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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA:LINGUAGENS, IDENTIDADESE ESPACIALIDADES MARIA SAMARA DA SILVA LUGARES DE VIDA, A VIDA NOS ESPAÇOS: OSWALDO LAMARTINE DE FARIA E A PERSPECTIVA DA EXPERIÊNCIA (1940-1970) NATAL-RN 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA:LINGUAGENS, IDENTIDADESE ESPACIALIDADES

MARIA SAMARA DA SILVA

LUGARES DE VIDA, A VIDA NOS ESPAÇOS: OSWALDO LAMARTINE DE FARIA E

A PERSPECTIVA DA EXPERIÊNCIA (1940-1970)

NATAL-RN

2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA: LINGUAGENS, IDENTIDADESE ESPACIALIDADES

MARIA SAMARA DA SILVA

LUGARES DE VIDA, A VIDA NOS ESPAÇOS: OSWALDO LAMARTINE DE FARIA E

A PERSPECTIVA DA EXPERIÊNCIA (1940-1970)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

História, área de concentração em História e espaços, linha

de pesquisa Linguagens, identidades e espacialidades, da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requi-

sito parcial para a obtenção do grau de Mestre sobre orien-

tação do Prof. Dr. Renato Amado Peixoto

NATAL-RN

2019

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Silva, Maria Samara da. Lugares de vida a vida, a vida nos espaços: Oswaldo Lamartinede Faria e a perspectiva da experiência (1940-1970) / MariaSamara da Silva. - Natal, 2019. 114f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras eArtes, Programa de Pós-graduação em História, UniversidadeFederal do Rio Grande do Norte. 2019. Orientador: Prof. Dr. Renato Amado Peixoto.

1. Oswaldo Lamartine de Faria - Dissertação. 2. Seridó -Dissertação. 3. Rio Grande do Norte - Dissertação. 4. Topofilia- Dissertação. I. Peixoto, Renato Amado. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 94(813.2)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRNSistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -CCHLA

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA: LINGUAGENS, IDENTIDADESE ESPACIALIDADES

Defesa da dissertação da mestrada Maria Samara da Silva, intitulada: Lugares de vida, a

vida nos espaços: Oswaldo Lamartine de Faria e a perspectiva da experiência (1940-1970)

orientado pelo professor Dr. Renato Amado Peixoto, apresentado à banca examinadora desig-

nada pelo Colegiado do Programa de Pós Graduação em História da UFRN, em 27 de Agosto

de 2019.

Os membros da Banca Examinadora consideraram a candidata aprovada.

Banca Examinadora:

__________________________________________

Dr. Renato Amado Peixoto/ UFRN

__________________________________________

Dr. Magno Francisco de Jesus Santos/UFRN

__________________________________________

Dr. Iranilson Buriti de Oliveira/UFCG

NATAL-RN

2019

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AGRADECIMENTOS

Meus profundos agradecimentos aos professores doutores Joel Carlos de Souza An-

drade, Helder Alexandre Medeiros de Macedo e Evandro Santos, docentes do Centro de Ensino

Superior do Seridó (CERES). Obrigada por seus conselhos, apontamentos e indicações, que

foram fundamentais para a construção da ideia e do projeto, que culminou na presente disser-

tação.

Agradeço também, com o mesmo vigor, ao professor doutor Renato Amado Peixoto,

por sua simpática e assertiva orientação durante a execução desta pesquisa.

Aos professores do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal

do Rio Grande do Norte, sobretudo ao professor doutor Magno Francisco de Jesus Santos, por

seus apontamentos no processo de qualificação deste trabalho.

Quero agradecer também ao meu noivo Eduardo Garcia, por seu apoio financeiro,

emocional e psicológico, que me deu condições para chegar até aqui.

Por fim, agradeço ao apoio da minha família, sobretudo minha mãe Maria das Vitorias

de Araújo Bezerra, por seu carinho e pela sua força. Além da minha querida amiga Monique

Hellen, por sua amizade e descontração.

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RESUMO

O escritor Norte-Rio-Grandense Oswaldo Lamartine de Faria tem sido reconhecido, tanto entre

seus pares quanto dentro dos estudos acadêmicos como um sujeito cuja vida e a produção inte-

lectual foram dedicadas ao Seridó. Nesta pesquisa, além de discutir a origem e a importância

desta ligação investigamos outras relações espaciais e suas respectivas relevâncias na trajetória

de vida do autor e para a sua carreira intelectual. Entre esses outros espaços destacamos as

cidades Natal e Rio de Janeiro e as propriedades rurais Lagoa Nova e Acauã. Nossas fontes

foram os livros Sertões do Seridó (1980); Ferro de Ribeiras do Rio Grande do Norte (1984);

Notas de Carregação (2001) todos de autoria de Lamartine, além das publicações Em Alpen-

dres d’ Acauã: Uma conversa com Oswaldo Lamartine (2001) organizado por Natércia Campos

e De Cascudo para Oswaldo (2005). Contamos ainda com, quatro cartas trocadas entre Lamar-

tine e Ramiro Monteiro Dantas do ano de 1994. Os conceitos ‘experiência’ e ‘topofilia’, con-

forme Yi –Fu Tuan foram utilizados para entender a ligação entre o autor e os diversos espaços

analisados, assim como as várias abordagens do conceito de ‘paisagem’ de Gaston Bachelard,

Yi- Fu Tuan e Simon Schama. Estas, nos possibilitaram colocar a hipótese de que as diversas

experiências espaciais de Lamartine impactaram direta e indiretamente a descrição das paisa-

gens e espaços em seus textos. Este estudo foi conduzido baseando-se na metodologia da análise

do discurso de Michel Pechêux e Eni – Orlandi, e seus postulados são utilizados para pensar

aspectos como o contexto imediato e amplo de Lamartine, a construção de um discurso sobre o

homem e sua relação com os espaços. Como resultado dessa investigação compreendemos que

foi por meio da experimentação da figura política e o contato como legado de seu pai, Juvenal

Lamartine e de todos os eventos que cercaram a sua família que Oswaldo Lamartine começa a

criar uma grande afeição pelo Seridó por ser sua terra de origem e, é neste ponto que se fincam

as raízes de uma identidade seridoense. Além disso notamos que de fato existem experiências

espaciais de diversos níveis em Lamartine variando entre a apreciação visual, a necessidade do

contato físico que permeiam a construção do pertencimento e afeição ao Seridó. Cada espaço

que ele ocupou teve sua importância para a construção de sua personalidade e de sua obra.

Vemos que o grande catalizador de sua escrita é a saudade, não apenas de um espaço, mas de

todo um modo de vida baseado em uma ligação forte entre homem e natureza. E por fim, a

paisagem em seus textos é uma junção entre imaginação, experiência e conhecimento adquirido

em uma tradição do olhar regional, construída desde o início do século XX no Nordeste.

Palavras-chave: Oswaldo Lamartine de Faria. Seridó. Rio Grande do Norte. Topofilia.

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ABSTRACT

The potiguar's writer Oswaldo Lamartine de Faria have been recognized, by his pairs and re-

searchers as an important source for the history of the seridó's region. On this research besides

the investigation of this connection other special relations and this consequences on the life of

the author and his intellectual life have been researched. Besides other spaces we highlighted

the cities of Natal, Rio de Janeiro and the farms of Lagoa Nova e Acauã. Our sources were the

books Encouramento e Arreios do Vaqueiro do Seridó (1969); Sertões do Seridó (1980); Ferro

de Ribeiras do Rio Grande do Norte (1984); Notas de Carregação (2001) all written by Lamar-

tine, and the books organized by Natércia Campos, Em Alpendres d’ Acauã: Uma conversa

com Oswaldo Lamartine (2001) e De Cascudo para Oswaldo (2005), besides four fragments

of letters from 1994. The concepts ‘experience’ and ‘topophilia’, as defined by Yi-fu Tuan have

been applied to understand the connection between the author and the many spaces analyzed,

and the many approaches of the concept of ‘landscape’ of Gaston Bachelard, Yi-Fu Tuan and

Simon Schama. With that it was possible to deduce the hypothesis that the many spatial expe-

riences of Lamartine have direct and indirect impact on the description of landscapes and spaces

on the books of Lamartine. This study have been conducted using the discourse methodology

of Michael Pecheux and Eni Orlandi and it's thesis have been used in order to analyze the im-

mediate context of Lamartine, the construction of a discourse about a man and his relation with

spaces. As a result of the investigation we have comprehended that by the means of experimen-

tation of the political figure and the contact the legacy of his father, Juvenal Lamartine and all

the tragic events of his family that Oswaldo Lamartine start to create his affection for the Seridó

region, and based on that the definition of a Sedidoense identity. Besides that it's possible to

point out the fact that spatial experiences on many levels exists on the work of Lamartine, those

point to a necessity of physical contact and visual appreciation in order to define his affection

for the Seridó. Every space that has been occupied had it's own importance to the construction

of it's personality and his work. It's possible to visualize that he is driven by the feeling of

missing, not only the space, but the lifestyle based on a connection between human and nature.

The landscape on the texts is the fusion between imagination, experience and the knowledge

acquired of tradition, built upon since the 20th century of the Northwestern region of Brazil.

Key-words: Oswaldo Lamartine de Farias. Seridó. Rio Grande do Norte. Topophilia.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 7

CAPITULO I: SERIDÓ DE PAI PARA FILHO ............................................................... 24

1.1 JUVENAL LAMARTINE E A PRIMEIRA REPÚBLICA NO RIO GRANDE DO

NORTE .................................................................................................................................... 29

1.2 DEPOIMENTOS: EM LUTA PELA MEMÓRIA DE JUVENAL LAMARTINE DE

FARIA ...................................................................................................................................... 35

1.3 A PERSPECTIVA DO FILHO .......................................................................................... 40

1.6 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SERIDOENSE DE OSWALDO LAMARTINE DE

FARIA ...................................................................................................................................... 45

CAPITULO II: UM HOMEM EM MOVIMENTO: ESPAÇO, LUGAR E TOPOFILIA

NA TRAJETORIA OSWALDO LAMARTINE DE FARIA ............................................. 52

2.1 RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E ESPAÇO NA HISTORIOGRAFIA ........................... 54

2.2 EXPERIÊNCIAS DE INFÂNCIA (1919-1929) ................................................................ 62

2.3 A VIDA NAS FAZENDAS (1941 -1955) ......................................................................... 65

2.4 O “EXÍLIO” NO RIO DE JANEIRO E O RETORNO A TERRA NATAL (1955-

1995).........................................................................................................................................67

3.5 O RETORNO A TERRA POTIGUAR E A VIDA NA ACAUÃ (1995-2005) ................. 71

2.7 O SERIDÓ DE LAMARTINE: ENTRE O LUGAR ÍNTIMO E O PATRIOTISMO ....... 73

CAPITULO III: IMAGINAÇÃO, PERCEPÇÃO E CULTURA: A CONSTRUÇÃO DA

PAISAGEM NA ESCRITA DE OSWALDO LAMARTINE DE FARIA ........................ 78

3.1 SENTIMENTO E IMAGINAÇÃO: ESPAÇOS AMADOS, ESPAÇOS

IMAGINADOS.........................................................................................................................84

3.2 PERCEPÇÃO E EXPERIÊNCIA: NARRATIVAS DO ESPAÇO VIVIDA .................... 86

3.3 CULTURA E ESCRITA: UMA TRADIÇÃO DE OLHAR REGIONAL ........................ 88

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 103

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 108

ANEXO ................................................................................................................................. 118

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INTRODUÇÃO

Motivações para a pesquisa cientifica podem surgir da mistura de predileções pes-

soais e as várias possibilidades de estudo que podemos encontrar no meio acadêmico. No meu

caso, cresci em uma zona rural no município de São Vicente, Região da Serra de Santana, sendo

minha infância e adolescência passadas em meio a bichos e plantas, tanto selvagens quanto

domésticos. Então, desde muito cedo desenvolvi um amor que até hoje carrego pela natureza,

um amor simples e profundo que me emociona a cada mínimo contato com aquele lugar.

Desta forma, quando fui cursar História em Caicó tive que me distanciar daquele

ambiente que tanto amava e passar a me dedicar aos estudos, desde o início me interessei espe-

cialmente pelo ramo da Historiografia. Fiquei fascinada pelos textos de Jules Michelet e Marc

Bloch. Desta forma, quando surgiu a oportunidade de fazer parte de um projeto de pesquisa que

tinha por objetivo investigar a Historiografia seridoense me interessei imediatamente.

Uma vez dentro da pesquisa científica entrei em contato com vários autores como

Olavo de Medeiros Filho, Luís da Câmara Cascudo e José Bezerra Gomes. Porém, desde a

primeira leitura um autor que muito me fascinou foi Oswaldo Lamartine de Faria, sua escrita

cheia de saudades das coisas da terra me tocou de um modo especial. Eu precisava conhecê-lo

melhor. Desta forma, ao me aprofundar na leitura dos livros de Lamartine estive envolvida por

essa identificação com o personagem e com a sua história de vida. Contudo, a História não se

constrói apenas com admiração e fascínio, mas com a pesquisa, pensamento crítico e no contato

mais profundo com as fontes. É a partir desse momento que surge a necessidade de desconstru-

ção do objeto de pesquisa.

O primeiro passo nesse sentido foi investigar a história de vida de Oswaldo Lamar-

tine. Seu pai Juvenal Lamartine (1874-1956) foi um político que desenvolveu carreira nas pri-

meiras décadas do século XX, ocupando vários cargos políticos. Juvenal Lamartine de Faria foi

um aliado de Washington Luís durante o movimento de 1930 questão que levará a sua destitui-

ção do cargo de governador do estado do Rio Grande do Norte, que ocupava desde 1928. Após

a entrada de “tropas revolucionárias” no estado e sua chegada à cidade do Natal o governador

se viu encurralado e temendo ser capturado ou morto por tais forças, foge em um barco para o

Ceará e de lá voa para a Europa, onde se exila1.

1 Estes relatos sobre a fuga de Juvenal Lamartine podem ser encontrados tanto no livro Do sindicato ao

Catete: Memorias políticas e confissões humanas (1966) quanto no livro Em alpendres d’ Acauã: Con-

versa com Oswaldo Lamartine de Faria (2001).

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Como um dos dez filhos2 do governador deposto, Oswaldo Lamartine vê, naquele

momento, sua família enfrentar dificuldades com a falta do pai. Dentre as principais delas po-

demos mencionar, as frequentes batidas policiais feitas na residência da família que tinha como

objetivo a captura de Juvenal Lamartine, e a angústia diante da falta de notícias suas, logo após

o exilio.

Sua educação formal foi quase toda realizada em colégios internos fora do Rio

Grande do Norte. A partir de 1929 foi mandado para o Ginásio do Recife e posteriormente para

o Instituto Lafayette no Rio de Janeiro. Sua formação superior inclui o curso na Escola Superior

de agronomia de Lavras, em Minas Gerais. Conviveu com pescadores artesãos e vaqueiros,

intelectuais, através dos quais entrou em contato com uma grande gama de tradições como o

encouramento, os adivinhos da chuva, a pesca, a caça, o cordel, os causos, e as heranças de

família.

Mesmo morando em cidades como Natal, Recife e, posteriormente, Rio de Janeiro,

Lamartine sempre que possível voltava ao Rio Grande do Norte. Já na velhice ao retornar ao

estado residindo na fazenda Acauã, situada em Riachuelo-RN.

Deste modo, a escolha de trabalhar com esse autor, dentre tantos outros escritores

do Rio grande do Norte, foi marcada por uma identificação pessoal com esse sujeito. Estudar

um homem com uma vida tão dinâmica e rica de informações exige do pesquisador algumas

escolhas. Neste sentido, no que diz respeito ao recorte temporal da pesquisa, escolhi as décadas

de 1940 a 1970, por serem os anos que compreendem tanto suas experiências pessoais mais

fortes com os espaços, quanto o auge de sua produção escrita, que constituem os dois focos

dessa investigação.

Durante a trajetória de vida de Oswaldo Lamartine, um importante ambiente inte-

lectual foi a Academia Norte – rio – grandense de letras, lá ele ocupou a cadeira de número 12,

a mesma de seu pai. No texto escrito pelo acadêmico Vicente Cerejo, disponível na Revista da

Academia Norte – rio – grandense (2002), ele atribui a Lamartine a posição de etnógrafo, prá-

tica que abarca entre outras coisas o estudo descritivo da cultura material de um determinado

povo. A mesma atribuição é feita por Gilberto Freyre na revista O Cruzeiro, edição de 9 de

2 Os nomes dos demais filhos de Juvenal Lamartine: Olavo Lamartine de Faria (1988-1966); Clovis

Silvino Lamartine de Faria (1901-1988); Otávio Lamartine de Faria (1903-1935); Olga Lamartine Paiva

(1905-1935); Maria de Lourdes Varela Santiago Sobrinho (1906-1992); Silvino Lamartine de Faria

(1907-1993); Juracy Cariello (1912-1990); Paulina William Brown (1914- 2000); Elza Lamartine de

Faria (1916-1935). Fonte: MANOEL PINHEIRO (Org.). Myheritage. Disponível em:

<https://www.myheritage.com.br/family-1_1000036_166123252_166123252/lamartine-de-faria-dr-ju-

venal-lamartine-de-faria-silvina-bezerra>. Acesso em: 13 jul. 2018.

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outubro de 1948. Para Rachel de Queiroz no Memorial de Maria Moura (1992), Lamartine é

tomado como um dos maiores sertanistas do Brasil.

Já na opinião de João Medeiros Filho, também membro da Academia Norte-rio-

grandense de letras, em Contribuição à História intelectual do Rio Grande do Norte (1984) a

obra de Lamartine pode ser colocada entre os autores da prosa ao lado de nomes como Nísia

Floresta, Eloy de Souza, Zila Mamede. No prefácio de Sertões do Seridó (1980) Francisco Cha-

gas Pereira considera Lamartine um exemplo de ensaísta em que “nem mesmo a linguagem

vem interpor-se, carreando opacidade ao discurso desse mundo” (PEREIRA, 1980, p.15). Com

isso, Pereira parece nos dizer que a escrita de Lamartine é clara, o Sertão que se descreve não

é uma falsificação, mas sim uma transmissão do real, como se o próprio espaço narrado se

fizesse presente.

É possível notar que dentro do espectro a escrita de Lamartine foi trabalhada sob

óticas historiográficas, literatas e memorialistas. No que concerne a visão dos seus pares, sua

produção é enquadrada dentro da etnografia, e a literatura seja no estilo do ensaio ou da proza.

Tal miscelânea de visões sobre um mesmo autor é justificada em função de sua

produção possuir um largo espectro de temas, tipos de narrativa e estilos. Neste sentido, possí-

vel notar em Lamartine traços de historiador, uma vez que este faz uso constantemente de do-

cumentos históricos e de historiografia, sobretudo ao traçar as origens da ocupação dos Sertões

do Seridó, apesar de não se apropriar do método historiográfico. É também perceptível um forte

trabalho sobre a linguagem em suas páginas com um alto teor de emoção no uso das palavras.

Já o memorialismo é pouco percebido nos seus escritos, pelo menos no que tange sua roupagem

mais básica, ou seja, textos em primeira pessoa com foco em narrativas de eventos pessoais.

Entretanto, potencialmente há de se notar aqui e ali traços da memória do autor, já que como

ele mesmo advoga, “é possível que no relato de um fato, palavra, entrelinha ou até reticencia,

haja algum esquecido resto de mim” (LAMARTINE DE FARIA, 2001, p.78).

Colocar os estudos de Lamartine como etnógrafos também é uma abordagem per-

tinente, já que grande parte de seus textos são dedicados à descrição de elementos de cultura

material dos habitantes do Seridó, tais como os utensílios da pesca nos açudes, a indumentária

e ferramentas do vagueiro. Junto com a etnografia, características do folclore também estão

presentes na escrita desse autor.

O clima intelectual nas primeiras décadas do século XX viu crescer um movimento

de escritores preocupados com a valorização da cultura regional, neste caso, uma cultura da

emergente territorialidade do Nordeste, antes denominada de Norte, é o folclore. As primeiras

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práticas intelectuais nesse sentido surgiram na Europa, no século XIX, notadamente na Alema-

nha e na França que na perspectiva de Ortiz (1992), é um desenvolvimento de dois movimentos,

os antiquários e os românticos. Os antiquários, primeiros a se voltarem para o mundo das po-

pulações rurais e pobres, tem um olhar como o de um colecionador, geralmente da elite, esse

pesquisador não tem muita estima pelas pessoas do povo, vendo-se como desbravadores de

mundos selvagens nos campos da Europa. Já os românticos, por sua vez, vão se insurgir contra

a constituição de sociedades industriais e urbanizadas. Voltam-se, portanto, para o campo em

busca de um modo de vida bucólico, eles se dirigem a esse ideal de forma emotiva.

O folclore é herdeiro desses dois movimentos, se diferenciando deles por sua inten-

ção em se tornar uma ciência, muito influenciada pelos ideais do positivismo de Auguste

Comte. Neste sentido, os folcloristas começaram a se associar criando espaços para seus estudos

como revistas, museus e associações. Porém, a cientificidade parou por aí, uma vez que o mé-

todo cientifico não foi colocado como prioridade dentro do movimento. Sendo assim, os estu-

dos de folclore valorizavam a busca de uma espécie de essência do povo vislumbrada no en-

contro com seus costumes e práticas, não era preciso mais do que isso, ir até eles e registrar

tudo o que fosse possível de seu modo de vida.

Aspecto que Ortiz levanta sobre o movimento é o seu interesse pelo passado e pela

tradição. Na esteira de processos de mudança social e econômica que surgem na Europa do

século XIX e se prolongam pelo XX, esses autores se veem como salvadores de uma cultura já

quase morta que precisa ser resguardada.

No Brasil o folclore passa a ter mais ênfase no século XX e se desenvolve com uma

roupagem bem parecida com a que descrevemos acima. Porém, em terras brasileiras sofrerá

alterações significativas em função do quadro social que o conduz. Segundo Albuquerque Ju-

nior (2015), o desenvolvimento dos primeiros grupos folcloristas se dá em um momento de

profundas mudanças econômicas e políticas, sobretudo nas primeiras décadas do século XX. O

Nordeste será uma das espacialidades nas quais a efervescência folclorista se dará com mais

força.

O desenvolvimento do folclore no Brasil se dá em um comum acordo com as estru-

turas do Estado, isso permitirá que, mesmo diante de momentos de profundas transformações

no campo político, nas décadas 40 a 70, os grupos folcloristas só crescessem em vicejassem

constituído espaços com legado durador. Entre eles destaca-se o Conselho Nacional de Folclore,

criado em 1947, responsável por fomentar nos estados a Semana do Folclore e a Campanha de

defesa do folclore Brasileiro (1958). Além da Comissão Nacional do folclore, vinculada à

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Unesco. Destaca-se ainda o Governo Federal como sendo um forte indício da validação do

movimento frente à esfera estatal.

Entre os principais autores do movimento, destacamos aqueles que, de formas di-

versas, tiveram influência sobre Lamartine. Luiz da Câmara Cascudo autor de Vaqueiros e can-

tadores (1939), Civilização e cultura (1973) e Tradição da pecuária nordestina (1985), era um

contato frequente de Lamartine para assuntos regionais, um amigo e mentor. Leonardo Mota

que escreve livros como Violeiros do norte: poesia e linguagem do sertão nordestino (1962) e

Sertão Alegre (1975), Gustavo Barroso escritor de Terra do Sol (1962) e Mauro Mota que con-

cebeu o livro Paisagem das Secas (1958). Tais autores e obras foram citados por Oswaldo

Lamartine como o que há de “mais importante para o Nordeste, principalmente o Sertão da

Caatinga” (2001, p.67).

Neste ponto é preciso lembrar do ressente trabalho, Eloy de Souza e o Nordeste

como construção discursiva do espaço dos estados seviciados pela seca, na primeira república

brasileira (2018) de Ítala Mayara de Castro Silva. A autora discute sobre a trajetória política e

intelectual de Eloy de Souza, político norte-rio-grandense de grande destaque nos períodos fi-

nais do Império e principalmente na Primeira República.

Silva (2018) apresenta uma nova discussão no estudo da história da concepção da

região Nordeste na qual se atribuía como período de surgimento o final da primeira década do

século XX. Ela recua esse recorte, e mostra que o Nordeste já surgia como espaço diferenciado

na escrita de Eloy de Souza durante os primeiros anos da primeira década do século XX. A

construção do Nordeste em Eloy de Souza passa obrigatoriamente pelo tema da seca, fenômeno

comum em certas províncias de toda aquela porção do país anteriormente denominada de Norte.

Em concomitância com esse discurso que coloca o Nordeste como a região das ca-

lamidades da seca, e dos descasos do poder central, também se concebe esse espaço como o

foco de uma cultura tradicional, original e ligada aos ritmos do campo. Essa cultura é vista

como fruto de seu meio, sobretudo das áreas sertanejas. Neste cenário, o folclorista é visto

geralmente como uma transfiguração de seu espaço, uma voz que transmite suas imagens, sons

e gostos, segundo aponta Albuquerque Junior.

A voz do folclorista é uma voz milagreira da saudade, como dirá Cascudo,

aquela que constrói a cultura deste espaço como sendo tradicional, como

sendo uma cultura a ser evocada porque ligada ao passado, em vias de extin-

ção, vozes fieis a seu espaço, à sua terra, à sua gente, vozes que verbalizam,

cantam, gemem, gritam, declamam, levantam-se para defender a terra amea-

çada de desaparecer, não apenas econômica e politicamente, mas cultural-

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mente também. Assim como a cultura popular, assim como o folclore, o Nor-

deste é uma região que precisa de defesa. Não será mera coincidência que a

maior parte dos folcloristas nordestinos pertence a famílias tradicionais da re-

gião, faz parte de clãs políticos que dominaram, por certo tempo, a política em

postos de comando. Muitos aliaram a militância político-partidária às suas

pesquisas no campo do folclore, tendo na aproximação com o estado e com os

grupos políticos locais de apoio para estas atividades. Muitos dos livros publi-

cados por eles tiveram o patrocínio dos poderes locais ou estaduais. As gráfi-

cas oficiais foram prodigas em realizar a publicação deste tipo de trabalho que

pouco interessava às editoras comerciais. (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2015,

p.54-55).

Ao percorrer tal contexto, postulamos a atitude de atribuir a Lamartine um viés

folclorista, e baseando-se nas premissas acima descriminadas, argumentamos em favor de tal

postura. Um argumento que nos vem à mente é o daquele que se refere à característica de valo-

rização do passado presente nos folcloristas, eles assumem assim, uma relação com o tempo

complicada, pois possuem dificuldades em lidar com as mudanças sociais, sobretudo, nas mu-

danças tecnológicas, as quais a sociedade ocidental tem passado nos últimos dois séculos. Di-

ante de tal situação, esses sujeitos passam a valorizar, com muito afinco, as tradições de um

passado, no caso dos folcloristas as tradições de um mundo rural, pré-industrial e marcado por

sociabilidades hierárquicas. Em Lamartine, isso se faz notar com muita clareza, basta olhar para

a forma como em sua escrita ele trabalha com uma ideia de salvar do esquecimento práticas do

cotidiano sertanejo, como é o caso das roupas de couro do vaqueiro, da pesca nos açudes ou os

ferros de marcar gado. Há em sua fala, um certo tom de melancólico por perceber que o Sertão

que tanto valoriza já não existe, sentimento expressado na sua expressão “Sertão do nunca

mais”.

Outro argumento que pode-se perceber, é o da valorização de um espaço, tornando-

se uma espécie de defensor de sua cultura, no caso de Lamartine temos o Seridó como espaci-

alidade central de sua escrita. Há em sua fala, um certo de melancólico por perceber que esse

Sertão que ele tanto valoriza já não existe, sentimento representado na sua expressão: “Sertão

do nunca mais”. Logo, o autor se manifesta como um defensor, não de um espaço ameaçado,

mas sim da memória de um espaço que já não existe mais, mas que precisa ser evocado para

não se perder no esquecimento.

E em terceiro, vemos os livros fundamentais para a formação de Lamartine, por

exemplo, sua relação próxima a Luís da Câmara Cascudo. É pouco provável que esses livros e

essas relações não tenham tido impacto no seu modo de escrever sobre o Sertão. Embora não

possamos dizer que Lamartine é um folclorista em sua totalidade, já que, até onde sabemos ele

não participava de nenhuma associação de folclore, ou se denominava como tal, entretanto,

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temos convicção de que pelo menos em sua escrita poderemos, pelos argumentos aqui levanta-

dos, encontrar diversos paralelos com a escrita folclórica.

São poucos os estudos a respeito de Lamartine na academia. Entre os que existem,

foram escritos tanto em cursos de História quanto no de Letras. A dissertação de mestrado Ser

(tão) Seridó em suas cartografias espaciais (2007) de Olivia Morais de Medeiros Neta intitu-

lada aparece como a primeira a tratar de Oswaldo Lamartine como objeto de pesquisa da His-

tória dentro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Junto a ele foram estudados

outros nomes da historiografia tradicional do Rio Grande do Norte como José Augusto Bezerra

de Medeiros, Juvenal Lamartine de Faria e Manuel Dantas. Esta pesquisa traça um paralelo

entre as obras desses estudiosos seridoenses a começar pelo grau de parentesco entre eles. Em

linhas gerais, o trabalho identificou uma forte ligação entre a historiografia tradicional e a cons-

trução ideológica do espaço seridoense, isto é, o espaço foi ao longo do tempo sendo praticado

ou cartografado pela escrita de alguns dos seus autores mais destacados.

A autora observa a forma como o espaço do Seridó foi tão significativo na trajetória

de Lamartine, uma vez que a escrita desde espaço se traduziu na escrita de si mesmo, ou seja,

existe uma espécie de simbiose, um forte elo entre homem e terra. Foram salientados os lugares

de produção de sua prática, percebendo a grande contribuição de seu pai, Juvenal Lamartine,

para o despertar do seu interesse pelas coisas do Seridó. Assim, é perceptível que este estudo

se dedicou especialmente ao espaço Seridó. Deste modo, Seridó e Sertão não seriam a mesma

coisa, para Lamartine, sendo o primeiro uma unidade maior onde o segundo caberia como uma

de suas parcelas.

O trabalho de Medeiros Neta ainda buscou demonstrar com mais vigor a questão

da escrita e das ligações familiares entre esses autores, não dando muita importância para a veia

política que também os unia. Sim, estes homens foram seres políticos, especialmente José Au-

gusto e Juvenal Lamartine, personagens de destaque na Primeira República.

Destaca-se ainda a monografia, Seridó X Oswaldo Lamartine: Uma historiografia

regional (2007) de Wesley dos Santos, esse trabalho consiste em uma reflexão mais abrangente

sobre a vida e as obras de Lamartine, tendo como preocupação principal o modo como ele se

identificou com a região do Seridó Potiguar e de como passou a escrever sobre essa temática.

Aqui o seu trabalho é pensado na fronteira entre a Etnografia, Sociologia e História. A questão

do espaço vem na seara de Medeiros Neta, em que o Seridó teria sido construído pela escrita

deste autor.

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Uma segunda monografia, Pelas Memórias de Oswaldo Lamartine: artes de fazer

nos Sertões do Seridó (2013) de Natália Raiane de Paiva Araújo, nos mostra a importância da

memória e das práticas culturais do fazer no Seridó. Tal estudo busca reconhecer a preocupação

de Lamartine com a descrição dos objetos e modos de vida do sertanejo, desde a culinária até

os nós da pescaria ou as técnicas de encouramento. Ainda aparece a questão dos ferros de mar-

car gado, que para ele eram tidos como espécies de brasões heráldicos das famílias do Seridó.

Ao trazer essas questões para o trabalho, essa abordagem enxerga sua proposta sob

o viés memorialista no sentido de salvar da morte costumes e práticas dos antigos seridoenses.

A principal fonte consultada foi a coletânea Sertões do Seridó de 1980 (ARAÚJO, 2013). Esse

trabalho vai ter uma preocupação muito maior com o aspecto da cultura do que com o espaço,

este, aparece de forma secundária.

Mais uma produção importante é o estudo Multiplicando Veredas entre Guimarães

Rosa e Oswaldo Lamartine (2014) de Daniel Cavalcante de Hollanda Piñeiro, dissertação da

área de Letras. Neste, foram traçadas relações discursivas entre Lamartine e Guimarães Rosa

de modo a compreender como cada um construiu uma determinada visão sobre o Sertão. Dentro

desta análise Piñero alinha a sua escrita ao movimento regionalista da década de 1930, onde ele

estaria inserido como um ensaísta. Os dois autores estudados, Lamartine e Rosa, estabelecem

um entrelaçamento entre aspectos de sua experiência pessoal, a História e a memória coletiva.

Portanto, sua abordagem vai trazer à tona a face literária de Lamartine restrita basicamente ao

livro Sertões do Seridó (PIÑEIRO, 2014).

Por fim, o estudo mais recente sobre Oswaldo Lamartine foi a tese, Areia sob os

pés da alma: uma leitura da vida e obra de Oswaldo Lamartine de Faria (2015), produzida por

Marize Lima de Castro, outro trabalho no campo das letras.

Um dos pontos centrais da pesquisa diz respeito a relação entre Lamartine e Câmara

Cascudo através das suas correspondências. Sua concepção da escrita de Lamartine é literária

tomando a memória como uma forma de narrativa. Esta tese traz ainda uma série de documentos

inéditos cedidos por pessoas próximas ao autor, como é o caso da fotógrafa Candinha Bezerra.

Essa tese foi produzida em uma escrita bem emotiva e filosófica com o uso de me-

táforas, algo que o próprio Lamartine gostava de fazer quando, por exemplo, se referia à morte

como a moça caetana (CASTRO, 2015), isto deixa transparecer um forte apego sentimental da

autora com seu objeto. Um problema que essa emotividade trouxe foi o ocultamento de um

filho de Lamartine filho, com uma elite ruralista, herdeiro de um grupo familiar que vem domi-

nando a política de seu estado por gerações. Esta é uma das pesquisas mais extensas, em termos

de quantidade e variedade de fontes, sobre Lamartine no meio acadêmico, até o momento, já

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que dá conta de inúmeras questões de sua vida e carreira baseando-se em uma grande variedade

de fontes, porém, assim como as demais não tem como foco central a questão do espaço, pre-

ferindo trabalhar com as narrativas pessoais sobre o autor.

A partir da leitura da bibliografia disponível, a respeito do autor e seus livros, é

perceptível que a maioria dos pesquisadores tem uma preocupação voltada apenas para relação

de Lamartine com o Seridó, essa é de fato uma relação importante, porém não é a única relação

espacial que se observa.

Oswaldo Lamartine em diversas oportunidades escritas ou faladas demonstrou um

profundo apego ao Seridó, constantemente demonstrando o quanto esse espaço foi significativo

na sua história de vida. Porém, ao analisarmos essa trajetória é perceptível que ele viveu pouco

nesse lugar, era apenas durante suas férias de estudo ou de trabalho que ele podia ir de encontro

ele. Existe, nessa relação, um fator emocional de ligação que possibilitou que mesmo traba-

lhando, distante geograficamente, ele dedicasse parte de seu tempo ao estudo sobre a cultura e

a terra seridoense, logo, este trabalho busca, entre outras coisas, ir atrás desse fator.

De um modo geral, o que se observa na leitura de suas obras é uma construção de

paisagem sertaneja que pode ser aplicável a praticamente toda a região do Sertão nordestino,

um clima árido, a presença da caatinga, as práticas culturais do homem sertanejo, como a caça

a pesca de açude e o encouramento do vaqueiro. Estes são aspectos que podem ser atribuídos a

uma dada tradição de escrita do espaço oriunda de autores como Euclides da Cunha, porém, nas

suas páginas podemos reconhecer também traços de um espaço vivido ou um espaço da expe-

riência própria de Lamartine.

Assim, esta pesquisa buscou entender as dinâmicas espaciais, de Oswaldo Lamar-

tine de Faria, sobre o seu “Sertão do nunca mais”, o Seridó aos seus espaços da experiência

vivida e como cada um destes espaços ficaram marcados em sua trajetória e escrita, ou seja, os

diferentes graus de percepção que Lamartine tem para com os espaços que ocupou, e como isso

afetou sua escrita.

Tendo como foco se alinhar às propostas do Programa de Pós-graduação em Histó-

ria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, este trabalho se insere dentro da área de

concentração História e espaços. Esta área de concentração reúne trabalhos que se preocupam

com o espaço enquanto uma dimensão essencial para a pratica do historiador. Desta forma, o

espaço não é tido como algo dado a priori, mas como uma construção social e simbólica. Sendo

assim, os espaços surgem como suportes para a construção de identidades locais, regionais e

nacionais, bem como para as lutas e segregações sociais estando contra ou a serviço do poder.

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O Seridó, ao qual Lamartine atribui a expressão “Sertão do nunca mais”, será um

dos espaços mais importantes para nosso estudo, porém existem na experiência de Lamartine

outras localidades que tiveram importância significativa em seu processo de escrita. São elas,

as fazendas Lagoa Nova e Acauã no agreste norte-rio-grandense, e cidades como Rio de Janeiro

e Recife. Foi através destes lugares que Oswaldo Lamartine pôde adquirir grande parte dos

conhecimentos que estão registrados em seus livros, seja através da observação, da prática ou

da leitura.

É preciso destacar também que entre as linhas de pesquisa que compõem a área de

concentração História e espaços, esta pesquisa se insere na linha Linguagens, Identidades e

Espacialidades que recebe trabalhos que, entre suas variadas temáticas, versam sobre os discur-

sos, representações, fazeres e de como estes compõem sentidos para o mundo humano. Tais

discursos, representações e fazeres podem ser analisados a partir dos mais variados suportes,

tais como a literatura, a música, ou a pintura.

No Programa de Pós-graduação em História temos alguns trabalhos próximos a

nossa investigação, como por exemplo, o trabalho de Olívia Morais de Medeiros Neta, que

investigou como os discursos de vários autores construiu e representou o Seridó. Junto com

Oswaldo Lamartine foram analisados autores como José Augusto, Juvenal Lamartine e Manuel

Dantas.

Outra pesquisa dentro do programa é a de Jossefranea Vieira Martins que versa

sobre Ariano Suassuna e sua construção do Sertão em sua obra A pedra do reino (2011). Esse

trabalho se assemelha ao nosso em função dos personagens estudados, pois tanto Suassuna

quanto Lamartine foram homens profundamente afetados por sua conjetura temporal e por um

espaço, pois, ambos tiveram suas vidas mortificadas pela “Revolução de 1930”, quando ainda

eram garotos, e também desenvolveram uma ligação profunda com um espaço, Lamartine pelo

Seridó no Rio Grande do Norte e Suassuna por Taperoá na Paraíba.

Esta pesquisa é dedicada a compreender as relações ente história e espaços, especi-

almente como elas se dão na experiência e escrita de Oswaldo Lamartine de Faria. Dentro do

meio historiográfico, existem muitas perspectivas e formas de se produzir História. Uma das

delas é a da Escola do Annales, um dos movimentos historiográficos mais relevantes do século

XX. A temática dos espaços na história, dentro desse movimento, foi desenvolvida sobretudo

nos textos: A terra e evolução humana (1922) de Lucien Febvre e O Mediterrâneo e o mundo

mediterrânico na época de Felipe II (1949), de Fernand Braudel. Alguns aspectos desse movi-

mento som relação ao espaço é pensar que, estes também são relevantes para compreensão dos

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processos da vida humana. Por isso, o estudo de Braudel sobre o Mediterrâneo é tão significa-

tivo. Neste sentido o espaço não é visto só como um palco para o drama humano, mas para um

de seus personagens.

Outra abordagem sobre essa interação é apresentada na vertente da História dos

conceitos, linha de pensamento alemã desenvolvida nos anos de 1970. Um dos autores desse

pensamento foi Reinhart Koselleck, no seu trabalho Estratos de tempo: estudos sobre história

(2014), discute essa questão da relação entre a História e o espaço. Em sua perspectiva, essas

duas categorias não podem ser compreendidas satisfatoriamente de formas separadas. Elas de-

vem, antes de tudo, serem entendidas como conceitos meta históricos sem os quais a prática do

historiador não se sustenta. Além, dessa categoria meta histórica, que corresponde a condições

mesologias como o relevo ou o clima, existe o espaço construído e modificado pelo homem,

como por exemplo, as cidades, estradas e fazendas.

Para a realização deste trabalho convocamos os conceitos do geografo Yi-Fu Tuan,

um dos nomes da área humanística da Geografia, refletindo sobre o tema da percepção do ho-

mem para com o mundo a sua volta, Tuan estabelece uma articulação entre espaço, lugar e

experiência. De modo geral, é feita uma análise acerca da maneira como o ser humano se rela-

ciona com os diferentes ambientes nos quais vai sendo inserido ao longo da vida. Vejamos

então como Tuan define os conceitos de espaço e lugar:

Na experiência, o significado de espaço frequentemente se funde com o de

lugar. “Espaço” é mais abstrato do que “lugar”. O que começa como espaço

indiferenciado transforma – se em lugar à medida que conhecemos melhor e

o dotamos de valor. Os arquitetos falam sobre as qualidades espaciais do lu-

gar; podem igualmente falar das qualidades locacionais do espaço. As ideias

de “espaço” e “lugar” não podem ser definidas uma sem a outra. A partir da

segurança e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e

da ameaça do espaço, e vice-versa. Além disso, se pensarmos no espaço como

algo que permite movimento, então lugar é pausa; cada pausa no movimento

torna possível que localização se transforme em lugar. (TUAN, 2013, p. 14).

Estes dois conceitos são percebidos nas mais variadas situações humanas. Assim, o

lugar pode ter tanto uma importância concreta quanto abstrata ou simbólica. A casa, por exem-

plo, tem seu valor prático enquanto um refúgio para as intempéries, é um valor simbólico de

ser um potencial foco de nossas reminiscências. Entretanto, existem lugares que podem ser

muito importantes para determinados indivíduos mesmo não desempenhando função prática, é

neste momento que entra a capacidade humana de simbolização e abstração. Disto surgem lu-

gares com a pátria que, apesar de possuir um território, tem sua importância construída através

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de uma série de símbolos e narrativas. O que não impede que muitos desenvolvam um profundo

apego a essa espacialidade.

O conceito de experiência, junto com os de espaço e lugar formam uma tríade no

pensamento de Tuan sobre as interações entre homem e meio ambiente. O dicionário Aurélio3

define experiência como o ato de experimentar, aprender ou mesmo como uma qualidade da-

quele que é conhecedor das coisas da vida. Na abordagem de Tuan essa ideia é pensada da

seguinte forma:

A experiência é constituída de sentimento e pensamento. O sentimento hu-

mano não é uma sucessão de sensações distintas; mais precisamente, a memó-

ria e a intuição são capazes de produzir impactos sensoriais no cambiante

fluxo da experiência, de modo que poderíamos falar de uma vida de sentimen-

tos como falamos de uma vida de pensamento. É uma tendência comum refe-

rir-se ao sentimento e pensamento como opostos, um registrando estados sub-

jetivos, o outro reportando-se à realidade objetiva. De fato, estão próximos às

duas extremidades de um continuum experiencial, e ambos são maneiras de

conhecer. (TUAN, 2013, p.19).

Neste sentido Tuan investiga os mecanismos que atuam na experiência, elegendo o

sentimento e o pensamento como componentes fundamentais. O sentimento aqui é visto como

uma junção entre os sentidos básicos do ser humano, como o tato, olfato e a visão, com as

nossas capacidades mentais de memorização e intuição. O pensamento entra nesta análise como

a nossa capacidade racional de adquirir conhecimentos.

Para além dessa tríade, um dos conceitos mais fundamentais de Tuan é o de Topo-

filia. Para ele, esse neologismo pode ser definido como “todos os laços afetivos dos seres hu-

manos com o meio ambiente material” (1980, p. 107). Esses laços podem ter intensidades dife-

rentes, assim, a topofilia pode se apresentar como uma simples apreciação estética, a vista de

uma cachoeira, vale ou montanha, são exemplos disso. Nesse caso, nossa reação aos espaços é

movida majoritariamente pelo sentido da visão. Depois, temos o prazer do contato despertado

na interação com a água, o ar e a terra. Aqui são despertados outros sentidos além da visão. Por

fim, surgem os graus mais elevados de Topofilia, o apego a um lugar por ser o lar ou local de

reminiscências, um amor que pode ir além da experiência física com essa localidade.

O Seridó é um dos lugares mais importantes para Lamartine de Faria, ele desperta

seus sentimentos mais fortes e na sua escrita está presente o tempo todo nas páginas de seus

livros e cartas, cuja descrição exalta seus cheiros, sons e gostos. O espaço, assim como Tuan

3AURÉLIO, Dicionário. Significado de Experiência. 2018. Disponível em: <https://dicionariodoaure-

lio.com/experiencia>. Acesso em: 16 jul. 2018.

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define, também pode ser pensado aqui como sendo tudo aquilo que não é lugar e também tudo

o que pode vir a ser um lugar, Lamartine demonstra bem essa possibilidade.

Para entender como essa dinâmica de espaço, lugar e experiência funciona na tra-

jetória de Lamartine, é necessário reforçar que ele foi um sujeito de muitas moradas ao longo

da vida, isso nos permite enxergar o movimento e a pausa que Tuan nos falou acima. Assim, o

primeiro lugar que pode ser identificado é a cidade do Natal, local de seu nascimento em 15 de

novembro de 1919, foco das memórias de infância. O Seridó, inicialmente é o lugar onde se

passava as férias, momento marcado por brincadeiras nas fazendas da família, sobretudo a Fa-

zenda Ingá em Acari.

Ao realizar seus estudos, entre os anos de 1929 e 1941, Lamartine retorna para o

Rio grande do Norte e vai participar da construção da Fazenda Lagoa Nova, pertencente a seu

pai. Esse lugar seria muito importante para a futura produção escrita de Lamartine, pois foi a

partir da convivência com seu pai e com os mestres de ofício4 que muito do seu repertório foi

adquirido. No início da década de 1950, Lamartine trabalhou em dois núcleos coloniais, o de

Barra da Corda, no Maranhão e no de Pium, no Rio Grande do Norte.

Esses núcleos surgem no contexto do final da era Vargas e governo de Juscelino

Kubitsche através de uma política de reforma agraria que vinha em resposta as lutas por distri-

buição de terras que se desenvolveram em várias regiões do país. Dentro dessa política estava

a implementação dos chamados Projetos integrados de colonização sob a supervisão do INIC

(Instituto Nacional de Imigração e Colonização) que foi posteriormente incorporado ao INCRA

(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). O objetivo, ao criar tais projetos, era

não apenas de atender demandas de distribuição de terras como também de incentivar a agri-

cultura familiar com foco no mercado consumidor interno (BARBOSA, 2003.p. 19).

Em 1955 Oswaldo Lamartine faz processo seletivo para o Banco do Nordeste, ad-

mitido vai para Fortaleza, onde permanece até 1958, quando é transferido para a cidade do Rio

de Janeiro. É nesta cidade que ele passa a maior parte de sua vida, dividido entre os afazeres do

banco5 e suas pesquisas sobre o Sertão, realizadas nos sebos cariocas. Depois de sua aposenta-

doria e da morte de sua segunda esposa, ele retorna para o Rio Grande do Norte e vai viver em

um terreno remanescente da Fazenda Lagoa Nova, lá ele constrói sua fazenda, Acauã. Por todo

4 Alguns nomes que merecem destaque entre esses mestres são: Pedro Ourives, o fazedor de selas; Zé

Lourenço, o fazedor de barragens; Chico Julião, o caçador de abelhas; Bonato Liberato Dantas, o pes-

cador de açudes e Olintho Ignácio, vaqueiro e caçador. 5 Sua função no Banco do Nordeste era de coleta de informações referentes ao Sistema 34/18 um pro-

grama de incentivos fiscais destinado a produção agrícola do Nordeste durante a década de 60.

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este percurso é possível notar que Lamartine conheceu uma grande variedade de lugares, porém

escolheu apenas um para o seu bem querer, o Seridó.

A falta ou a ausência é um elemento importante para que dê preferência a esse lugar.

Outro motivo por trás dessa escolha tem origem no contexto de sua família, sobretudo na figura

de seu pai Juvenal Lamartine, aspecto que será explorado no primeiro capítulo deste estudo.

Para além dessas questões de trajetória de vida, o presente trabalho também se in-

teressa por uma reflexão sobre a escrita de Lamartine. Dentro do conjunto de textos que compõe

sua obra, foram escolhidos aqueles que mais dizem do modo como o autor se relacionava com

as paisagens as quais entrava em contato. Para tanto, é imprescindível questionar que conceito

de paisagem nos serve.

Muitos são os autores que se dedicaram a temática da paisagem, nas mais variadas

áreas do conhecimento. Em nosso esforço três abordagens se sobressaem, uma primeira é de

Gaston Bachelard em sua obra, A poética do espaço (2008), na qual se interessa sobre as ima-

gens poéticas por meio de uma visão fenomenológica que tenta dar conta das subjetividades

que as formularam. Seu esforço é no sentido de perceber como a imaginação, através do deva-

neio da alma poética, cria imagens tão diversas. Assim a paisagem, na visão deste autor, é criada

pela imaginação e, em muitos casos não possuem preocupação em transmitir a precisão das

formas empíricas, mas sim de irradiar os mais profundos sentimentos do poeta. Este pensa-

mento sobre a paisagem e a imaginação será perceptível em Lamartine, sobretudo em suas falas

acerca do Seridó, porém, foram poucas as ocasiões em que esteve neste espaço.

Inspirado pela linha fenomenológica de Bachelard sobre a relação de apego emoci-

onal aos espaços, Yi-fu Tuan constrói sua ideia de lugar como um espaço transformado pela

experiência. O conceito de paisagem é trabalhado de forma mais abundante em seu livro: To-

pofilia (1980), aparecendo de forma menos consistente na obra Espaço e lugar (2013).

A paisagem para ele é um recorte do espaço no qual atua de forma determinante a

experiência do indivíduo. A depender da força dessas lembranças e poder desses sentimentos o

sujeito pode ser levado a escrever sobre o que viu e sentiu ao ver determinado lugar de seu

passado. No que tange a Oswaldo Lamartine esse tipo de construção de paisagem pode ser visto

quando fala sobre os momentos vividos na fazenda Lagoa Nova, em São Paulo do Potengi, ou

mesmo nas esporádicas visitas ao Seridó durante a infância e adolescência.

Outra perspectiva é demonstrada por Simon Shama, em Paisagem e memória

(1996), que traz a questão da memória e da paisagem como elementos importantes para a cons-

tituição de identidades, bem como o valor desses elementos na vida e nas produções de certos

sujeitos históricos que se valem disso para dar sentido e profundidade às suas vidas. A paisagem

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abordada por ele é um elo que transmite significados diversos de acordo com a sociedade e o

tempo que às compõe. Esses significados vão sendo legados de geração para geração. Sendo

assim, a forma como Lamartine constrói e narra a paisagem sertaneja em sua escrita, tem a ver

não só com sua imaginação e experiência direta, mas também com uma tradição de olhar regi-

onal. Essa tradição é compartilhada por uma série de autores, como Euclides da Cunha, Gustavo

Barroso, Capistrano de Abreu, Graciliano Ramos, Mauro Mota, Ariano Suassuna e Luís da

Câmara Cascudo.

O discurso de Lamartine se apresenta aqui sob duas formas. A primeira, sua bibli-

ografia que consiste de sua produção escrita, neste item estão contidos, seus livros, ensaios e

artigos publicados em jornais. A segunda é constituída por algumas cartas trocadas entre La-

martine e seu primo Ramiro Monteiro Dantas.

Sobre o primeiro conjunto, é preciso pontuar algumas questões, pois, dentro dele,

existem livros como, Sertões do Seridó (1980) e Notas de Carregação (2001), que são coletâ-

neas de escritos do autor reunidos para publicação. Por esse motivo, quando fomos analisá-los

temos que ter em mente dois recortes temporais, o da escrita de cada um dos textos separada-

mente e o de sua publicação em formato de livro. O primeiro recorte tem a ver com o contexto

de produção, ele nos permitirá identificar as circunstancias da escrita de Lamartine. O segundo

recorte está relacionado ao modo como obra de Lamartine será assimilada pelos centros, pro-

dutores e disseminadores de conhecimento, em seu estado nas décadas de 60 a 80, período que

abarca o seu maior volume de sua produção. Entre esses centros podemos citar, a Academia

Norte-rio-grandense de Letras, A fundação José Augusto e a Coleção Mossoroense.

Isto posto, passamos a especificar quais livros serão analisados. Sertões do Seridó

(1980), edição do Centro Gráfico do Senado Federal; Ferro de ribeiras do Seridó (1984), da

Coleção Mossoroense, em primeira edição Fac-similar; Em Alpendres’ Acauã: Uma conversa

com Oswaldo Lamartine (2001), pela fundação José Augusto; e por fim Notas de Carregação

(2001) publicação feita pelo Scriptorim Candinha Bezerra em colaboração com a Fundação

Hélio Galvão.

Já o conjunto das correspondências é constituído de quatro cartas que datam de

1990 a 1993, tendo como material as folhas de rosto dos livros trocados entre Oswaldo Lamar-

tine e seu primo Ramiro Dantas, residente da Fazenda Saudade, Serra Negra do Norte, região

do Seridó potiguar. É importante lembrar que no momento da escrita dessas cartas Lamartine

ainda se encontrava morando no Rio de Janeiro. Não deve ser coincidência, portanto, que esses

textos tenham como temas centrais a saudade do Seridó e a valorização das raízes familiares.

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Esse grupo de fontes será analisado sob a perspectiva da análise do discurso francês,

desenvolvida por Michel Pêcheux nas décadas de 1960 e 1970. Tal abordagem constitui-se

como um método que toma o discurso em sua relação com a História e com a sociedade. O

contexto de produção desse pensar sobre o discurso, se encontra na mesma temporalidade em

que produz Derrida, novas percepções sobre a relação entre o homem e a linguagem.

Estes autores criticam a posição apriorística dada a linguagem, ou seja, a linguagem

traria uma verdade em si mesma que caberia apenas ser descoberta, é a colocação do homem

como princípio explicador de todas as coisas. No lugar disso, passam a discutir o ser humano

como uma posição em relação a algo e a linguagem como um mecanismo intricado que aponta

para seu exterior. Aplicando isto a dimensão do texto temos que, este não conclui seu sentido

em si mesmo. Os significados dos textos são dados a conhecer por sua relação com o sujeito, a

sociedade, o tempo e a espacialidade que o produziu.

O discurso, objeto próprio desse método, é visto por Pêcheux como “um corpus de

objetos discursivos” (1975, p.181), tais objetos podem ser entendidos como textos nas suas

variadas formas de apresentação. O estudo de um discurso começa com um ou mais textos que

possuem alguma questão em comum a ser analisada.

Tomado esse grupo, o primeiro trabalho do analista é, segundo Pêcheux, transcen-

der a superfície linguística com base nos esquecimentos número 1 e 2. O primeiro esquecimento

é aquele no qual o sujeito que constrói o discurso pensa ser a origem de seu dizer, quando na

verdade apenas agrupa elementos preexistentes na linguagem. Assim como fala Orlandi,

“quando nascemos os discursos já estão em processo e nós é que entramos nesse processo”

(2009, p.23). O esquecimento dois faz com que se acredite que o discurso só poderia ser dito

daquele modo, e não de outro. Para Pêcheux, em função do primeiro esquecimento, este é da

ordem do inconsciente, é inacessível ao sujeito. O esquecimento dois, por outro lado, pode ser

acessado pelo sujeito, basta que pra isso ele queira reestruturar o modo como diz e se colocar

de outra maneira.

Para identificarmos esses processos, é preciso atentar para as condições de produ-

ção dos discursos que dizem respeito ao sujeito e a situação. Desta maneira, vamos em busca

do contexto histórico em que o sujeito está mergulhado, onde ele produz tipos de discursos que

incidem sobre ele. Além disso, é importante destacar como ele toma estes aspectos e constrói

sobre eles um saber diferente. Todo esse percurso, em vista, passamos então de um discurso

bruto para um objeto discursivo.

Outro componente importante da análise do discurso é a formação de um disposi-

tivo de análise que comporta, além das regras acima discriminadas (próprias do método), o

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aparato teórico particular de cada analista convocado em função da questão que pretende res-

ponder com seu trabalho.

Ao aplicar este método a nosso objeto, Oswaldo Lamartine de Faria, um primeiro

movimento de pesquisa é construir uma questão de análise, em nosso caso a questão é investi-

gar, de maneira geral, a relação entre Lamartine e os espaços. Tendo isso em mente identifica-

mos dentro do escopo de sua produção aqueles textos que mais nos dizem sobre essa relação.

Após feita essa escolha, temos que pensar no contexto de formação, analisando por

exemplo, qual era o ambiente familiar de Lamartine, como se dá sua formação como sujeito.

Além disso, precisamos destacar que discursos estão incidindo sobre esse sujeito. Podemos

perceber com isto que, em um primeiro momento o discurso familiar irá impacta-lo profunda-

mente, sobretudo a figura do pai. Em outro ponto a proximidade com autores como Luís da

Câmara Cascudo o colocará em contato com o discurso folclorista e regionalista, muito difun-

dido nas primeiras décadas do século XX. Contudo, vamos ver ainda suas vivências no cons-

tante ir e vir entre os espaços, construindo relações e significados no percurso.

Não podemos esquecer também do contexto amplo no qual Lamartine está imerso,

pois, ele irá presenciar um momento de mudanças sociais, políticas e culturais de grande im-

pacto, começando com a “Revolução de 1930”, passando pela Ditadura militar, a redemocrati-

zação e todo o percurso tecnológico que cerca esses acontecimentos.

Com destino a conduzir essa análise, escalamos alguns conceitos norteadores que

já mencionamos anteriormente são eles: representação, identidade, espaço, lugar, topofilia, ex-

periência e paisagem. Tais conceitos realizaram o trabalho de mediação teórica condizente com

nossos objetivos.

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CAPITULO I: SERIDÓ DE PAI PARA FILHO

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Oswaldo Lamartine de Faria nasceu em 1919 sendo o décimo filho do casal Juvenal

Lamartine de Faria e Silvina Bezerra de Araújo Galvão. Gostava de dizer que era “um sobejo

da seca de 1919”. Apesar de dedicar grande afeto pelos sertões do Seridó, seu nascimento ocorre

em Natal, a capital potiguar onde passou grande parte da infância nos quintais repletos de ár-

vores frutíferas na companhia de amigos e colegas da rua Trairi. É alfabetizado, como muitos

em sua época, por professores particulares. Posteriormente estudou no Colégio Dom Pedro II

fundado pelo professor Severino Bezerra (1888-1971) também em Natal.

Em 1929, em um incidente com arma de fogo, Lamartine vitimou fatalmente seu

colega Ferdinando Dantas. Uma das poucas referências que encontramos sobre esse evento está

no livro, O Turista Aprendiz (2015) o diário de viagens de Mario de Andrade que em 1929

estava visitando Luiz da Câmara Cascudo em Natal e deixa registrado a seguinte nota: “A ci-

dade hoje esteve apreensiva porque um filho do presidente do estado, Juvenal Lamartine, brin-

cando (doze anos), deu um tiro no filho do capitão de polícia. Atravessou três partes o intestino.

Espera-se a morte desse menino”. (ANDRADE, 2015, p.231).

Talvez por este motivo é internado no Ginásio de Recife do Padre Felix Barreto e

de lá vai para o Instituto Lafayette no Rio de Janeiro. Por fim tem sua formação na Escola de

Agronomia em Lavras, Minas Gerais. Deste processo de formação retorna a terras potiguares

em 1940 para ajudar seu pai na administração da fazenda Lagoa Nova em São Paulo do Potengi

adquirida recentemente.

Podemos notar que sua perspectiva educacional foi em quase tudo semelhante à da

maioria dos filhos das elites daquela época, porém quando chega ao ensino superior destoa um

pouco ao ir para uma escola técnica agrícola e não para uma faculdade de direito, por exemplo.

Isso foi uma iniciativa de seu pai que nos anos iniciais do século XX enviou os

filhos para lá com o objetivo de versa-los nas técnicas de cultivo da terra elemento que consi-

derava de grande importância. Além de Oswaldo outros dois filhos Octávio e Clóvis também

estudaram na instituição.

Com os conhecimentos adquiridos com a formação técnica e com as experiências

em Lagoa Nova, administrará fazendas e os núcleos coloniais em Barra do Corda no Maranhão

e Pium no Rio Grande do Norte ambas iniciativas do Ministério da Agricultura realizadas entre

as décadas de 40 e 70 com o intuito de explorar áreas ainda pouco habitadas do país visando

uma maior produtividade agrícola. Após sair desse trabalho Lamartine, em busca de estabili-

dade, fará concurso para trabalhar no Banco do Nordeste. Após ser aprovado desenvolve fun-

ções em várias localidades nos estados do Ceará e Rio de Janeiro. Suas atribuições eram, em

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geral, de levantamento de dados sobre as secas e as produções no Nordeste logo como ele dizia

“Jamais lidei com cifrões”.

As descrições feitas sobre Oswaldo Lamartine e a visão que ele constrói de si

mesmo dão conta de um homem tímido e de poucas palavras. Ele se define, em muitas ocasiões,

como um “bicho do mato” aspecto que diz muito de sua intenção de se ligar a natureza contra-

pondo-se a modernidade que tanto criticou em seus textos. Nesta linha Francisco das Chagas

Pereira ressalta no prefácio de Sertões do Seridó (1980).

Sertão de Lamartine não existe como objeto exterior de pesquisa, distanciado

de impessoal investigador. E espaço interior, vivenciado, incorporado ao

mundo de valores, crenças e cuidados do escritor: até parece ter-se cristalizado

no seu perfil aristocraticamente seco, tímido, quase ascético. (FARIAS, 1980,

p.15).

Sua primeira esposa Cassilda Aranha Soares lhe deu dois filhos Isadora e Cassiano.

Isadora morreu em 1972 aos 27 anos. O perfil ascético ao qual Pereira se refere é particular-

mente forte no retorno ao Rio Grande do Norte, ocasião marcada pela morte de sua segunda

esposa Maria de Lurdes Leão Veloso da Rocha em 1995. Ele volta para morar na fazenda Acauã

no município de Riachuelo6 uma parcela do terreno que outrora pertencera à fazenda de seu pai.

Um dos aspectos mais repetidos em suas conversas são as memórias ou o relembrar

constante de fatos, práticas e sujeitos que fizeram parte de sua vida. A memória não serve ape-

nas para trazer à tona os bons tempos do passado ela pode trazer sentimentos indesejados como

a tristeza das perdas ou a culpa fazendo do relembrar um processo árduo. O peso das lembranças

fica claro na entrevista concedida a Tácito Costa, jornalista da Revista Préa:

As horas demoram a passar e as leituras o enfadam. Também não tem dormido

bem. Mas ressalva que nunca dormiu que preste em toda a sua vida. As lem-

branças têm sido a companhia mais presente na vida do escritor. Não cessam

hora nenhuma, ele confessa. Todas muito vívidas. Como num filme, compara.

“Infelizmente, afloram as lembranças boas e as amargas”, diz. (COSTA, 2005,

p.9).

Ao tardar da vida, Oswaldo Lamartine apresenta vários problemas de saúde e se vê

obrigado a ir morar em Natal sob o olhar e os cuidados de familiares. Sua última morada é um

6 O terreno que ficava originalmente no território do munícipio de São Paulo do Potengi passa a integrar

o território do município de Riachuelo a partir de sua criação em 1963.

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flat no bairro de Petrópolis. Será nesse espaço que no dia 28 de março de 2007 Oswaldo comete

suicídio com arma de fogo.

Embora não tenha vivenciado plenamente o Seridó como mostra sua biografia, Os-

waldo Lamartine nasceu em uma família cuja origem remonta a esse espaço. Nessa perspectiva

pode-se afirmar que seu contexto familiar foi marcado pelo modelo de família sertaneja na qual

a figura paterna possui poder sobre a esposa e prole, e em um sentido mais amplo, sobre os

agregados e funcionários. Ou seja, a família sertaneja tradicional dos primeiros anos do século

XX mesmo deslocada de sua terra de origem ainda mantem uma mesma ordem hierárquica.

Essa figura paterna aparece de variadas formas nas narrativas familiares. O patri-

arca pode surgir como um personagem autoritário muitas vezes agressivo e controlador é o caso

relatado no livro Infância (1945) de Graciliano Ramos. Porém em certos contextos o patriarca

é tomado como um bastião de identidade, como um modelo de ser humano promovendo uma

forte idealização a seu redor. A “revolução de 1930” é um momento que influenciou muito na

trajetória de vida de certos escritores, sobretudo aqueles cujos familiares estiveram diretamente

envolvidos no fluxo dos fatos.

Ariano Suassuna constitui um exemplo deste estado de coisas e sobre ele Jossefra-

nia Vieira Martins escreve em sua dissertação intitulada, O reino encantado do Sertão: Uma

crítica da produção e do fechamento da representação do Sertão no romance de Ariano Suas-

suna (2011). Neste estudo ela faz uma análise de como o autor em sua escrita constrói um

espaço sertanejo ordenado e marcado por modos de sociabilidade ditos tradicionais. Essa nar-

rativa encerra, além disso, uma representação de seu pai João Suassuna ex-presidente do estado

da Paraíba, morto em função dos acontecimentos da “Revolução de 1930”, momento de grande

sofrimento para sua família.

O ano de 1930 é visto pelo jovem Suassuna um marco importante. Em sua literatura

sobre tudo no romance A pedra do Reino, busca mesclar a memória de seu falecido pai a do

Sertão construindo uma só identidade a partir deles. Desta forma o romance toma como foco

um passado idealizado, muito anterior à 1930 onde João Suassuna, na figura de um Rei, ainda

dominava aquelas terras.

Assim como Suassuna, Oswaldo Lamartine, o foco desta pesquisa, apresenta-se

como um desses filhos com uma intensa ligação ao pai e a terra natal além de dedicar toda uma

produção a representação dessa espacialidade, Sertão. Essa intensidade não se dá necessaria-

mente pelo tempo de contato com o pai e, sim pela importância que atribui a ele. É de vital

importância trabalhar essa ligação e os vários contextos que a circundam e, sendo assim nos

preocupamos em identificar a influência que esse processo teve em sua percepção de mundo

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bem como em que nível podemos determinar suas interferências na memória construída sobre

o pai.

Para conduzir sua pesquisa Martins se utilizou do método da desconstrução que

Jacques Derrida desenvolveu em obras como Gramatologia (1973) e a Escrita e a diferença

(2002). A desconstrução, tal como pensada por Derrida é um processo que surge a partir de sua

crítica ao logocentrismo expresso pela racionalidade ocidental a qual enxerga na fala aquilo que

há de mais puro e verdadeiro enquanto a escrita seria jogada como seu reflexo, portanto como

uma ilusão. Este duplo fala e escrita é uma das bases da Linguística de Ferdinand de Saussure,

mas esse é apenas um dos pares questionados nos textos de Derrida.

Martins, seguindo as prerrogativas de Derrida conduz sua pesquisa utilizando-se do

pensamento do rastro, ou seja, ela vai atrás aqueles pontos que indicam a arquiescritura do

texto ou o momento anterior à escrita, a sua própria possibilidade de existência. Assim o método

da desconstrução busca uma cena inicial e a partir dela os encadeamentos que possibilitaram a

formação da cena final da escrita, a publicação.

No mesmo sentido, mas adotando a perspectiva da análise do discurso de Michel

Pêcheux a intenção por trás dessa investigação acerca a da figura paterna de Oswaldo Lamartine

é a de delimitar uma primeira condição de produção de seu discurso sobre o Sertão. Essa pri-

meira motivação é justamente a sua condição de nascimento em meio a uma família tradicional

seridoense, elite dominante da política estadual que passou por um processo de desestruturação

após 1930 cujo epicentro é a queda de Juvenal Lamartine do governo. Como o contexto amplo

de modificações na política nacional e estadual influenciou consistentemente os rumos da vida

do pequeno Lamartine, é o que buscamos tratar neste capítulo.

Uma das maiores questões que cercam os políticos, tanto em vida quanto na morte,

é a perspectiva da sua memória pública. É o caso de Juvenal Lamartine de Faria. Peixoto (2017)

constrói seu conceito representação a partir de uma teorização em torno dos referenciais de

autores como, Schopenhauer, Derrida, Bourdieu e Borges. Nestes autores, a representação não

é linear, mas o fruto de uma reconstrução continua produzida na interação entre os sujeitos em

um meta-jogo no qual se envolvem indivíduos e instituições. Deste modo intende-se que os

vários discursos formados em torno da figura de Lamartine como uma luta de representações

na qual participam, além dele mesmo, amigos, aliados políticos, opositores e familiares. Cada

um destes emite seu discurso a partir, ou com apoio de determinadas instituições como e o caso

da Fundação José Augusto, a Academia Norte-rio-grandense de Letras, a Livraria José Olympio

ou a Coleção Mossoroense. Todas, instituições públicas ou privadas, contando com uma grande

influência de grupos políticos como veremos mais à frente.

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1.1 JUVENAL LAMARTINE E A PRIMEIRA REPÚBLICA NO RIO GRANDE DO NORTE

Alguns dos autores da historiografia sobre a primeira Republica dão maior relevân-

cia família Albuquerque Maranhão estabelecido na região de Natal onde construiu sua riqueza

no cultivo de cana de açúcar. Para estes autores, eles formam figuras chave no contexto de

fundação do Partido republicano do Rio Grande do Norte, sendo apontado Pedro Velho de Al-

buquerque Maranhão como uma das principais personalidades nesse cenário, como nos mostra

o texto de Souza (1985). Desta forma, a maioria dos autores elabora sua problematização desse

contexto a partir do conceito de oligarquia que no Rio Grande do Norte é organizada em torno

da autoridade patriarcal da posse da terra.

Sobre esse contexto republicano no Rio Grande do Norte Bueno (2016) demonstrou

que existia, com chagada da Republica no estado, uma expectativa de certos republicanos his-

tóricos, como Januncio da Nobrega, Manuel Dantas e Elias Souto, em torno de um modelo

republicano baseado nos ideais da Revolução francesa com foco em uma administração baseada

em princípios de cientificidade, igualdade entre outras questões. Para esses homens o regime

republicano implementado no estado por Pedro Velho de Albuquerque Maranhão constitui-se

como decepção já que demonstrava não pretender quebrar com as formas de governo reinantes

no período do império, ou seja, o poder concentrado nas mãos de determinadas famílias sobre-

tudo aquelas que detinham maior força econômica radicada na posse da terra.

Dentro deste seleto grupo estavam, além das famílias de Natal as famílias do Seridó

ligadas a agropecuária e mais tarde a produção de algodão. Tais famílias são colocadas nessa

abordagem como um poder secundário no estado e que em determinado momento do século

XX passam a frente deste primeiro grupo.

Em uma outra perspectiva da história estadual Lindoso (1989) discute que embora

os Albuquerque Maranhão tenham sido “derrotados” no jogo de poder pelos políticos do Seridó

não perderam sua relevância. O que acontece é que após um período de instabilidade os dois

grupos entram em um acordo que torna possível a permanência dos Maranhão na estrutura po-

lítica do estado em condição relativamente subalterna ao grupo seridoense. Esse arranjo perma-

nece até 1930 quando ocorre uma mudança trazida pelas forças interventoras federais, as quais

iram buscar minar o equilíbrio desses poderes tendo como aliados tanto certos representantes

da classe média quanto das oligarquias dissidentes do estado há muito tempo afastadas do po-

der.

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Pensando sobre essas famílias Peixoto (2010) põem em discussão o termo oligar-

quia argumentado em favor de sua substituição pelo termo grupo familiar especificamente den-

tro da política do Rio Grande do Norte na Primeira República. Não se tratam apenas de famílias

nucleares e sim de uma série de arranjos através de casamentos que permitiram que essas famí-

lias prosseguissem no comando político do estado.

Esse conceito de organizações familiares é relevante para esta pesquisa uma vez

que relaciona grupos específicos de famílias a territórios de influência e de poder. Por isso é

preciso pensar que cada um destes grupos se ligou historicamente a uma fração do território

potiguar produzindo sobre este um longo processo de construção de identidade.

Assim teríamos três zonas delimitadas. A primeira tem seu território correspondente

a comarca de Mossoró e foi comandada pelas famílias Guerra e os Gurgel. O que caracterizou

a ação dessa organização foi sua abertura a novas famílias vindas da Paraíba e do Ceará com-

pondo um grupo dinâmico e aberto. Esse dado pode ser uma das justificativas por trás de um

discurso de identidade que liga Mossoró a ideias de liberdade.

A segunda corresponde a região do Seridó e tem como base as famílias Galvão,

Farias e Medeiros e teve como característica seu fechamento a outras famílias produzindo suas

alianças internamente. Isso gerou um grupo mais coeso o que possibilitou que durante a Pri-

meira Republica, uma grande leva de seus representantes chagassem a altos postos do poder,

dentre os quais vamos destacar os governadores Juvenal Lamartine de Faria e José Augusto de

Medeiros. Esta organização familiar foi responsável por produzir uma identidade muito efici-

ente e duradoura para seu espaço, sendo o Seridó reconhecido até hoje como uma terra voltada

a tradição e a cultura local.

A terceira corresponde à região de Natal se formando pela aglutinação dos Pedrosa,

Albuquerque Maranhão e Lyra Tavares e, tal grupo foi formado mais tardiamente já no período

republicano no final do século XIX, passando a produzir discursivamente a identidade de Natal,

um processo que passa pela escrita de sua história feita por Tavarez de Lyra no âmbito do

Instituto Histórico e Geográfico do Rio grande do Norte fundado em 1902. A narrativa da cons-

trução de uma cidade totalmente nova em contraste com a antiga cidade colonial é levada a

cabo por meio de reformas majoritariamente estruturais com belas praças, avenidas e prédios

novos.

Fazemos todo esse percurso mergulhando na história do período republicado e na

constituição de narrativas de identidade regional para que fique claro desde já que as narrativas

que verificaremos mais adiante nas falas de Oswaldo Lamartine são gestadas muitos e muitos

anos antes dele em embates com outras narrativas que se chocaram e se consolidaram no âmbito

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da política e da cultura. Isto ficará mais evidente ainda ao analisarmos a trajetória política de

seu pai.

Juvenal Lamartine de Faria, um dos membros da organização familiar do Seridó,

nasceu em Serra Negra do Norte no Seridó potiguar em 1874 sendo o primogênito do coronel

Clementino Monteiro de Faria e sua esposa Paulina Umbelino dos Passos Monteiro. Logo após

sua alfabetização, feita em casa, vai para Caicó estudar Latim e Francês. Em 1891 ingressa no

Colégio Ateneu de Natal, mas em vias de iniciar os preparativos para os exames finais do curso

a instituição foi fechada, sendo então obrigado a concluir seus estudos no Liceu da Paraíba

(ARAÚJO E MEDEIROS, 2004).

Torna-se Bacharel pela Faculdade de Direito do Recife no ano de 1897. Antes de

seguir carreira política, Juvenal Lamartine trabalhará como juiz em Acari e como redator do

jornal “A República” órgão ligado ao partido republicano sob o comando de Pedro Velho Ma-

ranhão além de ter sido vice-diretor do Ateneu após sua reabertura. Todo esse percurso tinha

por fim segundo Araújo e Medeiros (2004) a construção do homem culto e, era a educação

destinada às classes dominantes da sociedade norte-rio-grandense do século XIX. Seriam esses

jovens que mais tarde formariam grande parte da classe política da Primeira República.

Este contexto é marcado pelo episódio das “salvações”7 no Rio Grande do Norte.

O processo das salvações consistiu em uma série de iniciativas tomadas por parte de grupos

militares que durante o governo do presidente Hermes da Fonseca (1910-1914) tiveram a in-

tenção de “salvar” os estados, sobretudo do Norte que consideravam ser “o problema oligár-

quico”. Essa situação no nível nacional e regional resvalou também na política norte-rio-gran-

dense a partir da iniciativa do capitão José da Penha, potiguar radicado no Ceará, que buscou

derrubar a oligarquia Maranhão e eleger ‘o salvador’ Leônidas Hermes da Fonseca filho do

presidente.

As intenções de Penha foram barradas pelo poder dos grupos familiares potiguares

que o enfrentaram de duas formas. Pela força com o apoio dos coronéis do Sertão que condu-

ziram verdadeiras lutas armadas contra os correligionários de Penha. E através do palanque com

grandes comícios e atos públicos que buscaram desmoralizar o salvacionista. Além disso, o

7 Com esse acontecimento, se pretendia fortificar a centralidade do poder federal minado pelas influên-

cias desses grupos nos estados substituindo-os por ‘salvadores’, indicados e apoiados pelo governo de

Hermes da Fonseca. Assim durante o período a partir de 1910 ocorreram grandes distúrbios no Norte,

como é o caso da Revolta do Juazeiro ou Sedição do Juazeiro no Ceará ocorrida em 1914 e que contou

com a liderança do padre Cicero junto a força dos coronéis do estado, sobretudo os da família Acioly

contra a nomeação de Franco Rabelo para o governo do estado, um dos focos de discussão do livro

Juazeiro do Padre Cícero (2002) de Manoel Bergström Lourenço Filho.

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próprio presidente desaprovou a conduta de Penha e no final nem mesmo o possível candidato

Leônidas Hermes compareceu a disputa obrigando José da Penha a se colocar como candidato.

Essa campanha de Penha também foi malfadada em função da falta de raízes polí-

ticas do candidato Leônidas Hermes da Fonseca no Rio Grande do Norte assim como aponta

Lindoso (1989). Diante disso, o governador Alberto Maranhão tinha uma escolha delicada a

fazer; quem poderia disputar contra Penha nas eleições estaduais de 1914? Na perspectiva de

Lindoso (1989), Maranhão pretendia indicar um candidato fora do círculo familiar, mas que

fosse de sua total confiança. Essa era a manobra do “apartar do sangue” que vinha sendo reali-

zada desde Pedro Velho. Ocorre que, no calor dos fatos, o grupo do Seridó passa a articular a

candidatura alternativa de Joaquim Ferreira Chaves algo que ia contra os planos do governador.

Juvenal Lamartine de Faria foi um dos mais importantes nomes desse contexto po-

lítico pois foi a partir dele de seu colega seridoense José Augusto de Medeiros que foi reorga-

nizado o sistema político do Seridó que contava com a ajuda dos homens de poder que perce-

biam a necessidade de se juntar a contra um inimigo comum. Esse grupo foi um dos braços

armados no combate a José da Penha. José Augusto, a pedido de Maranhão, foi consultar a

cúpula do Partido republicano no Rio de Janeiro personificada por Pinheiro Machado, um dos

opositores mais ferrenhos a política das salvações. Sua opinião foi a favor da candidatura de

Chaves (LINDOSO, 1989).

Após um período de instabilidade durante a disputa entre Penha e Chaves, nos anos

de 1913 a 1914, este último sai eleito e passa a conduzir manobras políticas no sentido de di-

minuir o poder da família Maranhão com vários atos e leis que diminua a participação dos

familiares no poder. Em um ato decisivo no ano de 1919, Chaves não inclui o nome de Paulo

Maranhão, sobrinho de Alberto Maranhão, entre os candidatos a deputado estadual o que sela

a quebra de relações entre o governo de Chaves e a família Maranhão.

Posteriormente, fortalecidos pelos eventos já mencionados os políticos do Seridó,

José Augusto e Juvenal Lamartine começam a traçar sua subida ao governo do estado contando

para tanto com o apoio do presidente Arthur Bernardes. Além disso, os seridoenses contavam

com um grande prestígio entre os principais coronéis do estado o que facilitou em muito as suas

futuras eleições para o governo estadual, dado o modelo eleitoral vigente na época.

Durante o seu mandato de governador José Augusto de Medeiros (1924-1927) bus-

cou dirimir ainda mais a participação dos membros do grupo Maranhão condenando suas can-

didaturas por considerá-los traidores do partido. A querela continuou até a intervenção do pre-

sidente Washington Luís que pleiteou um acordo para que ambos grupos pudessem concorrer

às eleições para o Senado e para a Câmara.

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Em 1927, Juvenal Lamartine foi cotado para o cargo de governador, voltando José

Augusto para o Senado. Lamartine assumiu o governo em 1928, já nos anos finais da Primeira

República, e enfrentaria novas forças dentro e fora do estado antes mesmo de ser derrubado

pela “Revolução de 1930”. Uma dessas novas forças foi representada por jovens de classe mé-

dia como João Café Filho8 um dos líderes de movimentos sindicais em Natal.

Todo o alvoroço produzido em torno do governo de Lamartine foi piorado por casos

de repressão policial a manifestantes sindicalistas. O caso da queima das atas da eleição para

vereador de 1928 passou para a história como um dos momentos mais escandalosos no qual o

governador Lamartine teria mandado queimar tais atas no sentido de evitar a posse de Café

Filho (CAFÉ FILHO, 1966).

No ano de 1930, o governador deveria indicar o nome do candidato do seu partido

a sucede-lo nas próximas eleições de 1931. Neste ano, Juvenal Lamartine convocou a reorga-

nização do Partido Republicano Federal do Rio Grande do Norte. Na sua perspectiva exposta

em Meu Governo (1933) a sua intenção era a de “reorganiza-lo sobre novas bases, de acordo

com a política econômica que hoje se pratica por toda parte” (LAMARTINE DE FARIA, 1933,

p. 87). Já na visão de Lindoso (1989) essa reorganização teve o objetivo de controlar o partido

que estava sob a chefia de José Augusto desde 1923. Nesse sentido ele escolheu para sucessor

Cristovam Dantas, seu sobrinho e membro atuante de seu governo.

Porém outra candidatura surge no cenário. O desembargador, Silvino Bezerra Neto,

irmão de José Augusto. Assim sendo, Lamartine tinha nas mãos um problema que era tanto

político quanto familiar. Isso deixa claro a situação de instabilidade que o governador enfren-

tava.

Além das oposições políticas o governo de Lamartine lidava com uma crise econô-

mica agravada com a queda do preço do algodão e a dívida de empréstimos contraídos ainda

em 1910 no governo de Alberto Maranhão somado ao atraso de nove meses no pagamento dos

salários do funcionalismo público. Tudo isso possibilitou a construção de um clima de alta

insatisfação popular nos núcleos urbanos sobre tudo entre a classe média. Tanto é que a chegada

da “Revolução” em outubro foi muito bem recebida na capital com desfiles e passeatas.

8 Segundo o Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930 (2001), João Café Filho nasceu em

Natal (RN) no dia 3 de fevereiro de 1899. Sua principal ocupação profissional foi a de jornalista tendo

fundado o periódico Jornal do Norte em 1921. Durante as décadas de vinte e de trinta passa por diversas

cidades fora do Rio Grande do Norte retornando em 1930 durante a “Revolução de 1930” onde exerceu

cargo de chefe de polícia. Funda em 1933 o Partido Social Nacionalista (PSN) do Rio Grande do Norte

é eleito Deputado federal em 1935. Mas o auge de sua carreira pública se dá em 1950 quando compõe

chapa com Getúlio Vargas para a eleição presidencial sendo eleito. Com a morte de Vargas assume a

presidência da república em 1954.

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A crise política que se formou em torno da eleição presidencial de 1930 com as

chapas do paulista Júlio Prestes candidato das oligarquias paulistas e o gaúcho Getúlio Vargas

concorrendo com o apoio das oligarquias mineiras. Dentro deste imbróglio que culminaria na

“Revolução de 1930” Juvenal Lamartine, se coloca a favor de Prestes que venceria as eleições

daquele ano. Sendo vitoriosa a “Revolução”, Lamartine assim como muitos outros governado-

res, foi retirado do cargo que ocupava exilando-se na Europa é voltando ao Brasil apenas em

1933.

Os anos de 1934 e 1935 foram especialmente agitados na política do Rio Grande

do Norte. Uma vez expulsos de seus cargos em 1930, José Augusto e Juvenal Lamartine se

colocaram a articular um retorno nas eleições parlamentares de 1934. Assim surgiu o Partido

Popular composto por alguns dos remanescentes do Partido Republicano do Rio grande do

Norte. Nas eleições desse ano, segundo Lindoso (1989), o partido venceria a Aliança Social

formada pelos partidos do interventor Mario Câmara e por Café Filho. Após uma acirrada luta

na justiça, motivada por suspeita de fraude, são convocadas eleições suplementares para 1935,

nas quais novamente serão derrotados.

No ano de 1935 no governo do interventor Mário Câmara um dos filhos de Juvenal

Lamartine, Octávio, foi morto pela polícia militar sob o comando do tenente Oscar Rangel.

Medeiros (2015) relata que o assassinato aconteceu na fazenda Ingá, propriedade de Lamartine

localizada no município de Acari. No momento em que chegava em casa após visitar uma fa-

zenda vizinha, Octávio se deparou com um caminhão carregado de soldados de polícia e pron-

tamente pediu a sua esposa Maria Dinorah Cavalcanti Lamartine de Faria que fosse buscar o

Habeas-corpus preventivo, concedido pela Corte de Apelações. Diante do documento o Tenente

Rangel teria dito que não viera até ali para prendê-lo e sim para matá-lo deferindo-lhe em se-

guida os tiros que o vitimaram.

O assassinato comoveu o estado, e as acusações feitas por Juvenal Lamartine9 au-

mentaram a crise em torno da figura do interventor que naquele momento pretendia lançar sua

candidatura ao governo o que o fez regredir na ideia para colocar o seu primo Elviro Carrilho

para disputar o pleito, que acabou sendo derrotado pelo candidato populista Rafael Fernandes

Gurjão.

9 No livro História de uma campanha (2008) é transcrito a mensagem enviada por Lamartine em 1935

para o ministro da justiça protestando contra as providencias tomadas a respeito dos assassinos de seu

filho.

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Durante todo esse período, Juvenal Lamartine não pode retornar a política nomi-

nalmente uma vez que uma candidatura sua ou de qualquer parente mais próximo, seria imedi-

atamente suprimida pelo governo Varguista.

Porém, como nos aponta Morais (2013) durante todo esse contexto o grupo do Se-

ridó foi o responsável por criar através da escrita uma memória política baseada no ressenti-

mento de 1930, a qual colocaria seus principais membros, Augusto e Juvenal, como vítimas e

resistência contra as arbitrariedades dos interventores. Essa narrativa se consolidou através da

impressa e da historiografia10 produzida por eles nos anos consecutivos a 1930 no Rio de Ja-

neiro, sua sede de operações. Foi de lá que em 1933 Lamartine escreveu Meu Governo uma

resposta a todas as acusações direcionadas a ele em inquéritos feitos pelo governo interventor,

sobretudo, as que diziam respeito a casos de corrupção, nepotismo e violências cometidas con-

tra adversários políticos. Assim, mesmo não voltando pessoalmente ao governo do estado, Ju-

venal Lamartine não se apartou de fato da vida política do estado. Continuou animando discus-

sões na esfera pública por meio da impressa e nos bastidores da atividade político partidária os

detalhes desta atuação constam no depoimento de Aluízio Alves disponível na publicação Ju-

venal Lamartine de Faria 1874/1956 (1994).

Deste modo podemos dizer que existe uma soma de narrativas. Elas começam com

a questão dos grupos familiares e as disputas de poder na Primeira Republica em que se destaca

a construção de identidades regionais dentro do Rio Grande do Norte. Posteriormente, com a

trajetória política de Juvenal Lamartine temos a consolidação de um poder regional, o do Seridó

que irá enfrentar seu maior desafio diante do poder centralizador do governo Varguista, sobre-

tudo no governo provisório. Isto acirra as discussões em torno de identidades regionais.

1.2 DEPOIMENTOS: EM LUTA PELA MEMÓRIA DE JUVENAL LAMARTINE DE FA-

RIA

Os depoimentos póstumos de amigos, admiradores e de inimigos políticos oferecem

uma série de indícios que permitem analisar aspectos de sua pessoa e personalidade tanto pu-

blica quanto privada. Cada um desses discursos se alinha a alguma instituição o que deixa a

mostra as ligações entre elas e determinadas correntes políticas, ou um uso político do passado

10 Entre os textos que compõe essa historiografia sobre o período final da republica velha História de

uma campanha (2008) de Edgar Barboza; O caso da República Velha no Rio grande do Norte (1992)

de Adauto da Câmara; como exerci meu governo (1934) de Dioclécio Duarte.

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através da construção de uma figura monumental. Encontramos esses nos livros Juvenal La-

martine de Faria 1874/1956 (1994) publicado pala Fundação José Augusto em homenagem ao

centenário de Lamartine e Do sindicato ao catete (1966) publicado pela editora José Olímpio.

Um dos discursos contrários a Lamartine é o livro de memórias intitulado Do sin-

dicato ao catete (1966) de João Café Filho que relata as duras perseguições que sofreu por parte

dos partidários do governador Lamartine em mais de uma ocasião. Ele conta como em 1928 ao

tentar eleger-se vereador por Natal enfrentou duras sanções por parte do governador.

Em 1928, tentei de novo, a sorte nas urnas, apresentando-me, com Pedro Dias

Guimarães e outros, candidato a vereador em Natal. No dia da eleição, funci-

onou, como sempre, o regime de distribuição de cédulas por funcionários do

governo. Um dos meus eleitores recusou a cédula dos candidatos do oficia-

lismo.

–– Ah! você vai votar com a oposição?

–– São meus amigos – explicou o eleitor.

–– Pois tome cuidado. Amanhã mandarei cortar a luz na sua padaria...

O funcionário encarregado de controlar o eleitorado, era um dos dirigentes da

empresa de energia elétrica, e irmão de Juvenal Lamartine, então Governador

do estado.

[...] Mesmo sob esse sistema de coação, vencemos o pleito. A oposição elegeu

a maioria da Câmara Municipal, O Governo do estado, em represália pela der-

rota sofrida, mandou queimar as atas eleitorais. O atentado foi executado pelo

chefe político local, partindo as instruções dos chefes da oligarquia. (CAFÉ

FILHO, 1966, p.51).

Antes, durante e após a deflagração da “Revolução de 1930”, a qual Café Filho era

um apoiador, relata que sofreu diversos atentados da “policia” de Lamartine no intento de lhe

tirar a vida. Tais narrativas buscam construir sobre Lamartine a imagem de um político impla-

cável, acostumado a utilizar-se da violência para o controle do ambiente político. Ele é assim

pensado como exemplo claro de político do que, para Café Filho, só poderia ser chamada de

República Velha.

Essa narrativa é publicada pela Livraria José Olympio Editora na coleção dos do-

cumentos brasileiros. Para Franzini (2006) essa coleção foi tida em sua época como um veículo

de difusão de novas visões sobre o Brasil contando com autores das mais variadas orientações

teóricas. Ela seria ainda fundamental para a ampliação do conhecimento histórico para além

dos círculos do IHGB e das incipientes Faculdades de Filosofia. Olympio Pereira Filho, o

idealizador da coleção, foi um homem que tinha boas relações tanto com os escritores quanto

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com figuras de poder da época como Filinto Müller11, Lourival Fontes12 e o próprio presidente

Getúlio Vargas (1882 – 1954). Deste modo é possível pensar que a escolha dessa narrativa de

Café Filho sobre o período faça parte de um processo de construção discursiva sobre a realidade

na qual os vencedores de 1930 contam como se deram os fatos.

Em um tom totalmente oposto Nilo Pereira, ao receber Veríssimo de Melo na Aca-

demia Norte-rio-grandense de Letras, em 1956, esboça a face de pioneiro de Juvenal destacando

suas contribuições para o desenvolvimento das tecnologias que fizeram de Natal uma cidade a

frente de seu tempo, para os parâmetros de modernidade da época.

E aquele homem austero, parecendo de poucas palavras, refletindo uma tanto

a fisionomia de seu Sertão, talvez mais um economista, um jurista e um so-

ciólogo do que um político na expressão menos nobre da palavra, ficava entre

a sisudez de Antônio de Souza e a irreverência de José Augusto, como quem,

numa síntese de temperamento e de ideias, estivesse destinado a ser, como foi,

o pioneiro de tanta coisa, o governante que, como já tive ocasião de dizer,

adiantou-se em trinta anos nas iniciativas e n as realizações que ligou sempre

seu nome. Sociologicamente, em 1930, estávamos em 1960: Dr. Lamartine

avançava no tempo, abria caminhos que permitiram a Natal ser, no segundo

conflito mundial, cidade do mundo, estrategicamente dotada de privilégios

que ele, o estadista, soube vislumbrar. (PEREIRA, 1994, p.21).

Veríssimo de Melo é então empossado na cadeira que teve como patrono Amaro

Cavalcanti e primeiro ocupante Juvenal Lamartine de Faria, a mesma seria depois repassada a

seu filho Oswaldo Lamartine.

No discurso de posse da cadeira de acadêmico, Melo destaca outro aspecto da per-

sonalidade de Lamartine. Ele fala que, enquanto criança presenciou os dias da “Revolução de

1930” e todo o escarnio dos vencedores para com o governador deposto com direito até a um

enterro simbólico de sua pessoa. Vale aqui a lembrança de que esse assim como outros que

trabalharemos aqui foi proferido em momentos de solenidade em memória de Lamartine e por-

tanto é podado e guiado pela cerimonia o que não quer dizer necessariamente que as palavras

11 O Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930 (2001), aponta seu nascimento em 1900, ori-

undo de uma família tradicional mato-grossense. De carreira militar esteve envolvido nos movimentos

tenentistas de 1922 e 1924. Sua participação na “Revolução de 1930” foi discreta, porém desempenhou

vários cargos durante o Estado Novo (1937-1945) tais como, oficial-de-gabinete do ministro da Guerra,

general Leite de Castro, secretário do interventor federal em São Paulo, João Alberto. 12 De acordo com o Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930 (2001), Lourival Fontes nasceu

em 1899, natural de Sergipe foi um jornalista partidário da Aliança Liberal movimento liderado por

Getúlio Vargas. Nas eleições presidenciais de 1950 participou ativamente é após a eleição de Vargas

ocupou o cargo de chefe do Gabinete Civil da Presidência da República. Após o suicídio de Getúlio

Vargas em 1954 elegeu-se Senador.

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de apreço não sejam sinceras, mas sim que elas têm um objetivo específico, que é o de construir

a imagem de Lamartine como imortal em seus feitos como político e intelectual.

Eu o vejo então pela primeira vez, na Avenida Tavares de Lira, cercado de

amigos e admiradores. Alto, elegante extremamente cordial para com todos

que dele se aproximavam, falando baixo e tranquilamente, confesso que tive

tremenda surpresa quando o comparava mentalmente com aquele outro que a

minha imaginação pintara, através de informações falsas que os seus inimigos

espalharam por todo Estado e até pelo País inteiro. (MELO, 1994).

Como podemos observar a Academia Norte Rio Grandense de Letras teve um papel

determinante para a memória do ex-governador. Isso não é nenhuma surpresa ao lembrarmos

que ele foi um dos seus sócios fundadores em 1936 e que foi eleito seu presidente em mais de

uma ocasião. Ao analisarmos seu período de fundação e alguns de seus membros mais proe-

minentes podemos concluir que essa instituição se constituiu tanto como um reduto para os

políticos afastados em 30 quanto como um espaço no qual vão se reunir alguns dos grandes da

política das décadas seguintes. No primeiro caso podemos citar, além de Juvenal, José Augusto

e Câmara Cascudo que tem seu mandato de deputado caçado nessa época. Já no segundo pode-

mos falar de Aluízio Alves uma das figuras mais relevantes na política da década de 50 e 60 e

um colega de Juvenal (ALVEZ, 1994).

Por falar em Câmara Cascudo, ele igualmente renderá suas homenagens a Lamar-

tine descrevendo-o como um causeur que segundo o dicionário da língua francesa é aquele que

desenvolve conversa brilhante, sedutora. Cascudo foi uma presença constante na casa de La-

martine, tanto na juventude quanto na vida adulta. Ele esteve junto a Lamartine na ocasião de

fundação da Academia Norte Rio Grandense de Letras em 1936 e posteriormente se constituiu

como um mestre para seu filho Oswaldo em sua trajetória de escritor apresentada no livro De

Cascudo para Oswaldo (2005). Em suas palavras ele descreve alguns aspectos de Juvenal:

A voz impostava as modalidades e sobre tudo os gestos. Aquela figura angu-

losa. A gesticulação. A mimica das mãos eloquentes. O sublinhado do olhar

malicioso. Os casos pitorescos, vivos eram constantes e são hoje, ai de mim,

uma presença na minha saudade (CASCUDO, 1994, p.12).

Antes de concluirmos essa etapa não podemos esquecer de falar da visão que o

próprio Lamartine construiu a cerca de si mesmo, afinal a representação é também um processo

individual no qual projetamos a imagem de nós mesmos para o mundo, que está em constante

mutação no decorrer de nossas vidas.

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Assim, como já mencionamos anteriormente, Lamartine publicou em 1933, um li-

vro chamado Meu Governo no qual irá se defender de muitas das acusações que foram feitas a

seu nome após a subida ao poder de Irineu Joffily13. Ele começa seu livro com a seguinte afir-

mativa:

As páginas que se vão ler, sob o título “O Meu Governo”, não tem a pretensão

de um livro – são um relatório honesto e consciencioso, certamente incom-

pleto, de dois anos e nove meses de uma administração, interrompida pela

revolução de outubro de 1930. Valem como uma prestação de contas ao povo

do Rio Grande do Norte. (LAMARTINE DE FARIA, 1933, p.3).

O texto que se segue é um compilado de informações e dados que dão conta espe-

cialmente das questões financeiras do estado na época em que Lamartine assumiu seu governo

sobretudo o problema do empréstimo contraído de bancos franceses em 1910. Esta primeira

parte refere-se às acusações de inadimplência que recebeu após a grave crise em que o estado

se encontrava em 1930. Em outro capitulo ele dedica-se a se defender das acusações de nepo-

tismo, repressão policial entre outras. Para todas elas, Lamartine dá basicamente a mesma res-

posta, estava fazendo o que era preciso, ou seja, ele admite muitos desses problemas, mas os

considera como necessários no momento. Podemos citar, o caso do nepotismo:

Escolhi meus auxiliares entre a mocidade estudiosa e inteligente do meu Es-

tado. Procurei me cercar de valores novos, cheios de ardor para o trabalho e

com a mentalidade aberta as ideias da administração e política contemporânea.

Isso mesmo declarei no discurso que pronunciei, recebendo o governo das

mãos do meu ilustre antecessor. (LAMARTINE DE FARIA, 1933, p.89).

Desta forma vemos quatro narrativas se desenrolando sobre sua figura. A aborda-

gem de Café Filho tenta nos convencer de que Lamartine se tratava de um “animal político”

usando a violência como fardamenta para combater seus inimigos. Já aos olhos de Pereira, Ju-

venal Lamartine foi um homem à frente de seu tempo, um entusiasta de novas tecnologias que

teria avançado a cidade de Natal anos adiante do resto do país. Para Cascudo o que aflora é a

da saudade emotiva dos amigos e familiares que conviveram com ele. E por fim sua própria

13 No Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930 (2001) Irineu Joffily nasceu em Campina

Grande no ano de 1886 e foi um jornalista, político e intelectual e magistrado que teve expressiva atua-

ção durante o a “Revolução de 1930” sendo delegado como primeiro interventor do governo provisório

de Getúlio Vargas para o Rio Grande do Norte. Sua postura moralizante que promoveu uma varredura

no aparato público do estado, foi muito mal vista por certas personalidades do cenário político local tais

como Adauto Câmara (1992) como uma forma de ataque desnecessário a figuras já derrotadas.

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imagem onde se mostra como um governante cumpridor de seus deveres e fiel a suas convic-

ções.

A seleção destas quatro abordagens nos permite pensar o jogo de representações

que se forma em torno de Juvenal Lamartine e como seu filho Oswaldo entrará nesse jogo

construindo sua própria versão sobre seu pai. A seguir veremos como ele articula essa visão.

1.3 A PERSPECTIVA DO FILHO

Seguindo então seu rastro vamos, em um primeiro momento realizar uma análise

de dois materiais que foram fundamentais para a problematização que gerou essa pesquisa. O

primeiro é o livro Em alpendres d’Acauã: Conversa com Oswaldo Lamartine de Faria (2001),

organizado por Natércia Campos fruto de uma tarde de questionamentos feitos por parentes

amigos e colegas a Oswaldo Lamartine. Esta obra foi publicada em parceria com a Fundação

José Augusto. É o segundo texto é, Juvenal Lamartine de Faria meu pai escrito por Oswaldo

Lamartine para a coletânea Juvenal Lamartine de Faria 1874-1956 (1994) também publicado

através da fundação José Augusto em homenagem ao centenário de Juvenal Lamartine.

O trabalho explorou vários aspectos de sua vida e carreira constituindo-se como

uma rica fonte de informações sobre ele, incluindo aí sua relação com o pai. Natércia, organi-

zadora da obra, escreve na Introdução do livro sobre a dificuldade que foi fazê-lo concordar

com a sabatina. A escritora pretende com isso mostrar os traços de um homem bem tímido, na

verdade, um homem que não gostava de holofotes tanto que ao longo do livro em diversas

ocasiões mencionará seu incômodo diante dos elogios feitos por homens como Câmara Cas-

cudo e Gilberto Freyre. Quando perguntado sobre como era sua relação com o pai sua primeira

assertiva é:

A de pai e amigo. A revolução de 30 me atirou em internatos até 1940. Ado-

lescência e primeira mocidade – barro molhado – longe dele, quando mais

carecia. Estudante, fui vadio e bagunceiro. Logo, não fui um bom filho – tendo

disso consciência e remorso. Era um homem austero, de sobriedade espartana,

sociável, força de vontade invulgar e resignação [...] Sombra de oiticica de

todos nós nas dúvidas, dívidas e dificuldades. (LAMARTINE DE FARIA,

2001, p.20).

Temos aqui duas questões. Primeiro o peso do afastamento do pai, a falta que fez

esse apoio paterno na adolescência. E segundo o remorso, sentimento recorrente em suas falas

começando pelo trágico acidente com arma de fogo que vitimou um colega, passando por seu

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mau comportamento quando jovem, até o seu apego pela caça quando jovem que o levou a

matar uma grande variedade de animais, entre eles uma onça pintada (LAMARTINE DE FA-

RIA, 2001, p.12).

Tal sentimento pode ter sido uma das razões que o levou a seguir para Lavras no

intuito de ter a mesma formação de seus irmãos Octávio e Clóvis e de, na velhice, se dedicar ao

cuidado e conservação de espécies de animais e plantas. Assim, o remorso pode ser interpretado

como uma das motivações por trás de sua escrita seja para reconstruir a memória de seu pai, ou

mesmo para valorizar sua terra e natureza.

Outro rastro importante é que toda sua narrativa sobre o pai se desenrola a partir de

1930 dando especial ênfase ao drama da família durante seu exílio na Europa. Desta forma nada

da longa carreira política de Juvenal é mencionado nem mesmo suas conquistas mais famosas.

Temos aqui uma passagem em que relata a angústia da família quando do exílio de Juvenal:

Ainda em Macau, por duas ou três vezes a casa madrugou cercada. Batiam na

porta, mandam as mulheres se compor, e davam uma corra à procura de meu

pai que diziam ter sido visto, disfarçado de mulher, entrando na casa. De uma

outra vez, quando fomos “visitados” por uma coluna, um jovem revolucioná-

rio disse para minha mãe “– Jogaram bola com a cabeça de seu marido ...” E

por dias e dias ela chorou ... Foi tempo duro e amargo para os mais velhos.

Nenhuma notícia de meu pai. Tudo se imaginava e para tudo se rezava. Até

que um dia seu Pascoal, pai de meu cunhado, recebeu um misterioso e enig-

mático telegrama “– Preço do sal estável”. Assinado por remetente desconhe-

cido. Deduziu-se que era de meu pai. Estava vivo. (LAMARTINE DE FARIA,

2001. p. 35).

Na mesma obra temos um encontro entre Oswaldo e Ariano Suassuna e sua con-

versa sobre as dificuldades de 30, aqui fica clara a identificação entre eles uma vez que ambos

foram afetados por esse evento, já que Suassuna perde o pai literalmente enquanto Oswaldo é

apartado de sua presença por longos anos. Além disso, os dois coabitaram naquele momento de

necessidade quando a família Suassuna foi abrigada por Juvenal. Mais tarde, no ano 2000 os

dois visitaram o chão da antiga morada localizada na Praia do Meio na cidade do Natal (LA-

MARTINE DE FARIA, 2001.p 32-33).

A grande amizade que estes dois homens desenvolvem em função deste evento nos

permite pensar como cada um deles vai, a seu modo, construir um legado histórico literário por

meio da escrita. Ao observarmos a construção que Suassuna faz de seu pai observamos que ela

é mística imaginativa, já a de Oswaldo, embora mais realista, carrega de forma similar uma

mistificação da figura paterna a colocando como uma espécie de mártir ou injustiçado pelas

circunstâncias históricas.

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O segundo texto a ser trabalhado tem por título, Juvenal Lamartine de Faria meu

pai escrito por Oswaldo Lamartine para a coletânea Juvenal Lamartine de Faria 1874-1956

(1994) que do mesmo modo que o primeiro texto tem sua composição e publicação pela Fun-

dação José Augusto. Nele Lamartine narra alguns aspectos do cotidiano da família na capital

potiguar bem como uma descrição da figura paterna, suas maiores qualidades e alguns defeitos.

Em todo texto existe uma ênfase no exílio na Europa e na cegueira que afetou seu pai na velhice.

O maior destaque aqui vai para a exaltação da intelectualidade de seu pai.

Antes da cegueira publicou conferencias e alguns estudos, principalmente so-

bre problemas econômicos do Estado. Sei que foi o orador de sua turma (Fa-

culdade de Direito de Recife, 1897). Na A Republica de 03/07/1903, há um

artigo Seridó, suas produções e sua riqueza, datado de Acari, 16 /06/1903 e

assinado J.L. Parece que ali germinava a semente da arvore que cultivou em

todo o seu viver: o permanente interesse pela vida socioeconômico-cultural

do nosso Estado. (LAMARTINE DE FARIA, 1994, p.10).

Outro ponto a ser observado neste texto é a questão religiosa já mencionada. Em

um trecho Oswaldo destaca uma certa aproximação do seu pai ser um panteísta. O panteísmo é

considerado como uma heresia pela Igreja Católica e consiste em acreditar que deus é um só

com o Universo é não um deus pessoal antropomorfo criador e direcionador da vida humana.

Dentro do Panteísmo temos a vertente naturalista ou materialista que enxerga a deus na natureza

e nos seus desígnios. Sobre este aspecto Oswaldo Lamartine expressa sua visão acerca da reli-

giosidade do pai da seguinte forma: “Nunca o vi rezar. Também nunca o vi se dizer materialista.

Uma vez me recomendou: – Observe atentamente cada planta, animal e até mesmo o chão em

que pisamos. Não queira ser mais sábio que a natureza. Antes procure aprender com ela” (LA-

MARTINE DE FARIA, 1994, p.11).

Esse elemento panteísta de Juvenal passou para seu filho. Em mais de uma oportu-

nidade Oswaldo salienta sua ligação a natureza sua afeição pelos animais e plantas sobretudo

os nativos do Sertão. Ao ser perguntado sobre sua fé respondeu:

Sou mais sensível ao mistério de uma semente de eucalipto (do tamanho de

um ponto no i) do que a essa liturgia-show que celebram em nome de Cristo.

Ignorante, confuso e desorientado me debato como em atormentado sonho de

Claudia Prócula. Mas, sou de 19. Logo, biologicamente, devo conhecer a ver-

dade bem antes de vocês... (LAMARTINE DE FARIA, 2001, p.76).

Porém, esse trecho deixa transparecer uma confusão. A menção a Claudia Prócula

é importante. Ela foi a esposa do governador romano Pôncio Pilatos que teria intercedido em

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favor de Jesus após receber uma mensagem divina em seu sonho. A figura de Prócula é repre-

sentada como uma mulher atormentada por estar entre os princípios romanos e cristãos. A cita-

ção dessa passagem pode ter a ver com seu próprio dilema. Assim como em muitas matriarcas

seridoenses sua mãe era extremamente católica, seus dois casamentos foram com mulheres ca-

tólicas, mas ao mesmo tempo seu pai, a figura de maior referência em sua vida, não demons-

trava tal fervor perante a religião tendo até mesmo críticas a sua estrutura mundana, a Igreja.

O que esses dois textos nos mostram é uma seleção entre os acontecimentos da vida

de seu pai para construir uma memória pública. Como vimos, o primeiro ponto é o evento de

1930 que impactou em mais de uma ocasião sua família. O segundo é a ênfase dada na sua

prática intelectual como um dos membros mais presentes na Academia Norte-rio-grandense de

letras e sua perseverança em continuar produzindo mesmo depois de cego. E por fim o apego

quase religioso à terra e a família que passou como lição a seus filhos e netos (LAMARTINE

DE FARIA, 1994.p. 15).

Não há nessas duas amostras um elogio direto as questões como a aviação, da qual

seu pai teria sido um dos maiores incentivadores, ou de tudo o que foi feito no seu governo em

termos de infraestrutura rodoviária de modo que não percebemos o homem público, mas sim o

ex-governador, pai de família e em alguma medida o agricultor tentando, apesar de as dificul-

dades se reerguer.

Passamos agora a discutir como o contexto de publicação de um livro pode nos

indicar a forma como Oswaldo Lamartine trabalhou substancialmente para a construção da fi-

gura de seu pai como um intelectual. Este livro é Velhos Costumes do meu Sertão (1965) de

autoria de Juvenal Lamartine é composto de memórias as quais foram somadas notas bibliográ-

ficas compiladas por Oswaldo. Cada memória acompanha uma categoria do cotidiano sertanejo

como a moradia, a culinária e os modos de sociabilidade no Seridó. Foi editado pela Fundação

José Augusto durante o mandato de governador de Aluízio Alves entre os anos de 1961 a 1966.

Esse governante impulsionou a publicação de diversos livros dos “grandes homens” do Rio

Grande do Norte com o objetivo de disseminar o conhecimento acumulado sobre e dentro do

estado. Estas publicações também buscavam produzir conhecimento sobre as realidades espe-

cíficas das microrregiões potiguares como é o caso do próprio Seridó potiguar. Tal vinculação

está contida na orelha do livro Velhos costumes do meu sertão.

As memórias contidas no livro foram originalmente publicadas no Jornal Tribuna do

Norte no último trimestre de 1954 quando Juvenal, já cego em fusão de um glaucoma, ditava

seus textos para algum neto que estivesse a disposição para escrever.

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Como filho de uma família possuidora de capital político do Seridó, Oswaldo Lamar-

tine de Faria mantinha contatos com sujeitos de relevância na política estadual. Como exemplos

podem ser citados os integrantes da família Rosado de Mossoró entre eles Vingt-um Rosado

criador da Coleção Mossoroense e Aloizio Alves autor do decreto de originou a Fundação José

Augusto em 1963. Ambas as instituições publicaram livros de tanto de Juvenal quanto de Os-

waldo Lamartine entre as décadas de 70 e 80.

O prefácio do livro foi escrito por Oswaldo. De início, ele salienta que ali estavam

compilados os artigos publicados por seu pai na Tribuna do Norte14 no decorrer do ano de 1954.

Ele diz neste texto do estado físico de seu pai nos últimos anos de vida exaltando sua perseve-

rança quando mesmo cego se deslocava de Natal para São Paulo do Potengi para direcionar

pessoalmente os trabalhos na fazenda Lagoa Nova.

O que Oswaldo Lamartine mostra aqui é o retrato de um homem de fibra inabalável

que buscou continuar com sua atividade intelectual mesmo não podendo escrever com as pró-

prias mãos. Oswaldo também deixa clara a natureza memorialística do trabalho ao afirmar o

desagrado do pai em conceber um texto sem busca bibliográfica apropriada somando apenas as

memórias, essa pesquisa será feita pelo filho e colocada no livro sob forma de notas de rodapé.

Contudo, o mais relevante neste pequeno texto é a de que ele não surgiu por uma inciativa de

Juvenal e sim por solicitação expressa de seu filho.

No último período de férias que passamos em casa, adverti-lo da necessidade

de trabalhar melhor seus escritos, mormente aqueles que podiam representar,

amanhã, um depoimento de seu tempo para os estudiosos. Concordou, assim,

em reescreve-los ou retoca-los para eventual e posterior edição e juntos revi-

samos a serie Velhos Costumes do meu Sertão. (LAMARTINE DE FARIA,

1965, p.12).

Além de demonstrar que ouve um processo de seleção nos textos que constam no livro,

esse trecho deixa transparecer a intenção de Oswaldo de salvaguardar as memórias do pai, me-

mórias como já dito, selecionadas para formar uma figura de quem teria sido e quais foram as

prioridades desse homem. Isso se tornou uma urgência diante da situação de avançada idade de

Juvenal Lamartine. Essa seleção fica ainda mais evidente ao olhamos para o conjunto de artigos

14 O jornal Tribuna do Norte, fundado em 1950, foi uma iniciativa de Aluísio Alves político norte-rio-

grandense que pretendia com isso abrir “um jornal que, nos dando suporte político antes e durante as

campanhas, pudesse, nos intervalos eleitorais, criar um estado de espirito, uma força de opinião” (AL-

VEZ, 1994, p.55).

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publicados por Juvenal Lamartine na Tribuna do Norte15 durante o segundo semestre de 1954.

Entre eles além da série Velhos costumes do meu Sertão existiam textos de critica a política e a

economia daquele período final da era Vargas.

Outro forte indicio de que Oswaldo Lamartine participou ativamente no processo de

publicação dos livros de seu pai está no folheto Quatro cartas (1998) publicado pela Coleção

Mossoroense que consiste de correspondências enviadas entre 1992 e 1993. O tema central das

cartas é a questão editorial dos livros de seu pai Meu Governo (1933) e Velhos Costumes do

meu Sertão (1965). Na carta número dois de 07 de novembro de 1992, ele salienta seu desejo

de uma segunda edição do livro Velhos costumes do meu Sertão:

Mas por motivos de higiene, vamos falar de flores... Velhos costumes do meu

sertão... está na FJA para Iapery examinar a possibilidade de uma segunda ed.,

corrigida e normal, i é, sem talidominada. A ele Yapery – nunca sei se o Y

desse homem é adiante ou atrás (?) – sugeri contato com Vingt-Un indagando

da conveniência de um coedição DGD-CM (o papel p/ edição de 500 exem-

plares, será por minha conta). (LAMARTINE DE FARIA, 1992, p.5).

Além dessa passagem que revela esse seu papel ativo, outras passagens demonstram

que não apenas ele participou na idealização e produção do material, mas também na distribui-

ção deste para as bibliotecas públicas do estado por meio da fundação Câmara Cascudo como

consta na carta de número quatro de primeiro de Janeiro de 1993.

As notas de Oswaldo Lamartine têm como objetivo oferecer referências bibliográficas

das informações contidas no livro e acrescentar algumas histórias ouvidas e vistas pelo próprio

Oswaldo Lamartine na sua trajetória. A principal referência nestas notas é Câmara Cascudo

sobretudo nos textos que dizem respeito a vida cotidiana no Sertão como os sobre a casa ou a

alimentação.

1.6 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SERIDOENSE DE OSWALDO LAMARTINE

DE FARIA

O percurso desenhado até aqui passou pela formação dos grupos familiares na Pri-

meira Republica, a atuação dos políticos do Seridó mais especificamente de Juvenal Lamartine,

sua subida e queda do governo do estado, todo o processo de luta pela narrativa de sua memória

15 Tais arquivos estão disponíveis para a consulta no arquivo do jornal Tribuna do Norte localizado no

Setor de coleções especiais da Biblioteca Central Zila Mamede. Campos Central da Universidade Fe-

deral do Rio Grande do Norte.

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até chegar na forma como Oswaldo Lamartine, seu filho mais novo, adentra nessa luta. Isto nos

ajudou a pensar nas motivações por trás de muitos dos componentes da sua forma de ver o

mundo, especialmente, no que diz respeito a trajetória de sua família de seu pai, as lembranças

de 1930, e a saudade das coisas do Sertão. Descobrimos com isso que sua forte ligação ao

espaço seridoense se encaixa em uma linha discursiva que se estabeleceu anos antes da produ-

ção escrita desse autor e que consiste da afirmação de uma identidade seridoense.

Aqui o conceito de identidade é pensado sobre a ótica de Bennedict Anderson

(2008). Sua abordagem utiliza o termo nacionalidade e não identidade, porém ele mesmo afirma

que sua ideia de nação é operacional como um modelo. A nação é tomada como uma comuni-

dade imaginária marcada por certas características fundamentais. Ela é imaginária por que não

é natural é sim uma construção social. É limitada no sentido de possuir um território próprio

que faz fronteira com outros. E por fim a ideia de comunidade é aplicada para dizer que, apesar

de todas as explorações e injustiças que possam ser praticados dentro dela, a visão que prevalece

é a de uma sociedade horizontal marcada por profunda camaradagem entre seus membros.

Essa ideia de comunidade imaginaria pode ser operacionalizada para intender a re-

lação de Lamartine e o Seridó uma vez que, em seu ponto de vista, essa região é compreendida

como uma nação. O processo de regionalização que deu origem ao Seridó começa, segundo

Macedo (2012) ainda no período colonial com a construção do território a partir das freguesias

e vilas e cidades. A ocupação daquele espaço veio através da pecuária, elemento chave na cons-

trução identitária daquele lugar. Porém, é na alvorada da Republica que as elites locais, na figura

dos grandes proprietários de terra, passam a trabalhar com mais força o discurso regional (MA-

CEDO, 2012, p.21). Essa produção discursiva do espaço é construída através de textos de au-

tores como Manuel Dantas, Juvenal Lamartine, José Augusto de Medeiros entre outros16.

O contexto de crise de 1930 foi um elemento catalizador para essa elite seridoense

no momento em que parte desse grupo “exila-se” no Rio de janeiro e passa a construir um

discurso profundamente marcado pelo regionalismo e pelo ressentimento. Isso foi feito visando

construir também uma diferença entre o tempo da tradição e o da modernidade, perversa e di-

luidora dos bons e sadios costumes. Essa “modernidade” pode ser intendida como uma analogia

para todo o período posterior a “Revolução de 1930” com seus interventores “estrangeiros”, ou

seja, temos também uma alteridade sendo criada entre os de nativos e os de fora.

16 Uma pesquisa que trabalha com os discursos destes três autores sobre o Seridó é a dissertação de

Olivia Morais de Medeiros Neta, Ser (tão) Seridó: Em suas cartografias espaciais (2007).

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Entretanto, a ideia do moderno como algo ruim, ou destruidor, se contrapõe ao dis-

curso que essas mesmas elites exercitaram nas décadas de 10 e 20 que compreendia a moder-

nidade como algo bom para o povo sertanejo, isso pode ser muito observado nos textos de

Juvenal Lamartine (1916) e Eloy de Souza (1909) sobre o problema das secas do Nordeste.

Nestes textos, o moderno é tomado do ponto de vista utilitário para resolver um problema de

longa data.

A elaboração do sentimento de pertencimento só é possível devido ao processo de

peregrinações dessas elites tanto dentro quanto fora do território nacional. Esse conceito cu-

nhado por Anderson (2008.p. 92) tem por finalidade explicar um tipo de jornada, em seu per-

curso, constroem sentidos entre “tempos, espaços e condições” e sobre tudo entre pessoas de

um mesmo grupo social. Logo ao compartilharem um mesmo destino de “exilados”, “derrota-

dos” e “injustiçados” pelos eventos de 1930, o grupo de políticos e intelectuais seridoenses

elaboram sua identidade.

A ideia de limite também se aplica ao Seridó. Esse território que compreende di-

versas cidades e municípios unidos em uma região. E sobre isso é preciso destacar que existem

dois territórios chamados Seridó. São fronteiriços e parte fica no Rio Grande do Norte e outro

na Paraíba. Essas duas parcelas de terra já pertenceram a Paraíba. Foi no período de 1831 a

1836 que uma grande parcela da região passou a ser potiguar através de projeto de lei de autoria

do Senador Francisco de Brito Guerra. Essa separação foi motivo de muita contestação durante

a história e não cabe aqui explicar todo o imbróglio. O que vale a pena reter é que o território

que hoje chamamos de Seridó definitivamente não é natural nem muito menos ancestral como

se gosta de pensar.

E finalmente a questão da comunidade. Nos textos de Oswaldo Lamartine de Faria

existem trechos que dizem que a escravidão teria sido menos árdua nos Sertões além de falar

da autoridade paterna do coronel. Existe ainda, a valoriza os artesãos e vaqueiros como homens

sábios. Desta forma, ficam de lado os problemas como a extrema pobreza daqueles que não

possuíam terras e tinham que trabalhar nos latifúndios dos fazendeiros sujeitos aos seus des-

mandos. É o retrato de uma sociedade que se não é igualitária e sim familiar patriarcal, ou seja,

todos estão sob a autoridade do patriarca. Aspectos desta visão são compartilhados por autores,

tanto de dentro quanto de fora do Seridó como Luís da Câmara Cascudo, Olavo de Medeiros

Filho, Manuel Dantas e José Augusto de Medeiros.

Oswaldo Lamartine se coloca a favor dessa forma de pensar, mesmo que, consci-

entemente confessasse horror pela política. Ele toma 1930 como um marco da modernidade

destruidora dos modos de vida do sertanejo, através da chegada dos automóveis, da eletricidade

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e do rádio. Nesse sentido, ele esquece que foi no governo de seu pai que esses elementos co-

meçaram a chegar nas zonas interioranas do Rio Grande do Norte, ou seja, ele novamente sele-

ciona e oculta elementos para construir sua narrativa. O apego ao passado e as coisas do Sertão,

é um posicionamento com o qual ele conviveu, ou seja, era um discurso disponível no seu con-

texto social e que devido aos fatos que se processaram na sua trajetória de vida, como as mu-

danças constantes, fez com que ele sentisse a necessidade de escrever e pesquisar sobre o as-

sunto.

Seus textos são carregados de emotividade e alegada saudade das coisas passadas

do “Sertão do nunca mais”. Ele se vê como um exilado, alguém que foi apartado de sua terra

natal. Para Said (2003) o exílio é um fenômeno complexo de grande historicidade. Trata-se de

uma punição excepcional dado pelo estado. Existem ainda várias situações que podem ser con-

fundidas com o exílio. A primeira delas é a expatriação que diz respeito aqueles que saem vo-

luntariamente de seus estados natais e o fazem por motivos sociais ou financeiros. Estas pessoas

sofrem o peso do afastamento e buscam reconstruir seus referenciais de mundo, porém, não

sofrem as mesmas sanções dos exilados já que não são impedidos de voltar para casa. É o oposto

do que acontece com os refugiados, condição comum as vítimas da guerra contemporânea que

são expulsos de seus países em grupos.

A situação de Lamartine pode ser entendida como expatriação no sentido de que

ele foi voluntariamente viver em outras localidades motivado por questões de oportunidade

financeira. Ele tem a possibilidade de voltar, mas não o faz por que possui uma vida estabelecida

nestes lugares. Discutiremos melhor esse ponto no capítulo dois.

Já destacamos anteriormente que uma grande parte de sua vida foi passada longe

do Seridó e isso pode ter influenciado em sua constante necessidade de reafirmar tanto sua

ligação com o espaço através de suas origens familiares quanto seu apego sentimental aquele

lugar. A escrita torna-se então uma forma de manter viva essa visão sobre si mesmo é de cons-

truir para sua família um passado idealizado no qual as fazendas de gado são o palco de uma

sociabilidade sem crises ou revoltas.

Um dos meios pelos quais Lamartine buscou manter contato com esse espaço foi

trocar cartas com os membros da família que ainda viviam no Seridó. Um dos parentes com

quem mantinha conversa era seu primo Ramiro Monteiro Dantas residente em Serra Negra do

Norte terra natal de seu pai. Sobre essas correspondências devemos evidenciar o material em

que foram escritas, as folhas de rosto de livros que os dois trocavam à distância. Lembrando

que nesta época, por volta do fim da década de 80 e início de 90 Oswaldo Lamartine ainda

morava no Rio de Janeiro. Os livros eram em geral sobre temas sertanejos com títulos de Rachel

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de Queiroz e José Lins do Rego. Em uma dessas cartas17 encontramos um relato sobre a força

dessa identidade para ele:

Na verdade, vivi poucos anos no Sertão, mas vivi intensamente convivendo e

ouvindo meu pai, Pedro ourives, Donato, Chico Lins e Chico Zuza. Foi um

curso intensivo depois aperfeiçoado com estágios e leituras. Muitos nasceram

e se enterraram por aí sem atinar para as coisas desse mundo. E o pouco que

sei procurei anotar e divulgar. (LAMARTINE DE FARIA, 1993).

Assim ele se justifica dizendo que mesmo não tendo vivido sua vida inteira no Ser-

tão tem mais amor e dedicação a ele do que aqueles que nasceram e morreram lá. É uma afir-

mação de que mesmo longe não perdeu suas raízes e que antes de tudo as cultivou. Por falar em

raízes a ideia vegetal de ser fincado na terra está constantemente em suas falas. É dito por ele

“sou algarobeira na Faz. Saudade (Serra Negra/RN), semeada por Ramiro Monteiro Dantas

(1912 -1997)” (2001, p. 40). E entre as cartas que mencionamos encontramos essa pequena

mensagem datada de 1994, “Ramiro, sem notícias suas (?) ainda meu “pé de algaroba” é fre-

quentado pelo galo de campina?”.

Sua exaltação dos ferros de marcar gado como uma heráldica sertaneja também diz

da valorização, de um sentimento de pertença. Os ferros que nos tempos áureos do criatório

seridoense eram usados para marcar os gados identificando uma posse, tornam-se, sob a ótica

de Lamartine, os legítimos brasões de família. Assim ele passa a usar seu ferro como assinatura

em várias ocasiões imprimindo-o também em seus móveis, louças e até mesmo fazendo con-

feccionar um tapete18 no qual estão estampados os ferros de seu pai e avô materno junto com

folhas de algodão e cabeças de bois representando toda a força simbólica de sua herança fami-

liar partindo da pecuária e chegando na cotonicultura.

Tal posicionamento revela a intenção de Lamartine de não apenas manter viva as

tradições e a memória de sua família, mas também de reforçar sua ligação a esse passado glo-

rioso como uma autopreservação, em meio ao cotidiano da grande metrópole carioca.

Neste capitulo trabalhamos inicialmente com a imagem que se construiu acerca da

figura de Juvenal Lamartine de Faria, este político que no final da primeira Republica esteve

no epicentro de grandes mudanças políticas sociais e econômicas tanto em seu estado o Rio

Grande do Norte quanto no Brasil. Identificamos a existência de uma série de discursos que

17 Anexo. 18 Há um desenho de tal peça na obra Ferro de Ribeiras do Rio Grande do Norte (1984) na página 20.

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tentaram construir sobre ele as mais variadas representações, desde político inovador a gover-

nador autoritário, todas se desenvolvendo em um processo ao qual Peixoto chama de meta jogo

onde a representação ocorre de forma não linear e dinâmica.

Para entender como surgiu neste autor o profundo apego pelas narrativas de sua

terra natal foi necessário ir afundo no seu contexto familiar e de como ele acabou em certo

momento se misturando a um conturbado momento da política nacional. A análise deste traba-

lho sobre a memória de Juvenal Lamartine foi fundamental para nossa investigação sobre o seu

filho Oswaldo Lamartine uma vez que a partir dele podemos observar a forte influência que

essa figura teve sobre ele nos níveis mais diversos, como um modelo de homem sertanejo, como

escritor da cultura seridoense, ou como um exemplo de coragem diante das adversidades.

Esse filho adentra neste palco de representações acerca de sua figura paterna para

valorizar seu lado tradicionalista, e intelectual deixando a parte algumas grandes contribuições

nas áreas da Aviação ou do voto feminino sempre exaltadas por outros. Ele também deixa de

considerar o animal político que era Juvenal Lamartine preferindo sempre adotar uma postura

de repudio a política mesmo que, ao fazer isso, mostre com clareza suas posições com relação

ao tema.

A abordagem de Oswaldo também é carregada de sentimento de remorso e dor por

todos os percalços que a família enfrentou após a “Revolução de 1930”, vista por ele como um

marco desagregador de valores tradicionais. Desta forma podemos intender a elaboração que

ele faz sobre a memória do pai como um processo de autoafirmação no sentido de construir

solidamente sua linhagem remontando aos patriarcas seridoenses, homens de poder inabalável.

Diante desta questão se fez necessário discutir sobre a identidade seridoense que se

fortalece com a atuação dos interventores federais após 1930. Esta situação leva a valorização

das tradições locais em detrimento de uma ideia de unidade nacional imposta pelos primeiros

governos Vargas. Oswaldo Lamartine, mesmo não participando ativamente destes eventos, já

que na época era apenas uma criança, toma para si a tarefa de continuar com esse discurso sobre

a terra e cultura seridoenses seguindo os passos de seu pai e de outros como ele. Isso tudo

sustentou nele a grande vontade de permanecer ligado ao lugar Sertão, salientando e elaborando

a cada texto suas raízes sertanejas.

Mesmo que este espaço Seridó tenha tido esta grande relevância no desenvolvi-

mento de Oswaldo Lamartine não podemos esquecer de outros lugares que também fizeram

parte de sua trajetória de vida. No próximo capitulo investigaremos como cada um deles se

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relacionou com sua percepção de mundo pensando a partir dos conceitos de Yi-Fu Tuan a rela-

ção entre o homem e o meio que o cerca. Aproveitamos também para refletir sobre as possibi-

lidades de intercâmbio entre a História e a Geografia e entre o espaço e o tempo.

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CAPITULO II: UM HOMEM EM MOVIMENTO: ESPAÇO, LUGAR E TOPOFILIA

NA TRAJETORIA OSWALDO LAMARTINE DE FARIA

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Oswaldo Lamartine de Faria, foi um técnico agrônomo e escritor norte-rio-gran-

dense com atuação entre as décadas de 1950 a 1980. Em toda a sua produção intelectual, des-

pontam discussões que apregoam fortes sentimentos a lugares específicos pelos quais ele pas-

sou em sua trajetória de vida. Este ponto é importante quando lembramos que ele foi um homem

de muitas moradas ao longo da vida tendo, por isso, inúmeras experiências espaciais a serem

exploradas e discutidas.

Já lembramos anteriormente alguns trabalhos acadêmicos sobre Lamartine produ-

zidos tanto nas áreas da História e das Letras. Em primeiro lugar temos Medeiros Neta (2007)

que tratou da historiografia seridoense a partir de autores como Manuel Dantas, José Augusto

de Medeiros Juvenal Lamartine e próprio Oswaldo Lamartine. Esta pesquisa se propôs a pensar

em como esses autores, ligados por laços de parentesco, puderam construir o espaço do Seridó

através de seus textos. Já Peñero (2010) procurou fazer uma comparação entre os textos Sertões

do Seridó (1980) de Lamartine e Grande Sertão Veredas (2011) de Guimarães Rosa buscando

traçar uma comparação entre a construção do Sertão em Rosa e suas aproximações com o Sertão

de Lamartine.

No trabalho mais recente, Castro (2015) compõe um panorama sobre a vida de Os-

waldo Lamartine trazendo para tanto vareadas fontes, seu estudo tem um tom biográfico. Todos

esses trabalhos vão investigar de uma forma ou de outra a relação entre Oswaldo Lamartine

com o Seridó, porém a exceção de Castro, quase nenhum menciona os outros espaços onde ele

viveu e sobre tudo a influência deles na construção de sua visão de mundo, pretendemos agora

trabalhar sobre essa lacuna.

Sendo assim, este capítulo tratará de como Lamartine percebe seu meio nas diversas

espacialidades em que ele irá se encontrar durante a vida tendo sempre em mente como se

constrói a ligação entre esse homem e os espaços. Isso será feito levando em conta os postulados

teóricos de Yi-Fu Tuan, em dois de seus livros, Topofilia (1980) e Espaço e lugar: A perspec-

tiva da experiência (2013).

O primeiro passo para se compreender essa questão é relembrar da história de vida

de Oswaldo Lamartine dando ênfase em sua formação familiar e carreira profissional bem como

no ambiente cultural de sua época. Ele faz parte de uma família prestigiada seu pai Juvenal

Lamartine (1874-1956) foi um dos chefes políticos do Estado e um dos principais personagens

das tramas das últimas décadas da República Velha e da “Revolução de 1930” em um contexto

de grandes modificações políticas e sociais. Ocupando vários cargos políticos, desde 1906 em

1930 Lamartine se põe do lado de Washington Luís e quando tem início o movimento de 1930

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ele é retirado do posto de governador e forçado a se exilar na Europa de onde só retorna em

1932 para o Rio de Janeiro.

É a partir deste momento será levado a estudar em colégios internos, primeiro no

Recife e posteriormente no Rio de Janeiro. Sua formação superior inclui curso de técnico agrí-

cola na Escola Superior de agronomia de Lavras em Minas Gerais após a conclusão do curso

retorna para terras potiguares e vai ajudar o pai na administração da fazenda Lagoa Nova em

São Paulo do Potengi. Durante sua vida profissional trabalhará como administrador no Núcleo

Agrícola de Pium e no Serviço de Colonização do Ministério da Agricultura em Barra da Corda

Maranhão. Deve-se acrescentar ainda que durante muitos anos foi funcionário do Banco do

Nordeste sediado no Rio de Janeiro. Lamartine nos lembra que mesmo estando tanto tempo

afastado sempre buscou um jeito de visitar sua terra natal fazendo isso em seus períodos de

férias escolares e de trabalho

Estas são condições importantes que possibilitaram o desenvolvimento em Oswaldo

Lamartine de fortes sentimentos de ligação a determinados espaços entre os quais o Seridó será

o mais importante. A seguir vamos mostrar como esses sentimentos vão se construindo e re-

construindo ao longo da sua vida. Para tanto, embarcamos nessa história guiados por Tuan e

seus conceitos de Espaço, Lugar, Experiência e Topofilia.

2.1 RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E ESPAÇO NA HISTORIOGRAFIA

Este estudo é dedicado a questões referentes a história e espaços, mais especifica-

mente como essas categorias se coadunam na trajetória de vida e escrita de Oswaldo Lamartine

de Faria. Para tanto, é necessário primeiramente pensar em como se deu essa colaboração dentro

do meio historiográfico. É preciso dizer de início que a historiografia é um campo imenso com

uma serie de vertentes e projetos de “fazer história”, distintos entre si, dois dos quais nos servem

de exemplo para aprontar nossa aproximação com Yi-Fu Tuan.

Um dos projetos historiográficos que mais se preocupou em conectar história e es-

paço, ou como se coadunam tempo e espaço na história, foi o movimento dos Annales que

surgiu na Europa, no período entre as duas grandes guerras mundiais, especificamente no ano

turbulento de 1929 que foi marcado por crises econômicas que impactaram, sobre tudo, a Eu-

ropa e os Estados Unidos. Neste ano, os historiadores, Lucien Febvre e Marc Bloch publicam

pela primeira vez a revista Annales d’historie économique et sociale, que surge no cenário fran-

cês com a intenção de ser, nas palavras de Peter Burke “o porta-voz, melhor dizendo, o alto-

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falante de difusão dos apelos dos editores em favor de uma abordagem nova e interdisciplinar

da história” (1992, p.26).

A preocupação com os espaços e com a história surge para os Annales através de

um de seus fundadores, Lucien Frebvre. Isso se deu, em parte pelo contato de Febvre com os

estudos do geografo Paul Vital de la Blache, sua teoria do possibilíssimo geográfico, ele propôs

que os seres humanos não têm seu modo de vida obrigatoriamente determinado pelas condições

naturais, por mais que estas sejam relevantes, existem sempre possibilidades de mudança o que

coloca o ser humano no centro da discussão como um agente ativo e não passivo da mudança

geográfica. Esse modo de pensar atraiu a atenção de Frebvre que chegou mesmo a desenvolver

estudos com essa premissa, como por exemplo, A terra e evolução humana (1922).

Esse contato entre a corrente dos Annales e a Geografia vai se intensificar a partir

da segunda geração do movimento marcada pelo nome de Fernand Braudel. Uma de suas obras

mais conhecidas, O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II (1949), foi

um grande marco para o fazer historiográfico. Para Aguirre (2003), esta obra foi inovadora em

muitos aspectos, a começar pela escolha da temática de estudo, a região do Mediterrâneo, tra-

tado por Braudel não apenas como um cenário onde se desenrola a história, mas como parte

integrante, um de seus personagens.

Ao historicizar a trajetória desse mar, o autor teve que se desprender das periodici-

dades convencionais e olhar mais além, surgem daí as ideias de curta, média e longa duração.

Deste modo a história do Mediterrâneo é apreendida em diferentes dimensões, indo desde a

geologia e condições ambientais como o clima, até os processos sociais e econômicos que se

desenrolaram naquela região. A perspectiva historiográfica que surge a partir dessa obra de

Braudel, conhecida como geo-história, é relevante para tratar de nossa aproximação, pois se

propõe a pensar a história e a geografia como saberes interligados.

Outra abordagem sobre a compreensão das dinâmicas de história e espaço é apre-

sentada na vertente da Begriffsgeschichte ou História dos conceitos, linha de pensamento alemã

desenvolvida nos anos de 1960 por Otto Brunner, Werner Conze e Reinhart Koselleck, incial-

mente na cidade de Stuttgart onde são publicados os volumes de Conceitos básicos de história:

um dicionário sobre os princípios da linguagem político-social na Alemanha (1972-1997).

No centro das pretensões do grupo estava a construção de uma verdadeira história

conceitual que tomasse a linguagem como foco de estudo no sentido de investigar a historici-

dade dos conceitos e seus variados significados sincrônica e diacronicamente, ou seja, como

um determinado conceito é significado em um mesmo período histórico e ou através do tempo

(BENTIVOGLIO, 2010).

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Um dos autores dessa corrente de pensamento é Reinhart Koselleck que no seu tra-

balho Estratos de tempo: estudos sobre história (2014), discute essa questão de tempo e espaço.

Em sua perspectiva essas duas categorias não podem ser compreendidas satisfatoriamente de

formas separadas. Elas devem, antes de tudo serem entendidas como conceitos meta - históricos

sem os quais a pratica do historiador não se sustenta. Além, dessa categoria meta – histórica,

que corresponde a condições mesologias como o relevo ou o clima, existe o espaço construído

e modificado pelo homem, como por exemplo as cidades, estradas e fazendas.

Para Koselleck, o tempo é apreendido através da metáfora espacial dos extratos

terrestres de modo que cada temporalidade está sobreposta formando uma massa que pode atuar

sincronicamente ou diacronicamente. Assim como Braudel ele divide esses extratos entre

longo, médio e curto prazo. Para Koselleck, a história e a ciência da experiência, ou seja, toda

história surge do acumulo temporal de experiências diversas que são reunidas narrativamente.

Assim, o curto prazo abarca aquelas experiências imediatas, geralmente pessoais; o médio prazo

engloba experiências de gerações ou grupos que são possíveis de repetição; e o longo prazo são

experiências transcendentais que afetaram as gerações.

Tomando essas duas formas de ver e trabalhar a interação entre tempo e espaço na

história precisamos construir um diálogo com nosso mais abrangente referencial o geógrafo Yi-

Fu Tuan. Apesar de sua abordagem ser em certos aspectos condizente com o que Tuan postula

sobre espaço e tempo, não acreditamos poder pensar esse tema por meio de aproximações como

a de Braudel, uma vez que para ele o foco gira em torno da economia e da geopolítica enquanto

para nós é mais relevante a percepção de um indivíduo para com o seu meio. Sendo assim,

acreditamos ser Koselleck um exemplo de aproximação histórica que mais nos permite o diá-

logo Tuan na medida em que sua ideia a respeito da ligação entre tempo e o espaço está perme-

ado pela experiência.

Só precisamos lembrar que a experiência como postula Koselleck possui uma es-

quematização que não observamos em Tuan, já que o primeiro entende esse conceito de forma

meta – histórica abrangendo não apenas as experiências imediatas, aquelas observadas no coti-

diano da vida humana como também as experiências geracionais correspondem a grupos de

pessoas que compartilham uma mesma vivência tais como, as famílias, organizações políticas

e etc.

Existe ainda, as experiências transcendentais que se desenrolam a longo prazo como

sistemas de crença, tradições e mesmo questões referentes ao ciclo da vida como o nascimento

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e a morte. Tuan nos apresenta experiências nesses diversos níveis19, mas não está preocupado

em propor diferenciação entre elas. Assim, cada um deles pensa o conceito de formas diferentes,

porém, suas perspectivas vão convergir uma vez que a experiência e tida pelos dois como con-

ceito fundamental para se entender a vida humana suas sociedades e culturas.

Destacado este ponto, passamos a discutir a questão teórica referente a Geografia

Humanística de Yi-Fu Tuan que nos servirá de base para o estudo das relações espaciais na

trajetória de Oswaldo Lamartine de Faria. Esta área que se estabelece na Geografia é constituída

segundo Pádua (2015):

Surgiu nos Estados Unidos com maior força a partir da década de 1960, apesar

de reconhecermos suas origens primavas em textos de grande envergadura,

mas que à época foram eclipsados pela corrente hegemônica, como “Terrae

Incognitae: the place of the imagination in Geography”, de John K. Wright,

publicado em 1947, e a obra-prima “L’Homme et la Terre”, de Eric Dardel,

publicado em 1952. (PÁDUA, 2015.p.5385- 5386).

A importância de Tuan para a fixação deste campo foi fundamental já que como

conta, Simon e Lundeberg (Apud Pádua, 2015), foi ele quem primeiro sistematizou uma defi-

nição como uma “área do conhecimento que procurava compreender as experiências dos seres

humanos, assim como sua compreensão sobre espaço, lugar e o mundo natural”. Assim, temos

já na definição do campo um foco nos conceitos de espaço, lugar e experiência que serão lar-

gamente desenvolvidos por Tuan em seus textos.

Pádua (2015) ainda ressalta que por ser um intelectual de livre pensar é muito difícil

identificar um grupo fechado e coeso de matrizes teóricas em Tuan uma vez que, em seu modo

de trabalho, autores das mais variadas áreas, seja do passado ou do presente, são convocados.

Entretanto, discutiremos sobre alguns de seus referenciais mais importantes no sentido de per-

ceber como ele construiu alguns de seus conceitos mais importantes.

Podemos falar que em geral a abordagem de Tuan no que diz respeito a Geografia

tem um enfoque na questão corporal. Começamos então por alguns escritos de Jean-Poaul Sar-

tre em textos como Saint Genet, que o permitiu pensar sobre a questão do poder que o homem

exerce sobre a natureza, já com The Body do mesmo autor, Tuan vislumbra uma discussão em

19 Em espaço e Lugar: A perspectiva da experiência (2013), Tuan explora exemplos de experiências

imediatas que são vivenciadas individualmente no cotidiano como no caso da criança recém-nascida

que a cada dia amplia seu mundo compreensível (2013, p. 31). Na investigação sobre os lugares íntimos

(2013, p. 167) ele nos mostra que experiências intimas com lugares podem ser compartilhadas, como no

caso do apreço pela a cidade natal, ou pela terra cultivada entre grupos de agricultores. No que diz

respeito as experiências transcendentais, Tuan apresenta modelos de organização e compreensão do es-

paço (2013.p.109), tanto mítico quanto físico, milenares como no caso da China e dos povos tribais da

Polinésia passados de geração pra geração.

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torno do corpo humano como o elo entre o ser e o mundo. Essa abordagem corporal também

traz muito das ideias da vertente fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty.

Outro referencial importante para a construção do pensamento em Tuan é Susanne

K. Langer que escreve Filosofia em nova chave (2004), baseando sua abordagem no filosofo

Ernst Cassirer, Langer trabalha com a ideia do homem como um ser afeito ao uso de símbolos

que permeiam sua interação com o mundo físico através de formas como a arte por exemplo.

Tuan menciona um dos textos da autora, Sentimento e Forma (1980) em Espaço e Lugar (2013)

para falar da amplitude espacial que o sentido da audição nos oferece.

Mais uma contribuição presente neste livro foi a visão de que a experiência é a um

só tempo passiva e ativa pois nosso corpo possui mecanismos para absorver tanto estímulos

físicos, através de nossos sentidos, como também de criar a partir deles abstrações como os

sentimentos, muito mais difíceis de demonstrar daí vem a necessidade da expressividade por

meio das artes ou dos rituais mágicos.

Em, Mind: An Essay on Human Feeling (1967 - 1982), a autora trabalha com os

sentidos como tato, visão, olfato e paladar e de como eles nos despertam certos sentimentos

como por exemplo a sensação de amplitude de se estar dentro de um grande edifício ou de

constrição em um espaço cheio de pessoas. Com nossa evolução como espécie alguns cheiros

como o de putrefação foram culturalmente associados com a morte e os maus presságios.

A poética do Espaço (2000) de Gaston Bachelard foi incorporada por Tuan para

discutir sobre a ideia de lar ou de casa o lugar onde nós, seres humanos, achamos satisfeitas as

nossas necessidades fundamentais e também onde buscamos o descanso e os cuidados quando

estamos adoentes e cansados. Sendo assim esse espaço é fundamental para nossa vida e temos

com ele um vínculo especial que motiva frases como “lar doce lar”. A casa reflete também a

memória dos dias, cada morada desde a primeira de nossa vida nos legará memorias importan-

tes. É dentro dessa experiência que Tuan irá trabalhar seus conceitos de lar e lugar ambientes

que despertam sentimentos fortes. Além disso, o conceito de topofilia, trabalho por Tuan em

publicação de 1980, também foi uma contribuição de Bachelard. Ainda em seu estudo A poética

do espaço (2000, p. 205) o autor traz este neologismo que descreve como esse sentimento de

apego e apreço pela casa, abrigo ou toca.

Durante seu variado desenvolvimento enquanto intelectual Tuan se apropria de uma

grande diversidade de referências, escolhemos estes por serem os que mais nos ajudam a com-

preender os conceitos fundamentais deste trabalho.

Assim como diferentes sociedades enxergam o espaço de formas distintas. Existem

pessoas que percebem a natureza, os ritmos da vida e da terra, como essenciais em suas vidas,

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já para outros estes não representam nada além de imagens, odores e roídos. Tuan admite em

sua introdução de Topofilia, que nas pesquisas as quais teve acesso dentro do variado espectro

das ciências humanas as atitudes e valores dos seres humanos para com o meio ambiente são

trabalhadas, em geral como reflexos da cultura de cada grupo ou como traços universais do ser

humano. Tuan não descarta esses dois níveis mais vai além buscando descrever níveis distintos

de percepção dos espaços seja ele enquanto espécie humana, grupo ou indivíduo. Partindo desta

constatação simples Yi-Fu Tuan (1980) constrói seu conceito de Topofilia ao qual define da

seguinte forma:

A palavra “topofilia” é um neologismo, útil quando pode ser definida em sen-

tido amplo, incluindo todos os laços afetivos dos seres humanos com o meio

ambiente material. Estes diferem profundamente em intensidade, sutileza e

modo de expressão. A resposta ao meio ambiente pode ser basicamente esté-

tica: em seguida, pode variar do efêmero prazer que se tem de uma vista, até

a sensação de beleza, igualmente fugaz, mas muito mais intensa, que é subi-

tamente revelada. A resposta pode ser tátil: o deleite ao sentir o ar, água, terra.

Mas permanentes e mais difíceis de expressar, são os sentimentos que temos

para com o lugar, por ser o lar, o lugar de reminiscências e o meio de se ganhar

a vida. (1980, p.107).

Para se compreender como surgem esses sentimentos é importante discernir algu-

mas condições. Em primeiro lugar a cultura que estabelece muitos dos preceitos norteadores de

percepção dos espaços diferindo de sociedade para sociedade. Logo, a depender do tipo da

sociedade em que nascemos e os valores que recebemos em nossa criação teremos um determi-

nado tipo de atitude para com os espaços ao nosso redor.

Como exemplo disso, destacamos as sociedades camponesas como tem sido o Bra-

sil em grande parte de sua História. Para muitos brasileiros, em especial os da região do semi-

árido nordestino, distingue-se uma forte sensibilidade para os ritmos do tempo e da terra no

sentido de perceber a aproximação das chuvas e as melhores épocas para o preparo da terra,

plantio e colheita. Não é de se estranhar que nestas localidades tenha se desenvolvido uma

complexa meteorologia sertaneja baseada unicamente na observação dos comportamentos das

plantas e animais, bem como nos movimentos das nuvens e das estrelas.

Um segundo ponto é o espaço propriamente dito. A natureza determina também as

formas de ver, de acordo com o meio em que está inserido o ser humano irá buscar formas de

se adaptar e melhor viver. Deste modo a humanidade tem conseguido sobreviver em ambientes

severos tanto nos desertos escaldantes quanto nos ambientes congelados do hemisfério norte.

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Essas populações desenvolvem altos graus de observação da paisagem. Pode-se

perceber com isto que cultura e natureza estão intimamente ligadas, sendo praticamente indis-

sociáveis, não tendo como separar até que ponto cada uma influência neste processo.

Como elaboramos acima, existem níveis distintos de percepção do espaço em cada

pessoa e isso depende não apenas da cultura e do espaço ocupado por este indivíduo, mas tam-

bém com as experiências vividas com o meio. Durante a vida de um ser humano os espaços

podem oferecer variadas sensações tanto boas quantos ruins. Podemos falar neste sentido dos

jovens que desiludidos com a falta de oportunidades do campo vão morar nas cidades em busca

de novas formas de vida. Para muitos deles o campo não é visto como algo belo, idílico e sim

como um símbolo de dificuldades, de serem reféns da terra que dita ano após ano a fartura ou

a miséria. Temos por outro lado aqueles jovens que viveram seus primeiros anos em meio a

natureza, mas que foram bem sedo levados a morar em cidades e afastados de seus referenciais

campestres. Para estes o campo pode representar um passado em que tudo era mais simples e

divertido. Eles almejam emotivos um reencontro com aquele mundo.

O conceito de Topofilia foi trabalhado por Tuan na década de 70 e publicado em

livro no ano de 1974, de lá para cá como mostra Pádua (2013) esse conceito foi deixado de

lado, preterido pelos de espaço e lugar. Entretanto, para esta pesquisa a topofilia tem uma uti-

lidade especifica aliada e esses outros conceitos chave. Isso se deve a sua característica grada-

tiva, ou seja, a topofilia se dá de uma forma gradual em estágios de desenvolvimento que vão

do mais simples até os mais complexos. Isso tem uma função a desempenhar em nossa análise

já que nosso objeto apresenta fases bem delimitadas em sua vida indo desde a infância até a

velhice.

Mais adiante na sua carreira Tuan irá passar a discutir sobre a ideia de espaço, lugar

e experiência mais precisamente no seu livro Espaço e Lugar: A perspectiva da experiência

(2013). Neste trabalho publicado originalmente em 1977, sua dedicação será direcionada para

a questão do homem e seu processo de percepção e entendimento do mundo que o cerca. Para

tanto sua pesquisa arregimentou uma série de fatos modelos e processos nas mais variadas cul-

turas humanas tanto no mundo ocidental quanto oriental.

Para Tuan, o espaço se refere às ideias de amplitude, liberdade e movimento e,

como exemplo dessa questão podemos falar em espaços como o oceano ou um deserto. O lugar

tem a ver com a pausa no movimento, a quietude e o enraizamento, os lugares também podem

ser compreendidos como espaços dotados de valor ou significado. Podemos dizer que existem

várias dimensões para os lugares, elas vão desde objetos como poltronas até uma cidade ou

região. O que define se uma determinada localização espacial se torne um lugar é a perspectiva

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da experiência, ou seja é um modo de ver no sentido de perceber os espaços, assim como mostra

Tuan:

Na experiência, o significado de espaço frequentemente se funde com o de

lugar. “Espaço” é mais abstrato do que “lugar”. O que começa como espaço

indiferenciado transforma – se em lugar à medida que conhecemos melhor e

o dotamos de valor. Os arquitetos falam sobre as qualidades espaciais do lu-

gar; podem igualmente falar das qualidades locacionais do espaço. As ideias

de “espaço” e “lugar” não podem ser definidas uma sem a outra. A partir da

segurança e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e

da ameaça do espaço, e vice-versa. Além disso, se pensarmos no espaço como

algo que permite movimento, então lugar é pausa; cada pausa no movimento

torna possível que localização se transforme em lugar. (TUAN, 2013, p.14).

Neste sentido a experiência torna-se um ponto fundamental na análise de Tuan ela

se constitui de dois processos intercambiáveis, o sentir e o pensar. Para intender como isso

funciona devemos discutir sobre os sentidos e de como eles dão colorido espacial a nossa vida.

Temos que dividi-los em dois grupos, os sentidos especializantes, sinestesia, tato e visão e o

restante, paladar, audição e olfato que chamaremos de auxiliares. Os primeiros têm a função de

nos dar a dimensão dos espaços sejam eles grandes ou pequenos é a partir deles que temos

sensações de amplitude ou apenhamento, já o segundo grupo nos proporciona mais detalhes.

Isto seria tudo, se fossemos animais comuns. A espécie humana desenvolveu em

seu processo de evolução, mecanismos que permitem extrapolar a partir de seus sentidos uma

ligação com os espaços de uma forma mais ampla se comparada com outros animais. Assim,

os processos de pensamento podem construir sobre as sensações físicas.

Para entender melhor essa questão, basta pensarmos na visão do céu noturno ou no

oceano nossos olhos não tem a capacidade de ver toda a sua dimensão, porém nossa mente

consegue imaginar a dimensão dessas distancias gigantescas. Podemos observar como isso se

configura em Tuan na seguinte citação:

A experiência é constituída de sentimento e pensamento. O sentimento hu-

mano não é uma sucessão de sensações distintas; mais precisamente, a memó-

ria e a intuição são capazes de produzir impactos sensoriais no cambiante

fluxo da experiência, de modo que poderíamos falar de uma vida de sentimen-

tos como falamos de uma vida de pensamento. É uma tendência comum refe-

rir-se ao sentimento e pensamento como opostos, um registrando estados sub-

jetivos, o outro reportando-se à realidade objetiva. De fato, estão próximos às

duas extremidades de um continuum experiencial, e ambos são maneiras de

conhecer. (TUAN, 2013, p.19).

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No presente estudo estes quatro conceitos se unem para pensar como Oswaldo La-

martine de Faria se liga aos variados espaços que ocupou ao longo de sua vida. Espaço e lugar

surgem como a bases sobre as quais a experiência pode agir é, em determinadas condições dar

origem ao sentimento de topofilia.

2.2 EXPERIÊNCIAS DE INFÂNCIA (1919-1929)

Quando Lamartine nasceu seu pai, Juvenal Lamartine, já ocupava o cargo de depu-

tado é possuía, portanto, uma condição de vida bem elevada para a época. Ele não nasceu no

Seridó, no interior potiguar, mas no seu oposto, próximo ao mar na cidade do Natal. Seus pri-

meiros anos de vida foram quase todos passados na cidade com pequenas visitas ao Seridó a

terra de seus pais e avós. Sobre essas visitas ele recorda:

Quando no Sertão, mesminho Casimiro... Da camisa aberta o peito. Pés des-

calços nus. O dia principiava com a caneca de leite mugido ainda ao quebrar

da barra e se findava com as estórias de Trancoso. Noites de um sono só pa-

recendo um piscar de olhos. Vadiava-se de boi – de – osso, cavalo de pau,

nadar com cavalete de mulumgu, mergulhar em desafio à “galinha gorda/

Gorda é ela ...” Jogar canga-pé, tirar caçote, armar arapuca, fojo e mundé,

andar a cavalo enfim, todo esse rico e sadio viver rural. (2001, p.16).

A citação a Casimiro de Abreu deixa clara a influência do romantismo no modo de

ver de mundo de Lamartine. Farias (2007) define a saudade como uma das principais caracte-

rísticas do romantismo e muito mais presente em Cassimiro a quem define como o poeta da

saudade.

Essa percepção a respeito da saudade está presente em todo o percurso de Lamartine

como escritor. Assim como Cassimiro que vivendo em Portugal escreveu seu livro As prima-

veras (1859) tendo em mente o Brasil, Oswaldo se via como uma espécie de “exilado” no Rio

de Janeiro que escreveu seus livros com o pensamento focado no Sertão.

Podemos notar como ele constrói a percepção desse espaço, relembrando a infância.

Ao contrário das descrições convencionais que definem a paisagem sertaneja com pinceladas

de sofrimento e dor, a abordagem de Lamartine é a de um Seridó leitoso e hídrico. Suas brin-

cadeiras são quase todas na água. Água boa e limpa dos açudes que vai venerar em seu ensaio

Os Açudes dos Sertões do Seridó (1978). Isso se deve talvez pela posição ocupada por seu pai

dentro da hierarquia social daquela época uma vez que, além de político, Juvenal Lamartine

também era proprietário rural e pecuarista, logo, ao contrário da maioria das crianças sertanejas,

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Lamartine tinha uma vida de poucas dificuldades. Entretanto, a visão sobre o Seridó seco, pe-

dregoso vai aparecer em seus livros com certa regularidade destacando os períodos secos e a

paisagem cinza e retorcida da caatinga. Seria inclusive estranho se esse aspecto não aparecesse

uma vez que a região do Seridó é profundamente marcada pelos fenômenos da seca, porém

notamos que ele não resgata essa imagem nas lembranças de sua infância.

Quando o assunto é a sua vida de garoto urbano passada no número 431 da avenida

Rodrigues Alves esquina com a rua Trairi, Lamartine esboça o cenário da seguinte forma:

Quando em Natal, manhãzinha, apanhar frutas no sitio da casa; caçar com ba-

ladeira; empinar papagaios (raias, bandejas e relógios) de cauda armadas de

rocegas (lascas de fundo de garrafa Cinzano presas por taliscas; Futebol de

botão (ai da visita em dia de chuva que pendurasse capa no cabide lá de casa);

peladas de bola-de-meia na Rua Potengi e de borracha e couro no campo do

Triangulo (onde hoje é o Ateneu). Ali se amagotavam os meninos que vinham

apanhar água em latas, galões e roladeiras (barris tracionados pelo eixo) e,

seduzidos pela bola, esqueciam da obrigação. A pisa era grande quando vol-

tavam para casa. Éramos moleques de calça-curta e felizes. Lembro de Zé Ta-

maru, João Calango, Baíca, Nazareno, Antônio Scipião e tantos outros humil-

des meninos da Solidão... (LAMARTINE DE FARIA, 2001, p.16).

Essa infância urbana narrada por ele apresenta uma cidade que ainda demonstra os

traços do mundo rural entre eles os sítios onde se pode recolher frutas. Era uma época em que

não existiam tantos muros ou carros, onde as crianças tinham plena liberdade de vivenciar vá-

rios espaços desbravando os bairros em diversos tipos de brincadeiras coletivas que ele cita em

múltiplos exemplos.

Ao analisarmos essas duas passagens podemos perceber claramente como se dá a

perspectiva espacial da criança. Sobre isto Yi-Fu Tuan (1980) salienta que ao contrário do

adulto a criança tem uma capacidade de percepção dos espaços muito mais aguçada. Ela não se

preocupa tanto com a estética dos lugares, mas com as sensações que estes podem lhe propor-

cionar através dos sentidos do tato, olfato e paladar. Além do mais, a criança não está tão ligada

às regras e postulados sociais tendo uma maior liberdade para explorar. Mesmo que na medida

em que cresce ela seja moldada pelo imperativo dos pais a se conter.

Na experiência de Lamartine estas atitudes se revelam com bastante clareza. Tanto

no Seridó quanto em Natal suas memórias revelam uma infância a céu aberto em que o interior

da casa não é recordado. Outro ponto notável é como o movimento é frequentemente mencio-

nado nessas lembranças, são meninos que estão sempre correndo, andando, subindo ou na-

dando.

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O ato de apanhar frutas direto do pé nos mostra também essa forte ligação com o

meio, nela participam o tato no contato com a planta, o cheiro da fruta fresca e o paladar do seu

gosto. Ao empinar pipas eles também tomam consciência da amplitude do espaço acima de suas

cabeças. Foi dessa maneira, explorando a terra, a água e o ar que Lamartine passou sua infância

um bicho solto como gostava de se denominar.

Sabemos que a vida de Lamartine passada no Sertão é muito curta se comparada

com a que viveu em outros lugares. Porém, se pensarmos como Tuan em Espaço e Lugar

(2013), experiências intimas e poderosas com lugares podem surgir em um curto espaço de

tempo. Como discutimos acima a percepção sensorial da criança é muito mais aguçada do que

a do adulto, o mesmo pode ser aplicado para a noção de tempo que passa mais devagar no

mundo infantil.

Quando pequenos não nos preocupamos tanto com os afazeres e o nosso tempo já

que possuímos poucas responsabilidades, à medida que crescemos vamos nos envolvendo com

uma gama cada vez maior de atividades e obrigações que nos furtam muitas vezes a oportuni-

dade de parar e ter uma experiência com ambiente a nossa volta. Por isso, podemos dizer que

por menor que tenha sido o período que passou no Sertão, Lamartine certamente foi marcado

profundamente por ele.

Outro ponto de sua trajetória, muito pouco explorado por ele em suas narrativas de

vida, é o período em que passa nos colégios internos a partir de 1929 a 1937. A pouca quanti-

dade de seu relato, nos permite pensar apenas em como a formação de Lamartine foi dinâmica

em instituições renomadas da época, mesmo diante das dificuldades enfrentadas por sua família

no dado período. Assim, o menino Lamartine, sai de Natal em 1929 depois do acidente com

arma de fogo que matou seu colega Ferdinando Dantas e chocou a cidade do Natal. Primeira-

mente vai para o Ginásio do Recife fundado pelo padre Felix Barreto em 1919 na Rua do Hos-

pício n° 423 e depois transferido entre 1929 e 1930 para o colégio da Rua Nunes Machado n°

315, Soledade. A instituição tinha, segundo Johnny Retamero (2012), uma fama de eficiência

e disciplina na cidade, por maio das diretrizes da Igreja Católica, com bons professores, funci-

onava em sistema de internato.

Já no Instituto Lafayette no Rio de Janeiro onde estudou por volta de 1935, no

mesmo período, seu pai, já havia retornado do exílio e recomeçava a vida na capital da repú-

blica. Localizada na rua Hadock Lobo no bairro da Tijuca, local de algumas das escolas mais

tradicionais cariocas. Segundo Torreira (2008), essa escola foi pioneira no estudo técnico, tam-

bém funcionava em sistema de internato. Esse é um momento que compreende dez anos de sua

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vida, o que abarcou o fim da sua infância, adolescência e começo da vida adulta, todos vividos

em espaços bem distintos daqueles que vivenciou em sua primeira infância.

Fui aluno razoável até o Ginásio do Recife. No Rio tive de enfrentar turmas

de 40 alunos – duas vezes mais que em Recife e cheguei atrasado uns 15 dias.

Todos os anos “pagava” uma 2º época. Fui aluno de Oto Nogueira Pinto, tido

como um dos maiores professores de matemática e dela meus conhecimentos

não vão além das 4 contas. (LAMARTINE DE FARIA. 2001, p.27).

Apesar de serem os internatos educacionais relativamente comuns na educação da

década de 1930, podemos imaginar o impacto no pequeno Lamartine, ao passar de sua pacata

vida de quintais e mangueiras para o cotidiano de cidades grandes sob o regime de internatos,

como mostrado no trecho acima, onde Lamartine dá uma pequena amostra de como foi esse

período.

2.3 A VIDA NAS FAZENDAS (1941 -1955)

Apesar de Lamartine dedicar a grande maioria de seus livros para o estudo de temas

relacionados ao Seridó, a maior parte de suas experiências diretas com o solo e com a natureza

não aconteceram lá e sim em lugares bem distantes e diversos. Em cada um deles, ele pode

construir um lugar na medida em que significam pausas na sua vida em constante movimento.

Esse processo de deslocamento começa bem cedo. Como detalhamos acima, a for-

mação básica de Lamartine foi totalmente realizada em colégios fora do Rio Grande do Norte

Ele sai do estado em função do acidente com arma de fogo, no qual ele acabou matando seu

colega Ferdinando Dantas, aos 11 anos de idade. Ele permanece fora do estado ainda por com-

plicações trazidas pela “Revolução de 1930”. Depois de sua formação básica entra na Escola

de Agronomia em Lavras Minas Gerais, a mesma instituição na qual estudou seus irmãos Oc-

távio e Clovis Lamartine.

A Escola de agronomia fazia parte de um complexo de instituições de ensino admi-

nistradas pela missão presbiteriana no Brasil20. Lamartine (2001) relata que nas primeiras dé-

cadas do século XX havia uma intenção declarada do governo do Rio Grande do Norte em

20 A história da Missão Presbiteriana no Brasil começou com o Reverendo Ashbel Green Simonton

(1833-1867) que após ser ordenado pelo Seminário de Princeton decide se dedicar ao trabalho missio-

nário nos países estrangeiros tendo escolhido o Brasil como lugar de seu trabalho. Ele chega ao país em

1859. A consolidação da missão vem por meio das primeiras instituições de ensino como o Colégio

Internacional em 1873 em Campinas. Entre as instituições de ensino fundadas pela missão no Brasil

estão, O Ginásio masculino o Colégio Carlota Kemper e a Escola agrícola ambos em Lavras Minas

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trazer para o estado o modelo educacional da Missão presbiteriana. O projeto previa a criação

de uma escola em Jundiaí (Macaíba), porém a ideia não foi à frente em função de supostas

desavenças com a Igreja Católica que não via com bons olhos a chegada da missão protestante.

Oswaldo Lamartine recorda de forma positiva a sua experiência nesse lugar, ao

contrário do que acontece nos internatos do Rio de Janeiro e de Recife, as memórias daqueles

dias são marcadas pela camaradagem dos colegas e professores, apesar do conjunto de regras

que se tinha ali, entre as quais destacam- se a proibição de falar com mulheres e respeitar de

forma solene os veteranos.

A partir deste momento, munido de sua formação técnica em Agronomia passa a

ajudar seu pai, nos afazeres da Fazenda Lagoa Nova recém adquirida no município de São Paulo

do Potengi. Lá ele trabalhará entre 1941 a 1948 e neste período convive com Pedro Ourives, Zé

Lourenço, Chico Julião, Bonato Liberato Dantas e Olinto Ignácio que serviram de professores

para o jovem Lamartine sobre as artes da pesca, caça, encouramento, entre outras. De modo a

ilustrar essa situação, citemos Lamartine:

Vivi sob as mesmas telhas com Bonato Liberato Dantas (1897-1955) quando

ele fazia uma tarrafa – veterano pescador de açude que foi. Espiava, pergun-

tava, rabiscava figuras e anotações. Daí o A.B.C da pescaria de açudes. A

mesma coisa com Pedro Américo de Oliveira, vulgo Pedro Ourives (1878-

1964) seu filho Francisco Lins (1916-1990), um remontando uma sela rola-

deira e o outro costurando um encouramento. Resultante – Encouramento e

arreios do Vaqueiro. A caça nos Sertões consequência de momentos vividos,

ouvidos e lidos. (LAMARTINE DE FARIA, 2001, p.62).

É acompanhando de perto o trabalho desses mestres que o jovem Lamartine começa

a recolher tudo o que podia de informações que depois seriam publicadas em seus livros. É o

caso por exemplo do livro Encouramento e arreios do Vaqueiro no Seridó (1939) que contém

os desenhos de todos os componentes da vestimenta tradicional do vaqueiro e de sua sela de

montaria, feitos de próprio punho. Além disso, foi importante a convivência com homens como

de Chico Julião, caçador de abelhas, e Olintho Ignácio, experiente e exímio rastejador de gente

e de bicho com um talento de impressionou Lamartine até o ponto de dizer “Digo de mim: só

entendi melhor o que mais parecia coisa do Cão quando um deles me explicou – a gente também

Gerais. Além disso, foi fundado o Instituto Grambery em Juiz de fora e o colégio Mackenzie em São

Paulo, para mais informações confira, MATOS, Alderi Souza de. Histórico da Igreja Presbiteriana do

Brasil.Disponívelem:<http://thirdmill.org/portuguese/72519~11_1_01_9-54-08_AM~Histó-

rico_da_Igreja_Presbiteriana_do_Brasil_1859-1959.html>. Acesso em: 04 nov. 2018.

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não acredita quando as pessoas olham uma escrita e descrevem: a letra é de fulano ...” (LA-

MARTINE DE FARIA, 2001, p.12).

Mais tarde, na década de 1950, Lamartine irá trabalhar como administrador de duas

colônias agrícolas. A primeira foi no município de Pium – RN e a outra em Barra da Corda no

Maranhão. Esta foi outra oportunidade para vivenciar atividades junto a terra algo que muito o

agradava. Nesta ocasião esteve em contato com os índios Kraô que assim como os mestres de

oficio foram grandes professores de percepção espacial nas caçadas que faziam juntos. Ele

conta que quando um desses formidáveis caçadores se colocava no rastro de um bicho “podia

botar a panela no fogo” tamanha era a sua capacidade de rastrear, o que revela é claro, um

grande conhecimento do território bem como dos hábitos dos animais da região.

Estes serão espaços importantíssimos e sua formação. Eles proporcionaram ricas

experiências sensoriais em um contato direto com a terra e com a natureza circundante. Isto é

identificado por Tuan como o terceiro estágio da topofilia onde se desenvolve o prazer sensorial

nos contatos com os espaços. Enquanto o primeiro estágio é marcado pela simples apreciação

estética onde impera o sentido da visão o segundo convoca o tato para sentir as formas do

espaço dando mais detalhes de sua composição. Já no terceiro estágio, após conhecer bem um

determinado espaço, por meio de todos os sentidos, o indivíduo pode desenvolver a ideia de

familiaridade ou de lar, um lugar especial marcado no tempo permeado por memorias. Esse

espaço pode ser também intendido numa ótima patriótica, no sentido de que, independente-

mente do tamanho, existem espaços de origem onde um grupo ou povo vê materializada sua

história e de seus antepassados.

Isto deixa clara uma outra questão importante para pensarmos sobre as experiências

espaciais em Lamartine. Em todos os casos que examinamos é comum notar a presença de

outras pessoas nessas experiências espaciais. É o caso dos amigos de infância, o pai, os mestres

aos quais nos referimos acima, e indígenas da Maranhão. É evidente que também existem os

momentos de introspecção de um encontro solitário e tranquilo com a natureza e com as lem-

branças. Sobre este aspecto, Tuan deixa claro que a experiência dos espaços é “parcialmente

pessoal, em grande parte social” (TUAN, 2012, p.19). Porém, o sentimento de topofilia é um

elo afetivo da pessoa com o lugar, ou seja, um mesmo grupo pode experienciar um determinado

lugar ao mesmo tempo, no entanto, cada indivíduo terá uma perspectiva própria

2.4 O “EXÍLIO” NO RIO DE JANEIRO E O RETORNO A TERRA NATAL (1955-1995)

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De 1955 a 1979 Oswaldo Lamartine trabalha no Banco do Nordeste no Rio de Ja-

neiro21. Um homem como Lamartine tão afeito a terra e a natureza trabalhando em um banco

em afazeres burocráticos pode parecer um tanto estranho, entretanto nesta época ele já havia

constituído família e precisava da estabilidade que uma carreira poderia proporcionar.

Desta forma os anos que passa como bancário, que serão muitos, também ajudaram

a definir em muitos aspectos a sua personalidade marcada pela valorização do passado. A dis-

tância e a falta são, no dizer de Lamartine, as forças motrizes que o impeliram a escrever, um

modo que achou de manter-se em contato com o mundo que deixou para trás a tantos anos, mas

que ainda ocupava muito a sua mente. Não é de se estranhar que seja exatamente neste período

em que ele escreve a maioria dos seus ensaios.

Quanto a esse meu jeito de rabiscar papéis talvez tenha nascido da saudade. É

explicou: vivi anos longe dos chãos sertanejos embora os visitasse frequente-

mente nas férias. E no “exilio” a minha leitura de maior agrado era a literatura

regional. Nela o reencontro com a nossa fala me encantava. Muitas vezes che-

gava a copiar palavras ou expressões nossas já apagadas da memória, como

um enamorado a reler a correspondência da mulher amada. Talvez inconsci-

entemente, isso tenha me contagiado. Bendita gálica... (LAMARTINE DE

FARIA, 2001, p.65).

Todas aquelas experiências adquiridas nos dias passados nas fazendas agora pode-

riam ser transmitidas para o papel tendo “em tudo certa preocupação de guardar para não ver

se perder – usura sem cifrão, a tudo engavetar – cacoete do pássaro casaca – de – couro que

tudo carrega para o desarrumado ninho” (LAMARTINE DE FARIA, 2001, p.63).

Pela análise do material disponível sobre a vida de Lamartine, é possível notar,

como já mencionamos acima, que é no momento em que ele se vê, morando na cidade do Rio

de Janeiro, é que surge com mais força seu impulso de escrever sobre aquele Sertão que deixou

para trás. Para Tuan, esse tipo de ocorrido é esperado uma vez que “para se compreender essa

21 A cidade do Rio de Janeiro, neste período passou por grandes mudanças, tanto em termos de infraes-

trutura como de sociabilidades. Havia uma grande agitação em torno dos novos tempos trazidos pelos

automóveis, e novos meios de comunicação como a televisão que começavam a se popularizar naquela

época na capital brasileira. Tais mudanças foram especialmente estimuladas no governo de Juscelino

Kubitschek entre 1956 a 196. Entre os planos de metas de seu governo o presidente planejou e construiu

uma nova capital para o Brasil, Brasília. Tal evento, impactou consideravelmente o Rio de Janeiro que

irá perder o título de capital federal. Diante deste imbróglio, surgiu o projeto de construir o estado da

Guanabara, uma nova unidade federativa. Tal Projeto, fez com que a cidade contasse com um aumento

de verbas públicas devido a mudanças de status levando a uma série de obras públicas modernizadoras

da estrutura urbana, possibilitando um maior desenvolvimento econômico. Para essas e outras informa-

ções conferir a tese Planejamento e Desenvolvimento: O Estado da Guanabara (1990) de Ângela Moulin

S. Penalva Santos.

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forma de topofilia, é preciso estar consciente de que o valor ambiental requer sua antítese para

defini-lo” (TUAN, 2012, p.148). Desta forma, os fortes sentimentos que Lamartine buscou

transmitir, tanto em falas quanto em textos, a respeito do Sertão, tem como sua condição de

possibilidade a ida dele para o Rio de Janeiro.

As leituras que Lamartine se refere acima, foram realizadas em sebos na cidade do

Rio de Janeiro. Entre eles, nosso autor destaca o Império na Rua Teatro n° 25, o padrão na Rua

Miguel Couto e finalmente a livraria Kosmos na Rua do Rosário número 151. Neste último

conheceu e se tornou amigo da livreira Margarete Eichler que, em entrevista concedida a Castro

(2015)22, diz ter convivido frequentemente com Lamartine durante os anos 50. Por seu relato e

pelas palavras do próprio Lamartine, os sebos eram uma parte importante de seu dia na cidade,

um momento para as conversas saudosas sobre os temas de seu interesse. Além disso, a visita

aos sebos tinha a função de divulgar seus próprios trabalhos e de colegas e amigos tais como

Luís da Câmara Cascudo, ou Vicente Cerejo.

Além da leitura e escrita sobre a cultura e o espaço sertanejo outra forma pela qual

Lamartine se mantinha entretido era o trabalho em um pequeno pedaço de terra em Itaipava no

Rio de Janeiro. Lá ele podia calejar as mãos e se sujar de terra, ele o nomeia este terreno de

Acauã nome de uma espécie de ave de rapina típica da América do Sul que tem hábitos migra-

tórios o que faz com que, em certa época do ano, elas aparecem pelo Nordeste. A valorização

dessa ave deve se dar justamente por essa sua natureza dinâmica desses pássaros, em seu cons-

tante ir e vir.

Esta espécie de “jardim” que Lamartine cultivou durante o período que viveu no

Rio de Janeiro, pode ser entendido enquanto um espelho para as atitudes e valores de seu cui-

dador para o Sertão longínquo. Assim, Tuan define a função dos jardins no processo de topofi-

lia:

Na cidade do homem encontra-se uma ordem hierárquica, e no jardim a infor-

malidade complexa da natureza. As diferenças sociais não existem no jardim,

onde o homem está livre para comtemplar a comungar com a natureza, negli-

genciando outros seres humanos. (TUAN, 2012, p.194).

Só conseguimos imaginar a importância desse espaço para um Lamartine cansado

da rotina dos trabalhos no Banco do Nordeste, se deixando por momentos entreter no amanho

da terra. O mais relevante, é o fato de que o terreno de Itaipava estar localizado numa região de

22 A entrevista foi concedida para a realização de sua tese de doutorado Areia sob os pés da alma: Uma

leitura da vida e obra de Oswaldo Lamartine de Faria (2015).

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mata atlântica no estado do Rio de Janeiro, muito distinto do Sertão da caatinga ressequida e

cinzenta.

O jardim de Lamartine também pode ser entendido como um lugar de sacralidade

pois, a principal atividade no chão de Itaipava, era plantar árvores em homenagem a seus entes

queridos falecidos ele explica:

E uma forma de orar para quem não sabe rezar com palavras. Veja que a gente

fica de joelhos para plantar. Em Itaipava/ RJ, onde tive um lenço de chão,

plantei árvores em homenagem aos meus mortos. E ainda hoje daqui dessas

lonjuras, sou capaz de identificar cada uma. Sei onde está o pé-de-sibipiruna

de meu pai, os angicos de minha mãe e Terezinha (minha babá), o ipê amarelo

de Hélio Galvão. Arsênio Pimentel e Erica filha dele, Isadora e Lucy em arau-

cária. Zila Mamede, Luís Tavares, Leonardo, Zé Gonçalves e Armando Viana,

pinus elioti e thaeda. Guilherme Azevedo em bordão-de-velho, José Braz em

piquiá o Cego Lula (Luiz Maranhão Filho) em pinho de Riga além dos irmãos

e tantos outros amigos que, nas minhas insônias, ainda daqui os cultivos. (LA-

MARTINE DE FARIA, 2001, p.40).

Sabemos que as arvores tem sido símbolos muito fecundos ao longo do tempo em

variadas culturas. Shama (1996) salienta seu uso como representantes de uma identidade naci-

onal e cita o caso das sequoias americanas que através de sua longevidade e grande porte esta-

riam ali desde muito antes do Mayflower a anunciar o destino manifesto do povo estadunidense,

tais plantas serviram de tema para muitos de seus grandes paisagistas. Mas, além de identidades

nacionais, arvores tem sido usada em muitas religiões como no Cristianismo com sua arvore da

vida e arvore do conhecimento. Dentro da iconografia cristã abundam imagens de arvores sig-

nificando a ressurreição de Cristo como a oliveira.

Oswaldo Lamartine salienta ainda a memória vegetal do tamarindo plantado ao lado

da casa da fazenda Ingá em Acari. Ele o personifica como uma testemunha da mudança dos

tempos tendo presenciado tanto a fortuna dos coronéis como seu pai e avó como a crise política

dos anos trinta que culminou na morte de seu irmão Octávio diante dessa arvore. Lamartine

fala “Você tamarindo, tudo assistiu sem nada poder intervir, sem sequer depor. Apenas seu

inaudível grito vegetal de revolta” (2001, p. 41).

As arvores plantadas pelas mãos de Lamartine podem ser neste caso símbolos de

memória daqueles que se foram ou até mesmo uma forma de unir essa memória a terra e torna-

la fisicamente permanente, literalmente enraizada na terra. Tacito Costa traduz esse sentimento

em um texto seu publicado na da revista Preá:

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O Sertão é, antes de tudo, um estado d’alma. Que nem o tempo nem o exílio

podem destruir. A trajetória do escritor potiguar Oswaldo Lamartine de Faria

mostra isso. O Sertão o habita, portanto não faz diferença que more em Natal

ou Rio de Janeiro; numa casa de muros altos ou num apartamento. Porque o

Sertão é onipresente. (COSTA, 2005, p.8).

E de fato, tudo o que vimos até agora nos mostra isso, a força dessa ligação com a

terra natal e o poder das lembranças. Tuan salienta isto como um dos estados mais avançados

da topofilia quando homem personifica seu lugar especial tanto pela força das lembranças

quanto pelas marcas deixadas em seu corpo.

3.5 O RETORNO A TERRA POTIGUAR E A VIDA NA ACAUÃ (1995-2005)

O retorno ao Rio Grande do Norte se dá em circunstancias dolorosas após a morte

de sua segunda esposa Maria de Lourdes Leão Veloso (1917 – 1995). O lugar escolhido foi a

fazenda Acauã município de Riachuelo no sopé da Serra dos Macacos. Lá ele pode novamente

desfrutar de uma vida simples é, em suas palavras, “lamber suas feridas”. Será o começo de

uma vida ascética quase monacal na solidão quase total quebrada apenas pela presença de seu

fiel cachorro Parrudo e por visitas de amigos e familiares. Lá ele permanecerá como descreve

Vivente Serejo:

Restava, diante dele, o caminho da volta. Não mais para os sertões do Seridó,

a Fazenda Ingá, o país da infância. Mas Lagoa Nova, na Ribeira do Camara-

gibe, a fazenda do seu pai. Um mundo sem fim de dez mil hectares e onde

viveria de 1941 a 1947. Para retornar, cinquenta anos depois, e envelhecer,

silencioso e sábio, olhando do seu lenço de terra os longes do sertão, ou, como

ele gosta de dizer, até bater com os olhos nas paredes do céu. (SEREJO, 2005,

p.13).

Este será um momento em que a casa se tornará um lugar íntimo para ele no sentido

de refúgio ou lar como Tuan nos fala em Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. Neste

lugar Lamartine se cercara de objetos significativos que evocam a memória de amigos e fami-

liares como também mantem viva a ligação com alguns lugares íntimos de sua trajetória. Esses

elementos são destacados com grande entusiasmo por Vicente Serejo.

O Sertão colonial e nobre está todo ali. Vivo e inteiro na sala de casa grande

da Acauã. Onde ele vive hoje na solidão dos dias e noites. Do Sol as sombras.

Vizinho e amigo da serra dos macacos. Ribeiras do Camaragibe. E cercado

das arvores que ele mesmo plantou; – craibeiras, aroeiras, oiticicas, alfarrobas,

paus d’arco, umburanas e camarús. Basta entrar. Na parede de frente, em ferro

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duro como o Sertão, o sinal de gado de um Lamartine legitimo, fundido nas

leis da herança sertaneja, misturando o caixão da marca do pai com a forma

avoenga da tradição materna. Na porta de quem chega, em duas folhas como

velhas portas das casas antigas, a placa de ágata com o número 431, tudo

quanto resta da casa onde nasceu, ali na esquina da Rodrigues Alves com a

Trairi. Na mesma Trairi onde depois foi morar num palacete esquina da Cam-

pos Sales que um dia viu o progresso devorar sem deixar sequer o número,

mas que continua nos seus olhos, intacto, suspenso no ar, como o quarto do

poeta. A bengala do pai, com o cascão ornado em delicados e finos florais de

ouro; um relógio oito batendo e repetindo as horas melancólicas do Sertão de

nunca – mais; quadros, poemas – autógrafos de Manuel bandeira e Zila Ma-

mede; chocalhos calados, baús quietos e cheios de silêncios guardando assi-

natura dos que visitam; estribos que dormem seu sono de prata; uma mesa de

peroba – do – campo que ele alisa com sua mão magra como se fosse um bicho

de estimação; uma cruz de ferro, replica da que veio na esquadra de Cabral

pra proteger os navios ; um retrato do pai ;uma lasca de camurú com a marca

da Fazenda Não me deixes , presente de sua amiga Rachel de Queiroz, sol-

tando o leve perfume dos Sertões do Quixadá; Gravuras, imagens, medalhas

e objetos de velhas afeições. (SEREJO, 2002, p.45-49).

Nesta descrição destacam-se aqueles objetos que despertam a lembrança de lugares

significativos como a casa da infância ou o Seridó representado pelos ferros de marcar, pelos

chocalhos e estribos testemunhas de uma sociedade que outrora fora essencialmente pastoril. A

afeição pela memória dos amigos.

Mesmo imerso neste mundo de haveres pessoais Lamartine não deixou de lado sua

natureza de semeador e continuou com o habito de plantar arvores. Em entrevista, a Eleuda de

Carvalho ele fala um pouco sobre como suas terras se tornaram lugar para o IBAMA soltar aves

aprendidas:

Um dia, o pessoal do Ibama veio aqui, eu já tinha botado tudo que era cerco

pra eles soltarem os bichos lá. Eles chegaram, chamei pra almoçar, sentaram

ali. Quando dá fé, chegou o galo de campina, começou a beliscar na comida.

Aí eles se renderam e passaram a fazer solta de pássaros. Só não quero ma-

caco, que é um bicho desgraçado de mal caráter, come os ovos dos passari-

nhos. Mas pode trazer até cascavel que eu acho bom. Eles ficam por ali, eu

dou de comida, não tenho o que fazer, sou um velho desocupado. (CARVA-

LHO, 2008).

Nesta fala e em muitas outras que pronunciará em seus últimos anos de vida, La-

martine deixa claro sua perspectiva para com o processo do envelhecer. Mesmo vivendo em

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um espaço que parecia gostar, ali no sopé da Serra dos macacos, onde era em sua, visão “gos-

tosamente tranquilo” em meio aos haveres das antigas lembranças, o peso do tempo começa a

pesar sobre seus ombros23.

Para Tuan (2012), a capacidade de experienciar os espaços nos idosos vai dimi-

nuindo com o passar do tempo, isso por que os órgãos responsáveis pelos sentidos vão se dete-

riorando, perdendo a sensibilidade as cores, gostos e sensações, além das dificuldades de mo-

bilidade que vão surgindo. Assim sendo, o mundo do idoso tende a diminuir levando-o a focar

sua atenção no seu próprio passado, já que seu futuro, em uma perspectiva puramente biológica,

já não é tão longo.

2.7 O SERIDÓ DE LAMARTINE: ENTRE O LUGAR ÍNTIMO E O PATRIOTISMO

Pensar sobre a importância do Seridó na trajetória de Lamartine exige de nós um

tópico especial para além das experiências de infância que nos possibilite intender suas múlti-

plas dimensões. Em seu livro Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência, especialmente

nos capítulos Experiências intimas com o lugar e Afeição pela pátria, Tuan nos mostra duas

formas de pensar as relações entre indivíduos com lugares em dimensões distintas. O primeiro

evoca a ideia de lar, um lugar que desperta em nós os mais ternos e fortes sentimentos que

podem se manifestar para com uma casa, uma poltrona ou até por outra pessoa é, portanto, uma

forma muito mais intimista. Já o segundo corresponde ao apego que desenvolvemos por unida-

des territoriais que estão muito além de nossas capacidades perceptivas básicas como um país

ou uma região especifica. Nestes lugares não temos como experimentar toda a sua extensão,

mas desenvolvemos sentimentos muito densos a ponto de dar a própria vida em nome da defesa

desse território em casos de conflito ou invasão.

O Seridó como lugar intimo encontra sua legitimidade a partir do momento em que

Lamartine o identifica como sua terra natal, berço de suas origens familiares como também na

ideia de lar ou refúgio. Isto fica claro na sua resposta quando o confrontam dizendo que certa-

mente morou no Rio de Janeiro um período muito maior do que no Seridó, ele responde, “Tro-

que, na sua pergunta, o verbo morar por viver. Os dias que se mora tem, rigorosamente, apenas

24 horas” (2001, p.83). A dissonância entre os verbos morar e viver busca transmitir a ideia de

23 Na época em que se muda para a fazenda Acauã, no município de Riachuelo em 1995, Lamartine

tinha a idade de 76 anos.

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que a vida no Seridó foi muito mais plena do que a do Rio de Janeiro, uma questão de intensi-

dade e não de quantidade. Neste sentido, Lamartine relativiza o tempo passado em cada locali-

dade em função dos sentimentos e lembranças que cada uma delas despertam nele.

Uma das principais características que Tuan atribui aos lugares íntimos é a dificul-

dade que temos para descrever e definir nossos sentimentos para com eles. Desta forma por

mais que seja capaz de descrever com detalhes sensoriais o Seridó, Lamartine se vê incapaz de

transmitir a dimensão dos sentimentos que esse lugar desperta nele dizendo, “Não sei explicar.

É a força da terra. Vosmecê já leu Massangana? Lá Nabuco escreveu “os filhos dos pescadores

sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das areias da praia e ouvirão o rugido da vaga...” (2001,

p.10).

Tomando essas premissas vamos pensar sobre o Seridó na trajetória de Oswaldo

Lamartine. Bom, como já mostrado no primeiro capítulo o Seridó foi alvo durante parte do

século XX de um processo construção de identidade que se deu através da escrita de sua história

por homens que ou eram políticos ou estavam ligados aos grupos familiares que dominavam a

política do estado. Estes textos destacaram a força da pecuária produzida por colonizadores

portugueses que plantaram na terra as sementes do gado e da tradição familiar. Vimos, no pri-

meiro capítulo, que após a “Revolução de 1930”, o grupo liderado por Lamartine e José Au-

gusto intensifica essa narrativa de apego as tradições e aterra como uma resposta aos interven-

tores federais tidos como invasores estrangeiros em seu território.

Oswaldo Lamartine adentra nessa construção muito depois destes acontecimentos,

mas terá um papel fundamental para consolidar esse discurso. Ele entra motivado pela necessi-

dade de autoafirmação, seu posicionamento o coloca como membro pertencente a uma linha-

gem de homens fortes e dedicados a valorização dos modos de vida passados de geração em

geração e, mais do que isso, ele se vê como um protetor destas praticas as depositando no papel

em seus mínimos detalhes para que elas não sejam tragadas pela avassaladora modernidade.

Essa necessidade surge em função de seu constante deslocamento entre trabalhos e cidades ao

longo de sua carreira profissional.

Assim sendo, o Seridó é eleito por Lamartine como o lugar de sua identidade o que

o torna o foco de sua produção escrita, neste sentido podemos dizer que Lamartine se porta

como um patriota. Tuan nos mostra algumas condições para que se estabeleça este sentimento

pela pátria. Em primeiro lugar a questão do pertencimento, a ideia de terra natal, tem uma força

tremenda principalmente para sujeitos “imigrantes” como Lamartine, ela torna-se um foco de

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permanecia diante do mundo em constante movimento, ela é também o repositório de lembran-

ças evocativas de um passado essa é uma abordagem mais simples desse estado de espirito que

podemos notar em nosso autor. Vejamos um exemplo:

Ademais, todas as minhas viagens de férias foram nos rumos de cá – jamais

atravessei o Atlântico nem visitei a Disneylândia. Essa é a explicação sem

falsa literatura ... o Coalho é quem poetou ...Porque sempre é madrasta a terra

estranha. (LAMARTINE DE FARIA, 2001, p.59).

Este trecho demonstra bem o que Tuan chama de “falta de curiosidade para com o

mundo exterior”, Lamartine morou no Rio de Janeiro em plena década de 1950, durante a in-

serção de novas tecnologias e novos modos de vida. Importante é notar que ele viveu, em um

dos epicentros da modernidade que tanto criticou em suas falas e textos. Lamartine (2001) re-

conhece que pode ter se “lambuzado” desses elementos, porém manteve-se como um “bicho do

mato”.

Uma outra questão que não pode ser deixada de lado é o aspecto do tempo na rela-

ção entre Lamartine e o Seridó. Se formos observar atentamente suas falas podemos notar a

constante menção ao termo “Sertão do nunca mais” que evoca a ideia de que tudo aquilo que

ele apresenta em suas obras encontra-se em um passado que não pode ser regenerado. Desta

forma, o Seridó além de ser seu lugar íntimo e sua pátria é também o retrato de um passado que

sua escrita tenta conservar. Nessa questão Tuan salienta a necessidade de se pensar na interação

entre tempo e lugar, para ele, o lugar pode ser compreendido como um tempo tornado visível

ou como lembranças de tempos passados. Este é um dos motivos que levam ao impulso de

valorização do passado tem grandes ecos na cultura ocidental sobretudo após o iluminismo e a

construção de grandes coleções de artefatos que deram origem aos museus.

Esse impulso ganha ainda mais sentido para sujeitos e sociedades que tem passado

por grandes transformações em um curto período de tempo como é o caso da sociedade ociden-

tal nas últimas décadas. Temos então a quebra com alguns modos de vida e a deterioração de

certas práticas e métodos comuns do cotidiano que para algumas pessoas, geralmente os idosos,

constitui-se como um defeito.

Nosso foco de investigação, Oswaldo Lamartine, pode ser compreendido nessa di-

nâmica uma vez que, mesmo não sendo de fato um homem do meio rural, ele se identificava

com tais modos de vida, tidos como componentes de sua identidade ligada a terra sertaneja.

Assim, o mundo moderno com suas tecnologias e inovações é tratado por ele como uma ameaça

inexorável a essa essência. Na verdade, o que notamos no decorrer de seus textos é um tom

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cada vez mais conformista e pessimista chegando ao ponto de dizer que o seu Sertão não mais

existe como fica claro nessa sua fala:

Sim, mas a de um Sertão que se foi, aterrado pela “sifilização”. Sobrevivo

como um bicho exótico protegido pelo IBAMA, testemunha que sou do sertão

das casas-de-fazenda habitadas, onde o nome das fazendas se incorporava ao

sobrenome do proprietário. Do Sertão onde o primo do primo era parente-

irmão e, pisando no pé de um doía no pé do outro. Do Sertão onde cada filho

de uma família era unido aos outros por sangue e por voto. Sertão de casa de

fazenda clareadas a querosene. Sertão onde se cozinhava em panelas de barro,

fogão a lenha e se bebia de jarras de Cantareira. Sertão onde se acordava com

o canto dos galos para quebrar o jejum com leite mugido. Sertão onde a gente

se banhava nas frias águas das cacimbas e dos açudes. Sertão onde os silêncios

eram quebrados pelos aboios, o zoar dos búzios, o bater dos chocalhos e das

cancelas, o canto das cantadeiras dos carros-de-boi e o estalar dos chicotes dos

matutos. Sertão onde a noitinha, depois da ceia de coalhada, se armava redes

nos alpendres para ouvir dos mais velhos a crônica do passado. Vosmecê que

me perdoem: mas digo com soberba e tudo: amigos, vivi... (LAMARTINE DE

FARIA, 2001, p.84).

Tendo em mente podemos compreender o porquê de Lamartine valorizar tanto cer-

tos objetos como o ferro de marcar gado já que, “os objetos ajudam a segurar o tempo” (TUAN,

2013, p.228), por que o tempo é uma dimensão muito abstrata, para percebe-lo precisamos ver

sua influência sobre os espaços e sobre os seres. Além disso ele fala constantemente de suas

viagens ao Sertão em que busca reencontrar aquela paisagem antiga mesmo que apenas nos

detalhes como nas raras ocasiões onde se pode observar um vagueiro em seus trajes de couro

tradicionais a aboiar um rebanho na estrada.

Neste capítulo procuramos explorar aspectos da relação entre o escritor Oswaldo

Lamartine de Faria e alguns dos espaços onde viveu no decorrer de sua vida. Com intuito se-

guimos o conceito de topofilia apresentado por Yi-fu Tuan como as relações afetivas entre o

homem e o meio ambiente que o rodeia sendo estas escalonadas da simples apreciação visual

até a noção de formar com a natureza um todo indivisível.

Tomando esta premissa seguimos para a infância de Lamartine metade urbana me-

tade rural e vislumbramos como as relações espaciais que ele teve quando pequeno lhes pro-

porcionou um forte apego ao espaço do Seridó enquanto terra de suas origens familiares.

Posteriormente mostramos sua vivencia como administrador rural e de que forma a

convivência com homens de oficio das mais variadas artes manuais e técnicas tradicionais lhe

fascinou. Foram anos de muita experiência que depois pode ser transformada em livros.

Por fim, tivemos sua longa estada no Rio de Janeiro, anos de muita saudade da terra

natal que ajudaram a moldar sua personalidade e estilo. Tempo também de muitas leituras em

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horas e horas passadas entre os livros dos sebos cariocas reunindo se alimentando das palavras

de grandes escritores. E no final o retorno ao chão natal machucado pela perda.

No próximo capítulo vamos problematizar o conceito de paisagem a partir dos li-

vros de Oswaldo Lamartine. Veremos quais dos espaços aqui apresentados aparecem em suas

páginas e quais são ocultados. Além disso atentaremos para os humores que são convocados no

seu modo ver essas paisagens. Sabemos que a ideia de paisagem é uma das mais prolificas para

o pensamento ocidental, portanto antes de realizar qualquer avanço teremos o cuidado de dis-

cutir sobre o seu variado e rico desenvolvimento dentro da área de conhecimento com a qual

temos nos aproximado neste trabalho a saber a Geografia, entretanto não deixaremos de passar

nosso olhar sobre outros conhecimentos para os quais a paisagem também constitui-se como

uma preocupação tais como a arquitetura e a arte.

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CAPITULO III: IMAGINAÇÃO, PERCEPÇÃO E CULTURA: A CONSTRUÇÃO DA

PAISAGEM NA ESCRITA DE OSWALDO LAMARTINE DE FARIA

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Até este momento de nossa investigação, demos especial atenção aos aspectos re-

lacionados à vida do homem, Oswaldo Lamartine de Faria. Desta forma, exploramos seu con-

texto social e suas relações familiares, pairamos sobre alguns dos fatos mais marcantes durante

sua formação como sujeito e focamos na sua relação com o pai por considerarmos a relação

familiar mais potente. Depois nos dedicamos a discutir sobre os principais espaços vividos por

Lamartine e quais sentimentos poderiam ser identificados com relação a cada um deles.

A partir de agora, nosso propósito será explorar a dimensão da escrita de Lamartine,

especialmente a forma como ele construiu paisagens em seus textos. Para tanto, é preciso pri-

meiro pensar sobre esse conceito tão amplamente discutido dentro dos mais variados campos

de estudo.

São muitas as definições e abordagens sobre o conceito de paisagem, e mesmo não

sendo nossa intenção aqui enumerar e discutir todas elas, é preciso fazer um pequeno esboço

sobre o tema. Em seu texto, Paisagem e imaginário: construções teóricas para uma história

cultural do olhar, Vieira trabalha variadas formas de ver a paisagem.

Porém, que é a paisagem...? Antes de ser uma pergunta retorica, trata-se de

uma preocupação em conceituar e construir um referencial. Paisagem é um

daqueles conceitos escorregadios, ambivalentes, como na comparação de Yi-

fu Tuan. O que se destaca, desde cedo, nos estudos das paisagens (um capítulo

da história da arte) e do paisagismo (parte incorporada à arquitetura e urba-

nismo, o tema extrapolou para a geografia (seja física ou humana), para a eco-

logia (por conta do movimento ambientalista), para a história, para estudos de

cinema, e também para o turismo e a literatura, pois já se estuda a paisagem a

partir de relatos de viajantes, e dos guias de viagens. De tão amplo que é o

tema, o uso do termo extrapolou os territórios desses saberes, e hoje, o vocá-

bulo transformou-se numa metáfora, quando se quer situar num panorama

qualquer assunto sobre o qual se queira discorrer. (VIEIRA, 2006, p.2).

Entre as muitas formas de se pensar a paisagem destacamos para nossa pesquisa o

modo de pensar de três autores, Gaston Bachelard, Yi-Fu Tuan, e Simon Schama. Nossa escolha

desses três pensadores tem sua razão de existir no fato de que os três estão relacionados, na

medida em que cada um se apresenta enquanto devedor dos insumos dos anteriores, porém suas

abordagens do tema da paisagem são distintas o suficiente para nos permitir um amplo leque

de análise de nosso objeto, Oswaldo Lamartine de Faria e especificamente sua escrita.

O primeiro deles, o filosofo francês Gaston Bachelard (1884-1962), membro da

Academia de Ciências Morais e Políticas da França e professor da Sorbonne. Sua vida foi de-

dicada aos estudos da filosofia, mais especificamente na área da epistemologia das ciências

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onde se tornou conhecido por sua postura altamente antidogmática configurada e pela sua filo-

sofia do não, marcada pelo questionamento de um modo de fazer filosofia baseado em axiomas

que tem na logica aristotélica de dois valores seu maior exemplo. Seus estudos vão ser direcio-

nados por dois temas centrais, a ciência e a poesia, com leves incursões no estudo de psicanálise.

Em suas pesquisas, Bachelard se utilizou de alguns referenciais das décadas de 30 e 40, tais

como a psicanalise, o materialismo e a fenomenologia, mas fazendo de cada um deles um uso

próprio e não os poupando de críticas (PESSANHA, 1978).

Nosso trabalho vai se ater então a discussão de Bachelard acerca da imagem poética

por meio de uma de suas obras mais conhecidas, A poética do espaço (2008). O livro original-

mente publicado em 1957 é dividido em dez capítulos mais uma introdução durante os quais o

autor irá explorar espaços como a casa, a gaveta, o ninho e os cantos, além de abstrações espa-

ciais como a miniatura e a imensidão intima. Nosso foco de exame, entretanto, são as imagens

poéticas que surgem com relação a esses espaços, entendendo-as como uma ação realizada por

meio da imaginação e pela alma do poeta.

Neste sentido, o autor exclui de sua análise dois pontos que considera prejudiciais,

o histórico do poeta, em que se detalha e traça sua vida em seus múltiplos aspectos psicológicos

e sociais; e, a crítica literária do poema, que nos instrui a respeito de construções acerca da

estrutura do texto. Aqui ele quer reter a imagem poética em sua essência, por isso se utiliza de

pressupostos da fenomenologia. Em sua análise se privilegia o encontro tranquilo com a leitura

do texto poético, sem mediações, ele trata essa imagem como um acontecimento que surge no

momento da escrita pelo poeta e emerge na leitura.

Assim, na visão deste autor, a paisagem é criada pela imaginação e, em muitos casos

não se possuiria a preocupação em se transmitir a precisão das formas empíricas, mas sim de

irradiar os mais profundos sentimentos do poeta.

Visam determinar o valor humano dos espaços de posse, espaços proibidos a forças

adversas, espaços amados. Por razões muitas vezes bem diversas e com as diferenças que com-

portam os vários matizes poéticos, são espaços louvados. A seu valor de proteção, que pode ser

positivo, ligam-se também valores imaginados, e esses valores são, em pouco tempo, valores

dominantes. O espaço compreendido pela imaginação não pode ficar sendo o espaço indiferente

abandonado à medida e reflexão do geômetra. “É vivido. E é vivido não em sua positividade,

mas com todas as parcialidades da imaginação. Em particular, quase sempre ele atrai”. (BA-

CHELARD, 2008, p.196).

O segundo autor que vamos abordar aqui, tem sido recorrente nesta pesquisa, Yi-

Fu Tuan, que possui certos profundos elos com Bachelard. Como já abordamos no segundo

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capitulo o histórico desse autor vamos nos ater aqui a estabelecer essa relação entre os dois

autores.

Em entrevista concedida em 2013, Yi-Fu Tuan24 relata que sua leitura das obras de

Bachelard data da década de 1950 quando era professor assistente na Universidade do Novo

México nos Estados Unidos. Da leitura, especialmente de A Poética do Espaço, Tuan retira o

termo ‘topofilia’ que lhe pareceu uma categoria útil para pensar sobre as diferentes formas de

sentimento que os povos e indivíduos tem para com o lugar e o espaço.

Além da Topofilia os estudos de Bachelard ajudaram Tuan a definir, por exemplo,

“o sentimento pelo lar ou casa como um lugar de refúgio” (TUAN, 2013, p. 168) que emana

segurança diante do inverno. De forma geral a perspectiva sobre a relação entre o homem e os

espaços presente na poética do espaço foi um importante referencial para o desenvolvimento

do pensamento de Yi-Fu Tuan sobre os espaços em espacial os espaços amados.

A paisagem para Tuan é um recorte espacial momentâneo no qual atua de forma

determinante a experiência do indivíduo, experiência aqui intendida como os sentidos e senti-

mentos do sujeito para com os espaços vividos por ele. Por isso é comum que quando uma

pessoa sinta um cheiro característico que remeta a um lugar querido uma imagem se forme em

sua mente e, o mesmo pode ocorrer com um som ou o gosto de uma comida. Este estado mental

induz a formação de uma imagem e não da totalidade daquele espaço em todos os seus aspectos.

Logo a paisagem não vem por meio de uma imaginação, porem a percepção que se tem sobre

o espaço é permeada pela experiência pregressa do indivíduo com outros espaços do seu pas-

sado que foram significativos.

O usufruto da paisagem é mais personalíssimo e duradouro quando está mesclada

com lembranças de incidentes humanos. Também perdura além do efêmero, quando se combi-

nam o prazer estético com a curiosidade científica. O despertar profundo para a beleza ambien-

tal, normalmente acontece como uma revelação repentina. Este despertar não depende muito de

opiniões alheias e também em grande parte independe do caráter do meio ambiente. “As cenas

simples e mesmo as pouco atrativas podem revelar aspectos que antes passavam desapercebidos

e este novo insight na realidade é, às vezes, experienciado como beleza”. (TUAN, 2012, p.139).

Quando esse rememorar é de tal forma importante para esse sujeito, na medida em

que ele pode ser compelido a registra-lo de alguma forma, isso seria o que acontece com alguns

escritores. Por meio de suas palavras seus leitores entram em contato com essa imagem e podem

24 NAVARRETE, Steven. Yi-Fu Tuan: “El hombre siempre ha concebido a la naturaleza como una

mercancía”. 2013. Disponível em: <http://bit.ly/31W1yAc>. Acesso em: 5 fev. 2013.

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se identificar, criar um elo com aquela experiência. Esse movimento de escrita possibilita uma

certa permanência daquela experiência.

Outro autor a ser discutido nesse capitulo é Simon Schama. Britânico de ascendên-

cia judaica, Simon Schama se dedicou ao logo de sua vida acadêmica a estudos de História da

arte, sobretudo o que diz respeito a arte europeia e americana. Foi professor universitário em

Cambridge (Chist`s College) entre 1966 a 1976; Oxford (Brasinone College) de 1976 a 1980;

Harvard de 1980 a 1993 além da Universidade de Columbia. Lecionou Também na École des

Hautes Études en Sciences Sociales.

Paisagem e memoria (1996) é um de seus trabalhos mais conhecidos. Um livro

volumoso composto de nove capítulos mais uma introdução organizada em três partes. O tema

central do livro é como a cultura ocidental significou ao longo do tempo determinados espaços

como as florestas, os rios e as montanhas tomando como foco expressões artísticas como, a

pintura e a literatura.

A paisagem abordada por ele como um elemento que transmite significados diver-

sos de acordo com a sociedade e o tempo que às compõe é, que esses significados vão sendo

legados de geração para geração.

O modo como se constrói a paisagem seria diferente em cada cultura humana, pois,

as maneiras de ver diferem de uma para outra. Em seu extenso trabalho, Schama escolhe como

tema o modo como a sociedade ocidental significou ao longo do tempo alguns aspectos da

natureza, e verifica que existem certas tradições do olhar ocidental, dentre as quais tem desta-

que, da floresta enquanto identidade, e dos rios como fluxos sanguíneos, fontes de vida da rocha

associada ao poder. É importante reter que para Schama a paisagem é cultura antes de ser na-

tureza, ou seja, o olhar que se tem para um uma paisagem é profundamente marcado pela tra-

dição na qual se está inserido. Portanto, a paisagem em Shama, vai ser composta de dois ele-

mentos, a natureza, física e concreta e a cultura ou tradição. Neste sentido, sua abordagem se

aproxima da de Tuan, na qual a natureza está mesclada a experiência do sujeito, porém, quando

Schama fala sobre a cultura ele vai além de uma experiência comum chagando a médias e

grandes estruturas de pensamento indo ao ponto do inconsciente coletivo.

“E assim que vemos o mundo”, disse René Magrette numa conferência que

pronunciou em 1938, explicando sua versão de La condition humaine [A con-

dição humana], na qual sobrepôs um quadro à paisagem retratada, de modo

que ambos formam um todo contínuo e são indistinguíveis. “Vemos o quadro

como exterior a nos, embora seja apenas uma representação do que experi-

mentamos em nosso interior” O que está além de nossa apreensão, diz Ma-

grette, requer um desenho para que possamos discernir adequadamente sua

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forma, sem falar no prazer proporcionado por sua percepção. E é a cultura, a

convenção e a cognição que formam esse desenho; que conferem a impressão

retiniana a qualidade que experimentamos como beleza. (SCHAMA, 1996,

p.22).

Schama atribui a Tuan grande importância no guia bibliográfico presente na obra

Paisagem e memoria (1996).

Outro patriarca da história e interpretação da paisagem é Yi-fu Tuan, a cuja

elegante síntese de psicologia, história natural e história arquitetônica muito

devo. Ver em particular Space and place: The perspective of experience (Min-

neapolis, 1977) e Landscapes of fear (New York, 1979). (SCHAMA, 1996,

p.611).

De forma breve podemos traçar um paralelo entre os capítulos ‘Espaço Mítico e

Lugar’e ‘Espaço arquitetônico e conhecimento’ no livro, Espaço e Lugar (2013) com o capitulo

‘A Cruz verdejante’ presente em Paisagem e Memoria (1996). Nos capítulos de Tuan se explora

como determinados lugares serviram, para determinadas culturas como bases sólidas de sua

história e mitos, uma forma de dar concretude ao intangível, algo semelhante ao se dá no texto

de Schama quando este fala sobre as pinturas de árvores feitas por estadunidenses no século

XVIII que em geral representava bosques de árvores nativas buscando dar a elas o significado

ao mesmo tempo do espírito livre e pioneiro assim como o da casa primordial de deus, ou seja,

deus habitou primeiro ao bosque antes das igrejas serem construídas.

Em outro momento, Tuan relata como os seres humanos apreendem certas caracte-

rísticas de ambientes naturais e aos incluem na construção de seus próprios ambientes por meio

da arquitetura, para ele esse processo é complexo já que o homem primeiro precisa ter em mente

formas básicas para depois busca-las, de forma mais complexa, na natureza. A esse respeito,

Schama trabalha com o a ideia do bosque catedral, ou seja, como o formato do interior das

igrejas, sobretudo a catedral gótica, foi traçado inspirando-se nos bosques antigos.

Ao escolher tratar sobre o elemento da paisagem na escrita de Lamartine o fazemos

no intuito de delimitar a dimensão espacial de suas obras. Sendo assim, o conceito de paisagem

se encaixa bem em nossa intenção, uma vez que mesmo em suas variadas definições a ideia

central vai estar conectada de alguma forma com alguma forma de ver os espaços.

Escolhemos três perspectivas sobre a paisagem pois, na nossa análise da escrita de

Lamartine encontramos formas variadas de ver os espaços, algumas mais próximas outras mais

distantes intermediadas pela imaginação ou pela cultura.

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3.1 SENTIMENTO E IMAGINAÇÃO: ESPAÇOS AMADOS, ESPAÇOS IMAGINADOS

A começar pela abordagem de Bachelard que exploramos mais acima temos a rela-

ção entre Lamartine e o Seridó, a terra de suas origens e de sua identidade. Embora seja este

um espaço amado não podemos dizer que foi um espaço vivido plenamente já que poucas foram

as vezes que o visitou, tendo seu contato mais concentrado na fase da infância, como abordamos

no capitulo dois.

Em seu livro Sertões do Seridó (1980) acompanhamos Lamartine em sua viagem

pelos diversos aspectos do espaço e da sociedade seridoense de tempos passados. Neste sentido,

ao construir a paisagem seridoense, influem muito mais a imaginação e o sentimento do que a

experiência direta. Em suas páginas, frequentemente encontramos descrições que dão conta de

um Seridó antigo marcado ainda por um modo de vida rústico onde Lamartine imagina a rotina

daquelas pessoas, em meio as práticas de plantar de colher e criar. Das casas de fazenda a imen-

sidão dos Sertões do Seridó suas descrições trazem sempre uma boa doze de imaginação para

completar seu panorama. Tudo isso permeado por um forte desejo de habitar tal lugar e tempo.

Porém, por mais imaginação que o autor convoque, sua paisagem será composta por elementos

físicos reais como o meio ambiente.

No livro, A poética do espaço (2008), Bachelard fala sobre duas abstrações que

ganham folego na imaginação do poeta / escritor, elas estão contidas nos capítulos ‘a miniatura’

e ‘a imensidão íntima’. No primeiro caso nos deparamos com uma paisagem miniaturizada pela

imaginação do poeta, muito comum em contos de fadas, que na visão de Bachelard é um artefato

pouco explorado ou mesmo compreendido dentro do universo literário. Para ele a visão que se

tem da miniatura é demasiado simplista como se fosse apenas diminuir as escalas geométricas.

Para além disso, a miniatura tem a ver com construir em um mundo pequeno, os valores e

sentimentos que se tem para com o mundo em dimensões normais. Ou seja, ao entrarmos na

miniatura do escritor de grande imaginação podemos nos sentir confortáveis ao observar aquele

mundo constrito “É preciso ultrapassar a lógica para viver o que há de grande no pequeno”

(BACHELARD, 2008, p.159).

Além disso, a miniatura também carrega o potencial de ser uma sinédoque do es-

paço muito maior, ou seja, naquele pequeno mundo ou naquela mínima parcela do mundo se

concentram os valores, sentimentos e emoções a respeito do todo.

Em Lamartine podemos observar isso quando ele fala sobre o açude. Neste pequeno

recorte do espaço seridoense o autor identifica o coração pulsante da vida do Seridó, nada mais

natural em função das características ambientais da caatinga, marcada por secas periódicas. O

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açude é trabalhado por Lamartine como um oásis de vida em meio a paisagem ressequida do

Sertão.

Espia-se a água se derramando liquida e horizontal pela terra adentro a se per-

der de vista. As represas esgueiram-se em margens contorcidas e embastadas,

onde touceiras de capim de planta ou o madante de hastes arroxeadas debru-

çam-se na lodosa lama. O verde das vazantes emoldura o açude no cinzento

dos chãos. Do silencio dos descampados vem o mergulhar das marolas que

morrem nos rasos. Curimatãs em cardumes comem e vadeiam nas águas bei-

rinhas nas horas frias do quebrar da barra ou ao morrer do dia. Nuvens de

marrecas caem dos céus dos céus. Pato verdadeiro, putrião paturi grasnam em

coral com o coaxar dos sapos que abraçados se multiplicam em infindáveis

desovas geométricas. Gritos de socó martelam espaçadamente os silêncios. O

mergulhão risca em rasante voo o espelho líquido das águas. Garças em

branco – noivo fazem alvura na lama. É o arremedar, naqueles mundos, do

começo do mundo...

O rio, estancado em açude, continua depois, verde sinuoso de capinzais, copas

de mangueiras, leques de coqueiros ou canaviais penteados pelo vento. Mi-

lhões de metros cúbicos de água – doce, fria e cheirosa – é que água nos de-

sertos também cheira – esbarrados pela muralha da parede, aninham peixes,

criam vazantes, dão de beber à criação, fazem crescer raízes, caules, folhas,

flores e frutos e se esclerosam em veias pela terra adentro, esverdeando em

folhas os sedentos chãos cinzentos daqueles sertões. (LAMARTINE DE FA-

RIA, 1980, p.23).

Com esse trecho é possível perceber como Lamartine fecha esse espaço ao usar a

metáfora da moldura, delimitando o dentro e o fora dessa redoma. Dentro da miniatura, o es-

critor experiência a topofilia ao relatar com tamanho carinho as diversas características daquele

ambiente, bem como ao falar sobre as sensações que desperta nele. Observamos que de fato o

açude é para Lamartine a fonte de toda a vida e de toda a sociedade seridoense, sem esse ajun-

tamento de água as populações de animais, plantas e humanos não sobreviveram as dificuldades

impostas pelo meio, uma vez que os poucos rios da região não são perenes, correndo água

apenas na época das chuvas.

Outra abstração que Bachelard comenta é a imensidão intima. Em seu ponto de vista

a imensidão é por excelência uma categoria filosófica do devaneio, pois é através desse estado

de alma contemplativo da grandeza que o poeta elevasse das preocupações do seu mundo pró-

ximo e coloca-se a peregrinar por dimensões muito maiores do mundo. É para fazer isso, não

necessariamente se exige do poeta que viaje fisicamente, que sai em explorações portanto, o

devaneio e imensidão intima são alguns dos elementos que mais exigem da imaginação do so-

nhador.

Em Lamartine o tema da imensidão está relacionado com imagens de um passado

distante em que o os espaços são consideravelmente maiores diante dos meios de transporte

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disponíveis ao homem naqueles tempos. Nestes lugares, ele imagina uma dimensão sem fim e

em sua escrita é como se percorresse essa vastidão descrevendo suas características.

No ensaio de 1980 ‘E adonde era sombra se fez sol; e adonde era solo se fez chão’,

disponível na coletânea Notas de carregação (2001), Lamartine nos leva em uma viagem pelos

ermos bravios começando na praia indo despontar no Sertão.

Quando no dia de Santos Reis de 1598 foi principiada a canseira de levantar

pedras e paus para a construção do Forte dos Reis Magos, é de se imaginar

que a mata esbarrava no sal das áreas do mar. Verde, densa, grossa e sombria.

E se fazia em frutos como o guajiru, a mangaba e o caju. Ou em madeira de

lei, como o pau – brasil, massaranduba, o pau –ferro e a sucupira. Nas ensea-

das, os mangues cresciam da lama, linheiros e grossos, como os mastros das

caravelas. A mata se perdia de vista terra a dentro nas chãs dos tabuleiros e

ariscos ou se ondulava nos rumos dos céus, vestindo de verde morros e serras.

Mais rala talvez nos chãos barrentos do sertão – seco, embora a aroeira, a

imburana, o camaru, a braúna, o angico e o mororó dominassem as serras e

várzeas. É avia fartura de caça grossa - bichos de pelo e bichos de pena –

enquanto nos ocos de pau e brechas de pedra, ainda se aninhava a aruçu, a

jandaíra, a tataíra, a limão e a jati. (LAMARTINE DE FARIA, 2001, p.14).

Deste modo o autor assume olhar de um conquistador português adentrando o es-

paço, embora possua informações privilegiadas sobre os animais e plantas do lugar, o que o

caracterizaria mais precisamente como uma espécie de viajante do tempo a experienciar os mo-

mentos iniciais da colonização.

3.2 PERCEPÇÃO E EXPERIÊNCIA: NARRATIVAS DO ESPAÇO VIVIDA

Uma visão com a qual se pode trabalhar a paisagem em Lamartine de Faria é pela

via de Yi-fu Tuan. No capítulo, ‘Topofilia e meio ambiente’, de Topofilia (2012) este autor fala

sobre quatro níveis de apreciação do espaço: apreciação estética, contato físico, bem-estar e

afeição. A primeira fase tem a ver prioritariamente com o sentido da visão e tem uma natureza

efêmera e surpreendente, ou seja, a experiência de apreciar o prazer estético de uma paisagem

vem quando menos se espera e dura pouco, na maioria dos casos. Esse prazer pode ser mais

amplo quando aquela paisagem evoca lembranças ou sentimentos.

Na escrita de Lamartine esse tipo de apreciação da paisagem é bem menos comum

do que os outros dois que exploramos aqui. As poucas ocasiões em que isso ocorre são também

pontuadas pelo uso da primeira pessoa em sua escrita marcando uma narrativa de viagem. Eram

tanto nas férias escolares quanto nas de trabalho que Lamartine voltava ao Rio Grande do Norte

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e acabava visitando a fazenda Lagoa Nova, no município de São Paulo do Potengi, que perten-

cia a seu pai e onde viveu e trabalhou nos anos quarenta.

O livro que mais que demonstra essa relação é o Notas de Carregação (2001) que

consiste de uma coletânea de textos. Alguns deles possuem referência de publicação em lugares

como os periódicos Tribuna do Norte e Diário de Natal, bem como nas Seleções agrícolas, do

Rio de Janeiro. Esses textos abarcam uma grande amplitude temporal indo do mais antigo, ‘A

ressureição da Mão de onça’ conto publicado no Diário de Natal em 1947, até o mais novo,

‘Ribaçãs’ de 2000, disponibilizado na Tribuna do Norte. O primeiro foi escrito provavelmente

no momento em que viveu na Fazenda Lagoa Nova, e o segundo pode ter sido na Fazenda

Acauã ou em Natal.

No texto, “cadê os canários” (1986) que também está no livro, Lamartine narra ex-

tasiado a grande capacidade de recuperação da Caatinga depois de passados cinco anos de uma

seca arrasadora durante a década de 1970. No fim desse período de privações vem um inverno

que atinge com toda força o Sertão, modificando drasticamente a paisagem e a vida do homem.

Assim ele descreve o ambiente que encontrou:

Anualmente cigano por aqueles mundos e espio e especulo pelas coisas dos

homens e da terra. Quando dos anos da seca a vida animal parecia ter levado

sumiço- nem rastros nos chãos, sem voos de pássaros – era apenas a caatinga

garranchenta plantada num mundo de silêncios.

Em setembro último voltei a pisar aqueles caminhos – depois do inverno di-

luviano que embebedou todo o sertão. Não há porque se espantar com o man-

gote de marrecas, paturis, socós, mergulhões, jaçanãs – aves migratórias nas

águas dos açudes. Mas intriga e encabula ver e saber da verdadeira praga de

preás, e consequentemente de jararacas e raposas. [...]

Também vi algumas seriemas e nambus há muito desaparecidos daqueles pas-

tos e até ouvi falar de raros veados. Conforta ver e saber que o bicho-homem

ainda não conseguiu matar todos os outros bichos. (LAMARTNE DE FARIA,

2001, p.38-39).

Neste fragmento vemos uma apreciação parcial da paisagem que detecta elementos

específicos relacionados a fauna local. Aqui Lamartine atesta a força da natureza ao se recuperar

tão fortemente que com tamanho vigor de um período de secas tão severo. Por este motivo, se

pensarmos como Tuan (2012), a apreciação da paisagem neste texto, por mais efêmera e super-

ficial que pareça carrega por trás de si um sentimento que santifica o cenário, tal sentimento

tem suas raízes no passado, na experiência. Neste caso, a experiência de Lamartine e sua afeição

pela natureza daquele espaço, com a qual já manteve um contato físico no passado, além de seu

conhecimento das tragédias da seca, faz com que uma imagem tão frugal quanto de um bando

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de aves em voo sobre a água de um açude, seja para além de uma bela visão a demonstração de

um milagre da natureza.

Outro elemento da apreciação estética da natureza que podemos observar em La-

martine está contido no texto ‘A ressurreição da mão de onça’, um de seus textos mais antigos

escrito durante sua estadia na Fazenda Lagoa Nova no ano de 1947 um ano antes de se despedir

daquele espaço para ajudar na fundação do Núcleo Colonial de Pium. Lá ele estive envolvido

com atividades ligadas ao trabalho com a terra e foi ali que reuniu conhecimentos sobre os

modos de vida e de trabalho do homem sertanejo. Neste mundo, em um dia andando pelos

pastos Lamartine se depara com algo curioso:

Percorrendo um dos cercados de nossa propriedade (Fazenda Lagoa Nova,

município São Paulo do Potengi) minha atenção foi despertada para uma pe-

quena planta de 10 á 15 cm que vegeta nas barreiras dos riachos. Um vaqueiro

informou-me ser denominada vulgarmente por “mão de onça, mão de anjo ou

mão de defunto”, naturalmente de vido a particularidade que possui de, na

época de estio, enrolar suas folhas, apresentando um aspecto de novelo, ou

melhor: “mão de anjo, para desabrochar em alguns minutos, ao contato da

umidade.

[...] Essa curiosa planta, resiste a prolongados períodos de estio tomando a

forma de novelo, encarquilhada, seca maninha, pseudo morta; se lhe propor-

ciona umidade, desabrocha luxuriante no minguado espaço de poucas horas.

Horas depois, volta a se encarquilhar. (LAMARTINE DE FARIA, 2001, p.52-

53.

Sabemos pela ótica de Yi-fu Tuan (2012) que a apreciação estética, em suas expe-

riências mais intensas possui características de ser repentina espontânea e efêmera é, no texto

acima observamos exatamente isso. Em seu passeio pelo terreno de Lagoa nova, em meio as

tarefas do seu cotidiano, Lamartine se depara com uma beleza singular, uma planta quase imor-

tal capaz de vencer o maior temor de qualquer sertanejo, a seca.

3.3 CULTURA E ESCRITA: UMA TRADIÇÃO DE OLHAR REGIONAL

Chegamos agora à terceira etapa na qual se discute a paisagem em Oswaldo Lamar-

tine de Faria. Esta via é direcionada teoricamente pela obra de Simon Schama, Paisagem e

Memoria (1990). Nesse livro o autor nos mostra seu argumento de que a paisagem é cultura

antes de ser natureza, ou seja, são os anseios e referências culturais que vão direcionar nosso

olhar para um determinado cenário natural reconhecendo nele elementos de beleza, identidade,

ou mesmo de desolação e tragédia. Em seu estudo Schama se aprofunda nas variadas paisagens

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da história ocidental a partir de diversas formas de arte tais como pintura, escultura, arquitetura,

além da literatura.

Na primeira parte do livro, Schama se dedica a um estudo da mata, ou das grandes

e pequenas formações de árvores nas quais diversas culturas e sociedades encontraram uma

espécie de lócus da sua identidade onde se concentram as essências e suas características mais

nobres. Seria o ponto zero da ancestralidade de seus habitantes, estes sujeitos “rústicos” seriam

representantes de um estágio primitivo no qual homem e natureza comungavam de uma verda-

deira paz.

Em seu texto Schama fala das florestas da Lituânia e de seus bisões que represen-

tavam o sentimento de liberdade e voracidade daquele povo diante dos constantes ataques que

sofreram durante sua história, sobretudo os perpetrados pela Rússia. Ele analisa ainda a impor-

tância dos bosques ingleses para uma afirmação de liberdade no século XV ao XVIII. Além da

tradição das matas germânicas que presenciaram o encontro explosivo entre os povos germâni-

cos e os romanos.

Dentre todos os outros tipos de apreciação da paisagem, está é a que mais se so-

bressai na obra de Oswaldo Lamartine uma vez que, muito do que está em suas páginas sobre

o meio sertanejo vem de um processo de leitura de livros a respeito desta temática, que tem seu

auge no período em que vive no Rio de Janeiro e fara dos sebos cariocas seus lugares de apren-

dizado.

No livro Em alpendres d´Acauã: Uma conversa com Oswaldo Lamartine de Faria

(2001), Lamartine é perguntado sobre seus livros fundamentais, sua resposta foi esta:

Amigo, prefiro citar o que imagino de mais importante para o Nordeste, prin-

cipalmente o sertão da caatinga. Os sertões (Euclides), Terra do Sol (Gustavo

Barroso), Vaqueiros e cantadores, Civilização e cultura e Tradições da Pecu-

ária nordestina (Cascudo), Capítulos da história colonial (Capistrano), Vidas

secas (Graciliano), Guerreiros do sol (Frederico Pernambucano), paisagens

das secas (Mauro Mota), A pedra do reino (Ariano Suassuna) e mais para perto

das pancadas do mar, Casa grande e senzala (Gilberto Freyre) – lá se vão onze.

(LAMARTINE DE FARIA, 2001, p.67-68).

Aqui podemos observar uma boa quantidade de obras citadas como fundamentais

o que impõe a necessidade de escolha por eliminação daqueles que mais nos ajudam a trabalhar

a temática dos espaços em Lamartine. A partir da leitura de todos estes livros chegamos à con-

clusão de que os textos de Luís da Câmara Cascudo, Capistrano de Abreu, e Frederico Per-

nambucano de Melo e Ariano Suassuna tem pouco a acrescentar a este estudo sobre uma cultura

de percepção da paisagem sertaneja que buscamos aqui.

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Nos textos de Cascudo, estes citados acima por Lamartine, temos a temática cultural

se sobressaindo onde o autor explorou aspectos como o criatório, e a cultura popular dos can-

tores assim como em Civilização e Cultura (1973) ele toma para si a tarefa monumental de

estudar toda a trajetória humana em seus aspectos mais variados desde da domesticação dos

animais e plantas até chegar nas tradições do folclore popular. Desta forma, apesar de colocar

em muitas passagens o Sertão como uma região de seu bem querer, berço de mais bela cultura

nacional, ele oferece poucas descrições sobre esse meio ambiente.

Capistrano de Abreu por sua vez tem em Capítulos de História Colonial (2000)

uma preocupação de, como o nome do seu livro indica, narrar aspetos da colonização do Brasil.

Entre os capítulos está um que se refere a ocupação dos sertões, termo usado aqui para definir

as áreas não exploradas na colonização que seriam desbravadas pelos bandeirantes. Dentro

desse amplo território estavam os sertões secos que compreendiam a região que muito tempo

depois seria chamada de Nordeste. Então ao analisarmos seu texto, especialmente neste capitulo

observamos que sua atenção é voltada para a narração de fatos e acontecimentos utilizando-se

para isso os relatos dos homens daquele período não sendo possível notar alguma investigação

mais ampla sobre o tema da paisagem sertaneja a não ser sobre breves comentários a respeito

das dificuldades impostas pelo meio como a falta de recursos alimentares entre outros a serem

adquiridos a grande custo.

Já mostramos no primeiro capítulo desta pesquisa quão forte e importante foi a re-

lação de amizade entre Ariano Suassuna e Oswaldo Lamartine, ficou claro para nós que os dois

dividiam sofrimentos semelhantes e uma mesma perspectiva a respeito do passado, da família

e do Sertão. É importante lembrar, contudo, que os dois escrevem suas obras quase que em

concomitância o que dificulta pensar em como a leitura de um poderia ser percebida no texto

do outro.

No caso do romance A pedra do reino (2012), publicado originalmente em 1971, é

possível verificar que neste momento Oswaldo Lamartine já havia publicado várias de suas

obras como Notas sobre pescaria de açudes (1950), A caça nos sertões do Seridó (1961), e

Conservação de alimentos nos sertões do Seridó (1965). Isto de forma alguma descarta o fato

de que ambos estão alinhados a uma tradição de olhar e narrar a paisagem sertaneja, fato que

se pode confirmar facilmente na leitura de A pedra do Reino (2012) na qual pudemos observar

elementos correntes desta tradição como a descrição da terra esturricada, do sol, das plantas

retorcidas e do meio cinzento. Portanto, em um sentido de prioridade vamos ter que deixa-lo de

lado em detrimento de outros autores que identificamos ter contribuído mais para a construção

de paisagem em Lamartine.

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Por último o texto de Frederico Pernambucano, um dos mais jovens escritores den-

tre estes citados por Lamartine. Em Guerreiros do sol (2011) ele investiga o cangaço de Lam-

pião e seu bando buscando entre outras coisas demonstrar que a tese de que o banditismo desta

e de outras figuras da mesma natureza não se indispunha com o poder dos coronéis, mas em

muitos casos, era um de seus mais violentos colaboradores. Sobre o espaço, apesar de haver

sim algumas considerações sobre o Sertão, poucas delas podem ser aproveitadas para nosso

estudo já que julgamos não serem tão relevantes para se compreender a questão da paisagem

em Lamartine, basicamente, não consideramos que este seja um livro referencial para Lamar-

tine neste aspecto de sua obra.

Selecionamos entre essas obras que Lamartine leu ou sobre as quais escreveu, cinco

livros que, segundo nossa perspectiva, são importantes para perceber certos aspectos da paisa-

gem sertaneja apresentada por esse autor. São eles: Os sertões (2002) de Euclides da Cunha25

publicado originalmente em 1902; Terra do Sol (1962) de Gustavo Barroso26 com primeira

25 Seu nome de batismo é, Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, nasceu em Cantagalo, Rio de Janeiro,

em 20 de janeiro de 1866, e faleceu no Rio de Janeiro em 15 de agosto de 1909. Foi engenheiro militar,

jornalista, ensaísta e historiador. Frequentou a Escola Militar da Praia Vermelha um dos centros de

irradiação de ideias republicanas localizada no Rio de Janeiro. Foi professor e jornalista escrevendo

regularmente para vários jornais como A Província de S. Paulo. Foi em função de um desses artigos

onde explanava sobre a questões da Guerra de Canudos que ele foi chamado por José de Mesquita para

ser o enviado do jornal Estado de São Paulo para cobrir em 1897 a última das quatro excursões ao

povoado de Canudos quando se realizou um dos maiores massacres militares da História do Brasil

(BETTIOL; HOHLFELDT, 2011). 26 Gustavo Barroso nasceu em 29 de dezembro de 1888 em Fortaleza estudou em instituições como o

Paternon Cearense e o Liceu do Ceará e ao concluir os estudos básicos ingressou na Faculdade de Direito

do Ceará em 1907 da onde saiu em 1912. Como nos relata Moreira (2006), é bem cedo que Barroso

desenvolve atividade intelectual ligada sobretudo ao jornalismo escrevendo para O Jornal do comercio

em 1911 para a revista Fon – Fon em 1910 e para A República em 1906. Participou da Academia Bra-

sileira de Letras a partir de 1923 e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1931. Além disso

merece destaque seu período como diretor do Museu Nacional em 1922. Contudo, o aspecto mais co-

nhecido de sua biografia seja talvez a sua participação no Movimento integralista durante a década de

1930. Gustavo Barroso foi também um dos componentes do movimento folclorista que teve maior rele-

vância a partir do século XX como relata Albuquerque Junior (2013).

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publicação em 1912; Paisagem das secas (1952) de Mauro Mota27 e por fim Calvário das secas

(2009) de Eloy de Souza28 primeiro publicado em 1938.

Oswaldo Lamartine adentra nesta tradição de olhar da paisagem sertaneja a partir

especialmente de seus livros Sertões do Seridó (1980) e Notas de Carregação (2001) duas com-

pilações de textos originalmente publicados em separado sendo o primeiro composto por en-

saios e o segundo por artigos de jornais como o Tribuna do Norte.

Os textos presentes nestas publicações foram escritos em um período de sete déca-

das, de 1941 até 2000, contudo, a produção de Lamartine não foi uniforme, pois, as décadas

mais prolificas de seu trabalho foram as de 60 70 e 80. São as décadas que passa em seu “exilio”

no Rio de Janeiro frequentando os sebos em companhia de amigos, colegas livreiros e bibliófi-

los além de suas constantes lembranças dos amigos e familiares que se foram levados pela moça

caetana. É a partir deste estado e coisas que nosso autor foi capaz de criar imagens do seu Sertão

encontrando-o entre suas memorias de criança e as constantes leituras.

Ao compararmos os textos de Lamartine ao dos autores por ele citados, semelhan-

ças importantes podem ser encontradas no modo de abordar a paisagem e a relação do humano

com esta. Euclides da Cunha, é relevante por ser justamente um dos primeiros e mais impor-

tantes referenciais sobre essa temática. Segundo Lamartine seu contato com o texto Euclidiano

se dá já com “barba na cara” o que pode ter sido no começo de sua vida adulta uma vez que o

livro figura entre as referências mais frequentes em seus escritos. Gustavo Barroso é outra

grande referência de Lamartine presente em abundância em seus livros. Seu contato com o autor

27 Seu nome completo é Mauro Ramos Mota de Albuquerque nascido em 1911 no Recife, Pernambuco

passou sua infância no município de Nazaré da mata localizado na região da zona da mata pernambucana

onde entrou em contato com a cultura dos engenhos (NETO, 2004). Segundo sua biografia, disponível

no site da Academia Brasileira de Letras teve formação nas escolas Dom Vieira e Colégio Salesiano e

Ginásio do Recife. Concluindo os estudos básicos vai para a Faculdade de Direito do Recife. Em sua

carreira intelectual Mota atuou nos jornais pernambucanos Diário da Manhã e Diário de Pernambuco a

partir de 1941 (AMARAL, 2018). O perfil mais conhecido da carreira de Mota é a sua produção poética

onde destaca-se suas Elegias publicadas em 1950. 28 Eloy de Souza, político e intelectual norte-rio-grandense. Nasceu no dia 04 de março de 1873. Sua

carreira política começou com o mandato parlamentar de 1894, e daí por diante foram mandatos conse-

cutivos alternado entre a Câmara dos Deputados e o Senado. Nestes ambientes Eloy de Souza vai de-

senvolvendo sua oratória, elemento indispensável para políticos de sua natureza sobretudo nos aprofun-

dados debates em plenário como aponta Ítala Silva (2018). Da tribuna, ele proclamou discursos que

acenavam ao problema das secas no Sertão nos quais empenhou sua oratória e conhecimentos a favor

de um projeto que pudesse dar fim aos problemas que se conferiam em decorrência desse fenômeno

climático. Para além da atividade política, Eloy de Souza também produziu alguns escritos entre os quais

estão, Costumes Locais (1909) e em Memorias de um velho (1975). Eloy de Souza tornou-se membro

da Academia Norte-rio-grandense de letras na cadeira número 15 que tinha como patrono, seu mestre e

amigo Pedro Velho. Além disso teve grande participação no Instituto Histórico e Geográfico do Rio

Grande do Norte do qual foi um dos membros fundadores em 1902.

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cearense se deu ainda bem jovem quando estudava no Ginásio do Recife durante a década de

1930.

Eloy de Souza, por sua vez foi, de todos eles, uma figura mais próxima de Lamar-

tine por ser amigo e colega político de seu pai Juvenal Lamartine. Os dois autores compartilha-

vam de amor profundo pelo Sertão eloquentemente expressado em obras como Costumes Lo-

cais (1909) e Sertões do Seridó (1980). Lamartine ajudou no processo de reedição do livro

Memorias (2008) de Souza e foi ele que em um sebo do Rio de Janeiro encontrou Costumes

Locais (1909) e possibilitou sua publicação pela Coleção Mossoroense em 1982. Lamartine

ainda o cita em Sertões do Seridó para falar da importância dos açudes, temática régia defendida

por Eloy de Souza em sua carreira política e intelectual. Isto posto passamos a elencar os pontos

de aproximação entre os textos destes autores e os de Oswaldo Lamartine de Faria.

O primeiro aspecto recorrente na tradição de olhar regional, que estará presente na

escrita de Lamartine, é o que chamaremos de ‘percurso de entrada’, ou seja, é aquele momento

em que o autor descreve as primeiras impressões de um dado território geralmente em contra-

posição a seu ponto de partida. Sendo assim o Sertão é desvendado em sua profunda diferença

para com as paisagens mais próximas ao litoral. Um exemplo icônico disto é o que faz Euclides

da Cunha em seu livro Os Sertões.

Está sobre um socalco do maciço continental, ao norte. Demarca-se de uma

banda, abrangendo dois quadrantes, em semicírculo, o rio São Francisco; e de

outra, encurvando também para sudeste, em uma normal a direção primitiva,

o curso flexuoso do Itapicuru-açu. Segundo a mediana, correndo quase para-

lelo entre aqueles, com o mesmo descambar expressivo para a costa, vê-se o

traço de um outro rio, o Vaza –Barris, o Irapiranga dos tapuias, cujo trecho de

Jeremoabo para as cabeceiras é uma fantasia de cartógrafo. De fato, no estu-

pendo degrau, por onde descem para o mar ou para jusante de Paulo Afonso

as rampas esbarrancadas do planalto, não há situações de equilíbrio para a rede

hidrográfica normal. Ali reina a drenagem caótica das torrentes, imprimindo

naquele recanto da Bahia fácies excepcional selvagem. (CUNHA, 2002, p.36).

Além de Cunha outros autores se utilizam desse artificio como por exemplo Gus-

tavo Barroso em Terra do Sol (1912)29. Cunha trabalha em seu texto com o percurso que vai do

planalto central do Brasil para o alto Sertão da Bahia, Barroso conduz sua narrativa a partir das

praias do Ceará rumando para o Sertão.

Lamartine usa esse modelo para descrever uma viagem que sai da cidade do Natal,

no litoral norte-rio-grandense, e vai se afastando até chegar no Sertão do Seridó.

29 (BARROSO, 1962.p. 17).

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Quem sai da cidade do Natal pelo Bairro das Quintas e dá as costas para o mar

tomando o rumo do Sertão – segue a velha estrada – tronco na qual os técnicos,

de tempos em tempos, fazem a plástica das curvas, das rampas e do piso, ba-

tizando-a cada vez com siglas ou nomes estrangeiros aqueles mundos. Ro-

dando no asfalto que se espicha léguas adentro, cobrindo os primitivos cami-

nhos de terra solta ou piçarrados, vai-se comendo chão. Para trás, fica o cheiro

das vacarias e, depois, o da maresia do Potengi. De banda vão ficando dunas,

o rio, os tabuleiros de mangueiras, para mais adiante se cortar a cidade de

Macaíba. Daí, em direção de As Marias, o chão vai ficando mais barrento e

mais trancado com a vegetação agreste – é o marmeleiro, a sarjadeira, o ve-

lame e a macambira fazendo a saia das raras essências de maior porte que

escaparam, só Deus sabe por que, ao gume do machado e á coivara. Os fachei-

ros se destacam ... De as Marias a Bom Jesus de panelas é um pulo. Vem

depois Caiada de baixo e o chão se despindo na caatinga nos arredores de

Serra Caiada. A encruzilhada de outro caminho fez nascer o Riacho. Sobe –se

em procura de Santa Cruz do Inharé; ali, em quilômetros, a estrada é um cor-

redor de paredes verdes pela cor do aveloz que tampa, ladeira acima e abaixo,

as cercas divisórias. (...). (LAMARTINE DE FARIA, 2001, p.51).

Observamos aqui tanto uma atenção na construção de um cenário quanto uma pre-

ocupação sensorial ao descrever alguns dos cheiros que se pode esperar daqueles espaços. A

linha narrativa é bem evidente e seque para além deste trecho destrinchando em minucias os

diversos aspectos destes três ambientes, o litoral, o agreste e por fim o Sertão. Também perce-

bemos em nossa leitura, que a medida que se distancia das “bandas do mar” a terra torna-se

menos dadivosa, ela é desnuda e emergem as grandes pedras características da paisagem do

Sertão seridoense, como Lamartine nos diz, este é o espaço onde “domina o espinho” atestando

assim a dureza do meio ambiente narrado.

Outro ponto marcante das narrativas sobre a paisagem sertaneja é referente aos ex-

tremos do clima na região. A seca é um dos elementos que, comumente, mais caracteriza o meio

ambiente do Sertão nordestino, é ela que dá ao cenário a aridez e produz nos homens e animais

uma das maiores calamidades naturais que se pode observar no Brasil. Não é à toa portanto,

que autores como Euclides da Cunha30, Gustavo Barroso31 e Mauro Mota32 e Eloy de Souza

tenham dado bastante ênfase nas descrições sobre a seca por motivos diversos.

Para Souza, narrar as agruras do meio fazia parte da construção de um discurso

político que pretendia, efetivamente, angariar recursos para obras públicas na região das secas,

enquanto também servia para produzir uma unidade em torno dos estados afetados pelo evento

climático dando os primeiros passo para a formação da região Nordeste (SILVA,2018). Para

30(CUNHA, 2002.p.69-70). 31 (BARROSO, 1962, p.39). 32 (MOTA, 1958, p.41).

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Cunha observamos o espanto do viajante ao se deparar com uma nova realidade. Em Mota e

Barroso por sua vez o que se destaca é a elaboração de uma escrita poética que busca transmitir

a tragédia daquele espaço.

Barroso é exemplar neste sentido, ele nos apresenta um quadro detalhado o drama

telúrico e suas principais consequências para a vida do sertanejo. Sua escrita narra sobre a de-

solação da paisagem e sobre a deterioração dos animais tanto os silvestres quanto os domésti-

cos. Sua linguagem possui um tom poético e sensível a tudo que descreve.

Todo o sertão é duma grande tristeza, na cor, no silencio, no aspecto; e essa

tristeza em tudo se infiltra e impregna tudo; um galho que range de encontro

a outro lembra um gemer de moribundo; o estalar crepitante dos gravetos pi-

sados por qualquer animal parece um soturno falar de avantesmas; um canto

de pássaro, um alto pio de ave de rapina, um guincho de pixuna, tudo é triste

e tudo é melancólico. Qualquer som que quebra o silencio parece mais triste

que o próprio silêncio. Da terra cor de oca, avermelhada, da argila granitada

de grossa sílica. Dos granitos rompendo a terra em pontas que se adunam e

deteiam desajeitadas, esparsas, ás vezes rubras, outras branquicentas, outras

sujas, turvas, quase sempre inclinadas para resistirem à erosão das águas, de-

preende-se um bafo da quentura armazenada; e o barro de louça, o tijolo, o

massapê cinzento das várzeas, já todo estriado, abre-se (BARROSO, 1962,

p.18).

Ao refletir sobre este fenômeno tão presente na vida sertaneja Lamartine se apro-

xima muito destes autores é uma descrição do meio ambiente sertanejo, de sua natureza, em

uma dinâmica cíclica em dois extremos bem definidos, a seca e o inverno. Nestes dois polos

são observados fenômenos impactantes tanto para o belo quanto para o feio. Este ponto é com-

partilhado por Euclides da Cunha33 e Gustavo Barroso34 e por Mauro Mota.

A vegetação é espinhenta, retorcida, agressiva, parecendo mesmo torturada,

no dizer euclidiano. Dominam as cactáceas outras formas xerófilas que estam-

pam lajedos no solo pedregoso, raso e áspero.

[...] Pouca nebulosidade. Fiapos de nuvens mal dão para tapar a brasa do sol

que escalda o chão quase 3000 horas de luz por ano, esquentando-o a uma

temperatura de 60 ° C nos meses de seca (...).

[...] Passado o inverno a folhagem caduca amadurece e cai, deixando apenas

galhos tortuosos e nus apontando para os céus – o cinzento dominando a pai-

sagem de um quadro geográfico e dantesco, em que a verdadeira moldura são

os limites ecológicos. Mas o sol, que a tudo esturrica, não conseguiu, ainda,

secar a coragem estoica do sertanejo (...). (LAMARTINE DE FARIA, 1980,

p.172-173).

33 CUNHA, 2002.p.79) 34 (BARROSO, 1962, p.39).

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Vemos neste fragmento além de uma menção direta a Euclides da Cunha o uso de

adjetivos semelhantes para definir a dureza do meio como por exemplo retorcido, agressivo e

torturada. Mas, o tom geral da fala é talvez o mais importante pois aqui impera a visão das

condições climáticas como opressoras e da natureza como oprimida, compartilhando o mesmo

destino dos homens.

Em outro momento de sua fala se aproxima da escrita de Gustavo Barroso sobretudo

no fragmento acima apresentado. Os dois buscam narrar o cenário de uma forma poética e apai-

xonada potencializando o efeito daquelas cenas da seca. Ao final Lamartine ainda produz um

comentário sobre a força do homem sertanejo tão valorizada por ele e por vários autores que

vieram antes como Eloy de Souza em Calvário das Secas (2009) e até mesmo seu pai Juvenal

Lamartine no texto Em defesa do Nordeste (1919).

O outro extremo do meio ambiente vem com as primeiras chuvas do inverno que

em certas circunstâncias pode ser intendido como uma espécie de evento bíblico de destruição

e ressurreição.

Essas chuvas que surgem do nada têm pouca duração e muita intensidade causando

a rápida cheia de rios e dos reservatórios da região que eventualmente podem transbordar ou

romper causando um rastro de destruição por onde as águas passam. Porém é depois dessas

devastadoras tormentas, quando passam as águas que vem o verdadeiro espetáculo da ressurei-

ção da flora e da fauna que durante o período de seca estivera em estado semimorto.

É uma situação totalmente contratante que constitui-se após as primeiras chuvas

que caiem nos sertões. Após um longo sono, as plantas retorcidas e acinzentadas voltam a as-

sumir a cor verde e crescem fortificadas pela doce água que umedece a terra e desperta os rios.

Mauro Mota narra com grande emoção esse momento no seu livro Paisagem das secas (1958).

A babugem nem parece vegetação repentina. A babugem é o arrepio verde da

terra, o seu estremecimento inicial depois de meses compridos e até anos de

abandono e esterilidade. Bastam algumas horas de chuva para que se erice a

penugem na “pele” seca dos campos, e na reentrância dos lajedos, e chegue

ao terreiro das casas das fazendas como uma esperança horizontal que se alas-

tra. O primeiro contato da água desperta logo essa reação sensual da natureza

que se julgava morta, mas que somente dormia sob o torpor da soalheira. A

babugem é uma cor de vida estendida no chão. O chão luta para sustenta-la e

amplia-la, para fazê-la subir nos esqueletos das árvores. Estamos com o pre-

nuncio do inverno, captado pelo sentimento de homens e pelo faro dos bichos.

A caatinga expele os bodes hirtos com os couros curtidos ao vivo. Como se

fossem libertos dos suportes de um museu secular, lambem a erva tenríssima

insinuada. (MOTA, 1958, p.81).

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Muito semelhante ao que vimos com Gustavo Barroso ao narrar a seca, Mota cria

do mesmo modo uma imagem impactante para seu leitor, contudo, ao contrário da imagem

produzida por Barroso está transmite com sensibilidade a beleza do renascimento de uma natu-

reza adormecida. O autor se utiliza da personificação da natureza dando-lhe propriedades hu-

manas como as de se arrepiar.

Já vimos em capítulos anteriores o quanto a natureza é um tema importante para

Oswaldo Lamartine de Faria. Durante sua vida, em diversas circunstancias, ele demonstrou sua

sensibilidade aos ritmos e belezas naturais e com o Sertão não seria diferente. Em diversas

passagens de seus textos Lamartine coloca sua admiração pela capacidade da caatinga de se

regenerar ao cair das primeiras chuvas. Eis um exemplo:

Logo nas primeiras chuvas a vegetação despida se veste de uma linda folha-

gem – a rama, ficando o chão atapetado de ervas rasteiras – a babugem. Ves-

tido de gata borralheira que tem a duração efêmera de poucos meses, cantado

na cadencia de João Martins de Athayde – Suspiros de um Sertanejo. (LA-

MARTINE DE FARIA, 1980, p.173).

A forma como Lamartine fala sobre as folhas jovens que nascem em profusão des-

pois das chuvas descrevendo-as como o vestido de mulher é algo que aproxima um pouco do

modo que Mauro mota conduz sua descrição, é um uso de metáfora em uma narrativa poética

sobre o meio. Em alpendres d’ Acauã, o autor resume bem esses dois ciclos, “O belo – horrível

– cinzento dos chãos esturricados, o “arrepio verde” da babugem, a explosão das craibeiras em

flor” (LAMARTINE DE FARIA, 2001, p.10). Por este pequeno trecho podemos dizer que a

imagem poética de Mota casou uma certa impressão em Lamartine que o levou, tempos depois,

a escrever de modo similar sobre as belezas Sertão.

Apesar de trazer essa exuberância de vida, o período chuvoso no Sertão também

traz malefícios sobretudo no que se refere a torrente que leva consigo porções de terra fina e

primorosa deixando nuas grandes pedras duras e profundas das quais o agricultor não pode tirar

proveito nem sustento. Tal regime também facilita o longo processo de erosão que se observa

na superfície agravado pelas práticas agrícolas com base no desmatamento de grandes áreas.

Entre os autores que foram citados por Lamartine todos teceram comentários sobre

a cheia nos sertões. Em ambos o fenômeno traz essa natureza dupla de ser fonte de vida e de

morte. Porém, entre todos o relato que mais condiz com o que Lamartine apresenta é o de Eloy

de Souza.

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Cedo, entretanto, esse vaticínio se dissipa com as primeiras chuvas, seguidas

de outras que logo vestem os campos e as terras com seu manto de verdura,

animando e encorajando os lavradores para a lida pesada dos roçados. Certa

noite, porém, no horizonte longínquo, na confrontação das cabeceiras do rio,

o fuzilar incessante dos relâmpagos mostrou na escuridão uma nuvem de

grande altura, espessa e longa, prenunciadora da tempestade. Pela tarde come-

çam a chegar as primeiras águas da enchente, não rasas e menos como as das

cheias benfazejas, mais impetuosas e destruidora, esbaforindo as populações

ribeirinhas com a ameaça de alguma inundação diluvial. Com espanto vira

passar no leito do rio, arvores enormes, certamente carreadas de muito longe,

e vira ainda a correnteza que a carga tornava mais rumorosa e bravia, estancar

diante dos mariseiros seculares, redemoinhar em torno dos troncos robusteci-

dos pela seiva de tantas outras inundações pacificas e benéficas e de repente,

desarraigados das profundidades do solo, serem levados na avalanche liquida,

como se fossem simples arbustos.

[...] O cataclismo não lhe havia levado apenas as lavouras de vazante, as ar-

vores que davam sombra e atenuavam a rigidez da paisagem, mas a própria

terra, a terra toda, o arrimo seguro da família o único bem que imaginavam

superior e inaccessível às forças da natureza bruta. (SOU-ZA, 2009, p.26).

Este aspecto que foi verificado na tradição do olhar sobre o Sertão possui corres-

pondências em Lamartine, é uma preocupação com o regime torrencial que característico da-

quele espaço que produz dois efeitos catastróficos para a vida de seus habitantes, a cheia dos

rios e a erosão da terra. Assim ele descreve o processo de erosão:

O trabalho enfiado do vento e da água através do tempo – o vento açoitando a

uma velocidade de 2 a 20 km/hora, mediu J.G. Duque no seu estudo citando,

e a água lambendo a nata da terra cada vez mais rasa, magra e pelada pelo

machado de uma agricultura de coivara – vão descobrindo rochas ciclópicas

que reduzem a superfície de infiltração do solo e mais irradiam o calor e luz,

contribuindo para que a brisa na estação seca seja mais um bafo morno que

alentador. Daí a expressão pilhérica de um “turista da seca” “e quando sopra

um ventinho, parece mais vento de dentista...” (LAMARTINE DE FARIA,

1980, p.177).

Nosso autor concorda com a perspectiva de Euclides da Cunha e Gustavo Barroso

de que um dos fatores que contribuem para o processo de erosão histórico que se verifica no

Nordeste é a constante mutilação da flora pelo machado e da terra pelo fogo a cada novo período

de plantio. É sobre a perda desta “nata da terra” que Eloy de Souza construiu seu relato emoci-

onado e dramático que observamos antes. Os rios são trabalhados em Lamartine também sobre

a ótica da dadiva e da destruição, eles são “caudalosos e transitórios” (LAMARTINEDE FA-

RIA, 1980, p.175-176), violentos como rios nunca antes navegados. Mas, ao mesmo tempo, são

a partir de suas vazantes que nos tempos de apartação das chuvas constrói-se a mais importante

lavoura para o sertanejo, cujo os dons, a batata o feijão e o capim, garantem o sustendo dos

homens e animais por um certo período de tempo em meio a estiagem. As chuvas por sua vez

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são categorizadas, segundo a sabedoria popular de acordo com seus efeitos, positivos e negati-

vos sobre o meio.

A chuva é assunto de maior importância e constância nas palestras sertanejas, onde

é traduzida na mediação oral das expressões regionais. E dizem por aqui assim:

— Uma chuvinha que mal de pra apagar a poeira (chuvisco que apenas ume-

deceu a camada mais superficial da terra).

— Chuveu que deu bem pra corre os duros (a água correu nos lugares de solo

mais compacto)

— ... correu moles e duros (a água nos lugares arenosos e argilosos)

— ... mal deu pra corrê as goteiras (o mesmo que mal deu para apagar a poeira,

ou quando muito – corre duros)

— Chuva de imendá as goteiras (chuva muito grossa, fazendo correr os ria-

chos, juntando água).

— Chuva de castigo ou de mata sapo afogado (chuva tempestuosa, que inunda

e arromba açudes, causando prejuízos). (LAMARTINE DE FA-RIA, 1980,

p.174-175).

Sabemos que um dos temas mais constantes na escrita de Lamartine é o do açude,

sobre isso ele dedicou todo um ensaio Açudes dos sertões do Seridó (1978) e pelo menos outros

dois textos nos quais o tema é um dos focos, Notas sobre pescarias de açudes no Seridó (1950),

A.B.C da pescaria de açudes no Seridó (1961). Todos os autores aqui analisados fazem de

alguma forma menções sobre o açude e sua relação com o mundo sertanejo. Porém, apenas

Euclides da Cunha35 Gustavo Barroso36 e Eloy de Souza nos oferecem visões desse tipo de

paisagem na qual, em geral, se mesclam elementos humanos e selvagens. Entre esses três des-

tacamos Eloy de Souza pois, ele fez da defesa da açudagem seu cavalo de batalha dentro do

cenário político no qual esteve inserido, proferido em muitos de seus discursos, como solução

mais vantajosa para os males da seca no Sertão. Deste modo o açude é, sem dúvidas, um dos

espaços mais importantes de sua narrativa. Em sua defesa árdua desta solução ele argumenta:

Esses são os verdadeiros oásis sertanejos, aqueles em que as lavouras pom-

peiam ao sol escaldante do verão, desafiando a inclemência que nada pode

contra a força da sua seiva que é sempre multiplicação de searas abundantes.

Há um equívoco em afirmar-se, como no caso presente, que os prejuízos da

evaporação e da infiltração são acrescidos da rápida obstrução da área inun-

dada pelos detritos arrastados pela enchente. Teoricamente será assim. A prá-

tica, porém, não autoriza essa generalização. Conhecemos vários desses reser-

vatórios com mais de meio século, livres de al prejuízo, prestando aos propri-

35 (CUNHA, 2002.p.216-217). 36 (BARROSO, 1962.p. 42).

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etários, nos dias de hoje os mesmos serviços dos primeiros tempos. Lastima-

mos ser forçados a uma contradita a que não podemos resistir. Já por termos

nascido neste pedaço do Brasil bem brasileiro, já pela responsabilidade, em

bora pequena, que temos na solução atual do problema das secas. (SOUZA,

2009, p.44).

Notamos na escrita de Souza o açude é colocado como a fonte de vida do Sertão o

núcleo pulsante que permite ao sertanejo atravessar a penúria da seca possibilitando inclusive

que se plante e colha mesmo em plena fase de estio. Em Eloy de Souza notamos também açude

como engenho humano construído para seu usufruto uma obra que demonstra toda a capacidade

técnica do ser humano no sentido de modificar as condições de seu maio ambiente.

Ao nos deparamos com a escrita de Lamartine sobre o tema do açude e da açudagem

como prática encontramos essas duas abordagens. A primeira, já discutida anteriormente neste

capítulo, traz o açude como um centro significativo da vida sertaneja, o foco em torno do qual

se desenvolve diversas formas de vida e onde se desenrolam espetáculos de rara beleza natural.

Já na segunda podemos notar que Lamartine também enxerga o açude como um tipo de engenho

humano indispensável a vida dos homens, mulheres e animais no Sertão, sem tal artifício a vida

seria ainda mais difícil e a natureza pareceria mais dura do que já é. O trecho abaixo revela bem

essa visão.

É de se imaginar que as vantagens do açude se espalharam por aqueles mundos

e devem ter acudido viventes dos quatro aceiros daquelas ribeiras para espiar,

com os olhos que a terra tinha que comer, o viço da rama de batata nas vazan-

tes, a desova da curimatã nas primeiras águas, o capim de planta, de barreira

a barreira, dando nos peitos de um homem ou o sitio de fruteiras no fresco das

junzantes. E de boca em boca as vantagens eram contadas e cantadas no fresco

das redes dos alpendres antes da hora de assoprar os candeeiros ou nos encon-

tros na rua para as feiras, missas dos domingos ou nas obrigações do júri.

(LAMARTINE DE FARIA, 1978, p.18-19).

Como sabemos, Lamartine foi um homem muitas moradas, mas nenhuma deixou

nele maior impressão do que a casa de fazenda sertaneja. Tal fato torna-se mais impactante se

lembrarmos que ele de fato não viveu por muito tempo em nenhuma dessas antigas residências,

longe disso, suas passagens por elas foram circunstanciais. Dentre os autores que abordamos,

Cunha, Barroso, e Souza falam sobre a casa e entre eles é preciso traçar uma linha divisória.

Enquanto Euclides da Cunha37 e Gustavo Barroso38 encaram a residência sertaneja do ponto de

vista de viajantes e estrangeiros reconhecendo apenas as qualidades e defeitos visualmente iden-

tificáveis, Eloy de Souza enxerga esse espaço com uma atitude muito mais intimista e valoriza

37 (CUNHA, 2002.p. 96) 38 (BARROSO, 1962.p.155).

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as sensações de conforto e bem estar sentidas dentro delas, logo, Souza se coloca na posição de

quem habitou estas casas e tem delas tem memorias de dias felizes.

O coração será sempre fiel à saudade da casa mal alumiada de outros tempos,

em que essa quase escuridão de boca da noite fazia mais aconchegadas as pes-

soas da família, e o silêncio noturno tornava cada habitação um lar de descanso

espiritual e de reparação das forças gastas na labuta de todos os dias. (SOUZA,

2009, p.28).

Neste sentido o sentimento que Eloy de Souza tem para com a casa sertaneja é de

afeição, ele a liga ao valor do aconchego e do sossego. No mesmo trecho do qual retiramos essa

citação sabemos que Souza conviveu em casas de fazenda no Sertão e que, portanto, seu senti-

mento para com essa habitação pode ser bem o fruto de suas memorias de mocidade misturadas

a uma forte valorização do passado. No seu texto Costumes locais (1909) ele deixa mais clara

ainda sua afeição pelas moradas do Sertão as descrevendo com minucias e exaltando sua bela

simplicidade.

Vejamos como Lamartine se coloca com relação a casa de fazenda. E como sua

perspectiva se relaciona com os autores citados.

Casas grandes de duas águas – sempre “atrepadas” nos altos na defesa de todo

dia contra o calor e o cangaço. Alpendres acolhedores, copiares das conversas

sertanejas. Patriarcado nascido e estrumado com a força dos currais e escorado

depois com o dinheiro de algodão – centro dos pequenos mundos para as fa-

mílias dos moradores e vaqueiros – onde o destino do homem tinha o limite

geográfico dos proprietários (LAMARTINE DE FARIA, 1980, p.167-168).

Por este fragmento é perceptível que Lamartine se aproxima mais da perspectiva de

Eloy de Souza. Ao comentar sobre os alpendres acolhedores ele demonstra apego sentimental

a esse tipo de lugar o que fica ainda mais claro no livro Em Alpendres d’ Acauã (2001) no qual

o autor descreve com riqueza de detalhes os vários compartimentos dês-te tipo de casa. No

mesmo texto são feitas várias menções aos alpendres como lugares de sociabilidade sertaneja

quando, ao pôr do sol, os mais jovens se reuniam em torno dos mais velhos para ouvir suas

histórias. Para dar um exemplo desse tipo de construção Lamartine costuma colocar em seus

livros a foto tirada por ele mesmo da casa grande da fazenda Ingá em Acari município Seridó.

Esta casa foi a morada de seus avós maternos e de sua mãe, foi em seu alpendre que

seu irmão Octavio foi morto, uma das maiores tragédias de sua família. Pela citação também

podemos entender a casa de fazenda como um núcleo da vida no Sertão ao redor do qual orbi-

tavam as vidas de várias pessoas sejam eles, moradores da fazenda, trabalhadores sazonais e

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vaqueiros. Assim, Lamartine enxerga essa construção como um monumento de um tempo que

se foi, um tempo de prosperidade no ciclo do gado e de grande riqueza no do algodão, um tempo

que viu o apogeu político de sua família, e neste sentido faz parte do discurso patriótico de

Lamartine que analisamos nos capítulos um e dois.

Neste capitulo pudemos nos dedicar a uma análise pontual da escrita de Oswaldo

Lamartine de Faria permeada pela temática da paisagem. Para tanto nos utilizamos dos referen-

ciais desenvolvidos por Gaston Bachelard, Yi-Fu Tuan e Simon Schama. A partir e nosso es-

tudo das obras de Lamartine chegamos à conclusão que sua escrita é de fato muito rica e múl-

tipla em termos de apreciação espacial e dessa forma tivemos de buscar referências que dessem

conta desta multiplicidade de formas.

Portanto, enxergamos três modos de construção da paisagem em Lamartine, o pri-

meiro é por meio da imaginação, mais presente para lidar com espaços amados, mas pouco

vividos. O segundo tem a ver com a experiência direta com os lugares onde entra a trabalho da

memória. O terceiro foi o mais complexo e trabalhoso de se aferir, pois está no reino da tradição

e do conhecimento adquirido pela cultura que em Lamartine é vasto e variado. Neste sentido

foram feitos diversos recortes quanto a temática e aos autores a serem lidos e comparados.

Chegamos com isso aos nomes de Euclides da Cunha, Gustavo Barroso, Mouro Mota e Eloy

de Souza como os autores compositores de uma cultura de olhar regional com enfoque na região

das secas periódicas, ou o Sertão ressequido. Mas, toda essa tradição enxerga o Sertão como

um espaço de tempo cíclico onde a vida e morte se alternam cada qual expressando espetáculos

grandiloquentes de sofrimento e de beleza.

Conduzindo um comparativo geral entre Lamartine e esses autores fica claro que o

primeiro se destaca em termos de experiência com os espaços se relacionando com estes tanto

em termos de apreciação estética quanto de contato físico, afeição e patriotismo. Porém, o modo

como cada autor que analisamos usa da linguagem, explora a imaginação e construí a beleza

produziu um efeito sobre o Lamartine leitor que mais tarde tentaria, proposital ou involuntari-

amente, passar para seus leitores.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este estudo, nossa intenção era lançar luz sobre as relações entre o escritor

norte-rio-grandense Oswaldo Lamartine de Faria e os espaços, tanto com relação aos espaços

da saudade, muito amados, mas pouco vividos, quanto os espaços verdadeiramente vividos re-

gistrados na memória, por meio de uma experiência total de sentidos e sentimentos.

Tal intenção surgiu a partir da leitura das obras sobre o autor Oswaldo Lamartine que,

mesmo abordando a questão do espaço em Lamartine, não tiveram como foco um estudo mais

amplo do modo como ele se relacionava com os meios e a história onde esteve presente. Pen-

samos espaço no plural, já que, na trajetória de Oswaldo Lamartine foram vários os espaços

com o quais ele entrou em contato e, ao longo de nossa pesquisa, foi possível identificar de

forma particular como cada um teve sua importância para ele, os quais, de uma forma ou de

outra, contribuíram para o homem que ele fora e para o escritor que se tornou.

No decorrer desta pesquisa sobre a vida, e parte da obra de Oswaldo Lamartine de

Faria, vários foram os momentos de escolhas e recortes, isso se deve ao fato de que dentro de

sua produção, Lamartine foi um sujeito muito variado nos seus conteúdos abordados. Assim,

pude perceber cedo a dificuldade de categorizar sua escrita em apenas um tipo de produção,

sendo possível encaixá-lo como memorialista em certos pontos, como historiador em outros,

além de ensaísta e literato. Todas essas abordagens já se apresentavam entre os estudos acadê-

micos que se dedicaram a ele como objeto de estudo. Então, com o passar das leituras foi fi-

cando clara a correlação de Lamartine com o movimento folclorista nordestino, com o qual

divide um estilo e uma forma de ver o mundo.

Oswaldo Lamartine é considerado um folclorista por que vê com desconfiança o

mundo moderno e suas tecnologias, enxerga no passado as mais belas virtudes. Além disso, ao

observarmos seu contexto social veremos um homem pertencente a classe média alta, falando

em nome do povo simples e comum de um espaço que não habita, mas que destina os maiores

sentimentos. Este aspecto está presente na grande maioria dos folcloristas como Luiz da Câmara

Cascudo, Gustavo Barroso, Leonardo Mota, dentre outros.

Ao longo de todo este estudo, tentamos construir um diálogo entre a história e a

geografia, entre o espaço e o tempo e, neste sentido, um dos nossos mais importantes interlo-

cutores foi Yi-Fu Tuan, do qual retiramos os conceitos centrais que nos permitiram conduzir

nossa pesquisa: espaço, lugar e experiência. No que tange ao espaço representado pela escrita,

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tivemos a importante ajuda do conceito de paisagem construído em Bachelard, Tuan e Sham,

três autores interconectados por seu interesse em explicar a força que o meio exerce sobre o

homem e as formas de reação que estes adotaram ao longo do tempo, sobretudo nas mais di-

versas formas de expressão artística.

Nosso referencial metodológico, assentado sobre a análise do discurso de Michel

Pêcheux, nos permitiu construir um percurso que nos levou do contexto social de Lamartine e

sua família, passando por sua trajetória de vida e chegando a sua escrita, nos permitido ver

como seus discursos foram sendo construídos, primeiro pala narrativa de seu eu o dos derrota-

dos de 1930, depois vem a questão do trabalho com a terra para, em seguida, se distanciar em

seu exilio na cidade do Rio de Janeiro e de lá construir sua obra impulsionado pela saudade

cortante de sua terra e cultura. Em sua escrita, estes elementos se verificaram com recorrência,

mesmo que nas entrelinhas.

Afinal, o discurso de Oswaldo Lamartine, de modo geral, versa sobre a falta e sobre

o preenchimento dessa falta, seja por meio de leituras ou por meio de experiências espaciais

que tentam a todo momento simular um sentimento de união entre homem e terra, perdido em

sua vida adulta, mas reencontrado em suas memórias da infância, do Seridó, dos quintais de

Natal, ou nas vastas terras de Lagoa Nova. Existe ainda, o esforço de simular, no terreno de

Itaipava, essa relação com o espaço, construindo-o como um jardim sagrado, tanto para a me-

mória dos seus parentes mortos, quanto como um refúgio da vida urbana.

Sendo assim, no primeiro capítulo, diante de um estudo de contexto social que abar-

cou, não apenas Lamartine como também seu pai Juvenal Lamartine, chegamos a perceber

como os discursos em torno de nosso autor foram enraizados nele, construindo um sentimento

de verdadeira comoção diante da situação de sua família em 1930.

Estas narrativas dão conta de uma grande injustiça cometida contra seu pai e sobre

o desespero de sua família em fuga dos seus inquisidores. A morte de seu irmão Otávio foi,

neste sentido, um dos pontos mais trágicos dessa trama. Apesar disso, Lamartine foi capaz de

estudar em algumas das melhores escolas do país, e na política seu pai continuou a exercer

influência dentro de novos arranjos partidários. Este é apenas um dos motivos que fizeram desta

figura paterna algo tão importa na vida de Lamartine. Por outro ângulo, o pai foi quem impul-

sionou o amor pela terra e pela cultura sertaneja ao contar para os filhos as histórias de antiga-

mente nos alpendres de Lagoa Nova. Sob certo sentido, também foi ele que, desde cedo, incen-

tivou a leitura e a erudição, aspecto relativamente comum entre as famílias de classe média alta

da época.

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Concluímos também que, nessa relação entre pai e filho, Oswaldo Lamartine não

foi apenas um receptáculo, mas também um emissor de discurso. Percebemos que ao logo de

sua vida intelectual ele foi responsável por construir uma das muitas facetas de seu pai, a de

intelectual em contraste com sua face de político.

No segundo capítulo fomos em busca dos vários espaços da vida de Lamartine e

chegamos a perceber como cada um deles exerceu certa influência sobre ele. Em nossa análise,

estivemos diante de espaços amados, mas não vividos. E de espaços vividos, mas não propria-

mente amados. Além de espaços que foram em igual medida amados e vividos. No primeiro

caso, temos o Seridó, terra natal de sua família e de sua identidade, em seguida temos a cidade

do Rio de Janeiro, onde morou por muitos anos até a morte de sua esposa. Suas falas deixam

claro que apenas morava e não vivia aquele espaço, até onde sabemos podemos dizer que ele

morou lá pelas circunstâncias de seu trabalho. Por último, temos os espaços: Lagoa Nova e

Acauã, que foram adequadamente vividos e ardorosamente amados, tanto como espaços de

aprendizado da juventude, quanto como refúgios da velhice.

Uma outra categoria de espaço que encontramos em Lamartine foi a de um espaço

sagrado ou de um simulacro. O terreno de Itaipava no Rio de Janeiro foi ao mesmo tempo uma

terra ritual, na qual plantou árvores em homenagem a seus familiares e amigos, como também

um simulacro onde ele poderia retornar a um estado de conexão com a terra que ele teve em

sua infância, em Natal e no Sertão, bem como nas suas andanças por Lagoa Nova e pelas terras

dos indígenas no Maranhão.

No terceiro e último capítulo, nos dedicamos a análise de parte da obra escrita de

Oswaldo Lamartine. Nosso foco principal foi perceber como o autor constrói paisagens serta-

nejas nos seus livros. Para isso inicialmente foi necessário delimitar, dentro das diversas defi-

nições possíveis, o conceito de paisagem. Optamos enfim por três formas de ver a paisagem

representada por Gaston Bachelard, Yi-fu Tuan e Simon Schama.

Para o primeiro, a paisagem é uma construção da imaginação, cujo resultado não é

necessariamente uma cópia do real, mas uma imagem poética que tem sua própria realidade.

Tuan por sua vez, encara a paisagem como resultado da experiência e da topofilia em que o

sujeito captura, por meio das mais diversas expressões artísticas, uma vivência em um determi-

nado espaço, o nível de ligação do sujeito construtor dessa paisagem para com o espaço repre-

sentado vai variar de acordo com o nível de topofilia que ele possui, que pode ir desde apreci-

ação estética até a familiaridade e a afeição que se tem a terra natal. Por último, trabalhamos

com Schama, a partir da ideia de que a perspectiva da paisagem é muito guiada, por certos

elementos da cultura, sobretudo, na arte, na literatura e na filosofia.

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Mesmo existindo diferenças de abordagem e metodologia, os três autores são co-

nectados de diversas formas, sendo possível traçar paralelos entre eles como, por exemplo, a

questão dos espaços amados que surgem em Bachelard e Tuan, ou da cultura como um dos

catalizadores da percepção humana dos espaços. Nos utilizamos destes três pontos de vista em

função da variedade de formas como os espaços ou as paisagens serão apresentadas na obra de

Lamartine.

Vimos então que, na maior parte de sua obra Lamartine utiliza da imaginação e da

cultura para construir suas paisagens. Neste sentido, sua imaginação está diretamente ligada

com um aspecto poético e emocional que se destaca dentro de sua escrita em pontos muito

específicos que escapam ao seu modo convencional de escrever, muito mais focado na trans-

missão de informações do que em uma elaboração mais criativa da escrita.

Sabemos que Lamartine foi um sujeito muito saudoso de sua terra natal, de um

tempo muito perdido e de um modo de vida em franco desaparecimento por isso, a imaginação

é um elemento essencial para ele como uma forma de se manter imerso naquele mundo que se

foi. “O Sertão do nunca mais” não foi, em grande parte, vivenciado por ele e, portanto, precisa

ser imaginado. A escrita, neste sentido, é uma fuga da realidade imediata de Lamartine, sediado

no Rio de Janeiro, é um devaneio feliz que alimentou sua alma por longos anos.

A cultura ou tradição regional revela também que Lamartine foi um homem que

buscou de diversas formas se manter imerso em uma realidade que não era a dele, ou seja, mais

uma vez entendemos que há uma quebra com o cotidiano de servidor público e a busca por um

espaço com o qual ele se identificasse mais. Os autores que ele escolhia como os mais impor-

tantes, em termos da leitura sobre o espaço sertanejo, são eficientes em construir o Sertão por

meio da escrita de uma forma poética. São imagens de grande beleza existindo também cenas

de drama e força, nas quais a natureza é o protagonista. Isso parece ter causado um grande

impacto no Lamartine, enquanto leitor, que o repassa para seus livros tentando criar um impacto

semelhante. Lamartine poderia ser extremamente técnico em suas constantes explicações sobre

as características da flora sertaneja, a definindo apenas sob aspectos biológicos, mas quando ele

insere os elementos euclidianos narrando a flora e a terra como vítimas de um martírio secular,

isso dá margem para um impacto emocional maior, sobretudo para aquele leitor que de alguma

forma se identifica com o Seridó.

O aspecto da experiência é, em comparação com estes outros dois, muito menos

frequentes nas obras de Lamartine. Uma das hipóteses que levantamos para isso é o fato de sua

experiência direta com o Sertão, o seridoense sobretudo, ter sido pouca e muito recuada em sua

trajetória, tornando difícil lembrar de forma efetiva dos dias vividos lá. Outro ponto que conduz

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essa situação é que Lamartine tinha uma postura contrária a qual se colocava nos seus textos,

ou seja, de narrar experiências próprias, apesar de fazer isso de uma maneira subjetiva.

Ele também se pronunciou contra a ideia de fazer um livro de memórias, já que em

sua opinião seu mais importante legado eram seus livros. Então, o autor tenta se retirar o má-

ximo possível dos seus livros, focando-se no conteúdo que ele tem para mostrar. Os raros mo-

mentos que conseguimos capturar de um Lamartine vivenciando um espaço são todos relacio-

nados a fazenda Lagoa Nova, em São Paulo do Potengi. Foi nesse lugar que ele viveu, no co-

meço da vida adulta, em companhia de artífices especializados em couros, redes de pesca e em

açudagem, além dos vaqueiros com grande capacidade de ler as pegadas deixadas por homens

e bichos. Nesta mesma fazenda, tempos depois, ele volta para visitar e perambular por aqueles

mundos, descobrindo, para seu desgosto, as grandes mudanças ambientais que se processaram

na região. Esses momentos raros, Lamartine se coloca não apenas como um observador, mas

também como alguém que de fato está ali imerso no meio que narra. É um retrato vivo da

experiência.

Por fim, concluímos que enquanto existem homens que não se incomodam em pres-

tar atenção aonde está ou o que existe em sua volta, Oswaldo Lamartine de Faria certamente

não foi um desses homens, ele procurou construir conexões com os espaços e tirar deles as

melhores experiências possíveis.

Deste modo, mesmo que Lamartine tenha, no Seridó, seu lugar mais precioso e impor-

tante, foco de sua escrita e de suas falas, ele vivenciou um grande grupo de experiências espa-

ciais que foram tão importantes quanto aquelas que teve com o Seridó. Toda essa vida que

passou em lugares tão distintos foi o que possibilitou o surgimento do escritor, não apenas pelo

contraste que a distância entre eles permitiu ver, mas por todo o percurso conhecendo pessoas,

leituras e contatos com a terra.

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ANEXO

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Bilhete enviado por Oswaldo Lamartine de Faria ao seu primo Ramiro Monteiro Dantas

Ramiro –Na sua ultima (14/7) diz de uma anterior acusando recebimento de minhas caçadas q

não chegou! Como me parece não ter chegado aí o meu cartão de condolências pela perda de

Romeu (?). Perdeu-se uma daqui prá lá e outra de lá prá.... Daí peço reavivar a posição do gado

e do jumento na chuva. Na verdade vivi poucos anos no sertão – mas os vivi intensamente

convivendo e ouvindo meu pai, Pedro Ourives, Donato, Chico Lins e Chico Zuza. Foi um curso

intensivo depois aperfeiçoado com estágios e leituras. Muitos nasceram e se enterraram por aí

sem atinar para as coisas desse mundo. E o pouco que sei procurei anotar e divulgar. O “feno-

meno” do garanhão com a égua – filha [ilegível] já conhecia. Essa do ninho do beija- flor com

portinhola não confere com os daqui (!) Tenho inclusive o estudo, em 2 grandes volumes, do

saudoso Prof. Ruschi – a maior autoridade no mundo sobre o assunto. Sabe, Ramiro, há hj uma

série de lendas, já estudadas, ligadas aos animais. Aqui no sul, por exemplo, o tuim (o nosso

papacu) quando toma o ninho do João de Barro este, fica pairando; e quando a fêmea entra no

[ilegível], ele vai e barreia, emparedando os intrusos. Pura lenda. Ainda nos resta esperar um

semestre pelas chuvas! O nível do Itans está muito baixo? Romeu deixou família?

Um abraço. Do seu parente amigo.

Oswaldo

23.7.93

Fonte: DANTAS, Ramiro Monteiro. Serra negra do Norte. 1f. Sobre a sua afeição ao Ser-

tão seridoense. [Carta] Natal, 23 jul.1993.