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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CENSURA E IMPRENSA NA DITADURA MILITAR BRASILEIRA: O GOLPE DE ESTADO CHILENO PELAS PÁGINAS DO CORREIO DO POVO E ZERO HORA (SETEMBRO DE 1973) GABRIEL BANDEIRA ANTONIOLLI Porto Alegre 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

CENSURA E IMPRENSA NA DITADURA MILITAR BRASILEIRA:

O GOLPE DE ESTADO CHILENO PELAS PÁGINAS DO CORREIO DO POVO E

ZERO HORA (SETEMBRO DE 1973)

GABRIEL BANDEIRA ANTONIOLLI

Porto Alegre

2010

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CENSURA E IMPRENSA NA DITADURA MILITAR BRASILEIRA:

O GOLPE DE ESTADO CHILENO PELAS PÁGINAS DO CORREIO DO POVO E

ZERO HORA (SETEMBRO DE 1973)

Trabalho de conclusão do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) como requisito parcial para a obtenção do título de licenciado em História.

Orientador: Prof. Adolar Koch

GABRIEL BANDEIRA ANTONIOLLI

Porto Alegre 2010

3

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente aos meus pais, Jorge e Marisa, por terem me possibilitado,

com muito sacrifício e dedicação na busca por meu crescimento intelectual e aprendizagem

desde criança, que pudesse chegar à universidade pública.

Agradeço ao meu irmão, João Victor, com o qual espero ter a satisfação de me graduar

em História junto, pelo companheirismo e apoio nesses já dez anos longe de casa.

À minha noiva (e em breve esposa) Flavia, pelo amor incondicional e convivência

maravilhosa. O que se estende à sua família como um todo, que me receberam tão bem, que

me considero já parte dela.

Aos meus amigos, alguns já de longa data, outros nem tanto, mas que possuem

importância fundamental na minha vida.

Agradeço também aos professores com que tive contato na minha vida acadêmica,

principalmente ao prof. Adolar Koch, por ter me orientado nesta monografia, e aos colegas de

UFRGS que tornaram esses anos bastante agradáveis, pelas tantas trocas de experiência e

sempre constante camaradagem.

4

RESUMO A presente monografia aborda a questão da censura durante a ditadura militar

brasileira, tendo como fonte os jornais gaúchos Correio do Povo e Zero Hora e sua cobertura jornalística a respeito do golpe de estado ocorrido no Chile em 11 de setembro de 1973. Para tanto, o recorte temporal estabelecido foi o mês de setembro de 1973, onde se busca identificar as possibilidades de publicação de notícias por parte dos referidos periódicos, dentro de um contexto de forte censura e repressão no Brasil. Através da verificação de assuntos considerados pelos órgãos responsáveis pela censura no governo brasileiro como proibidos para divulgação na imprensa, podemos identificar que os mesmos temas foram abordados por ambos os jornais ao se referirem ao país vizinho. Como forma de realizar esta proposta, foi verificada bibliografia a respeito do regime militar brasileiro e chileno, das relações entre história e imprensa, da censura, do histórico dos diários escolhidos e do trabalho com jornais como fonte de conhecimento histórico. Foram consultados autores como Fico, Aquino, Capelato, Smith, Orlandi, Caparelli, entre outros.

Palavras-Chave: censura, ditadura, grande imprensa.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 1 REGIMES MILITARES DO BRASIL E DO CHILE........... ......................................... 1.1 REGIME MILITAR BRASILEIRO...................... ....................................................... 1.1.1 A Grande Imprensa na Ditadura Brasileira.............................................................. 1.2 REGIME MILITAR CHILENO......................... ........................................................... 1.3 SEMELHANÇAS ENTRE OS REGIMES DO BRASIL E DO CHI LE.................... 2 A CENSURA NO REGIME MILITAR BRASILEIRO........... ....................................... 3 A COBERTURA DO GOLPE CHILENO NO CORREIO DO POVO E NA ZERO HORA.................................................................................................................................. 3.1 SOBRE CORREIO DO POVO E ZERO HORA......................................................... 3.1.1 Correio do Povo e Cia. Jornalística Caldas Júnior................................................... 3.1.2 Zero Hora e Grupo RBS.............................................................................................. 3.2 A COBERTURA DOS ANTECEDENTES DO GOLPE (1º A 11 DE SETEMBRO DE 1973)........................................................................................................................... 3.3 A COBERTURA DO GOLPE (12 A 18 DE SETEMBRO DE 1973).......................... 3.4 A COBERTURA DO PÓS-GOLPE (19 A 30 DE SETEMBRO DE 1973)................. 3.5 ESPAÇOS DE OPINIÃO E MATÉRIAS ASSINADAS.............................................. 3.5.1 “Serenidade Ante a Tragédia”: Editoriais e Artigos Assinados no Correio do Povo............................................................................................................................... 3.5.2 “Junta Militar Manobra no Topo de uma Montanha Explosiva”: Comentários na Zero Hora................................................................................................................. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... REFERÊNCIAS....................................................................................................................

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INTRODUÇÃO

11 de setembro. Ao lembrarmos esta data nos vêm logo à mente a destruição das

Torres Gêmeas na cidade de Nova Iorque, Estados Unidos, ocorrido em 2001. Basta um

simples acesso ao buscador Google na internet e veremos que os primeiros resultados

referem-se somente a este acontecimento. Porém, em 1973 ocorre também um evento onde

destruição, incêndio e mortes estiveram presentes, tal qual o caso estadunidense. Trata-se do

ataque ao Palácio de la Moneda, sede do governo do Chile, localizado na capital Santiago.

Nesta ocasião, as Forças Armadas chilenas põem fim ao governo democraticamente eleito do

presidente Salvador Allende com um golpe de estado militar, fato nada estranho na política

latino-americana, com o agravante que, desta vez, o governante deposto deixou o palácio sem

vida. Mesmo sob forte bombardeio e com poucos homens a defendê-lo, Allende decide

resistir até o fim e acaba optando por um sacrifício final quando as tropas golpistas já estavam

às portas de seu gabinete. Como saldo, temos um sangrento fim para a chamada “via chilena

para o socialismo” e a instauração de uma brutal ditadura, que perdurará até o final da década

de 1980.

Nesta época, a presença de militares no poder já era familiar aos brasileiros. Desde

1964, vivíamos sob os governos dos generais-presidentes. Prisões, torturas e assassinatos

estiveram presentes em nossa realidade, principalmente após 1968, quando o regime se

recrudesce. Da mesma forma, como não poderia faltar em um governo de tal natureza, a

censura aos meios de comunicação foi amplamente realizada. Críticas ao regime e a

divulgação da existência da repressão política não eram permitidas, bem como qualquer

menção à sua natureza ilegítima, uma vez que o governo constitucionalmente empossado de

João Goulart havia sido deposto pelas armas. Foi característica da censura brasileira a

divulgação por parte do Governo aos órgãos de imprensa de ordens com a proibição de

publicação de determinados assuntos e notícias.

7

Apesar da proximidade ideológica entre os regimes militares do Brasil e do Chile,

verifica-se uma falta de bibliografia pertinente à cobertura do golpe chileno pela imprensa

gaúcha e suas implicações. Tendo em vista tal panorama e as semelhanças entre a ditadura

militar recém instaurada no Chile com a já estabelecida no Brasil, este estudo tem por

objetivo analisar a forma pela qual o referido golpe de estado militar chileno foi noticiado

pelos jornais Correio do Povo e Zero Hora. Como foi possível publicar os acontecimentos do

país vizinho, sendo que vivíamos em uma realidade tão semelhante? Com relação aos temas

proibidos, qual a postura adotada pelos diários? Que limitações a censura impôs à cobertura

jornalística desses fatos? Houve por parte dos órgãos analisados alguma tentativa de burlar as

proibições impostas pelos censores? Mediante a análise das notícias publicadas por ambos os

periódicos este trabalho busca elucidar estas e outras questões.

Como forma de realizar esta proposta foram verificadas todas as edições disponíveis

do mês de setembro de 1973 dos jornais Correio do Povo e Zero Hora1, encontradas no

Museu da Comunicação Hipólito José da Costa, em Porto Alegre/RS. Este recorte temporal

justifica-se na medida em que permite observar o evento escolhido num todo, com as

agitações pré-golpe (do dia primeiro até o dia onze), o próprio golpe e seu desenrolar (com

início do noticiário no dia 12 até o dia dezoito), além dos momentos do começo da

institucionalização da Junta Militar no Chile (do dia dezenove até o último dia do mês). No

Correio do Povo, não foi possível encontrarmos as edições dos dias 03, 08, 10, 17 e 24. Com

relação à Zero Hora, a mesma situação ocorreu para os dias 07, 16, 17 e 24.

A escolha dos dois periódicos deve-se ao fato de que se já se tratavam à época de

jornais de grande tiragem e circulação no Rio Grande do Sul. Não se localizaram dados

relativos ao ano de 1973, porém, estimativas referentes a 1975, apontam que a tiragem de

ambos chegava a 100 mil exemplares/dia, sendo o Correio do Povo responsável por 60 mil

jornais e a Zero Hora pelos 40 mil restantes.2 Se partirmos para uma análise com os dados dos

conglomerados pertencentes às empresas Caldas Jr. e RBS, temos para o ano de 1976

impressionantes 80% do total de circulação de jornais em Porto Alegre e pouco menos no Rio

Grande do Sul.3

1 A partir deste momento, em alguns casos será utilizada a sigla CP para Correio do Povo e ZH para Zero Hora. 2 IBGE, material publicitário das empresas, apud RÜDIGER, Francisco Ricardo. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1993, p. 111. 3 CAPARELLI, 1976, apud BERGER, Christa. Campos em confronto: a terra e o texto. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003, p. 54.

8

Quanto à análise das fontes, se optou por trabalhar somente com os elementos textuais

dos jornais, sem se deter com outras manifestações, como fotografias ou charges, por

exemplo. Embora se saiba da importância destas demais fontes para a compreensão de

determinado objeto histórico, a escolha se deve ao fato desta pesquisa fazer uso, para

compreensão de seus objetivos, das proibições determinadas por parte da censura, as quais se

davam por definições de temas e assuntos não permitidos de serem noticiados, e de buscar

identificar práticas por parte dos periódicos para publicação dessas questões de forma a não

serem enquadrados pelos censores.

Inicialmente vista com suspeita, sendo utilizada apenas como fonte adicional a outros

tipos de documentação, já há algumas décadas a imprensa vem sendo largamente aceita e

utilizada pelos historiadores. Para Maria Helena Capelato, trata-se de “manancial dos mais

férteis para o conhecimento do passado”, pois “a imprensa registra, comenta e participa da

história”.4 Na obra O Bravo Matutino, sobre o jornal O Estado de São Paulo, a autora, em co-

autoria com Maria Lígia Prado, afirma que

[...] a escolha de um jornal como objeto de estudo justifica-se por entender-se a imprensa fundamentalmente como instrumento de manipulação de interesses e de intervenção na vida social; nega-se, pois, aqui, aquelas perspectivas que a tomam como mero”veículo de informações”, transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos, nível isolado da realidade político-social na qual se insere.5

Christa Berger, em Campos e Confrontos, livro em que analisa o Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra (MST) nas páginas de Zero Hora, sustenta que o discurso

jornalístico “está entranhado de historicidade”.6 Ao interpretar o presente e veicular várias

vozes constitutivas deste presente explicita que faz parte de um determinado tempo histórico.

Sobre o jornal como objeto de estudo, indica que o mesmo “deve ser encarado como um

sujeito – tem personalidade jurídica, um estatuto e uma razão social que garantem sua

individualização ante o direito e ante terceiros”.7

Já, com respeito à utilização do jornal enquanto fonte, Elmir aponta alguns aspectos,

como a importância da regularidade de determinada idéia para que se possa “distinguir entre

aquilo que é significativo para a compreensão do nosso objetivo daquilo que é fortuito,

4 CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988, p. 13. 5 CAPELATO, Maria Helena; PRADO, Maria Lígia. O bravo matutino. Imprensa e ideologia: O Estado de São Paulo. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1980, p. 19. 6 BERGER, Christa. Campos em confronto: a terra e o texto. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. p 44. 7 Idem, Ibidem, p. 45.

9

casual”, o que é possível somente com o “acesso a uma série de discursos que é a condição do

estabelecimento da regularidade”.8

Como esta pesquisa trabalha com o texto jornalístico, para a realização dos objetivos

propostos teve grande importância o método da Análise de Discurso (AD). Segundo Orlandi,

a análise de discurso “não está interessada no texto em si como objeto final de sua explicação,

mas como uma unidade que lhe permite ter acesso ao discurso”,9 afirmando ainda que a AD

“não procura o sentido “verdadeiro”, mas o real do sentido em sua materialidade lingüística e

histórica”10. Esta autora defende que para sua aplicação é necessária a construção de um

dispositivo da interpretação, cuja característica seria

[...] colocar o dito em relação ao não dito, o que o sujeito diz em um lugar com o que é dito em outro lugar, que é dito de um modo com o que é dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras.11

Da mesma forma, Celi Pinto fornece importante instrumental para sua aplicação, ao

afirmar que o mesmo “permite comparar as diversas posições de cada sujeito, as formas que

se repetem e que se opõem ao longo do discurso”, devendo o analista “avançar no sentido de

identificar a relação estabelecida no interior do discurso com a pluralidade e com as práticas

não-discursivas”. A autora afirma ainda a necessidade de observação dos sujeitos gramaticais

e dos tempos e modos verbais, com a distinção das vozes ativa e passiva.12 Este ponto foi

importante na realização deste trabalho, pois por muitas vezes foi possível observar que os

jornais analisados puderam manifestar alguma crítica a partir da fala de algum entrevistado,

ou seja, sem a necessidade de expor-se ao realizar alguma afirmação no corpo do texto de

suas matérias, conforme será visto adiante.

Este trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro são abordados os regimes

militares brasileiro e chileno e suas peculiaridades, além de apontadas questões relativas à

grande imprensa na ditadura brasileira. Já o segundo é dedicado especificamente às

características da censura durante o período militar no Brasil. Por último, o terceiro capítulo

8 ELMIR, Cláudio Pereira. As armadilhas do jornal: algumas considerações metodológicas de seu uso para a pesquisa histórica. In: Cadernos de Estudos do PPG em História (UFRGS). Porto Alegre: v. 13, 1995, p. 23. 9 ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003, p. 72. 10 Idem, Ibidem, p. 59. 11 Op. cit. 12 PINTO, Celi Regina Jardim. Com a palavra o senhor presidente José Sarney: ou como entender os meandros da linguagem do poder. São Paulo: Hucitec, 1989, p. 64.

10

apresenta uma contextualização dos jornais escolhidos e os resultados da pesquisa a respeito

do golpe de estado chileno em suas páginas.

11

1 REGIMES MILITARES DO BRASIL E DO CHILE

Neste capítulo serão abordadas as questões pertinentes aos regimes militares brasileiro

e chileno.

1.1 REGIME MILITAR BRASILEIRO

De ordem superior, fica terminantemente proibida

divulgação através de qualquer meio de imprensa,

da comunicação de que a Câmara Municipal de

Ponta Grossa, Paraná, negou o título de cidadão

pontagrossense ao Presidente Médici. (26/6/73)

Em 31 de março de 1964 tem fim o governo do Presidente João Goulart e o início de

um período em que o Brasil viveu sob controle de uma ditadura militar, a qual viria a se

encerrar somente em 1985. Jango, como era chamado, havia assumido o posto em 1961

depois de inesperada renúncia de Jânio Quadros. Porém, suas políticas trabalhistas de pronto

desagradaram os setores mais conservadores da sociedade brasileira, que, quando sua

tentativa de buscar apoio junto às massas para suas “reformas de base” ganhava força,

optaram por derrubá-lo, apoiados nas Forças Armadas e na “experiência histórica em

intervenção política”13 por parte do Exército Brasileiro.14 É importante ressaltar que o golpe

de estado foi saudado por ampla camada da população brasileira, que comemoraram a queda

de Jango e o fim da “ameaça comunista”. Carlos Fico sustenta que, para a compreensão das

razões do golpe, lhe parece

[...] evidente que, em se tratando de um fenômeno complexo, todas as variáveis intervenientes, de natureza macroestrutural ou micrológica, devem ser consideradas. As transformações estruturais do capitalismo brasileiro, a fragilidade institucional do país, as incertezas que marcaram o governo de João Goulart, a propaganda política do Ipes, o ânimo golpista dos conspiradores, especialmente dos militares – todas são causas que devem ser levadas em conta. 15

13 WASSERMAN, Claudia. O império da Segurança Nacional: o golpe militar de 1964 no Brasil. In: WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (org.). Ditaduras militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 27. 14 Para um histórico do intervencionismo político por parte dos militares brasileiros, ver BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano, vol. 4. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 15 FICO, Carlos. Além do golpe: a tomada do poder em 31 de março de 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 113.

12

Primeiro entre os presidentes/generais, o governo de Castelo Branco inicia anos de

muita turbulência onde o país viveu sob um regime autoritário que visava o total controle da

sociedade. Repressão política, censura, torturas e assassinatos estiveram presentes nos

governos militares desde o princípio. Uma de suas principais características foi o conflito

permanente entre diferentes setores das forças armadas, opondo aqueles que entendiam ser o

golpe apenas provisório e já buscavam o retorno da “normalidade” e os que visavam estender

a ação golpista, com punições e perseguições políticas mais aprofundadas, a chamada “linha

dura”, como distingue Smith:

Considera-se em geral que a divisão básica nas forças militares era a existente entre os partidários da linha dura, identificados com o presidente Médici (1969-74), e a ala mais moderada, identificada com o presidente Castelo Branco (1964-67) ou com o presidente Geisel (1974-79). Esses dois rótulos por vezes são entendidos com referentes a posições quanto a, por exemplo, o grau de repressão considerado necessário ou o nível apropriado de consulta à sociedade civil.16

Em março de 1967, o principal líder da linha dura, general Arthur da Costa e Silva,

assume a presidência. O país assiste a um aumento no nível de repressão, tendo em vista o

objetivo de garantir a “segurança nacional”, conforme sustentam Del Priore e Venâncio:

Alegando a ameaça comunista e acentuando uma tendência de endurecimento, que vinha desde o ano anterior – com a eleição do general Costa e Silva em 25 de maio de 1966 -, o governo militar tende a se tornar cada vez mais ditatorial. Nesse contexto é fortalecida a doutrina de segurança nacional, que tornava prioridade entre as forças armadas a luta contra a ameaça interna e não mais a defesa contra inimigos estrangeiros.17:

A respeito da Doutrina de Segurança Nacional, Borges afirma que já estava presente

no cenário nacional mesmo antes do golpe, sendo ensinada na Escola Superior de Guerra do

Exército Brasileiro não apenas para os militares como também aos civis.18 A Doutrina,

originária dos Estados Unidos19, porém adaptada para as circunstâncias brasileiras, buscava,

“resgatar o desejo secular do Brasil de se tornar uma potência mundial e colocar as Forças

16 SMITH, Anne-Marie. Um acordo forçado: o consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 41. 17 DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p. 368. 18 BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano, vol. 4. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 36. 19 Sobre o contexto da Doutrina de Segurança Nacional e sua matriz estadunidense, ver WASSERMAN, Claudia. O império da Segurança Nacional: o golpe militar de 1964 no Brasil. In: WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (org.). Ditaduras militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 29.

13

Armadas como defensoras da civilização cristã ocidental contra o comunismo”.20

Com base nas premissas da referida doutrina, a principal forma como os militares

identificados com o setor de Costa e Silva passam a endurecer cada vez mais o regime foram

os Atos Institucionais. O primeiro (posteriormente chamado de AI-1) foi expedido antes ainda

da nomeação de Castelo Branco para presidente, tendo sido promulgado nos dias seguintes à

vitória golpista pelo “Comando Supremo da Revolução”, o qual era até aquele momento

coordenado por Costa e Silva. Segundo Fico, o AI-2, embora decretado por Castelo, que

desejava impedir que militares radicais conquistassem poder político, já demonstra uma

vitória parcial da ala da linha-dura, pois permitia ao presidente decretar o fechamento do

Congresso Nacional e legislar por decretos-lei, extinguiu os partidos políticos, impôs a eleição

indireta do presidente da República, além de renovar a possibilidade de cassação de mandatos

parlamentares e suspensão de direitos políticos.21 O autor defende ainda que a linha dura após

a obtenção de instrumentos como o AI-2 e o AI-5 transformou-se em uma “comunidade ou

sistema de segurança”, a qual “amparava-se naquilo que podemos chamar de “pilares básicos”

de qualquer ditadura: a espionagem, a polícia política e a censura”.22

Em 13 de dezembro de 1968, o governo do general Costa e Silva promulga aquele que

é comumente apontado como a maior demonstração do caráter repressivo da ditadura militar

brasileira, o Ato Institucional nº 5. Segundo Chiavenato, “o AI-5 dava tantos poderes ao

presidente, aumentando a repressão e a censura à imprensa, que qualquer oposição real

tornou-se impossível”.23 Já Barros, refere-se ao Ato como “a implantação acabada do

totalitarismo estatal” e “a ditadura sem qualquer disfarce”, pois ao contrário dos atos

anteriores, o AI-5 não vinha com vigência de prazo.24

Quanto aos fatores que levaram à sua implantação, Carlos Fico afirma que uma das

principais motivações para o AI-5 foi a insatisfação da linha dura com o desenvolvimento dos

20 SERBIN, 2001, apud BORGES, Nilson. Op. cit. 21 FICO, Carlos. Além do golpe: a tomada do poder em 31 de março de 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 74. 22 FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano, vol. 4. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 190. 23 CHIAVENATO, Júlio José. O golpe de 64 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna, 1994, p. 77. 24 BARROS, Edgard Luiz de. Os governos militares. São Paulo: Contexto, 1991, p. 42.

14

primeiros Inquéritos Policiais Militares (IPM’s)25 e que não se deve compreendê-lo como uma

simples reação à escolha da luta armada por alguns setores da esquerda. Para o autor,

[...] havia desde o início do regime militar, a vontade, por parte dos setores mencionados da linha dura, de constituição de um aparato global de controle da sociedade, tanto quanto, aliás, a opção de parte da esquerda pela “luta armada” antecedeu o próprio golpe de 1964. O projeto global de repressão e controle supunha não apenas a espionagem e a polícia política, mas também a censura, a propaganda política e o julgamento sumário de pretensos corruptos. 26

Por sua vez, Aquino aponta como estopim para a promulgação do AI-5, o discurso do

deputado Márcio Moreira Alves na Câmara instigando a população a boicotar a parada militar

de 7 de setembro e as mulheres brasileiras a não namorar militares envolvidos na repressão, o

que foi considera um ultraje pelas Forças Armadas. Como a solicitação para o Congresso

Nacional para que levantasse a imunidade parlamentar do deputado permitindo seu

julgamento foi negada pelos congressistas, 24 horas depois foi baixado o tão temido Ato

Institucional, “conferindo excepcionalidade maior ao presidente, limitando ou extinguindo

liberdades democráticas e suspendendo garantias constitucionais.27

Mecanismos como o AI-5 “levaram à intensificação da repressão e à construção de um

Estado terrorista, cuja prática de violação dos direitos humanos foi sistemática, independente

da “linha” adotada pelos generais presidentes que estavam no poder”.28 A violência era

operada por organizações que atuavam paralelamente ao Serviço Nacional de Informações

(SNI), criado em 1964, como o Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), a Operação

Bandeirantes (OBAN) e o DOI-CODI, somente para citarmos algumas delas

Com respeito ao governo do general Emílio Garrastazu Médici, ex-chefe do SNI que

havia assumido a presidência em 1969, destacado neste trabalho por ser o presidente

brasileiro na época do evento analisado, se pode afirmar que foram momentos onde a

25 FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano, vol. 4. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 183. 26 FICO, Carlos. Além do golpe: a tomada do poder em 31 de março de 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 82. 27 AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978). O exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de São Paulo e o Movimento. Bauru: EDUSC, 1999, p. 206. 28 WASSERMAN, Claudia. O império da Segurança Nacional: o golpe militar de 1964 no Brasil. In: WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (org.). Ditaduras militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 42.

15

repressão política aos opositores chega ao ápice dentro do regime militar. Chiavenato destaca

algumas das principais características de seu governo:

Médici inaugurou o período mais duro da repressão, contra a crescente oposição clandestina [...] Em pouco tempo, porém, os resultados artificiais da sua política de “Segurança e Desenvolvimento” iriam aparecer, demonstrando que a propaganda e a censura encobriam a deteriorização das bases econômicas, enquanto povo e principalmente a classe média alta festejavam a conquista da Copa do Mundo e um consumismo desvairado.29

Lado a lado com a face repressiva do governo Médici estava a ênfase na propaganda.

Barros destaca que a imagem de Médici foi “cuidadosamente trabalhada pela Assessoria

Especial de Relações Públicas da Presidência da República (a AERP, uma espécie de

Ministério da Propaganda que inicialmente redigiu todos os discursos)”,30 o que possibilitou

que fossem definidas, a partir de sua posse, “as diretrizes que norteariam a maior campanha

de propaganda política jamais vista no Brasil”.31 Foi através dela que divulgou-se e propagou-

se a idéia do “milagre econômico”, período em que o Brasil registrou elevados índices de

crescimento e consumo.

1.1.1 A Grande Imprensa na Ditadura Brasileira

Com relação à grande imprensa, este trabalho adota o conceito elaborado por Aquino:

Qualifica-se de grande imprensa – e aqui o termo aparece por oposição a uma imprensa de menor porte – os órgãos de divulgação cuja veiculação pode ser diária, semanal ou mesmo que atuem em outra periodicidade, mas cuja dimensão, em termos empresariais, atinja uma estrutura que implique na dependência de um alto financiamento publicitário para a sua sobrevivência.32

A autora argumenta ainda que esta parte de uma concepção de informação e de história

que oficializa a concessão da palavra aos privilegiados, com produção jornalística direcionada

para cobertura de exceção. Por outro lado, a imprensa alternativa visa a socialização do acesso

à informação, tendo como protagonista as experiências sociais do homem comum.33

29 CHIAVENATO, Júlio José. O golpe de 64 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna, 1994, p. 78. 30 BARROS, Edgard Luiz de. Os governos militares. São Paulo: Contexto, 1991, p. 58. 31 FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano, vol. 4. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 192. 32 AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978). O exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de São Paulo e o Movimento. Bauru: EDUSC, 1999, p. 37. 33Idem, Ibidem, p. 249.

16

A participação da grande imprensa na ditadura militar remonta ao período anterior à

realização do golpe de estado, uma vez que grande parte dos principais grupos de

comunicação esteve ativa na rede conspiratória que viria a derrubar João Goulart34. Porém,

Caparelli sustenta que a utilização mais sistemática dos meios de comunicação pelo governo

viria apenas após o AI-5, onde o caso mais emblemático é o da Rede Globo de televisão, que

se tornou uma espécie de porta-voz do Estado.35 Esta afirmação vem ao encontro de seu

entendimento de que “as mídias, como todo aparelho ideológico, são também tributários do

momento histórico, principalmente num regime de força”.36

Quanto às características jornalísticas possuídas pela grande imprensa à época da

ditadura, Smith aponta que os principais periódicos produziam uma boa cobertura das

notícias, possuindo, porém, uma postura convencional e raramente crítica da ordem existente:

A grande imprensa oferecia reportagens gerais, mas pouca investigação independente. Depois de analisar publicações de muitos anos da grande imprensa do período, fica-se com uma sensação de surpresa diante do fato de que tais publicações, destituídas de senso crítico e combatividade, pudessem ser vistas pelo regime militar como uma ameaça e consideradas dignas de censura.37

A autora salienta ainda o destaque conferido à cobertura internacional, “sempre na

primeira página” e “quase toda oriunda de agências internacionais”.38

1.2 REGIME MILITAR CHILENO

O torturador é um funcionário. O ditador é um

funcionário. Burocratas armados, que perdem seu

emprego se não forem eficientes. Isso, e nada mais que

isso. Não são monstros extraordinários. Não vamos dar

essa grandeza de presente a eles.

Eduardo Galeano

Em 1970, enquanto o Brasil vivia, como já visto, dias de repressão e conservadorismo,

34 Sobre a participação da grande imprensa na queda de Goulart, ver SILVA, Eduardo Gomes. A “grande imprensa e o golpe de 1964. Revista do Livro da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 16, n. 50, maio 2008. 35 CAPARELLI, Sérgio. Ditaduras e indústrias culturais, no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai (1964-1984). Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 1989, p. 48. 36 Idem, Ibidem , p. 46. 37 SMITH, Anne-Marie. Um acordo forçado: o consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 53. 38 Idem, Ibidem, p. 52.

17

do outro lado da Cordilheira dos Andes era inaugurada a “via chilena” para o socialismo pela

chegada de Salvador Allende à presidência do país. Para Guazzelli,

[...] a vitória da Unidade Popular nas eleições presidenciais de 4 de junho de 1970 deu inicio a um processo original de transformações sociais visando o socialismo, caracterizado pelo forte engajamento popular ao projeto, pela preservação das instituições democrático-burguesas e acatamento das decisões que dela emanavam, e pelo boicote permanente dos setores dominantes e do imperialismo. 39

Nosso país vizinho, ao contrário da maioria das demais repúblicas sul-americanas,

possuía longa tradição de democracia, sem a periódica intervenção militar para cortar sua

continuidade. Emir Sader saliente ainda a existência de sólidos partidos políticos, como a

Democracia Cristã, como uma garantia contra os golpes de estado, além da crescente

democratização ocorrida nos últimos 40 anos anteriores à vitória de Allende.40

Salvador Allende chegou ao poder após três frustradas candidaturas, derrotando os

candidatos identificados com a direita e o centro. Antes, porém, havia sido senador e até

Ministro da Saúde do Chile. Venceu as eleições em 1970, à frente de uma coalizão de

esquerda intitulada Unidade Popular, formado por amplo leque de alianças, contando com

partidos como o Socialista, o Comunista, o Radical e o MIR (Movimento de Esquerda

Revolucionária). Como não atingiu a maioria absoluta, sua eleição precisou, conforme a

legislação do país, ser ratificada pelo Congresso Nacional, episódio onde já se verificam

investidas golpistas com o objetivo de impedir sua posse por parte dos grupos dominantes

chilenos e do imperialismo dos Estados Unidos, representado principalmente pela

multinacional International Telephone & Telegraph (ITT), temerosa que o governo da

Unidade Popular trouxesse eventuais prejuízos aos seus negócios no Chile.41

Seu programa de governo consistia na realização de transformações de caráter social,

onde a nacionalização das riquezas minerais teve papel fundamental. Com sólido apoio de

bases sociais, dos sindicatos e dos partidos de esquerda, “procurou desde sua posição no

39 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. A Revolução Chilena e a ditadura militar. In: WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (org.). Ditaduras militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 79. 40 SADER, Emir. Democracia e ditadura no Chile. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9. 41 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. A Revolução Chilena e a ditadura militar. In: WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (org.). Ditaduras militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 84.

18

Executivo gerar as condições para a transição ao socialismo”.42 Conforme Emir Sader,

[...] o programa estabelecia cinco objetivos fundamentais: criar uma nova ordem institucional, o Estado Popular; construir uma nova economia, baseada em uma área de propriedade social e na reforma agrária; realizar um grande avanço no plano social; promover a cultura e a educação; conseguir a plena autonomia internacional.43

O autor sustenta que a partir de 1972 o plano que levaria ao golpe começa a ser gerido,

com a mobilização das camadas médias contra o governo e bloqueios da ação governamental

por parte da oposição no Congresso, tudo isto aliado a um trabalho junto à oficialidade das

Forças Armadas para trazê-la ao campo golpista, notadamente através de ações terroristas por

parte de grupos paramilitares de cunho fascista.44

Esta mobilização culmina com a morte de Allende em 11 de setembro de 1973, quando

as tropas lideradas pelo general Augusto Pinochet, após combate e destruição do Palácio de

La Moneda, põe fim à experiência socialista chilena.45 Sader aponta na ocasião do golpe de

estado, uma incapacidade de resposta por parte de uma esquerda dividida e desarmada

politicamente para enfrentá-lo. Por sua vez, a avassaladora superioridade militar e o apoio de

setores da classe média e da quase totalidade da burguesia chilena, garantiram o sucesso da

ação golpista.46 Já Guazzelli, chama a atenção para o que chama de “trágica ironia”, ou seja, o

fato do governo Allende ter sempre se atido às instituições democráticas, “mesmo nos

momentos de crise mais aguda”, respeitando o “Estatuto de Garantias Constitucionais com o

qual se comprometera”.47

A Junta Militar, presidida por Pinochet, teve como primeiros objetivos reimpor a

ordem social e renovar os compromissos chilenos com o processo de acumulação capitalista.

Tinha como referência o Brasil em pleno “milagre econômico”, demonstrando que a

42 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. A Revolução Chilena e a ditadura militar. In: WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (org.). Ditaduras militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 86. 43 SADER, Emir. Chile (1818-1990): Da independência à redemocratização. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991, p. 49. 44 SADER, Emir. Democracia e ditadura no Chile. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 22. 45 Não nos deteremos aqui na trágica e comovente história de sacrifício e resistência do presidente deposto e na ativa participação do governo estadunidense no golpe, o que pode ser encontrado em VERDUGO, Patrícia. Chile, 1973: Como os EUA derrubaram Allende. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 46 SADER, Emir. Democracia e ditadura no Chile. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 34. 47 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. A Revolução Chilena e a ditadura militar. In: WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (org.). Ditaduras militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 98.

19

intervenção não foi realizada no sentido de “um poder moderador”, mas sim, “que vinha para

ficar e para transformar o país em profundidade”.48 Com relação à repressão, sua diferença

para com o regime brasileiro foi que, tendo em vista a resistência e a identificação de grande

parte da população com a Unidade Popular, necessitou empregá-la num grau muito maior do

que os golpistas do Brasil em 1964.

A nova ditadura em seus primeiros meses dedica-se “à implantação do terror de

Estado”, através de “prisões, torturas e execuções sumárias” de pessoas identificadas com o

governo deposto, como lideranças da Unidade Popular, estudantes, operários e estrangeiros

emigrados principalmente de países latino-americanos já sob o desmando de regimes

militares.49 As informações sobre a perseguição aos opositores não chegava à população em

geral, uma vez que eram filtradas por um eficiente sistema de censura baseado na força.

Caparelli afirma que, como no Brasil e no Uruguai,

[...] a censura no Chile foi uma das mais rígidas, dentro da guerra, segundo seus dirigentes, movida contra o comunismo internacional. Logo após o golpe, não se tratava de se estender ou de continuar uma guerra psicológica no campo dos meios de comunicação, mas de suprimi-los, o que foi feito imediatamente, a partir do primeiro dia do novo governo. Junto com o fechamento dos jornais e controle das emissoras de rádio, começou o extermínio dos próprios comunicadores. 50

Esmagada a oposição, a ditadura pôde dedicar-se a medidas econômicas de cunho

neoliberal, com o claro favorecimento aos interesses do capital financeiro nacional e

internacional, através de privatizações e empréstimos externos, característica mantida até seus

últimos dias no fim da década de 1980.

1.3 SEMELHANÇAS ENTRE OS REGIMES DO BRASIL E DO CHI LE

Muitas relações podem ser apontadas entre os casos brasileiro e chileno. A afinidade

entre as duas nações se evidencia no fato de que o Brasil foi um dos primeiros países a

reconhecer a Junta Militar liderada pelo general Pinochet, o que ocorreu dois dias após o

golpe. Em primeiro lugar, ambos assistem um governo democrático legítimo ser deposto por

48 SADER, Emir. Democracia e ditadura no Chile. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 37. 49 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. A Revolução Chilena e a ditadura militar. In: WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (org.). Ditaduras militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 98. 50 CAPARELLI, Sérgio. Ditaduras e indústrias culturais, no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai (1964-1984). Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 1989, p. 81.

20

militares ao tentar implementar reformas e políticas com caráter social. Com relação à

repressão e à desarticulação da oposição política, também foram muitos eficazes, como

demonstram os já referidos inúmeros casos de violações dos direitos humanos, através da

prática de torturas, sequestros e assassinatos pelo Estado, com a ressalva do volume maior de

pessoas executadas e desaparecidas no Chile.

Outra característica comum diz respeito à censura de imprensa. Maria Aparecida de

Aquino, ao estudar a censura no jornal O Estado de São Paulo, descreve a semelhança entre as

realidades dos dois países ao relatar a preocupação do governo militar brasileiro com a forma

como seriam divulgados os acontecimentos do Chile, o que demonstra que eram conscientes

destas similaridades:

É importante destacar que os cortes da censura no que diz respeito ao Chile relacionam-se ao temor de possíveis analogias, por parte dos leitores, entre a realidade chilena e o processo político desenrolado no Brasil – aqui também um presidente constitucionalmente eleito foi derrubado por um golpe militar ao qual, embora em menor grau, se seguiu uma escalada de violência que derrotou as possibilidades de oposição no país.51

51 AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978). O exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de São Paulo e o Movimento. Bauru: EDUSC, 1999, p. 79.

21

2 A CENSURA NO REGIME MILITAR BRASILEIRO

A Censura Federal proíbe a divulgação de discurso do

líder da Maioria, Senador Filinto Müller, negando que

exista censura no Brasil (19/9/72)

A bibliografia sobre a censura no Brasil é bastante vasta. Certo é que a censura aos

meios de comunicação há muito já existia no país, fazendo-se sentir, porém, de maneira mais

intensa e constante nos períodos ditatoriais, mais notadamente no Estado Novo, de Getúlio

Vargas (1937-1945), e no regime militar (1964-1985).52 Carlos Fico aponta para este último

uma característica peculiar:

De fato, é a dicotomia legal/revolucionária que explica a existência não de uma, mas de duas censuras durante o período militar: uma legal e longeva – aquela que havia décadas controlava as diversões públicas; outra, “revolucionária” e negada: a censura propriamente política da imprensa, que era, para a ditadura, “um de seus instrumentos repressivos. 53

A censura de diversões públicas era exercida pela Divisão de Censura de Diversões

Públicas (DCDP) e detinha-se sobre questões morais e comportamentais. Assim, filmes, peças

de teatro, livros, programas de televisão, entre outros, além da mídia escrita, passavam pelo

crivo dos censores, que acreditavam que a “subversão” se valia da “corrupção dos costumes”

para aliciar a juventude. Porém, a presente pesquisa aborda o que convencionou chamar-se de

“censura política”, ou seja, a censura à imprensa, expressão esta considerada indevida, tendo

em vista que toda atividade censória também é um ato político

Segundo Aquino, se pode falar ainda na censura empresarial, inerente à estrutura das

grandes empresas capitalistas, obrigada a fazer concessões e ceder a pressões. Já a censura de

cunho político vigora em um momento histórico determinado, atuando de forma externa às

redações dos periódicos e sendo exercida pelo Estado para proteger seus interesses.54 Com

respeito ao Brasil, pode-se afirmar que este tipo de censura ocorre desde a tomada do poder

pelos militares em 1964. Flávio Aguiar aponta o início do controle e da manipulação da

52 AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978). O exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de São Paulo e o Movimento. Bauru: EDUSC, 1999, p. 205. 53 FICO, Carlos. Além do golpe: a tomada do poder em 31 de março de 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 87. 54 AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978). O exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de São Paulo e o Movimento. Bauru: EDUSC, 1999, p. 222.

22

informação para antes mesmo do golpe.55 Por sua vez, Daniel Aarão Reis Filho defende que a

questão da censura possuía caráter prioritário na proposta das forças reacionárias, pois

[...] embora perpetrado em nome da liberdade e da democracia, o golpe, ou melhor, como veremos, o grupo mais estruturado de golpistas, tem uma proposta de silêncio, porque o seu programa, para se concretizar,exige vontade ditatorial e repele e nega uma oposição viva, atuante, às claras e legalizada.56

Para o período pós-golpe e anterior à promulgação do AI-5, pode-se destacar a

ausência de um instrumento específico para a aplicação da censura e uma intensidade menor

na sua intensidade, o que não quer dizer que não tenha ocorrido. Casos como o fechamento do

jornal Correio da Manhã demonstram que a censura da imprensa existiu quando necessária,

mas de maneira episódica. Fico defende que este aspecto deve-se a uma impressão geral de

que a duração do regime poderia ser breve.57

É consenso na bibliografia consultada a importância do Ato Institucional nº 5 como

momento chave para a compreensão da censura na ditadura militar brasileira. Chiavenato

defende que “o AI-5 impôs à imprensa a mais brutal censura da história do Brasil.

Absolutamente nada que ‘ofendesse’ o governo podia ser noticiado”.58 Na mesma linha de

argumentação segue a definição de Aquino:

O AI-5 foi um marco divisório na história de censura neste país. A partir de 13 de dezembro de 1968, a censura à imprensa viveu períodos de maior ou menor intensidade e variou seu modo de atuação de acordo com o periódico, a extensão de suas denúncias e com a intensidade de sua resistência.59

Com seu advento, a atividade da censura passou a ser sistemática, tornou-se rotineira e

obedecia a instruções específicas proveniente dos altos escalões do poder.

Quanto à vigência da censura política no país, a autora defende a existência de duas

55 AGUIAR, Flávio. Censura e cultura em Movimento. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci Carneiro (org.). Minorias silenciadas: História da Censura no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Imprensa Oficial do Estado / FAPESP, 2002, p. 404. 56 REIS FILHO, Daniel Aarão. Vozes silenciadas em tempo de ditadura: Brasil: anos de 1960. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci Carneiro (org.). Minorias silenciadas: História da Censura no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Imprensa Oficial do Estado / FAPESP, 2002, p. 435. 57 FICO, Carlos. Além do golpe: a tomada do poder em 31 de março de 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 87. 58 CHIAVENATO, Júlio José. O golpe de 64 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna, 1994, p. 123. 59 AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978). O exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de São Paulo e o Movimento. Bauru: EDUSC, 1999, p. 207.

23

fases, relacionadas com as circunstâncias históricas brasileiras. A primeira, entre 1968 a 1975,

possui um caráter amplo, agindo sobre todos os periódicos, sem distinção. Nela, o período de

1968 a 1972 vê “uma estruturação da censura, do ponto de vista legal e profissional”, com a

utilização de telefonemas e bilhetes enviados aos jornais. Já entre 1972 e 1975, ocorre uma

radicalização, com a institucionalização da censura prévia aos órgãos que ainda ofereciam

alguma resistência. Este é o momento em que ocorre um recrudescimento por parte do regime

com relação à repressão, coincidindo ainda com a discussão da sucessão presidencial que

levaria Ernesto Geisel ao comando do país, general pertencente à ala dos militares

moderados.60 Na segunda fase, entre 1975 a 1978, “a censura passa a ser mais restritiva e

seletiva: lentamente vai se retirando dos órgãos de divulgação, bem como diminuem de

intensidade as ordens telefônicas e os bilhetes às redações”, permanecendo ainda sobre

algumas publicações alternativas até chegar ao fim da censura prévia.61

Como referido acima, a operacionalização da censura se deu de duas maneiras,

conforme argumenta Fico:

Note-se, portanto, que havia dois tipos de censura à imprensa: o primeiro era chamado de “censura prévia” e pressupunha o exame, pelos técnicos do Departamento de Policia Federal, dos textos jornalísticos antes de sua proibição. Isso poderia ser feito na própria redação do periódico, na sede do DPF da cidade onde estava a redação ou em Brasília [...] O segundo tipo era a fiscalização sistemática e velada “no sentido de impedir a divulgação de notícias ou comentários contrários ao regime e às instituições”. Os dois procedimentos baseavam-se numa classificação de temas censurados que a ditadura chamava de “proibições determinadas” (grifo nosso).62

Paolo Marconi, no livro A Censura Política na Imprensa Brasileira, apresenta uma

interessante compilação de proibições determinadas recebidas por diversos órgãos de

comunicação do país, os chamados “bilhetinhos”, que tinham por característica ser na maioria

dos casos apócrifos. È importante destacar a ressalva do autor de que transcreveu os textos

encontrados na íntegra, mantendo sua linguagem telegráfica e eventuais erros gramaticais, o

que foi conservado quando utilizado neste trabalho. Com relação ao ano de 1973, objeto do

presente estudo, Marconi coletou 159 ordens, o que demonstra o caráter repressivo do

60 AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978). O exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de São Paulo e o Movimento. Bauru: EDUSC, 1999, p. 212. 61 Idem, Ibidem, p. 215. 62 FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano, vol. 4. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 190.

24

governo Médici. Entre elas pode se verificar na data de 04 de junho a seguinte proibição com

relação à própria atividade da censura:

De ordem superior, fica terminantemente proibida a publicação de críticas ao sistema de censura, seu fundamento e sua legitimidade, bem como de qualquer notícia, crítica, referência escrita, falada e televisada, direta ou indiretamente formulada contra órgãos de censura, censores e legislação censória.63

A seguir, são apresentadas as proibições referentes ao mês de setembro de 1973

relacionadas diretamente ao golpe de estado do Chile, seguidas da data registrada pelo autor:

De ordem superior, recomendo parcimônia nas notícias relativas aos fatos ocorridos no Chile, posição do Presidente Allende e evolução dos acontecimentos naquele país. 11/9 De ordem superior, fica terminantemente proibida divulgação de manchetes, notícias, comentários ou editoriais enaltecendo governo Allende, assim como de teor desairoso atual governo do Chile. Fica igualmente proibida divulgação de qualquer notícia tendenciosa acerca de contra-revolução naquele país. 14/9 De ordem superior, fica terminantemente proibida divulgação através de rádio, televisão, jornal diário e semanário, revista e outras publicações de notícias com referência a transcrição, citação, editorial e comentários sobre a situação de brasileiros subversivos, terroristas, cassados e banidos e radicados em qualquer país da América do Sul, particularmente Chile, Uruguai, Argentina e Colômbia. 17/9 De ordem superior reitero nosso rádio 116, de 16.9, proibindo terminantemente proibida divulgação através de rádio, televisão, jornal diário e semanário, revista e outras publicações de notícias com referência a transcrição, citação, editorial e comentários sobre a situação de brasileiros subversivos, terroristas, cassados e banidos e radicados em qualquer país da América do Sul, particularmente Chile, Uruguai, Argentina e Colômbia. Segundo apurou Itamaraty, não existe perseguição contra brasileiros. As notícias sobre perseguição são falsas e mentirosas, forjadas por terroristas banidos ou asilados no Chile. 18/964

Com relação à censura prévia, pode-se apontar que foi um recurso destinado

especificamente aqueles órgãos da grande imprensa que se recusavam a aceitar as ordens,

continuando a publicar matérias de temática proibida. Já para a imprensa alternativa se deu

independentemente de aceitação ou não das proibições, e sim, por sua postura de

independência, considerada perigosa pelo governo65

Como forma de melhor compreender a atividade censória deve-se levar em conta

também a repressão e a violência cometida contra jornalistas. Caparelli, ao referir-se à

63 MARCONI, Paolo. A Censura Política na Imprensa Brasileira (1968-1978). São Paulo: Global, 1980, p. 256. A mesma ordem encontra-se repetida na íntegra com datas de 26 de junho e 17 de outubro nas páginas 258 e 266 respectivamente. 64 Idem, Ibidem, p. 262-265. 65 AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978). O exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de São Paulo e o Movimento. Bauru: EDUSC, 1999, p. 224.

25

autocensura, destaca que ela “vinha também dos assassinatos, das prisões, das torturas e das

proibições de jornalistas desempenharem suas atividades, das pressões, dos fechamentos, das

explosões de bombas nos jornais e nas emissoras de rádio e de televisão”.66 Um dos mais

conhecidos casos de jornalistas mortos sob custódia de agentes repressores foi o de Vladimir

Herzog67, assassinado em 1975, fato que colaborou para a discussão pública sobre a censura,

tendo em vista que os meios de comunicação puderam noticiá-lo, ainda que de forma tímida.68

Existe divergência na bibliografia consultada a respeito da prática conhecida como

autocensura. A seguir, destacamos diferentes abordagens sobre o tema.

Para Bernardo Kucinski a autocensura foi o padrão de controle da informação durante

todo o regime militar e pressupõe uma participação ativa do jornalista na sua execução, tendo

como característica ser “um ato consciente, e com o objetivo, também consciente, de dosar a

informação que chegará ao leitor ou mesmo suprimi-la”. O autor prossegue afirmando que

“nesse sentido é uma das mais danosas formas de controle da informação porque implica o

engajamento do jornalista na proposta repressiva, fazendo dele sua primeira vítima”. 69

Já Anne-Marie Smith considera inadequada esta terminologia:

A autocensura foi imposta pelo regime, e não pelos censurados a si próprios. De 1968 a 1978, a Polícia Federal expediu proibições contra a divulgação de assuntos noticiosos específicos e vigiou a imprensa para ver se as proibições estavam sendo cumpridas. Embora esse processo fosse chamado de autocensura, a expressão era imprópria. Não obstante, a imprensa obedeceu quase sem resistência. A responsabilidade relativa pela censura fica, então, difícil de discernir.70

Carlos Fico também discorda do termo ao sustentar que a expressão “autocensura”

“não revela todos os matizes do problema”, pois a caracteriza como um comportamento de

66 CAPARELLI, Sérgio. Ditaduras e indústrias culturais, no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai (1964-1984). Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 1989, p. 50. 67Para mais casos de repressão a jornalistas ver ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1991 e KUCINSKI, Bernardo. A primeira vítima: a autocensura durante o regime militar. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci Carneiro (org.). Minorias silenciadas: História da Censura no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Imprensa Oficial do Estado / FAPESP, 2002. 68 CAPARELLI, Sérgio. Ditaduras e indústrias culturais, no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai (1964-1984). Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 1989, p. 56. 69 KUCINSKI, Bernardo. A primeira vítima: a autocensura durante o regime militar. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci Carneiro (org.). Minorias silenciadas: História da Censura no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Imprensa Oficial do Estado / FAPESP, 2002, p. 538. 70 SMITH, Anne-Marie. Um acordo forçado: o consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 41.

26

colaboracionismo, algo distinto dos procedimentos pragmáticos dos que pretendiam “evitar

problemas” ou dos que seguiam as ordens da censura por receios diversos. 71 O historiador

formula a seguinte pergunta: “a direção de um jornal que recebia a lista de temas que não

poderiam ser abordados e a transmitia à redação, acatando a censura, estava colaborando com

ela?”. Assim, acaba por descrever esta situação como uma capitulação, já que as diretorias

destas empresas possuíam somente como alternativas a censura prévia ou o fechamento do

jornal.72

71 FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano, vol. 4. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 189. 72 FICO, Carlos. Além do golpe: a tomada do poder em 31 de março de 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 94.

27

3 A COBERTURA DO GOLPE CHILENO NO CORREIO DO POVO E NA ZERO

HORA

Neste capítulo será abordado o histórico dos jornais Correio do Povo e Zero Hora,

seus contextos e características no período ditatorial, além de discutida a cobertura jornalística

de ambos a respeito do golpe de estado militar chileno em 1973.

3.1 SOBRE CORREIO DO POVO E ZERO HORA

A seguir aborda-se o histórico dos jornais Correio do Povo e Zero Hora, sua atuação

no contexto da ditadura e as características jornalísticas no período estudado.

3.1.1 Correio do Povo e Cia. Jornalística Caldas Júnior

O Correio do Povo foi fundado na capital gaúcha em 1º de outubro de 1895 por

Francisco Antonio Vieira Caldas Júnior, sergipano que havia vindo ainda criança para o Rio

Grande do Sul. Em uma época onde os jornais comprometiam-se com partidos e agremiações

políticas, o novo diário buscou identificação com a causa pública, apresentando-se, logo na

primeira edição como “órgão de nenhuma facção, que não se escraviza a cogitações de ordem

subalterna”. Para Rüdiger, “a novidade do jornal e o principal fator de seu sucesso não se

encontram na magia de seu texto ou conteúdo editorial, mas sim na postura empresarial

assumida por seu proprietário e diretor diante do negócio”, o que lhe garantiu rapidamente a

hegemonia no mercado de jornais no Estado.73

Sob a direção de Breno Caldas, é criada a Companhia Jornalística Caldas Júnior, que

chegou a contar com mais dois jornais, a Folha da Manhã e a Folha da Tarde, além da Rádio

Guaíba AM e, posteriormente da TV Guaíba e Rádio Guaíba FM. Não foi possível encontrar

dados referente a 1973, porém, José Antônio Pinheiro Machado, afirma no livro em que

registra depoimento de Breno Caldas, filho do fundador e diretor da empresa de 1935 a 1984,

que, a situação do Correio do Povo em 1972 era bastante positiva. Conforme levantamento da

Revista Exame citada pelo jornalista, neste ano o diário possuía 93 mil assinaturas pagas,

ocupando o 1º lugar em rentabilidade entre os diários nacionais e a 6º posição em lucro

73 RÜDIGER, Francisco Ricardo. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1993, p. 78.

28

líquido.74

A publicação da Caldas Júnior dominou o cenário jornalístico rio-grandense durante

décadas, superando, em distintos momentos, importantes publicações como A Federação, o

Jornal do Commercio e o Diário de Notícias, entre outros. Porém a agonia do Correio do

Povo, tomando emprestado o título das memórias de seu principal diretor, não tardaria a

chegar. Em fins da década de 1970 e início da de 1980, o diário vê sua principal concorrente,

Zero Hora, ganhar terreno, chegando a ultrapassá-lo em tiragem em 1982. Antes, em 1980, já

havia deixado de figurar no ranking dos dez maiores jornais do Brasil, sendo que, um ano

antes aparecia em nono lugar, passando o décimo posto a ser ocupado justamente pelo diário

da RBS. Rüdiger aponta que as “dificuldades financeiras decorrentes nem tanto da tardia

instalação de sua emissora de televisão e da modernização de seu parque gráfico, mas de uma

gestão empresarial ultrapassada” foram os motivos que levaram à decadência da Caldas

Júnior.75

A delicada situação do jornal teria seu momento culminante em 1984, quando o

Correio do Povo, após anos de agudas dificuldades financeiras, é obrigado a encerrar suas

atividades em 1984. Dois anos mais tarde o jornal voltaria a ser publicado, porém com novos

proprietários, figurando até os presentes dias como um dos principais veículos de

comunicação do Rio Grande do Sul.

Quando da derrubada de João Goulart, a Caldas Júnior não se ateve à preservação da

sua pretensa imparcialidade76, como demonstra Breno Caldas, ao declarar que “a Revolução

de 1964, de um certo modo, contou com a nossa participação, ou pelo menos com a nossa

simpatia”, afirmado, apesar de não possuir ligações políticas com os novos governantes, que

suas idéias “eram afinadas conosco, estávamos no mesmo caminho”.77 Quando indagado a

respeito de com eram suas relações com os presidentes militares, Caldas responde que eram

74 CALDAS, Breno; MACHADO, José Antonio Pinheiro. Meio século de Correio do Povo: glória e agonia de um grande jornal. Porto Alegre: L & PM Editores, 1987, p. 8. 75 RÜDIGER, Francisco Ricardo. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1993, p. 108. 76 Segundo Galvani, “Toda a amizade de João Goulart com o Dr. Breno e as semelhanças de vida como criadores de cavalo, ambos, como estancieiros gaúchos, não foram suficientes para impedir que a atração ideológica levasse a Cia. Caldas Júnior para o âmbito do golpe militar de 31 de março de 1964. A empresa definiu-se, logo no primeiro momento, e uma vez mais pondo de lado uma suposta e histórica imparcialidade, o Correio do Povo (e seus afluentes) apoiou a então batizada ‘Revolução Redentora”. GALVANI, Walter. Um século de poder: os bastidores da Caldas Júnior. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994, p. 410. 77 CALDAS, Breno; MACHADO, José Antonio Pinheiro. Meio século de Correio do Povo: glória e agonia de um grande jornal. Porto Alegre: L & PM Editores, 1987, p. 78.

29

“em geral, boas”, lembrando que chegou a receber uma medalha do General Médici.78

A relação amistosa com a ditadura teria sua primeira rusga quando de um incidente

com a censura em 1972. O diretor de O Estado de São Paulo, Ruy Mesquita, enviou um telex

ao Ministro da Justiça, afirmando que “sentiu vergonha de ser brasileiro” devido a uma ordem

censória atribuída ao mesmo, o qual foi também recebido pelo CP. Apesar da proibição de

veiculação, Breno Caldas decide publicar a matéria com a transcrição das críticas de Mesquita

e citando o “bilhetinho” causador de toda a crise. Como resultado, a edição do dia 20 de

setembro foi toda apreendida.79

A cobertura internacional do Correio do Povo em setembro de 1973 provinha da

agência de notícias AP e UPI, respectivamente Associated Press e United Press International.

Conforme apontado quando nos referimos à grande imprensa na época do regime militar, as

notícias referentes ao exterior possuíam grande destaque também neste diário. No período

analisado, setembro de 1973, são raras as edições em que as manchetes não são de

acontecimentos provenientes de outros países, o que se repete nas demais notícias da capa.

Também são divulgadas notícias internacionais nas seções “Noticiário”, localizada sempre nas

primeiras páginas do jornal com informações políticas, “Secções” (sic), com informações de

caráter geral, principalmente sobre cultura e economia e “Reportagem”, com matérias

oriundas de outras publicações, nacionais ou estrangeiras. Para o presente trabalho, foram

verificados também os editoriais e os artigos de colaboradores, além das já referidas partes em

que se dividia o periódico.

3.1.2 Zero Hora e Grupo RBS

Zero Hora começou a circular em Porto Alegre no dia 4 de maio de 1964, sendo

considerado o herdeiro da edição gaúcha do jornal Última Hora, fechado pela recém

instaurada ditadura militar por sua identificação com o governo deposto. ZH em seu primeiro

editorial assim definiu-se: “[...] nasce um novo jornal. Autenticamente gaúcho. Democrático.

Sem compromissos políticos. Nasce com um único objetivo: servir ao povo, defender seus

78 CALDAS, Breno; MACHADO, José Antonio Pinheiro. Meio século de Correio do Povo: glória e agonia de um grande jornal. Porto Alegre: L & PM Editores, 1987, p. 79. 79 GALVANI, Walter. Um século de poder: os bastidores da Caldas Júnior. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994, p. 421.

30

direitos e reivindicações, dentro do respeito à lei e as autoridades”.80

Embora atualmente faça parte do Grupo RBS, o diário inicialmente não pertencia à

família Sirotsky, tendo sido fundado pelo empresário Ary de Carvalho. Porém, desde 1967 os

irmãos Maurício e Jayme já detinham metade das ações da empresa, adquirindo o controle

total em abril de 1970. Os Sirotsky já estavam no ramo da comunicação já algum tempo,

Maurício se tornou acionista da Rádio Gaúcha em 1957, ano apontado pelo Grupo RBS como

de sua fundação.

De seu antecessor, Zero Hora manteve o formato tablóide, tido à época como sinônimo

de jornalismo sensacionalista e pouco confiável, ao contrário do formato standard utilizado

pelas principais publicações do país. As dificuldades no início da circulação do diário são

retratadas pela empresa da seguinte maneira:

Com atuação em rádio e TV, os Sirotsky têm a partir de então um grupo multimídia. Mas a estréia num veículo impresso é tumultuada e quase naufraga. Desde a criação, o jornal definhava ano a ano. Logo depois da compra do jornal, a preocupação em reavaliar a linha editorial e as características gráficas, eliminando até mesmo o chamativo logo azul, competia com a correria de um desafio imediato. Era preciso pagar contas e viabilizar financeiramente a empresa.81

Os novos proprietários lograram realizar uma série de reformas, tanto em seu parque

gráfico, tornando mais competitiva sua área industrial, quanto nos métodos de gestão,

adequando-se às novas condições de mercado e visando a sua expansão.82

Embora não seja o objeto desta pesquisa, é importante ressaltar a relação da RBS com

a Rede Globo de Televisão. Em 1967, a TV Gaúcha, também pertencente aos irmãos Sirotsky,

passa a ser uma afiliada da Globo que, com uma política de apoio ao regime militar, havia se

consolidado como principal empresa de comunicação do Brasil.83 Este fato é destacado pelo

Grupo RBS, que valoriza o fato de ser “uma das maiores empresas de comunicação

multimídia do Brasil e a mais antiga afiliada da Rede Globo”.84 A realização deste acordo foi

80 BERGER, Christa. Campos em confronto: a terra e o texto. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003, p. 52. 81 GRUPO RBS - Rede Brasil Sul de Comunicação. Comunicação é a nossa vida: 1957-2007. Porto Alegre: Grupo RBS, 2007. p. 68. 82 RÜDIGER, Francisco Ricardo. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1993, p. 108. 83 CAPARELLI, Sérgio. Ditaduras e indústrias culturais, no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai (1964-1984). Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 1989, p. 48. 84 GRUPO RBS – Rede Brasil Sul de Comunicações. Quem somos. Disponível em: <http://www.gruporbs.com.br/quem_somos/index.php?pagina=grupoRBS>. Acesso em: 28 out. 2010.

31

fundamental para a RBS ao possibilitar a articulação da estratégia mercadológica e editorial

de seus veículos à principal mídia do grupo, a TV Gaúcha, e, conseqüentemente, ao prestígio

que a condição de afiliada da Globo lhe conferia.85

Sérgio Caparelli afirma que “Zero Hora representou indiretamente as forças

modernizadoras e liberalizantes do modelo implantado depois de 1964” e que, “ao fim do

regime militar, a RBS já havia se tornado uma empresa moderna”, líder em seu segmento no

Rio Grande do Sul, o que indica senão um afinamento com o Estado ditatorial, pelo menos

uma convivência não beligerante.86 Guareschi e Ramos vão mais longe ao relacionar

diretamente a fundação de Zero Hora e sua ascensão com o a ditadura, chegando a chamá-la

de “cria do autoritarismo” ao apontar “similitudes históricas que não podem ser desprezadas

gratuitamente” entre os calendários de ambos.87

Não foi encontrada bibliografia sobre a censura nas redações de Zero Hora. Porém,

sua existência é revelada na análise de Anne-Marie Smith sobre o jornal alternativo

Movimento, também editado em Porto Alegre:

Um último exemplo do arquivo censurado capta muitas das características desses documentos. Trata-se de um artigo sem data preparado por um jornalista de Porto Alegre em folhas de prova do jornal Zero Hora. Evidentemente, o jornalista concluíra que o material não seria publicado naquele jornal, ou pelo menos não do jeito como fora tratado, e então o ofereceu ao Movimento, mas foi totalmente cortado pelos censores da Polícia Federal.88

Assim como seu concorrente, o Correio do Povo, Zero Hora contava em setembro de

1973 com os serviços de agências internacionais para divulgação de notícias do exterior. No

caso, a UPI e a AFP, United Press International e Agence France-Presse respectivamente. O

jornal mantém a já salientada característica geral dos principais órgãos de ampla cobertura

internacional, porém, de uma forma menos expressiva que o Correio do Povo, uma vez que

também dá destaque ao noticiário nacional em suas manchetes. Outra diferença para com o

rival da Caldas Júnior é o fato de que conta com analista e comentarista internacional

próprios, o que pode tornar mais claro algum eventual posicionamento editorial por parte do

periódico. A cobertura internacional é publicada na seção “Mundo”, havendo capas destinadas

85 RÜDIGER, Francisco Ricardo. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1993, p. 111. 86 CAPARELLI, Sérgio. Zanzibar de novas tecnologias: imprensa regional e Zero Hora. In: Temas Contemporâneos em Comunicação. São Paulo: Edicon/Intercon, 1997, p. 113. 87 GUARESCHI, Pedrinho; RAMOS, Roberto. A máquina capitalista. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 70. 88 SMITH, Anne-Marie. Um acordo forçado: o consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 114.

32

aos episódios relativos ao golpe de estado chileno somente após sua concretização.

Cabe ressaltar a ausência de editorial a respeito da situação no Chile nas 26 edições de

setembro de 1973 analisadas, o que prejudica no entendimento de sua posição sobre a questão

da tomada de poder pela força e suas implicações, uma vez que o próprio grupo proprietário

afirma que “são os jornais que expressam, em seus editoriais, a opinião da RBS sobre fatos

locais, do Brasil e do mundo”.89

3.2 A COBERTURA DOS ANTECEDENTES DO GOLPE (1º A 11 DE SETEMBRO DE

1973)

Com relação ao período escolhido que antecede o golpe chileno, ocorrido em 11 de

setembro, ou seja, do dia primeiro ao próprio dia 11, uma vez que este somente seria noticiado

no dia 12, o Correio do Povo publica diversas matérias a respeito da situação vivida no país,

onde se assistia a uma importante greve no setor de transportes. Na edição do dia 1º lê-se:

“Marinha acusa partidários de Allende em processo de rebelião”,90 com informações a

respeito da referida greve e também de atentados de extremistas. No dia seguinte, o assunto

chega à capa, noticiando além da greve, um clima de violência constante e os combates com o

grupo de extrema-esquerda MIR.91. Já na seção “Reportagem”, é reproduzida matéria do

jornal estadunidense The New York Times, relativa ao problema nos transportes no Chile.92

A partir do dia 04, tem início o emprego da palavra “golpe”, contendo no corpo do

texto a expressão “golpe branco” e a frase “a oposição favorece um golpe contra o

presidente”.93 Esta informação é importante, tendo em vista que, quando se refere à tomada

de poder em 31 de março de 1964 pelos militares no Brasil, o jornal se vale do termo

“revolução”, evitando a conotação negativa que “golpe” sugere, como demonstra o seguinte

editorial do dia 18 de setembro, a respeito da indicação de Ernesto Geisel para a sucessão

presidencial:

Desnecessário por óbvio, será por em realce o significado e a importância da palavra

89 GRUPO RBS - Rede Brasil Sul de Comunicação. Comunicação é a nossa vida: 1957-2007. Porto Alegre: Grupo RBS, 2007, p. 75. 90 “Marinha acusa partidários de Allende em processo de rebelião”. Correio do Povo, 1º set. 1973, p. 3. 91 “PDC chileno rejeita diálogo com o governo”. Correio do Povo, 2 set. 1973, capa. 92 The New York Times. “Transporte rodoviário é vital para o Chile”. Idem, p. 22. 93 “Oposição exige a renúncia de Allende”. Correio do Povo, 4 set. 1973, capa.

33

do futuro chefe da Nação no desdobramento de um processo revolucionário institucionalizado (grifo nosso) como o que passa o nosso País desde 1964 e que tão profundamente se está refletindo em seus rumos e em seu desenvolvimento.94

Por que razão a editoria do jornal utiliza-se deste recurso? Tendo em vista a

necessidade de não entrar em conflito com o governo federal, uma vez que dele depende boa

parte das receitas não só do Correio do Povo, mas da maioria dos órgãos da grande imprensa

no período, se pode acreditar que, mesmo não compactuando mais com a situação de censura

e repressão, o periódico necessita por uma questão de sobrevivência empresarial manter uma

aparência, senão de apoio, mas de neutralidade com relação ao Regime. Haja vista o incidente

já relatado sobre a apreensão do jornal em 1972.

No dia 05 verifica-se uma mudança na maneira como é retratada a possibilidade do

putsch militar. A palavra “golpe” segue sendo empregada, porém, na fala de outros

interlocutores. Assim, temos como exemplo a transcrição de parte de matéria do jornal

chileno El Siglo, identificado com o governo de Salvador Allende, com respeito a “sabotagem

e golpismo por parte da oposição”.95 O que se repete no próximo dia, quando Allende

denuncia “conspiração e golpismo” contra seu governo96, e também no dia 11, quando, em

notícia relatando a situação do país vizinho, onde mulheres manifestavam-se pedindo a

presença das Forças Armadas no poder, é reproduzida entrevista do importante dirigente

político e membro do gabinete chileno, Carlos Altamirano, utilizando-se de expressões como

“direita”, “terroristas” (de direita) e novamente “golpistas”.97

Como já mencionado, a cobertura internacional não é tão destacada em Zero Hora.

Mesmo assim, a seção “Mundo” apresenta algumas notícias a respeito da situação chilena.

Em 1º de setembro temos a matéria intitulada “Greve chilena está no fim”,98 sobre a greve no

setor de transportes a qual viria a ser novamente notícia na edição do dia 3, quando completou

40 dias.99 A mesma edição publica reportagem onde informa o apoio das forças armadas

chilenas ao presidente Allende.100

94 “Continuidade e evolução”. Correio do Povo, 18 set. 1973, p.4. 95 “Choque entre policiais e grevistas intensifica protesto contra Allende”. Correio do Povo, 5 set. 1973, capa. 96 “Santiago transforma-se em campo de batalha”. Correio do Povo, 6 set. 1973, capa, com continuação na página 24. 97 “Aumenta pressão para renúncia de Allende”. Correio do Povo, 11 set. 1973, capa. 98 “Greve chilena está no fim”. Zero Hora, Porto Alegre, 1º set. 1973, p. 10. 99 “Problemas internos não deixam Allende comparecer à cúpula dos não-alinhados”. Zero Hora, Porto Alegre, 3 set. 1973, p. 12. 100 “Socialismo democrático tem apoio”. Op. cit.

34

O dia 4 assiste ao início da escalada de violência no Chile nas páginas do diário, com

relatos de luta armada entre radicais de esquerda e direita101, de pedidos de renúncia do

presidente102 e da “situação caótica em que vive o país”, conforme declaração da associação

de engenheiros local.103

O emprego da palavra “golpe” chega às páginas do periódico no dia 5 de setembro,

onde em matéria sobre apoio a Allende nas comemorações do terceiro ano de governo, é

citada manchete do jornal de esquerda El Siglo intitulada, “Direita: 3 anos de golpismo e

sabotagem”, a respeito de militar exilado por conspirar.104 O que se repete no dia 10, na

referência à possibilidade de concessões por parte do presidente, em um “esforço para evitar

um golpe militar ou uma eventual guerra civil”.105

Como entender a utilização as notícias de termos e assuntos tão presentes nas ordens

proibitórias recebidas nas redações dos jornais? Em hipótese alguma Correio do Povo e Zero

Hora poderiam usar expressões como “golpe”, “ditadura” e aquelas pertinentes à repressão

política, como “assassinatos” e “torturas”, para falar da situação brasileira. Podemos aqui

entender que, mascarando a realidade nacional ao evitar a carga negativa que seria denunciar

seu já mencionado caráter repressivo e ilegítimo, os periódicos, ao transferir para o Chile as

críticas quanto à sua natureza golpista, se aproveitam de uma lacuna deixada pela censura

para poder manifestar-se quanto à situação vivida no Brasil. Esta questão é discutida aqui,

mas prossegue como uma constante nas demais matérias analisadas que seguem.

3.3 A COBERTURA DO GOLPE (12 A 18 DE SETEMBRO DE 1973)

A edição do Correio do Povo do dia 12 de setembro leva estampada na capa em letras

garrafais a notícia fatídica: “Golpe militar leva Allende ao suicídio”. Seguem pequenas notas

com títulos como “Vigilância”, a respeito do emprego da censura pelos conspiradores,

“Resistência”, onde se lê que Allende havia denunciado que “grupos fascistas tramavam o

golpe”, “Promessa”, com o texto “os líderes militares ao anunciarem o golpe”, e ainda

101 “Luta política chilena coloca Allende em nova encruzilhada”. Zero Hora, Porto Alegre, 4 set. 1973, p. 13. 102 “Gás e tiros na passeata chilena”. Zero Hora, Porto Alegre, 6 set. 1973, p. 12. 103 “Problemas no Chile aumentam”. Zero Hora, Porto Alegre, 9 set. 1973, p. 13. 104 “Apoio a Allende no dia em que oposição exige uma renúncia”. Zero Hora, Porto Alegre, 5 set. 1973, p. 13. 105 “Allende ainda tenta dialogar”. Zero Hora, Porto Alegre, 10 set. 1973, p. 14.

35

“Estrangeiros são intimidados”, entre eles brasileiros, por parte dos militares.106 O tema da

censura prossegue com a notícia na página 2 de que “Jornal ou rádio que der notícia não

oficial poderá ser destruído”. Como já visto, a imprensa estava proibida de denunciar a

existência da censura no Brasil e deveria ter “parcimônia” na publicação de reportagens sobre

o golpe no Chile, não sendo permitida a menção da perseguição de “subversivos” brasileiros.

Outra matéria discorre sobre a repercussão do golpe no Brasil. Nela, o Correio do

Povo coloca declaração do Senador carioca Danton Jobim de “que nunca se regozijou com a

queda de um governo legitimamente eleito pelo povo”.107 Esta afirmação é significativa, pois

não havia ocorrido o mesmo em nosso país em 1964? No mesmo sentido lê-se no dia 13 a

seguinte frase do ex-presidente argentino Juan Domingos Perón: “É uma fatalidade para o

continente que um governo eleito pelo povo seja deposto por forças militares”.108

Esta edição leva na capa “Ordem no Chile é fuzilar quem resistir”. Destaca-se esta

manchete, tendo em vista que, no Brasil, o governo militar buscava evitar que notícias

relativas à violência contra opositores fossem divulgadas, como se percebe em proibições

determinadas como esta registrada com data de 18 de fevereiro de 1973: “De ordem superior

fica proibida divulgação pela imprensa qualquer referência morte subversivo e assuntos

ligados ação terrorismo e movimento subversão”.109 Outra notícia onde pode ser traçado um

paralelo com o Brasil foi publicada na capa do dia 14 e faz menção ao fechamento do

congresso por parte da recém empossada Junta Militar, tal qual já havia ocorrido em nosso

país.110

Já a edição do dia 18 é carregada de termos desfavoráveis. Na manchete da capa o

texto do periódico fala em “sangrento golpe de estado que depôs o governo do presidente

Salvador Allende”,111 já na matéria seguinte cita “manifestações de repúdio ao golpe militar”,

ocorridas na Argentina.112 Na página 3, temos um dramático trecho de entrevista de exilado

chileno no México, afirmando que “[...] para o Chile não há soluções reais... não existe

106 “Golpe militar leva Allende ao suicídio”. Correio do Povo, 12 set. 1973, capa. 107 “Embaixador chileno acompanhou pelo rádio os acontecimentos”. Correio do Povo, 12 set. 1973, p. 8. 108 “Perón afirma que morte de Allende foi fatalidade e acusa Washington”. Correio do Povo, 13 set. 1973, capa. 109 MARCONI, Paolo. A Censura Política na Imprensa Brasileira (1968-1978). São Paulo: Global, 1980, p. 250. 110 “Junta fecha o congresso após receber apoio dos maiores partidos políticos”. Correio do Povo, 14 set. 1973, capa. 111 “Junta chilena denuncia plano contra militares”. Correio do Povo, 18 set. 1973, capa. 112 “Acontecimentos do Chile poderão fortalecer a posição de Perón”. Idem, capa.

36

nenhuma garantia... há um povo aterrorizado em meio a um estado de sítio, sem liberdade”.113

Eis que na Zero Hora chega no dia 12 a notícia bombástica: “Allende foi derrubado e

se suicidou”, assim resumida pelo jornal na chamada de capa:

Rebelião militar derrubou o governo marxista de Salvador Allende no Chile, após uma crise que vinha se agravando desde 1972. Com o Palácio cercado e bombardeado o governo rendeu-se. Repórteres confirmavam pouco depois o suicídio do presidente deposto. Junta militar promete agir “sem contemplação” para restabelecer a ordem.114

A partir desta data, é aberta uma subseção dentro de “Mundo” chamada “Chile”, a qual

se prolongava por mais de uma página, se subdividindo em I, II e até III. Assim, se

apresentam textos que discorrem a respeito do “golpe de estado militar contra o governo civil

de Allende”, salientando o fato de que desde 1931 “o país desfrutou de uma sucessão de

governos constitucionais que o tornaram uma das democracias mais estáveis da América

Latina”115 e fornecendo um breve histórico do momento chileno informando que “a partir de

agosto de 1972 a crise começou a se agravar até a rebelião que ontem acabou com a

experiência de um governo marxista eleito no continente”.116 Zero Hora analisa ainda as

possibilidades da resistência, lançando mão da expressão “putsch militar” e afirmando que “o

golpe militar” foi “conduzido até agora com brutal e férrea vontade”.117

Sobre o 11 de setembro chileno, o Grupo RBS assim se refere no livro por ocasião dos

seus 50 anos:

Em 12 de setembro de 1973, mais uma notícia mundial é manchete em Zero Hora e em nenhum outro jornal do país: “Allende foi derrubado e se suicidou”. O golpe que levara o presidente chileno Salvador Allende ao suicídio deveria ser noticiado sem destaque, por determinação prévia da censura imposta à imprensa pelo regime militar. Foi o que fizeram os outros jornais. ZH desobedeceu à ordem, como ocorreria tantas outras vezes. Arranjou um incômodo com o governo mas foi construindo sua credibilidade.118

A pretensa exclusividade afirmada nestas linhas é desmentida, pois, como já visto,

pelo menos o Correio do Povo também noticiou a queda do presidente Allende no dia

seguinte ao evento.

113 “México organiza ponte aérea para transportar refugiados chilenos”. Idem, p. 3. 114 “Allende foi derrubado e se suicidou”. Zero Hora, Porto Alegre, 12 set. 1973, capa. 115 “Rebelião derruba governo e o presidente se suicida”. Idem, p. 14. 116 Chile II. Idem, p. 15. 117 “As chances da resistência”. Idem. 118 GRUPO RBS - Rede Brasil Sul de Comunicação. Comunicação é a nossa vida: 1957-2007. Porto Alegre: Grupo RBS, 2007. p. 70.

37

Com o dia 13 voltam as notícias sobre repressão e violência, como evidencia a

manchete de capa: “Crise chilena: mais de 500 já morreram”.119 Já a seção especial “Chile”

estampa ameaçadora mensagem dos novos governantes: “Junta militar adverte: morte sumária

para os resistentes”, contendo em seu texto a informação de que a mesma “pôs em vigor uma

rígida censura”,120 ou ainda na reprodução de notícia da agência TASS da URSS, União das

Repúblicas Socialistas Soviéticas, onde são empregados termos que dificilmente seriam

utilizados por Zero Hora em uma matéria de sua autoria:

[...] os reacionários, pelo caminho da violência brutal, depuseram o governo legítimo que havia chegado ao poder pela via democrática. [...] Quando a democracia se levanta no caminho de seus interesses, utilizam a franca violência, o terror, os golpes militares e os assassínios.121

Esta edição é de extrema importância para esta pesquisa, pois, além de “golpe”,122 leva

pela primeira vez o termo “ditadura”, como na acusação de Perón, que chama o novo governo

de “ditadura militar”123 ou na notícia “Nas principais capitais do mundo houve manifestações

contra o golpe militar”, com a informação de que na Inglaterra manifestantes gritavam

“abaixo a ditadura”.124

Nos dias 14 e 15 segue a caracterização por Zero Hora da tomada do poder no Chile

como um “golpe militar”, empregando a expressão tanto no título de suas notícias quanto no

corpo do texto,125 além de alguma reflexão sobre a situação do país, ao referir-se e a repúdio

de estudantes uruguaios aos golpistas126 e a Salvador Allende como “primeiro presidente

marxista eleito livremente no hemisfério ocidental”.127 Cabe destacar ainda outras notícias

sobre a repressão com títulos agressivos como “Operação limpeza contra a oposição”, sobre a

perseguição à resistência,128 e a manchete de capa “Há 5.200 presos no Chile”, onde o termo

“golpe militar” novamente está presente.129

119 “Crise chilena: mais de 500 já morreram”. Zero Hora, Porto Alegre, 13 set. 1973, capa. 120 “Junta militar adverte: morte sumária para os resistentes”. Idem, p. 12. 121 “Moscou rompe o silêncio e acusa”. Idem, p. 14. 122 “Continua a resistência ao golpe”. Idem. 123 “Perón acusa os Estados Unidos”. Idem, p. 13. 124 “Nas principais capitais do mundo houve manifestações contra o golpe militar”. Idem. 125 “Golpe não é tranqüilo: Prats comanda a resistência”. Zero Hora, Porto Alegre, 14 set. 1973, p. 12. 126 “Estudantes uruguaios repudiam o movimento que derrubou Allende”. Idem, p. 14. 127 “Chile”. Zero Hora, Porto Alegre, 15 set. 1973, p. 2. 128 “Operação limpeza contra a oposição”. Idem, p. 3. 129 “Há 5200 presos no Chile”. Zero Hora, Porto Alegre, 18 set. 1973, capa.

38

Ao se traçar comparativos entre os dois órgãos, verifica-se que ZH procura veicular

aos seus leitores as razões que levaram ao golpe, esclarecendo a respeito da delicada situação

do Chile que, por tratar-se de um governo de esquerda acabou sendo vítima de forças

reacionárias. Contudo, o Correio do Povo, apesar da quantidade maior de matérias, não chega

a analisar de forma mais profunda a questão, limitando-se à reprodução das notícias recebidas

das agências internacionais. Quanto ao emprego de assuntos normalmente não permitidos

pelas “proibições determinadas” brasileiras, ambos continuam utilizando-os, deixando claro o

caráter extremamente repressivo e violento dos golpistas chilenos.

3.4 A COBERTURA DO PÓS-GOLPE (19 A 30 DE SETEMBRO DE 1973)

Podemos caracterizar as edições do Correio do Povo a partir do dia 19 até o final de

setembro como parte de um momento pós-golpe, tendo em vista as notícias mencionarem o

fato de a Junta Militar já estar em fase de institucionalização, com pouca probabilidade de

uma reviravolta na situação por parte dos partidários do governo deposto, como demonstra a

manchete “Junta chilena esperava resistência maior”.130 Os termos de conotação negativa e de

presença constante nas ordens de proibições determinadas seguem aparecendo, como a

referência à censura no corpo do texto de matéria sobre o papel dos Estados Unidos no golpe,

“Ao mesmo tempo, soube-se que 11 poetas norte-americanos, artistas e professores pediram

hoje a imediata suspensão da censura sobre as notícias no Chile”,131 ou no título “Uruguai

aumenta censura à imprensa” em pequena nota de capa sobre fechamento de jornais de

esquerda e de direita neste país.132

Da mesma forma, é mencionado que “grande número de jornalistas estão

desaparecidos”, onde, mais uma vez, se pode apontar semelhanças entre Brasil e Chile, em

um assunto também proibido no âmbito nacional pela censura brasileira, como demonstra a

seguinte proibição de 22 de outubro de 1973: “De ordem superior fica terminantemente

proibida a divulgação de qualquer notícia referente a prisões de elementos subversivos, entre

os quais estão incluídos repórteres e jornalistas”.133 Ainda é realçado o já mencionado caráter

antidemocrático dos dois governos quando o texto do periódico se refere à “uma declaração

130 “Junta chilena esperava resistência maior”. Correio do Povo, Porto Alegre, 19 set. 1973, capa. 131 “Deputado quer inquérito sobre o papel dos EUA no golpe chileno”. Idem, p. 2. 132 “Uruguai aumenta censura à imprensa”. Correio do Povo, Porto Alegre, 20 set. 1073, capa. 133 MARCONI, Paolo. A Censura Política na Imprensa Brasileira (1968-1978). São Paulo: Global, 1980, p. 266.

39

de repúdio ao golpe militar” pelos congressistas argentinos134 e à “queda do governo

constitucional de Allende”.135

Chama a atenção que os membros da Junta Militar chilena pareciam não ter a mesma

preocupação de seus congêneres brasileiros quanto à caracterização da tomada do poder em

seu país como um golpe de estado, como demonstra a fala contida no seguinte texto: “O

general Eduardo Cano, presidente do Banco Central do Chile, declarou que o governo do

presidente Salvador Allende fora deposto por um golpe militar “a fim de desviá-lo do rápido

curso que seguia para o caos econômico, político e social”.136 Nota-se que o dirigente chileno

não hesitou em afirmar que o governo do qual participa lançou mão de um golpe de estado

para chegar ao poder.

A repercussão de notícias oriundas de outras partes do mundo permitiu ao Correio do

Povo uma forte denúncia da situação chilena, como na menção de documento da ADN,

agência oficial de notícias da Alemanha Oriental, onde se afirma que “está sendo conduzido

um terror sangrento contra os trabalhadores e partidários do governo constitucional”.137 Já

uma nota do governo suíço “declara que em virtude da atuação diplomática do país, não pode

imiscuir-se em assuntos internos do Chile mas “reconhece a irritação do povo suíço em

virtude da deposição de um governo livremente eleito pelo povo”.138 Por sua vez em

“Secções”, são publicadas notícia do jornal mexicano Excelsior sobre a morte do poeta Pablo

Neruda com o título “Morreu sem conhecer os últimos horrores”,139 e nota com assinatura da

AP sobre o acontecimento: “Não houve representantes do governo, embora a Junta Militar

que derrubou Allende, num sangrento golpe há duas semanas, tenha divulgado declaração em

homenagem à sua memória”.140 Exceção a esta postura crítica nas matérias de outros

periódicos é uma defesa do golpe e crítica do socialismo chileno e do governo Allende

assinada pelo jornal inglês The Economist, intitulada “O fim de Allende”.141

134 “Situação venezuelana dividida pelos acontecimentos chilenos”. Correio do Povo, Porto Alegre, 20 set. 1973, p. 2. 135 “Argentina normaliza relações com Chile apesar de protestos”. Correio do Povo, Porto Alegre, 21 set. 1973, p. 2. 136 “Chile pede ajuda ao FMI para evitar falência”. Correio do Povo, Porto Alegre, 28 set. 1973, capa. 137 “URSS rompe suas relações com o Chile”. Correio do Povo, Porto Alegre, 22 set. 1973, capa. 138 “Embaixada suíça em Santiago dá asilo a todos que desejarem”. Correio do Povo, Porto Alegre, 25 set. 1973, p. 2. 139 “Morreu sem conhecer os últimos horrores”. Idem, p. 15. 140 “Manifestações pró-Allende no sepultamento de Neruda”. Correio do Povo, Porto Alegre, 26 set. 1973, p. 15. 141 The Economist. “O fim de Allende”. Correio do Povo, Porto Alegre, 30 set. 1973, p. 49.

40

Dentro do mesmo contexto de críticas severas através do uso de interlocutores

externos ao jornal encontram-se duras acusações ao regime chileno no seguinte texto: “A filha

de Salvador Allende, Maria Isabel, partiu hoje do México para Helsinque qualificando o

general Augusto Pinochet, presidente da Junta, de “o Judas das Américas”. Nele, Isabel

afirma: “Denunciarei diante do mundo os homicídios e as violações dos direitos humanos que

os fascistas golpistas cometeram”.142 Acusações que se repetem pela voz do presidente de

Cuba, Fidel Castro, com o uso dos mesmos termos (golpistas e fascistas).143

“Independência do Chile sem festas”.144 A capa de Zero Hora do dia 19 de setembro,

dá indícios ao leitor do nível de brutalidade visto no país em um momento em que a Junta

Militar afirma já ter o controle da situação, descrita nas palavras de um diplomata holandês,

como de uma "violência inimaginável”.145 Violência, aliás, que dá a tônica das reportagens do

periódico até o final do mês, com títulos como “Chile fuzila terroristas”,146 “Chile sob lei

marcial executa esquerdistas”,147 “Guerrilheiros morrem ao tentar fugir”,148 “Mais três

chilenos fuzilados”149 e “Ex-Governador foi fuzilado no Chile”.150 Mais uma vez temas

proibidos de publicação pelos censores brasileiros aparecem para se referir ao caso externo.

Para melhor entendimento, seguem proibições relacionadas à violência reunidas por

Marconi para o ano de 1973:

Por solicitação Comando Militar área ou determinações esta Direção Geral, jornais podem ser proibidos publicar notícias referentes operações contra subversão exclusivamente. 8/2 De ordem superior, fica proibida divulgação pela imprensa qualquer referência morte subversivo e assuntos ligados ação terroristas e movimento subversão. 18/2 De ordem superior, fica proibido aos jornais diários, semanários, revistas, rádio e TV noticiar: morte, prisão, detenção ou quaisquer atividades elementos subversivos, em qualquer circunstância, a não ser quando houver autorização específica e direta do Diretor-Geral do Departamento de Polícia Federal. A presente ordem tem o fim de evitar a quebra de sigilo ou exploração em propaganda sobre fatos desta natureza. 10/4 Está proibida a publicação de ocorrência de tiroteio na rua da Mooca (SP)

142 “Chile poderá iniciar negociações para indenizar empresas dos EUA”. Correio do Povo, Porto Alegre, 29 set. 1973, p. 2. 143 “Castro repele acusações de intervenção cubana no Chile”. Correio do Povo, Porto Alegre, 30 set. 1973, p. 2. 144 “Independência do Chile sem festas”. Zero Hora, Porto Alegre, 19 set. 1973, capa. 145 “Diplomata holandês fala da violência”. Zero Hora, Porto Alegre, 21 set. 1973, p. 13. 146 “Chile fuzila terroristas”. Zero Hora, Porto Alegre, 23 set. 1973, capa. 147 “Chile sob lei marcial executa esquerdistas”. Idem, p. 12. 148 “Guerrilheiros morrem ao tentar fugir”. Zero Hora, Porto Alegre, 25 set. 1973, p. 12. 149 “Mais três chilenos fuzilados”. Zero Hora, Porto Alegre, 27 set. 1973, p. 12. 150 “Ex-governador foi fuzilado no Chile”. Zero Hora, Porto Alegre, 28 set. 1973, p. 13.

41

com morte de três terroristas. 14/6 De ordem superior, reitero proibição de quaisquer notícias, comentários, referências, anúncios e outras matérias pagas ou não, sobre prisão ou morte de terroristas, cassados e bandidos. 13/11 De ordem superior, reitero proibição de qualquer notícia, comentário, referência, transcrição ou outro tipo de matéria, através da imprensa escrita, falada e televisada, relativa a atividades de subversivos e terroristas em qualquer parte do território nacional, bem como noticiário sobre prisão, morte ou detenção de militantes, suspeitos simpatizantes e ativistas de movimentos subversivos, sem a devida autorização específica do DPF. 30/11151

As edições de 22, 26 e 27 de setembro abordam assuntos a respeito dos quais se

podem apontar semelhanças com o nosso país, muito embora este aspecto seja negado na fala

de Augusto Pinochet reproduzida por Zero Hora, onde o ditador afirma que não se

assemelhará a outros governos “como o do Brasil, por exemplo”, na fala de ZH, “pois este é

um movimento nacional que se atem às leis chilenas (civis) e militares”. Esta matéria é

fundamental para esta pesquisa, uma vez que é utilizada a expressão “ditadura militar”

(grifo do original) no texto do próprio jornal, sem a utilização de algum interlocutor externo

como já havia acontecido.152 Outros temas de interesse brasileiro publicados neste período

foram a “Imprensa sob censura”,153 notícia de plantão, embora com referência ao governo

argentino, e o fechamento do Congresso e de partidos políticos no Chile em nome da

“segurança nacional”.154

A análise deste último período permite verificar uma característica já sinalizada

também nos momentos anteriores, o uso de interlocutores externos ao texto do jornal para a

utilização de severas críticas à nova ditadura chilena. Como visto, o Correio do Povo faz uso

da ADN, agência de notícias da Alemanha Oriental, de nota do governo suíço, do jornal

mexicano Excelsior, além de Isabel Allende e Fidel Castro, para mencionar a Junta Militar

chilena como “fascista” e “golpista”, responsável por “terror sangrento” e por “horrores”,

além de Pinochet como “o Judas das Américas”. Por sua vez, ZH fala em “violência

inimaginável”, conforme um diplomata holandês.

O emprego de expressões e frases extremamente negativas a respeito do Chile

(lembrando sempre as já referidas similaridades com o nosso país) através da citação desses

interlocutores e personagens foi um dos fatores que permitiram a cobertura do golpe de estado

151 MARCONI, Paolo. A Censura Política na Imprensa Brasileira (1968-1978). São Paulo: Global, 1980, p. 249-269. 152 “Pinochet põe partidos marxistas fora da lei”. Zero Hora, Porto Alegre, 22 set. p. 10. 153 “Imprensa sob censura”. Zero Hora, Porto Alegre, 26 set. 1973, p. 2. 154 “Chile fecha congressos e partidos”. Zero Hora, 27 set. 1973, p. 12.

42

chileno da forma mais verdadeira possível, pois possibilitou aos jornais arriscar-se menos a

repreensões dos censores, uma vez que estavam apenas reproduzindo essas fontes e não

necessariamente emitindo juízo próprio. Em outras palavras, sem esse recurso não seria

minimamente viável descrever a onda de violência cometida por Pinochet e seus seguidores,

pois permitiram empregar um tom mais humano ao conflito, ao invés da frieza dos números

sobre as vítimas.

3.5 ESPAÇOS DE OPINIÃO E MATÉRIAS ASSINADAS

Esta pesquisa analisa em separados os editoriais, artigos e comentários presentes nos

dois jornais por entender ser possível identificar nesses espaços algum posicionamento mais

claro por parte de ambos.

3.5.1 “Serenidade Ante a Tragédia”: Editoriais e Artigos Assinados no Correio do Povo

No período analisado, encontra-se apenas um editorial relacionado à situação de nosso

país vizinho. Em 15 de setembro o Correio do Povo se manifesta a favor do reconhecimento

da Junta Militar pelo Brasil e torce para que “quando possível, se converta o novo governo em

governo de direito”. O jornal porém, lamenta a forma como ocorreu a tomada do poder:

“Certo é que infelizmente a perturbação da ordem, o levante, o golpe de Estado, ainda não se

separaram dos costumes políticos da América Latina”.155 Interessante é destacar que, como já

visto, à época do golpe de estado militar brasileiro o Correio do Povo não teve a mesma

preocupação, pois apoiou abertamente sua realização.

Outro espaço de opinião é apresentado na seção “Colaboradores”. Nele se encontram

três artigos assinados por Gustavo Corção, “pensador católico e de matriz nitidamente

conservadora” que, ironicamente, chegou a ter artigos censurados em sua colaboração para o

jornal O Estado de São Paulo.156 Corção demonstrou estar informado com os assuntos

pertinentes ao Chile, pois já em 2 de setembro escreve comparando-o com o Brasil de João

Goulart e apontando para a necessidade de intervenção do exército contra os “inimigos”

infiltrados.157 Após o golpe, Corção volta a tratar do assunto, afirmando no dia 20, que “o

155 “Serenidade ante a tragédia”. Correio do Povo, Porto Alegre, 15 set. 1973, p. 4. 156 AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978). O exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de São Paulo e o Movimento. Bauru: EDUSC, 1999, p. 87. 157 Gustavo Corção. “Pelo Mundo”. Correio do Povo, Porto Alegre, 2 set. 1973, p. 4.

43

caso do Chile teve várias feições semelhantes ao nosso” e defendendo ambos os regimes.158

Por último, consta seu artigo de 23 de setembro, onde pratica um elogio da atividade militar

tendo em vista os acontecimentos do Chile.159 Também em defesa do golpe chileno, se

encontra no dia 18 a opinião de Dinah Silveira de Queiroz, porém com tom mais comedido

que o de Gustavo Corção.160 Cabe ressaltar que ambos são colaboradores assíduos do jornal,

possuindo diversos artigos opinativos para o Correio do Povo durante o período estudado.

Quanto ao editorial do CP, verifica-se que o diário, apesar de lamentar o ocorrido, não

põe em discussão o caráter antidemocrático que todo golpe de estado inerentemente possui,

pois defende o reconhecimento imediato da Junta pelo governo brasileiro. Registra, contudo,

uma crítica, quando se manifesta a respeito dos constantes golpes em nosso continente, tendo

o cuidado de não mencionar nenhum país em especial, o que sustenta a já manifestada

afirmação da necessidade de preservar uma relação não beligerante com o governo federal,

tendo em vista possíveis perdas de receita ou até uma rigidez maior por parte dos censores. Já

com relação aos colaboradores, é evidente seu caráter conservador ao defender sem ressalvas

o golpe chileno em nome do anticomunismo. Porém, não deixam transparecer nenhuma

interferência por parte da editoria do Correio do Povo, manifestando apenas as suas opiniões.

3.5.2 “Junta Militar Manobra no Topo de uma Montanha Explosiva”: Comentários na Zero Hora

Como já referido, Zero Hora não dedica nenhum editorial à questão chilena nas

edições analisadas. Possui, porém, dois espaços para matérias assinadas onde ela aparece, a

análise de Olyr Zavaschi, editor de assuntos internacionais do jornal, e o espaço denominado

“Especial”, com artigos sobre temas relacionados ao exterior de autoria do analista

internacional Newton Carlos, ambos com participação permanente na seção “Mundo” do

diário.

Para o mês de setembro de 1973 encontram-se quatro comentários assinados por Olyr

Zavaschi com relação ao Chile. No primeiro, do dia 9, portanto anterior ao golpe, o editor fala

com muita propriedade sobre a situação chilena, “um governo marxista sul-americano”,

mencionando a participação do serviço secreto dos EUA e das “estruturas capitalistas” contra

158 Gustavo Corção. “Será preciso mais?”. Correio do Povo, Porto Alegre, 20 set. 1973, p. 2. 159 Gustavo Corção. “As virtudes militares”. Correio do Povo, Porto Alegre, 23 set. 1973, p. 2. 160 Dinah Silveira de Queiroz. “O Chile depois de Allende”. Correio do Povo, Porto Alegre, 18 set. 1973, p. 4.

44

o governo de Salvador Allende e discutindo a respeito da possibilidade de se chegar ao

socialismo por vias pacíficas (como objetivava o governo deposto). 161

Os comentários seguintes encontram-se em “Mundo” na nova seção “Chile” e foram

realizados nos primeiros dias após o golpe pelo agora mencionado “enviado especial da

RBS”. No dia 13, Zavaschi fala sobre pichações em Santiago com a palavra “Jacarta”, capital

da Indonésia, onde ocorreu o massacre de partidários da esquerda após o golpe militar do

país, das dúvidas sobre os caminhos que os militares irão adotar no Chile e discute ainda o

“modelo brasileiro” de governo e o fim da “utopia no Chile”.162 Já no dia seguinte, no artigo

“Quatro mil mortos”, Zavaschi realiza uma análise geopolítica do conflito e discorre sobre o

suposto envolvimento da CIA (órgão de inteligência dos EUA) na tomada de poder.163

O último comentário, encontrado no dia 15, com o título “Junta Militar manobra no

topo de uma montanha explosiva”, possui um tom mais crítico e agressivo a respeito do “que

provavelmente ficará na história como o mais sangrento, determinado e inflexível golpe de

estado da América”, analisando ainda o que chama de “mentalidade nazista na ultra-direita”

chilena.164

Por sua vez, o jornalista Newton Carlos, discute a situação chilena por oito ocasiões,

porém, aborda assuntos pertinentes a este trabalho somente nas edições dos dias 12 e 13,

sendo que as demais tratam de temas ligados à economia ou geopolítica de uma forma mais

ampla. Na primeira, discute sobre a posição das Forças Armadas, empregando o termo

“golpe” para referir-se a queda de Allende.165 Na segunda, afirma, a respeito do “fim da via

chilena para o socialismo”, que esta opção é inviável sem o consentimento da oposição

política.166

A participação de Olyr Zavaschi enriqueceu a cobertura de ZH. O editor demonstrou a

preocupação em contextualizar o acontecimento, denunciar os excessos dos golpistas e

apontar possíveis desfechos para a situação do país. Talvez o fato de tratar-se do editor de 161 Olyr Zavaschi. “Chile, empate intranqüilo”. Zero Hora, Porto Alegre, 9 set. 1973, p. 14. 162 Olyr Zavaschi. “Comentário de Olyr Zavaschi, enviado especial da RBS”. Zero Hora, Porto Alegre, 13 set. 1973, p. 12. 163 Olyr Zavaschi. “Quatro mil mortos”. Zero Hora, Porto Alegre, 14 set. 1973, p. 12. 164 Olyr Zavaschi. “Junta Militar manobra no topo de uma montanha explosiva”. Zero Hora, Porto Alegre, 15 set. 1973, p. 3. 165 Newton Carlos. “O fim da neutralidade”. Zero Hora, Porto Alegre, 12 set. 1973, p. 16. 166 Newton Carlos. “Algo inviável”. Zero Hora, 13 set. 1973, p. 13.

45

assuntos internacionais do jornal, tenha lhe permitido desempenhar uma postura mais

investigativa e independente, o que pode explicar suas denúncias da brutalidade da repressão

e da “mentalidade nazista” na direita chilena. Por outro lado, se pode inferir que, por tratar-se

de jornalista experiente e de atuação em âmbito nacional, Newton Carlos tenha tomado um

cuidado maior ao escolher as palavras e assuntos adequados para discorrer a respeito do

Chile. Esta conduta evitaria uma exposição demasiada a repreensões por parte dos censores

brasileiros, o que lhe traria imensos prejuízos, uma vez que escrevia para diversos jornais

.

46

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os militares haviam chegado ao poder no Brasil em 1964, com um golpe de estado

contra o presidente João Goulart, que, embora tenha assumido a presidência devido à renúncia

de seu antecessor, tratava-se de um governo legítimo e constitucionalmente empossado. Antes

mesmo de sua institucionalização, no seio do poder militar ocorreu uma forte disputa entre os

setores dos moderados, vinculados ao general Castelo Branco, e dos radicais, identificados

com Costa e Silva e chamados de linha dura. Esta contenda persistiu até a volta ao sistema

democrático. Pode-se identificar até o momento abordado neste trabalho uma vitória parcial

da linha dura, cujo ápice foi a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), instrumento que

permitiu um endurecimento maior da ditadura.

Em 1973 o regime militar do Brasil encontrava-se num período extremamente

repressivo. Sob a presidência do general Emílio Garrastazu Médici, o país assistia momentos

de dura perseguição política contra os opositores (caracterizados como subversivos). Esta face

foi relativizada por uma ampla utilização da propaganda por parte do governo, aproveitando-

se das aparentes benesses proporcionadas pelo “milagre econômico” na economia nacional.

Por sua vez, o Chile foi palco de uma interessante experiência conhecida por “via

chilena para o socialismo” depois da vitória de Salvador Allende nas eleições presidenciais

em 1970. À frente da coalizão política Unidade Popular, formada por diversos partidos de

esquerda, Allende buscou implementar um programa de reformas sociais e nacionalização das

riquezas minerais do país, o que desagradou de imediato as camadas privilegiadas da

sociedade chilena e os interesses de multinacionais estadunidenses.

Após constantes crises, em 11 de setembro de 1973 um brutal golpe de estado põe fim

ao governo da Unidade Popular e instaura uma ferrenha ditadura militar, sendo que na ocasião

47

morre Salvador Allende. Liderada pelo general Augusto Pinochet, a Junta Militar persegue e

executa milhares de partidários de Allende, fecha todos os partidos políticos e põe em vigor a

censura aos órgãos de comunicação.

Apesar da extrema onda de violência no país vizinho, o governo brasileiro reconhece a

Junta chilena poucos dias após o golpe. Ao longo da pesquisa foram apontadas diversas

características comuns aos governos dos dois países, como sua ilegitimidade, seu caráter

antidemocrático e repressivo, além das constantes violações aos direitos humanos pelas

práticas da tortura, de assassinatos e de seqüestros. Cabe ressaltar ainda a censura presente

nos planos de ambas as ditaduras.

Quanto à censura à grande imprensa no Brasil, objeto do presente estudo, foi

distinguido duas diferentes formas para sua operacionalização. A censura prévia foi realizada

em órgãos que assumiam postura de resistência contra as restrições na liberdade de imprensa

e de crítica ao regime, onde era necessário o exame por parte de censores do material antes de

ser veiculado. Já as “proibições determinadas” eram executadas através de ordens passadas

por telefone ou “bilhetinhos” às redações jornalísticas, normalmente sem especificar a autoria,

contendo assuntos e notícias que não poderiam ser publicadas. Verificou-se ainda a

divergência na bibliografia consultada a respeito da prática conhecida por “autocensura”, ou

seja, de uma censura realizada no interior das redações pelos próprios jornalistas e pela

direção dos órgãos de comunicação como forma de evitar punições governamentais.

Como visto, o jornal Correio do Povo contava à época com longa trajetória na

imprensa gaúcha, gozando de boa situação financeira e tiragem no início da década de 1970.

Já a Zero Hora, embora mais recente, já estava consolidada no mercado editorial do estado,

sendo responsável por inovações técnicas e editoriais que lhe permitiram se tornar o principal

jornal do Rio Grande do Sul, no início da década de 1980. Tendo sido discutido o histórico e o

contexto dos dois diários no recorte temporal desta pesquisa, foram identificadas as

características de cunho jornalístico, como o destaque destinado para a cobertura

internacional, principalmente no Correio do Povo, e a dependência de informações recebidas

de agências de notícias estrangeiras.

A análise da cobertura do golpe militar do Chile em 1973 pelos jornais Correio do

Povo e Zero Hora, principais representantes da grande imprensa no Rio Grande do Sul na

48

época, permitiu avaliar a censura na ditadura militar brasileira por uma diferente abordagem.

Ao se trabalhar com as “proibições determinadas”, ordens a respeito de notícias e assuntos

com publicação não permitida, foi possível identificar que muitos desses temas foram

sistematicamente utilizados pelos dois periódicos nas matérias jornalísticas a respeito do

acontecimento chileno. Verificou-se, por exemplo, referências à censura, a execuções,

sequestros e violações dos direitos humanos. Da mesma forma, os jornais empregaram por

diversas ocasiões termos como, golpe (de estado ou militar), ditadura, censura, entre outros de

significado semelhante.

Embora essas menções tenham por algumas vezes ocorrido no corpo do texto

jornalístico de forma direta, esta pesquisa identificou uma prática utilizada para a realização

de denúncias mais severas. Mediante a reprodução de trechos de entrevistas, notas ou matérias

produzidas por outros veículos, a extrema violência no Chile foi retratada de maneira mais

clara e a Junta Militar chamada diversas vezes de golpista e até de fascista. Com base nas

ordens de proibições da censura trabalhadas do mesmo ano do golpe chileno, fica evidente

que qualquer referência desta natureza à ditadura brasileira por parte dos órgãos de imprensa

seria duramente reprimida, apesar das visíveis semelhanças entre os dois governos.

Tendo em vista os fatos analisados, é plausível acreditar que devido a este recurso, ou

seja, do emprego de termos e expressões negativas e do uso de interlocutores externos à

redação dos jornais para a cobertura do golpe chileno, tanto o Correio do Povo quanto a Zero

Hora puderam manifestar algumas críticas a respeito da natureza repressiva do regime militar

brasileiro e da restrição à liberdade de imprensa, sem se expor a possíveis punições. Como

visto com relação à autocensura, evitar entrar na mira dos censores foi um comportamento

adotado por diversos periódicos no país, visando suas sobrevivências. Conclui-se então, que a

utilização deste “espelho” chileno por parte dos dois diários foi um mecanismo para burlar a

censura, denunciando a situação brasileira através do país vizinho, numa espécie de “risco

calculado” pela direção das empresas.

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