitativa, talvez mais que na investigação tradicional, pela

implicância nelas do investigador, que precisam de enfoques aprofundados, tendo

presente, porém, o que acabamos de ressaltar: seu processo unitário, integral”

(Triviños, 1987, p. 150)

4.2. Participantes da Pesquisa

O recrutamento dos participantes foi realizado durante o mês de novembro de 2005,

através de visitas a residências localizadas em áreas estratégicas de proximidade entre os

bairros. O critério de seleção do público alvo foi a residência em áreas que aproximem cada

um dos três bairros do Beco, ou seja, próximas às divisas. A pretensão é abordar moradores

que se sintam integrados à questão que envolve a discussão. Desta forma, o convite aos

moradores inicia-se a partir da casa mais próxima à divisa, em direção a mais distante. A

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amostra foi selecionada a partir da concordância em participar do projeto, seguida dos

critérios relatados acima.

O tempo mínimo de residência no bairro de três anos é outro critério da triagem.

Entende-se necessário delimitar tempo mínimo de moradia em função de que o sujeito possa

ter vivido a polêmica desde o início, e possua condições de se manifestar sobre a temática. No

total, oito pessoas responderam à entrevista, realizada durante os primeiros dias de novembro

de 2005. Foram selecionados dois representantes do Beco dos Trilhos, dois moradores do

Bairro Soares, dois do Bairro Rio Branco e dois do Bairro São Luís.

Figura 1.

De acordo com Goldenberg (2000), em princípio, o pesquisador entrevista pessoas que

parecem saber mais sobre o tema estudado do que quaisquer outras. Acredita-se que essas

pessoas estão no topo de uma hierarquia de credibilidade, isto é, o que dizem é mais

verdadeiro do que aquilo que outras que não conhecem tão bem o assunto, diriam. Na

verdade, o pesquisador não deve se limitar a escutar apenas estas pessoas. Deve também

entrevistar quem nunca é ouvido, invertendo assim esta hierarquia de credibilidade.

No recrutamento os moradores foram submetidos ao convite (Apêndice A) e

informados sobre os objetivos da pesquisa. Os sujeitos que aceitaram participar da pesquisa

Gustavo

Fabiano

Ana

Rui

Bento

IaraTaís

Lúcia

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preencheram a Ficha de Dados Demográficos (Apêndice B) e assinaram o termo de

Consentimento Livre e Informado (Apêndice C).

A amostra pode ser considerada variada na maioria das características dos sujeitos

(Tabela 1). A idade dos quatro homens e quatro mulheres que responderam à pesquisa varia

entre 23 anos e 63 anos. Em termos de escolaridade, a quase totalidade completou o Ensino

Médio e é casada. O tempo de moradia no bairro também é variável e vai desde três anos e

meio de residência até cerca de 40 anos de moradia no local. Todos os nomes foram

modificados a fim de garantir a confidencialidade do estudo (Tabela 1).

Tabela 1 – Dados de Identificação dos Participantes

Nome Idade Estado

civil

Filhos Escolaridade Profissão Bairro onde

reside

Tempo de

moradia

Iara 40 anos Casada 2 4ª série Ensino

Fundamental

doméstica Beco dos

Trilhos

26 anos

Taís 23 anos Solteira 0 Ensino Médio estudante Beco dos

Trilhos

23 anos

Lúcia 47 anos Casada 3 Pós-graduação

empresária São Luís 19 anos

Fabiano 47 anos Casado 2 Ensino Médio

fiscal São Luís 14 anos

Gustavo 63 anos Solteiro 0 Ensino Médio músico/

aposentado

Rio Branco 40 anos

Ana 51 anos Casada 3 Ensino

Superior

caixa de

banco

Soares 9 anos

Bento 54 anos Casado 2 Ensino

Superior

bancário Rio Branco 3,5 anos

Rui 62 anos Casado 3 Ensino Médio militar da

reserva

Soares 29 anos

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4.3. Coleta e Registro de Dados

A coleta de dados foi realizada através de entrevistas semi-estruturadas gravadas e

posteriormente transcritas no processador de textos Word 2003. Nesse tipo de abordagem o

entrevistador participa ativamente e, mesmo com um roteiro pré-definido, tem liberdade de

elaborar perguntas adicionais a fim de clarear questões e favorecer o entendimento do

contexto. Para Triviños (1987), podemos entender por entrevista semi-estruturada, aquela que

parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que interessam à

pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas

hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do sujeito. Desta maneira, o

informante, seguindo espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experiências

dentro do foco principal colocado pelo investigador, começa a participar da elaboração do

conteúdo da pesquisa.

O autor citado acima privilegia a entrevista semi-estruturada porque esta, ao mesmo

tempo em que valoriza a presença do investigador, oferece todas as perspectivas possíveis

para que o informante alcance a liberdade e a espontaneidade necessárias, enriquecendo a

investigação.

Para Goldenberg (2000), um dos principais problemas das entrevistas e questionários é

detectar o grau de veracidade dos depoimentos. Trabalhando com estes instrumentos de

pesquisa é bom recordar que lidamos com o que o indivíduo quer revelar, o que deseja ocultar

e a imagem que pretende projetar de si mesmo e de outros. A personalidade e as atitudes do

pesquisador também interferem no tipo de resposta que ele consegue dos entrevistados.

Mesmo assim, Triviños (1987) refere que é a entrevista semi-estruturada que melhor

atende às necessidades da pesquisa qualitativa. Isto porque é preciso levar em conta que tanto

a escolha das pessoas a serem entrevistadas como a organização das temáticas a serem

exploradas, fazem parte do processo de trabalho.

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A organização das perguntas é resultado das teorias que fundamentam o estudo e as

informações obtidas durante as entrevistas retroalimentam o projeto, dando-lhe novas

dimensões. O novo conhecimento não é considerado como um viés ou algo que sai das

médias, mas é visto como objeto de reflexão do pesquisador para uma possível

reorientação dos seus dados (Triviños, 1987, p. 145).

De acordo com Tavares (2002), as entrevistas semi-estruturadas recebem esse nome

porque o entrevistador tem clareza de seus objetivos, de que tipo de informação necessita para

atingi-los, de como essa informação deve ser obtida, quando ou em que seqüência e em que

condições será considerada. Além de estabelecer um procedimento que garanta a obtenção da

informação necessária de modo padronizado, ela aumenta a confiabilidade ou fidedignidade

da informação obtida e permite a criação de um registro permanente e de um banco de dados

úteis à pesquisa.

Triviños (1987) considera que a entrevista semi-estruturada mantém a presença

consciente e atuante do pesquisador e, ao mesmo tempo, permite a relevância na situação do

ator. Isto favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a

compreensão de sua totalidade, tanto dentro de sua situação específica como de situações de

dimensões maiores. Os instrumentos de coleta de dados não são outra coisa que a teoria em

ação, que apóia a visão do pesquisador. Ele recomenda a gravação da entrevista, ainda que

seja cansativa sua transcrição.

A gravação permite contar com todo o material fornecido pelo informante, o que não

ocorre seguindo outro meio. Por outro lado, e isto tem dado para nós muitos bons

resultados, o mesmo informante pode ajudar a completar, aperfeiçoar e destacar, etc.,

as idéias por ele expostas, caso o fizermos escutar suas próprias palavras gravadas.

Suas observações ao conteúdo de sua entrevista e as já feitas pelo pesquisador podem

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constituir o material inicial para a segunda entrevista e assim sucessivamente

(Triviños, 1987, p. 152).

Segundo Triviños (1987), se a entrevista gravada é acompanhada de anotações gerais

sobre atitudes ou comportamentos do entrevistado, pode contribuir melhor ainda aos

esclarecimentos que persegue o cientista. Às vezes, também são necessários desenhos, planos,

etc., elaborados pelo entrevistado e/ou pelo pesquisador. Uma fotografia fornecida pelo

informante ou feita na hora pode constituir-se de material valioso.

4.4 Análise e Interpretação de Dados

A técnica de análise e interpretação dos dados utilizada é o mapa de associação de

idéias, com base no método de práticas discursivas e produção de sentidos. A técnica é

fundamentada por Mary Jane Spink (2000). Para a autora, o sentido é uma construção social,

um empreendimento coletivo/interativo, por meio do qual as pessoas, na dinâmica das

relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas, constróem os termos a

partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta.

Segundo Spink (2000) os mapas de associação de idéias têm o objetivo de sistematizar

o processo de análise das práticas discursivas em busca dos aspectos formais da construção

lingüística, dos repertórios utilizados nessa construção e da dialogia implícita na produção de

sentidos. Constituem instrumento de visualização que têm duplo objetivo: dar subsídios ao

processo de interpretação e facilitar a comunicação dos passos subjacentes ao processo

interpretativo.

Spink e Medrado (2000) diferenciam discurso de práticas discursivas. Discurso remete

às regularidades lingüísticas, ao uso institucionalizado da linguagem e de sistemas de sinais

de tipo lingüístico. Há tendência à permanência no tempo, embora o contexto histórico possa

mudar radicalmente o discurso. Este aproxima-se da noção de linguagens sociais, é peculiar a

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um estrato específico da sociedade num determinado contexto ou momento histórico, que

molda a forma e o estilo das enunciações, buscando coerência entre contexto, tempo e

interlocutores.

Já as práticas discursivas remetem aos momentos de ressignificações, de rupturas, de

produção de sentidos, ou seja, correspondem aos momentos ativos do uso da

linguagem, nos quais convivem tanto a ordem como a diversidade. É a linguagem em

ação, isto é, as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se

posicionam em relações sociais cotidianas (Spink e Medrado, 2000, p. 41).

Spink e Lima (2000) explicam que a construção de mapas inicia-se pela definição de

categorias gerais, de natureza temática, que refletem sobretudo os objetivos da pesquisa,

constituindo formas de visualização das dimensões teóricas. A seguir, busca-se organizar os

conteúdos a partir dessas categorias, a exemplo das análises de conteúdo, mas procura-se

preservar a seqüência das falas, evitando descontextualizar os conteúdos, e identificar os

processos de interanimação dialógica a partir da esquematização visual da entrevista como um

todo (ou de trechos selecionados da entrevista). Para a consecução desses objetivos o diálogo

é mantido intacto, sem fragmentação, apenas sendo deslocado para as colunas previamente

definidas em função dos objetivos da pesquisa.

De acordo com Pinheiro (2000), ao relacionar práticas discursivas com produção de

sentidos, estamos assumindo que os sentidos não estão na linguagem como materialidade,

mas no discurso que faz da linguagem a ferramenta para construção da realidade.

Em outras palavras, o sentido é produzido interativamente e a interação presente não

inclui apenas alguém que fala e um outro que ouve, mas todos os “outros” que ainda

falam, que ainda ouvem ou que, imaginariamente, poderão falar ou ouvir. É sob esse

ângulo que o diálogo amplia-se, incluindo interlocutores presentes e ausentes.

(Pinheiro, 2000, p. 183)

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A definição de Pinheiro (2000) corrobora a de Berger & Luckmann (1976, em Spink e

Frezza, 2000). Conforme os autores a realidade é socialmente construída, ou seja, a realidade

da vida cotidiana pode ser percebida pelas interações face a face em que o outro é apreendido

a partir de esquemas tipificadores. Segundo Gergen (1985, em Spink e Frezza, 2000), a

investigação sócio-construcionista preocupa-se sobretudo com a explicação dos processos por

meio dos quais as pessoas descrevem, explicam ou dão conta do mundo (incluindo a si

mesmos) em que vivem.

Neste estudo, o mapa de associação de idéias (Apêndice D) foi dividido em cinco

grandes categorias: Geral, Insegurança, Vivências, Pobreza x Violência e Beco dos Trilhos.

Na seção Geral foram inseridos todos os sentidos que o estudo não se propõe a observar, ou

seja, tudo o que é produzido que não será interpretado. A categoria Insegurança foi subdivida

em Insegurança na casa e no bairro e Insegurança em Cachoeira do Sul. A terceira seção

corresponde às Vivências dos entrevistados com subdivisão em Episódios, Mudanças no

Cotidiano e Relações com a Vizinhança. A relação entre Pobreza x violência e a questão do

Beco dos Trilhos completam o mapa.

Todos os relatos foram enquadrados no mapa de associação de idéias, conforme a

categoria em melhor se adeqüam. Ao final da classificação, o mapa produz um efeito

“escada” que permite a percepção do relacionamento entre as categorias, tanto vertical como

horizontalmente. As falas não são cortadas, mas reproduzidas na íntegra, para que nenhum

material seja perdido.

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4.5 Instrumentos de Pesquisa

Conforme referido, a entrevista utilizada é semi-estruturada, portanto as perguntas não

foram formuladas previamente. Descreveremos então, os tópicos que foram examinados na

entrevista, bem como seus objetivos. É relevante ressaltar que tais questões não têm uma

seqüência definida. As perguntas foram elaboradas de acordo com o andamento da entrevista,

visando esclarecer os tópicos abaixo relacionados, elaborados a partir dos objetivos.

4.5.1. A questão da insegurança em casa e no bairro: o objetivo é investigar como e

porque a pessoa se sente em sua casa, entre quatro paredes, com a família. O bairro em que

reside também é alvo do tópico assim como a percepção sobre Cachoeira do Sul.

4.5.2. Mudanças no cotidiano devido à insegurança: levantamento de possíveis

alterações no dia-a-dia que tenham sido ocasionadas devido à onda de violência, tais como

alteração de rotas ou horários, evitar sair desacompanhado, não sair à noite, etc.

4.5.3. Experiência em situação de perigo ou privacidade invadida: investigação de

possíveis situações de perigo sofridas pelo morador, como tentativa de assalto, ameaças,

envolvimento em brigas e discussões, residência ou veículo arrombados, vítima de roubos ou

furtos, ou mesmo a observação de algum caso de vizinhos no bairro.

4.5.4. Relacionamento com a vizinhança: refere-se ao modelo de relacionamento

com os vizinhos: se é uma relação de confiança ou não, se há proximidade ou relacionamento

mais formal, se já precisou de auxílio e recebeu de algum vizinho. Levantadas situações de

vizinhos necessitando ajuda e questionada a atitude que a pessoa pensa que tomaria.

4.5.5. Relação entre pobreza e violência: reconhecimento de possíveis conceitos

sobre aproximação entre pobreza e violência. Investigação do que os moradores pensam sobre

o assunto e se fazem alguma ligação com a situação pela qual estão passando.

4.5.6. Solução para a situação do Beco dos Trilhos: investigação de quais as

soluções, na opinião do morador, são adequadas para melhorar a situação do local.

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5. Resultados e Discussão

5.1. Insegurança: quando o lar se transforma em prisão

Os participantes do estudo relataram nas entrevistas o que sentem quando pensam a

própria casa e o bairro em que vivem com relação ao tema segurança. Os sentidos produzidos

neste momento foram de insegurança, falta de tranqüilidade, apreensão e vulnerabilidade.

Apesar de em alguns casos o sentido não vir declarado na fala, analisando a prática discursiva

como um todo é possível perceber a constância desses sentidos em quase todas as entrevistas.

Os representantes dos bairros do entorno ao Beco, foram unânimes em afirmar a

insegurança como constante no cotidiano. Lúcia, por exemplo, já teve a casa arrombada duas

vezes e destaca que quando o marido vai viajar, não consegue dormir direito à noite. Reclama

que não é possível deixar carros estacionados em frente à sua residência porque

inevitavelmente são roubados. O tráfico de drogas nas proximidades ao Beco é apontado por

ela como um dos fatores desencadeantes do sentimento. Fabiano, que trabalha viajando

durante toda a semana para fiscalizar plantio de lavouras na região, diz que a família “fica em

pânico” quando ele não está em casa e várias vezes já optou por deixar o hotel pago, voltar

para casa e retornar no dia seguinte.

F10C – A segurança nossa aqui... Ela... Foi... A insegurança, né... Foi gradativa... (...)

No primeiro dia em que eu botei o portão eletrônico com grade... A construção de alvenaria

eliminando a entrada né, no pátio da frente da casa, nos fundos já tinha, né... No primeiro

dia eles pularam a grade, roubaram a lâmpada interna e o tapete de limpar os pés aqui na

frente da casa. Uma... Assim uma maneira de dizer que não adiantou nada botar a grade.

Quer dizer foi um custo alto. Um custo dispendioso, uma, uma... Um recurso que a gente

quando tivesse ia fazer, pra obter mais segurança, né. Mas e aí, arrogantemente, pularam ali

e fizeram esse dano. (...) Então nós não temos segurança nenhuma, nenhuma, nenhuma. Tudo

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isso graças ao convívio com o Beco dos Trilhos. (...) Eu, particularmente tenho um mapa do

bairro aqui e só tinha duas casas que não tinham sido assaltadas: era a minha e a do vizinho

aqui do lado. Agora a minha foi assaltada também. Quer dizer: não tem ninguém que não foi

assaltado aqui no bairro. Todos foram assaltados! (Fabiano, sic)

Para Morais (1981) as perspectivas do Brasil e até do mundo para as próximas décadas

é de que o medo seja o pão cotidiano dos cidadãos. O autor comenta que o “espaço amigo”

sonhado por Péricles na Grécia antiga para as cidades foi subvertido por uma urbanização

ferozmente capitalista que vem excedendo o que o homem pode suportar. Em função disso, as

casas não mais expõem suas fachadas românticas e se cercam de muros muito altos que

abrigam ainda cães de guarda. “As pessoas trafegam em seus automóveis com os vidros bem

fechados para evitar abordagens perigosas em cruzamentos e semáforos e, dependendo de por

onde andem a pé, sentem-se como se estivessem em plena prática da ‘roleta russa’” (p12).

Nan Elin (1996), citado por Bauman (1999), completa que a cidade, construída

originalmente em nome da insegurança, para proteger de invasores mal intencionados os que

moram intramuros, tornou-se associada mais com perigo do que com a segurança. O fator

medo aumentou, como indicam os carros fechados, as portas de casa e os sistemas de

segurança, a popularidade das comunidades fechadas e seguras e a crescente vigilância nos

espaços públicos, para não falar nas intermináveis reportagens sobre perigo.

Gustavo, morador do bairro Rio Branco, diz que se sente preso dentro de casa,

enquanto os bandidos estão soltos na rua. Apesar de ter gradeado todo o pátio em volta da

residência, continua se sentindo inseguro e cita a proximidade com o comércio de drogas.

Bauman (1999) acrescenta que na sua sólida materialidade de tijolo e cimento, a “casa”

alimenta o ressentimento e a rebelião. Se estiver fechada ao exterior, se sair é uma perspectiva

distante ou inexistente, a casa se torna uma prisão.

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A imobilidade forçada, a condição de estar preso a um lugar, sem permissão de se

mudar para parte alguma, parece abominável, cruel e repulsiva; é a proibição de

movimento, mais do que a frustração de um efetivo desejo de mudar, que torna essa

situação especialmente ofensiva. Estar proibido de mover-se é um símbolo

poderosíssimo de impotência, de incapacidade e dor (Bauman, 1999, p. 130).

Ana concorda com o depoimento de Gustavo, mesmo considerando sua casa bem

fechada. O medo maior é em relação aos filhos, que saem à noite e chegam de madrugada, na

abertura e fechamento do portão.

A14 - Olha, é aquela... Aquele sentimento de medo mais ou menos generalizado que

todo mundo tem. Eu acho assim que a minha casa é bem fechada, bem segura. Mas... É

aquela coisa, né... Não existe porta fechada pra bandido. (...) No geral é aquilo que todo

mundo tem. Medo de um... Uma abordagem assim quando a gente tá chegando em casa, que

tem ocorrido muito isso aí, né. Então eu sempre procuro assim, olhar bem pros lados, pra ver

se não tem ninguém. Né... A gente tem uma visão boa aqui da rua. Não tem assim lugar que o

pessoal possa se esconder. Então eu sempre procuro ver direitinho assim se não tem

ninguém. E é mais ou menos por aí, assim ó. A gente tem que tá sempre atento, né. Na saída e

na chegada. Quando a gente sai também observa se não tem ninguém na esquina, observando

se a gente tá saindo né, mais ou menos por aí... (Ana, sic).

Morais (1981) alerta para as conseqüências psicológicas que a sensação de estar

desprotegido provoca nas pessoas, frisando que o medo faz definhar. O autor cita como

exemplo um episódio ocorrido em Atlanta, Estados Unidos, onde um homem estava matando

negros. No início eram crianças negras e depois já não eram discriminadas as idades. O clima

de terror teria levado a população negra da cidade a ficar literalmente doente, tanto que uma

mãe entrevistada chegou a referir: “Nossas crianças estão profundamente doentes. Dormem

de bruços ou encolhidas, gemendo. Têm náuseas e calafrios e não podem soltar-se das nossas

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mãos, quando nós temos que trabalhar e usar as mãos”. Nas entrevistas o relato de Bento

ilustra a situação: “nossa parte psicológica, que quê nós temos: como é que poderia dizer o

conceito de segurança? É ficar entre as quatro paredes. Dali pra fora, a insegurança é total

ou deixar um buraco ou uma porta aberta... Fica apreensivo. Apreensivo...” (sic).

De acordo com Vasconcelos (2000) na construção da intimidade vem acontecendo

outra coisa que um simples uso do espaço interior: existe uma dialética que se instaura entre

interior (a moradia como espaço familiar) e exterior (o espaço urbano, a sociedade). Essa

perspectiva faz com que a complementaridade entre interior e exterior desapareça. Nessa ótica

a intimidade é um elemento de qualidade de vida habitacional, mas em primeiro lugar,

funciona como exigência de nível de vida.

Bauman (1999) acrescenta que os medos contemporâneos, os “medos urbanos”

típicos, ao contrário dos que outrora levaram à construção de cidades, concentram-se no

“inimigo interior”. Eles provocam menos preocupação com a integridade da cidade como um

todo – como propriedade coletiva e garante coletivo de segurança individual – do que com o

isolamento e a fortificação do próprio lar dentro da cidade.

Os muros construídos outrora em volta da cidade cruzam agora a própria cidade em

inúmeras direções. Bairros vigiados, espaços públicos com proteção cerrada e

admissão controlada, guardas bem armados no portão dos condomínios e portas

operadas eletronicamente – tudo isso para afastar concidadãos indesejados, não

exércitos estrangeiros, salteadores de estrada, saqueadores ou outros perigos

desconhecidos emboscados extramuros (Bauman, 1999, p. 55).

A entrevista de Bento esboça essa citação. Ele também receia a abertura do portão de

entrada e acabou se acostumando a manter a casa sempre fechada. Apesar de em princípio ter

mostrado aversão à cerca elétrica – pois achava que o sistema dava um ar de “campo de

concentração” – confessa que só se sente tranqüilo agora que a casa tem muro alto e alarme

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eletrônico em todo o terreno. Reclama que nem em dia de festividades pode deixar carros do

lado de fora do muro.

B26 - A gente fica apreensivo, sair de carro, né... No teu caso ali, né. Bota o carro pra

dentro por que... Justamente pra evitar o problema de... O cara tá... Aqui não teria sossego

pra tá conversando. Tu mesmo: como é que está... Como é que está o meu carro será lá na

rua? Botamos pra dentro que a gente fica sossegado (Bento, sic).

Fabiano, morador do Rio Branco, também afirma não poder deixar carros estacionados

na frente da casa, principalmente em dia de comemorações ou aniversários. É necessário

pagar um guarda para que os convidados não sofram as conseqüências de vir à festa. “É vidro

quebrado, é toca-fitas, CDs roubados. Até calota de carro, roubavam calota, pneu. É um

horror, é um horror, um horror, um horror” (sic). Rui também se queixa da impossibilidade

de estacionar o carro na frente de casa sem ficar preocupado. O entrevistado, que mora nas

mediações de um centro de tradições gaúchas no bairro Soares, explica que atualmente os

roubos diminuíram, mas nos dias em que havia baile na entidade os carros eram “limpados”:

eram levados som, bateria e até a gasolina dos veículos.

R16 – Bom... Eu aqui em casa, por enquanto, nós estamos tranqüilos. Apenas nós

tivemos duas invasões no nosso jardim, agora... Dentro de casa internamente não houve

nada... Por enquanto... Mas a insegurança aqui... A gente não tá seguro... Porque se...

Principalmente, se deixar um carro aqui na frente. À noite aqui, ou de tardezinha, o pessoal

invade mesmo... Já tive diversos carros aqui na frente de casa que foram invadidos. O

problema maior é que o pessoal quer o som do carro. Porque o som do carro fica fácil pra

trocar por... Pro receptor e coisa aí... Então isso fica mais fácil, né. Um som... O cara chega

ali e vende ali... Tu paga um som R$ 1.000,00, o cara vende por R$ 200,00, R$ 100,00. Então

essa aí é... (Rui, sic).

De acordo com os entrevistados, um fator que incrementa o sentimento de insegurança

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é a sensação de estar exposto, vulnerável. Para os moradores, ao mesmo tempo em que não se

sabe de onde o perigo pode vir, há impressão de que se está sendo vigiado, percebido. Esta

questão está presente de forma aberta no relato de pelo menos três pessoas e nos demais

aparece subentendida.

Fabiano demonstra sentimentos de ansiedade quando conta um episódio em que o

segundo andar de sua casa foi invadido num dia de chuva onde toda a família estava reunida

no andar térreo. O roubo só foi percebido quando um de seus filhos subiu ao dormitório e

notou manchas de sangue pela casa, causadas pelo corte na mão de um dos assaltantes: “aí

que fomos notar, que tinha sido invadida a privacidade da gente, às seis da tarde. Por uns

elementos que eu nem sei se é homem, se é mulher, se é branco, se é preto” (sic).

Para Bauman (2003) essas situações de sentir a privacidade invadida vão alimentando

a sensação de insegurança, pois “não há suor que faça reabrir o portão fechado que levaria à

inocência comunitária, à multiplicação fundadora do mesmo e à tranqüilidade” (sic). Lúcia

também refere esse sentimento:

L56 – (...) É realmente, eu acho que no fator psicológico é pior porque eles sabem

quem são os filhos da gente. E a gente... Que acontece? Tu te tranca cada vez mais. Tu

convive cada vez menos. Tu pode olhar, tu sair pelo bairro tu vai ver, tu não vê as pessoas

mais na frente. Tu não vê as janelas abertas. Isso aí influencia um horror. Né. As crianças

brincando na rua como era antigamente, tu não vê direi... Mais, entendeu? Então é um fator

psicológico que deixa... (Lúcia, sic)

Bauman (2003) explica que atualmente a promoção da segurança requer o sacrifício da

liberdade. Entretanto, o autor reconhece que segurança sem liberdade equivale à escravidão e

a liberdade sem segurança equivale a estar perdido e abandonado. Essa circunstância torna a

vida em comum um conflito sem fim, pois “a segurança sacrificada em nome da liberdade

tende a ser a segurança dos outros; e a liberdade sacrificada em nome da segurança tende a

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ser a liberdade dos outros” (p. 24). Debord (1997) entende a insegurança como um fator

histórico. Para o autor, o esforço de todos os poderes estabelecidos, desde as experiências da

Revolução Francesa, para ampliar os meios de manter a ordem na rua acaba culminando

afinal com a supressão da rua. “Essa sociedade que suprime a distância geográfica recolhe

interiormente a distância, como separação espetacular” (p. 112).

Bauman (1999) reflete que no momento em que vivemos, o qual ele chama de pós-

modernidade, a comunidade de entendimento comum, se alcançada tende a permanecer frágil

e vulnerável, precisando de vigilância, reforço e defesa. As pessoas que sonham encontrar a

segurança de longo prazo que lhes faz falta em suas atividades cotidianas, provavelmente irão

se desapontar porque a paz de espírito, se alcançada deve ser do tipo “até segunda ordem” (p.

19). Isso faz com que a comunidade do mundo pós-moderno se pareça com uma fortaleza

sitiada, continuamente bombardeada por inimigos.

Para Morais (1981) essa situação ansiógena já caracteriza violência, pois o ser humano

é uma integração entre o físico e o psíquico e fica praticamente impossível ameaçar apenas

um destes componentes. Não se pode ameaçar meio homem, ou seja, a violência está em tudo

que é capaz de imprimir sofrimento ou destruição ao corpo do homem, bem como o que pode

degradar ou causar transtornos à sua integridade psíquica. “Resumindo-se: violentar o homem

é arrancá-lo da sua dignidade física e mental” (p. 24).

A28B - (...) Um dia eu fui na igreja, aqui na igreja evangélica, no colégio Rio Branco,

sabe, num domingo de manhã. E aí tinha um menininho, chegou e disse pra mim: tia, a

senhora quer que eu cuide o seu carro? 09h30min da manhã. Eu disse: não, não precisa a tia

vai ao culto e não vai demorar. Até porque eu não trouxe dinheiro, eu disse pra ele. Eu não

tinha levado. Eu não tinha levado carteira, nada, né. Aí ele disse assim: mas eu sei onde a

senhora mora tia, eu cuido aí outro dia eu vou na sua casa. A senhora é mãe do Carlos, né?

Eu disse: sou. Eu sei onde a senhora mora. Aí eu disse, não, então tá. Aí o que quê eu ia dizer

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pra ele? Então tá, se tu quer cuidar uma hora tu passa lá que a tia te dá um troco. Acho que

não levou assim, ó... Acho que foi de tarde, não consigo lembrar se foi de tarde do mesmo dia

ou no dia seguinte ele já tava batendo aqui. Tia eu vim aqui buscar aquele troco que tu me

disse.(...) Então eles... Eles conhecem a nossa vida, sabe. Tu não te apercebe disso, mas eles

conhecem a vida da gente. E uma das coisas que eu tenho receio aqui assim, ó... É, pessoal

diz: a mas tua casa é bem fechada, não sei o quê, não sei o quê... Eu disse assim: o problema

todo é que eles sabem direitinho, assim ó... Porque eles tocam o interfone, se tu atende eles,

tão em casa. E eles passam toda hora pedindo. Olha lá o vizinho fechando. Eles passam toda

hora pedindo, né... Então assim ó, quando a gente sai, eles sabem se a gente tá em casa, ou

não tá em casa, ou... (Ana, sic).

Dentre os oito participantes, apenas os moradores do Beco dos Trilhos não referem a

insegurança como presente de forma aberta. Iara declara sentir-se tranqüila quando

perguntada a respeito, pois afirma não temer as pessoas da comunidade, nem se preocupar

com horário para chegar ou sair de casa. Entretanto, ao final da entrevista, a participante

reconhece que usualmente tem visto muitas pessoas desconhecidas no bairro que

provavelmente chegam para comprar drogas, das quais o Beco seria um ponto de vendas.

I44B - Não faz muito que eu fui num casamento eu... Cheguemos... O meu marido até

veio mais cedo pra casa, e a gente ficou. Chegamos às 3h30min da madrugada, e nós viemos

de carona, descemos na esquina, e até aqui eu não encontrei nenhum conhecido. Ninguém

conhecido que fosse... Morasse na... Aqui comunidade, né. Só gente de fora. Isso aí que a

gente fica com medo. O pessoal da comunidade eu não tenho medo. Aí só gente de fora. E é...

Se tu ficar aqui tu vai ver daqui há pouco, né. Agora... Graças a Deus diminuiu. Tá bem

tranqüilo, tá ótimo. Tu não vê. Diminuiu mesmo, né. A gurizada que vem freqüentar aqui.

Que vinha... Tu vê. Que tu vê: aquilo ali é gente bem ou não é. Tu já vê, pelo estilo tu vê que

não é daqui, né... (Iara, sic).

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E45 - Mas e o pessoal de fora, vem, tu diz é pra...

I46 - Pra comprar droga... Pra essas coisas, né. Agora graças a Deus diminuiu muito,

tá normal o bairro. Graças a Deus não vê tanto como a gente via antes. (Iara, sic).

Taís, a outra moradora do Beco entrevistada, afirma que se sente segura na própria

casa, mas admite claramente que há um foco de violência que gera sensação de insegurança.

Por outro lado, pensa que todas as pessoas ficam rotuladas por causa “de meia dúzia” (sic).

Em relação a Cachoeira do Sul insegurança parece ser ainda maior do que em casa ou

no bairro. Nesse ponto, inclusive os moradores do Beco dos Trilhos concordam com os

demais. Taís comenta que a insegurança da cidade é um dos motivos de ter escolhido cursar a

universidade à tarde, ao invés do período noturno. Iara confessa ficar mais temerosa quando

sabe sobre aumento na criminalidade em Cachoeira do Sul. Apesar de revelar-se tranqüila na

comunidade, reconhece que há perigos.

I40A - Sobre a marginalização? Sim, eu acho que... Como... Não só nessa comunidade

como todas... Todas as comunidades têm, só que a nossa ficou um pouco visada. (...) o meu

irmão mora... Mora no Bairro Promorar... E fala que é horrível lá também. Ele não sai todos

os dias. Na vila Marina também tem. Esses dias nós íamos alugar o salão lá. E bah, é difícil!

Eles invadem, as pessoas invadem, eles incomodam. Tem que... Contratar até guarda pra

segurança, porque pro aniversário da minha guria eu ia alugar lá. Que até guarda tem

porque não tem... Então, eu acho assim que todos os bairros têm, tá tendo né. (Iara, sic).

O relato de Ana remete novamente a uma espécie de “perda da inocência”. Para ela,

Cachoeira do Sul ainda não está tendo os problemas que existem num grande centro, mas “já

deixou, há bastante tempo, de ter aquela tranqüilidade de cidade do interior” (sic). Essa

peculiaridade de cidade do interior assinalada por Ana, é compreendida por Morais (1981)

como uma espécie de “interdependência”. Isso acontece porque muitos homens habitam um

espaço pequeno porque uns dependem das contribuições dos outros. Enquanto as cidades

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pequenas conseguem manter o lado afetivo da interdependência, os grandes centros

substituem afetividade por uma relação comercial, baseada em obrigações coercitivas.

Morais (1981) explica que se os habitantes das cidadezinhas agem desta ou daquela

forma “em consideração aos conhecidos” ou “zelando por um bom nome familiar”, os

habitantes da metrópole (respeitadas as exceções) são eternos fiscais cobradores dos seus

semelhantes. Por outro lado, para o autor, já foi o tempo em que podíamos dizer aos

familiares: “a rua está ficando perigosa”, pois o perigo, visível ou disfarçado, é onipresente.

Portarias de prédios de apartamentos assemelham-se a guaritas de caserna e os

moradores vivem em neurótico sobressalto. Nas casas, os muros e grades são altos e os

moradores têm que dedicar tempo ao cuidado dos seus cães bravos e das suas armas.

Neste ambiente de guerras, as crianças crescem e se deformam (Morais, 1981, p. 106).

Fabiano afirma que Cachoeira do Sul está em uma situação crítica e que é necessária uma

solução imediata para o problema. O morador também reclama que os roubos e furtos não

vêm sendo solucionados e se sente vítima de descaso por parte das autoridades.

F10L - Eu sou participante também de um clube de serviços, chamado Rotary. Um dia na

reunião do Rotary eu disse que a única maneira de coibir isso aí era o dia que pegasse e

assaltasse um delegado de polícia, um comandante da Brigada, um promotor e um juiz de

direito. Não demorou 15 dias essas quatro pessoas foram assaltadas. O juiz de direito foi

assaltado, o promotor de justiça foi assaltado, (...) o delegado de polícia, (...) foi assaltado,

aqui do lado da minha casa, e o (...) comandante da Brigada na época, também foi assaltado

na casa dele. Quer dizer, todas as pessoas sentiram na carne o problema. Todos os roubos

foram resolvidos. Por quê? Porque são pessoas da segurança. Da segurança. Mas nós somos

da insegurança, nenhum roubo foi resolvido. Nenhuma caneta minha que foi roubada até

hoje foi devolvida pela polícia.Agora das autoridades todos foram devolvidos. Aí se

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fortalecem, se unem, e invadem casas e fazem horrores, e conseguem de volta. Nós não. E é

assim todos nós. (Fabiano, sic).

Morais (1981) alerta para a emergência de um caráter gratuito no assalto, no

latrocínio, no homicídio, expondo cada morador a uma irracionalidade social chocante. Essa

falta de motivação é noticiada pelos meios de comunicação e alimenta cotidianamente um

pavor crescente que neurotiza a população e faz com que os cidadãos tomem duas

providências básicas: apontarem sempre a ineficiência da polícia, e comprarem armas para a

autodefesa. “Isto traz como conseqüência que a polícia, também por causa das críticas

constantes, se torne mais e mais violenta e os populares que lhe atiçam o ânimo venham a ser

vítima da própria violência policial” (p. 84).

Nesse contexto da insegurança a juventude foi espontaneamente apontada por quase a

metade do público alvo como um dos principais propulsores da violência no município. Lúcia

pensa que a insegurança e a violência estão generalizadas devido a causas sociais e culturais.

A empresária é da opinião que quem faz “essas coisas” são os jovens, por causa da exclusão

social, e não um marginal, um bandido como haviam “antigamente”. Bento corrobora as

afirmativas e adverte a formação de gangues de jovens. Rui acrescenta que a juventude não

sabe onde termina a liberdade e não reconhece direitos e deveres. Esta condição de “estar

perdido” facilita que os jovens sejam manipulados por adultos que orientam seus roubos e

furtos porque a lei não tem alcance sobre os menores. Ana se diz chocada com a situação da

violência, especialmente em relação aos crimes por causa de drogas:

A18 - (...) Cada vez mais a gente vê agressão na rua, arrombamento, briga por nada, né.

Principalmente adolescente que não tem noção das coisas. Porque às vezes uma pessoa que

vem te fazer um assalto e é uma pessoa experiente, ele não vem pra te machucar, ele vem pra

te roubar. Agora uma pessoa despreparada como é um jovem, às vezes drogado. Aí a coisa é

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complicada, né. De novo vou dizer que o meu receio maior sempre em questão de segurança

é em relação aos meus filhos. (Ana, sic).

Psicanaliticamente retomando o que Birman (2001) expõe sobre a estrutura do ego

ideal, regulada pela economia narcísica da libido, o autor alega que os usuários de drogas e os

toxicômanos não são absolutamente criminosos. Porém, a criminalização destes indivíduos

impede a aproximação deles de forma produtiva, eles estão inseridos em um circuito diabólico

regulado por acusações e culpabilizações. Para o autor, não existe qualquer possibilidade de

solução para os impasses existenciais destas pessoas e a criminalização faz com que elas

estejam fadadas a uma mortificação perpétua que não mais lhe oferece qualquer caminho para

a solução de seus impasses.

Para Birman (2001) o sujeito se autoriza a tirar coisas dos outros quando bem entende

pela violência, agindo de forma predatória, depredando o corpo do outro como se fosse um

mero objeto para usufruto de seu gozo. Por isso mesmo, o outro não é reconhecido como

sujeito propriamente dito: é destituído de sua interioridade, singularidade e diferença. O outro

é delineado como um pedaço de carne à disposição do sujeito, para que este possa manipulá-

lo e instrumentalizá-lo para as delícias macabras de seu gozo, se aquele é fonte de bens e

objetos que atiçam a cobiça voluptuosa do sujeito. Nesse contexto, Birman (2001) explica que

o pólo alteritário do psiquismo se dirige para uma região de sombras, esmaecendo-se de suas

linhas e cores, como que numa espécie de eclipse. Conseqüentemente, a perversão se instala

como maneira de usufruto dos bens e dos valores que circulam no espaço social.

Apesar de todos os entrevistados reconhecerem Cachoeira do Sul como perigosa, em

algumas entrevistas é possível perceber que a insegurança ainda é focada sobre alguns locais.

Ana, por exemplo, acha que os lugares mais ameaçadores são saídas de boates, barzinhos, e

procura não deixar os filhos saírem sozinhos à noite, preferindo que se divirtam em grupos.

Bento acha que as praças e lugares mais escuros, sem muito movimento, são mais

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ameaçadores. Todavia, acredita que durante o dia não há tantos problemas como à noite, que

merece cuidado redobrado.

Conforme Morais (1981), o receio quanto a lugares mais propícios à insegurança decorre

de que nas cidades pequenas ainda há certa lógica para que algumas modalidades de

violência, ainda que não sejam propriamente “razoáveis”, aconteçam. O autor entende que

nestes lugares, mata-se por certas razões que o grupo humano dali pode compreender com

certa facilidade, pois ladrões e assassinos parecem proceder de forma mais coerente com uma

relação de causa-e-efeito. A atribuição de motivos não é tão abstrata porque ocorrem, por

exemplo, crimes passionais, brigas, assaltos, mas nada de caráter tão gratuito. Essa atuação

permite – sobretudo pelas dimensões reduzidas do grupo humano – certa margem de

previsibilidade quanto aos momentos perigosos, os bares e recantos mais mal freqüentados e

os procedimentos capazes de defenderem os cidadãos de riscos piores.

5.2. Criminalidade: o ser humano cada vez mais acuado

Dentre as questões também foi levantado se os participantes já passaram por

experiências de perigo ou tiveram a privacidade invadida. Foram investigadas possíveis

situações como tentativa de assalto, ameaças, envolvimento em brigas e discussões, residência

ou veículo arrombado, vítima de roubos ou furtos, tanto no que diz respeito aos moradores

quanto em relação à vizinhança. Todos os sujeitos da pesquisa já passaram por alguma

situação, na maioria dos casos, considerada por eles mesmos, não tão grave. No entanto, há

dois entrevistados que contam ter passado por sérias ocorrências. Os episódios relatados pelos

participantes são utilizados de forma ilustrativa de modo que sejam relevantes para o

entendimento do trabalho.

As moradoras do Beco dos Trilhos acreditam que no local não acontecem mais do que

pequenos furtos, que não chegam a ser motivo de preocupação. Iara diz que nunca lhe foi

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roubado nada, deixa as roupas penduradas no varal na rua e a porta aberta quando vai à casa

da sogra, próxima à sua. Taís concorda com a vizinha e reconhece que como “todo mundo é

pobre”, não há muito que roubar, então “é coisa pequena que some, um bichinho de dentro

do pátio, uma roupa ou coisa assim” (sic).

Com relação aos participantes residentes nos bairros do entorno ao Beco, as situações

se multiplicam e os comentários adquirem tom grave e preocupante para alguns entrevistados.

Lúcia relata ter tido a casa invadida por duas vezes, com a família dentro. Em um dos casos o

assaltante foi preso e ela teve que ficar cara a cara com o acusado na delegacia para que ele

continuasse na cadeia. Mesmo assim, devido ao fato de estar recém completando 18 anos, o

assaltante foi solto e seu pai ainda tocou a campainha da casa de Lúcia dois dias depois,

provavelmente para “xingá-la”, mas ela não atendeu, com medo.

Bauman (2003) identifica que no caso dessa indignação contra a ineficácia da lei

ocorre uma espécie de frustração do indivíduo em relação à sociedade. Apesar de a sociedade

sempre ter sido uma entidade “imaginária”, há pouco tempo sua imagem era a de uma

comunidade de “cuidados e compartilhamento”, que irradiava confiança coletiva contra o

infortúnio individual. Era imaginada como um pai poderoso, rigoroso e às vezes implacável,

mas sempre um pai, a quem sempre se podia recorrer em busca de ajuda (p. 101).

De acordo com o autor esse “amor frustrado” acaba em indiferença e algumas vezes

em suspeição e ressentimento. Se a “sociedade” não satisfaz o desejo de lar seguro, não é

tanto por ser “abstrata”, mas pela recente traição ainda fresca na memória popular, de que não

cumpriu suas promessas. “Às pessoas que sofrem sob a pressão de uma existência insegura e

perspectivas incertas, ela promete mais não menos insegurança” (Bauman, 2003, p. 101).

Gustavo, que mora a cerca de uma quadra do Beco dos Trilhos, e Fabiano, que tem os

fundos do terreno fazendo divisa com o bairro, descreveram várias situações de privacidade

invadida. Gustavo conta que ter enfrentado um homem que bateu à porta de sua casa às cinco

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horas da manhã e pedido “dinheiro pra comprar droga na maior cara de pau”. Outro dia,

antes de colocar as grades, ao meio-dia ouviu a campainha e atendeu a porta. Um homem

aguardava e lhe disse: “Tu deve ter muito dinheiro!”. Depois foi embora sem dizer nada.

A residência de Gustavo já foi assaltada duas vezes. Em uma delas ele estava tocando

em uma festa da terceira idade. Quando chegou em casa percebeu já na garagem, com os

faróis do carro, a máquina de lavar fora do lugar. O músico perguntou à vizinhança se alguém

havia notado movimento suspeito, mas ninguém viu nada a não ser um vizinho que passou

pelo local. Ao perceber o carregamento de objetos, o vizinho perguntou aos ladrões se

Gustavo estava se mudando e eles confirmaram. Sem desconfiar das luzes apagadas, a pessoa

não acionou a polícia.

Fabiano conta que um de seus filhos foi vítima da violência quando veio da casa de

um amigo, nas proximidades. O menino foi atacado na esquina de casa por traficantes que

teriam perguntado: o que tu tá me olhando? Mesmo respondendo que não estava olhando, o

garoto apanhou com pedaços de madeira enquanto seus amigos conseguiram fugir. Outro

episódio aconteceu no primeiro dia em que a família se mudou para a casa. Toda família saiu

por um período de 15 minutos e foram deixadas prensas de xis burguer fritando carne nos

fundos do terreno. Quando voltaram “não tinha sobrado nada” (sic). O fiscal conta ainda de

outra ocasião, num dia de chuva, quando teve a casa invadida pela janela do segundo andar da

frente. Ao escalar o telhado, um dos ladrões provavelmente deve ter escorregado e cortado a

mão na telha vitrificada.

F10B - Mesmo aquela mão sangrando ele entrou pra dentro da minha casa e

derramou sangue em todas as peças da casa e nas paredes. E nós aqui embaixo seis da tarde,

tomando chimarrão e vendo a novela. E... Não vimos um barulho, parece que tinha plumas

nos pés. Roubaram todos os objetos que tinha no segundo piso da casa. Dois computadores,

três televisões, rádio-relógio, rádio portátil, que mais? Objetos assim... Dois aparelhos

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celulares. Objetos que eles enxergaram assim, eles foram roubando. E é uma coisa nítida,

que tinha sido mais de um, porque foi muito rápido. E os meus filhos tavam com os amigos

jogando ping pong na garagem. E um deles subiu e gritou assim: pai corre aqui que o... Que

o mano tá sangrando o nariz! E é comum esse mais velho sangrar o nariz. Aí eu disse assim:

mas peraí um pouquinho, ele taí? Não. Corri na garagem ele tava ali jogando ping pong.

Não, mas ele tá aqui, não tem nada com ele. Aí subi lá tava a casa toda cheia de sangue.

(Fabiano, sic).

Bauman (2003) menciona que com a manutenção da falta de solução para esse tipo de

problemas, entre as localidades imaginárias a que as pessoas acreditavam pertencer e aonde

acreditavam poder procurar abrigo, aparece um vazio no lugar anteriormente ocupado pela

“sociedade”. Essa entidade teria sido outrora representada pelo Estado armado com meios de

coerção e também com meios poderosos para corrigir pelo menos as injustiças sociais mais

ultrajantes.

Esse Estado está sumindo de nossa vista. Esperar que o Estado, se chamado ou

pressionado adequadamente, fará algo palpável para mitigar a insegurança da

existência não é muito mais realista do que esperar o fim da seca por meio de uma

dança da chuva. Parece cada vez mais claro que o conforto de uma existência segura

precisa ser procurado por outros meios. A segurança, como todos os outros aspectos

da vida humana num mundo inexoravelmente individualizado e privatizado, é uma

tarefa que toca a cada indivíduo (Bauman, 2003, p. 102).

Os demais entrevistados, apesar de não terem sido vítimas conhecem histórias de

vizinhos próximos à sua casa. Ana conta que os vizinhos também já tiveram a casa arrombada

pelo segundo piso. Rui comenta o caso de uma vizinha que nos últimos dias teria sido

“visitada” duas vezes. Os ladrões levaram bastante coisa e sequer se intimidaram pelos dois

cães ferozes que guardam o pátio. Há pouco tempo, outra casa foi invadida e os objetos

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furtados foram passados por cima da grade da frente da casa.

Bento relata o furto ocorrido na casa de uma amiga recém transferida de Porto Alegre

para Cachoeira do Sul, que teria cogitado a mudança porque a capital está muito violenta. Ela

descarregou as compras em casa e saiu, para retornar logo após. Ao chegar, todas as sacolas

haviam sido levadas. A janela veneziana da casa foi arrombada e a porta aberta por dentro.

Diante desse quadro, o estudo também investigou possíveis alterações no dia-a-dia que

tenham sido ocasionadas em função da insegurança. Era intenção perceber se têm acontecido

alteração de rotas ou horários, evitar sair desacompanhado, não sair à noite, etc. A maioria

dos participantes afirma que não chegou a mudar a rotina. Por outro lado, a partir das

entrevistas são observadas atitudes que remetem à existência de alerta redobrado na maior

parte das situações onde a pessoa fica exposta, por exemplo, no caso da preocupação com a

proteção e segurança da residência. É visível a presença de sentidos que se referem a estar

fechado, aprisionado na própria casa como condição de evitar o perigo.

Taís, moradora do Beco, preferiu estudar à tarde ao invés do período noturno, em

função de ter tranqüilidade para ir à universidade. Afirma que antes podia sair para caminhar

às 22h, 23h, e agora não pode mais. Já Lúcia, confessa que não sai mais de casa sem deixar

caseiro, além de sempre dar uma volta na quadra antes de guardar o carro. Fica com “medo de

abrir e fechar a porta da garagem” (sic).

Rui também descreve esse tipo de comportamento. “À noite, quando a gente chega

tarde de noite... A gente nunca entra direto. Dentro de casa. Conforme tá o movimento, a

gente passa, vai até a esquina e volta. Quando tem muito movimento da rua. E às vezes troca

de horário... Pra evitar um pouco né... Ter uma surpresa na hora de abrir o portão...” (sic).

Dentre as mudanças apontadas como mais significativas encontram-se Fabiano,

Gustavo e Bento. Os três enfatizam ter transformado as casas em verdadeiras fortalezas.

Fabiano ressalta que gradualmente foi obrigado a aumentar a segurança da sua residência com

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muros, grades, portão eletrônico e arame farpado. “Botamos arame farpado, três fios de

arame farpado em cima da grade aí, por conselhos de amigos, que diz que o arame farpado é

muito respeitado por ladrões. Porque rasga as mãos, impede, rasga a roupa, impede a

ultrapassagem pra intimidade nossa” (sic). A vizinhança se uniu para pagar um guarda que

vigia a rua 24 horas por dia a fim de ter mais tranqüilidade.

Aqui cabe citar Morais (1981): a violência, para ser entendida praticamente, não deve

ser entendida como certo ou errado, mas apenas uma coisa ou situação que nos torna

necessariamente ameaçados em nossa integridade pessoal ou que nos expropria de nós

mesmos. Bauman (1999) comenta que a insegurança ambiente se concentra no medo pela

segurança pessoal; que aguça ainda mais a figura ambígua e imprevisível do outro: estranho

na rua, gatuno perto de casa... Alarmes contra assalto, bairros vigiados e patrulhados,

condomínios fechados, tudo isso serve ao mesmo propósito: manter o outro afastado.

Com o aumento da apreensão, Birman (2001) explica que a oposição não se enuncia

entre indivíduo e a sociedade, mas pelo contraponto entre os processos narcísicos e

alteritários. Em qualquer sujeito existe um conflito constante entre o amor de si e o amor do

outro, ou seja, se colocar como seu próprio ideal ou se deixar regular por ideais que

transcendem seu autocentramento. Esta tensão entre o ego ideal e o ideal do ego funda o

sujeito, delineando de maneira estrutural o horizonte de seus movimentos. Se escolher o amor

de si, o outro passa a ser encarado como uma ameaça mortal para a existência autocentrada do

sujeito. Ele é permanentemente reconhecido como inimigo e rival porque atinge o sujeito em

suas certezas e o faz vacilar em relação a seu eixo e sistema de referência.

O autor defende que, pela possibilidade do amor do outro, o outro é encarado como

uma abertura para o possível, pois coloca o indivíduo diante de sua diferença radical em face

de qualquer outro. Isso faz com que haja reconhecimento da alteridade e da

intersubjetividade. Na atualidade o social não nos oferece mais, ou oferece muito pouco, a

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possibilidade de experiências alteritárias legítimas que possam delinear a possibilidade de se

abrir efetivamente o horizonte do sujeito para a experiência da diferença. Em conseqüência a

seu enclausuramento, o indivíduo vai ficando cada vez mais arredio e fechado para a

alteridade.

Fabiano revela que a partir do assalto ocorrido pela janela do segundo andar com a

família em casa, seu filho mais novo ficou com muito medo e não queria mais dormir na casa.

Sentindo-se desprotegido, Fabiano providenciou já no outro dia o gradeamento de todo o

terreno. “Tá assim, a casa toda gradeada agora por dentro também. Não adianta gradear os

muros e a frente. Tem que gradear a casa por dentro, botar mais chave de segurança, e tudo.

Alarme também não adianta porque eles cortam alarmes, fazem horrores” (sic).

Gustavo também gradeou todas as aberturas da casa. Na área de serviços, localizada

nos fundos da residência, as grades cobrem todo o espaço, inclusive o teto em uma parte que

ultrapassa o telhado, dando um aspecto de “gaiola” ao local. Após o gradeamento, Gustavo

optou por não instalar campainha, pois relata que não conseguia ficar tranqüilo tal era o

movimento de pedintes à sua porta. Em qualquer hora do dia ou da noite a campainha era

acionada. “Eu não posso ter campainha aqui. Não dá. O cara fica ali e não quer saber se tu

tá cansado ou não. Pô, tchê, eu trabalho à noite, eu chego tarde” (sic).

Outra reclamação é de não haver condições de deixar as janelas abertas. O sentido que

emerge aqui é de sentir-se preso dentro da própria casa. Bento conta que apesar de ser contra

a utilização da cerca elétrica, não encontrou alternativa para sentir-se sossegado. Ele enfatiza

a cerca elétrica dá a impressão de estar em um campo de concentração.

Lúcia reclama a falta de convivência que acaba surgindo do enclausuramento dos

vizinhos nas casas. “Tu te tranca cada vez mais. Tu convive cada vez menos. Tu pode olhar,

tu sair pelo bairro tu vai ver, tu não vê as pessoas mais na frente. Tu não vê as janelas

abertas. Isso aí influencia um horror, né? As crianças brincando na rua como era

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antigamente, tu não vê...” (sic). Ana confessa ter mudado certos hábitos e considera

insuportável ter que viver com a casa fechada.

A16 - Assim ó, eu não gosto de... De casa fechada. Gosto de janela aberta, de sol

entrando. A gente tinha o hábito de deixar a porta da garagem aberta. Pra ver o movimento

da rua, enfim. Isso a gente não consegue fazer mais, né. Não pode nunca te descuidar a porta

da garagem aberta, embora tenha a grade na frente. Então a gente tem agora por hábito

fechar a porta da garagem. Por hábito não abrir: eu tenho uma janela no segundo piso, que

tem um floreiro, que dá pra um telhado... Aquela janela sempre ficava aberta, agora

normalmente ela tá fechada. A porta da sacada é chaveada, não se deixa mais... Então é esse

tipo de cuidado que a gente tem que tá sempre atento, né... (Ana, sic).

Bauman (2003), retomando as conseqüências do enclausuramento, alerta que a

insegurança é inimiga da comunidade cercada de muros e protegida por cercas. O sentimento

de segurança faz com que o temível oceano que serve de obstáculo entre “nós” e “eles” mais

pareça uma piscina convidativa. “O apavorante precipício entre a comunidade e seus vizinhos

mais parece uma trilha para vaguear/passear/andar aberta a aventuras agradáveis” (p. 127).

Nessa questão – correspondente ao relacionamento com a vizinhança – foram

pesquisados aspectos referentes a relações de confiança, intimidade ou relacionamento

formal. Iara e Taís, que moram no Beco dos Trilhos, destacam que há convívio de intimidade

e segurança na receptividade em relação aos vizinhos. Iara considera a comunidade solidária e

menciona campanhas realizadas para arrecadar dinheiro. Em uma delas a mãe de um rapaz

que havia falecido não tinha dinheiro para pagar o funeral. Noutra ocasião foi promovido um

almoço beneficente cujo objetivo era coletar dinheiro para pagar a cirurgia de uma criança.

Oliveira (1993) observa que as relações de convivência em bairros de baixa renda são

marcadas pela solidariedade entre vizinhos e o padrão de sociabilidade assemelha-se ao de

cidades do interior, onde todos se conhecem e sabem um pouco da vida uns dos outros. “A

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relação solidária entre os moradores comporta a ajuda mútua nos casos de desabamentos,

doenças, enterros, etc. É comum uma moradora ajudar a outra que tenha filhos pequenos e

trabalhe fora, para que ela não precise faltar ao trabalho”, (p. 33).

Para a autora, estas relações se fundamentam na condição de vida e moradia,

refletindo a condição social e de classe em que estão inseridos. A organização social do

espaço implica numa grande proximidade entre as casas. Este padrão de convivência responde

às necessidades desse grupo social, e muitos encaminhamentos, ou mesmo soluções, de

problemas individuais ou coletivos, encontram aí sua possibilidade mais concreta de

realização. “É uma população que conta consigo mesma, acima de tudo”, (p. 33).

Todavia, Oliveira (1993) questiona até que ponto a base de solidariedade funciona não

só como mecanismo de sobrevivência, mas como “amortecedor” dos conflitos sociais reais. A

autora imagina que a situação de carência material se tornaria muito mais explosiva, social e

politicamente, se não houvessem tais relações amenizando o cotidiano de miséria (p. 33).

Dos bairros de classe média alta, Rui e Fabiano referem acolhimento da vizinhança,

inclusive com aspectos de camaradagem e familiaridade. Rui, por exemplo, descreve que

ainda tem o costume de emprestar ferramentas. “Eu sou o quebra-galho, né... Empresto

ferramenta pra um... Ajudo outro... Vou ali, boto o chuveiro, a gente faz... Vai quebrando

galho, aí... A gente se ajuda aqui. A turma aqui é boa...” (sic). Fabiano avalia os vizinhos do

bairro como muito unidos.

Giddens (1991) define quatro contextos localizados de confiança que tendem a

predominar de acordo com a ordem social específica: parentesco, comunidade local, religião e

tradição. O sistema de parentesco proporciona um modo relativamente estável de organização

de “feixes” de relações sociais através do tempo e do espaço e fornece um nexo de conexões

sociais fidedignas que formam um meio organizador de relações de confiança. O mesmo pode

ser dito da comunidade local. Entretanto, deve-se evitar a visão romanceada da comunidade

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que vem à tona nas análises sociais quando as culturas tradicionais são comparadas às

modernas. O que é preciso enfatizar é a importância das relações localizadas organizadas em

termos de lugar, em que o local ainda não foi transformado pelas relações tempo-espaço

distanciadas. Na grande maioria dos cenários pré-modernos, inclusive na maioria das cidades,

o meio local é o lugar de feixes de relações sociais entrelaçadas, cuja pequena extensão

espacial garante sua solidez no tempo. A localidade nos contextos contribui para a segurança

ontológica de maneira que são substancialmente desenvolvidas em circunstâncias de

modernidade.

Para os demais entrevistados a percepção de união entre a vizinhança não é percebida.

Conforme os relatos, não há muita intimidade e às vezes, devido às preocupações com a

segurança, as pessoas ficam dias sem encontrar a vizinhança. Bauman (1999) elucida que em

vez da união, o evitamento e a separação acabam por se tornar as estratégias principais de

sobrevivência. “Não há mais a questão de amar ou odiar seu vizinho. Manter os vizinhos ao

alcance da mão resolve o dilema e torna a opção desnecessária; isso afasta situações em que a

opção entre o amor e o ódio se faz necessária” (p. 56).

Bento ilustra que sobre a vizinhança só se sabe que “fulano” mora ali, “cicrano” mora

lá, mas relacionamento quase não existe, especialmente no que tange à vizinhança íntima, de

amizade. “Às vezes passa... Ih! Dias, meses, sem... Sem ver. Né... Porque cada um sai, vai pro

seu trabalho, volta, fica dentro da sua casa e... Se sai de casa, vai no mercado, vai... Na

festividade, no... Sei eu... Na sociedade, no clube, então de repente ali que vai se relacionar,

ou vai encontrar lá no mercado" (sic).

Ana diz que se relaciona bem com toda a vizinhança, mas não é “de visitar”. A

entrevistada conta que havia uma vizinha que gostava de agradar, lhe enviava doces e

chamava no muro para entregar uvas recém colhidas. A vizinha faleceu e atualmente não há

uma relação muito próxima com os demais. Para Ana, que tem um prédio à frente de sua casa,

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a alta rotatividade de inquilinos do local é que não deixa margem à criação de vínculos.

A24 - Acho que é estudante, é gente que vem transferido de outro lugar, é bancário,

enfim. Param pouco, né. Eu pouco paro em casa. Essa minha vizinha aqui da direita, se ela

pode ela não olha pra cá pra cumprimentar. Desde que a gente mudou pra cá que ela é meio

engraçada. Quando eu encontro ela nos lugares fora da... Daqui da rua, ela bate papo

comigo numa boa. Mas aqui se eu tô na frente, limpando o jardim ou qualquer coisa se ela

pode ela olha pra tudo que é lado. Ela é meio esquisita. Mas afora isso, assim, ó... Me dou

bem, encontro nas festinhas da igreja, aqui que às vezes tem almoço, a gente vai ali, me dou

bem com todo mundo. Só que assim, ó: como a gente passa muito tempo fora, fora de casa, eu

chego mais à noite, fico mais recolhida aqui pra dentro. Então... (Ana, sic).

Através da observação dos relatos, podemos perceber sentidos que remetem ao

surgimento do individualismo se sobrepondo à individualidade. Bauman (2003) denuncia que

a proximidade já não garante a intensidade da interação; e o que é mais grave, não se pode

confiar na duração de qualquer interação que surja na base da proximidade, e inscrever as

expectativas de uma vida individual na perspectiva de sua longevidade já não é um passo

óbvio ou sensato. A modernidade, resultado desse desengajamento das pessoas, está em

estágio líquido, passando a um processo cada vez maior de individualização nas relações.

5.3. Pobreza x violência: um olhar sobre o Beco e seu entorno

Os participantes foram indagados nas entrevistas se percebem alguma relação entre a

situação de baixa renda e a violência ou marginalidade. Na maioria das respostas os sentidos

produzidos foram de que há relação entre pobreza e violência. Lúcia, moradora do bairro São

Luís, é a única que tem certeza de não haver ligação entre a pobreza e a violência. Ela acredita

que ainda há muito emprego ou subempregos na cidade e que a violência só seria alternativa

para quem quer um jeito fácil de ganhar dinheiro. A empresária pondera que a violência é

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uma questão cultural, e não apenas das classes baixas.

Taís, moradora do Beco dos Trilhos pensa que a baixa renda gera dificuldades, e isso

leva à violência. Contudo, reclama que também acontecem generalizações, e “fica todo

mundo rotulado por meia dúzia”. Oliveira (1993) enfatiza que a imprensa reforça a imagem

negativa dos bairros de baixa renda, tanto para quem nela mora quanto para quem vive fora.

Há um processo de discriminação sentido pelo morador, divulgando a criminalidade

vinculada à favela, embora ela seja impune em outros meios sociais. São priorizadas notícias

sobre a violência, não divulgando com a mesma ênfase o cotidiano do bairro de baixa renda e

suas organizações comunitárias.

Bento considera que os pobres são mais propensos à violência porque às vezes as

pessoas acham que a única solução é roubar. Pelo fato de se dispor ao roubo a pessoa já

estaria preparada para tudo. Ana concorda em parte. Para ela a “carência de certas coisas”

pode levar à violência, mas é preciso que a pessoa tenha uma índole. Na opinião de Ana, uma

pessoa de bem, apesar de pobre, não necessariamente é violenta. “Ela pode até às vezes

reagir a uma agressão, de repente, mas eu acho que se ela não tem um instinto mau ela não

vai agredir ninguém. Acho que ela vai buscar sua subsistência” (sic).

Alves (1990) contesta a visão que se tem dos bairros de baixa renda como um

aglomerado violento de pessoas. O autor alega que, em geral, o que se chama indistintamente

de “favelas” quase sempre em tom pejorativo, são bairros pobres, erguidos de forma

clandestina, que se consolidam através da luta solidária de seus moradores.

Bauman (1999) destaca que há expressões extremas da polarização entre a ruptura de

comunicação entre as “elites extraterritoriais” cada vez mais globais e o restante da população

cada vez mais “localizada”. Isso gera tendência de criminalizar casos que não se adeqüam à

norma idealizada e o papel desempenhado pela criminalização para compensar os

desconfortos da “vida em movimento” tornando ainda mais odiosa e repulsiva a imagem da

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realidade da vida alternativa, da imobilidade. Nesse processo, as preocupações com

“segurança”, reduzidas à preocupação única com a segurança do corpo e dos bens pessoais,

são “sobrecarregadas” de ansiedades geradas por outras dimensões cruciais da existência atual

– a insegurança e a incerteza (p. 10).

Para Fabiano pobreza e violência são dois assuntos que têm muito a ver e todos os

moradores do Beco são “pessoas armadas” (sic). Em uma parte de seu depoimento ele chega

a referir que só há marginais morando no Beco, “pessoas que não valem nada” (sic). O

morador lembra da ocasião em que seu filho apanhou de traficantes e ele invadiu o Beco atrás

dos agressores.

F26 - Não apareceu ninguém, ninguém sabia quem era. Ninguém conhecia ninguém.

Eles se protegem lá dentro. Os bens protegem os maus. Inclusive os de bem, acham que se

eles delatarem os outros, eles vão ser punidos pela... Pelos outros, outros que moram lá

dentro. Então fica esse clima aqui em roda da cidade, em roda do nosso bairro. A única

solução disso aí é tirar esse pessoal daí. Tirar e no mesmo momento entrar com máquina,

derrubando casebres e esses... Esses palafitas que eles constróem em cima do leito da viação

férrea. E... E botar eles numa vila bem afastada. Tirar da circulação das nossas casas. Eles

que circulem noutros lugares.

Oliveira (1993) destaca que não se pode afirmar que não hajam conflitos entre

moradores e “bandidos”. Entretanto, alguns relatos, indicam casos onde parece ter ocorrido

atuação associada. Há teóricos que dissociam violência oficial à criminalidade: a primeira

corresponderia a formas de dominação, enquanto a violência do pobre assume significado

político de classe.

A ocorrência de tráfico de drogas nas imediações do Beco dos Trilhos é outro assunto

recorrente nas entrevistas. Todos os participantes em algum momento referiram preocupação

com essa questão. Inclusive as moradoras do Beco concordam com a existência do problema

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e, como já foi abordado anteriormente, reclamam que o quadro é sustentado pela juventude de

classe média alta. Para Rui, grande parte dos roubos nas redondezas acontece porque os

jovens querem trocar a “mercadoria”, como aparelhos de som automotivo, por drogas. A

venda dos objetos pequenos é rápida e facilitada. Para Lúcia, a droga é a questão mais

urgente, porque “é por isso que tá toda a marginalia ali” (sic).

L38 - O pior é que a gente vê filhos de amigos, comprando drogas no Beco. Então isso

é que é triste, porque, na verdade, quem sustenta todo esse... Esse circuito é... São os nossos

filhos que vão ali comprar... Porque se os nossos filhos não fossem comprar, quem ia

manter? (Lúcia, sic).

Gustavo denuncia a existência de uma boca de fumo próxima à sua casa e Fabiano

conta que os filhos já apanharam porque ficaram olhando para os traficantes que estavam na

esquina. Iara e Taís reclamam que o fluxo de pessoas desconhecidas no interior do Beco é

muito alto, na maioria das vezes para procurar entorpecentes. Ana corroboram a questão de

que o comércio de drogas é que deixa a situação tão crítica.

A28A - Eu acho assim, ó: o Beco, ele tem a fama porque realmente, ele é um beco. É

um lugar assim, de droga, porque dá pra se esconder, porque tem aquelas sangas, aquelas

coisas ali por baixo. Tipo... Tem a... Uma escola próxima ao Beco... Ela dá no fim de uma

rua, que a rua dá direto no Beco. E... Quando as minhas crianças iam lá, (...) eu ia toda à

tardinha, (...). Então a gente via assim, ó: pessoas, jovens, descerem o... Passarem na frente,

e descerem uma ruazinha, um corredorzinho, assim, no meio de um matinho, uma coisa assim

que virou um trilho de tanto caminharem ali, desciam lá pra comprar droga. Aquilo lá era

um buraco. Era um lugar em que tu em sã consciência não entra. (Ana, sic).

A convivência dos moradores com os bandidos que residem no local geralmente é

encarada pelos primeiros com certa naturalidade, pois muitas vezes os bandidos são nascidos

e criados na comunidade, reforçando o laço de convivência. Há um sentimento quase

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maternal, também expresso na referência a eles como “os meninos”, que são conhecidos

desde criança e que se viu nascer (Oliveira, 1993).

O relato de Iara ilustra essas afirmações. A participante de certa forma justifica a

violência dizendo que apesar de haverem infratores no Beco dos Trilhos, de baixa renda,

proporcionalmente há pessoas de fora do bairro que fazem amizade com os traficantes porque

são envolvidos com drogas. Ela aponta que os consumidores de drogas são jovens de classe

média alta e inclusive, há rumores de facilitação da entrada em invasões de casas e

arrombamentos.

Chauí (1996) alerta para a postura assumida diante do problema, reiterando que

vivemos numa sociedade onde a luta de classes é identificada apenas com os momentos de

confronto direto entre as classes, situação na qual é considerada “questão de polícia”. Para a

autora, é preciso que se considere a existência cotidiana da luta de classes, através das

técnicas de disciplina, vigilância, repressão, realizadas por meio das próprias instituições

dominantes, isto é, essa luta tem que ser encarada como “questão de política” (p. 56). Gustavo

é exemplo disso.

G24 - Eu vejo aqui em casa: ah, o senhor não me dá nada, o senhor tem tudo. O

senhor não me dá nada, então eu vou quebrar a sua casa, sabe. Então fica com aquela... É

assim que eles dizem pra gente. Eu vou quebrar a sua casa, não sei o quê (...) Mas eu acho

que tem influência, sim... Porque a... Como é que se diz a... A inveja, né tchê. Ah, e outra

coisa, eu não sei a... Posso dizer aqui também?Ah... As mães, os pais... Pô, tchê. Qualquer

hora eu vou te mostrar a mulher, lá. Me botou uma criança de dois anos. Mandou a criança

vir... Entrar aqui pra ver se não tinha nada pra roubar lá nos fundos... Pô, dois anos, um

nenê, rapaz, que nem entendeu o que ela disse. Bah, tchê, aquilo foi pra me matar. Aí... Eu

fiquei com vontade de entregar essa mulher, tchê. Sério mesmo. Fiquei com vontade de

entregar... Mas aí ela arrumou um emprego aí, de varrer rua, aí. Eu acho que ela vai se

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acomodar. Mas pensa bem, tchê... O que quê tu vai ensinar pra uma criança dessas? Ela tá

ensinando marginalidade pra criança. E isso tudo acontece aqui, neste bairro. (Gustavo, sic).

Gustavo, que mora a menos de uma quadra do Beco, concorda com Fabiano de que há

acobertamento dos moradores de bem em relação a infrações cometidas por pessoas

conhecidas. Ele confessa que até as matérias sobre o Beco dos Trilhos saírem no jornal, não

havia se dado conta da proximidade com a população menos favorecida. Ao perceber a

questão da vizinhança, logo teria estabelecido ligação com os furtos que aconteceram em sua

casa. O músico também acredita que há inveja dos mais pobres em relação às pessoas que têm

melhores condições.

5.4. Urbanização: solução ou extinção do convívio?

Os participantes responderam questões em função da polêmica gerada pelos jornais

locais em torno do Beco dos Trilhos como possível ponto de origem da insegurança. Um dos

tópicos da entrevista corresponde a levantamento de soluções para a situação e sobre o

trabalho de urbanização que a Prefeitura vem anunciando. A maioria dos entrevistados

concorda com a abertura das ruas para dar vazão à movimentação no bairro.

As duas únicas entrevistadas posicionadas contra a urbanização através da abertura de

ruas são as moradoras do Beco, Iara e Taís. As participantes reconhecem a necessidade de

mudanças, mas não consideram justa a transferência de pessoas que residem há muitos anos

no mesmo local anunciada pela administração municipal. Para as participantes, apesar de

humildes os moradores possuem direitos e construíram as casas com o suor do trabalho.

Iara salienta que há vizinhos “em estado crítico”, que precisariam ser removidas, mas

isso não é comum a todos. “(...) tu vê quem trabalha, quem consegue com esforço do trabalho

construir uma casa, e ser desmanchada, e outras que são mais, que, mas tem pessoas que tem

mais privilégios que não vai sair rua. E casas de material, que sabe é difícil, né” (sic).

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Taís, que está em situação de ter a casa removida para continuação de uma das ruas

que cortará o bairro, revela-se desesperançosa. A estudante refere apreensão porque não sabe

se terá condições de continuar freqüentando a universidade se for transferida para um bairro

muito distante do centro.

T44- Não é a solução tu abrir uma rua em cima de uma casa que não tem nada a ver,

né. Se tu olhar o projeto da rua, as casas que vão sair são casas de vizinhança que mora aqui

a 30, 40 anos, e que não tem envolvimento nenhum com polícia, em de filho com polícia.

Então quer dizer que a casa dos delinqüentes, dos, né... Vão continuar no mesmo lugar. Eu

acho que não vai mudar (Taís, sic).

Já os sujeitos que moram fora do Beco crêem que a abertura das ruas proposta para

urbanizar será de grande valia, inclusive para os moradores do local. Ana menciona que a

própria natureza de “beco”, um local sem saída, dá margem para que os próprios moradores

tenham medo de viver ali. A única forma de diminuir os problemas seria abrir e ligar as ruas,

fazendo com que haja circulação de pessoas e veículos.

A28A - Não quer dizer que vai acabar com aquilo ali, mas eu acho que vai... (...) tirar

aquele sentido de... De... Como é que... De ser fechado. De tudo se esconder, entrar ali (...)

no momento em que ligarem as ruas, que tu conseguir ligar o bairro Soares ao bairro Rio

Branco, diretamente, fazendo as ruas atravessarem o Beco, cortar aquela... Aquele sentido de

coisa fechada (Ana, sic).

A discussão sobre se a remoção das famílias para abertura de ruas em bairros pobres

irá contribuir ou não para a diminuição da violência retoma um assunto polêmico há muito

tempo. Desde 1893 o assunto está em pauta no Brasil, apesar de ter assumido outras facetas

com o passar dos anos. Chalhoub (1996) contrasta a questão das favelas e bairros de baixa

renda com a eliminação dos cortiços que compunham a cidade do Rio de Janeiro no século

XIX. Contando a história do “Cabeça de Porco”, o maior cortiço da capital carioca, na época

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também capital da república, o autor atesta a contemporaneidade da discussão, revelando que

os cortiços, assim como as favelas de hoje em dia, eram tidos como “valhacoutos de

desordeiros”.

Chalhoub (1996) revela que a destruição do Cabeça de Porco corresponde à origem de

um dos mitos que formam a concepção da gestão das diferenças sociais no país: a construção

da noção de que “classes pobres” e “classes perigosas” denotam a mesma realidade. Essa

conceituação surgiu na primeira metade do século XIX, influenciada por conceituações

inglesas e francesas da época, nem sempre interpretadas da forma devida no Brasil.

Assim é que a noção de que a pobreza de um indivíduo era fato suficiente para torná-

lo um malfeitor em potencial teve enormes conseqüências para a história subseqüente

de nosso país. Este é, por exemplo, um dos fundamentos teóricos da estratégia de

atuação da polícia nas grandes cidades brasileiras desde pelo menos as primeiras

décadas do século XX. A polícia age a partir do pressuposto da suspeição

generalizada, da premissa de que todo cidadão é suspeito de alguma coisa até prova

em contrário e, é lógico, alguns cidadãos são mais suspeitos do que outros (Chalhoub,

1996, p. 23).

Chalhoub (1996) destaca que uma vez cometida a má interpretação dos preceitos

ingleses e franceses na origem do raciocínio o resto se segue como que naturalmente: os

pobres carregam vícios, os vícios produzem os malfeitores, os malfeitores são perigosos à

sociedade; juntando os extremos da cadeia, temos a noção de que os pobres são, por

definição, perigosos.

Bauman (1999) resume que todos esses fatores considerados em conjunto convergem

para o efeito comum de identificação do crime com os “desclassificados” ou, o que vem dar

praticamente no mesmo, a criminalização da pobreza. Os tipos mais comuns de criminosos na

visão do público vêm quase sem exceção da “base” da sociedade. “Os guetos urbanos e as

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zonas proibidas são considerados áreas produtoras de crime e criminosos. E, ao contrário, as

fontes de criminalidade (daquela criminalidade que realmente conta, vista como ameaça à

segurança pessoal) parecem inequivocamente locais e localizadas” (p. 134).

Regressando à problemática do Beco dos Trilhos, Rui é da mesma opinião que Ana, de

que se as ruas forem abertas a criminalidade irá diminuir porque como “beco” o local esconde

muitos “malandros” e “ladrõezinhos”. Por outro lado, assim como Gustavo, ele acredita que

também tem “gente boa ali, muita família boa que mora ali”. Essa ponta de esperança sobre os

moradores dos bairros de baixa renda encontra eco não só nas entrevistas, mas também na

literatura. Oliveira (1993) frisa que na maioria das famílias de bairros pobres, pai, mãe e

filhos mais velhos (pelo menos) trabalham. O jovem ingressa no mercado de trabalho

procurando conciliá-lo com o estudo.

Diversos moradores trabalham em mais de uma atividade ou emprego, e ainda fazem

‘biscates’ para completar o orçamento. É muito importante para o morador, assim

como para os trabalhadores em geral, a busca da estabilidade no emprego e do salário

justo. Estes fatores são considerados a base da estabilidade familiar e da possibilidade

de sonhar com o futuro, inclusive ter mais filhos. Em diversos casos, os investimentos

na melhoria da condição de moradia ficam secundarizados, prevalecendo a

preocupação com a garantia da subsistência familiar (Oliveira, 1993, p. 26).

Bento acha imprescindível humanização do bairro, com abertura de ruas, canalizações

e as mínimas condições de vivência (ruas calçadas, iluminação, tratamento de esgoto). “Dar

um beco com saída, não um beco sem saída. Que eles tão... É o beco, é a marginalização ali.

Então eles se sentem eu acho que ali, mais marginalizados em função disso aí” (sic).

Gustavo considera que a abertura das ruas seja a única solução para diminuir a

insegurança, e espera que o processo incentive várias pessoas do Beco a se mudarem. “A

gente não quer isso. A gente quer que eles vivam a vida deles. Como eu sempre digo pra essa

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senhora do lado. Ela é paupérrima, não tem onde cair morta. (...) A verdade é a seguinte:

vocês querem... Eu não posso ir lá te incomodar, né? Te criar caso... Vocês também não

podem vir aqui me incomodarem. Eu acho que tem que haver respeito também” (sic).

Já Fabiano confia no poder do mercado imobiliário, que com a urbanização “poderá

tomar conta de tudo, tirando essa catrefa daí, esse bando de bagaceiro que mora aí no Beco.

Vai tirando abaixo de dinheiro e vai construindo casas normais” (sic). O fiscal afirma ter

encontrado uma solução para o problema, que para ele, embora drástica, deve resolver.

F28 -Há uma solução que eu achei, embora drástica. Eu sugeri pra diversos vizinhos

aqui, inclusive na associação, fazer uns muros ali. Tipo do muro de Berlim. De quatro, cinco

metros de altura, botar um arame farpado e cacos de vidro em cima, pra eliminar eles. Pra

eles circularem dentro do Beco. Não circularem no meio da minha casa. Eu não tenho que

ver com o problema social da, da, da cidade. Eu já tenho os meus problemas pra resolver. Eu

não tenho nada a ver com problema social. Eu não tenho que tá alimentando pobre aqui na

minha casa, nem dando remédio pra ninguém. Isso não é função minha, é a função do

governo (Fabiano, sic).

De acordo com Bauman (1999), as “comunidades cercadas”, pesadamente guardadas e

eletronicamente controladas que os “bem-sucedidos” compram no momento em que têm

dinheiro ou crédito suficiente para manter distância de “confusa intimidade” da vida comum

da cidade são “comunidades” só no nome (p. 52). “Desocupados” e pessoas “à espreita” são

os objetos do temor e ódio e é a distância em relação a esses tipos, prometida pela guarda

fortemente armada em constante ronda e pela densa rede de câmeras espiãs que torna as

“comunidades cercadas” tão atraentes e procuradas. O que os moradores estão dispostos a

comprar, na verdade, é o direito de manter-se à distância e viver livre dos intrusos, que seriam

todas as outras pessoas, culpadas de ter suas próprias agendas e viver suas vidas do modo

como querem.

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Considerações finais

A prioridade deste estudo ateve-se à pesquisa dos sentidos produzidos pelos

moradores dos bairros Soares, Rio Branco e São Luís e do Beco dos Trilhos sobre questões

referentes à insegurança da zona centro-leste de Cachoeira do Sul denunciada pelos jornais

locais. Nesse sentido, foram examinadas condições que têm induzido à manutenção de um

sentimento dessa natureza nos moradores, ao mesmo tempo em que pontuada a existência de

possível relação entre pobreza e violência.

Na literatura encontramos variadas abordagens e maneiras de perceber o assunto. Há

autores como Birman (2001), que compreendem a insegurança a partir da teoria psicanalítica

freudiana do desamparo. Na medida em que a modernidade empurra o indivíduo a deparar-se

com um mundo cada vez mais abrangente, o sujeito sente-se como que “engolido” pelo modo

de vida globalizado. Nossa época acomete o ser humano de incessantes incertezas ou

conceituações fugazes: o que agora possui consistência, amanhã é obsoleto. Questões como

subjetividade e alteridade acabam por ser afetadas.

A filosofia tem perspectivas da segurança sob uma forma ontológica, isto é, como

inerente à natureza do homem. A preocupação, de estudiosos como Bauman (2003, 2001,

1999, 1998), Giddens (2002, 1991) e Lipovetsky (1998), é com a identidade do sujeito que

sofre constantes ataques em uma era movida pelo consumismo. O ímpeto pelo consumo torna

a satisfação do desejo impossível e dita aspirações e objetivos de milhares de vidas. O próprio

conceito de liberdade se confunde quando o desejo é construído muito mais a partir da

sociedade do que originado no homem.

É a partir daqui que podemos falar de segurança sob a ótica da psicologia social. A

grande maioria da população não tem condições de arcar com os custos inerentes à satisfação

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dos desejos de consumo. Embora essas vontades possam ser canalizadas para outras ambições

que satisfaçam parcialmente o desejo original, isto não pode ser considerado uma regra geral.

Em muitas pessoas essa capacidade de simbolização não consegue se estruturar.

Em conseqüência desse quadro, acontece o que Freud (1930) citando Plauto previa: o

homem vira lobo do homem. As pessoas assumem uma postura cada vez mais individualista

incentivadas pelo caráter narcísico pregado pela sociedade. Impregnadas por estatísticas de

violência e criminalidade veiculadas diariamente nos meios de comunicação, vão edificando

em torno de si barreiras de proteção. Essa situação obstaculiza a convivência em sociedade e

incita dificuldades referentes à luta de classes. O distanciamento entre as pessoas impulsiona a

criação de inúmeros subgrupos cada vez mais isolados da comunidade como um todo. São

núcleos constituídos por afinidade e restritos às diferenças.

Bauman (2001) critica se nesses subgrupos, o mundo comunitário está completo

porque todo o resto é irrelevante, mais exatamente hostil. É como se o exterior fosse um ermo

repleto de emboscadas e conspirações, fervilhante de inimigos que brandam o caos como sua

arma principal. É para esse ermo que as pessoas que se juntam através de identidades

partilhadas esperam banir os medos que as levam a procurar o abrigo comunitário. No mundo

que rapidamente se globaliza uma coisa que não está acontecendo é o desaparecimento das

fronteiras. Ao contrário, elas parecem ser erguidas em cada nova esquina de cada bairro

decadente de nosso mundo.

A segregação pode ser percebida em todas as entrevistas realizadas neste estudo, de

modo que se pode levantar duas questões contraditórias: diferença e ao mesmo tempo

semelhança. Diferença porque, enquanto os moradores de classe média alta referem o

fantasma da insegurança como uma constante diária, as entrevistados do Beco não mostram

isso como problema. Apesar de admitirem a convivência com o tráfico de drogas e focos de

violência, a mobilização não ocorre da mesma forma que nos outros bairros. Em

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contrapartida, a semelhança está no fato de que, assim como os moradores dos bairros do

entorno não temem os “iguais”, os residentes no Beco só receiam os “desconhecidos da

comunidade”. Esses aspectos constituem o que vários autores abordam como uma divisão

entre os “de dentro” e os “de fora”, ou “nós” e “eles”.

Oliveira (1993) refere que parece configurar-se nessas relações e nas atitudes que as

caracterizam, um senso de sentimento gregário defensivo e agressivo ao mesmo tempo: “nós”

contra “eles”. Caldeira (1984) aponta que a população cria várias classificações para

diferenciar classes sociais e segmentos de classe. Além da divisão entre “eles, os ricos”, e

“nós, os pobres”, existem subdivisões: os “ricos mesmo” (verdadeiramente ricos,

milionários), os “bem de vida” (classes médias urbanas), os “pobres” (trabalhadores que

possuem emprego mais estável e casa própria, ainda que em eterna construção), os “mais

pobres” (favelados) e os “pobres de tudo” (que vivem sob pontes e viadutos, mendigos).

Dessa forma é possível perceber que até a milenar ordem de classes sociais está sendo

reconfigurada em estratos cada vez mais restritos.

Todo esse contexto acrescenta cada vez mais incerteza à vida do indivíduo. Isso pode

ser demonstrado pela preocupação com a segurança. As mudanças relatadas, como

gradeamento, instalação de alarmes e cercas elétricas, vigilância do portão da casa, denunciam

o quadro.

Embora tenham ocorrido situações reais de criminalidade somente em três das oito

entrevistas realizadas neste estudo, episódios acontecidos com a vizinhança já servem para

deixar o sujeito apreensivo com relação à exterioridade de sua residência. Em alguns casos

nem a própria casa é considerada segura apesar do fortalecimento das defesas. Essa situação

de acuamento pode ser verificada nas relações entre os vizinhos, relatada por alguns

participantes como distante e às vezes quase sem contato: mesmo convivendo a poucos

metros, às vezes há muitos anos, as pessoas sequer se encontram.

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Além do sentimento de insegurança, este estudo se propôs a discutir a existência ou

não entre pobreza e violência. A maioria das pessoas que responderam as entrevistas entende

essa vinculação como uma constante. Apesar de todos os participantes terem consciência das

dificuldades sociais, a baixa renda foi atrelada à criminalidade como propulsora de

comportamentos desesperadores, ou seja, como saída diante de problemas.

Outra ligação direta com a criminalidade é o uso de drogas, especialmente pela

população mais jovem. Nas práticas discursivas de vários entrevistados pode ser observada

esta preocupação, inclusive reconhecendo que o problema afeta não só a população pobre,

mas tem um enfoque significativo em todas as classes sociais. Lúcia, uma das entrevistadas,

chega a afirmar que o tráfico de drogas, apesar de estar localizado no Beco dos Trilhos, é

mantido por usuários que pertencem à classe média alta.

A questão de urbanização do Beco dos Trilhos gera controvérsia, e ao que tudo indica

está distante de ter uma solução entendida por todos como adeqüada. Todos os participantes

reconhecem a urgência de alguma atitude, mas nenhum chega a ser categórico em suas

afirmações. Os moradores do Beco recebem a abertura das ruas anunciada pela Prefeitura

como agressiva, porque implica na mudança de suas próprias casas. Já os moradores do

entorno, vêem a estratégia com bons olhos, e apesar de não acreditarem que o problema será

resolvido, pensam que será amenizado.

Entende-se, com este estudo, que apesar dos avanços tecnológicos e científicos

alcançados com a modernidade o ser humano está longe ter acompanhado esse

desenvolvimento em âmbito social. A civilização parece não ter trazido consigo crescimento

significativo no que diz respeito à convivência com as diferenças. O outro, quando não possui

uma identidade a ser compartilhada, assusta e mobiliza defesas.

Acredita-se que este estudo possa contribuir para um melhor entendimento das

circunstâncias que estimulam essas atitudes que causam apreensão e colaboram para a

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instalação de um modo de vida individualista e isolador. Considera-se fundamental a

construção de práticas que promovam mudanças de perspectiva, pois do modo como está

posto, as práticas discursivas indicam a manutenção de preconceito e desconfiança.

A partir do momento em que o indivíduo passa a aceitar a diferença e, se for o caso, se

dispõe a ser agente ativo de mudança frente às dificuldades, a situação pode receber um

prognóstico mais positivo. Espera-se que a presente pesquisa possa servir de reflexão sobre

essas questões e contribuir para a elaboração de uma nova ótica mais promissora sobre o

assunto.

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Apêndice A

Convite utilizado durante o recrutamento:

- Bom dia! Eu estou realizando um estudo aqui no bairro sobre a sensação insegurança

das pessoas. Será realizado um levantamento entre os bairros Soares, São Luís e Rio Branco e

o Beco dos Trilhos para descobrir se existe ou não relação entre a insegurança e a

proximidade ao bairro menos favorecido. Para tanto, serão levantados diversos tópicos

relativos ao assunto que poderão ser respondidos por você.

Após o período de levantamento, os dados serão organizados e analisados. Esses dados

serão mantidos em um sigilo rigoroso e você pode ficar tranqüilo que seu desempenho não

será exposto nem divulgado. Gostaria de participar? Eu gostaria muito que você concordasse

e ficaria agradecido.

(Em caso de aceite, o morador passa à próxima fase: responde à Ficha de Dados

Demográficos e preenche o termo de Consentimento Livre e Esclarecido).

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Apêndice B

FICHA DE DADOS DEMOGRÁFICOS

Nome: _____________________________________________________________________

Data de nascimento: _________________ Idade: ____________________________

Estado civil: ________________________________________________________________

Filhos: _______________ Quantos: ___________________________________________

Profissão: __________________________________________________________________

Escolaridade: _______________________________________________________________

Bairro onde reside: __________________________________________________________

Tempo em que reside no bairro: _______________________________________________

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Apêndice C

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

1. IDENTIFICAÇÃO DO PROJETO DE PESQUISA Título do Projeto: A questão da insegurança e os núcleos habitacionais segregados: um olhar sobre Cachoeira do Sul. Área do Conhecimento: 7.07 Psicologia Número de participantes: 8 Curso: Psicologia Unidade: Campus Cachoeira do Sul Projeto Multicêntrico Sim x Não x Nacional Internacional Cooperação Estrangeira Sim x Não Patrocinador da pesquisa: Ulbra – Campus Cachoeira do Sul Instituição onde será realizado: Ulbra Cachoeira do Sul e Beco dos Trilhos Nome dos pesquisadores e colaboradores: Gisele Trommer Martines e Deivit Roberson Trindade da Silva Você está sendo convidado (a) para participar do projeto de pesquisa acima identificado. O documento abaixo contém todas as informações necessárias sobre a pesquisa que estamos fazendo. Sua colaboração neste estudo será de muita importância para nós, mas se desistir, a qualquer momento, isso não causará nenhum prejuízo para você. 2. IDENTIFICAÇÃO DO SUJEITO DA PESQUISA Nome: Data de Nasc.: Sexo:

Nacionalidade: Estado Civil: Profissão:

RG: CPF/MF: Telefone: E-mail:

Endereço:

3. IDENTIFICAÇÃO DO PESQUISADOR RESPONSÁVEL Nome: Gisele Trommer Martines, Ms. Telefone: (51) 3722-4632

Profissão: Psicóloga Registro no Conselho Nº: 07/03363 E-mail:

[email protected] Endereço: Rua Ignácio de Carvalho, 363 – Bairro Soares – CEP: 96.501–551.

Eu, sujeito da pesquisa, abaixo assinado (a), após receber informações e esclarecimento sobre o projeto de pesquisa acima identificado, concordo de livre e espontânea vontade em participar como voluntário (a) e estou ciente que: 1. Atualmente em Cachoeira do Sul o aumento da criminalidade tem ganhado destaque nas manchetes de jornais locais, especialmente nos bairros próximos ao Beco dos Trilhos, apontado como a origem do problema. Este trabalho se justifica em identificar o pensamento dos moradores do Beco e dos bairros arredores sobre esta situação. A partir da ótica dos próprios envolvidos o objetivo é estabelecer a existência ou não de relação entre a condição de pobreza e a violência. 2. O objetivo de minha participação como sujeito na pesquisa é o fornecimento de dados para a identificação de sentimentos e do pensamento dos moradores dos locais estudados, levando em conta os assuntos insegurança e violência e sua relação com a pobreza. 3. A coleta de dados será realizada através de entrevistas semi-estruturadas, realizadas na residência dos participantes e gravadas em um gravador portátil, acompanhadas de anotações realizadas pelo entrevistador. Posteriormente o conteúdo dessas entrevistas será transcrito e digitado no processador de textos Microsoft Word 2003. 4. Os dados coletados serão utilizados para identificar os sentimentos dos moradores dos bairros em relação à insegurança e violência no local e a relação entre pobreza e violência. A técnica de análise e interpretação dos dados

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utilizada será o mapa de associação de idéias, com base no método de práticas discursivas e produção de sentidos. A gravação e a transcrição das entrevistas serão armazenadas por um período mínimo de cinco anos. O material deve ser utilizado para esta pesquisa e, se for o caso, pesquisas complementares sobre o mesmo tema. 5. Não há desconfortos ou riscos previstos para o participante, exceto a possibilidade de timidez na resposta de algumas perguntas que podem ser consideradas pessoais durante a aplicação das entrevistas. 6. Tenho claro que ao participar da pesquisa não receberei nenhum benefício direto. Os benefícios indiretos dizem respeito à colaboração para o avanço da ciência, na medida em que estarei contribuindo para a melhor compreensão do tema abordado, representando o pensamento e os sentimentos dos moradores do local sobre a insegurança e a violência e sua relação com a pobreza. 7. A minha participação é isenta de despesas e não receberei ressarcimento porque não terei despesas na realização das entrevistas ou com locomoção. 8. Não haverá nenhum tipo de acompanhamento ou assistência, tendo em vista que não estão previstos riscos ou desconfortos aos participantes. 9. Tenho a liberdade de recusar, desistir ou de interromper a colaboração nesta pesquisa no momento em que desejar, sem necessidade de qualquer explicação. Em caso de desistência, os dados por mim fornecidos não serão utilizados para análise ou interpretação, sendo descartados ou armazenados à parte do restante coletado. A minha desistência não causará nenhum prejuízo à minha saúde ou bem estar físico. 10. Os resultados obtidos durante este estudo serão mantidos em sigilo, mas concordo que sejam divulgados em publicações científicas, desde que meus dados pessoais não sejam mencionados. 11. Tenho a garantia de tomar conhecimento e obter informações, a qualquer tempo, dos procedimentos e métodos utilizados neste estudo, bem como dos resultados, parciais e finais, desta pesquisa. Para tanto, poderei consultar o pesquisador responsável (acima identificado) ou o Comitê de Ética em Pesquisa da ULBRA Canoas (RS), com endereço na Rua Farroupilha, 8001 – Prédio 14 – Sala 224, bairro São Luís, telefone (51) 477-9217, e-mail

[email protected]. Declaro que obtive todas as informações necessárias e esclarecimento quanto às dúvidas por mim apresentadas e, por estar de acordo, assino o presente documento em duas vias de igual conteúdo e forma, ficando uma em minha posse.

Cachoeira do Sul (RS), ____ de Novembro de 2005. _____________________________________________ _________________________________ Gisele Trommer Martines - Pesquisador Responsável Sujeito da pesquisa e/ou responsável Testemunhas: _______________________________________ ___________________________________________ Nome: Nome: RG: RG: CPF/MF: CPF/MF: Telefone: Telefone:

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Apêndice D

A QUESTÁO DA INSEGURANÇA E OS NÚCLEOS HABITACIONAIS SEGREGADOS: PERCEPÇÓES SOBRE O BECO DOS TRILHOS E OS BAIRROS RIO BRANCO, SOARES E SÃO LUÍS

INSEGURANÇA VIVÊNCIAS GERAL Em casa e no bairro

Em Cachoeira do Sul

Episódios Mudanças no cotidiano Vizinhança POBREZA X VIOLÊNCIA

BECO DOS TRILHOS

E29 - Nunca aconteceu. E tu sabe de algum vizinho que tenha acontecido, entrado em casa... T30 - Ah, vizinho sempre tem, né, sempre tem... Gente assim, que... Ah, quando... Geralmente, é coisa assim, todo mundo é pobre, né, então é coisa pequena. É coisa pequena que some, um bichinho de dentro do pátio, uma roupa ou coisa assim, mas tem. E31 - E isso é constante ou não? T32 - Não! Assim, não tanto, mas é...

E33 - Como é teu relacionamento com a vizinhança? T34 - Bom, um bom. Bom relacionamento com os vizinhos. E35 - Tu acha assim, que se tu precisar de ajuda, tu recorre aos vizinhos, não recorre, eles recorrem a ti? Como é que funciona isso? T36 - Não, se eu precisar de ajuda eu vou recorrer aos vizinhos e com certeza eu vou ser ajudada. E37 - É? T38 - É.

E39 - E tu acha que tem alguma relação a respeito dessas reportagens que saíram, sobre a questão do vínculo, perto dos outros bairros? Tem alguma relação a questão da baixa renda com a violência, esse tipo de coisa?