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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA
UFRN-UFPE-UFPB
EVERTON DA SILVA ROCHA
A MORTE PODE SER CONHECIDA: PERCURSO EM TORNO DA
COMPREENSO DA MORTALIDADE NA FILOSOFIA DE EPICURO
NATAL - RN
2011
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EVERTON DA SILVA ROCHA
A MORTE PODE SER CONHECIDA: PERCURSO EM TORNO DA
COMPREENSO DA MORTALIDADE NA FILOSOFIA DE EPICURO
Tese apresentada ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFRN-UFPE-UFPB como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.
rea de concentrao: Metafsica. Orientador: Prof. Dr. Markus Figueira da Silva
NATAL-RN
2011
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EVERTON DA SILVA ROCHA
A MORTE PODE SER CONHECIDA: PERCURSO EM TORNO DA
COMPREENSO DA MORTALIDADE NA FILOSOFIA DE EPICURO
Tese apresentada ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFRN-UFPE-UFPB como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.
Aprovada em ____ de ________________ de ________.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________ Prof. Dr. Markus Filgueira da Silva (Orientador/Presidente UFRN)
_____________________________________________ Profa. Dr
(Examinador Externo UFXX)
_____________________________________________ Prof. Dr.
(Examinador Externo UFXX)
____________________________________________ Prof. Dr.
(Examinador Externo UFXX)
_____________________________________________ Prof. Dr.
(Examinador Interno UFRN)
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Aos meus sobrinhos Eduardo e Emanoel, o novo sempre vem.
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AGRADECIMENTOS Agradeo aos meus pais, Expedito e Ftima, que estiveram comigo no incio dessa empreitada, apoio fundamental. A minha famlia, aos amigos e colegas de doutorado Soraya, Iris, Jovelina e Cristiane. A turma da secretaria Thiare, Tales, Claudia e Borges. No poderia esquecer os professores das trs instituies do programa, principalmente Oscar Bauchwitz, Jesus Vzquez, Gabriel Trindade, Anastcio Borges e Glenn Erickson. Agradecimentos aos professores da trindade mineira Marcelo Marques, Fernando Rey Puente e especialmente a professora Miriam Campolina por todo o suporte e ateno. Aos colegas da UFMG Daniela, Celso, Igor e em memria de Guilherme, uma inteligncia rara. Aos companheiros de estudo Renato, Jorge e Lucas. Aos meus alunos da FARN. As sugestes de Tatiana, Levi e Raimundo, e destacar a contribuio paciente do professor Eduardo Moura. Ao professor Juan Bonaccini pelas horas de dilogo e reflexo. As leves e generosas aulas do professor Murachco. Ao meu orientador, professor Markus Figueira, pela confiana e conselhos oportunos ao longo de mais de doze anos. Acima de tudo agradeo por ter me apresentado a Plato e Epicuro, dois amigos nobres, leais e pacientes com as minhas limitaes. Com eles estou aprendendo que o fundamental invisvel aos olhos. Ao Imperecvel Imanifesto...
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Ns nos lembraremos de seu rosto, de sua roupa, de seus pobres sapatinhos, de seu atade, de seu desgraado pai, e de como tomou a defesa dele, sozinho contra toda a classe. Ns nos lembraremos dele! Era bravo, era bom! Meus meninos, meus queridos amigos, no temais a vida! Ela to bela quando se pratica o bem e a verdade! Sim, sim! repetiram os meninos entusiasmados. E lembrana eterna para o pobre menino! acrescentou de novo Alicha, com emoo. Karamzov! exclamou Klia. verdade o que diz a religio, que ressuscitaremos dentre os mortos, que nos tornaremos a ver uns e outros, e todos e Ilicha? Decerto ressuscitaremos, tornaremos a ver-nos, contaremos uns aos outros alegremente tudo quanto se passou respondeu Alicha, meio risonho, meio entusiasta. Oh! como ser bom! disse Klia. E agora, j falamos muito. Vamos ao jantar fnebre. No vos perturbeis pelo fato de comermos pastis. uma velha tradio que tem seu lado bom disse Alicha, sorrindo. Pois bem! Vamos agora, de mos dadas.
DOSTOIVSKI. OS IRMOS KARAMAZOV.
Por um instante, ele redescobriu o propsito de sua vida. Estava aqui pra compreender o sentido de seu encanto selvagem e para chamar cada coisa pelo seu nome correto.
PASTERNAK. DOUTOR JIVAGO.
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RESUMO
Este texto pretende investigar o percurso necessrio para a formao do conhecimento adequado da morte, com base na anlise da filosofia de Epicuro. A hiptese central consiste em demonstrar que a compreenso da morte s pode ser alcanada por meio de um processo contnuo de investigao em torno da natureza das coisas; reflexo orientada dentro de um sistema de pensamento, com impactos radicais sobre as concepes de universo, homem, alma e mundo. A mortalidade humana s pode se tornar clara para o prprio homem atravs da filosofia. Epicuro elaborou seu pensamento de modo que ao investigar a natureza, o homem pudesse compreender os princpios de constituio de todas as coisas. Isso implica em refletir sobre os desdobramentos do conhecimento da gerao e corrupo na vida humana, o mais inquietante deles a morte. As opinies vs so consideradas as causas dos males, o conhecimento adequado da morte um dos modos de purgao das perturbaes que habitam as almas dos homens, desse modo a filosofia ao promover a sabedoria associa conhecimento sade. A rigor defendemos, confirmada a pertinncia das conexes anteriormente referidas, que o problema do conhecimento da natureza da morte uma das vias privilegiadas para demonstrar a coerncia e unidade da filosofia de Epicuro. Palavras-chave: morte, conhecimento, natureza, Epicuro, gerao e corrupo.
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ABSTRACT
This paper intends to investigate the route required for the formation of adequate knowledge of death based on analysis of the philosophy of Epicurus. The central hypothesis is to demonstrate that the understanding of death can only be achieved through a continuous process of research into the nature of things, guided reflection within a system of thought, with radical impact on the conceptions of the universe, man, soul and world. The human mortality can only become clear to the man himself through philosophy. Epicurus developed his thinking so that when investigating the nature, man could understand the principles of the constitution of all things. This raises issues about the consequences of knowledge generation and corruption in human life, the most disturbing of them is death. The vain opinions are considered the causes of evils, the proper knowledge of death is one way of purging the disturbances that the souls of men, thereby promoting the wisdom philosophy combines knowledge to health. Strictly speaking advocate, confirmed the relevance of the connections mentioned above, the problem of knowledge of the nature of death is one of the privileged ways to demonstrate the coherence and unity of the philosophy of Epicurus.
Keywords: Death. Knowledge. Nature. Epicurus. Generation. Corruption.
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RSUM
Cet thse se propose enquter sur la voie ncessaire la formation d'une connaissance suffisante de la mort en se fondant sur l'analyse de la philosophie d'picure. L'hypothse centrale est que la comprhension de la mort ne peut tre atteint travers un processus continu de recherche sur la nature des choses, une rflexion guide au sein d'un systme de pense, avec un impact radical sur les conceptions de l'univers, l'homme, me et du monde. La mortalit de l'homme ne peut devenir clair l'homme lui-mme travers la philosophie. picure a dvelopp sa pense de sorte que par l'enqute sur la nature, l'homme pourrait comprendre les principes de la constitution de toutes choses. Cela soulve des questions sur les consquences de la production de connaissances et de la corruption dans la vie de l'homme, le plus inquitant d'entre eux est mort. Les opinions vaines sont considrs comme les causes des maux, la bonne connaissance de la mort est une manire de purger les perturbations que les mes des hommes, favorisant ainsi la philosophie de la sagesse combine les connaissances pour la sant. Strictement parlant avocat, a confirm la pertinence des liens mentionns ci-dessus, le problme de la connaissance de la nature de la mort est l'un des moyens privilgis pour dmontrer la cohrence et l'unit de la philosophie d'picure. Mots-cls: Mort. Connaissance. Nature. picure. Gnration Corruption.
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SUMRIO
INTRODUO..................................................................................................... 12
CAPTULO I PRESSUPOSTOS DA INVESTIGAO DO PROBLEMA DA
MORTE................................................................................................................
18
1.1 A MORTE COMO PROBLEMA QUE S PODE SER EXAMINADO DE
MODO COERENTE PELA HIPTESE DA COESO E UNIDADE DA
FILOSOFIA DE EPICURO...................................................................................
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1.2 EPICURO POR DIGENES: O SEGUNDO ARGUMENTO SOBRE A
UNIDADE DO SISTEMA DE PENSAMENTO EPICREO..................................
25
1.3 A RETOMADA DE UM PROBLEMA.............................................................. 32
1.4 MTODO E SISTEMATIZAO DO CONHECIMENTO NA FILOSOFIA
EPICREA...........................................................................................................
40
CAPTULO II A MORTE PENSADA SOB A PESPECTIVA DA GERAO E
DA CORRUPO............................................................................................
44
2.1 PRINCPIOS DE CONSERVAO................................................................ 45
2.2 O TODO,OS TOMOS E O VAZIO............................................................... 49
2.3 DA AGREGAO E DISSOLUO GERAO E MORTE...................... 56
2.4 ALGUNS DESDOBRAMENTOS RELATIVOS COMPREENSO DOS
FUNDAMENTOS DA PHYSIOLOGIA..................................................................
60
CAPTULO III MORRE-SE EM UM UNIVERSO DIFERENTE......................... 65
3.1 A INFINITUDE DO TODO E ALGUMAS DE SUAS IMPLICAES PARA
A COMPREENSO DA CONDIO HUMANA...................................................
66
3.2 INFINITOS MUNDOS PERECVEIS.............................................................. 71
3.3 OS FENMENOS CELESTES, SEU MTODO DE EXPLICAO E O
CHOQUE COM A RELIGIO ASTRAL................................................................
82
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3.4 O TEMPO, ACIDENTE DOS ACIDENTES.................................................... 85
3.5 COSMOLOGIA E MORTALIDADE................................................................ 87
CAPTULO IV A NATUREZA DA ALMA.......................................................... 87
4.1 A ALMA HUMANA, SUA ALMA, ESTRUTURA E ATRIBUTOS.................... 87
4.2 O PROBLEMA DO NASCIMENTO................................................................ 103
4.3 EQUILBRIO DA ALMA.................................................................................. 107
4.4 MORTALIDADE DA ALMA............................................................................. 111
CAPTULO V - O CONHECIMENTO ADEQUADO DA MORTE......................... 115
5.1 TORNAR-SE EPICURISTA............................................................................ 115
5.2 A FILOSOFIA COMO TERAPIA DA ALMA.................................................... 120
5.3 AS OPINIES VAZIAS SOBRE OS DEUSES E SUAS RELAES COM
A MORTE.............................................................................................................
122
5.4 O PROBLEMA DA CRENA NA IMORTALIDADE....................................... 126
5.5 A QUESTO DA MORTE VOLUNTRIA...................................................... 128
5.6 A SEPULTURA E OS RITUAIS...................................................................... 131
5.7 A MORTE, O MAIOR DE TODOS OS MALES, NADA PARA OS
EPICURISTAS.....................................................................................................
135
CONSIDERAES FINAIS................................................................................. 140
REFERNCIAS.................................................................................................... 144
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INTRODUO
A universalidade da morte indiscutvel, no horizonte da vida todo ser vivo
encontra o limite de sua existncia. H um trao que torna a mortalidade algo
simplesmente nico para os seres humanos, a saber: a clareza da fragilidade da
vida. Ao atravessar a rua distraidamente uma pessoa pode ser surpreendida pela
freada brusca de um automvel e nesse momento perceber que sua vida esteve
ameaada, um misto de alvio e medo sinaliza de maneira profunda o carter
transitrio. Essa apenas uma experincia possvel, as pessoas cedo ou tarde se
deparam com a debilidade do corpo, uma doena ou a morte de algum ou de um
animal, fatos dessa ordem apontam para morte como algo que pode se dar a
qualquer momento. No apenas pela via da reflexo que elementos apontam para
a morte como limite final e natural da existncia humana. Em nosso prprio corpo
nos deparamos com um conjunto de sinais e processos, um dos mais inquietantes
o envelhecimento. O que significa tambm que ao pensarmos a vida somos
remetidos ao problema da mortalidade.
A morte, a doena e a velhice no so privilgios de nenhuma cultura em
particular. Ao longo do tempo, diversos povos desenvolveram formas para lidar com
a mortalidade, inerente condio humana. Muitas delas estavam ligadas
mitologia ou religio; entre os gregos essas caractersticas tambm estiveram
presentes, no raro ao lado do desenrolar da filosofia em suas vrias vertentes.
Mesmo quando ligados religio ou ao mito, alguns desses discursos apontaram
uma dificuldade tpica de um problema de tal magnitude, seria realmente possvel
conhecer a natureza da morte?
fato indiscutvel que a cultura filosfica clssica chega ao Brasil via tradio
de orientao europeia. Inicialmente poderamos considerar apenas o aspecto
relativo sua origem que remonta antiguidade grega (Vidas, I, 1-2)1, mas
certamente no se trata de ingenuamente pensarmos na produo dos textos, mas
no modo como atravessaram os milnios e nos chegam hoje. por meio desse
percurso que podemos analisar as obras, o pensamento de seus autores, a poca
na qual viveram, e a recepo desse conjunto ao longo da histria da filosofia. A
1 A traduo da obra Vidas e Doutrinas dos Filsofos Ilustres de Digenes Lartios (2008) utilizada durante o desenvolvimento do texto foi a de Mario da Gama Kury. De agora em diante abreviarei o ttulo da obra para Vidas.
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rigor, o trajeto feito no sentido contrrio, antes de termos contato com a obra de
um autor, j somos afetados por uma tradio que situa pensamento e pensador,
interpretando-os em termos de uma viso histrica que encerra em si mesma
complexas contradies. Essas oposies acumulam uma diversidade de estudos,
que fundamentam posicionamentos crticos em torno do pensamento de um filsofo.
Tais investigaes se manifestam via anlise de um pensamento ou traduo de um
texto, ambas caracterizam formas de interpretao.
O pensamento de um autor e sua obra sofrem recepo dentro e fora de sua
prpria cultura. So inmeros os casos que permeiam a histria. Em relao a
Epicuro, temos relatos que fornecem elementos interessantes para constituio de
uma imagem, minimamente fundamentada, sobre o modo como sua filosofia foi
acolhida na antiguidade medida que se espalhava por vrias regies do
mediterrneo.
Este texto pretende apresentar uma linha interpretativa sobre o percurso
necessrio para a formao do conhecimento adequado da mortalidade humana,
com base na anlise da herana deixada por uma escola filosfica fundada no
perodo helenstico pelo filsofo Epicuro. A reflexo em torno da morte sem laos
religiosos ou mitolgicos foi um trao marcante nessa tradio.
Nas pginas que se seguem pretendemos, num primeiro plano, apresentar a
relevncia do problema do conhecimento da morte dentro do pensamento de
Epicuro. Daremos nfase ao lugar que essa discusso ocupa no corpo de sua obra,
sempre que se fizer necessrio estaremos dialogando com vrios pensadores e
comentadores responsveis pela retomada do pensamento epicreo.
Desejamos sustentar que a compreenso da morte resultado de uma
investigao em torno da natureza das coisas; reflexo orientada dentro de um
sistema de pensamento, com impactos radicais sobre as concepes de universo,
homem, alma, mundo, deuses e justia, etc. A rigor, defendemos, confirmada a
pertinncia das conexes anteriormente referidas, que o problema do conhecimento
da natureza da morte uma das vias privilegiadas para demonstrar a coerncia e a
unidade da filosofia de Epicuro.
O posicionamento epicreo sobre o tema da morte tambm contribui para a
emergncia de um novo alcance da filosofia, esta ultrapassa os limites da Grcia e
d os primeiros passos em direo a um pensamento universal, orientado para o
esclarecimento da condio humana.
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Epicuro acreditou ser possvel ao sbio construir um conhecimento adequado
sobre a morte, isso significa crer que a morte pode ser efetivamente conhecida.
Certamente, nada nos autoriza a pensar que tal percurso fcil ou imediato, pois
configura um trajeto de duras exigncias para o homem acostumar-se a pensar que
a morte o fim. A necessidade de examinar criticamente os costumes, as crenas
religiosas e os saberes sobre a natureza indispensvel, mais ainda, Epicuro indica
que o homem s pode se tornar filsofo ao empreender essa travessia. Ao cruzar o
real segundo tais princpios o homem modifica suas aes, e com isso passa a viver,
e morrer, segundo a natureza.
Pretendemos reconstituir esse itinerrio intelectual, para tanto dispomos do
texto na seguinte ordem: No primeiro captulo abordaremos o problema da coerncia
no pensamento de Epicuro. Pretendemos apresentar argumentos que demonstrem
em Digenes Lartios e nas cartas e mximas uma unidade sistemtica, que
perpassa todo o conjunto da obra epicrea, e encontra, no percurso de
conhecimento da morte, sua mais consistente confirmao. Defenderemos o
posicionamento que physiologia e tica seriam separadas apenas para efeitos
didticos e tericos. Na realidade elas fazem parte de um mesmo sistema filosfico.
A continuidade entre physiologia e tica seria demonstrada nas posies epicreas
relacionadas ao problema da morte.
O segundo captulo versa sobre processo de investigao da natureza ou
physiologia, seu papel no trajeto de problematizao em torno do clssico tema da
gerao e da corrupo, e consequentemente, do movimento. A fsica consistiria
num aspecto fundamental do pensamento de Epicuro, orientada de modo rigoroso e
metodolgico para a construo de um conhecimento seguro, com base na
observao da natureza das coisas. Enfatizamos o papel desse processo para
fundamentao da tica epicurista, por meio de um amplo percurso, iniciado na
dimenso microcsmica compreendida pelas ideias de tomos e vazio. O
predomnio da investigao fsica visou oferecer uma nova orientao ao homem por
meio da filosofia, j que o trajeto construiu uma viso do universo profundamente
arraigado na doutrina atomista.
O terceiro captulo busca dar conta do novo modo de compreenso do mundo
proposto pelo epicurismo, para tanto ser necessrio considerar um problema que
muito inquietou o homem antigo: os fenmenos celestes e suas explicaes. Alm
disso, analisaremos alguns impactos expressivos: o sbio epicurista vive num
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universo infinito, num mundo perecvel, semelhante ou diferente a outros tantos,
todos submetidos gerao e corrupo. Examinaremos tambm a compreenso
epicrea do tempo como acidente e seus principais desdobramentos.
No quarto captulo trataremos de dois pontos centrais que constituem os
pilares do conhecimento epicreo da natureza da alma, so eles: a tese da
corporeidade da alma e a tese da mortalidade da alma. Elas possuem uma estreita
ligao, j que suas bases so as mesmas que regem a natureza de todos os
corpos. Os aspectos fsicos da alma, sua constituio e funcionamento apontaram
para sua natureza como corprea e perecvel.
O captulo final dedica-se a anlise da figura do sbio e as mudanas
provocadas pela investigao da natureza, enfatizando os aspectos relativos
corporeidade da alma e a morte. A afinidade entre filosofia e a sade da alma um
tema recorrente na filosofia grega, todavia com Epicuro possvel perceber novos
contornos. Avaliaremos como o pensamento epicreo cuidou de temas como
imortalidade, suicdio, destino e outros elementos afins, de modo a atravessar uma
srie de problemas que, se relegados, impossibilitariam a tranquilidade e a felicidade
do sbio. O ponto central que ao buscar conhecer sua verdadeira natureza o
homem faz um percurso que o conduz ao conhecimento da morte e,
consequentemente, a superao do medo e das crenas vazias que o alimentam. A
inovao de Epicuro no estaria em acreditar que o conhecimento verdadeiro dirige
a alma do homem a uma opinio correta sobre o que a morte, o que o diferencia
a singularidade do caminho proposto e suas importantes transformaes.
A principal fonte que nos chegou a obra de Digenes Lartios Vida e
doutrinas dos filsofos ilustres, escrita provavelmente por volta do sculo terceiro
depois de nossa era; o autor dedicou o dcimo e ltimo livro exclusivamente a
Epicuro. Os fillogos se debruaram principalmente sobre dois manuscritos
conhecidos como Parinisus (sec. XIII ou XIV) e Barbonicus Neapolitanus (sec. XII?),
apenas em 1475 ambos foram vertidos para o latim com o nome de De Vita et
moribus philosophorum, por Ambrosius Civenius, em Veneza.
Sem dvida a reunio de textos e fragmentos epicreos proposta por Usener,
com o ttulo de Epicurea, continua sendo a obra divisora de guas em relao
retomada do epicurismo. A primeira edio foi publicada em 1887 em Leipzig, com
reedio em Roma no ano de 1963. Em 1977, tambm em Roma, foi publicada a
continuidade do trabalho de Usener, o Glossarium Epicureum, sob a cura de Gigante
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e Schmid, nele somou-se aos Epicurea uma srie de termos oriundos do
Gnomologium vaticanum.
O Gnomologium vaticanum foi o nome atribudo ao manuscrito encontrado no
Vaticano por Wotke em 1888, composto de 81 sentenas, entre as quais 13 tambm
podiam ser lidas entre as mximas soberanas que encerram o livro X, das Vidas e
doutrinas dos filsofos ilustres.
Entre as tradues comearemos por destacar a clssica Epicuro, Opere,
Fragmmenti, Testimonanze por Bignone, Bari, 1919, com uma notvel introduo e
comentrios. Tambm digna de nota Epicurus, the extant remains por Bailey,
publicada em Oxford, 1926. Em 1960 Graziano Arrighetti publicou em Turim Epicuro,
Opere com introduo e notas criteriosas.
Entre as tradues recentes lanamos mo do trabalho de Marcel Conche,
onde encontramos uma introduo ao pensamento de Epicuro e seu mtodo de
conhecimento, seguido do texto grego com traduo e notas. Reconhecemos o
grande esforo de Parente em reunir uma das mais completas obras sobre o
epicurismo, nela encontramos desde as cartas, mximas e sentenas atribudas a
Epicuro, at os importantes fragmentos da obra Peri physeos. Tambm devemos
mencionar que a autora disponibiliza uma ampla doxografia, oferececendo ao
estudioso do epicurismo um leque de possibilidades de investigao, dificilmente
encontrado em uma mesma obra. A edio proposta por Hicks do Lives of eminent
philosophers, publicada em Cambridge, 1958, foi uma obra consultada com
frequncia, que parece ter servido de inspirao para a traduo de Mario da Gama
Kury.
Entretanto, nossa maior referncia o trabalho de Jean Bollack, seus dois
livros configuram duas cuidadosas tradues do grego para o francs. Elas nos
serviram como orientao constante, graas aos aspectos filolgicos e comentrios
presentes nas anlises das passagens. Encontramos tanto no La lettre dpicure
(Paris, 1971), realizado em associao com Mayotte Bollack e Heinz Wismann,
quanto no estudo La pense du plaisir, picure: texte moraux, commentaires (Paris,
1975), uma fonte abundante de pesquisa e reflexo crtica sobre o pensamento de
Epicuro.
Usamos ao longo da pesquisa uma ferramenta nova e de grande contribuio
para a consulta dos textos gregos da grande maioria de autores da antiguidade,
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esse recurso o Thesaurus Linguae Gregae, operado a partir da plataforma do
programa Digenes2.
2 All data is the Thesaurus Linguae Graecae, the Packard Humanities Institute, The Perseus Project and others. The information in these databases is subject to restrictions on access and use; consult your licenses. Diogenes (version 3.1.6) is 1999-2007 P.J. Heslin.
http://www.durham.ac.uk/p.j.heslin/Software/Diogenes/http://www.durham.ac.uk/p.j.heslin/Software/Diogenes/license.php -
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CAPTULO I PRESSUPOSTOS DA INVESTIGAO DO PROBLEMA DA
MORTE
Ao investigar o pensamento grego antigo, o pesquisador se depara com
alguns obstculos que j so esperados. O primeiro deles certamente diz respeito
ao trajeto feito por aquele texto desde sua criao at o presente, a autenticidade do
documento pode ser questionada, sua integridade, as possibilidades de alteraes
ou mesmo a corrupo ou existncia de lacunas. Todos esses pontos fazem parte
do trajeto a ser percorrido pelo estudioso do epicurismo. Aps considerar esses
aspectos entram em cena dificuldades inerentes abordagem do texto em sua
lngua original, o grego antigo, sem dvida uma tarefa para toda a vida, destinada
incompletude.
No caso do epicurismo3 seu principal adversrio foi a vulgarizao e
simplificao de suas doutrinas ao longo da histria do pensamento ou das religies
3 Existem poucas obras sobre o pensamento de Epicuro publicadas no Brasil. A primeiro escrito do qual temos notcia um artigo publicado Vianna (1965, p. 47-64) na revista Kritrion, nele o autor aborda o tema do epicurismo, apresentando vrios aspectos ligados fsica, cannica e tica. Todavia, o texto reflete em alguns momentos a desconfiana do autor em relao ao pensamento de Epicuro, curiosamente suas principais insinuaes crticas recaem em lugares comuns, como abordaremos adiante. Ullman (1987, p.9), buscou reapresentar Epicuro comunidade brasileira, sua preocupao foi corrigir distores que segundo ele percorriam a histria da filosofia atravs dos sculos. Seu texto faz uso de passagens epicreas para iluminar pontos geralmente analisados de maneira obscura. Alm disso, representa uma fonte de autores e tradues de fragmentos ligados ao epicurismo, sem dvida de grande auxlio para qualquer investigador de histria da filosofia. Entretanto, mostrou-se excessiva a recorrente comparao doutrina crist, por vezes temos a impresso de estarmos diante de uma defesa velada do cristianismo, continuamente exaltado, como referncia de um pensamento transcendente, superior e verdadeiro. Talvez uma das maiores contribuies difuso do epicurismo no Brasil pode ser encontrada no artigo de Pessanha (1992) intitulado As delcias do jardim. Numa linguagem simples e rigorosa, somos convidados reflexo em torno dos principais temas do epicurismo; ao abordar a tica, a fsica, a poltica, a teologia, o prazer, a dor e morte, o autor nos aproxima de Epicuro, seu tempo e posicionamentos filosficos diante de problemas humanos que nos so familiares ainda hoje. Pessanha mais um dos estudiosos a levantar a recorrente questo das equivocadas, e por vezes maldosas, interpretaes da filosofia do jardim ao longo da histria do ocidente. Em 2003, Silva publicou no Brasil o livro Epicuro, sabedoria e jardim, nele encontramos uma anlise interpretativa dos textos de Epicuro, um dos objetivos declarados pelo autor de preencher uma lacuna existente no campo filosfico nacional ao apresentar ao pblico brasileiro um estudo sobre a noo de equilbrio. A tese principal visa demonstrar a unidade e coerncia interna do pensamento epicreo via noo de equilbrio. Esse aspecto produziu um efeito indito que consistiu em conduzir seus leitores pelas sendas do epicurismo de modo sistemtico e orgnico, pensando o epicurismo a partir do prprio epicurismo. Identificamos a dificuldade de muitos estudiosos frente tentao de analisar o epicurismo ancorado em outras doutrinas, o caso paradigmtico certamente o cristianismo.O estudo mais recente foi publicado em 2009, chamado Os caminhos de Epicuro por seu autor Spinelli. Nele encontramos um amplo campo de referncias ao epicurismo, e nisso nos pareceu consistir seu maior valor. Apesar de a proposta central incidir sobre Epicuro, a leitura da obra revela um outro percurso, mais da metade de suas pginas foi dedicada aos desdobramentos latinos do pensamento de Epicuro, a impresso que temos de um enfoque, predominantemente histrico, nas anlises de Lucrcio, Ccero, Sneca, entre outros. A principal constatao que o pensamento de Epicuro parece ter sido preterido, as
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(BOLLACK, 1975, XV). Muitas vezes a filologia ou a cincia dos textos pecou por
afastar demais as ideias de um pensador de seu contexto histrico e da realidade
vivida por ele. Um trao forte do material usado diz respeito maneira como a
filosofia de Epicuro nos chegou, por meio de cartas, endereadas a amigos, que
faziam parte de sua escola. Se o que temos como documentos principais so cartas,
no podemos esquecer se tratar de epstolas dirigidas aos amigos ou discpulos, sob
pena de desumanizar uma obra, exauri-la de sua vitalidade. A disposio das ideias
apresentada de modo claro, amigvel e esclarecedor, tratando de temas diversos
que tm em comum a busca pela tranquilidade e pelo prazer. Acreditamos que
essas cartas apresentam uma coerncia interna, verificvel quando relacionadas
entre si, anlise que faremos adiante. importante lembrar esses aspectos para no
considerarmos os textos epicreos como neutros, desubstancializados ou distantes
de seus aspectos histricos e biogrficos. De modo que a dimenso primeira de sua
escrita foi a transmisso de ideias entre duas pessoas que possuam vnculos e
partilhavam de um mesmo modo de viver. A cena tem como pano de fundo a escola
de Epicuro, em um tom de conversao, o mestre desenvolve suas ideias e as envia
aos discpulos com o objetivo de exortar a filosofia e condensar sua doutrina.
Ao longo dos sculos a tradio acumulou camadas de representaes
manifestas em tradues, interpretaes e crticas que muitas vezes afastaram as
conexes entre Epicuro e o epicurismo. Tais conexes no devem ser tomadas
como bvias, todavia o espao de sua produo deve ser mantido e a histria de
suas interpretaes deve ser um importante elemento a ser considerado. Porm
nunca em detrimento da obra de um pensador, inclusive podem refletir o lugar que
Epicuro ocupou em vrios momentos da histria da filosofia.
Um dos grandes desafios de empreender uma investigao em torno da
morte sob uma perspectiva filosfica natural afastar-se totalmente da religiosidade
consequncias principais so uma perspectiva demasiado histrica e superficialmente comparativa, uma abordagem ampla que evita problematizar a filosofia epicrea de modo cuidadoso e com o devido rigor metodolgico. Somos obrigados a nos contentarmos com imagens do epicurismo ao longo do tempo, que apesar de possurem valor, nada acrescentam ao edifcio do pensamento de Epicuro. O cenrio acadmico brasileiro tem produzido recentemente vrios trabalhos sobre o epicurismo. Encontros peridicos como os da ANPOF (Associao Nacional de Ps-Graduao em Filosofia) e da SBEC (Sociedade Brasileira de Estudos Clssicos) tm contribudo em muito para o dilogo entre pesquisadores do helenismo, o aumento de estudos sobre o epicurismo e sua tradio filosfica perceptvel, manifesto em conferncias e apresentaes de trabalhos. Identificamos sinais de desenvolvimento tambm atravs do crescimento de dissertaes que tm como objeto de pesquisa o epicurismo. Fenmeno presente em algumas instituies brasileiras, inclusive na UFRN, j que nos ltimos anos seu programa de ps-graduao produziu pelo menos cinco dissertaes com temas situados dentro do campo do epicurismo.
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e do mito. Isso no fcil hoje, ainda que tenhamos avanos cientficos
extraordinrios no campo da biologia, medicina, fsica e qumica. Esses grandes
passos trouxeram fortes desdobramentos para nossa compreenso do que a vida,
e consequentemente, a morte. A velhice, o aborto, o suicdio, a eutansia, o
extermnio em massa e at mesmo a aniquilao total da espcie humana so
temas presentes nas discusses contemporneas. A crtica religiosidade ganhou
dimenso planetria, no raro nos depararmos com a noo de morte como
aniquilamento total daquilo que nos constitu como humanos. Independente da
crena individual, essa uma concepo presente na cultura ocidental. Muitos
acreditam ser esta uma questo que merece ser estudada.
Essas noes to presentes em nosso tempo podem criar uma dificuldade
significativa, quando se faz necessrio dirigir nossa ateno s concepes antigas
de mortalidade humana, principalmente ao abordar seu aspecto mais delicado: a
crena na corporeidade e mortalidade da alma. extremamente difcil nos
desfazermos de nossa compreenso do que o homem, a vida em sociedade, e,
acima de tudo, o que a morte, perspectivas complexas com mltiplas nuances.
Para que a conscincia contempornea possa compreender o verdadeiro sentido da
doutrina de Epicuro, necessrio o despojamento das ideias que o cristianismo tem
nos apregoado ao longo dos sculos, principalmente no que diz respeito morte.
As posies epicreas diante das questes ligadas ao problema da morte
sempre geraram polmica e produziram debates ao longo dos sculos. Dois
aspectos emergiram como mais relevantes, o primeiro remetia a tese da
corporeidade da alma humana e seu desdobramento imediato, sua condio de
sujeio ao processo de dissoluo fsica, o segundo ponto tratava dos medos
envolvendo a morte.
Em relao s teses da corporeidade e mortalidade da alma temos
depoimentos clebres como o de Agostinho em sua obra Confisses (VI, 16), que
admitiu em suas discusses com amigos o valor do pensamento de Epicuro, mas
no pode conciliar sua crena na imortalidade da alma e no julgamento aps a morte
com as secas concepes epicuristas. Outro tema amplamente discutido ainda na
antiguidade foi a importncia dada por Epicuro, e sua escola, s perturbaes
anmicas relacionadas com a morte. Tanta ateno provocou desconfiana em
personalidades como Ccero, no livro De Natura Deorum (I, 31, 86) este sugeriu que
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Epicuro e seus discpulos generalizaram seus prprios temores, atribuindo a todos
perturbaes que estariam longe serem estendidas a maioria dos homens.
O tratamento mais cuidadoso sobre as posies epicreas referentes aos
problemas da morte foi dispensado por dois ilustres epicuristas Lucrcio e Filodemo
de Gadara. A abordagem ampla, desses grandes nomes do epicurismo, considerou
aspectos fsicos e ticos do conjunto de problemas relacionados questo da morte.
As causas desse tratamento poderiam ser as mais variadas, entre elas o fato de
serem epicuristas. Isso teria constitudo um compromisso maior com a
apresentao das doutrinas do mestre e sua tradio, de modo que a constatao
acima representaria apenas a consequncia de uma exposio ampla da teoria.
Entretanto as hipteses propostas por Ccero e outros so difceis de serem
sustentadas quando levamos em considerao as obras desses filsofos epicuristas,
em especial passagens escritas por Lucrcio no livro III do poema Da Natureza e por
Filodemo em seu tratado Sobre a morte. Acreditamos que ainda na antiguidade
possvel encontrar indcios de abordagem pontuais sobre o tema da morte, com
problematizaes especficas no campo da tica ou da fsica, mas nunca em sua
perspectiva unificada, com exceo claro dos prprios filsofos epicuristas.
Sustentamos que essa no uma prerrogativa gratuita, e sim um desdobramento
natural, originrio do pensamento de Epicuro e do percurso proposto por ele no
sentido de alcanar a compreenso adequada sobre o que a morte.
1.1 A MORTE COMO PROBLEMA QUE S PODE SER EXAMINADO DE MODO
COERENTE PELA HIPTESE DA COESO E UNIDADE DA FILOSOFIA DE
EPICURO
A morte uma questo fundamental, pois est ligada aos principais
problemas abordados pelo epicurismo, de modo que a perspectiva diante da morte
configurou uma postura diante da cultura e da vida, prpria do epicurismo. O
conhecimento adequado da morte fruto do exerccio filosfico desenvolvido dentro
de um sistema de pensamento.
A necessidade de investigao da morte exige o tratamento de problemas
ticos e fsicos. Balaud (2002, p.40) reconhece isso e sustenta a tese que dois
tipos de anlise sobre a questo da morte so propostos por Epicuro: fsica por um
lado, tica por outro. Para Balaud, enquanto fenmeno fsico a morte significa a
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cessao de todas as funes vitais do composto humano. Nas cartas a Herdoto e
a Meneceu temos dois tratamentos diferentes dispensados questo da morte. Na
primeira carta, a abordagem claramente fsica, com nfase nos aspectos relativos
dissoluo e decomposio; sempre como pano de fundo do problema est a vida.
J na segunda, possvel encontrar uma dimenso mais voltada para esfera prtica
com questes relacionadas ao modo de viver e concernentes morte; em alguns
momentos, o tema fica em segundo plano, mas ainda assim encontra-se presente,
com desdobramentos diretos no que atine aos deuses, dor e ao prazer. Entretanto
se considerarmos a Carta a Meneceu como uma abordagem exclusivamente tica,
correremos o risco de reduzir a perspectiva e o alcance das ideias presentes nesse
documento.
A escolha da morte como problema referencial no gratuita, acreditamos
que esse tema o que ilustra com mais profundidade a coerncia e unidade do
sistema de pensamento epicreo. A compreenso da morte a expresso do
posicionamento do sbio em relao ao grande conjunto de problemas que
envolvem a questo da gerao e da corrupo. Pois, se o sbio pretende ter
alcanado o conhecimento desse continente temtico, necessrio, ento, viver em
consonncia com todos os desdobramentos da resposta. Epicuro acreditou ter
encontrado explicaes suficientemente seguras para espantar a ignorncia, a
superstio, a dor e o medo, todas via exame da natureza. Vejamos o trecho a
seguir:
Acostuma-te a crer que a morte nada para ns. Efetivamente, todos os bens e males esto na sensao, e a morte a privao das sensaes. Logo o conhecimento correto de que a morte nada para ns torna fluvel a mortalidade da vida, no por atribuir a esta uma durao ilimitada, mas por eliminar o desejo de imortalidade (Vidas, X, 124) 4.
Apresentaremos agora alguns pontos que guiaro nossa investigao de
modo coerente com a letra de Epicuro. O primeiro deles diz respeito ao
reconhecimento que o problema da morte no pode ser resolvido de um momento
4 Originalmente em grego: . , .
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para o outro, necessrio tempo e meditao, da a importncia da frase inicial, que
ressalta a necessidade de habituar-se a uma impactante constatao: a morte
() nada em relao a ns5. No seria demasiado supor que Epicuro estaria
retomando algo que j fora apresentado antes, insistindo com seu discpulo para que
meditasse sobre o sentido de uma afirmao to categrica, certamente com
conexes relacionadas aos princpios fundamentais internalizados pela memria. O
segundo aspecto diz respeito possibilidade de construir um saber sobre o tema. Ao
sustentar que a morte nada para ns, Epicuro est dizendo que houve uma
investigao sobre o problema, e o processo culminou com essa concluso. A frase
seguinte ajuda a confirmar nosso raciocnio, pois Epicuro faz uma conexo
importantssima ao ligar a questo da morte a aspectos claramente vinculados
physiologia6 e ao principal critrio de conhecimento, a sensao (). Epicuro
declara a Meneceu que todo o bem () e todo mal () se encontram na
sensao. Nesse ponto reconhecemos uma das grandes evidncias do papel da
questo da morte para a tese da unidade do pensamento de Epicuro, uma vez que
ele integra de modo explcito e inequvoco aspectos ticos e naturais: o lugar de
existncia do bem e do mal fsico, a sensao humana. A reflexo de Epicuro se
apoia no mesmo princpio, prprio de seu sistema, que concebe o prazer como bem
primordial e o sofrimento como mal. O papel da sensao define a condio para
todo bem ou mal, sem sensibilidade a consequncia de bvia deduo: a morte
nada para quem no existe mais. A sensao o elemento do processo de
conhecimento que integra o estudo da natureza, do homem e do mundo, e a
reflexo tica.
Como veremos mais detalhadamente adiante, Epicuro acreditava na
possibilidade de conhecer a verdadeira natureza da morte. Seu posicionamento
descarta qualquer ceticismo frente ao problema. A filosofia se prope a dar conta
dos aspectos mais importantes relacionados ao tema da morte, e a concluso
fundamental reza que a morte nada em relao a ns. primeira vista, parece
contraditrio afirmar que possvel conhecer algo como a morte e mais adiante
concluir que ela nada em relao a ns. Entretanto, por meio do exame do
problema suscitado por esse aparente paradoxo que se pode alcanar o
5 Aqui se faz necessrio uma ressalva, a discusso que propomos acima no visa analisar os problemas de intrepretao dessa passagem, apenas argumentar a favor da unidade do problema. Desenvolveremos adiante com mais profundidade nossa interpretao desse importante trecho. 6 Traduzimos por investigao da natureza.
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conhecimento adequado da morte. Para ser mais exato possvel identificar um
conjunto de problemas, e o mais relevante coloca-se a questo: o que a morte.
Alguns aspectos desse saber so de carter positivo, sendo o principal deles a
condio de mortalidade no qual se encontram todos os homens. A citao acima
particularmente clara no que diz respeito a esse tema: existe um conhecimento
correto do que a morte, e graas a ele o homem pode usufruir as alegrias da vida,
com pleno saber de seu estado de mortalidade.
Quanto ao uso do termo mortalidade so necessrios alguns esclarecimentos,
porque poderia haver algum tipo de objeo em relao a seu emprego no contexto
da filosofia de Epicuro. Se temos athanasas () traduzido, no passo 134,
como imortalidade7 em todas as obras que consultamos, no descabido pensar e
traduzir a expresso thnets () como mortal, ou sujeito morte. A condio de
mortal resumida pela palavra mortalidade. Tanto assim que alguns autores o
fazem, conforme pode ser visto nas tradues de Hicks e Kury. Bollack optou por
mortal, enquanto Conche transladou do grego para o francs como condio mortal.
Por sua vez, Parente verteu para o italiano do mesmo modo, condio mortal.
Investigar a morte tomando como equivalente do problema a noo de
thanats nos conduziria a uma limitao de nossa compreenso sobre a questo.
Esse termo aparece diversas vezes de modo emblemtico na Carta a Meneceu. Se
relembrarmos que esse texto frequentemente associado tica, poderamos ser
levados a pensar que o predomnio da questo da morte de ordem tica.
Impresso essa reforada pela constatao de sua ausncia completa na Carta a
Herdoto, o que nos conduziria a no associar a questo da morte a um tratamento
minucioso no que toca a importantes reflexes sobre a natureza, segundo os
princpios propostos pela physiologia. Esse caminho infrutfero por duas razes, a
primeira delas remete a toda discusso sobre a unidade do pensamento de Epicuro.
A segunda mais especfica, pois, como veremos, a Carta a Herdoto resume a
teoria epicrea da corporeidade da alma e, consequentemente sua condio de
acidente sujeito dissoluo. Ora, a dissoluo da alma implica necessariamente na
morte do homem. Na verdade, dissoluo e morte so aspectos que se relacionam
intrinsecamente, e muitas vezes se confundem, a ponto de no conseguirmos isolar
uma da outra, ambas apontando para noo de morte.
7 Destaque para os tradutores: Bollack, Conche, Hicks, Kury, Parente, etc.
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O tema da morte cumpre bem essa exigncia, pois seu entendimento tem
dois grandes eixos: o primeiro deles o movimento e sua crescente complexidade
atravs dos processos de agregao-desagregao, gerao-corrupo e
nascimento-morte. O segundo, diz respeito ao modo como se conhece e est
intimamente associado ao papel da sensao no pensamento de Epicuro. No
podemos esquecer que tudo isso ocorre num processo de conhecimento da
natureza das coisas que visam felicidade.
Em relao ao problema da unidade na filosofia de Epicuro, apresentamos em
primeiro lugar o principal raciocnio presente na letra de Epicuro, indicando com
clareza que ele mesmo percebia sua doutrina em termos de conjunto e sistema
filosfico. Em segundo lugar, apresentaremos a opinio, a anlise e a proposta de
reunio sistemtica da principal fonte, a obra de Digenes Lartios. Nossa
abordagem tratar de trs ncleos de problemas envolvendo a construo da
compreenso epicurea da morte: a fundamentao para o conhecimento da
natureza das coisas, a physiologia como outro olhar sobre o mundo e os fenmenos,
por fim as consequncias ticas e polticas do conhecimento adequado da morte.
1.2 EPICURO POR DIGENES: O SEGUNDO ARGUMENTO SOBRE A UNIDADE
DO SISTEMA DE PENSAMENTO EPICREO
Iniciaremos nossa anlise da obra de Epicuro examinando a ordem proposta
e apresentada, por Digenes Lartios, no dcimo livro de sua obra Vidas e doutrinas
dos filsofos ilustres. Nossa principal justificativa baseada na inteno, claramente
exposta pelo autor, de apresentar um resumo de toda a filosofia de Epicuro:
Tentarei expor a doutrina desenvolvida por Epicuro nessas obras transcrevendo trs de suas Epstolas, nas quais ele apresenta uma eptome de toda a sua filosofia8. Transcreveremos tambm suas Mximas Principais e demais sentenas dignas de meno, de tal forma que possas, leitor, apreender todos os aspectos da personalidade do filsofo, ficando em condio de poder julg-lo
(Vidas, X, 28-29) 9.
8 Hicks (1954, p.559) traduziu esse trecho da seguinte maneira: an epitome of his whole system. 9 Em grego:
, , .
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Com esses elementos o autor pretende oferecer as condies necessrias
para que seus leitores possam avaliar com segurana no apenas o filsofo, mas
tambm o homem e acima de tudo o conjunto de sua filosofia. Certamente Digenes
tinha a sua disposio vrios tratados escritos por Epicuro. No captulo dez temos
diversos trechos que demonstram o conhecimento de outras obras e passagens.
Isso fica patente na passagem 136, na qual encontramos referncias aos trabalhos
Da Escolha e da Rejeio, Do Fim Supremo e Dos Modos de Vida, sobre o tema da
morte teria escrito um livro cujo ttulo dado foi Opinies sobre as doenas e a morte,
todos eles foram anteriormente citados e sua autoria atribuda a Epicuro no passo
28. Inclusive, poderia ter retirado deles passagens expressivas sobre diversos
aspectos de sua filosofia. Entretanto, a escolha de Lartios incidiu sobre cartas
escritas por Epicuro, direcionadas aos discpulos num tom afetuoso. Essas missivas
serviram ao propsito de expor aspectos essenciais da doutrina de modo resumido e
consistente. Por outro lado, a opo pelo formato de carta pode nos ajudar na
identificao de traos de humanidade do prprio Epicuro, colabora para que
montemos com mais clareza um painel do clebre lugar ocupado pela amizade e de
seu exerccio no epicurismo.
A leitura de algumas passagens deixa transparecer em diversos momentos a
simpatia de Digenes por Epicuro10, o primeiro ponto que se destaca a defesa
empreendida contra os raivosos caluniadores de Epicuro que so elencados do
passo terceiro ao nono. As acusaes eram as mais variadas, Tmon o descreveu
como um co e um dissoluto, esticos como Diotimos e Poseidnios hostilizaram
publicamente o filsofo e sua filosofia, o primeiro deles teria publicado dezenas de
cartas se fazendo passar por Epicuro, enquanto o segundo espalhou comentrios
srdidos sobre a famlia, os discpulos e as capacidades intelectuais de Epicuro.
Obras foram escritas com os ttulos Sobre a Efebia de Epicuro e Contra Epicuro
(Vidas, X, 04). digno de nota que, antes mesmo de apresentar a vida e a obra do
filsofo, Digenes montou um cenrio que refletiu toda a polmica e controvrsia em
torno do epicurismo, desde a poca de Epicuro at seu prprio tempo. Em nenhum
outro momento de seu trabalho podemos perceber tal cuidado e deferncia em
10 Nos pargrafos 9 e 138 do livro X encontramos elogios fervorosos a Epicuro, no entraremos na discusso da legitimidade da autoria da obra Vidas e doutrinas dos Filsofos Ilustres, pois consideramos plausvel a hiptese de Digenes ter realmente apreciado a filosofia de Epicuro, tanto que deu um tratamento diferenciado a sua obra. Portanto cabe aqueles que postulam outras teses apresentarem evidncias consistentes, o que at hoje ainda no foi feito de modo convincente e definitivo.
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relao a outro pensador. A atitude de Digenes pode ser distinguida com clareza
na leitura da passagem que se segue:
Mas, esses detratores so uns desatinados, porque nosso filsofo11 apresenta testemunhos suficientes de seus sentimentos insuperavelmente bons para com todos: a ptria que o honrou com esttuas de bronze; os amigos, cujo nmero era to grande que no podiam ser contados em cidades inteiras (Vidas, X, 09) 12.
Uma defesa to enftica certamente uma resposta a ataques ferozes, e isso
pode ser confirmado na leitura dos passos referidos, e qualquer um que se disponha
a investigar a histria da recepo do epicurismo vai encontrar muitas apropriaes
indevidas, comentrios impregnados de m-f e crticas que dificilmente dispensam
ao conjunto de seu pensamento um tratamento adequado. Encontramos exemplos
paradigmticos de crticas tradio presentes nas introdues escritas por Bollack
em suas duas obras de traduo de textos epicreos. Tanto em seu estudo sobre a
Carta a Herdoto, de 1971, quanto na obra publicada em 1974, o autor acusa a
histria da filosofia de tratar com repulsa o pensamento de Epicuro e sua escola.
Curiosamente, como vimos, uma das intenes do Digenes foi oferecer
condies para que os leitores pudessem entrar em contato com a obra de Epicuro,
de modo que tivessem elementos suficientes para poder julgar a ambos, autor e
obra. razovel afirmar que a seleo organizada por Digenes fruto da crena,
que ele mesmo nutria na capacidade elucidativa dessas cartas e sentenas.
Reunidas elas configurariam um programa seguro com a funo de apresentar, de
modo resumido e sistemtico, o conjunto do pensamento de Epicuro.
As cartas transcritas foram direcionadas a trs discpulos: Herdoto, Pitcles
e Meneceu. Acreditamos que em todas as cartas apresentadas possvel identificar
uma unidade sistemtica, que, como veremos adiante, caracterstica do
pensamento de Epicuro. Nesse sentido, partilhamos do mesmo ponto de vista de
Bollack (1971, p.14), que afirmou ter percebido nas cartas uma harmonia constituda
de trs aspectos e trs estilos, coroados por um conjunto de mximas gerais sobre
11 Alguns estudiosos como Dumont (2004, p.515) acreditam que Digenes foi sem dvida um epicurista, obviamente uma das passagens que ajudam a corroborar essa tese a citada acima. 12 Traduo em grego: ' . , '
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questes que envolvem a busca pela vida feliz. No incomum que ao longo do
tempo, as cartas a Herdoto, Ptocles e a Meneceu tenham sido vistas como
referentes, respectivamente, aos temas: fsica, fenmenos celestes e da prpria vida
humana. Esse modo de percepo da obra de Epicuro encontra-se no livro escrito
por Digenes:
A primeira Epstola, dirigida a Herdotos, trata da fsica; a segunda, dirigida a Ptocles, trata da meteorologia e astronomia; a terceira, dirigida a Menoiceus, trata das concepes sobre a vida humana. Devemos comear pela primeira, aps umas poucas observaes
acerca das divises da filosofia segundo Epcuros (Vidas, X, 19) 13.
O autor apresenta uma ordem que deve ser seguida, primeiro a fsica, depois
os fenmenos celestes, por fim devem ser abordados os assuntos relativos vida
humana. No podemos perder de vista que antes tivemos uma introduo na qual a
vida e a fama de Epicuro foram postas em cena, apenas aps considerarmos tais
pontos poderemos, de acordo com Digenes, avanar para a leitura das cartas. Na
realidade, o final da citao faz ainda outra ressalva, necessrio discutir um
problema relevante, a saber, a diviso da filosofia epicrea:
A filosofia se divide em trs partes: a cannica, a fsica e a tica. A cannica uma introduo ao sistema doutrinrio, e constitui o contedo de uma nica obra intitulada Cnon; a fsica abrange toda a teoria da natureza, e constitui a matria dos trinta e sete livros Da Natureza e em suas linhas gerais, das Epstolas; a tica trata dos fatos relacionados com a escolha e a rejeio, constituindo a matria das obras Dos Modos de Vida, Epstolas e Do Fim Supremo. Os epicuristas, todavia, costumam reunir a cannica e a fsica e chamam a cannica de cincia do critrio de verdade e do primeiro princpio, e tambm doutrina elementar; chamam a fsica de cincia do nascimento e da morte, e tambm da natureza; a tica chamada pelos mesmos de cincia do que deve ser escolhido e rejeitado, e
tambm dos modos de vida e do fim supremo (Vidas, X, 29-30) 14.
13 Traduo em grego: , , ' . , ' . 14 Traduo em grego: , . , , . ' ,
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O texto indica uma maneira geral de diviso da filosofia, explica cada seo
que compe o quadro e faz uma rpida aplicao das partes ao conjunto da doutrina
de Epicuro. Ainda que aceitssemos que a filosofia de Epicuro foi dividida por ele em
trs partes, nem por isso seria necessrio abdicar da unidade de seu pensamento, j
que no deixariam de ser trs divises no interior de um conjunto. Entretanto, a
sequncia mostrada na exposio anterior sofre uma mudana radical, o autor lana
suspeita sobre a adequao de tal diviso ao pensamento de Epicuro e sua tradio.
Afirma outra forma de compreenso do conjunto do epicurismo, com isso pe em
evidncia o modo como a prpria escola epicurista concebia sua filosofia. A fsica,
segundo Digenes, era percebida pelos epicuristas como o saber em torno da
gerao e da corrupo, e em torno da natureza. Essa expresso serviu como
maneira de resumir nosso posicionamento sobre a physiologia, ela uma alterao
da proposio , traduzida
por Mario da Gama Kury da seguinte maneira chamam a fsica de cincia do
nascimento e da morte, e tambm da natureza (DIGENES LARTIOS, 2008, p.
289). Parente (1974, 292), estudiosa italiana, traduziu a mesma passagem da
seguinte maneira enquanto chamam a fsica cincia da gerao, da corrupo e da
natureza15, no muito diferente do que encontramos na verso de Hicks (1954, p.
559) quanto a fsica, eles dizem, tratar do vir a ser e do perecer, e da natureza16.
Entendemos physiologia como investigao da natureza das coisas, dos processos
de gerao e corrupo, nascimento e morte.
J a tica consiste no conhecimento de tudo que devemos nos esforar em
buscar e, por outro lado, indica tambm as coisas que devem ser evitadas. Essa
perspectiva tica, conhecer a natureza para escolher, traz implcita a noo de
, . De acordo com a traduo de Mario da Gama Kury. Essa compreenso tambem partilhada por Duvernoy (1990,31-32): Digenes Larcio (1999) registra realmente uma Cannica epicurista e sobre ela diz algumas palavras. Mas no se encontra nenhum vestgio consistente dessa Cannica. Mesmo uma Cannica redigida sob a forma de um tratado separado talvez inverossmel no mbito do discurso epicurista. Efetivamente, nota-se que todos os textos de que se dispe comportam a cannica necessria sua compreenso. No corpo de cada carta, aparece o que se deve saber para ler no que nela est explicado. Alis, se houvesse existido uma Cannica, esta teria sido citada em outras fontes antigas; isso no acontece. Enfim, nem Digenes de Enoanda nem Lucrcio dividem o epicurismo em trs partes, mas expem em duas vertentes: uma fsica das coisas e uma sabedoria; decididamente, parece que esses dois temas sozinhos constituem a ossatura do discurso epicurista. 15 Traduo nossa do original: ... mentre dicono la fisica scienza della generazione, della corruzione e in genere della natura. 16 Traduo nossa do original ingls: ...while physics proper, they say, deals with becoming and perishing and with nature;
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relao fsica e espacial, pois envolve movimentos de aproximao e afastamento
do indivduo em relao s coisas, pessoas e possibilidades que o cercam.
Diante de tal conflito entre duas vises diferentes do epicurismo, escolhemos
recusar a primeira. Nossa justificativa consiste em considerarmos insuficiente como
prova o fato de existir uma orientao geral corrente no perodo que dividiu a
filosofia em trs partes fsica, cannica e tica. Acreditamos que a segunda posio
mais coerente, e para sustent-la nos orientamos por uma leitura baseada nos
textos restantes de Epicuro, neles identificamos a presena da physiologia e da
tica. A primeira trata dos critrios de conhecimento para em seguida investigar a
natureza, enquanto a segunda investiga a natureza humana. A fundamentao da
tica na physiologia um ponto importante e j defendido por estudiosos do
pensamento de Epicuro como Bollack (1971, p.13) e Silva (2003 p.20-21).
Sustentamos um posicionamento semelhante, que poderia ser resumido da seguinte
forma: a physiologia trata do problema da gerao e da corrupo e fornece os
elementos bsicos para a compreenso da natureza. Uma vez constitudo, esse
saber, o epicurista encontra um terreno slido para justificao de suas posturas
ticas. Tal proposta tem a virtude de separar o pensamento de Epicuro segundo
critrios presentes em aspectos textuais e pensar sua filosofia como uma tica
baseada em uma investigao natural, posio apresentada tambm por Digenes
Lartios.
Numa certa medida esse entendimento fora na antiguidade partilhado por
outros alm de Digenes Lartios. H uma citao de Sneca que diz:
Os epicuristas a princpio reconheciam apenas duas partes, a fsica e a tica. Mais tarde a experincia ensinou-lhes a necessidade de se protegerem contra falsos conceitos e de corrigirem erros, e foram forados a introduzir a filosofia racional sob um outro nome (USENER, 2006, p. 60).
Desse modo teramos outro elemento indicador de uma diviso em duas
partes, acreditamos que essa leitura mais condizente como os textos
remanescentes atribudos a Epicuro. Assim nada impede que durante os quatro
sculos que se seguiram o epicurismo tenha introduzindo outro segmento, que
cuidasse das condies do conhecimento, ou cannica, segundo o modelo de outras
escolas. Todavia, at aqui no encontramos nos textos epicuristas aspectos que
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sustentem essa tripartio, de modo que essa perspectiva poderia constituir um
desenvolvimento posterior a escola epicurista grega, como sugeriu Sneca na
passagem acima. Nesse sentido concordamos com Balaud (2002, p. 49) que
afirma que a tripartio seria menos epicurista, e, portanto mais prxima de uma
possvel traduo escolar da doutrina de Epicuro, segundo um modelo ternrio
(lgica, fsica e tica). Para esse estudioso a reflexo sobre as regras e condies
para o conhecimento (cannica) est estreitamente ligada ao estudo da natureza
(physiologia), seu argumento fundamentado no comentrio de Digenes Lartios
(2008, p. 289).
Contudo, ao nos determos ao arranjo do material disposto por Digenes
somos levados a um percurso inovador se comparado com os estudos feitos at
hoje. O respeito pela sequncia encontrada no livro dez, configura tambm uma
aposta terica, isso significa que acreditamos que essa ordem constitui um conjunto
doutrinrio formado por temas relativos physiologia, fenmenos celestes, temas
ticos e polticos, encontrados nas mximas soberanas.
Se tomarmos como exatas as palavras de Digenes, e relembrarmos alguns
pontos expostos anteriormente, devemos reconhecer uma grande influncia do
epicurismo sobre as reflexes do autor, explicitamente apresentada nos seguintes
termos:
Aponhamos agora, por assim dizer, o selo final a toda esta obra e a biografia deste filsofo, citando suas Mximas Principais em concluso a todo o trabalho. Dessa forma seu fim assinala o inicio da felicidade (Vidas, X, 138)17.
Todo o cuidado, afeio e espao destinados por Digenes ao pensamento
de Epicuro so confirmados nessa passagem, independente dos problemas
inerentes obra, como por exemplo, seu carter transcritivo, pois plausvel supor
que ao copiar ele pudesse reproduzir a admirao de um outro autor presente no
texto original, mas a concluso da obra em seu dcimo livro claramente a
manifestao de uma escolha. E graas a essa predileo nos chegou um material
de valor inestimvel: as cartas e mximas de Epicuro. Ao dispor as cartas e
17 Traduo em grego: ( ) , , .
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mximas nessa ordem Digenes nos transmitiu a impresso de valorizar todo o
caminho epicurista at felicidade, apresentando a necessidade de lidar com um
conjunto de problemas a serem conhecidos, investigados e superados por uma
filosofia sistemtica e coerente.
1.3 A RETOMADA DE UM PROBLEMA
De fato esse primeiro argumento de carter introdutrio ao problema da
unidade do pensamento no epicurismo. Por unidade do pensamento
compreendemos um conjunto de conceitos e processos que remetem uns aos outros
de modo sistemtico e coerente, em relaes de interdependncia sem as quais no
se pode cumprir o trajeto filosfico proposto por Epicuro, que consistiu em buscar o
conhecimento e a felicidade. Com esses esclarecimentos pretendemos mostrar que
doxgrafos como Digenes j tinham uma viso da filosofia de Epicuro como um
todo organizado. No foi essa a leitura de muitos especialistas. Apresentaremos a
seguir um exemplo paradigmtico, uma mxima que ao longo do tempo gerou, a
nosso ver, uma sucesso de imprecises e redues incidentes sobre a filosofia de
Epicuro. Em outras palavras, interpretaes que conduzem ao engano, pois no
reconhecem a unidade terica do epicurismo. Vamos dcima primeira mxima
principal:
Se no nos perturbssemos com nossas dvidas respeito dos fenmenos celestes, e se no recessemos que a morte significasse alguma coisa para ns, e tambm no nos perturbssemos com nossa incapacidade de discernir os limites dos sofrimentos e dos desejos, no teramos necessidade da cincia natural (Vidas, X, 142)18.
Epicuro apresenta quais so os trs principais domnios de aplicao da
physiologia: os fenmenos metereolgicos, a morte e os limites para nossas dores e
desejos. O filsofo destaca que esses trs campos precisam ser esclarecidos, pois a
maneira como os encaramos e os entendemos produz modos de relao que afetam
a dimenso anmica, j que estes podem gerar inquietao e perturbao.
necessrio investigar a natureza, suas causas e fenmenos ligados meteorologia.
18 Traduo em grego: , , , .
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33
Apesar da distncia que separa o homem de alguns desses eventos, existem
implicaes diretas em nosso cotidiano relacionadas s nossas opinies
cosmolgicas. Epicuro enfatiza tambm o papel da physiologia na investigao da
constituio dos corpos, incentiva o homem a buscar lanar luz sobre sua prpria
natureza, sensaes, afeces, desejos e limites. A morte outro ponto de origem
para vrias preocupaes, e nesse trecho Epicuro no trata o problema na
dimenso da tica, na realidade as suspeitas e inquietaes humanas s podem ser
resolvidas com segurana atravs da physiologia.
Examinemos outras anlises em torno da finalidade do conhecimento,
baseados na mxima referida acima. Robin (1973, p. 393-394) percebeu a atitude de
Epicuro para com os fenmenos naturais como indiferente ao que seria uma
verdadeira explicao dos mesmos. De acordo com o estudioso francs, j seriam
suficientes esclarecimentos que dessem conta de aspectos gerais, relativos lgica
e moral, as nicas condies exigidas por Epicuro. Mais ainda, Epicuro estaria
muito distante do verdadeiro esprito cientfico, pois desprezava todas as cincias e
ignorava a existncia de um saber que tinha o fim em si mesmo19. Ao sujeitar o
processo de busca pelo conhecimento a procura pela felicidade, Epicuro teria
cometido um crime de lesa-cincia. A razo teria perdido sua dignidade quando
props Epicuro submet-la a uma finalidade teraputica e ordenadora de limites aos
desejos.
Outro que confere a Epicuro um tratamento semelhante Nizan (1999, p. 46).
Ele percebeu no filsofo do jardim uma espcie de profunda indiferena quanto s
mincias da cincia; segundo sua maneira de ver, toda a investigao fsica
empreendida por Epicuro foi submetida ao utilitarismo tico. A busca epicrea pelo
conhecimento da natureza consistiu em um recurso para alcanar a eudaimonia, a
sabedoria teria uma utilidade. Mais uma vez o filsofo criticado por no valorizar a
cincia pela cincia.
Nesse mesma linha segue Vianna (1965, p. 55) ao acusar Epicuro de ter
comprometido os aspectos cientficos de seu pensamento graas ao carter
explicitamente soteriolgico de sua filosofia. Todavia so necessrios alguns
esclarecimentos, o primeiro deles diz respeito ao sentido do termo cientfico to
amplamente usado por tantos autores? O segundo pretende elucidar por que razo
19 Essa acusao nos remete a compreenso aristotlica da filosofia, como sendo ela mesma sua prpria finalidade. Ver Aristteles (Metafsica, 2005, A, 2, 982b).
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Epicuro deveria ter formado um compromisso com uma concepo de conhecimento
como algo que tem sua finalidade em si mesmo? Em que medida as explicaes
fornecidas por Epicuro sofrem algum tipo de perda em funo de um carter
soteriolgico imputado a sua filosofia?
Exigir de Epicuro e de sua doutrina algum tipo de esprito cientfico constitui
sem sombra de dvidas um anacronismo. Nenhum comentador pode demandar a
qualquer filsofo da antiguidade algo dessa natureza. At porque cincias como
fsica, astronomia e matemtica so hoje muito diferentes de suas razes antigas.
Ainda assim deve se procurar reconhecer que Epicuro no despreza a investigao
de fenmenos celestes, fsicos e tocantes natureza humana, apenas submete-os a
critrios claramente ligados felicidade.
Acreditamos que perceber no pensamento de Epicuro qualquer espcie de
soteriologia significa sugerir um argumento completamente insustentvel.
Entendendo por soteriologia uma doutrina religiosa da salvao (ABBAGNANO,
2002, p.921), fica fcil identificar a improcedncia de tal acusao, pois como
veremos adiante a religio, sob a perspectiva do epicurismo, em nada interfere na
vida do homem. Alm disso, o objetivo da filosofia epicrea nunca foi a salvao, e
sim, sempre de maneira muito clara, a felicidade entendida como eudaimonia. Na
realidade essa expresso salvao nos causa estranhamento quando relacionada
filosofia do jardim, visto que no identificamos nos textos remanescentes um termo
sequer que aponte para esse sentido. Contudo, no momento em que levamos em
conta algumas interpretaes, sustentadas nos ltimos trs sculos de histria da
filosofia, percebemos com mais clareza a tendncia a aproximar o pensamento
epicurista, de modo comparativo, perspectiva crist moderna, propenso que se
estendeu at o incio do sculo XX. Essa tenso entre epicurismo e cristianismo
milenar, e convm lembrar que a escola epicurista passou a ser perseguida aps a
emergncia do cristianismo nos primeiros sculos de nossa era.
A exigncia de que o conhecimento seja um fim em si mesmo algo que em
nossos dias parece um tanto quanto extravagante. Esse estranhamento aumenta
ainda mais se considerarmos a cincia como a mais poderosa manifestao da
tcnica, reunio de um conjunto de saberes tpicos da modernidade. Em nosso
tempo a cincia20 est ligada a vrias foras polticas, econmicas, industriais, etc.
20 A rigor no existe a cincia, mas discursos cientficos, sem compromisso de coerncia entre si. O conflito existe quando pensamos cincias humanas e cincias da natureza, mas encontra-se tambm
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No se trata de uma digresso, mas de assinalar que a cincia no imparcial; ao
longo da histria recente fcil identificar seu comprometimento com o poder e os
interesses de pases e corporaes.
Consideramos relevante apontar para o fato de frequentemente o epicurismo
ter sofrido crticas como as referidas, que claramente carecem de uma anlise
fundamentada no exame dos textos que temos disposio. A busca da sabedoria
para Epicuro no passa necessariamente por uma supervalorizao da aritmtica,
astronomia, msica e geometria, seu percurso obrigatrio visa sade da alma. Mas
da a cham-lo, ou aos epicuristas, de inimigo da cincia, j configura um exagero,
pois o atomismo uma abordagem coerente, sua aventura intelectual props, ao
longo de sculos, respostas originais para problemas clssicos, debatidos desde
antiguidade at nossos dias. Com Epicuro e seu mtodo das mltiplas explicaes21
temos um proposta pouco dogmtica que se preserva por trazer consigo uma dose
razovel de ceticismo, de modo que o discurso de investigao da natureza est
sempre em desenvolvimento, e assim novos elementos e respostas podem surgir ao
longo do tempo. E outro ponto ainda lhe agregado como valor, diferente da cincia
contempornea que muitas vezes tende a ser esquizofrnica, inconsequente e
manipulada por interesses que a ultrapassam, o caminho do filsofo do jardim tem
um compromisso inalienvel com a sabedoria do bem-viver. Epicuro sensato o
suficiente para perceber que apesar de existirem diversos modelos de sabedoria, em
ltima instncia cada homem pode, em alguma medida, governar a si mesmo e com
isso fazer o clculo dos prazeres, no h uma moralidade universal externa
responsvel pela determinao das aes humanas.
Tais anlises no so encontradas apenas em materiais mais antigos
tomemos os exemplos a seguir. Em seu vocabulrio sobre Epicuro, Balaud (2002,
p. 48-49) encara a filosofia de Epicuro como desprovida do objetivo de produzir uma
reunio sistemtica de conhecimentos, de modo que, o filsofo de Samos rejeitaria
concepes cumulativas de saber, pois elas dispersariam e causariam desvios em
relao ao fito essencial: a pesquisa da felicidade; para tanto seria necessrio
alcanar as condies para dissipao dos sofrimentos do corpo e, acima de tudo,
no seio de cada um de seus segmentos especficos. A fsica pode ser um exemplo claro disso, pois nela existem teorias contraditriass quando relacionadas entre si, aceitas por alguns setores e negadas por outros. 21 Em sua carta a Ptocles, Epicuro apresenta om mtodo das explicaes mltiplas para compreenso dos fenmenos celestes, que debateremos com mais ateno no captulo 4.
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das perturbaes anmicas. Ainda segundo Balaud, o saber filosfico deve ter,
principalmente, um valor curativo. Em apoio a sua argumentao ele cita uma
passagem da obra Adversus Mathematicus (XI, 169) de Sexto Emprico: A filosofia
uma atividade que procura, por raciocnios e argumentos, o caminho para a
felicidade22. Com base nessa passagem, o autor concluiu que a sistematizao da
filosofia epicrea gira estritamente em torno da rememorao e do acordo em
praticar os ensinamentos presentes nas mximas fundamentais. digno de nota
que essa anlise construda num claro contraposicionamento com as outras
escolas da poca, a saber, o estoicismo e o ceticismo, estas sim, seriam
caracterizados por um conhecimento construdo atravs de uma aquisio metdica
e ordenada. No tocante a este ltimo aspecto comparativo, no consideramos tal
argumento suficiente para assinalar uma reduo to categrica da filosofia de
Epicuro. Pois identificamos um isolamento de certos trechos que frequentemente
no apresentam conexes fortes com outras regies do pensamento do filsofo.
A revelia da admisso de relaes necessrias e realmente existentes no
corpo da doutrina, o problema da morte, se tomado como exemplo, passa a ser um
modelo de como muitas anlises ocorrem de modo isolado. Desprovida de toda
carga reflexiva que lhe inerente, temos como principal consequncia uma
considervel perda de relevncia em torno de um tema que configura um dos
grandes caminhos para demonstrao da unidade e da coerncia da filosofia de
Epicuro.
No Brasil temos estudos recentes que se alinham com perspectivas como as
apresentadas acima. Vejamos a opinio de Spinelli:
No foi, com efeito, e por princpio, a cincia ou a explicao das coisas do mundo que acima de tudo lhe interessou, e sim o modo como propiciar gozo e felicidade ao sujeito individualmente considerado e na situao de infortnio (SPINELLI, 2009, p. 96).
De algum modo argumentos dessa natureza, que ressaltam a busca pelo
prazer e pela felicidade em meio a um contexto social e histrico em crise, findam
por conduzir a uma separao que de fato inopervel no pensamento de Epicuro.
Essas anlises distanciam a filosofia da investigao da natureza das coisas, pois
22 Traduo nossa do grego: .
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no se esforam em trazer a tona que na realidade o prazer e a felicidade s podem
ser desfrutados, de acordo com o modelo epicreo, aps um minucioso exame da
natureza das coisas, seguido de crtica poltica, religio e astronomia. Isso no
sugerido apenas em situaes de crise e conflitos sociais, imperativo que cada
homem se ocupe com a filosofia, em qualquer momento da vida, jovem ou velho,
sozinho ou com outros, pois sabedoria e felicidade so indissociveis. Se, por um
lado, o sbio goza de tranquilidade e bem-estar, por outro, no podemos esquecer
que sua posio se constitui por meio de contnuas relaes crticas com amplos
aspectos de sua cultura e sociedade.
Bollack (1971, p.08) em sua anlise da dcima primeira mxima principal, a
mesma apresentada anteriormente como fonte de dificuldades, chama a ateno
para o problema de encarar a cincia da natureza com um meio que visa
tranquilidade como principal objetivo. Ele lembra que comentadores clebres, como
Gigon e Boyance, acusaram Epicuro de no encarar o conhecimento como um fim
em si mesmo, com isso esses autores elegem como valor, e critrio de apreciao, a
finalidade. A principal dificuldade, segundo Bollack (1971, p.278-279), seria no
reconhecer o lugar da cincia das substncias, ou physiologia, dentro do sistema de
pensamento epicreo. Seu argumento busca mostrar o fato de no se levar em
considerao que a mxima est afirmando a necessidade da investigao da
natureza, sendo assim os homens so obrigados a conhecer a constituio das
coisas, j que sem a physiologia no conseguiramos construir um conhecimento
seguro e opinies adequadas sobre o sol, a morte ou nossa prpria natureza. Mais
ainda, os domnios a serem esquadrinhados envolvem questes pertinentes ao
conhecimento de todo universo natural, o conhecimento formado segundo esse
processo, a physiologia, de carter antittico. Bollack encerra sua argumentao
afirmando que se a physiologia fosse um fim em si, tornar-se-ia tambm conjectural
e mtica, perderia sua ntima ligao com a natureza do homem, e, por conseguinte,
seu lugar de produo humana. Endossamos essa avaliao, e ao lermos pesquisas
como a empreendida pelo estudioso francs fica patente a diferena de abordagem
e cuidado no tratamento da letra de Epicuro, desde seu contato inicial, sua traduo
interpretao da obra.
Tambm Moraes (EPICURO, 2006, p. 24) interpreta essa mxima de maneira
semelhante: o esforo pelo conhecimento no se justifica por si mesmo, nem por
algum culto a cincia. A teoria conduz a uma vivncia prazerosa, fsica e tica esto
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em recproca dependncia, constata Moraes (EPICURO, 2006, p. 24), enfatiza
tambm que s o conhecimento da natureza das coisas assegura que a morte no
nos afeta, compreendendo-a como mera separao dos tomos que nos compe.
possvel pensar que Epicuro desconfiasse daqueles que sustentam a tese
da existncia de uma autofinalidade no processo de conhecimento, talvez ele
desejasse apontar que muitas vezes ocultos estavam o poder, as honrarias, o
reconhecimento de um lugar diferenciado, em muitas relaes essa diferena ficava
clara. Sabemos que os epicuristas consideravam a dialtica suprflua (Vidas, X, 31)
e em alguns momentos, Epicuro faz questo de afirmar que considera investigao
da natureza uma atividade mais complexa, com exigncias mais profundas que
muitas atividades intelectuais desenvolvidas ordinariamente em seu tempo.
Consideramos de suma importncia discutir esses aspectos da crtica ao
pensamento de Epicuro, confront-los com outras avaliaes. Caso contrrio, somos
levados a tomar o epicurismo nascente como uma filosofia dos ignorantes, pobres e
dos excludos, do homem da decadncia grega23, a contraparte obscura de saberes
mais nobres, luminosos e elevados.
Entretanto dentro da literatura filosfica existem outros juzos sobre o
pensamento de Epicuro. Tomemos o exemplo de Kant (1992, p. 47, A 35), que tece
o seguinte comentrio ao referir-se aos epicuristas: eles deram provas de mxima
moderao no prazer e foram os melhores filsofos da natureza entre os
pensadores da Grcia. O pensador alemo percebeu e destacou a importncia
dada pelos epicuristas filosofia da natureza, exaltando de modo claro e
diferenciado o papel da fsica no pensamento de Epicuro. Certamente leitores como
Kant levaram em considerao que os epicuristas separaram a astronomia de todos
os aspectos religiosos e mticos, operaram uma verdadeira crtica da capacidade de
conhecimento sobre os fenmenos celestes, principalmente por meio do uso de
mltiplas explicaes, mas ainda assim so acusados por Spinelli (2009, p.108) de
pouca competncia epistmica relativas filosofia e cincia. No h dvida que
esse um ponto repleto de controvrsias. Ao analisar esse problema Farrington
(1967, p. 34) se d conta que muitas vezes o epicurismo no foi corretamente
avaliado, ele admira a linguagem cientfica e tcnica empregada nas cartas e
23 Quanto aos aspectos polticos temos a decadncia da democracia ateniense, mas por outro lado at que ponto podemos desconsiderar que foi do mundo grego que brotou o maior imprio da antiguidade? Que tivemos nesse perodo uma ampla difuso da cultura grega?
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sentenas, principalmente o modo como as expresses remetem a um sistema
firmemente articulado. Endossamos a posio de Farrington nos trs pontos
mencionados, acreditamos que o pensamento de Epicuro foi constantemente
reduzido, empobrecimento que foi manifesado de diversas formas e meios ao longo
do desenvolvimento da tradio filosfica; segundo: a leitura dos textos aponta para
o uso proposital e esclarecido de uma linguagem tcnica e criteriosa (Vidas, X, 37-
38); terceiro: tal perspectiva discursiva est inserida em um sistema de pensamento
slido e coerente, que consistiu na ltima manifestao do atomismo grego. A
filosofia atomista influenciou e foi influenciada por vrios segmentos da filosofia
grega antiga.
Esse ltimo ponto merece um exame cuidadoso, infelizmente no possvel
deter-se sobre o tema, entretanto se faz necessrio elencar alguns pontos de grande
relevncia. O primeiro deles diz respeito ao genial cenrio filosfico que antecedeu a
emergncia do epicurismo, trata-se obviamente das contribuies de Scrates,
Plato e Aristteles. impossvel pensar a filosofia de Epicuro sem relacion-la com
as fortes influncias desses trs pensadores. Bignone (1936), em sua obra Le
Aristotele perdutto e a formazzione filosofica di Epicuro, argumenta de maneira
minuciosa e erudita sobre o tema das influncias aristotlicas no pensamento de
Epicuro. Por outro lado, outros se esforam em vincular Epicuro aos phisiologoi24,
entendendo sua perspectiva filosfica como um movimento de continuidade do
modo de investigao da physis. Existem aqueles que viram Epicuro como um
socrtico menor, ligado ao emblemtico Scrates pela influncia do hedonismo de
Aristipo de Cirene. famoso o silncio de Plato em relao a Demcrito25, mas
existe um debate antigo sobre a relao de Epicuro com o pensamento platnico,
inclusive se no teria sido discpulo de Pnfilo, um platnico de Samos (Vidas, X,
14). No material que nos chegou no encontramos meno ao nome de Plato,
todavia vrias passagens das cartas contm pontos de fortes divergncias em
relao s posies platnicas. Como por exemplo, a passagem sobre a
incorporeidade da alma presente na carta a Herdoto. Outro indcio significativo da
presena das ideias platnicas e aristotlicas no jardim encontra-se nas obras
24 Tambm marcados pela expresso pr-socrticos, o que pode gerar confuso quando tomamos o exemplo de Demcrito que era contemporneo de Scrates. 25 Temos aquela famosa passagem na obra de Digenes Lartios que apresenta Plato queimando os livros de Demcrito (Vidas, IX, 40).
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escritas pelo sucessor de Epicuro, Hermarcos, ele escreveu livros intitulados Contra
Plato e Contra Aristteles.
1.4 MTODO E SISTEMATIZAO DO CONHECIMENTO NA FILOSOFIA
EPICREA
Conche (1977, p. 25-40) defende a existncia de dois mtodos distintos
dentro do pensamento de Epicuro. O primeiro deles estaria presente na Carta a
Herdoto e Carta a Ptocles, denominado mtodo de conhecimento, o autor aponta
tambm desenvolvimentos tratando desse tema que podem ser encontrados em
obras de Digenes Lartios (Vidas, X, 31-34) e Sexto Emprico (Adversus
Mathematicus, VII, 203-216). O mtodo do conhecimento dividido por Conche em
dois segmentos: os critrios de verdade e anlise das opinies segundo esses
mesmos critrios. O segundo chamado mtodo para felicidade26 e sua principal
fonte a Carta a Meneceu (EPICURO, 2002). Consiste em analisar as condies
para se alcanar a felicidade, dividido em dois grupos: o primeiro seria a condio
das condies, ligado cincia da natureza, enquanto o segundo reuniria as
condies imediatas, que seriam a ausncia de medos e a regulao dos desejos.
Entendemos essa diviso como uma anlise criteriosa do contedo das fontes
do epicurismo, seu papel elucidativo consistente e bem fundamentado. Entretanto
no reconhecemos dois mtodos no pensamento de Epicuro, defendemos a
existncia de apenas um mtodo que rene conhecimento e felicidade. O exame
atento da proposta de Conche (1977, p. 40) j nos apresenta elementos suficientes
para uma defesa inicial de nosso posicionamento. Ao tratar do mtodo para a
felicidade, o autor promove uma integrao entre physiologia, como condio das
condies, e eudaimonia, alcanada aps a satisfao das condies imediatas.
Com isso ele unifica tambm os temas tratados tanto na Carta a Hertodo quanto na
Carta a Meneceu, e demonstra que fsica e tica so indissociveis, assim como o
mtodo para conhecer e os princpios de conduta e escolha que conduzem a
felicidade, em outras palavras, no possvel operar separao efetiva entre
physiologia e eudaimonia no pensamento de Epicuro.
26 interessante notar que outros autores tambm encaram a Carta a Meneceu como tratando do mtodo para ser feliz, no Brasil inclusive temos uma traduo dessa epstola como Carta Felicidade.
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O incio da Carta a Herdoto tem os elementos mais importantes para a
defesa da existncia de um sistema de pensamento epicreo. Um deles refere-se ao