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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES CURSO DE LICENCIATURA EM DANÇA HERÓI DE MIL SONHOS: Processo de criação em dança. WILLAMY GOMES BEZERRA NATAL/RN 2018.2

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

CURSO DE LICENCIATURA EM DANÇA

HERÓI DE MIL SONHOS:

Processo de criação em dança.

WILLAMY GOMES BEZERRA

NATAL/RN

2018.2

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WILLAMY GOMES BEZERRA

HERÓI DE MIL SONHOS:

Processo de criação em dança.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN) como um dos pré-requisitos para a obtenção

do grau de Licenciado em Dança.

Orientadora: Profa. Dra. Patrícia Garcia Leal.

NATAL/RN

2018

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

Bezerra, Willamy Gomes.

Herói de mil sonhos : processo de criação em dança / Willamy Gomes Bezerra. - Natal, 2018.

37 f.: il.

TCC (licenciatura) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Licenciatura

em Dança, Natal, 2018., Centro de Ciências Humanas, Letras e

Artes, Licenciatura em Dança.

Orientador: Patrícia Garcia Leal.

1. Sonhos. 2. Processo de criação. 3. Imaginação ativa. 4.

Improvisação. I. Leal, Patrícia Garcia. II. Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 793.3

Elaborado por Willamy Gomes Bezerra - CRB-X

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Willamy Gomes Bezerra

HERÓI DE MIL SONHOS:

Processo de criação em dança.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN) como um dos pré-requisitos para a obtenção

do grau de Licenciado em Dança, sob a orientação da

Profª. Drª. Patrícia Garcia Leal.

Aprovado em ___/____/____

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Profa. Drª. Patrícia Garcia Leal pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2009) - Orientadora

____________________________________________________

Profa. Drª. Regina Helena Pereira Johas pela Universidade de São Paulo

(2004)

_____________________________________________________

Psic. Esp. Márcia Bertelli Bottini pela Universidade Veiga Almeida (2011)

NATAL/RN

2018

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho ao meu sobrinho Enzo. Seu

nascimento me estimula a vida, assim como o instinto de

proteção e cuidado com a família. As provas heróicas

vencidas logo no primeiro mês de seu nascimento, só me

fez acreditar que é a melhor representação do herói mítico

em nossa trajetória de vida e à minha família, quem me deu

forças e palavras de bom ânimo para finalizar este trabalho.

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“Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura

numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra

fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói

retorna de sua misteriosa aventura com o poder de

trazer benefícios aos seus semelhantes.”

Joseph Campbell

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Herói de mil sonhos: processo de criação em dança

RESUMO

Esta pesquisa aborda procedimentos de criação em dança a partir da experiência com sonhos. Apresenta como referencial teórico as pesquisas de natureza da psique do médico Carl Gustav Jung (1875-1961), fundador da psicologia analítica. O objetivo deste trabalho visa promover impulsos criativos a partir dos sonhos, entendendo imaginação ativa, abordagem terapêutica criada por Jung, como procedimento para a criação em dança associado a meditação e improvisação. A metodologia desenvolvida, trouxe para os bailarinos, por meio do processo Herói de Mil Sonhos uma experiência global e harmoniosa de si. Pôde ser relatado que os estímulos dos sonhos, das palavras as quais os reforçavam, proporcionou aos momentos de imaginação ativa, evocar imagens interiores com efeito criativo em dança. O presente trabalho se justifica por desenvolver um conteúdo simbólico-facilitador para enfrentar a jornada arquetípica de transição.

Palavras-chave: Sonhos. Processo de Criação. Imaginação Ativa.

Improvisação.

Hero of a thousand dreams: process of creation in dance

ABSTRACT

This research approaches dance creation procedures from experience with dreams. It presents as theoretical reference the investigations of nature of the psyche of the doctor Carl Gustav Jung (1875-1961), founder of analytical psychology. The objective of this work is to promote creative impulses from dreams, understanding active imagination, therapeutic approach created by Jung, as a procedure for creation in dance associated with meditation and improvisation. The methodology developed brought to the dancers, through the Hero of a Thousand Dreams process a global and harmonious experience of themselves. It could be reported that the stimuli of dreams, of the words that reinforced them, provided moments of active imagination, to evoke inner images with creative effect. The present work is justified by developing a symbolic-facilitating content to indirectly face the archetypal transition journey.

Keywords: Jung. Dreams. Creation process. Active Imagination. Improvisation.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................ 9

2. A SOMBRA E OS SONHOS ......................................................... 12

3. HERÓI DE MIL SONHOS ............................................................. 16

3.1 Reconhecimento dos Sonhos .................................................... 18

3.2 Laboratórios de Improvisação ................................................... 23

4. Considerações Finais ................................................................... 31

Referências bibliográficas ...................................................................... 32

APÊNDICE .............................................................................................. 34

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1. INTRODUÇÃO

Esta pesquisa aborda procedimentos de criação em dança a partir da

experiência com sonhos. Este estudo tem como referencial as pesquisas de

natureza da psique do médico Carl Gustav Jung (1875-1961), fundador da

psicologia analítica.

Carl Gustav Jung foi um grande intelectual de sua época. Na busca de

novas descobertas sobre a psicologia, acabou seguindo seu próprio caminho

após o rompimento com seu mestre Freud. O distanciamento se deu em meados

de 1913. Jung se opôs ao posicionamento de Freud quanto à ideia da libido.

Freud, pai da psicanálise, naquela época trouxe a discussão da libido com

bastante ênfase na sexualidade, já Jung enxergou com uma amplitude maior, a

de englobar outras áreas importantes, como: o poder, a alimentação e o espírito.

Subsequente a separação profissional de Freud, Jung criou a abordagem

terapêutica: imaginação ativa. Afetado profundamente com a separação de seu

amigo, sentiu-se “num beco sem saída”. Farah (2016) diz que no início, ele

chamou seu método de “confronto com o inconsciente” com quem experimentou

consigo mesmo uma autoexperiência, até 1930. Sendo um procedimento de

intervenção terapêutica por meio da arte, permitiu que outros profissionais

realizassem pontes de conhecimento. Para Woodman (1980, ______, apud

ZIMMERMANN, 2009, p.160) a “Dança é uma forma de Imaginação Ativa”,

contudo, para este processo busco um caminho consciente para a criação, a

imaginação ativa não tomará uma posição clínica, mas sim, procedimental para

a criação em dança.

O fundador da psicologia analítica apresentou grandes contribuições,

principalmente, para a reflexão no campo da arte como meio de criação. Num

sentido mais profundo, Jung, considera que o artista é o instrumento de sua obra,

colocando o artista sobre ela. Assim como pensa Pressfield (2005), a inspiração

dos artistas vem dos deuses, em que é entregue ao mundo por meio do artista,

como forma de agradecimento. Para Marcellino (2006, p.9) “o artista não

obedece a um impulso individual, mas, a uma corrente coletiva, a qual não se

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origina diretamente do consciente, mas sim do inconsciente coletivo da psique

moderna”.

A psique, como um todo, é definida pela psicologia junguiana como

personalidade. Essa palavra, vinda do latin, significa “alma” ou “espírito”, a

grosso modo refere-se à mente. Jolande Jacobi citado por Zimmermmann (1992)

afirma, apoiando os pensamentos de Carl Gustav quanto ao funcionamento da psique:

A Psique se constitui de duas dimensões, que se complementam, mas que têm propriedades opostas: a consciência e o inconsciente... A consciência representa uma pequena parte da Psique total. [...] Como uma pequena ilha, ela flutua no mar ilimitado do inconsciente, que, afinal, abarca o mundo todo. O Eu é definido como um complexo de representações e parece ter grande continuidade e identidade consigo mesmo. Jung chamou-o também, sujeito da consciência. [...] Toda a nossa experiência do mundo exterior e interior deve passar pelo Eu para poder ser percebida por nós, pois enquanto o Eu não reconhecer essas relações, elas permanecerão inconscientes.

Para Jung (1986) o consciente e inconsciente são dois polos

convergentes da psique. A consciência pertence às convenções morais e

intelectuais as quais possibilitam medir e quantificar, por exemplo, a motivação,

que estabelece um alcance ideal e senso de planejamento concretizado para ser

concretizada. Apesar de voltada para a realidade, a consciência capta a psique

de maneira fragmentada de trecho em trecho. A consciência tem um centro: o

“eu” autorreflexivo (JUNG, 1986).

A partir das experiências pessoais e de seus pacientes, Jung, deu início

suas pesquisas sobre o inconsciente. Para Grinberg (1997, p. 80), o inconsciente

refere-se a “tudo aquilo que não sabemos e que, portanto, não está relacionado

ao Ego1 como centro do campo da consciência”. Diante disso, pude pensar de

como a arte se agrega a esses procedimentos como princípios criativos. Com

isso, objetivo deste trabalho visa promover impulsos criativos a partir dos sonhos,

entendendo imaginação ativa, abordagem terapêutica criada por Jung, como

procedimento para a criação em dança associado a meditação e improvisação.

1 “Ego é o centro da personalidade consciente. Ou dito de outra maneira a sede da identidade subjetiva, ao passo que o Si-mesmo é a sede da identidade objetiva. O Si-mesmo constitui, por conseguinte, a autoridade psíquica suprema, mantendo o ego submetido ao seu domínio” (EDINGER, 1995, p.22).

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Quanto ao inconsciente, Jung (1986) subdivide em duas partes:

inconsciente pessoal e inconsciente coletivo. O primeiro é feito de uma camada

relativamente superficial, que pode ser referente a coisas subliminarmente

percebidas, de desejos e de pensamentos reprimidos pela consciência do

indivíduo. Já o inconsciente coletivo, explica Jung (1986), são disposições

psíquicas herdadas de comportamento humano que podem ser encontradas em

demais perspectivas a partir de lendas, mitos e contos de fada.

Todas essas partes citadas podem ser organizadas de forma sintética na

Figura 1

Em ocasiões específicas, o inconsciente coletivo pode se manifestar de

inúmeras formas, seja por imagens típicas de natureza simbólica, por sonhos,

por movimentos, por desenhos, pelos cultos, rituais religiosos e mitos. Para Jung,

(2008, p. 204):

“o inconsciente jamais se acha em repouso, no sentido de permanecer inativo, mas sim, está sempre empenhado em agrupar e reagrupar seus conteúdos... De um modo normal, essa atividade é‚ coordenada com a consciência, numa relação compensadora”.

O inconsciente coletivo é constituído pelos arquétipos, para Jung (2000b),

eles designam a apreensão psíquica de padronizações humanos. Refere-se ao

Consciência

Inconsciente Pessoal

Inconsciente Coletivo

Figura 1

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comportamento, a existência do homem sem depender diretamente da cultura,

lugar ou época histórica vigente do indivíduo. Os arquétipos são estruturas

naturais em cada indivíduo capazes de formar ideias mitológicas. Por sua vez,

Grinberg (1997, p.134) pontua como um:

“mundo invisível dos espíritos, dos deuses, demônios, vampiros, duendes, heróis, assassinos e todos os personagens de épocas passadas da humanidade sobre os quais foi depositada forte carga de afetividade”.

2. A SOMBRA E OS SONHOS

Os arquétipos são um mergulho no inconsciente. Sinais arquetípicos

apareciam com frequência em meus sonhos. Com esta inquietude utilizei a

dança para integralizar-me aos estudos da psique como um processo individual

de satisfação e que indiretamente poderia me afetar terapeuticamente.

A princípio, dei início a breves leituras filosóficas, afim de encontrar

respostas sobre o homem e o significado da vida. Dentre esses estudos,

apareceram algumas breves leituras, vídeos de meditação e autoajuda. Esses

estudos sempre me levavam para um autor referente, este autor dialogava com

todos esses estudos, este era, coincidentemente: Carl Gustav Jung.

Para Edinger (1995) o processo de busca do significado da vida é

o mesmo que indagar “Quem sou eu?”. Com isso, esse autor reforça a

necessidade mais urgente do mundo moderno em descobrir o mundo subjetivo

da psique. Dessa forma, contempla a importância simbólica que Jung dá a vida:

O homem necessita de uma vida simbólica... Mas não temos vida simbólica.... Acaso vocês dispõem de um canto em algum lugar de suas casas onde realizam ritos, como acontece na Índia? Mesmo as casas mais simples daquele país têm pelo menos um canto fechado por uma cortina no qual os membros da família podem viver a vida simbólica, podem fazer seus novos votos ou meditar. Nós não temos isso... Não temos tempo, nem lugar... Só a vida simbólica pode exprimir a necessidade do espírito, não se esqueçam! E como não dispõem disso, as pessoas jamais podem libertar-se desse moinho - dessa vida angustiante, esmagadora e banal em que as pessoas são um nada. (JUNG, 1998, pag. 626)

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O primeiro contato com o autor, anterior a esta pesquisa, se deu nas

disciplinas Tópicos Especiais em Dança e Improvisação por meio da docente do

Curso de Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),

Patrícia Leal, em que utilizou Jung como referência e a sua aplicação da escrita

automática como método de alcance do inconsciente. Consiste em um texto

corrido que parte inicialmente de uma frase apontando um caminho prévio para

despertar novas escritas. Nesse contexto, ao iniciar a escrita o indivíduo não

deve pausar para “pensar” no que escrever, deve apenas preocupar-se em

escrever sem parar, pois, a disposição das palavras não dispõe,

necessariamente, de uma coerência lógica e julgamento. O tempo é determinado

por quem dirige o método. Neste processo não determinei uma frase inicial, mas

a meditação dos sonhos dos respectivos participantes do processo aprofundado

mais adiante do texto.

Jung foi um grande aliado para as inquietudes enraizadas em minha

mente. Após o surgimento de alguns sonhos, que com o tempo passaram de

sem importância para frequentes, curiosos e algumas vezes perturbadores,

passei a pesquisar sobre a interpretação desses e como poderia compreendê-

los como parte da psique. Para JUNG (2008):

“Os sonhos contêm imagens e associações de pensamentos que não criamos através da intenção consciente. Eles aparecem de modo espontâneo, sem nossa intervenção e revelam uma atividade psíquica alheia à nossa vontade arbitrária. O sonho é, portanto, um produto natural e altamente objetivo da psique, do qual podemos esperar indicações ou pelo menos pistas de certas tendências básicas do processo psíquico. Este último, como qualquer outro processo vital, não consiste numa simples sequência causal, sendo também um processo de orientação teleológica. Assim pois podemos esperar que os sonhos nos forneçam certos indícios sobre a causalidade objetiva e sobre as tendências objetivas, pois são verdadeiros auto-retratos do processo psíquico em curso.”

O curioso entre esses sonhos, é sempre a representação constante da

casa e seu interior. Casas, dentre elas conhecidas e outras não. Muitas vezes

havia união de cômodos de vários móveis que já havia visitado. Sonhos

repetidos também eram bastante frequentes. Essas questões me fizeram refletir,

em um sonho específico, onde estive cara-a-cara com uma imagem arquetípica,

arquétipo o qual muito pesquisado por Jung. Entendido por mim como um

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personagem bastante impactante, feio, desnudo e assustador: imagem

arquetípica da sombra. Chopra, Ford e Williamson (2010) discorrem sobre “O

Efeito Sombra” em nossas vidas, também título do livro:

“O Efeito Sombra ocorre quando a própria escuridão reprimida torna sua presença conhecida, levando-nos a agir de maneira inconsciente e inesperada. Isso acontece quando algo no mundo externo força a escuridão a sair de seu esconderijo e subitamente ficamos cara a cara com os traços, comportamentos e sentimentos do personagem que mantivemos escondido na vida secreta. O Efeito Sombra não é algo que planejamos. Na verdade, é algo que a maioria de nós investiu tempo e energia para tentar evitar. Mas, quando entendemos esse fenômeno, podemos desvendar o mistério da sabotagem pessoal”. (CHOPRA, FORD, WILLIAMSON, 2010, p.60).

Esse efeito surge tomando rumos de grandes conflitos que assombra

nossa vida, contudo é um grande aliado para a nossa evolução. Esse arquétipo

brota em um respectivo sonho tomado por uma forma grotesca e assustadora. A

partir daí surgiu todo interesse de promover a dança a partir dos sonhos e os

símbolos arquetípicos presente neles. Vale ressaltar que:

“Quando o psicólogo suíço Carl Jung pressupôs o arquétipo da sombra, disse que ela cria uma névoa de ilusão que cerca o self. Encurralados nessa névoa, lançamo-nos à própria escuridão e, consequentemente, damos à sombra cada vez mais poder sobre nós.” CHOPRA; FORD; WILLIAMSON, 2010, p.10)

Para Zimmermann (2009), o self também é entendida como uma imagem

arquetípica. Através do confronto entre o consciente e o inconsciente, quanto

duas dimensões, designa o self como última etapa desse processo de

autorrealização. Ele representa a totalidade e unidade a partir das contradições

da natureza do indivíduo. Zimmermann (2009, p.158) reforça que:

“Essa experiência arquetípica é expressa nos sonhos e em visões através de muitas e várias imagens. Um símbolo frequente é a criança, que surge às vezes, como uma criança divina ou mágica. O Self também costuma manifestar-se simbolicamente como um animal, uma

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figura hermafrodita, por um tesouro, uma pedra preciosa, uma bola de vidro, uma figura geométrica, ou uma flor.

A forma que a figura da sombra surgiu no sonho, me deixou além de

assustado, muito curioso afim de descobrir por que este sonho me afetou com

tanta particularidade. Com isso, penetrei no universo das interpretações dos

sonhos e nos estudos da psicologia analítica. Anotei todo o sonho em um

pequeno caderno, pois acreditava que tudo isso poderia virar dança.

Para Jung (1977), o sonho na verdade opera por meio de um princípio

“compensador”, equilibra o psiquismo do sujeito e corrige as deficiências da

personalidade. Deficiências as quais pareciam me afligir há alguns anos, mas

naquele momento estava tomando rumo de inquietude e impulso para a

criatividade.

Segundo Farah (2016), Jung, com a união das produções artísticas –

pintura, escrita, entre outras – possibilitou aos seus pacientes e consigo mesmo

dar formas conscientes as imagens simbólicas que surgiam durante todo seu

tratamento. Na perspectiva deste trabalho, as imagens simbólicas vieram a

priore dos sonhos e mergulho no inconsciente. Foi necessário, nos encontros em

laboratório, permitir que outras formas subliminares pudessem surgir, vindas,

pelo acesso aos sonhos, sendo de grande valor para a criação. Devido a isso,

utilizei a dança como método de imaginação ativa, criado por Jung bastante e

utilizado em seu tratamento. No caso desta pesquisa, como recurso crucial para

a criação em dança. Assim como o recurso da meditação, que segundo Gorges

(2018, p.72) podemos utilizá-la com “uma adaptação que contribui à dança, e no

caso desta pesquisa, especialmente, aos processos de criação em dança”.

A vivencia meditativa foi bastante explorada na disciplina Improvisação

com a professora Patrícia Leal. Foi primordial a essa vivência para poder tratar

a meditação para o contexto deste trabalho. A professora Leal, realiza trabalho

de improvisação e meditação em alguns encontros de Jam Sassion. O início do

processo das Jam’s se deu, por muitas vezes, por este recurso metodológico.

Para Leal (2012, p. 51) “a improvisação pode ser uma escolha enquanto

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estrutura cênica final de um “espetáculo de dança, bem como pode ser

exercitada por meio de encontros de improvisação, as chamadas Jam Sessions”.

Zimmermman (2009, p.157) entende por dança meditativa “aquela que

focaliza um procedimento ou um objetivo (externo ou interno) de maneira, calma,

contínua e concentrada, evitando qualquer tipo de dispersão”. Aliada a

improvisação, Leal (2012, p. 229), oferece um caminho de “possibilidade

integradora entre preparação corporal, interpretação e criação, reconhecendo-a

como técnica”. Assim, podemos perceber a importância e as desmistificações e

preconceitos concebidos a improvisação como algo feito sem preparação:

[...] para improvisar em dança é preciso colecionar ampla experiência motora, capacidade de conexão e transformação dos movimentos e muita técnica. A improvisação requer do bailarino mais habilidade e experiência profissional do que para executar uma estrutura coreográfica fechada. Isto porque a estrutura exige o aprendizado de movimentos previamente definidos, já a improvisação exige muito mais repertório, vocabulário de movimentos e capacidade de lidar com a criação e a interpretação no momento de sua execução, transformando, renovando e descobrindo, a cada instante, novos caminhos. A improvisação pode conter estruturas estabelecidas, mas elas se concretizam no momento da cena, transformando-se continuamente. (LEAL, 2012, p. 57)

Dessa forma pude propor a criação em dança por meio de encontros,

diálogos, escritas e improvisação em dança. Foram convidados três bailarinos a

fazerem parte dos laboratórios. Tais bailarinos, são considerados para mim

bastante distintos, em termos de movimento, personalidade e possibilidades

criativas. Digo isso, por ter tido vivências, lado a lado, no mundo da dança, são

eles: André Rosa, Gabriela Gorges e Margoth Lima.

3. HERÓI DE MIL SONHOS

A criatividade é um processo de busca de soluções interiores, mas não é claro nem ao próprio indivíduo que o exercita; as soluções começam a se tornar conscientes à medida que vão ganhando uma forma. (ZAMBONI, 1998, p. 29)

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O processo dos sonhos foi realizado com os três respectivos bailarinos

citados. Integram a Companhia de Dança do Teatro Alberto Maranhão

(CDTAM)2, situada em Natal/RN. Aproveitei de seus horários de atividade para

realizar esta pesquisa por meio de encontros laboratoriais.

No primeiro encontro iniciei a discussão sobre minha pesquisa e tratei

alguns conceitos de Jung: consciente, inconscientes pessoal e coletivo,

arquétipo e imaginação ativa. Após a exposição dos conceitos sugeri que cada

participante elegesse um sonho muito marcante para si. Os primeiros encontros

não experimentamos movimentos, apenas a meditação e escrita automática

para que pudéssemos mergulhar em nossos sonhos e em diálogos (conversas)

pudéssemos conhecer cada sonho.

Foi proposto a escrita automática, para discorrer, por alguns minutos os

sonhos escolhidos. Antes disso, nos colocamos sentados no chão com as pernas

cruzadas. Fechamos os olhos e focamos inicialmente na respiração, em seguida

nas lembranças dos sonhos, em meditação. Individualmente em uma ação

voluntária buscamos nosso caderno e caneta para cada um escrever sem pausa

(escrita automática) por alguns instantes tudo que viesse a mente e imaginação

a partir da mentalização primária do sonho; estariam livres para também

desenhar.

A mentalização do sonho em meditação, trouxe para cada um,

interpretações naturalmente distintas. Acredito que este processo é tão particular

que os caminhos do inconsciente não devem ser limitados, mas experienciados

e reconhecidos. O sonho, segundo Bergman (______, p9, apud CAMPBELL,

2001):

“...nunca é intelectual [Bergman acrescenta, estendendo seu pensamento.] Mas depois de você ter sonhado, ele pode despertar seu intelecto. Pode trazer novos pensamentos. Pode dar um novo modo de pensar, de sentir (...) pode dar uma nova luz para sua paisagem interior. E pode dar de repente uma amostra de uma nova forma de lidar com a sua vida.”

2 A Companhia de Dança do Teatro Alberto Maranhão (CDTAM) tem 20 anos de trajetória. Uma das companhias mais ativas do Rio Grande do Norte, tem como diretora artística Wanie Rose de Medeiros, também diretora da Escola de Dança do Teatro Alberto Maranhão (EDTAM), fundada em 1986.

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3.1 Reconhecimento dos Sonhos

Nessa perspectiva, é possível encontrar, além do que é dito por Bergman,

sobre novas formas de lidar com a vida, também podemos encontrar, novas

formas de lidar com a criação em dança. Ainda num estágio de reconhecimento

dos sonhos a Gabriela Gorges, com a escrita automática, explanou ter

rememorado um sonho de uma viagem espacial. Segundo a mesma, viagens

espaciais são bastante frequentes em seus sonhos. A bailarina rememora estar

em um passeio com uma criança, no espaço negro do universo. Esse menino a

levou para vários cantos do universo. A bailarina descreve em sua escrita

automática:

“Em um dia em que estava em casa, após o almoço, me deitei na cama. Minha intenção era descansar por alguns segundinhos, mas acabei cochilando e nesse inocente cochilo, tive uma de minhas mais significativas experiências destas viagens astrais”. (Escrita automática de Gabriela, 2018)

Mais a frente continua “...então nos aproximamos do planeta terra, quanta

beleza! Tão azul e verde; suas águas escorriam e pingavam pelo espaço negro.”

Para Artemidoro (2009), sonhar refere-se ao por vir e quando o sonhador

se localiza num espaço referente a cidade, o mundo ou universo; o sonho não

está ligado apenas ao indivíduo. Dessa forma, o sonho relaciona ao “povo” ao

coletivo e que é interesse do cidadão, ou seja, há sonhos que se referem ao bem

público e não apenas ao círculo privado do indivíduo.

A bailarina Margoth Lima, havia compartilhado um sonho que envolvia o

elemento água. A mesma informou que a água é um elemento bastante

frequente em seus sonhos e que em toda sua família há uma convensão quanto

as impressões de um sonho com água em seu estado líquido. O que todos da

família dela acredita é que sonhar com grande quantidade de água relaciona a

um futuro provável que corresponde ao falecimento de algum integrante do

círculo familiar, ou até mesmo alguém próximo.

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A bailarina sonhadora das águas, ainda ressaltou que de fato após o

compartilhamento em família sobre esse tipo de sonho, alguém com parentesco

ou não, mas bastante próximo, falece. Na psicologia analítica, as interpretações

que os pacientes fazem aos seus próprios sonhos são de suma importância.

Tudo que está presente nos sonhos têm uma grande dependência da forma que

o sonhador os veem. A seguir um trecho do sonho da Margoth Lima, a partir do

exercício da escrita automática:

“Tudo que eu lembro é que tudo era assustadoramente lindo. O mar engolia tudo a sua volta... e você ficando ilhado... sem saber como agir, a única coisa que se tinha certeza era que eu precisava atravessar aquela água, pois do outro lado tinha um lindo farol branco. Sentia que havia alguns pássaros por perto, mas eu não os via. Também sei que tinha alguém comigo, mas não sabia quem era. Eu me jogava na água, mas não me molhava. Tudo ficou ainda mais agitado e perigoso. Eu nadava, estava cansada. Tudo me parecia familiar pois era o local onde minha casa estava, porém, agora, tomada por água. Eu estava chegando próximo ao farol, olhei para trás, vi minha casa, meu lar e por um momento quis voltar, mas continuei! Ao chegar mais próximo do farol, acordei.” (Escrita automática de Margoth, 2018)

Para Santana (2005) a imersão em água é relacionada ao símbolo do

batismo, um procedimento primitivo de aprovação pela água. Uma energia

purificadora e rejuvenescedora que rege uma sequência de morte e

renascimento.

Margoth, em um dos laboratórios, gerou mais que escrita, gerou um

desenho que para ela referenciava uma praça de uma cidade em que esteve

num outro sonho com água. O seu formato me remeteu a mandala, tema

bastante estudado pelo médico pesquisador, Jung. Antes de conversamos sobre

mandala, Margoth, não fazia ideia da relação daquele desenho consigo mesmo

(Imagem 1). A mandala no ocidente também é chamada de “círculo mágico”.

Jung propõe uma análise em seu livro A Natureza da Psique:

Quando vocês analisam esta figura vocês percebem que ela consiste de quatro divisões; freqüentemente o centro é um quadrado com um círculo dentro e as quatro divisões pode ser subdivididas fazendo oito ou mais. Uma mandala oriental é usada para meditação. (JUNG, 2000, p. 396)

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Imagem 1 Possível mandala desenha por Margoth Fonte: Margoth Lima (2018)

O sonho que escolhi foi o gatilho para o interesse de realizar este trabalho,

trata de uma longa viagem a qual, depois de alguns estudos, a intitulei “Viagem

a casa da sombra e do self”. Sobre curiosidade, ponho-me a interpretar meu

próprio sonho, afim de encontrar respostas de meu eu inconsciente, registro que:

“o sonho se inicia caminhando em um lugar, pela noite, cheio de neve pelos

cantos. Há neste lugar algumas ruas e um amontoado de pessoas conversando

entre si” (Escrita automática de Willamy, 2018).

Neste sonho a jornada está representada em uma viagem, onde caminho,

utilizo transportes como trem e automóvel e certo momento me encontro com

alguns amigos da infância. Ocorre-me sonhos bastante longos, esse não foi

diferente. Esse sonho me surpreende por se caracterizar numa jornada com

compilações de outros sonhos no decorrer da viagem. Sobre esta viagem

sinalizada como jornada, Ruston (2011) afirma que “o símbolo da jornada nos

lembra que somos pessoas em transformação”. Numa visão arquetípica, a

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jornada, canaliza e ativa a libido em direção de seu maior desenvolvimento. Jung

descreve o indivíduo que está sobre esse arquétipo, assim:

“Ele sempre imagina seu pior inimigo à sua frente e, no entanto, o inimigo que carrega está dentro de si mesmo... a tendência regressiva tem sofrido a consistente oposição desde os tempos mais primitivos, da parte dos maiores sistemas psicoterapêuticos que conhecemos como as religiões. Estas buscam criar uma dimensão consciente autônoma, levando a humanidade a desmamar e afastar-se do sono de sua puerilidade.” (JUNG, 1989, p.553)

Juntamente ao arquétipo da jornada está implícito o arquétipo do herói,

por necessitar de alguém para percorrer os caminhos desse sonho. Desse modo,

refere-se as transições da vida, em que passa de uma fase para outra e que por

muitas vezes essas mudanças são regidas de grande dificuldade e tensão;

novas exigências aparecem e consequentemente novas regras, com isso, esse

processo pode envolver muita dor. É importante frisar a observação do Campbell

(2004) ao mito do herói, o mesmo compreende que nessa jornada, o indivíduo

atribui o desenvolvimento da psique pela orientação do self3 como um processo.

Algo em comum acontece em meus sonhos. Eles tendem a ter sempre

um ambiente familiar: a casa. Seja ela conhecida ou não. A casa, muitas vezes,

tende a ter alguns cômodos semelhantes aos de outras casas, como um conjunto

de partes de outras casas que já morei ou visitei se ressignificam em uma só.

Jung também teve em seus sonhos a projeção da casa, no livro Memórias,

Sonhos e Reflexões, o mesmo discorre de suas análises sobre este símbolo tão

importante:

“Era claro que a casa representava uma espécie de imagem da psique, isto é, da minha situação consciente de então, com complementos ainda inconscientes. A consciência era caracterizada pela sala de estar e parecia habitável, apesar do estilo antiquado” (JUNG, 2016, p 167)

3 Alguns autores utilizam o termo self para o arquétipo do Si mesmo

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Em outro momento laboratorial, o André Rosa, deixou alguns registros de

seu sonho e em diálogo aberto apresentou o relato dele para nós. O mesmo, em

seu sonho, se encontrou em um enorme deserto em que caminhava nesse

espaço sem fim. Certo momento encontrou um grupo de pessoas amarradas por

uma corda, nesse grupo de pessoas, uma criança de olhos claros te chamou a

atenção. Próximo a essas pessoas havia um cercado de arame farpado dividindo

o deserto.

O André, nesse lugar, por mais aberto que fosse, sentia a sensação de

aprisionamento. Ao se encontrar ao lado do arame se viu inquieto. Ele são

conseguia distinguir se aquele arame representava a demarcação de um fim de

algum espaço (como se estivesse dentro de um imenso espaço demarcado), ou

se ele estava do lado de fora de algum espaço demarcado. O mesmo sem

compreender o que sente, afirma que esta dúvida o deixa muito inquieto com um

aspecto, para ela, de dualidade.

André ao tratar esse assunto tão particular, demonstrou muita apreensão.

Percebo que de fato o aprisionamento tratado em seus sonhos num campo

desértico tão vasto, talvez simbolize a grandeza dessa prisão para si. Sobre a

sensação de aprisionamento, encontro um olhar e uma ideia de prisão posta por

Ford, no livro O Efeito Sombra, escrito por Chopra, Ford, Williamson em que diz:

É muito fácil ficar preso à mágoa e à dor, e permitir que a sombra e a nossa história ditem o futuro, minando nosso bem--estar. Quando nos prendemos aos ressentimentos em relação a nós mesmos, ou aos outros, nos atamos àquela mesma coisa que nos causou a dor com uma corda mais forte que aço. Conforme diz meu querido amigo Brent BecVar, recusar o perdão aos que nos magoaram "é como ser alguém que se afoga e cuja cabeça está sendo mantida embaixo d'água por outra pessoa. Em determinado momento, você perceberá que tem de ser a pessoa que luta para voltar à superfície". A única forma de lutar contra a mágoa e a natureza opressiva de nossa sombra é com perdão e compaixão. O perdão não acontece em nossa cabeça, mas no coração. Ele se desenrola quando extraímos a sabedoria das dádivas até mesmo de nossas experiências e emoções mais sombrias. O perdão é o corredor entre o passado e um futuro inimaginável. (FORD, 2010, p.75)

Nesse contexto, o autor reforça que nossa história é descrita em um plano

maior e que todos permeamos por evoluções em nossa vida, estando ou não

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conscientes disso. Por muitas vezes a evolução é dolorosa e a dor é um

ingrediente necessário para nossa receita divina. Ford (2010, p.75), ainda diz:

“Ao sentir a dor da solidão, nosso coração se abre para sentir mais amor; ao superar as pessoas e situações que nos oprimiram, percebemos a profundidade de nossa força. Quando estamos dispostos a reconhecer que a dor, os traumas e as mágoas realmente nos equiparam com a sabedoria essencial para o crescimento, naturalmente perdoamos e até abençoamos aqueles que entraram em nossa vida para nos ensinar essas lições difíceis. A vida é divinamente elaborada para que cada um de nós receba exatamente aquilo que precisa para apresentar sua expressão única no mundo.”

O estudo dos sonhos de cada bailarino foi precursor de outras

percepções. Contudo a semelhança da jornada se colocou como característica

coletiva. Dessa forma, o arquétipo da jornada e do herói, parece presente de

várias formas nos sonhos citados. Coincide na singularidade coletiva do herói

mítico tratado no livro O Herói de Mil faces4. Me fez ter um outro olhar as “mil

faces” do herói como um sinônimo dos “mil sonhos” da nossa vida que propõe o

encontro do eu em uma jornada cheia de aventura e transformação. Partindo

desse pressuposto contemplei a obra com o título: Herói de Mil Sonhos.

3.2 Laboratórios de Improvisação

É chegada a hora de experimentar em movimento o que vivenciamos nos

laboratórios anteriores repletos de conversas e anotações. Propus que os

bailarinos citados, trouxessem estímulos sonoros ou músicas que os mesmos se

identificassem e considerassem essenciais para o acesso a sensibilidade dos

sonhos.

Em um dos encontros, onde estiveram presentes eu, André e Margoth

iniciamos o experimento, que iria findar em improvisação. Inicialmente propus

um aquecimento corporal que compreendi essa ação, como “aproximadora” de

4 Livro de Joseph Campbell

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corpos. Como se pudéssemos adentrar no interior no outro por meio do toque da

pele, das diferentes partes do corpo, afim de unir, permitir e reconhecer o outro

naquele espaço. A princípio, dispomos sentados no chão, pernas cruzadas e

colocamos um estímulo sonoro, não para relaxar, mas com o intuito de ativar a

musculatura e preparar para o que a de vir. Realizamos uma meditação em

círculo, de mãos dadas, para reforçar cada vez mais a aproximação espacial

entre nós. Ressaltei, que voluntariamente alguém poderia, após alguns minutos

de meditação, eleger um colega para massagear ou auto eleger-se para ser

massageado. Elegi André para massagear, logo André elegeu Margoth e por

último a mim. Nós tivemos acesso as anotações do outro para experimentar no

corpo a vivência arquetípica vivenciada por cada bailarino.

Após estarem aquecidos, iniciaram mais uma meditação sobre seu sonho

e deram início ao processo de improvisação a partir de seu sonho. Como pré-

determinado, após alguns minutos de improvisação, nós buscamos as

anotações do outro e mergulhamos no que o outro poderia oferecer ao nosso

corpo. Tínhamos a possibilidade de ir até o aparelho de som e modificar o

estímulo sonoro quando quiséssemos. As únicas pausas que houve na

improvisação foram para alterar o estímulo sonoro e retornar para a

improvisação. Com isso, passamos mais de 20 minutos em improvisação e aos

poucos cedemos e finalizarmos um a um.

Logo em seguida nos reunimos e dispomos a conversar sobre a

experiência obtida. Pude observar que a ideia primária do sonho enquanto

estímulo para improvisação tomou outros rumos da psique. Discutimos também,

que ao entrar em contato com as anotações do outro, vieram novos impulsos.

Zimmermann em suas experiências com a improvisação da dança, afirma que:

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“Observando as pessoas envolvendo-se na improvisação da dança e realizando seus movimentos em contato com sua constelação interior, eu notava que, ao mesmo tempo em que expressam criativamente a realidade da música, ocorria, nela, uma integração de várias dimensões psíquicas.” (ZIMMERMANN, 2009, p. 155)

No encontro seguinte, propus uma nova tarefa. Os bailarinos puderam

eleger algumas palavras-chaves que referenciasse seu sonho e o

aprofundamento dele, obtidos nos encontros anteriores. Após ter escolhido as

palavras, individualmente, um bailarino escolheu um outro para experienciar

suas palavras para gerar no outro, novas percepções de criação em dança com

a improvisação. O indivíduo escolhido, juntamente com o bailarino que o

escolheu, se colocaram no espaço e meditaram as palavras escolhidas. As

palavras não tiveram uma função limitante, ou seja, a partir delas puderam

expandir a criatividade imaginativa.

Os outros dois indivíduos que não participaram diretamente da

improvisação, também tiveram um papel fundamental. As palavras, que naquele

momento havia sido proposta por apenas um bailarino, os que não estiveram

literalmente na improvisação, ficaram responsáveis, a partir da visualização das

palavras, escolher os estímulos sonoros que apoiasse essas palavras, a partir,

é claro, de suas próprias percepções e intuição podendo modificar os sons a

qualquer instante e até mesmo sobrepor dois sons ao mesmo tempo. É

importante ressaltar, que neste momento já havíamos recolhido os estímulos

sonoros propostos por todos, podendo utilizar os sons de qualquer bailarino

inclusive o do autor das palavras-chaves.

Imagem 2 Laboratório em trio Fonte: arquivo pessoal (2018)

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Com isso, formamos três duetos improvisativos. Gabriela escolheu o

André; eu escolhi a Margoth e a mesma escolheu a Gabriela. As palavras-chave

da Gabriela foram: flutuar, brilhoso, negro, infantil, leveza, pingar e impedimento.

A Gabriela Gorges (relato, 2018), após a vivência de improvisação que ocorreu

com o André, afirma que o escolheu, pois o mesmo parecia estar com a energia

baixa. Com isso, sentiu a necessidade de dividir sua energia em forma de dança.

Os movimentos dos mesmos sempre buscavam formas arredondadas. Por um

longo tempo, os bailarinos experimentaram deslocamento em círculos, tanto no

seu próprio eixo quanto ao redor do parceiro.

Por muitas vezes a Gabi parecia levar o André para algum lugar. Ao som

de planetas estimulando a improvisação, Gabi parece conduzir o André em uma

viagem espacial, como no seu próprio sonho, em que a mesma comenta que um

menino a levava para viajar no universo negro a visitar planetas. Esses

deslocamentos eram levados por Gabriela, em que que segurava a mão do

André, o levando em uma linha reta, com idas e vindas, em várias repetições. O

André parecia sempre passivo as conduções de sua colega. Por fim,

caminharam de mãos dadas em direção à luz da janela, como mostra na Imagem

3.

O próximo dueto se deu a partir da escolha de Margoth em que sugeriu

que eu escolhesse minhas palavras-chave e com quem eu iria improvisar. As

Imagem 3 Gabriela e André Fonte: arquivo pessoal (2018)

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minhas palavras foram: tensão, veloz, vigor, singular, união e irmandade. Escolhi

a própria Margoth, apenas seguindo a intuição de que devíamos experimentar

juntos. Com isso, nos posicionamos para a meditação das palavras. André e

Gabriela se posicionaram, para, dessa vez visualizarem as palavras escolhidas

por mim e conduzirem juntos os sons estimulantes.

Após o término de nosso experimento, a Margoth compartilhou, em uma

roda de conversa sobre a vivência, que a palavra “tensão” ficou bastante gravada

em sua memória no início do processo. Com isso, gerou movimentações com

intensas contrações musculares e demonstração de desconforto, onde

modificava a direção de seu olhar para vários lados, trazendo um ar de

insegurança.

Durante a meditação, me veio a lembrança de um outro sonho que a

Gabriela Gorges, estava presente como uma personagem dele. No sonho, duas

camas estavam presentes em um quarto da casa de minha mãe, no interior.

Essas duas camas já estiveram presentes no sonho principal, aquele escolhido

para iniciar o processo dos laboratórios. As duas camas estavam dispostas no

canto do quarto e bem organizadas. Gabriela estava sentada em uma delas e eu

acabara de acordar, na outra. A vejo de costas, me levanto, e vou em sua

direção. Fico a frente dela. A mesma olha nos meus olhos. Vejo um olhar neutro

Imagem 4 Willamy e Margoth Fonte: arquivo pessoal

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e desconfortante. Parecia querer dizer algo. Então pus a mão em sua cabeça e

movimentei circularmente, acordando logo em seguida. A partir dessa

lembrança, fiz a mesma movimentação na Margoth. Pode ser visto que o círculo

é algo bastante presente em ambos os duetos.

Em um certo momento as palavras “vigor” e “veloz” parecia estar bem

forte em nossa experiência. Parecíamos animais acuando um ao outro.

Corríamos velozmente um em direção ao outro, nos tocávamos, quase

abraçávamos, mas antes de findar em abraço, contorcíamos nossa cabeça,

nossos corpos e nos afastávamos repetidas vezes (Imagem 5).

Mais à frente, pudemos vivenciar um momento “singular”, de “união” e

“irmandade”. Me encontrei e aconcheguei nos braços da Margoth, feito uma

criança no colo de sua mãe. Mas para mim, parecia estar junto a minha irmã

mais velha a quem sempre cuidou de mim. Logo em seguida, após algumas

movimentações nos deparamos com os papeis invertidos, desta vez a Margoth

estava sobre meu colo sobre proteção e cuidado. Lembro a proteção que existe

de minha parte sobre minha irmã e seu filho. Meu sobrinho, onde costumo

fantasiar que a mesma é minha alma gêmea e seu filho é parte de nossas almas,

a parte que faltava. (Imagem 5)

Imagem 5 Margoth e Gabriela Fonte: arquivo pessoal (2018)

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O próximo experimento em dueto partiu da iniciativa de escolha da

Margoth, sobre suas palavras chaves: medo, observação, determinação,

calmaria e passagem completa. Escolheu Gabriela, para interagir diretamente

na improvisação. Nesse dia eu estava sozinho para gerenciar os estímulos

sonoros, o André não pode estar presente. Depois de todo o seguimento

ritualístico: meditação e mentalização das palavras-chave, se inicia o processo.

Logo no início a Gabriela movimenta-se calmamente, em nível baixo, toca

a si mesmo, leves toques eu seu corpo. Apesar de calma, parece desconfortável

e apreensiva. Considero nesse instante, que a palavra “medo” tomou conta de

seu corpo. O momento inicial da Margoth foi, também em nível baixo, de contrair-

se inteira a demonstrar receio. Remete-me novamente a palavra “medo”.

Logo em seguida, Margoth se levanta e caminha ao redor de sua

companheira e por um tempo fica a observá-la. Em seguida, se distancia

lentamente permanecendo a observação à distância. Gabriela, sempre com

movimentos em peso leve decide ir em direção a Margoth, movendo-se

lentamente, determina a qualquer custo alcançar seu objetivo em alcançar sua

companheira de experimento. Quando se encontram, juntas iniciam um

deslocamento por todo o espaço, remetendo-me a um caminho, a uma trajetória.

Em um dado momento, a Gabriela encontra uma cadeira alí abandonada.

A mesma opta em sentar, e os papéis parecem se inverterem. Gabriela passa a

observar a Margoth. Como um farol, Gabriela sobe a cadeira, com seu corpo

posiciona-o em várias direções a parecer um farol a iluminar todo o espaço. E

Margoth parada em nível baixo, novamente a observar o farol (Gabi), no fim do

estímulo sonoro, a mesma, decide levanta-se e com o foco em sua colega a

abraça. Sua colega responde o abraço com outro, firmando o aconchego do

abraço mútuo finalizando o processo desse dueto.

A metodologia desenvolvida, trouxe para os bailarinos, por meio do

processo Herói de Mil Sonhos uma experiência global e harmoniosa de si. Todos

podemos relatar que os estímulos dos sonhos e as palavras, as quais os

reforçavam, funcionaram como uma imaginação ativa, a propor a evocação das

imagens interiores como efeito criativo.

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Com isso a obra resultou em uma apresentação itinerante no

Departamento de Artes da UFRN. Utilizamos o ambiente externo e interno do

prédio. Adaptamos todo o espaço escolhido, cada ponto, como ponto referencial

de cada sonho. A parte externa trataria o ambiente que conectássemos ao sonho

da bailarina Margoth Lima, em seguida no Hall do prédio, com relação ao sonho

do André, onde utilizamos o diálogo com uma corda em referência a imagens de

pessoas amarradas do sonho escolhido para a pesquisa. Em seguida nos

deslocamentos em direção a um corredor em que em uma alusão aos planetas

e astros do sonho da Gabriela Gorges, balões de ar onde a cor dos mesmos foi

escolhida pela mesma bailarina que nos conectaríamos ao seu sonho como

impulso inicial a improvisação. Em seguida nos deslocamos para a sala prática

“C” do departamento. Lá deixamos tudo organizado, com a perspectiva de

aparência de um cômodo de uma casa, no caso, uma sala. Lá finalizamos nossa

trajetória heroica arquetípica em dança. A trilha sonora foi completamente

organizada a partir das sugestões de músicas e estímulos sonoros propostos por

todos os envolvidos no decorrer dos laboratórios. Trechos em vídeo da estreia

da obra podem sem encontrados aqui5 e fotos aqui6, em nota de rodapé.

5 Disponível em: < https://youtu.be/dpWfWu7jYDU> Acesso em: 4 de dezembro de 2018 6 Disponível em: <

https://www.facebook.com/media/set/?set=a.1031971120345478&type=1&l=c40e14ddd0> Acesso em: 4 de dezembro de 2018

Imagem 6 Estreia de Herói de Mil Sonhos Fonte: Anny Bezerra e Ruan Landolfo (2018)

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo Herói de Mil Sonhos vem como um afloramento da

personalidade individual e utilização das percepções encontradas nos sonhos

para a criação em dança. Assim como, Zimmermann (2009, p. 155) reforça em

seu trabalho, o mesmo se “desenvolve num processo original, onde os impulsos

criativos das camadas mais profundas se manifestam no campo de relações

conscientes do eu”. Com isso, o sonho teve um grande papel precursor para a

criatividade abraçar inúmeras dimensões psíquicas.

Sempre após os experimentos de improvisação, nos colocávamos em

uma roda, as discutir as singularidades e percepções de cada um e encontrar as

novas dimensões que o Herói de Mil Sonhos pode percor. Para Leal (2012, p.

124) a “percepção é única e acontece de acordo com a história, a memória e o

relacionamento do individual com o coletivo, do corpo com o mundo, do eu com

o outro”.

Essa coletividade gerou inúmeras formas de se dançar. Método aplicável

a todos os públicos, inclusive no ambiente escolar. Diante do mundo fantasioso

da criança e do jovem os recursos metodológicos aqui utilizados para criação,

facilmente podem ser aplicados no contexto escolar. Tanto a teoria quanto a

prática, da improvisação, psique, meditação para a dança servem de proposta

ao aluno como procedimento metodológico e reconhecimento de si. Convém

também ao professor para obter um olhar mais atento e mais profundo ao aluno,

o qual se relaciona em sua aula diariamente. Úteis as disciplinas curriculares

Dança e Arte.

Dentre esses métodos criativos, não buscamos um caminho diretamente

terapêutico. Contudo, diante dos relatos e sensações de bem-estar observadas

ao fim de cada processo, podemos dizer que para cada um de nós tomou um

partido terapêutico, a caminho da satisfação de por diversas vezes abraçar a nós

mesmos nessa dança coletiva.

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Talvez, se eu não tivesse me atentado aos símbolos presentes nos meus

sonhos, deixando-os esquecidos em minha memória, teria perdido uma grande

oportunidade de promover a dança de uma forma tão curiosa. Terei perdido a

chance enfrentar as mudanças e transições dessa agradável jornada. Como a

filósofa Lúcia Helena Galvão (2017) comenta graciosamente, em um vídeo de

acompanhamento da leitura do livro O Herói de Mil Faces, “não jogue no lixo

aquilo que você não entende; você pode estar jogando fora um bracelete de ouro

maciço”.

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APÊNDICE

Descrição do sonho: viagem a casa da sombra e do self

O sonho se inicia caminhando em um lugar pela noite cheio de neve pelos

cantos. Há neste lugar algumas ruas e um amontoado de pessoas conversando

entre si.

Neste caminho, encontro um jovem de mais ou menos 25 anos. Branco,

com a altura em média 1,65, vestido casualmente. O mesmo sempre buscando

chamar minha atenção. Este rapaz parecia um tanto inquieto e buscava sempre

chamar minha atenção por meio de brincadeiras, piadas, danças, corridas, saltos

aerodinâmicos e etc. Não se acalmava um instante se quer. Falava para ele se

acalmar um pouco seu estado de euforia. Por fim, o jovem se em pendurou no

teto de um alpendre de uma casa e começou a se deslocar sobre aqueles

espaços. O que sustentava seu peso era uma era um pedaço de madeira que

era sustentado por alguns pilares. Em certo momento, ele se locomoveu, ainda

pendurado, a uma certa parte do alpendre que estava com a madeira desgastada

e logo alí por cima da madeira, inexplicavelmente havia uma pedra. O rapaz

eufórico parou neste lugar e neste começou a fazer acrobacias aumentando a

pressão sobre a madeira desgastada. Como já esperado, a madeira se rompe

sob o peso da pedra e impulso que o jovem fazia. A pedra cai sobre o jovem, por

cima do ombro e braço direito do mesmo. Ele fica preso e mesmo naquela

situação, dá uns sorrisos tímidos e diz que está bem. Consigo retirá-lo dalí, ele

se levanta rapidamente, mexe o ombro os ombros para trás para demonstrar

segura e afirma estar bem. Eu preocupado, peço para ele respirar e aquietar-se,

ele assim o faz e começa a queixar-se de dor e sentir que algum osso havia

quebrado.

Após toda euforia, o mesmo diz que vai ficar bem, eu me despeço e sigo

minha viagem.

Logo em seguida, iniciei um passeio de trem, nele, observo os trilhos e

bastante neve pela janela. Em poucos instantes, me vejo em um carro, com

algumas pessoas, as quais não lembro quem são, contudo pareço conhecê-las

e ter um certo grau de intimidade. Olho pela janela e vejo inúmeros lugares os

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quais já visitei em outros sonhos; vejo cenas de prédios altos com luzes no topo

e fogos de artifício sobre eles, em comemoração a algo, talvez o ano novo, não

sei bem, mas sei que já havia visto aquelas cenas em sonhos anteriores.

Apesar da viagem longa, ainda estava de noite quando estacionamos em

uma casa aparentemente desconhecida, de cor bege. A rua se encontrava bem

movimentada. A casa tinha pouca iluminação, havia uma área logo na porta de

entrada, onde poderia estacionar um carro lá dentro, mas o carro me deixou logo

alí na rua e se foi.

Em frente à casa, a observá-la, vejo mulheres, várias, caminhando em

fileira com um vestido e chapéu típico do século XVI a entrar, não em direção a

porta da frente da casa, mas em direção ao beco da casa, entre o muro e a casa.

Me trouxe a impressão de velório, não sei bem, fiquei inquieto com esta imagem,

mas não a compreendia quando a vi.

Entro dentro da casa. Havia pouco móveis, ouvia vozes vindo da cozinha.

Em seu interior, parecia uma típica casa da cidade de Assu, onde é por sinal,

minha terra natal, até um pouco parecida com a da minha família onde vivi maior

parte da vida. No entanto, havia um cômodo diferente, onde seria o meu quarto,

o qual sempre dormi com minha irmã, era um pequeno banheiro. Algo me induzia

a me aproximar desse cômodo, ouvia som de um chuveiro ligado, sabia que

havia alguém lá dentro e eu precisava descobrir que era. Ao mesmo tempo,

sentia a intuição que algo também me esperava em um quarto logo mais à frente.

Nesta indecisão, opto por me aproximar do que estava mais próximo de mim, o

banheiro.

Quando me aproximo, abro lentamente a porta, vejo que que a luz está

apagada e do escuro, por trás da porta desse banheiro, surge um ser bem

assustador. Era um homem negro, despido, com a aparência desagradável, de

poucos pelos no corpo e bastante calvície, muitíssimo alto, bastante magro, com

braços e pernas longas. De imediato, ao meu redor, surge pequenas imagens,

pode-se dizer, que eram parecidas com pequenas projeções, do tamanho da tela

de um celular flutuando alí próximo de nós. Nestas imagens, haviam cenas de

festas, de consumo de álcool e libidinosas. Este ser, mesmo sem falar, parece

me convidar a entrar no banheiro; toco seu rosto e me recuso a entrar. Me afasto

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e no mesmo instante, um outro ser, também figura masculina, aparece por trás

da porta. Mais um homem negro e despido, desta vez, com a aparência bastante

próxima aos padrões de beleza impostos. Corpo bem definido, altura mediana,

rosto harmonioso, cabelos cacheados e bem tratados. E mais uma vez me

parecem convidar-me a entrar. Mais uma vez, me recuso. Senti, naquele

momento, que algo estava errado e que parecia ser algum tipo de armadilha.

Recuo e me afasto.

Decido então, seguir em frente e ir em direção ao quarto a frente em que

fortalece mais ainda a sensação de que dentro adentrar nele. Caminho e logo a

frente, estou de encontro a um quarto bem iluminado, com uma janela ao fundo

oferecendo uma vista de luz solar, me surpreendi, pois, antes de entrar na casa

estava de noite. Neste quarto, havia duas camas de solteiro, bem arrumadas e

ao redor bastante organizado. Em umas das camas, a mais distante, próxima a

janela, se encontrava um bebezinho cheio de pequenos pontos luminosos ao

seu redor, o deixando com uma imagem turva, dificultando um pouco a visão de

seu rosto. Me esforcei por muitas vezes para enxergar, talvez o meu sobrinho

mais novo, mas não parecia ser ele, era uma representação distinta e luminosa,

era eu mesmo, o self.

O bebezinho estava dormindo tranquilamente sobre um travesseiro. Me

aproximo e me agacho próximo a ele e o observo. Daí, decido colocá-lo em meus

braços, o toco vagarosamente. Aos poucos vou retirando-o do travesseiro ao

qual estava deitado, com um pouco de dificuldade, tento suspendê-lo a vir para

os meus braços. Quando o retiro, algo o faz desequilibrar e ele parece cair dos

meus braços. Tento agarrá-lo para assegurá-lo, mas antes mesmo de cair dos

meus braços, o sonho é interrompido pois o susto me fez acordar. Quando abro

os olhos, me dou conta de que estou deitado com meus braços erguidos para

cima em direção ao teto, como se estivesse pronto para assegurar que o bebê

caísse em meus braços.

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Imagem 7 Desenho das duas camas do sonhos Fonte: arquivo pessoal (2018)