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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: POLÍTICA, DESENVOLVIMENTO E SOCIEDADE EMPREENDEDORISMO AMBIENTAL E PRESERVACIONISMO COMPENSATÓRIO: o turismo e as unidades de conservação Parque Estadual das Dunas e Área de Proteção Ambiental Jenipabu-RN MARIA CÉLIA FERNANDES NATAL-RN 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

REA DE CONCENTRAO: POLTICA, DESENVOLVIMENTO

E SOCIEDADE

EMPREENDEDORISMO AMBIENTAL E PRESERVACIONISMO

COMPENSATRIO: o turismo e as unidades de conservao Parque

Estadual das Dunas e rea de Proteo Ambiental Jenipabu-RN

MARIA CLIA FERNANDES

NATAL-RN

2011

MARIA CLIA FERNANDES

EMPREENDEDORISMO AMBIENTAL E PRESERVACIONISMO

COMPENSATRIO: o turismo e as unidades de conservao Parque

Estadual das Dunas e rea de Proteo Ambiental Jenipabu-RN

Tese de doutoramento apresentada Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, como requisito para obteno do ttulo de Doutora em Cincias Sociais.

Orientadora:

Dra. Rita de Cassia da Conceio Gomes

NATAL-RN

2011

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

EMPREENDEDORISMO AMBIENTAL E PRESERVACIONISMO COMPENSATRIO:

o turismo e as unidades de conservao Parque Estadual das Dunas e

rea de Proteo Ambiental Jenipabu-RN

Maria Clia Fernandes

Tese de doutorado submetida ao Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte de requisitos necessrios para

obteno do ttulo de Doutora em Cincias Sociais, rea de concentrao Poltica,

Desenvolvimento e Sociedade.

Aprovada por:

Dra. Rita de Cassia da Conceio Gomes UFRN

Orientadora

Dra. Maria do Livramento Miranda Clementino UFRN

Examinadora

Dr. Edmilson Lopes Jnior UFRN

Examinador

Dra. Luzia Neide Menezes Teixeira Coriolano UECE

Examinadora Externa

Dr. Aldenor Gomes da Silva UFCG

Examinador Externo

Dr. Fernando Bastos Costa UFRN

Examinador Suplente

Ao sopro da vida, DEUS.

Laze e Luze: cmplices de uma jornada,

iluminada pela sabedoria de Joaquim e Maria

Ins.

AGRADECIMENTOS

A trajetria percorrida durante a realizao do projeto de doutoramento no se deu

de forma isolada. Nela participaram pessoas e instituies que compartilharam e

contriburam para a elaborao dessa tese. Assim, chegada hora de prestar os

merecidos agradecimentos.

Primeiramente e, de forma especial, quero agradecer a minha orientadora Dra. Rita

de Cssia Conceio Gomes que me acolheu em um momento crucial dessa jornada,

com sua experincia e ensinamentos to valiosos ao encerramento de mais esta etapa

acadmica.

De maneira, tambm, particular ao Dr. Orivaldo Pimental Lopes Jnior, que na

qualidade de Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais

oportunizou as condies institucionais para que pudesse concretizar a defesa da tese.

Quero creditar essa conquista aos professores Maria do Livramento Miranda

Clementino, Mrcio Morais Valena e Lincoln Moraes de Souza pelas discusses

acaloradas sobre as cidades, o turismo e as polticas pblicas que muito me inspiraram na

formatao desse trabalho.

Aos Drs. Edmilson Lopes Jnior e Francisco Fransualdo de Azevedo pelas crticas

e sugestes apresentadas durante o exame de qualificao do Projeto de Tese que

contriburam para os melhoramentos necessrios do texto final.

Otnio Revoredo Costa, Secretrio do Programa, pela presteza e gentileza com

que sempre acolheu e respondeu as minhas demandas administrativas. Sem o seu apoio

no teria tido condies de driblar todo o aparato normativo de um programa de ps-

graduao.

Jurema Mrcia Dantas da Silva, membro do Conselho Nacional de Turismo

(CNT) representando o Frum Nacional dos Cursos de Turismo e Hotelaria, professora do

Curso de Turismo da Universidade Potiguar (UnP), e presidente da Fundao para o

Desenvolvimento Sustentvel da Terra Potiguar (FUNDEP), pelas discusses e

informaes prestadas sobre a atividade turstica no Rio Grande do Norte e,

especialmente, na Regio Metropolitana de Natal. Admiradora de sua competncia

profissional e desprendimento pessoal e intelectual dedico os meus mais sinceros

agradecimentos. Os momentos que pude usufruir de seu acervo bibliogrfico particular e

de sua solidariedade e amizade ficaram registrados para sempre.

mestranda em Arquitetura e Urbanismo Josenita Arajo da Costa Dantas por

dividir comigo o seu conhecimento e a sua vivncia na rea ambiental, apresentando

informaes valiosas sobre a atuao do Instituto de Desenvolvimento Sustentvel e Meio

Ambiente do Rio Grande do Norte (IDEMA) e das polticas governamentais e territoriais.

As suas reflexes e experincias muito me ajudaram a desvendar o universo das

unidades de conservao Parque Estadual das Dunas e APA Jenipabu.

Maria de Ftima de Freitas Rgo e demais integrantes do Conselho Gestor da

APA Jenipabu (APAJ) por ter viabilizado o trabalho de pesquisa de campo. Destaco a

contribuio dos conselheiros: Francisco de Assis Arajo da Costa, tcnico da Secretaria

de Estado do Turismo (SETUR); Lon Tenser, representante do segmento das Empresas

de Hospedagem e Alimentao/Associao Brasileira da Indstria de Hotis no Rio

Grande do Norte (ABIH); Paulo Henrique Severo Soares, presidente do Sindicato dos

Bugueiros Profissionais (SINDBUGGY); Margareth Rose Ferrari, presidente do Conselho

Comunitrio da Praia de Genipabu (CCPG); e, Gileno Guedes de Moura, representante

da ONG ambientalista Fundao Preservar. Os comentrios desses atores foram de vital

importncia para o desvelamento da realidade estudada.

toda a equipe do Parque Estadual das Dunas de Natal pelas informaes

prestadas e o livre acesso as suas dependncias e ao acervo documental e bibliogrfico,

sem os quais no teria sido possvel desenvolver este trabalho.

Laize Fernandes de Asevedo, Verner Monteiro e Luze Fernandes de Asevedo,

fontes de inspirao e de apoio logstico na produo das imagens da Via Costeira

Natal/RN, e na formatao e diagramao do texto, bem como a Maria de Ftima

Fernandes Lacerda e Herclia Maria Fernandes pelas contribuies dadas atravs de

discusses e sugestes de leituras e, ainda, da reviso gramatical do texto final.

As amigas de convivncia cotidiana Ctia Regina Alves Ferreira, Luzanias Alves de

S, Rita de Cssia Aves Ferreira e Zulmira Maria Herncio de Melo por compartilharem os

momentos de angstias e desafios durante a elaborao dessa tese, com palavras de

encorajamento, motivao e perseverana.

Por fim, e no menos importante a todos aqueles que de uma forma ou de outra

permitiram que encontrasse a iluminao e a determinao necessrias na defesa das

anlises realizadas acerca de uma realidade complexa e dinmica as unidades de

conservao e o turismo que impulsionam a ocorrncia de um empreendedorismo

ambiental e um preservacionismo compensatrio no Rio Grande do Norte.

FERNANDES, Maria Clia. Empreendedorismo ambiental e preservacionismo

compensatrio: o turismo e as unidades de conservao Parque Estadual das Dunas e

rea de Proteo ambiental Jenipabu-RN. Tese (Doutorado em Cincias Sociais)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Cincias Humanas, Letras e

Artes. Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, Natal, 2011. 245 p.

RESUMO

Essa tese de doutorado aborda a temtica ambiental e sua vinculao com o

turismo por meio das reas naturais protegidas, em particular as Unidades de

Conservao (UCs), que consistem em unidades territoriais criadas e demarcadas pelo

poder pblico com a finalidade de proteger ecossistemas de grande representatividade

ecolgica e cnico-paisagstica destinadas contemplao e visitao pblica controlada.

No que concerne ao seu uso pela atividade turstica, so concebidas enquanto

materialidade socioambiental e simblica construda em torno da viso imagtica de uma

natureza-espetculo, destinada a atrair visitantes, com vistas a assegurar a manuteno e

reproduo do capital de forma empreendedora e preservacionista na Regio

Metropolitana de Natal. Trata-se de um estudo sobre o Parque Estadual das Dunas

Jornalista Jos Maria Alves e da rea de Proteo Ambiental Jenipabu criados com o

objetivo de proteger seus recursos naturais e favorecer a implantao e fortalecimento do

territrio turstico por meio da interveno do Estado como principal agente articulador de

um novo processo de urbanizao que se utiliza de um city marketing e do discurso

ideolgico da sustentabilidade ambiental para recriar o imaginrio do paraso perdido

incorporando-o ao universo cotidiano dos turistas que visitam o Estado do Rio Grande do

Norte. O desvelamento dessa realidade emprica possibilitou a construo e defesa dos

termos empreendedorismo ambiental e preservacionismo compensatrio, para explicar

como a formatao e idealizao desses cenrios paradisacos produzem a

mercantilizao de uma natureza de forma eficiente e competitiva.

Palavras-chave: Natureza Unidades de Conservao Turismo Empreendedorismo

Ambiental Preservacionismo Compensatrio.

FERNANDES, Maria Clia. Environmental entrepreneurship and compensatory

preservationism: the tourism e as conservation units Dunes State Park and the Jenipabu

Environmental Protected Area. Thesis (Doctoral in Cincias Sociais) Federal University

of Rio Grande do Norte. Center for Humanities, Arts and Letters. Post-Graduate in

Cincias Sociais, Natal, 2011. 240 p.

ABSTRACT

This doctoral thesis addresses the environmental issues and its vinculum with the

tourism through the protected natural areas, in particular the conservation units, which

consists in territorial areas created and demarcated by the government in order to protect

ecosystems that have a high ecological and scenic-landscaped representativeness

designed to the contemplation and controlled public visitation. In regard to its use for the

touristic activities, are conceived while socio-environmental and symbolic materiality built

around an imagery view of a nature-show, designed to attract visitors, aiming ensure the

maintenance and reproduction of the capital in an entrepreneurial and preservationist

way in the Metropolitan Region of Natal. Its a study about the Dunes State Park

Jornalista Jos Maria Alves and the Jenipabu Environmental Protected Area, both

created with the purpose of favor the implantation and empowerment of the touristic area

through the State intervention as the main articulator agent of a new process of

urbanization that uses the city marketing and the ideological discuss of environmental

sustainability to recreate the imaginary of lost paradise and incorporate into the daily

universe of tourists visiting the state of Rio Grande do Norte. The unveiling of this

empirical reality made possible the construction and defense of the terms environmental

entrepreneurship and compensatory preservationism, to explain how the formatting and

idealization of this paradisiacal scenarios produce the commoditization of nature in an

efficient and competitive way.

Key-words: Nature Conservation Units - Tourism Environmental Entrepreneurship

Compensatory Preservationism

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Mapa de localizao do Parque Nacional de Itatiaia ........................................ 92

Figura 2 Mapa de localizao do Parque das Dunas ...................................................... 150

Figura 3 Entrada da UC Parque Estadual das Dunas ..................................................... 153

Figura 4 Mapa de localizao da APA Jenipabu-RN ...................................................... 155

Figura 5 Imagem area das comunidades litorneas da APA Jenipabu-RN................... 156

Figura 6 Ocupao irregular sobre as dunas da APA Jenipabu-RN................................ 160

Figura 7 Imagem area da Via Costeira........................................................................... 179

Figura 8 Natal Mar Hotel .................................................................................................. 193

Figura 9 Imagem area do Hotel Parque da Costeira ..................................................... 202

Figura 10 Mapa dos municpios integrantes do Plo Turstico Plo Costa das Dunas...... 209

Figura 11 Imagem de turistas sobre as dunas de Jenipabu. O Saara aqui!.................

212

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Ranking de competitividade no Setor de Viagens e Turismo ....................... 69

Tabela 2 Chegada de turistas no Brasil, segundo os anos 1991-2010 ....................... 71

Tabela 3 Quantidade de UCs no Brasil, por categoria de manejo............................... 103

Tabela 4 Unidades de Conservao por Estado, domnios e grupos de manejo....... 104

Tabela 5 Ocupao, origem dos proprietrios e domnio dos terrenos da Via Costeira em 1998, 2002 e 2007 ...................................................................

203

Tabela 6 Estimativa do Fluxo Turstico do Rio Grande do Norte, 2006-2009.............. 210

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Variveis e subvariveis classificatrias da competitividade turstica ............ 70

Quadro 2 Os primeiros parques nacionais no mundo ..................................................... 88

Quadro 3 Categorias e funes das reas protegidas estabelecidas pela UICN ........... 92

Quadro 4 Categorias de manejo de Unidades de Conservao no Brasil...................... 109

Quadro 5 Unidades de Conservao do Rio Grande do Norte........................................ 124

Quadro 6 Configurao do Zoneamento Ecolgico-Econmico da APA Jenipabu-RN 159

Quadro 7 Obras urbansticas realizadas em Natal na dcada de 1970.......................... 177

Quadro 8 Objetivos, crticas e comentrios - Projeto Original da Via Costeira............... 186

Quadro 9 Composio das reas de uso e ocupao da Via Costeira........................... 189

Quadro 10 Primeira reformulao do projeto original do Parque das Dunas/Via Costeira 192

Quadro 11 Segunda reformulao do projeto PD/VC ....................................................... 195

Quadro 12 Proposta da quarta reformulao do PD/VC.................................................... 201

Quadro 13 Obras de infraestrutura e eventos de promoo da cidade nos anos 1980.... 205

Quadro 14 Trechos de matrias promocionais sobre o produto sol e mar..................... 213

LISTA DE SIGLAS

ABAV Associao Brasileira dos Agentes de Viagens

ABIH/RN Associao Brasileira da Indstria de Hotis do Rio Grande do Norte

ABRASEL/RN Associao Brasileira de Bares e Restaurantes do Rio Grande do

Norte

APA rea de Proteo Ambiental

ARIE rea de Relevante Interesse Ecolgico

BDRN Banco de Desenvolvimento do Rio Grande do Norte

BID Banco Interamericano de Desenvolvimento

BNB Banco do Nordeste do Brasil

BNDE Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico

BNDS Banco Nacional de Desenvolvimento

BNH Banco Nacional de Habitao

CDI Comisso de Desenvolvimento Industrial

CEPAL Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe

CIPAM Companhia Independente de Proteo Ambiental

CMMAD Comisso Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento

CCPG Conselho Comunitrio da Praia de Genipabu

CHESF Companhia Hidreltrica do So Francisco

COMBRATUR Comisso Brasileira de Turismo

CNPU Comisso Nacional de Poltica Urbana

CNTUR Conselho Nacional do Turismo

CONAMA Conselho Nacional de Meio Ambiente

CONEMA Conselho Estadual de Meio Ambiente

CONETUR Conselho Estadual de Turismo do Rio Grande do Norte

COMTUR Conselho Municipal de Turismo

CVSF Comisso da Comisso do Vale do So Francisco

DNOCS Departamento Nacional de Obras contra a Seca

EIT Empresa Industrial Tcnica

ENLIT Encontro Nacional de Lderes da Indstria Txtil

ESEC Estao Ecolgica

EUA Estados Unidos da Amrica

FAO Organizao para a Alimentao e Agricultura

FDCI Fundo e Desenvolvimento Comercial e Industrial do Rio Grande do

Norte

FGTS Fundo de Garantia do Tempo de Servio

FINOR Fundo de Investimentos do Nordeste

FLONA Floresta Nacional

FNNP Federao de Parques Nacionais e Naturais Europia

FUNDEP Fundao Para o Desenvolvimento Sustentvel da Terra Potiguar

FUNGETUR Fundo Geral de Turismo

FUNTXTIL Fundo para Desenvolvimento da Indstria Txtil

GRPU Gerncia Regional do Patrimnio da Unio

GTDN Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste

IBAMA Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renovveis

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

IDEC Instituto de Desenvolvimento Econmico do Rio Grande do Norte

IDEMA Instituto de Desenvolvimento Sustentvel do Meio Ambiente do Rio

Grande do Norte

IFOCS Inspetoria de Obras contra as Secas

IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

IPLANT Instituto de Planejamento de Natal

ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros

IUCN Unio Internacional para a Conservao da Natureza e dos Recursos

Naturais

MONA Monumento Natural

ONU Organizao das Naes Unidas

PAEG Plano de Ao Econmica de Governo

PARNA Parque Nacional

PCB Partido Comunista Brasileiro

PD/VC Parque das Dunas/Via Costeira

PEUC Programa Estadual de Unidades de Conservao

PED Plano Estratgico de Desenvolvimento

PNMA Poltica Nacional de Meio Ambiente

PNPCT Poltica Nacional de Desenvolvimento Sustentvel dos Povos e

Comunidades Tradicionais

PNT Poltica Nacional de Turismo

PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

PNUMA Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente

PRODETUR Programa de Desenvolvimento Turstico

REBIO Reserva Biolgica

RDS Reserva de Desenvolvimento Sustentvel

RESEC Reserva Ecolgica

RESEX Reserva Extrativista

REVIS Refgio da Vida Silvestre

RMNatal Regio Metropolitana de Natal

RPPN Reserva Particular do Patrimnio Natural

SEMA Secretaria Especial de Meio Ambiente

SEMURB Secretaria de Meio Ambiente e Urbanismo de Natal

SEPLAN Secretaria de Planejamento do Estado

SETUR Secretaria de Estado do Turismo

SINDBUGGY Sindicato dos Bugueiros Profissionais

SISNAMA Sistema Nacional do Meio Ambiente

SNUC Sistema de Unidades de Conservao da Natureza

SPU Servio do Patrimnio da Unio

SUDENE Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste

TTCR The Travel & Tourism Competitiveness Report

SUTUR Superintendncia de Hotis e Turismo

UC Unidade de Conservao

UEB Unio de Empresas Brasileiras

UEs Unidades Especiais

UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao a Cincia e a

Cultura

UnP Universidade Potiguar

UTs Unidades Tursticas

SUMRIO

INTRODUO.......................................................................................... 16

1 NATUREZA E SOCIEDADE .................................................................... 29

1.1 A CONCEPO MULTIFACETADA DE NATUREZA................................... 32

1.2 A SOCIALIZAO DA NATUREZA E A NATURALIZAO DA

SOCIEDADE...................................................................................................

42

1.3 USOS E REPRESENTAES DA SEGUNDA NATUREZA......................... 45

1.4 O MITO DO MUNDO SELVAGEM E A PAISAGEM TURSTICA ................. 61

2 UNIDADES DE CONSERVAO: IDIAS AMBIENTALISTAS E

TERRITORIAIS ..............................................................................................

79

2.1 HISTRICO SOBRE A PROTEO AMBIENTAL NO MUNDO ................... 83

2.2 A EVOLUO DAS REAS PROTEGIDAS NO BRASIL .............................. 91

2.3 O SISTEMA NACIONAL DE UNIDADES DE CONSERVAO DA

NATUREZA .....................................................................................................

103

2.3.1 Parques Nacionais, Estaduais e Municipais .............................................. 109

2.3.2 As reas de Proteo Ambiental ................................................................ 112

2.4 O PLANEJAMENTO E A GESTO DAS UNIDADES DE CONSERVAO.. 113

3 AS UNIDADES DE CONSERVAO E O TURISMO NA REGIO

METROPOLITANA DE NATAL .....................................................................

124

3.1 A FORMAO DO TERRITRIO TURSTICO .............................................. 138

3.1.1 O Parque Estadual das Dunas de Natal: Primeira Unidade de

Conservao do Rio Grande do Norte ........................................................

146

3.1.2 A APA de Jenipabu: uma unidade de uso sustentvel.............................. 151

4 EMPREENDEDORISMO AMBIENTAL E PRESERVACIONISMO

COMPENSATRIO .......................................................................................

162

4.1 O TURISMO E AS TRANSFORMAES URBANSTICAS E AMBIENTAIS.. 166

4.1.1 A via costeira: resistncia e redeno do movimento ambientalista....... 168

4.1.2 A metamorfose do territrio usado ............................................................. 188

4.2 O CITY MARKETING E A PRODUO DA NATUREZA-ESPETCULO....... 203

4.2.1 A sacralizao do profano e a metfora da natureza................................. 208

4.3 UNIDADES DE CONSERVAO: ESTRATGIAS EMPREENDEDORAS E

PRESERVACIONISTAS ...............................................................................

211

4.3.1 A competitividade do produto turstico sol, dunas e mar e o

preservacionismo compensatrio................................................................

212

CONCLUSO................................................................................................... 216

REFERNCIAS ............................................................................................. 221

16

INTRODUO

As Unidades de Conservao (UCs) uma temtica recorrente por estar

ligada diretamente a problemtica ambiental e ao turismo enquanto atividade de

lazer. Institucionalmente constituem territrios criados e demarcados legalmente

pelo poder pblico com a finalidade de proteger ecossistemas que apresentam

vulnerabilidade ecolgica, por meio de aes voltadas para a preservao e

promoo do desenvolvimento sustentvel, a partir do uso racional dos seus

recursos naturais, em especial, pelo turismo ecolgico ou ecoturismo.

Na regio Nordeste o turismo estimulado enquanto atividade econmica

com poder mobilizador de recursos financeiros via polticas pblicas e de

concentrao de renda, devido presena de uma paisagem natural, com lugares

denominados de paradisacos por apresentar um litoral com a viso do mar banhado

pelo sol e contornado por remanescentes florestais quase em estado primitivo, o

que lhe garantiu o slogan de paraso do sol e mar.

No Rio Grande do Norte a sua faixa litornea, composta de 410 km de praias,

dunas, falsias, lagoas e outros ecossistemas de forte beleza cnica, estar

parcialmente inserida em reas protegidas, onde se destacam o Parque Estadual

das Dunas de Natal e a rea de Preservao Ambiental (APA) Jenipabu entre outras

UCs criadas no final do sculo XX e incio do sculo XXI.

Os atributos ambientais existentes no interior e entorno dessas unidades so

responsveis pela atrao e concentrao de turistas que visitam a Regio

Metropolitana de Natal (RMNatal), graas a atuao dos diversos atores envolvidos

com a implementao da atividade no estado, por meio das polticas pblicas de

recorte regional como o Megraprojeto Turstico Parque das Dunas/Via Costeira

(PD/VC), o Programa de Desenvolvimento do Turismo para o Nordeste

(PRODETUR/NE) e para o Rio Grande do Norte (PRODETUR/RN), bem como pelas

aes previstas pelo Plano de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentvel

(PDITS) no mbito do Conselho do Plo Costa das Dunas.

O PRODETUR foi criado, inicialmente, com a denominao Programa de

Ao para o Desenvolvimento do Turismo no Nordeste (PRODETUR/NE) no ano de

1991, a partir da formatao de uma ao regionalizada do Instituto Brasileiro de

Turismo (EMBRATUR), da Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste

(SUDENE), do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDS) e do Banco

17

Interamericano de Desenvolvimento (BID), tendo um plano de ao especfico para

cada estado da regio de abrangncia da rea de atuao da extinta SUDENE,

como o PRODETUR/RN. Posteriormente esse Programa, j em sua segunda verso

ou etapa, foi incorporado pela Poltica Nacional de Turismo (PNT) desenvolvida para

o trinio 2007/2010, com a denominao Programa de Desenvolvimento do Turismo

para o Nordeste. Atualmente esse programa designado com a sigla PRODETUR

NACIONAL.

Diante do que foi explicitado, o objetivo central do presente trabalho

entender o papel das UCs Parque Estadual das Dunas e APA Jenipabu, enquanto

instrumentos utilizado pela governana local para a gesto e reproduo do territrio

do turismo na RMNatal.

Para tanto, procurou-se construir um quadro de referncia sobre o processo

de criao, planejamento e gesto dessas unidades, a partir de uma anlise sobre a

prtica dos diversos atores como as agncias governamentais, os capitalistas do

setor financeiro, turstico e imobilirio, as entidades representativas da sociedade

civil, e, a populao autctone envolvidos diretamente com as UCs e o turismo e que

formam a governana local.

Esse conjunto de atores possui um discurso em que incorporado

conservao e preservao do meio ambiente, com bases sustentveis. Em outras

palavras, um ambiente ecologicamente equilibrado visando manter a integridade

fsica de ecossistemas dotados de belezas naturais ou de uma paisagem cnica,

a fim de atrair o turismo e promover o bem estar da populao local, pela via do

desenvolvimento sustentvel, conforme verbalizado em relatrios e documentos

tcnicos, planos, programas e projetos governamentais, bem como pela legislao

ambiental e turstica.

No obstante, o que se verifica que essas unidades territoriais so

revestidas de uma funo normativa quanto ao uso e ocupao do solo, em nome

da proteo ambiental, merecendo destaque o fato de que aparecem como

protagonistas de novos arranjos institucionais, com poder de transformar os seus

objetos naturais e simblicos em atrativos de forma empreendedora pelos agentes

sociais que tem como funo a gesto do territrio por meio de um sistema de

parceria pblico-privado, ou seja, entre os atores acima nominados.

Nesse sentido, a problemtica descrita at o momento permitiu eleger como

objetivo especfico: identificar as concepes, os usos e as representaes da

18

natureza, a fim de compreender as interfaces estabelecidas na produo social do

espao e das polticas territoriais, em que se incluem as polticas de

desenvolvimento do turismo local. Do mesmo modo, o trabalho se props a

conhecer e analisar o processo de criao, planejamento e gesto das unidades de

conservao enquanto protagonistas das polticas de proteo ambiental e de

motivao atividade turstica.

Tal pretenso serviu de estmulo para se distinguir as estratgias utilizadas

pela governana local para promover a mercantilizao da paisagem litornea em

benefcio da atividade turstica e, por fim, verificar como so resolvidas as

contradies entre os propsitos de conservao e preservao dos recursos

naturais e o uso da natureza enquanto produto a ser consumido pelo turista.

O tratamento dado ao meio ambiente e ao turismo via UCs, a partir da

concepo da gesto de territrios possibilitou eleger como hiptese central o fato

de que o processo de criao e gesto das unidades Parque Estadual das Dunas e

APA Jenipabu tem contribudo para a formao e regulamentao de um territrio

turstico na RMNatal, baseado na apropriao e explorao dos recursos naturais.

Essa afirmao ancorada pelos seguintes acontecimentos:

a) a criao do Parque Estadual das Dunas de Natal, se configurou em uma

estratgia utilizada pelo poder local para construo da Via Costeira, ou

seja, a implantao do empreendimento PD/VC para promover a

urbanizao turstica em Natal;

b) a construo do territrio para o turismo se estende s localidades

litorneas, com a explorao do segmento do turismo sol e mar, tendo a

implantao da APA Jenipabu como uma medida usada pela governana

local para disciplinar o uso e a ocupao de uma rea litornea que se

destinava a atividade tradicional da pesca, para se transformar em rea de

conservao e preservao ambiental, e ser explorada pela atividade

turstica.

c) a emergncia das polticas desenvolvidas pela ao do PRODETUR e

Plo Costa das Dunas promoveu o fortalecimento do turismo e a formao

de um novo modelo de gesto do territrio.

d) a formao e legitimao do Conselho do Plo Costa das Dunas, que

implicou no surgimento de um novo modelo de governana local, d

seguimento a poltica do turismo sol e mar, de forma empreendedora por

19

meio de uma parceria entre o poder pblico e a iniciativa privada e a

utilizao de um marketing urbano de valorizao dos bens naturais como

veculo de atratividade e competitividade enquanto produto turstico, ou

seja, a natureza-espetculo.

A reflexo que viabilizaram a formulao das hipteses acima teve como

ponto de partida a noo de que a constituio da superposio de novos territrios

no espao urbano regional com a criao de reas naturais protegidas, entre elas as

unidades de conservao, como uma estratgia para garantir a proteo do meio

ambiente expressa promoo e a comercializao de cenrios naturais para

fortalecer a competitividade entre setores da economia capitalista como o setor de

servios atravs do turismo, que se pode denominar de empreendedorismo

ambiental.

O empreendedorismo ambiental , pois, uma meno criao de cenrios

naturais ou natureza espetculo para serem vendidos como uma mercadoria de

forma fetichizada e reificada. Um espetculo que como termo adicionado natureza

se remete a significao dada por Debord (2003, p. 9) quando diz: O espetculo

no um conjunto de imagens, mas uma relao social entre pessoas mediatizada

por imagens. Essa mediatizao das imagens recria a noo de uma natureza

natural que no mais existe lhes imprimindo uma abstrao ou estranhamento em

relao aos cenrios criados e recriados sob a tica do capitalismo com a finalidade

de lazer, e que satisfazem a fantasia produzida na esfera do cotidiano e da

subjetividade.

Essa a forma empreendedora de criao de lugares ou subespaos por

meio da presena conjunta, indissocivel, de uma tecnosfera e de uma psicosfera,

funcionando de modo unitrio (SANTOS, 2006, p. 257). Uma tecnosfera formada

por um sistema de objetos e a psicosfera pelas aes que, juntos compem o

espao social. A globalizao e o seu processo de reestruturao produtiva impem

um nvel de competitividade aos lugares criados e recriados dentro da lgica da

acumulao de capital na atualidade, a partir do planejamento e da gesto ambiental

adotados por uma governana urbana que assume uma prtica inovadora e

empreendedora em sintonia com a viso empresarial. A governana aqui entendida

como uma multiplicidade de atores que governam um territrio e relao entre

eles e os governados conforme a viso de Ascher (1995) apud Compans (2005).

20

Mas, para alm do empreendedorismo ambiental verifica-se que a anlise

aqui apresentada s se complementa com a construo de outro conceito que o

de preservacionismo compensatrio. Esse segundo conceito parte da constatao

de que a criao do Parque Estadual das Dunas foi uma medida adotada pelo

governo para justificar o Megaprojeto da Via Costeira com sua cadeia de hotis,

cortando um cordo dunar de extrema importncia para a proteo do aqfero, bem

como a da APA Jenipabu foi realizada para legitimar um espao para o turismo sol

e praia agraciado com o passeio de bugre e de dromedrios sobre as dunas mveis

e fixas carto postal turstico, como uma forma de atrair os turistas, visando

mobilizar o mercado e gerar lucro para esses novos empreendedores do capital.

A compreenso metodolgica da construo desses conceitos est atrelada

aos aspectos de abstraes e materializaes que servem para identificar as

propriedades e caractersticas pelas quais estes se revestem. Assim, parte-se da

identificao de trs propriedades ou caractersticas que justificam a formao e uso

desses conceitos: primeiramente, a natureza percebida dialeticamente como a

expresso da produo de um meio natural apropriado e domesticado pela tica da

acumulao capitalista; em segundo lugar a parceria pblico-privado fortalece o

empreendedorismo ambiental e o preservacionismo compensatrio; e, por fim a

gesto do territrio turstico assume uma postura empreendedora nos moldes

utilizados pelas grandes empresas, tendo como estratgia a compensao

ambiental.

Esse esquema explicativo acerca dos conceitos foi construdo a partir de um

arcabouo terico-metodolgico que considera a questo ambiental que hoje se

apresenta como resultado de um processo histrico de uso e ocupao do espao,

determinado pelo desenvolvimento das atividades humanas, de acordo com as

necessidades de reproduo da sociedade capitalista, o que expressa dialtica

das relaes do homem com a natureza ao longo do tempo.

Nesse sentido, parte-se da explicao de Mendona (1983, p. 15) em seu

trabalho O uso dos conceitos, em que afirma que os conceitos so construes

lgicas, estabelecidas de acordo com um quadro de referncias. Adquire seu

significado dentro do esquema de pensamento no qual so colocados.

Para tanto, faz-se necessrio apresentar o ponto de partida da anlise de

uma realidade que pudesse oferecer um quadro de referncia que diz respeito ao

processo de construo e delimitao do territrio turstico na RMNatal e a forma

21

como as UCs inseriu-se nesse processo em simultaneidade com a formatao das

polticas pblicas. Assim, vale destacar que as polticas pblicas adotadas para a

implantao e desenvolvimento do turismo pelos governos estadual e federal

atravs da implementao do megaprojeto turstico PD/VC no Estado do Rio Grande

do Norte e as aes do PRODETUR, acompanhadas pela formao do Conselho do

Plo Costa das Dunas, so exemplos de polticas que provocaram mudanas

espaciais significativas, com a constituio e consolidao de novos territrios

voltados para o turismo, para a construo civil e especulao imobiliria, o que

contribuiu para uma nova etapa do projeto de urbanizao de Natal, porta de

entrada para o turismo do estado e ncleo articulador da regio metropolitana.

preciso ratificar que o processo de implantao dessas polticas ocorre

atrelado ao surgimento das UCs Parque das Dunas e APA Jenipabu na RMNatal,

cujos municpios integram a rea de planejamento das polticas de turismo para o

estado. Essa regio metropolitana formada pelos municpios de Natal centro

polarizador , So Gonalo do Amarante, Extremoz, Cear Mirim, Macaba,

Parnamirim, So Jos de Mipibu, Nsia Floresta, Ars e Vera Cruz.

Nesse sentido, por tudo que foi discorrido at o momento defende-se como

pressuposto a idia de que o Estado atravs das polticas pblicas e da correlao

de foras estabelecidas entre o capital financeiro, turstico e imobilirio reafirma a

gesto do territrio baseada nas relaes de poder, sob a tica de

empreendedorismo ambiental e do preservacionismo compensatrio. A existncia do

Parque das Dunas e APA Jenipabu enquanto materialidade das UCs com novas

configuraes espaciais contribui, dessa forma, para a produo e consumo das

reas naturais urbanas na RMNatal e, ao mesmo tempo, para o discurso da

conservao ambiental sob os princpios da sustentabilidade.

Esse discurso ideolgico revela os paradoxos e contradies de uma

sociedade de consumo, como mostrada por Diegues (1996, p. 24) atravs de uma

narrativa intelectual em que resgata a lenda do paraso perdido construda pela

viso judaico-crist com a expulso do homem do Jardim do den , reabilitada

desde o sculo XIX. Isso ocorre para justificar que as reas naturais protegidas so

consideradas ilhas de grande beleza e valor esttico que conduziam o ser humano

[urbano] meditao das maravilhas da natureza intocada, o que reafirma a noo

de exterioridade da natureza em relao ao homem. Essa mediao ideolgica

favorece a utilizao das UCs de forma empreendedora e estratgica, como

22

cenrios de uma natureza espetculo, que podem ser comercializados de forma

estilizada enquanto valores de uso e valores de troca, na forma em que ocorre no

interior ou entorno da APA Jenipabu-RN.

Essas consideraes s puderam ser formuladas atravs da pesquisa

bibliogrfica/documental e de campo realizada por meio de entrevistas informais

com os atores envolvidos com as UCs e da participao de reunies em Conselho

Gestor da APA Jenipabu e Conselho do Plo Costa das Dunas. O tratamento dos

dados coletados se deu a partir da utilizao da metodologia da anlise de contedo

proposta por Bardin (1977). Para a autora a anlise de contedo se refere a um

conjunto de tcnicas de anlise das comunicaes, em que pela via da anlise

categorial e anlise qualitativa possvel confirmar os pressupostos, de que a

criao, o planejamento e a gesto dessas unidades de conservao se devem a

necessidade da formatao e consolidao de um territrio para o turismo

denominado Sol e Praia nos moldes criados pela poltica nacional e regional dessa

atividade socioeconmica no Nordeste e, especialmente em Natal e nas localidades

litorneas dos demais municpios da regio metropolitana.

Tal projeto colocou em cena uma nova representao do capital: o turstico e

o imobilirio. As reas protegidas tornaram-se cenrios de preservao para a

expanso do turismo por meio da comercializao de forma empreendedora de uma

paisagem natural e paradisaca para turistas nacionais e estrangeiros, e como

conseqncia expandir toda uma base de equipamentos de apoio a uma atividade

consumidora de espao, ameaando assim de expulso as populaes tradicionais

que sempre viveram no interior dessas unidades (caso da APA Jenipabu) ou de seu

entorno (Parque Estadual das Dunas).

H de se destacar que a construo dos conceitos empreendedorismo

ambiental e preservacionismo compensatrio somente foi possvel graas s

reflexes terico-metodolgicas sobre as concepes de natureza que nortearam ao

longo do tempo o processo de formao de um espao social e artificializado, como

bero do territrio e do meio ambiente, aliadas a uma realidade emprica. Uma

realidade forjada por meio de uma viso ideolgica, metafrica e miditica do

paraso natural em benefcio do turismo.

A utilizao dessa atividade enquanto estratgia de reestruturao produtiva

no litoral norte-riograndense, especialmente, no mbito da RMNatal, ocorre mediada

pela necessidade da acumulao flexvel de capital, cuja materializao viabilizada

23

por uma governana urbana competitiva que recria a imagem de uma natureza

espetculo de forma empreendedora e compensatria do ponto de vista ambiental.

Para dar forma a essa reflexo intelectual estruturou-se o presente trabalho a

partir da construo de um referencial terico que pudesse servir de norte para o

desvelamento do objeto de estudo, isto , as UCs Parque Estadual das Dunas e

APA Jenipabu e seu envolvimento na construo de um territrio turstico baseado

em uma viso empreendedora e um preservacionismo ambiental. Para tanto, optou-

se por distribuir essa tese em quatro itens obedecendo seqncia de um

pensamento articulado entre a teoria e a realidade emprica, por meio de uma

discusso da natureza como categoria central, que percorre toda a trajetria do

texto, fornecendo os pilares de sustentao para o entendimento da emergncia de

um espao social formado por uma materialidade concreta e simblica, que contribui

para a formao dos territrios e de um meio ambiente em sua verso atual.

Assim, no primeiro item natureza e sociedade apresentada uma

discusso conceitual acerca da natureza desde o surgimento da filosofia grega, com

uma rpida passagem pela concepo judaico-cristo, at as concepes modernas

que influenciaram na formao de um discurso ideolgico em que permitido o uso

dos recursos naturais pelo capital sob a gide da retrica do desenvolvimento

sustentvel. Uma natureza metamorfoseada para formar um sistema de objetos e

um sistema de aes que revelam uma funcionalidade, mas tambm um poder de

seduo que invade a esfera da cotidianidade, influenciando comportamentos e

relaes, em particular, as relaes entre o capital e o trabalho. Nesse processo a

natureza produzida como uma mercadoria a ser comercializada e consumida

dentro da lgica capitalista, isto , a partir de uma teia de mediaes e construes

contraditrias enquanto matria prima para o turismo, por meio da criao de aes

empreendedoras, entre elas, a criao de reas naturais, como discorrida no

segundo item, intitulado Unidades de Conservao: idias ambientalistas e

territoriais.

O terceiro item trata especificamente da formao de um territrio do turismo

na RMNatal pela via da criao e implantao das UCs Parque das Dunas e APA

Jenipabu, como medida de renovao do sistema de acumulao de capital no Rio

Grande do Norte, tendo como estratgia a produo de uma natureza-espetculo

adotada por uma governana empenhada em criar um destino turstico

empreendedor e competitivo. Nesse processo a cidade de Natal e as localidades

24

litorneas do seu entorno so divulgadas por campanhas de marketing e pela mdia

local, nacional e internacional como parasos naturais a espera do turista. Assim,

de forma paralela adoo de tcnicas empreendedoras, que tem na produo de

uma natureza extica, com a imagem do mar e do sol para embalar os momentos de

prazer, lazer, descanso e divertimento dos visitantes, existe um discurso presente

nas polticas pblicas e na postura dos representantes-parceiros do setor pbico e

privado da necessidade de assumir uma viso preservacionista que seja eficiente,

ideologicamente falando, em preservar uma natureza em benefcio do

desenvolvimento da atividade turstica no estado de acordo com o princpio da

sustentabilidade ambiental.

Dessa forma, o quarto e, ltimo item, trata de apresentar uma reflexo sobre

as estratgias empreendedoras assumida por governantes, empresrios, ONGs,

prestadores de servios entre outros atores, a partir do uso dos recursos das UCs

Parque Estadual das Dunas e APA Jenipabu, bem como uma anlise sobre as

medidas preservacionistas adotadas que permitem um uso e ocupao de um meio

ambiente de forma compensatria, em benefcio de promover a perpetuidade de

seus objetos naturais.

25

CAPTULO I

NATUREZA, ESPAO E SOCIEDADE

1 NATUREZA E SOCIEDADE

26

O estudo que ora se desenrola aborda a temtica ambiental em sua

associao com o turismo na perspectiva da gesto do territrio por considerar que

a natureza um componente essencial na construo do espao social e simblico,

o que implica a necessidade de resgat-la como parte indissocivel da humanidade,

sob novas bases epistemolgicas que questionam a viso dicotmica natureza e

sociedade, em que coloca o homem e o meio ambiente em campos separados.

Essa separao entre o homem e o meio ambiente ampliada e fortalecida a

partir de uma construo ideolgica subjacente concepo de natureza produzida

por filsofos que influenciaram o pensamento moderno, e que justifica o uso

indiscriminado dos seus recursos em nome do progresso econmico. O que os

homens querem aprender da natureza como empreg-la para dominar

completamente a ela e aos homens afirmam Adorno e Horkheimer (1985, p. 20), ao

exporem as idias utilitaristas de Bacon (1561-1626), cujos pilares animaram as

concepes sobre a natureza em conformidade com as necessidades emergentes

do capitalismo industrial.

Mas, para alm do entendimento de uma natureza transformada pelo homem

e refm do progresso da sociedade capitalista, isto , de uma natureza dominada

pela ao social, percebe-se que sua reflexo conceitual no possui um fundamento

nico, mas complexo e mltiplo, uma vez que reflete um acmulo de antigas e novas

vises; verdadeiros tentculos trazidos luz pelo capitalismo industrial, ou um

elenco de significaes que sobrevivem at hoje (SMITH, 1988).

Para um melhor entendimento faz-se necessrio resgatar os significados que

assumiu a palavra natureza ao longo do tempo. A expresso natura ou natureza

surgiu por volta do sculo XII nas tradues latinas do filsofo rabe Averris (1126-

1198). De acordo com Lalande (1996) em Vocabulrio Tcnico e Crtico da

Filosofia , o termo nasce atrelado a outros vocbulos como natura naturans e

natura naturata, ou seja, natureza naturante e natureza naturada. A primeira se

remete a figura de Deus enquanto criador e princpio de tudo o Universo e a Terra,

e a segunda diz respeito ao conjunto de seres e das leis criadas por esse Deus.

Essas e outras concepes formam a gnese filosfica de compreenso da natureza

formulada pelos antigos gregos e apropriada pelos pensadores da era medieval e da

modernidade.

O conhecimento e a interpretao da natureza perpassam, portanto, a histria

do saber desde a antiguidade. A literatura tem apresentado uma multiplicidade de

27

significados no decurso da histria do pensamento ocidental, cuja difuso se deve a

filosofia grego-romana e a tradio judaico-crist, passando pelas formulaes dos

pensadores renascentistas, que iro influenciar toda a construo moderna, a partir

da emergncia do capitalismo urbano-industrial.

Para Smith (1988), essa teia de significados existentes hoje sobre a natureza

est organizada em torno de um dualismo essencial: a natureza exterior e a

natureza universal. A natureza exterior consiste em uma realidade autnoma em

relao sociedade, isto , uma base sobre a qual esta sociedade construda e

internacionalizada pelo processo de produo social capitalista. A natureza

universal, por sua vez, a natureza humana ou a dimenso onde se encontra o ser

humano e o seu comportamento social.

Assim, nessa trajetria temporal, tem-se como referncia as vrias

concepes que procuraram dar sentido ao termo natureza na modernidade, ora

como uma matria ou um corpo estranho a existncia do homem e a sociedade, ora

como um estado inerente a existncia do ser a natureza humana.

Uma dualidade, que, ancorada na ideologia burguesa nas palavras de Smith

(1988) , tem permeado todas as discusses em torno da natureza at os dias de

hoje. Ao tomar como referncia o surgimento da sociedade moderna, o autor faz

uma anlise da influncia da ideologia na produo de uma natureza que se

expressa no limiar da dimenso material, mas, tambm, da dimenso espiritual e

moral. Como materialidade fsica exterior ao indivduo e como parte da esfera

espiritual e moral adquire a noo de universalidade ou, ainda, de totalidade, em que

o homem mais uma das espcies entre muitas existentes na natureza, portanto,

sujeito as leis da prpria natureza e dos homens.

A construo dualista da natureza, movida pela ideologia burguesa, encontra

eco nas elaboraes dos filsofos, pensadores das cincias naturais e dos artistas

romnticos da modernidade escritores, escultores, pintores entre outros. Apesar

da diversidade de olhares do mundo moderno, todos convergiam para um ponto em

comum: a exterioridade e a universalidade da natureza. Para Smith (1988) a

dualidade ou construo ideolgica da natureza exterior a sociedade justifica a

dominao e domesticao da vida natural, bem como o discurso da universalidade

do ser contribui para a produo de um comportamento social em sintonia com as

necessidades e interesses do modo de produo capitalista.

28

Nessa perspectiva, afirma que o capitalismo industrial trouxe luz os

significados acumulados da natureza, de modo que eles possam ser moldados e

transformados em concepes da natureza apropriada poca atual (SMITH, 1988,

p. 28). Mas, com a apresentao da concepo de natureza em Marx e de autores

de tradio marxista, que o problema da dualidade conceitual de natureza vai se

resolver.

Partindo da viso dialtica e materialista da histria, pode-se perceber que o

pensamento exterior e universal acaba por justificar a produo da natureza e do

espao social construdo a partir da relao entre a natureza e o trabalho, em

benefcio de um desenvolvimento desigual e combinado, como caracterstica

predominante do modo de produo capitalista. O capitalismo natural; lutar contra

ele lutar contra a natureza humana (SMITH, 1988, p. 46).

Em suma, a natureza na concepo engendrada pela filosofia moderna

apresenta-se complexa, multifacetada e contraditria, devido acumular fragmentos

das vrias vises construdas ao longo do tempo e subsumidas em um pensamento

dual, de acordo com a viso de Smith (1988). Esse autor ao elaborar um tratado

sobre o Desenvolvimento desigual na sociedade capitalista busca explicar e

desvendar atravs de um pensamento dialtico sobre a natureza, como ocorre

produo do espao geogrfico, por meio do discurso ideolgico presente nas

representaes modernas da natureza.

Mas, preciso destacar tambm que a reproduo social do modo de

produo capitalista que se desenvolve de forma desigual e combinada envolve,

portanto, o uso e a ocupao de um territrio que tendo como bero o espao

geogrfico, dinmico e complexo. Dinmico por expressar formas espaciais e

processos sociais nos moldes discutidos por Steinberger (2006), e complexos por se

traduzir em uma teia de relaes de poder, tecida pelos vrios agentes responsveis

pela produo de uma totalidade, o que segundo Santos (1996a) a abstrao de

uma dada realidade social. Assim, no cerne desses processos que inclui, tambm,

as formas espaciais emergem novas estruturas como as UCs que tem como uma

das mltiplas funes fortalecer a gesto do territrio, no caso particular da

problemtica desse estudo, do territrio do turismo na RMNatal.

Esse item tem, pois, como desafio resgatar a natureza em suas vrias

concepes, visando explicar como a produo do ambiente natural contribui para a

construo do espao social e simblico na sociedade capitalista. Objetiva-se com

29

essa anlise, desvelar, ainda, como as mudanas provocadas no espao urbano

impulsiona o processo de criao e recriao do espao pelo capital, onde se podem

visualizar as UCs, como instncias ou superposies de novas territorialidades que

contribuem para a gesto e controle do territrio como reflexo das vises

pragmticas de uma filosofia e epistemologia da natureza.

1.1 A CONCEPO MULTIFACETADA DE NATUREZA

As vrias significaes atribudas expresso natureza na modernidade,

como j foi dito, tiveram como herana elaboraes realizadas pelas civilizaes

antigas que sobreviveram na contemporaneidade. Na Grcia a palavra natureza

em seu sentido primordial, e no lexical, provm do verbo que se refere

vegetal e no latim, entre os romanos, deriva de nascor que indica nascer, viver

(LALANDE, 1996).

Para Gaarder (1995, p. 40), o objetivo dos primeiros filsofos gregos era o de

encontrar explicaes naturais para os processos da natureza. Os pr-socrticos,

designados pelo autor como filsofos da natureza, buscavam na observao dos

fenmenos naturais as causas para as transformaes ocorridas na natureza.

assim que ao se emancipar de um pensamento mtico-religioso, creditam a idia de

uma substncia bsica para explicar as transformaes da natureza.

As transformaes observadas por esses primeiros filsofos seriam, por

exemplo, a substituio de uma terra sem vida por outra coberta de plantas, aps a

chegada das chuvas, o movimento das estaes do ano entre tantos outros. Para

uns a substncia bsica que promovia essas transformaes seria a gua ou o ar,

para outros os quatro elementos: a terra, o ar, o fogo e a gua. Mas, foi com

Parmnides e Herclito que um pensamento racionalista tomou forma e os

sentidos, enquanto capacidade sensorial humana, e a razo passam a ser a

substncia primordial para o desvelamento do movimento dos fenmenos naturais.

O pensamento entre os pr-socrticos sobre a existncia de um mundo

sensvel e outro guiado pela razo tambm encontra eco nas formulaes filosficas

dos discpulos de Scrates (470 a.C 399 a.C), particularmente em Plato (427 a.C

347 a.C). Preocupados em desvelar os mistrios do Universo e os segredos da

Terra os filsofos gregos buscavam, ainda, explicaes na physis enquanto

paradigma para tratar do cosmo ou da vida orgnica, como afirma Kelssering (2000).

30

Esse autor ao tratar em seu texto sobre o conceito de natureza desde a antiguidade

at o perodo contemporneo privilegia quatro aspectos para analisar as variaes

nas concepes de natureza ao longo do tempo: 1) o lugar do homem na Natureza;

2) a atitude (prxis) humana em relao a Natureza; 3) a autoconcepo das

Cincias Naturais; 4) o tringulo Deus-Homem-Natureza (p. 154).

Os recortes estabelecidos pelo autor permitem entender que para os gregos

existia o interesse com a physis compreendida como sinnimo de natureza, mas

tambm com a tchne, isto , a arte, o artesanato em oposio a natureza, donde se

pode colocar que havia um contraponto no raciocnio filosfico antigo entre natureza

e cultura, que permaneceu at os dias atuais de acordo com as correntes do

pensamento ocidental como a culturalista, antropocntrica e etnocntrica. Mas, com

relao physis (natureza) existiam trs vises: uma interpretada como o cosmo

enquanto um organismo, outra percebida como um processo de circular, isto , um

processo de surgir e desvanecer, e a terceira entendida enquanto a essncia e o

princpio de cada ser singular.

A traduo que se tem do texto de Kelssering (2000) que sendo a natureza

a vida orgnica e o cosmo, esta transcende a esfera terrestre. A idia de o processo

circular como a representao da segunda viso de natureza argumentada pelo

estudioso:

As estrelas aparecem e desaparecem, sobem e descem no cu; os seres vivos nascem, crescem, envelhecem e morrem. Surgir e desvanecer so processos temporais, mas a dimenso temporal no importa. O que conta a repetio de processos sempre semelhantes (p. 155).

O autor se fundamenta na noo de crculos Kycls como conceito-

chave formulado pelo pensamento grego. Essa acepo inspirada, mais

precisamente nas idias de Plato (427 a.C 347 a.C) que apresenta uma

cosmoviso ancorada na percepo da repetio dos fenmenos naturais no

universo as estrelas e os planetas apresentam um movimento circular em volta da

Terra. A esse processo o filsofo atribui a noo de fluidez, para afirmar que tudo

flui na natureza. Mas, ao mesmo tempo, defende que os fenmenos da natureza

so eternos e imutveis, pois todos obedecem aos mesmos processos temporais, ou

seja, de surgir e desvanecer como repeties eternas.

Assim como Scrates (470 a.C 399 a.C), Plato seu discpulo , tambm

estava menos interessado na filosofia natural do que com o homem e a sociedade,

31

conforme se pode entender na leitura de seus escritos em A Repblica ao discorrer

sobre a poltica, a justia e os valores morais dos homens nas cidades-Estado. Ou,

ainda, do seu confronto entre o mundo dos sentidos e o mundo da razo na alegoria

da caverna (PLATO, 1965).

Os princpios que Plato empregava para entender a natureza eram os

mesmos utilizados para compreender a moral dos homens, os ideais ou virtudes da

sociedade, isto , a partir da existncia de uma relao entre aquilo que, de um

lado, eterno e imutvel, e aquilo que, de outro, flui (GAARDER, 1995, p. 97).

Partindo de um pensamento platnico, mas divergindo em alguns pontos da

teoria das idias encontra-se Aristteles (384 322 a.C) para quem o mundo dos

sentidos ou a natureza se transforma continuamente. Esse filsofo que se

dedicou ao estudo dos seres vivos e da natureza de modo geral, se ampara em uma

physis (substncia bsica ou primordial) como princpio de movimento e de repouso

peculiar a existncia de todas as coisas e objetos, incluindo os seres no vivos como

as rochas, o fogo, a gua.

Nos seres vivos o princpio do movimento a psyche, a alma. Visto que ela imaterial, os aristotlicos chamaram a alma de forma corporis. Enquanto princpio da vida, a alma , ao mesmo tempo, os princpios das capacidades e das qualidades especficas de cada ser vivo. Os movimentos das plantas so o crescer e murchar: a planta tem uma alma vegetativa. Animais e homens podem se movimentar, deslocar-se de lugar em lugar; eles tm impulsos e inclinaes, sentem necessidades, etc; isso possvel graas a sua alma apetitiva, thyms (KESSELRING, 2000, p. 156).

A idia de movimento e repouso ocorre na natureza graas alma enquanto

princpio da vida. Baseado, ainda, no princpio de Aristteles se pode entender que

o homem enquanto possuidor de uma alma racional capaz de pensar e planejar

suas aes, entre elas, compreender de forma cientfica a natureza atravs da

razo. Nesse sentido, a produo de uma cincia e do conhecimento da natureza

uma realizao da natureza humana.

Esse raciocnio envolvendo a natureza humana por meio do conhecimento fez

com que Aristteles identificasse trs espcies de cincia (episteme): a cincia da

natureza; a matemtica; e, a metafsica. A cincia da natureza busca a

compreenso dos movimentos e transformaes da realidade material (mundo dos

sentidos). A matemtica apresenta-se calcada naquilo que imutvel, ou seja, o que

est em repouso (a aritmtica, a geometria), ignorando o movimento e a

transformao. E, por fim, a metafsica abstm-se da matemtica e indaga sobre os

32

princpios gerais do mundo existente. Para Kelssering (2000, p. 157), a cincia em

Aristteles, no sentido estrito, lida com os princpios imutveis da Natureza, e,

graas a sua razo (nous), o Homem tem acesso direto a esses princpios.

Vale destacar que esse pensamento aristotlico, especialmente, no que se

refere metafsica ir influenciar a escola greco-romana (helenismo) e o

pensamento judaico-cristo sobre a natureza. A metafsica de Aristteles parte da

noo do Ser enquanto um Ser; do estudo de um ser da natureza que um ser real

e verdadeiro, cuja essncia , justamente, a multiplicidade de seres e a mudana

incessante afirma Chau (2000, p. 217).

O pensamento aristotlico encarna o ser da natureza como objeto de

investigao da fsica ou da Filosofia Primeira a meta-fsica. Segundo, ainda,

Chau (2000) metafsica cabe trs estudos: o do ser divino, essncia perfeita e

imutvel; os primeiros princpios e causas primeiras de todos os seres (animais,

homem e objetos do mundo sensvel); e, as propriedades ou atributos gerais de

todos os seres. Este corpus filosfico utilizado para dar explicaes sobre a

natureza e o conhecimento cientfico (episteme), influenciando o pensamento da

escola helenista, especialmente, o estoicismo, e dos primeiros cristos.

Na ltima etapa da civilizao grega, quando esta se encontrava sob o julgo

da dominao romana, se d a construo de uma viso cosmopolita do mundo, isto

, da idia de uma razo universal a partir do entendimento sobre o conhecimento

humano e das relaes entre o homem e a natureza e destas com Deus. Destacam-

se nesse perodo os discursos e escritos de Ccero (106 43 a.C) e Sneca (4 a.C

65 d.C). A natureza entre os esticos passa a ser percebida como um organismo

vivo, material, animado por uma fora divina, organizado por um Logos que

concebido como razo csmica (MATIAS, 2009, p. 22).

A concepo judaico-crist de natureza tem como fonte de inspirao a

histria da criao do mundo por Deus na forma como apresentada no Antigo

Testamento da Bblia Sagrada e a metafsica de Aristteles. Desses pilares nasce

filosofia crist adaptada religio crist cujas razes foram fincadas no oriente e

disseminadas pelo ocidente.

A filosofia crist busca entender a natureza a partir dos princpios religiosos

ancorados na metafsica, enquanto conhecimento elaborado pela escolstica. Nesse

sentido, a tradio bblica associa a natureza ao universo, ao cu e a Terra como

resultado da criao de Deus. E a Terra, como parte da natureza, s se completa

33

com a formao dos seres vivos. Assim, Deus cria as plantas, os animais e o

homem que colocado no jardim do den ou paraso para que possa sobreviver

e encontrar a felicidade.

Quando o Senhor Deus fez a terra e os cus, ainda no tinha brotado nenhum arbusto no campo, e nenhuma planta havia germinado, porque o Senhor Deus ainda no tinha feito chover sobre a terra, e tambm no havia homem para cultivar o solo. Todavia brotava gua da terra e irrigava toda a superfcie do solo. Ento o Senhor Deus formou o homem do p da terra e soprou em suas narinas o flego de vida, e o homem se tornou um ser vivente. Ora, o Senhor Deus tinha plantado um jardim no den, para os lados do leste, e ali colocou o homem que formara. Ento o Senhor Deus fez nascer do solo todo o tipo de rvores agradveis aos olhos e boas para alimento. E no meio do jardim estavam a rvore da vida e a rvore do conhecimento do bem e do mal (GNESIS, 2:5-9).

A natureza como um mundo material criado por um Ser onipresente chamado

Deus expressa a idia de que a Terra teve um incio, ou seja, no surgiu

espontaneamente, mas por obra de um Ser divino, superior e perfeito que no est

inserido nele, mas que o transcende. Essa acepo foge do pensamento dos

filsofos gregos que defendia que nada existia fora da natureza. Entretanto, o

desenvolvimento de uma filosofia crist com Santo Agostinho (354 430) que

reabilita Plato e So Tomz de Aquino (1225 1274) que cristianiza Aristteles a

oposio entre o conhecimento grego e a religio mitigada.

Em Santo Agostinho a filosofia assume um carter dualista, tendo em vista se

situar no limiar entre as idias neoplatnicas e a f crist. A criao do mundo e de

todos os seres que compe a natureza obra de um Deus infinitamente bom, um

Ser que transcende o pensamento ou a razo. Esse pensamento seria a revelao

da prpria essncia do homem que no se confundiria com a materialidade do corpo

de acordo com os princpios da filosofia de Plato (PESSANHA, 1999). Ao contrrio

de Santo Agostinho, So Tomaz de Aquino consegue fazer uma sntese entre a f e

o conhecimento, por meio da filosofia de Aristteles.

As elaboraes filosficas e teolgicas construdas ao longo do tempo sobre a

natureza apresentam paradoxos, dicotomias e ambivalncias, que por sua vez,

foram sistematizadas em torno de um dualismo essencial, nas palavras de Smith

(1988), que anima, ainda hoje, as concepes de meio ambiente que foram

produzidas com a emergncia da sociedade capitalista. Trata-se de um lado, de uma

natureza externa ao homem, isto , a sociedade, composta por coisas ou objetos

naturais, e, de outro, uma natureza universal, onde est situado o ser humano e o

34

seu interior. Esse dualismo expressa o pensamento ideolgico da classe burguesa

na idade moderna, para justificar a explorao e dominao da natureza e dos

homens atravs do trabalho.

Entre os pensadores da modernidade que se destacaram na formulao de

uma base conceitual da natureza, e que tomaram emprestado elementos das vises

de outras pocas histricas constam: Bacon (1561-1626); Descartes (1596-1650); e,

Kant (1724-1808). Esses baluartes do prenncio da cincia moderna, apesar das

diferenas, tm algo em comum: o olhar utilitarista, mecanicista e organicista sobre o

meio ambiente, o que leva a defesa da sua subordinao frente s necessidades do

homem, da sociedade ou em outras palavras da civilizao e, portanto, da cultura. A

disseminao dessas concepes se estendeu pelo mundo ocidental e foram

apropriadas pelo capitalismo, em uma clara demonstrao de que cabe a natureza

prouver as necessidades humanas em benefcio do crescimento econmico.

Em Bacon a natureza vista como um objeto que est sobre o domnio da

divindade, isto , Deus, aps a queda do Jardim do den, como preconizado pela

concepo judaico-crist. Mas, apelando por uma linha de raciocnio mecanicista

esse filsofo afirma que a relao de equilbrio e harmonia do homem com a

natureza pode ser reconquistada a partir do conhecimento cientfico. O saber se

traduz em poder, o que sinaliza para um pensamento permeado por ambivalncias:

de um lado uma natureza comandada por um Ser superior e divino e, por outro, uma

natureza dominada e manipulada pelo homem por meio da cincia. Ressalta-se,

tambm a presena da dicotomia em sua reflexo ao separar a sociedade da

natureza, cabendo a esta natureza a noo de exterioridade.

Ainda, segundo Smith (1988, p. 29): as razes histricas do dualismo

remontam mais a Kant, embora elas certamente apaream em fragmentos na

tradio intelectual judaico-crist. Esse filsofo constri uma viso multifacetada da

natureza atrelada a dois pilares de significaes: uma natureza interior e uma

exterior. A natureza interior o reino onde os seres humanos internacionalizam

suas paixes cruas, enquanto que a natureza exterior diz respeito ao ambiente

social e fsico, em que gravitam.

Em suas obras Crtica da razo pura (1781) e Crtica da razo prtica (1788)

Kant procurou resolver esse dualismo por meio de um esquema epistemolgico que

eleva o papel da mente humana, isto , do sujeito cognoscente que busca a

construo da cincia da natureza, o que forja a emergncia de novas dicotomias: a

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mente e a natureza, a cultura e a natureza. Para Smith (1988, p. 29) esse dualismo

kantiano se cristalizou na espinha dorsal da ideologia burguesa.

O que se pretende defender a idia de que as construes elaboradas

sobre a natureza ao longo do tempo, e que sobreviveram aos dias atuais, so

apropriadas e veiculadas pela ideologia burguesa com vistas a garantir os interesses

capitalistas. Nesse cabedal de significaes, utilizado como recurso ideolgico, a

natureza passa a ser apreendida nos sentidos mtico-religioso, romntico-potico e

cientfico, de acordo com o seu uso, isto : ora como a dimenso que transcende a

esfera material para fazer parte de um mundo sobrenatural morada dos deuses ou

das divindades ora como um grande jardim, lugar paradisaco e extico, ou ainda,

a biosfera ou me-terra para os defensores das cincias naturais.

Em suma, ancorada em um dualismo, a natureza revelada por meio de

concepes recheadas de complexidades e em muitos momentos contraditrias,

que se traduzem em construes ideolgicas que desafiam o tempo e encontram

campo frtil de disseminao na contemporaneidade:

A natureza material e espiritual, ela dada e feita, pura e imaculada; a natureza ordem e desordem, sublime e secular, dominada e vitoriosa, ela uma totalidade e uma srie de partes, mulher e objeto, organismo e mquina. A natureza um dom de Deus e produto de sua prpria evoluo; uma histria universal parte, e tambm o produto da histria, acidental e planejada, selvagem e jardim (SMITH, 1988, p. 28).

So significaes formuladas em torno de uma viso dualista que tem servido

de referncia para a formao das escolas do pensamento ambiental e ecolgico,

seja em sua vertente conservacionista, seja na vertente preservacionista em todo o

mundo ocidental. Mesmo em sociedades com herana histrica diferenciada da

realidade do velho mundo, como os EUA do sculo XIX, onde se vislumbra uma

natureza em seu estado selvagem possvel identificar os traos da complexidade

e da contradio que permeia o dualismo conceitual situado entre a viso da

natureza exterior e o da natureza universal.

Mas, a partir das elaboraes dos marxistas possvel desmistificar o carter

dual presente nas explicaes cientficas de estudiosos do meio ambiente de vis

culturalista que norteiam as formulaes sobre o meio ambiente nas vrias escolas

do pensamento ecolgico entre as quais se destacam a vertente antropocntrica e

tecnocntrica. Ressalta-se que a viso culturalista aprofunda a separao entre a

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sociedade e a natureza, conclamando a idia de que o homem deve exercer o

controle e domnio sobre os recursos naturais.

Contrariamente aos pensadores que se ancoram na viso dualista, os

estudiosos de herana marxista se apropriam da dialtica materialista ao lanar

novas bases para se pensar natureza. Mas, para que isso se torne possvel,

preciso superar a noo de que essa natureza um objeto exterior ao homem,

sujeito sua explorao e dominao, uma vez que tal concepo tem sido

apropriada, historicamente, para justificar o uso dos recursos naturais de forma

intensiva e contribuir, assim, para o processo de acumulao capitalista, conforme

as afirmaes de Bernardes e Ferreira (2007, p. 17):

A compreenso tradicional das relaes entre a sociedade e a natureza desenvolvidas at o sculo XIX, vinculadas ao processo de produo capitalista, considerava o homem e a natureza como plos excludentes, tendo subjacente a concepo de uma natureza objeto, fonte ilimitada de recursos disposio do homem.

Para os autores esse pensamento impulsionou, ao longo do tempo, o

desenvolvimento de prticas em favor de um crescimento econmico ilimitado, o que

acarretou como efeito perverso a submisso da natureza e do homem ao capital.

Mesmo estando em plos excludentes, do ponto de vista do paradigma dominante, o

capitalismo termina por subordinar homem e natureza lgica do lucro, isto , da

acumulao do capital.

A explicao para essa relao estabelecida entre o homem e a natureza

pode ser encontrada, portanto, atravs da utilizao do materialismo histrico e

dialtico, enquanto recurso metodolgico criado por Marx (1989) para anlise e

interpretao da sociedade capitalista. Um mtodo que se baseia nas relaes de

antagonismos e de contradies como afirma Ianni (1980, p. 8):

Na obra de Marx, o capitalismo levado a pensar-se a si mesmo, de maneira global e como um modo fundamentalmente antagnico de desenvolvimento histrico. Da mesma forma que o modo capitalista de produo, a dialtica marxista funda-se nas relaes de antagonismo. O princpio da contradio governa o modo de pensar e o modo de ser (IANNI, 1980, p.8).

Pensar de forma materialista e dialtica vislumbrar a possibilidade de o

homem construir e transformar a sua histria, a partir de sua relao com a natureza

e entre si por meio do trabalho. nessa direo que Marx e Engels (1986) em A

ideologia alem expem a aplicao desse mtodo ao indicar como pressuposto da

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histria humana a distino entre os homens e os animais na produo de sua vida

material. O que interessa perceber de que modo os homens produzem e

reproduzem essa vida material, a partir das condies naturais j encontradas e de

suas prprias aes.

A produo da vida material no deve ser vista apenas no que tange a

reproduo fsica dos indivduos, mas no que se refere ao modo de vida dos

mesmos. Isso indica que o termo produo na viso de Marx e Engels tomado

numa acepo muito mais ampla que a encontrada nos economistas; ele recolhe o

sentido da filosofia inteira: produo de coisas (produtos) e de obras, de idias e de

ideologias, de conscincia e de conhecimento, iluses e verdades (LEFEBVRE,

2001, p. 37).

Desse modo, torna-se fcil a compreenso de que a produo pressupe o

intercmbio material e espiritual dos indivduos entre si, estando, tambm,

subjacente as relaes com os fenmenos naturais para a satisfao de suas

necessidades atravs do trabalho.

Isso se torna mais perceptvel quando se entende a noo de trabalho

empregada por Marx em sua obra O capital (1989). Nela, o trabalho assume o papel

de mediador entre o homem e a natureza em uma determinada sociedade, seja qual

for a sua forma. Mas, alm dessa relao homem/natureza, o trabalho tambm

revela as relaes dos homens entre si, que so relaes sociais, assim como a

apropriao dos recursos naturais, transformados em mercadoria atravs do

trabalho social. Uma mercadoria que, resultante do trabalho despendido pelo

homem, vista como uma coisa exterior, criada para satisfazer necessidades

humanas. Esse carter de utilidade lhe confere um valor de uso, como afirma o

prprio Marx:

O trabalho, como criador de valres-de-uso, como trabalho til, indispensvel existncia do homem, quaisquer que sejam as formas de sociedade, necessidade natural e eterna de efetivar o intercmbio entre o homem e a natureza e, portanto, de manter a vida humana (MARX, 1989, p. 50).

Para Bernardes e Ferreira (2007), que discorre sobre a dialtica da relao

sociedade/natureza, esse processo de intercmbio entre o homem e o meio

ambiente vislumbrado por Marx, fez surgir um homem socialmente ativo que se

utiliza de toda a sua capacidade fsica e intelectual para apropriar-se dos recursos

naturais, transformando-os e, ao mesmo tempo, modificando sua prpria natureza

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humana. Isso implica dizer que a mediao e o intercmbio com a natureza no

ao do homem enquanto um indivduo isolado, mas de um ser social, pertencente a

uma determinada sociedade, o que se configura em relaes sociais historicamente

determinadas e contraditrias, isto relaes de produo, onde os valores de uso

de uma mercadoria se transformam em valores de troca.

Com isso pode-se dizer que na concepo marxista a relao do trabalho

com a natureza sempre dialtica, uma vez que o acesso e uso dos recursos

naturais pelo homem, por meio do trabalho, fazem com que a natureza se humanize

e, simultaneamente, o homem se naturalize. Nesse processo de metabolismo, a

natureza se humaniza e o homem se naturaliza... (BERNARDES e FERREIRA,

2007 p. 19), resultando em um espao social que a prpria sociedade, com

herana histrica, isto , formas culturais construda pela ao humana, o que faz

Santos (1996a, p. 89) afirmar: No processo de desenvolvimento humano, no h

uma separao do homem e da natureza. A natureza se socializa e o homem se

naturaliza.

Essa afirmao de Milton Santos comprova a inexistncia da dicotomia

sociedade e natureza. O que existe o espao social formado por um processo

simbitico entre a ao humana e a natureza modificada, reflexo de processos

dialticos e contraditrios, uma vez que o espao produto e produtor da ao

humana na construo da sociedade. Assim, constata-se que os seguidores do

pensamento marxista ampliam a discusso sobre a relao entre sociedade e

natureza e no mais homem e natureza como verificado nos escritos de Marx em

sua obra O capital.

Milton Santos ao se inspirar no autor e em outros pensadores dialticos como

Hegel (1770-1831), escreve uma teoria sobre o espao, tendo como referncia

construo de categorias de anlise, entre elas, a de formao econmica, social e

espacial ao invs da interpretao simplista de formao social e econmica, para

defender a idia de que natureza e espao so sinnimos.

Aceit-la [a categoria de formao econmica, social e espacial] deveria permitir aceitar o erro de interpretao dualista das relaes Homem-Natureza. Natureza e espao so sinnimos, desde que se considere a Natureza como uma natureza transformada, uma Segunda Natureza, como Marx a chamou (SANTOS, 1979, p. 10).

Fato esse corroborado por Lefebvre (1974) ao indicar que essa relao

dialtica sociedade/natureza resulta na construo do espao social, ou seja, na

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natureza segunda produzida sobre a base material que constitui a natureza primeira

a partir da prtica social. Isso por que o espao como uma construo social

compe uma estrutura complexa formada, historicamente, pelas esferas econmica,

ideolgica e jurdico-poltica.

Para os autores da teoria do espao social, como Santos (2006), a histria da

transformao do mundo natural em um espao social revela as mediaes

estabelecidas entre a natureza e a sociedade. So essas mediaes desenvolvidas

a partir da tcnica e do conhecimento que iro provocar a substituio do mundo

natural por um meio geogrfico (social). Assim, sem deixar de abstrair as

particularidades de cada poro da superfcie terrestre, o autor divide a histria do

meio geogrfico em trs etapas: o meio natural; o meio tcnico e o meio tcnico-

cientfico-informacional. Essa periodizao dar uma viso de como a socializao da

natureza produziu a unidade da natureza no tempo atual.

1.2 A SOCIALIZAO DA NATUREZA E A NATURALIZAO DA SOCIEDADE

Uma prtica social estabelecida, historicamente, pelo uso da tcnica e do

trabalho transforma o meio natural ou pr-tcnico no meio tcnico-cientfico. uma

mudana que expressa passagem do homem coletor, caador, domesticador de

animais e agricultor constituinte de uma organizao social e diviso do trabalho

que influencia usos, costumes e comportamentos socioculturais para o homem da

sociedade comercial e urbano-industrial controlada pelo Estado-Nao e regulada

pelo mercado por meio de um sistema de idias, leis, normas e ideologias. Um meio

que se inicia no final do sculo XVIII com a mecanizao do territrio nas palavras

de Santos (2008).

Em Castells (2000) o momento vislumbrado como o prenncio da primeira

revoluo industrial, voltada para o desenvolvimento da produo capitalista, o que

ocasionou emergncia de uma nova configurao espacial o meio urbano em

contraposio a cidade medieval. Para o autor esse processo ocorreu devido: ao

esfacelamento das estruturas sociais do campo e a emigrao dos camponeses

para os centros urbanos j existentes como fora de trabalho para a nascente

indstria; e, a substituio de uma economia domstica por uma economia

manufatureira e posteriormente fabril, envolvendo a concentrao de mo-de-obra, a

constituio de um mercado e a formao de uma estrutura industrial.

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O avano do modo de produo capitalista que se deu no sculo XVIII,

resultado da acumulao de riqueza por uma classe dominante (burguesia),

proveniente do lucro obtido pela produo industrial da mercadoria. Trata-se,

portanto, do maior feito do projeto de modernidade, pois refere-se a estilo, costume

de vida ou organizao social que emergiram na Europa a partir do sculo XVII e

que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influncia

(GIDDENS, 1991, p. 11).

Essa industrializao teve seu desenvolvimento a partir da transformao dos

recursos naturais em matria-prima, da explorao de uma mo-de-obra barata

advinda do campo atravs do mecanismo de expropriao de suas terras e dos seus

meios de produo e, por fim, de um acelerado processo de urbanizao para

atender as necessidades dessa nascente indstria com a concentrao em um

mesmo espao dos meios para a produo, circulao, distribuio e consumo da

mercadoria.

preciso entender que a expanso do processo de urbanizao que ocorreu

a partir do projeto de modernidade construdo em prol do desenvolvimento da

sociedade capitalista industrial, no sculo XVIII, contribuiu para o quase

desaparecimento das cidades nos moldes em que eram conhecidas, ou seja, espao

de organizao poltico-administrativa com autonomia institucional1. Em seu lugar

surge o meio urbano, destinado a implantao de um novo sistema econmico

baseado na industrializao, por contar com uma mo-de-obra, diviso tcnica e

social do trabalho, estrutura de transporte e um mercado garantido para a

comercializao dos produtos manufaturados.

Um momento, considerado por Santos (2006) como o perodo mediado por

um meio tcnico-cientfico que encontra na cincia o suporte necessrio para o

aprofundamento de um sistema de objetos e de um sistema de aes com o avano

da tecnologia da informao no sculo XX. O desenvolvimento da tcnica e da

cincia permitiu alm da revoluo industrial a revoluo da microeletrnica, da

informtica e da informao, inaugurando o que Milton Santos denominou de

perodo tcnico-cientfico informacional, redefinindo a relao tempo-espao e

fazendo surgir sociedade da ciberntica ou do meio virtual.

1 Segundo Castells (2000, p. 45) o desenvolvimento do capitalismo industrial, ao contrrio de uma

viso ingnua muito difundida, no provocou o reforo da cidade e sim o seu quase desaparecimento enquanto sistema institucional e social relativamente autnomo, organizado em torno de objetivos especficos.

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O meio tcnico-cientfico e informacional tem transformado o espao de

maneira radical, recriando novas relaes entre a sociedade e a natureza, e

desvelando mais um paradoxo da sociedade capitalista: a utilizao dos recursos

naturais como matria-prima para a produo e, ao mesmo tempo, a conservao e

preservao desses atributos enquanto mercadoria com valor de troca sob o

discurso da sustentabilidade ambiental, conforme ser discorrido mais adiante. Em

seu livro O Capital (1989, p. 41), Marx afirma que:

A mercadoria , antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estmago ou da fantasia. No importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistncia, objeto de consumo, ou indiretamente como meio de produo.

Uma mercadoria que se reveste de valores-de-uso e valores-de-troca: O

valor-de-troca revela-se, de incio, na relao quantitativa entre valores-de-uso de

espcies diferentes, na proporo em que se trocam, relao que muda

constantemente no tempo e no espao.

Esse paradoxo faz emergir a complexidade da construo do espao social, e

redefine a noo de territrio e o papel de sua gesto no contexto urbano. Nesse

sentido, Harvey (1973) concebe as cidades como resultantes de relaes

econmicas, sociais, culturais e polticas estabelecidas entre os homens que as

transformam, em espaos, cuja funcionalidade promover a manuteno e

reproduo social do capital, uma vez que o lcus de produo de excedentes, da

circulao de mercadorias e criao de um mercado de troca. o lugar, por

excelncia, onde a mercadoria assume em toda sua plenitude o valor-de-troca, de

forma reificada e fetchizada, mas poder ser tambm o espao em que se

construiro alternativas de mudanas na ordem econmica vigente, nos moldes

preconizados pelo autor (2004) em sua obra Espaos de esperana.

Assim, a cidade passa a ser objeto de construo, desconstruo e

reconstruo de espaos produzidos de acordo com os interesses das classes

dominantes para serem vendidos e/ou consumidos de forma que possam contribuir

com a acumulao expandida do capital. A governana local passa assumir a

postura empreendedora e acaba por assumir tambm uma aliana com o capital,

estabelecendo uma relao de parceria entre o pblico e o privado, cujo poder

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poltico passa a expressar claramente dinmica dessa nova forma de acumulao

capitalista.

A busca por subespaos ou lugares criados e recriados a partir de uma ao

empreendedora fez emergir mais uma etapa da redescoberta da natureza na

contemporaneidade. A discusso ambiental que surgiu em escala global em torno da

preservao e conservao do meio ambiente redirecionou o comportamento das

empresas e do mercado na explorao da natureza, sob a gide do discurso da

sustentabilidade ecolgica. A natureza socializada passa a incorporar concepes

que valoriza um mundo selvagem carregado de signos e smbolos de seduo,

capturados pelas imagens recriadas do cotidiano e da subjetividade por uma

ideologia que desafia a inseparabilidade existente entre os objetos naturais e

sociais, isto , o espao social.

1.3 USOS E REPRESENTAES DA SEGUNDA NATUREZA

A viso de natureza construda pela sociedade capitalista a expresso da

segunda natureza, uma natureza-objeto, como observada nos escritos de Marx e

Engels, principalmente, nas obras O capital (1867), Anti-Duhring (1877), Introduo

a dialtica da natureza (1925), A ideologia alem (1932).

A leitura desses autores permite desvelar a viso de uma natureza

transformada e abstrada pelo discurso ideolgico da proteo de uma materialidade

fsica e biolgica (natureza-objeto), responsvel pelo suprimento das necessidades

de sobrevivncia humana, incluindo as necessidades voltadas para o prazer e o

lazer, atravs da contemplao e consumo de uma paisagem extica e idlica sob o

artifcio da criao de reas naturais protegidas, em oposio a um meio ambiente

urbano-industrializado. Significaes essas que so geradas na interface das

relaes estabelecidas entre trabalho e capital.

A natureza material produzida como uma unidade no processo de trabalho, a qual conduzida pelas necessidades, pela lgica e pelas idiossincrasias da segunda natureza. Nenhuma parte da superfcie terrestre, da atmosfera, dos oceanos, dos substratos geolgicos ou dos superestratos biolgicos esto imunes transformao pelo capital (SMITH, 1988, p. 96).

Com estas palavras o autor adverte que na sociedade capitalista a natureza

passa a ser manipulada de acordo com