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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAIS SOCIAIS MODESTO CORNÉLIO BATISTA NETO COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: DESAFIOS E LIMITES DA CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA NATAL-RN 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAIS SOCIAIS

MODESTO CORNÉLIO BATISTA NETO

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: DESAFIOS E LIMITES DA

CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA

NATAL-RN

2017

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MODESTO CORNÉLIO BATISTA NETO

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: DESAFIOS E LIMITES DA

CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA

Dissertação apresentada à banca examinadora do

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais –

PPGCS/CCHLA/UFRN, como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Homero de Oliveira Costa

NATAL-RN

2017

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COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: DESAFIOS E LIMITES DA

CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA

Dissertação apresentada à banca examinadora do

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais –

PPGCS/CCHLA/UFRN, como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Homero de Oliveira Costa

Aprovada em 22 de junho de 2017.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Homero de Oliveira Costa (UFRN)

Orientador

Prof. Dr. José Antonio Spinelli Lindoso (UFRN)

Examinador Interno

Prof. Dr. Robério Paulino Rodrigues (UFRN)

Examinador Externo ao Programa

Prof. Dr. Rodrigo Freire de Carvalho e Silva (UFPB)

Examinador Externo à Instituição

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Para Rivair Neto e as futuras gerações, que

vocês sejam vitoriosos nas batalhas que

perdemos no nosso tempo histórico.

Em memória de Jacob Gorender, em nome de

todos que lutam por uma outra civilização.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família, em especial às mulheres. Minha mãe, Maria José, minha tia

Margarida Maria, minha irmã Ana Guilhermina e minha companheira, Emanuella Palhares.

São essenciais. Sem essas mulheres, qualquer caminhada seria mais longa, qualquer tarefa

seria mais dura, qualquer travessia seria mais turbulenta. Apesar de todos os pesares, sem

raízes profundas, até mesmo as árvores de almas velhas sucumbem nas tempestades cinzas.

Minha gratidão ao meu orientador, professor Homero de Oliveira Costa, que entendeu

a relevância deste trabalho e acreditou na minha capacidade, quando eu mesmo duvidei. O seu

auxílio foi indispensável à conclusão do presente trabalho. Os dois anos de atividades ao seu

lado, foram um tempo que me enriqueceu sem precedentes, sem comparativos. É impossível

não registrar que das experiências mais extraordinárias da vida acadêmica, conhecer de perto

Anita Leocádia Prestes pareceu-me como conhecer um pouco mais a história do Brasil, em

carne viva e cérebro. Sem Homero Costa, esse encontro não passaria de uma ambição de

historiador.

Sou grato aos muitos trabalhadores invisíveis. Sem eles, a universidade jamais

funcionaria: aos que limpam, constroem, imprimem e servem, meu muito obrigado. Os

professores da UFRN que tiveram uma contribuição significativa na minha formação

acadêmica e também pessoal, merecem ser citados. Os professores Robério Paulino, Gabriel

Vitullo, Lincoln Moraes, Spinelli, César Sanson e Ana Patrícia Dias, tornaram o marxismo

mais compreensível, ajudaram-me a compreender o mundo do trabalho e suas desigualdades,

mas, acima de tudo, foram capazes de mostrar que o significado do trabalho do cientista

social, não deve ser apenas compreender o Brasil e sua sociedade, nas suas facetas mais

singulares, mas ajudar à mudar a realidade concreta das coisas.

Quero agradecer os secretários do PPGCS, Otânio Revoredo Costa e Jefferson

Gustavo Lopes. Ambos são responsáveis por um conjunto de tarefas que são indispensáveis

ao funcionamento deste departamento de pós-graduação. Apesar de todas os afazeres, sempre

atenderam de forma solicita as demandas de todos os mestrandos. Registro também um

agradecimento especial ao meu tio, Ítalo Gonzaga Gê, ele que deu-me reiteradas

demonstrações de apoio, suporte e estímulo.

Se os amigos são a família que escolhemos para compartilhar os festejos e dissabores

da existência humana, é motivo de felicidade poder contar com uma família extensa, o que é

raro. Os companheiros de Ciências Sociais, tornaram-se bons amigos. Na graduação e no

mestrado, conheci pessoas que levarei pelo resto da vida. João Vitor Curió, Artur Freire,

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André Machado e Alexandre Souza. Foram com eles que dividi os primeiros dias na

universidade. Após o ingresso no mestrado em Ciências Sociais, a convivência e as conversas

com Juliana Magalhães, Ana Lucas, Rômulo Dornelas e Bosco Teixeira só serviram de

acréscimos para a vida.

Os bons amigos são como o Sol, não precisamos vê-lo todos os dias para sabermos de

sua existência. O tempo da terna infância e da juventude, o tempo da luta por uma outra

sociedade e o tempo presente e imediato, são os tempos que fazem de um indivíduo uma

criatura indispensável. O biomédico Neto Monteiro, os professores Ângelo Magalhães e

Magnus Gonzaga, os meus advogados Max Ferreira, Johnata Macêdo, João Paulino e Diogo

Filho, com esses tive e tenho o inestimável orgulho de ter dividido as trincheiras da militância

política. Aos amigos e irmãos Anildo Neto, Italo Gonzaga Jr., Fabiano Dreschsler, Wilson

Filho, Ítalo Luan Barbosa, Stênio Filho, Adriano Gabriel, Raul Basílio, Leonardo Bezerra,

Leonardo Basílio, Bruno Goulart e Yuan Soares, minha gratidão por compartilhar boa parcela

dessa existência.

Por fim, registro um agradecimento especial a professora Jovelina Santos, quadro do

Departamento de História da UERN em Açu. Sem o seu ímpeto, ousadia e encorajamento,

talvez não fosse possível ter concluído caminhadas tão importantes. Se todas as construções

começam pelos alicerces, Jovelina Santos foi um dos pilares que me permitiu erguer-me não

apenas como historiador ou cientista social, mas como algo muito mais importante, que é

resistir e erguer-se em cada tropeço, como gente.

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Há um quadro de Klee que se chama Angelus

Novus. Representa um anjo que parece querer

afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus

olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas

asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto.

Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós

vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma

catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína

sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria

de deter-se para acordar os mortos e juntar os

fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e

prende-se em suas asas com tanta força que ele não

pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele

irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as

costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o

céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

Walter Benjamin

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar o papel da Comissão Nacional da Verdade

(CNV), instituída através da Lei Nº. 12.528 de 18 de novembro de 2011, pela presidente

Dilma Rousseff, com o intuito de apurar as graves violações de direitos humanos, afim de

efetivar o direito a memória e a verdade histórica. Tomamos o seu Relatório Final como

principal fonte de pesquisa, o documento que contém mais de 4 mil páginas, dividido em três

volumes. O primeiro traz um panorama da repressão, apresentando o modus operandi da

ditadura, os agentes responsáveis por violações como tortura, estupro, execuções e ocultação

de cadáver e recomendações que congregam medidas para o avanço na política de efetivação

dos direitos humanos e da democracia no Brasil. O segundo volume traz textos temáticos e

aborda questões como a repressão contra indígenas, comunidades campesinas, militares,

igrejas cristãs, dentre outras. O terceiro volume é exclusivamente dedicado às vítimas da

ditadura, elucidando as circunstâncias da morte e desaparecimento de 434 casos. Analisamos

a comissão e seu relatório, tendo como principal instrumental teórico o materialismo

histórico. Neste sentido, foram fundamentais os seguintes autores: Marx (1996, 2009) Walter

Benjamin (1987), Henri Lefebvre (2013), Ellen Wood (2011), Noam Chomsky (2003), Mike

Davis (2008), Noberto Bobbio (1986), Osvaldo Coggiola (2016), Celso Furtado (1973),

Florestan n (2015), Weffort (1989), Milton Pinheiro (2014) e Spinelli (2014). A Comissão,

que trabalhou por dois anos e sete meses, revelou um panorama de continuidade de graves

violações de direitos humanos, tais como a tortura difusa e contínua e a execução

extrajudicial, promovidas por agentes dos organismos de segurança do Estado. Partindo do

objetivo geral do trabalho, que foi o de identificar se a Comissão cumpriu suas metas definas

em Lei, as principais constatações estabelecidas foram que a comissão logrou êxito na sua

missão institucional, revelando o atraso do Brasil em matéria de direitos humanos, analisamos

ainda que o processo de transição democrática e a governabilidade de coalizão no Brasil, em

especial suas características, implicaram por formar as limitações da própria Comissão

Nacional da Verdade e do desenvolvimento da democracia brasileira.

Palavras-Chave: Comissão Nacional da Verdade. Democracia. Direitos Humanos.

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ABSTRACT

The purpose of this paper is to analyze the role of the National Truth Commission (CNV),

established through Law no. 12,528 of November 18, 2011, by President Dilma Rousseff, in

order to investigate serious violations of human rights, in order to realize the right to memory

and historical truth. We take your Final Report as the main source of research, the document

containing more than 4000 pages, divided into three volumes. The first presents a panorama

of repression, presenting the modus operandi of the dictatorship, the agents responsible for

violations such as torture, rape, executions and concealment of corpses, and recommendations

that bring together measures for the advancement of the policy of human rights and

democracy in Brazil . The second volume brings thematic texts and addresses issues such as

repression against indigenous peoples, peasant communities, military, Christian churches,

among others. The third volume is exclusively devoted to the victims of the dictatorship,

elucidating the circumstances of death and disappearance of 434 cases. We analyze the

commission and its report, having as main theoretical instrument historical materialism. In

this sense, the following authors were fundamental: Marx (1996, 2009) Walter Benjamin

(1987), Henri Lefebvre (2013), Ellen Wood (2011), Noam Chomsky (2003), Mike Davis ,

Osvaldo Coggiola (2016), Celso Furtado (1973), Florestan (2015), Weffort (1989), Milton

Pinheiro (2014) and Spinelli (2014). The Commission, which has been working for two years

and seven months, has shown a continuity of serious human rights violations, such as

widespread and continuing torture and extrajudicial execution, carried out by agents of State

security agencies. Based on the overall objective of the work, which was to identify whether

the Commission met its legal goals, the main findings were that the commission succeeded in

its institutional mission, revealing Brazil's human rights backlog, That the democratic

transition process and the governability of coalition in Brazil, especially its characteristics,

imply for forming the limitations of the National Commission of Truth itself and the

development of Brazilian democracy.

Keywords: National Truth Commission. Democracy. Human rights.

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ABDDH - Associação Brasileira de Defesa

de Direitos do Homem

ACNUR - Alto Comissariado das Nações

Unidas para os Refugiados

AI -5 – Ato Institucional nº 5

AL – América Latina

ALN – Aliança Libertadora Nacional

ANL – Aliança Nacional Libertadora

ANPUH – Associação Nacional de

História

BG – Batalhão de Guardas

CEA – Conferências dos Exércitos

Americanos

CEDI – Centro Ecumênico de

Documentação e Informação

CEMDP - Comissão Especial sobre

Mortos e Desaparecidos Políticos

Cenimar – Centro de Informações da

Marinha

CIA - Central Intelligence Agency

CIDH - Comissão Interamericana de

Direitos Humanos

CIE – Centro de Informações do Exército

Ciex – Centro de Informações do Exterior

CIGS - Centro de Instrução de Guerra na

Selva

CISA – Centro de Informações de

Segurança da Aeronáutica

CNV – Comissão Nacional da Verdade

Conadep – Comissão Nacional sobre o

Desaparecimento de Pessoas

DEOPS – Delegacia Especializada de

Ordem Política e Social

DINA - Dirección Nacional de Inteligencia

DOI - Destacamento de Operações de

Informações

DOI-CODI - Destacamento de Operações

de Informações do Centro de Operações de

Defesa Interna

DOPS – Departamento de Ordem Política

e Social

ECA – Estatuto da Criança e do

Adolescente

EPU – Exame Periódico Universal

ESG – Escola Superior de Guerra

EUA – Estados Unidos da América

FHC – Fernando Henrique Cardoso

Funai – Fundação Nacional do Índio

GPS - Global Positioning System

HCE – Hospital Central do Exército

JK - Juscelino Kubitscheck

LAI – Lei de Acesso à Informação

LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais e

Transexuais

MR-8 – Movimento Revolucionário 8 de

outubro

OAB – Ordem dos Advogados do Brasil

ONU – Organização das Nações Unidas

PCB – Partido Comunista Brasileiro

PIN – Plano de Integração Nacional

PNDH – Programa Nacional de Direitos

Humanos

PNUD - Programa das Nações Unidas para

o Desenvolvimento

POR-T - Partido Operário Revolucionário

Trotskista

PPGCS - Programa de Pós-graduação em

Ciências Sociais

PSOL – Partido Socialismo e Liberdade

SIAN - Sistema de Informações do

Arquivo Nacional

SIM – Subsistema de Informação sobre

Mortalidade

SNI – Serviço Nacional de Informação

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ - Superior Tribunal de Justiça

UERN – Universidade do Estado do Rio

Grande do Norte

UFRN – Universidade Federal do Rio

Grande do Norte

UNE – União Nacional dos Estudantes

UPP – Unidade de Polícia Pacificadora

URSS - União das Repúblicas Socialistas

Soviéticas

USA – United States of America

USP – Universidade de São Paulo

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...……...………..……….….…...…..……………….......…...……..

CAPÍTULO I: A COMISSÃO DA VERDADE NO BRASIL……........…..……….

1.1 TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E COMISSÕES DA VERDADE NA

AMÉRICA LATINA...............…..………..…………………....….………..………….

1.2 COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: PERCURSO HISTÓRICO..……….

1.3 O RELATÓRIO PARCIAL: PRIMEIROS PASSOS.....................…........………

CAPÍTULO II: O RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO NACIONAL DA

VERDADE......…...…………….…………...……………..….….…….……...……..

2.1 O RELATÓRIO DA CNV.…...……………..………….…………………..……..

2.2 OS EMBATES SOBRE O RELATÓRIO..…...…...……….....………..…………

CAPÍTULO III: DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL:

DESAFIOS E POSSIBILIDADES....…….…...…........…..……….....…………….

3.1 BRASIL, O PAÍS DAS VIOLAÇÕES………......……………...………………..

3.2 CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES DA CNV..…………………………….

CONSIDERAÇÕES FINAIS.….…..…….…...…..….……………..……………....

REFERÊNCIAS……....…..….…....……...……..…...…….….…...…………………

13

17

17

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45

55

55

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91

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INTRODUÇÃO

A democracia e seu futuro, os regimes políticos, os direitos humanos e as ações do

Estado brasileiro são temas atuais que têm a atenção de vários ramos do conhecimento

científico, a história, a ciência política, a sociologia, dentre outras. Essas temáticas não são

abordadas apenas pela academia, na imprensa e entre os movimentos sociais. Muito tem se

discutido sobre a democracia brasileira e inevitavelmente sobre o passado recente do país,

marcado pela barbárie autoritária da ditadura militar. O cinquentenário do golpe militar de

1964, festejado por setores conservadores em 2014 e amplamente discutido nas universidades

e entre organizações sociais, mostra que este é um dos grandes debates nacionais da

atualidade.

Para apurar as graves violações aos direitos humanos, identificar seus autores e os

locais onde as práticas de execução, tortura, desaparecimento forçado e ocultação de

cadáveres foram cometidos durante a ditadura (1964-1985), a presidente Dilma Rousseff

instituiu, por meio da Lei 12.528, a Comissão Nacional da Verdade, que após dois anos e sete

meses de trabalho, apresentou o seu relatório final, que foi organizado em três volumes e

contêm 4.328 páginas.

O objetivo deste trabalho foi o de analisar o relatório da Comissão Nacional da

Verdade e seu papel para o desenvolvimento da democracia brasileira e suas instituições, o

cumprimento dos objetivos instituídos para esta organização, seu alcance e limites. Neste

sentido, usamos o materialismo histórico como principal referencial teórico-metodológico.

Neste contexto a importância de Walter Benjamin (1987) é essencial, tanto para compreender

que a construção da história não ocorre sob os pilares de um passado estático e vazio, mas em

um tempo saturado de “agoras”, assim como o ofício do historiador é o de “escovar a história

a contrapelo”, observando as contradições do processo histórico, as tensões e interesses que

cercam à ótica sobre o passado e nosso tempo histórico.

O trabalho da Comissão Nacional da Verdade teve limitações impostas pela

governabilidade de coalizão e pelas próprias características da transição democrática no

Brasil? Esta foi a pergunta de partida que orientou nosso trabalho. Esta hipótese se confirmou

na nossa análise, abrindo um debate sobre a ausência de aspectos cruciais da reconstrução

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histórica do período investigado pela CNV, como a participação de lideranças civis no golpe e

na consolidação da ditadura militar, ausentes no relatório.

As formas como enxergamos nosso próprio passado, nossas práticas e ações e os

significados que a estes são atribuídos forjam uma cultura hegemônica que legitima o modo

de vida das sociedades. A cultura e sua própria transmissão não é isenta de ideologias

autoritárias. Para Walter, “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um

monumento da barbárie” (BENJAMIN, 1987 p.7). O Brasil, fundado na barbárie genocida, no

autoritarismo reacionário e no convênio entre as elites que historicamente tornaram o

princípio da representação política, em seu filho bastardo, não construiu uma cultura de

democracia e justiça. Essa cultura autoritária tem na ditadura militar, no seu legado e no

massacre dos povos excluídos, suas principais expressões contemporâneas.

Henri Lefebre (2013), também nos fornece um aporte teórico, no sentido de rejeitar as

hierarquias postas em vigor na sociedade e, o mais importante, apresentando o materialismo

“como uma sociologia cientifica com consequências políticas” (LEFEBRE, 2013, p.18), o que

significa dizer que o objetivo do nosso trabalho também é ter como efeito uma compreensão

mais adensada sobre os avanços e retrocessos da democracia no Brasil, tendo como ponto de

vista o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que revela o tamanho do atraso brasileiro

em efetivar os direitos humanos e garantir os direitos democráticos mais fundamentais.

Destacamos a importância do progresso das pautas dos direitos humanos para o Brasil,

mas entendemos que, apesar do avanço de direitos democráticos, os limites impostos pela

lógica do capitalismo são claros e bem definidos. Para Ellen Meiksins Wood,

fundamentalmente, em essência a democracia e o capitalismo são incompatíveis, já que os

imperativos do lucro, tornam os elementos da democracia em mercadorias. “O capitalismo

coexiste com a democracia formal e a democracia formal deixa fundamentalmente intacta a

exploração de classe” (WOOD, 2011, p.173).

A caracterização que fazemos sobre a democracia contemporânea e o papel que os

Estados Unidos da América exerceram na América Latina em meados do século XX, em

especial no contexto da Guerra Fria, patrocinando a campanha ideológica anticomunista,

arquitetando o surgimento de ditaduras e apoiando governos autoritários para garantir seus

interesses econômicos, baliza-se em Noam Chomsky (2003), Mike Davis (2008), Celso

Furtado (1973), Osvaldo Coggiola (2016), Enrique Serra Padrós (2008) e Florestan Fernandes

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(2015), dentre outros. A reação de setores da esquerda e do campo progressista ao avanço

autoritário ocorreu com a eclosão da luta armada, em maior ou menor grau em diferentes

países, fenômeno lucidamente analisado por Jacob Gorender (2014).

O enfraquecimento dos regimes militares e o acordo entre as elites na América Latina,

mas especificamente no Brasil, possibilitaram a transição à democracia. Neste contexto,

Francisco Welffort (1989), Milton Pinheiro (2014), Dierter Nohlen (1994), Teresa Schneider

Marques (2010) e Antonio Spinelli (2014) fornecem os subsídios necessários à compreensão

do processo de transição e suas consequências, como as iniciativas circunscritas à justiça de

transição e à luta pelo direito à verdade, memória e justiça, conceitos trabalhados por Renan

Quinalha (2013) e Simone Pinto (2010), dentre outros.

Nosso primeiro capítulo tem a preocupação de apresentar um panorama, mesmo que

limitado, dos processos de transição democrática na América Latina, destacando os

surgimentos das comissões de verdade como iniciativas circunscritas à justiça de transição e

instituídas por governos, parlamentos, pela justiça e mesmo por acordos de paz. A cultura da

impunidade, como define Baltasar Garzón (2005), é um problema que precisa ser enfrentado,

e para tal, é indispensável responsabilizar os agentes que foram autores de graves violações

aos direitos humanos. Países como Bolívia, Equador, Uruguai, El Salvador, Chile, Guatemala,

Panamá, Peru, Paraguai, Honduras e Argentina instituíram suas respectivas comissões e

obtiveram consequências que resultaram das especificidades do processo de cada país.

Ainda neste capítulo inicial, buscamos apresentar o percurso histórico da instituição da

Comissão Nacional da Verdade no Brasil, seus trâmites burocráticos, as tensões que se

estabeleceram entre movimentos sociais e militares e o seu relatório parcial, apresentado ao

final de um ano de trabalho, trazendo um balanço deste primeiro ano de atividades da

comissão, tais como à tomada de depoimentos e audiências públicas.

O segundo capítulo faz um breve resumo do relatório final da Comissão Nacional da

Verdade e mostra os embates sobre o relatório protagonizados por setores políticos de matizes

ideológicas distintas, o que demonstra o quão heterogêneo é a visão destes setores sobre o

relatório. Destacamos a compreensão que o Clube Militar, organização fundada em 1887,

formada majoritariamente por oficiais da reserva das Forças Armadas, fez do relatório, assim

como o de movimentos sociais e entidades vinculadas aos direitos humanos.

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Encerramos nosso trabalho com o terceiro capítulo, que apresenta e discute as

recomendações da Comissão Nacional da Verdade para o avanço da democracia com a

efetivação dos direitos humanos, garantias fundamentais e indispensáveis do Estado

democrático de direito. A transição para a democracia no Brasil, feita sob medida para não

atingir ou prejudicar os agentes do terrorismo de Estado e as autoridades civis que

endossaram esse projeto, repôs as eleições regulares da democracia representativa e um

conjunto de direitos, mas não foi capaz de abolir praticas autoritárias perpetradas pelos

organismos de segurança do Estado. O legado da ditadura militar se materializou no entulho

autoritário que permanece em estruturas e práticas do Estado e seus agentes. É no sentido de

corrigir aparatos legais e constitucionais, que servem como beneplácito para a continuação

dessa cultura autoritária, que as recomendações da Comissão Nacional da Verdade se dirigem.

Vale destacar, ainda sobre as recomendações da CNV, que elas, ao tempo que

apontam caminhos para reformulações necessárias no sistema jurídico e penal, também

mostram o atraso que o país atravessa em matéria de direitos humanos. As execuções

extrajudiciais nas periferias, a tortura como método continuo e difuso dentro das

penitenciarias, a criminalização dos movimentos sociais e o endurecimento do Estado penal,

ao longo dos últimos anos, aparecem como componentes deste cenário de atraso. É certo

também afirmar que as recomendações são indicações que precisam ser encaminhadas pelo

Estado, através de projetos de leis presentados pelo Governo Federal ao parlamento, assim

como medidas do próprio Poder Judiciário. As recomendações por si só não se efetivam, caso

o avanço da pauta dos direitos humanos não ocorra nos mecanismos de aprovação do Estado.

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CAPÍTULO I: A COMISSÃO DA VERDADE NO BRASIL

1.1 TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E COMISSÕES DA VERDADE NA AMÉRICA

LATINA

As rupturas dos regimes autoritários e a transição no caminho da consolidação

democrática são processos povoados de disputas, tensões e incertezas. Nos países que

viveram as experiências das ditaduras, é evidente que a superação da cultura do autoritarismo

não depende apenas de um dispositivo jurídico que restitua direitos e garantias

constitucionais. As consequências do terrorismo de Estado patrocinada pelas ditaduras não se

dissipam com rupturas institucionais, mas permanecem vivas como sequelas de uma cultura

da arbitrariedade que se impregna na burocracia estatal, no funcionamento da máquina

pública, nas instituições e na sociedade.

As tendências e forças autoritárias foram expressivas na América Latina do século

XX. Essa história recente tem sido marcada pela espoliação e pela violência na periferia do

capitalismo, sob o beneplácito do autoritarismo militar. A América Latina, especialmente a

partir dos anos 1960, teve várias ditaduras militares, nas quais os princípios da

autodeterminação dos povos e a soberania nacional foram sistematicamente desrespeitadas.

Em nenhum continente ou região do mundo, entre os anos de 1960 e 1980, houve o avanço de

tantos regimes militares quanto na AL. “Na América Latina, mais de dois terços dos países

que a compõem viviam uma situação de exceção”, esclarece Martin-Chenout (2009, p.225).

A proliferação dos Estados de exceção mudou profundamente as estruturas dos

estados nacionais: a vida política, o regime jurídico, o mundo do trabalho, a educação e a

cultura, o meio ambiente. A imprensa e os artistas passaram a conviver com a regulação da

censura e operam-se as modificações típicas do processo de militarização da sociedade. A

sociedade sob controle, cívica, obediente e resignada, passou a ser a aspiração de uma casta

militar que esteve à frente do Estado em muitos países. A população sofreu um duro golpe

pela restrição de liberdades e pagou um preço alto pelo declínio econômico, após décadas de

ditaduras à serviço do capital estrangeiro.

De acordo com Weffort (1989, p.21) “os regimes militares nos legaram estruturas

autoritárias de Estado muito mais consolidadas do que as que existiam antes deles”. Ao

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referir-se a América Latina, Weffort aponta que a ditadura brasileira iniciada em 1964

inaugurou a fase das ditaduras latino-americanas de padrão moderno, amparados na estrutura

burocrática e na capacidade da violência legitimada, constituindo instrumento de coerção

institucional e regular. Após o golpe de 1964 no Brasil, os regimes de caráter burocrático-

autoritário se estenderam à Argentina (1966), ao Chile (1975) e ao Uruguai (1973).

As ditaduras latino-americanas deflagraram Estados de exceção, na maioria dos casos

ferindo as exigências do direito internacional dos direitos humanos, suprimindo direitos que

não poderiam ser derrogados mesmo em situações de crises ou guerras. “Estados de exceção,

com duração, exorbitante podem ser constatados no Paraguai e na Colômbia, Argentina,

Brasil, Chile, El Salvador e Uruguai também conheceram Estados de exceção de longa

duração, afirma Martin-Chenout (2009, p. 232). O resultado dessa política foi a ratificação da

negação de direitos básicos e a difusão de uma guerra contra opositores e dissidentes dos

regimes.

Os índices de repressão política na Argentina, Brasil e Chile, dentre outros países,

demonstram com clareza que os regimes militares converteram os Estados em draconianas

máquinas de moer gente e aniquilar opositores. Como diz Eduardo Galeano (2002):

Meio milhão de uruguaios fora do país. Um milhão de paraguaios, meio milhão de

chilenos. Os barcos zarpam repletos de rapazes que fogem da prisão, do fosso ou da

fome. Estar vivo é um perigo; pensar, um pecado; comer, um milagre. (...) A

ditadura é um costume de infâmia; uma máquina que te faz surdo e mudo, incapaz

de escutar, impotente para dizer e cego para o que está proibido olhar. O primeiro

morto da tortura desencadeou, no Brasil, em 1964, um escândalo nacional. O morto

número dez na tortura quase nem apareceu nos diários. O número cinquenta foi

normal. A máquina ensina a aceitar o horror como se aceita o frio no inverno

(GALEANO, 2002, p. 84-85).

A repressão galgou uma escalada da violência bárbara, numa região dominada pelo

militarismo que levou a cabo a tortura, o desaparecimento forçado e o assassinado de dezenas

de milhares de pessoas. Meio milhão de argentinos exilados, mais de 60 mil presos políticos

no Chile e muitas torturas e assassinatos são estatísticas dos países que atravessaram a

experiência nebulosa das ditaduras. As movimentações militares, os recursos financeiros e

humanos utilizados, as forças envolvidas para a consolidação de golpes de Estado com a

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tomada do poder e a consequente imposição autoritária foram elementos mobilizados

ideologicamente por um projeto de poder. Esse projeto histórico de poder, encabeçado pelo

militarismo, mas pensado pela burguesia, foi vitorioso no sentido da dimensão política e o seu

caráter fascista e corporativo confessou-se nitidamente antidemocrático e reacionário.

Os militares também teriam formulado o seu próprio “projeto histórico”, em geral de

sentido neoliberal e modernizador. (...) O projeto histórico dos militares envolve a

ideia sinistra – alias, de ressonâncias nitidamente totalitárias, em que pesem suas

origens supostamente liberais – de que eles estariam diante de uma sociedade

enferma, como tal merecedora de tratamentos de choque e de um empenho de

regeneração sob direção das Forças Armadas. (...) Na linguagem deles, foi um

projeto antiestatista, anticomunista, antipopulista, e anti-revolucionário. (...) um

projeto confessadamente anti-democrático, de cunho fascista ou corporativista.

Como se sabe, e como é próprio da lógica perversa dos movimentos reacionários,

eles derrubam a democracia em nome da defesa da democracia (WEFFORT, 1989,

p. 19-20).

O projeto histórico dos militares, relevado por Weffort (1989), justifica

ideologicamente o extermínio de milhares de pessoas numa cruzada internacional contra o

comunismo. Esse projeto pertencia aos militares na medida em que foram estes atores que

executaram um trabalho prático, na sua dimensão política e armada, mas não foram eles os

sócios majoritários, nem os principais formuladores deste projeto. O papel que os Estados

Unidos da América e a burguesia cumpriram neste processo foi fundamental e imprescindível,

especialmente em um período tomado pelas tensões da Guerra Fria.

A vitória da Revolução Cubana, em 1959, acendeu o sinal de alerta nos EUA, que

redobraram a atenção na observação das movimentações políticas dos países latino-

americanos, redirecionando recursos financeiros e humanos para patrocinar golpes de Estado,

no sentido de manter a América Latina como sua área de influência, impedindo o crescimento

de tendências políticas de caráter reformista e popular-progressistas naquele momento,

convenientemente classificadas como socialistas/comunistas. A polarização entre os blocos

socialista (URSS) e capitalista (EUA) corroborou para forjar as condições ideológicas para

intervenções estadunidenses, justificando a supressão da democracia em nome da defesa da

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democracia. A estratégia internacional dos EUA operou em uma dimensão continental para

frear “excessos esquerdistas”, orientando-se pela Doutrina de Segurança Nacional.

Nestes termos, a “guerra ao comunismo internacional” serviu como discurso oficial

estadunidense, álibi ideológico para viabilizar ingerências políticas, justificar invasões na

aplicação da política de segurança hemisférica. Frente a Revolução Cubana e o avanço de

pautas de esquerda e governos populares, como os de Goulart, no Brasil e Allende, no Chile;

o conjunto dessas ações serviam a uma estratégia continental. “Para o tio Sam, era preciso

responder à situação revolucionária continental com uma política contrarrevolucionária de

dimensão equivalente”, caracteriza José de Queiroz (2015, p.105). Vale destacar que nos

marcos desta estratégia continental, a burguesia teve um importante papel durante a ditadura.

O ingresso de grandes empresas nos países da América Latina constituiu “superpoderes” em

economias frágeis e intermediárias, como esclarece Celso Furtado (1973).

Convocadas para atuar na América Latina com uma série de privilégios, fora do

controle da legislação antitruste dos Estados Unidos, e com a cobertura político-

militar desse país, as grandes empresas estadunidenses terão necessariamente que

transformar-se em superpoder em qualquer país da região. Cabendo-lhe grande parte

das decisões básicas com respeito à orientação dos investimentos, à orientação da

tecnologia, ao financiamento da pesquisa e ao grau de integração das econômicas

regionais, é perfeitamente claro que os centros de decisão representados pelos atuais

estados nacionais passarão a plano cada vez mais secundário. (...) As grandes

empresas com sua elevada capitalização, particularmente quando apoiadas por

muitos privilégios em países subdesenvolvidos como os da América Latina, têm

efeito semelhantes aos de certas grandes árvores exóticas que são introduzidas em

determinadas áreas: drenam toda a água e dessecam o terreno, provocando um

desequilíbrio na flora e na fauna, com o surgimento de pragas e coisas parecidas

(FURTADO, 1973, p. 41).

Sobre essa relação entre o empresariado e os militares, Wladimir Pomar formula uma

caracterização sobre o caráter burguês-militar do regime de repressão. Os desdobramentos

históricos e as parcerias firmadas entre empresas e o núcleo repressivo da ditadura mostram

que esta caracterização se fundamenta nas classes que, de fato, fizeram parte da direção

política e econômica do país.

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É isso que tem levado muitos estudiosos, mesmo de esquerda, a proclamar que o

golpe e a ditadura tiveram um caráter cívico-militar. Ou seja, não teria havido uma

ditadura militar, mas sim uma ditadura civil-militar. Talvez, para serem mais

precisos nessa linha de raciocínio, devessem falar de uma ditadura burguesa-militar,

já que a burguesia foi aquela que realmente lucrou com o regime militar, e se

manteve fiel a ele até seus estertores. (POMAR, 2014, p.71)

A estratégia estadunidense “anti-insurreição” contemplou um conjunto articulado de

ações cirúrgicas em diferentes áreas. Essas ações se estenderam pelo terreno da política

diplomática as questões econômicas e militares. Os exércitos nacionais paulatinamente se

tornaram forças auxiliares dos EUA em seus próprios países e os aparelhos ideológicos e

materiais se materializou Escola Militar do Caribe, posteriormente School of Americas, que

permitiu a otimização de investimentos dos EUA e a inserção de sua política de segurança

para a AL.

A Escola Militar do Caribe na zona do Canal de Panamá, escola que desde 1961 teve

o centro das suas atividades no treino “anti-insurrecional” (ou “contra-insurgente)”

dos oficiais latino-americanos nela inscritos. A economia de esforços que este

investimento militar significava para os EUA está ilustrada por estas cifras, de 1967:

o custo médio de um soldado norte-americano era de 5.400 dólares, o de um das

forças armadas “complementares”, 540. O Programa de Assistência Militar (PAM)

foi o pilar de sustentação das Forças Armadas numa série de países (Bolívia,

Republicada Dominicana, Equador, Honduras, Guatemala, Panamá, Paraguai, a

Nicarágua somozista), onde os exércitos se transformavam numa espécie de

apêndice das Forças Armadas norte americanas (COGGIOLA, 2014, p.55).

A maioria das intervenções e golpes de Estado, na América Latina, tiveram os

interesses estadunidenses como diapasão e originaram ditaduras e consequente militarização

dos regimes políticos. “Alguns pontos em comum de todos os regimes militares são evidentes:

dissolução das instituições representativas, falência ou crise aguda dos regimes e partidos

políticos tradicionais, militarização da vida política e social em geral”, enumera Coggiola

(2014, p.61), que aponta que o desenvolvimento dependente das Forças Armadas dos países

latino-americanos, que viveram seus processos de modernização intermediados por missões

estrangeiras, assim como a falta de visão estratégica do nacionalismo burguês de base militar

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que, mesmo no seu auge nas décadas de 1940 e 1950, se mostrou incapaz de formular um

projeto de unidade continental que quebrasse a espinha da dominação imperialista na AL.

Essas condições, na conjuntura da Guerra Fria, lançaram as bases para o avanço do

imperialismo estadunidense, que balizou o surgimento de uma onda de ditaduras e abriu o

ciclo de militarização na AL.

Os regimes não se originaram nem se tornaram a direção de um movimento de massas,

não se institucionalizaram no esteio da ideia do “partido único”, mas no domínio de uma casta

de militares sob o Estado, tendo os EUA como principal articulador internacional. É

necessário indicar o papel dos EUA na emergência de regimes autoritários na AL, pois o

autoritarismo latino-americano e a diplomacia dos EUA fazem parte de uma mesma história,

indivisível. Quase todos os países da América Latina atravessaram períodos de repressão,

liderada por militares. Na maioria dos países da América Central e do Sul, os anos de

continuada repressão estabeleceu uma tradição de violência atroz, impunidade e

esquecimento. A violência foi perpetrada por agentes do Estado que tinham absoluta certeza

de não serem responsabilizados e, mesmo após a democratização de vários países, a

impunidade desses agentes continua.

A maioria dos regimes militares na AL foi resultado de processos específicos em cada

um dos países, mas a militarização da vida social e as sequelas do autoritarismo são

semelhanças convergentes em todas as ditaduras. Os processos de transição para a democracia

possuem suas diferenças e semelhanças, algumas poucas ocorreram por colapso, mas em sua

maioria, as transições foram viabilizadas por acordos entre as elites, sob o beneplácito da

casta militar e da burguesia, como indica Nohlen (1994).

Em geral, pode-se dizer que os processos de negociação entre as elites autoritárias e

seus opositores, assim como no interior dos seus respectivos círculos, tiveram um

papel muito mais importante nos processos de democratização latino-americanos

dos anos oitenta que se supôs no início (NOHLEN, 1994, p. 5).

No Brasil, a saída da ditadura ocorreu por uma transição acordada. Spinelli (2014, p.

49) aponta que “a transição brasileira contou com um importante grau de imposição por parte

dos militares e incluiu a celebração de um pacto implícito”. As imposições dos militares

garantiram que o processo de abertura democrática controlada (ou lenta, gradual e segura)

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fosse conduzida pelos militares. O pacto celebrado pelo processo de democratização teve os

próprios militares como principais signatários e o setor da oposição civil moderada, como

subscritor, caracterizando-se como a típica transição pactuada.

As transições têm suas particularidades e é importante esclarecê-las. Santos (2007, p.

89) classifica três tipos distintos de transições políticas: transação (transição pactuada),

afastamento voluntário ou colapso. Em linhas gerais a transação ocorre quando o regime

perde força e opta por conduzir o Estado ao processo de democratização. O afastamento

voluntário assemelha-se ao primeiro, mas diferencia-se na sua gradação de influência, já o

colapso diz respeito aos regimes autoritários que são derrotados politicamente, dando espaço a

emersão de um novo regime, oxigenado e sem grilhões que lhe impeçam de passar sua

história recente a limpo, reformar instituições e avançar em pautas fundamentalmente

democráticas.

À medida que os governos militares e seus partidários descobriram, por sua vez, de

maneira simétrica, que o autoritarismo não era mais viável no contexto da depressão

econômica dos anos 1980 e da globalização, os dois campos encontraram-se no

meio do caminho, na América Latina. Já no Leste europeu, os membros das

nomenklaturas de todo tipo tiveram ou de retratar-se, fantasiando-se de democratas,

ou de reconverter-se no setor econômico, tomando conta dele, ou, ainda, no caso dos

mais velhos, retrair-se em exílio interior (HERMET, 2001, p. 29-30).

Hermet (2001) mostra as diferenças entre as transições nos países da América Latina e

do Leste, apontando os imperativos econômicos conjunturais que constituíram as condições

para as transições. Grosso modo, as ditaduras latino-americanas gradativamente foram

perdendo força frente as exigências do mercado, da globalização e dos aspectos da conjuntura

econômica e política internacional, enfrentando também o crescimento das contestações

internas e a perda de apoio popular.

Vale destacar também que as transições políticas da AL não são casos isolados. “Na

realidade, elas fazem parte de uma grande maré democrática que alcançou proporções

mundiais no final do século XX”, salienta Schneider Marques (2010, 67). Neste contexto,

cientes de que uma transição era imperativa, os militares optaram por dirigir o processo

transitório, inviabilizando qualquer possibilidade de revanchismo e garantindo segurança

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jurídica para os agentes de Estado, através da concessão de anistias. A maioria das transições

foi feita por cima (envolvendo acordos de paz e acordos extraoficiais entre as elites), distante

de setores populares, movimentos sociais, organizações de direitos humanos, partidos de

esquerda e lideranças políticas do campo progressista.

No Brasil, a Lei de Anistia, de 1979 “estende seus benefícios aos crimes conexos,

perdoou os que se envolveram nos porões do regime com a prática da tortura e do assassinato

de opositores políticos” (SPINELLI 2014, p. 54). É importante apontar que o legado da

estrutura repressiva não se resume a anistia concedida a torturadores, que legitima praticas

violentas e se fortalece na tradição do esquecimento. Quanto maior o silêncio sobre as

atrocidades dos regimes autoritários, mais forte se torna as tendências ou as práticas que se

tributam ao autoritarismo e a repressão. Esquecer o extermínio é parte do próprio extermínio,

explica Jean Baudrillard (2003). Neste sentido, combater a amnésia política e social é

fundamental para uma transição política que busque a superação do legado autoritário e o

encontro do povo de diferentes nações, com sua própria história.

Uma transição democrática deve garantir eleições periódicas, livres, diretas e

transparentes, o direito ao sufrágio universal e auto-organização, a liberdade de imprensa e a

de organização em partidos políticos, além de um conjunto amplo de reformas

democratizantes das instituições, que, sob a égide de uma ditadura, não seriam possíveis.

Apesar de todas as mudanças burocráticas necessárias no funcionamento do Estado, estas não

são suficientes para a consolidação da democracia. É necessário discutir os abusos que foram

cometidos durante a vigência de regimes truculentos, esclarecer casos, indicar

responsabilidades, reparar vítimas e impedir que a amnésia política impeça o futuro da

democratização, dando espaço as tradições autoritárias fundadas no esquecimento e na

violência. Não existe uma fórmula única para tratar dos abusos e lidar um com um passado

marcado pelo desrespeito aos direitos humanos, mas quase todos os países se apoiam em

iniciativas da justiça de transição para auxiliar as transições políticas.

A justiça de transição ou transicional não significa um tipo especifico de justiça, mas

um conjunto de iniciativas que servem ao processo de democratização de sociedades que

passaram por experiências autoritárias e, sobre sua conceituação, trataremos melhor adiante.

Vale destacar que a transição política democratizante é um processo que tem início, mas não

deve ser considerada conclusa em muitos casos, por dois motivos: primeiro, porque o entulho

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autoritário não se dissolve das instituições em um curto prazo e segundo porque “para um

estado democrático, o estar em transformação é seu estado natural: a democracia é dinâmica”,

como esclarece Bobbio (1986, p.9).

A consolidação da democracia em um país é um processo povoado de tensões,

avanços, retrocessos e reviravoltas. “Nem mesmo no caso mais avançado do Uruguai, onde se

trata de reconstruir a democracia, poderíamos dizer que estamos diante de uma democracia

consolidada”, aponta Weffort (1989, p.7), que considera que é próprio da atmosfera das

transições serem cercadas de incertezas. Contudo, muitas são as iniciativas tomadas na

América Latina, no sentido da democratização, obtendo-se resultados satisfatórios. A

instituição de comissões de verdade é um remédio utilizado pelos países que optam por tratar

sua amnésia política e passar sua história a limpo

O objetivo de uma comissão de verdade é reconciliar a memória nacional à história.

Trata-se de promover o encontro de um país com sua história, de levar no banco dos réus

criminosos impunes. Como diz Baltasar Garzón (2005).

A história da impunidade em todos os povos é a história da covardia dos que

geraram, mas também dos que a consentiram ou a consentem posteriormente. Em

todas as hipóteses a história está marcada por grandes discursos de justificação e de

chamadas à prudência de modo a não romper os frágeis equilíbrios conseguidos em

troca da não exigência de responsabilidades dos perpetradores ou que a referida

exigência se realize com moderação. Da mesma forma, abundam discursos

justificativos (GARZÓN, 2005, p. 172).

A constituição de Comissões de Verdade, que visam a apurar violações e abusos aos

direitos humanos, tem sido uma iniciativa promovida em vários países que viveram sob

ditaduras. Desde 1974, mais de vinte comissões de verdade foram criadas na América Latina,

por iniciativas de Governos e parlamentos ou por acordos de paz. As comissões receberam

nomenclaturas diferentes, possuem suas especificidades, mas buscam o mesmo objetivo e

amparam-se na legislação internacional dos Direitos Humanos. São órgãos temporários,

algumas foram acompanhadas pela ONU e maioria concluiu seus trabalhos com relatórios,

deixando as punições para a justiça dos respectivos países.

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Realizamos uma catalogação das Comissões da Verdade na América Latina e as

classificamos em quatro grupos: 1) as que fracassaram; 2) com trabalhos insatisfatórios; 3)

com trabalhos satisfatórios e 4) de referência internacional na defesa da verdade, memória e

justiça.

As experiências de Comissões da Verdade na Bolívia e Equador, não foram exitosas.

Na Bolívia, em 1982, foi criada a Comissão Especial de Inquérito sobre Desaparecidos, primeira

comissão fundada na AL. A comissão coletou testemunhos sobre 155 casos de desaparecimentos

forçados, mas, sem apoio político e a estrutura de trabalho necessário, se dispersou sem apresentar um

relatório final. No Equador, a Comissão de Justiça e Verdade foi criada em 1996 com três membros de

organizações internacionais de direitos humanos e tinha a responsabilidade de encaminhar ao

Judiciário as evidências nos casos apurados, mas, sem recursos suficientes, ela encerrou suas

atividades com apenas cinco meses, sem apresentar um documento final e sem encaminhar as

investigações à justiça. Em ambos os casos, elas sequer conseguiram concluir seus relatórios

finais, não obtiveram êxito em encaminhar os casos de abusos à justiça e foram dispersadas,

em virtude da falta de apoio institucional.

No Uruguai, foi criada a Comissão de Investigação da Situação de Pessoas Desaparecidas e

Suas Causas, em abril de 1985. No entanto, seu relatório final tratou dos desaparecimentos,

mas não sobre os casos de tortura e prisões ilegais, em virtude de seus limites legais. O

relatório, apesar de público, foi pouco divulgado e é pouco conhecido.

Em El Salvador, A Comissão da Verdade foi criada em 1991 por um acordo de paz entre as

partes envolvidas na guerra civil e a ONU. O seu primeiro relatório, apresentou doze casos de

execuções cometidas pelas forças armadas e recomendou a dispensa de todos os militares e civis

citados pelo documento. O governo e os militares tiveram uma reação negativa, alegaram que a

comissão havia ultrapassado seus marcos legais e uma anistia foi aprovada poucos dias após a

divulgação do relatório, impedindo a punição dos envolvidos com as violações de direitos humanos.

Assim, as comissões de El Salvador e Uruguai elaboraram relatórios, mas não

conseguiram cumprir a missão que lhes foi confiada, ou seja, a de divulgar amplamente os

casos e buscar punições. No caso uruguaio, pela fraqueza do alcance do relatório e no caso

salvadorenho, por um imbróglio político, que impediu que houvessem punições efetivas

frente todas as evidências coligidas pela comissão.

As comissões de verdade instituídas no Chile (1990), Guatemala (1994), Panamá

(2001), Peru (2001) e Paraguai (2003), tal como o Comissionado para a Proteção de Direitos

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Humanos de Honduras, Leo Valladares, nomeado em 1992, conseguiram, em maior ou menor

gradação, desemprenhar papéis fundamentais pelo reconhecimento histórico das violações,

promovendo o direito a verdade, esclarecendo as responsabilidades do Estado frente os abusos

e propondo recomendações pela reparação as vítimas e seus familiares. O trabalho dessas

comissões deve ser considerado satisfatório e importante para a reconciliação entre um país e

sua história.

Em Honduras, 179 casos de desaparecimentos provocados pelas forças armadas foram

esclarecidos. No Chile, a Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação entregou seu

trabalhou final e obteve do governo o reconhecimento oficial das violações a direitos

humanos e um pedido formal de desculpas feito pelo presidente Patrício Aywin, em nome do

Estado. A reparação financeira e a concessão de benefícios médicos e educacionais as vítimas,

e seus familiares foi uma recomendação realizada pela comissão que se concretizou com a

abertura da Corporação Nacional para Reparação e Reconciliação. A Comissão para o

Esclarecimento Histórico da Guatemala empreendeu enormes esforços para coletar o maior

volume de depoimentos, resultando na entrega de seu relatório, que registrou mais de 42 mil

vítimas, contabilizando mais de 23 mil assassinados. O esclarecimento desses casos é

essencial à memória nacional.

No Panamá, A Comissão de Verdade contou com a assistência de organizações

nacionais e internacionais de direitos humanos, que lhe auxiliaram com informações. O seu

relatório final foi entregue em abril de 2002.

No Peru, a Comissão de Verdade e Reconciliação apresentou o seu relatório com 69

mil casos de mortos e desaparecidos, em sua maioria, da comunidade indígena. Este

esclarecimento não faz parte apenas da história peruana, mas lança uma luz sobre o imenso

massacre indígena que se operou neste país, um dos maiores da história recente da América

Latina.

No Paraguai, a Comissão de Verdade e Justiça teve o volumoso trabalho de esclarecer

as violações nos 35 anos da ditadura militar de Stroessner, marcada pela repressão e violência.

Além da Comissão de Verdade e Justiça, a Comissão Nacional de Direitos Humanos

trabalhou um programa de compensações às vítimas da ditadura. Sobre o desempenho da

Comissão de Verdade e Justiça, esclarecem Alarcon e Mandelli:

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A Comissão teve por objetivo investigar as violações aos direitos humanos

cometidas por agentes estatais e paraestatais entre 1954 e 2003; seu foco principal

recaiu sobre os 35 anos de ditadura de Stroessner. O relatório é resultado de uma

série de audiências públicas temáticas, mais de duas mil entrevistas e testemunhos, e

da consulta aos arquivos da ditadura paraguaia que já vieram a público. Em seus oito

tomos, podem ser encontrados dados estatísticos sobre a repressão, descrições dos

métodos do terror de Estado, listagem de vítimas e detalhes de alguns casos

paradigmáticos das práticas de prisão, tortura, violência sexual, exílio forçado,

desaparecimento e execução de opositores e lideranças populares. Pela primeira vez,

pôde-se ter uma imagem mais precisa do alcance da repressão que vitimou a

sociedade paraguaia. A Comissão de Verdade e Justiça contou quase 20 mil

detenções arbitrárias ou ilegais, mais de 18 mil opositores torturados, mais de três

mil exilados, 336 desaparecidos e 59 executados. Durante o regime de Stroessner,

um em cada 67 adultos foi torturado. É também notável o número de cidadãos

paraguaios que desapareceram enquanto estavam exilados em países vizinhos – 102

na Argentina e sete no Brasil –, em prováveis ações da operação Condor. Mas o

relatório foi além: a grilagem de terras incentivada pela ditadura e a distribuição

ilegal de terras públicas a latifundiários e apoiadores do regime, que atingiu 28% das

terras aráveis do Paraguai, é tema de um dos volumes. Violações contra mulheres,

crianças e povos indígenas, mesmo quando não apresentavam motivações

explicitamente políticas, também foram abordadas, entendidas como

responsabilidade do regime autoritário. Os trabalhos da Comissão resultaram

também em dez denúncias judiciais contra violadores, bem como em uma lista de

177 recomendações ao poder público paraguaio. Entre elas, dar continuidade à busca

pelos restos dos desaparecidos políticos, preservar antigos centros de tortura como

espaços de memória, alterar nomes de ruas e outros locais públicos que

homenageiam violadores, e solicitar a outros países que abram seus arquivos

relacionados à violação de direitos de cidadãos paraguaios (ALARCON e

MANDELLI, 2011, p. 56).

As comissões citadas acima tiveram um trabalho satisfatório no esclarecimento das

violações pelos regimes autoritários latino-americanos, Na América Latina, apenas a

Argentina deve ser apontada como a referência internacional na defesa da verdade, memória e

justiça, pois foi o único país que levou centenas de envolvidos com torturas e assassinatos ao

banco dos réus, condenando mais de duzentos militares e civis, alguns a pena perpétua.

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A Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), em apenas

nove meses, ouviu mais de sete mil depoimentos e entrevistas. O trabalho da comissão foi

responsável por reunir informações que serviram para mais de duas mil denúncias contra

torturadores. Além do julgamento de oficiais e da abertura de processos na Justiça, a comissão

teve um grande alcance na divulgação de seu trabalho, o relatório “Nunca Más” documento 9

mil desaparecidos e tornou-se um best-seller, testemunhos de vítimas foram lidos em rede

nacional de televisão e a defesa dos direitos humanos e a condenação da ditadura se tornou e

continua, sendo um elemento nacional da vida política argentina. O alcance dos trabalhos da

Conadep não se restringiu a apuração dos acontecimentos, mas foi capaz de avançar na justiça

pelas condenações dos algozes da ditadura e pautou nacionalmente o debate sobre verdade,

memória e justiça.

Compreendendo que uma comissão de verdade, em maior ou menor grau, obedece a

três estágios de atuação, o relato de história, a construção moral e as consequências políticas,

é correto afirmar que apenas a Conadep, na Argentina, conseguiu, na América Latina, um

efetivo e expressivo resultado nestes três níveis. Ela foi capaz de esclarecer o período de

repressões na ditadura argentina com base em testemunhos e documentos, conseguindo

didaticamente a reprovação social da violência cometida pelo arbítrio de um Estado de

exceção e causando consequências políticas com a punição, com prisão perpétua de oficiais

que estiveram nos porões e gabinetes da ditadura. A experiência argentina deve ser vista como

referência e exemplo de transição democrática e trato com a história.

As comissões de verdade tem um papel importante para a história de um país que

atravessou períodos autoritários. Elas possuem um papel pedagógico para a democracia.

Trata-se de esclarecer as circunstâncias da morte de jovens que foram executados sem o

direito a um tribunal e deixaram pais aflitos que não puderam sepultá-lo. Essas histórias foram

silenciadas por muito tempo, porque incomodam, mas contá-las, reconhecendo as

responsabilidades do Estado e seus agentes, entendendo que mesmo a reparação justa é

insuficiente para os parentes e amigos que perderam um íntimo, é um antídoto forte contra

uma amnésia que tem como principal sintoma uma profunda incompreensão do presente,

fatalmente originada na incompreensão do passado. É neste sentido que apresentamos

panoramicamente as experiências das comissões verdade na América Latina, para tratar do

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percurso histórico que antecede a criação da Comissão Nacional da Verdade no Brasil e seu

respectivo trabalho.

1.2 COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: PERCURSO HISTÓRICO

No ano de 2014, registrou-se o cinquentenário do golpe militar no Brasil. Neste

período, muitas universidades, movimentos sociais, entidades e organizações de direitos

humanos, associações de familiares de presos e desparecidos políticos retomaram, com mais

vigor, o debate sobre democracia e ditadura. O tema ganhou a atenção de editoras que

anunciaram novas publicações e relançamentos de livros vinculados ao tema. Eventos

acadêmicos e debates foram promovidos por professores e coletivos de militância de várias

matizes ideológicas, atingindo uma parcela da população escolarizada em instituições de

ensino básico e superior, em círculos de militância política e ativismo social.

Em Brasília, no aniversário do cinquentenário do golpe, a presidente Dilma Rousseff

fez um pronunciamento no Palácio do Planalto, onde enfatizou a importância das conquistas

democráticas. Na Sede da OAB, o então Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo,

participou de solenidade onde em ato simbólico pediu perdão em nome do Governo brasileiro

as vítimas da Ditadura. No Senado, parlamentares pediram revisão da Lei de Anistia na sessão

especial que lembrou o golpe. Em uma manifestação intitulada de “escracho”, vários cartazes

foram afixados na frente da casa do ex-chefe do DOI-Codi e coronel reformado do Exército,

Brilhante Ustra. Vários atos em capitais e grandes cidades, como Brasília, São Paulo, Porto

Alegre, Belo Horizonte e Salvador repudiaram o golpe, homenagearam os mortos e

desparecidos políticos.

Contudo, o golpe civil-militar também foi comemorado por parte da sociedade no ano

de seu cinquentenário, naquele momento em proporções menores as manifestações de repúdio

à ditadura. Um ano depois, em 2015, houve um robusto crescimento de manifestações que

pediam o impeachment da presidente Dilma Rousseff e multiplicaram-se atos por uma

intervenção militar no Brasil. Uma parcela da sociedade brasileira idealiza a ditadura como

um regime a-corrupto de paz social e o autoritarismo brasileiro como parte de uma ideologia

conservadora mostra-se vivo e presente. “O fascismo não perdeu, como realidade histórica,

nem seu significado político nem sua influência ativa. O fascismo, como ideologia e utopia,

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persistiu até hoje, tanto de modo difuso, quanto como uma poderosa força política

organizada”, esclarece Florestan Fernandes (2015, p.33).

Análogo ao fascismo analisado por Florestan, o mesmo pode-se dizer as tendências

autoritárias no Brasil.

A intervenção militar de 1964 fez parte de uma estratégia continental, que tinha os

EUA como fiador e a burguesia brasileira e os militares como parceiros do consórcio

imperialista que atuou pela substituição de presidentes eleitos por sócios dos interesses

estadunidenses nos países latino-americanos, como Brasil e Chile.

O resultado do golpe foi uma ditadura, de caráter burgo-militar, como define Milton

Pinheiro (2014), que perdurou por 21 anos. O golpe de 1964 é caracterizado pela “tomada do

poder e o estabelecimento de uma ditadura de classe comandada pelo grande capital”, como

afirma Monteleone (2016, p.10). “Washington garantiu apoio aos seus tradicionais aliados

militares e lhes forneceu ajuda, porque os militares eram essenciais a estratégia para conter

excessos esquerdistas do Goulart, presidente eleito”, esclarece Chomsky (2003, p.289). A

histérica bandeira do combate ao comunismo internacional serviu como álibi ideológico para

os EUA e seus parceiros, avançando contra princípios democráticos básicos como a imprensa

livre, a autodeterminação dos povos e a liberdade de expressão e auto-organização,

falsificando a realidade e posteriormente a história. Desmistificar os papéis dos principais

atores da trama da Ditadura: os EUA, a burguesia brasileira e os militares, é acertar contas

com o passado e promover a reconciliação do Brasil com sua própria história.

Quase 30 anos após o fim do regime, interregno temporal suficiente para um balanço

honesto sobre a ação terrorista do Estado brasileiro durante a ditadura, foi instalada a

Comissão Nacional da Verdade, através da Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011. Os

movimentos sociais pelo direito à verdade, memória e justiça, que têm empreendido uma luta

histórica pela apuração das graves violações aos direitos humanos e pela responsabilização e

punição dos autores de tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados, conquistaram um

importante avanço com a instituição da CNV.

A ditadura brasileira, iniciada com o golpe de 31 de março de 1964, converteu o país

em um Estado de Exceção. Um conjunto de direitos e liberdades civis e individuais foram

desrespeitadas e a ditadura se tornou responsável direta pela morte de centena de pessoas,

estudantes, trabalhadores, religiosos, jornalistas, artistas e setores médios que se bateram

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contra as atrocidades protagonizadas pelos militares. Além das mortes, mais de 20 mil presos

políticos e um lastro de torturas e desaparecimentos forçados são registros das nebulosas

práticas da ditadura e da história contemporânea brasileira. As graves violações humanitárias

não foram registradas apenas do Brasil. É importante pontuar que a ascensão do autoritarismo

foi um fenômeno continental na América Latina.

Várias ditaduras militares, entre as décadas de 1960 e 1970, foram apoiadas pelos

Estados Unidos, inclusive a ditadura militar brasileira. O contexto da Guerra Fria que

polarizou o mundo entre os blocos dos EUA e do chamado Free World e o da União

Soviética, respectivamente socialista, torna-se um aspecto essencial para entender a ação

binária que os parceiros estadunidenses adotaram frente os agrupamentos de esquerda na

América Latina.

No Brasil, ainda durante a ditadura militar, teve início a luta pelo esclarecimento das

versões oficiais de desaparecimentos e assassinatos por motivação política. A conhecida

história da estilista Zuleika Angel Jones, conhecida também como Zuzu Angel, que

empreendeu inúmeros esforços para encontrar seu filho, Edgar Angel Jones, estudante de

Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e militante do Movimento

Revolucionário 8 de outubro (MR-8), que foi preso 14 de junho de 1971 por agentes do

Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica e dado como desaparecido, é um exemplo

da luta de familiares de presos e desaparecidos políticos pelo direito à verdade histórica,

memória e justiça. Zuzu Angel, tal como muitas outras mães, não conheceu, através do Estado

e da justiça, a verdade sobre o destino dado ao seu filho. Ela fez da moda uma ferramenta de

denúncia, mas em 1976, foi vítima de um atentado que culminou com sua morte.

O relatório final da CNV, ao versar sobre o mandato legal da comissão, que tem o

direito internacional como diapasão e exemplo, aponta o primeiro marco legal sobre o direito

à verdade.

Coube ao direito internacional humanitário, destinado a regular situações de conflito

armado, a primeira referência normativa ao direito à verdade. Em 1949, as

Convenções de Genebra já fixaram regras a respeito de registro e fornecimento de

informações sobre as vítimas de conflitos armados, bem como sobre a obrigação das

partes em facilitar as investigações feitas pelos membros das famílias dispersadas

pela guerra. Contudo, o reconhecimento explícito do direito das famílias a saber

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sobre o ocorrido com seus entes deve ser atribuído ao Protocolo Adicional I às

Convenções de Genebra, de 1977. Seus artigos 32 e 33 tratam do direito das famílias

de conhecer o destino de seus membros, ao término dos períodos marcados por

hostilidades, bem como da obrigação das partes envolvidas no conflito de localizar

as vítimas, ou os despojos das vítimas cujo paradeiro permaneça ignorado (CNV,

2014, p. 34).

Um ano após a morte de Zuzu Angel, em 1977, o Protocolo Adicional I às

Convenções de Genebra, em seus artigos 32 e 33, estabeleceu a responsabilidade dos estados

em localizar o paradeiro e despojos de vítimas que sofreram graves violações de direitos

humanos marcadas pela hostilidade de conflitos armados e outras intempéries da história

recente.

O avanço da legislação que tratava das questões humanitárias teve um novo capítulo

escrito no Brasil em 1979. A criação dos Comitês Brasileiros de Anistia, em 1978,

impulsionou manifestações públicas pelo retorno dos exilados e o lançamento de um conjunto

de ações: debates, panfletos, abaixo-assinados e a edição de livros que tiram do isolamento os

presos políticos. As mobilizações ganham as ruas e simpatizantes no Congresso, como o

senador Teotônio Vilela. O Governo se mostrava reticente a conceder anistia, mas o avanço

da campanha e uma greve de fome de 32 dias dos presos políticos levaram o presidente João

Baptista de Oliveira Figueiredo a girar a tática governamental sobre o tema. Costa (2001, p.

86), com base no Projeto Brasil Nunca Mais, aponta que “naquele momento, havia no Brasil

cerca de 200 presos políticos, 128 banidos, 4.877 punidos por Atos de Exceção, 263

estudantes atingidos pelo artigo 477 e cerca de 10 mil exilados”.

A campanha teve como palavra de ordem “Anistia ampla, geral e irrestrita” e o general

presidente João Batista Figueiredo sancionou a Lei Nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Em

linhas gerais, a anistia concedida não foi a projetada pelos comitês e serviu também para que

os militares se auto anistiassem, com a extensão do perdão a torturadores. Mas também

simbolizava um processo de abertura dentro da institucionalidade, que serviu para fortalecer

as condições para outras movimentações políticas, como as “Diretas Já” de 1985.

A Anistia de 1979 e a derrota da emenda constitucional que previa Eleições Gerais em

1985, impulsionada pela campanha das “Diretas Já”, segundo Spinelli (2014, p. 61) “protegia

os militares contra pretensões revanchistas e permitiria que eles exercessem uma discreta

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tutela sobre o governo civil, adiantando a competição real com a oposição, em reeleição

direta, para 1991”.

A sucessiva queda de regimes autoritários na América Latina, a perda de legitimidade

da ditadura brasileira, o avanço de mobilizações, como as pela liberdade dos presos políticos

com o processo de anistia e o pedido de eleições gerais para 1985, forjaram as condições para

um processo de abertura.

A distensão “lenta, gradual e segura”, publicamente iniciada com o general e

presidente Ernesto Geisel, em 19741, avançou sob o comando de Figueiredo e teve importante

marco com a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral em 1985, o primeiro presidente

civil desde 1964. Em decorrência de sérios problemas de saúde, Tancredo veio a falecer em

21 de abril de 1985.

José Sarney, que havia tomado posse interinamente como presidente desde 15 de

março daquele ano, passou à titularidade da Presidência da República. Neste sentido, é

importante destacar que ele foi um aliado dos militares e gozava de confiança das cúpulas do

poder militar, um agende político sob o controle do diapasão autoritário.

Após a ascensão de um civil à Presidência, a Constituição de 1988, que ensejou ampla

mobilização da sociedade, teve papel fundamental como novo marco constitucional que

fundamenta o Estado democrático de direito e restitui uma série de direitos e garantias civis.

O processo de abertura possibilitou maior organização e várias associações de familiares de

presos e desaparecidos políticos, a exemplo das Madres de Plaza de Mayo, na Argentina,

assim como entidades de direitos humanos, foram fundadas, em um contexto favorável a

organização e à luta pelo direito à verdade, que tomou novos contornos pós-ditadura. A

abertura dos arquivos da Ditadura, a punição de torturadores com a revisão da Lei de Anistia e

a indenização e reparação histórica se tornaram bandeiras importantes, assim como a

instituição de uma comissão da verdade.

A luta pela democracia e pela verdade histórica tem uma dimensão não apenas

humanitária, mas também política. O Relatório da IV Reunião Anual do Comitê de

Solidariedade aos Revolucionários do Brasil, documento datado de fevereiro de 1976,

1 É importante citar que o presidente Ernesto Geisel aprovou uma série de medidas autoritárias como o

fechamento do Congresso em 1º de abril de 1977, além de reformas que permitiam e reforçava uma confortável

predomínio do Governo nas esferas legislativas. Essas medidas fizeram parte de um arsenal judicial que

reforçava o poder do Governo em conduzir um processo de abertura tutelada.

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encontrado no acervo pessoal do ex-senador e líder comunista Luiz Carlos Prestes, apresenta

uma lista de 233 torturadores da cidade de São Paulo. A historiadora Vivi Fernandes de Lima

(2012) relata, em um dossiê sobre Prestes, o significado deste documento que registrou os

nomes de algozes do regime e buscou preservar essa memória, uma ação política de combate

ao esquecimento e de denúncia ao autoritarismo.

Este não foi o único dossiê produzido por militantes políticos e ativistas de direitos

humanos durante a ditadura. O certo é que eles têm um sentido muito claro: reivindicar uma

história onde as memórias dos que foram vítimas não desapareça ou seja enterrada. Calveiro

(2013) afirma que nos campos de concentração/extermínio na Argentina, havia-se quase uma

obsessão: alguém deveria sobreviver para contar fora da prisão o que aconteceu com os que

foram presos.

Para o filósofo Walter Benjamin (1987, pp 3, 14) “somente a humanidade redimida

poderá apropriar-se totalmente do seu passado” e a “história é objeto de uma construção cujo

lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’. Ela é um salto

de tigre em direção ao passado”.

A promulgação da Constituição Cidadã de 1988 restituiu uma série de garantias

fundamentais suspensas pela ditadura brasileira. No cenário internacional as obrigações dos

Estados com as vítimas de graves violações de direitos humanos, também foram ratificadas

em 1988, em função da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como

apresenta Simone Pinto (2010):

Em função da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, relativa ao

caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras, em que ficou definido que todos os

Estados, estão sujeitos a quatro obrigações: a) tomar medidas para prevenir

violações aos direitos humanos; b) conduzir investigações quando as violações

ocorrem; c) impor sanções aos responsáveis pelas violações e d) garantir reparação

para as vítimas. Estes princípios foram reafirmados em decisões subsequentes e

adotadas também por decisões da Corte Européia de Direitos Humanos e por

tratados e resoluções da ONU (PINTO, 2010, p. 129).

No Brasil, o que pode ser apontado como o episódio de maior importância no percurso

das reivindicações por verdade, memória e justiça, pós-Constituição de 1988, foi a instalação

da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a CEMDP. O presidente

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Fernando Henrique Cardoso (FHC), que sofreu pressão política de grupos de familiares de

presos e desaparecidos políticos, tomou a iniciativa de abrir diálogo. O Ministério da Justiça,

através do Ministro Nelson Jobim, recebeu pela primeira vez, em 1995, representantes da

Comissão de Familiares de Presos Políticos, Mortos e Desaparecidos e do grupo Tortura

Nunca Mais. O resultado dessa interlocução foi a aprovação e a sanção presidencial de Lei nº

9.140, de 4 de dezembro de 1995, que afirmou a responsabilidade do Estado sobre os crimes

praticados por agentes estatais durante a ditadura e criou a CEMDP. A própria comissão faz

referência à importância da lei.

Ela afirmou a responsabilidade do Estado pelas mortes, garantiu reparação

indenizatório e, principalmente, oficializou o reconhecimento histórico de

que esses brasileiros não podiam ser considerados terroristas ou agentes de

potências estrangeiras, como sempre martelaram os órgãos de segurança. Na

verdade, morrera lutando como opositores políticos de um regime que havia

nascido violando a constitucionalidade democrática erguida em 1946

(BRASIL, 2007, p. 30).

A CEMDP, instituída em 1995 pelo presidente FHC, concluiu seu trabalho com a

publicação do seu relatório final “Direito à Verdade e à Memória” em 2007, já sob o mandato

do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É importante ressaltar que antes da conclusão dos

trabalhos da CEMDP, em 2005, por determinação presidencial, foram retirados mais de 20

milhões de páginas sobre a ditadura do extinto Serviço Nacional de Informação, o SNI e

recolhido ao Arquivo Nacional.

Registre-se ainda que essas iniciativas estavam ancoradas nas determinações da ONU,

em especial da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas Contra o

Desaparecimento Forçado, que ocorreu em 2006 e diz que “toda vítima tem o direito de

conhecer a verdade sobre as circunstâncias de um desaparecimento forçado e o destino da

pessoa desaparecida, bem como o direito a liberdade de buscar, receber e difundir

informações com esse fim”. Essa discussão é apresentada por Rafael Neves (2012, p.156), que

ressalta que “os direitos humanos não podem ser entendidos desvinculados do exercício do

poder político”. No que diz respeito ao direito à verdade, a CNV destaca a atuação do Alto

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Comissário para Direitos Humanos e a publicação de O Estado sobre o direito à verdade que

define as dimensões individuais e coletivas sobre o direito à verdade.

O direito à verdade recebeu atenção, ainda, do Alto Comissariado para Direitos

Humanos a partir de 2006, quando foi publicado o Estudo sobre o direito à verdade,

que define o direito de saber a “íntegra e completa verdade” sobre as causas que

levaram à vitimização, as causas e condições para as graves violações de direitos

humanos e de direito humanitário, o progresso e os resultados de investigações, as

circunstâncias e razões para o cometimento de crimes internacionais, as

circunstâncias em que as violações ocorreram e, finalmente, a identidade dos

perpetradores. O direito à verdade assume duas dimensões: 1) individual: o direito à

verdade impõe a obrigação do Estado de apresentar informações específicas sobre as

circunstâncias das graves violações, inclusive a identidade dos autores e no caso de

morte e desaparecimento, sobre a localização dos restos mortais; e 2) coletiva: o

Estado está obrigado a fornecer informações acerca das circunstâncias e razões do

ocorrido (CNV, 2014, p. 35).

Importantes avanços na legislação internacional que trata das violações aos direitos

humanos foram registrados no começo do século XXI e quando esse anteparo jurídico versa

sobre as violações que ocorreram em decorrência de rupturas institucionais e a consequente

emergência de ditaduras, uma demanda por reparações da justiça e por transição à democracia

surge. Para atender esta demanda por justiça e democracia, surge o conceito de justiça de

transição ou justiça transicional que visa a transição democracia com consolidação do Estado

democrático de direito e reparação as vítimas de regimes autoritários. Este conceito é

explicado nos seus pormenores por Simone Pinto (2010) e Honório Quinalha (2013), que

apontam a emergência dessa temática na agenda política latino-americana.

O conceito de justiça de transição surgiu no final da década de oitenta e início da

década de noventa principalmente em resposta às mudanças políticas ocorridas na

América Latina e no Leste Europeu. Da junção de demandas por justiça e por

transição democrática, o termo justiça transicional foi cunhado para expressar

métodos e formas de responder a sistemáticas e amplas violações aos direitos

humanos. Assim, justiça transicional não expressa nenhuma forma especial de

justiça, mas diversas iniciativas que têm por intuito reconhecer o direito das vítimas,

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promover a paz, facilitar a reconciliação e garantir o fortalecimento da democracia

(PINTO, 2010, p. 129).

Para Quinalha:

O tema justiça de transição ingressou, com posição de destaque, na agenda política

latino-americana. As discussões relativas ao legado do passado autoritário nessas

democracias recentes sempre estiveram em pauta pela persistente atuação de

movimentos sociais de ex-presos e de familiares de desaparecidos políticos. Mas

essas pautas adquiriram excepcional visibilidade e receberam maior atenção dos

governos na região apenas durante a primeira década do séc. XXI, em especial nos

últimos cinco anos. No caso brasileiro, demonstrações contundentes disso podem ser

verificadas, especialmente, a partir do ano de 2007. Uma série de iniciativas e

respostas recentes por parte do Estado atesta que esse tema começou a ocupar um

espaço público relevante e passou a ser objeto de intensas polemicas na sociedade e

no interior do próprio governo (QUINALHA, 2013, p. 22-23).

Os avanços de 2005, 2006 e 2007 foram importantes para basilar as discussões em

torno da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos que ocorreu em 2009 e recomendou

a criação de uma Comissão de Verdade e Justiça. A tensão entre as reivindicações dos

movimentos sociais e o governo de conciliação de classes do ex-presidente Lula resultou em

embates internos. Os movimentos e entidades de direitos humanos reivindicavam uma

comissão de verdade e justiça, buscando não apenas o avanço na política de efetivação da

verdade histórica, mas também a punição dos perpetradores de direitos humanos e as reformas

estruturais fundamentais ao processo de transição e consolidação democrática. Edson Teles

(2012) aponta os personagens dos embates internos do governo:

A instalação de uma Comissão da Verdade e Justiça é uma reivindicação antiga das

entidades de direitos humanos, ex-presos políticos e familiares de mortos e

desaparecidos. Em dezembro de 2008, a proposta de criação de uma comissão foi

apresentada e votada na XI Conferência Nacional de Direitos Humanos, justamente

sob a forma de uma ‘Comissão de Verdade e Justiça’. O ano seguinte foi marcado

por uma queda de braço entre o então secretário de Direitos Humanos, Paulo

Vannuchi, que defendia a proposta saída da conferência, e o então ministro da

Defesa, Nelson Jobim, que defendia uma comissão apenas da ‘verdade’,

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representando os interesses dos militares. Logo depois, apresentou-se o III Programa

Nacional de Direitos Humanos, no qual constava uma proposta de Comissão da

Verdade, sem o acréscimo da Justiça (TELES, 2012, p. 38).

O grupo de trabalho que formulou o anteprojeto de criação da comissão foi formado

em 13 de janeiro de 2010, por força de determinação presidencial e foi comandada por

Erenice Guerra, então secretária-executiva da Casa Civil.

Em 12 de maio de 2010, o projeto de criação da CNV, a Lei nº 12.528, era

encaminhada por Lula ao Congresso Nacional, onde tramitou em regime de urgência, sendo

sancionada em 18 de novembro de 2011, pela presidenta Dilma Rousseff.

A CNV foi instalada em 12 de maio de 2012. Os conselheiros indicados foram

Claudio Lemos Fonteles, ex-procurador-geral da República; Gilson Langaro Dipp, ministro

do Superior Tribunal de Justiça; José Carlos Dias, advogado, defensor de presos políticos e

ex-ministro da Justiça; José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e ex-ministro da Justiça; Maria

Rita Kehl, psicanalista e jornalista; Paulo Sérgio Pinheiro, professor titular de Ciência Polícia

da Universidade de São Paulo (USP) e Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada criminal e

defensora de presos políticos. Registre-se que, com a renúncia de Claudio Lemos Fonteles,

em setembro de 2013, sua vaga foi ocupada por Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari,

advogado e professor titular de Direito Internacional do Instituto de Relações Internacionais

da USP.

Gilson Dipp não participou do período final dos trabalhos da CNV e se afastou da

comissão por problemas de saúde. A comissão contou com a participação de um conjunto de

assessores, um núcleo pericial, pesquisadores, consultores, colaboradores e o estabelecimento

de muitos acordos de colaboração com outras comissões de verdade, memória e justiça

legislativas, comissões dirigidas por seções da Ordem dos Advogados do Brasil ou criadas no

âmbito das universidades e demais instituições de ensino, assim como comitês da verdade de

entidades de classe, como a União Nacional dos Estudantes2.

A CNV celebrou ainda parcerias internacionais com embaixadas e centros de arquivos

e pesquisa de outros países. O caráter republicano da comissão e os rígidos mecanismos de

2 O relatório final da Comissão da Verdade da UNE pode ser acessado aqui:

http://www.une.org.br/noticias/confira-o-relatorio-final-da-comissao-da-verdade-da-une.

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apuração utilizados devém ser ressaltados como componentes de um instrumento essencial ao

avanço da justiça de transição no Brasil.

O relatório final da CNV considera que foi de fundamental importância para o

desenvolvimento de seus trabalhos que a Lei de Acesso a Informação (LAI), a Lei nº 12/527,

tramitada concomitantemente com a lei que criou a Comissão. A LAI forneceu um suporte

jurídico necessário para que as investigações da CNV pudessem ser as mais amplas possíveis

e contassem com o fornecimento de informações por parte dos órgãos públicos. A aprovação

da LAI, foi classificada pela Comissão da seguinte forma:

Foi determinante, para os trabalhos da CNV, que o processo legislativo que produziu

a Lei nº. 12.528/2011 tenha se dado simultaneamente àquele que conduziu à

aprovação da Lei nº. 12.527/2011, de Acesso à Informação (LAI). A edição de uma

lei de acesso à informação de interesse público garantiu maior transparência à

administração pública, restringindo a possibilidade da classificação de informações,

o que beneficiou o trabalho da CNV. Com efeito, o dispositivo da LAI que veda a

restrição de acesso a informações ou documentos versando sobre violações de

direitos humanos, praticadas por agentes públicos, foi, por vezes, utilizado pela

CNV. Cite-se, a título de exemplo, que, após resistência inicial das Forças Armadas

em permitir o acesso às folhas de alterações de militares, a CNV fez prevalecer a

interpretação conjunta das duas leis para caracterizar tais informações como de

caráter administrativo, sendo-lhe autorizado, pelo Ministério da Defesa, o acesso aos

dados da vida funcional de mais de uma centena de oficiais. A vigência da LAI

permitirá a continuidade, em momento posterior ao encerramento dos trabalhos da

CNV, da busca da efetivação do direito à memória e à verdade histórica,

possibilitando seu exercício por pessoas ou entidades, públicas e privadas, desejosas

do acesso irrestrito a informações ou documentos que versem sobre violações de

direitos humanos (CNV, 2014, p. 22).

O percurso histórico até a constituição da CNV foi marcado por percalços,

dificuldades e entreves. Foi preciso quase 30 anos do fim do regime militar para instalar no

país uma Comissão que tivesse como papel central esclarecer as graves violações aos direitos

humanos.

Esta foi a comissão possível de se formar no Governo Lula. Na lei que a institui,

atribui-se à CNV a missão de “efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a

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reconciliação nacional”. Destaque que a comissão não tem caráter persecutório ou

jurisdicional, o que significa que ela não tinha poderes de condenar, no sentido jurídico,

perpetradores de direitos humanos, mas pôde fazer recomendações para o avanço do processo

de transição a redemocratização, classificada por nós como incompleta. Nos artigos 3º e 4º da

Lei nº 12.528, estão delimitados os objetivos da comissão e os recursos aos quais pôde

recorrer.

Art. 3º - São objetivos da Comissão Nacional da Verdade:

I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos

humanos mencionados no caput do art. 1º;

II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes,

desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que

ocorridos no exterior;

III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as

circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas

no caput do art. 1o e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na

sociedade;

IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida

que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de

desaparecidos políticos, nos termos do art. 1o da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de

1995;

V - colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de

direitos humanos;

VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de

direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação

nacional; e

VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos

de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada

assistência às vítimas de tais violações.

Art. 4º - Para execução dos objetivos previstos no art. 3º, a Comissão Nacional da

Verdade poderá:

I - receber testemunhos, informações, dados e documentos que lhe forem

encaminhados voluntariamente, assegurada a não identificação do detentor ou

depoente, quando solicitada;

II - requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades do poder

público, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo;

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42

III - convocar, para entrevistas ou testemunho, pessoas que possam guardar qualquer

relação com os fatos e circunstâncias examinados;

IV - determinar a realização de perícias e diligências para coleta ou recuperação de

informações, documentos e dados;

V - promover audiências públicas;

VI - requisitar proteção aos órgãos públicos para qualquer pessoa que se encontre

em situação de ameaça em razão de sua colaboração com a Comissão Nacional da

Verdade;

VII - promover parcerias com órgãos e entidades, públicos ou privados, nacionais ou

internacionais, para o intercâmbio de informações, dados e documentos; e

VIII - requisitar o auxílio de entidades e órgãos públicos.

Art. 4º - Para execução dos objetivos previstos no art. 3o, a Comissão Nacional

da Verdade poderá:

I - receber testemunhos, informações, dados e documentos que lhe forem

encaminhados voluntariamente, assegurada a não identificação do detentor ou

depoente, quando solicitada;

II - requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades do poder

público, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo;

III - convocar, para entrevistas ou testemunho, pessoas que possam guardar qualquer

relação com os fatos e circunstâncias examinados;

IV - determinar a realização de perícias e diligências para coleta ou recuperação de

informações, documentos e dados;

V - promover audiências públicas;

VI - requisitar proteção aos órgãos públicos para qualquer pessoa que se encontre

em situação de ameaça em razão de sua colaboração com a Comissão Nacional da

Verdade;

VII - promover parcerias com órgãos e entidades, públicos ou privados, nacionais ou

internacionais, para o intercâmbio de informações, dados e documentos; e

VIII - requisitar o auxílio de entidades e órgãos públicos.

§ 1º. As requisições previstas nos incisos II, VI e VIII serão realizadas diretamente

aos órgãos e entidades do poder público.

§ 2º. Os dados, documentos e informações sigilosos fornecidos à Comissão Nacional

da Verdade não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a

seus membros resguardar seu sigilo.

§ 3º. É dever dos servidores públicos e dos militares colaborar com a Comissão

Nacional da Verdade.

§ 4º. As atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional

ou persecutório.

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§ 5º. A Comissão Nacional da Verdade poderá requerer ao Poder Judiciário acesso a

informações, dados e documentos públicos ou privados necessários para o

desempenho de suas atividades.

§ 6º. Qualquer cidadão que demonstre interesse em esclarecer situação de fato

revelada ou declarada pela Comissão terá a prerrogativa de solicitar ou prestar

informações para fins de estabelecimento da verdade (BRASIL, 2011. p.1).

A CNV, em seus sete objetivos norteadores, buscou cumprir a difícil tarefa de

esclarecer as circunstâncias em que se deram as graves violações a direitos humanos,

desnudar as localidades de repartições e órgãos públicos onde ocorreram as violações, efetivar

o direito a verdade histórica e promover a “reconciliação nacional”, fazendo apontamentos

que como recomendações contribuam para o processo de democratização do Estado

brasileiro.

O caráter republicano, anteriormente ressaltado, se expressa também no veto a

membros ou dirigentes de partidos políticos e cargos comissionados de todas as esferas da

administração pública (federal, estaduais e municipais) que não puderam ocupar os cargos de

conselheiros da Comissão. Buscou-se, tanto no desenvolvimento do trabalho, quanto na

versão final do relatório, a narração estrita dos fatos o amparo na legislação brasileira e

internacional sobre direitos humanos.

O trabalho já desenvolvido pela CEMDP foi usado em larga escala pela CNV, que lhe

serviu como base para várias apurações. Contudo, “o trabalho da CNV foi capaz de fazer

justiça a trabalhadores rurais, indígenas e clérigos assassinados durante a ditadura, o que em

regra não pôde ser apreciado pela CEMDP” (CNV, 2014, p.27). O marco temporal das

averiguações da CNV se deu do dia 18 de setembro de 1946 à 5 de outubro de 1988 e as

investigações não se limitaram somente ao território brasileiro, buscando esclarecer as

violações ocorridas no exterior, dando destaque a Operação Condor3 e estabelecendo

colaborações internacionais para investigação com profundidade deste evidente caso de

terrorismo de Estado.

3 A Operação Condor foi uma aliança entre as ditaduras instaladas nos países do Cone Sul na década de

1970 — Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai — com o intuito de realizar atividades

coordenadas, de forma clandestina e à margem da lei, para monitorar, sequestrar, torturar, assassinar e fazer

desaparecer militantes que faziam oposição aos regimes militares do continente.

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O marco organizacional da CNV foi a Resolução nº. 01, que aprovou o seu regimento

interno, definindo seu funcionamento, as atribuições dos conselheiros, suas diretrizes

organizativas com a definição de grupos de trabalho e subcomissões. A comissão organizou

os grupos com eixos temáticos específicos, promovendo a descentralização da investigação e

a autonomia de pesquisa. Sobre essa organização dos trabalhos a própria CNV informa:

A partir de dezembro de 2012, as atividades de pesquisa da CNV passaram a ser

desenvolvidas basicamente por meio de grupos de trabalho coordenados pelos

membros do Colegiado, contando, cada um deles, com assessores, consultores ou

pesquisadores. Tal forma de organização teve por intuito permitir a descentralização

das investigações e a autonomia das equipes de pesquisa. Pautada nessas diretrizes

iniciais, a CNV estabeleceu 13 grupos de trabalho, segmentados pelos seguintes

campos temáticos: 1) ditadura e gênero; 2) Araguaia; 3) contextualização,

fundamentos e razões do golpe civil-militar de 1964; 4) ditadura e sistema de

Justiça; 5) ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical; 6)

estrutura de repressão; 7) mortos e desaparecidos políticos; 8) graves violações de

direitos humanos no campo ou contra indígenas; 9) Operação Condor; 10) papel das

igrejas durante a ditadura; 11) perseguições a militares; 12) violações de direitos

humanos de brasileiros no exterior e de estrangeiros no Brasil; e 13) o Estado

ditatorial-militar (CNV, 2014, p. 51).

A CNV contou oficialmente com 217 colaboradores diretamente ligados à Comissão e

teve sua sede instalada em Brasília, tendo escritórios no Rio de Janeiro e São Paulo. O prazo

de entrega do relatório final foi prorrogado por sete meses por força da Medida Provisória nº.

632, de 24 de dezembro de 2013, estendendo o trabalho da CNV, que chegou ao fim ao longo

de 31 meses. As resoluções nºs 12, 13, 14, 15 e 16 designaram Pedro Bohomoletz de Abreu

Dallari a Coordenação da CNV em 16 de novembro de 2014 e o reconduziram a esta função

até a conclusão dos trabalhos da comissão e sua respectiva extinção.

Os trabalhos da CNV foram concluídos com a entrega do relatório final em sessão no

Palácio do Planalto no dia 10 de dezembro de 2014, onde estiveram presentes a presidenta

Dilma Rousseff e autoridades dos poderes Legislativo e Judiciário. O relatório é dividido em

três volumes, o primeiro contém dezoito capítulos que visam apresentar as estruturas, relações

e fatos envolvendo graves violações aos direitos humanos, evitando uma perspectiva analista

ou valorativa, buscando a apresentação fatídica da realidade em toda sua “crueza”. O segundo

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volume traz uma coletânea de textos temáticos assinados pelos conselheiros, enquanto que o

terceiro volume é dedicado integralmente as vítimas e elucida as circunstâncias das mortes de

434 desaparecidos político, que tiveram como algoz a ditadura.

O relatório final da CNV é um documento histórico com uma extensa documentação

que pode ser acessada por pesquisadores e a população. Rosa Maria Cardoso da Cunha,

advogada e cientista política, membro e ex-coordenadora da CNV, afirmou em 25 de julho de

2013, em debate promovido pela ANPUH na UFRN, que a verdade produzida pela Comissão

deve ser a verdade das vítimas e dos sobreviventes. A Comissão é parte do percurso de luta

dos movimentos sociais e de avanço das políticas de justiça de transição no Brasil. Ela é um

capítulo da história e não encerra ou esgota o debate e as reivindicações por memória,

verdade, justiça, punição e reparação.

1.3 O RELATÓRIO PARCIAL: PRIMEIROS PASSOS

O relatório parcial, intitulado “Balanço de Atividades – 1 ano de Comissão Nacional

da Verdade” publicado em 2013, apresenta o funcionamento da comissão e suas distintas

atividades: audiências, principais periciais, parcerias firmadas com ministérios, Embaixadas,

universidades e centros de pesquisa e informação. O documento contém 23 páginas onde se

esclarece a pesquisa documental, a gestão de informações, as tomadas de depoimentos e as

relações institucionais da CNV.

Dentre as principais atividades elencadas, a comissão cita a exumação do ex-

presidente João Goulart, com a participação de especialistas internacionais na execução de

pericias que tinham como fim esclarecer as circunstâncias de sua morte em dezembro de

1976. A perícia ocorreu a pedido da família e a CNV — em coordenação com o Ministério

Público Federal e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e Polícia

Federal, envolveu laboratórios do Brasil, Portugal e Espanha, além de peritos da Argentina,

Uruguai e Cuba. Apesar do resultado dos exames não terem detectado substâncias venenosas,

a tese de envenenamento não pode ser descartada, já que as substâncias poderiam ter sumido

do corpo após quatro décadas da morte de Goulart.

A família de Jango acredita que ele teria sido assassinado por envenenamento, em uma

ação que contou com o beneplácito da CIA e das ditaduras do Brasil e Uruguai, no âmbito da

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Operação Condor. Em 2002, o ex-agente uruguaio Mario Barreiro Neira, preso no Brasil por

tráfico de armas, afirmou que Jango foi assassinado por uma decisão conjunta dos governos

do Brasil, Uruguai e Estados Unidos. As duas versões da morte do ex-presidente, o

envenenamento e o infarto do miocárdio, não podem ser descartadas, mas as diligências da

CNV foram importantes no sentido de esclarecer as obscuridades em torno da morte do ex-

presidente. Se tais diligências tivessem sido tomadas anteriormente, logo no retorno da

democracia no Brasil, teriam tido efeito mais efetivo e esclarecedor, mas o país paga o preço

pelo atraso em não passar a limpo sua própria história, sendo o último da América Latina a

instituir uma comissão de verdade.

O relatório parcial não detalhou as especificidades da exumação do corpo de João

Goulart, não colocou em evidencia o debate histórico sobre a ditadura brasileira. O relatório

teve um caráter panorâmico de apresentação das atividades e elencou uma importante relação

de documentos que foram resgatados pela comissão. Para elucidar a extensão da

documentação em mãos da CNV, pode-se citar o caso específico de Minas Gerais, onde foram

encontrados 2 milhões de páginas de documentos na Coordenação Geral de Segurança da

Polícia Civil, que assumiu as funções do DOPS a partir de 1970. O “Relatório Figueiredo”,

que foi considerado desaparecido por décadas, contém 7 mil páginas e trata da questão

indígena, também foi resgatado pela comissão e é imprescindível para detalhar a repressão

sofrida pelos indígenas brasileiros, como cita a própria comissão:

Esse documento contém informações sobre várias formas de violação de direitos

como maus tratos e assassinatos de índios, perda de terras indígenas para

fazendeiros e empresários, desvio de verbas, negociatas e negligência com

populações em extinção. A descoberta deste relatório contribuirá para a

compreensão das violações de direitos de povos indígenas em toda a extensão do

território brasileiro, no período de investigação da CNV, 1946 – 1988 (CNV, 2013,

p. 6-7).

A CNV se empenhou na recuperação documental, constituindo um esquema efetivo de

investigação com base nas estruturas de informações instaladas em Ministérios, Autarquias,

Fundações, Universidades, Empresas e outros órgãos, além, claro, dos dados recolhidos junto

ao Serviço Nacional de Inteligência (SNI), um importante núcleo de informação e inteligência

da ditadura. Além da recuperação de documentos em acervos nacionais a comissão cumpriu

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missões internacionais junto a Embaixadas e Centros de Informação e Pesquisa de outros

países.

As ações da CNV, as parcerias de colaboração firmadas, servem não apenas para

lançar luz sobre a repressão da ditadura brasileira, mas para esclarecer o papel da The School

of Americas na articulação pela repressão internacional, que teve como diapasão a política

estadunidense, consorciada a um leque de ditaduras na América Latina. O resgate de

documento que a CNV realizou é um passo adiante para esclarecer a história latino-americana

e a própria comissão elenca as missões que realizou e seus respectivos resultados.

Em missões internacionais organizadas pela CNV, foram identificados vários

acervos de interesse, bem como iniciada a pesquisa exploratória, com apoio do

governo da Argentina, nos Arquivos da Chancelaria, do Arquivo Nacional da

Memória, da Secretaria de Direitos Humanos e nos processos da Fiscalía General de

la República Argentina. Foram identificados na Chancelaria 66 caixas de

documentos sobre o Brasil e recolhidas, na Embaixada do Brasil em Buenos Aires, 9

pastas de documentos remanescentes. No Paraguai, foi pesquisado todo o conteúdo

do Balanço de Atividades CNV “Arquivo do Terror”, resultando em cinco mídias

digitais completas, com 43 pastas sobre mortos desaparecidos e outros temas do

período, e 68 fichas de brasileiros presos no Paraguai, entre outros documentos.

Com relação aos exilados e refugiados, 14 casos paradigmáticos foram destacados

na pesquisa feita no Arquivo do Clamor. Foram, ademais, identificadas 50

organizações de proteção aos direitos humanos no exterior, onde se buscarão mais

detalhes sobre a perseguição a estrangeiros nos períodos de repressão: 25 na

América do Sul, 9 na América do Norte, e 16 na Europa.

Outros arquivos mostram, ainda, que, no caso do Uruguai, o serviço secreto daquele

país teria conseguido, com a ajuda de Brasília e Buenos Aires, sequestrar e levar de

volta para as prisões de Montevidéu 110 refugiados políticos que estavam no Brasil

e na Argentina entre 1976 e 1979. Cerca de 3.300 latino-americanos chegaram ao

Brasil entre 1977 e 1982 em busca de asilo político e fugindo da tortura. Contudo, o

status de refugiado teria sido dado para apenas 1.380 deles e todos teriam sido

transferidos pelo ACNUR a locais “seguros” a pedido do governo brasileiro, a

grande maioria para a Europa. Quase 90% deles eram argentinos ou uruguaios.

Documentos atestam colaboração – como troca de informações, monitoramento,

troca de fotos, sequestros e expulsões – entre Brasil, Argentina e Chile até o início

dos anos 80.

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Em relação aos mortos e desaparecidos, junto à Direção de Verdade, Memória e

Justiça do Paraguai já se estabeleceu cooperação para investigar 6 novos casos de

paraguaios mortos no Brasil no ano de 1960. Durante a audiência pública realizada

pela CNV em Porto Alegre, divulgou-se uma lista de 17 casos de desaparecimentos

forçados de brasileiros na Argentina, na Bolívia e no Chile, objeto de investigações.

Estão sendo feitas gestões junto aos órgãos competentes para obter listas de alunos;

de pessoas que ministravam cursos; e o conteúdo das instruções dadas no Centro de

Instrução de Guerra na Selva (CIGS) e na Escola das Américas (The School of

Americas, SOA), bem como informações referentes às Conferências dos Exércitos

Americanos (CEA), todos espaços de articulação e fortalecimento da repressão

internacional, com o ensino das técnicas de tortura e monitoramento de exilados e

perseguidos políticos (CNV, 2013, p. 15-16).

Além das missões estrangeiras, a CNV trabalhou em contato direto com a sociedade.

As pessoas que procuraram seus serviços, registrando solicitações variadas: envio de

informações, pedido de informações, reclamações, denúncias, oferecimento de depoimentos,

sugestões e elogios. Para responder a estas demandas, a CNV instituiu uma coordenação de

Ouvidoria no âmbito de sua Secretaria-Executiva, no intuito de institucionalizar o contato

com a sociedade, no recebimento de colaborações à atividade-fim da CNV. A Ouvidoria

funcionou com um sistema eletrônico de gerenciamento de demandas, onde foram registradas,

pela internet, um total de 864 solicitações, até 17 de maio de 2013, como mostra a tabela

abaixo.

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TABELA 1- Solicitações recebidas pela CNV até 2013

Fonte: Relatório “Balanço de Atividades – 1 ano de Comissão Nacional da Verdade” – Comissão Nacional da

Verdade, 2013, p. 23.

Frente as expectativas e polêmicas que cercaram a criação da CNV, que sofreu duras

críticas de parlamentares, militares e setores conservadores, causando burburinho na

imprensa, consideramos baixa a procura pela Comissão. Mais da metade das pessoas que

buscaram a comissão, 467 (54%), solicitavam informações. Envios de informações (12%),

denúncias (8%) e o oferecimento de depoimentos (4%) somam 24%, demonstrando a parcela

que contribuiu diretamente com a prestação de informações que foram compiladas pela CNV.

Apenas 11 pessoas (1%) daquelas que procuraram a comissão no seu primeiro ano tiveram

elogios para registrar.

Somente no ano do golpe, em 1964, no Brasil, calcula-se que a repressão promoveu 50

mil prisões por motivações políticas e, levando-se em consideração o número de pessoas

afetadas pela ditadura é que consideramos, não apenas as solicitações encaminhadas à

comissão, como também os depoimentos coletados, abaixo do esperado no primeiro ano de

atividades, somando um total de apenas 268 depoimentos, entre agentes e colaboradores do

regime, vítimas militares e vítimas civis e testemunhas.

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TABELA 02 – Depoimentos prestados à CNV

Fonte: Relatório “Balanço de Atividades – 1 ano de Comissão Nacional da Verdade” – Comissão Nacional da

Verdade, 2013, p.11.

O gerenciamento de solicitações fez parte dos trabalhos internos da comissão; a

tomada de depoimentos ocorreu em sua maioria em sessões abertas de interrogatório, que

tinham o intuito de esclarecer as circunstâncias de graves violações de direitos humanos, tais

como mortes, desaparecimentos forçados, ocultações de cadáveres e sua autoria. Dentre os 37

agentes e colaboradores do regime militar que prestaram depoimentos, um dos mais

significativos foi o do depoente Ustra.

O coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra foi chefe do Destacamento de

Operações Internas (DOI-Codi) de São Paulo entre 1970 a 1974, em plena vigência do Ato

Institucional nº 5, período do auge da repressão. O seu interrogatório ocorreu em 10 de maio

de 2013, no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília. Ustra sustentou a tese de que o

trabalho dos agentes das Forças Armadas serviu para “preservar a democracia” frente a

atuação de “grupos terroristas”. Disse que não poderia ser responsabilizado por “seguir

ordens” e evocou a prerrogativa de permanecer calado, respondendo algumas poucas questões

para negar violações, afirmando que o seu livro intitulado A verdade sufocada já expressava

seu depoimento por escrito.

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A sessão foi coordenada por Claudio Fonteles e José Carlos Dias, membros da

Comissão, que rechaçou a tese sustentada por Ustra, que as mortes de Sônia Maria de Moraes

Angel Jones e seu companheiro, Antônio Carlos Bicalho Lana, ambos militantes da ANL,

teriam ocorrido por combate em tiroteio e não sob tortura e custódia do DOI, coordenado pelo

coronel Ustra. Ustra foi confrontado com documentos oficiais secretos em que constava um

relatório de estatísticas do DOI, que contabilizavam entre 1970 até outubro de 1973, o número

de 1.786 pessoas presas, além de 47 pessoas mortas até dezembro de 1973, no DOI paulista.

Confrontado com documentos que relatavam uma sessão de tortura a Gilberto Natalini, o

coronel se negou a fazer uma acareação com o mesmo, para esclarecer circunstancialmente o

episódio.

O depoimento de Ustra4 durou 67 minutos e está disponível no canal da CNV na

plataforma de vídeos Youtube, onde estão registradas mais de 54 mil visualizações. Ele não

foi o único do DOI-Codi de São Paulo a ser interrogado. O coronel Homero Cézar Machado5

também prestou um depoimento de 42 minutos, com mais de 4 mil visualizações na

plataforma de vídeos da CNV. O então sargento e analista do DOI-Codi, Marival Chaves Dias

do Canto6, que eixou o Exército em 1985, prestou importantes informações e revela que

execuções como a do sargento Onofre Pinto, ocorrida no massacre de Medianeira, no Paraná,

em julho de 1974, só foi decidida após consulta ao Centro de Informações do Exército.

As sessões públicas de tomadas de depoimento promovidas pela CNV colocaram

agentes da repressão, entre oficiais e militares da reserva, analistas e colaboradores, no banco

de depoentes, confrontados com vasta documentação oficial, que era considerada

confidencial, secreta e ultrassecreta, aberta para estudo por força da LAI7, assim como

depoimentos prestados por vítimas como o que foi prestado pela aposentada Darci Miyaki8,

que conta que foi violentada sexualmente e submetida a sessões de tortura, tornando-se uma

mulher estéril. O depoimento de 19 minutos tem mais de 14 mil visualizações.

4 Tomada Pública de Depoimentos de Agentes de Repressão: Coronel Ustra. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=pWsv4EndpfY. Comissão Nacional da Verdade - CNV. 5 Tomada Pública de Depoimento de Homero Cézar Machado. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=16KziI34Gso. Comissão Nacional da Verdade - CNV. 6 Tomada Pública de Depoimentos de Agentes de Repressão: Marival Chaves. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=pKcnTDCcDuw. Comissão Nacional da Verdade - CNV. 7 Lei nº. 12.527/2011, de Acesso à Informação (LAI). 8 Audiência com vítimas do DOI-Codi SP: Darci Miyaki. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=QlFUhHGktTU. Comissão Nacional da Verdade - CNV.

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Estes esclarecimentos cumprem dois papéis importantes: fornecem mais subsídios

para o esclarecimento circunstancial de casos de tortura e assassinatos, mas também tem o

importante significado político de poder confrontar os colaboradores da ditadura com a

história factual, com os depoimentos das vítimas. O principal significado político dos

depoimentos serve pela condenação de bárbaras práticas de violência perpetrada por

motivações políticas, passando a limpo a história brasileira, para varrer obscuridades de um

terreno histórico, necessidade basilar para afirmar os valores da democracia que se funda

numa tradição histórica que não esconde episódios de violações a direitos humanos, mas os

condena moral e politicamente.

Apesar de apenas 207 vítimas e testemunhas terem concedido depoimentos para a

CNV, é importante ressaltar que cada depoimento tem um valor pedagógico para a

democracia e educativo para a sociedade. No depoimento prestado à CNV, as declarações

finais Darci Miyaki foram:

A nossa renúncia, a nossa postura de hoje, eu repito o que o vereador disse à pouco:

não se trata de vingança, não se trata de revanche, jamais, jamais faríamos o que eles

fizeram conosco, no entanto se a Comissão Nacional da verdade, nossos militantes,

não levarem esses fatos, esses fatos são fatos educadores, que vão formar as novas

gerações, caso não façamos isso, os Amarildos continuarão, porque tudo continua

igual, as delegacias torturam, matam, sequestram e desaparecem com os corpos. Era

isso que eu tinha a dizer (Audiência com vítimas do DOI-Codi SP: Darci Miyaki.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QlFUhHGktTU. Tempo: 17:54-

19:07).

Parte dos depoimentos coletados pela CNV ocorreu em audiências públicas

promovidas pela comissão, que ao longo de um ano, realizou quinze audiências em nove

Estados. No Nordeste brasileiro, foi apenas realizada uma audiência, em Pernambuco. A

maioria das audiências se concentrou pelos estados do Sul do país. No Rio de Janeiro foi onde

houve o maior número de audiências (4), como mostra o mapa abaixo.

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FIGURA 01 – Mapa das audiências da CNV

Fonte: CNV, 2013 (Relatório “Balanço de Atividades – 1 ano de Comissão Nacional da Verdade” –

Comissão Nacional da Verdade, 2013, p.9)

Além de apresentar o panorama de atividades da comissão, com audiências,

solicitações, depoimentos registrados e missões, o relatório parcial coloca em evidência o

funcionamento interno da CNV, que é constituída de um colegiado de sete membros e

subcomissões e grupos de trabalhos e apoio. O certo é que as organizações de familiares e ex-

presos políticos, que acompanharam de perto o desenvolvimento dos trabalhos empreendidos

pela CNV, contestaram as divergências internas que atrasaram os trabalhos da Comissão.

As críticas supracitadas foram endereçadas à CNV através de uma carta aberta,

subscrita por 26 organizações de familiares de ex-presos políticos e apresentada à sociedade

no dia 15 de julho de 2013. No documento, um pedido: que as divergências internas não se

transformassem em ataques pessoais e públicos, numa triste demonstração de

descompromisso com a verdade e a história. Nessa mesma carta, as organizações solicitaram a

imediata substituição do membro Gilson Dipp, que se retirou da comissão por motivos de

saúde, para recompor o quadro de membros, tal como o retorno de Claudio Fonteles, que

renunciou em setembro de 2013 por divergências internas e não retornou à comissão, tendo

produzido 150 textos durante sua permanência.

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Na carta divulgada pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, consta a

acusação que a CNV dificultava a participação da população e, principalmente, dos atingidos

pela ação da ditadura militar, como citam as divergências que levaram ao afastamento de

Fonteles: “A não revelação pública dos nomes dos torturadores, da cadeia de comando das

atrocidades e dos crimes cometidos causaram a divergência de Fonteles, com o qual nos

identificamos e nos solidarizamos nessa hora". A carta pedia ainda o aumento do número de

audiências e a unidade no trabalho para que todos os arquivos da ditadura sejam abertos.

Além do relatório parcial que discute o funcionamento interno da CNV, as resoluções9

que estabelecem o regimento interno da comissão dispõem sobre sua atuação, instituem

grupos de trabalhos e designam seus coordenadores gerais, mostrando documentalmente os

passos institucionais da CNV. O certo é que, apesar das críticas que foram feitas à CNV, o

principal legado já apontado pela própria comissão no seu relatório de um ano de atividades

era a construção “de um Sistema de Informação capaz de reunir de forma organizada o

conjunto de informações produzidas, recebidas e pesquisadas pela CNV” (CNV, 2013, p. 8),

se realizou por força do Decreto nº 8.378, de 15 de dezembro de 2014, que criou, no âmbito

da Casa Civil da Presidência da República, uma estrutura administrativa temporária, a qual

coube organizar o acervo produzido pela CNV ao longo dos seus dois anos e sete meses de

atividades. Esse acervo encontra-se sob a guarda permanente do Arquivo Nacional e pode ser

acessado pela internet através do no Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN).

Apesar das críticas formuladas à CNV, o trabalho de um ano de atividades foi

êxito e um enorme acervo com informações oficiais, anteriormente classificadas como

sigilosas, estão disponíveis para pesquisadores e a sociedade. O trabalho da comissão não

deve ser analisado apenas pelos relatórios que produziu, mas pelas reparações possíveis

realizadas, pelo reconhecimento factual do Estado brasileiro das atrocidades patrocinadas pela

ditadura e especialmente pelos desdobramentos políticos que produziu.

9 Resoluções. Disponível em: <ttp://www.cnv.gov.br/institucional-acesso-informacao/resolucoes.html>.

Acessado em 10 de novembro de 2016.

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CAPÍTULO II: O RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

2.1 O RELATÓRIO DA CNV

No dia 10 de dezembro de 2014, uma cerimônia no Palácio do Planalto marcou a

entrega do relatório final da CNV, com a presença da presidenta Dilma Rousseff, autoridades

dos poderes Legislativo e Judiciário. O então coordenador da comissão e substituto de

Fonteles10, Pedro Dallari, apresentou um balanço positivo dos trabalhos dirigidos pela CNV,

que resultaram na coleta de 1.200 depoimentos, abertura de várias diligências em unidades do

Estado onde foram praticadas torturas e assassinatos, dezenas de sessões e audiências públicas

em todo o território nacional, em 20 unidades da federação e no Distrito Federal e, por fim, na

entrega do relatório final, disponível no sítio da comissão na internet. Dallari agradeceu

também a contribuição de comissões de verdade que foram formadas em assembleias

legislativas, câmaras, universidades, sindicatos, secções estaduais da OAB e demais

organizações.

A saída de dois membros da CNV, novas nomeações, questionamentos e críticas por

parte de organizações de direitos humanos e de familiares de ex-presos políticos,

manifestações de contestação de setores conservadores, divergências internas e a prorrogação

do prazo de entrega do relatório final: estes foram alguns dos entraves que fizeram parte do

percurso da comissão até a finalização de seu trabalho. O relatório final com mais de 4 mil

páginas e esclarece um grande volume de casos; atendeu parcialmente às demandas pela

verdade histórica, sem atingir os interesses dos herdeiros da ditadura. O extenso relatório deve

continuar sendo motivo de muitos debates e as divergências que provavelmente serão

apresentadas não começaram com a entrega do relatório. Elas são muitas e, em alguns casos,

antigas e inconciliáveis.

O intenso trabalho da CNV frente a crises internas e o volume de afazeres da comissão

não pôde ser concluído no prazo de dois anos, sendo prorrogado por sete meses pela Medida

10 O ex-Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, entregou no dia 18 de junho de 2013, sua carta

de afastamento da Comissão Nacional da Verdade. Fonteles assegurou que sua renúncia era definitiva. O gesto

fragilizou a relação de confiança entre a CNV e os grupos de familiares de ex-presos políticos e expôs as

divergências internas do colegiado sobre temas sensíveis como a divulgação de investigações, revisão da Lei da

Anistia, com punição a agentes do Estado que atuaram na ditadura.

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Provisória nº.632 de 24 de dezembro de 2013, estendendo as atividades da CNV, que

chegaram definitivamente ao fim ao longo de 31 meses, com a entrega do relatório final.

A presidente Dilma Rousseff, ao participar da cerimônia de entrega do relatório final,

elogiou o trabalho da comissão, ressaltando seus objetivos e se comprometeu com as

recomendações e propostas apresentadas pela CNV. “Nós, o Governo Federal, vamos nos

debruçar sob o relatório, vamos olhar as recomendações e propostas da comissão e delas tirar

todas as consequências necessárias”, assegurou a presidenta. O advogado criminalista e

membro da CNV, José Carlos Dias, enfatizou que seria imprescindível ao processo de

reconciliação nacional, que as Forças Armadas reconhecessem os erros cometidos durante a

ditadura.

As divergências sobre a revisão da Lei da Anistia de 1979 também marcaram a

cerimônia de entrega do relatório final da CNV. O jurista e membro da Comissão, José Paulo

Cavalcante, disse que o colegiado tentou constitui convergências, mas informou que não foi

possível constituir um consenso sobre a revisão da Lei de Anistia que, segundo Cavalcante,

não é consenso na sociedade brasileira. Rosa Cardoso ressaltou os pactos internacionais de

direitos humanos assinados pelo Brasil e afirmou que a Lei de Anistia não tem validade frente

os tribunais internacionais. José Carlos Dias afirmou que não se pode interpretar a anistia

como instrumento da impunidade, alegando que os agentes de Estado que torturaram e

mataram, cometeram crimes comuns de lesa-humanidade e de violações de direitos humanos,

não crimes políticos, consequentemente não deveriam ser protegidos pela lei. Esse dissenso,

inclusive, está registrado no relatório final, nas recomendações sobre o tema da anistia.

A CNV considerou que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a

detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e

ocultação de cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica

internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que foram

cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis

de anistia. Relativamente a esta recomendação – e apenas em relação a ela, em todo

o rol de recomendações –, registre-se a posição divergente do conselheiro José Paulo

Cavalcanti Filho, baseada nas mesmas razões que, em 29 de abril de 2010, levaram

o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de

Preceito Fundamental nº 153, com fundamento em cláusulas pétreas da Constituição

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brasileira, a recusar, por larga maioria (sete votos a dois), essa tese (CNV, 2014, p.

965).

Pedro Dallari enfatizou o trabalho empreendido pela comissão para fazer o maior

resgate possível da documentação comprobatória das graves violações de direitos humanos e

citou o caso dos prontuários médicos do Hospital Central do Exército (HCE), que, segundo

informações oficiais, só haviam sido arquivados após 1983. Contudo, uma diligência levou a

comissão a descobrir três prontuários médicos do HCE, encontrados no arquivo pessoal do

general e então presidente Emílio Garrastazu Médici, anteriores há 1983, onde constam

informações médicas sobre Francisca Abigail Paranhos, Vera Sílvia Magalhães e Dalva

Bonet, três presas políticas que foram submetidas a maus tratos, tortura e desnutrição dentro

de instalações hospitalares. Dalva desenvolveu um quadro de epilepsia em virtude das sessões

de choques elétricos, tendo crises compulsivas por mais de dez anos. As consequências da

tortura permanecem no corpo e na mente da torturada e as diligências da comissão não só

revelaram os abusos cometidos dentro do hospital, como provaram que essas violações eram

conhecidas no Palácio do Planalto e pelo presidente.

A sede da comissão foi instalada em Brasília e contou com escritórios de apoio

sediados no Rio de Janeiro e São Paulo. Para realizar o trabalho de pesquisa e diligências, a

CNV contou oficialmente com 217 colaboradores, um conjunto de assessores, consultores e

pesquisadores, divididos entre equipes que trabalharam entre comitês, grupos de trabalhos e

núcleos como o Comitê de Relatoria, Gerência de Projetos, Núcleo Pericial, grupos de

comunicação, arquivo, logística e revisão. Essa equipe foi constituída por servidores públicos

nomeados para a CNV ou cedidos de outros órgãos da administração pública e por

pesquisadores contratados por intermédio do Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD), além de contribuições de muitas comissões de verdade, em

especial de universidades brasileiras, que firmaram acordos de cooperação técnica com a

CNV.

O relatório final da CNV é dividido em três volumes. O primeiro volume contém

dezoito capítulos. O segundo volume apresenta uma coletânea de nove textos temáticos que

abordam as violações de direitos humanos no meio militar, aos trabalhadores, camponeses e

nas igrejas cristãs, aos povos indígenas e nas universidades. Os textos abordam ainda o papel

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de civis como colaboradores da ditadura e a resistência da sociedade civil. O terceiro volume

é dedicado ao esclarecimento dos casos de 434 mortos e desaparecidos.

Os dois primeiros capítulos do primeiro volume são dedicados a informar sobre o

mandato legal da comissão, sua organização interna, suas atividades e o relacionamento

institucional que a comissão manteve com as Forças Armadas, órgãos públicos, sociedade

civil. Nestes capítulos iniciais, a comissão apresenta as cooperações internacionais com

Embaixadas e organismos de direitos humanos dos Estados Unidos da América, Alemanha,

Paraguai, Chile, Uruguai, Argentina, dentre outros, além de parceria firmada com a

Organização das Nações Unidas (ONU), por intermédio do Programa das Nações Unidas para

o Desenvolvimento (PNUD) e pesquisas junto ao Alto Comissário das Nações Unidas para

Refugiados (ACNUR), em Genebra, na Suíça.

Os esclarecimentos sobre as mortes dos presidentes Juscelino Kubitschek e João

Goulart e do educador Anísio Teixeira encerram o segundo capítulo do relatório, que atesta a

inexistência de elementos que apontem a morte de Kubitschek como causa da ação de agentes

da ditadura; sobre a exumação dos restos mortais de Goulart e das pesquisas encaminhadas

pela comissão, chegou-se a conclusão que não se pode descartar ou afirmar a hipótese de

envenenamento. As investigações sobre o falecimento de Anísio Teixeira não foram

concluídas até a entrega do relatório, aguardando-se a exumação do corpo sob a

responsabilidade do Instituto Médico Legal do Distrito Federal. O esclarecimento dessas

mortes é uma demanda pela verdade que interessas as famílias e servem para esclarecer as

conexões entre as citadas mortes e as suspeitas de mando.

O terceiro, quarto, quinto e sexto capítulos tratam do contexto histórico investigado

pela comissão (1946-1988), as estruturas do Estado voltadas para a repressão: órgãos e

procedimentos da repressão políticas, assim como a participação do Brasil em graves

violações no exterior, tal como a aliança repressiva internacional formada pelas ditaduras no

Cone Sul que instituíram a Operação Condor, com acompanhamento da Central Intelligence

Agency (CIA), dos EUA. A desclassificação de documentos anteriormente classificados como

secretos, assim como as investigações feitas pela comissão revelaram que oficiais dos serviços

de Inteligência da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai, Peru e Equador,

fizeram parte como países-membros da Operação Condor, em um acordo colaborativo que

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reuniu os aparelhos repressivos, tornando mais efetiva e implacável a repressão internacional

contra opositores políticos. O relatório da CNV esclarece as fases e diligências da operação:

O novo acordo político-militar procurou formalizar a união dos aparelhos

repressivos do Cone Sul para neutralizar os opositores aos regimes autoritários da

região. A operação desdobrou-se em três fases. Na Fase 1, houve a formalização da

troca de informações entre os serviços de Inteligência, com a criação de um banco

de dados sobre pessoas, organizações e outras atividades de oposição aos governos

ditatoriais. Na Fase 2, aconteceram operações conjuntas nos países do Cone Sul e a

troca de prisioneiros, mobilizando agentes da repressão local envolvidos na

localização e prisão de opositores caçados por governos estrangeiros. A Fase 3

consistiu na formação de esquadrões especiais integrados por agentes dos países-

membros, assim como por mercenários oriundos de outros países (neofascistas

italianos e cubanos anticastristas), que tinham por objetivo a execução de

assassinatos seletivos de dirigentes políticos.7 Essa terceira fase, a mais arrojada e

secreta, ficou caracterizada por execuções, como o assassinato de um ministro do

governo Allende (1971-73) e o do ex-chanceler Orlando Letelier, morto por atentado

a bomba executado por agentes da DINA em Washington, em setembro de 1976

(CNV, 2014, p.221-222).

O capítulo sétimo trata dos métodos e práticas de graves violações de direitos

humanos e suas vítimas. Traz um quadro conceitual dessas violações que explica as práticas

de detenção ilegal ou arbitrária, tortura, execução sumária, arbitrária ou extrajudicial,

desaparecimento forçado e a ocultação de cadáver. O capítulo oitavo e nono versa sobre

detenções ilegais e a tortura.

O décimo capítulo, que tem como título "Violência sexual, violência de gênero e

violência contra crianças e adolescentes", tem o importante significado de mensurar o alcance

do aparelho repressivo da ditadura e sua dimensão patológica que indiscriminadamente

atingiu mulheres grávidas, homossexuais e crianças. A violência sexual vitimou mulheres e

foi utilizada como método de tortura física e psicológica. Neste quadro de violações, inserem-

se: estupros, humilhação ininterrupta, desnudamento forçado, abortos provocados, separação

de filhos e tortura contra companheiros e familiares. “A violência sexual, exercida ou

permitida por agentes de Estado, constitui tortura. Por transgredir preceitos inerentes à

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condição humana, ao afrontar a noção de que todas as pessoas nascem livres e iguais em

dignidade e direitos” (CNV, 2014, p. 400).

O relatório da CNV apresenta depoimentos de vítimas e identifica a sistemática das

sessões de violência sexual como prática de tortura, uma dimensão importante para

compreender as gradações da crueldade perpetrada. É salutar perceber que a violência que

muitas vezes não atingia apenas as mulheres ou homens que passaram por humilhações

sexuais, por vezes na presença de seus conjugues e filhos, mas todo núcleo familiar. O trauma

deixado pela ação repressiva não é apenas individual, mas coletivo. “O termo “trauma”

designa a sequela produzida por um evento desorganizador das defesas psíquicas” (CNV,

2014, p. 426). A ação repressiva da ditadura também alcançou crianças e adolescentes e as

consequências dos traumas não se resumem aos danos físicos; eles permanecem e se

expressam de várias formas, seja através de debilidades psíquicas ou outras interdições. No

testemunho de Eva Teresa Skazufka, capturada em junho de 1970 pela Oban, em São Paulo,

compreende-se essas sequelas:

Durante um mês, Eva e seu filho Fernando, de um ano, eram obrigados a

comparecer ao DOPS. Com apenas 30 dias de vida, sua filha Kátia também

acompanhava a família.

“O DOPS me pegava todo dia de manhã de camburão. Pegava eu e meus dois filhos.

Todos os dias de manhã tinha hora marcada, umas nove horas mais ou menos e a

gente passava o dia inteiro no DOPS [...] E o que acontecia entre mim e a Kátia, eu

amarrei ela no meu corpo, entende? Enquanto eu estava no DOPS, ninguém tirava

ela do meu colo [...] ela estava amarrada. Os dois filhos são sequelados [...]. A Kátia

acha que eu não devia ter tido filhos [...]. Eu nunca conversei com eles sobre isso

[...] Hoje se sabe muito bem que [...] o bebê sabe de tudo, né? Sente tudo, né? Pode

não saber, mas as sensações estão lá, né? [...] Ela esteve internada várias vezes, a

Kátia, em clínica. Por quê? Porque eu posso dizer que umas 15 vezes ela tentou o

suicídio. E sempre na minha frente. Sempre na minha frente” (CNV, 2014, p. 428).

A CNV pautou temas importantes como a violência contra setores marginalizados,

uma discussão pouco explorada nos debates sobre as consequências traumáticas da ditadura

brasileira. O trabalho da comissão confrontou o senso comum sobre os contornos da

repressão, que alcançou as mulheres por sua condição de gênero, crianças e adolescentes,

pessoas LGBT, camponeses e indígenas. Esses “marcadores sociais de diferença foi um

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avanço nas formulações sobre a reparação histórica” no país, considera Renan (QUINALHA,

2015, p.88).

O capítulo décimo primeiro trata das execuções e mortes decorrentes de tortura. O

capítulo esclarece como as execuções tornaram-se sistemáticas no aniquilamento de

opositores políticos após 1964, apresenta pesquisas, depoimentos e perícias que desmascaram

as versões oficiais e esclarecem circunstancialmente o caso de mortes decorrentes de tortura e

homicídios. No período coberto pela pesquisa da CNV (1946 a 1988), foram registrados 191

mortes por execução sumária e ilegal ou em decorrência de tortura. O relatório mostra como o

período mais duro da repressão ocorreu entre 1969 a 1974, quando a ditadura atingiu o maior

número de mortos, somando 98 vítimas, 51% do total de mortes em virtude de homicídios e

tortura perpetrado por agentes do Estado. O Ato Institucional nº.5 (AI-5), promulgado em 13

de dezembro de 1968, foi o prelúdio do período mais duro da ditadura. Esses casos de mortes

estão expressos no quadro temporal abaixo que ratifica que o maior número de baixas

ocorreram logo após o golpe de 1964 e a instituição do AI-5.

FIGURA 02 – Mortes por período na ditadura militar

Fonte: CNV, 2014 (Quadro geral da CNV sobre mortos e desparecidos políticos. CNV, 2014, p. 439)

Os EUA monitoraram com precisão a situação política do Brasil, especialmente após

1964, acompanhando com detalhes os desdobramentos internos do país, o que inclui os meios

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coercitivos adotados pelo Estado: tortura, execução e desparecimentos forçados, graves

violações de direitos humanos informadas pelo aerograma identificado, com o código A-90,

encaminhado ao Departamento de Estado norte-americano pelo Consulado-Geral dos Estados

Unidos, no Rio de Janeiro, em abril de 1973.

O documento intitulado “Detenções generalizadas e interrogatórios psicofísicos de

suspeitos de subversão”, de autoria do cônsul Clarence A. Boonstra, traçava um panorama da

situação nacional onde enfatizava o recrudescimento da repressão, o avanço de prisões

arbitrarias e a sofisticação dos métodos de tortura. O Consulado-Geral americano destacava

que “ainda que mantidos os tradicionais meios usados para ‘obtenção de informação’ como

eletrochoques e ‘pau de arara’ – um sistema de coerção mais novo, sofisticado e elaborado,

vem sendo usado para intimidar e aterrorizar suspeitos” (CNV, 2014, p. 441). O sistema ao

qual Boonstra se refere diz respeito ao uso combinado de salas refrigeradas e salas com piso

de metal que emitiam eletrochoques continuamente, podendo o preso passar até dois dias

privado de comida e água.

A ditadura entendeu qualquer militância popular como terrorismo, transformou

militantes em terrorista subversivos e os elevou a categoria de inimigos. Os militares ecoaram

o anticomunismo estadunidense, adotaram como diapasão a lógica binária do autoritarismo na

sua luta anti-insurrecional. Sobre esse caráter binário adotado tanto no regime militar

brasileiro, quanto no argentino, Pilar Calveiro é esclarecedora:

As lógicas totalitárias são lógicas binárias, que concebem o mundo como dois

grandes campos contrários: o próprio e o alheio. E, além de imaginar tudo aquilo

que não é idêntico a si mesmo é parte de outro ameaçador, o pensamento autoritário

e totalizador entende que o diferente constitui um perigo iminente ou latente, que

deve ser extirpado. A redução da realidade em duas grandes esferas pretende, em

última instância, eliminar as diversidades e impor uma realidade única e total

representada pelo núcleo duro do poder, o Estado. Trata-se de uma construção do

tipo bélico, que reduz a realidade política aos termos do enfrentamento militar, de

modo que se move a partir de noções de amigo-inimigo, batalhas guerras e

aniquilamento (CALVEIRO, 2013, p. 88).

No Brasil, os militares se pautaram por uma lógica binária e atacaram militantes de um

amplo conjunto de organizações políticas, algumas que inclusive não optaram pela luta

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armada como estratégia de resistência contra o regime militar. Ciente desta situação a CNV

traçou um quadro onde mostra o número de militantes, por organização política, mortos em

virtude de execuções sumárias e tortura. A Aliança Libertadora Nacional (ALN) foi uma

organização fundada por Carlos Marighella, que defendeu a luta armada como ação política

para supressão do regime militar, perdendo o maior número de militantes; calcula-se que 14%

faleceu vítimas de torturas ou execuções. Vale destacar que Marighella foi eleito pelos órgãos

de repressão como o inimigo número um do regime militar. Os estudantes somaram 6%, os

sindicalistas 5%, líderes camponeses 3% e os estrangeiros 2% dos mortos.

GRÁFICO 02 – Demonstrativo dos mortos de acordo com a organização que compunham

Fonte: CNV, 2014 (Quadro geral da CNV sobre mortos e desparecidos políticos. CNV, 2014, p. 444).

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Após o golpe de 1964 e o recrudescimento da repressão, o exemplo da vitoriosa

Revolução Cubana influenciou parte da esquerda no Brasil, que optou pela luta armada.

“Guerrilhas fervilhavam na América Latina dos anos 1960. Na Colômbia, Venezuela,

Nicarágua, Argentina e Peru. Algumas dessas guerrilhas se confinaram em lugares isolados e

remotos, enquanto outras viveram um momento efêmero” (GORENDER, 2014, p. 91). No

Brasil, a esquerda entendeu como falido o caminho pacífico para a superação do regime

militar, mas este consenso não converteu a esquerda a ter uma unidade pela tática da luta

armada. É importante ressaltar que muitos dos que foram executados pela ditadura não

participavam das guerrilhas. Sobre as movimentações da esquerda frente ao dilema da luta

armada, Jacob Gorender é esclarecedor:

A luta armada não travada contra o golpe de direita, tornava-se imperiosa quando os

golpistas já tinham o poder nas mãos. Se tal raciocínio se cristalizou em axioma,

nem por isso unificou a esquerda. A questão da luta armada se acrescentavam

outras, concernentes ais antecedentes partidários e doutrinários, a influências

teóricas de origem nacional e internacional, pressões de países socialistas, limitações

regionais (GORENDER, 2014, p. 89).

O trabalho da CNV teve o mérito de mostrar factualmente que os EUA acompanharam

e monitoraram as violações de direitos humanos causadas pela ditadura, identificar os

períodos mais duros da repressão, a vinculação às organizações políticas das vítimas e

promover o esclarecimento circunstanciado de casos de mortes decorrentes e execução e

tortura, com base em novas perícias, exames documentais dos antigos órgãos estatais, assim

como tomada de depoimentos de testemunhas, vítimas e agentes estatais.

O Núcleo de Perícias da CNV, por vezes, apontou “elementos insustentáveis” das

versões oficiais sobre as mortes de militantes políticos. Essa pesquisa revela os padrões de um

esquema organizacional que serviu para forjar mortes, justificar violações e mortes. A

ditadura buscou ocultar as reais circunstâncias de assassinatos e os órgãos de segurança

constituíram versões falsas, que foram reproduzidas em jornais e tiveram uma cobertura legal

com laudos médicos falsos. Entre as principais versões falsas de morte, destacam-se

confrontos com armas de fogo, correspondentes a 32% dos casos identificados, 17%

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suicídios, 15% mortes em manifestações e 5% correspondentes a atropelamentos e acidentes

automobilísticos. O depoimento de agentes do regime mostra o padrão adotado pelos

mecanismos de repressão:

Em relação à prática das execuções sumárias, Cláudio Guerra, ex-delegado do

DOPS/ES, em depoimento prestado no dia 23 de julho de 2014 na sede da CNV em

Brasília, relatou que executou, a pedido do SNI, três militantes em São Paulo, um

em Recife e “dois ou três” no Rio de Janeiro. Guerra também declarou que agentes

envolvidos na repressão, como ele, eram designados para “simular teatros” de

tiroteios ou de fato executar militantes políticos em estados diferentes daqueles onde

atuavam oficialmente, para evitar que autoridades locais pudessem ser vinculadas

aos homicídios. O ex-delegado revelou ainda que participou de pelo menos uma

simulação de tiroteio – a do militante da ALN Merival Araújo, morto sob tortura em

14 de abril de 1973, depois de permanecer preso por uma semana no DOI-CODI/RJ.

As execuções, conforme o mesmo depoimento, eram decididas por órgãos de

repressão e realizadas de acordo com procedimentos já estabelecidos. Os agentes

que participavam dessas operações, segundo o ex-policial, passavam por

treinamentos não apenas para técnicas específicas de execução, mas também para

procedimentos de ocultação de corpos, eliminação de vestígios e elaboração de

falsas versões de morte, sempre com o objetivo de atribuir a responsabilidade do

crime às próprias vítimas (CNV, 2014, p. 446-447).

A importância do trabalho da CNV é ímpar para a história brasileira e inestimável para

os familiares e amigos de vítimas da ditadura, que tiveram o direito de conhecer as

circunstâncias da morte de seus parentes que haviam sido negadas. As versões falsas de morte

escondem as atrocidades que foram perpetradas por agentes do Estado e nega as violações

sofridas por militantes como no caso de Eduardo Collen Leite que foi preso, torturado por

meses e teve a morte atribuída a um tiroteio:

Eduardo Collen Leite, da ALN, foi preso em 21 de agosto de 1970, no Rio de

Janeiro, e assassinado pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury depois de

109 dias de tortura ininterrupta. (...) A falsa versão dizia que o militante teria sido

morto em troca de tiros ao resistir à prisão, mentira repetida no laudo médico

assinado pelos legistas Aloysio Fernandes e Décio Brandão Camargo, de 8 de

dezembro de 1970 (CNV, 2014, p. 449).

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A importância de um relatório de Estado reconhecer que a causa mortis de militantes

foi falsificada é importante como reparação histórica e serve as famílias e amigos das vítimas

que não tomaram conhecimento das reais circunstâncias que levaram as vítimas óbito. O

reconhecimento do Estado brasileiro desses casos, amparado em pesquisas rigorosas, ratifica

as denúncias que circulam em torno da burocracia estatal que omitiu e mentiu com o

beneplácito de alguns médicos, setores da imprensa e da justiça sobre as mortes de presos

políticos. Neste sentido, resgatamos a narrativa de Gorender sobre a morte do operário e

estudante Olavo, militante trotskista do Comitê Regional de São Paulo do Partido Operário

Revolucionário Trotskista (POR-T), que sofreu enfermo com insuficiência renal e outras

debilidades causadas em virtude das severas sessões de tortura:

Olavo foi um operário-estudante e conseguiu ingressar na Escola Politécnica da

USP. (...) Durante vários dias, os delegados Josecyr Cuoco e Ernesto Milton Dias o

submeteram a torturas intensivas: pau-de-arara, choques elétricos, espancamentos

violentíssimos, queimaduras e afogamentos. O prisioneiro não abria nenhuma

informação, o que levou os torcinários a aumentar a dose dos suplícios. No dia 6 de

maio Olavo apresentou anúria e edema nas pernas. Sintomas de insuficiência renal,

efeito de certa frequência da aplicação de choques elétricos e pau-de-arara. (...) Já no

dia 8 o preso foi retirado em estado de coma e as autoridades atribuíram sua causa

mortis ao suicídio por meio de injeção intravenenosa do inseticida Paration. Não se

explicou como um preso no porão do DEOPS teria oportunidade de adquirir o

inseticida, seringa e agulha de injeção (GORENDER, 2014, p. 134-135).

O capítulo décimo terceiro do relatório da CNV apresenta casos emblemáticos de

violações de direitos humanos contra militares, trabalhadores, sindicalistas, camponeses,

membros de organizações políticas e de organismos da sociedade civil. O décimo quinto

capítulo busca esclarecer os casos de vítimas e violações circunscritos a guerrilha do

Araguaia.

Os capítulos 15º, 16º e 17º tratam, respectivamente, dos locais associados a violações

de direitos humanos, as autorias e a relação entre o Judiciário e a ditadura. Esses capítulos

revelam que a ditadura utilizou navios mercantes da Marinha como prisões. Raul Soares,

Canopus, Custódio de Mello, Princesa Leopoldina, Bracuí e Guaporé foram os seis navios-

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prisões utilizados. Para servirem como um presídio, os navios passaram por adaptações,

dividindo o espaço interno como os porões e camarotes em pequenas celas, coletivas e

individuais. “Outros pontos, como a área onde a água da caldeira era fervida, o frigorífico e o

local de despejo de fezes, também chegaram a ser utilizados como solitárias ou como locais

de punição para presos” (CNV, 2014, p. 823).

A decisão de transformar navios mercantes em navios-prisões era de competência do

Ministério da Marinha, sob orientação do Estado-Maior da Armada e só deveria ser tomada

em virtude de conflagração (guerra ou revolta). Os trâmites burocráticos revelam que o núcleo

duro da ditadura tinha total ciência dos navios-prisões que foram utilizados somente no ano de

1964 em virtude de um conjunto de condicionantes: a superlotação carcerária e o isolamento

cujo preso era submetido, além das dificuldades de acesso de advogados, familiares e

imprensa. Os navios foram palco de prisões arbitrárias, sessões de tortura e humilhações

contra militares e sindicalistas ligados a atividades costeiras. Ademar dos Santos, líder

sindical dos portuários, revela em depoimento que passou por 92 dias de incomunicabilidade

no navio Raul Soares. Além do desgaste físico e repetidos problemas de saúde que os presos

tinham, ameaças de serem jogados ao mar não eram raras. O relatório apresenta depoimentos

que caracterizam os tipos de violações dentro das embarcações. O relato do médico Thomas

Maak confirma as violações.

O depoimento de Thomas Maak confirma a tortura no Raul Soares:

A arbitrariedade de castigos e punições era flagrante. O mais comum era colocar

prisioneiros em cela inundada como foi o caso quando eu cheguei ao navio, ou em

cela com temperaturas muito altas ou baixas, ou malcheirosas. O coletivo de

prisioneiros no porão me pedia para eu fazer alguma coisa, como médico. Em geral

eu me dirigia ao comandante do navio e lhe dizia que a punição estava abalando a

saúde do prisioneiro e eu lhe pedia para parar. O caso mais grave que vi foi o de

Tomoshi Sumida, que era frequentemente encarcerado na “cela quente e fria” e

realmente sua saúde estava sendo afetada. Mandei avisá-lo que ele deveria requerer

ajuda médica (no caso eu), e eu daria um jeito de convencer o comandante do navio

de parar a tortura (o comandante do navio tinha realmente um medo enorme que

algum dos prisioneiros morresse no navio, um medo que se devia menos a

compaixão por prisioneiros, do que o medo que os outros prisioneiros se

revoltassem) (CNV, 2014, p. 826).

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Além de identificar os locais de graves violações de direitos humanos, revelando a

utilização de navios como prisões, fato pouco explorado pela historiografia brasileira, a CNV

avançou na identificação de agentes da repressão. O relatório da comissão revela que houve

treinamentos especializados para interrogatórios e torturas, padrões de conduta e rotina que

institucionalizaram a tortura como prática de Estado. O relatório mostra como agentes

especializados em práticas que violam gravemente os direitos humanos estavam lotados

oficialmente na máquina pública: gabinetes de ministérios, nas estruturas do Exército,

Marinha e Aeronáutica, serviços de inteligência, delegacias da Política Federal, dentre outros,

como o DOPS e DOI-CODI.

O relatório identificou agentes públicos autores de graves violações de direitos

humanos. Os nomes são apresentados em ordem alfabética, onde constam posição e

hierarquia na carreira do serviço público e, respectivamente, época de atuação e vítimas. A

identificação da autoria de torturas, execuções e desparecimentos forçados era uma das

principais demandas das organizações de direitos e associações de familiares de presos

políticos, que também lutam por responsabilização e punição. Dentre os nomes identificados e

apresentados no relatório, consta o do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, suas práticas e

vítimas:

(71) Carlos Alberto Brilhante Ustra (indicado também na Seção B)

(1932-) Coronel do Exército. Comandou o Destacamento de Operações de

Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do II Exército

entre setembro de 1970 e janeiro de 1974, período em que ocorreram ao menos 45

mortes e desaparecimentos forçados sob a responsabilidade dos agentes do DOI-

CODI de São Paulo. Teve participação direta em casos de prisão detenção ilegal,

tortura, execução, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver. Recebeu a

Medalha do Pacificador com Palma em 1972. Vítimas relacionadas: José Idésio

Brianezi e José Maria Ferreira de Araújo (1970); Eleonora Menicucci de Oliveira,

Antônio Pinheiro Salles, Aylton Adalberto Mortati, Flávio Molina Carvalho,

Joaquim Alencar de Seixas, José Milton Barbosa, José Roberto Arantes de Almeida,

Luiz Almeida Araújo e Luiz Eduardo da Rocha Merlino (1971); Criméia Schmidt de

Almeida, Danilo Carneiro, Gilberto Natalini, Iuri Xavier Pereira, Alex de Paula

Xavier Pereira, Gélson Reicher, Ana Maria Nacinovic Corrêa, Lauriberto José

Reyes, Hiroaki Torigoe, Marcos Nonato da Fonseca e Luiz Eurico Tejera Lisbôa

(1972); Alexandre Vannucchi Leme, Arnaldo Cardoso Rocha, Edgard de Aquino

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Duarte, Luiz José da Cunha, Francisco Emmanuel Penteado, Ronaldo Mouth

Queiroz, Cristina Moraes de Almeida, Helber José Gomes Goulart, José Carlos da

Costa (1973) (CNV, 2014, p. 884-885).

A institucionalização da repressão com padrões e rotinas e a identificação de agentes

responsáveis por violações precisa ser compreendida também dentro da esfera da justiça. Para

tal é preciso entender a relação entre o judiciário e o regime militar. Neste sentido, o relatório

destaca a atuação do Supremo Tribunal Federal, da Justiça Militar e comum. A pesquisa

documental e bibliográfica procedida para a confecção do relatório apresenta uma análise de

decisões do STF relacionada às denúncias de violações de direitos humanos, em segmentação

cronológica. O ordenamento jurídico do regime militar era de caráter híbrido: vigorava-se a

Constituição de 1946 como uma base constitucional de caráter permanente, contudo "havia

uma ordem de base institucional, de caráter transitório, que vigoraria o tempo que fosse

necessário para consolidar o projeto político dos militares", com base nos Atos Institucionais

(CNV, 2014, p.935). A garantia do habeas corpus, suspenso em 13 de dezembro de 1968, por

força do Ato Institucional nº 5 (AI-5), nos casos de crimes políticos ou contra a segurança

nacional, é exemplo desse ordenamento que concedia cobertura legal a perpetração de

violações.

O sistema de justiça que se forjou após o regime de 1964 deve ser visto como reflexo

do projeto de poder dos militares. Reflete a militarização da sociedade também nas esferas do

judiciário. Neste sentido, se assegurou à Justiça Militar o papel de protagonista nos

julgamentos referentes aos crimes “contra a segurança nacional”; as demais esferas do

judiciário, incluindo a Suprema Corte, atuaram majoritariamente em consonância com

diapasão ideológico do projeto de poder então em voga, de forma que os juízes nomeados

eram cientes que sua colaboração com o regime deveria ser efetiva. Paulatinamente, a Justiça

Militar se consolidou como a principal instância punitiva política da ditadura. A ditadura

militar se alicerçou na burocracia autoritária e os três poderes que compõem o Estado

brasileiro sofreram as consequências desse fenômeno.

Conclui-se que a omissão e a legitimação institucionais do Poder Judiciário em

relação às graves violações de direitos humanos, então denunciadas, faziam parte de

um sistema hermético mais amplo, cautelosamente urdido para criar obstáculos a

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toda e qualquer resistência ao regime ditatorial, que tinha como ponto de partida a

burocracia autoritária do Poder Executivo, passava por um Legislativo leniente e

findava em um Judiciário majoritariamente comprometido em interpretar e aplicar o

ordenamento em inequívoca consonância com os ditames da ditadura (CNV, 2014,

p. 957).

O entulho autoritário do Brasil contemporâneo é, em certa medida, um legado dos 21

anos de ditadura militar, ancorados numa ampla tradição histórica de violações que tem

origem antes mesmo da formação do Estado-nacional brasileiro. O entendimento da Suprema

Corte que estende a Lei de Anistia como óbice a punição de militares que perpetraram graves

violações de direitos humanos, cometendo crimes de lesa-humanidade imprescritíveis, é parte

do legado autoritário que corrobora por uma cultura de impunidade aos que são próximas as

esferas de poder.

A identificação dos responsáveis pelas práticas de tortura, execução, desaparecimento

forçado e ocultação de cadáver, dentre outras violações, assim como o esclarecimento dos

locais onde foram praticados os referidos crimes e a relação entre os poderes do Estado, em

especial a condescendia da Justiça, são elementos essenciais que constam no relatório. Nestes

termos, apesar das críticas e impasses que a comissão atravessou, o relatório alcançou o

objetivo de evidenciar de forma factual as graves violações de direitos humanos, seus autores

e locais onde foram praticados, esclarecendo as circunstâncias da época e a relação entre os

poderes. Um importante e nítido avanço para a verdade histórica do país.

O volume II do relatório da CNV, apresenta nove textos temáticos que foram

elaborados sob a direção de conselhos da comissão.,Parte desses textos integrou vítimas,

familiares e pesquisadores. As pesquisas desenvolvidas pelos grupos de trabalho, no âmbito

da própria comissão, substanciaram os dados coligidos e apresentados. O volume refere-se às

violações de direitos humanos sofridas por determinados segmentos sociais: militares,

trabalhadores urbanos, camponeses, indígenas, homossexuais, membros de igrejas cristãs,

docentes e estudantes universitários. O papel que os civis cumpriram no golpe de 1964 e a

resistência da sociedade as violações são os temas abordados que fecham o volume. Cada

texto apresenta os responsáveis por sua elaboração.

O texto intitulado Violações de direitos humanos no meio militar abre o volume II do

relatório e foi elaborado sob a coordenação de Rosa Cardoso com a contribuição de

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pesquisadores da CNV, Paulo Ribeiro da Cunha, Wilma Antunes Maciel, Guilherme Bravo e

João Vicente Nascimento Lins, integrando parte das atividades do Grupo de Trabalho sobre a

Perseguição a Militares. O desenvolvimento histórico das Forças Armadas, os embates

políticos e tensões resultados de revoltas nos quartéis, entre 1930 e 1932, balizou um

movimento interno que forjou a Doutrina Góes Monteiro, que erradicou a política no Exército

pela política do Exército e seus códigos de conduta. O resultado direto dessa doutrina foi

restringir as atenções da política nacional ao Alto Comando, ratificando a lógica e o caráter

conservador e autoritário do militarismo brasileiro. Destaque que a Fundação da Escola

Superior de Guerra (ESG) e a Doutrina de Segurança Nacional, fundada e forjada sob a

influência americana e francesa potencializou “exponencialmente o antagonismo entre os

militares e a sociedade” (CNV – Vol. 2. 2014, p. 14).

A perseguição a militares com inclinações ideológicas de esquerda não começou com

o golpe de 1964. Os militares nacionalistas, socialistas e comunistas foram duramente

perseguidos e sofreram com expulsão e reforma, processos, prisões arbitrárias e torturas,

praticas que se registram desde o começo dos anos 1950 e se intensificam nos anos 1960. É

importante destacar que as denúncias de prisões ilegais contra oficiais são encaminhadas por

cartas-denúncias à presidência da Associação Brasileira de Defesa de Direitos do Homem

(ABDDH). O caso do capitão Joaquim Inácio Batista Cardoso, levado à prisão preventiva e

60 dias de incomunicabilidade, ocorreu contra o parecer da Promotoria, violando os direitos

humanos fundamentais e o princípio do devido processo legal. Essas violações também

alcançaram o major Leandro José de Figueiredo Júnior, o capitão Joaquim Miranda e o

tenente da Aeronáutica Mauro Vinhas de Queiroz.

Na década de 1950, procedeu-se com prisões arbitrárias contra oficiais que passaram a

ser costumeiramente torturados a partir de 1964. Contudo, os marinheiros e praças recebiam

tratamento brutal, como registra o depoimento que trata do marinheiro José Pontes de

Tavares, barbaramente torturado em 1953:

Na mesma noite, foi entregue à Polícia Civil (DOPS), onde foi espancado

barbaramente por mais de uma hora, levado nu para uma cela cheia fezes e coberta

com pó de serra. Esfregado nesses dejetos, é forçado, em seguida, a ingerir uma dose

cavalar de óleo de rícino. Permaneceu nesse local sob espancamentos constantes e

purgativos em número de seis, até o dia 18 sem comer e sem beber absolutamente

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nada. No dia 23 redobram-se os espancamentos e sevícias, sendo praticado consigo à

força atos de pederastia, introdução no reto de cassetete, untado de pimenta, e de

dedos; foi- lhe esfregado pimenta nos olhos; cuspiram-lhe dentro da boca; com um

alicate puxaram-lhe o pênis; com um cano de borracha esmagaram lhe os testículos.

Durante tais sevícias de mais de três horas caiu em estado de coma. Para recobrar os

sentidos jogavam-lhe baldes de água fria no corpo. Assim, sob esse regime,

permaneceu até o dia 30 de junho, sem comer, sem beber. No dia 1o de julho baixou

ao Hospital Central do Exército, com o ouvido purgando, sem poder andar, quase

morto. Esteve também preso em uma cela do Batalhão de Guardas (BG), onde foi

espancado pelo capitão Adriano Freire, acompanhado de outro oficial. Conduzido no

dia 10 de agosto para o Presídio da Marinha, foi arrastado violentamente para uma

solitária pelo sargento carcereiro Pedro Guanabara de Miranda, que comandava 16

soldados, todos de baioneta calada. Na solitária, permaneceu até o dia 26 de

setembro de onde foi tirado para um túnel (prisão 4). Durante esse período (de 13 de

junho a 26 de setembro) esteve debaixo de completa incomunicabilidade (CNV –

Vol. 2. 2014, p. 17).

As cartas-denúncias que foram enviadas ao parlamento brasileiro e a ABDDH

identificavam os locais das prisões ilegais e os responsáveis. Instalações militares nas cidades

do Rio de Janeiro, Natal, Salvador, Fortaleza, Recife e Porto Alegre serviram como centros de

tortura. As práticas mais sádicas de tortura, como o esmagamento de testículos com alicate,

ocorreram contra vários militares, que também tinham suas barbas arrancadas. Determinados

prédios das Forças Armadas passaram por reformas e algumas instalações se tornaram em

campos de concentração, com celas minúsculas de concreto e nenhuma ventilação. Estima-se

que entre 1946 e 1964, aproximadamente 1 mil militares foram perseguidos. Além deste

primeiro período, o relatório revela um diagnóstico que contabiliza um total de 6.591

perseguidos militares (entre Exército, Marinha, Aeronáutica e Forças Policiais) atingidos pela

perseguição promovida após o golpe de 1964, como revela o quadro:

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QUADRO 01 – Demonstração dos militares das forças armadas perseguidos pela ditadura militar

Fonte: CNV, 2014 (Comissão Nacional da Verdade – Volume 2. 2014, p. 13)

A dura perseguição aos militares também ocorreu em escala internacional. A Operação

Condor articulou a execução de quadros militares identificados com organizações de

esquerda, nacionalistas e comunistas. Os militares que recorreram ao exílio estiveram, na sua

maioria, no Uruguai e bo Chile, espalhando-se por outros países após a progressiva retirada de

liberdades democráticas em 1973, em ambos os países. Em busca de novos refúgios, os

militares recorreram em sua maioria a Suécia, havendo registros de imigração para Cuba,

Alemanha Oriental, Hungria, França, Moçambique, Angola e Guiné.

A Operação Condor foi a responsável pela captura e execução do major do Exército

Joaquim Pires Cerveira, membro do PCB, que foi sequestrado por uma articulação entre os

órgãos de segurança e repressão do Cone Sul em 1973, na Argentina. Outros casos de

execução sumária foram registrados contra militares exilados. O arquivo do SNI, pesquisado

pela comissão, revela um total de 278 militares perseguidos no Exterior, como revela o

quadro:

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QUADRO 02 – Demonstração dos militares das forças armadas perseguidos pela Operação Condor

Fonte: CNV (Comissão Nacional da Verdade – Volume 2. 2014, p. 41)

Se no Exterior, apenas três quadros das Forças Policiais foram perseguidos como

releva a comissão, o mesmo não pode ser dito da perseguição sofrida pelos policiais no Brasil.

Registra-se mais de 200 nomes de oficiais e praças das forças policiais estaduais que sofreram

intensa vigilância nos seus postos de trabalho, vítimas de expulsão ou transferência para a

reserva. O maior número de perseguidos se concentrou nos estados de São Paulo, Rio de

Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais:

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QUADRO 03 – Demonstração dos militares estaduais perseguidos pela ditadura militar

Fonte: CNV, 2014 (Comissão Nacional da Verdade – Volume 2. 2014, p. 38)

Ainda tratando da perseguição aos militares, o relatório apresenta elementos

importantes que esclarecem o aperfeiçoamento de métodos de tortura amparados em novas

tecnologias de repressão à época. O “método inglês” consistia em infligir agudo sofrimento e

perturbação sem deixar marcas de agressões físicas, utilizando-se de alto-falantes com sons

ensurdecedores e constantes, luzes florescentes fortíssimas e alteração de temperatura, em um

cubículo onde o preso poderia ficar confinado por mais de vinte horas. A introdução da nova

técnica de tortura não significou uma atitude de amenização do sofrimento dos perseguidos

políticos; pelo contrário, ampliou-se o leque de possibilidades de tormento e a brutalidade das

torturas não deixou de ser ministrada.

O coronel Vicente Sylvestre, preso em julho de 1975, foi brutalizado e para não ir a

óbito, precisou de intervenção médica. No depoimento de Sylvestre, é mencionada a tortura

sofrida pelo tenente da Reserva da Polícia Militar de São Paulo, José Ferreira de Almeida,

militante do PCB, que foi preso em julho de 1975 e foi encontrado morto. O depoimento

ilustra como a tortura cumpria um papel de tormento e desmoralização:

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Quando eu estava na Polícia Militar de volta, chega a notícia que o tenente José

Ferreira de Almeida havia se suicidado dentro do DOI-CODI. Um choque tremendo,

não havia condições de se suicidar no DOI-CODI. [...] Era humanamente

impossível, não tinha instrumento para isso. [...] Mais tarde ficamos sabemos que ele

foi vítima de tortura dentro DOI-CODI e introduziram no ânus um cabo de vassoura,

quebrando na ponta e perfuraram todo o intestino dele. Ele morreu sem o corpo

deixar nenhum vestígio, nenhum hematoma, nada. [...] E esse caso ficou

praticamente desconhecido da história dos presos políticos (CNV – Vol. 2, 2014, p.

45)

O relatório da CNV demonstra ainda como as perseguições a militares persistiram

mesmo com o fim formal da ditadura militar, com a eleição pelo colégio eleitoral de Tancredo

Neves em 1985 à Presidência da República, sendo substituído por José Sarney, após grave

enfermidade que o levou a óbito. O soldado do Exército Luiz Cláudio Monteiro da Silva foi

preso entre 1986-1987, sendo acusado de subversão por ter sido “pego” lendo artigos sobre o

professor Darcy Ribeiro dentro dos alojamentos militares.

O depoimento de Luiz Cláudio mostra como teve a carreira militar interrompida, as

consequências físicas de seus interrogatórios e como os elementos da repressão se enraizaram

pela estrutura estatal brasileira, ratificando graves violações de direitos humanos sob a

vigência de um regime de suposta redemocratização. Neste sentido, é importante apontar que

as dimensões mais perversas da tradição autoritária se fazem presente no Brasil atual no nível

de letalidade da polícia militar, nas torturas perpetradas por agentes estatais de segurança, na

situação prisional brasileira e na criminalização dos movimentos sociais. Nos alongaremos

adiante sobre a relação entre o trabalho da CNV e as nuances do Estado de exceção à

brasileira. Contudo, é importante ressaltar que após o término do trabalho da comissão, outras

iniciativas de organizações de direitos humanos apontam a necessidade de instituir outras

comissões que tratem sobre temas como a escravidão e a violência policial.

O terceiro volume do relatório da CNV é completamente dedicado às vítimas. São 434

mortos e desaparecidos indicados pela comissão, porém, este número não é definitivo e o

próprio relatório esclarece que pesquisas e investigações devém continuar para ampliar os

dados sobre as vítimas da ditadura.

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Para a Comissão Nacional da Verdade, o rol de vítimas exposto não é definitivo. As

investigações sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas no período

enfocado pela Comissão – de 1946 a 1988 – devem ter continuidade e, notadamente

no que se refere à repressão contra camponeses e indígenas, a produção de um

quadro mais consolidado de informações acarretará a identificação de número maior

de mortos e desaparecido (CNV, 2014, p. 25).

O relatório traz os perfis das 434 vítimas, sendo 191 mortos e 243 desaparecidos. A

estrutura dos perfis foi dividido em oito partes: dados pessoais, bibliografia, considerações

sobre o caso anteriores à instituição da CNV, circunstâncias da morte ou desaparecimento,

identificação do local, identificação da autoria, fontes principais de investigações e conclusões

e recomendações. A CNV registra que em oito casos apontados no Dossiê Ditadura, não

constam no relatório em virtude da comissão não ter conseguido caracterizar a

responsabilidade do Estado; dentre os nomes que não constam no relatório, está o de Djalma

Maranhão, prefeito de Natal-RN, deposto em 1964 pela ditadura.

No terceiro volume do relatório da CNV, o perfil do jornalista iugoslavo Vladimir

Herzog apresenta uma ficha com sua foto, os nomes de seus pais, data e local de nascimento e

morte, tal como a organização política em que atuava: o PCB. O resumo biográfico de Herzog

informa sua formação acadêmica em Filosofia pela USP, apresenta sua família e sintetiza a

atuação como destacado jornalista na BBC de Londres, na TV Cultura no Brasil e outros

organismos de comunicação. No dia 25 de outubro de 1975, Herzog foi convocado a

comparecer no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa

Interna (DOI-CODI do II Exército) em São Paulo para prestar depoimento, comparecendo

voluntariamente a repartição, onde foi morto no mesmo dia, aos 38 anos, deixando esposa e

filhos. Uma versão oficial falsa que indicava a morte de Herzog como suicídio por

enforcamento foi amplamente divulgada e a sociedade repudiou a versão oficial com

manifestações.

A CNV apresenta considerações sobre o caso Herzog até a instalação da referida

comissão, dando destaque ao Relatório do Ministério da Aeronáutica de 1993, que endossa a

versão oficial falsa de suicídio por enforcamento nas dependências do DOI do II Exército.

Frente às manifestações negativas da opinião pública, foi instalada, no final de outubro de

1975, um Inquérito Policial Militar que continuou a ratificar a versão oficial como um

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“quadro típico de suicídio por enforcamento”, apoiado na falsificação de relatório

criminalístico, laudos médicos e periciais, posteriormente descobertos, após abertura de Ação

Declaratória movida pela família de Herzog contra a União, onde, em 1978 o Estado

brasileiro foi condenado pela prisão arbitrária, tortura e morte de Vladimir Herzog. O relatório

esclarece ainda que “a versão de suicídio pôde ser desmantelada pelos depoimentos

contraditórios dos médicos legistas Harry Shibata, Arildo de Toledo Viana e Armando Canger

Rodrigues” (CNV, 2014, p. 1796).

A CNV identificou a autoria da morte de Herzog e apontou a cadeia de comando

desde a Presidência da República, ocupada pelo general Ernesto Beckmann Geisel, até o

Comando do DOI/CODI de São Paulo, chefiado pelo tenente-coronel Audir Santos Maciel.

No quadro de graves violações de direitos humanos no caso de Herzog, citam-se

nominalmente os autores das referidas violações, as funções ocupadas, as condutas praticadas,

os órgãos aos quais pertenciam e os locais associados às violações. São sete pessoas indicadas

no quadro de autorias, entre investigadores da polícia, comandante, capitão de brigada e

médicos legistas, responsáveis por tortura e morte, emissão de documentos, laudos e inquérito

fraudulentos.

Um dos encaminhamentos da CNV foi conduzir requerimento da família Herzog ao

poder judiciário de São Paulo, que retificou a causa mortis de Vladimir Herzog, com a

emissão de uma nova certidão de óbito encaminha a sua família, onde consta e esclarece-se

que a morte do jornalista ocorreu em função de “lesões e maus-tratos sofridos durante os

interrogatórios em dependência do II Exército (DOI-CODI)”.

Apesar do trabalho da CNV ter alcançado resultados satisfatórios com o

esclarecimento de casos de mortes e desaparecimentos até então inconclusos, ter reconhecido

a responsabilidade do Estado brasileiro pelas violações perpetradas e encaminhado como

recomendações ações de reconhecimento e reparação, o alcance da comissão não foi mais

amplo em função da negativa das Forças Armadas em contribuir efetivamente com o processo

de esclarecimento e reconciliação entre o país e sua história. Vale destacar que muitas lacunas

na história das violações da ditadura militar permanecem abertas.

Mesmo com o esforço dispensado durante os trabalhos não foi possível desvendar a

maior parte dos casos de mortes e desaparecimento ocorridos durante os anos de

1964 a 1988. As lacunas dessa história de execuções, tortura e ocultação de

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cadáveres de opositores políticos à ditadura militar poderiam ser melhor elucidadas

hoje caso as Forças Armadas tivessem disponibilizado à CNV os acervos do CIE,

CISA e Cenimar, produzidos durante a ditadura, e se, igualmente, tivessem sido

prestadas todas as informações requeridas, conforme relatado no Capítulo 2 do

volume 1 do Relatório da CNV. As autoridades militares optaram por manter o

padrão de resposta negativa ou insuficiente vigente há cinquenta anos, impedindo

assim que sejam conhecidas circunstâncias e autores de graves violações de direitos

humanos ocorridas durante a ditadura militar (CNV, 2014, p. 28-29).

O relatório da Comissão Nacional da Verdade tem o status de um relatório de Estado e

foi o resultado do trabalho de 31 meses de integrantes com diferentes matizes ideológicas.

Frente às condições adversas que a comissão enfrentou, como a substituição de membros,

conflitos internos e a recusa dos militares em colaborar, é certo que a CNV conseguiu um dos

melhores resultados que poderiam ser alcançados. O apoio político que o Governo Federal

deveria ter conferido a comissão nas polêmicas envolvendo a colaboração militar prejudicou o

trabalho da CNV e ratificou o caráter conciliatório que tem sido adotado por todos os

governos desde a redemocratização, como se passar a história brasileira recente a limpo,

esclarecer, julgar e punir violadores não fosse palpável na ainda jovem democracia brasileira.

2.2 OS EMBATES SOBRE O RELATÓRIO

Os debates e controvérsias envolvendo a instalação da Comissão Nacional da Verdade,

sua composição e ações, assim como o relatório final, são muitas como de militares,

militantes, intelectuais e associações de familiares de presos políticos. O debate público

esteve presente na grande imprensa e em veículos de comunicação associados à organizações

políticas e sociais nos meios acadêmicos e entre as entidades de direitos humanos.

O Brasil foi o último país da América Latina a instalar uma comissão da verdade.

Entre o fim formal da ditadura em 1985 e a instalação da aludida comissão, foram vinte e sete

anos. Antes da instalação comissão, o debate sobre a necessidade da instituição da Comissão

teve resposta negativa por parte de setores conservadores das Forças Armadas, enquanto que

os delegados da 11º Conferência Nacional de Direitos Humanos defendiam uma comissão de

“verdade e justiça”. O projeto encaminhado e aprovado no Congresso criou a CNV, com

limites claramente demarcados: sem infligir constrangimento ou punição aos militares.

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O trabalho da CNV resultou em um relatório de mais de três mil páginas, nas quais

estão identificados 230 locais onde ocorreram torturas e execuções contra opositores ao

regime militar, 377 pessoas são indicadas como autores de graves violações contra os direitos

humanos, entre militares, policiais, delegados das policias Federal e Civil e médicos legistas.

São listados 434 vítimas, entre mortos e desaparecidos. A CNV identificou também mais de 6

mil militares perseguidos. Um conjunto de vinte e nove recomendações, entre medidas

oficiais, reformas legais e prosseguimento de ações da comissão, é parte essencial para a

consolidação democrática e superação do entulho autoritário que permanece na

institucionalidade brasileira. O saldo do trabalho da CNV também deve ser medido pelas

consequências políticas e sociais que conseguiu produzir e, neste sentido, é imprescindível

entender que o avanço de políticas que salvaguardem os direitos humanos não ocorre

dissociado do exercício efetivo e legítimo do poder político, tema que retomaremos adiante.

No campo da direita conservadora, são muitas as críticas que se formularam contra o

trabalho da CNV. Neste espectro, é o Clube Militar, organização fundada em 1887 com o

lema “Democracia, Soberania, Unidade Nacional e Patriotismo”, formada majoritariamente

por oficiais da reserva das Forças Armadas, que apresenta o maior número de formulações

sobre as ações da Comissão Nacional da Verdade.

O general Marco Antonio Felício da Silva expressa com fidedignidade a lógica

predominante entre os militares conservadores. O artigo intitulado “O famigerado relatório da

CNV”, o general acredita que a democracia brasileira foi direcionada nos últimos governos

para o “socialismo bolivariano”, alega que os militares necessitam ter mais presença nos

debates de interesse nacional, tendo posicionamentos claros frente a “instabilidade política”,

os retrocessos econômicos, a questão da segurança e da corrupção, tal como “a execrável

política indigenista”, classifica. O general Marco Antonio argumenta ainda que haja um

processo de “invasão” de cubanos, venezuelanos e haitianos no país e, nestes termos, exige

“um claro posicionamento” das Forças Armadas.

Ao tratar propriamente da Comissão Nacional da Verdade, o general Marco Antonio,

classifica a CNV como a expressão de um “revanchismo afrontoso”, alerta que a comissão foi

eivada de “ilegalidades” em sua composição e em suas diligências, embora não nomeie as

referidas ilegalidades. Para o general, os reais objetivos da comissão necessitam ser

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“denunciados”, pois buscam a “substituição da real verdade histórica”. O general, assim se

expressa:

Denunciamos tais objetivos: Condenação de militares por crimes contra a

humanidade, culpa da cadeia de comando, atingindo os presidentes militares, como

mandantes e sabedores das “atrocidades cometidas”, pedido de desculpas, pelos

comandantes militares, à Nação, modificação ou erradicação da Lei da Anistia e,

consequentemente, substituição da real verdade histórica, através da manipulação de

fatos isolados, por uma nova estória cretina e mentirosa (SILVA, 2017, p.1).

No artigo intitulado “Exigir e não negociar”, o general Marco Antonio Felício da Silva

comenta o III Programa Nacional de Direitos Humanos e alerta que a publicação do texto pelo

Governo Federal serviu para “acordar importantes lideranças” para o “processo de subversão

social e político que se desenvolve no país, visando a tomada do poder e implantação de uma

ditadura comunista” e afirma que os militares são a “barreira tradicional à consecução dos

objetivos da dominação marxista”. Os argumentos alçados nos artigos do general se articulam

entre o preconceito conservador raso e o repetido juízo de valor. A realidade, à revelia do que

sustenta o general, mostrou-se completamente diferente: os governos dos presidentes Lula e

Dilma, mantiveram duradouras e estreitas relações com setores conservadores e burgueses,

ocupantes de espaços importantes e estratégicos na esfera federal.

Contudo, em torno da polêmica envolvendo o trabalho da CNV no Clube Militar, não

se restringiu apenas as publicações do general Marco Antonio. Reis Friede, professor, jurista e

Desembargador Federal, teve o artigo intitulado “A unilateralidade do Relatório Final da

Comissão Nacional da Verdade e Possíveis Implicações Jurídicas”, publicado pelo Clube

Militar. O trabalho de Friede é diferente. Apesar de essencialmente conservador, o autor

esclarece sobre a necessidade da efetivação dos direitos humanos no Brasil e da superação de

graves problemas como a questão prisional e as violações perpetradas contra negros, mulheres

e indígenas. Friede aponta que sempre houve a necessidade da instituição de uma comissão de

verdade que apurasse todas as violações cometidas, assentado a investigação sob o princípio

da imparcialidade e é em torno da questão da imparcialidade que o autor formula suas

principais elaborações e críticas sobre o relatório da CNV.

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Reis Friede afirma que o trabalho da comissão foi contaminado ideologicamente. Para

o autor, em virtude da comissão não ter investigado os crimes praticados pelas esquerdas,

constitui uma violação à Lei que instituiu a própria CNV, uma “ofensa ao princípio da

imparcialidade, assentado no art. 2º, § 1º, II, da Lei nº 12.528/11” (FRIEDE, 2015, p.3). No

campo do direito, Friede classifica que o trabalho da Comissão Nacional da Verdade foi

“absolutamente unilateral”. Para o autor as investigações não se deram dentro dos limites da

Lei e o próprio colegiado, em última instância, infringiu a concretização do direito à memória.

Friede afirma que a imparcialidade, como princípio reitor das atividades legais da CNV,

deveria garantir uma investigação que apurasse os “excessos” de “ambos os lados”. O autor

argumenta que os militantes de esquerda foram autores de graves violações de direitos

humanos. Sem contextualizar as condições objetivas que se operaram em torno da resistência

à ditadura, Friede afirma que militantes também deveriam constar entre os violadores:

Não entendemos como a CNV, afastando-se das premissas normativas, e

desperdiçando tempo e dinheiro público, possa ter se omitido quanto ao exame e

esclarecimento completo dos fatos históricos. Não conseguimos compreender a

razão pela qual a relação de nomes de supostos agentes torturadores não contenha,

em necessária adição, o rol daqueles que, também supostamente, e durante a luta

armada, tenham praticado assassinatos, explosões e sequestros, atos tipicamente

terroristas e igualmente ofensivos aos direitos humanos (FRIEDE, 2015, p. 7).

Para Friede, além da ocultação dos nomes dos militantes de esquerda que

supostamente teriam cometido crimes, a CNV promoveu uma condenação moral ao listar os

nomes dos demais militares. Reis Friede afirma que, assim como os locais onde se praticavam

torturas foram indicados, os “aparelhos” de militantes também deveriam ser apontados pelo

relatório da comissão:

Embora o art. 4º, § 4º, da Lei nº 12.528/11 disponha que as atividades da CNV não

teriam caráter persecutório, o que se viu ao longo do período de atividades foi uma

nítida e indisfarçada ânsia acusatória, para não dizer inquisitória, aspecto que se

comprova pela ampla exposição (proposital ou involuntária) na mídia de

depoimentos colhidos de determinados agentes públicos. Não que tais depoimentos

não devessem ser difundidos pelos meios de comunicação, convém esclarecer. Mas

que fossem tomados também os depoimentos de pessoas ligadas à luta armada e a

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atos de terrorismo, cujos nomes estão aí. Não que os locais de tortura, as chamadas

"casas da morte", não devessem ser localizadas e divulgadas, mas que os

denominados "aparelhos", onde se tramavam ações de indiscutível conteúdo

terrorista, bem como era alimentado o desejo nada democrático de se instalar no país

a ditadura do proletariado, também o fossem (FRIEDE, 2015, p. 8).

Destaque que os ditos “aparelhos”, por vezes, serviram para esconder militantes que

eram procurados pela polícia e corriam sérios risco de morte. É corretor afirmar que a tortura

colocava em risco a vida, a integridade física e psíquica de militantes. Comparar os ditos

“aparelhos” com os centros de tortura e exceção é uma afronta à realidade da história

brasileira, uma comparação que por si só é absurda, por pressupor e insinuar que o alcance da

luta armada seria comparável ao poder de fogo das Forças Armadas, o que compreendem um

considerável contingente de homens que compõem um exército treinado e fortemente armado,

que age com o beneplácito do Estado sob o arco da legalidade condescende.

Friede considera que a Comissão Nacional da Verdade não alcançou os objetivos para

os quais foi criada. O trabalho da CNV não é considerado apenas insatisfatório; o autor

caracteriza que as ações do colegiado incorreram em crime de improbidade administrativa em

virtude da edição da Resolução Interna nº 2, que estabelecia que os agentes públicos seriam

investigados como autores de graves violações de direitos humanos. A saber, a Resolução

Interna nº 2, no seu Artigo 1º, estabelece:

À Comissão Nacional da Verdade cabe examinar e esclarecer as graves violações de

direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias, por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio

ou no interesse do Estado” (CNV, Resolução Interna Nº 2, de 20 de agosto de 2012).

Embora a Lei que criou a CNV não indique textualmente que militantes de esquerda

também devessem ser investigados por crimes contra a humanidade, para Reis Friede, o

princípio da imparcialidade pressupunha a obrigação da comissão em investigar “ambos os

lados”, tanto a “extrema direita torturadora” e a “extrema esquerda terrorista”. A edição da

resolução, como ato de ofício, supostamente teria transitado fora das balizas da Lei

12.528/2011, que criou a CNV, para convenientemente afastar militantes de investigações da

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comissão. Neste sentido, Friede sustenta que os membros da CNV poderão ir ao banco dos

réus por força de uma ação civil de improbidade administrativa.

Seria cabível, em tese, manejar a ação popular, na forma da Lei nº 4.717, de 29 de

junho de 1965, cujo art. 1º estabelece que qualquer cidadão será parte legítima para

pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da

União, sendo certo que o art. 2º da mesma lei considera nulos os atos lesivos ao

erário nos seguintes casos: incompetência, vício de forma, ilegalidade do objeto,

inexistência dos motivos e desvio de finalidade. Na hipótese ventilada, seria possível

afirmar que o relatório final elaborado, enquanto ato de ofício típico a ser produzido

pela CNV, conforme determinação contida no art. 1121 da Lei nº 12.528/11, teria

sido praticado com desvio de finalidade, notadamente quanto ao fim estipulado pelo

art. 3º, I, da mesma lei, qual seja, esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de

graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1º, durante o

período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, independentemente de

quem os tenha perpetrado, uma vez que a lei nada menciona a respeito da autoria.

Assim, ao deturpar o fim legal, limitando as apurações a apenas um dos lados

envolvidos nas atrocidades cometidas, a CNV acabou elaborar o relatório final

visando a fim diverso daquele previsto na Lei nº 12.528/11. Ademais, é

perfeitamente possível que haja responsabilização civil por eventuais danos

materiais e morais causados às pessoas eventual e açodadamente listadas como

supostos torturadores, cuja imagem, tendo em vista a ampla divulgação dada pela

mídia ao relatório final, encontra-se extremamente atingida (FRIEDE, 2015, p. 14).

Friede ecoa, senão o desejo idêntico da direita conservadora, ao menos, expressa o

mesmo rechaço sobre a Comissão Nacional da Verdade. Contra a comissão, se apontam

supostas ilegalidades e o argumento da falta de imparcialidade nas investigações. Para

corroborar com a tese que a “extrema esquerda terrorista” era tão vil quanto a “extrema

direita”, Friede compara a esquerda brasileira com os radicais islâmicos que assassinaram os

chargistas da revista Charlie Hebdo em janeiro de 2015, em Paris. Sob essa perspectiva, o

autor insiste que a atuação da esquerda no Brasil foi tão danosa para os direitos humanos

quanto os setores conservadores, inclusos neste contexto: os agentes de Estado, apontados

como torturadores. A comparação que Friede sustenta é uma conexão eivada por um absoluto

anacronismo histórico raso: tanto a esquerda brasileira que enfrentou a ditadura quanto o

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terrorismo islâmico possuíam motivações avessas e estavam localizadas em contextos

geopolíticos distintos.

Reinaldo Azevedo combina argumentos do general Marco Antônio Felício e Reis

Friede e afirma que a Comissão Nacional da Verdade escondeu 121 cadáveres de supostas

vítimas de ações armadas da esquerda. Azevedo sintetiza o relatório da CNV como

“mistificação, revanchismo e farsa” e se soma a Reis Friede na defesa das investigações

contra os militantes de esquerda, já que o artigo 3º da Lei n° 12.528/2011, define-se como

objetivo da CN, a investigação de violações de direitos humanos “nos aparelhos estatais e na

sociedade”. “Quando se fala em crimes cometidos na sociedade, isso inclui também aqueles

praticados por terroristas. A comissão os ignorou. Insisto: as pessoas assassinadas pelas

esquerdas desapareceram do relatório final, o que é uma indignidade” (AZEVEDO, 2014,

p.1).

O general Marco Antonio Felício da Silva e o jurista Reis Friede tiveram suas críticas

contra a Comissão Nacional da Verdade publicadas e amplamente divulgadas pelo Clube

Militar e por setores conservadores. Reinaldo Azevedo, como então colunista da Veja, revista

semanal de maior circulação do Brasil, com tiragens acima de 1 milhão de exemplares, fez

severas críticas à CNV. Os argumentos expressos por Reis Friede, Reinaldo Azevedo e o

general Marco Antonio balizaram as principais posições dos setores conservadores nos

debates públicos. Em linhas gerais, a diferença fundamental entre os três é que Reis Friede se

fundamenta na ciência do direito, Reinaldo Azevedo no saber midiático e Marco Antonio

Felício da Silva, única e exclusivamente, tem como base os preconceitos conservadores.

Para Reinaldo Azevedo, “uma comissão oficial da verdade, é, acima de tudo, uma

comissão da mentira oficial” (AZEVEDO, 2015, p.1). Na interpretação do general Marco

Antonio Felício da Silva, a CNV significa afronta as Forças Armadas, desrespeito e

revanchismo ligados ao projeto de poder do “socialismo bolivariano”. Entre os três, Friede é o

único que julga louvável a iniciativa de instituir uma comissão para apurar e investigar

violações, contudo, aponta irregularidades, vícios e crimes no trabalho da CNV, mesmo que

ancorado em sua interpretação jurídica, essencialmente unilateral. Os três se abstém de

comentar os atos de tortura perpetrado por militares, mas insistem em classificar como

“terrorismo” as ações da esquerda no Brasil, tomando-as por uma proporção irreal.

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Reis Friede menciona uma “extrema direita torturadora”, pressupondo que a tortura foi

o resultado dos arroubos de um setor militar mais sádico, quando na realidade um conjunto de

comprobações documentais provam que a tortura, no Brasil, foi executada de forma

sistemática como política de Estado. Nas diretrizes da denominada doutrina de guerra

revolucionária, amplamente utilizadas pelas Forças Armadas brasileiras, previa-se o uso de

tortura como método de interrogatório para obtenção de informações. A participação de

militares brasileiros em cursos ministrados pela Escola das Américas, dirigida pelos EUA, a

partir de 1954, comprovada através de documentos estadunidenses que a instrução para o uso

de tortura foi realizada. A comprovação documental coligida as tomadas de depoimentos de

militares e vítimas de tortura que comprovam os abusos, tal como os laudos médicos e a

cadeia de comando identificada nas estruturas estatais, tornam uma constatação irrefutável a

indicação da tortura como método sistemático e política de Estado no Brasil. Sobre os cursos

que versaram sob técnicas de tortura, ministrado pela Escola das Américas, a CNV, informa:

Os cursos e treinamentos foram ministrados para milhares de alunos de países da

América Latina e do Caribe; envolvendo, entre outros temas, técnicas de

contrainsurgência, operações de comando, treinamento em inteligência e

contrainteligência, operações de guerra psicológica, operações policiais-militares e

técnicas de interrogatório para serviços de inteligência. Manuais de instrução

inicialmente considerados secretos, utilizados em cursos na Escola das Américas,

foram desclassificados pelo Departamento de Defesa norte-americano em meados da

década de 1990, e revelaram como se dava o treinamento militar relacionado à

prática de tortura e a outras graves violações de direitos humanos (CNV, 2014, p.

330).

Se entre a direita conservadora existe um consenso sobre o balanço negativo, tanto da

instituição quanto das atividades da Comissão Nacional da Verdade, o mesmo consenso não

se reproduz na esquerda. Os diversos setores da esquerda brasileira adotaram posicionamentos

diferentes frente ao trabalho da CNV. Movimentos sociais e organizações de direitos humanos

também não tem um balanço unitário sobre a comissão, as posições são muitas e diversas:

desde o apontamento da CNV como retumbante fracasso até o entendimento que a comissão

cumpriu todos seus objetivos e concluiu sua missão, logrando êxito máximo.

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O PCB, em artigo intitulado “Quantos lados tem a Comissão Nacional da Verdade?”,

assinado por Pedro Estevam da Rocha Pomar, já ecoava as críticas de familiares de vítimas da

ditadura no período de instituição da CNV. Para Pomar, o Governo Dilma foi covarde por não

permitir um avanço no sentido da punição dos militares, ancorado no estandarte da

“reconciliação nacional”. O Governo constituiu uma comissão plural, com o caráter de Estado

e não de Governo, delineando claramente os limites da comissão, para que não causasse

constrangimento as Forças Armadas ou ensejasse punições. Pomar lembra que o Comitê

Paulista pela Memória, Verdade e Justiça protocolou, no Gabinete Regional da Presidência da

República, o pedido de que Dilma revogasse a nomeação de Gilson Dipp, que havia atuado

junto a Corte Interamericana de Direitos Humanos, contra os familiares dos guerrilheiros do

Araguaia. “O ministro do STJ atuou como perito na CIDH, em nome do Estado brasileiro,

contra os familiares dos guerrilheiros do Araguaia. Não possui, portanto, a isenção requerida,

nos moldes da própria lei que criou a Comissão” (POMAR, 2012, p.23).

Em reportagem veiculada pela Folha S. Paulo, Cecília Coimbra, presa política durante

a ditadura e uma das fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais, classificou como “frustrante”

o relatório final entregue pela CNV. Coimbra se disse frustrada, revoltada e indignada, para

ela a comissão suavizou a narrativa dos abusos cometidos pelos militares, substituindo o

termo “tortura” pela usual terminologia das “graves violações de direitos humanos” e taxou o

documento como “superficial”.

A Comissão Municipal da Verdade de São Paulo, presidida pelo vereador Gilberto

Natalini, preso e torturado durante a ditadura militar, apresentou um balanço positivo dos

trabalhos da CNV, considerando o relatório como um documento amplo, profundo, que

representou uma investigação de envergadura e esclareceu bastantes casos. Mas, entre as

comissões, houve uma polêmica a respeito da morte do ex-presidente Juscelino Kubitscheck:

a Comissão Municipal da Verdade de São Paulo sustenta que JK e seu motorista, Geraldo

Ribeiro, foram vítimas da ação da ditadura no acidente automobilístico fatal em agosto de

1976. “Segundo a comissão, um grupo de trabalho formado por mais de 20 professores e

pesquisadores das universidades de São Paulo (USP) e Presbiteriana Mackenzie concluiu que

ele foi assassinado” (CRUZ, 2014, p.12), informa reportagem da Agência Brasil. No entanto,

após pesquisa, a CNV não refutou a versão oficial da morte, que está registrada como um

acidente ocasional.

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Uma das principais figuras públicas do PSOL, Luciana Genro, em artigo intitulado “A

verdade não pode ser ignorada”, apresenta um balanço positivo dos trabalhos da CNV e, em

especial, do caráter oficial do reconhecimento das violações e identificação das vítimas do

terrorismo de Estado perpetrado pela ditadura. Luciana afirma que o trabalho da comissão, em

especial as recomendações realizadas, são essenciais ao processo de redemocratização.

Contudo, aponta que é necessário que o Governo, a Suprema Corte e o país não desrespeitem

as recomendações da CNV, como estão sendo desrespeitadas as decisões da Corte

Internacional de Direitos Humanos:

A impunidade dos violadores do passado é o lastro para a impunidade dos

violadores do presente. O ciclo de violência não acabou e nem vai acabar enquanto

só mudem os algozes e as vítimas, mas não se transformem as estruturas. Por isso,

outras recomendações da CNV também são de extrema relevância: desmilitarização

das polícias estaduais, modificação do conteúdo curricular das academias militares e

policiais para promoção da democracia e dos Direitos Humanos, proibição de

comemorações oficiais do dia do golpe, extinção da Justiça Militar estadual,

supressão de referências discriminatórias das homossexualidades no Código Penal

Militar, eliminação da figura do auto de resistência à prisão, fim da Lei de

Segurança Nacional, dignidade no tratamento aos presos, dentre outras. Resta saber

agora se a presidenta Dilma, ela mesma ex-presa política que foi torturada, e o

Supremo Tribunal Federal, vão ignorar as recomendações da Comissão Nacional da

Verdade da mesma forma que ignoraram as recomendações da Corte Internacional

de Direitos Humanos (GENRO, 2014 p.1).

No nosso entendimento, parte considerável das críticas formuladas pela direita

conservadora não encontram lastro na justiça, na realidade histórica ou nas ciências sociais.

As acusações apontadas contra a comissão não chegaram sequer a serem protocoladas na

justiça. A CNV concluiu a missão para qual foi instituída, cumpriu um importante papel para

o processo de redemocratização, mas o seu alcance poderia ter sido maior e seu trabalho teria

mais relevância se houvesse empenho e força política empreendidas para levar julgar e punir

os perpetradores de graves violações aos direitos humanos.

Deve-se entender com precisão as condições políticas e as correlações de forças, nas

quais a CNV esteve inserida e desenvolveu o seu trabalho. O processo de abertura

democrática e a própria democracia brasileira e seus claros limites, como a recusa das Forças

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Armadas em reconhecer os abusos de lesa humanidade cometidos, são as principais

condicionantes que interferiram no trabalho da comissão. “E essa transição à brasileira,

negociada pelo alto, controlada pelas forças do regime autoritário, lenta e duradoura imprimiu

suas marcas não apenas à democracia, mas também à Comissão Nacional da Verdade”

(QUINALHA, 2015, p.9).

Renan Quinalha (2015) aponta que os problemas que a CNV enfrentou também se

originam nos recuos e mudanças do PNDH-3, por influência de setores conservadores do

Governo Federal, em especial do Ministério da Defesa, Nelson Jobim, que atuou

representando os interesses dos militares herdeiros da ditadura. As mudanças operadas

serviram para deslocar a ação direta do Estado, pela discussão no debate público, impedindo a

responsabilização civil e penal de agentes do regime. Nestes termos, a comissão serviu para

atender parcialmente as demandas por esclarecimentos e pela verdade histórica, sem atingir

frontalmente os militares.

A presidente Dilma Rousseff nomeou os sete membros da CNV e, sem exceções, os

nomeados apresentaram trajetórias de sucesso profissional em suas respectivas áreas, contudo,

alguns sem tanta familiaridade com os direitos humanos. As nomeações foram feitas sem uma

consulta prévia as famílias dos mortos e desaparecidos e organizações de direitos humanos.

Os seus integrantes encontraram dificuldades em dirigir um trabalho unitário de colegiado,

fragmentando o trabalho, o que levou, por exemplo, a prorrogação do prazo de entrega do

relatório final. Essa situação, abertamente apresentada na imprensa, desmonta a tese da direita

conservadora que aponta todos os membros do colegiado como esquerdistas radicais, o que

está enormemente distante da realidade.

A CNV teve um papel importante por ter colocado a questão dos direitos humanos em

pauta nas discussões nacionais. Desde a redemocratização, é salutar compreender que foi

nestes últimos anos que os direitos humanos mais receberam atenção oficial no Brasil,

tornando-se, em certa medida, um tema recorrente na imprensa. A instituição da Comissão

Nacional da Verdade impulsionou a formação de uma rede ampla de comissões dedicadas a

colocar a ditadura no banco dos réus da história, criadas no âmbito do poder público dos

Estados, universidades, sindicatos, organizações e entidades como OAB e UNE. A CNV não

conseguiu se firmar como protagonista e dirigente deste movimento, nem estabeleceu

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institucionalmente um mecanismo de compartilhamento de dados e investigações que

agrupasse e organizasse sistematicamente os trabalhos das demais comissões.

Apesar de um saldo positivo dos trabalhos da CNV, a postura não colaborativa das

Forças Armadas não contribuiu para o processo de reconciliação nacional. Os militares não

pediram desculpas pelos crimes cometidos, não reconheceram os abusos praticados e, por

vezes, negaram colaborar com a CNV. O Governo, por sua vez, foi vacilante e não endossou

como deveria os trabalhos da comissão. Renan Quinalha, sintetiza essa relação:

Os mesmos acordos e a lógica da governabilidade que possibilitaram a instituição da

CNV de acordo com o pacto da reconciliação também selaram os limites do seu

funcionamento. O que nenhum governo democrático teve força ou vontade política

para fazer ficou relegado à comissão: alterar a correlação de forças com os setores

que sustentaram a ditadura para aprofundar a democratização do Estado e da

sociedade, submetendo as corporações militares ao poder civil (QUINALHA, 2015,

p.11).

A Comissão Nacional da Verdade cumpriu seu papel institucional, dentro dos limites

que lhes foram impostos. Deve-se considerar o trabalho da comissão como exitoso: os sete

objetivos elencados pela lei que a criou foram alcançados, senão em sua totalidade, ao menos

parcialmente. O que a CNV não conseguiu atingir foram os objetivos desejados pelos

familiares dos mortos e desaparecidos e militantes de direitos humanos. A esperança

depositada pela parcela da sociedade não foi alcançada e este demérito não pode ser creditado

ao colegiado nomeado pela então presidente Dilma, mas à conjuntura política, ao entulho

autoritário persistente e à postura do próprio Governo, que poderia ter ido mais a fundo no

debate e nas medidas de responsabilização e punição dos que permanecem impunes, frente

aos crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis. O trabalho da CNV chegou ao seu fim ao

longo de trinta e um meses, mas a luta por verdade, memória e, em especial, justiça, devem

continuar, como a própria comissão preceitua. A luta pela punição de torturadores

provavelmente permanecerá como uma luta inglória, mas, pela memória dos que foram

objetivados pela ditadura militar brasileira, esta continua sendo uma bandeira que precisa ser

levantada.

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CAPÍTULO III: DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: DESAFIOS

E POSSIBILIDADES

3.1 BRASIL, O PAÍS DAS VIOLAÇÕES

O Brasil é um país marcado pela violência. Os episódios de selvageria que

caracterizam o processo histórico brasileiro são muitos: entre a colonização e o fim do

império, o país viveu a ferocidade do genocídio indígena, adotou a escravidão como principal

modo de produção por quase quatro séculos, levando a morte milhões de negros e índios. A

história recente brasileira também possui as nódoas indeléveis de graves violações aos direitos

humanos. A ditadura militar que teve início em 1964 e perdurou por 21 anos, deixando como

legado uma tradição autoritária que se expressa nos níveis de letalidade da polícia, na

repressão contra movimentos sociais, no autoritarismo institucional. Entretanto, essa não é

uma realidade exclusiva do Brasil e muitos países, em especial na América Latina, sofrem

com os mesmo problemas. As problemáticas que envolvem a violência, o medo e a questão da

segurança tornam-se, cada vez mais, uma atual questão global.

Realizada na província da Cascais, em Portugal, a Conferência de Estoril, evento

internacional destinado a discutir os desafios da globalização, contemplou um debate sobre

segurança pública na edição de 2011, onde o escritor moçambicano Mia Couto apresentou um

texto intitulado Murar o Medo, onde aponta as consequências geopolíticas e os objetivos que

a narrativa do medo busca alcançar no mundo atual. Para o autor, o preço cobrado pela

construção simbólica do terror é alto: a justificativa para atrocidades. Enquanto a fome atinge

um em cada seis pessoas no planeta, gastou-se apenas em 2010, 1,5 trilhão de dólares

estadunidenses em armamentos militares. “Em nome da luta contra o comunismo cometeram-

se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e

conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história”, afirmou

Couto.

Mia Couto fala das consequências catastróficas que a “construção do terror” levou ao

continente africano e cita as intervenções externas. “As elites africanas continuam a culpar os

outros pelos seus próprios fracassos”, classifica Couto, que também aponta como relevante o

debate sobre as violências praticadas contra minorias, em especial contra as mulheres: uma

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em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante sua vida,

assegura o autor. O escritor moçambicano não atribui diretamente responsabilidades, contudo,

para o filósofo estadunidense Noam Chomsky, a brutal exploração das mulheres, incluindo a

prostituição forçada, seja pela situação social ou por outrem é: “característico dos milagres

econômicos nos reinos da democracia capitalista” (CHOMSKY, 2003, p.291). Para Chomsky,

o imperialismo norte-americano foi o projeto vitorioso dentro da lógica da globalização

capitalista e os frutos dessa vitória são despojos arrancados tanto do continente africano

quanto da América Latina e outros territórios.

Noam Chomsky cita o aumento significativo da pobreza no Chile na década de 1970 e

as violações de direitos humanos perpetradas contra trabalhadores no Brasil, após o golpe de

1964. Em ambos os países, a intervenção dos Estados Unidos da América foi determinante

para a ascensão e consolidação de ditaduras, regimes autoritários que se pautaram pelo

terrorismo de Estado em guerra contra a sociedade civil, responsáveis pelo alto grau de

violência praticado contra opositores políticos. É evidente que Chomsky não é o único a

creditar um conjunto de mazelas sociais, problemas econômicos e guerras em países pobres

ou subdesenvolvidos à intervenção dos EUA. O historiador estadunidense Mike Davis

classifica os EUA como uma “nova Roma” e aponta diretamente o imperialismo do referido

país como responsável pela morte de meio milhão de crianças no Iraque, como resultado de

sanções impostas ao país. Davis cita intervenções “desastrosas” dos EUA no mundo árabe,

Irã, Iraque, Afeganistão, Indonésia, Arábia Saudita, Marrocos e Emirados Árabes.

Estabelecendo um diálogo entre Mia Couto, Chomsky e Mike Davis, é possível

caracterizar com precisão a quem serve a narrativa do medo, que evoca e conjuga liberdade e

segurança numa equação que raramente resulta em tempos de paz. “Eis o que nos dizem: para

superarmos as ameaças domésticas, precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança

privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais, precisamos de mais

exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania”, cita Couto.

Mike Davis tem o mesmo entendimento. “Em nome da nossa segurança, é preciso

transformar o mundo exterior em zona de tiro para a CIA” (DAVIS, 2008, p.26). Para

Chomsky, a política externa dos EUA tem trabalhado, por vezes, no sentido de conter a

democracia. Davis afirma que o povo norte-americano não pode ser responsabilizado pelas

decisões tomadas pelo governo e critica ainda a narrativa diplomática estadunidense, que se

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vale do termo “liberdade” para justificar o papel do país em interferências na periferia do

capitalismo.

Para preservar o controle sobre a economia mundial, prostituíram o nome da

liberdade para apoiar a dominação de bilionários sobre os pobres. Tudo isso e muito

mais, no entanto, foi feito em nome do povo norte-americano. “Made in USA” é a

marca que se vê em alguns dos episódios mais sinistros da história recente (DAVIS,

2008, p. 25).

Geralmente, os discurso políticos hegemônicos, que se pautam pela defesa da

segurança, elegem um malfeitor que deve ser obliterado e coincidem com a paulatina perda de

liberdades individuais e garantias democráticas, na busca pelo objetivo delimitado: o

aniquilamento do “inimigo” para a aquisição da segurança para o corpo social. Em nome do

combate ao comunismo internacional, os EUA trabalharam para erguer e manter ditaduras que

se espraiaram pela América Latina em meados do século XX. Em nome do combate às armas

nucleares, invadiu-se o Iraque recentemente. Hoje, no Brasil, justifica-se o aniquilamento de

jovens negros da periferia em nome do combate ao crime organizado.

Não por coincidência, entre os anos 1950 e 1960, registrou-se um fluxo de

investimentos direitos dos EUA na América Latina na cifra de 3,8 bilhões de dólares e neste

mesmo período, houve a transferência aos cofres estadunidenses de 11,3 bilhões, resultando

no lucro líquido de 7,5 bilhões (COGGIOLA, 2014). No Iraque, empresas americanas

comandam a reconstrução da indústria petrolífera, ao tempo que o setor armamentista e suas

principais empresas, Lockheed Martin, Raytheon, Northrop Grumman e General Dynamics,

respondem por 40% das armas comercializadas no planeta, somando juntas 105 bilhões de

dólares em contratos com os EUA. No Brasil, o colapso do sistema prisional e a superlotação

com um déficit acima de 250 mil vagas em presídios, justificam o forte avanço de

privatizações das prisões e consequente e inevitável, privatização da justiça. Neste sentido, é

importante ressaltar dois elementos caracterizados no debate sobre segurança. Primeiro, o

discurso do terror e do medo são produzidos propositalmente para justificar medidas que não

corroboram para a constituição de uma cultura de paz. Segundo, a existência de uma relação

entre a economia globalizada e o encarceramento em massa de classes populares nas

Américas.

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A historiadora Nashla Dahás (2015) retoma o pensamento do sociólogo Zygmunt

Bauman e mostra como a globalização econômica e a reorganização do Estado a partir dos

anos 1970, com a desmobilização do Estado de bem-estar social, o surgimento de novas

políticas punitivas e a volatilidade dos deslocamentos de investimentos, capitais financeiros e

bases industriais por todo planeta, acabou por produzir uma economia que gerou párias da

miséria, marginalizados em periferias que ocupam cada vez mais as prisões. Dahás traça um

paralelo entre a miséria produzida pela economia globalizada e o crescimento da população

carcerária na maior parte dos países. Os Estados Unidos, por exemplo, tem a maior população

carcerária do mundo, somando mais de 2 milhões de encarcerados, em sua maioria negros e

pobres. O Brasil tem a 4ª maior população carcerária do globo, são mais de 600 mil presos de

um sistema prisional completamente falido e caduco, marcado por repetidas violações aos

direitos fundamentais dos apenados.

A ação violenta da polícia, em desrespeito ao conjunto de direitos civis e liberdades

individuais, é um dado apontado por Nashla Dahás, que elucida que as ações mais repressivas

do maquinário de coerção do Estado são justamente contra os mais pobres e vulneráveis. “A

policia tente a agir como guarda de fronteira entre ricos e pobres” (DAHÁS, 2015, p.40). A

historiadora também afirma que os estabelecimentos prisionais servem como política de

aniquilamento das parcelas sociais empobrecidas que estão à margem dos circuitos

econômicos e aponta que o a superação de regimes autoritários e o retorno da democracia

formal nos países da América Latina, não teve efeito efetivo na abolição de práticas violentas

e ilegais, como a tortura e o desaparecimento forçado:

Embora os direitos à vida, à liberdade e à integridade pessoal sejam reconhecidos

pela maioria das sociedades modernas, e a tortura e a discriminação racial sejam

consideradas crimes, a violência oficial continua, compondo o retrato mais fiel do

fracasso dessas democracias no que diz respeito ao controle legitimo da violência. A

volta do constitucionalismo democrático na América Latina teve efeito mínimo na

erradicação das práticas autoritárias dessas sociedades. Os governos civis não tem

obtido êxito em proteger os direitos fundamentais de segmentos especialmente

vitimados. Hoje o principal alvo da arbitrariedade policial são os mais vulneráveis: o

pobre e o negro, o trabalhador rural e o sindicalista, os grupos minoritários, as

crianças e os adolescentes abandonados, os usuários de drogas, os detentos que

superlotam as penitenciárias. A prisão arbitrária e a tortura tornaram-se práticas

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policiais muito comuns em quase toda a América Latina e os homicídios

extrajudiciais são chocantemente corriqueiros, inclusive o assassinato de meninos de

rua por policiais fora de serviço e a repressão aos trabalhadores rurais em luta por

terra e por direitos trabalhistas no norte e no nordeste brasileiros. O Brasil é um

exemplo cruel de como a má distribuição de renda pode se refletir nas taxas de

crimes e de violência oficial (DAHÁS, 2015, p. 39-40).

Além dos altos níveis de violência oficial e os numerosos casos de violações de

direitos humanos na América Latina, é importante perceber que os índices de apoio à

democracia como regime político, recentemente caíram na região. O Latinobarómetro, um

amplo estudo que já tem 21 anos e contemplou 20 mil pesquisas realizadas nos 18 principais

países da América Latina, constatou que o apoio a democracia na região caiu de 56% em 2015

para 54% em 2016. Neste cenário de crescimento do descrédito na democracia, o Brasil ocupa

uma posição que inspira cuidados. Em artigo que comenta o estudo, publicado pelo El País,

se relata que: “O Brasil lidera o pessimismo com a democracia: o apoio a esta forma de poder

diminuiu 22 pontos porcentuais no país, passando de 54% em 2015 para 32% neste ano.

Numa lista de 18 países, o Brasil é o segundo país mais pessimista, à frente apenas da

Guatemala (30%)” (CUÉ, 2016).

O estudo produzido pelo Latinobarómetro indica que uma das razões do descrédito

recente com a democracia ocorre em virtude das crises econômicas e o consequente alto

índice de desemprego. No Brasil, além dos problemas econômicos, soma-se uma trajetória

histórica de violações que o tornam, o país da punição por excelência.

Os contornos do direito moderno, o qual surgiu no século XVIII, lançaram uma nova

compreensão sobre as execuções das penas e as injustiças advindas destas. Em 1764, Cesare

Beccaria publicou Dos delitos e das penas, uma obra que contestava a esfera punitiva do

direito na Europa e teve importante influência nos modelos punitivos que se adotavam até

então. O cárcere passa ser entendido não apenas como ação punitiva, mas o espaço no qual o

criminoso poderia se reabilitar como individuo sociável. “O horror do dilaceramento da carne

humana, da tortura, do sangue jorrado em praça pública cedeu lugar ao confinamento: dentro

dos muros da prisão, a aplicação do Direito traria benefícios ao corpo social” (PEDROSO,

2015, p.16).

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As mudanças que ocorreram por força do pensamento jurídico moderno influenciaram

nas medidas que foram adotadas por D. Pedro II, no Brasil. Os castigos corporais cederam

espaço para a privação da liberdade como castigo por excelência e iniciativas que destinavam

atividades laborais aos presos foram esboçadas como expressão dos modernos sistemas penais

da Europa e EUA. Apesar de avanços na modernização do sistema punitivo brasileiro, o

encerramento não deixou de ter um claro recorte de classe e as violações praticadas no interior

dos presídios ou “casas de correção” não desapareceram ao longo do século XIX, não

cessaram com o advento da República e permanecem atualmente. Sobre o encarceramento

brasileiro durante o Império, pode-se afirmar que, ainda hoje, perdura uma herança dessa

experiência. A historiadora Marilene Antunes, descreve:

O encarceramento no caso brasileiro, não se limitava àqueles ideais da modernidade

penal: a prisão tornava-se um grande deposito de grupos que demandavam

vigilância por parte do governo imperial, reproduzindo de forma mais aguda as

relações de poder daquela sociedade, além de presos sentenciados, eram enviados

para a Casa de Correção mendigos, loucos, menores e vadios – todo aquele que,

segundo o Código Criminal de 1830, “não tinham ocupação honesta e útil de que

possa subsistir” (...) Também permaneciam reclusos, sob o controle do Estado,

escravos em depósito ou já vendidos, à espera das disposições finais da justiça. (...)

Em São Paulo, uma Casa de Correção abriu suas portas em 1852. Na Bahia, a Casa

de Prisão com Trabalho foi inaugurada em 1861. Os lugares escolhidos eram sempre

áreas distantes do núcleo central da cidade, para onde se levavam condenados ou

pessoas aguardando julgamento, além de órfãos e menores “vadios”, escravos e

africanos livres (SANT’ANNA, 2015, p. 12-14).

Apesar do déficit prisional brasileiro, parte majoritária da população reconhece os

problemas do sistema prisional, mas não deseja e até repudia a construção de presídios em

suas cidades. Os presos não são vistos como cidadãos e devem desaparecer da vista da

população. No século XX, a rejeição popular levou os sucessivos governos brasileiros a

constituírem os presídios longe das cidades, uma prática antiga e recorrente, que expressa uma

política de higienização social. O exemplo mais claro desta política foi a utilização da ilha de

Fernando de Noronha, localizada a cerca de 543 quilômetros de Recife, como depósito de

apenados. A ilha tornou-se a maior colônia penal do país em 1737, sob a gestão do Império.

Na primeira administração de Getúlio Vargas, Fernando de Noronha foi utilizada como lugar

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de exílio para presos políticos, tendo sua prisão definitivamente fechada somente em 1957,

como afirma o historiador Peter Beattie (2015).

Os problemas no sistema prisional brasileiro só se avolumaram com o tempo, os

excessos de violência praticados por agentes do Estado no interior das prisões, as negações de

direitos fundamentais, as péssimas estruturas sanitárias prisionais, um sistema jurídico que é

incapaz de assegurar justiça em condições de igualdade entre classes sociais distintas foram e

são alguns dos principais elementos, que forjaram o sistema penal brasileiro. As mazelas

enfrentadas por apenados: além da privação da liberdade, doenças e violência, motivaram

fugas e rebeliões. As fugas de presos das prisões permanecem como um problema atual, esta

problemática desperta os sentimentos de medo e insegurança na população, demonstram os

vários casos de corrupção policial e a negligência e incompetência do Estado na tutela de

apenados.

As prisões brasileiras, ao lado das periferias das grandes cidades, se converteram nos

principais centros de violações de direitos humanos e as reações dos grupos sociais, por vezes

brutalizados pela coerção institucional, resulta no agravamento da violência. O historiador

Dirceu Franco Ferreira (2015) cita a primeira grande rebelião e fuga em massa no Brasil,

ocorrida na ilha Anchieta, no litoral norte do Estado de São Paulo, em 1952. É importante

esclarecer que o Instituto Correcional da Ilha Anchieta (ICIA) era marcado pela fome,

alimentação de baixa qualidade e insuficiente, espancamento constante de presos e

atendimento médico precário, por péssimas condições de vida e as longas penas a serem

cumpridas, foram as razões que motivaram a rebelião e a fuga em massa. A crise aberta com a

rebelião tornou imperativa a ação do Estado, que respondeu à situação, elevando a carga de

repressão. O processo de pacificação do ICIA contou com assassinatos, execuções sumárias,

tortura e espancamentos. O resultado da opção que o Estado brasileiro tomou para lidar com a

questão dos presídios só teve como consequência a superlotação carcerária, o aumento da

repressão institucional e o agravamento da violência nas suas mais diferentes manifestações.

Observando apenas os dados de São Paulo, onde, em 1952, registramos a primeira

grande rebelião no país, veremos um aumento significativo da população carcerária. No

intervalo de dez anos, a população custodiada cresceu seis vezes, saltando de 1.027 reclusos

em 1949, para 6.066 em 1959, como indica Franco Ferreira (2015). O Estado brasileiro

constituiu ao longo do seu processo histórico um modus operandi autoritário, repressor e

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violento, para tratar da questão do preso. As formas como o Estado conduziu suas ações no

campo da justiça penal constituíram um modelo penal ineficiente, marcado pela superlotação

carcerária e sua incapacidade de ressocializar e reintroduzir o apenado na sociedade. A

negação sistemática de direitos e o autoritarismo que impera entre as instituições de justiça do

país, constituem um permanente de estado de exceção, como aponta Dirceu Franco Ferreira:

Sem incorrer no risco de exagerar o peso do autoritarismo em nossa sociedade,

pode-se afirmar que na área penal vive-se em permanente estado de exceção. Entre a

rebelião na ilha Anchieta, em 1952, e o massacre do Carandiru 40 anos depois, o

cenário continuou o mesmo. A maior parte da população custodiada até hoje não

tem acesso à justiça e aos direitos básicos de cidadania. Os detentos seguem se

rebelando, e o estado insiste na mesma resposta: violência desproporcional dos

agentes de repressão e endurecimento do regime penal (FERREIRA, 2015, p. 29).

A crueza do Estado de exceção brasileiro e seu modelo penal permanecem,

atualmente, como uma máquina draconiana de moer gente pobre. O alcance desta máquina

não se limita aos homens presos. Ela atinge crianças, adolescentes, mulheres e idosos. Os

casos de policiais que atiram e matam crianças e adolescentes, em áreas periféricas, são

muitos e se multiplicam recentemente. No bairro de São Caetano, em Salvador, Bahia, Mirela

do Carmo Barreto, de apenas seis anos, foi morta na noite do dia 17 de março de 2017,

atingida por uma bala letal disparada por policiais. Segundo as informações da Secretaria de

Segurança Pública, os policiais que participaram deste episódio estavam em diligência e

seguiam o GPS de um celular roubado, quando foram surpreendidos por bandidos que

dispararam contra os policiais, dando início ao tiroteio.

A máquina de repressão do Estado brasileiro se bate contra crianças e adolescentes.

Basta observar o genocídio da juventude negra nas periferias das grandes cidades. O discurso

ideológico conservador estigmatiza o “menor”, justifica a ação virulenta da polícia contra

adolescentes e considera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), um empecilho para o

estabelecimento da ordem e de uma suposta moral. O Brasil, somente em 1990, com a

promulgação do ECA, reconheceu os direitos dessa parcela da população compreendida como

jovens e adolescentes. Além de um reconhecimento tardio desses direitos, o país ainda não

logrou êxito em efetivá-los. “A categoria ‘menor’ acabou ganhando notoriedade como

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expressão estigmatizadora: circunscrevia o horizonte de crianças e adolescentes pobres ou

abandonados das grandes cidades à fatalidade do trabalho precoce ou da delinquência”

(ALVAREZ; LOURENÇO, 2015, p.32).

Os dados coligidos do começo do século XXI, sobre crianças em situação de risco no

Brasil, mostram que, em 2002, para cada dez crianças, uma trabalhava. Nos últimos anos,

com o avanço de políticas sociais, a situação de miséria em que parte considerável da

população brasileira estava inserida, foi mitigada, contudo, a efetivação dos direitos das

crianças e adolescentes ainda é um objetivo a ser perseguido. Segundo, Susane Rocha de

Abreu:

São 866 mil crianças de até 14 anos alistadas como trabalhadoras no país, sendo que

esse número inclui apenas as crianças que trabalham nas piores modalidades de

trabalho infantil, segundo a Organização Internacional do Trabalho, como o trabalho

escravo ou forçado, a venda e o tráfico de crianças, as atividades ilícitas (como a

produção e o tráfico de drogas), os trabalhos perigosos à saúde ou à segurança de

crianças (como trabalhos em carvoarias, no corte de cana, na fabricação de tijolos

etc.), entre outros. Estão excluídas dessas estatísticas, por exemplo, as prostitutas

mirins e as milhares de crianças, geralmente meninas, que fazem trabalhos

domésticos no Brasil (ABREU, 2002, p.5).

A condição de miséria em que está mergulhada uma parcela significativa de crianças,

adolescentes e suas famílias, frente a uma situação que mescla altos índices de desigualdade e

um forte autoritarismo exercido pelos mecanismos de segurança do Estado findam por

impedir a efetivação dos direitos humanos das juventudes, como coloca em risco a vida de

milhares de jovens pobres. Nenhuma polícia de um país civilizado do mundo mata mais do

que a polícia do Rio de Janeiro e muitas dessas mortes são registradas como “autos de

resistência”, ocorrentes em que, supostamente, a polícia agiu em legitima defesa ou no intuito

de “vencer a resistência” de suspeitos de crimes. Os “autos de resistência” são herança da

ditadura militar. Foram e são utilizados para designar mortes resultantes de ocorrências

policiais. “No ano de 2007, os autos de resistência atingiram seu ápice: foram contabilizadas

1.330 casos no estado do Rio. Alguns dados surpreendem, como o alto número de “menores”,

ou seja, crianças e adolescentes que supostamente resistiram à ação policial e foram mortos”

(MISSE; GRILLO; NERI, 2015, p. 56).

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Missi, Grillo e Neri (2015) consideram o procedimento administrativo conhecido

como “auto de resistência”, criado em 1969 pela Superintendência de Polícia do então Estado

da Guanabara, no ápice da repressão política promovida pela ditadura militar, como uma

licença legal para matar, ancorado no imperativo moral de “matar bandido”. Este é apenas um

dos mecanismos institucionais do Estado, que é parte da herança institucional da ditadura e

ainda está em plena vigência, apesar das vítimas que produz, especialmente nas periferias. A

opressão que o Estado exerce contra grupos marginalizados, como indígenas, sem-terra,

apenados, mulheres, comunidade LGBT e jovens compõe um extenso cenário de violações

que não poderia ser abordado neste trabalho em sua totalidade. Entretanto, é vital abordar

parcialmente essas questões para entender que o trabalho da Comissão Nacional da Verdade

não é voltado exclusivamente para o passado histórico brasileiro, mas em especial para o

presente.

Neste sentido, vale destacar que a efetivação dos direitos humanos no Brasil ainda se

apresenta como uma realidade distante e que as recomendações da Comissão Nacional da

Verdade buscam não apenas reparar abusos cometidos durante a ditadura, mas evitar que o

Estado continue a violar direitos fundamentais. Para tal, a CNV, constituiu suas conclusões e

recomendações, na busca da promoção dos direitos humanos, com avanços nos marcos legais

do país.

3.2 CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES DA CNV

Um dos principais objetivos da Comissão Nacional da Verdade foi apresentar as

conclusões de seu trabalho, atendo-se as atividades realizadas e os fatos examinados,

expressos no relatório circunstanciado da comissão, oferecendo recomendações como estava

previsto no artigo 3º, que definia então seus objetivos, tal como: “recomendar a adoção de

medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não

repetição e promover a efetiva reconciliação nacional” (CNV, 2014, p. 962).

No marco de suas atribuições institucionais a CNV apresentou suas principais

conclusões, versadas quatro pontos: [1] – comprovação das graves violações de direitos

humanos; [2] – comprovação do caráter generalizador e sistemáticos das graves violações de

direitos humanos; [3] – caracterização da ocorrência de crimes contra a humanidade; e, [4] –

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persistência do quadro de graves violações de direitos humanos. No que diz respeito as

recomendações apresentadas pela CNV, foram oferecidas vinte e nove recomendações,

divididas entre dezessete medidas institucionais, oito reformas constitucionais e quatro

medidas de seguimento de ações iniciadas, estimuladas ou indicadas pela comissão.

A primeira conclusão que a CNV alcançou foi a comprovação das graves violações de

direitos humanos, expressas e configuradas pelas práticas sistemáticas de “detenções ilegais e

arbitrárias e de tortura, assim como o cometimento de execuções, desaparecimentos forçados

e ocultação de da cadáveres por agentes do Estado brasileiro” (CNV, 2014, p. 962). A

comissão pôde documentar a ocorrência dessas graves violações entre 1946 e 1988,

notadamente com maior intensidade no período ditatorial de 1964 à 1985, coligindo através

de pesquisas as evidências irrefutáveis que comprovam os fatos e acontecimentos

comprobatórios de violações, minuciosamente detalhados no Relatório. Vale destacar que a

própria CNV pôde valer-se de um dados anteriormente colhidos por órgãos públicos,

entidades da sociedade civil, vítimas e seus familiares, o que contribuiu para a sequência do

trabalho da comisso.

No quadro de mortos e desaparecidos políticos da CNV, pôde ser comprovado 434

vítimas, entre mortos e desaparecidos. Frente as condições oferecidas a comissão e as

adversidades enfrentadas, como a não colaboração das Forças Armadas, este foi o número de

casos que a comissão conseguiu esclarecer, embora, o próprio relatório esclareça que os

números de vítimas supera os citados no próprio documento:

Esses números certamente não correspondem ao total de mortos e desaparecidos,

mas apenas ao de casos cuja comprovação foi possível em função do trabalho

realizado, apesar dos obstáculos encontrados na investigação, em especial a falta de

acesso à documentação produzida pelas Forças Armadas, oficialmente dada como

destruída. Registre-se, nesse sentido, que os textos do Volume II deste Relatório

correspondentes às graves violações perpetradas contra camponeses e povos

indígenas descrevem um quadro de violência que resultou em expressivo número de

vítimas. Esses números certamente não correspondem ao total de mortos e

desaparecidos, mas apenas ao de casos cuja comprovação foi possível em função do

trabalho realizado, apesar dos obstáculos encontrados na investigação, em especial a

falta de acesso à documentação produzida pelas Forças Armadas, oficialmente dada

como destruída. Registre-se, nesse sentido, que os textos do Volume II deste

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Relatório correspondentes às graves violações perpetradas contra camponeses e

povos indígenas descrevem um quadro de violência que resultou em expressivo

número de vítimas (CNV, 2014, p. 963).

O número de pessoas afetadas diretamente pela ação do Estado durante a ditadura é

superior aos 434 mortos e desaparecidos, indicados pela CNV. Uma parcela significativa da

sociedade brasileira, espraiada entre os mais diferentes grupos, sofreram duras retaliações e

tiveram que suportar humilhações e ameaças. Apenas no ano go golpe militar, em 1964,

foram milhares de prisões arbitrárias registradas pelos próprios órgãos de segurança da

ditadura. No volume 2 do Relatório, que versa sobre as violações contra militares,

trabalhadores, camponeses, indígenas, religiosos de diferentes igrejas cristãs, dentre outros,

mostra um quadro ainda mais amplo do abrangência das ações da máquina de repressão do

Estado.

Os próprios policiais militares, após o AI-5 de 1968, sofreram dura repressão. 237

policiais militares, em dez estados da federação, foram demitidos ou reformados (CNV, 2014,

Vol. 2, p. 38). O número de exilados da Aeronáutica, Exército, Marinha e Forças Policiais,

somavam 278, num quadro de 2.692 exilados em 1979, ou seja, mais de 10% dos que

solicitaram abrigo em outros países, eram militares.

Tratando-se ainda da instituição do AI-5, a CNV indica um endurecimento da política

indigenista, mais agressiva. Além da criação de presídios para indígenas, o Plano de

Integração Nacional (PIN), publicado em 1970, baseava-se na construção de estradas e na

ocupação da Amazônia, ignorando as nações indígenas que habitavam aquele território e

elegendo a Transamazônica como principal obra, tal como das BR 163, 174, 210, 374, o que

simbolizava mais de 2 milhões de quilômetros quadrados de terras expropriadas, cortando

terras de 29 etnias indígenas, acarretando em remoções forçadas. Para a execução do

programa com a colonização desejada, a Funai assumiu um papel avesso ao indicado por sua

missão institucional. A Funai, dirigida pelo general Bandeira de Mello, “firmou um convênio

com a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) para a “pacificação de 30

grupos indígenas arredios” e se tornou a executora de uma política de contato, atração e

remoção de índios de seus territórios” (CNV, 2014, Vol. 2, p. 209).

O projeto de ocupação territorial da ditadura, esteada por um grande aparato de

repressão, foi direcionado contra o povo indígena, causando desaparecimentos, mortes e a

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ocupação de terras tradicionais. Esta ação de tomada de territórios, nomeada de “pacificação”

pelo Plano de Integração Nacional (PIN), foi patrocinada pela Funai e “legaram ao povo

Parakanã, por exemplo, cinco transferências compulsórias entre 1971 e 1977, além da morte

de 118 indígenas, o equivalente a 59% da população original”, já em 1970, “cerca de 700

Parakanã foram transferidos de seu território tradicional, entre os rios Tocantins e Xingu”

(CNV, 2014, Vol. 2, p. 229).

A influência e a repressão que a ditadura exerceu se fez presente na Amazônia entre os

indígenas, entre os trabalhadores nas fábricas e grandes empresas e até mesmo nas igrejas.

Entre 1968 e 1978, foram presos 273 cristãos engajados no trabalho pastoral da igreja

católica, como mostra os dados do Centro Ecumênico de Documentação e Informação

(CEDI):

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TABELA 03 – Demonstrativo de prisões de cristãos

Fonte: CNV, 2014 (Vol. 2, p. 168)

Vale destacar que as ações que foram impetradas contra clérigos e cristãos na igreja,

não se resumiram apenas as prisões arbitrarias, as expulsões, banimentos e o posterior exilio

em vários países, alcançaram padres, frades, diáconos, teólogos e outros cristãos, que

mantinham relações com o trabalho de base junto aos trabalhadores urbanos e rurais. Entre

1964, anos do golpe, e 1981, essas ações foram registradas:

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TABELA 04 – Demonstrativo de clérigos e leigos excluídos

Fonte: CNV, 2014 (Vol. 2, p. 175-176)

Esse quadro de violações, além dos mortos e desaparecidos registrados, mostra que as

ações da ditadura foram extensivas a um grande número de grupos sociais e não deve ser

analisada somente pelo número de cadáveres que constam oficialmente. Entretanto, a

comprovação circunstanciada das vítimas fatais da repressão, são de suma importância para

descartar definitivamente a tese de que o resultado da tortura e da morte se deu em virtude dos

“arroubos” de grupos mais sádicos. A ação da ditadura foi danosa e como comprova a

segundo conclusão do Relatório da CNV, teve um caráter generalizado e sistemática no

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tocante as graves violações de direitos humanos. Sob uma perspectiva binária, a ditadura

operou para aniquilar opositores e montou todo um aparato para esta finalidade, como versa a

segunda conclusão do Relatório:

Conforme se encontra amplamente demonstrado pela apuração dos fatos

apresentados ao longo deste Relatório, as graves violações de direitos humanos

perpetradas durante o período investigado pela CNV, especialmente nos 21 anos do

regime ditatorial instaurado em 1964, foram o resultado de uma ação generalizada e

sistemática do Estado brasileiro. Na ditadura militar, a repressão e a eliminação de

opositores políticos se converteram em política de Estado, concebida e

implementada a partir de decisões emanadas da presidência da República e dos

ministérios militares. Operacionalizada através de cadeias de comando que, partindo

dessas instâncias dirigentes, alcançaram os órgãos responsáveis pelas instalações e

pelos procedimentos diretamente implicados na atividade repressiva, essa política de

Estado mobilizou agentes públicos para a prática sistemática de detenções ilegais e

arbitrárias e tortura, que se abateu sobre milhares de brasileiros, e para o

cometimento de desaparecimentos forçados, execuções e ocultação de cadáveres. Ao

examinar as graves violações de direitos humanos da ditadura militar, a CNV refuta

integralmente, portanto, a explicação que até hoje tem sido adotada pelas Forças

Armadas, de que as graves violações de direitos humanos se constituíram em alguns

poucos atos isolados ou excessos, gerados pelo voluntarismo de alguns poucos

militares (CNV, 2014, p. 963).

O caráter generalizado do terrorismo de Estado adotado pela ditadura contra a

sociedade é uma conclusão que se alicerça na ampla pesquisa realizada pela CNV. As mais 40

mil prisões arbitrárias ocorridas apenas em 1964 é um dado concreto. Os locais associados as

graves violações de direitos humanos constituíam uma cadeia de escala nacional de repressão,

estiveram presentes em vinte e dois estados e em todas as regiões do Brasil, respondendo as

cadeias de comando que partiam das altas esferas do poder executivo. Nos estados do Rio de

Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, havia oitenta e oito locais onde as ocorrências de tortura,

prisões arbitrárias, desaparecimentos e execuções, foram registradas. O mapa abaixo,

apresenta esse quadro.

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FIGURA 03 - Locais de graves violações de direitos humanos (1964-1985)

Fonte: CNV (2014, p. 830)

A quarta conclusão da Comissão Nacional da Verdade, aponta que os crimes

cometidos por militares ou civis, contra os mais diferentes setores sociais, constitui um ataque

do Estado contra a população civil e sob as condições de serem atos desumanos, praticados

sistematicamente, caracterizam-se por crimes contra a humanidade, ferem “normas

imperativas internacionais – ditas de jus congens, o direito cogente, inderrogável e

peremptório” (CNV, 2014, p. 963). Nestes termos, como crimes de lesa-humanidade, os

ilícitos como prisão arbitrária ou ilegal, tortura, desaparecimento forçado, execução sumária

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ou assassinato político e ocultação de cadáver, cometidos por agentes do Estado, são

imprescritíveis e portanto não podem ser anistiados. Esta conclusão da CNV, corrobora com o

entendimento dos mecanismos de justiça internacional, entre eles a Corte Interamericana de

Direitos Humanos.

A quinta e última conclusão da CNV, indica que o quadro de violações aos direitos

humanos persistem na realidade brasileira contemporânea e entende que a permanência desta

situação ocorre em parte pela impunidade com que o país tratou e trata esse dramático estado

de coisas. “Esse quadro resulta em grande parte do fato de que o cometimento de graves

violações de direitos humanos verificado no passado não foi adequadamente denunciado, nem

seus autores responsabilizados, criando-se as condições para sua perpetuação” (CNV, 2014, p.

964).

Sobre a persistência de um amplo quadro de violações, o nível de letalidade da polícia

militar e a questão das prisões são dois elementos do drama social brasileiro, na realidade

atual do país. Para o sociólogo Rafael Godoi (2016) a “tortura difusa e continuada” persiste

como elemento central do repertório das práticas policiais, expressão do punitivismo

primitivo que o Estado adota na gestão de conflitos sociais e nas cadeias. “A persistência da

tortura no Brasil é explicada em termos históricos: uma herança do nosso longo passado

escravocrata e um legado da ditadura militar que a transição democrática não pôde apagar”

(GODOI, 2016, p. 7).

A sociedade brasileira, historicamente marcada pela violência e pela brutalidade,

registra continua e paulatinamente, o crescimento de mortes por homicídios, ostenta números

que assemelham-se aos de países em guerra civil. O Subsistema de Informação sobre

Mortalidade (SIM), vinculado ao Ministério da Saúde, é o órgão do Governo que apresenta

dados oficiais sobre mortes no Brasil, desde 1979, sendo a fonte básica e mais segura sobre

essa temática. É debruçado sobre esses dados que Weifelfisz (2005), indica que entre 1979 e

2003, mais de meio milhão de pessoas foram vítimas de armas de fogo no país. Deste total,

206 mil mortos, eram jovens. A barbárie brasileira produz milhares de morto e desaparecidos,

especialmente entre jovens e pobres.

O Mapa da Violência 2016, lança no debate sobre segurança pública, uma

preocupação especial sobre o controle de armas de fogo no Brasil, ao tempo que demonstra

como o crescimento da violência é uma realidade assustadora, o que corrobora o

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entendimento que as políticas policialescas adotadas pelo Estado, não tem surtido efeito no

sentido de amenizar ou reverter esse quadro. Weifelfisz (2015), mostra que entre 1980 e

2014, morreram perto de 1 milhão de pessoas, o que representa um crescimento de 415,1% de

mortes no período indicado. Apesar do alto número de armas não registradas e nas mãos de

criminosos, o aparato oficial de coerção do Estado, sustenta um comprovado índice de

letalidade já que “95% da utilização letal das armas de fogo no Brasil tem como finalidade o

extermínio internacional do próximo” (WEIFELFISZ, 2015, p. 15).

Em 2014, 44.861 pessoas foram vítimas por armas de fogo no país, deste total, apenas

372 foram caracterizadas como acidentes. Além do alto número de mortos, os

desaparecimentos forçados e a ocultação de cadáveres como tática de repressão da ditadura,

persistem nas práticas de milicianos, traficantes e policiais. O caso do ajudante de pedreiro,

Amarildo Dias de Souza, ocorrido em julho de 2013, é emblemático: o inquérito da Policia

Civil concluiu que Amarildo foi torturado e morto, mas seu corpo nunca apareceu e 25

policiais de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Rio de Janeiro, foram acusados de

participação no crime. Amarildo, tornou-se um símbolo dos desaparecidos e da letalidade

policial, mas este não é um caso isolado. “Estima-se que no Brasil, desaparecem anualmente

entre 40 mil e 50 mil pessoas” (ARAÚJO, 2015, p. 63).

O quadro de violações de direitos humanos que foi produzido pelo terrorismo de

Estado na ditadura, não apenas persistiu até os dias atuais, como ampliou-se. Sem o

imperativo ideológico da guerra ao comunismo e aos subversivos, a violência oficial buscou

outros pretextos e justificativas morais, tais como a guerra as drogas e ao crime. O alvo da

ação repressora do Estado na ditadura teve um recorte político claro, atingindo setores da

esquerda e do campo progressista, hoje a ação policial tem sido voltada contra as camadas

populares, mas também contra movimentos sociais, reprimindo greves, manifestações,

ocupações de terra, dentre outras atividades políticas. O Estado brasileiro não afiança as

garantias e direitos fundamentais que são alicerce da democracia, é histórica a negação dos

direitos mais elementares, mas avolumam-se no governo vigente, práticas e posturas

autoritárias. Homero de Oliveira Costa (2016), caracteriza este cenário:

O que se observa é o recrudescimento do Estado penal e de um processo de

criminalização dos movimentos sociais, que antecede este governo. No entanto, é

fato que vão se acumulando ocorrências do emprego de medidas que sinalizam uma

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perigosa escalada antidemocrática. As violações à Constituição, as agressões à

democracia se banalizam. Retiram-se direitos e se afronta o Estado democrático de

Direito. Dessa forma, um Estado cada vez mais autoritário vai ganhando espaço,

fenômeno que se expressa numa tendência crescente de suspensão do direito de

reunião e de manifestação política, em abusos de poder e de autoridade. E esse

fenômeno não é específico do Brasil (COSTA, 2016).

Diante de um cenário onde as violações de direitos humanos persistem, a CNV

elaborou as vinte e nove recomendações que encerram o primeiro volume de seu Relatório. A

comissão recebeu sugestões de órgãos públicos, entidades da sociedade civil e cidadãos,

condensando e sintetizando as propostas apresentadas. Foram oferecidas, em agosto e

setembro de 2014, 399 propostas de recomendações.

As recomendações apresentadas pela comissão tem o intuito de acabar ou amenizar

situações degradantes, aperfeiçoar e modernizar o aparato legal em sintonia com os

fundamentos internacionais dos direitos humanos e garantir avanços na promoção de valores

democráticos para o país, portanto é difícil fazer um recorte ou seleção das principais

indicações da CNV. Neste sentido, apresentamos todas, detendo-nos em mais detalhes em

algumas determinadas recomendações, como será possível observar.

As primeiras recomendações indicadas pela CNV foram as Medidas Institucionais e

as seis primeiras propostas apresentadas pela comissão, foram destinadas diretamente às

forças de segurança. A primeira recomendação pede o reconhecido pelas Forças Armadas, de

sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos na

ditadura (1964 - 1985), sem excluir a responsabilidade individual que pode recair sobre os

agentes públicos que tiveram conduta ilícita. O fato das Forças Armadas não reconhecerem

sua responsabilidade direta por milhares de tragédias ocorridas em função do terrorismo de

Estado perpetrado pela ditadura, deixa uma ferida aberta na história contemporânea brasileira

e impede a reconciliação nacional entre o povo brasileiro, suas instituições e história.

A segunda e a terceira recomendações, pedem respectivamente a responsabilização

jurídica dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos, tal

como, a aplicação de medidas administrativas que garantam “o ressarcimento ao erário

público das verbas despendidas” (CNV, 2014, p. 967) por agentes que foram autores de

práticas que ocasionaram na condenação do Estado brasileiro em função de violações aos

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direitos humanos. Em relação a segunda recomendação, vale destacar que a CNV considera

nula os dispositivos da Lei de Anistia, para os crimes de lesa-humanidade. A recomendação é

clara:

[2] Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica –

criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram causa às graves

violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV,

afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de

anistia inscritos nos artigos da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, e em outras

disposições constitucionais e legais

A CNV considerou que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a

detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e

ocultação de cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica

internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que foram

cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis

de anistia (CNV, 2014, p. 965).

A quarta recomendação pede a proibição da realização de eventos oficiais em

comemoração ao golpe militar de 1963, compreendendo o ato como incompatível com os

princípios que regem o Estado democrático de direito. As quinta e sexta recomendações

trazem a preocupação da educação em direitos humanos junto as forças militares e pede

reformulações nos concursos e nas avaliações continuas das Forças Armadas e na área de

segurança pública, no sentido de valorizar os fundamentos da democracia e dos direitos

humanos, indicando também modificações no conteúdo das academias militares e policiais.

A sétima e oitava recomendações diz respeito a retificação da causa de morte no

assento de óbito de pessoas que foram vítimas de graves violações de direitos humanos, é

indicado que esta atualização também seja realizada nos sistemas de informação da justiça e

da segurança pública e de forma geral, em todos os registros públicos. “A manutenção dessas

informações penaliza vítimas de violações aos direitos humanos, quando sua condição de

vítima já foi, inclusive, objeto de reconhecimento pelo Estado brasileiro” (CNV, 2014, p.

968). Estas retificações atendem uma demanda por verdade histórica, reivindicada pelos

familiares de mortos e desaparecidos políticos e o reconhecimento do Estado de que as

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pessoas alcançadas pelo braço da repressão eram vítimas e não criminosos, serve a memória

nacional e a democracia.

A nona e décima recomendações pede a criação de mecanismos para prevenção e

combate à tortura em todos os estados do Brasil, assim como a desvinculação dos institutos

médicos legais e órgão de perícia criminal das secretarias de segurança pública e das policias

civis, sendo indicado a criação nos estados de centros avançados de antropologia forense, que

possam realizar pericias com plena autonomia ante a estrutura policial, sendo, inclusive, capaz

de conferir melhor qualidade a provas técnicas.

O caso do atendimento de presos pelas Defensorias Públicas e a questão das prisões e

do sistema prisional são objeto e preocupação da 11ª, 12ª, 13ª e 14ª recomendações. A décima

primeira recomendação pede o fortalecimento das Defensorias Públicas, entendendo que o

contato do defensor público com o preso é “a melhor garantia para o exercício pleno do

direito de defesa e para a prevenção de abusos de direitos fundamentais, especialmente tortura

e maus-tratos” (CNV, 2014, p. 969). No Brasil, tortura e maus-tratos são práticas cotidianas

vividas no interior dos presídios, o número de pessoas detidas ainda sem acesso a advogados é

alto, tornando a demanda por justiça uma questão central dentro do sistema penal do país.

Neste esteio, busca-se nas recomendações 12ª, 13ª e 14ª, a significação do sistema prisional e

do tratamento dado ao preso, a criação de ouvidorias externas ao sistema penitenciário e o

fortalecimento dos Conselhos de Comunidade para acompanhamento dos estabelecimentos

penais. No marco da significação deste sistema prisional a CNV considera fundamentalmente

necessário abolir procedimentos humilhantes como a revista intima:

Entre outras medidas, é necessário abolir, com o reforço de expresso mandamento

legal, os procedimentos vexatórios e humilhantes pelos quais passam crianças,

idosos, mulheres e homens ao visitarem seus familiares encarcerados. Não se pode

mais obrigar todos os visitantes a ficar completamente nus e a ter seus órgãos

genitais inspecionados. Essa prática deve ser proibida em todo o território nacional

(CNV, 2014, p. 969).

Um dos resultados mais comuns da tortura, são as sequelas que elas deixam na vítima.

Esta lógica não se aplica somente à tortura física ou psicológica, mas também a outras formas

de graves violações. As investigações conduzidas pela CNV que resultaram no seu Relatório,

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mostram os muitos casos de pessoas, inclusive crianças, que vivem com sérios problemas

psicológicos, traumas, fobias e transtornos. O caso de mulheres que sofreram violência sexual

e foram acometidas por doenças psicossomáticas são ilustrativas das implicações da violência

perpetrada pelo terrorismo de Estado. Em alguns casos, o resultado desses transtornos foi o

suicídio. Carlos Alexandre Azevedo, com apenas um ano e oito meses de vida, foi preso e

torturado, em 14 de janeiro de 1974, no Deops paulista e sua mãe, Dermi Azevedo, credita o

suicídio do jovem como sequela da tortura. “O suicídio é o limite de sua angústia” (CNV,

2014, p. 423). Neste sentido, a décima quinta recomendação indica a necessidade de garantir

atendimento médico e psicossocial permanente às vítimas de graves violações de direitos

humanos. “As vítimas de graves violações de direitos humanos estão sujeitas a sequelas que

demandam atendimento médico e psicossocial contínuo” (CNV, 2014, p. 970).

A promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação e o apoio à

instituição de órgão de proteção e promoção de direitos humanos, são as preocupações

pontuadas pelas duas últimas recomendações da CNV como medidas institucionais. A décima

sexta recomendação indica que haja a inclusão na estrutura curricular das escolas públicas e

privadas e universidades, conteúdos que contemplem “a história política recente do país e

incentivem o respeito à democracia, à institucionalidade constitucional, aos direitos humanos

e à diversidade cultural” (CNV, 2014, p. 970). A décima sétima recomendação, dentre outras

iniciativas, coloca a necessidade da criação e funcionamento de secretarias de direitos

humanos na esfera do poder público, nos estados e municípios.

No Brasil, o número de cidades com órgãos relacionados aos direitos humanos é

insuficiente, embora haja avanços nos últimos anos. A reportagem de Flavia Villela (2015)

pela Agência Brasil, revela que mais da metade dos municípios do país não tem órgão ou

estrutura administrativa vinculada a pauta dos direitos humanos, já nas 27 unidades da

Federação todos têm órgão responsável pela política de direitos humanos, entretanto apenas

Maranhão, Paraíba e Sergipe têm secretarias exclusivas. “Menos de 6% dos municípios

brasileiros têm conselhos municipais de Direitos Humanos. Entretanto, apesar de baixo, a

pesquisa mostra que o percentual é bem melhor que em 2009, quando apenas 1,4% das

cidades tinha conselhos desse tipo” (VILLELA, 2015). Já o descrédito de parcela significativa

da população com a democracia e a dificuldade de compreender o significado dos direitos

humanos, devém-se, em parte, a ausência dessas temáticas na formação escolar.

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Conclusa suas recomendações como medidas institucionais, a CNV apresenta oito

reformas constitucionais e legais que tem um sentido abrangente quanto as estruturas da

legislação e busca sepultar um entulho autoritário que permanece presente no arcabouço

jurídico brasileiro. A décima oitava recomendação, sendo a primeira como reformulação

normativa, indica a revogação da Lei de Segurança Nacional - Lei nº 7.170, de 14 de

dezembro de 1983, que foi instituída quando a ditadura permanecia em vigor e

inevitavelmente reflete doutrinas que não são compatíveis com os princípios da Constituição

de 1988 e o Estado democrático de direito. Neste sentido que a CNV recomenda: “impõe-se a

revogação da Lei de Segurança Nacional em vigor e sua substituição por legislação de

proteção ao Estado democrático de direito” (CNV, 2014, p. 971).

Embora o direito internacional dos direitos humanos, formulada através de acordos e

tratados que o Brasil subscreve, a CNV elege como sua décima nona recomendação, o

aperfeiçoamento da legislação brasileira para tipificação das figuras penais correspondentes

aos crimes contra a humanidade e ao crime de desaparecimento forçado. Como já supracitado,

o Brasil tem entre 40 à 50 mil desaparecidos por ano, um dado alarmante que revela um

quadro de graves violações e tendo uma legislação obscura sobre estipulação de penas para

este crime, dentre outros, que a CNV recomenda:

O direito internacional dos direitos humanos identificou – por meio de tratados

internacionais dos quais o Brasil é parte, entre eles o Estatuto de Roma, constitutivo

do Tribunal Penal Internacional – condutas cuja gravidade é extrema e que não

podem ser admitidas em nenhuma circunstância. Nesse sentido, recomenda-se o

aperfeiçoamento da legislação brasileira para que os tipos penais caracterizados

internacionalmente como crimes contra a humanidade e a figura criminal do

desaparecimento forçado sejam plenamente incorporados ao direito brasileiro,

inclusive com a estipulação legal das respectivas penas. A previsão legal do

desaparecimento forçado como tipo penal autônomo é, como afirmou a Corte

Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros versus Brasil,

uma obrigação imposta ao Estado brasileiro pelo direito internacional dos direitos

humanos (artigo 2o da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 3o da

Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas e artigo 4o

da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os

Desaparecimentos Forçados). O pronto cumprimento do dever de criar um tipo penal

autônomo, que contemple o caráter permanente desse crime, até que se estabeleça o

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destino ou paradeiro da vítima e se obtenha a certificação sobre sua identidade, é

fundamental para a coibição do desaparecimento forçado, uma prática ainda presente

no Brasil (CNV, 2014, p. 971).

A desmilitarização das policias militares estaduais é a vigésima recomendação da

CNV. O tema não é novo e já gerou muitos embates. A lógica binária que prevalece nos

organismos militares, tendo por missão a proteção de “aliados” e o aniquilamento do

“inimigo”, resulta na incidência de execuções extrajudicial de civis e no aumento de mortes,

mesmo entre policiais. O Conselho de Direitos Humanos da ONU já havia indicado a medida

como parte do relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho sobre o Exame Periódico Universal

(EPU) do Brasil. A CNV entende que o papel da polícia é o atendimento ao cidadão. “Torna-

se necessário, portanto, promover as mudanças constitucionais e legais que assegurem a

desvinculação das polícias militares estaduais das Forças Armadas e que acarretem a plena

desmilitarização desses corpos policiais, com a perspectiva de sua unificação em cada estado”

(CNV, 2014, p. 971-972).

Sobre a Justiça Militar à vigésima primeira e vigésima segunda recomendações,

pedem a extinção da Justiça Militar estadual e a exclusão de civis da jurisdição da Justiça

Militar federal, circunscrevendo suas competências aos efeitos das Forças Armadas. Para a

comissão a justiça militar “deverá ter sua competência fixada exclusivamente para os casos de

crimes militares praticados por integrantes das Forças Armadas” (CNV, 2014, p. 972). Já a

décima terceira recomendação pede a supressão de referências discriminatórias contra as

homossexualidades na legislação, apontando como exemplo, menções pejorativas no do

Código Penal Militar de 1969.

As duas últimas recomendações nos marcos das reformas constitucionais, as

recomendações vigésima quarta e quinta, pedem o fim da figura do “auto de resistência à

prisão” na legislação processual penal e a introdução da audiência de custódia no

ordenamento jurídico brasileiro, para prevenção de tortura e de prisões ilegais. Os “autos de

resistência”, como já citamos anteriormente, é o dispositivo jurídico que permite que as

mortes e lesões corporais, sejam registradas como “resistência seguida de morte”. O certo é

que o número de pessoas mortas por intervenção policial é alto, entretanto, as investigações

para apurar essas ocorrências não recebem a atenção necessária, o que permite que o uso do

dispositivo do “auto de resistência” possa servir como justificativa para mortes extrajudiciais.

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As audiências de custódia, por sua vez, coíbem práticas ilegais, como a tortura e a prisão

arbitrária, garantindo que o indivíduo que foi detido, tenha contato com a autoridade judicial

em até vinte e quatro horas após ter sido preso.

As quatro recomendações que encerram o rol de propostas da CNV são medidas de

seguimento das ações da comissão. A vigésima sexta recomendação pede o estabelecimento

de um órgão permanente com atribuição de dar seguimento as ações e recomendações da

CNV. O trabalho desenvolvido pela comissão e o grande volume de informações coligidas

pela CNV põe como necessário o “estabelecimento de um órgão de seguimento com funções

administrativas, com membros nomeados pela Presidência da República, representativos da

sociedade civil” (CNV, 2014, p.973) no sentido de dar sequência à atividade desenvolvida

pela CNV. Dentre as missões que este órgão teria, constaria o monitoramento do

cumprimento das recomendações da CNV, com acesso aos poderes para requisitar

informações; apoio as medidas de reparação coletiva aos camponeses e indígenas; organizar,

coordenar e promover atividades públicas que informem parcelas significativas da população

sobre violações de direitos humanos, dentre outras.

A vigésima sétima recomendação é o prosseguimento das atividades voltadas à

localização, identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento

signo dos restos mortais dos desaparecidos políticos. A CNV encontrou uma série de

dificuldade para fazer a localização de restos mortais dos desaparecidos políticos e esta

situação coloca como imperativa a necessidade de um órgão que continue este trabalho da

comissão, dotada de recursos suficientes para realizar as diligências elencadas nesta

recomendação. A vigésima oitava recomendação pede a preservação da memória das graves

violações de direitos humanos, uma medida politicamente pedagógica, necessária para uma

política de paz e não repetição das atrocidades que se seguiram após o golpe de 1964.

Nas últimas duas recomendações da CNV, há uma preocupação com a história

contemporânea brasileira, em especial, em relação a ditadura militar (1964-1985) e sua

herança de injustiças, os seus sentidos e significados que se tiram desta trajetória, para os

familiares de mortos e desaparecidos, mas também para as novas gerações de brasileiros que

nasceram sob o solo de uma democracia ainda movediça, que lhes apresentou apenas uma

face do autoritarismo policial, mas não do terrorismo político contra as ideias de seu tempo.

Para preservar a memória das graves violações de direitos humanos que foram perpetradas por

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um Estado de terror, em respeito aos que foram vítimas, entre eles, milhares que lutaram pela

democracia, a CNV recomenda que se instituía e instale-se em Brasília um Museu da

Memória, além de:

a) cassar as honrarias que tenham sido concedidas a agentes públicos ou particulares

associados a esse quadro de graves violações, como ocorreu com muitos dos

agraciados com a Medalha do Pacificador;

b) promover a alteração da denominação de logradouros, vias de transporte, edifícios

e instituições públicas de qualquer natureza, sejam federais, estaduais ou municipais,

que se refiram a agentes públicos ou a particulares que notoriamente tenham tido

comprometimento com a prática de graves violações (CNV, 2014, p. 974).

No Brasil, em capitais, pequenas e medias cidades, são muitas as ruas e avenidas que

homenageiam os presidentes militares ou quadros das Forças Armadas, diretamente

vinculados as graves violações de direitos humanos, inclusive alguns torturadores. Em São

Paulo, trinta e nove ruas homenageiam pessoas que infligiram os direitos humanos durante a

ditadura militar. O projeto “Ruas da Vergonha” com o lema “Quem matou ou torturou não

pode virar nome de rua”, é dirigido pelo Núcleo da Memória11 e apresenta uma petição para a

retirada do nome de torturadores de ruas e avenidas. Esta iniciativa do Núcleo da Memória

cumpre um papel que também cabe ao poder legislativo, além do congresso nacional, nos

municípios e estados, nas câmaras municipais e assembleias legislativas.

A última recomendação da CNV, a vigésima nona, entende que o prosseguimento e

fortalecimento da política de localização e abertura dos arquivos da ditadura militar é

essencial para a memória do país. A comissão conseguiu avanços significativos na localização

dos dados e informações de arquivos da ditadura e recomenda que este avanço não cesse com

o fim do seu trabalho, para tal, a CNV recomenda que o acervo das Forças Armadas e seus

centros de informação – Centro de Informações do Exército (CIE), Centro de Informações da

Marinha (Cenimar) e Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA), Centro de

Informações do Exterior (Ciex), que funcionou no Ministério das Relações Exteriores, seja

integrado numa plataforma única em todo país, com vinculação ao Serviço Nacional de

11 Acesse: https://www.nucleomemoria.org.

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Informação (SNI). Além da instituição deste banco de dados a CNV recomenda que as

seguintes ações:

Recomenda-se, também, que tenha prosseguimento a localização, em missões

diplomáticas e repartições consulares brasileiras, da documentação relativa ao

período da ditadura militar, recolhendo-se esse acervo ao Arquivo Nacional.

Recomenda-se, também, a continuidade da cooperação internacional visando à

identificação, em arquivos estrangeiros e de organizações internacionais, de

documentação referente ao período de investigação da CNV.

Devem-se estimular e apoiar, nas universidades, nos arquivos e nos museus, o

estabelecimento de linhas de pesquisa, a produção de conteúdos, a tomada de

depoimentos, o registro de informações e o recolhimento e tratamento técnico de

acervos sobre fatos ainda não conhecidos ou esclarecidos sobre o período da

ditadura militar.

Nos termos da legislação vigente, devem ser considerados de interesse público e

social os arquivos privados de empresas e de pessoas naturais que possam contribuir

para o aprofundamento da investigação sobre as graves violações de direitos

humanos ocorridas no Brasil (CNV, 2014, p. 975).

Essas medidas encerram o rol de recomendações apresentada pela CNV. É certo que

algumas dessas indicações já haviam sido feitas pela ONU, pela Anistia Internacional,

organizações e entidades vinculadas a promoção dos direitos humanos. Todas as medidas

apresentadas pela CNV buscam enterrar o entulho democrático deixado pela ditadura,

contudo, a aplicação dessas recomendações dependem da correlação de forças que está

estabelecida no país, as forças políticas no Congresso e na Presidência da República.

No Governo Temer, assumiu o Gabinete de Segurança Institucional, o general do

Exército Sérgio Westphalen Etchegoyen, o primeiro general da ativa a criticar publicamente

as investigações realizadas pela Comissão Nacional da Verdade, taxando a comissão de

“patética e leviana”. O pai de Sérgio Westphalen, o general Leo Guedes Etchegoyen, é

indicado pela CNV, entre os militares responsáveis por graves violações de direitos humanos

durante a ditadura, o que gerou o repúdio da família do general e muitas críticas ao trabalho

da comissão. Em nota assinada pelo atual ministro de Temer e sua família, a comissão é

acusada de não respeitar os princípios do contraditório e da ampla defesa. A publicação da

nota ocorreu quando a presidente Dilma ainda estava à frente do Palácio do Planalto e o

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Governo não tomou nenhuma medida de sanção em desfavor do general, o que mostra que

mesmo o governo do campo progressista não atuou politicamente para fortalecer o trabalho da

comissão, o que ocorreu em outras oportunidades em polêmicas que envolviam a CNV e as

Forças Armadas.

As vinte e nove recomendações da CNV, postas em prática, representariam um avanço

significativo na construção de uma nova cultura política no país e um progresso expressivo

nos direitos democráticos, alicerçada no respeito aos direitos humanos e ao Estado

democrático de direito, coibindo práticas ilegais e contendo a violência oficial patrocinada

pelos organismos de segurança com maior vigor nas periferias e contra grupos socialmente

excluídos. Entretanto, não é provável que o Governo Temer tome medidas para que as Forças

Armadas reconheçam seu papel na ditadura ou a Suprema corte brasileira, reveja sua posição

sobre a Lei de Anistia, para julgar criminalmente militares e civis envolvidos com graves

violações de direitos humanos na ditadura.

O Governo vigente segue um caminho inverso ao apontado pela CNV. Na recente

crise prisional brasileira, com rebeliões que causaram a morte de centenas de presos em

penitenciárias do país, ocorrida entre o final de 2016 e o começo de 2017, revela que o

Governo não está preocupado com a humanização do sistema prisional, mas repete a política

usual no Brasil, contendo à força rebeliões, sem no entanto, buscar resoluções factíveis para a

superlotação carcerária. “Temer tem esvaziado os órgãos voltados aos direitos humanos. Fato

marcante desse desmonte foi a substituição de parte do Conselho da Comissão de Anistia sem

a participação da sociedade civil, nomeando pessoas com posições políticas simpáticas à

ditadura” (BARROSO, 2016).

Os limites do relatório da CNV não podem nem devem ser ocultados, e uma das

principais críticas que são feitas por setores ligado à luta dos direitos humanos é o número

subestimado de mortos e desaparecidos confirmados pela comissão. A própria CNV, alerta

sobre esse quadro e apresenta como necessária a continuidade do trabalho de investigação

para a localização de ossadas e vestígios materiais das vítimas da ditadura, feita por um órgão

criado para este fim, como indica uma das iniciativas institucionais recomendadas pela

comissão.

O trabalho da CNV foi finalizado, atendendo os imperativos institucionais e os

objetivos delimitados pela Lei Nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, e é justamente os

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avanços democráticos que a comissão formulou em suas recomendações, que prova o atraso

do Brasil na efetivação dos direitos humanos. A luta por memória, verdade e justiça, encerra

um de seus capítulos com o trabalho da CNV, mas é justamente este capítulo que torna ainda

mais necessário à luta por democracia e sem o esforço coletivo da sociedade e do Estado

brasileiro, a história recente do país continuará sendo uma história de violações.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que apresentamos neste trabalho de pesquisa não esgota todas as possibilidades de

análises, no entanto, frente às limitações e as condições em que a pesquisa foi realizada,

procuramos fazer e apresentar o melhor trabalho que poderia ser feito. Muitas possibilidades

permanecem em aberto para pesquisas futuras.

Em uma de suas obras, Max Weber estabelece uma distinção entre ciência e arte. Uma

obra artística considerada “acabada” é um ícone para ser apreciado; ela envelhece, mas não

torna-se ultrapassada: representa a arte de um artista em determinado momento histórico. Na

ciência, o destino da obra científica é justamente o de lançar novas hipóteses, as indagações

que dela resultam são uma contribuição para aqueles que buscam aprofundar a temática

abordada. O progresso da ciência ocorre, neste sentido, quando a compreensão sobre

determinados aspectos e elementos é superada ou aperfeiçoada, ou quando uma análise mais

lucida é alcançada tendo por base o que já foi produzido.

Marx (1996), ao refutar a tese hegeliana, que a ciência filosófica seria a única e

verdadeira, reconhece que todo começo é difícil, em todos os ramos da ciência. Nosso

trabalho não busca refundar os conceitos da ciência política, mas apresenta um objeto (o

Relatório da Comissão Nacional da Verdade). Em alguns artigos, cientistas sociais e

historiadores discutiram a concretização da justiça de transição no Brasil, as construções da

memória, a arquitetura institucional do sistema de segurança, mas valendo-se apenas de partes

do relatório, ou não tomando a comissão como principal objeto. Este trabalho teve como foco

uma análise do Relatório da Comissão nacional da Verdade, algo que ainda não havia sido

feito em trabalhos acadêmicos.

O Relatório da Comissão Nacional da Verdade tem mais de 4 mil páginas, dividido em

três volumes. O trabalho de análise e síntese é árduo, tratando-se de um documento tão

extenso e com muitos aspectos importantes, que não poderiam deixar de ser citados e

analisados. A análise documental não significa apenas formular as perguntas para os dados

que são apresentados, mas entender em quais condições e de que forma esses dados foram

produzidos e organizados.

O fato de ser um documento de Estado denota a sua relevância. Mas não se pode nem

se deve compreendê-lo sem se referir ao contexto de sua construção. Daí a necessidade de um

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debate, mesmo que introdutório, sobre as transições democráticas, em especial na América

Latina e em países que, como o Brasil, viveram muitos anos sob ditaduras e que, depois,

constituíram também Comissões da Verdade. É preciso compreender o contexto para entender

os posicionamentos e as reações da sociedade (imprensa, militares, militantes, comissões de

familiares de mortos e desaparecidos etc).

Em relação a Comissão Nacional da Verdade, apresentamos seu percurso, os trâmites

burocráticos e os relatórios parcial e final.

O fato da presidenta Dilma Rousseff ter prorrogado por sete meses o prazo para

conclusão e entrega do Relatório da Comissão Nacional não estava contemplado no

cronograma de execução da nossa pesquisa e assim, tivemos de esperar até a conclusão e

apresentação do relatório final. O extenso documento exigiu uma leitura atenta para evitar que

aspectos importantes não deixassem de ser mencionados e analisados, assim como também foi

necessário identificar os vazios, os silêncios e as ausências.

O relatório parcial da CNV, após um ano de atividades, com os treze grupos de

trabalho, não contemplou, entre outros aspectos, questões internacionais que envolviam a

ditadura brasileira ou o papel da diplomacia estadunidense adotada nos anos 1960. Apenas

grupo de trabalho intitulado “Contextualização, fundamentos e razões do Golpe Civil-Militar

de 1964” abordava brevemente a situação internacional em que o Brasil estava inserido. O

relatório final ampliado trouxe nos capítulos quinto e sexto elementos importantes, como a

participação do Estado brasileiro em graves violações no exterior e as conexões internacionais

na aliança repressiva do Cone Sul, destacando a influência dos EUA sobre as Forças Armadas

na América Latina.

Trouxe também um capítulo sobre a autoria de graves violações, esclarecendo as

condutas, praticas, a gestão da tortura e das execuções extrajudiciais, identificando as cadeias

de comando e o mais importante, apontando os agentes militares responsáveis pelos atos.

Apesar do esclarecimento sobre isso, deixou-se de mencionar os agentes civis que estiveram

envolvidos com o golpe e a consolidação da ditadura militar. São aspectos importantes, que

deveriam ser esclarecidos mas que não foram. Assim, se o trabalho da comissão foi revelador

em muitos aspectos, em outros, como a participação de lideranças políticas, não houve

aprofundamento, o que expressa também os seus limites.

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O certo é que a busca por verdade e as reivindicações por reparações, por uma política

de justiça e memória não começaram com a Comissão Nacional da Verdade e nem se

encerram com ela. A comissão constitui um capítulo privilegiado da luta por verdade,

memória e justiça. O Brasil, como já reiteramos, foi o último país da América Latina a criar

uma comissão de verdade e isso se justifica pelo descaso do Estado brasileiro com a pauta dos

direitos humanos. “Essas lutas pela reparação histórica ficaram à margem da agenda política

da redemocratização, com todas as lideranças privilegiando outras pautas e celebrando o

discurso vazio da reconciliação nacional” (QUINALHA, 2015, p.43).

Existem três conclusões que podem ser tiradas do papel da Comissão Nacional da

Verdade e seu Relatório final. Primeiro, é necessário reconhecer que a comissão cumpriu sua

tarefa institucional, atendendo integralmente os imperativos legais e os objetivos para ela

definidas. A comissão empreendeu uma investigação que contemplou o período fixado pela

Lei nº 12.528, foi capaz de identificar a autoria e as cadeiras de comando que resultaram em

graves violações de direitos humanos, tais como a tortura, execução e ocultação de cadáver e

apresentou as recomendações finais que congregam medidas necessárias à efetivação de

direitos fundamentais e ao avanço da democracia brasileira.

Destacamos que, do ponto de vista institucional, o trabalho da comissão foi logrado de

êxito, embora tenha ocorrido à prorrogação para o prazo de entrega do Relatório final da

CNV, este foi entregue e como um documento de Estado, contém um valor significativo para

a história e a democracia no Brasil.

A segunda conclusão diz respeito ao atraso brasileiro em matéria de direitos humanos,

o que pode ser expresso pelo sistema prisional, absolutamente ineficiente, em todos os

sentidos: em muitos casos, não garante sequer a reclusão como pena aplicada pela Justiça.

Por fim, a instituição da Comissão Nacional da Verdade e seu relatório não são um

capítulo à parte da transição democrática e da democracia. Os limites da CNV, a força política

e o apoio institucional para as reformas defendidas no Relatório, a ausência da contribuição de

civis com o regime de terrorismo de Estado no seu documento final, dentre outras, não são um

resultado exclusivo do trabalho da comissão ou de sua composição, mas de um processo mais

amplo, que envolve e reflete a própria transição democracia brasileira e suas características:

pactuada por cima entre as elites, fundada sob acordos que garantiam cobertura política e

jurídica aos agentes e sócios da ditadura. A CNV é um capítulo distinto da luta por verdade,

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memória e justiça e, apesar da democracia brasileira ser marcada mais por violações do que

avanços, a superação da cultura do autoritarismo não se constitui apenas de capítulos sobre

progressos institucionais na área de direitos humanos, mas do avanço da consciência coletiva

e da luta por um novo marco civilizatório.

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