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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE HISTÓRIA IGOR OLIVEIRA DA SILVA A OUTRA FACE DA MOEDA: A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE DOM PEDRO II NAS MOEDAS DO IMPÉRIO Natal/RN 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

CURSO DE HISTÓRIA

IGOR OLIVEIRA DA SILVA

A OUTRA FACE DA MOEDA: A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE DOM PEDRO

II NAS MOEDAS DO IMPÉRIO

Natal/RN

2015

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS ... · CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE HISTÓRIA IGOR OLIVEIRA DA SILVA A OUTRA FACE DA

IGOR OLIVEIRA DA SILVA

Monografia apresentada ao Curso de História da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob

a orientação do professor José Evangelista

Fagundes, para avaliação da disciplina Pesquisa

Histórica II.

Natal/RN

2015

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Silva, Igor Oliveira.

A Outa Face da Moeda: A construção da imagem de Dom

Pedro II nas moedas do Império – Natal, 2015.

Monografia (Graduação em História) Universidade Federal do

Rio Grande do Norte.

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IGOR OLIVEIRA DA SILVA

Monografia apresentada ao Curso de História da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

para avaliação da disciplina Pesquisa Histórica II.

Aprovado em: ___/___/____.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________

Prof. Dr. José Evangelista Fagundes

(Orientador / UFRN)

______________________________________________________________________

Prof. Dra. Carmen Margarida Oliveira Alves

Departamento de História/ UFRN

______________________________________________________________________

Prof. Dra. Juliana Teixeira Souza

Departamento de História/ UFRN

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Nunca seja como uma fotografia que mostra

apenas sua beleza, seja como uma moeda que de

um lado mostra seu rosto e do outro o valor que

você tem.

João Ferreira Neves

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A OUTRA FACE DA MOEDA: A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE DOM PEDRO

II NAS MOEDAS DO IMPÉRIO

RESUMO

Este trabalho consiste em analisar a construção do mito político em torno de Dom Pedro

II e entender como sua imagem foi construída e representada principalmente em moedas

metálicas cunhadas durante a Regência e o Segundo Reinado. Embora não seja a

preocupação principal, a análise também recai sobre as formas de representação do

monarca feitas por historiadores e artistas. Parte-se de uma perspectiva política para

compreender como o imperador se utilizou das moedas de forma simbólica para

construção da imagem de si e do Brasil. O imperador é apresentado como defensor da

integridade da nação, da abolição do trabalho escravo, do progresso e ciência e defensor

da paz. Tomando-se como referência os quatro modelos estruturais de análise do mito

político do Salvador propostos por Raul Girardet (o mito do Cincinnatus, o mito do

conquistador, o mito do legislador e o mito do messiânico), conclui-se que os arquétipos

de Cincinnatus e do legislador são os que mais guardam simetria com as representações

construídas sobre Dom Pedro II.

Palavras-chave: Iconografia, Segundo Reinado, Pedro II

THE OTHER SIDE OF THE COIN: THE CONSTRUCTION OF THE PEDRO II

IMAGE ON THE EMPIRE COINS

ABSTRACT

This work Intends to analyze the construction of the political myth around Dom Pedro

II and understand how his image was built and represented mainly in metallic coins

during the Regency and the Second Reign. Although this is not the main concern, the

analysis also falls on the ways that historians and artists made the monarch

representation. It starts from a political perspective to understand how the emperor used

the currencies to symbolically build his self-image and of the Brazil. The Emperor is

presented as the nation's integrity advocate, defender of the slave labor abolition, of the

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progress and science and the peacekeeper. Taking as reference the four structural

analysis models of the political myth of Salvador proposed by Raul Girardet (the

Cincinnatus myth, the conqueror myth, the legislature myth and the messianic myth), it

is concluded that the archetypes of Cincinnatus and the legislature are the ones which

keep symmetry with the representations built about Dom Pedro II.

Keywords: Iconography, Second Empire, Pedro II

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SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO..........................................................................................................08

2. A OPÇÃO PELA MONARQUIA NO BRASIL E O APOIO DA ELITE...........12

2.1 O Príncipe Menino frente às instabilidades politicas no país....................................12

2.2 Educando o príncipe perfeito.....................................................................................17

3.PERSONAGENS CONSAGRADOS E A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM

PÚBLICA.......................................................................................................................20

3.1 Mito e História...........................................................................................................20

3.2 O Monarca entre a História e a Arte..........................................................................27

4. A CONTRUÇÃO DE AUTOIMAGEM E A LEGITIMIDADE DO PODER DE

DOM PEDRO II NAS MOEDAS ................................................................................34

4.1 A numismática presente na História..........................................................................34

4.2 A numismática e a imagem de Dom Pedro II............................................................39

5. CONCLUSÃO............................................................................................................48

REFERÊNCIAS.............................................................................................................50

ANEXOS.........................................................................................................................52

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INTRODUÇÃO

O objetivo desta pesquisa é analisar a construção do mito político em torno de

Dom Pedro II e entender como sua imagem foi construída e representada em diversas

iconografias, especificamente em moedas cunhadas durante a Regência e o Segundo

Reinado.

A pesquisa surgiu do interesse de aprofundar o conhecimento sobre moedas e

relacioná-las com a história do período imperial brasileiro. O fato de ser colecionador de

moedas e possuir diversas delas cunhadas no Brasil, em especial no período imperial,

motivou-nos a realizar uma pesquisa que levasse à compreensão do seu valor simbólico.

Entendemos, portanto, que as moedas podem se constituir em importantes fontes de

estudo para a história.

No meio acadêmico brasileiro são produzidos poucos trabalhos com o auxílio da

numismática, o que torna cada vez mais necessária a realização de estudos que

possibilitem o diálogo entre a História e a numismática. Sobre o potencial de uso das

moedas pela história, Jean Babelon lembra que

[...]o campo da Numismática é imenso, pois a moeda reveste-se de

aspectos infinitamente variáveis, uma mina de informações sobre

História das religiões, dos costumes, da arte, das relações sociais ou

comerciais, sobre a civilização, sobre a política(BADELON, 1948).

Dessa forma, a nossa iniciativa pode servir de estímulo a outros pesquisadores

que desejem trabalhar com moedas e com suas representações iconográficas. As moedas

não podem ser ignoradas pela historiografia brasileira e serem lembradas apenas por

curiosos e colecionadores de antiguidades. Interessamo-nos não apenas pelo seu valor

de troca ou material, mas, sobretudo como objeto portador de valor simbólico

amplamente usado pelos governantes de praticamente todo o mundo.

O período imperial brasileiro tem sua importância principalmente por se tratar

do início do processo de formação da nação brasileira. Com a vinda da família real e a

proclamação da Independência do Brasil, Dom Pedro I teve a tarefa de construir a

imagem da nova nação, o que não foi possível concluir durante o seu curto reinado,

deixando a responsabilidade para o herdeiro do trono, seu filho e sucessor Dom Pedro

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II, cujo reinado se prolongou por quase cinquenta anos e pode dar continuidade ao

trabalho que seu pai havia iniciado.

Assim, Dom Pedro I, com suas respectivas moedas cunhadas durante o seu

reinado, poderia ter sido escolhido para ser estudado nesta investigação, mas devido o

curto período de tempo que passou no trono, e às poucas imagens que foram cunhadas

com sua face, optou-se pelo imperador Dom Pedro II. As cunhagens das moedas

durante a seu reinado fizeram parte efetiva da história brasileira, tendo as suas imagens

correlação com o alinhamento político-ideológico da época.

As moedas utilizadas para análise serão as do período imperial brasileiro

cunhadas entre 1831, período em que Dom Pedro II passou a ser representado nas

moedas metálicas, indo até 1889, quando o então monarca é destituído do cargo e parte

para o exílio na Europa. Dom Pedro II sempre foi muito popular dentre os brasileiros e

sempre demonstrou preocupação com a construção da sua imagem, bem como da

imagem da nação brasileira.

Segundo Castro (2009, p.149), “Dom Pedro II foi o governante que teve sua

esfinge mais representada no dinheiro brasileiro, uma sequência de cunhagens que

acompanha as fases de seus quase 60 anos de vida”. Isso nos estimulou a estudar por

meio da numismática brasileira as imagens de D. Pedro II cunhadas nas moedas entre

1831 e 1889. Nelas é possível perceber o desenvolvimento físico do imperador que

cresceu, atingiu sua fase adulta e por fim a velhice, de forma que sua esfinge sempre

esteve presente nas moedas.

Nossa análise tomou por base 06 moedas que estão catalogadas pelo numismata

Rodrigo Maldonado, que publicou a mais recente versão do catálogo este ano1. Nesse

catálogo é possível encontrar informações do ano em que as moedas foram cunhadas;

quantidade emitida; material fabricado; lugar de fabricação; além de outras

características, muitas dessas moedas estão presente no Museu de Valores do Banco

Central do Brasil, em Brasília, e também no acervo do Museu Histórico Nacional, no

Rio de Janeiro.

Assim, as 06 moedas escolhidas para análise foram divididas em três conjuntos,

cada conjunto possui duas moedas que são analisadas em três momentos distintos da

1Moedas Brasileiras. 3° edição. 2015.

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vida do imperador: no primeiro, iremos mostrar o monarca é retratado como um

príncipe ainda menino e, posteriormente, embora jovem, como imperador-almirante. Ao

ser retratado fica evidente a importância do personagem para consolidação da

Monarquia e fortalecimento da Armada Imperial Brasileira naquele período, que

encontrava-se em processo de reestruturação. No segundo conjunto, são analisadas as

imagens do imperador em sua fase adulta, período de estabilidade política do país, a

intenção do imperador é mostrar a cultura brasileira nas moedas. É o que pode-se

entender das roupas ornadas com papo de tucano, ou mesmo quando o imperador é

representado de forma mais simples, com o busto nu; e por fim, a análise recai sobre

mais duas imagens que apresentam o imperador como um ancião, tendo o rosto coberto

com uma longa barba, as ultimas moedas cunhadas no período imperial com a imagem

do monarca.

A monografia está dividida em três capítulos. No primeiro capítulo, iremos

mostrar como se constituiu a Monarquia brasileira a partir das necessidades de uma elite

conservadora. A opção pela monarquia e o desencontro com as demais nações

americanas que tiveram experiências monárquicas curtas e mal sucedidas. Destaca-se o

interesse pela manutenção de uma sociedade baseada na grande lavoura, no trabalho

escravo e na unidade político-territorial. Por fim, ressaltaremos a importância de Dom

Pedro, ainda adolescente, como solução para a crise política instalada no período

regencial.

No segundo capítulo, associamos as imagens de Dom Pedro II à do mito do

Salvador. Discorremos sobre essas imagens a partir dos quatro modelos estruturais de

análise dos mitos políticos, conforme define Raul Girardet: o de Cincinnatus, o mito do

conquistador, o mito do legislador e, por fim, o mito messiânico. Relacionamos esses

modelos imaginários à construção do mito político representado por Dom Pedro a partir

da contribuição de diversos profissionais, entre os quais, historiadores e pessoas

dedicadas à arte.

O terceiro e último capítulo propõe-se a refletir sobre a importância do valor

simbólico da numismática brasileira durante o período do Segundo Reinado. Nesse

capítulo, foram analisadas as imagens oficiais de Dom Pedro cunhadas nas moedas do

período que vai da Regência ao final do Império. Destacamos a importância da

representação do monarca nas moedas e as relacionamos com o contexto da época,

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especialmente com as maiores preocupações manifestadas pela Monarquia: a unidade

político-territorial e a construção de uma identidade cultural.

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Capítulo 01

A opção pela monarquia no Brasil e o apoio da elite

2.1 O Príncipe Menino frente às instabilidades politicas no país

Durante o século XIX, o regime político monárquico predominou em diversas

sociedades da Europa e do mundo. Na América do Sul, apenas três países tiveram a

experiência de implantar a monarquia, dentre os quais o Brasil que, apesar das várias

lutas regionais, conseguiu o reconhecimento de outras nações e preservou a unidade

territorial e política do novo país.

Além do Brasil, o Haiti e México tiveram uma experiência monárquica de curta

duração. No Haiti em 1804, o Império foi instituído por Jacques I, porém, em 1806, o

imperador é assassinado por membros de sua administração que assumiram o poder,

pondo fim ao primeiro império, o Império foi restabelecido em 1849 pelo imperador

Faustino I, mas em 1859, deixa o poder devido a um golpe de estado que pôs fim ao

segundo império haitiano.

O México adotou um modelo de império similar ao do Haiti, possuindo dois

imperadores durante o período monárquico. O primeiro foi general Agustín de Iturbide

que assumiu o trono como imperador Agustín I, porém, seu reinado foi breve, durando

de 1822 a 1824. O segundo imperador foi o Arquiduque Maximiliano da Áustria, seu

reinado foi derrubado do seu trono pelos liberais republicanos, durando cerca de apenas

três anos,

Os processos de independência do Haiti e do México, além das demais

independências americanas de origem espanhola, não vieram acompanhados de uma

unidade administrativa que assegurasse a sua integridade territorial. A criação dos vice-

reinados2 e capitanias gerais possibilitou a descentralização administrativa e levou à

fragmentação política desses países. O líder venezuelano Simon Bolívar tentou unificar

2 Quatro vice-reinos: vice-reino da Nova Espanha, Vice-reino de Nova Granada, Vice-reino do Peru e

Vice-reino do Rio da Prata.

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as nações recém-nascidas, através da Federação das Nações da América do Sul, mas não

teve apoio de todos os países no Congresso das Nações da América Hispânica.

Nesse contexto de pós-independência dos recentes Estados americanos, temos o

Brasil com o seu caráter peculiar, se comparado às demais nações vizinhas. Na antiga

América portuguesa, o regime monárquico conseguiu perdurar por longos 67 anos.

Assim como as demais nações já mencionadas, também tivemos dois imperadores que

estiveram à frente da nação no período que se inicia em 1822 e se estende até 1889.

Ressalte-se, porém, um curto período regencial (1831-1840).

O período monárquico brasileiro foi marcado por uma forte presença de

símbolos e personagens que contribuíram para a construção do Estado imperial, assim

como da nação. Mas esse processo ocorreu em meio a muitos conflitos, o que indica que

assim como no Haiti e no México, a opção pela monarquia no Brasil deu-se em meio a

muitas lutas deflagradas pelos diferentes grupos que ocupavam a antiga colônia.

O primeiro momento conturbado da história do Brasil imperial aconteceu

durante o Primeiro Reinado, uma vez que grupos regionais insatisfeitos com o

direcionamento político que a nova nação estava adotando recusavam reconhecer o

novo governo representado por Dom Pedro I. A Guerra da Cisplatina e a Confederação

do Equador foram eventos que demonstraram a insatisfação que assolava o Brasil.

Durante a Guerra da Cisplatina, grupos de oposição ao governo de Dom Pedro I

conquistaram a independência da região por meio da guerra, o que levou ao

desmembramento da República Oriental do Uruguai do Brasil. Internamente, as atitudes

absolutistas de Dom Pedro I provocam reações por parte de diversos grupos. Em

Pernambuco é organizada a Confederação do Equador que também demostraram

insatisfação contra o absolutismo de Dom Pedro I. A dura reação da coroa, provocando

diversas mortes, fez com que o movimento fosse contido rapidamente.

O Primeiro Reinado brasileiro, porém, teve uma duração curta de nove anos.

Crises políticas interna e externa levaram Dom Pedro I a abdicar em favor do seu filho

Pedro de Alcântara que contava com apenas cinco anos. Assim, O Brasil passa a ser

governado por regentes até a maioridade de Dom Pedro.

O período regencial (18431-1840) é o mais conturbado da história do Brasil.

Segundo Morel (2003, p.52), “não se pode conhecer as regências sem levar em conta

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suas rebeliões que nos colocam no âmago de situações-limite da sociedade”. Nesse

período inicia-se uma série de discursões sobre a possibilidade de manter ou não a

monarquia no Brasil, debate polarizado pelos principais grupos políticos da época.

Diversas revoltas aconteceram a partir das províncias brasileiras.

Uma das revoltas foi a Cabanagem, cujo início ocorreu em 1835, na província do

Grão-Pará. Essa revolta teve como motivação o sentimento de abandono por parte dos

cabanos em relação às autoridades, bem como as péssimas condições de vida sob as

quais a população, composta em sua maioria por índios e mestiços, estava vivendo. Por

outro lado, havia o descontentamento da elite local, formada por fazendeiros e

comerciantes, que, por não concordarem com a nomeação do presidente da província,

reagiram contra o governo regencial e instigaram o sentimento de independência da

região.

Marcelo Balise mostra que apesar da vontade de se desmembrarem, os

revoltosos não estavam preparados para assumir o governo. Segundo o autor,

... os cabanos não possuíam um programa de governo ou conjunto

sistemático de exigências que definissem seus objetivos, transparecendo

em suas proclamações apenas o ódio a portugueses, estrangeiros e

maçons, a revolta contra a opressão social e a defesa da liberdade de

província, da religião católica e de d. Pedro II (BALISE, 2009, p. 70)

O Maranhão também foi palco de revoltas. A Balaiada foi um movimento

popular que se iniciou em 1838. Desta vez, foram os escravos e sertanejos que, vivendo

em condições de miseráveis, se rebelaram. A mobilização das classes marginalizadas

para libertar os presos, em 1838, deu início a outras revoltas contra os liberais, cujas

lideranças eram compostas por grupos da elite local. Apesar de sua vitória em algumas

batalhas, o movimento foi contido pelo coronel Luís Alves de Lima e Silva, que

organizou as tropas e conseguiu sobrepor-se aos revoltosos.

Na Bahia, ocorreram pelos menos duas grandes mobilizações. As lutas pela

independência marcam o inicio das revoltas no período imperial, ocorrendo, dentre

outras, a revolta conhecida por Sabinada. Na revolta, ocorrida de 1837 a 1838, militares

se colocaram contra as imposições do governo regencial e lutavam por maior autonomia

para a província. Com o decreto que regulamentou o recrutamento obrigatório de

militares para combater a Guerra dos Farrapos, os revoltosos intensificam a luta e

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tomam as ruas de Salvador, criando a República Bahiense. Os seus líderes anunciavam

a permanência da República até Dom Pedro II atingir sua maior idade. “Os sabinos

tinham como principal bandeira de luta a adoção de efetivo federalismo, combatendo

também o que chamavam de aristocratas, identificados aos senhores de engenho do

Recôncavo Baiano” (BASILE, 2009, p. 71).

Após quatro meses de ocupação, o governo regencial sob o comando de Diogo

Feijó, envia tropas para reprimir o movimento e, por meio da violência e da repressão,

deu-se o fim do movimento, após a morte, prisão e ferimento de muitos dos envolvidos.

Outro movimento marcante da Bahia foi a Revolta dos Malês, em 1835. O

evento teve como cenário a cidade de Salvador e foi liderado por escravos que eram,

majoritariamente, mulçumanos. Foi uma revolta social, cujos objetivos não são até hoje

muito claros. Sabe-se, no entanto, que apresentavam uma proposta ousada e radical.

Eram contra a imposição do catolicismo como religião oficial, pretendiam libertar todos

os escravos muçulmanos, tomar o poder e implantar uma república islâmica.

Armados para o combate, os revoltosos de Salvador e outras regiões se reuniram

e libertaram os escravos dos engenhos de açúcar. As forças oficiais foram acionadas

para conter a situação, os soldados conseguiram debelar os rebeldes através da

violência, onde alguns foram mortos, outros feridos e outros ainda presos. Embora tenha

durado poucas horas, o acontecimento teve grande repercussão, devido à sua

radicalidade.

A Guerra dos Farrapos foi uma das revoltas mais importante e mais longa

movimento insurrecional do período regencial, sendo contida apenas em 1845, cinco

anos após a ascensão de Dom Pedro II ao trono. O início da rebelião foi em 1835 no Rio

Grande do Sul, a revolta foi liderada por ricos estancieiros e charqueadores que

demostravam grande descontentamento politico com o governo imperial e buscavam

maior autonomia para as províncias. Marcelo Balise nos lembra que

Os farroupilhas apresentaram, desde o início, um conjunto claro de

reivindicações (elevação da taxa de importação paga pelo charque

platino, redução dos impostos sobre o sal e de barreira sobre a

circulação dos produtos rio-grandenses nas províncias), que acabaram

sendo aceito pelo governo imperial, assim como a exigência de

libertação dos escravos participantes da revolta (BALISE, 2009, p.

70).

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Os fazendeiros e criadores de gado passaram a apoiar os federalistas, também

chamados de farrapos, que lutavam por mais autonomia político-administrativa da

província. Os gaúchos também reivindicavam melhores condições de competividade

dos seus produtos juntos aos produtos provenientes do Uruguai e da Argentina, países

fronteiriços. A política alfandegária adotada pelo Brasil não agradava os produtores de

charques da região, fazendo com que os preços da charque e do couro perdessem

competitividade no mercado interno. Sob o comando de Bento Gonçalves, invadiram

Porto Alegre e iniciaram a guerra. A coroa imperial convocou, mais uma vez, o coronel

Luís Alves de Lima e Silva para combater e derrotar os farroupilhas, o que só vai

ocorrer depois de vários confrontos.

Além dessas revoltas, outras de menor proporção contribuíram com a

instabilidade politica e movimentaram ainda mais o Brasil no período regencial,3 houve

muita repressão e muitos lideres foram julgados e até executados nos combates. Apesar

de menor repercussão, elas vieram para agravaram a situação de agitação no país,

contribuíram com o período conturbado e foram de grande risco para a perpetuação da

monarquia brasileira.

A instabilidade política fazia com que o Império estivesse constantemente

ameaçado de fragmentação.

Nesse contexto conflituoso, a monarquia corria o risco de ruir. Dom Pedro II,

4ainda que adolescente, é lembrado como a única esperança para apaziguar os ânimos

dos insatisfeitos e evitar as tentativas de fragmentação, unindo todos em um único reino.

Começa, então, uma campanha em prol da antecipação da maioridade de Dom Pedro. A

expectativa era que, embora jovem, ele pudesse contribuir decisivamente para pacificar

o Império. Na verdade, desde pequeno Dom Pedro foi preparado para governar.

3 É importante atentar para existência de outras agitações ocorridas em outras províncias do Brasil, como

em Pernambuco: Carneiradas (1834 – 1835), Abrilada (1832), setembrada (1831), novembrada (1831) ;

Ceará: Insurreição do Crato (1832); Mato Grosso: Rusgas (1834); Minas Gerais: Carrancas (1833) e Rio

de Janeiro: Revolta de Manuel Congo (1838). 4 O seu nome completo é Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de

Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Bragança e Bourbon.

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2.2 Educando o príncipe perfeito

O jovem príncipe muito solitário e sem entender o que estava acontecendo

naquele período encontrou nos livros uma solução para se livrar dos problemas.

Segundo Barman (2012, 89), o imperador ainda menino carecia das habilidades

políticas necessárias a um verdadeiro governante. Ainda conforme esse autor,

O fascínio que o universo intelectual exercia sobre o jovem imperador

não era inteiramente altruísta. Livros e estudos continuavam a promover

um meio de escape tanto naquela época quanto por toda sua vida; por

meio deles ele podia apartar-se da realidade externa que considerava

ameaçadora ou insatisfatória. Os livros compensavam os

aborrecimentos externos e a virtual ausência da qualquer vida social – e

de quaisquer companhias de sua própria idade, além de suas irmãs

remanescentes.

José Murilo de Carvalho (2007) afirma que muitos investimentos foram feitos

em função da “fabricação do príncipe perfeito”. O propósito era dar a melhor formação

possível ao futuro monarca, na expectativa de que ele pudesse retribuir um dia

administrando o país de maneira responsável e prudente. Um dos pontos de maior

preocupação era sua educação. Aos cinco anos, já aprendeu a ler e aos sete falava e

escrevia o francês, lia e traduzia o inglês. O menino aprendeu a ter responsabilidades

desde pequeno. A disciplina e a pontualidade começaram a fazer parte de sua vida desde

muito cedo e as manteve por toda a sua vida. Tinha horários determinados para tudo.

Um dos tutores da família imperial, o Marquês de Itanhaém, dava instruções a

serem observadas com relação a sua educação literária e moral. Segundo

Carvalho(2007), essas instruções eram

... uma mistura de iluminismo, humanismo e moralismo. Itanhaém

queria formar um monarca humano, sábio, justo, honesto,

constitucional, pacifista, tolerante. Isto é, um governante perfeito,

dedica integralmente a suas obrigações, acima das paixões políticas e

dos interesses privados”. (CARVALHO, 2007, p. 27).

Tudo isso tinha uma finalidade: preparar um governante perfeito, alguém

esforçado e aplicado para com as obrigações, mas o menino não passava de uma sombra

oculta no palácio. Dom Pedro era um instrumento político importante, a elite imperial

conservadora que tinha interesse na manutenção do trabalho escravo e no grande

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latifúndio precisava manter a monarquia com o menino-imperador à sua frente,

garantindo os preceitos sociais então vigentes e a economia sem que fossem feitas

mudanças profundas.

Segundo Barman,(2012, p.119) “A declaração da Maior Idade de Dom Pedro II

provocou euforia geral. Um sentimento de libertação e renovação uniu os brasileiros”.

Além desse sentimento, o golpe da Maior Idade foi o grande marco para unidade

territorial o início de um novo processo de pacificação que culminou com um período

de crescimento econômico e com a adesão das elites regionais.

Os problemas pelos quais o Brasil estava passando só vieram a ser resolvidos

com o golpe da maior idade, em 1840, que restabeleceu a ordem no país e arrefeceu os

movimentos liberais. Apesar das várias lutas regionais objetivando autonomia e

desmembramento do país, o Brasil mantém a monarquia e preserva a unidade de seu

território.

A elite brasileira utilizou, com maestria, a imagem de Dom Pedro, mesmo ainda

criança, para manter o Estado brasileiro unitário, assim como para manter os privilégios

econômicos vigentes desde o período colonial: a grande propriedade e o trabalho

escravo.

Na década de 1830 a produção do café estava em alta, isso favorecia o lucro para

os grandes proprietários rurais, que precisavam manter o trabalho escravo para

continuar a produção do café nas grandes terras.

Havia no campo econômico a ascensão do café ao primeiro lugar nas

exportações, desbancando o açúcar. No final da década de 1830, esse

produto já atingia a metade da exportação. [...]. Com isso, o esforço de

centralização política e de manutenção da integridade do país ganhava

um poderoso apoio econômico. (CARVALHO, 2007, p. 42).

Essas ideias defendidas pelos grupos dominantes entravam em contradição com

sistema político então vigente denominado Liberalismo Econômico5 que defendia a

existência de limites no poder político, bem como a existência de direitos naturais e leis

fundamentais de governo que nem os reis poderiam ultrapassar. Os liberais eram mais

5 Surgida no século XVIII, através dos pensadores iluministas John Locke e Montesquieu, no Brasil essa

filosofia política chega no início do século XIX.

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propensos à defesa do fim da intervenção do Estado sobre a produção de riquezas do

país e pela defesa da liberdade comercial.

As ideias liberais não agradavam os grupos mais conservadores e parte dos

grandes proprietários rurais, o que provocava constantes conflitos com os liberais. Dom

Pedro II foi importante para consolidação dos conservadores no poder, pois através dele

foi possível criar um sentimento nacionalista e manter a ordem social, atendendo aos

interesses da elite ao mesmo tempo em que há uma adesão por parte da população ao

imperador e ao regime monárquico.

A imagem de Dom Pedro II foi um importante instrumento para criação de um

sentimento nacionalista e manutenção da ordem social vigente. Dessa forma, ao mesmo

tempo que trouxe legitimidade e apoio ao regime monárquico, o imperador contribuiu

decisivamente para a consolidação do projeto político social dos conservadores. No

entanto, a antecipação da maioridade de D. Pedro II e sua subida ao trono ajudaram a cimentar

a recomposição da elite como um todo, uma vez que ele vai fazer com que liberais e

conservadores se revezem no poder.

Sob essa base é construída a figura politica do jovem imperador que

iniciou oficialmente seu governo em 18 de julho de 1841, quando de sua coroação como

imperador do Brasil. A partir daí ele começa a governar de fato o Brasil e a interagir

com um mundo o qual só conhecia por meio de terceiros. Embora as pressões fossem

muitas, governou o Brasil durante quase cinquenta anos, sendo deposto e exilado em

1889. Ao longo do seu governo, o imperador conseguiu manter os conflitos sob controle

e impôs um período de relativa paz interna. Sua imagem está associada à defesa da

integridade territorial e da nação e somadas a diversas outras imagens, justifica-se o

mito em que ele foi transformando ao longo do tempo: o mito político do Salvador. No

próximo capítulo, trataremos desse aspecto.

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Capítulo 02

Dom Pedro II e a construção do mito Salvador

3.1 Mito e História

Segundo Raul Giradert (1987), O mito político é a marca da identidade de um

personagem que está inserido em um determinado contexto social, a construção desse

mito possibilita o engrandecimento do personagem dentro da imaginação coletiva que

paulatinamente é aceito na realidade social. O mito amplia seu domínio e vai se

tornando uma herança cultural permeada na sociedade.

O autor ressalta que historiadores e antropólogos consideram o mito como uma

narrativa que se refere ao passado e no presente tem um valor explicativo da vida

humana ou das formas de organizações sociais. Assim, não entendemos a noção de mito

como sinônimo de mistificação, algo como ilusão ou fantasia, cuja veracidade estariam

nos fatos vividos. (GIRADERT, 1987).

Giradert elege quatro grandes conjuntos mitológicos: a Conspiração, a Idade de

Ouro, o Salvador e a Unidade. Em nossa pesquisa trabalharemos apenas com o conjunto

de mitológico do Salvador. O Salvador está associado a alguém que consegue traduzir o

sentimento de um povo e que consegue por fim a uma época de incertezas e provações.

O apelo ao Salvador está sempre presente em nossa história. Independentemente da

época e da sociedade, sempre há procura por um Salvador. Sua presença pode se

concretizar por meio de eleição, pela força ou por predestinação.

Para ilustrar, Giradert traz dois exemplos situados no contexto francês. Um

representado por um homem comum, Sr. Pinay, que se identifica com o cotidiano dos

franceses. Filho de um pequeno industrial e de mãe originária de família camponesa, foi

combatente na Primeira Guerra Mundial de onde saiu gravemente ferido. Passou a fazer

parte da vida pública já tardiamente e iniciou sua carreira como conselheiro municipal,

em seguida foi prefeito e depois deputado. Esses cargos foram conquistados

gradativamente ao longo do tempo e assumindo de acordo com a responsabilidade que

lhe era atribuída de forma que sempre soube corresponder à altura a cada um deles.

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Enfim, a sua imagem se assemelha a de muitos franceses. Esse homem, no entanto,

desafia os tecnocratas do Estado com atos supostamente simples. A grande crise em que

estava mergulhada a França no pós Segunda Guerra parecia não ter saída. Com ações

supostamente simples, elementares, o Sr. Pinay recoloca ordem na casa: debela a

inflação e coloca a França no rumo do progresso e da prosperidade.

O outro exemplo advém de um poema dramático do final do século XIX6 em

que o personagem principal, é o pobre e errante Simon Agnel, posteriormente

promovido a general Tête d’Or. O personagem se sente na responsabilidade de salvar

todo o povo do seu território da vida inércia que as pessoas viviam, da vida medíocre e

banal que faziam parte do cotidiano dessas pessoas. O jovem Tête d’Or, para salvar o

seu povo resolve assassinar um velho imperador benevolente, fraco e representante da

ordem estabelecida atingindo, desta forma, sua glória. Tête d’Or, muito obstinado, se

transforma no novo herói e assume a tarefa de por fim a vida entediante e monótona, ele

se utiliza da bravura e coragem para impor um novo ritmo à vida social.

Giradert vê nos dois personagens modelos de herói ou salvador,

Não é menos verdade que, na história do imaginário político francês,

ambos pertencem ao domínio, no final das contas, de um mesmo

legendário: o do Homem providencial, do Chefe, do Guia, do

Salvador. Personagens símbolos, através de um e de outro exprime-se

uma visão coerente e completa do destino coletivo. Em torno deles

cristalizam-se poderosos impulsos de emoção, de espera, de esperança

e de adesão. Ambos heróis, em suam, no sentido que o velho mito

greco-latino atribuía a esse termo...Mas heróis colocados sob signos

diferentes, dotados de atributos contraditórios, chamados a preencher

funções opostas. Um, herói da normalidade. O outro, herói da

exceção. (GIRADERT, 1987, p. 70).

Ressalta o autor que o trabalho com o mito se baseia em imagens construídas a

partir de narrativas que são feitas sobre pessoas, passando elas a comporem o

imaginário de uma determinada época. Portanto, não traz o propósito de compará-las a

determinada realidade histórica.

A imagem de Dom Pedro II projetou-se e se popularizou na sociedade

oitocentista de forma marcante, ao ponto chegar até os dias atuais, inclusive dentro das

academias. O mito político em nosso trabalho está associado estreitamente à figura

6 Do poeta francês Paul Claudel publicado em 1890

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pública desse imperador, que através do poder herdado ou a ele atribuído, conseguiu

construir uma imagem que se assemelha ao mito do Salvador.

São diversos os instrumentos que atribuem sentido ao mito, parte dos quais

trabalharemos aqui, especialmente no que diz respeito aos historiadores, aos artistas e

principalmente aos responsáveis pela emissão de moedas. Juntos compõem um valor

simbólico que levam à construção do mito do Salvador.

Neste capítulo defendemos a ideia de que as imagens de Dom Pedro II podem

ser associadas à do mito do Salvador, conforme a define Raul Girardet. Refletiremos

acerca dessas imagens e também sobre a forma como elas foram construídas,

destacando a contribuição de diversos profissionais, entre os quais, historiadores e

pessoas dedicadas a arte.

Para Girardet, a narrativa mítica exerce uma função explicativa e serve de

subsídios para a compreensão do presente. Embora entenda que as dimensões míticas

são variadas devido ao seu caráter poliformo, o autor nomeia quatro modelos estruturais

de análise dos mitos políticos pertencentes ao conjunto mítico Salvador: o de

Cincinnatus, o mito do conquistador, o mito do legislador e, por fim, o messiânico.

Não obstante propor modelos explicativos históricos buscando compreender

situações da história da França, a obra permite a reflexão sobre sociedades fora da

realidade francesa. Entendemos que os modelos possam contribuir com a reflexão em

torno da imagem de Dom Pedro II.

O primeiro modelo é o do Cincinnatus, esse é o que mais se assemelha ao

monarca Dom Pedro. O autor indica como pertencentes a esse modelo, personagens

políticos da história recente, como Gaston Doumergue, político francês que ocupou

cargos renomados na França como o de presidente do conselho de ministro da França e

o de presidente da República Francesa. Além dele o autor cita Philippe Pétain que

exerceu a função de marechal francês participante das duas grandes guerras mundiais e

ainda temos o General Charles de Gaulle, estadista francês que liderou as Forças

Francesas Livres, entidade militar que lutava contra a Alemanha nazista e a Itália

fascista durante a segunda guerra mundial. A imagem mitológica é de um velho homem

com um passado glorioso e que tendo exercido os mais altos cargos políticos ou

militares, escolhe um tranquilo retiro no campo para descansar longe das agitações

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próprias de quem vive próximo ao poder. No entanto, a velhice tranquila é interrompida

diante da clemência do povo, em desgraça, o chama de volta para comandar o Estado.

Conforme ressalta Girardet,

Tendo ‘feito doação de sua pessoa’ à pátria, provisoriamente

investido de um ser supremo de essência monárquica, sua tarefa

é apaziguar, proteger, restaurar. As virtudes que lhe são

atribuídas, e das quais se espera a salvação da Cidade

ameaçada, correspondem muito exatamente ao termo global

utilizado pelos latinos para designar uma certa forma de

exercício da autoridade política – gravitas: a firmeza na

provação, a experiência, a prudência, o sangue-frio, o

comedimento, a moderação. (GIRARDET, 1987, p. 73)

Antes de falarmos da simetria existente entre o arquétipo de Cincinnatus e Dom

Pedro II, vamos destacar algumas das diferenças.

Quando da sua velhice, a Monarquia brasileira e, consequentemente, o monarca

enfrentavam forte crise política. Parte significativa da população demonstrava estar

cansada com a forma de governo e a Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 1888,

aumentou ainda mais a impopularidade do governo, representada principalmente por

parte da elite cafeeira e dos senhores de engenho e proprietários de escravos que,

inconformados, passaram a fazer forte oposição ao Imperador e ao regime monárquico.

Essa crise produzirá um desfecho bem distinto do previsto por Girardet para o

arquétipo do Cincinnatus. Dom Pedro e a família imperial são expulsos do país, em

meio ao clima de muita tristeza e melancolia, embarcaram em um navio e partiram para

o exilio na Europa. A imagem da forma de governo do Brasil e o imperador tornou algo

ultrapassado, pertencente a outra época. Era o fim não apenas do seu reinado, mas do

regime monárquico e da dinastia Bragança em terras brasileiras.

Não obstante e diante dessas diferenças, há razões para acreditarmos que há

correspondência entre esse primeiro arquétipo e o imaginário construído em torno de

Dom Pedro II. A imagem de um determinado modelo mitológico, embora preserve

traços que lhe são próprios, sua forma e seu conteúdo dependem das circunstâncias

historicamente determinadas. Além do mais, determinado personagem, quase sempre,

incorpora traços que se encontram em mais de um modelo (GIRARDET, 1987).

Dito isso, vejamos alguns aspectos que justificam a afirmação o mito de

Cincinnatus é o mais que se aproxima de Dom Pedro II.

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Um dos aspectos que podemos destacar é de que Dom Pedro “fez doação de sua

pessoa” (GIRARDET, 1987) à pátria, desde criança foi preparado para governar o

Brasil, e sempre soube corresponder aos ensinamentos que lhe foram transmitidos.

Investido do poder supremo, ele mantinha-se plenamente ocupado com os assuntos de

Estado, o historiador Barman afirma que o rapaz de 14 anos aceitou sem questionar a

missão a ele conferida e assumiu com entusiasmo suas obrigações. Dom Pedro ao

escrever uma carta para sua irmã, D. Maria II de Portugal, em 1841, afirma que: “Quem

tem reino não tem tempo” (BARMAN, 2012), o historiador reforça ainda mais a doação

de Dom Pedro ao Império.

D. Pedro II revelou-se complacente em face das pesadas demandas

sobre seu tempo e sua energia. Sua constituição era, na verdade, bem

adequqda na à missão que herdara por nascimento. Sua personalidade

adaptava-se naturalmente a uma rotina preestabelecida. (BARMAN,

1987, p. 128)

A educação a qual o imperador havia recebido contribuiu para que ele fosse

transformado num príncipe perfeito. O imperador continuou com as mesmas práticas

que havia aprendido antes da Maioridade, a pontualidade e o cumprimento de seus

compromissos, sempre desempenhando seu papel com muita prudência nos assuntos

governamentais.

Apesar dessa virtude o imperador também tinha a imagem de possuir sangue-

frio. “Quando José Bonifácio foi destituído à força como tutor do imperador, D. Pedro

II ‘não demonstrou a menor emoção’ ”(BARMAN, p.165, 1987), ele tinha dificuldade

de se relacionar em sociedade e evitava criar intimidade até mesmo com membros de

sua própria família, o imperador confiava somente em si mesmo. Simultaneamente

Pedro II conseguia ser comprometido e cético, via-se como o centro do mundo, mas

também se via solitário e tolo em relação ao papel a ele designado pela vida

(BARMAN, 1987).

O segundo modelo é o mito do conquistador, simbolizado por Alexandre “O

Grande”. Nesse modelo o personagem se apresenta como um jovem ávido por vitória,

dotado de sabedoria que luta pelas suas conquistas, a utilização do cetro é substituída

pela espada, o espírito de coragem é a mais importante das suas características, o caráter

juvenil, e aventureiro que transporta montanhas, atravessar desertos e rios, eis as

características dos personagens pertencentes a esse modelo. A legitimidade do poder

não advém do passado, ao contrário, depende das suas atitudes e ações do presente.

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Como exemplo moderno, o autor Napoleão Bonaparte, personagem que

encontrou na Revolução Francesa a oportunidade ideal para alcançar seu objetivo maior.

General estrategista, participou de diversos combates em diversos países, entre os quais

a Itália e a Rússia. As vitórias obtidas possibilitaram a construção do mito imortal. O

artista Francês Jacques Louis David representa em um quadro o Napoleão desbravador,

no Passo de Saint Bernard. A imagem transmite a ideia de um jovem guerreiro e

vencedor que se equilibra sobre o cavalo montado, apontando o dedo para as planícies e

a cidade prometida.

Dom Pedro não se aproxima desse modelo. Ao contrário do arquétipo

representado pelo jovem conquistador que se faz no presente, Dom Pedro é herdeiro de

uma coroa, cuja legitimidade está no passado. Não possui esse perfil de guerreiro, o que

fica bem claro com relação à sua participação nos acontecimentos relacionados à Guerra

do Paraguai. Nessa Guerra, os conselheiros de Estado não permitiram que o imperador

se aproximasse do campo de batalha, sua presença foi substituída pelo conde d’Eu junto

aos oficiais que faziam parte da armada imperial brasileira. Sua rápida passagem pela

província do Rio Grande do Sul no ano de 1865 é o ponto espacial mais próximo do

imperador em relação à guerra. No entanto, embora distante Dom Pedro talvez seja o

personagem mais importante daquele episódio. Segundo Carvalho (2012),

Pacifista por convicção, d. Pedro viu a entrada do Brasil no conflito

como uma questão de desagravo à honra nacional ofendida pela

agressão paraguaia. Resistiu às tentativas de negociação dos aliados e

a propostas de mediação. Fez questão de cumprir à risca os termos do

Tratado da Tríplice Aliança, que estabeleciam como condição para o

fim do conflito a prisão de Solano López ou sua expulsão do país.

Quando seus próprios ministros pareciam duvidar da conveniência de

continuar o conflito, ele se mantinha inabalável. Durante cinco anos,

foi incansável no esforço de levar a luta até o fim. Ao final da guerra,

com apenas 45 anos, parecia um velho de cabelos embranquecidos e

rugas precoces. (CARVALHO, 2012, p. 110)

Embora não tenha participado da linha de frente do conflito, participou de outras

atividades que tratavam de assuntos beligerantes a ele relacionados, embora

pessoalmente tenha se desgastado física e mentalmente, nunca demonstrou

arrependimento das decisões que tomou com relação à guerra.

O terceiro modelo é o do legislador. O homem providencial, o arquétipo de

Sólon, o legislador. Essa representação tem sua origem na Grécia Antiga, cujo líder

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político conquista o poder absoluto através da Assembleia Ateniense, baseado na

capacidade de resolver questões e pendências de modo sábio e equilibrado. Após atingir

o poder dedicou-se em construir uma sociedade mais justa e igualitária entre a

aristocracia, os camponeses e os escravos. Embora os ricos não concordassem com suas

ideias de igualdade, o esforço nesse sentido fez dele o pai da democracia grega. Os

exemplos contemporâneos vêm de dois arquétipos da história francesa. O primeiro deles

é do início da década de 1940, é o do Marechal Pétain. Este é dos primeiros tempos da

Revolução nacional, considerado fundador de uma nova ordem. O outro exemplo é o do

Charles de Gaulle, um dos primeiros presidentes da República Francesa que liderou as

Forças Francesas Livres durante a segunda guerra mundial. Gaulle também se tornou

um personagem importante por retornar ao poder em maio de 1958 quando a França

passava por uma crise política devido a Guerra de Independência da Argélia. É

considerado o principal responsável pelo estabelecimento dos princípios e regra da

República nova francesa. Ambos são lembrados pelos franceses como “pais

fundadores” de uma nova ordem.

O que estes personagens têm em comum? O fato de comporem os “pais

fundadores” de suas nações, isso atribui a eles a responsabilidade de implantar o sistema

político que ainda se encontrava em processo de formação, seja na monarquia brasileira

ou na república francesa, ambos tinham o poder de conduzirem o destino de seus países.

O quarto e último é o de Moisés ou o arquétipo do messiânico ou profeta, aquele

cuja experiência permite medir as consequências do que há de vir e que sempre está

guiando seu povo pelos caminhos do futuro. Assim, o líder carrega a nação e um pouco

de sentimento profético em si, o general Gaulle restabeleceu a França a partir da fé, ele

se assemelha a São Bernardo que foi um polemista politico e pacificador, conselheiro de

autoridades como papas e reis.

Como sabemos, Dom Pedro foi escolhido para governar ainda quando criança.

Ao abdicar do trono, Dom Pedro I já o escolhera como o seu sucessor ao trono. Sua

primeira imagem não é a de um profeta, a não ser pela expectativa que foi criada em

torno dele: ele seria o “messias” no sentido de que viria salvar um povo ameaçado pela

divisão e que por isso precisava de um guia que o conduzisse. Nesse sentido, a simetria

que Dom Pedro guarda este modelo mitológico está relacionada à sua capacidade de

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escolhas e de atrelar o seu destino ao destino de um povo, de uma coletividade. Nesse

personagem, aqueles que o apoiavam viam nele o seu próprio rosto.

Ao observar esses modelos, podemos trazer para a realidade imperial brasileira e

perceber que a construção do mito de Dom Pedro Salvador foi possível em nossa

realidade histórica, segundo Girardet (1987) a literatura e a pintura concedem novos

aspectos que contribuem para a criação desse mito.

O mito político jamais deixa [...] de enraizar-se em uma certa

forma de realidade histórica. Mas a constatação ganha, nesse

caso particular, um valor quase determinante. Certamente, a

lenda está muito longe de sempre corresponder à realidade

objetiva tal como esta pode aparecer ao olhar do historiador.

Certamente, a narrativa legendária constitui, em si mesma, por

si mesma, o objeto específico de nossa tentativa de análise.

Tratando-se, todavia, de pessoas humanas, muito concretamente

e muito precisamente inserida em um certo espaço geográfico e

em uma certa fase do tempo, não é muito concebível que a

narrativa em questão escape totalmente à marca da história, não

testemunhe, de uma maneira ou de outra , a presença da

história. Aos grandes heróis imaginários, [...] a literatura como a

pintura podem atribuir rostos os mais diversos. Eles não

dependem de nem uma cronologia, de nenhum contexto factual.

Podem ser e foram incessantemente reinventados,

reinterpretados; cada um de nós tem a liberdade de reconstruir à

vontade seus personagens. (GIRARDET, 1987)

É sobre as diversas representações de Dom Pedro existente na arte que

trataremos no tópico a seguir.

3.2 O monarca entre a História e a Arte

A imagem de Dom Pedro II associada à do mito político Salvador foi possível

pelo contexto histórico. Foram muitas as ações que convergem para transformá-lo no

personagem que se tornou em seu tempo e nos dias atuais. Foi necessária a contribuição

de personagens que produzissem o conjunto de imagens motrizes para auxiliar o

imperador a obter êxito e atingir o ápice da popularidade. Ele não seria capaz de atingir

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este objetivo de forma autônoma, por isso contou com aqueles que de alguma forma

tinham o propósito de tornar sua imagem pública e admirada, produzindo algo tangível

que concretizasse sua imagem dentro da monarquia. Vejamos como o próprio Dom

Pedro II, historiadores e pessoas dedicadas a arte contribuíram para a formação de um

determinado imaginário sobre monarca.

O fato de Dom Pedro ter nascido no Brasil, foi fundamental para que ele se

tornasse popular dentre os brasileiros, segundo Barman (1937) a alegria foi geral devido

o nascimento do príncipe brasileiro, ele afirma que o céu ouviu as súplicas e coroou os

votos de todos os brasileiros. Dom Pedro I reconheceu a importância desse fator e

utiliza como argumento para sua abdicação “Os nascidos no Brasil não querem mais saber

de mim porque sou Português, meu filho tem sobre mim a vantagem de ser Brasileiro”.

O próprio Dom Pedro II tinha a preocupação em deixar para o futuro uma

determinada autoimagem. Prova disso são as anotações diárias que ele fez em

praticamente toda a sua vida. Segundo carvalho,

O imperador escreveu 5.500 páginas de diário, registradas a lápis em 43

cadernos. As anotações começaram em 2 de dezembro de 1840,

primeiro aniversário após a maioridade, e terminam em 1° de dezembro

de 1891, um dia antes do aniversário, quatro dia antes da

morte.(CARVALHO, 2007, p.78)

Esses escritos são importantes, pois, ao se tratar de um diário, pressupõe-se que

essa imagem é a mais próxima possível da demonstração de como era Dom Pedro no

espaço privado. O caráter descritivo de seus diários, permite ao leitor conhecer como

era o dia a dia do imperador e as viagens que ele costumava fazer.

Dentre seus escritos, destacamos o fragmento a carta imperial de 1861, em que o

imperador descreve sua autoimagem, seus talentos e anseios compõe a imagem descrita

por ele mesmo.

[...]Nasci para consagrar-me às letras e às ciências e, a ocupar posição

política, preferia a de presidente da República ou ministro à de

imperador. Se ao menos meu pai imperasse ainda estaria eu há onze

anos com assento no Senado e teria viajado pelo mundo. Jurei a

Constituição; mas ainda que não jurasse seria ela para mim a segunda

religião [...] Confesso que em 21 anos muito mais poderia ter feito; mas

sempre tive o prazer de ver os efeitos benéficos de onze anos de paz

interna devido à boa índole dos brasileiros [...] (MAUAD, 1997, p. 184)

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Neste fragmento é possível perceber a satisfação do imperador ao

conseguir por fim as diversidades politicas e manter a paz interna em seu reinado. Dom

Pedro foi responsável por uma nova ordem, que foi estabelecida a partir do momento

que ele assumiu o poder, essa ordem possibilitou que a paz reinasse no Brasil.

Os viajantes naturalistas que passaram a vir para o Brasil com a abertura dos

portos em 1808 também foram personagens que ajudaram, de alguma forma, a construir

a imagem do império através de seu olhar observador. A visão do outro foi importante

para propagar essa imagem não apenas aqui, mas em outros países de onde eles viam. A

grande presença de estrangeiros no Brasil possibilitou a produção de diversas obras que

descrevem os diversos aspectos do Brasil, essas produções também foram importantes

para exportar imagens aos seus países de origem, propagando paulatinamente os

costumes e valores do povo brasileiro. Dentre os diversos escritos e obras de artistas, os

autores descrevem sobre os habitantes, os costumes que os brasileiros possuíam, a fauna

e a flora que devido a grande diversidade sempre chamaram a atenção desses viajantes.

Porém o mais importante aqui é observar que a imagem do imperador também

era propagada pelos viajantes nas exposições universais como aquele que investia na

produção intelectual e artística do Império, a presença de obras produzidas por

brasileiros ou que tinham como temática o Brasil, reforçava ainda mais a imagem de

Dom Pedro como o imperador das artes. Seguando Mauad (1997) a imagem do

imperador representava a imagem do império, logo, se o império foi retratado pelos

viajantes, a imagem do imperador também estava atrelada a ela.

Os artistas em sua maioria também vieram do exterior, muitos faziam parte da

missão artística francesa e suas viagens eram financiadas pela coroa para produzirem a

imagem do império brasileiro, bem como do imperador, muitos desses artistas atuavam

na Academia Imperial de Belas Artes, lá eles produziam sua obras que as grandes obras

que seriam veiculadas pelo império formando o sentimento de nacionalidade e de

sistema monárquico que aqui existia.

O imperador Dom Pedro apoiava os trabalhos dos artistas que faziam as suas

imagens. Lilia Schwarcz afirma que os alunos aprendiam a pintar a face do imperador

nas escolas. Essa talvez tenha sido a maneira encontrada de promover a sua imagem,

contribuindo para a construção do mito político. Artistas profissionais também

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reproduziam a imagem do imperador. Arnaud Pallière7 pintou um quadro retratando

uma das poucas cenas de Dom Pedro quando criança. Na imagem é possível visualizar o

herdeiro do trono sentado chão, brincando com um tambor de regimento, instrumento

indispensável de qualquer infantaria, o brasão do império ao centro identifica a qual

ordem política a criança pertencia, esse instrumento é tocado por aqueles que participam

da tropa e lutam contra o inimigo, a favor da sua pátria. Como plano de fundo temos

parte do trono imperial, apontando o lugar a qual está a criança no futuro. (imagem 01

do Anexo)

Ainda podemos mencionar a atuação dos fotógrafos, eles foram profissionais

indispensáveis por Dom Pedro na tentativa de veicular sua imagem pelo império. As

fotografias como uma inovação tecnológica importante trazida por Dom Pedro são

registros importantes e fontes a serem analisadas e que compõe memória da família

imperial. O daguerreotipo, futura máquina fotográfica chegou ao Brasil em 1840 e era a

grande tecnologia da época, as fotografias chegaram a ser expostas em exposições

internacionais.

Diversos fotógrafos do período imperial retrataram o imperador Dom Pedro,

como Joaquim Insley Pacheco, Revert Henrique Klunb e Marc Ferrez. Ferrez, todos

fizeram um conjunto de fotografias que apresentam o imperador e o cotidiano da capital

imperial da segunda metade do século XIX. Na imagem apresentada podemos perceber

Dom Pedro sentado em um banco, com o rosto coberto com uma longa barba, assim

como nas moedas cunhadas nesse período, além das vestimentas comuns utilizadas no

dia a dia, a simplicidade de Dom Pedro se destacava, deixando à parte a regra dos

monarcas que se utilizavam da etiqueta para legitimar o poder.8(Imagem 02 do Anexo)

Assim, outra imagem que podemos formular do imperador é de um ser inovador

que trouxe para o Brasil progresso e empreendimentos que foram revolucionários a

época, segundo Barman, Dom Pedro participou de empreendimentos desde o inicio do

seu Império (BARMAN, 2012). Além da fotografia já citada, o imperador ao participar

da Exposição Universal da Filadélfia em 1876 trouxe o telefone que foi uma grande

inovação tecnológica. Outra reestruturação tecnológica importante que reforça a

7 (1784 – 1862) Pintor e desenhista francês que veio ao Brasil em 1817.

8 Norbert Elias em “a sociedade de corte” apresenta a etiqueta e o cerimonial como algo indispensável

para legitimação do pode de Luiz XIV.

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imagem do Imperador inovador é o serviço dos correios9 e do sistema de telégrafo

fazendo do Brasil um dos primeiros países a utilizar os selos postais e o serviço dos

correios.

A historiografia contribui para perpetuação da imagem do imperador, dentre os

vários autores que podemos tomar como referência, podemos citar Jean Marcel

Carvalho França, segundo o autor Dom Pedro II foi “um dos melhores governadores

que teve o Brasil, quicá o melhor”.

No livro “Pedro II”, do historiador José Murilo de Carvalho, o autor faz uma

primeira apresentação do segundo e último imperador brasileiro:

“D Pedro II governou o Brasil de 23 de julho de 1824 a 15 de

novembro de 1889. Foram 49 anos, três meses e 22 dias, quase meio

século. Assumiu o poder com menos de quinze anos em fase

turbulenta da vida nacional, quando o Rio Grande do Sul era uma

república independente, o Maranhão enfrentava a revolta da Balaiada,

mal terminara a sangrenta guerra da cabanagem no Pará, e a Inglaterra

ameaçava o país com represálias por conta do tráfico de escravos. Foi

deposto e exilado aos 65 anos, deixando consolidada a unidade do

país, abolidos o tráfico e a escravidão, e estabelecidas as bases do

sistema representativo graças à ininterrupta realização de eleições e á

grande liberdade de imprensa. Pela longevidade do governo e pelas

transformações efetuadas em seu transcurso, nenhum outro chefe de

Estado marcou mais profundamente a história do país”.

[...]

“Órfão de mãe logo depois de completar um ano de idade, de pai, aos

nove, virou órfão da nação. Dela recebeu, via tutores e mestres, uma

educação rígida, propositalmente distinta da do pai. Seus educadores

procuraram fazer dele um chefe de Estado perfeito, sem paixões,

escravo das leis e do dever, quase uma máquina de governar. Passou a

vida tentando ajustar-se a esse modelo de servidor público exemplar,

exercendo com zelo um poder que o destino lhe propusera nas mãos”.

(CARVALHO, 2007, p.9-10)

Podemos perceber logo de início que há diversas imagens em torno de Dom

Pedro e que em sua maioria são positivas, mesmo provenientes de uma obra de cunho

historiográfico. Pelo que se pode deduzir dos fragmentos acima, o monarca e seu

governo estão associados a um grande legado de desenvolvimento, de liberdade de

imprensa e de preocupação com o futuro do país. Preparada para governar, ele se

transformou em um escravo das leis e do dever. O seu legado histórico faz dele um dos

governantes mais marcantes da história do Brasil.

9 Estabelecido por força dos decretos n° 254 e 255 de 29 de novembro de 1842.

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Já no seu nascimento, em dezembro de 1825, a imagem do príncipe-menino está

associada ao apoio dos seus súditos, como podemos ver nas citações a seguir:

Quando o filho do príncipe Dom Pedro nasceu no Rio, em abril,

os baianos iluminaram as janelas de suas casas com tochas e

velas (afinal, nascera um príncipe brasileiro). (SILVA.

REIS,1989, p. 85)

Houve muita celebração na capital em virtude do nascimento.

As casas iluminaram-se durante quatro dias (CARVALHO,

2007, p. 12)

Outra demonstração de apoio e esperança por parte da população veio quando

das discussões em prol da antecipação da sua maioridade e, consequente, da coroação

como governante do Brasil. Conforme Carvalho,

No dia 20, houve tumulto na Câmara [...] As galerias gritavam

vivas estrondosos à maioridade [...] as ruas clamando por um

rei. (CARVALHO, 2007, p. 39)

Fica explícita nesses historiadores a preocupação em mostrar a participação

efetiva do povo, não apenas de membros da elite dominante e dos grupos políticos da

época. A imagem de Dom Pedro II é de um político que mesmo ainda adolescente seria

capaz de trazer união e ordem diante da instabilidade política pela qual o país estava

passando no período regencial. A imagem de Dom Pedro nesse momento como homem

político é coerente com a ideia do mito político Salvador.

Afirma Carvalho que o imperador não passava de uma sombra oculta, visível

somente nas cerimônias oficiais. Em se tratando da presença física, é possível inferir

que não era todos que tinham a oportunidade de algum momento de sua vida ter um

encontro pessoal com o imperador por mais que ele tenha viajado por quase todo o

império. Nesse caso, a finalidade que as imagens oficiais possuíam, era a de aproximar

rei e súditos, uma vez que está na presença do imperador não era algo comum, as

imagens possibilitavam esse encontro de maneira indireta.

Outro autor importante que contribuiu com o conhecimento do Brasil

oitocentista e do imperador Dom Pedro foi o brasilianista Roderick J. Barman, em seu

livro “imperador cidadão” já trabalhado neste capitulo, nessa obra é possível

compreender a importância do imperador para seu tempo e para os dias atuais. Assim

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como Carvalho, Roderick J. Barman também vê em Dom Pedro um homem de várias

facetas, dentre elas a de alguém que nutria o amor pela leitura e pelo conhecimento das

artes.

Barman mostra que Dom Pedro foi para seu tempo o imperador modelo e o

cidadão modelo, esse argumento se sustenta nas relações que ele proporcionou ao país,

o domínio sobre assuntos relacionado na política do Brasil e do mundo fez dele um

homem dotado de conhecimentos, sempre pronto a discernir o melhor para o Brasil.

Nesse caso, os historiadores, cujos olhares deveriam ser guiados pela análise crítica, não

se distancia muito dos olhares de outros profissionais ligados à arte. Percebe-se em

todos eles uma certa admiração e elogio à imagem de Dom Pedro II.

Os abridores de cunho, também foram personalidades notáveis na propagação da

imagem de Dom Pedro por meio das moedas e medalhas, eles vinham de países como

Espanha em França para o Brasil com o intuito de atuarem nas casas da moeda da Bahia

e do Rio de Janeiro, sua função foi inserir no meio circulante as moedas que

movimentariam a economia do país, uma vez que as moedas que aqui circulavam não

eram moedas genuinamente brasileira.

Além do caráter econômico de inserir moedas no meio circulante, existia a

intenção de junto a elas, propagar a imagem do imperador que circularia por todo

império. Dentre os abridores de cunho poder citar o Zeferino Ferrez, pai do fotógrafo

Marc Ferrez já mencionado anteriormente, ele cunhou moedas importantes como a do

anexo 03 e 04, que retratam, respectivamente, os imperadores Dom Pedro I e Dom

Pedro II.

Atribuímos essas imagens a denominação de narrativa legendária, pois por mais

que a maioria se constitua de fontes visuais, sempre foram feitas com intuito de registrar

um acontecimento referente ao imperador Dom Pedro no contexto de sua atuação como

monarca do Brasil imperial. Dessa forma, a imagem do imperador foi se popularizando

no segundo reinado e todos esses meios foram responsáveis pala consolidação da

imagem de Dom Pedro II.

No capítulo a seguir iremos ver com maior detalhe como Dom Pedro se utilizou

das moedas como instrumento simbólico para consolidar e propagar sua imagem dentro

da monarquia.

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Capítulo 03

A moeda e a construção de uma imagem

4.1 A numismática presente na História

A historiografia conta com a importante contribuição de outras ciências, cujos

conhecimentos são produzidos a partir do uso de uma grande diversidade de fontes.

Algumas dessas ciências têm como objeto de estudo documentos que são comumente

encontrados em arquivos ou bibliotecas, como é o caso da diplomática, que estuda as

estruturas textuais e a autenticidade dos documentos, ou a paleografia, que estuda as

diversas caligrafias manuscritas que existiam nos séculos anteriores.

Contudo, é importante compreender também a relevância da cultura material,

que consiste nas diversas formas de fontes não escritas; segundo o historiador Marcelo

Rede, a historiografia tem sido tímida em incorporá-la na produção do conhecimento

histórico (REDE, 2012). Outras áreas que dialogam com a história e que não têm seus

conhecimentos produzidos em suporte de papel, mas sim em outros suportes como o

motel ou madeira, também contribuem para a compreensão das sociedades. Temos

como exemplo a arqueologia que com suas escavações ajuda para melhor compreender

as sociedades sem escrita, e também a xilografia, que estuda as inscrições em suporte de

madeira e que até o século XVIII era bastante utilizada na Europa, devido à inexistência

de tecnologias tendo como base a impressão.

Ainda tratando das ciências próximas da história, que têm como base o estudo da

cultura material, encontramos a numismática, ciência que interpreta as inscrições em

moedas e medalhas. É sobre ela que nos debruçaremos neste capítulo.

Para os historiadores Funari e Carlan (2012), a preocupação moderna em estudar

as moedas surgiu em 1514, pelo humanista francês Guillaume Budé (1468 – 1540), que

publicou a obra Partes da Cerimônia, um trabalho que analisa as antigas moedas, pesos

e medidas romanos. Na obra, Budé afirma que o verdadeiro e educado cristão, dedica-se

não apenas aos estudos das sagradas escrituras ou aos escritos dos padres da igreja, mas

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também a todo e qualquer tipo de conhecimento, incluindo as moedas, como forma de

alternar o conhecimento da verdade.

A obra foi publicada em Paris, em língua latina, e posteriormente traduzida para

o italiano. Apesar de sua ideia não ser reconhecida pelos seus contemporâneos, sendo

alvo de várias críticas, o trabalho trouxe grande reputação a Budé, por ser considerada

uma publicação pioneira no que se refere aos estudos sobre moeda. Posterior a sua

publicação, apenas no final do século XVIII foi forjado o termo numismática, de forma

que a moeda passou a ser estudada por historiadores que as relacionam com a história

das sociedades, acompanhando o processo de evolução social. Para Funari e

Carlan(2012), o termo é uma expressão derivada da palavra latina numus, que quer dizer

moeda, e significa o estudo das moedas cunhadas.

Eles afirmam também que a numismática não foca apenas na história econômica

e financeira, mas também em seu conteúdo simbólico. Os historiadores, porém, ainda

usam muito pouco esse tipo de fonte, pois a maioria opta por trabalhar com documentos

escritos, aqueles que já estão em bibliotecas ou arquivos.

Segundo as historiadoras Ângela Gomes e Mônica Almeida, a moeda é um

símbolo de identidade nacional, assim como a bandeira e o hino, sendo a numismática

responsável por atribuir o reconhecimento dessas fontes que vão além de peças de

museu ou colecionismo. Elas nos lembram também que

[...]a numismática é uma das mais antigas disciplinas entre as chamadas

ciências auxiliares da história. A cunhagem e impressão de moedas e

medalhas com imagens, símbolos, divisas etc, tornaram-nas, há muito,

documento de grande valor e importância histórica.”(GOMES:

ALMEIDA, 2002, p.7).

Essas autoras tratam da representação monetária nas moedas do período

Republicano Brasileiro. Com a passagem do Império para a República, a esfinge do

imperador Dom Pedro foi substituída pela figura feminina10

, representando a Republica

e a liberdade, além das 21 estrelas encontradas na orla das moedas que representam os

estados da federação. Ainda é possível encontrar nas moedas da república homenagens

a homens públicos que exerceram alguma função de relevância social, como o Visconde

de Mauá, o Barão do Rio Branco ou até mesmo o Padre José de Anchieta.

10

A figura faz alusão a Marianne, representação simbólica da República Francesa.

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As historiadoras ressaltam a importância de se trabalhar com a numismática no

ensino de história, pois além de constituir uma fonte importante para a historiografia, as

moedas estão presentes no cotidiano da vida dos estudantes, que muitas vezes atentam

apenas para a importância econômica e não conhecem os significados simbólicos que

elas carregam em suas faces.

Para a realização deste trabalho, tivemos como ponto de partida o baile de

coração de Dom Pedro I em 1822. Após a independência no Baile da Coroação ele iria

ofertar moedas de presente aos convidados, no entanto, ao ver seu busto retratado nelas,

mandar recolhê-las, pois não teria aprovado sua imagem tal qual foi representada nelas.

Isso ocorreu após a volta Dom João VI, que levou consigo as riquezas do Banco

do Brasil, Dom Pedro I designou que Zeferino Ferrez e os cunhadores da Casa da

Moeda do Rio de Janeiro fizessem moedas com a sobra do ouro que não havia sido

levado por Dom João, pois para comemorar sua ascensão ao trono imperial e

homenagear a Independência do Brasil ele iria oferecer um baile onde seria coroado no

dia 3 de dezembro daquele mesmo ano e iria presentear as famílias nobres que ali

estariam presentes.

Os cunhadores tiveram pouco tempo para a elaboração e cunhagem dessa

moeda, fazendo com que o imperador não acompanhasse o processo de cunhagem. Ele

não esperava que as moedas tivessem traços semelhantes às moedas de Portugal, mas

sim, ver sua face gravada como uma referência à autoridade política que iria garantir o

valor da moeda e o brasão do império como marca do período em que se encontravam

aqui no Brasil.

Dessa forma, foram cunhados apenas 64 exemplares. Cabe ressaltar que o seu

valor não estava explícita na face da moeda, mas sim no peso, pois naquela época o

valor das moedas estava na qualidade do material e no peso que era estabelecido. No

caso da moeda que Dom Pedro mandou fabricar, seu valor é equivalente a 6.400 réis,

ela continha o ano de 1822 e na orla: “PETRUS. I. D. G. BRASILIAE. IMPERATOR”

que quer dizer: “Pedro I, pela graça de Deus, Imperador Brasileiro”, e na outra face o

Brasão do império:

Armas do Brasil Império, a esfera armilar atravessada pela cruz da

ordem militar de Cristo dentro de uma bordadura circular, carregada de

dezenove estrelas. Em círculo, entre os braços da cruz, as letras – IN

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HOC SIG VIN (com este sinal vencerás). Coroa Real, forrada de ouro.

O escudo é sustentado por dois ramos floridos e frutados de fumo e

café, atados com o laço nacional. (MOEDAS DO BRASIL)

Essa foi a primeira moeda do Brasil Império que ficou conhecida como “Peça da

Coroação”, sendo a mais importante da numismática brasileira. (Imagem 03 do Anexo)

No dia de 3 de dezembro de 1822, durante o baile, Dom Pedro I tem acesso as

moedas e percebe que não estava da forma que ele esperava, pois no anverso estava seu

busto desnudo, coroado com uma coroa de louros, o que representava um imperador

romano “essa coroa de louros era uma representação comum nos escudos dos

legionários romanos a partir do século II” (FUNARI, 2012, p. 74). Sua circulação foi

suspensa, e o erro só pôde ser consertado no ano seguinte, em 1823, quando sua

representação sai como o esperado, de uniforme militar, uma vez que ele era militar e

sem a cora de louros. (Imagem 04 do Anexo)

O fato de Dom Pedro I ter renegado sua forma como sua imagem havia sido

representada e exigido uma nova representação tal qual ele almejava, foi o grande

incômodo e o grande ponto de partida para o desenvolvimento deste trabalho, apesar de

nosso personagem não ser Dom Pedro I e sim seu filho, Pedro II. Supõe-se que este

também tinha uma certa preocupação com sua imagem pública e como ela seria

propagada dentro da monarquia.

Assim, a numismática pode contribuir de forma significativa para o

conhecimento das sociedades a partir de uma infinidade de assuntos que são pertinentes

à pesquisa histórica. Através de seus estudos podemos identificar a forma de governo de

um país, a língua falada e a religião praticada. É possível identificar, também, suas

riquezas naturais ou os grandes monumentos de relevância histórica, bem como os

personagens que fizeram parte da história do país e foram escolhidos para estampar sua

face nas moedas como forma que homenagear e manter viva a imagem desses

personagens que não estão entre nós.

É caso, por exemplo, da Rússia, que homenageou o chefe de Estado russo Lenin,

que, segundo o historiador Eric Hobsbawm (2007, p.46), foi "o personagem mais

influente do século XX”. Temos também o caso de Cuba, que homenageou o

revolucionário Che Guevara, incluindo a palavra de ordem da Revolução Cubana Pátria

o Muerte, na orla das moedas; ou até mesmo o Brasil, que, homenageou vários

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brasileiros ilustres como artistas, escritores e poetas no período republicano. Quanto aos

monumentos podemos destacar o Egito que cunhou as famosas pirâmides nas moedas, a

Itália que estampou o grande anfiteatro, o coliseu romano em diversas moedas ou o

Brasil que com o apoio da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação,

a Ciência e a Cultura) emitiu as moedas comemorativas dos 300 anos de Ouro Preto

para divulgar a cidade como patrimônio da humanidade.

Eventos históricos são momentos propícios para a emissão de moedas

comemorativas. Para as Olimpíadas de 2016, por exemplo, estão sendo cunhadas

moedas de um real, mostrando no reverso as diversas modalidades de esportes

existentes nos jogos olímpicos. O próprio Branco Central já foi tema de homenagem,

devido à comemoração dos 40 anos de sua criação, em 2005, e, recentemente dos 50

anos. Outros eventos como o cinquentenário da declaração dos Direitos Humanos ou do

centenário de nascimento de Juscelino Kubitschek também foram motivo alusivo e

comemorativo a serem representado nas moedas.

A numismática nos ajuda a compreender também as formas de governo adotadas

pelas nações. Em monarquias, pelo grande valor simbólico que lhe é atribuído, a

numismática tem marcado uma forte presença. Nelas a numismática não está presente

apenas com a preocupação de retratar eventos comemorativos, valores culturais,

arquitetônicos. Muitas vezes, a preocupação maior está em enaltecer a própria imagem

do monarca perante os seus governados.

Isso aconteceu com Luiz XIV da França, o Rei Sol, cuja imagem pública “...foi

tema de um número considerável de estudos feitos por especialistas em arte, literatura,

numismática e assim por diante.” (BURKE, 1992, p. 13). As representações de Luiz

XIV nas moedas e medalhas foram inúmeras. Burke diz que elas representaram o

monarca em diversas ocasiões de sua vida, chegando a ser cunhado um número superior

a 300 medalhas que apresentavam a imagem no rei em sua face.

Assim, o Rei Sol ocupa um lugar importante no imaginário coletivo francês, as

formas utilizadas por ele e seus ministros para propagação das imagens foram as

mesmas utilizadas por Dom Pedro II, como mostramos no capítulo anterior, e suas

imagens também foram se modificando ao longo dos anos devido ao seu longo reinado,

que durou 72 anos.

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Outro monarca que merece atenção é Dom João VI, o clemente, da dinastia de

Bragança. A partir de 1815, tornou-se príncipe regente do Reino Unido formado por

Portugal, Brasil e Algarves, fazendo com que sua representação nas moedas estivesse

presente em todos esses reinos. As casas das moedas do Brasil e de Portugal tinham a

dupla função de cunhar nas moedas a imagem do monarca que passou a ser difundida

em grande escala. E, por fim, temos Dom Pedro II do Brasil, personagem central deste

trabalho e que tem um papel de grande importância para a numismática brasileira.

O conjunto de imagens de personagens e monumentos, Raul Girardet chama de

“constelações mitológicas”, ou seja, conjunto de construção mítica sob o domínio de um

mesmo tema, reunidos em torno de um núcleo central. Percebe-se que a tentativa de

consagrar personagens humanos em seres superiores através do conjunto de imagens ou

símbolos, faz deles o núcleo central onde tudo gira ao seu redor. O autor se refere aqui à

autoridade suprema que é imposta aos indivíduos de uma nação com a intenção de criar

um imaginário mitológico dentro da sociedade onde o mito será perpetuado.

4.2 A numismática e a imagem de Dom Pedro II

Este capítulo propõe-se a refletir sobre a importância do valor simbólico da

numismática brasileira durante o período do Segundo Reinado. No que tange ao nosso

recorte em particular, é possível constatar que durante o reinado de Dom Pedro II

existiu a preocupação de valorizar e guardar as moedas como documentos importantes

para a compreensão da história imperial. Segundo o regulamento do arquivo público do

império, anexado ao Decreto N° 6.164 de 24 de março de 1876, assinado pelo senador

José Bento da Cunha e Figueiredo, o arquivo possuía uma coleção de medalhas e

moedas cunhadas para comemorar acontecimentos relevantes do império e outra

coleção de moedas do Brasil, cunhadas em metal ou papel e que foram emitidas no meio

circulante.

Para Joaquim Pires Machado Portella, diretor do Archivo, a numismática deve

ser reconhecida como guardiã de monumento histórico, sendo elas as moedas. Segundo

ele, “o Archivo não é um gabinete de numismática; mas sendo o repositório de uma das

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fontes da história pátria – os documentos escriptos, devem também possuir da outra

fonte – monumentos – os numismas que indiquei”. (PORTELLA. p. 11. 1878)

Essa coleção de medalhas e moedas era a única sobre documentos do acervo

composto pela cultura material, os demais documentos eram formados por documentos

escritos, como livros, relatórios, mapas ou bulas. Assim, percebemos que as moedas do

império brasileiro possuem relevância histórica desde o período em que elas foram

confeccionadas, da mesma forma que os outros documentos também possuíam e que

infelizmente com o passar do tempo foram perdendo seu valor, não apenas financeiro,

mas também histórico.

O Segundo Reinado adotou o padrão monetário réis, influenciado pela coroa

portuguesa e oficializado no Brasil em 1833 através da lei n° 59. Esse sistema

monetário permaneceu em nosso país até 1942, quando o então presidente Getúlio

Vargas, substitui o réis pelo cruzeiro como sistema monetário do Brasil.

Para a historiadora Ana Maria Mauad, as visitas feitas pelo imperador D. Pedro

II às fazendas de café reforçavam o laço entre a província e a corte, além de estimular a

distribuição de comendas, honrarias, brasões e até mesmo títulos. Essa relação foi

importante para manter a imagem do imperador como um ser soberano, aquele

responsável por agraciar os senhores. Segundo a autora, “a viagem dele contribuía para

ajudar a classe senhorial a construir sua autoimagem à semelhança da imagem do

império”(MAUAD, 1997, p. 184)

A historiadora ressalta a visita ao Vale da Paraíba, em 1848, onde o imperador

sempre era recebido por um importante fazendeiro em meio a muitos festejos,

banquetes, apresentações de piano ou baile e descanso, tudo isso era importante para

manter laços entre essas pessoas e a corte. A corte era a representação dos senhores de

café e era por meio dela que eles conseguiam investimentos para a região, por isso as

visitas do imperador eram um evento importante. Pois, junto ao imperador era criada

uma expectativa de prosperidade econômica da região.

Aqui temos Dom Pedro como personagem humano que através das honrarias

distribuídas aos fazendeiros, enaltece sua própria imagem de imperador. As imagens

produzidas nessas e em outras ocasiões tiveram um papel importante na sociedade do

século XIX. Numa sociedade em que o número de analfabetos era grande, o trabalho

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dos artistas, como vimos no capítulo anterior, possibilitava a transmissão de uma

mensagem imediata, sempre fundida na autorrepresentação do monarca. Para Mauad

(1997, p. 197)

Nenhuma outra família gastou tanto com fotografia quanto a imperial.

Dom Pedro II é sempre lembrado nos livros de história da fotografia

como um dos grandes incentivadores dessa atividade [...]. As

fotografias pertencentes à família imperial incluem uma gama variada

de temas: desde os retratos posados mais formais, passando pela

imagem do cotidiano, até os panoramas e os registros das solenidades

do Império em diferentes províncias.

Voltemos ao período que antecede o golpe da maioridade e de sua coroação

como rei. O período regencial tem sua importância devido às crises políticas e

constantes revoltas que ocorreram no Império do Brasil. As agitações políticas,

envolvendo os liberais, defensores ao mesmo tempo da autonomia das províncias e de

um poder centralizado, e os restauradores, que queriam o retorno de Dom Pedro I ao

trono, foram responsáveis pelo clima de tensão e divisão no Império, desembocando em

diversas revoltas, conforme mostramos no primeiro capítulo.

O período regencial não foi estampado nas moedas, nelas não está presente a

esfinge dos regentes como Diogo Antônio Feijó, Pedro de Araújo Lima ou qualquer

outro regente que esteve à frente do país nesse período. Ao contrário, em 1832, já no

período regencial, com a ausência de monarca em condições de governar, a esfinge de

Pedro já aparecia nas moedas como um príncipe menino, aquele que, mesmo inocente,

poderia salvar Império de uma possível divisão.

A presença da esfinge do monarca nas moedas desse período foi importante não

para demostrar status ou autoridade, mas sim para manter a nação unida em nome de

alguém que futuramente a administraria, já que em questão de tempo o príncipe-menino

seria reconhecido como tal e começaria a exercer sua função de mandatário maior do

Estado imperial.

Isto é perceptível no primeiro conjunto de moedas. A primeira moeda cunhada

com esfinge de Dom Pedro II (Imagem 05 do Anexo) que foi fabricada a partir de 1832,

sendo produzida e inserida no meio circulante durante toda a regência. A mesma moeda

tinha valor facial de 4.000, 6.400 e 10.000 réis. A imagem que a moeda traz, apresenta

Pedro como o unificador, pois diante das diversas crises políticas e das constantes

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revoltas, havia a necessidade de propagar a imagem do menino muito querido pela

população desde seu nascimento (CARVALHO, 2007), e a reprodução dessa imagem

em larga escala, contribuiu para controlar as tensões sociais existentes e desde já ir

popularizando a imagem no futuro imperador. Pois, apesar das fragmentações e da

instabilidade causada pela Regência, o Brasil estava unido em torno de um monarca.

As tentativas para coroar Dom Pedro desde criança foram diversas, mas isso só

foi possível com o Golpe da Maior Idade, em 1840, quando ele, com apenas 15 anos, é

coroado como imperador constitucional do Brasil. Sua coroação foi um evento único

que iniciou uma longa fase de nossa história, fazendo dele o líder de todo o país.

A segunda imagem (Imagem 06 do Anexo) foi cunhada em 1841, ano posterior

ao golpe da Maioridade e continuou a ser fabricada até 1848, com valor facial de 10.000

réis. Essa foi a primeira imagem que se assemelhava a outras monarquias europeias,

cuja tradição era representar seus líderes em moedas só após a coroação. A moeda trazia

no anverso não a figura do príncipe menino, mas a imagem do imperador fardado de

almirante, patente mais alta da Marinha brasileira. A imagem do militar salvador foi

importante para “recolocar a ordem na casa” (GIRARDET, 1987) e reorganizar o Estado

nacional. É importante também explorar os aspectos que se podem extrair dessa imagem

que apresenta o imperador como oficial das forças navais no período de 1840. Nessa

época, a Marinha estava passando por mudanças, entre as quais estavam a criação da

Escola de Aprendiz de Marinheiro e a aquisição de novas armas e navios.

Segundo o almirante João Prado Maia, o Brasil chegou a estar “entre as

potências navais do universo” (MAIA, 1975, p. 210). Embora percebamos um exagero

nas palavras do almirante quanto à grandeza da Marinha brasileira, o fato é que Dom

Pedro II não está fardado de almirante por acaso, com essa atitude ele simbolizava o

processo de transformação vivenciado pela Marinha naquele período. Apresentar-se

com o status de almirante era também uma herança europeia, todos os monarcas

europeus estavam intimamente ligados à Marinha e o jovem imperador se apropriou

dessa tradição aqui no Brasil.

José Murilo de Carvalho, nos chama atenção para alto número de oficiais que a

Marinha possuía devido ao interesse que as famílias tinham em inserir seus filhos na

instituição. O recrutamento de jovens possibilitou maior visibilidade à corporação.

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Durante o período imperial, a Marinha manteve um padrão de

recrutamento mais alto do que o do Exército. Podemos encontrar

almirantes filhos de importantes políticos, como o barão de Jaceguai, de

famílias nobres, como Saldanha da Gama, e filhos de oficiais,

principalmente da própria Marinha. No depoimento de um oficial dessa

força, ‘ a oficialidade da marinha sempre foi, ao menos uma parte, das

mais escolhidas da alta sociedade do Brasil’ (CARVALHO, 2005, p.

19)

O segundo conjunto monetário, apresenta outras duas moedas com a imagem do

imperador em sua fase adulta. A primeira delas foi cunhada a partir de 1849 até o ano de

1951, nos valores de 10.000 e 20.000 réis, (Imagem 07 do Anexo). Nesta última, Dom

Pedro II aparece como um homem mais maduro. Em suas vestimentas é possível

perceber o papo de tucano, arte plumária tipicamente dos índios brasileiros,

confeccionada com penas e plumas da ave brasileira, cujo símbolo já havia sido

utilizado pelo pai na cerimônia de coroação adornando seu manto com murça de pena

de tucano. Provavelmente, tinham eles a preocupação de vincular a tradição indígena à

cultura da nova nação.

Segundo Lilia Schwarcz, desde quando Dom Pedro II se integrou ao Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, ele sempre teve a preocupação em eleger o indígena

como símbolo nacional, visto que o indígena muitas vezes era apresentado como um

bárbaro. A ideia, então, era incorporá-lo à cultura nacional como um elemento

importante na composição da civilização brasileira. “O manto do soberano representará

o céu do Brasil e a “murça” do imperador será feita de penas de papo de tucano: uma

homenagem aos caciques desta terra tropical” (SCHAWARCZ, 2001, p.8)

Manoel Salgado lembra que desde a criação do Instituto Histórico Geográfico

Brasileiro, em 1838, houve a preocupação de pensar o que seria a nação brasileira e o

conteúdo ao qual ela estaria associada. Na tentativa de construir o retrato da Nação, a

coroa elaborou projetos e fez diversos investimentos em cargos públicos e em bolsas de

estudos para que fosse possível atingir tal objetivo. Dentre eles, podemos destacar o

estudo da língua indígena brasileira e outras tarefas que contribuíram para definir a

cultura brasileira.

O projeto de construção da nação independente e da cultura nacional resultou na

valorização de elementos tais quais a imagem da moeda aponta. A valorização dos

nativos e da cultura à pertenciam atinge a cultura letrada europeia presente no Brasil e

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ao próprio monarca que se torna adepto da cultura do outro. Segundo Salles, (2013,

p.66) “Era preciso trazer marcas da “cor local” para obter a necessária legitimidade”.

Nesse aspecto, podemos perceber uma reapropriação dos símbolos nacionais, em

que Dom Pedro agora não tem mais a preocupação de aparecer com valores europeus e

sim com valores genuinamente brasileiros, de forma que ele mesmo se identifica como

tal e mostra seu interesse em propagar os valores indígenas como pertencentes à

identidade nacional brasileira.

A partir de 1851, uma nova série de moedas foi cunhada nos valores de 5.000,

10.000 e 20.000 réis, mostrando uma imagem mais modesta do imperador com barbas

curta e busto nu (Imagem 08 do Anexo). Nesta e mas outras moedas, a inscrição

PETRUS SECUNDUS DEI GRATIA CONSTITUTIONALIS IMPERATOR ET

PERPERTUUS BRASILIÆ DEFENSOR11

, presente na orla das moedas, tem por

objetivo evidenciar a questão do direito divino que sustentava a ideia de que Deus

escolhia um único rei para estar no poder. A legitimidade era considerada uma dádiva

divina e a soberania era exercida como um direito próprio do imperador, pois era Deus

quem havia concedido esses privilégios a ele, de forma que a própria existência do

imperador era um fator para que Deus desejasse a permanência do império brasileiro.

Outra característica comum a todas as moedas em análise e a outras moedas de

menor valor intrínseco que também circularam nesse período é o brasão do império

estampado no anverso ou reverso dessas moedas. Esse brasão ganhou legitimidade com

Dom Pedro I que assinou o Decreto N° 03 de 18 de setembro de 1822, regulamentando

a bandeira do Reino do Brasil da seguinte forma: “A Bandeira Nacional será composta

de um paralelogramo verde e nele inserido um quadrilátero cor de ouro, ficando no

centro deste o Escudo de Armas do Brasil”. O escudo de armas estava inserido nas

moedas, compondo mais um, dentre tantos outros símbolos nacionais que circulavam

entre os povos brasileiros.

Idealizada pelo artista francês Jean Baptiste Debret, esse primeiro símbolo foi

denominado de Bandeira do Reino do Brasil, adotada durante um curto período de

tempo, circulou durante quase três meses, período da regência de Dom Pedro I. Ela foi

emitida em 7 de setembro de 1822, com a Independência do Brasil e perdurando até a

11

Que quer dizer: D. Pedro segundo, por graça de Deus, imperador constitucional e defensor perpétuo do

Brasil.

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coroação de Dom Pedro I em 1° de dezembro daquele mesmo ano, nela se conservou a

coroa real existente na bandeira do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, sendo

uma coroa baixa com fundo vermelho.

Com a coroação de Dom Pedro I em 1° de dezembro de 1822, a bandeira recebe

sua primeira modificação e se torna a bandeira imperial do Brasil,

Havendo sido proclamada com a maior espontaneidade dos povos a

Independência política do Brasil, e sua elevação à categoria de Império

pela minha solene aclamação, sagração e coroação, como seu Imperador

Constitucional e Defensor Perpétuo: hei por bem ordenar que a Coroa

Real que se acha sobreposta no escudo das armas estabelecido pelo meu

imperial decreto de 18 de setembro do corrente ano, seja substituída

pela Coroa Imperial, que lhe compete, a fim de corresponder ao grau

sublime e glorioso em que se acha constituído este rico e vasto

Continente (COIMBRA,1979, p.287).

O brasão passa a ser representado com a coroa própria do novo imperador, uma

coroa mais alta que a anterior, esse brasão foi o que perdurou durante maior parte do

império brasileiro, as demais características foram conservadas, dentre elas a esfera

armilar, cruz da ordem de cristo e os ramos de café e tabaco unidos pelo laço nacional

do Brasil.

Posteriormente, durante o reinado de Dom Pedro II, houve uma modificação

quanto ao número de estrelas que representava as províncias. De 1912

estrelas passa a ter

20, tudo isso porque em 1829 a província da Cisplatina é desmembrada do Brasil, sendo

incorporadas posteriormente outras duas: uma foi a província do Amazonas criada em

1850 e a outra a província do Paraná criada em 1853.

As cores da bandeira representavam as cores das famílias reais do primeiro

casal de imperadores: o amarelo simbolizava a Casa de Lorena dos Habsburgo, cor

usada pela família imperial austríaca de dona Maria Leopoldina, filha do imperador da

Áustria; o verde representava a cor da Casa de Bragança, dinastia de Dom Pedro I. Essa

ideia foi forjada por Dona Leopoldina, que em carta à corte da Áustria fez referência às

cores da bandeira “verde dos Braganças e do amarelo-ouro dos Habsburgos”

(SILVEIRA, 1972, p. 230).

12

As 19 províncias em 1822: Pará, Espirito Santo, Maranhão, Rio de Janeiro, Piaí, Minas Gerais, Ceará,

São Paulo, Rio Grande do Norte, Mato Grosso, Paraíba, Santa Catarina, Pernambuco, Rio Grande do Sul,

Alagoas, Goiás, Sergipe, Cisplatina, Bahia.

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A junção da imagem do império com a imagem do imperador presente no

anverso e reverso das moedas formava um grande conjunto de símbolos nacionais que

representavam o Brasil. Os brasileiros tinham contato diariamente com as moedas e

com as imagens estampadas nelas, uma vez que as mesmas circundavam em todo o

território brasileiro.

Por fim, temo o ultimo conjunto de moedas. As duas últimas moedas que foram

confeccionadas quando Dom Pedro II possuía cerca de 44 anos, nelas, ele aparece com

o rosto coberto com uma longa barba. Elas foram cunhadas com materiais diferentes das

anteriores, que eram de ouro. A primeira é de prata, cunhada nos valores de 2.000,

1.000, 500 e 200 réis e a segunda é uma moeda de bronze, cunhada nos valores de 10,

20 e 40 réis (Imagens 09 e 10 do Anexo).

As imagens oficiais contrastam com as imagens construídas pelos grupos de

oposição ao imperador. Os republicanos queriam a queda da Monarquia e por isso se

utilizaram dos meios de comunicação para atingir o imperador, que foi alvo de várias

críticas e chacotas. A imprensa chegou a propagar charges do monarca dormindo, ao

invés de ler as notícias dos jornais13

. O intuito era mostrar que o soberano estava

desatento e não se importava com a realidade do Brasil. Em outra caricatura, é possível

ver o imperador caindo do trono14

, o que insinuava que o fim da Monarquia estaria

próximo. A intenção dos chargistas era difundir uma imagem negativa da Monarquia e

do próprio monarca, para ganhar adeptos às ideias republicanas nas camadas inferiores

da sociedade. Como nos lembra Mello (2007, p. 11) “As charges, as caricaturas, os

epítetos que se arranjavam para d. Pedro II, divulgados não só pela imprensa diária e

pela literatura, mas nas ruas e nas revistas ilustradas – muito em voga na época –

atingiam um público mais extenso do que alfabetizado”.

Em contrapartida, encontramos as imagens oficiais, estando incluídas as moedas

que circularam no Império e que atingiam um público ainda maior dos jornais da época.

As moedas apresentando a imagem de um imperador velho, com o rosto coberto de

barba, começaram a circular no final da década de 1860 e permaneceram no meio

circulante até a queda da Monarquia e instauração da República, em 1889. Segundo

Castro (2009, p.150), “o novo regime cunhou moedas de ouro e prata que substituíam a

13

Capa da Revista Ilustrada, ano 12, n. 450, 1887. 14

Revista Ilustrada. 21 jan. 1882.

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esfinge do velho imperador pela alegoria da República, representada por uma figura

feminina”, proporcionando uma aproximação com a alegoria da República francesa,

Marianne, símbolo nacional da França que é retratada como a deusa da liberdade, ícone

da democracia e que está presente em várias moedas do país.

Entendemos esse momento como um período de crise de legitimidade em que há

um acirramento da luta pelo poder. Girardet (1987, p.89) ressalta que é “nesse momento

de desiquilíbrio, de incertezas ou de conflito que estão cronologicamente situados os

apelos mais veementes à intervenção do herói salvador”. As imagens que os

republicanos difundiram contribuíram aos poucos para a conquista do poder feita por

eles mesmo pouco tempo depois. Do salvador da unidade e da ordem, em crise, já não

se espera nenhum ato heroico, a não ser aceitar o exílio.

A moeda brasileira do século XIX, além de um objeto de troca que serve para

medir o preço das mercadorias, agrega valores simbólicos, cujo destaque é a figura do

imperador, que a usa para propagar sua imagem e validar seu poder em diversas

dimensões, dentre elas a política, a econômica e a social.

Ao ser retratado nas moedas, o imperador se apresenta como um ser superior aos

súditos, transmitiindo distinção, poder e status. Ao mesmo tempo em que se aproxima

dos cidadãos, se distancia dos súditos, por se tratar de um ser único e superior que é

identificado como construtor do estado nacional, tarefa não concluída pelo seu pai, Dom

Pedro I. A imagem do monarca nas moedas era garantia do seu valor, uma vez que

tratava-se de uma autoridade legitimamente reconhecida não apenas pelos negociantes,

mas por toda a nação.

As moedas se tornaram importante instrumentos de para propagação político-

ideológica da Monarquia, mesmo dentre aqueles que não sabiam ler. Todos ao olharem

para o busto presente nas moedas poderiam reconhecer o soberano e governante da

nação brasileira.

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CONCLUSÃO

Para Raul Giradert (1987), o trabalho com o mito tem por base imagens

construídas por meio de narrativas difundidas em uma sociedade e que são incorporadas

a um imaginário de uma determinada época. As imagens construídas sobre Dom Pedro

se assemelham ao mito político do Salvador.

São diversos os instrumentos que atribuem sentido ao mito, parte dos quais

trabalharemos aqui, especialmente no que diz respeito aos historiadores, aos artistas e

principalmente aos responsáveis pela emissão de moedas. Juntos compõem um valor

simbólico que levam à construção do mito do Salvador. O Salvador surge em momentos

difíceis de uma sociedade e suas ações traduzem o sentimento de um povo. Nesse

sentido, para o autor, na história da humanidade houve sempre espaços para atuação de

Salvadores.

Dentre os quatro modelos do conjunto mitológico do Salvador, proposto por

Giradert foi possível perceber que o arquétipo do Cincinnatus e o arquétipo de Sólon

são os que mais se aproximam da imagem do imperador Dom Pedro.

O arquétipo do Cincinnatus está associado a alguém que se doou à pátria com o

intuito de protegê-la e apaziguá-la. É o salvador de um mundo em perigo e que usa da

prudência e da moderação para levar tranquilidade e esperança de dias melhores.

Os grupos políticos ainda durante o período regencial já utilizavam a imagem de

Dom Pedro, mesmo quando criança, tendo em vista proteger seus os privilégios

econômicos numa sociedade socialmente muito hierarquizada. A maioridade acontece

em um momento em que havia dúvidas quanto ao futuro da recente nação. Ao tornar

realidade a maioridade Dom Pedro, ainda adolescente, surge como salvador que vai

garantir a continuidade do Império e a sua unidade político-territorial. Ele atendeu aos

interesses senão da nação, pelo menos dos grupos políticos liberais e conservadores.

Desde então, a sua imagem está associada à defesa da integridade territorial e da nação.

No Brasil, o Estado foi construído antes da nação. Houve uma grande

preocupação do imperador em difundir valores tendo em vista a construção de uma

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identidade para o Brasil. Foram adotadas diversas estratégias com esse propósito. Entre

elas, o uso de imagens nas moedas que foram cunhadas durante o Segundo Reinado.

Os anversos e reversos das moedas foram espaços usados para difundir tanto a

imagem do imperador quanto a do Império. Nesse sentido, as moedas serviam como

valor de troca, mas difundiam valores culturais outros que estavam em sintonia com os

propósitos da política da época.

Como se pode perceber no primeiro capítulo, parte da historiografia constrói a

representação do monarca como alguém que doou a sua vida à pátria e à proteção da

nação, o que a aproxima de uma das características atribuídas ao arquétipo do

Cincinnatus: “fez doação de sua pessoa” à pátria. Isso fica evidente quando José Murilo

de Carvalho (2007) afirma que investimentos educacionais foram feitos no sentido de

fabricar um príncipe perfeito. Diariamente o príncipe-menino dedicava diversas horas

aos estudos. Havia uma disciplina rígida tendo em vista formar uma personalidade

baseada na responsabilidade e na prudência.

O modelo do legislador, do homem providencial, refere-se a alguém que tem a

capacidade para resolver questões de forma sábia e prudente. Alguém que não se orienta

por atitudes extremas e que se apresenta como pai fundador de uma nova ordem.

A imagem de Dom Pedro está associada também à de um líder político que era

favorável à conciliação dos grupos políticos durante o seu reinado. Fez com que liberais

e conservadores se revezassem no poder ao longo do tempo. O monarca era a favor do

fim da escravidão e conseguiu acabar com ela, mesmo que isso tenha levado ao fim do

seu governo e da própria Monarquia.

Portanto, a imagem de Dom Pedro II projetou-se na sociedade oitocentista e

chegou até os dias atuais, contando com isso a colaboração de diversos meios e

profissionais: moedas, pinturas. Historiadores, artista e o próprio Dom Pedro II com

seus diários. Embora existam diversas imagens, predominam as representações

positivas. Ele e seu governo são sempre associados a um grande legado de

desenvolvimento, de liberdade de imprensa e de preocupação com o futuro do país.

Preparada para governar, ele se transformou em um escravo das leis e do dever.

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ao decreto N 6.164 de 24 de março de 1876. 24 de março de 1876. Palácio do Rio de

Janeiro.

PORTELA, Joaquim Pires Machado. Relatório apresentado pelo diretor do archivo

publico em 3 de março de 1878. 3 de março de 1878. Archivo publico do império.

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ANEXOS

Imagem 01: quadro pintado por Armand Julien Pallière (1784 – 1864)

Imagem 02: fotografia retirada por Mark Ferrez (1843 – 1923)

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Imagem 03: “Peça da coroação” Dom Pedro I com a coroa de louros;

Imagem 04: Dom Pedro I com uniforme militar;

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Imagem 05: Dom Pedro II príncipe menino;

Imagem 06: Dom Pedro II almirante;

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Imagem 07: Dom Pedro II e o papo de tucano;

Imagem 08: Dom Pedro II com o busto nú;

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Imagem 09: Dom Pedro II com longa barba;

Imagem 10: Dom Pedro II com longa barba.