universidade federal do rio grande do norte … · É uma palavra dentro do contexto cristão, mas...

113
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES JORGE DOS SANTOS LIMA A PERFEIÇÃO DA JUSTIÇA EM PLATÃO UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A ALEGORIA DA LINHA DIVIDIDA E OS PERSONAGENS D’A REPÚBLICA NATAL 2007

Upload: lyhanh

Post on 13-Feb-2019

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

JORGE DOS SANTOS LIMA

A PERFEIO DA JUSTIA EM PLATO UMA ANLISE COMPARATIVA ENTRE A ALEGORIA DA LINHA D IVIDIDA E

OS PERSONAGENS DA REPBLICA

NATAL 2007

1

JORGE DOS SANTOS LIMA

A PERFEIO DA JUSTIA EM PLATO UMA ANLISE COMPARATIVA ENTRE A ALEGORIA DA LINHA D IVIDIDA E

OS PERSONAGENS DA REPBLICA

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Filosofia do CCHLA como requisito obteno de ttulo de Mestre em Filosofia, rea de concentrao: Metafsica, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientao do Professor Dr. Glenn Walter Erickson.

NATAL 2007

3

Diviso de Servios Tcnicos

Catalogao da Publicao na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede

Lima, Jorge dos Santos. A perfeio da justia em Plato uma anlise comparativa entre a alegoria da linha dividida e os personagens dA Repblica / Jorge dos Santos Lima. Natal, RN, 2007.

111 f.

Orientador: Glenn Walter Erickson.

Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes. Programa de Ps-Graduao em Filosofia.

1. Plato Dissertao. 2. Linha dividida Dissertao. 3. Justia

Dissertao. 4. Trasmaco Dissertao. I. Erickson, Glenn Walter. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Ttulo.

RN/UF/BCZM CDU 141.131(043.3)

2

JORGE DOS SANTOS LIMA

A PERFEIO DA JUSTIA EM PLATO UMA ANLISE COMPARATIVA ENTRE A ALEGORIA DA LINHA DIVIDIDA E OS

PERSONAGENS DA REPBLICA

Dissertao de Mestrado em Filosofia apresentada para aprovao como requisito parcial na obteno do ttulo de Mestre em Filosofia pelo Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Professor Orientador

__________________________________________ Professor(a) Examinador(a)

__________________________________________ Professor(a) Examinador(a)

__________________________________________ Professor(a) Examinador(a)

__________________________________________ Professor(a) Examinador(a)

Aprovada em ____ / ____ / ________

Dedico a terra, ao ar, ao cu e ao mar por toda a certeza que tenho de serem eu e minha verdadeira morada.

4

AGRADECIMENTOS

Agradeo ao Prof. Dr. Glenn Walter Erickson, primeiro por ter me acolhido como

seu orientando, depois, por toda sua preocupao, zelo e ateno com a produo desta

pesquisa, mas especialmente por ter se demonstrado aberto a partilhar seu vasto conhecimento

filosfico.

Agradeo aos meus colegas de mestrado e aos professores Juan, Markus, Daniel,

Anastcio, Baslio, Cludio, Abraho, s professoras ngela e Cinara e a todos os professores

e funcionrios do Curso de ps-graduao e graduao em Filosofia desta IES e da

Universidade Federal do Piau com os quais mantive contato atravs das palestras, das aulas e

outros momentos.

Ao meu pai, Augustinho Correia Lima, e minha me, Maria Jos dos Santos, que

so os principais responsveis por esta conquista que agora realizo. Agradeo tambm a cada

um de meus irmos: Magno, Celso (sobrinho), Pedro, Telma, Emanuel, Tnia, Tarcisia, Edna,

Efignia, Auxiliadora, Antonio e a Gorete.

A todos os meus familiares, amigos, colegas e a Pe. Arnaldo de Matos Conceio,

homem que sempre admirei. Porm, fao um agradecimento especial, pela pacincia, ateno,

afeto, paixo e amor, para Regina Lcia Moreira, mulher que tenho infinito amor e carinho.

5

Se acreditarem em mim, crendo que a alma imortal e capaz de suportar todos os males e todos os bens, seguiremos sempre o caminho para o alto, e praticaremos por todas as formas a justia como sabedoria, a fim de sermos caros a ns mesmos e aos deuses, enquanto permanecermos aqui; e, depois de termos ganho os prmios da justia, como os vencedores dos jogos que andam em volta a recolher as prendas da multido, tanto aqui como na viagem de mil anos que descrevemos, havemos de ser felizes.

Plato. A Repblica, 621c4-d4

6

RESUMO

A alegoria da linha dividida apresenta uma estrutura que se divide em quatro nveis

de realidade. Dois deles se movem no mundo das aparncias ou da opinio e os outros no

mundo do ser ou inteligvel: eikasia e pistis, e dinoia e noesis. A inquietao a seguinte: Se

h quatro nveis de realidade com seus respectivos objetos que so apreendidos segundo um

tipo de conhecimento, existe uma interpretao da justia segundo cada um desses nveis?

Objetiva-se, portanto, aps a apresentao dos tipos de conhecimento segundo a estrutura da

alegoria da linha dividida, demonstrar como a justia compreendida em cada um dos nveis

de realidade. Entende-se que Plato utiliza certos personagens de acordo com nveis de

realidade que envolve tipos especficos de conhecimento. Os personagens so: Cfalo,

Polemarco, Trasmaco, Glucon, Adimanto e Scrates, e, portanto, a compreenso sobre o

que a justia em cada um dos nveis segue o que esses personagens entendem por justia.

Palavras-chave: Plato. Linha Dividida. Justia. Trasmaco.

7

ABSTRACT

The allegory of the divided line presents one structure that divides itself into four

levels of reality. Two of them move in the world of appearances or opinion, and the others

into the world of being or intelligibility: eikasia and pistis, and dianoia and noesis. The

difficulty is the following: if there are four levels of reality each with their respective objects

that are apprehended according to a type of knowledge involved, is there an interpretation of

the justice according to each level? Accordingly, our intention, after presenting the types of

knowledge in the allegory of the divided line, is to demonstrate how the justice is

comprehended at each level of reality. We understand that Plato uses the characters to

represent levels involving different types of knowledge. The characters are Cephalus,

Polemarchus, Thrasymachus, Glaucon, Adimantus and Socrates, and the comprehension

about what is the justice at each level follows what these characters understand justice to be.

Key-words: Plato. Divided line. Justice. Thrasymachus.

8

LISTA DE ILUSTRAES

Grfico 1- Grfico de Cornford para representar a Alegoria da Linha Dividida ....................

18

Grfico 2 - Grfico de Erickson e Fossa sobre as convenes para a Linha Dividida ...........

19

Grfico 3 - Estrutura proporcional da Linha Dividida ............................................................

21

Grfico 3: Grfico de Grube para representar a Alegoria da Linha Dividida ........................

22

Figura 1: A estrutura da cidade perfeita narrada por Scrates ................................................

77

Figura 2: A abrangncia das aes de cada classe na Cidade perfeita ...................................

78

Quadro 1: Quadro comparativo entre justia em Scrates e Cfalo .......................................

92

9

SUMRIO

1 INTRODUO ............................................................................................................ 11

2 A ALEGORIA DA LINHA DIVIDIDA E SUAS DIVISES .................................

16

2.1 RELAES PREDOMINANTES NA ESTRUTURA DA LINHA DIVIDIDA .........

2.2 CARACTERSTICAS INERENTES S DIVISES DA LINHA DIVIDIDA ...........

2.3 LINHA DIVIDIDA: IMAGEM DA ESTRUTURA DA PSICH ................................

20

23

30

3 JUSTIA NAS DIVISES DO SENSVEL: UM OLHAR A P ARTIR DO

PRPRIO SENSVEL ................................................................................................

32

3.1 UM DISCURSO NO NVEL DA EIKASIA: A HERANA DE POLEMARCO .........

3.2 UM DISCURSO NO NVEL DA PISTIS: O RUGIDO DA FERA TRASMACO .....

3.3 A INCOMPREENSO DE UMA SITUAO IMUTVEL: CONSENTIMENTO

DE POLEMARCO E SILNCIO DE TRASMACO .................................................

32

39

46

4 JUSTIA NO SENSVEL: UM OLHAR A PARTIR DO INTE LIGVEL ........... 50

4.1 O DESPREZO DA JUSTIA NA SOCIEDADE DA POCA DE GLUCON .........

4.2 A GLORIFICAO DA JUSTIA NA SOCIEDADE DA POCA DE

ADIMANTO .................................................................................................................

4.3 NICA POSSIBILIDADE DA MANIFESTAO DA VERDADEIRA JUSTIA:

A SOCIEDADE PENSADA POR SCRATES ...........................................................

4.4 SCRATES: A JUSTIA NO SENSVEL OLHADA A PARTIR DO

INTELIGVEL ..............................................................................................................

50

56

61

68

5 JUSTIA NAS DIVISES DO INTELIGVEL: UMA DEFIN IO A FAVOR

DO MAIS FORTE .......................................................................................................

73

5.1 O CONFLITO ENTRE TRASMACO E SCRATES: O MAIS FORTE O

SENSVEL OU O INTELIGVEL? ..............................................................................

73

10

5.2 O DISCURSO DE SCRATES E O DE CFALO: ADMINISTRADORES DA

MESMA FORA E HARMONIA? ..............................................................................

5.3 HARMONIA PURA A FAVOR DO MAIS FORTE: A JUSTIA NAS DIVISES

DO INTELIGVEL ........................................................................................................

82

93

6 CONCLUSO ........................................................................................................... 101

REFERNCIAS ........................................................................................................

106

11

1 INTRODUO

O estudo sobre Plato tem seguido a orientao de vrios pensadores que alimentam

a histria da filosofia. Alguns interpretam essa teoria segundo Aristteles, outros atravs da

Filosofia Medieval, Descartes, Kant, Nietzsche, Heidegger e assim por diante. Porm o que se

faz aqui problematizar uma das questes presentes em A Repblica utilizando as

especulaes de alguns desses pensadores somente no que se entende de proveitoso para os

fins desta pesquisa.

NA Repblica no h bruscas distines entre o homem e as coisas, no h

separao entre um sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido. Se h diferenas so entre

homens e no entre homem e objetos conhecidos. Estes so aquilo que o homem consegue ver

e tais homens so definidos pelos objetos que conhecem. Portanto, existe uma inegvel fuso

entre mundo-homem o que convm chamar de relao de intercomunho1 epistemolgica,

ontolgica e cosmolgica: epistemolgica, porque envolve a faculdade do conhecimento;

ontolgica, porque diz respeito a entidades fsicas ou inteligveis entendidas como coisas que

constituem o mundo apreendido pelos sentidos ou pela reflexo; e cosmolgica, por ser um

entrelaamento ordenado da situao homem-mundo.

Uma palavra grega que pode ser utilizada para indicar melhor essa intercomunho

o termo pericorese no sentido que lhe foi atribudo pela teologia crist na discusso das

relaes entre as trs pessoas da Santssima Trindade. 2 A proposta subtrair dessa semntica

a expresso trs pessoas da Santssima Trindade, colocando em seu lugar o homem e o

mundo atravs dos termos episteme, ente e cosmos. Deixando parte a discusso teolgica, o

termo pericorese, no contexto filosfico deste trabalho, significa que h uma intercomunho e

interprenetao de um ser a outro, num movimento contnuo e harmnico na relao homem-

coisa-mundo. A prpria etimologia da palavra pericorese (pericwrew) significa dana ao

redor, por cima, de um lado a outro, por dentro, ou seja, peri (per) = ao redor, por cima, por

dentro; e, corea (corea) = dana.

1 O termo intercomunho empregado no sentido de que h um envolvimento profundo e inseparvel entre a

faculdade de conhecer, os objetos apreendidos por essa faculdade, e o aspecto de ordenao que o homem faz sobre o mundo.

2 O sentido da palavra pericorese no contexto da Teologia Trinitria j existia desde o primeiro sculo da era crist como demonstrado no Evangelho de Joo 17, 10: tudo o que meu teu, e tudo o que teu meu; porm s tardiamente (ver PRESTIGE, 1952. p. 291) a palavra foi adotada como referncia relao trinitria. uma palavra dentro do contexto cristo, mas que pode ser absorvida para levar compreenso da filosofia platnica, no que diz respeito relao entre sujeito e mundo. Dessa forma, no h uma separao entre sujeito, objeto e mundo, mas um homem-mundo e um mundo-homem envolvidos em uma realidade.

12

Esse termo (pericorese) no foi usado por Plato, mas satisfaz o que se diz sobre

unio homem-mundo, uma vez que envolve a interpenetrao entre os aspectos ontolgico,

epistemolgico e cosmolgico nos quais o homem est mergulhado. O homem existe, as

coisas existem, o mundo existe, mas existem enquanto formam uma s coisa, assim so trs

coisas da mesma forma que o nmero trs, segundo Erickson e Fossa (2006, p.111)

concebido como a razo de uma trindade para uma unidade, 3 tal como a cidade perfeita

composta de trs partes tendo em vista o todo de sua unidade.

esta convivncia onto-epistmica e cosmolgica que Plato tenta explicar

esboando as divises que acompanha a estrutura da totalidade das coisas, a qual se pode

entender, tambm, pela denominao realidade uma vez que a viso total que algum tem

de mundo a realidade para essa pessoa.

Cada diviso corresponde a uma situao de vida, a qual se define, aqui, nos termos

de condio onto-epistmica e cosmolgica, que abrange a compreenso de mundo, os

desejos pessoais, o saber adquirido, a funo na sociedade e tudo o mais que envolve o ser

humano. Porm, os limites de uma diviso so definidos pela natureza (fsi) inerente

pessoa. Cada um percebe somente a situao de vida que suas limitaes naturais permitirem.

Limitaes, que tanto unem homem e mundo como diferenciam os homens entre si,

determinadas desde o momento de fecundao no ventre materno e moldadas pela sociedade.

Plato observa que a realidade4 se estrutura em quatro divises, assim, quem vive

imerso, na primeira, pensa, age e se comporta segundo as caractersticas daquela diviso. Se

h quatro divises, so quatro os modos de agir, pensar, sentir e se comportar, o que leva a

pressupor a coexistncia de quatros tipos de pessoas e conseqentemente de quatro nveis

distintos um do outro, ou, segundo o significado que lhe foi atribudo, em quatro distintas

realidades.

Nesse caso, a realidade no derivaria do homem, levando por gua abaixo a

afirmao de que o mundo se une ao homem? No, pois para Plato os objetos conhecidos

que definem uma realidade s so apreendidos pela alma psich - (), porque o homem

est imerso na realidade. Quando o homem de natureza () filosfica, por exemplo,

3 Erickson e Fossa tratam desta questo referente composio da primeira seco do inteligvel. Este trecho

aparecer tambm no ltimo captulo deste trabalho ao fazer referncia disciplina mais elevada do currculo matemtico.

4 Realidade um termo que carrega em si muita ambigidade, porm, para precisar melhor o significado que lhe atribudo neste estudo, convm compreend-lo no sentido de totalidade da compreenso de vida que uma pessoa possui. Por exemplo, uma pessoa compreende que as leis, normas e dogmas impostos pelo Estado so verdadeiras e devem ser obedecidas porque fazem parte de sua moral interna, caso seja questionada sobre a validade dessas leis, ele provavelmente ir defend-las como sendo suas prprias leis. Ento, a realidade para essa pessoa o conjunto, a totalidade de coisas, que envolve sua compreenso de vida.

13

encontra-se no meio de outros de natureza inferior apenas consegue elevar a natureza que lhe

prpria se for arrastado e forado a vivenci-la. Dessa forma, os pensamentos de um homem

deste tipo, suas aes e toda a sua vida no mais estaro amarrados e aprisionados realidade

inferior que antes vivenciava, mas faro parte do novo mundo que est a contemplar passando

a entender que esse novo o real e o que vira at ento eram meramente realidades que

derivavam umas das outras feito cpias das cpias que derivam de outras cpias e, por isso

inferiores, que, por fim, tm sua origem no que verdadeiramente real e pode ser vivenciado

pelo filsofo. Porm, devido as limitaes naturais, cada pessoa acredita que seu nvel de

entendimento o todo da realidade e no admite que possa existir outra superior.

Na filosofia platnica no se deve colocar o homem, enquanto ser pensante, de um

lado e do outro as coisas que, numa linguagem neo-kantista, poderiam ser chamadas de

realidade, ou, reduzir sua filosofia ao discurso que promove uma separao entre o sensvel e

o inteligvel. Ser pensante e realidade so um, e o sensvel a condio necessria para se

chegar ao inteligvel mesmo que o primeiro deva ser governado pelo segundo. Portanto, o

homem que composto de corpo e alma torna-se inseparvel do mundo que o envolve ou que

ele consegue enxergar.

A passagem que expressa mais nitidamente as divises que acompanham a estrutura

da totalidade das coisas a da linha dividida que, atravs de seus nveis, tenta expor e explicar

como a realidade se estrutura. Alguns comentadores entendem que a realidade algo mental e

por isso a estrutura do que se v seria algo puramente mental. Aqui se defende que o mental

est unido e inseparvel da realidade a ponto de que ao se falar de objetos do conhecimento

est ao mesmo tempo tratando de operaes da alma ( ) e da realidade

que apreendida por essas operaes.

Aps essa contextualizao, falta expor qual mesmo o problema que se tenta

analisar e propor uma possvel resposta. A inquietao a seguinte: se h quatro nveis de

realidade com seus respectivos objetos que so apreendidos segundo um tipo de

conhecimento, qual a interpretao que se faz da justia segundo cada um desses nveis?

Objetiva-se, portanto, logo aps apresentar a questo do conhecimento segundo a estrutura da

alegoria da linha dividida, demonstrar como a justia compreendido em cada um dos nveis

de realidade. Aqui, entende-se que Plato utiliza a figura de alguns personagens de acordo

com cada nvel da linha dividida. Os personagens so: Cfalo, Polemarco, Trasmaco,

Glucon, Adimanto e Scrates, e, portanto, h uma noo do que seja justia segundo cada

um dos personagens.

14

A apresentao do que estrutura e compe o mundo atravs da linha dividida,

segundo as interpretaes feitas por Erickson e Fossa, assume uma conotao nuclear neste

estudo sobre o pensamento platnico porque os personagens supracitados so comentados em

Erickson e Fossa (2006, p. 73) como homens presos no interior da caverna ou libertos fora

dela. Porm, aqui, nesta pesquisa, coisa que Erickson e Fossa apenas sugerem sem maiores

detalhamentos, ser analisada como se d essa analogia entre tais personagens e os segmentos

da linha dividida no que se referem questo da justia uma vez que a Alegoria da Caverna 5

uma forma de explicar a Alegoria da Linha Dividida. Portanto, faz bem enfatizar que a idea

de relacionar os personagens dA Repblica com os nveis da linha dividida indicada por

Erickson e Fossa na obra A linha dividida: uma abordagem matemtica filosofia platnica,

porm desenvolvida com maiores detalhes nesta pesquisa de Mestrado.

Metodologicamente esse trabalho desenvolve-se por pesquisa bibliogrfica e

estruturado em quatro partes. Inicialmente, atravs desta introduo, h a preocupao de

apresentar o problema principal desta pesquisa e ao mesmo tempo, expor a perspectiva de

interpretao sobre o pensamento de Plato. Depois, alm de esclarecer alguns termos,

responder a pergunta: o que a linha dividida? A linha dividida exposta demonstrando a

relao de proporcionalidade que concede um carter de inteligibilidade na sua estrutura e ao

mesmo tempo em que enfatiza caractersticas nas suas divises, consiste em um modelo

referencial no qual se pautam os personagens. Aps esta iniciao, resolve-se, em dois

captulos, verificar a interpretao sobre a justia nos limites do sensvel; e, depois, nas

divises do inteligvel. Esta ltima etapa ergue um debate sobre a justia a favor do inteligvel

atravs dos personagens Cfalo, Trasmaco e Scrates. Neste debate, Plato demonstra mais

uma vez que a forma de interpretar o mundo, os seres e a realidade devem deixar de ser

pensados segundo o sensvel, mas pelo inteligvel.

Nesse sentido, este estudo construdo ao entender que o sensvel, realidade

detentora do devir, e o inteligvel, do que no muda, no existem isoladamente um do outro.

A existncia do primeiro caracterizada pelo contingente, pela mudana contnua, no sendo

a todo instante, enquanto a do inteligvel o oposto, no muda, sempre a mesma e, portanto,

racional frente ao que mutvel. O nico meio de elaborar afirmaes racionais sobre o que

est em contnuo devir olhar o que muda a partir do que no muda. Assim, o sensvel, por si

s, no possui racionalidade, mas a recebe do que inteligvel. Dessa forma, as pessoas que

acreditam que o sensvel a nica realidade s podem afirmar que o que vem real porque

5 A alegoria da Caverna que se encontra no incio do livro VII no ser objeto de anlise, pois o foco principal de

reflexo so os nveis da linha dividida e o debate nos livros iniciais dA Repblica.

15

possuem em sua psich um determinado grau de inteligibilidade, mesmo que no entendam e

admitam a existncia de uma realidade inteligvel.

Atravs das diferentes maneiras de apresentar a estrutura do mundo, Plato

aconchega cada um de seus personagens ao que condiz com sua natureza, forando-os a

silenciarem diante do que no conhecem ou a admitirem que o inteligvel quem tem o poder

de determinar o ser de todas as realidades.

O homem consegue compreender o significado de algo se a explicao estiver ao

nvel de seu raciocnio. No adiantaria explicar para os homens do sensvel a estrutura da

realidade e a funo que tal homem desempenha nela, se a linguagem utilizada na explicao

no fosse baseada nas imagens, mas no inteligvel, por exemplo. Como o raciocnio do

homem do sensvel s admite a realidade das imagens, Plato apresenta para este tipo de

homem uma explicao baseada em imagens, para, depois, erguer os de natureza divina que

se encontram ainda no mesmo segmento destes outros, ao segmento que lhe inerente. Para

melhor entender os prximos captulos, deve-se analisar a problemtica: o que essa linha

dividida? Apesar de ser muito conhecida esta questo, condiz apresent-la brevemente com a

inteno de rememor-la para facilitar a compreenso de alguns termos e contextualizar esta

pesquisa.

16

2 A ALEGORIA DA LINHA DIVIDIDA E SUAS DIVISES

A linha dividida ( ), ou melhor, a Alegoria da linha dividida

encontra-se no final do livro VI com a preocupao de apresentar a estrutura da realidade.

Nessa alegoria, a realidade assume uma estrutura que dividida em quatro nveis ( -

segmento): imagens; mundo vivido e objetos produzidos; hipteses que caminham para a

concluso ou formas geomtricas e matemticas (510c 511a); hipteses que conduz ao

princpio ou idias (509e-511e). Estes nveis dizem respeito ao entrelaamento dos objetos do

conhecimento ou objetos conhecidos 6 e da psich 7ou alma humana.

Convm expor de forma breve, para que se desenvolvem os prximos captulos, qual

interpretao adotada, neste trabalho, sobre a questo: o que a linha dividida? Quais as

suas caractersticas? Plato apresenta a linha dividida no seguinte formato:

- Supe ento uma Linha cortada em duas partes desiguais; corta novamente cada um dos segmentos segundo a mesma proporo, o da espcie visvel e o da inteligvel; e obters, no mundo visvel, segundo sua claridade e obscuridade relativa, uma seco, a das imagens. Chamo imagens, em primeiro lugar, s sombras; seguidamente, aos reflexos nas guas, e queles que se formam em todos os corpos compactos, lisos e brilhantes, e a tudo o mais que for do mesmo gnero, se est a entender-me. -Entendo, sim. - Supe agora a outra seco, da qual esta era imagem, a que nos abrange a ns, seres vivos e a todas as plantas e a toda espcie de artefatos. - Suponho. - Acaso consentirias em aceitar que o visvel se divide no que verdadeiro e no que no o , e que, tal com a opinio est para o saber, assim est a imagem para o modelo? - Aceito perfeitamente? - Examina agora de que maneira se deve cortar a seco do inteligvel. - Como? - Na parte anterior, a alma, servindo-se, como se fossem imagens, dos objetos que ento eram imitados, forada a investigar a partir de hipteses, sem poder caminhar para o princpio, mas para a concluso; ao passo que, na

6 A expresso objetos do conhecimento utilizada por Maria Helena da R. Pereira ao traduzir A Repblica;

enquanto objetos conhecidos utilizada por Carlos Alberto Nunes. Observando que essas expresses se complementam, deve-se interpret-las no sentido de que abordam um mesmo ponto, ou seja, tratam de uma intercomunho entre as operaes da alma e os objetos que as compem no sentido de que impossvel tratar separadamente objetos essas peraes (). Porm, mesmo que as vezes seja necessrio refletir sobre a semntica das expresses, faz-se a opo pelo uso da traduo de Maria Helena.

7 Deve-se interpretar o termo alma como sendo a parte psicolgica humana que permite perceber e compreender as coisas, sensveis e abstratas. Portanto, quando se fala: alma, mente, interior humano, personalidade, para fazer referncia a palavra grega psich - traduzida para o portugus por alma e para o ingls por mente.

17

outra parte, a que conduz ao princpio absoluto, parte da hiptese, e, dispensando as imagens que havia no outro, faz caminho s com o auxlio das idias.(509d8-510b12)

Esta a principal passagem que expe a alegoria da linha dividida. A questo do

conhecimento no se restringe em saber as coisas, a ter cincia sobre os acontecimentos, mas

algo, presente no homem, que se manifesta como operaes na alma determinadas pela

prpria natureza psquica e, ao mesmo tempo, na realidade apreendida, seja fsica ou no.

Observe-se que, alm de Plato no distinguir a psich humana da realidade que ela est

mergulhada, ele postula quatro divises ou seces, intituladas, aqui, de situaes onto-

epistmicas e ontolgicas que compem o todo da estrutura da realidade, so: eikasia

(), pistis (), dinoia () e noesis ().8

Cornford (PLATO, 1945, p. 222-223), observando que para cada objeto do

conhecimento h um estado mental, traduz o primeiro, imagens, chamada eikasia (511e) por

Imagining que pode ser traduzido para o portugus como imaginando ou supondo; o segundo,

pistis, o que nos abrange a ns, seres vivos e a todas as plantas e a toda espcie de artefatos

(506c), por belief, quer dizer crena, convico; o outro, dinoia, o que fora a investigar a

partir de hipteses para a concluso (533d), por thinking traduzido pelo substantivo

pensamento ou o adjetivo pensativo (que pensa); e a mais alta diviso, nesis, a que faz

caminho s com o auxlio das idias, (533e), por intelligence ou knowledge, isto ,

inteligncia ou conhecimento.9

Segundo essa interpretao, os objetos do conhecimento correspondentes a cada um

desses estados so os seguintes: no mundo das aparncias, o estado definido por supondo tem

as imagens (images) como seus objetos; enquanto para a crena, so as coisas visveis (Visible

Things); assim, no outro segmento, no mundo inteligvel, seu primeiro estado mental, o

pensamento/pensativo abrange os objetos matemticos (Mathematical objects); j o outro,

8 No grego consta da seguinte forma: , , .

, ,

[e.] , ,

, ,

(511d-e. Grifos acrescidos). Este trecho em grego foi apenas para ressaltar o emprego dados aos termos: eikasa (), pstis (), dinoia () e nesis ().

9 Para traduzir essas palavras para o portugus, sero utilizadas as seguintes expresses: eikasia = suposio, pistis = crena, dinoia = pensamento, nesis=inteligncia. Dessa forma h uma semelhana com a traduo de Cornford, mas no no sentido de que se referem a estados mentais, mas entendendo que tais termos indicam um nvel de compreenso da realidade existente.

18

detm as formas e o Bem (Forms end the Good). Cornford utiliza o grfico seguinte para

representar o pensamento sobre a linha:

Observe no grfico 1 acima que os objetos do mundo das aparncias e os inteligveis esto

referidos a estados mentais definidores de diferentes modos de pensar e conhecer as coisas, o

mundo, a vida. Este um dos pontos que poderia ser pensado como relevante nessa

interpretao, ou seja, a amostragem do distanciamento e da ligao entre os objetos

conhecidos e o estado mental que favorece a apreenso destes objetos. Essa interpretao de

Cornford deixa de ser relevante medida que se assemelha a uma interpretao de fundo neo-

kantista na qual h o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido, sendo que o primeiro,

representado na figura do estado mental, responsvel pela apreenso do segundo.

O grfico 1 de Cornford, alm de demonstrar uma separao entre mente e objeto,

enfatiza tambm uma ordem hierrquica na qual a diviso mais inferior do sensvel possui

10 Esse grfico a traduo do pensamento de Cornford (PLATO, 1945, p. 221-222) sobre a Linha Dividida. Ele

diz: The Allegory is here prefaced by diagram. A line is divided into two, whose inequality symbolizes that the visible world has a lower degree of reality and truth than the intelligible. Each part is then subdivided in the same proportion as the whole line, (thus A + B : C + D = A : B = C : D). The four sections correspond to four states of mind or modes of cognitions, each clearer and more certain than the one below.[...]

OBJECTS STATES OF MIND The Good Forms

D

- Intelligence (nesis) or Knowledge (epistme)

INTELLIGIBLE WORLD

Mathematical objects C - Thinking (dinoia)

Visible Things B - Belief (pistis) WORLD OF

APPEARANCES Images A - Imagining (eikasia)

Objetos Estados da mente O Bem Formas

D

- Inteligncia (nesis) ou Conhecimento (epistme)

Mundo inteligvel

Objetos matemticos C

- Pensamento/pensativo (dinoia)

Coisas visveis B - Crena (pistis)

Mundo das aparncias Imagens A - Supondo (eikasia)

- Grfico 1: Grfico de Cornford para representar a Alegoria da linha dividida10 (PLATO, 1945, p. 222, traduo nossa)

19

uma extenso menor que as outras. Contrariando Cornford, neste trabalho se optou pela

inverso dessa ordem, a diviso mais inferior a de maior extenso da linha dividida devido o

seu maior grau de ininteligibilidade; alm deste fator, a menor diviso a da nesis porque

dela deriva as outras numa progresso proporcional e matemtica. Desse modo, adota-se a

ordenao feita em um outro grfico por Erickson e Fossa (2006, p.15 ):

A ordem hierrquica acima, e adotada na interpretao sobre a linha dividida para este

trabalho, coloca as divises no sentido oposto dado por Cornford, permitindo perceber que a

parte hierrquica da linha, juntamente com a proporcionalidade estrutural, demonstra uma

seqncia de dependncia de uma diviso inferior sob a superior. Enquanto Cornford assume

que a diviso A menor que a diviso D, Erickson e Fossa (2006, p. 15), postura aceita nesta

pesquisa, dizem que no final da linha [...], teremos, conseqentemente, o segmento mais

baixo. O segmento mais alto, o mais nobre, representado como tendo o menor

comprimento. A diviso D menor que A porque possui o menor grau de ininteligibilidade.

A linha dividida, desse modo, estrutura-se atravs de uma certa proporcionalidade.

Sobre a questo da proporo (), Erickson e Fossa (2006, p. 13) adotam uma

forma simples de resumir a alegoria da linha dividida a qual servir, aqui, de modelo para

facilitar a compreenso. Plato pede, ao destacar a estruturao do todo da linha e de suas

partes, para dividir um segmento em duas partes desiguais e, logo em seguida, pede para

dividir novamente cada parte segundo a mesma proporo que dividido o todo.

Grfico 2: Grfico de Erickson e Fossa sobre as convenes para a Linha Dividida

20

2.1 RELAES PREDOMINANTES NA ESTRUTURA DA LINHA DIVIDIDA

Plato se refere a situaes epistemolgicas, ontolgicas e cosmolgicas, e estas

constituem a realidade segundo relaes de proporo levando em conseqncia outros tipos

de relaes a exemplo da igualdade, diferenciao e de hierarquizao.11 A principal relao

que se reala a de proporcionalidade pelo fato de que as outras derivam dela. A hierarquia, a

igualdade, a diferenciao e complementaridade passam a existir concomitantemente com a

de proporcionalidade, mas s porque esta serve de estrutura para a linha dividida.

A pergunta que se deve fazer agora a seguinte: como esta relao de proporo?

Ou qual o significado que Plato impe para a relao de proporo? Plato tenta mostrar que

as divises do todo so proporcionais ou anlogas diviso das partes e algo presente em seu

pensamento que entre o mundo imutvel e o mutvel deve existir a mesma proporo que h

entre nesis e dinoia, e entre pistis e eikasia. 12 Assim, tratando sempre da relao entre as

coisas originais e as coisas que destas so cpias, a proporo delimita o campo e graus de

racionalidade ou irracionalidade (maior ou menor inteligibilidade) possudos em cada

realidade na compreenso e interpretao da realidade que est a seu alcance de

entendimento.

Erickson e Fossa (2006, p. 15-16), interpretam a linha dividida como uma alegoria

da estrutura matemtica de razes e proporo em que o Hum, 1, o ponto de partida da

hierarquia, e, ao citar como exemplo a msica conclui: Assim, um oitavo musical

geralmente expresso pela razo 2:1 em vez de 1:2. Desta forma, a linha dividida representa a

proporo A:B:C:D Por este fator, ao colocar a linha no sentido horizontal conforme o

grfico 2, eles preservam a relao de proporcionalidade porque o nmero maior de uma

razo numrica posto sempre antes do nmero menor.

A proporo pode, desse modo, ser expressa segundo o grfico abaixo em que o

smbolo de diviso : representa a colocao de uma diviso sob a outra. importante

lembrar que Plato analisa estas divises tendo como fonte de observao a prpria

manifestao da situao humana:

11 Igualdade, diferenciao e hierarquizao so tipos de relaes na Linha Dividida que no sero

detalhadamente enfatizados porque derivam e dependem da proporcionalidade. 12 Alm da passagem da Linha Dividida (509e 510b), Plato expe a idia de proporo relacionada s

divises, no seguinte trecho: [...] como anteriormente, chamemos cincia a primeira diviso, entendimento segunda, f terceira, e suposio quarta, e opinio as duas ltimas, inteligncia as duas primeiras, sendo a opinio relativa mutabilidade, e a inteligncia essncia. E, assim, como a essncia est para a mutabilidade, est a inteligncia para a opinio, est a cincia para a f e o entendimento para a suposio (534a).

21

a: b:: b:c

c = nosis = idias = inteligncia

b = dinoia = formas matemticas = raciocnio/pensamento

b = pstis = mundo vivido e objetos = crena

a = eikasa = sombras = suposio

Grfico 3: Estrutura proporcional da linha dividida.

Erickson e Fossa (2006, p. 59) interpretam que tanto a parte mutvel quanto a outra so

subdivididas segundo a mesma proporo (lgos) que relaciona o imutvel com o mutvel os

quais so resultados da subdiviso do todo; tem-se, assim, a seguinte relao proporcional:

a+b:b+c::a:b::b:c sendo que os dois termos mdios b e b devem ter a mesma grandeza.

Desse modo, b a mdia geomtrica entre a e c, o que implica que a soma dos segmentos a e

c formam o dimetro de uma semicircunferncia em que o perpendicular no ponto onde os

segmentos correspondendo a a e c se unem b.13 Nesta ocasio h uma identificao entre

dinoia e pistis, implicando que existe uma relao particularmente estreita entre o mundo

visvel e o mundo matemtico. As semelhanas e diferenas entre esses dois segmentos se

evidenciam quando a linha dividida ordenada segundo relao de proporo, pois surge uma

relao hierrquica que dispe sempre uma seco sob a outra, ao enfatizar que cada um

destes segmentos est organizado segundo seu maior ou menor grau de racionalidade.

Na medida em que se acentua a distino na hierarquia, emerge proporcionalmente

uma igualdade. Atravs da proporo hierrquica a igualdade na linha uma igualdade

numrica porque , por exemplo, se a=1 / b=3 conseqentemente b =3 / c=9, da b

numericamente igual ao outro b. 14 A proporo matemtica responsvel pela conexo entre

13 Erickson e Fossa (2006, p. 59) apresentam essa semicircunferncia enfatizando a linha dividida no formato de

uma cruz, afirmam eles: Equivalentemente, a Linha Dividida pode ser transformada em uma cruz, cujos pontos extremos esto todos sobe uma circunferncia de dimetro a+c, como a figura 1 mostra:

Figura 1: A linha dividida inscrita numa circunferncia

14 Semelhante ao exposto, Ericson e Fossa (1996, p. 67), ao falarem do nmero da sabedoria, indicam uma ordenao numrica que serve de modelo para ordenao proporcional do exemplo citado, dizem: O que

22

o inteligvel, imutvel, e a opinio, mutvel, e, ainda, pela ordenao de cada uma das

seces.

Plato, tratando o sensvel como cpia do inteligvel e ao mesmo tempo dizendo

que, por exemplo, b cpia de b, ou b de a, enquadra as divises no mesmo tipo de relao

existente do sensvel com o inteligvel. Um outro comentador, Grube (1987, p. 53), expe, em

sentido semelhante a Erickson e Fossa, que a proporo na linha dividida segue o modelo

abaixo:

Grfico 4: Grfico de Grube para representar a Alegoria da linha dividida

No grfico 4, Grube observa que AD est para DC como CE est para EB e AC para CB, ou

seja, AD:CD :: CE: BE. Cada letra destas indica os limites de uma diviso, sua abertura e

passagem outra. Porm, a diviso principal est no ponto C, que separa e liga o mundo

sensvel ao das idias. 15 Aqui o problema da separao de uma diviso a outra superado

porque, mais que separadas, as divises esto ligadas na constituio da totalidade da linha

dividida. Ao tecer uma comparao da interpretao de Grube com a de Mueller (1999, p.

importa aqui, porm, que a linha dividida discutida por Plato no final do Livro VI da Repblica (509 D 511 E) se refere virtude da sabedoria e tem as seguintes dimenses:

15 Grube em sua obra El pensamiento de Platn expe o seguinte: Resulta as que AD es a D C como C E es a E

B y como A C es a C B (509d):

A

D

C

B

E

La divisin principal se establece em el punto C y representa la divisin entre el mundo sensible y el mundo

de las Ideas. Se h de entender que el punto ms elevado em la escala de la verdad y de la realidad se localiza em B. A, por el contrario, representa el punto ms bajo em que una cosa puede ser denominada existente. (GRUBE, 1987, p. 53)

A

D

C

B

E

23

184) 16, existe em parte uma discordncia porque para esse ltimo h, sim, uma brusca diviso

que separa o sensvel do inteligvel na alegoria da linha dividida.17 Analisando conforme

Grube, mais plausvel admitir que no h rompimento algum como propunha Mueller, o que

h o limite cognoscvel que pode permitir a passagem do sensvel ao inteligvel, ou seja, a

continuidade da proporo dos nveis superiores aos nveis inferiores. 18

2.2 CARACTERSTICAS INERENTES S DIVISES DA LINHA DIVIDIDA

Com efeito, a forma estrutural da linha dividida define quatro segmentos distintos,

mas que se relacionam. Agora importante levantar algumas consideraes rpidas sobre o

que prprio a cada uma dessas seces, isto , analisar as caractersticas inerentes a cada

diviso. Portanto, prope-se responder a pergunta: Qual mapeamento possvel fazer das

caractersticas atribudas s distintas divises da linha dividida? Adota-se, nessa ocasio, a

ordem da prpria exposio de Plato nA Repblica: eikasia, pistis, dinoia, e nesis.

Iglsias (2004, p. 236) traduz, sem comentar muito, os termos eikasia por

conjectura, pistis por crena; mas resolve relacionar dianoia com dianoeisthai no sentido de

processo discursivo usado para nomear no s o mtodo dos matemticos, mas tambm o

prprio estado de alma resultante. Assim, sobre nesis, situao no hipottica, traduz como

nous, ou seja, inteligncia.

A traduo interpretativa de Iglsias similar a de Cornford supracitada que, por

suposio, no sentido de ato de supor, traduz eikasia; tambm por crena quer dizer

pistis; por dinoia quer significar pensamento no sentido de raciocnio articulado; e, em fim,

por nesis, quer dizer intuio racional.

Outra forma de interpretar os significados desses termos , ainda, atravs de Erickson

e Fossa.

16 Grube e Ian Mueller no se confrontam literalmente em seus textos, apenas discordam em pensamento sem

nem citarem um ao outro. O confronto percebido na medida em que se compara os comentrios destes pensadores.

17 No texto Mathematics and dialectic in Republic VI, Mueller (conforme KRAUT, 1999, p. 184) diz: The line and the comparison between the sun and the Good suggest a strong division, but the Cave allegory and the mathematical curriculum suggest a considerable continuity which is likely to have been an important feature of Platos generaloutlook.

18 Mueller (1999, p. 184) se assemelha Cornford em pensar Plato numa linha neo-kantista quando expe que h condies mentais ou modos de cognio que so responsveis pela apreenso dos objetos. Diz ele: Socrates divides the intelligible world by reference to two mental conditions (pathemata) or what we might call modes of cognition.

24

Desta maneira, podemos identificar eikasia como opinio comum; isto , o tipo de conhecimento que surge naturalmente a partir da nossa convivncia com a nossa experincia sensorial. Pistis, em contraste, opinio cientfica porque um tipo de conhecimento que sistematizado e eu procede segundo certos princpios de investigao. Mesmo assim, porm, continua a ser opinio porque p seu objeto o mutvel universo fsico. Quando conseguimos sair da esfera da opinio, chegamos primeiramente dinoia, ou raciocnio, que no lida mais com o mundo fsico, mas alcana os princpios matemticos que estruturam a realidade. Finalmente, alcana-se nesis, ou intuio, a apreenso imediata das idias. (ERICKSON; FOSSA, 2006, p. 57)

Estes identificam eikasia como opinio comum; pistis como opinio cientfica; dinoia por

raciocnio matemtico; e nesis como intuio no sentido de apreenso imediata de idias

transcendentais.

Em todas as trs interpretaes h pontos semelhantes, porque no caso referente s

divises do mundo sensvel, os significados de eikasia e pistis esto sempre voltados ao

mundo discursivo semelhante denominao que Plato atribui chamando-a de dxa, opinio.

Tambm sobre o mundo inteligvel todos concordam que a primeira parte se volta para uma

apreenso de um saber matemtico ou numrico, e a outra, para uma situao no hipottica,

no dizer de Scrates, e, portanto, que s pode ser intuda.

Neste contexto, opta-se, em vrios momentos, pelo uso dos termos na prpria

expresso grega (eikasia, pistis, dinoia e nesis) para conservar o ponto comum que d

condies de um mesmo entendimento entre os tradutores e comentadores.

No mundo visvel, a seco das imagens corresponde s sombras; seguidamente,

aos reflexos nas guas, e aqueles que se formam em todos os corpos compactos, lisos e

brilhantes, e a tudo o mais que for do mesmo gnero (510a). As imagens no so reais, mas

se apresentam como existentes e este fato trs uma inquietao: se as imagens retratam um

reflexo, cpia do mundo, elas so inferiores aos objetos que lhes do origem, portanto, porque

conseguem aprisionar o homem? As imagens so discursos no sentido de suposio sobre

algo ou de uma mera opinio fundada em outros discursos mais rigorosos que definem o ser

dos objetos que compe aquela opinio comum. Estas opinies, compreendidas como

discursos que dizem a verdade sobre o que o mundo , brotam da natureza do homem que est

dominada pela situao de vida chamada eikasia, suposio. No existe algo semelhante a

uma faculdade mental da eikasia, h uma condio natural da alma de alguns homens que j

25

nascem limitados ao nvel das imagens. Portanto, a natureza da alma envolvida na eikasia

lana o homem numa situao grave de ininteligibilidade.

Kraut (1999, p. 11) entende que a concepo dos homens, que vivem no nvel mais

inferior da linha, sobre sua existncia e qualidades, bastante limitada, sendo assim, so

vtimas de sua prpria situao. 19 Este homem nasce no mundo da suposio e vive

submetido a costumes, tradies, normas, e est acorrentado a isto, sem conseguir ver ou

pensar na existncia de outras realidades. Acreditar que as imagens, suposies discursivas

sobre o que compe o mundo, so a nica e verdadeira realidade inerente queles que

possuem uma limitao na natureza de sua psich porque possuem apenas a capacidade de

partilhar uma opinio comum e no uma opinio com a maior carga de inteligibilidade. O

homem, que raciocina a partir da suposio, vive segundo um grande mito, pois o que h em

seu mundo so imagens, so discursos representantes de uma outra realidade. Portanto, o fator

ilusrio e irreal so as caractersticas marcantes dessa diviso.

Como no possvel enxergar outro mundo, constri um mundo baseado em

suposies. O que h de real ou irreal assume um significado imposto pelo contexto de

suposies ao permitir entender o irreal como real j que impossvel pensar outra realidade.

Quando se fala de irreal ou ilusrio no se est confirmando a existncia de coisas falsas, mas

que h nveis que nos do um acesso menos claro e, portanto, mais sujeito ao erro, pela

prpria natureza do estgio da realidade com a qual lidam. E se a suposio transforma o

irreal em real para os que esto acorrentados em sua natureza psquica, surge uma outra

caracterstica neste nvel, esta o grau mais elevado de irracionalidade, um tipo de no

cincia porque o homem no consegue entender que o que est a sua frente no o que parece

ser.

A segunda parte da linha dividida, crena, pistis, apresenta um grau de clareza

superior outra parte que mais irracional porque nela se concentra tudo o que abrange a

ns, seres vivos e a todas as plantas e a toda espcie de artefatos (510a) dos quais as

sombras, suposies e smbolos derivariam. Todo o saber que se ocupa da fabricao de

objetos, dos estudos sobre as coisas materiais, dos corpos e do que os movimenta, predomina

nesta seco.

A caracterstica principal desse novo grau de racionalidade, superior ao que era

ilusrio e irreal, , no dizer de Iglesias (2004, p. 251) ao interpretar Plato, a opinio

19 Kraut (1999, p.11), em seu artigo intitulado Introduction to the study of Plato, afirma: Their conception of

what exists and of what is worth having is so severely limited and the deception by which they are victimized is so systematic that cannot even recognize that they are confined, and would not immediately regard na interruption in their routine ways of thought as a liberation.

26

verdadeira. Nesse sentido, no uma simples opinio fundada nas suposies das sensaes,

mas uma opinio verdadeira, baseada na investigao rigorosa sobre o mundo.

Graas diminuio da ininteligibilidade nessa diviso atravs do estudo rigoroso

dobre as coisas que constituem o cosmo e a ns que as imagens podem ser explicadas como

puras imagens e no como entidades reais. Assim, seres humanos, todos os outros seres vivos

e as coisas que o homem pode modificar e analisar, ou seja, tudo que pode ser estudado

sistematicamente sobre o mundo fsico, corporal ou da persuaso discursiva, caracterizam esta

diviso. Na alegoria da caverna, Plato expe, fazendo referncia a esse saber mais aguado,

o seguinte: homens que transportam toda espcie de objetos, que o ultrapassam: estatuetas de

homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espcie de labor; como natural, dos

que os transportam, uns falam, outros seguem calados (514c,515a). Na pistis, geradora da

eikasia, v-se a elevao da inteligibilidade a um grau superior capaz de entender a

produtividade humana, o mundo, o prprio homem e a vida prtica que o envolve.

A outra diviso da linha dividida apresenta o primeiro grau de inteligibilidade fora do

mundo da dxa, o humano possui em sua alma o poder de inteligir saindo da vida prtica e

apreendendo as formas matemticas. Quando Plato discursa sobre a investigao que a alma

naturalmente faz neste nvel, diz que o desenvolvimento de tal atitude deve prosseguir a

partir de hipteses, sem poder caminhar para o princpio, mas para a concluso (510b). O

que significa dizer que a alma ao investigar parte de hipteses para a concluso? A resposta

dada por ele mesmo.

Suponho que sabes que aqueles que se ocupam da geometria, da aritimtica e cincias desse gnero, admitem o par e o mpar, as figuras, trs espcieis de ngulos, e outras doutrinas irms destas, segundo o campo de cada um. Estas coisas do-nos por sabidas, e, quando as usam como hipteses, no acham que ainda seja necessrio prestar constas disto a si mesmo nem aos outros, uma vez que so evidentes para todos. E, partindo da e analisando todas as fases, e tirando as conseqncias, atingem o ponto a cuja investigao se tinha abalanado. (510c)

A inteligibilidade no se limita a ordenar o caos do mundo fsico e prtico, mas, saindo do

campo da opinio, consegue alcanar as formas matemticas que estruturam o mundo. Como

j foi denominado, esta seco superior dinoia ou pensamento e o saber que lhe inerente

o matemtico. A referncia acima demonstra o saber prprio dinoia, que um saber

hipottico que atinge uma concluso esperada. Qual sua principal caracterstica? Se h uma

27

relao proporcional na hierarquizao dos nveis de realidade, o nvel da opinio verdadeira

se iguala ao das formas matemticas, pois ambos so numericamente e proporcionalmente

iguais apesar de um est posto sob o outro. Portanto, pode-se afirmar que uma de suas

principais caractersticas a de mediar o conhecimento apreendido do mais alto grau de

racionalidade aos graus inferiores.

Por fim, tem-se o mais elevado nvel na hierarquizao ontolgica e epistemolgica,

o nvel da nesis ou inteligncia. Em alguns casos Plato utiliza nesis para fazer referncia

s duas divises do inteligvel, mantendo o termo dinoia para a primeira seco, e, epistme

para o que no final do Livro VI chamado de nesis. Aqui, segue a orientao de Iglsias

quando diz:

Em 534a (Repblica VII), Plato volta a essas divises e usa uma nomeclatura um pouco diferente. Os dois pathemata do sensvel conservam seus nomes, mas so chamados, em conjunto, dxa. No inteligvel, ele renomeia a noesis como epistme e reserva noesis como o nome geral que abarca epistme e dianoia. Essa variao terminolgica no aparentemente significativa. Plato, como se sabe, considera sofstica a preocupao excessiva com a coerncia no uso das palavras, uma vez que o importante saber a que a palavra se refere. Os termos noesis e dianoia no escapam a essa falta de rigor; o importante manter, no mesmo contexto, o contraste estabelecido entre eles, lembrando que, em outros contextos, eles podem ser sinnimos. Mas, considerando que um certo rigor e coerncia no deixam de ter suas vantagens, vou usar o termo dxa como o nome comum das duas apreenses referentes ao sensvel, e conservar os nomes dianoia e noesis para as duas seces do inteligvel. (IGLSIAS, 2004, p. 236-237)

Plato, no livro VII, conserva os termos empregados s divises do sensvel e utiliza uma

nomenclatura diferente para as divises do inteligvel. Assim, ao considerar o significado dos

termos dentro do contexto que Plato expe a linha dividida, tal como faz Iglesias, 20 no se

dar importncia variao entre noesis () e epistme (), pois se concorda

que Plato no est preocupado com a excessiva coerncia no uso das palavras, mas ao que

20 Segue o trecho em grego referido por Iglesias para ilustrar os termos que se contrastam: ,

, , , ,

[534a] ,

,

, , ,

(533e-534a). O termor foi usado no lugar de conforme o final do

livro VI.

28

ela se refere. Portanto, o termo utilizado para indicar o nvel mais alto da linha dividida ser

noesis ().

Noesis a seco () que conduz ao princpio absoluto, parte da hiptese, e,

dispensando as imagens que havia no outro, faz caminho s com o auxlio das idias (510b)

ou, utilizando outras palavras de Plato, o homem, aqui, seria capaz de contemplar o que h

no cu, e o prprio cu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua [...].

Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar (516b). Na nesis o

que existe a contemplao do theios ( - palavra equivalente ao adjetivo divino) das

coisas puramente inteligveis, ou seja, de idias e princpios que transcendem o prprio

raciocnio humano. Erickson e Fossa (2006, p. 60) nomeiam este nvel de intuio, dizem: o

modo mais alto, como acabamos de ver, nesis, a intuio direta e imediata das idias, ou

princpios transcendentais. Para eles, as pessoas que o alcanam so capazes de uma

apreenso imediata das idias sem mediao pela linguagem.

imediata porque no mediada por qualquer metodologia de investigao. No h uma srie de etapas que devem ser seguidas para a obteno deste tipo de conhecimento, pois uma apreenso simples. Assim sendo, nesis no mediada, em particular, pela linguagem e, portanto, no pode ser ensinada. H, porm, um meio lingstico que pode ser utilizado para levar o aluno a nesis. Plato chama este meio de dialektik (dialtica). um mtodo heurstico que leva o aluno a abandonar seus pressupostos limitantes para que possa chegar no ponto de insight. O prprio insight, porm, no pode ser compreendido (nem justificado), pela dialektik. A nica funo da dialtica , por assim dizer, tornar o ambiente propcio para que a nesis acontea. Mesmo assim, como diz a Bblia, so muitos os chamados, mas poucos os escolhidos. (ERICKSON; FOSSA, 2006, p.60)

Na nesis, no existe mais a mediao da linguagem em que um homem pode ensinar a outro

o que vivencia. Apenas pode ser ensinado os passos pela dialtica para que a pessoa consiga o

insight e passe a inteligir uma situao transcendental. Seguindo um caminho paralelo

Erickson e Fossa, Iglesias (2004. p. 249) expe este nvel como uma situao, tambm, no

hipottica, que alcanada no movimento de um salto aps o processo dialtico.

A dialtica seria vista como o instrumento necessrio para que se chegue a um ponto onde o salto final, com apreenso do no hipottico, possa ser feito, mas no aquilo mesmo que realiza a cognio, aquilo mesmo sem o

29

que no h apreenso cognitiva a partir do princpio, i.e.,cognio propriamente dita dos prprios inteligveis. (IGLSIAS, 2004, p. 249)

A dialtica simplesmente um instrumento para que se atinja o momento do salto final, o

qual mergulha o homem na contemplao dos prprios inteligveis. 21 Em um ponto, esses

comentadores concordam que nosis no posse ser mediada pela linguagem, e, o que o

salto para Iglesias, chamado por Erickson e Fossa de: o insight. O que est aps o salto

e constitui o ps insight so objetos frutos da intuio intelectual no mais mediados pela

linguagem, so totalmente imediatas porque independem de qualquer tipo de investigao.

Qual a principal caracterstica deste nvel? Se os objetos da intuio so idias e o

homem assume uma postura de contemplao diante delas, assim, a principal caracterstica

o elemento divino no sentido de elementos puramente inteligveis. Plato, dessa forma,

ressalta que a esfera do divino, ponto que no s o mais elevado na clareza sobre a

apreenso da realidade, mas a prpria claridade, impe um sentido e fundamentao a todas

as situaes que foram tratadas como realidades.

As idias conduzem a um princpio absoluto que est no topo da organizao

hierrquica e responsvel pela harmonia da estrutura de toda a realidade. Como cita Hare

(2000, p. 67), nisto ele est certo, as idias parecem estar organizadas numa espcie de

cadeia quase fsica em que os itens inferiores vinculam-se ao bem no topo. O vnculo, na

afirmao de Hare, reporta-se apenas s idias, realidade constituinte da diviso EB, segundo

o grfico de Grube (1987, p. 53) que seguem para o princpio Bem. O que se deve entender

que h um vnculo com o princpio bem, porm no s das idias no inteligvel, mas de todos

os outros nveis figurados na linha dividida.

Se a realidade percebida pelo homem da suposio so cpias da realidade da crena,

e esta realidade cpia da realidade matemtica presente na diviso mais inferior do

inteligvel, que, por sua vez, so imagens ou cpias das idias, aquela situao na suposio

participa, tambm, ainda que de maneira distante, de uma ligao com o princpio Bem. A

dependncia de uma realidade outra vista no sistema de proporo na alegoria da linha,

pois graas definio numrica do ponto mais alto que a forma numrica dos outros

definida em uma seqncia de participao e de subordinao.

21 Iglsias no se preocupa a apontar os elementos cognitivos dos inteligveis, tal como fazem Erickson e Fossa

(2006, p. 61) ao indicar a idia do Hum, identidade, diferena e ser. (Ver no ltimo captulo deste trabalho quando se comenta a harmonia pura na nesis).

30

2.3 LINHA DIVIDIDA: IMAGEM DA ESTRUTURA DA PSICH

Com efeito, a principal caracterstica da eikasia, suposio de aparncias, imagens,

a iluso ou o mais alto grau de ininteligibilidade enquanto panorama que esconde uma outra

situao mais iluminada; da pistis, o discurso sobre a vida prtica e sensvel; da dinoia, o

raciocnio matemtico; e da nesis, o divino enquanto intuio intelectual de uma situao

no mais mediada pela linguagem. Sendo que a primeira uma mera opinio; a segunda est

voltada para as coisas prticas, fsicas ou cosmolgicas e a ns, enquanto uma opinio mais

rigorosa; a terceira caracterstica um conhecimento mediato que liga o transcendente ao

fsico; e a ltima, a contemplao pelo humano do que existe de divino22.

Ora, pode-se entender, agora, o que a linha dividida? Na medida em que alegoria,

a linha dividida imagem discursiva sobre algo que possue maior inteligibilidade; porm, do

mesmo modo que o sensvel cpia do inteligvel, a linha dividida imagem da estrutura

onto-epistmica e cosmolgica de cada pessoa. No algo externo e fora do humano, mas

algo que constitui a estrutura da psich de cada um. A linha dividida mais uma alegoria de

Plato que diz como so os fatores estruturadores da forma de pensar e sentir o mundo, da

psich, parte psicolgica, da personalidade de cada pessoa.

No incio, falava-se de uma fuso entre o epistemolgico, o cosmolgico e o

ontolgico em Plato. Mas no se pode esquecer que o lgos ou a proporo, razo, existente

na alegoria da linha dividida, prope uma subdiviso ao todo e as partes dela mesma. Esse

todo e essas partes referem-se a duas situaes que so naturalmente distintas. Uma a dxa

(dxa - opinio, equivalente s divises do sensvel) e a outra a epistme ( -

cincia, equivalente s divises do inteligvel). Assim, so duas divises que coexistem

constituindo uma nica totalidade. Totalidade em que dxa e epistme esto

proporcionalmente unidas, formando uma nica realidade, mas que compreendida de forma

diferente. O homem que participa do nvel mais alto do inteligvel (nesis) consegue

compreender essa totalidade, no entanto, os que esto nos limites da dxa pensam que a

totalidade da realidade se restringe na sua forma de compreender as coisa.

Contextualizando dessa maneira, declara-se, neste momento, ao aproveitar uma

afirmao de Erickson e Fossa (2006, p. 73) que diz: tanto Cephalus quanto Polemarchus,

quanto Thrasymachus, so prisioneiros que nunca foram libertos, que possvel ver no

22 Por divino no se deve entender no sentido cristo, mas o divino enquanto capacidade humana re

racionalidade.

31

discurso de Cfalo e Polemarco as caractersticas de um homem preso nos limites da eikasia,

e Trasmaco, de um homem nos limites da pistis.

Cfalo, Polemarco e Trasmaco, dessa forma, seriam personagens representantes do

mundo da dxa? Quanto aos outros principais personagens da Repblica, ou seja, Glucon,

Adimanto e o prprio Scrates, estar cada um distribudo segundo as divises da linha

dividida? No prximo captulo, resgata-se a noo de justia de Polemarco e Trasmaco, no

que h de obscuridade do mundo sensvel. Depois, em outro momento, apresenta-se Glauco e

Adimanto, mas no como homens livres do mundo discursivo, e, sim, como figuras que esto

no sensvel e exigem uma outra situao de vida. Por fim, surge o personagem Scrates,

homem da episteme, acompanhado de outro personagem que antes apresentou um discurso em

nvel da suposio, mas que demonstra possuir uma natureza divina em um estgio j bem

avanado.

32

3 JUSTIA NO SENSVEL: UM OLHAR A PARTIR DO PRPRIO SENSVEL

A justia o tema central de debate nA Repblica de Plato. Scrates, aps ser

convidado por Cfalo a visitar seu lar, encontra na casa defensores das mais diversas linhas de

pensar. Entre eles esto Polemarco, considerado herdeiro de Cfalo; Trasmaco, o sofista;

Adimanto e Glauco, apresentados como irmos 23 de Scrates nA Repblica. Para refletir

sobre a justia, Scrates trava um debate com todos estes pensadores.

Erickson e Fossa (2006, p. 73), ao fazerem referncia ao mundo sensvel, concluem

que tanto Cephalus (sic) quanto Polemarchus (sic), quanto Thrasymachus (sic), so

prisioneiros que nunca foram libertos. Se, de fato, estes homens so prisioneiros da doxa,

seus discursos se limitam na realidade que vivenciam. Como cada um deles promove uma

definio prpria sobre a justia; possvel que essa conceituao represente a justia olhada

a partir do mundo sensvel? Neste captulo, o estudo enfatiza a justia nos discursos de dois

desses pensadores: Polemarco e Trasmaco, comparando-os, depois, com a estrutura da

alegoria da Linha Dividida. Por que Cfalo fica de fora desta anlise? A questo sobre Cfalo

ser retomada mais adiante, pois h uma contradio entre sua postura de vida e seu discurso

enunciado, coisa no observada em Polemarco e Trasmaco, que precisa ser esmiuada.

Porm, convm iniciar logo com a exposio de Cfalo 24 uma vez que Plato o utiliza para

inaugurar a apresentao da problemtica sobre o ser da justia.

3.1 UM DISCURSO NO NVEL DA EIKASIA: A HERANA DE POLEMARCO

Depois de uma breve conversa com Cfalo, homem cheio de fortunas e de idade bem

avanada, Scrates pergunta-lhe sobre o maior benefcio que uma vida provida de riquezas

materiais pode dar ao ser humano. A resposta de Cfalo apela para a prtica da justia, no

sentido de que, para o homem comedido e prudente (331b1), a posse de riquezas facilita o

exerccio do ser justo. Assim, define as qualidades da justia do seguinte modo: No

ludibriar ningum nem mentir, mesmo involuntariamente, nem ficar a dever, sejam sacrifcios

23 Plato apresenta Glucon e Adimanto como irmos de Scrates, mas, nas em sua vidas histricas, os dois so

irmos de Plato. 24 No ltimo captulo deste estudo ser retomada a questo sobre Cfalo em que um dos pontos a tentativa de

demonstrar qual significado possui essa passagem. No momento, convm simplesmente apresent-la sem maiores detalhes.

33

aos deuses, seja dinheiro a um homem, e depois partir para o alm sem temer nada (331b2-

b5). Para Watanabe (2001, p. 285), Cfalo um homem rico, dono de indstrias de armas e de

grandes propriedades, bastante conhecido de sua poca e o enunciado sobre justia est de

acordo com seu cargo de poderoso comerciante. Ento, sua afirmao est voltada para um

grau de entendimento que limita o homem ao nvel mais inferior do mundo sensvel, porque o

fato de devolver algo que se tomou antes pode, s vezes, parecer justo e em outros momentos

aparentar injustia, detalhes estes que giram em torno de interesses particulares. 25

Para Scrates, o discurso de Cfalo no diz o que a justia, alm de apresentar um

argumento equivocado para os propsitos de uma reflexo rigorosa com os homens presentes

no local. Assim, dizer a verdade e restituir aquilo que se tomou (331d2) de algum no

pode ser uma qualidade da justia. Como diz Neschke-Hentschke (2005, p. 243), sobre

justia em Plato, a definio de justia deve procurar a idia do justo, e no designar um ato

justo particular. Ela deve dizer em virtude de que todos os atos justos particulares so justos. 26 A definio de Cfalo no a que deve ser atribuda justia. Plato, atravs dos

personagens Cfalo e Scrates, inicia a exposio sobre a justia em uma situao que no

seja mutvel.

Scrates parece refutar Cfalo que imediatamente socorrido por seu herdeiro.

Polemarco o herdeiro e recorre aos dizeres do poeta Simnides, chamado por Scrates de

homem sbio e divino (331e7), ao enfatizar que se for para dar-lhe crdito necessrio

admitir que Cfalo est correto. Cfalo, nesse momento, sai de cena e entrega a discusso para

Scrates, porm Polemarco toma o discurso para si, dizendo: Ento no sou eu perguntou

Polemarco o teu herdeiro? (331d9). Polemarco, mesmo que historicamente no seja

parente de sangue de Cfalo, 27 torna-se seu herdeiro por parte do discurso. Sobre essa tomada

de herana, o que Strauss diz ser a herana intelectual de Cfalo (1996 citado por RUFINO;

MEABE, 2001, p. 80. Traduo nossa), Cfalo faz apenas rir e dizer sem dvida,

absolutamente (331d11), saindo ao mesmo tempo para cuidar do sacrifcio a uma deusa.

25 Scrates refere-se confuso de tratar uma mesma coisa como sendo composta de duas qualidades opostas. A

justia no pode ter uma qualidade que seja mesclada de contradio. O exemplo usado o seguinte: se algum recebesse armas de um amigo em perfeito juzo, e este, tomado de loucura, lhas reclamasse, toda a gente diria que no se lhe deviam entregar, e que no seria justo restitu-las, nem to pouco consentir em dizer toda a verdade a um homem nesse estado (331c).

26 Ada Neschke-Hentschke (2005, p.243) argumenta no original da seguinte forma: La dfinition du juste doit en effet rechercher l'Ide du juste, et non dsigner un acte juste particulier. Elle doit dire in vertu de quoi les actes justes particuliers sont justes.

27 Na traduo de Pereira (PLATO, 1996, p.10), ela refora em uma nota de rodap a filiao hereditria entre Cfalo e Polemarco dizendo: Jogo de palavras baseado no facto de Polemarco ser o filhos mais velho de Cfalo.

34

Polemarco entende que a justia dita por Simnides a mesma de Cfalo, assim

expe: justo restituir a cada um o que se lhe deve (331e). Scrates assume a postura de

reflexo sobre o que a justia, uma vez demonstrado que a justia no deve ser interpretada

segundo Cfalo. Cornford (PLATO, 1945, p. 08) tem xito ao dizer que Polemarco no

capaz de entender a frase de Simnides porque no se ateve aos significados das expresses

restituir o que se lhe deve, fora da perspectiva de dever um bem material ou algo

semelhante. 28 A interpretao de Polemarco , portanto, limitada por que reduz o argumento

de Simnides ao argumento de seu velho pai.

O que a justia para Polemarco e qual a contribuio desse seu entendimento para a

definio da justia em Plato? Quem responde o prprio Scrates.

Polemarco defende o discurso de Cfalo, porm, quando Scrates fora uma maior

reflexo ao demonstrar que no h sentido na colocao do velho, o defensor desse discurso

faz uma reelaborao de suas afirmaes ao buscar uma nova interpretao para a frase de

Simnides, diz: seguramente outra coisa, por Zeus! O parecer dele que aos amigos se

deve fazer bem, e nunca mal (332a10). Cornford (PLATO, 1945, p. 12) comenta que essa

redefinio est em consenso com a moral grega na poca, questionada em Scrates, pois esta

no se preocupava em dizer que o homem devia fazer o que bom e reprimir o que danoso. 29 Assim, Scrates, ao dialogar a respeito do significado da justia, tenta ainda demonstrar que

a exposio de Polemarco est imatura porque se mantm no nvel das aparncias e das

sensaes.

Nesse confronto com Polemarco, Scrates segue dois caminhos: primeiro, o

argumento que retrata a utilidade do justo e da prpria justia, enquanto o segundo envolve o

significado do prprio Ser da expresso de Polemarco, por exemplo, o significado da

amizade, inimizade, aparncia, Ser. Scrates comea a questionar sobre o ser dos conceitos,

porm, somente mais tarde consegue refutar Polemarco, fato que no ocorre enquanto o

discurso gira em torno da utilidade.

Com efeito, Scrates tenta resgatar uma definio que imponha a perfeio sobre a

justia e pergunta: A justia no a perfeio dos homens? (335c). Para conduzir

Polemarco a entender essa questo, Scrates apela primeiramente para a utilidade do homem

justo e da justia, e diz:

28 Cornford (PLATO, 1945, p. 08) questiona: Polemarchus, too, has never thought out the implications of

defining justice as giving every man his due. W hat is it that is due, and towhom? 29 No original l-se: This was a traditional maxim of Greek morality, never doubted till Socrates denied it: no

one had ever said that we ought to do good, or even refrain from doing harm, to them that hate us (PLATO, 1945, p. 12).

35

- E o justo? Em que atividade e para que servio mais capaz de ajudar os amigos e prejudicar os inimigos? - No combate contra uns e a favor dos outros, me parece. - Bem. Mas na verdade, meu caro Polemarco, para quem no estiver doente, o mdico intil. - verdade. - E o piloto, para quem no andar embarcado. - Sim. (332e4-e12)

O justo o homem capaz de prejudicar o inimigo? Para Polemarco, o justo o homem aliado

aos amigos, e a justia , neste momento, conveniente ao grupo de tal homem. A justia est

a favor dos amigos e contra os inimigos. Argumento que demonstra certa afinidade com o

nvel mais obscuro da linha dividida uma vez que leva a justia ao nvel dos sentimentos e das

paixes. Polemarco permanece em defesa de seu argumento enquanto Scrates elabora uma

refutao no decorrer do dilogo.

- Logo, tambm intil o justo para quem no estiver em guerra? - No me parece l muito. - Ento a justia til tambm em tempo de paz? - .[...] - E ento? A justia, para que utilidade ou aquisio dirias que vantajosa em tempo de paz? - Para os contratos, Scrates. - Referes-te a parcerias ou a qualquer outra espcie de contratos? - A parcerias, sem dvida. (332e13-333a16)

Scrates questiona Polemarco e faz surgir uma nova hiptese sobre a justia. A justia no s

til durante os conflitos, na iniciativa de prejudicar os inimigos, mas tambm til entre os

amigos na medida em que ela deve conter um valor, no sentido de utilidade, durante a

ausncia de guerras. Assim, ainda voltada vida prtica do homem da eikasia, a justia tem

sua utilidade no cumprimento de contratos e na formao de parcerias. Neste momento, a

noo de justia no dilogo entre polemarco e Scrates refere-se a um elo formal entre

pessoas, regido por um termo de responsabilidade contratual ou de parcerias. Justia no s

mais til enquanto uma ao conveniente a um grupo em prejuzo de outro, mas tambm

enquanto uma norma que, ao determinar as relaes pessoais de confiana entre os que no

esto em conflito, impe uma harmonia. Porm, por ser norma semelhante s imagens vistas

36

na eikasia, pois a norma tende a ser compreendida como algo que possui existncia prpria,

coisa que no , e ordena a vida das pessoas.

Scrates, portanto, resolve seguir a conversa e arrastar Polemarco para outro tipo de

debate.

- E em que parceria que o homem justo melhor companheiro do que o citarista, tal como este melhor do que aquele a quem se associar para tocar? - Na de dinheiro, em minha opinio. [...] - Ento quando que, sendo preciso fazer uso de ouro ou prata, o justo ser mais til do que os outros? - Quando se tratar de fazer um depsito que fique a salvo, Scrates. [...] - Logo, quando o dinheiro est sem se utilizar que a justia, por isso mesmo, til? (333b8-d1)

O debate coloca o dinheiro como preocupao principal da justia. As parcerias em que o

justo pode ser til so as voltadas para as relaes financeiras quando for necessrio guardar

um bem material ou dinheiro. Dessa forma, Scrates faz uso de um recurso de linguagem que

mantm a reflexo no nvel da compreenso de Polemarco, ou seja, no nvel do mundo

sensvel, porm com a iniciativa de ergu-lo at o inteligvel ou at onde suas aptides

naturais permitirem.

Aps desenvolver mais profundamente o prprio pensamento de Polemarco, Scrates

segue com uma primeira refutao.

- E em tudo o mais, e para cada coisa, a justia intil, quando nos servimos dela,e til, quando no nos servimos. - Provavelmente. - Ento, meu amigo, a justia no poderia ser uma coisa l muito sria, se se dar o caso de ser til para as coisas que no so utilizadas. Mas vamos examinar o seguinte: acaso o mais hbil a bater-se na luta, quer no pugilato quer em qualquer outra modalidade, o no tambm para se defender? - Inteiramente. [...] - Portanto, se o homem justo hbil para guardar dinheiro, tambm hbil para o roubar. - Assim o d a entender o raciocnio. - Logo, o homem justo revela-se-nos, ao que parece, como uma espcie de ladro, e isso provvel que o tenhas aprendido em Homero. [...]. Parece, pois, que a justia, segundo tua opinio, segundo a de Homero e a de Simnides, uma espcie de arte de furtar, mas para vantagem de amigos e dano de inimigos. No era isso que dizias? (333d13-334b7)

37

O raciocnio de Scrates consome Polemarco, uma vez que este no consegue mais apresentar

um contra-argumento. Plato utiliza os dois personagens demonstrando quem tem o poder

sobre o discurso. Scrates quem controla o debate e fora os seus interlocutores a

silenciarem diante de seus questionamentos. Segundo o desenrolar do dilogo, a justia

demonstra-se til quando a coisa30 no utilizada e intil quando a coisa utilizada. Portanto,

Scrates conclui que, se a justia s til quando as coisas no so utilizadas, ento no pode

ser algo importante. E ainda, se as qualidades da justia seguirem a interpretao alcanada

at o momento atual do debate, elas demonstram certa confuso porque se sua utilidade

guardar bens materiais, tambm servir para roub-los, pois, no nvel do discurso que

Polemarco se encontra, na medida em que algum for hbil em realizar alguma atividade, ser

ao mesmo tempo hbil para se defender dela. Assim, Scrates conclui a refutao das

afirmaes de Polemarco, usufruindo o argumento da utilidade do homem justo e da justia.

Mas ir Polemarco aceitar a refutao de Scrates? No. Mesmo silenciando e

concordando durante a construo do raciocnio de Scrates, no se d por vencido e afirma:

J no sei o que dizia. No entanto, ainda continua a parecer-me que a justia auxiliar os

amigos e prejudicar os inimigos (334b8). Polemarco continua irredutvel. No adianta

Scrates apelar para a questo da utilidade da justia, uma vez que o til e a vida prtica so

as caractersticas principais do nvel onto-epistmico e cosmolgico vivenciado por

Polemarco, ou seja, o nvel da eikasia, em um primeiro momento, e depois da pistis, na

perspectiva da linha dividida.

possvel observar que em uma primeira fase o dilogo coloca a justia sob a pauta

do nvel mais inferior do sensvel atravs da exposio de Cfalo e de sua continuao por

Polemarco, porm, quando Scrates leva Polemarco a criar um discurso prprio, este se

desenvolve por uma gradao ascendente que sai do simples afeto entre amigos e contra

inimigos at as relaes contratuais financeiras, pois, como afirma Scrates no livro IX dA

Repblica, o homem do sensvel em que pesa na sua natureza a violncia dos desejos

relativos comida, bebida, ao amor e a tudo quanto o acompanha; e chamamos-lhe amiga

do dinheiro, porque sobretudo com dinheiro que se satisfazem os desejos dessa espcie

(580e3-581a1), um homem que tem como amigo o dinheiro e o lucro (581a3-a9). 31 Scrates

30 A expresso coisa est exposta no sentido de bens materiais ou dinheiro. 31 Plato liga os desejos e prazeres a trs espcies de homens, diz: por isso que dizemos que so tambm trs

as espcies de homens, o filsofo, o ambicioso, o interesseiro. Exatamente. E trs espcies de prazeres, correspondentes a cada uma delas (581c3).

38

se apropria da utilidade da justia envolvendo as relaes afetivas e lucrativas por que so

questes do mundo vivido por Polemarco.

Apelar para a utilidade da justia no convence Polemarco. Scrates, ento, muda a

estratgia do debate e comea a questionar o significado dos termos empregados na

expresso. O ataque direcionado no mais para o todo da expresso, mas para os termos que

a compem. Scrates pergunta: A quem chamas amigos: aos que parecem honestos a uma

pessoa, ou aos que o so de facto, ainda que o no paream? E outro tanto direi dos

inimigos? (334c1-c4). Polemarco responde: natural disse ele amar a quem nos parece

honesto, e odiar quem nos parece mau. (334c5-c6). Nesta resposta, Scrates define o tipo de

raciocnio de seu interlocutor uma vez que percebe em Polemarco uma preocupao apenas

com a aparncia e no com o ser das coisas. Na discusso sobre a Linha Dividida, o nvel das

aparncias fica restrito s divises do mundo sensvel, pois as imagens constituem um mundo

no existente, mas que parece ser o contexto da vida para os que no conseguem ver algo

mais que tais iluses.

Scrates inicia uma demonstrao a Polemarco do valor superior do ser sobre o

parecer. Na definio de Scrates, amigo no o que unicamente parece ser honesto, mas o

que parece e na realidade honesto. O que parece, mas no , aparenta ser amigo, sem o ser.

E, sobre o inimigo, a definio a mesma (334e12-335a2). Porm, ser honesto e justo no

ser bom para uns e mau para outros, no ajudar os amigos e prejudicar os inimigos, porque

se o justo necessariamente o homem bom, este no pode praticar o mau. Assim, Scrates

conclui:

- Logo, Polemarco, fazer mal no a ao do homem justo, quer seja a um amigo, quer a qualquer outra pessoa, mas, pelo contrrio, a ao de um homem injusto. - Parece-me inteiramente verdade o que dizes, Scrates. - Portanto, se algum disser que a justia consiste em restituir a cada um aquilo que lhe devido, e com isso quiser significar que o homem justo deve fazer mal aos inimigos, e bem aos amigos quem assim falar no sbio, porquanto no disse a verdade. Efetivamente, em caso algum nos pareceu que fosse justo fazer mal a algum. - Concordo disse ele. (335d14-e8)

O homem injusto quem exercita o mal, e quando um homem parece ser justo, sem o ser, este

est manifestando a totalidade de sua injustia. Portanto, o homem que parece justo, mas

prejudica seus inimigos e beneficia os amigos, plenamente injusto. Dessa forma, a

39

afirmao de Simnides sobre a justia no pode ser interpretada segundo o entender inicial

de Polemarco. Scrates consegue finalmente silenciar seu interlocutor, ao demonstrar que o

significado dado por ele (Polemarco) justia no uma concluso formada por um homem

sbio, mas uma sentena criada por homens que visam o poder e lucro:

- Mas sabes de quem me parece que essa sentena que diz que justo fazer bem aos amigos e mal aos inimigos? - De quem ? - Penso que de Periandro, de Perdicas ou de Xerxes, de Ismnias de Tebas ou de qualquer outro homem rico, que se tinha na conta de poderoso. - Dizes uma grande verdade. (336a1- a8)

Plato, apresentando Simnides como sbio admirado por Scrates, no poderia dizer que

aquele proclamaria uma sentena em defesa da aparncia imperfeita, uma vez que, para

Scrates, justia cabe a perfeio dos homens. Afirmar que fazer bem aos amigos e mal aos

inimigos uma ao justa uma postura de homens que visam o lucro e se denominam

poderosos por deterem muitas riquezas materiais e no uma postura de um sbio, ou seja, de

um amigo da sabedoria. Aqueles so homens que disseminam a injustia sob a aparncia da

justia. O ser justo e a justia no esto na aparncia ou nas imagens.

Scrates, aps expor sua refutao a Polemarco, questiona o que , ento, a justia.

Comenta: uma vez que parece que a justia e o que justo no eram nada disto, que outra

coisa poder dizer-se que so? (336a9-a11). O que a justia? A justia no o que disse

Polemarco, mas o caminho para uma plausvel resposta j est indicado na afirmao de

Simnides. A tarefa conseguir entender o que queria dizer este sbio poeta.

3.2 UM DISCURSO NO NVEL DA PISTIS: O RUGIDO DA FERA TRASMACO

No livro I de A Repblica, Plato expe a refutao de Polemarco e imediatamente

apresenta a preocupao do personagem Scrates a retomar a pergunta inicial: o que a

justia? Porm, o debate interrompido por outro personagem: Trasmaco. Para Rufino e

Meabe (2001, p. 92) a figura enrgica, cheia de fora, seguro de si mesmo e dominante de

Trasmaco emerge quando Polemarco e Scrates esgotaram o comentrio sobre a frase de

40

Simnides, 32 porm preciso ressaltar que, de fato, o debate de Scrates com Trasmaco s

tem incio aps terminar o dilogo com Polemarco, mas no convm entender que cessou a

investigao do significado da expresso de Simnides, essa busca continua nos demais

debates dA Repblica. Assim, a resposta sobre a justia no definida, mas impulsionada

para um outro tipo de dilogo mais profundo que o intercalado por Polemarco. Scrates no

est mais diante de um discurso tmido como o que enfrentara, o confronto agora com um

homem aparentemente maduro e conhecedor do mundo discursivo.

Uma fera sedenta de sangue Trasmaco, nas palavras de Scrates: lanou-se sobre

ns como uma fera, para nos dilacerar (336b6). A primeira atitude de Scrates demonstrar

que foi capaz de se anteceder ao movimento da fera, observando primeiro os seus passos

(olhar) antes dela perceber-lhe 33. Em outras palavras, Scrates observou a inquietao de

Trasmaco e j esperava seu ataque, porm o contra-ataque de Scrates com uma arma bem

mais sutil que o ataque feroz e imediato: a calma, a ironia e a esperteza so as armas que

domaro a fera Trasmaco.

Polemarco foi o herdeiro do discurso de Cfalo e, por este fator, iniciou seu

raciocnio no nvel mais inferior da linha dividida, porm Scrates consegue lev-lo a uma

maior rigorosidade de reflexo na interpretao das coisas, arrastando-o ao nvel da pistis. O

problema agora o seguinte: o raciocnio de Trasmaco poderia ser atribudo a um tipo de

discurso limitado a outro grau da linha dividida? A discusso de Scrates atinge uma maior

rigorosidade com o debate de Trasmaco.

Trasmaco no um simplrio pensador, um dominador das manhas do discurso,

algum que conhece o poder de persuaso das palavras. Plato destaca a figura de Trasmaco

atribuindo-lhe algumas caractersticas que podem indic-lo como homem do mundo sensvel.

O ataque impetuoso denota a fria das paixes a exemplo de outra passagem narrada

por Scrates, no livro IV, sobre os elementos da alma:

Uma vez ouvi uma histria a quem dou crdito: Lencio, filho de Aglion, ao regressar do Pireu, pelo lado de fora da muralha norte, percebendo que havia cadveres que jaziam junto do carrasco, teve um grande desejo de os

32 Rufino e Meabe (2001, p. 92) argumentam do seguinte modo no texto original consta: La figura enrgica,

llena de fuerza, seguro de s mismo y dominante de Trasmaco emerge cuando Polemarco y Scrates han agotado el comentario a la frase de Simnides.

33 A passagem que Scrates comenta este episdio a seguinte: Ao ouvir isto, fiquei estarrecido; volvi os olhos na sua direo, atemorizado, e parece-me que, se eu no tivesse olhado para ele antes de ter ele olhado para mim, teria ficado sem voz. Mas neste caso, quando comeou a irritar-se com a nossa discusso, fui eu o primeiro a olh-lo, de maneira que fui capaz de lhe responder (336d-e).

41

ver, ao mesmo tempo que isso lhe era insuportvel e se desviava; durante algum tempo lutou consigo mesmo e velou o rosto; por fim, vencido pelo desejo, abriu muito os olhos e correu em direo aos cadveres, exclamando: Aqui tendes, gnios do mal, saciai-vos deste belo espetculo! (439e-440a, grifos do autor)

Grube (1987, p. 204-205) enfatiza que na histria a ira se ope s paixes e por isto se