universidade federal do rio grande do norte centro … · everton da silva rocha a morte pode ser...

152
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA UFRN-UFPE-UFPB EVERTON DA SILVA ROCHA A MORTE PODE SER CONHECIDA: PERCURSO EM TORNO DA COMPREENSÃO DA MORTALIDADE NA FILOSOFIA DE EPICURO NATAL - RN 2011

Upload: others

Post on 31-Aug-2019

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA

    UFRN-UFPE-UFPB

    EVERTON DA SILVA ROCHA

    A MORTE PODE SER CONHECIDA: PERCURSO EM TORNO DA

    COMPREENSO DA MORTALIDADE NA FILOSOFIA DE EPICURO

    NATAL - RN

    2011

  • EVERTON DA SILVA ROCHA

    A MORTE PODE SER CONHECIDA: PERCURSO EM TORNO DA

    COMPREENSO DA MORTALIDADE NA FILOSOFIA DE EPICURO

    Tese apresentada ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFRN-UFPE-UFPB como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.

    rea de concentrao: Metafsica. Orientador: Prof. Dr. Markus Figueira da Silva

    NATAL-RN

    2011

  • EVERTON DA SILVA ROCHA

    A MORTE PODE SER CONHECIDA: PERCURSO EM TORNO DA

    COMPREENSO DA MORTALIDADE NA FILOSOFIA DE EPICURO

    Tese apresentada ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da UFRN-UFPE-UFPB como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.

    Aprovada em ____ de ________________ de ________.

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________________ Prof. Dr. Markus Filgueira da Silva (Orientador/Presidente UFRN)

    _____________________________________________ Profa. Dr

    (Examinador Externo UFXX)

    _____________________________________________ Prof. Dr.

    (Examinador Externo UFXX)

    ____________________________________________ Prof. Dr.

    (Examinador Externo UFXX)

    _____________________________________________ Prof. Dr.

    (Examinador Interno UFRN)

  • Aos meus sobrinhos Eduardo e Emanoel, o novo sempre vem.

  • AGRADECIMENTOS Agradeo aos meus pais, Expedito e Ftima, que estiveram comigo no incio dessa empreitada, apoio fundamental. A minha famlia, aos amigos e colegas de doutorado Soraya, Iris, Jovelina e Cristiane. A turma da secretaria Thiare, Tales, Claudia e Borges. No poderia esquecer os professores das trs instituies do programa, principalmente Oscar Bauchwitz, Jesus Vzquez, Gabriel Trindade, Anastcio Borges e Glenn Erickson. Agradecimentos aos professores da trindade mineira Marcelo Marques, Fernando Rey Puente e especialmente a professora Miriam Campolina por todo o suporte e ateno. Aos colegas da UFMG Daniela, Celso, Igor e em memria de Guilherme, uma inteligncia rara. Aos companheiros de estudo Renato, Jorge e Lucas. Aos meus alunos da FARN. As sugestes de Tatiana, Levi e Raimundo, e destacar a contribuio paciente do professor Eduardo Moura. Ao professor Juan Bonaccini pelas horas de dilogo e reflexo. As leves e generosas aulas do professor Murachco. Ao meu orientador, professor Markus Figueira, pela confiana e conselhos oportunos ao longo de mais de doze anos. Acima de tudo agradeo por ter me apresentado a Plato e Epicuro, dois amigos nobres, leais e pacientes com as minhas limitaes. Com eles estou aprendendo que o fundamental invisvel aos olhos. Ao Imperecvel Imanifesto...

  • Ns nos lembraremos de seu rosto, de sua roupa, de seus pobres sapatinhos, de seu atade, de seu desgraado pai, e de como tomou a defesa dele, sozinho contra toda a classe. Ns nos lembraremos dele! Era bravo, era bom! Meus meninos, meus queridos amigos, no temais a vida! Ela to bela quando se pratica o bem e a verdade! Sim, sim! repetiram os meninos entusiasmados. E lembrana eterna para o pobre menino! acrescentou de novo Alicha, com emoo. Karamzov! exclamou Klia. verdade o que diz a religio, que ressuscitaremos dentre os mortos, que nos tornaremos a ver uns e outros, e todos e Ilicha? Decerto ressuscitaremos, tornaremos a ver-nos, contaremos uns aos outros alegremente tudo quanto se passou respondeu Alicha, meio risonho, meio entusiasta. Oh! como ser bom! disse Klia. E agora, j falamos muito. Vamos ao jantar fnebre. No vos perturbeis pelo fato de comermos pastis. uma velha tradio que tem seu lado bom disse Alicha, sorrindo. Pois bem! Vamos agora, de mos dadas.

    DOSTOIVSKI. OS IRMOS KARAMAZOV.

    Por um instante, ele redescobriu o propsito de sua vida. Estava aqui pra compreender o sentido de seu encanto selvagem e para chamar cada coisa pelo seu nome correto.

    PASTERNAK. DOUTOR JIVAGO.

  • RESUMO

    Este texto pretende investigar o percurso necessrio para a formao do conhecimento adequado da morte, com base na anlise da filosofia de Epicuro. A hiptese central consiste em demonstrar que a compreenso da morte s pode ser alcanada por meio de um processo contnuo de investigao em torno da natureza das coisas; reflexo orientada dentro de um sistema de pensamento, com impactos radicais sobre as concepes de universo, homem, alma e mundo. A mortalidade humana s pode se tornar clara para o prprio homem atravs da filosofia. Epicuro elaborou seu pensamento de modo que ao investigar a natureza, o homem pudesse compreender os princpios de constituio de todas as coisas. Isso implica em refletir sobre os desdobramentos do conhecimento da gerao e corrupo na vida humana, o mais inquietante deles a morte. As opinies vs so consideradas as causas dos males, o conhecimento adequado da morte um dos modos de purgao das perturbaes que habitam as almas dos homens, desse modo a filosofia ao promover a sabedoria associa conhecimento sade. A rigor defendemos, confirmada a pertinncia das conexes anteriormente referidas, que o problema do conhecimento da natureza da morte uma das vias privilegiadas para demonstrar a coerncia e unidade da filosofia de Epicuro. Palavras-chave: morte, conhecimento, natureza, Epicuro, gerao e corrupo.

  • ABSTRACT

    This paper intends to investigate the route required for the formation of adequate knowledge of death based on analysis of the philosophy of Epicurus. The central hypothesis is to demonstrate that the understanding of death can only be achieved through a continuous process of research into the nature of things, guided reflection within a system of thought, with radical impact on the conceptions of the universe, man, soul and world. The human mortality can only become clear to the man himself through philosophy. Epicurus developed his thinking so that when investigating the nature, man could understand the principles of the constitution of all things. This raises issues about the consequences of knowledge generation and corruption in human life, the most disturbing of them is death. The vain opinions are considered the causes of evils, the proper knowledge of death is one way of purging the disturbances that the souls of men, thereby promoting the wisdom philosophy combines knowledge to health. Strictly speaking advocate, confirmed the relevance of the connections mentioned above, the problem of knowledge of the nature of death is one of the privileged ways to demonstrate the coherence and unity of the philosophy of Epicurus.

    Keywords: Death. Knowledge. Nature. Epicurus. Generation. Corruption.

  • RSUM

    Cet thse se propose enquter sur la voie ncessaire la formation d'une connaissance suffisante de la mort en se fondant sur l'analyse de la philosophie d'picure. L'hypothse centrale est que la comprhension de la mort ne peut tre atteint travers un processus continu de recherche sur la nature des choses, une rflexion guide au sein d'un systme de pense, avec un impact radical sur les conceptions de l'univers, l'homme, me et du monde. La mortalit de l'homme ne peut devenir clair l'homme lui-mme travers la philosophie. picure a dvelopp sa pense de sorte que par l'enqute sur la nature, l'homme pourrait comprendre les principes de la constitution de toutes choses. Cela soulve des questions sur les consquences de la production de connaissances et de la corruption dans la vie de l'homme, le plus inquitant d'entre eux est mort. Les opinions vaines sont considrs comme les causes des maux, la bonne connaissance de la mort est une manire de purger les perturbations que les mes des hommes, favorisant ainsi la philosophie de la sagesse combine les connaissances pour la sant. Strictement parlant avocat, a confirm la pertinence des liens mentionns ci-dessus, le problme de la connaissance de la nature de la mort est l'un des moyens privilgis pour dmontrer la cohrence et l'unit de la philosophie d'picure. Mots-cls: Mort. Connaissance. Nature. picure. Gnration Corruption.

  • SUMRIO

    INTRODUO..................................................................................................... 12

    CAPTULO I PRESSUPOSTOS DA INVESTIGAO DO PROBLEMA DA

    MORTE................................................................................................................

    18

    1.1 A MORTE COMO PROBLEMA QUE S PODE SER EXAMINADO DE

    MODO COERENTE PELA HIPTESE DA COESO E UNIDADE DA

    FILOSOFIA DE EPICURO...................................................................................

    21

    1.2 EPICURO POR DIGENES: O SEGUNDO ARGUMENTO SOBRE A

    UNIDADE DO SISTEMA DE PENSAMENTO EPICREO..................................

    25

    1.3 A RETOMADA DE UM PROBLEMA.............................................................. 32

    1.4 MTODO E SISTEMATIZAO DO CONHECIMENTO NA FILOSOFIA

    EPICREA...........................................................................................................

    40

    CAPTULO II A MORTE PENSADA SOB A PESPECTIVA DA GERAO E

    DA CORRUPO............................................................................................

    44

    2.1 PRINCPIOS DE CONSERVAO................................................................ 45

    2.2 O TODO,OS TOMOS E O VAZIO............................................................... 49

    2.3 DA AGREGAO E DISSOLUO GERAO E MORTE...................... 56

    2.4 ALGUNS DESDOBRAMENTOS RELATIVOS COMPREENSO DOS

    FUNDAMENTOS DA PHYSIOLOGIA..................................................................

    60

    CAPTULO III MORRE-SE EM UM UNIVERSO DIFERENTE......................... 65

    3.1 A INFINITUDE DO TODO E ALGUMAS DE SUAS IMPLICAES PARA

    A COMPREENSO DA CONDIO HUMANA...................................................

    66

    3.2 INFINITOS MUNDOS PERECVEIS.............................................................. 71

    3.3 OS FENMENOS CELESTES, SEU MTODO DE EXPLICAO E O

    CHOQUE COM A RELIGIO ASTRAL................................................................

    82

  • 3.4 O TEMPO, ACIDENTE DOS ACIDENTES.................................................... 85

    3.5 COSMOLOGIA E MORTALIDADE................................................................ 87

    CAPTULO IV A NATUREZA DA ALMA.......................................................... 87

    4.1 A ALMA HUMANA, SUA ALMA, ESTRUTURA E ATRIBUTOS.................... 87

    4.2 O PROBLEMA DO NASCIMENTO................................................................ 103

    4.3 EQUILBRIO DA ALMA.................................................................................. 107

    4.4 MORTALIDADE DA ALMA............................................................................. 111

    CAPTULO V - O CONHECIMENTO ADEQUADO DA MORTE......................... 115

    5.1 TORNAR-SE EPICURISTA............................................................................ 115

    5.2 A FILOSOFIA COMO TERAPIA DA ALMA.................................................... 120

    5.3 AS OPINIES VAZIAS SOBRE OS DEUSES E SUAS RELAES COM

    A MORTE.............................................................................................................

    122

    5.4 O PROBLEMA DA CRENA NA IMORTALIDADE....................................... 126

    5.5 A QUESTO DA MORTE VOLUNTRIA...................................................... 128

    5.6 A SEPULTURA E OS RITUAIS...................................................................... 131

    5.7 A MORTE, O MAIOR DE TODOS OS MALES, NADA PARA OS

    EPICURISTAS.....................................................................................................

    135

    CONSIDERAES FINAIS................................................................................. 140

    REFERNCIAS.................................................................................................... 144

  • 12

    INTRODUO

    A universalidade da morte indiscutvel, no horizonte da vida todo ser vivo

    encontra o limite de sua existncia. H um trao que torna a mortalidade algo

    simplesmente nico para os seres humanos, a saber: a clareza da fragilidade da

    vida. Ao atravessar a rua distraidamente uma pessoa pode ser surpreendida pela

    freada brusca de um automvel e nesse momento perceber que sua vida esteve

    ameaada, um misto de alvio e medo sinaliza de maneira profunda o carter

    transitrio. Essa apenas uma experincia possvel, as pessoas cedo ou tarde se

    deparam com a debilidade do corpo, uma doena ou a morte de algum ou de um

    animal, fatos dessa ordem apontam para morte como algo que pode se dar a

    qualquer momento. No apenas pela via da reflexo que elementos apontam para

    a morte como limite final e natural da existncia humana. Em nosso prprio corpo

    nos deparamos com um conjunto de sinais e processos, um dos mais inquietantes

    o envelhecimento. O que significa tambm que ao pensarmos a vida somos

    remetidos ao problema da mortalidade.

    A morte, a doena e a velhice no so privilgios de nenhuma cultura em

    particular. Ao longo do tempo, diversos povos desenvolveram formas para lidar com

    a mortalidade, inerente condio humana. Muitas delas estavam ligadas

    mitologia ou religio; entre os gregos essas caractersticas tambm estiveram

    presentes, no raro ao lado do desenrolar da filosofia em suas vrias vertentes.

    Mesmo quando ligados religio ou ao mito, alguns desses discursos apontaram

    uma dificuldade tpica de um problema de tal magnitude, seria realmente possvel

    conhecer a natureza da morte?

    fato indiscutvel que a cultura filosfica clssica chega ao Brasil via tradio

    de orientao europeia. Inicialmente poderamos considerar apenas o aspecto

    relativo sua origem que remonta antiguidade grega (Vidas, I, 1-2)1, mas

    certamente no se trata de ingenuamente pensarmos na produo dos textos, mas

    no modo como atravessaram os milnios e nos chegam hoje. por meio desse

    percurso que podemos analisar as obras, o pensamento de seus autores, a poca

    na qual viveram, e a recepo desse conjunto ao longo da histria da filosofia. A

    1 A traduo da obra Vidas e Doutrinas dos Filsofos Ilustres de Digenes Lartios (2008) utilizada durante o desenvolvimento do texto foi a de Mario da Gama Kury. De agora em diante abreviarei o ttulo da obra para Vidas.

  • 13

    rigor, o trajeto feito no sentido contrrio, antes de termos contato com a obra de

    um autor, j somos afetados por uma tradio que situa pensamento e pensador,

    interpretando-os em termos de uma viso histrica que encerra em si mesma

    complexas contradies. Essas oposies acumulam uma diversidade de estudos,

    que fundamentam posicionamentos crticos em torno do pensamento de um filsofo.

    Tais investigaes se manifestam via anlise de um pensamento ou traduo de um

    texto, ambas caracterizam formas de interpretao.

    O pensamento de um autor e sua obra sofrem recepo dentro e fora de sua

    prpria cultura. So inmeros os casos que permeiam a histria. Em relao a

    Epicuro, temos relatos que fornecem elementos interessantes para constituio de

    uma imagem, minimamente fundamentada, sobre o modo como sua filosofia foi

    acolhida na antiguidade medida que se espalhava por vrias regies do

    mediterrneo.

    Este texto pretende apresentar uma linha interpretativa sobre o percurso

    necessrio para a formao do conhecimento adequado da mortalidade humana,

    com base na anlise da herana deixada por uma escola filosfica fundada no

    perodo helenstico pelo filsofo Epicuro. A reflexo em torno da morte sem laos

    religiosos ou mitolgicos foi um trao marcante nessa tradio.

    Nas pginas que se seguem pretendemos, num primeiro plano, apresentar a

    relevncia do problema do conhecimento da morte dentro do pensamento de

    Epicuro. Daremos nfase ao lugar que essa discusso ocupa no corpo de sua obra,

    sempre que se fizer necessrio estaremos dialogando com vrios pensadores e

    comentadores responsveis pela retomada do pensamento epicreo.

    Desejamos sustentar que a compreenso da morte resultado de uma

    investigao em torno da natureza das coisas; reflexo orientada dentro de um

    sistema de pensamento, com impactos radicais sobre as concepes de universo,

    homem, alma, mundo, deuses e justia, etc. A rigor, defendemos, confirmada a

    pertinncia das conexes anteriormente referidas, que o problema do conhecimento

    da natureza da morte uma das vias privilegiadas para demonstrar a coerncia e a

    unidade da filosofia de Epicuro.

    O posicionamento epicreo sobre o tema da morte tambm contribui para a

    emergncia de um novo alcance da filosofia, esta ultrapassa os limites da Grcia e

    d os primeiros passos em direo a um pensamento universal, orientado para o

    esclarecimento da condio humana.

  • 14

    Epicuro acreditou ser possvel ao sbio construir um conhecimento adequado

    sobre a morte, isso significa crer que a morte pode ser efetivamente conhecida.

    Certamente, nada nos autoriza a pensar que tal percurso fcil ou imediato, pois

    configura um trajeto de duras exigncias para o homem acostumar-se a pensar que

    a morte o fim. A necessidade de examinar criticamente os costumes, as crenas

    religiosas e os saberes sobre a natureza indispensvel, mais ainda, Epicuro indica

    que o homem s pode se tornar filsofo ao empreender essa travessia. Ao cruzar o

    real segundo tais princpios o homem modifica suas aes, e com isso passa a viver,

    e morrer, segundo a natureza.

    Pretendemos reconstituir esse itinerrio intelectual, para tanto dispomos do

    texto na seguinte ordem: No primeiro captulo abordaremos o problema da coerncia

    no pensamento de Epicuro. Pretendemos apresentar argumentos que demonstrem

    em Digenes Lartios e nas cartas e mximas uma unidade sistemtica, que

    perpassa todo o conjunto da obra epicrea, e encontra, no percurso de

    conhecimento da morte, sua mais consistente confirmao. Defenderemos o

    posicionamento que physiologia e tica seriam separadas apenas para efeitos

    didticos e tericos. Na realidade elas fazem parte de um mesmo sistema filosfico.

    A continuidade entre physiologia e tica seria demonstrada nas posies epicreas

    relacionadas ao problema da morte.

    O segundo captulo versa sobre processo de investigao da natureza ou

    physiologia, seu papel no trajeto de problematizao em torno do clssico tema da

    gerao e da corrupo, e consequentemente, do movimento. A fsica consistiria

    num aspecto fundamental do pensamento de Epicuro, orientada de modo rigoroso e

    metodolgico para a construo de um conhecimento seguro, com base na

    observao da natureza das coisas. Enfatizamos o papel desse processo para

    fundamentao da tica epicurista, por meio de um amplo percurso, iniciado na

    dimenso microcsmica compreendida pelas ideias de tomos e vazio. O

    predomnio da investigao fsica visou oferecer uma nova orientao ao homem por

    meio da filosofia, j que o trajeto construiu uma viso do universo profundamente

    arraigado na doutrina atomista.

    O terceiro captulo busca dar conta do novo modo de compreenso do mundo

    proposto pelo epicurismo, para tanto ser necessrio considerar um problema que

    muito inquietou o homem antigo: os fenmenos celestes e suas explicaes. Alm

    disso, analisaremos alguns impactos expressivos: o sbio epicurista vive num

  • 15

    universo infinito, num mundo perecvel, semelhante ou diferente a outros tantos,

    todos submetidos gerao e corrupo. Examinaremos tambm a compreenso

    epicrea do tempo como acidente e seus principais desdobramentos.

    No quarto captulo trataremos de dois pontos centrais que constituem os

    pilares do conhecimento epicreo da natureza da alma, so eles: a tese da

    corporeidade da alma e a tese da mortalidade da alma. Elas possuem uma estreita

    ligao, j que suas bases so as mesmas que regem a natureza de todos os

    corpos. Os aspectos fsicos da alma, sua constituio e funcionamento apontaram

    para sua natureza como corprea e perecvel.

    O captulo final dedica-se a anlise da figura do sbio e as mudanas

    provocadas pela investigao da natureza, enfatizando os aspectos relativos

    corporeidade da alma e a morte. A afinidade entre filosofia e a sade da alma um

    tema recorrente na filosofia grega, todavia com Epicuro possvel perceber novos

    contornos. Avaliaremos como o pensamento epicreo cuidou de temas como

    imortalidade, suicdio, destino e outros elementos afins, de modo a atravessar uma

    srie de problemas que, se relegados, impossibilitariam a tranquilidade e a felicidade

    do sbio. O ponto central que ao buscar conhecer sua verdadeira natureza o

    homem faz um percurso que o conduz ao conhecimento da morte e,

    consequentemente, a superao do medo e das crenas vazias que o alimentam. A

    inovao de Epicuro no estaria em acreditar que o conhecimento verdadeiro dirige

    a alma do homem a uma opinio correta sobre o que a morte, o que o diferencia

    a singularidade do caminho proposto e suas importantes transformaes.

    A principal fonte que nos chegou a obra de Digenes Lartios Vida e

    doutrinas dos filsofos ilustres, escrita provavelmente por volta do sculo terceiro

    depois de nossa era; o autor dedicou o dcimo e ltimo livro exclusivamente a

    Epicuro. Os fillogos se debruaram principalmente sobre dois manuscritos

    conhecidos como Parinisus (sec. XIII ou XIV) e Barbonicus Neapolitanus (sec. XII?),

    apenas em 1475 ambos foram vertidos para o latim com o nome de De Vita et

    moribus philosophorum, por Ambrosius Civenius, em Veneza.

    Sem dvida a reunio de textos e fragmentos epicreos proposta por Usener,

    com o ttulo de Epicurea, continua sendo a obra divisora de guas em relao

    retomada do epicurismo. A primeira edio foi publicada em 1887 em Leipzig, com

    reedio em Roma no ano de 1963. Em 1977, tambm em Roma, foi publicada a

    continuidade do trabalho de Usener, o Glossarium Epicureum, sob a cura de Gigante

  • 16

    e Schmid, nele somou-se aos Epicurea uma srie de termos oriundos do

    Gnomologium vaticanum.

    O Gnomologium vaticanum foi o nome atribudo ao manuscrito encontrado no

    Vaticano por Wotke em 1888, composto de 81 sentenas, entre as quais 13 tambm

    podiam ser lidas entre as mximas soberanas que encerram o livro X, das Vidas e

    doutrinas dos filsofos ilustres.

    Entre as tradues comearemos por destacar a clssica Epicuro, Opere,

    Fragmmenti, Testimonanze por Bignone, Bari, 1919, com uma notvel introduo e

    comentrios. Tambm digna de nota Epicurus, the extant remains por Bailey,

    publicada em Oxford, 1926. Em 1960 Graziano Arrighetti publicou em Turim Epicuro,

    Opere com introduo e notas criteriosas.

    Entre as tradues recentes lanamos mo do trabalho de Marcel Conche,

    onde encontramos uma introduo ao pensamento de Epicuro e seu mtodo de

    conhecimento, seguido do texto grego com traduo e notas. Reconhecemos o

    grande esforo de Parente em reunir uma das mais completas obras sobre o

    epicurismo, nela encontramos desde as cartas, mximas e sentenas atribudas a

    Epicuro, at os importantes fragmentos da obra Peri physeos. Tambm devemos

    mencionar que a autora disponibiliza uma ampla doxografia, oferececendo ao

    estudioso do epicurismo um leque de possibilidades de investigao, dificilmente

    encontrado em uma mesma obra. A edio proposta por Hicks do Lives of eminent

    philosophers, publicada em Cambridge, 1958, foi uma obra consultada com

    frequncia, que parece ter servido de inspirao para a traduo de Mario da Gama

    Kury.

    Entretanto, nossa maior referncia o trabalho de Jean Bollack, seus dois

    livros configuram duas cuidadosas tradues do grego para o francs. Elas nos

    serviram como orientao constante, graas aos aspectos filolgicos e comentrios

    presentes nas anlises das passagens. Encontramos tanto no La lettre dpicure

    (Paris, 1971), realizado em associao com Mayotte Bollack e Heinz Wismann,

    quanto no estudo La pense du plaisir, picure: texte moraux, commentaires (Paris,

    1975), uma fonte abundante de pesquisa e reflexo crtica sobre o pensamento de

    Epicuro.

    Usamos ao longo da pesquisa uma ferramenta nova e de grande contribuio

    para a consulta dos textos gregos da grande maioria de autores da antiguidade,

  • 17

    esse recurso o Thesaurus Linguae Gregae, operado a partir da plataforma do

    programa Digenes2.

    2 All data is the Thesaurus Linguae Graecae, the Packard Humanities Institute, The Perseus Project and others. The information in these databases is subject to restrictions on access and use; consult your licenses. Diogenes (version 3.1.6) is 1999-2007 P.J. Heslin.

    http://www.durham.ac.uk/p.j.heslin/Software/Diogenes/http://www.durham.ac.uk/p.j.heslin/Software/Diogenes/license.php
  • 18

    CAPTULO I PRESSUPOSTOS DA INVESTIGAO DO PROBLEMA DA

    MORTE

    Ao investigar o pensamento grego antigo, o pesquisador se depara com

    alguns obstculos que j so esperados. O primeiro deles certamente diz respeito

    ao trajeto feito por aquele texto desde sua criao at o presente, a autenticidade do

    documento pode ser questionada, sua integridade, as possibilidades de alteraes

    ou mesmo a corrupo ou existncia de lacunas. Todos esses pontos fazem parte

    do trajeto a ser percorrido pelo estudioso do epicurismo. Aps considerar esses

    aspectos entram em cena dificuldades inerentes abordagem do texto em sua

    lngua original, o grego antigo, sem dvida uma tarefa para toda a vida, destinada

    incompletude.

    No caso do epicurismo3 seu principal adversrio foi a vulgarizao e

    simplificao de suas doutrinas ao longo da histria do pensamento ou das religies

    3 Existem poucas obras sobre o pensamento de Epicuro publicadas no Brasil. A primeiro escrito do qual temos notcia um artigo publicado Vianna (1965, p. 47-64) na revista Kritrion, nele o autor aborda o tema do epicurismo, apresentando vrios aspectos ligados fsica, cannica e tica. Todavia, o texto reflete em alguns momentos a desconfiana do autor em relao ao pensamento de Epicuro, curiosamente suas principais insinuaes crticas recaem em lugares comuns, como abordaremos adiante. Ullman (1987, p.9), buscou reapresentar Epicuro comunidade brasileira, sua preocupao foi corrigir distores que segundo ele percorriam a histria da filosofia atravs dos sculos. Seu texto faz uso de passagens epicreas para iluminar pontos geralmente analisados de maneira obscura. Alm disso, representa uma fonte de autores e tradues de fragmentos ligados ao epicurismo, sem dvida de grande auxlio para qualquer investigador de histria da filosofia. Entretanto, mostrou-se excessiva a recorrente comparao doutrina crist, por vezes temos a impresso de estarmos diante de uma defesa velada do cristianismo, continuamente exaltado, como referncia de um pensamento transcendente, superior e verdadeiro. Talvez uma das maiores contribuies difuso do epicurismo no Brasil pode ser encontrada no artigo de Pessanha (1992) intitulado As delcias do jardim. Numa linguagem simples e rigorosa, somos convidados reflexo em torno dos principais temas do epicurismo; ao abordar a tica, a fsica, a poltica, a teologia, o prazer, a dor e morte, o autor nos aproxima de Epicuro, seu tempo e posicionamentos filosficos diante de problemas humanos que nos so familiares ainda hoje. Pessanha mais um dos estudiosos a levantar a recorrente questo das equivocadas, e por vezes maldosas, interpretaes da filosofia do jardim ao longo da histria do ocidente. Em 2003, Silva publicou no Brasil o livro Epicuro, sabedoria e jardim, nele encontramos uma anlise interpretativa dos textos de Epicuro, um dos objetivos declarados pelo autor de preencher uma lacuna existente no campo filosfico nacional ao apresentar ao pblico brasileiro um estudo sobre a noo de equilbrio. A tese principal visa demonstrar a unidade e coerncia interna do pensamento epicreo via noo de equilbrio. Esse aspecto produziu um efeito indito que consistiu em conduzir seus leitores pelas sendas do epicurismo de modo sistemtico e orgnico, pensando o epicurismo a partir do prprio epicurismo. Identificamos a dificuldade de muitos estudiosos frente tentao de analisar o epicurismo ancorado em outras doutrinas, o caso paradigmtico certamente o cristianismo.O estudo mais recente foi publicado em 2009, chamado Os caminhos de Epicuro por seu autor Spinelli. Nele encontramos um amplo campo de referncias ao epicurismo, e nisso nos pareceu consistir seu maior valor. Apesar de a proposta central incidir sobre Epicuro, a leitura da obra revela um outro percurso, mais da metade de suas pginas foi dedicada aos desdobramentos latinos do pensamento de Epicuro, a impresso que temos de um enfoque, predominantemente histrico, nas anlises de Lucrcio, Ccero, Sneca, entre outros. A principal constatao que o pensamento de Epicuro parece ter sido preterido, as

  • 19

    (BOLLACK, 1975, XV). Muitas vezes a filologia ou a cincia dos textos pecou por

    afastar demais as ideias de um pensador de seu contexto histrico e da realidade

    vivida por ele. Um trao forte do material usado diz respeito maneira como a

    filosofia de Epicuro nos chegou, por meio de cartas, endereadas a amigos, que

    faziam parte de sua escola. Se o que temos como documentos principais so cartas,

    no podemos esquecer se tratar de epstolas dirigidas aos amigos ou discpulos, sob

    pena de desumanizar uma obra, exauri-la de sua vitalidade. A disposio das ideias

    apresentada de modo claro, amigvel e esclarecedor, tratando de temas diversos

    que tm em comum a busca pela tranquilidade e pelo prazer. Acreditamos que

    essas cartas apresentam uma coerncia interna, verificvel quando relacionadas

    entre si, anlise que faremos adiante. importante lembrar esses aspectos para no

    considerarmos os textos epicreos como neutros, desubstancializados ou distantes

    de seus aspectos histricos e biogrficos. De modo que a dimenso primeira de sua

    escrita foi a transmisso de ideias entre duas pessoas que possuam vnculos e

    partilhavam de um mesmo modo de viver. A cena tem como pano de fundo a escola

    de Epicuro, em um tom de conversao, o mestre desenvolve suas ideias e as envia

    aos discpulos com o objetivo de exortar a filosofia e condensar sua doutrina.

    Ao longo dos sculos a tradio acumulou camadas de representaes

    manifestas em tradues, interpretaes e crticas que muitas vezes afastaram as

    conexes entre Epicuro e o epicurismo. Tais conexes no devem ser tomadas

    como bvias, todavia o espao de sua produo deve ser mantido e a histria de

    suas interpretaes deve ser um importante elemento a ser considerado. Porm

    nunca em detrimento da obra de um pensador, inclusive podem refletir o lugar que

    Epicuro ocupou em vrios momentos da histria da filosofia.

    Um dos grandes desafios de empreender uma investigao em torno da

    morte sob uma perspectiva filosfica natural afastar-se totalmente da religiosidade

    consequncias principais so uma perspectiva demasiado histrica e superficialmente comparativa, uma abordagem ampla que evita problematizar a filosofia epicrea de modo cuidadoso e com o devido rigor metodolgico. Somos obrigados a nos contentarmos com imagens do epicurismo ao longo do tempo, que apesar de possurem valor, nada acrescentam ao edifcio do pensamento de Epicuro. O cenrio acadmico brasileiro tem produzido recentemente vrios trabalhos sobre o epicurismo. Encontros peridicos como os da ANPOF (Associao Nacional de Ps-Graduao em Filosofia) e da SBEC (Sociedade Brasileira de Estudos Clssicos) tm contribudo em muito para o dilogo entre pesquisadores do helenismo, o aumento de estudos sobre o epicurismo e sua tradio filosfica perceptvel, manifesto em conferncias e apresentaes de trabalhos. Identificamos sinais de desenvolvimento tambm atravs do crescimento de dissertaes que tm como objeto de pesquisa o epicurismo. Fenmeno presente em algumas instituies brasileiras, inclusive na UFRN, j que nos ltimos anos seu programa de ps-graduao produziu pelo menos cinco dissertaes com temas situados dentro do campo do epicurismo.

  • 20

    e do mito. Isso no fcil hoje, ainda que tenhamos avanos cientficos

    extraordinrios no campo da biologia, medicina, fsica e qumica. Esses grandes

    passos trouxeram fortes desdobramentos para nossa compreenso do que a vida,

    e consequentemente, a morte. A velhice, o aborto, o suicdio, a eutansia, o

    extermnio em massa e at mesmo a aniquilao total da espcie humana so

    temas presentes nas discusses contemporneas. A crtica religiosidade ganhou

    dimenso planetria, no raro nos depararmos com a noo de morte como

    aniquilamento total daquilo que nos constitu como humanos. Independente da

    crena individual, essa uma concepo presente na cultura ocidental. Muitos

    acreditam ser esta uma questo que merece ser estudada.

    Essas noes to presentes em nosso tempo podem criar uma dificuldade

    significativa, quando se faz necessrio dirigir nossa ateno s concepes antigas

    de mortalidade humana, principalmente ao abordar seu aspecto mais delicado: a

    crena na corporeidade e mortalidade da alma. extremamente difcil nos

    desfazermos de nossa compreenso do que o homem, a vida em sociedade, e,

    acima de tudo, o que a morte, perspectivas complexas com mltiplas nuances.

    Para que a conscincia contempornea possa compreender o verdadeiro sentido da

    doutrina de Epicuro, necessrio o despojamento das ideias que o cristianismo tem

    nos apregoado ao longo dos sculos, principalmente no que diz respeito morte.

    As posies epicreas diante das questes ligadas ao problema da morte

    sempre geraram polmica e produziram debates ao longo dos sculos. Dois

    aspectos emergiram como mais relevantes, o primeiro remetia a tese da

    corporeidade da alma humana e seu desdobramento imediato, sua condio de

    sujeio ao processo de dissoluo fsica, o segundo ponto tratava dos medos

    envolvendo a morte.

    Em relao s teses da corporeidade e mortalidade da alma temos

    depoimentos clebres como o de Agostinho em sua obra Confisses (VI, 16), que

    admitiu em suas discusses com amigos o valor do pensamento de Epicuro, mas

    no pode conciliar sua crena na imortalidade da alma e no julgamento aps a morte

    com as secas concepes epicuristas. Outro tema amplamente discutido ainda na

    antiguidade foi a importncia dada por Epicuro, e sua escola, s perturbaes

    anmicas relacionadas com a morte. Tanta ateno provocou desconfiana em

    personalidades como Ccero, no livro De Natura Deorum (I, 31, 86) este sugeriu que

  • 21

    Epicuro e seus discpulos generalizaram seus prprios temores, atribuindo a todos

    perturbaes que estariam longe serem estendidas a maioria dos homens.

    O tratamento mais cuidadoso sobre as posies epicreas referentes aos

    problemas da morte foi dispensado por dois ilustres epicuristas Lucrcio e Filodemo

    de Gadara. A abordagem ampla, desses grandes nomes do epicurismo, considerou

    aspectos fsicos e ticos do conjunto de problemas relacionados questo da morte.

    As causas desse tratamento poderiam ser as mais variadas, entre elas o fato de

    serem epicuristas. Isso teria constitudo um compromisso maior com a

    apresentao das doutrinas do mestre e sua tradio, de modo que a constatao

    acima representaria apenas a consequncia de uma exposio ampla da teoria.

    Entretanto as hipteses propostas por Ccero e outros so difceis de serem

    sustentadas quando levamos em considerao as obras desses filsofos epicuristas,

    em especial passagens escritas por Lucrcio no livro III do poema Da Natureza e por

    Filodemo em seu tratado Sobre a morte. Acreditamos que ainda na antiguidade

    possvel encontrar indcios de abordagem pontuais sobre o tema da morte, com

    problematizaes especficas no campo da tica ou da fsica, mas nunca em sua

    perspectiva unificada, com exceo claro dos prprios filsofos epicuristas.

    Sustentamos que essa no uma prerrogativa gratuita, e sim um desdobramento

    natural, originrio do pensamento de Epicuro e do percurso proposto por ele no

    sentido de alcanar a compreenso adequada sobre o que a morte.

    1.1 A MORTE COMO PROBLEMA QUE S PODE SER EXAMINADO DE MODO

    COERENTE PELA HIPTESE DA COESO E UNIDADE DA FILOSOFIA DE

    EPICURO

    A morte uma questo fundamental, pois est ligada aos principais

    problemas abordados pelo epicurismo, de modo que a perspectiva diante da morte

    configurou uma postura diante da cultura e da vida, prpria do epicurismo. O

    conhecimento adequado da morte fruto do exerccio filosfico desenvolvido dentro

    de um sistema de pensamento.

    A necessidade de investigao da morte exige o tratamento de problemas

    ticos e fsicos. Balaud (2002, p.40) reconhece isso e sustenta a tese que dois

    tipos de anlise sobre a questo da morte so propostos por Epicuro: fsica por um

    lado, tica por outro. Para Balaud, enquanto fenmeno fsico a morte significa a

  • 22

    cessao de todas as funes vitais do composto humano. Nas cartas a Herdoto e

    a Meneceu temos dois tratamentos diferentes dispensados questo da morte. Na

    primeira carta, a abordagem claramente fsica, com nfase nos aspectos relativos

    dissoluo e decomposio; sempre como pano de fundo do problema est a vida.

    J na segunda, possvel encontrar uma dimenso mais voltada para esfera prtica

    com questes relacionadas ao modo de viver e concernentes morte; em alguns

    momentos, o tema fica em segundo plano, mas ainda assim encontra-se presente,

    com desdobramentos diretos no que atine aos deuses, dor e ao prazer. Entretanto

    se considerarmos a Carta a Meneceu como uma abordagem exclusivamente tica,

    correremos o risco de reduzir a perspectiva e o alcance das ideias presentes nesse

    documento.

    A escolha da morte como problema referencial no gratuita, acreditamos

    que esse tema o que ilustra com mais profundidade a coerncia e unidade do

    sistema de pensamento epicreo. A compreenso da morte a expresso do

    posicionamento do sbio em relao ao grande conjunto de problemas que

    envolvem a questo da gerao e da corrupo. Pois, se o sbio pretende ter

    alcanado o conhecimento desse continente temtico, necessrio, ento, viver em

    consonncia com todos os desdobramentos da resposta. Epicuro acreditou ter

    encontrado explicaes suficientemente seguras para espantar a ignorncia, a

    superstio, a dor e o medo, todas via exame da natureza. Vejamos o trecho a

    seguir:

    Acostuma-te a crer que a morte nada para ns. Efetivamente, todos os bens e males esto na sensao, e a morte a privao das sensaes. Logo o conhecimento correto de que a morte nada para ns torna fluvel a mortalidade da vida, no por atribuir a esta uma durao ilimitada, mas por eliminar o desejo de imortalidade (Vidas, X, 124) 4.

    Apresentaremos agora alguns pontos que guiaro nossa investigao de

    modo coerente com a letra de Epicuro. O primeiro deles diz respeito ao

    reconhecimento que o problema da morte no pode ser resolvido de um momento

    4 Originalmente em grego: . , .

  • 23

    para o outro, necessrio tempo e meditao, da a importncia da frase inicial, que

    ressalta a necessidade de habituar-se a uma impactante constatao: a morte

    () nada em relao a ns5. No seria demasiado supor que Epicuro estaria

    retomando algo que j fora apresentado antes, insistindo com seu discpulo para que

    meditasse sobre o sentido de uma afirmao to categrica, certamente com

    conexes relacionadas aos princpios fundamentais internalizados pela memria. O

    segundo aspecto diz respeito possibilidade de construir um saber sobre o tema. Ao

    sustentar que a morte nada para ns, Epicuro est dizendo que houve uma

    investigao sobre o problema, e o processo culminou com essa concluso. A frase

    seguinte ajuda a confirmar nosso raciocnio, pois Epicuro faz uma conexo

    importantssima ao ligar a questo da morte a aspectos claramente vinculados

    physiologia6 e ao principal critrio de conhecimento, a sensao (). Epicuro

    declara a Meneceu que todo o bem () e todo mal () se encontram na

    sensao. Nesse ponto reconhecemos uma das grandes evidncias do papel da

    questo da morte para a tese da unidade do pensamento de Epicuro, uma vez que

    ele integra de modo explcito e inequvoco aspectos ticos e naturais: o lugar de

    existncia do bem e do mal fsico, a sensao humana. A reflexo de Epicuro se

    apoia no mesmo princpio, prprio de seu sistema, que concebe o prazer como bem

    primordial e o sofrimento como mal. O papel da sensao define a condio para

    todo bem ou mal, sem sensibilidade a consequncia de bvia deduo: a morte

    nada para quem no existe mais. A sensao o elemento do processo de

    conhecimento que integra o estudo da natureza, do homem e do mundo, e a

    reflexo tica.

    Como veremos mais detalhadamente adiante, Epicuro acreditava na

    possibilidade de conhecer a verdadeira natureza da morte. Seu posicionamento

    descarta qualquer ceticismo frente ao problema. A filosofia se prope a dar conta

    dos aspectos mais importantes relacionados ao tema da morte, e a concluso

    fundamental reza que a morte nada em relao a ns. primeira vista, parece

    contraditrio afirmar que possvel conhecer algo como a morte e mais adiante

    concluir que ela nada em relao a ns. Entretanto, por meio do exame do

    problema suscitado por esse aparente paradoxo que se pode alcanar o

    5 Aqui se faz necessrio uma ressalva, a discusso que propomos acima no visa analisar os problemas de intrepretao dessa passagem, apenas argumentar a favor da unidade do problema. Desenvolveremos adiante com mais profundidade nossa interpretao desse importante trecho. 6 Traduzimos por investigao da natureza.

  • 24

    conhecimento adequado da morte. Para ser mais exato possvel identificar um

    conjunto de problemas, e o mais relevante coloca-se a questo: o que a morte.

    Alguns aspectos desse saber so de carter positivo, sendo o principal deles a

    condio de mortalidade no qual se encontram todos os homens. A citao acima

    particularmente clara no que diz respeito a esse tema: existe um conhecimento

    correto do que a morte, e graas a ele o homem pode usufruir as alegrias da vida,

    com pleno saber de seu estado de mortalidade.

    Quanto ao uso do termo mortalidade so necessrios alguns esclarecimentos,

    porque poderia haver algum tipo de objeo em relao a seu emprego no contexto

    da filosofia de Epicuro. Se temos athanasas () traduzido, no passo 134,

    como imortalidade7 em todas as obras que consultamos, no descabido pensar e

    traduzir a expresso thnets () como mortal, ou sujeito morte. A condio de

    mortal resumida pela palavra mortalidade. Tanto assim que alguns autores o

    fazem, conforme pode ser visto nas tradues de Hicks e Kury. Bollack optou por

    mortal, enquanto Conche transladou do grego para o francs como condio mortal.

    Por sua vez, Parente verteu para o italiano do mesmo modo, condio mortal.

    Investigar a morte tomando como equivalente do problema a noo de

    thanats nos conduziria a uma limitao de nossa compreenso sobre a questo.

    Esse termo aparece diversas vezes de modo emblemtico na Carta a Meneceu. Se

    relembrarmos que esse texto frequentemente associado tica, poderamos ser

    levados a pensar que o predomnio da questo da morte de ordem tica.

    Impresso essa reforada pela constatao de sua ausncia completa na Carta a

    Herdoto, o que nos conduziria a no associar a questo da morte a um tratamento

    minucioso no que toca a importantes reflexes sobre a natureza, segundo os

    princpios propostos pela physiologia. Esse caminho infrutfero por duas razes, a

    primeira delas remete a toda discusso sobre a unidade do pensamento de Epicuro.

    A segunda mais especfica, pois, como veremos, a Carta a Herdoto resume a

    teoria epicrea da corporeidade da alma e, consequentemente sua condio de

    acidente sujeito dissoluo. Ora, a dissoluo da alma implica necessariamente na

    morte do homem. Na verdade, dissoluo e morte so aspectos que se relacionam

    intrinsecamente, e muitas vezes se confundem, a ponto de no conseguirmos isolar

    uma da outra, ambas apontando para noo de morte.

    7 Destaque para os tradutores: Bollack, Conche, Hicks, Kury, Parente, etc.

  • 25

    O tema da morte cumpre bem essa exigncia, pois seu entendimento tem

    dois grandes eixos: o primeiro deles o movimento e sua crescente complexidade

    atravs dos processos de agregao-desagregao, gerao-corrupo e

    nascimento-morte. O segundo, diz respeito ao modo como se conhece e est

    intimamente associado ao papel da sensao no pensamento de Epicuro. No

    podemos esquecer que tudo isso ocorre num processo de conhecimento da

    natureza das coisas que visam felicidade.

    Em relao ao problema da unidade na filosofia de Epicuro, apresentamos em

    primeiro lugar o principal raciocnio presente na letra de Epicuro, indicando com

    clareza que ele mesmo percebia sua doutrina em termos de conjunto e sistema

    filosfico. Em segundo lugar, apresentaremos a opinio, a anlise e a proposta de

    reunio sistemtica da principal fonte, a obra de Digenes Lartios. Nossa

    abordagem tratar de trs ncleos de problemas envolvendo a construo da

    compreenso epicurea da morte: a fundamentao para o conhecimento da

    natureza das coisas, a physiologia como outro olhar sobre o mundo e os fenmenos,

    por fim as consequncias ticas e polticas do conhecimento adequado da morte.

    1.2 EPICURO POR DIGENES: O SEGUNDO ARGUMENTO SOBRE A UNIDADE

    DO SISTEMA DE PENSAMENTO EPICREO

    Iniciaremos nossa anlise da obra de Epicuro examinando a ordem proposta

    e apresentada, por Digenes Lartios, no dcimo livro de sua obra Vidas e doutrinas

    dos filsofos ilustres. Nossa principal justificativa baseada na inteno, claramente

    exposta pelo autor, de apresentar um resumo de toda a filosofia de Epicuro:

    Tentarei expor a doutrina desenvolvida por Epicuro nessas obras transcrevendo trs de suas Epstolas, nas quais ele apresenta uma eptome de toda a sua filosofia8. Transcreveremos tambm suas Mximas Principais e demais sentenas dignas de meno, de tal forma que possas, leitor, apreender todos os aspectos da personalidade do filsofo, ficando em condio de poder julg-lo

    (Vidas, X, 28-29) 9.

    8 Hicks (1954, p.559) traduziu esse trecho da seguinte maneira: an epitome of his whole system. 9 Em grego:

    , , .

  • 26

    Com esses elementos o autor pretende oferecer as condies necessrias

    para que seus leitores possam avaliar com segurana no apenas o filsofo, mas

    tambm o homem e acima de tudo o conjunto de sua filosofia. Certamente Digenes

    tinha a sua disposio vrios tratados escritos por Epicuro. No captulo dez temos

    diversos trechos que demonstram o conhecimento de outras obras e passagens.

    Isso fica patente na passagem 136, na qual encontramos referncias aos trabalhos

    Da Escolha e da Rejeio, Do Fim Supremo e Dos Modos de Vida, sobre o tema da

    morte teria escrito um livro cujo ttulo dado foi Opinies sobre as doenas e a morte,

    todos eles foram anteriormente citados e sua autoria atribuda a Epicuro no passo

    28. Inclusive, poderia ter retirado deles passagens expressivas sobre diversos

    aspectos de sua filosofia. Entretanto, a escolha de Lartios incidiu sobre cartas

    escritas por Epicuro, direcionadas aos discpulos num tom afetuoso. Essas missivas

    serviram ao propsito de expor aspectos essenciais da doutrina de modo resumido e

    consistente. Por outro lado, a opo pelo formato de carta pode nos ajudar na

    identificao de traos de humanidade do prprio Epicuro, colabora para que

    montemos com mais clareza um painel do clebre lugar ocupado pela amizade e de

    seu exerccio no epicurismo.

    A leitura de algumas passagens deixa transparecer em diversos momentos a

    simpatia de Digenes por Epicuro10, o primeiro ponto que se destaca a defesa

    empreendida contra os raivosos caluniadores de Epicuro que so elencados do

    passo terceiro ao nono. As acusaes eram as mais variadas, Tmon o descreveu

    como um co e um dissoluto, esticos como Diotimos e Poseidnios hostilizaram

    publicamente o filsofo e sua filosofia, o primeiro deles teria publicado dezenas de

    cartas se fazendo passar por Epicuro, enquanto o segundo espalhou comentrios

    srdidos sobre a famlia, os discpulos e as capacidades intelectuais de Epicuro.

    Obras foram escritas com os ttulos Sobre a Efebia de Epicuro e Contra Epicuro

    (Vidas, X, 04). digno de nota que, antes mesmo de apresentar a vida e a obra do

    filsofo, Digenes montou um cenrio que refletiu toda a polmica e controvrsia em

    torno do epicurismo, desde a poca de Epicuro at seu prprio tempo. Em nenhum

    outro momento de seu trabalho podemos perceber tal cuidado e deferncia em

    10 Nos pargrafos 9 e 138 do livro X encontramos elogios fervorosos a Epicuro, no entraremos na discusso da legitimidade da autoria da obra Vidas e doutrinas dos Filsofos Ilustres, pois consideramos plausvel a hiptese de Digenes ter realmente apreciado a filosofia de Epicuro, tanto que deu um tratamento diferenciado a sua obra. Portanto cabe aqueles que postulam outras teses apresentarem evidncias consistentes, o que at hoje ainda no foi feito de modo convincente e definitivo.

  • 27

    relao a outro pensador. A atitude de Digenes pode ser distinguida com clareza

    na leitura da passagem que se segue:

    Mas, esses detratores so uns desatinados, porque nosso filsofo11 apresenta testemunhos suficientes de seus sentimentos insuperavelmente bons para com todos: a ptria que o honrou com esttuas de bronze; os amigos, cujo nmero era to grande que no podiam ser contados em cidades inteiras (Vidas, X, 09) 12.

    Uma defesa to enftica certamente uma resposta a ataques ferozes, e isso

    pode ser confirmado na leitura dos passos referidos, e qualquer um que se disponha

    a investigar a histria da recepo do epicurismo vai encontrar muitas apropriaes

    indevidas, comentrios impregnados de m-f e crticas que dificilmente dispensam

    ao conjunto de seu pensamento um tratamento adequado. Encontramos exemplos

    paradigmticos de crticas tradio presentes nas introdues escritas por Bollack

    em suas duas obras de traduo de textos epicreos. Tanto em seu estudo sobre a

    Carta a Herdoto, de 1971, quanto na obra publicada em 1974, o autor acusa a

    histria da filosofia de tratar com repulsa o pensamento de Epicuro e sua escola.

    Curiosamente, como vimos, uma das intenes do Digenes foi oferecer

    condies para que os leitores pudessem entrar em contato com a obra de Epicuro,

    de modo que tivessem elementos suficientes para poder julgar a ambos, autor e

    obra. razovel afirmar que a seleo organizada por Digenes fruto da crena,

    que ele mesmo nutria na capacidade elucidativa dessas cartas e sentenas.

    Reunidas elas configurariam um programa seguro com a funo de apresentar, de

    modo resumido e sistemtico, o conjunto do pensamento de Epicuro.

    As cartas transcritas foram direcionadas a trs discpulos: Herdoto, Pitcles

    e Meneceu. Acreditamos que em todas as cartas apresentadas possvel identificar

    uma unidade sistemtica, que, como veremos adiante, caracterstica do

    pensamento de Epicuro. Nesse sentido, partilhamos do mesmo ponto de vista de

    Bollack (1971, p.14), que afirmou ter percebido nas cartas uma harmonia constituda

    de trs aspectos e trs estilos, coroados por um conjunto de mximas gerais sobre

    11 Alguns estudiosos como Dumont (2004, p.515) acreditam que Digenes foi sem dvida um epicurista, obviamente uma das passagens que ajudam a corroborar essa tese a citada acima. 12 Traduo em grego: ' . , '

  • 28

    questes que envolvem a busca pela vida feliz. No incomum que ao longo do

    tempo, as cartas a Herdoto, Ptocles e a Meneceu tenham sido vistas como

    referentes, respectivamente, aos temas: fsica, fenmenos celestes e da prpria vida

    humana. Esse modo de percepo da obra de Epicuro encontra-se no livro escrito

    por Digenes:

    A primeira Epstola, dirigida a Herdotos, trata da fsica; a segunda, dirigida a Ptocles, trata da meteorologia e astronomia; a terceira, dirigida a Menoiceus, trata das concepes sobre a vida humana. Devemos comear pela primeira, aps umas poucas observaes

    acerca das divises da filosofia segundo Epcuros (Vidas, X, 19) 13.

    O autor apresenta uma ordem que deve ser seguida, primeiro a fsica, depois

    os fenmenos celestes, por fim devem ser abordados os assuntos relativos vida

    humana. No podemos perder de vista que antes tivemos uma introduo na qual a

    vida e a fama de Epicuro foram postas em cena, apenas aps considerarmos tais

    pontos poderemos, de acordo com Digenes, avanar para a leitura das cartas. Na

    realidade, o final da citao faz ainda outra ressalva, necessrio discutir um

    problema relevante, a saber, a diviso da filosofia epicrea:

    A filosofia se divide em trs partes: a cannica, a fsica e a tica. A cannica uma introduo ao sistema doutrinrio, e constitui o contedo de uma nica obra intitulada Cnon; a fsica abrange toda a teoria da natureza, e constitui a matria dos trinta e sete livros Da Natureza e em suas linhas gerais, das Epstolas; a tica trata dos fatos relacionados com a escolha e a rejeio, constituindo a matria das obras Dos Modos de Vida, Epstolas e Do Fim Supremo. Os epicuristas, todavia, costumam reunir a cannica e a fsica e chamam a cannica de cincia do critrio de verdade e do primeiro princpio, e tambm doutrina elementar; chamam a fsica de cincia do nascimento e da morte, e tambm da natureza; a tica chamada pelos mesmos de cincia do que deve ser escolhido e rejeitado, e

    tambm dos modos de vida e do fim supremo (Vidas, X, 29-30) 14.

    13 Traduo em grego: , , ' . , ' . 14 Traduo em grego: , . , , . ' ,

  • 29

    O texto indica uma maneira geral de diviso da filosofia, explica cada seo

    que compe o quadro e faz uma rpida aplicao das partes ao conjunto da doutrina

    de Epicuro. Ainda que aceitssemos que a filosofia de Epicuro foi dividida por ele em

    trs partes, nem por isso seria necessrio abdicar da unidade de seu pensamento, j

    que no deixariam de ser trs divises no interior de um conjunto. Entretanto, a

    sequncia mostrada na exposio anterior sofre uma mudana radical, o autor lana

    suspeita sobre a adequao de tal diviso ao pensamento de Epicuro e sua tradio.

    Afirma outra forma de compreenso do conjunto do epicurismo, com isso pe em

    evidncia o modo como a prpria escola epicurista concebia sua filosofia. A fsica,

    segundo Digenes, era percebida pelos epicuristas como o saber em torno da

    gerao e da corrupo, e em torno da natureza. Essa expresso serviu como

    maneira de resumir nosso posicionamento sobre a physiologia, ela uma alterao

    da proposio , traduzida

    por Mario da Gama Kury da seguinte maneira chamam a fsica de cincia do

    nascimento e da morte, e tambm da natureza (DIGENES LARTIOS, 2008, p.

    289). Parente (1974, 292), estudiosa italiana, traduziu a mesma passagem da

    seguinte maneira enquanto chamam a fsica cincia da gerao, da corrupo e da

    natureza15, no muito diferente do que encontramos na verso de Hicks (1954, p.

    559) quanto a fsica, eles dizem, tratar do vir a ser e do perecer, e da natureza16.

    Entendemos physiologia como investigao da natureza das coisas, dos processos

    de gerao e corrupo, nascimento e morte.

    J a tica consiste no conhecimento de tudo que devemos nos esforar em

    buscar e, por outro lado, indica tambm as coisas que devem ser evitadas. Essa

    perspectiva tica, conhecer a natureza para escolher, traz implcita a noo de

    , . De acordo com a traduo de Mario da Gama Kury. Essa compreenso tambem partilhada por Duvernoy (1990,31-32): Digenes Larcio (1999) registra realmente uma Cannica epicurista e sobre ela diz algumas palavras. Mas no se encontra nenhum vestgio consistente dessa Cannica. Mesmo uma Cannica redigida sob a forma de um tratado separado talvez inverossmel no mbito do discurso epicurista. Efetivamente, nota-se que todos os textos de que se dispe comportam a cannica necessria sua compreenso. No corpo de cada carta, aparece o que se deve saber para ler no que nela est explicado. Alis, se houvesse existido uma Cannica, esta teria sido citada em outras fontes antigas; isso no acontece. Enfim, nem Digenes de Enoanda nem Lucrcio dividem o epicurismo em trs partes, mas expem em duas vertentes: uma fsica das coisas e uma sabedoria; decididamente, parece que esses dois temas sozinhos constituem a ossatura do discurso epicurista. 15 Traduo nossa do original: ... mentre dicono la fisica scienza della generazione, della corruzione e in genere della natura. 16 Traduo nossa do original ingls: ...while physics proper, they say, deals with becoming and perishing and with nature;

  • 30

    relao fsica e espacial, pois envolve movimentos de aproximao e afastamento

    do indivduo em relao s coisas, pessoas e possibilidades que o cercam.

    Diante de tal conflito entre duas vises diferentes do epicurismo, escolhemos

    recusar a primeira. Nossa justificativa consiste em considerarmos insuficiente como

    prova o fato de existir uma orientao geral corrente no perodo que dividiu a

    filosofia em trs partes fsica, cannica e tica. Acreditamos que a segunda posio

    mais coerente, e para sustent-la nos orientamos por uma leitura baseada nos

    textos restantes de Epicuro, neles identificamos a presena da physiologia e da

    tica. A primeira trata dos critrios de conhecimento para em seguida investigar a

    natureza, enquanto a segunda investiga a natureza humana. A fundamentao da

    tica na physiologia um ponto importante e j defendido por estudiosos do

    pensamento de Epicuro como Bollack (1971, p.13) e Silva (2003 p.20-21).

    Sustentamos um posicionamento semelhante, que poderia ser resumido da seguinte

    forma: a physiologia trata do problema da gerao e da corrupo e fornece os

    elementos bsicos para a compreenso da natureza. Uma vez constitudo, esse

    saber, o epicurista encontra um terreno slido para justificao de suas posturas

    ticas. Tal proposta tem a virtude de separar o pensamento de Epicuro segundo

    critrios presentes em aspectos textuais e pensar sua filosofia como uma tica

    baseada em uma investigao natural, posio apresentada tambm por Digenes

    Lartios.

    Numa certa medida esse entendimento fora na antiguidade partilhado por

    outros alm de Digenes Lartios. H uma citao de Sneca que diz:

    Os epicuristas a princpio reconheciam apenas duas partes, a fsica e a tica. Mais tarde a experincia ensinou-lhes a necessidade de se protegerem contra falsos conceitos e de corrigirem erros, e foram forados a introduzir a filosofia racional sob um outro nome (USENER, 2006, p. 60).

    Desse modo teramos outro elemento indicador de uma diviso em duas

    partes, acreditamos que essa leitura mais condizente como os textos

    remanescentes atribudos a Epicuro. Assim nada impede que durante os quatro

    sculos que se seguiram o epicurismo tenha introduzindo outro segmento, que

    cuidasse das condies do conhecimento, ou cannica, segundo o modelo de outras

    escolas. Todavia, at aqui no encontramos nos textos epicuristas aspectos que

  • 31

    sustentem essa tripartio, de modo que essa perspectiva poderia constituir um

    desenvolvimento posterior a escola epicurista grega, como sugeriu Sneca na

    passagem acima. Nesse sentido concordamos com Balaud (2002, p. 49) que

    afirma que a tripartio seria menos epicurista, e, portanto mais prxima de uma

    possvel traduo escolar da doutrina de Epicuro, segundo um modelo ternrio

    (lgica, fsica e tica). Para esse estudioso a reflexo sobre as regras e condies

    para o conhecimento (cannica) est estreitamente ligada ao estudo da natureza

    (physiologia), seu argumento fundamentado no comentrio de Digenes Lartios

    (2008, p. 289).

    Contudo, ao nos determos ao arranjo do material disposto por Digenes

    somos levados a um percurso inovador se comparado com os estudos feitos at

    hoje. O respeito pela sequncia encontrada no livro dez, configura tambm uma

    aposta terica, isso significa que acreditamos que essa ordem constitui um conjunto

    doutrinrio formado por temas relativos physiologia, fenmenos celestes, temas

    ticos e polticos, encontrados nas mximas soberanas.

    Se tomarmos como exatas as palavras de Digenes, e relembrarmos alguns

    pontos expostos anteriormente, devemos reconhecer uma grande influncia do

    epicurismo sobre as reflexes do autor, explicitamente apresentada nos seguintes

    termos:

    Aponhamos agora, por assim dizer, o selo final a toda esta obra e a biografia deste filsofo, citando suas Mximas Principais em concluso a todo o trabalho. Dessa forma seu fim assinala o inicio da felicidade (Vidas, X, 138)17.

    Todo o cuidado, afeio e espao destinados por Digenes ao pensamento

    de Epicuro so confirmados nessa passagem, independente dos problemas

    inerentes obra, como por exemplo, seu carter transcritivo, pois plausvel supor

    que ao copiar ele pudesse reproduzir a admirao de um outro autor presente no

    texto original, mas a concluso da obra em seu dcimo livro claramente a

    manifestao de uma escolha. E graas a essa predileo nos chegou um material

    de valor inestimvel: as cartas e mximas de Epicuro. Ao dispor as cartas e

    17 Traduo em grego: ( ) , , .

  • 32

    mximas nessa ordem Digenes nos transmitiu a impresso de valorizar todo o

    caminho epicurista at felicidade, apresentando a necessidade de lidar com um

    conjunto de problemas a serem conhecidos, investigados e superados por uma

    filosofia sistemtica e coerente.

    1.3 A RETOMADA DE UM PROBLEMA

    De fato esse primeiro argumento de carter introdutrio ao problema da

    unidade do pensamento no epicurismo. Por unidade do pensamento

    compreendemos um conjunto de conceitos e processos que remetem uns aos outros

    de modo sistemtico e coerente, em relaes de interdependncia sem as quais no

    se pode cumprir o trajeto filosfico proposto por Epicuro, que consistiu em buscar o

    conhecimento e a felicidade. Com esses esclarecimentos pretendemos mostrar que

    doxgrafos como Digenes j tinham uma viso da filosofia de Epicuro como um

    todo organizado. No foi essa a leitura de muitos especialistas. Apresentaremos a

    seguir um exemplo paradigmtico, uma mxima que ao longo do tempo gerou, a

    nosso ver, uma sucesso de imprecises e redues incidentes sobre a filosofia de

    Epicuro. Em outras palavras, interpretaes que conduzem ao engano, pois no

    reconhecem a unidade terica do epicurismo. Vamos dcima primeira mxima

    principal:

    Se no nos perturbssemos com nossas dvidas respeito dos fenmenos celestes, e se no recessemos que a morte significasse alguma coisa para ns, e tambm no nos perturbssemos com nossa incapacidade de discernir os limites dos sofrimentos e dos desejos, no teramos necessidade da cincia natural (Vidas, X, 142)18.

    Epicuro apresenta quais so os trs principais domnios de aplicao da

    physiologia: os fenmenos metereolgicos, a morte e os limites para nossas dores e

    desejos. O filsofo destaca que esses trs campos precisam ser esclarecidos, pois a

    maneira como os encaramos e os entendemos produz modos de relao que afetam

    a dimenso anmica, j que estes podem gerar inquietao e perturbao.

    necessrio investigar a natureza, suas causas e fenmenos ligados meteorologia.

    18 Traduo em grego: , , , .

  • 33

    Apesar da distncia que separa o homem de alguns desses eventos, existem

    implicaes diretas em nosso cotidiano relacionadas s nossas opinies

    cosmolgicas. Epicuro enfatiza tambm o papel da physiologia na investigao da

    constituio dos corpos, incentiva o homem a buscar lanar luz sobre sua prpria

    natureza, sensaes, afeces, desejos e limites. A morte outro ponto de origem

    para vrias preocupaes, e nesse trecho Epicuro no trata o problema na

    dimenso da tica, na realidade as suspeitas e inquietaes humanas s podem ser

    resolvidas com segurana atravs da physiologia.

    Examinemos outras anlises em torno da finalidade do conhecimento,

    baseados na mxima referida acima. Robin (1973, p. 393-394) percebeu a atitude de

    Epicuro para com os fenmenos naturais como indiferente ao que seria uma

    verdadeira explicao dos mesmos. De acordo com o estudioso francs, j seriam

    suficientes esclarecimentos que dessem conta de aspectos gerais, relativos lgica

    e moral, as nicas condies exigidas por Epicuro. Mais ainda, Epicuro estaria

    muito distante do verdadeiro esprito cientfico, pois desprezava todas as cincias e

    ignorava a existncia de um saber que tinha o fim em si mesmo19. Ao sujeitar o

    processo de busca pelo conhecimento a procura pela felicidade, Epicuro teria

    cometido um crime de lesa-cincia. A razo teria perdido sua dignidade quando

    props Epicuro submet-la a uma finalidade teraputica e ordenadora de limites aos

    desejos.

    Outro que confere a Epicuro um tratamento semelhante Nizan (1999, p. 46).

    Ele percebeu no filsofo do jardim uma espcie de profunda indiferena quanto s

    mincias da cincia; segundo sua maneira de ver, toda a investigao fsica

    empreendida por Epicuro foi submetida ao utilitarismo tico. A busca epicrea pelo

    conhecimento da natureza consistiu em um recurso para alcanar a eudaimonia, a

    sabedoria teria uma utilidade. Mais uma vez o filsofo criticado por no valorizar a

    cincia pela cincia.

    Nesse mesma linha segue Vianna (1965, p. 55) ao acusar Epicuro de ter

    comprometido os aspectos cientficos de seu pensamento graas ao carter

    explicitamente soteriolgico de sua filosofia. Todavia so necessrios alguns

    esclarecimentos, o primeiro deles diz respeito ao sentido do termo cientfico to

    amplamente usado por tantos autores? O segundo pretende elucidar por que razo

    19 Essa acusao nos remete a compreenso aristotlica da filosofia, como sendo ela mesma sua prpria finalidade. Ver Aristteles (Metafsica, 2005, A, 2, 982b).

  • 34

    Epicuro deveria ter formado um compromisso com uma concepo de conhecimento

    como algo que tem sua finalidade em si mesmo? Em que medida as explicaes

    fornecidas por Epicuro sofrem algum tipo de perda em funo de um carter

    soteriolgico imputado a sua filosofia?

    Exigir de Epicuro e de sua doutrina algum tipo de esprito cientfico constitui

    sem sombra de dvidas um anacronismo. Nenhum comentador pode demandar a

    qualquer filsofo da antiguidade algo dessa natureza. At porque cincias como

    fsica, astronomia e matemtica so hoje muito diferentes de suas razes antigas.

    Ainda assim deve se procurar reconhecer que Epicuro no despreza a investigao

    de fenmenos celestes, fsicos e tocantes natureza humana, apenas submete-os a

    critrios claramente ligados felicidade.

    Acreditamos que perceber no pensamento de Epicuro qualquer espcie de

    soteriologia significa sugerir um argumento completamente insustentvel.

    Entendendo por soteriologia uma doutrina religiosa da salvao (ABBAGNANO,

    2002, p.921), fica fcil identificar a improcedncia de tal acusao, pois como

    veremos adiante a religio, sob a perspectiva do epicurismo, em nada interfere na

    vida do homem. Alm disso, o objetivo da filosofia epicrea nunca foi a salvao, e

    sim, sempre de maneira muito clara, a felicidade entendida como eudaimonia. Na

    realidade essa expresso salvao nos causa estranhamento quando relacionada

    filosofia do jardim, visto que no identificamos nos textos remanescentes um termo

    sequer que aponte para esse sentido. Contudo, no momento em que levamos em

    conta algumas interpretaes, sustentadas nos ltimos trs sculos de histria da

    filosofia, percebemos com mais clareza a tendncia a aproximar o pensamento

    epicurista, de modo comparativo, perspectiva crist moderna, propenso que se

    estendeu at o incio do sculo XX. Essa tenso entre epicurismo e cristianismo

    milenar, e convm lembrar que a escola epicurista passou a ser perseguida aps a

    emergncia do cristianismo nos primeiros sculos de nossa era.

    A exigncia de que o conhecimento seja um fim em si mesmo algo que em

    nossos dias parece um tanto quanto extravagante. Esse estranhamento aumenta

    ainda mais se considerarmos a cincia como a mais poderosa manifestao da

    tcnica, reunio de um conjunto de saberes tpicos da modernidade. Em nosso

    tempo a cincia20 est ligada a vrias foras polticas, econmicas, industriais, etc.

    20 A rigor no existe a cincia, mas discursos cientficos, sem compromisso de coerncia entre si. O conflito existe quando pensamos cincias humanas e cincias da natureza, mas encontra-se tambm

  • 35

    No se trata de uma digresso, mas de assinalar que a cincia no imparcial; ao

    longo da histria recente fcil identificar seu comprometimento com o poder e os

    interesses de pases e corporaes.

    Consideramos relevante apontar para o fato de frequentemente o epicurismo

    ter sofrido crticas como as referidas, que claramente carecem de uma anlise

    fundamentada no exame dos textos que temos disposio. A busca da sabedoria

    para Epicuro no passa necessariamente por uma supervalorizao da aritmtica,

    astronomia, msica e geometria, seu percurso obrigatrio visa sade da alma. Mas

    da a cham-lo, ou aos epicuristas, de inimigo da cincia, j configura um exagero,

    pois o atomismo uma abordagem coerente, sua aventura intelectual props, ao

    longo de sculos, respostas originais para problemas clssicos, debatidos desde

    antiguidade at nossos dias. Com Epicuro e seu mtodo das mltiplas explicaes21

    temos um proposta pouco dogmtica que se preserva por trazer consigo uma dose

    razovel de ceticismo, de modo que o discurso de investigao da natureza est

    sempre em desenvolvimento, e assim novos elementos e respostas podem surgir ao

    longo do tempo. E outro ponto ainda lhe agregado como valor, diferente da cincia

    contempornea que muitas vezes tende a ser esquizofrnica, inconsequente e

    manipulada por interesses que a ultrapassam, o caminho do filsofo do jardim tem

    um compromisso inalienvel com a sabedoria do bem-viver. Epicuro sensato o

    suficiente para perceber que apesar de existirem diversos modelos de sabedoria, em

    ltima instncia cada homem pode, em alguma medida, governar a si mesmo e com

    isso fazer o clculo dos prazeres, no h uma moralidade universal externa

    responsvel pela determinao das aes humanas.

    Tais anlises no so encontradas apenas em materiais mais antigos

    tomemos os exemplos a seguir. Em seu vocabulrio sobre Epicuro, Balaud (2002,

    p. 48-49) encara a filosofia de Epicuro como desprovida do objetivo de produzir uma

    reunio sistemtica de conhecimentos, de modo que, o filsofo de Samos rejeitaria

    concepes cumulativas de saber, pois elas dispersariam e causariam desvios em

    relao ao fito essencial: a pesquisa da felicidade; para tanto seria necessrio

    alcanar as condies para dissipao dos sofrimentos do corpo e, acima de tudo,

    no seio de cada um de seus segmentos especficos. A fsica pode ser um exemplo claro disso, pois nela existem teorias contraditriass quando relacionadas entre si, aceitas por alguns setores e negadas por outros. 21 Em sua carta a Ptocles, Epicuro apresenta om mtodo das explicaes mltiplas para compreenso dos fenmenos celestes, que debateremos com mais ateno no captulo 4.

  • 36

    das perturbaes anmicas. Ainda segundo Balaud, o saber filosfico deve ter,

    principalmente, um valor curativo. Em apoio a sua argumentao ele cita uma

    passagem da obra Adversus Mathematicus (XI, 169) de Sexto Emprico: A filosofia

    uma atividade que procura, por raciocnios e argumentos, o caminho para a

    felicidade22. Com base nessa passagem, o autor concluiu que a sistematizao da

    filosofia epicrea gira estritamente em torno da rememorao e do acordo em

    praticar os ensinamentos presentes nas mximas fundamentais. digno de nota

    que essa anlise construda num claro contraposicionamento com as outras

    escolas da poca, a saber, o estoicismo e o ceticismo, estas sim, seriam

    caracterizados por um conhecimento construdo atravs de uma aquisio metdica

    e ordenada. No tocante a este ltimo aspecto comparativo, no consideramos tal

    argumento suficiente para assinalar uma reduo to categrica da filosofia de

    Epicuro. Pois identificamos um isolamento de certos trechos que frequentemente

    no apresentam conexes fortes com outras regies do pensamento do filsofo.

    A revelia da admisso de relaes necessrias e realmente existentes no

    corpo da doutrina, o problema da morte, se tomado como exemplo, passa a ser um

    modelo de como muitas anlises ocorrem de modo isolado. Desprovida de toda

    carga reflexiva que lhe inerente, temos como principal consequncia uma

    considervel perda de relevncia em torno de um tema que configura um dos

    grandes caminhos para demonstrao da unidade e da coerncia da filosofia de

    Epicuro.

    No Brasil temos estudos recentes que se alinham com perspectivas como as

    apresentadas acima. Vejamos a opinio de Spinelli:

    No foi, com efeito, e por princpio, a cincia ou a explicao das coisas do mundo que acima de tudo lhe interessou, e sim o modo como propiciar gozo e felicidade ao sujeito individualmente considerado e na situao de infortnio (SPINELLI, 2009, p. 96).

    De algum modo argumentos dessa natureza, que ressaltam a busca pelo

    prazer e pela felicidade em meio a um contexto social e histrico em crise, findam

    por conduzir a uma separao que de fato inopervel no pensamento de Epicuro.

    Essas anlises distanciam a filosofia da investigao da natureza das coisas, pois

    22 Traduo nossa do grego: .

  • 37

    no se esforam em trazer a tona que na realidade o prazer e a felicidade s podem

    ser desfrutados, de acordo com o modelo epicreo, aps um minucioso exame da

    natureza das coisas, seguido de crtica poltica, religio e astronomia. Isso no

    sugerido apenas em situaes de crise e conflitos sociais, imperativo que cada

    homem se ocupe com a filosofia, em qualquer momento da vida, jovem ou velho,

    sozinho ou com outros, pois sabedoria e felicidade so indissociveis. Se, por um

    lado, o sbio goza de tranquilidade e bem-estar, por outro, no podemos esquecer

    que sua posio se constitui por meio de contnuas relaes crticas com amplos

    aspectos de sua cultura e sociedade.

    Bollack (1971, p.08) em sua anlise da dcima primeira mxima principal, a

    mesma apresentada anteriormente como fonte de dificuldades, chama a ateno

    para o problema de encarar a cincia da natureza com um meio que visa

    tranquilidade como principal objetivo. Ele lembra que comentadores clebres, como

    Gigon e Boyance, acusaram Epicuro de no encarar o conhecimento como um fim

    em si mesmo, com isso esses autores elegem como valor, e critrio de apreciao, a

    finalidade. A principal dificuldade, segundo Bollack (1971, p.278-279), seria no

    reconhecer o lugar da cincia das substncias, ou physiologia, dentro do sistema de

    pensamento epicreo. Seu argumento busca mostrar o fato de no se levar em

    considerao que a mxima est afirmando a necessidade da investigao da

    natureza, sendo assim os homens so obrigados a conhecer a constituio das

    coisas, j que sem a physiologia no conseguiramos construir um conhecimento

    seguro e opinies adequadas sobre o sol, a morte ou nossa prpria natureza. Mais

    ainda, os domnios a serem esquadrinhados envolvem questes pertinentes ao

    conhecimento de todo universo natural, o conhecimento formado segundo esse

    processo, a physiologia, de carter antittico. Bollack encerra sua argumentao

    afirmando que se a physiologia fosse um fim em si, tornar-se-ia tambm conjectural

    e mtica, perderia sua ntima ligao com a natureza do homem, e, por conseguinte,

    seu lugar de produo humana. Endossamos essa avaliao, e ao lermos pesquisas

    como a empreendida pelo estudioso francs fica patente a diferena de abordagem

    e cuidado no tratamento da letra de Epicuro, desde seu contato inicial, sua traduo

    interpretao da obra.

    Tambm Moraes (EPICURO, 2006, p. 24) interpreta essa mxima de maneira

    semelhante: o esforo pelo conhecimento no se justifica por si mesmo, nem por

    algum culto a cincia. A teoria conduz a uma vivncia prazerosa, fsica e tica esto

  • 38

    em recproca dependncia, constata Moraes (EPICURO, 2006, p. 24), enfatiza

    tambm que s o conhecimento da natureza das coisas assegura que a morte no

    nos afeta, compreendendo-a como mera separao dos tomos que nos compe.

    possvel pensar que Epicuro desconfiasse daqueles que sustentam a tese

    da existncia de uma autofinalidade no processo de conhecimento, talvez ele

    desejasse apontar que muitas vezes ocultos estavam o poder, as honrarias, o

    reconhecimento de um lugar diferenciado, em muitas relaes essa diferena ficava

    clara. Sabemos que os epicuristas consideravam a dialtica suprflua (Vidas, X, 31)

    e em alguns momentos, Epicuro faz questo de afirmar que considera investigao

    da natureza uma atividade mais complexa, com exigncias mais profundas que

    muitas atividades intelectuais desenvolvidas ordinariamente em seu tempo.

    Consideramos de suma importncia discutir esses aspectos da crtica ao

    pensamento de Epicuro, confront-los com outras avaliaes. Caso contrrio, somos

    levados a tomar o epicurismo nascente como uma filosofia dos ignorantes, pobres e

    dos excludos, do homem da decadncia grega23, a contraparte obscura de saberes

    mais nobres, luminosos e elevados.

    Entretanto dentro da literatura filosfica existem outros juzos sobre o

    pensamento de Epicuro. Tomemos o exemplo de Kant (1992, p. 47, A 35), que tece

    o seguinte comentrio ao referir-se aos epicuristas: eles deram provas de mxima

    moderao no prazer e foram os melhores filsofos da natureza entre os

    pensadores da Grcia. O pensador alemo percebeu e destacou a importncia

    dada pelos epicuristas filosofia da natureza, exaltando de modo claro e

    diferenciado o papel da fsica no pensamento de Epicuro. Certamente leitores como

    Kant levaram em considerao que os epicuristas separaram a astronomia de todos

    os aspectos religiosos e mticos, operaram uma verdadeira crtica da capacidade de

    conhecimento sobre os fenmenos celestes, principalmente por meio do uso de

    mltiplas explicaes, mas ainda assim so acusados por Spinelli (2009, p.108) de

    pouca competncia epistmica relativas filosofia e cincia. No h dvida que

    esse um ponto repleto de controvrsias. Ao analisar esse problema Farrington

    (1967, p. 34) se d conta que muitas vezes o epicurismo no foi corretamente

    avaliado, ele admira a linguagem cientfica e tcnica empregada nas cartas e

    23 Quanto aos aspectos polticos temos a decadncia da democracia ateniense, mas por outro lado at que ponto podemos desconsiderar que foi do mundo grego que brotou o maior imprio da antiguidade? Que tivemos nesse perodo uma ampla difuso da cultura grega?

  • 39

    sentenas, principalmente o modo como as expresses remetem a um sistema

    firmemente articulado. Endossamos a posio de Farrington nos trs pontos

    mencionados, acreditamos que o pensamento de Epicuro foi constantemente

    reduzido, empobrecimento que foi manifesado de diversas formas e meios ao longo

    do desenvolvimento da tradio filosfica; segundo: a leitura dos textos aponta para

    o uso proposital e esclarecido de uma linguagem tcnica e criteriosa (Vidas, X, 37-

    38); terceiro: tal perspectiva discursiva est inserida em um sistema de pensamento

    slido e coerente, que consistiu na ltima manifestao do atomismo grego. A

    filosofia atomista influenciou e foi influenciada por vrios segmentos da filosofia

    grega antiga.

    Esse ltimo ponto merece um exame cuidadoso, infelizmente no possvel

    deter-se sobre o tema, entretanto se faz necessrio elencar alguns pontos de grande

    relevncia. O primeiro deles diz respeito ao genial cenrio filosfico que antecedeu a

    emergncia do epicurismo, trata-se obviamente das contribuies de Scrates,

    Plato e Aristteles. impossvel pensar a filosofia de Epicuro sem relacion-la com

    as fortes influncias desses trs pensadores. Bignone (1936), em sua obra Le

    Aristotele perdutto e a formazzione filosofica di Epicuro, argumenta de maneira

    minuciosa e erudita sobre o tema das influncias aristotlicas no pensamento de

    Epicuro. Por outro lado, outros se esforam em vincular Epicuro aos phisiologoi24,

    entendendo sua perspectiva filosfica como um movimento de continuidade do

    modo de investigao da physis. Existem aqueles que viram Epicuro como um

    socrtico menor, ligado ao emblemtico Scrates pela influncia do hedonismo de

    Aristipo de Cirene. famoso o silncio de Plato em relao a Demcrito25, mas

    existe um debate antigo sobre a relao de Epicuro com o pensamento platnico,

    inclusive se no teria sido discpulo de Pnfilo, um platnico de Samos (Vidas, X,

    14). No material que nos chegou no encontramos meno ao nome de Plato,

    todavia vrias passagens das cartas contm pontos de fortes divergncias em

    relao s posies platnicas. Como por exemplo, a passagem sobre a

    incorporeidade da alma presente na carta a Herdoto. Outro indcio significativo da

    presena das ideias platnicas e aristotlicas no jardim encontra-se nas obras

    24 Tambm marcados pela expresso pr-socrticos, o que pode gerar confuso quando tomamos o exemplo de Demcrito que era contemporneo de Scrates. 25 Temos aquela famosa passagem na obra de Digenes Lartios que apresenta Plato queimando os livros de Demcrito (Vidas, IX, 40).

  • 40

    escritas pelo sucessor de Epicuro, Hermarcos, ele escreveu livros intitulados Contra

    Plato e Contra Aristteles.

    1.4 MTODO E SISTEMATIZAO DO CONHECIMENTO NA FILOSOFIA

    EPICREA

    Conche (1977, p. 25-40) defende a existncia de dois mtodos distintos

    dentro do pensamento de Epicuro. O primeiro deles estaria presente na Carta a

    Herdoto e Carta a Ptocles, denominado mtodo de conhecimento, o autor aponta

    tambm desenvolvimentos tratando desse tema que podem ser encontrados em

    obras de Digenes Lartios (Vidas, X, 31-34) e Sexto Emprico (Adversus

    Mathematicus, VII, 203-216). O mtodo do conhecimento dividido por Conche em

    dois segmentos: os critrios de verdade e anlise das opinies segundo esses

    mesmos critrios. O segundo chamado mtodo para felicidade26 e sua principal

    fonte a Carta a Meneceu (EPICURO, 2002). Consiste em analisar as condies

    para se alcanar a felicidade, dividido em dois grupos: o primeiro seria a condio

    das condies, ligado cincia da natureza, enquanto o segundo reuniria as

    condies imediatas, que seriam a ausncia de medos e a regulao dos desejos.

    Entendemos essa diviso como uma anlise criteriosa do contedo das fontes

    do epicurismo, seu papel elucidativo consistente e bem fundamentado. Entretanto

    no reconhecemos dois mtodos no pensamento de Epicuro, defendemos a

    existncia de apenas um mtodo que rene conhecimento e felicidade. O exame

    atento da proposta de Conche (1977, p. 40) j nos apresenta elementos suficientes

    para uma defesa inicial de nosso posicionamento. Ao tratar do mtodo para a

    felicidade, o autor promove uma integrao entre physiologia, como condio das

    condies, e eudaimonia, alcanada aps a satisfao das condies imediatas.

    Com isso ele unifica tambm os temas tratados tanto na Carta a Hertodo quanto na

    Carta a Meneceu, e demonstra que fsica e tica so indissociveis, assim como o

    mtodo para conhecer e os princpios de conduta e escolha que conduzem a

    felicidade, em outras palavras, no possvel operar separao efetiva entre

    physiologia e eudaimonia no pensamento de Epicuro.

    26 interessante notar que outros autores tambm encaram a Carta a Meneceu como tratando do mtodo para ser feliz, no Brasil inclusive temos uma traduo dessa epstola como Carta Felicidade.

  • 41

    O incio da Carta a Herdoto tem os elementos mais importantes para a

    defesa da existncia de um sistema de pensamento epicreo. Um deles refere-se ao