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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE MACAÉ DEPARTAMENTO DE DIREITO THAISA BITENCOURT DUTRA O TOMBAMENTO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL IMÓVEL: ANÁLISE DO INSTITUTO NA CIDADE DE MUQUI/ES MACAÉ DEZEMBRO/ 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE – MACAÉ

DEPARTAMENTO DE DIREITO

THAISA BITENCOURT DUTRA

O TOMBAMENTO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO

CULTURAL IMÓVEL: ANÁLISE DO INSTITUTO NA CIDADE DE MUQUI/ES

MACAÉ

DEZEMBRO/ 2018

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THAISA BITENCOURT DUTRA

O TOMBAMENTO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO

CULTURAL IMÓVEL: ANÁLISE DO INSTITUTO NA CIDADE DE MUQUI/ES

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso

de Direito, do Departamento de Direito de Macaé, da

Universidade Federal Fluminense, como requisito

parcial para aprovação na disciplina de Trabalho de

Conclusão de Curso II e condicionante à colação de grau

na graduação de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Drº. Mateus Meott Silvestre

MACAÉ

DEZEMBRO/ 2018

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THAISA BITENCOURT DUTRA

O TOMBAMENTO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO

CULTURAL IMÓVEL: ANÁLISE DO INSTITUTO NA CIDADE DE MUQUI/ES

Monografia aprovada pela Banca Examinadora do Curso de Direito da Universidade Federal

Fluminense (UFF), Instituto de Ciências da Sociedade de Macaé (ICM-Macaé).

Macaé, 10 de dezembro de 2018

BANCA EXAMINADORA

Prof. Drº. Mateus Meott Silvestre

UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Prof. Drº. Julio Cesar Gonçalves Campos Filho

UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Prof. Drº. Pedro Eugenio Pereira Bargiona

USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

MACAÉ

2018

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Dedico este trabalho à minha mãe, que como

minha maior incentivadora, me faz sentir que

sou capaz de ganhar o mundo!

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AGRADECIMENTOS

Confesso que, ao longo dos dois primeiros anos de curso, pensei em desistir muitas

vezes, e jurei em todas elas que o Direito não era pra mim. Minha paixão pela História falava

mais alto, por isso a escolha do tema tem uma motivação de cunho pessoal, pois sempre me

encantei por todas as formas com que as histórias são contadas. Assim, percebi que com o tema

estudado, poderia conciliar ambas as áreas.

Chegou a hora de agradecer àqueles que estiveram ao meu lado, ouvindo as minhas

reclamações pacientemente e sempre me respondendo com a famosa frase: “Você vai

conseguir”. Podem ficar orgulhosos, amigos, eu consegui!

Em primeiro lugar, agradeço à Deus e a Nossa Senhora, que sempre foram meu amparo

nos momentos de desespero.

Agradeço aos meus pais, Carlos Eduardo (no meu coração) e Maria Lúcia, por me

mostrarem o valor da educação e por me apoiarem em todas as minhas escolhas. Às minhas

irmãs, Ana Clara e Bruna, por me mostrarem que eu nunca estarei só.

Aos meus amigos e familiares, por entenderem minhas ausências e me proporcionarem

a maravilha de viver cercada por tanto amor.

À minha melhor amiga e colega de casa, Gabriela Gualhano, pela linda amizade que

construímos. Você, definitivamente, é a melhor pessoa que eu conheci em Macaé.

Ao “meu bonde”, que esteve comigo sempre que precisei: Gabriela Andrade, Rayssa,

Luciana, Leonarda e, em especial, à Brenda, que fez tanto por mim durante todos esses anos.

Aos amigos, Reinaldo, Andressa, Thamires Carvalho, Thamyris Elpídio e Ana Farha,

por terem me oferecido amor e acalento quando eu precisei.

Ao amigo muquiense e acadêmico de História, Matheus Moretti, pela ajuda oferecida

na realização desse projeto e por ser tão solícito sempre que precisei.

À Prefeitura e Secretaria de Cultura de Muqui, nas pessoas do prefeito, Renato Prúcoli,

e do secretário, Gabriel Araújo, por me receberem tão bem e por não medirem esforços na

valorização da nossa linda Muqui.

Ao meu orientador, Matheus Meott, por ter aceitado o desafio de construir este projeto

comigo.

A vocês toda a minha gratidão.

Essa conquista é nossa!

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Para bem restaurar, é necessário amar e entender o

monumento, seja estátua, quadro ou edifício, sobre o

qual se trabalha... Ora, que séculos souberam amar e

entender as belezas do passado? E nós, hoje, em que

medida sabemos amá-las e entendê-las?

Camillo Boito, 1884.

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RESUMO

O presente trabalho visa à análise dos aspectos da intervenção estatal na propriedade privada,

com enfoque no instituto do tombamento. Partindo dos princípios da função social da

propriedade e da supremacia do interesse público sobre o privado, que justificam as imposições

estatais ao proprietário, buscou-se compreender as diretrizes legais e as principais

características do tombamento no tocante à sua importância na preservação da identidade

cultural da nação. Destarte, além de se estudar o instrumento normativo que dispõe sobre o

tombamento como instrumento de garantia ao direito à cultura, qual seja o Decreto-Lei 25/37,

foi explanada a competência do Poder Judiciário no tocante ao controle do ato administrativo

do tombamento. Ademais, foi estudado o contexto de surgimento da ideia de preservação do

patrimônio cultural brasileiro, cuja competência foi atribuída ao Poder Público em conjunto

com a população pela Constituição Federal de 1988. Quanto ao aspecto prático da presente

pesquisa, foi utilizado o município de Muqui, localizado no sul do Espírito Santo, considerada

a maior e uma das mais importantes áreas de preservação cultural do Estado.

Palavras-Chave: Direito de Propriedade. Intervenção Estatal. Patrimônio Cultural.

Preservação. Tombamento.

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ABSTRACT

This paper aims to analyze the aspects of state intervention in private property, focusing on the

tombamento. Starting from the principles of social function and property of the public interest

over the private, which are as important as the owner, seeker-refers to the law and as head of

the pronouncement as to its importance in preserving the cultural identity of the Destarte nation,

in addition of developing the normative instrument on the subject as an instrument of resistance

to the right to culture, that is, Decree-Law no. 25/37, was constituted a competence of the

Judiciary Power regarding the control of the process of tombamento. In addition, the context of

the initiative for the conservation of Brazilian cultural heritage was studied. It was assessed to

the public in conjunction with a publication by the Federal Constitution of 1988. Located in the

southern state of Espírito Santo, considered major and most important in the areas of cultural

preservation of the State.

Keywords: Property right. State intervention. Cultural heritage. Preservation Tombamento.

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SUMÁRIO

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ........................................................................... 12

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13

1. DIREITO DE PROPRIEDADE E A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO

HISTÓRICO E CULTURAL BRASILEIRO ...................................................................... 15

1.1 FORMAS DE INTERVENÇÃO DO ESTADO NA PROPRIEDADE .......................... 16

1.1.1 A função social da propriedade .......................................................................... 17

1.1.2 A supremacia do interesse público ..................................................................... 18

1.2 MODALIDADES DE INTERVENÇÃO NA PROPRIEDADE .................................... 19

1.2.1 Limitações administrativas ................................................................................. 20

1.2.2 Ocupação temporária .......................................................................................... 21

1.2.3 Requisição administrativa .................................................................................. 22

1.2.4 Servidão administrativa ...................................................................................... 22

1.2.5 Desapropriação .................................................................................................... 23

1.2.6 Tombamento ........................................................................................................ 24

1.3 O PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO ............................................................. 24

1.3.1 Conceito de Patrimônio Cultural ....................................................................... 25

1.3.2 História da Preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro ........................... 26

1.3.3 Formas de Tutela do Patrimônio Cultural ........................................................ 27

2. O TOMBAMENTO COMO FORMA DE PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO

CULTURAL E HISTÓRICO BRASILEIRO ...................................................................... 30

2.1 CARACTERÍSTICAS DO INSTITUTO DO TOMBAMENTO ................................... 31

2.1.1 Conceito ................................................................................................................ 31

2.1.2 O Livro do Tombo ............................................................................................... 32

2.1.3 Fundamentos ........................................................................................................ 33

2.1.4 Objeto.................................................................................................................... 33

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2.1.5 Modalidades de Tombamento ............................................................................ 34

2.1.6 O Procedimento de Tombar ............................................................................... 36

2.1.7 Natureza Jurídica ................................................................................................ 38

2.1.8 O Tombamento é Ato Discricionário ou Vinculado da Administração

Pública?.............. .......................................................................................................... ....39

2.1.9 Efeitos.................................................................................................................... 40

2.1.10 Indenização ........................................................................................................... 42

2.2 A ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO NO PROCESSO DO TOMBAMENTO ................... 43

3. ESTUDO DE CASO: UMA ANÁLISE DO TOMBAMENTO NA CIDADE DE

MUQUI/ES .............................................................................................................................. 46

3.1 BREVE ANÁLISE SOBRE OS IMPACTOS DA ECONOMIA CAFEEIRA NO

MUNICÍPIO DE MUQUI ........................................................................................................ 46

3.2 HISTÓRIA DA CRIAÇÃO DO SÍTIO HISTÓRICO DE MUQUI ............................... 48

3.3 A REALIDADE ATUAL DO TOMBAMENTO NA CIDADE DE MUQUI ............... 49

CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 53

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 55

ANEXO 1 ................................................................................................................................. 58

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APAC Área de Proteção do Ambiente Cultural

CEC Comissão Estadual de Cultura

IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

SECULT Secretaria de Estado da Cultura

SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

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INTRODUÇÃO

O Brasil é um país extremamente rico culturalmente, no entanto, na maioria das vezes,

essa expressão tão vasta de cultura parece não ter a devida atenção do Poder Público, que a

subjuga como direito de segunda categoria.

As noções preservacionistas no Brasil, desde as primeiras preocupações, ainda no século

XX até as ações atuais do IPHAN na defesa dos interesses históricos e artísticos nacionais,

contribuem para a compreensão da legislação atual acerca do tema, principalmente, quanto à

preservação dos imóveis, que são um dos objetos do tombamento.

Não obstante, ocorrem tragédias como a do Museu Nacional, na qual foram destruídos

mais de 20 milhões de itens de seu acervo e que acabam se transformam em um marco para a

luta da garantia desse direito. No entanto, após passada a repercussão, cessam as discussões e

cobranças ocorridas a esse respeito. Sendo assim, o Poder Público novamente deixa de pôr em

prática as diversas formas de tutela previstas no ordenamento jurídico brasileiro destinadas a

assegurar a diversidade e preservação do nosso patrimônio cultural.

Observando como o conjunto arquitetônico da cidade de Muqui é repleto de cultura,

pode-se perceber que cada construção histórica contribui para formar a noção de patrimônio da

população local e de toda a história pela qual o município passou para se chegar ao que é hoje.

Ademais, o fato de perceber a sua realidade atual como algo que pode gerar – e gera – efeitos

na esfera jurídica, se tornou uma das motivações para concluir este projeto.

A metodologia utilizada foi a de revisão bibliográfica das principais doutrinas de Direito

Administrativo, bem como artigos e publicações acadêmicas. Além disso, foi realizada

entrevista com o Secretário de Cultura de Muqui, cuja transcrição se encontra em anexo.

Também foi feita entrevista de maneira informal, com o prefeito do Município de Muqui.

O objeto de estudo foi escolhido em razão de sua relevância jurídica e social, tanto no

âmbito do Direito Administrativo, dispondo sobre a propriedade privada e sobre a

responsabilidade do Poder Público na esfera de preservação do patrimônio cultural, quanto na

esfera dos direitos sociais e constitucionais, que tutelam o direito à cultura.

No primeiro capítulo, buscou-se apresentar as principais formas de intervenção do

Estado na propriedade privada e discorrer sobre os fundamentos que as justificam. Além disso,

foi tratada ainda a questão da proteção ao direito de propriedade e ao direito à cultura, porquanto

ambos se encontram tutelados constitucionalmente. Sendo assim, diante de possíveis conflitos

de interesses entre proprietário e Poder Público, restou claro que deve haver ponderação e

razoabilidade na análise do caso concreto, observando-se as regras impostas pelo ordenamento.

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O segundo capítulo se propôs a uma análise das principais características do

tombamento, elencadas em seu instrumento normativo, o Decreto-lei 25/37, além de apresentar

algumas divergências doutrinárias acerca do assunto. Ademais, foi estudada a atuação do Poder

Judiciário como agente participativo no processo do tombamento, analisando-se como o

controle é exercido nessa esfera.

Desse modo, tendo como base o Decreto-lei 25/37, foram expostas as classificações do

instituto, os aspectos formais do procedimento, bem como os efeitos gerados por ele.

Por fim, como estudo de caso, foi feita uma análise do tombamento na cidade de Muqui,

tombada e reconhecida como sítio histórico em 2009 por intermédio da Secretaria de Cultura

do Estado. Ademais, foram traçados alguns dos principais problemas que acontecem no

Município, que estão em desacordo com o que a norma estabelece, bem como as principais

reclamações dos munícipes junto a secretaria municipal de cultura.

Diante do exposto, convém reafirmar a extrema importância que o patrimônio cultural

ocupa no cenário brasileiro.

Nesse sentido, os imóveis, como objeto dessa proteção, se apresentam como verdadeiros

contadores de histórias, cuja preservação é fundamental para as áreas da educação, arquitetura,

história, geografia, arqueologia e para a formação de indivíduos, cuja percepção de integrar

uma sociedade que se interessa por resguardar seus principais valores e noções culturais, bem

como em repensar e discutir suas mazelas históricas , através da análise de estudo dos objetos

presentes na sociedade ao longo dos anos, pode contribuir em sua formação crítica.

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1. DIREITO DE PROPRIEDADE E A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO

HISTÓRICO E CULTURAL BRASILEIRO

A Constituição Federal de 1988 tutela dois grandes bens jurídicos. São eles, o direito à

propriedade, inserido no artigo 5º, caput e inciso XXII, logo, possui status de cláusula pétrea e

o direito à cultura, que abrange todas as formas de patrimônio cultural brasileiro. (BRASIL,

1988)

Em uma breve análise histórica, o Estado do século XIX não se atentava para os

interesses coletivos, nem para o exercício de ações com aspectos sociais. Nesse período, a

liberdade individual e intangibilidade dos direitos pessoais eram privilegiadas, o que acarretava

uma grande discrepância social. Entretanto, esse modelo de Estado deu lugar a um Estado de

Bem-Estar Social “que foi assumindo a tarefa de assegurar a prestação dos serviços

fundamentais e ampliando seu espectro social, procurando a proteção da sociedade vista como

um todo”. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 429)

No entanto, assim como ocorre em muitas outras situações, existem momentos em que

dois bens garantidos pelo ordenamento jurídico parecem conflitar. Sendo assim, é necessário

que se utilize as diretrizes jurídicas com ponderação, visando assegurar o bem-estar social.

Isso ocorre na esfera de proteção ao direito de propriedade, já consolidado no Direito

brasileiro, mas que necessita se adaptar aos interesses coletivos. Dessa forma, o que fazer para

que esse instituto que garante ao seu titular a prerrogativa de dizer “a coisa é minha e faço com

ela o que bem entender” não seja utilizado de forma ilimitada e desenfreada?

É o que será analisado adiante: o que dá legitimidade ao Estado para agir frente a

interesses conflitantes do proprietário com o interesse público? O que deve ser feito para

garantir que a propriedade de um bem também seja destinada à preservação do direito à cultura?

Diante do exposto, há de se convir que as intervenções estatais no direito de propriedade, cujas

peculiaridades serão estudadas adiante, devem se prestar exclusivamente a garantir as

necessidades e interesses da coletividade.

Dessa forma, sendo o patrimônio cultural um dos pilares da identidade de uma

sociedade, constituindo uma universalidade de bens e direitos que devem dispensar atenção

especial do Poder Público, a Constituição Federal de 1988 expôs a necessidade de colaboração

entre a população e o Poder Público na garantia de um meio ambiente cultural preservado.

(CARVALHO; CUNHA, 2018, p. 05).

O direito ao patrimônio cultural, além de garantido constitucionalmente, também possui

previsão na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, como direito de toda pessoa

humana, portanto, merece a devida atenção do Poder Público (CARVALHO; CUNHA, 2018,

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p. 09), e justifica a intervenção estatal no domínio privado, que sofre limitações para se adequar

ao coletivo.

1.1 FORMAS DE INTERVENÇÃO DO ESTADO NA PROPRIEDADE

O constituinte atribuiu à propriedade o caráter mais amplo dos direitos reais, pois

conferiu ao portador desse direito a possibilidade de usar, gozar e dispor, de forma absoluta,

exclusiva e perpétua. A exclusividade se dá na medida em que o proprietário da coisa, ou pessoa

que possua autorização conferida por ele, configuram-se com as únicas pessoas com permissão

para exercer os atributos inerentes à propriedade. Além disso, o caráter exclusivo traduz-se na

produção de efeito erga omnes, no qual há a obrigação de toda a sociedade com o respeito ao

direito de uso do proprietário. (CARVALHO, 2017, p. 995)

Já o caráter absoluto permite ao proprietário utilizar-se de seu imóvel como desejar,

desde que não prejudique interesses de terceiros ou case danos à coletividade. (CARVALHO,

2017, p. 995-996)

Por fim, a perpetuidade é caracterizada pela inexistência de prazo para o exercício de

tal direito e porque este não é suscetível de prescrição. Sendo assim, até que haja a transmissão

em decorrência de morte ou transferência por ato inter vivos, a propriedade não pode ser extinta.

(CARVALHO, 2017, p. 996)

Contudo, não se pode afirmar que os direitos de uso, gozo e disposição podem ser

exercidos de forma irrestrita e ilimitada, pois eles “coexistem com direitos alheios, de igual

natureza, e porque existem interesses públicos maiores, cuja tutela incumbe ao Poder Público

exercer, ainda que em prejuízo de interesses individuais”. (DI PIETRO, 2017, p. 158)

Sabe-se que o artigo 5º, XXII da Constituição Federal de 1988 é incisivo ao garantir o

direito de propriedade, sendo vedado ao legislador retirá-lo do ordenamento jurídico. Há, no

entanto, a possibilidade de se traçar limites e delinear contornos ao exercício desse direito, sem

que o mesmo deixe de ser tutelado pelas normas jurídicas. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 429)

Em continuidade ao dispositivo que regula a garantia do direito de propriedade, o inciso

XXIII do artigo supramencionado da Constituição Federal é categórico ao enunciar que “a

propriedade atenderá sua função social”. (BRASIL, 1988)

Os fundamentos que respaldam o Poder Público para realizar uma intervenção em

propriedade particular são a inobservância do cumprimento de sua função social e a prevalência

do interesse da coletividade sobre o interesse privado, traduzida na supremacia do interesse

público, conforme preleciona José dos Santos Carvalho Filho:

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O dilema moderno se situa na relação entre o Estado e o indivíduo. Para que possa

atender aos reclamos globais da sociedade e captar as exigências do interesse público,

é preciso que o Estado atinja alguns interesses individuais. E a regra que atualmente

guia essa relação é a da supremacia do interesse público sobre o particular. É, na

verdade, esse postulado que constitui um dos fundamentos políticos da intervenção

do Estado na propriedade. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 429)

Sendo certo de que o direito de propriedade é passível de sofrer interferência do Estado,

serão analisados os princípios que justificam esse poder conferido à Administração Pública.

1.1.1 A função social da propriedade

O princípio da função social da propriedade inspirou a inserção do instituto da

desapropriação por interesse social na Constituição de 1946, contudo, somente na Constituição

de 1967 há menção expressa do termo no texto constitucional, por meio da Emenda nº 1 de 69.

No entanto, tal princípio só era utilizado como fundamento para desapropriação com fins de

reforma agrária. (DI PIETRO, 2017, p. 160)

Fala-se muito acerca do uso desse princípio para definir quando o Estado pode interferir

na propriedade de um particular, no entanto, é importante lembrar que a função social configura

um conceito jurídico aberto e indeterminado. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 432)

Sendo assim, foi necessário que se estabelecessem critérios para definir o que seria essa

noção de acordo com o que enuncia a Constituição, para evitar que se transformasse em uma

definição com caráter muito amplo ou reduzido.

Alexandre Mazza traz em seus ensinamentos, uma noção básica de observância dos

requisitos a serem preenchidos para que uma propriedade atenda à sua função social, diferindo

o imóvel urbano do rural, de acordo com a destinação do imóvel:

Para saber se determinada propriedade cumpre ou não sua função social é necessário

identificar inicialmente se trata-se de propriedade urbana ou rural. Convém salientar

que, para o Direito Administrativo, deve ser utilizado o critério da destinação a fim de

diferenciar imóvel urbano do rural. Assim, considera-se urbano o imóvel destinado

predominantemente para fins de moradia, comércio, indústria e serviços. Já o imóvel

rural é aquele com predomínio de utilização agrária. (MAZZA, 2016, p. 860)

Para identificar se a função social está sendo cumprida, tanto a propriedade urbana,

quanto a rural, devem estar em consonância com alguns critérios definidos pela Constituição

Federal.

Nesse caso, deve-se recorrer ao artigo 182 da Constituição da República de 1988, que

estabelece como cumprida a função social de uma propriedade urbana quando esta atinge o que

ordena o Plano Diretor municipal. Este, por sua vez, constitui instrumento obrigatório para as

cidades com mais de 20.000 habitantes. Além disso, o §4º do referido artigo dispõe que é

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permitido ao Poder Público exigir o atendimento da função social do imóvel quando este não

contenha solo edificado, subutilizado ou não utilizado, mediante a adoção de medidas que

efetivem o aproveitamento do mesmo, sob pena de não sendo atendidas tais exigências, ocorra

o parcelamento ou edificação compulsórios, a aplicação do IPTU progressivo e desapropriação

através de pagamentos da dívida pública. (DI PIETRO, 2017, p. 161)

Por sua vez, considera-se atingida a função social de uma propriedade rural quando a

mesma atende, simultaneamente, ao disposto nos incisos do artigo 186 da Constituição Federal

que delimitam normas gerais, cujo cumprimento fica sujeito aos critérios e graus de exigência

definidos por lei. São eles o aproveitamento racional e adequado da propriedade, utilização

adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das

disposições que regulam as relações de trabalho e a exploração que favoreça o bem-estar dos

proprietários e dos trabalhadores, sob pena de desapropriação para reforma agrária. (DI

PIETRO, 2017, p. 161)

1.1.2 A supremacia do interesse público

Esse princípio está presente em praticamente toda atuação do Poder Público e sempre

serviu para embasar as decisões administrativas. Isso porque, para restringir uma garantia

individual prevista constitucionalmente, é necessário que se faça em prol do interesse de toda a

sociedade.

Segundo Matheus Carvalho (2017, p. 1008), a limitação ao exercício de direitos

individuais decorre do Poder de Polícia da Administração, cuja atuação pode ser em caráter

concreto e individual ou geral e abstrato. Em ambas as situações, o Poder Público pode

restringir o uso da propriedade ou até mesmo retirá-la do indivíduo, contanto que haja

justificativa plausível, fundada na supremacia do interesse público.

Entretanto, existem hipóteses que ensejam a intervenção do Estado no domínio privado,

pois decorrem de ilegalidades praticadas pelo proprietário, tais como, a utilização do solo para

o plantio de psicotrópicos ilícitos, a exploração de trabalho escravo na propriedade, além do

não cumprimento da função social da propriedade, logo, admite-se em tais situações que o ente

público promova a adequação ao interesse público, tal como ocorre na desapropriação, que será

analisada em tópico subsequente. (CARVALHO, 2017, p. 1008)

Ademais, o princípio da supremacia do interesse público é necessário à garantia da

segurança e sobrevivência, das quais dependem os indivíduos. Assim, considera-se

fundamental a existência de uma posição privilegiada do Estado, que age de forma vertical,

ditando regras aos particulares e restringindo o direito de uso da propriedade. Diante disso, caso

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haja alguma insatisfação do proprietário frente a essas regras ou conflito entre o interesse

público e o privado, aquele sempre deve se sobrepor a este. (CARVALHO FILHO, 2017, p.

431)

No entanto, alguns autores, como Marçal Justen Filho (2017, p.143), relativizam a

utilização de tal princípio em contrapartida à tese defendida pela maioria da doutrina brasileira

que o apresenta com caráter absoluto. Para ele, não existe um fundamento único no Direito

Administrativo, haja vista que o mesmo é composto por muitos outros princípios aptos,

inclusive, a fundamentar o direito à propriedade privada.

Desse modo, o autor sustenta que não existe classificação hierárquica entre os

princípios, devendo, na prática, haver uma ponderação acerca de qual será utilizado. E vai além,

afirmando que a escolha conferida a Administração para intervir na propriedade sob o

fundamento do interesse público pode acabar deixando uma lacuna para fundamentar as

vontades dos governantes:

(...) a adoção do critério da supremacia e indisponibilidade do interesse público

resulta, no mundo real, na atribuição ao governante de uma margem indeterminada e

indeterminável de autonomia para impor suas escolhas individuais. Ou seja, o

governante acaba por escolher a solução que bem lhe apraz, justificando-a por meio

da expressão supremacia e indisponibilidade do interesse público. Esse modelo é

incompatível com a Constituição, com a concepção do Estado Democrático de Direito

e com a própria função reservada ao direito administrativo. (JUSTEN FILHO, 2017,

p.143)

1.2 MODALIDADES DE INTERVENÇÃO NA PROPRIEDADE

As formas de intervenção do Estado na propriedade costumam ser dividas pela doutrina

segundo duas classificações que afetam o direito de propriedade de diferentes maneiras: uma

delas é a intervenção restritiva, que implica somente em um condicionamento ao uso desse

direito. Assim, a utilização do bem não ocorre de forma plena, ficando limitada às imposições

estatais e garantindo as necessidades públicas.

De forma mais drástica, a outra modalidade de intervenção é conhecida como supressiva

e ocorre quando há a perda do direito de propriedade de um particular em favor do Estado.

Assim, o particular tem seu direito de propriedade totalmente suprimido em razão de interesses

coletivos. Geralmente, há o pagamento de uma indenização, mas, excepcionalmente pode não

haver o pagamento de qualquer quantia.

O único instituto previsto pelo ordenamento brasileiro nessa modalidade é a

desapropriação. Por sua vez, as intervenções restritivas que não implicam a perda do direito de

propriedade e são conhecidas por serem mais brandas são as limitações administrativas,

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ocupações temporárias, requisições administrativas, servidões públicas ou administrativas e

tombamento.

Ambas as formas de intervenção do Estado no domínio privado terão suas principais

características expostas nos tópicos subsequentes.

1.2.1 Limitações administrativas

Maria Sylvia di Pietro (2017, p. 164) ensina que as limitações administrativas

configuram objeto do Direito Administrativo, pois diversamente do que ocorre no Direito

Privado, cuja maioria das normas são ditadas pelo Código Civil, como, por exemplo, o direito

de vizinhança, que se apresenta como um conjunto de direitos e obrigações entre particulares,

as limitações administrativas caracterizam-se como normas pautadas no poder de polícia da

Administração, como forma de interferir no domínio privado para garantir que o uso da

propriedade esteja de acordo com o bem-estar social. Vejamos:

As limitações podem, portanto, ser definidas como medidas de caráter geral, previstas

em lei com fundamento no poder de polícia do Estado, gerando para os proprietários

obrigações positivas ou negativas, com o fim de condicionar o exercício do direito de

propriedade ao bem-estar social. (DI PIETRO, 2017, p. 164)

Embora a maioria dessas limitações possua um viés negativo, caracterizado por

obrigações de não fazer ou deixar de fazer, como Marçal Justen Filho (2016) exemplifica que

as mesmas podem proibir a edificação em determinada distância da linha da rua, alguns autores,

como José dos Santos Carvalho Filho (2017) e Maria Sylvia (2017) ensinam que essas

limitações também podem ser obrigações positivas ou permissivas, tais como a de permissão

de entrada de agentes da vigilância sanitária nas residências, bem como de empregar

providências para a prevenção de incêndios, por exemplo.

Desse modo, as limitações administrativas sobre o imóvel têm caráter imperativo, não

cabendo ao particular impedir ou demandar em juízo o não cumprimento. Tal prerrogativa da

Administração é respaldada pelo princípio do interesse público e visa que o bem-estar da

coletividade se sobreponha aos interesses de um particular. Não devem, no entanto, ser

realizadas com abuso de poder, sob pena de pagamento de indenização ao particular, além da

devida indenização àqueles que sofrerem prejuízos em virtude de tais limitações, conforme

explica Di Pietro:

Sendo medidas impostas pelo poder de polícia do Estado, com fundamento no

princípio da supremacia do interesse público, não cabe ao particular qualquer medida,

administrativa ou judicial, visando impedir a incidência da limitação sobre o imóvel

de sua propriedade; o Estado age imperativamente, na qualidade de Poder Público, e

somente poderá sofrer obstáculos, quando a Administração aja com abuso de poder,

extravasando os limites legais. Nesse caso, cabe ao particular, além de opor-se à

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limitação estatal, pleitear a indenização por prejuízos dela decorrentes. (DI PIETRO,

2017, p. 164)

1.2.2 Ocupação temporária

Carvalho Filho apresenta a utilização transitória de bem imóvel privado para a execução

de uma finalidade pública como sendo o núcleo central desse instituto (CARVALHO FILHO,

2017, p. 438). No ordenamento jurídico brasileiro não há lei que regule a ocupação temporária,

no entanto, existem alguns dispositivos que mencionam esse instituto como uma faculdade da

Administração.

Há previsão no artigo 36 da Lei de Desapropriações, no qual a ocupação temporária

representa uma forma de auxiliar a desapropriação. Desse modo, é necessária a presença dos

seguintes requisitos para a execução ato: que exista a desapropriação para a realização de obra

pública e a necessidade de ocupação dos terrenos ao seu redor, bem como que não haja

construção no terreno a ser ocupado. Também são obrigatórios o pagamento de indenização ao

proprietário e a prestação de caução prévia, quando exigida. (DI PIETRO, 2017, p. 165)

Sendo assim, a ocupação temporária é apenas um meio para se alcançar o objetivo

principal: a desapropriação. Traduz-se, por exemplo, pela necessidade da Administração de uso

de terrenos vizinhos a obras em estradas, para guardar equipamentos de serviços e materiais

dos operários. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 438)

Fugindo da exemplificação clássica pautada no artigo 36 da Lei de Desapropriação, que

dispõe acerca da ocupação de terrenos vizinhos ao imóvel desapropriado e apresenta apenas

uma das espécies deste instituto, Carvalho Filho ensina que o préstimo de escolas e demais

estabelecimentos particulares para fins eleitorais também constitui forma de ocupação

temporária. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 439)

Ademais, pela Lei nº 3.924/61, bens imóveis particulares para fins de escavações e

pesquisas com relevância para a arqueologia e a pré-história, podem ser usados por um lapso

de tempo, excepcionando-se as áreas muradas, que cercam construções domiciliares. (DI

PIETRO, 2017, p. 165)

Nessa hipótese, como o uso do bem imóvel não está ligado à desapropriação, que possui

indenização prevista em lei, não há necessidade de se indenizar o proprietário que sofreu a

ocupação temporária, exceto quando houver algum tipo de prejuízo em decorrência da mesma.

(CARVALHO FILHO, 2017, p. 439-440)

É importante ressaltar o caráter de transitoriedade desse instituto, pois ainda que não

exista prazo definido em lei, tal modalidade não implica na perda da propriedade, mas sim em

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uma restrição do direito de uso e gozo imposta ao proprietário em favor de realização de obra

ou serviço em que haja a prevalência do interesse público.

1.2.3 Requisição administrativa

O artigo 5º, XXV da Constituição Federal dispõe que em caso de iminente perigo

público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao

proprietário indenização ulterior, se houver dano. (BRASIL, 1988, online)

Dessa forma, não há liberdade para que o Poder Público possa requisitar bens de acordo

com sua vontade, uma vez que apenas o risco iminente de perigo público justifica a utilização

desse instituto.

O artigo 1228 do Código Civil de 2002 corrobora com o dispositivo constitucional,

asseverando que “o proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por

necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de

perigo público iminente”. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 437)

Importante ressaltar que não somente os bens imóveis podem ser requisitados, como

também os bens móveis e serviços particulares, constituindo, assim, uma forma de limitação à

propriedade privada. Ademais, é característica das requisições a unilateralidade do ato, pois não

é preciso que haja autorização do particular, e nem mesmo interferência do Judiciário, já que a

prerrogativa do instituto é o caráter de urgência e perigo imediatos. (DI PIETRO, 2017, p. 167)

Além disso, insta salientar que é de competência privativa da União legislar sobre

requisições civis e militares. No entanto, frise-se que somente a edição de normas acerca do

assunto é de competência federal, sendo assim, os demais entes possuem competência para

requisitar o uso de bens particulares, desde que presentes os requisitos constitucionais, sob pena

de se configurar uma ilegalidade. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 437)

1.2.4 Servidão administrativa

Assim como no Direito Civil, em que a servidão constitui um direito real sobre coisa

alheia, no Direito Administrativo, a mesma também possui tal natureza jurídica, no entanto,

com caráter público. Desse modo, deve ser registrada em cartório a fim de que produza efeitos

erga omnes e acompanhar o imóvel, ainda que seja alienado a terceiros. (CARVALHO, 2017,

p. 435)

Esse instituto possui as mesmas características de uma servidão comum, quais sejam a

“res serviens (prédio de propriedade alheia), prestando utilidade à res dominans (bem afetado

a fim de utilidade pública ou a determinado serviço público)”. Desse modo, há um bem gravado

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com direito real de gozo, sendo utilizado para a realização de obra pública ou para prestação de

um serviço. (DI PIETRO, 2017, p. 177)

Exemplo clássico da doutrina é a instalação de postes em propriedades privadas para

fornecimento de energia elétrica, bem como as placas colocadas em muros particulares para

identificação de ruas. Diante dessas situações em que há um interesse coletivo no provimento

de tais serviços, a servidão caracteriza-se como prerrogativa da Administração, tendo o

proprietário a obrigação de suportá-las.

Caso as partes – Administração e particular – não entrem em acordo, é necessário que

haja sentença judicial para constituir a servidão. (DI PIETRO, 2017, p. 178)

Quanto à indenização em virtude da restrição do direito de uso, esta somente é

necessária quando caracterizado algum dano causado pelo Poder Público ao patrimônio do

particular. (DI PIETRO, 2017, p. 180)

Além disso, a servidão possui como característica a perpetuidade, tendo em vista ser

uma situação de interesse público na qual não incide prazo determinado (CARVALHO FILHO,

2017, p. 435). Logo, difere-se da ocupação temporária, cuja finalidade é apenas utilizar bens

privados, momentaneamente, até que se conclua a obra de interesse público para após ocorrer

a devolução do bem ao particular.

1.2.5 Desapropriação

No dizer de Matheus Carvalho: A desapropriação é procedimento por meio do qual o ente público determina a retirada

de bem privado do seu proprietário, para que esse faça parte do patrimônio público,

sempre embasado nas necessidades coletivas, mediante o pagamento de indenização,

previamente definida, de forma justa ao proprietário. (CARVALHO, 2017, p. 1002).

A desapropriação é uma modalidade de intervenção na propriedade que encontra

previsão constitucional. Caracteriza-se por uma série de atos na esfera administrativa e também

na judicial, regidos por normas de direito público, que ressaltam a supremacia do Estado frente

ao particular proprietário. (CARVALHO FILHO, 2017)

Sobre o procedimento da desapropriação, Carvalho Filho ensina que:

O procedimento tem seu curso quase sempre em duas fases. A primeira é a

administrativa, na qual o Poder Público declara seu interesse na desapropriação e

começa a adotar as providências visando à transferência do bem. Às vezes, a

desapropriação se esgota nessa fase, havendo acordo com o proprietário. Mas é raro.

O normal é prolongar-se pela outra fase, a judicial, consubstanciada através da ação a

ser movida pelo Estado contra o proprietário. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 454)

Com relação ao objeto da desapropriação, qualquer bem que possua valor econômico,

seja ele móvel ou imóvel, corpóreo ou incorpóreo, público ou privado, pode ser expropriado.

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Os pressupostos aptos a justificarem a desapropriação estão presentes no artigo 5º,

XXIV da Constituição Federal. São eles: utilidade pública, necessidade pública e interesse

social. A utilidade pública decorre da conveniência da Administração, enquanto a necessidade

pública caracteriza uma situação de emergência. Por sua vez, o interesse social é aquele que

exige a observância do cumprimento da função social da propriedade, cuja prioridade da

Administração deve ser a de reduzir as desigualdades, como ocorre, por exemplo, na

desapropriação para a reforma agrária e assentamento de colonos. (CARVALHO FILHO, 2017,

p. 454)

Além dessas, existem mais três outras espécies de desapropriação. A desapropriação

urbanística sancionatória é aquela que visa coibir que o proprietário de solo urbano deixe de

promover o adequado aproveitamento do mesmo, não atendendo aos requisitos previstos no

Plano Diretor da cidade. Já na desapropriação rural, a principal finalidade é a reforma agrária,

sendo considerada uma das vertentes da desapropriação por interesse social. (CARVALHO

FILHO, 2017, p. 455)

Frise-se que a regra da desapropriação é a indenização ao proprietário que foi

prejudicado pela perda do bem. No entanto, a terceira hipótese, denominada confiscatória, não

dá direito à indenização, tendo em vista ocorrer somente nas hipóteses de cultivo ilegal de

plantas psicotrópicas ou quando há exploração de trabalho escravo na propriedade.

(CARVALHO FILHO, 2017, p. 464)

1.2.6 Tombamento

O instituto do tombamento será analisado de forma específica e mais aprofundada no

Capítulo 2 deste projeto. Isso porque, é a única das formas de intervenção na propriedade que

visa assegurar o bem em si, objetivando a preservação do patrimônio histórico, artístico e

cultural, inclusive de imóveis. Ademais, a evolução histórica da noção de preservação do

patrimônio cultural imóvel será o objeto de estudo de um dos tópicos subsequentes deste

primeiro capítulo.

1.3 O PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO

Assim como ocorre com a tutela ao direito de propriedade, a proteção ao patrimônio

cultural brasileiro também encontra previsão na Constituição Federal de 1988, na qual há

menção explícita sobre o tema. O parágrafo primeiro do artigo 216 dispõe que “O Poder

Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural

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brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de

outras formas de acautelamento e preservação.” (BRASIL, 1988)

Dessa forma, surge a necessidade de se criarem regras para que o Estado intervenha na

propriedade, uma vez que ela e o patrimônio cultural brasileiro constituem dois bens jurídicos

tutelados constitucionalmente que devem coexistir de forma equilibrada.

1.3.1 Conceito de Patrimônio Cultural

O Decreto-Lei 25/1937 dispõe em seu artigo primeiro a definição de patrimônio histórico

e artístico brasileiro: “Constituem o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos

bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por

sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor

arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.” (IPHAN, 2018, online)

O conceito de patrimônio cultural foi ampliado pela Constituição Federal de 1988, que

alterou os termos “patrimônio histórico e artístico”, trazidos pelo Decreto supramencionado,

por “patrimônio cultural brasileiro”. O artigo 216 da Carta Maior o define como sendo “os bens

de natureza material ou imaterial, tomados de forma individual ou em conjunto, portadores de

referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira (...)”. (IPHAN, 2018, online)

Nesse sentido, Ana Cláudia Aguiar apud Castro (1991, p. 2) trata:

Entender o conceito de “patrimônio histórico e artístico” para “patrimônio cultural”

significa compreender que o valor de um bem transcende em muito o seu valor

histórico comprovado ou reconhecido oficialmente, ou as suas possíveis qualidades

artísticas. É compreender que este bem é parte de um conjunto maior de bens e valores

que envolvem processos múltiplos e diferenciados de apropriação, recriação e

representação construídos e reconhecidos culturalmente e, aí sim, histórica e

cotidianamente, portanto anterior à própria concepção e produção daquele bem.

Para Pelegrine (2006, p. 116), o conceito de patrimônio traduz uma ideia de herança e a

noção geral de patrimônio cultural está intimamente ligada à de memórias, lembranças e

identidade cultural. Conforme a autora explica:

A noção de patrimônio advém etimologicamente da concepção de "herança paterna".

Esse termo nas línguas românicas, segundo Pedro Paulo Funari, deriva do

latim patrimonium e faz alusão à "propriedade herdada do pai ou dos antepassados"

ou "aos monumentos herdados das gerações anteriores". Para o referido historiador e

arqueólogo, essas expressões fazem menção a moneo, que em latim significa "levar a

pensar". Portanto, as noções de patrimônio cultural mantêm-se vinculadas às de

lembrança e de memória — uma categoria basal na esfera das ações patrimonialistas,

uma vez que os bens culturais são preservados em função dos sentidos que despertam

e dos vínculos que mantêm com as identidades culturais. (PELEGRINI, 2006, p. 116)

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Na concepção dos autores Raphael Franco e Isaac Rodrigues, o conceito de patrimônio

cultural está intimamente ligado à preservação de tradições e identidade de um povo, que não

deve estar adstrito a apenas determinado tipo de bem:

O patrimônio cultural, por sua vez, nada mais é do que a soma de todos os bens

culturais, o conjunto de todos estes, materiais ou imateriais, que possuem grande

relevância para a manutenção das tradições e da identidade cultural de um povo. E tal

patrimônio, no atual império constitucional, deve ser verdadeiramente uma

“universalidade cultural”, não mais se atendo apenas a um ou outro determinado tipo

de bem cultural. (FRANCO; RODRIGUES, 2018, p. 3)

Importante mencionar que a Constituição da República ampliou a noção de patrimônio

cultural e atribuiu não somente ao Poder Público, mas ao povo, enquanto nação, a obrigação de

zelar por sua preservação. No entanto, nem sempre essa noção de patrimônio foi valorizada

pelo Estado brasileiro, atendo-se em algumas épocas somente à ideia simplista de que o

patrimônio cultural é resumido a monumentos e passando por várias fases até chegar na

concepção atual de tutela do mesmo.

1.3.2 História da Preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro

A noção de que era necessário proteger o domínio histórico, cultural e artístico do Brasil

surgiu por volta de 1920 com alguns projetos de lei, no entanto, os mesmos restaram

fracassados. Contudo, no final da década houve um pequeno movimento para a criação de

Inspetorias Estaduais de Monumentos Nacionais, nos estados de Pernambuco e da Bahia, mas

com sua abrangência limitada. (PINHEIRO, 2018, p. 04)

Já na década de 30 começaram a surgir políticas preservacionistas que geraram

resultados mais sólidos, como, por exemplo, quando a cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais,

foi declarada monumento nacional, em virtude de sua exuberante arquitetura, rica em obras de

Aleijadinho, considerado o maior gênio do período colonial. Em 1934, foi criada a Inspetoria

de Monumentos Nacionais, responsável pela restauração de vários monumentos de Ouro Preto.

(PINHEIRO, 2018, p. 07)

A Constituição de 1934 demonstrou preocupação em proteger objetos de interesse

histórico e artístico do país, incluindo-a como dever do Estado. No ano seguinte, criou-se o

primeiro departamento municipal de cultura, na cidade de São Paulo, cujo diretor foi Mario de

Andrade. Ele e Paulo Duarte, jornalista integrante do departamento, estavam planejando a

criação de um Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico da cidade de São Paulo,

dedicando-se a procurar ruínas, capelas antigas, casarões coloniais, entre outros. No entanto, tal

plano fracassou em virtude do golpe de 1937. (PINHEIRO, 2018, p. 08)

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Enquanto isso, no Rio de Janeiro, em 1936, já começavam os primeiros passos em

direção ao protecionismo do patrimônio com a criação do órgão de Serviço de Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), no âmbito de atuação do Ministério da Educação e

Saúde. Mario de Andrade foi convidado para “a elaboração de um programa de proteção ao

patrimônio histórico e artístico brasileiro”. (PINHEIRO, 2018, p. 08)

A partir de então, o Decreto-Lei nº 25/37 - primeiro instrumento de regulação do

patrimônio histórico -, que também dispunha sobre o SPHAN e seu âmbito de atuação foi

criado. O Decreto, elaborado pelo primeiro diretor do órgão Rodrigo Melo Franco de Andrade

e, no qual foi atribuída influência de Mário de Andrade, possuía diferentes objetivos. No

anteprojeto de Mário, nota-se a preocupação com o conceito de patrimônio e com a sua extensão

até mesmo a expressões da cultura popular. Por sua vez, o Decreto trouxe as consequências

jurídicas e efeitos decorrentes do tombamento relativos, principalmente, ao direito de

propriedade. (PINHEIRO, 2018, p. 08)

O início da atuação do órgão SPHAN é caracterizado por um período difícil, em que

havia muito desprezo pelas obras arquitetônicas e artísticas do Brasil e quando não havia muito

conhecimento acerca da arquitetura brasileiro pelo órgão. Assim é o posicionamento da autora

Maria Lucia Bressan:

Procuramos esboçar o contexto em que o SPHAN começou a por em prática sua difícil

tarefa de salvaguardar os bens culturais brasileiros. E o fez, como vimos, de uma

posição altamente centralizada - quase anti-democrática -, com um viés ideológico

definido - o do reforço de uma identidade nacional “autorizada”; e debruçando-se

sobre um assunto - a arquitetura brasileira - então pouco conhecido dos próprios

técnicos, quanto mais do público em geral. (PINHEIRO, 2006, p. 09)

A partir de 1968 é que o conceito de monumento começou a se ampliar e a preservação

de bens imóveis tombados e de sítios históricos assumiu posição relevante, bem como

começaram a ser instituídos órgãos estaduais de preservação. (PINHEIRO, 2006, p. 12)

Dessa forma, os monumentos passaram a não ser encarados tão somente como símbolo

de um patrimônio histórico e cultural, mas como instrumentos voltados ao âmbito econômico

e social, cujas políticas e planos de atuação passam a ser direcionadas e realizadas em conjunto

com uma visão turística, que possui forte expressão econômica. (PINHEIRO, 2006, p. 12)

1.3.3 Formas de Tutela do Patrimônio Cultural

Existem no ordenamento jurídico brasileiro algumas formas de tutela ao patrimônio

cultural, seja ele material ou imaterial. A própria Constituição Federal assegurou meios de

preservação, através da inclusão em seu texto dos seguintes instrumentos: inventários, registros,

vigilância, tombamento, bem como outras formas de acautelamento e proteção. Tais medidas

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objetivam que o bem não pereça, bem como que faça parte do cotidiano das pessoas, sendo o

Poder Público o agente fundamental para colocar em prática a tutela dos bens revestidos de

valor cultural. (CORDIDO, 2014, p. 61)

A existência de inúmeros instrumentos normativos, que objetivam a preservação do

patrimônio cultural se deve à ampliação do conceito de patrimônio cultural trazido pela

Constituição Federal de 1988 em relação ao Decreto-Lei nº 25/37. A noção de patrimônio

cultural de um povo está relacionada não somente à ideia de um monumento ou estátua, mas de

diversas outras práticas e objetos relacionados a diferentes épocas da sociedade.

Desta feita, tem-se que:

Essa variedade jurídica, de certa forma, está relacionada à extensão do sentido de

patrimônio nos dias de hoje, definido como uma herança cultural cuja presença

constatamos ao nosso redor e reivindicamos como nossa (POULOT, 2008). O

alargamento dessa concepção em relação à idéia inicial de “monumento histórico”7

teria forçado a ampliação quantitativa e qualitativa do conjunto de normativas.

(PEREIRA, p. 23)

O artigo 216, § 1º da Constituição Federal prevê como formas de tutela ao patrimônio

cultural brasileiro inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras

formas de acautelamento e preservação. (BRASIL, 1988, online)

O inventário, que já é utilizado por profissionais da área de conservação, é o instrumento

apto a organizar e determinar as características e problemas relativos aos bens. Dessa forma, a

partir das informações extraídas, serão traçadas novas diretrizes de conservação. Ressalta-se

que o tal instrumento não se caracteriza como uma forma de restrição ao direito de propriedade,

tendo em vista que somente é utilizado para fins de pesquisa. (CORDIDO, 2014, p. 63-64)

Por sua vez, o registro é voltado a tutela de bens culturais imateriais, que pode ser

utilizado tanto pelo Poder Público, quanto pela iniciativa privada. (CORDIDO, 2014, p. 65)

A vigilância constitui uma obrigação estatal, como uma vertente do poder de polícia, na

qual o poder público deve zelar, fiscalizar e administrar o patrimônio cultural. Além disso, é

importante mencionar que a vigilância constitui um dever de todos os entes de direito público,

observando-se, especialmente a responsabilidade atribuída aos municípios pela Constituição

Federal, que afirma ser competência municipal “promover a proteção do patrimônio histórico-

cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual”. (CORDIDO,

2014, p. 65-66)

A desapropriação deve ser a última medida a ser tomada e fundamenta-se somente nos

casos de necessidade ou utilidade pública ou interesse social, conforme já mencionado. Deve

ocorrer quando estiver caracterizada a deterioração do bem ou quando a transferência de

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domínio da propriedade ao Estado se mostrar como a melhor opção para a preservação do

mesmo. (CORDIDO, 2014, p. 66)

No entanto, o mais famoso instrumento de proteção ao patrimônio cultural imóvel,

instituído antes mesmo da Constituição de 1988, através do Decreto-Lei nº 25/37, é o

tombamento que será analisado separadamente no capítulo seguinte.

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2. O TOMBAMENTO COMO FORMA DE PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO

CULTURAL E HISTÓRICO BRASILEIRO

Neste capítulo, discorrer-se-á, em um primeiro momento acerca do conceito de

tombamento e de todas as suas características dispostas na legislação e doutrina brasileiras, para

uma melhor compreensão do instituto e análise da inserção do mesmo na sociedade.

Posteriormente, será feita uma explanação acerca da atuação do Judiciário no tocante ao

controle do ato do tombamento.

A primeira norma jurídica a dispor sobre o tombamento em nosso ordenamento foi o já

mencionado Decreto-Lei nº 25/37, em virtude do interesse público na preservação do

patrimônio cultural brasileiro. A primeira modificação desse instrumento ocorreu em 1941,

através do Decreto-lei 3.866/41, acerca da possibilidade de cancelamento do tombamento pelo

presidente da República. A segunda modificação ficou a cargo da Lei nº 6.292/75, que incluiu

a homologação ministerial no procedimento do tombamento. (RABELLO, 2009, p. 16)

Para Sônia Rabello (2009), o fato de o Decreto-Lei nº 25/37 estar vigendo em nosso

ordenamento por mais de 50 anos é algo de natureza ímpar, partindo do pressuposto de que o

sistema normativo brasileiro possui uma tendência à instabilidade. Além disso, cabe observar

que o mesmo nunca sofreu grandes modificações, exceto às supramencionadas, que, de certa

forma, apenas o complementaram.

Cabe ainda uma diferenciação importante entre os conceitos de tombamento e

preservação que, muitas vezes, costumam ser confundidos e usados como sinônimos, mas não

o são, tendo em vista que diferem quanto à produção de efeitos na esfera jurídica. O conceito

de preservação é amplo, genérico e engloba toda as ações do Estado que têm como finalidade

a conservação da memória de fatos e valores culturais de um povo enquanto nação.

Nesta seara, existem não só diversas normas, como também, atividades no âmbito

administrativo, que não limitam direitos, mas visam tão somente a preservação da memória,

através de ações estatais. Dessa forma, não se traduz a preservação em apenas uma única lei ou

forma, mas em várias outras possibilidades para sua execução. (RABELLO, 2009, p. 20)

Apesar de ser o instrumento de preservação mais conhecido, o Decreto-Lei não é o

único. Os monumentos arqueológicos e pré-históricos, bem como a proteção aos bens

históricos, artísticos ou numismáticos1, advindos de descobertas fortuitas, por exemplo, tem sua

proteção garantida pela Lei nº 3.924/61. Por sua vez, as jazidas arqueológicas têm sua tutela

1 Significado: relativo a moedas ou a medalhas.

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garantida única e exclusivamente por lei, não necessitando de manifestação do Poder Público.

(RABELLO, p. 20)

Destaca-se ainda uma outra forma de proteção ao bem cultural semelhante ao

tombamento, especialmente no tocante aos efeitos. É a chamada preservação de áreas de

interesse cultural e ambiental, oriunda de instrumentos legais de planejamento urbano nos

municípios, que podem ser criadas por processo legislativo, cuja previsão se encontra na lei de

uso do solo urbano, como também podem ser regulamentadas por decretos executivos, desde

que a referida lei permita e, assim, geram efeitos práticos iguais aos do tombamento.

(RABELLO, 2009, p. 22/23)

Dessa forma, o tombamento é apenas uma das formas previstas pela legislação para

proteger o bem cultural, no qual a lei estabelece os limites para atuação desse poder de polícia

conferido à Administração e determina o conteúdo, o procedimento e os efeitos jurídicos dele

decorrentes. (RABELLO, 2009, p. 23)

2.1 CARACTERÍSTICAS DO INSTITUTO DO TOMBAMENTO

A seguir serão expostas as principais características elencadas pela doutrina acerca do

instituto do tombamento. Não é possível, no entanto, esgotar o tema, tendo em vista que se trata

de assunto amplo dentro do Direito Administrativo, que pode ser analisado sob vários aspectos

e vieses. Desse modo, serão utilizadas as principais doutrinas acerca do tema, apresentando

também as divergências existentes.

2.1.1 Conceito

Cretella (1973) caracteriza o tombamento de bens como sendo o ponto mínimo de uma

escala de limitações que restringem o exercício do direito de propriedade, enquanto a

desapropriação, por configurar a perda desse direito, localiza-se no ponto máximo da escala.

O maior objetivo de se tombar um bem é assegurar a proteção ao patrimônio histórico e

artístico nacional, cujo conceito se encontra no Decreto-Lei nº 25/37. Nesse sentido, Marcio

Pestana apresenta um dos conceitos mais precisos e completos, dentre as doutrinas analisadas:

Tombamento é o ato administrativo, através do qual a autoridade para tanto

competente, após a instalação, desenvolvimento e conclusão de um processo

administrativo, atribui a um determinado bem, móvel ou imóvel, mediante inscrição

no livro próprio, determinadas restrições ao direito de propriedade, em virtude de

nele reconhecer e declarar atributos consistentes na materialização de valores

relevantes para o homem e para a coletividade, sejam históricos, culturais,

paisagísticos, científicos, turísticos, arqueológicos, ambientais, artísticos, etc., e que,

para o próprio interesse público, exijam a sua conservação e manutenção, sob a

fiscalização e supervisão do poder público. (PESTANA, 2015, p. 1048-1049)

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O autor ainda menciona que se trata de uma cristalização jurídica que repercute na

realidade, com a principal finalidade de conservar determinado bem, que represente os valores

culturais inseridos em uma sociedade, para a posteridade. (PESTANA, 2015, p. 1049)

Além disso, é importante elucidar que o conceito das limitações discutidas nesse

instrumento e impostas ao bem afetado abarca apenas as restrições parciais, que encontram

previsão na lei, e que garantem ao particular, ainda que de modo limitado, o exercício das

faculdades inerentes ao direito de propriedade. Caso haja a necessidade de restrição total dos

poderes do proprietário, o Poder Público deve desapropriar o bem e não realizar o tombamento.

(DI PIETRO, 2017, p. 168)

2.1.2 O Livro do Tombo

O artigo 4º do Decreto-Lei nº 25/37 determina que o SPHAN possuirá quatro Livros do

Tombo e especifica os tipos de obras que serão inscritas em cada um deles, de acordo com sua

classificação:

Art. 4º O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional possuirá quatro Livros

do Tombo, nos quais serão inscritas as obras a que se refere o art. 1º desta lei, a saber:

1) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas

pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, e

bem assim as mencionadas no § 2º do citado art. 1º.

2) no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interesse histórico e as obras de arte

histórica;

3) no Livro do Tombo das Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou

estrangeira;

4) no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das

artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras.

Importante mencionar que a expressão tombamento advém do Direito Português, cujo

significado do verbo tombar remetia a ideia de registrar, inventariar, arrolar ou inscrever em

arquivos todos os documentos que se referiam ao reino de Portugal. O arquivo real passou a ser

guardado na “Torre do Tombo”, que assim ficou conhecida por guardar os tombos da coroa.

(PEREIRA, 2009, p. 27)

No contexto brasileiro, a expressão tombamento consolidou-se como sendo o registro

de bens cujo valor cultural dispendem atenção especial do Poder Público em sua proteção e

conservação, após inscritos no respectivo Livro do Tombo. (PEREIRA, 2009, p. 29)

A título de curiosidade, atualmente, em Portugal, o termo que caracteriza medida similar

ao tombamento no Brasil é denominado “classificação”. (PEREIRA, 2009, p. 29-30)

É importante mencionar também que os termos “tombamento” e “Livro do Tombo”

apareceram pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro, com vistas a preservação do

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patrimônio cultural no anteprojeto apresentado por Mário de Andrade em 1936 para a criação

do SPHAN. (PEREIRA, 2009, p. 30)

2.1.3 Fundamentos

Carvalho Filho (2017, p. 443) aponta como um dos principais fundamentos do instituto a

necessidade de adequação da propriedade particular aos interesses públicos. Dessa maneira,

conforme já visto no Capítulo 1, é perceptível a utilização do princípio da prevalência do

interesse público sobre o privado para justificar o ato do tombamento.

Desse modo, quando a Constituição estabeleceu que a função social da propriedade

deveria ser atendida, era necessário que se impusesse algumas regras ao exercício de tal

direito. Sendo assim, o tombamento é uma das espécies de intervenção na propriedade

privada, que se justifica na necessidade de adequação da mesma à função social.

Além disso, não restam dúvidas de que a preservação do patrimônio cultural é matéria

relevante para o interesse público, também traduzida como hipótese de cumprimento da

função social da propriedade. Nesse sentido, Carvalho Filho (2017, p. 443):

Bem a propósito, aliás, foi promulgada a EC no 48, de 10.8.2005, que, acrescentando

o § 3o ao art. 215 da CF, previu que lei venha a estabelecer o Plano Nacional de

Cultura, de duração plurianual, com o objetivo de fomentar o desenvolvimento

cultural do País e a integração de ações do Poder Público para a defesa e valorização

do patrimônio cultural brasileiro, produção, promoção e difusão de bens culturais e

outras ações do gênero. Nota-se, destarte, o intuito de dar cada vez mais realce aos

valores culturais do País. E é nesse contexto que se encontra o instituto do

tombamento.

Além disso, o poder de polícia também é fundamento que justifica o tombamento, em

virtude das limitações impostas, cujo objetivo é prevenir eventuais danos decorrentes da

atividade humana no uso de determinado bem. (CRETELLA, 1973, p. 60)

2.1.4 Objeto

O objeto do tombamento pode ser tanto um bem móvel quanto imóvel. No entanto,

deve-se atentar para o fato de que o bem necessita se revestir de pressupostos que demonstrem

a sua relevância no cenário cultural brasileiro, conforme aponta Carvalho Filho:

Deve consignar-se, porém, que os bens suscetíveis de tombamento são aqueles que

traduzem aspectos de relevância para a noção de patrimônio cultural brasileiro. Como

diz a Lei do Tombamento, são os bens do patrimônio histórico e artístico. Desse modo,

correta é a observação de HELY LOPES MEIRELLES de que é equivocado o

tombamento de florestas, reservas naturais e parques ecológicos. Logicamente que

tais bens são suscetíveis de proteção pelo Poder Público, mas não é o instituto do

tombamento o adequado a tal desiderato. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 443)

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Certo é que o tombamento só pode incidir sobre a coisa móvel ou imóvel, logo,

questiona-se se os bens e direitos imateriais, que não se enquadram nessa definição, poderiam

ser incluídos nessa forma de tutela específica. A resposta é negativa, entretanto, isso não

significa que manifestações religiosas, hábitos sociais, costumes, metodologias industriais,

entre outras, não sejam dignas de proteção estatal. Pelo contrário, todo esse conjunto integra a

visão de cultura que merece ser tutelada, no entanto, deve ser feito por outras vias de proteção,

visto que o tombamento tem seu objeto de tutela bem especificado, conforme estabelecido no

artigo 1º do Decreto-Lei nº 25/37. (RABELLO, 2009, p. 76)

Partindo do conceito de bem imóvel, que compreende o solo e, em regra, tudo aquilo

que lhe incorporar, natural ou artificialmente, existem diversas hipóteses que autorizam o

tombamento de bens imóveis. Inicialmente, temos os bens imóveis que não possuem qualquer

intervenção do homem, como por exemplo, o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro.

Em contraposição ao que é defendido por Hely Meirelles, cuja tese é no sentido de que

parques ecológicos não podem ser tombados, o Parque do Ibirapuera, em São Paulo é um dos

exemplos de bem da natureza com intervenção humana que possui proteção pelo instituto do

tombamento.

Nessa escala da intervenção humana sobre os bens imóveis, Pestana exemplifica:

Há os imóveis que, diminuindo a importância do dado natural, contam com o

predomínio da inventiva humana, que promove concepções arquitetônicos

diferençadas, merecedoras de tratamentos singulares em decorrência dos valores que

portam, como é o caso das casas modernistas, nas Ruas Santa Cruz, Itápolis ou Bahia,

em São Paulo. Noutros, ainda, há, exclusivamente, o produto da genialidade do

homem, materializado em esculturas, estátuas ou edificações especificamente erigidas

para um determinado fim relevante para a comunidade, num determinado momento

da sua história [...] (PESTANA, 2015, p. 1055)

Pode-se perceber, desse modo, que existem vários aspectos relevantes no tocante aos

bens imóveis, desde os pontos naturais até frações ou totalidades de produtos concebidos e

materializados pela intervenção humana, cuja propriedade pode ser tanto de pessoas físicas,

quanto jurídicas, de direito público ou privado, desde que o bem se encontre em território

nacional.

2.1.5 Modalidades de Tombamento

Tendo como base a doutrina de Maria Sylvia Zanella de Pietro, o tombamento pode ser

classificado quanto à sua constituição ou procedimento, quanto à eficácia e quanto aos

destinatários. (PIETRO, 2017, p. 170)

No tocante a constituição do tombamento, o mesmo pode ser feito de ofício, de forma

voluntária ou compulsória. O tombamento de ofício é aquele que recai sobre bens públicos,

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conforme o disposto no artigo 5º do Decreto-lei 25/37. Nesse sentido, somente é necessário que

se notifique a entidade a quem o bem pertence, podendo ser União, Estado ou Município, para,

a partir de então iniciar a produção de efeitos (GONÇALVES JÚNIOR, 2008, p. 46). Aqui, o

ato do tombamento não está sujeito ao contraditório ou impugnação, uma vez que o bem a ser

tombado já é de propriedade do Poder Público.

De seu turno, o artigo 6º do instrumento normativo prevê o tombamento voluntário ou

compulsório quando o mesmo incide sobre bens de particulares. Aquele pressupõe o

requerimento do proprietário, o preenchimento dos requisitos obrigatórios para que o bem seja

apto a integrar o patrimônio histórico e artístico nacional e a anuência do proprietário quando

houver notificação do Poder Público para registrar o bem em algum dos Livros do Tombo.

Por sua vez, o tombamento compulsório é aquele cuja iniciativa pertence ao Poder

Público e pode ser feito ainda que não haja concordância do proprietário do bem. Nele, a partir

da notificação da Administração ao proprietário do bem, pode haver impugnação e o mesmo

deverá apresentar as razões para a negativa do tombamento. (CARVALHO FILHO, 2017, p.

444)

É indispensável que seja assegurado o direito ao contraditório e à ampla defesa do

proprietário que está na iminência de sofrer a afetação de seu bem através do devido processo

legal, no qual serão apresentadas provas de que não há qualquer relação entre o imóvel que se

deseja tombar com a preservação do patrimônio histórico brasileiro. (CARVALHO FILHO,

2017, p. 446)

Diante disso, a decisão será do Conselho Consultivo, órgão cuja previsão está no artigo

7º do Decreto-lei 25/37, logo, se for decidido pelo reconhecimento do bem como sendo de valor

cultural e artístico ao patrimônio nacional, a conclusão do ato se dará com a homologação

ministerial, cabendo recurso ao Presidente da República, que poderá efetuar o cancelamento de

tal decisão. (GONÇALVES JÚNIOR, 2008, p. 48)

Quanto à eficácia do tombamento, o mesmo pode ser provisório ou definitivo,

dependendo da fase em que se encontra. É considerado provisório caso o processo tenha sido

iniciado pela notificação ao proprietário e definitivo quando concluída a inscrição do bem no

respectivo Livro do Tombo.

O tombamento pode ainda ser classificado como individual quando afetar apenas um

bem especificamente, ou geral, que ocorre quando ele atinge vários bens de um determinado

bairro ou cidade.

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36

2.1.6 O Procedimento de Tombar

A autora Sonia Rabello afirma que por ser um ato administrativo e para que esteja de

acordo com a legalidade, a administração pública deve preencher os requisitos de competência,

finalidade, objeto, motivo e forma no processo de tombamento.

Sobre a competência, no âmbito da administração federal, o responsável pela decisão

do ato do tombamento é o Conselho Consultivo do Patrimônio. No entanto, outros órgãos ou

agentes administrativos podem atuar nesse processo, especialmente no tocante aos atos

preparatórios do mesmo, através de estudos e trabalhos técnicos que expõem sua opinião sobre

o tombamento. Segundo o referido instrumento legal, tais estudos não são exigidos para que o

bem seja tombado, sendo obrigatório apenas que a manifestação do Conselho Consultivo esteja

em conformidade com a legislação, enquadrando o bem a ser tombado como dotado de interesse

público pelo seu valor cultural na sociedade. (RABELLO, 2009, p. 54)

Além disso, a modificação feita pela Lei 6.292/75 trouxe ainda que a manifestação do

Ministro da Educação e Cultura é indispensável para conclusão e validação do processo,

conferindo-lhe competência discricionária para homologar o parecer elaborado pelo Conselho

Consultivo. (RABELLO, 2009, p. 55)

Já no tocante à finalidade, “diz-se que a finalidade genérica do ato administrativo é

sempre o interesse público a ser protegido” (RABELLO, 2009, p. 97). Por sua vez, a finalidade

específica do ato do tombamento é o próprio artigo 1º do Decreto-Lei nº 25/37, consubstanciada

na conservação e tutela do bem cultural.

O núcleo central do objeto do tombamento são os bens móveis e imóveis, situados no

território nacional, que possuam características relevantes para o cenário cultural brasileiro,

podendo ter valor histórico, estético, etnográfico, paisagístico ou arqueológico. (RABELLO,

2009, p. 97)

Quanto ao motivo, Rabello (2009) afirma que eram comuns nas impugnações ao

tombamento alegações acerca de ausência ou insuficiência de motivo, fundadas no argumento

de que o bem carecia de excepcional valor histórico ou artístico ou paisagem natural notável.

No entanto, tais alegações foram superadas com a Constituição Federal de 1988 que

ampliou o conceito de patrimônio cultural. Nesse sentido, os motivos para o tombamento,

elencados pelo Decreto-Lei nº 25/37, devem estar em consonância com essa abertura dada pela

Carta Maior. (RABELLO, 2009, p. 92)

Diante disso, a autora complementa que o motivo principal do tombamento é a

existência comprovada de valor cultural no bem:

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O que motiva o tombamento é a existência fática de valor cultural no bem; este valor

cultural pode ter conteúdo histórico, artístico, arqueológico, bibliográfico,

etnográfico, ou de qualquer outro tipo ou categoria do conhecimento, ainda que não

mencionada na lei ordinária, mas de legítima e reconhecida expressão cultural.

Somente entendendo deste modo o motivo do ato de tombamento é que o

administrador atenderá o preceito maior e finalístico da Constituição, que é a garantia,

pelo Estado, do pleno exercício dos direitos culturais (art. 215). (RABELLO, 2009, p.

96)

A forma a ser observada para que se cumpra o requisito de legalidade no processo de

tombamento deve observar uma série de atos preparatórios até o último ato, que representa a

inscrição do bem no Livro do Tombo. No entanto, cumpre mencionar que tal procedimento é

variável, dependendo da modalidade de tombamento. (DI PIETRO, 2017, 170)

Entretanto, independente de qual seja a modalidade de tombamento, é indispensável que

haja a manifestação de órgão técnico, como, por exemplo, o Instituto do Patrimônio Histórico

e Artístico nacional, que no âmbito da Administração Pública federal é o responsável por esse

parecer. (DI PIETRO, 2017, p. 170)

Quando o bem a ser tombado é bem público, basta que, após a manifestação do órgão

competente, a autoridade administrativa notifique à pessoa jurídica de direito público que

detenha a guarda do bem, bem como que determine a sua inscrição no respectivo Livro do

Tombo. (DI PIETRO, 2017, p. 171)

Na hipótese de requerimento do proprietário para o tombamento de seu bem, somente é

preciso que haja manifestação do órgão técnico, no sentido de declarar que o bem preenche os

requisitos necessários para ser objeto de tombamento.

Por sua vez, se o procedimento tem início mediante iniciativa do Poder Público, sendo

denominado compulsório, é necessário que se observe os seguintes passos a fim de assegurar o

princípio da legalidade na execução do ato:

1. manifestação do órgão técnico sobre o valor do bem para fins de tombamento;

2. notificação ao proprietário para anuir ao tombamento dentro do prazo de 15 dias, a

contar do recebimento da notificação ou para, se quiser, impugnar e oferecer as razões

dessa impugnação;

3. se o proprietário anuir, por escrito, à notificação, ou não impugnar, tem-se o

tombamento voluntário, com a inscrição no Livro do Tombo;

4. havendo impugnação, será dada vista, no prazo de mais 15 dias, ao órgão que tiver

tomado a iniciativa do tombamento, a fim de sustentar as suas razões;

5. a seguir, o processo será remetido ao IPHAN, que proferirá decisão a respeito, no

prazo de 60 dias a contar do recebimento;

6. se a decisão for contrária ao proprietário, será determinada a inscrição no Livro do

Tombo; se for favorável, o processo será arquivado;

7. a decisão do Conselho Consultivo terá que ser apreciada pelo Ministro da Cultura

(Lei no 6.292, de 15-12-75), o qual poderá examinar todo o procedimento, anulando-

o, se houver ilegalidade, ou revogando a decisão do órgão técnico, se contrária ao

interesse público, ou, finalmente, apenas homologando;

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8. o tombamento somente se torna definitivo com a inscrição em um dos Livros do

Tombo que, na esfera federal, compreende, nos termos do artigo 4o do Decreto-lei no

25:

1. o Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico;

2. o Livro do Tombo das Belas Artes;

3. o Livro do Tombo das Artes Aplicadas;

4. o Livro do Tombo Histórico. (DI PIETRO, 2017, p. 171)

Nos casos de bens imóveis, além da inscrição no Livro do Tombo, a lei ainda exige a

averbação no Registro de Imóveis competente ao lado da transcrição do domínio, conforme

estabelecido pelo artigo 13 do Decreto-Lei, embora o registro não seja uma fase do

procedimento, tendo em vista que há a produção de efeitos, mesmo sem a sua realização, sendo

necessário apenas como meio de publicizar o ato no imóvel específico. (DI PIETRO, 2017, p.

172)

É importante mencionar ainda que o procedimento do tombamento está sujeito a

cancelamento pelo Presidente da República. Antes da alteração feita pela Lei nº 3.866/1941, da

decisão que decretava o tombamento não cabia recurso. No entanto, atualmente, o Presidente,

atendendo a questões de interesse público, pode, de ofício ou em sede recursal, determinar que

seja cancelado o tombamento de bens da União, Estados, Municípios e bens pertencentes a

pessoas físicas ou jurídicas de direito privado. (DI PIETRO, 2017, p. 173)

2.1.7 Natureza Jurídica

Existe na doutrina brasileira grande divergência quanto a natureza jurídica do

tombamento, ou seja, acerca do seu enquadramento no ordenamento jurídico, pelo fato de o

mesmo ter características em comum com alguns outros institutos de intervenção do Estado na

propriedade acima analisados.

Para Carvalho Filho (2017, p. 421), a posição que sustenta que o tombamento constitui

uma servidão administrativa não é correta, uma vez que aquele não é um direito real como esta.

Além disso, não há no tombamento a existência de um imóvel dominante e de um imóvel

serviente – característica principal das servidões. Afirma também que o classificar como sendo

bem de interesse público traduz apenas uma ideia genérica, insuficiente para dispor acerca de

sua natureza jurídica.

Ademais, também não pode ser colocado na mesma categoria das limitações

administrativas, pois enquanto estas possuem caráter geral, o tombamento recai apenas sobre

bens determinados. Ainda que seja um bairro ou uma cidade inteira, cada proprietário será

notificado individualmente acerca de tal restrição que recairá sobre seu bem.

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Diante disso, o autor traz a natureza jurídica do instituto como sendo instrumento

especial de intervenção restritiva do Estado na propriedade privada, com características

distintas das outras formas de intervenção. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 444)

Nas lições de Maria Sylvia, pode-se destacar que a autora também não alinha-se ao

pensamento de que o tombamento constitui uma servidão administrativa justamente pelo fato

de não haver a coisa dominante e porque “a restrição não é imposta em benefício de coisa

afetada a fim público ou de serviço público, mas, ao contrário, tem por objetivo satisfazer a

interesse público genérico e abstrato, a saber, o patrimônio histórico e artístico nacional.” Dessa

forma, a autora posiciona-se no sentido de que o tombamento está em categoria própria, visto

que o mesmo não pode ser denominado como limitação administrativa, em virtude de seu

caráter específico e determinado e nem mesmo como servidão administrativa, conforme já

mencionado. (DI PIETRO, 2017, p. 176)

No mesmo sentido, Marçal Justen Filho (2016) afirma que o tombamento se aproxima

do conceito de servidão administrativa, no entanto, não pode ser assim considerado, visto que

possui traços capazes de o individualizar como manifestação autônoma e diferenciada das

restrições ao direito privado.

Em contrapartida, Cretella Junior (1973) caracteriza o tombamento como sendo uma

limitação administrativa, impondo aos proprietários inúmeras obrigações de não fazer ou de

fazer apenas com a permissão das autoridades, observando-se às circunstâncias por elas

determinadas, restringindo, dessa forma, o exercício do direito de propriedade.

Acompanhando tal tese, Rabello (2009) coloca “o tombamento e as restrições impostas

à vizinhança da coisa tombada como limitações administrativas ao uso e gozo da propriedade

em função do interesse público de proteção do patrimônio cultural.” Impõe-se assim o uso

adequado do bem e surgem obrigações para o proprietário que serão analisadas posteriormente.

2.1.8 O Tombamento é Ato Discricionário ou Vinculado da Administração Pública?

É importante mencionar ainda que no campo da discricionariedade ou vinculação dos

atos administrativos também não há unanimidade quanto à classificação do tombamento.

Cretella Junior (1973) defende que, quando o Estado, ancorado em parecer elaborado

por órgão técnico-administrativo, decide inscrever um bem particular em algum dos livros do

Tombo, deve observar alguns requisitos, tais como a existência de lei que fundamente a

restrição sobre o bem particular, que ele seja dotado de valor artístico, histórico, cultural,

etnográfico ou bibliográfico e a efetivação do tombamento, por meio de ato unilateral

discricionário, no qual se materializa a vontade da Administração.

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Segundo ele, o ato do tombamento é discricionário, uma vez que “pode o administrador

reconhecer a qualificação do bem, louvando-se no parecer do órgão competente e, no entanto,

não editar o ato, por não achar nem conveniente e nem oportuno tombá-lo.”. (CRETELLA,

1973, p. 54)

Di Pietro (2017, p. 178) alinha-se aos que consideram o tombamento como ato

discricionário da Administração. Isso porque, o patrimônio cultural brasileiro não é o único que

deve gozar da proteção do Estado, logo, se essa tutela implica em um conflito com algum outro

bem juridicamente tutelado, deve-se primar pela preservação daquele que atinge mais

diretamente os interesses coletivos. No entanto, essa ponderação de valores pelo Estado deve

ocorrer somente nos casos concretos e, caso não haja óbice ao tombamento, o mesmo deve ser

realizado. Contudo, a autora considera indispensável que haja a devida fundamentação se

houver recusa da Administração em fazê-lo.

Em contraposição à tese defendida por tais autores, Pestana (2015, p. 57) entende o

tombamento como ato vinculado da Administração pública, haja vista que o cuidado com a

preservação do patrimônio cultural brasileiro constitui dever do Poder Público, estabelecido

pela Constituição Federal de 1988. Sendo assim, ao se deparar com objetos que se revestem de

valor de interesse cultural, a Administração é obrigada a efetuar o tombamento. (CORDIDO,

2014, p. 99)

É necessário, contudo, discordar de tal entendimento, uma vez que o tombamento não é

a única via de preservação do patrimônio cultural brasileiro, visto que o Poder Público dispõe

de outros institutos que se mostrem mais apropriados à garantia do direito à cultura. Além disso,

o ato do tombamento se submete à homologação do Ministro da Cultura, cuja atuação deve se

basear na conveniência e oportunidade a fim de que um interesse público não se sobreponha a

outro de modo incompatível. (CORDIDO, 2014, p. 98).

2.1.9 Efeitos

Ressalta-se a importância de se analisar os efeitos do ato de tombar um bem,

especialmente imóvel, haja vista ser, entre os atributos estudados, a característica que mais tem

relevância na vida prática do proprietário e da Administração pública.

O ato administrativo emanado pelo Poder Público que confere ao bem a qualidade de

tombado repercute não somente no proprietário da coisa alvo de tal limitação, mas também nos

proprietários localizados no entorno do bem, quando imóvel. Daí a necessidade de se discutir e

analisar os efeitos desse instituto que confere ao Estado a prerrogativa de interferir no direito

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de propriedade de quem quer que seja, tendo em vista se tratar de situação que, eventualmente,

pode gerar algumas problemáticas.

O Decreto-Lei nº 25/37 elenca vários efeitos decorrentes do tombamento, entre eles,

estão os que criam obrigações para o proprietário do bem, para o Poder Público e para terceiros.

Partindo dessa concepção, faz-se necessário indicar o momento em que o bem começa a ser

tutelado, pois é o marco para que se possa exigir o cumprimento das obrigações impostas.

(RABELLO, 2009)

A produção dos efeitos jurídicos definitivos se inicia com a inscrição do bem no Livro

do Tombo, momento em que, definitivamente, este integrará o patrimônio cultural nacional. O

instrumento normativo que regula o instituto do tombamento menciona que a simples existência

de valor cultural não é apta a garantir a tutela do poder público. Sendo assim, é necessário que,

além de preencher os requisitos essenciais para que o bem seja considerado de valor cultural ao

patrimônio brasileiro, haja também uma manifestação, através de processo administrativo, do

Poder Público, reconhecendo os pressupostos necessários para o surgimento desta tutela.

(RABELLO, 2009)

Maria Sylvia (2017) disserta sobre as obrigações decorrentes do tombamento, como

sendo, para o proprietário, obrigações positivas, negativas e de suportar. Por sua vez, para os

proprietários de imóveis vizinhos, competem obrigações negativas e para o IPHAN, o

tombamento gera obrigações positivas.

Ao proprietário de bem tombado impõem-se obrigações fazer, como, por exemplo, a

realização de obras para a sua conservação e preservação e, caso não disponha de recursos para

tanto, que comunique ao órgão competente acerca da impossibilidade para realizá-las, sob pena

de multa equivalente ao dobro do valor cujo dano sofrido pela coisa foi avaliado. (DI PIETRO,

2017, p. 173)

Nos casos de alienação do bem, antes do Código de Processo Civil de 2015, devia ser

observada a ordem do direito de preferência, qual seja, a União, os Estados e os Municípios,

respectivamente, sob pena de a alienação ser considerada nula ou haver sequestro do bem por

algum dos entes que possuem tal direito de preferência, além de multa de 20% do valor do bem,

aplicada ao transmitente e ao adquirente, que deveria ser proferida pelo Poder Judiciário. No

entanto, o artigo 1072, I do CPC/15 revogou o artigo 22 do Decreto-Lei nº 25/37 que tratava

desse direito de preferência. Ressalta-se que o atual Código de Processo Civil prevê que, nas

execuções por quantia certa, se o bem for tombado, o direito de preferência deve ser obedecido

em igualdade de oferta. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 447)

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No que diz respeito às obrigações negativas, o proprietário não poderá demolir, destruir

ou mutilar as coisas tombadas, nem repará-las, pintá-las ou restaurá-las, sob pena de multa. Em

se tratando de bens móveis, não poderá retirar a coisa do território nacional, salvo nos casos de

intercâmbio cultural e somente com o aval do IPHAN. Quanto às obrigações de suportar, o

proprietário deve permitir as ações de fiscalização do bem pelo órgão competente, sob pena de

incorrer em multa caso oponha obstáculos a essa vigilância. (DI PIETRO, 2017, p. 173)

O tombamento também gera efeitos para proprietários vizinhos ao imóvel afetado, cuja

área é denominada como área de entorno. O artigo 18 do Decreto-Lei nº 25/37 estabelece:

[...] que sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe

impeça ou reduza a visibilidade nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de

ser mandada destruir a obra ou retirado o objeto, impondo-se neste caso a multa de

50% do valor do mesmo objeto. (BRASIL, 1937)

Dessa forma, é competência do município autorizar tais construções. Entretanto,

existem situações em que a obra possuía o aval da prefeitura, mas foi impugnada pelo IPHAN.

Assim, para garantir o cumprimento do artigo supramencionado, seria necessário que houvesse

a determinação de requisitos objetivos para conceituar vizinhança, cuja área abrangida por ela

estaria submetida à aprovação do IPHAN para realizar qualquer construção, averbação no

registro de imóveis da área e do bem afetados, bem como notificação à prefeitura para que, ao

deferirem licença para qualquer obra, não ajam em desacordo com o IPHAN. (DI PIETRO,

2017, p. 173)

Ademais, dentre as obrigações geradas para o IPHAN, estão a de mandar executar obras de

conservação do bem, caso o proprietário não disponha de recursos para realiza-las, bem como

providenciar a desapropriação da coisa, efetuar fiscalização sobre as coisas tombadas sempre

que julgar conveniente, além de proceder a averbação no Registro de Imóveis, em se tratando

de bens particulares. (DI PIETRO, 2017, p. 175)

2.1.10 Indenização

No que diz respeito à indenização, a princípio não é cabível quando um imóvel é

tombado pelo Poder Público. A partir de tal afirmação, pode-se questionar como uma imposição

estatal que limita o exercício de direito do proprietário não gera benefícios pecuniários a ele.

Nesse sentido, explica José dos Santos Carvalho Filho:

Cabe tecer breve comentário sobre o aspecto da indenizabilidade. O tombamento, por

significar uma restrição administrativa que apenas obriga o proprietário a manter o

bem tombado dentro de suas características para a proteção do patrimônio cultural,

não gera qualquer dever indenizatório para o Poder Público, e isso porque nenhum

prejuízo patrimonial é causado ao dono do bem. Somente se o proprietário comprovar

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que o ato de tombamento lhe causou prejuízo, o que não é a regra, é que fará jus à

indenização. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 447)

Em contrapartida, existe posicionamento no sentido de que o tombamento em si já seria

apto a render indenização ao proprietário. Contudo, não há qualquer previsão constitucional ou

legal para tanto, uma vez que o ato não gera prejuízos ao proprietário, caracterizando-se

somente como uma restrição ao seu exercício do direito de propriedade. Ressalta-se ainda que,

em muitas situações, o tombamento pode proporcionar a valorização do bem e até mesmo

acarretar vantagens pecuniárias ao proprietário, principalmente, no tocante aos bens imóveis,

utilizados como prédios comerciais em avenidas centrais, o que acaba ampliando os atributos

do bem e contribuem para a relevância do aspecto turístico. (CARVALHO FILHO, 2017, p.

447)

2.2 A ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO NO PROCESSO DO TOMBAMENTO

O ato do tombamento, assim como qualquer ato administrativo, é passível de controle.

Este pode ser exercido pelo Presidente da República, conforme já visto e também pelo

presidente da entidade pública cultural. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 447)

Convém mencionar ainda que o controle pode ser tanto de conveniência, quanto de

legalidade. Quando violados os requisitos legais referentes ao processo de tombamento, tais

como competência, forma, finalidade, objeto e motivo ou com a ocorrência de vícios em algum

deles, será realizado o controle de legalidade. Por sua vez, o de conveniência ou de mérito será

exercido apenas pela Administração e em virtude de interesses públicos, quando, por exemplo,

houver a negativa de requerimento de tombamento ou este for cancelado. (CARVALHO

FILHO, 2017, p. 447)

O controle judicial será realizado apenas na apreciação de situações em que se questiona

a legalidade do ato, ocorrendo quando houver vício no procedimento disposto na lei ou se

houver desvio de finalidade, quando, por exemplo, o administrador utilizar o instituto com

objetivos alheios dos previstos na legislação. Nessa esfera, o proprietário poderá invalidar o ato

de tombamento, caso consiga comprovar que não existe motivo para a intervenção estatal em

sua propriedade, logo, caracterizado o vício, o ato será invalidado. (CARVALHO FILHO,

2017, p. 448)

Entretanto, existem hipóteses que não são passíveis de discussão no Judiciário, tais

como a valoração cultural do bem e necessidade de sua preservação. Isso porque, trata-se de

prerrogativa da Administração, fundada em pareceres de órgãos técnicos, conforme previsão

legal. Nesse sentido, explica Carvalho Filho:

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Não cabe, porém, nessa via discutir os aspectos administrativos que conduzem à

valoração do sentido cultural do bem e à necessidade de sua proteção. Essa parte do

ato é insindicável pelo Judiciário. A insindicabilidade, porém, só será aceitável se, na

valoração dos aspectos a serem protegidos, houver elementos concretos que

conduzam à necessidade do tombamento. Se vários órgãos técnicos julgam que o bem

merece proteção porque tem importância histórica, a avaliação desta tem aspectos

típicos da Administração, não cabendo ao juiz entender de forma contrária, salvo se

houver prova peremptória em sentido contrário. Inexistentes, contudo, elementos

concretos para o tombamento, é vedado ao Estado tombar o bem e, por conseguinte,

o ato estará sujeito a controle de legalidade no Judiciário. (CARVALHO FILHO,

2017, p. 448)

Em outra situação concreta em que se observa a ação do Judiciário, já posteriormente à

decretação do tombamento de imóvel na cidade de Muqui, foi ajuizada Ação Civil Pública pelo

Ministério Público Estadual em face de Henrique Vivas Oliveira, Vanda Bettero, Tadeu

Narducci, Roberto Herminio Pelaz, Simone Carvalho Nery e do Município de Muqui.

Desse modo, foi interposto agravo de instrumento em face de decisão proferida pelo

juízo da vara única da Comarca de Muqui, ordenando que os cinco primeiros requeridos

cessassem qualquer tipo de intervenção no imóvel até que obtivessem autorização de órgão

público ou conselho competente, bem como que o Município de Muqui fiscalizasse as obras,

exercendo seu poder de polícia para embargar, multar ou interditar os locais.

No agravo interposto por Henrique Vivas Oliveira, houve alegação de que o mesmo

possuía autorização municipal para a realização de obras em seu imóvel, bem como que no

Município de Muqui não existe tombamento individual em imóveis específicos, mas sim, uma

poligonal de tombamento, e que os institutos não se confundem.

Contudo, foi negado provimento ao recurso, tendo em vista que o órgão responsável

pela aprovação de projetos e obras no sítio histórico localizado no perímetro da cidade de Muqui

é a Secretaria de Cultura Estadual, conforme será tratado no Capítulo 3. Vejamos a ementa do

Agravo de Instrumento:

EMENTA: DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO.

PRELIMINAR. NULIDADE DA DECISÃO POR AUSÊNCIA DE

FUNDAMENTAÇÃO. REJEITADA. MÉRITO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.

INTERVENÇÕES EM IMÓVEIS PARTICULARES LOCALIZADOS EM ÁREA

DE POLIGONAL DE TOMBAMENTO. NECESSIDADE DE PRÉVIA

ANUÊNCIA DO CONSELHO ESTADUAL DE CULTURA. INTELIGÊNCIA DA

LEI N° 2.947⁄74. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO. RECURSO CONHECIDO E

IMPROVIDO. I. Preliminar. A Decisão recorrida atende ao preceito normativo

entabulado no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, porquanto contempla, de

modo suficiente, a exposição dos fundamentos aptos a estabelecer uma correlação

lógica com a ulterior conclusão, atendendo, assim, ao princípio da motivação das

decisões judiciais. II. Mérito. Em linhas gerais, tem-se que o tombamento visa

atender a proteção⁄preservação de imóveis individualizados, a serem devidamente

inscritos em ¿Livros do Tombo¿, para fins de identificação pelo Órgão competente,

ao passo que a poligonal de tombamento possui maior amplitude no conjunto

urbanístico, destinando-se, bem é de ver, à conservação e manutenção de uma

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determinada área continua que compartilhe das mesmas características que ensejaram

a sua proteção. III. Uma vez instituída a proteção sobre o imóvel individual, ou

determinada área urbana (tal como ocorreu no caso em apreço), tais patrimônios

passam a submeter-se a certos regramentos específicos, notadamente no que tange às

intervenções promovidas nos imóveis, haja vista a necessidade de preservação das

características diferenciadas que motivaram a regulamentação levada a efeito pelo

Poder Público. IV. A Resolução n° 003⁄2012, do Conselho Estadual de Cultura, ao

criar a poligonal de tombamento no âmbito do Município de Muqui, cuidou por

regulamentar quais tipos de intervenções estariam abarcadas pelas normas específicas

protetivas do patrimônio cultural e paisagístico Municipal, cujas espécies, a princípio,

atingem a esfera de interesse do Recorrente. V. O simples fato de a Prefeitura haver

expedido o Alvará de licenciamento para construção, conforme verificado às fls.

40⁄43, por si só, não possui o condão de autorizar a continuidade do empreendimento

familiar, porquanto induvidoso que o início da obra não poderia ter ocorrido sem a

prévia autorização do Conselho Estadual de Cultura, por expressa previsão legal

contida na Lei n° 2.947⁄74. VI. Ante a ausência de elementos aptos a atestar que a

construção, tal como descrita no seu projeto arquitetônico, atende às exigências do

Órgão Competente para sua concretização dentro da área do poligonal de

tombamento, afigura-se impertinente o acolhimento do pleito recursal. VII. Recurso

conhecido e improvido. ACORDA a Egrégia Segunda Câmara Cível, em

conformidade da Ata e Notas Taquigráficas da Sessão, que integram este julgado, por

unanimidade de votos, conhecer do recurso para rejeitar a preliminar arguida e, no

mérito, negar-lhe provimento.

(TJES, Classe: Agravo de Instrumento, 100160020374, Relator: NAMYR CARLOS

DE SOUZA FILHO - Relator Substituto : RODRIGO FERREIRA MIRANDA, Órgão

julgador: SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Julgamento: 07/02/2017, Data da

Publicação no Diário: 22/02/2017)

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3. ESTUDO DE CASO: UMA ANÁLISE DO TOMBAMENTO NA CIDADE DE

MUQUI/ES

O terceiro capítulo tratará dos aspectos práticos do tombamento, tendo como objeto de

estudo a cidade de Muqui, que foi elevada à categoria de maior sítio histórico tombado do

Estado do Espírito Santo pela SECULT, e cuja importância deve ser exaltada no cenário de

conservação do patrimônio cultural brasileiro.

O principal motivo de interesse do projeto é analisar como se deu o processo de

tombamento na cidade de Muqui/ES, instituído pela Secretaria de Cultura do Estado do Espírito

Santo. Ademais, estudar o aspecto histórico e jurídico do tombamento é imprescindível para

compreender o instituto, no entanto, tecer considerações práticas e discutir possíveis problemas

sociais existentes também é extremamente importante para a pesquisa em questão.

3.1 BREVE ANÁLISE SOBRE OS IMPACTOS DA ECONOMIA CAFEEIRA NO

MUNICÍPIO DE MUQUI

Um marco muito importante da história de Muqui se deu no início da década de 1850,

quando imigrantes vindos do Vale do Rio Paraíba chegaram na região em busca de novas terras

para o plantio do café. Assim, muitas fazendas foram se formando com a finalidade de cultivar

esta espécie agrícola, até que em 1901 foi inaugurada a Estrada de Ferro Leopoldina, uma das

principais responsáveis por desenvolver a economia local e colaborar para a criação do

perímetro urbano atual. (PREFEITURA, 2018, online)

No período compreendido entre 1850 e 1860, as terras do Vale do Rio Paraíba se

exauriram, o que acarretou a migração de muitas pessoas à procura de novas terras para o plantio

de café. Nesse sentido, muitos fazendeiros foram se estabelecendo próximos ao curso dos

principais rios da região, onde se firmaram dois pontos importantíssimos para o escoamento da

produção: Limeira e Cachoeiro. (PREFEITURA, 2018, online)

Diante disso, a produção cafeeira movimentou de forma robusta a economia da

província do Espírito Santo, especialmente em Cachoeiro de Itapemirim, onde se estabeleceu

uma forte rede de transportes que contava com estradas, rodovias e portos e cujo perímetro era

próximo à Muqui, que antes de assim ser denominada, era chamada São João de Muqui.

(PREFEITURA, 2018, online)

Convém destacar ainda que a economia cafeeira passou por três fases distintas no Brasil,

quais sejam: a primeira, totalmente ancorada no trabalho escravo, findada em 1889 com a

assinatura da Lei Áurea; a segunda, relacionada aos latifúndios, que marcou a lenta substituição

do trabalho escravo para o trabalho assalariado e contava com a presença de muitos imigrantes

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e a terceira, pós-crise de 1929, que aumentou a diversidade da produção agrícola.

(HAUTEQUESTT FILHO, 2011, p. 35)

Em decorrência desse período tão próspero para a cidade, nas décadas de 20 e 30 do

século XX, o município viu seu crescimento acontecer por meio da elevada produção nas

fazendas de café, bem como foram construídos casarões, sobrados, palacetes e muitos outros

imóveis pomposos como a Igreja Matriz São João Batista. (PREFEITURA, 2018, online)

Nas palavras do arquiteto responsável pelo tombamento da cidade de Muqui, Genildo

Coelho, em sua dissertação de mestrado, “a riqueza gerada pelo café deixou profundas marcas

na sociedade brasileira, em especial na política, no estabelecimento de novos costumes, na

arquitetura e na urbanização de muitas cidades cariocas, mineiras, paulistas, paranaenses e

capixabas.”.

Com os recursos financeiros gerados pelo comércio do café, Muqui passa por um surto

de industrialização e crescimento comercial. Em 1916 é inaugurada a Fábrica de

Sabão e Sabonetes Finos de propriedade de Sylvio Miranda, em 1924 a Torrefação

Muquy, de propriedade de Adolpho Pereira de Souza, a agência bancária do banco

Ribeiro Junqueira & Botelho e uma Fábrica de Macarrão de propriedade de Pedro

Pavani, em 1927 uma Fábrica de Gelo e também a Fábrica Flor de Imbirussuca, que

produzia licores, bebidas finas, vinagres, gasosas e refrigerantes da empresa D.

Mascena & Cia.63 e, em 1929, a Fábrica de Manteiga “Sabiá” da empresa Rocha

Firmo & Cia. (HAUTEQUESTT FILHO, 2011, p. 45 - 46)

Após a crise de 1929, é instaurado um período de declínio econômico, e a cidade só tem

sua economia recuperada a partir da década de 40, acarretada por um “boom industrial”,

também impulsionado pelo capital excedente da economia cafeeira. Nesse outro período de

expansão econômica, muitas edificações passaram por modernizações a fim de se adequarem

às características da época. A cidade recebeu ainda melhorias na infraestrutura, tais como

instalação do posto telefônico e embelezamento de avenidas. (HAUTEQUESTT FILHO, 2011,

p. 50)

Já no decorrer das décadas de 60 e 70, a cidade sofreu novamente os efeitos de uma

decadência econômica, somente se recuperando no final dos anos 90, quando a economia se

consolidou através dos setores de agricultura, comércio e turismo, conforme exposto na

dissertação de Hautequestt Filho:

A partir do final da década de 1960, com os efeitos do Plano Nacional de Erradicação

dos Cafeeiros Improdutivos, a cidade entra novamente em declínio econômico e,

somente a partir do final dos anos 1990, é que outro surto de desenvolvimento, desta

vez alavancado pela agricultura, pelo comércio e pelo turismo, irá se consolidar. São

os recursos financeiros gerados a partir do novo incremento da economia que ao

mesmo tempo viabilizam a preservação do patrimônio edificado e patrocinam o

crescimento desordenado da cidade e a consequente descaracterização de muitas

edificações históricas ainda remanescentes. (HAUTEQUESTT FILHO, 2011, pág.

53)

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Diante do exposto, para o arquiteto, o estudo da arquitetura da cidade, fruto da economia

do café é fundamental para um melhor conhecimento e preservação do patrimônio cultural

muquiense, o que, certamente, causou uma influência positiva no desenvolvimento da cidade,

que experimenta um vultuoso desenvolvimento econômico desde o final da década de 90.

3.2 HISTÓRIA DA CRIAÇÃO DO SÍTIO HISTÓRICO DE MUQUI

Os primeiros passos no sentido de garantir a tutela do patrimônio cultural imóvel,

começaram a ser dados no ano de 1999. Foram promulgados dois instrumentos normativos no

âmbito municipal, relativos preservação do patrimônio cultural de Muqui. A Lei nº 70/99, que

dispôs sobre o tombamento do patrimônio histórico e artístico de Muqui, elucidando a

imprescindibilidade de preservação dos bens imóveis, sítios naturais e paisagens, bem como

sua inscrição nos Livros do Tombo da prefeitura e a Lei nº 67/99, que criou o Conselho

Municipal de Cultura, objetivando implementar uma política municipal de fomento à cultura.

No entanto, somente em 2008, o Sítio Histórico de Muqui começou a ser estudado pelo

IPHAN, que empreendeu uma pesquisa histórica, objetivando analisar o estado de conservação

dos imóveis, por meio da realização de um diagnóstico urbanístico e do conjunto arquitetônico.

O Sítio Histórico de Muqui, conforme abordado, é um dos conjuntos urbanos mais

significativos, associado ao ciclo econômico do café, com exemplares arquitetônicos

relevantes na história da arquitetura do Espírito Santo, e do Brasil, pela relação do

ambiente rural com a produção urbana, com casario em diferentes estilos,

notadamente o Art Déco e o Ecletismo. Visando a análise do seu estado de

conservação e estabelecer parametros de proteção legal para Muqui, o IPHAN, em

2008 iniciou o processo de estudo do Sítio Histórico, já citado. (PESSOTI, 2018, p.

06)

Em 2009, o governo do Estado do Espírito Santo, por meio do CEC, em consonância

com o previsto pela Lei Estadual 2.947/74, que dispõe sobre o tombamento, aprovou o

tombamento em âmbito estadual pela SECULT. Antes disso, os imóveis eram inscritos no Livro

do Tombo na prefeitura e afetados individualmente. Diante disso, a gerência do sítio histórico2

ficou a cargo do Estado.

Cumpre ressaltar ainda que não consta, nos registros do IPHAN, o sítio histórico de

Muqui como bem tombado a nível federal. No entanto, na lista de bens em processo de

tombamento do órgão, o conjunto histórico e paisagístico de Muqui se encontra em estágio de

instrução. (IPHAN, 2018, online)

2 Nome dado ao conjunto de imóveis históricos dentro da área urbana

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3.3 A REALIDADE ATUAL DO TOMBAMENTO NA CIDADE DE MUQUI

Conforme observado, a relação entre a cidade de Muqui e seu patrimônio histórico é

dotada de algumas peculiaridades. A fim de um melhor entendimento desta relação, onde o

município possui sua expressão mais forte de cultura nos casarios antigos, construídos na época

do café, o atual Secretário de Cultura municipal, Sr. José Gabriel da Silva Araújo, foi

entrevistado (ANEXO I) e trouxe informações fundamentais à compreensão do tema.

No primeiro momento da entrevista, procuramos estabelecer o marco do tombamento

na cidade de Muqui. A história acerca do interesse da Secretaria de Cultura do Estado do

Espírito Santo se iniciou em 2009 com a Resolução 003/2012.

A segunda parte da entrevista foi no sentido de traçar as principais reclamações dos

munícipes nos últimos anos, bem como das problemáticas que a cidade vive em decorrência de

seu perímetro urbano tombado.

O Senhor Secretário de Cultura afirmou que, dentre as principais dificuldades

enfrentadas atualmente quanto ao Sítio Histórico de Muqui, está o fato de que a cidade está se

desenvolvendo além do setor turístico, crescendo em outras áreas da economia e, sendo assim,

necessita encontrar um equilíbrio para coexistir com o Sítio Histórico da cidade.

Em suas palavras “[...] além de estar trabalhando essa questão de trazer, fortalecer e

efetivar a potencialidade turística em vista do tombamento, nós temos uma cidade que é

econômica, viva, que tem comércio, as pessoas vivem ali. A nossa grande dificuldade é a

coexistência de uma cidade que está crescendo, que vive do comércio e de uma cidade que é

tombada. Isso é o grande desafio hoje.”.

Na entrevista realizada, pôde-se observar também que a grande problemática acarretada

pela instituição do polígono do tombamento é caracterizada no conflito entre o desejo dos

proprietários em realizar obras em seus imóveis e a obrigatoriedade de submeter requerimento

para a construção, alteração ou destruição nos imóveis junto a Prefeitura e a SECULT.

Assim, relata o secretário que quando o atual governo assumiu, houve a busca por

minimizar os impactos, com a tentativa de conscientização da população sobre a importância

de se seguir a norma do tombamento, com a explanação do que pode e não pode ser feito, bem

como as motivações para tais imposições. Tal fato é importante para que a população do

município compreenda que não há uma proibição total, mas sim um modo correto para que as

melhorias necessárias ao bem aconteçam, preservando a caracterização e preservação do

patrimônio, evitando as modificações irregulares.

Em muitas situações, a falta de conhecimento da população acerca da Resolução nº

003/2012, que dispõe sobre o tombamento na cidade de Muqui, acarreta reclamações por grande

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parte dos munícipes, conforme explicitou o Secretário de Cultura, no sentido de não

compreenderem que não é vedado a realização de obras nos imóveis, mas que para que elas

ocorram, devem ser submetidas à aprovação, conforme artigo 72 da Resolução

supramencionada.

Art.72. Na APAC de Muqui as obras de demolição de edificações devem,

obrigatoriamente, ser analisadas e previamente autorizadas pela SECULT/CEC.

Parágrafo único. Fica vedada a demolição de imóveis históricos de interesse de

preservação situados dentro das Poligonais de Tombamento.

Nesse sentido, o artigo 76 da Resolução da SECULT veda a destruição, demolição,

mutilação e/ou qualquer tipo de intervenção, tais como reformas, regularizações, novas

construções, sem prévia anuência do CEC ou da SECULT. Além disso, o parágrafo primeiro

estabelece ainda que, após autorização de um desses órgãos, é necessário seguir um

procedimento para conseguir que seja expedida licença pela Prefeitura Municipal antes de se

iniciar a obra. Nas palavras do Secretário de Cultura de Muqui “toda obra que a pessoa planeja

fazer, que seja uma troca de portão, ela faz um projeto ou um rascunho e protocola na prefeitura.

Esse projeto vai para a comissão de arquitetos que tem em Vitória, que analisa qual impacto,

qual a melhor forma de fazer, qual é o menor impacto que causa no sítio histórico. Isso pode

ser aprovado ou não, se for aprovado “ok”, se não for aprovado não pode fazer. Se a pessoa

fizer, aí entra a questão de sentar e conversar, antes de judicializar, existe a oportunidade de

conversar e voltar para a forma que era, a pessoa tem que compensar. A compensação é a pessoa

pagar/aplicar em outro imóvel que tenha interesse histórico, por ter feito uma obra irregular.”

Quanto às sanções impostas ao proprietário que descumprir ao previsto pela Resolução,

vejamos o que dispõem os parágrafos 2º e 3º do artigo 76:

§2o. O eventual infrator do mencionado dispositivo incorrerá nas sanções penais

previstas no art. 166 do Código Penal Brasileiro e na Seção IV – Dos Crimes Contra

o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural – do Capítulo V da Lei Federal no

9605, de 12 de fevereiro de 1998, especialmente os Artigos 62, I e 63, sem prejuízo

das sanções administrativas municipais.

§3o. Constatada infração ao disposto nas normas vigentes para a Área de Proteção do

Ambiente Cultural de Muqui fica o proprietário do imóvel no qual se deu a infração

sujeito à obrigação de reparar os danos resultantes ou a desfazer as obras executadas

em desacordo com as prescrições desta norma.

Desse modo, o proprietário que descumpre tais regras, fica sujeito às sanções penais,

bem como às administrativas, iniciadas através de procedimento administrativo, que gera uma

notificação ao proprietário para que o mesmo desfaça a obra realizada irregularmente e reverta

a situação do imóvel ao estado que era antes.

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O Secretário de Cultura assegurou que é realizada uma câmara de negociação, com a

presença do proprietário e de representantes da SECULT e da Prefeitura Municipal, com o

intuito de realizarem um acordo para reverter as irregularidades. Caso a notificação

extrajudicial e a câmara de negociação não produzam resultados no sentido de regularizar a

situação do imóvel, a questão será levada para a esfera judicial.

Da mesma forma, continua o Secretário dizendo que a atual gestão conseguiu realizar a

criação de uma câmara de negociação na Secretaria de Cultura, então há uma tentativa de

resolução consensual do conflito antes da judicialização, onde a Administração tenta acordar

com o proprietário do imóvel uma amenização da modificação realizada, com o refazimento,

pois a maioria dos casos é passível de reversão.

Outra problemática muito presente na realidade do município, também mencionada pelo

Secretário de Cultura é com relação à publicidade e a fixação de placas nos imóveis situados

dentro da área delimitada pelo polígono do tombamento, que possam descaracterizar o imóvel

e prejudicar sua visibilidade. Isso porque, a Resolução também estabeleceu algumas restrições

a serem obedecidas nesse sentido.

Art.28. É proibido o uso de cartazes de propaganda, letreiros e outros tipos de placas

na APAC, excetuando-se os seguintes casos:

I - placa indicativa dos logradouros e da numeração das edificações;

II - placas de sinalização de trânsito;

III - placas de sinalização turísticas das atividades nos imóveis.

No entanto, em que pese a tentativa de conscientização da secretaria municipal de

cultura e das constantes fiscalizações realizadas pelos arquitetos da CEC, o assunto ainda é

objeto de recorrentes discussões entre os munícipes, inclusive nas redes sociais, nas quais

novamente falta conhecimento da população sobre o que é permitido e o que é vedado.

É importante mencionar ainda que no tocante aos incentivos fiscais, a Prefeitura oferece

50% de desconto no pagamento do IPTU aos proprietários de imóveis afetados pelo instituto

do tombamento em si.

Por fim, com relação aos recursos públicos destinados à conservação, reparação e

restauração dos imóveis, existem editais, oferecidos pela Secretaria de Cultura do Estado, cuja

finalidade é entregar premiação em dinheiro para os proprietários que apresentarem os melhores

projetos de restauração de seus imóveis e que demonstrem a maior relevância histórica, cultural,

arqueológica e artística do mesmo. Caso o projeto seja escolhido como ganhador, o proprietário

deve gerir o dinheiro para todas as reformas previstas no projeto e submeter à vigilância das

obras aos arquitetos da Secretaria de Cultura.

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Na entrevista, foi mencionado também que Muqui está na fase inicial de exploração de

seu potencial turístico. Ao longo do ano, são realizados vários eventos que contam com a

presença de muitos outros elementos culturais e artísticos do município, tais como o carnaval

folclórico do boi pintadinho, as folias de reis, o festival de cerveja que utiliza a praça principal

da cidade como sede, o festival de cinema, dentre muitos outros, além das paisagens naturais

que cercam o perímetro urbano.

Muqui é realmente uma cidade com muitos atrativos culturais para o turismo. Em

decorrência disso, como muito bem retratado pelo Secretário de Cultura, a paisagem formada

pelas belezas naturais em conjunto com os casarios históricos, o paralelepípedo e o centro da

cidade, servem como cenário para as demais expressões da cultura do município. Sendo assim,

a exploração do turismo, poderá, dentro de alguns anos, ser uma das principais atividades

econômicas do município, com ocorre em tantas outras cidades do Brasil.

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CONCLUSÃO

De acordo com o analisado, o movimento preservacionista no Brasil teve início na

década de 1920, com a elaboração de alguns projetos de lei nesse sentido. Sendo assim, muito

tempo se passou desde o início da formação do território brasileiro até que se começasse a se

perceber e se afirmar uma identidade nacional. (PINHEIRO, 2006, p. 04)

Nesse sentido, em 1937, foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro o instrumento

responsável por regular o instituto do tombamento e criar o SPHAN, órgão vinculado ao

Ministério da Cultura e responsável por questões relacionadas ao patrimônio cultural. (VAL;

CAÇADOR, 2008, p. 16)

A Constituição de 1946 estabelecia que as obras, documentos e monumentos dotados

de valor artístico e histórico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e locais de

particular beleza ficavam sob a proteção do Poder Público. Por sua vez, a sexta Constituição da

República, outorgada em 1967 também garantia o amparo a cultura, cujo patrimônio histórico

e artístico ficaria sob a proteção do Estado, assim como as jazidas arqueológicas. (VAL;

CAÇADOR, 2008, p. 16)

Contudo, a maior expressão de garantia ao direito de cultura e o olhar mais amplo ao

patrimônio cultural brasileiro, não somente na esfera de bens materiais, como os imateriais e

intangíveis se deu com a Constituição Federal de 1988, denominada “Constituição Cidadã”,

que tratou do assunto, reafirmando a importância do mesmo no cenário brasileiro de políticas

públicas. (VAL; CAÇADOR, 2008, p. 17)

Conforme mencionado, o constituinte assegurou também o direito à propriedade privada

na ordem econômica brasileira, porém, restringindo seu uso à adequação ao interesse público e

a sua função social. No entanto, considerando que manter um meio ambiente cultural e

preservado também se classifica como um direito social de interesse público, o legislador

utilizou de meios normativos para intervir na propriedade quando houver necessidade de

realização de serviço ou obra pública, bem como se houver alguma afronta aos interesses

coletivos.

Diante disso, a Constituição Brasileira apresenta um rol de instrumentos que objetivam

a proteção do patrimônio cultural nacional. Sendo assim, embora o tombamento seja a mais

antiga e mais conhecida das formas, não é a única. Ademais, não deve ser utilizado

desrespeitando-se os critérios estabelecidos em lei, desviando da finalidade prevista e gerando

efeitos distintos do que se pretende, sob pena de se caracterizar uma ilegalidade. (RABELLO,

2015, p. 25)

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Além disso, convém ressaltar, a partir do que foi observado, a força normativa do

Decreto-lei 25/37, vigente no ordenamento há tanto tempo e sem muitas alterações, o que

ressalta seu aspecto eficaz. Por tal motivo, deve ser garantida a sua manutenção, tendo em vista

se tratar de um importante marco para o movimento preservacionista no Brasil. (RABELLO,

2015, p. 25).

Em virtude do exposto, pode-se perceber que a Constituição de 1988 e outras normas

referentes ao tema, atribuíram enorme responsabilidade ao Poder Público no que tange à

conservação do patrimônio cultural, enquanto conjunto de bens cujo valor histórico está

atrelado a todos os brasileiros. Outrossim, também constitui dever dos cidadãos cobrar a

gerência e o devido tratamento ao patrimônio cultural.

Ademais, de acordo com o que foi observado, ressalta-se que a falta de conhecimento

sobre a legislação, nos âmbitos municipal, estadual e federal pode resultar em problemas e

reclamações um tanto quanto equivocadas acerca da utilização do instituto. No início do

presente estudo, tinha-se a percepção de que a validade do tombamento já era uma questão

superada pela população muquiense, no entanto, percebeu-se que, além dos defensores, também

existem muitos críticos do instituto.

No entanto, segundo o Secretário de Cultura do município, estão sendo feitas tentativas

de conscientização da população muquiense, que podem ser vistas através da implementação

de festivais e eventos na cidade, visando a exposição da cultura local e a conscientização acerca

da relevância de se possuir um sítio histórico tombado pelo governo do Estado.

Por todo o exposto, o legado cultural presente na arquitetura de Muqui, representa o

período de glória vivenciado pela cultura do café, bem como os aspectos da sociedade da época.

Sendo assim, observando-se todos os esforços empreendidos para a sua preservação, infere-se

a constância da mesma é necessária, independente da discricionariedade atribuída à

Administração Pública, na realização, não somente do ato de tombar, mas de preservar aquilo

que já foi consolidado como objeto de valor inestimável ao cenário cultural.

Dessa forma, está caracterizada a relevância dos trabalhos, reflexões e pesquisas sobre

o patrimônio histórico e sobre a sua ligação com a identidade do Município, com a cultura, com

a subjetividade de sua história, contribuindo para um maior esclarecimento a fim de que as

questões referentes à validade do tombamento do patrimônio cultural sejam superadas.

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ANEXO 1

ÍNTEGRA DA ENTREVISTA FEITA COM O SECRETÁRIO DE CULTURA DE

MUQUI

Secretário de Cultura: Nosso tombamento, lá em 2007, ele começou municipal. O

município criou uma Comissão de Cultura e surgiu a ideia de Muqui ser tombado. A partir dessa

ideia, buscou o Estado, ser o gerenciador desse tombamento, criou-se uma lei. O estado do

Espírito Santo criou um estatuto para tombar Muqui. O tombamento estadual suprimiu a ideia

inicial de tombamento municipal.

O tombamento de Muqui é a nível estadual. A SECULT, a Comissão de Cultura do

Estado e setor de patrimônio da SECULT são eles que...

Desde o início, não era nem a quantidade de imóveis tombados, Muqui é o sítio

histórico, é tombado todo o município. As áreas que tem interesse histórico são áreas imediatas

ao tombamento, desde o paralelepípedo até o jardim municipal, a igreja, não só os imóveis.

Mesmo os imóveis que estão nessa região e não tem interesse histórico, eles também estão sob

a legislação de tombamento.

Então é todo o perímetro de Muqui que é tombado. E tem o perímetro onde tem os

imóveis de interesse histórico, que se encontram no centro na cidade, Boa Esperança.

E tem áreas que não estão dentro da área de tombamento, mas são de entorno imediato,

então qualquer construção que se faça nessa área também está sujeita a algumas sanções mesmo

que sejam mais brandas do que quem está dentro do perímetro tombado.

Tem em Muqui áreas que estão fora do tombamento, como é o caso de bairros novos, o

distrito de São Gabriel, Morada do Sol...

Thaisa: O senhor sabe dizer quantas famílias residem em imóveis desse interesse

histórico do tombamento?

Secretário de Cultura: Tem mais de 500 imóveis tombados, praticamente todos são

funcionais, apenas um outro que não é funcional.

A nossa dificuldade com o tombamento de Muqui, é que existe uma cidade São Pedro

do Itabapoana, só que era uma cidade que tem uma característica, que tem uma economia menos

aquecida do que a de Muqui. As ações lá são voltadas para o turismo, então teoricamente o

tombamento é essencial. Em Muqui, além de estar trabalhando essa questão de trazer, fortalecer

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e efetivar a potencialidade turística em vista do tombamento, nós temos uma cidade que é

econômica, viva, que tem comércio, as pessoas vivem ali. A nossa grande dificuldade é a

coexistência de uma cidade que está crescendo, que vive do comércio e de uma cidade que é

tombada. Isso é o grande desafio hoje.

A gente tem conseguido manter, quando as pessoas insistem em alterar, de uma forma

que não seja em conformidade com o projeto que é aprovado pela SECULT e a prefeitura, com

isso entram as sanções jurídicas até chegar a justiça comum, de multar, bloquear bens.

Esse imóvel que estamos aqui (Antiga estação ferroviária, atual rodoviária da cidade e

onde se localiza a Secretaria de Cultura), foi parcialmente restaurado. A pintura foi totalmente

feita, através de uma compensação de uma obra que foi feita irregularmente.

Quando a gente assumiu aqui, buscamos minimizar os impactos. Estamos tentando

conscientizar a população da importância de se seguir a norma do tombamento, do que a norma

da comissão estadual de cultura preconiza, posso fazer isso, não posso fazer isso, mas porque

não posso? As pessoas ficam falando é meu, eu que paguei, eu gero emprego, eu movimento a

cidade, mas ninguém fala que não pode fazer, pode fazer, mas da maneira correta, desde que

não destrua a cidade, que não descaracterize, mas existem pessoas que ainda fazem

irregularmente. Fazem e depois chega ao conhecimento da Prefeitura, tem o negócio de

derrubar à noite. Mas tem relatório fotográfico e a SECULT também tem, tem fiscalização de

arquiteto e engenheiro da prefeitura diariamente, qualquer alteração vai ser feito um processo.

Nós conseguimos criar uma câmara de negociação na SECULT, então tudo que acontece

de avesso, irregular, antes de se judicializar, a gente senta com o proprietário do imóvel e tenta

chegar ao meio termo, para que se refaça e amenize a modificação. Se ele fez errado, ele pode

fazer uma obra positiva para o Município e, na maioria dos casos, tem como reverter.

Toda obra que a pessoa planeja fazer, que seja uma troca de portão, ela faz um projeto

ou um rascunho e protocola na prefeitura. Esse projeto vai para a comissão de arquitetos que

tem em Vitória, que analisa qual impacto, qual a melhor forma de fazer, qual é o menor impacto

que causa no sítio histórico. Isso pode ser aprovado ou não, se for aprovado “ok”, se não for

aprovado não pode fazer. Se a pessoa fizer, aí entra a questão de sentar e conversar, antes de

judicializar, existe a oportunidade de conversar e voltar para a forma que era, a pessoa tem que

compensar. A compensação é a pessoa pagar/aplicar em outro imóvel que tenha interesse

histórico, por ter feito uma obra irregular.

Thaisa: Então, a maior reclamação dos munícipes é essa: “Eu quero fazer, é meu, eu

não quero mais que seja assim”, ou existe alguma outra?

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Secretário de Cultura: Reclamação tem, por exemplo: a pavimentação, no sentido de

que não pode asfaltar, porque o paralelepípedo tem tudo a ver com o município, mas a gente

sempre vem fazer alteração.

Outro exemplo de bastante problema é a publicidade. A gente não conseguiu

conscientizar que as pessoas utilizem a publicidade dos comércios dentro das normas do

tombamento histórico. As pessoas colocam placas de comércio, mas isso gera o processo, que

gera uma notificação e se a pessoa persistir, isso gera um processo judicial também.

O arquiteto faz a “fiscalização” quando surge uma denúncia, mas vem regularmente

para visitar o sítio histórico, então essa fiscalização está ativa. Na verdade, qualquer projeto que

a pessoa vai fazer de alteração, ele precisa passar pela prefeitura e ele só é aprovado se a

Secretaria de Cultura aprovar, pois ela é a gestora do patrimônio histórico. 90% segue o que é

estabelecido, quem não segue, a gente tenta buscar o consenso.

Thaisa: Então as principais reclamações são sobre pavimento e publicidade?

Secretário de Cultura: Dentre outras. A maior a reclamação é manter o imóvel, a

necessidade de apresentar projeto, você querer fazer uma coisa e não poder.

Thaisa: Há previsão na lei que, quando o proprietário não consegue fazer as obras de

conservação e manutenção, ele pode vir à Prefeitura apresentar essa situação. Existe muita

demanda nesse sentido aqui?

Secretário de Cultura: Essa forma do Estado de atuar na conservação é feito no edital

da SECULT, através de premiação, que funciona da seguinte forma: o proprietário se inscreve

no edital que acontece anualmente, manda o projeto, esse edital premia o melhor projeto, que

apresentar maior importância histórica, cultural e econômica.

Por exemplo, no ano de 2017 para 2018, tivemos um imóvel comtemplado. De 2018 e

2019, a Secretaria fez a mobilização do munícipio para os proprietários participarem do edital.

Então esse ano conseguimos quatro imóveis que vão ser restaurados com recursos do Estado.

São prêmios de 60 mil reais para a restauração do imóvel.

O proprietário se cadastra no edital, com projeto que seja compatível com o valor

oferecido para executar a obra e dentro dos parâmetros do tombamento. Com isso seu projeto

pode ser aceito.

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Thaisa: Quando não está tendo jeito, está aquela coisa assim, com problema no chão,

no teto, não tem como reformar até fazer o edital? E tem se tem algum projeto melhor, o imóvel

com problemas tem alguma preferência? Não tem um olhar para esse imóvel?

Secretário de Cultura: Não. Na história de Muqui nunca teve isso de não ter como

reformar imóvel que apresentasse risco.

Thaisa: Quando tem goteira não pode mexer?

Secretário de Cultura: Deve mexer, mas desde que apresente o projeto e o projeto seja

aprovado.

Thaisa: Já houve necessidade de desapropriação em função da não conservação do

imóvel por parte dos proprietários?

Secretário de Cultura: Não houve.

Thaisa: Sua opinião sobre como o sitio histórico contribuiu para o turismo na cidade.

Secretário de Cultura: O município de Muqui é muito rico culturalmente. Sem medo

de errar, vou te falar que o município tem a parte cultural mais forte do ES. Temos o carnaval

folclórico do boi pintadinho, que é o maior carnaval folclórico do Brasil e também o Encontro

Nacional de Folia de Reis, que tem a maior quantidade de folia de reis. Isso já um fator de

atrativo turístico.

O sitio histórico serve para atrair o turista para conhecer os imóveis tombados, para fazer

a volta ao tempo, e ele tem se mostrado muito bacana no sentido de servir de moldura para

vários outros eventos que atraem o turista para conhecer a cidade. Tem grandes eventos de

permanência, que é o carnaval, encontro de folia de reis, festival de cerveja artesanal na praça,

encontro de motociclistas.... Então esses são eventos muito bacanas e o sitio histórico

complementa isso. Fazer turismo é fazer a pessoa vir gastar no seu município, estamos

investindo em eventos de permanência.

Thaisa: Fora esses grandes eventos, durante o ano, a cidade também é voltada para o

turismo, mas em uma escala menor?

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Secretário de Cultura: O município tem focado no turismo de permanência, que atrai

o turista que vem dormir, comer, comprar o artesanato. Esse é o turismo mais positivo, mas tem

muitos eventos que o turista pode vir, dormir ou voltar... Muqui é uma cidade muito festiva,

não tem um mês que não tenha um evento muito positivo para o comércio.

Thaisa: Quais são os órgãos municipais responsáveis pelo tombamento?

Secretário de Cultura: Tem a Secretaria de Obras e a de Cultura que trabalham juntos,

mas quem faz essa fiscalização, essa gestão é a Secretaria de Cultura, mais especificamente o

setor de patrimônio. Mas as reclamações e os elogios são todos aqui.

Thaisa: Existem incentivos fiscais para os proprietários de imóveis tombados?

Secretário de Cultura: Sim. Todo imóvel tombado tem 50% de desconto no IPTU,

além de poder participar dos editais, o que também é fiscalizado. Nesse edital, o projeto de

reforma ganhador do prêmio, por exemplo, o Hotel Santa Teresinha que está sendo reformado

agora. É responsabilidade do proprietário gerir esse dinheiro. Por exemplo, você apresentou um

projeto para a reforma do telhado, substituir a madeira, a parte elétrica, fazer a pintura etc. O

valor é compatível com essas reformas? Positivo, então é um projeto viável. Depois que ele é

aprovado, você tem que cumprir e utilizar o dinheiro de acordo com o que você apresentou no

projeto. Geralmente as pessoas fazem o que foi proposto, não tem esse tipo de problema.

Thaisa: Eu acompanhei um debate no Facebook, antes do início do FECIN – Festival

de Cinema de Muqui – sobre placas que colocaram, descaracterizando o imóvel. E existem

opiniões para todos os lados, pessoas que não entendem, se posicionando contra ou favor. Você

acha que a população de Muqui está mais consciente da importância do patrimônio histórico ou

está mais tendenciosa a falar que não serve para nada?

Secretário de Cultura: Eu acredito que, cada vez mais, está crescendo o número de

defensores do tombamento. A partir do momento que eles enxergam os nossos imóveis intactos

e preservados, e que nós temos a potencialidade de gerar emprego e renda. Só que isso é um

processo que não é muito pronto. Hoje existe bastante turismo, é raro uma semana que nós não

recebemos um grupo de turistas. Isso traz dinheiro, renda para o comércio. Nós estamos criando

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uma rede hoteleira, que eu acredito que ela pronta e estruturada será mais um atrativo, porque

até então nós temos um hotel em funcionamento e um em reforma. Porque até então, está se

criando muito a cultura do cama e café, com as pessoas recebendo turistas em sua casa. Nós

temos em torno de seis imóveis tombados que recebem os turistas no próprio imóvel, como

pousada, com atendimento personalizado. Isso tem crescido e as pessoas, automaticamente,

veem o atrativo do turismo, relacionado ao sítio histórico, viram defensores. Nós temos que dar

suporte com alguns atrativos, trazer o turista, mostrar o município, mas quem faz gerar renda é

o comércio, é quem hospeda, é quem alimenta, é quem promove o entretenimento, isso é o

turismo. O Poder Público tem que fomentar isso.