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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS ALAIM PASSOS BISPO LEPRA Doença, dor e medo Natal 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ALAIM PASSOS BISPO

LEPRA Doença, dor e medo

Natal 2019

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ALAIM PASSOS BISPO

LEPRA Doença, dor e medo

Orientadora: Dra. Maria da Conceição de Almeida

Banca examinadora: Dra. Margarida Maria Knobbe Dr. João Bosco Filho Dr. Fagner Torres de França Dr. Alexandro Galeno Araújo Dantas Suplentes: Dra. Josineide Silveira de Oliveira Dr. Luiz Carvalho de Assunção

Natal 2019

Tese de Doutorado em Ciências Sociais submetida à avaliação da banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN.

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Bispo, Alaim Passos.

Lepra: doença, dor e medo / Alaim Passos Bispo. - 2019.

188 f.: il.

Tese (doutorado) - Ciências Humanas, Letras e Artes,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria da Conceição de Almeida.

1. Segregação - Tese. 2. Lepra - Tese. 3. Complexidade -

Tese. I. Almeida, Maria da Conceição de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 316.644:616-022.7

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748

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TERMO DE APROVAÇÃO

ALAIM PASSOS BISPO

LEPRA Doença, dor e medo

Tese de doutoramento submetida à defesa como pré-requisito parcial para conferir o

grau de Doutor em Ciências Sociais pelo programa de pós graduação em Ciências

Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.

Banca examinadora:

Maria da Conceição de Almeida – Orientadora_________________________________

Doutora em Ciências Sociais (PUC-SP)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Alexandro Galeno Araújo Dantas____________________________________________ Doutor em Ciências Sociais (PUC-SP) Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Fagner Torres de França__________________________________________________ Doutor em Ciências Sociais (UFRN) Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Margarida Maria Knobbe__________________________________________________ Doutora em Ciências Sociais (UFRN) Faculdade Estácio Natal João Bosco Filho________________________________________________________ Doutor em Educação (UFRN) Universidade Estadual do Rio Grande do Norte - UERN

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Suplentes:

Josineide Silveira de Oliveira_______________________________________________

Doutora em Educação (UFRN)

Universidade Estadual do Rio Grande do Norte - UERN

Luiz Carvalho de Assunção________________________________________________

Doutor em Ciências Sociais (PUC-SP)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Natal, 11 de fevereiro de 2019

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A Alfeu e Glória, meus amados pais, com muito carinho. Andréia (memória) e Amauri, os meus irmãos e referências de vida.

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AGRADECIMENTOS

A realização deste estudo é o resultado de um esforço que envolveu a

colaboração direta e indireta de muitas pessoas, afinal não se faz nada sozinho. Sem

essas pessoas esta tese não poderia ter sido escrita. Por isso, manifesto os meus

sinceros agradecimentos a todas as pessoas que contribuíram para a realização

dessa pesquisa e, de forma particular:

À professora Dra. Maria da Conceição de Almeida, que assumiu a minha

orientação de modo decisivo, contribuindo sempre de maneira experiente, criativa, e,

sobretudo, inteligente na condução da pesquisa. Sempre serei muito grato a todos os

seus ensinamentos. A ela devo também a ampliação da minha percepção para uma

nova concepção de pesquisa, ciência e ser humano que modificaram a minha forma

de perceber e viver o dia a dia. Serei eternamente agradecido.

Esse agradecimento é estendido ao Grupo de Estudos da Complexidade –

GRECOM, e a todos os professores, colegas e colaboradores. Em especial a

professora Dra. Josineide Silveira de Oliveira, que sempre apresentou inúmeras

contribuições para esta tese, desde os encontros de orientação nas reuniões

científicas do GRECOM, passando pela qualificação e chegando até a versão final da

tese. Essa presença constante, além da sua dedicação e compromisso permitiram

que me desenvolvesse nos estudos sobre a complexidade e consequentemente

enriquecesse o desenvolvimento da tese.

Agradeço ao professor Dr. Jaime Biella. Sua amizade com outro pesquisador, o

médico responsável pelo ambulatório de dermatologia do hospital Giselda Trigueiro e

doutorando da FIOCRUZ, Maurício Nobre, tornou possível a entrevista com o

interlocutor que viveu no hospital colônia, o seu Célio.

Assim, agradeço também ao médico e pesquisador da hanseníase, Dr.

Maurício Nobre, responsável pelo centro de referência em hanseníase no Rio Grande

do Norte, localizado no hospital Giselda Trigueiro. Agradeço, sobretudo, o fato de ter

intermediado o meu contato com o seu Célio.

A Dra. Maria do Carmo Queiroz, Médica responsável pelo ambulatório de

dermatologia, no hospital universitário Onofre Lopes – UFRN. A sua experiência com

a hanseníase contribuiu para aprimorar a minha compreensão sobre a doença.

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Agradeço ao coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências

Sociais, professor de disciplina na pós-graduação e avaliador desta tese de

doutorado, professor Dr. Alexandro Galeno Dantas. A sua participação nas reuniões

cientificas do GRECOM e nas avaliações das bancas de qualificação e doutorado que

pude assistir, foram fundamentais para a ampliação da minha leitura sobre as

Ciências da Complexidade.

Meu agradecimento especial aos pesquisadores e professores que aceitaram o

convite para compor a banca de defesa desta tese. Dessa maneira, agradeço a Dra.

Josineide Silveira de Oliveira, Dra Margarida Maria Knobe, Dr. Alexandro Galeno

Araújo Dantas, Dr. Luiz Carvalho de Assunção, Dr. Fagner Torres de França e Dr.

João Bosco Filho.

Agradeço também aos servidores que sempre prestaram valiosos serviços de

assistência na coordenação da pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade:

Otânio e Jefferson.

A elaboração desta tese também contou com o importante apoio do Instituto

Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí, que por meio dos seus

dirigentes concederam a minha liberação das atividades laborais para que pudesse

me dedicar exclusivamente à pesquisa de doutoramento. Registro o meu

agradecimento ao reitor Paulo Henrique, ao diretor geral do campus Pedro II,

professor Raimundo Nonato, e a diretora de Ensino professora Nalva Rodrigues.

A todos aqueles com quem conversei ou que entrevistei: estudantes,

enfermeiros, médicos, professores e especialmente o ex-paciente de hanseníase, seu

Célio. Meu sincero agradecimento pela confiança ao contar em detalhes os momentos

tão íntimos da sua vida e a sua experiência com a doença. Agradeço pela doação do

seu tempo, pela sua generosidade e compreensão.

E, é claro, um agradecimento muito especial à minha família, pois que me

ajudou muito, sendo decisiva para a realização dessa tese. Obrigado por toda

atenção e dedicação hora a hora, além da disposição e abdicação necessárias para a

realização desse trabalho. Cada um dos meus familiares foi fundamental na

realização e consolidação desse sonho.

Muito obrigado a todos (citados ou guardados na memória) que possibilitaram a

realização dessa experiência enriquecedora e gratificante da maior importância para

meu crescimento como ser humano e profissional.

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Nunca se fez nada grande

sem uma esperança exagerada

(Júlio Verne)

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RESUMO

A tese toma a segregação e o estigma, marcas da lepra, como referências para discutir os principais aspectos religiosos, políticos e científicos ligados à doença, a partir dos textos sagrados e de algumas doutrinas científicas do século XIX, e suas principais consequências na consolidação da leitura que a sociedade construiu em torno da lepra. São apresentadas as origens da doença do ponto de vista histórico e epidemiológico, além das principais implicações nas sociedades ao longo dos séculos. Analisamos as diferentes formas de tratar da doença tanto do ponto de vista fisiológico quanto na perspectiva social, discutindo o processo do isolamento compulsório sobretudo no Brasil. A discussão se apoia nas relações complexas que envolvem a internação compulsória de leprosos. A tese foi organizada a partir de três partes: lepra ao vivo, lepra e saúde pública e cenário macroscópio da lepra. A tese toda é permeada por uma entrevista, com um interlocutor que viveu com a lepra durante toda a sua vida e narrou o seu cotidiano a partir de declarações de momentos bem específicos da sua vida. Ao longo da tese será utilizada a terminologia lepra em respeito à tradição e, às vezes, o termo técnico hanseníase.

Palavras-chave: Segregação, lepra, hanseníase, complexidade, isolamento

compulsório.

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ABSTRACT

The thesis takes segregation and stigma, leprosy marks as references to discuss the main religious, political and scientific aspects related to the disease, from the sacred texts and some scientific doctrines of the nineteenth century, and its main consequences in the consolidation of the society has built around leprosy. The origins of the disease are presented, from a historical and epidemiological point of view. And its main implications in societies over the centuries. Analyzing the different ways of treating the disease both physiologically and socially. Discussing the process of compulsory isolation, especially in Brazil. The discussion is based on the complex relationships that involve the compulsory hospitalization of lepers. And it was organized from three parts: live leprosy, leprosy and public health, and macroscopic scenery of leprosy. The entire thesis is permeated by an interview with an interlocutor who lived with leprosy throughout his life, and narrated his daily life from statements of very specific moments of his life. Throughout the thesis will be used the term leprosy in respect to the tradition and sometimes, the technical term leprosy. Keywords: Segregation, leprosy, complexity, compulsory isolation.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CCHLA Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes GRECOM Grupo de Estudos da Complexidade HUOL Hospital Universitário Onofre Lopes IDCs Países em Desenvolvimento Inovadores OMS Organização Mundial de Saúde PNEH Programa Nacional de Eliminação da Hanseníase PPGCS Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais PQT Poliquimioterapia SUS Sistema Único de Saúde UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, 14

A LEPRA AO VIVO, 20

Sinapses, 20 Hospital Colônia em Natal: relato de uma quase vida, 23 Estigma, 60 LEPRA E SAÚDE PÚBLICA, 67 O mito da impureza e os textos sagrados, 75 Herança mecanicista e isolamento compulsório, 84 Do mito da impureza à compreensão da complexidade, 93 CENÁRIO MACROSCÓPICO DA LEPRA, 118

REFERÊNCIAS APÊNDICE

ANEXO

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INTRODUÇÃO

A presente tese se constitui no estado final da minha pesquisa de doutorado

desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

O primeiro capítulo apresenta uma entrevista com um paciente que viveu no

Hospital Colônia na Cidade de Natal desde a década de 1947 até o término do

período do isolamento compulsório no Brasil. Nesse capítulo, inicialmente a entrevista

será apresentada na íntegra, para em seguida ser exportada em fragmentos ao longo

do texto. Por questões de confidencialidade, serão feitas referências ao paciente por

meio da utilização de nome fictício.

O segundo capítulo discute a relação entre a segregação social e a doença, e

debate o papel das políticas de saúde eugenista e higienista na formação de uma

mentalidade segregacionista. Apresenta também uma breve diacronia do pensamento

científico cartesiano à concepção do pensamento complexo.

No terceiro é apresentada a doença desde a sua origem, passando pela

terapêutica, isolamento e a situação da doença no Brasil. Problematiza a doença

como questão de Saúde Pública a partir dos indicadores de etiologia, sintomatologia,

epidemiologia e terapêutica.

Ao longo da vida acadêmica sempre me interessei por estudos da Sociologia

da Saúde, talvez por ter sido influenciado pelo meu professor de graduação Paulo

César Alves, que na época pesquisava a Sociologia da Saúde. Durante a disciplina

que ministrava, Metodologia de Pesquisa, apresentou diversos exemplos de estudos

da Sociologia da Saúde e os métodos de pesquisa.

Talvez por isso tenha me tornado orientando do professor Paulo Alves em um

grupo de pesquisa de base,embora desde a graduação participasse de grupos de

estudo e pesquisa de base fenomenológica e de Sociologia americana como Erving

Goffman. Goffman foi o principal teórico que utilizei para discutir o estigma na minha

dissertação de mestrado.

Após concluir o bacharelado e o mestrado na área de estudos sobre a

hanseníase na Universidade Federal da Bahia cresceu a minha convicção de que

precisava continuar estudando o tema, pois muitas questões não foram respondidas,

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mesmo ao longo de dez anos, e certamente muitas outras continuariam sem

respostas.

Dessa maneira, ingressei no programa de pós-graduação da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, e pude ter sido orientado pela professora Dra. Maria

da Conceição de Almeida.

Devo dizer que fui apresentado às teorias da complexidade quando era aluno

de graduação da Universidade Federal da Bahia, na licenciatura, um pouco antes de

cursar o bacharelado. E, seguida, em um curso de especialização na Universidade do

Estado da Bahia, por meio das aulas da minha orientadora Dra. Stella Rodrigues.

Naquela época conheci alguns textos da professora Maria da Conceição de Almeida,

que nos foram apresentados como referência nos estudos sobre a complexidade no

Brasil.

Recentemente, a professora Ceiça disse-nos em uma reunião de orientação

coletiva que é o tema que nos escolhe. Acredito que essa seja a resposta mais

acertada por ter sido eu mesmo escolhido pelo tema da hanseníase. Talvez por

isso, o destino também me fez estudar na UFRN e ser aluno dela. Eu precisava ouvir

isso. Desde então tenho sido apresentado a uma forma de fazer ciência que

desconhecia na prática, sobretudo após ingressar no curso de doutorado sob a sua

orientação.

A minha primeira reunião de orientação foi decisiva para chegar onde estou

hoje. Recordo que foi solicitado que me dedicasse inicialmente ao Estado do Rio

Grande do Norte, e não somente a Bahia, como estava no projeto. A recomendação

era partir da UFRN investigando quais institutos a exemplo de Biologia, Farmácia e

Hospital Universitário possuíam estudos na hanseníase. Ao iniciar a pesquisa na

UFRN surgiu o nome do doutor Maurício Nobre como uma importante referência em

lepra no estado. Desse modo, fui em busca do local onde trabalha, Instituto de

Medicina Tropical, quando fui informado que era pesquisador da FIOCRUZ.

Na mesma manhã, fui ao hospital universitário em busca de mais informações

sobre o Dr. Maurício. Por meio da doutora Maria do Carmo, chefe do ambulatório de

Dermatologia do Hospital das Clínicas, recebi os contatos do Dr. Maurício. Dra. Maria

do Carmo reiterou que no Estado do Rio Grande do Norte esse Médico e doutorando

da FIOCRUZ é a maior autoridade no assunto, além de dirigir o centro de referência

em hanseníase situado no hospital Giselda Trigueiro.

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Na orientação seguinte, informei a Ceiça sobre tudo que havia descoberto e,

dias depois, recebi o retorno dela recomendando que fizesse contato com o professor

Jaime Biela, que é amigo do doutor Maurício. A contribuição do professor Jaime

permitiu a ligação do elo que faltava. Após o contato com o doutor Maurício

imediatamente agendamos uma conversa em seu consultório particular, onde pude

entrevistá-lo. E por cursar doutorado na área médica fez diversas indicações de

leitura e, o mais importante, sugeriu que eu conversasse com um paciente dele que

viveu a experiência de internamento compulsório no Hospital Colônia de Natal.

Todos esses laços permitiram que o trabalho chegasse até aqui. A cada

etapa da pesquisa a minha orientadora, pesquisadores do GRECOM e colaboradores

internos e externos a Universidade contribuíram para que essa tese se constituísse

em uma narrativa que permitisse revelar outras faces da doença que até então

desconhecíamos.

A hanseníase, popularmente conhecida como lepra, é uma moléstia infecciosa,

crônica, causada pelo Mycobacterium leprae, descoberto e descrito em Bergan, na

Noruega, por Gerhard Henrik Armauer Hansen em 1868 (Bechelli, 1988). Do ponto de

vista epidemiológico, a hanseníase continua sendo um grave problema de Saúde

Pública em vários países da Ásia, África, América Latina e Caribe. A Organização

Mundial de Saúde – OMS classifica o Brasil como um dos principais países

endêmicos, que junto à Índia e Indonésia correspondem a 80% dos casos da doença

no mundo.

No Brasil há predomínio de doentes multibacilares ou contagiantes. Conforme

o Ministério da Saúde (2016), o país possui a prevalência de 20.702 e a incidência de

28.761, portanto trata-se de uma doença crônica, embora Veronesi (1988) afirme que

a evolução da infecção e da doença dependam da resistência individual das pessoas.

A hanseníase se reveste de uma importância histórica sobre a qual a ciência

precisa voltar-se atentamente. Claro (1995) aponta a doença como uma das mais

antigas da humanidade, surgida no Egito há cerca de 1350 a.C. Na Índia são

encontrados no livro Susruta Samita os primeiros registros de estudos médicos há

600 a.C.

Moléstias infectocontagiosas como a hanseníase ocupam um importante lugar

nos estudos sobre o perfil patológico do Brasil, apesar do fato de que a maioria

desses estudos limitar-se quase que exclusivamente a sua dimensão biomédica ou

clínica, como é o caso da hanseníase. Talvez isso seja motivado, ao longo de

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décadas, pelo predomínio de um debate em torno de um enfoque das Ciências da

Saúde em detrimento de outras áreas, baseado em parte no papel dessas Ciências

frente às descobertas para a terapêutica da doença.

No entanto, com o desenvolvimento dos conhecimentos científicos, a

terapêutica da Medicina também avança na direção de um olhar mais ampliado de

doenças como a hanseníase. Ao longo dos anos a desconsideração das diferenças

culturais e sociais dificultam o controle da doença no mundo. Pearson (1986) chama a

atenção para um dos principais motivos do fracasso no combate à hanseníase

desenvolvidos no Nepal, um dos principais focos dessa doença, devido ao fato de que

os administradores e gestores dos sistemas de saúde não levarem em devida

consideração os aspectos sócioculturais relacionados à hanseníase, principalmente

no que diz respeito aos processos sociais pelos quais os diversos grupos sociais

constituem sua identidade. A desconsideração desses fatos permitiu que a

hanseníase continuasse sendo fortemente estigmatizada tornando a detecção,

tratamento e cura ainda mais dificultosos.

A importância de uma abordagem mais ampla que se alargue para outras

áreas do conhecimento tem se tornado cada vez mais evidente. Narrativas da

literatura romântica, escultura, pintura, cinema e escrituras sagradas dedicam leituras

emblemáticas sobre a lepra. Machado de Assis (1983) em Dom Casmurro, publicado

no ano de 1899, faz uma alusão à doença como metáfora em um capítulo da obra

denominado “Não houve lepra”, quando vincula a doença ao mal que poderia ter sido

a causa da morte do seu filho Ezequiel. Em O alienista, conto lançado em 1881, toma

o problema da segregação dos loucos e as principais consequências sociais que

envolvem a loucura, como o isolamento. A partir da obra é possível se remeter a

lepra, partindo do preconceito e do tratamento que durante décadas vitimou os

doentes.

No século XVIII, o codinome Aleijadinho foi atribuído ao escultor mineiro

Antônio Francisco Lisboa, devido as diversas mutilações sofridas ao longo da sua

vida, provocadas pela lepra. Na pintura, o holandês Rembrandt talvez seja quem

melhor simbolize a lepra, tendo como referencia duas obras conhecidas como O

leproso, datada de 1631, e O rei Uzias atacado pela lepra, de 1639. O artista transpõe

para a tela a imagem dramática de sofrimento e dor, castigo ao Rei Uzias por desafiar

os desígnios divinos. Histórias como a do rei Uzias assim como de Lázaro, Mirian, Jó,

Naamã podem ser atestadas na Bíblia Sagrada. Essas narrativas bíblicas são

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amplamente conhecidas no mundo cristão e inspiram outras linguagens, como o

cinema.

Filmado em 1959, Ben-Hur é uma narrativa épica que envolve resignação e

redenção. A trama acontece na primeira metade do século I a.C. O filme é uma

adaptação do romance escrito pelo americano Lew Wallace, Ben-Hur: Uma história do

Cristo, publicado em 1880. Ben-Hur é um judeu traído pelo seu irmão Messala, por se

opor ao domínio do Império Romano sobre o povo judeu. Como consequência, foi

escravizado e banido da Judéia, enquanto a sua família foi condenada à prisão, onde

adoece de lepra. Ao longo do filme, a doença representa o sofrimento, e a cura a sua

redenção.

Molakai, também lançado em 1959, é uma versão da história do frei Damião e

do seu convívio com os leprosos em um local de exclusão chamado Molakai, uma ilha

no Pacífico. O drama da segregação dos doentes é o tema central do filme, que

mostra como em 1873 era o modo de vida dos leprosos, separados

compulsoriamente das suas famílias e condenados perpetuamente a viver na colônia

de hansenianos chamada Molakai.

A literatura científica assim como as outras linguagens aqui apresentadas tem

produzido diversas contribuições que se somam às variadas áreas do saber e às

Ciências Sociais. Trabalhos orientados pela PUC-SP e UFRN, mostram a importância

da análise das Ciências Sociais e das relações das Ciências Humanas com

problemas que aparentemente são próprios de outras áreas, como o suicídio ou a

questão da saúde.

Trabalhos como as teses de doutorado Apoptose na Cidade Verde: suicídios

em Teresina na primeira década do século XXI, defendido em 2014 na PUC-SP por

Benedito de Araújo, revelam como as Ciências Humanas são capazes de aportar um

foco novo sobre a questão do suicídio. Uma análise da tese defendida na PUC-SP

demonstra de forma importante como o suicídio é um problema de Saúde Pública e

não meramente um distúrbio individual de um sujeito que chega ao limite da vida.

Na UFRN, por meio do Grupo de Estudos da Complexidade - GRECOM, a

tese, encontramos a tese intitulada Frankenstein, o Prometeu moderno, defendida em

2009 por Renato Figueiredo, orientado por Dra. Maria da Conceição de Almeida.

Junto com Apoptose na Cidade Verde: Suicídios em Teresina na primeira década do

século 21, defendida por Benedito Carlos Araújo Júnior, estas teses mostram que tais

reflexões comprovam a potência e o lugar que as Ciências Sociais têm para discutir

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outras áreas como a literatura e saberes da tradição, frente a temas biomédicos como

o uso de anabolizantes e a formação em Saúde.

Esses trabalhos possuem em comum uma nova leitura feita pelas Ciências

Humanas, que revela uma nova tonalidade em Ciências Sociais e sinaliza a

importância de investigar fenômenos considerados específicos de outras áreas como

a Saúde, em uma perspectiva mais ampla, como Foucault fez de um modo

completamente novo em História da Loucura e Nascimento da Clínica.

Essa tese de doutorado sobre a hanseníase pretende seguir esse horizonte no

contexto desses trabalhos, propondo ampliar a leitura e a compreensão da análise

sobre a hanseníase, retirando o tema de uma análise puramente técnica da área da

saúde e ampliando os seus aportes para uma Ciência da Complexidade.

A tese pretende dar visibilidade ao caso de um interlocutor que viveu no

Hospital Colônia de Natal na década de 1947. A entrevista permite uma concepção de

pesquisa mais ampla que certamente se imagina, dado o autopreconceito de que é

difícil conversar com quem viveu numa colônia de leprosos. No entanto, pode-se

pensar de outra forma, tentar eliminar esse estigma dando voz a quem viveu a

doença. É isso que essa entrevista se propõe a fazer.

Espera-se que essa tese possa oferecer novas compreensões sobre o tema,

oferecendo uma leitura plural da hanseníase, aliando pesquisa científica e leituras das

escrituras sagradas e dos romances. A tese se propõe a apresentar a leitura de quem

vive com a lepra e de quem trata a doença, como numa ecologia dos saberes.

Apesar dos diversos esforços, de certa maneira até hoje a lepra permanece

uma moléstia cifrada. E talvez por isso seja preciso ser um leproso para poder falar

sobre o que é sentir na pele a doença e nos olhares dos outros o preconceito. Mas

como nem sempre isso é possível, três pequenas narrativas ficcionais de caráter

introdutório foram distribuídas no início da cada capítulo, com o objetivo de ilustrar por

meio da ficção e da imaginação algumas das artimanhas da doença. Mas essa é

apenas uma aposta.

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A LEPRA AO VIVO

Sinapses

Recordo-me que quando era uma criança de cinco anos de idade, a minha

família frequentemente saia para passear aos finais de semana. Entre os lugares

que eu preferia ir naqueles passeios, estava a praia de Piatã, em Salvador, a

sorveteria que ficava no Shopping Iguatemi, além da casa dos meus avós paternos

Torquato e Isabel. Durante as férias escolares o passeio preferido era viajar para a

casa dos meus avós maternos, Aristides e Genésia, no interior do estado da Bahia,

onde era possível reunir uma grande parte da família que da mesma forma passava

as férias no sítio.

Aos cinco anos de idade eu já era um garoto muito curioso. E embora não

entendesse direito as conversas dos adultos, mesmo assim sempre que possível eu

tentava escutar e memorizar o que eles diziam. Eu achava que os adultos deveriam

conversar sempre sobre coisas importantes, e por isso eu também deveria aprender

o que adultos conversavam.

Certa vez eu escutei o meu pai conversando com a minha mãe enquanto

dirigia o carro da família, um fusca azul. Lembro que conversavam sobre o

crescimento de Salvador e que era importante nos levar para conhecer os novos

bairros da cidade. Naquela época éramos eu e mais dois irmãos, um irmão quatro

anos mais novo e uma irmã um ano mais velha do que eu.

E assim, em uma manhã de domingo, fomos conhecer essa nova parte da

cidade. Mal o passeio havia começado, a curiosidade me fez fincar os meus pés em

cima do banco traseiro daquele fusca, enquanto aventurava me equilibrar de pé

entre os recostos dos bancos dianteiros, na tentativa de observar tudo o que se

passava do lado de fora daquele fusca. Essa acrobacia se sustentou até o momento

em que chegamos numa rotatória que dava acesso ao bairro de Cajazeiras.

Ao entrar naquela rotatória, lembro que a pedido dos meus pais eu precisava

sentar para não cair daquele banco. Mas antes de obedecê-los eu pude enxergar

por meio daquele acanhado para-brisa do fusca, que ao fim da rotatória existiam

dois caminhos que se bifurcavam. Um deles permitia uma visão mais ampla e plana

do local enquanto que o outro caminho, além de curvo, era uma estrada em declive.

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Aquele caminho curvo provocou a minha curiosidade, fazendo com que

imediatamente eu perguntasse: “e aquele caminho para onde vai?” Meus pais

responderam rapidamente: aquele caminho levará você para outros bairros que

também estão em construção.

Mas antes que os meus pais tivessem tempo para dizer mais alguma coisa eu

apontei, com o dedo pela janela do carro, que eu queria saber era sobre o outro

caminho, o curvo. E assim, perguntei com pressa sobre o segundo caminho. Nesse

momento eu lembro-me que os dois disseram, quase que ao mesmo tempo: “aquele

caminho leva ao leprosário. Mas ali ninguém deve ir, porque é um local de pessoas

doentes”.

Os anos se passaram e aquele caminho proibido deveria ter se tornado para

mim um lugar obscuro e que eu deveria evitar. Mas a minha curiosidade me lançava

cada vez para mais perto daquele local. Muitas vezes durante a infância eu ficava

imaginando o que era o leprosário, o porquê de aquilo existir, além de como era o

local, e principalmente as pessoas que viviam lá. Mas anos depois eu encontrei a

resposta para algumas dessas questões bem embaixo do teto da nossa casa.

Na nossa infância, desde muito cedo tivemos os ouvidos iniciados, por um

lado, pela música erudita de Chopin, Beethoven e Mozart, que eram o repertório

principal tocado naquele pequeno gravador todos os dias e, principalmente, na hora

de dormirmos. Ainda aos seis anos de idade, fazia parte do ritual da família que

deveríamos aprender a jogar xadrez e logo depois o gamão. A disciplina fez parte da

nossa infância. No horário de dormir, ora ouvíamos as músicas eruditas, ora a nossa

mãe nos contava histórias fabulosas, que com certeza contribuíram para a formação

da nossa visão de mundo. Recordo-me de todas as histórias.

Enquanto a nossa mãe contava as histórias à noite, durante o dia o nosso pai

narrava episódios de outras literaturas, as preferidas dele eram do gênero da ficção

científica. A minha narrativa preferida era Vinte mil Léguas Submarinas, de Júlio

Verne, o que me fez desde cedo admirar o autor. Talvez por isso, nesta tese a ficção

e a realidade se misturam com certa frequência.

Embora dormíssemos fácil com essas opções, existia outra que ao contrário

de nos fazer dormir, representava uma importante transgressão e oferecia a

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possibilidade de dormir um pouco depois das 20 horas. Essa possibilidade de nos

fazer parecer mais adultos tinha uma relação direta com o fato de poder assistir a

filmes na televisão. Sempre que passava algum filme épico o meu pai chamava a

gente para assistir com ele. E foi assim que assistimos a diversos filmes épicos, que,

junto às histórias contadas por nossa mãe e às músicas que ouvíamos, parecem ter

mudado completamente a nossa maneira de enxergar e interpretar o mundo,

embora talvez estivesse muito cedo para isso.

Certo dia foi exibido na televisão um desses filmes épicos, logo que soube, o

nosso pai se apressou para nos chamar e disse: “venham assistir o filme Ben-Hur”.

Não é necessário aqui entrar nas discussões sobre o propósito da trama do filme,

mas é importante dizer que foi por meio desse filme que eu pude pela primeira vez

ver a imagem do que era um leproso.

Lembro-me que até então eu não sabia o que significava a lepra. Mas a partir

daquele momento os meus pais passaram a me explicar. Disseram-me que certa

vez eu havia perguntado sobre uma estrada bifurcada. E que na época daquela

pergunta me responderam, apenas, que naquela estrada viviam pessoas doentes.

Mas após assistir as imagens do filme Ben-Hur eu pude encontrar as respostas para

as minhas principais dúvidas sobre a lepra.

Os anos foram se passando, até que voltei a me encontrar com o tema da

lepra no ano de 2001. Durante o término do meu bacharelado em Ciências Sociais,

embora tudo caminhasse para que o tema da minha pesquisa fosse ligado ao

câncer, me deparei com problemas burocráticos na instituição hospitalar onde a

pesquisa aconteceria. Precisei abandonar toda a literatura e levantamento de

informações já concluídas para aquela pesquisa e mudar urgentemente de tema.

Nesse momento, foi decisiva a sugestão do meu orientador, que permitiu meu

reencontro com o tema da lepra.

Após a defesa no bacharelado, continuei na Universidade Federal da Bahia

seguindo o tema, no mestrado. E ao ingressar no doutorado na Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, continuei perseguindo a lepra.

Talvez esse texto se constitua em uma resposta ao pedido da minha

orientadora do doutorado, Dra. Maria da Conceição de Almeida, que sempre fez

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para mim a mesma pergunta: “por que a lepra?” E insistentemente pedia que

escrevesse na tese o motivo, a razão dessa escolha, pois que, segundo suas

palavras, “nós não escolhemos o tema de pesquisa, mas é o tema que nos escolhe”.

Hospital Colônia em Natal: relato de quase uma vida

Instituído no Brasil por força de lei, os Hospitais Colônia abrigaram durante

décadas pacientes com hanseníase. Embora a medida fosse justificada pelo caráter

profilático, há um componente sociocultural que tende a ser encoberto, o estigma.

Em um período de 50 anos os casos diagnosticados de hanseníase eram

tratados compulsoriamente por meio dos Hospitais Colônia. As pessoas que foram

conduzidas compulsoriamente para essas instituições, receberam o tratamento que

o Estado julgava adequado para o controle da doença, o isolamento. Os pacientes

internados recebiam a terapêutica que tratava apenas os sintomas, pois somente

nos anos de 1980 desenvolveu-se a medicação para a cura da hanseníase.

Conforme observações e pesquisas sobre o assunto, na cidade de Natal, o local

responsável pelo internamento de hansenianos foi o Hospital Colônia São Francisco

de Assis, fundado em 1929. Na inauguração, 30 pessoas estavam internadas; após

um ano chega-se ao dobro. Ao longo da sua existência, o hospital alcançou a

capacidade de internar 300 pacientes.

Até a primeira metade do século XX era limitado o conhecimento sobre a

doença e, consequentemente, o seu tratamento. Apenas décadas depois de iniciada

a prática do internamento compulsório, a Medicina desenvolve medicações para o

tratamento e depois para a cura da doença. No Brasil, a população hospitalizada

nessas colônias recebeu alta anos depois. E a reparação foi reconhecida após mais

de dez anos do término do internamento compulsório.

No estado do Rio Grande do Norte a situação não foi diferente do restante do

país. Os Hospitais Colônia, após o período do internamento compulsório, passam a

abrigar os pacientes que não tinham mais familiares, renda ou um local para morar.

Hoje poucos hospitais se mantêm, a maioria foi demolida e os pacientes que

necessitavam de assistência hospitalar foram transferidos para outros hospitais

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públicos. Alguns pacientes retornaram para o convívio familiar em sua cidade natal.

É o caso do interlocutor dessa entrevista, que aqui receberá o nome de Célio.

Aos 80 anos de idade está lúcido, com boa memória e se mostrou disposto a

narrar sua vida. Seu Célio autorizou a gravação da entrevista e a sua utilização

nessa pesquisa de doutorado. A sua experiência de vida o autoriza a falar sobre a

hanseníase e o período de isolamento, pois adoeceu desde criança, quando foi

internado, e hoje sobrevive à extinção dos Hospitais Colônia.

A entrevista aconteceu em sua residência, em um município da zona rural

do Rio Grande do Norte, e a transcrição revela um conteúdo inédito sobre a sua vida

dentro e fora dos muros do Hospital Colônia.

Essa narrativa delineia o tom de um personagem nordestino que viveu em um

leprosário desde a primeira metade do século passado. Tão logo foi iniciada a

entrevista, fui apresentado a um pequeno álbum de recordações da sua juventude.

Em meio a outras fotografias, seu Célio separou uma delas para me mostrar. Aquela

fotografia revelava a imagem de um homem. Naquele momento perguntei quem era

aquele homem e, tomado por um sorriso, seu Célio contou que era ele, anos atrás.

Na fotografia seu Célio estava de pé diante de um jardim, aparentava ter 25 anos de

idade e possuía o porte físico robusto de um trabalhador do campo.

A sua pele apesar, de levemente avermelhada pelo sol, predominava na cor

branca. E as suas feições eram de quem tinha uma autoestima elevada. Trajava

uma camisa em cor clara e com estampas distribuídas ao longo de todo o tecido. E

vestia uma calça comprida que tocava aqueles bem lustrados sapatos.

Ao pousar para a fotografia, parecia que desejava mostrar o certo zelo que

possuía com a aparência. Pois, além do trato dado a cabeleira penteada de maneira

impecável, estampava um largo sorriso que permitia transmitir a imagem de um

homem convicto das suas capacidades para o trabalho e, sobretudo, com aptidões

para sobrepor-se as adversidades da vida. Logo, transparecia estar preparado para

grandes desafios.

Esse interlocutor brevemente apresentado demonstrou logo no início da

entrevista bastante facilidade em se comunicar. Talvez essa habilidade tenha

permitido que narrasse a sua história de vida como uma espécie de diário de bordo.

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Assim, ao longo da entrevista, seu Célio abre o seu diário de bordo para que

possamos conhecer sob o seu ponto de vista o que é viver com a lepra.

O diário de seu Célio não é como o diário de um aeronauta, que se preocupa

com a densidade do ar, a altitude do avião e o relevo das montanhas, que para

serem transpostas precisam constar no plano de voo. Mas a sua história é como

aquelas narradas em um diário de um marinheiro que vê a sua vida lançada às

imprevisíveis correntezas do mar, em águas que muitas vezes não são seguras. E

são as adversidades presentes na vida do senhor Célio que o tornam um interlocutor

tão desafiador. Afinal, usando das palavras de Júlio Verne, mares calmos não fazem

bons marinheiros.

A sua história não por acaso é contada a partir do local onde morava, o sítio

cujo nome é Arisco. Essa denominação parece ter contado com a simpatia do

interlocutor pois, durante a entrevista, fez questão de aumentar o tom de voz para

pronunciar o nome “Arisco”, que foi seguido de um suave sorriso. Entre as diversas

conotações, o termo possui o sentido de arredio. Talvez por isso seu Célio tenha

demonstrado afinidade ao nome daquele local, que de algum modo reflete a sua

maneira de encarar o mundo.

Seu Célio jamais conheceu mares calmos. Logo aos dez anos de idade se

deparou com uma doença desconhecida para ele, a lepra. Talvez o maior efeito

dessa enfermidade fosse o arrebatamento da sua infância causado pelo seu súbito e

compulsório internamento no hospital colônia São Francisco de Assis, em Natal. E

não exclusivamente as diversas complicações de saúde como as dores e feridas

ligadas a doença, mas as consequências do preconceito que segrega e isola os

leprosos há séculos.

Apesar da longa entrevista seu Célio parece ter suprimido boa parte das

histórias sobre a sua infância, sobre as brincadeiras, a escola e as primeiras

experiências infantis. Talvez por que naquele período de internamento é como se

aqueles anos tivessem sido suprimidos da sua biografia. Aliás, a primeira infância no

leprosário pareceu apagada da sua memória. O que restou foi um breve relato de

um período que antecedeu aquele internamento, que de outra maneira escapou do

cotidiano infantil das brincadeiras, para navegar no universo doloroso da doença.

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Seu Célio vivia em uma região árida do Rio Grande do Norte, na zona rural da

cidade de Santo Antônio do Salto da Onça. Assim como hoje, essas localidades

eram assoladas pela pobreza, por isso, muitas crianças andavam descalças, e

desse modo sentiam na sola dos pés o ardor do solo quente e de formação

pedregosa, causada no período de secas que são comuns às lagoas da região.

Embora seu Célio, por consequência da lepra, não tivesse a mesma

sensibilidade na sola dos pés como as demais crianças, ele sentia muitas dores nas

articulações, além de um demasiado cansaço causado pela doença. Até o ano de

1947 seu Célio e seu pai desconheciam completamente a enfermidade, o que

aumentava o sofrimento de ambos. Na época seu Célio era uma criança que, como

tantas outras da zona rural, necessitava trabalhar para auxiliar no sustento da

família.

Em decorrência do trabalho, as dores e os machucados aumentavam, e

passaram a fazer parte do seu cotidiano, enquanto as dúvidas sobre a doença

cresciam. Na década de 1940 o acesso aos serviços de saúde pública eram ainda

mais precários, principalmente pela concentração da assistência médica nas

capitais. Dessa maneira, qualquer suspeita de lepra era tratada por meio do

internamento compulsório.

No ano de 1947 seu Célio foi internado compulsoriamente pela primeira vez.

O seu internamento significou, de um lado, ter alcançado o diagnóstico da sua

doença e, por outro lado, significou mais sofrimento. Naquele ano não existia uma

terapêutica adequada à doença e muito menos para a cura, que era desconhecida,

por isso, o poder público encarcerava o doente. Esse método de privação da

liberdade apenas agravava o preconceito contra o leproso, que era isolado em nome

da contenção do contágio.

A segunda parte da história de seu Célio é retomada aos dezoito anos de

idade, quando teve alta médica pela primeira vez. Ao sair do hospital colônia seu

Célio retornou a zona rural de Santo Antônio do Salto da Onça, onde trabalhou na

plantação e raspagem da mandioca. O uso da enxada passou a fazer parte do seu

cotidiano e, embora tivesse recebido orientação médica para evitar trabalhos com

manuseio de ferramentas pesadas como a enxada, seu Célio necessitava trabalhar

para sobreviver. As primeiras lesões não tardaram a surgir como consequência das

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condições de vida difícil. E os anos seguintes transformaram pouco a pouco o seu

corpo em manifestações de diversos sinais da lepra, como nódulos e mutilações que

se agravaram ao longo dos anos.

Mesmo diante de tantas adversidades, seu Célio casou-se aos 26 anos de

idade, e trabalhou na roça até o ano de 1972, quando foi possível conseguir se

aposentar por meio do programa de aposentadoria para o trabalhador do campo.

Atualmente, seu Célio identifica a doença como hanseníase, mas esclarece que na

Bíblia a referência é feita à lepra.

A partir do próximo parágrafo será apresentada a entrevista na íntegra.

Para facilitar a sua visualização e, consequentemente, favorecer uma melhor

compreensão do seu conteúdo, foi utilizada ao longo de toda a tese – para o texto

do interlocutor – uma formatação das fontes em itálico, além de um recuo de três

centímetros nos parágrafos.

Eu morava num sítio que se chamava Arisco. Daqui para lá dá

uma base de uns seis quilômetros. Nasci em 1937 e me hospitalizei

em 1947, com dez aninhos de idade. Passei nove anos lá no

leprosário, ai passei para a Colônia de São Francisco de Assis, mas

era o Leprosário, né?! Nessa época não sabia o que tinha. Naquela

época a gente conhecia isso por lepra, hoje é Hanseníase devido ao

médico que descobriu, que se chamava Hansen, então botaram a

doença como hanseníase. Mas a lepra não sai não, pode olhar na

bíblia que o nome é lepra, entende?

E acontece o seguinte: eu me internei, passei nove anos

internado. O doutor Silvino me mandou para o exército, naquela

época eu tinha 18 anos. Fui dispensando devido a minha doença.

Então vim trabalhar no interior. Até 32 anos eu era bom de saúde

[sem lesões graves]. Inventei de andar com uns amigos que não

eram amigos. O doutor tinha dito que eu não fizesse e eu fiz, né?

Depois, que eu me orientei.

Eu me aposentei em 1972, pelo fundo rural. Aí fiquei ganhando

40 contos, naquele tempo eram 40 contos de réis. Quando eu tinha

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vindo do hospital, quando eu me aposentei eu ainda estava

trabalhando de enxada. Entende? Aquilo ali foi que botou o atraso,

porque a hanseníase procura o encolher os nervos. Aí no cabo da

enxada o senhor tem que encolher o dedo pra segurar o cabo. Aí o

doutor sempre dizia pra eu me cuidar, pra não encolher. Mas aí, eu

no cabo da enxada a doença começou a doer aqui e aí tá assim. Os

dedos completos, mas nessa situação, entende? Pela minha

desobediência. Mas era uma desobediência que eu era obrigado a

fazer porque não tinha quem me desse de comer, nem tinha

aposentadoria, precisava trabalhar pra sobreviver.

Trabalhei um tempo em agricultura, pra mim e meu pai, mas

meu pai. Nesse tempo eu era solteiro, apenas trabalhava, e depois

me casei. Eu me lembro. Meu pai comprava bode, matava bode e às

vezes me levava. Eu andando descalço, que na época a pobreza era

grande demais. Eu andando, quando passava naquelas lagoas,

quando elas estavam secas, pois, quando vem um tempo seco, elas

racham. Aquela lama racha, não é? E eu pisando em cima daquilo

ali não aguentava. Os pés doíam demais. Não tinha nada de

ferimento, mas doía demais. Meu pai parava lá na frente e dizia:

“meu filho, o que é? Está cansado?”. Eu disse: “eu não, papai! Meus

pés estão doendo”. Ele esperava até eu recuperar.

Veja, a hanseníase é uma doença que é fácil para descobrir,

porque nem toda a mancha e toda a doença é lepra. Eu já alcancei

gente rapando mandioca na casa de farinha que... A casca da

mandioca é cheia de água bem fria, gela. Quando pegava em mim

eu dizia: “ai, é uma brasa de fogo!”. Eu disse: “eu não tenho essa

brasa de fogo. Se eu tivesse essa brasa de fogo, ela estava

apagada porque a casca da mandioca é cheia de água”. Eu

perguntava o que ela estava sentindo e dizia que era uma como uma

queimadura, mas ela não tinha hanseníase.

Tinha 10 anos. 10 anos! A minha família adoeceu quase tudo.

Antes de eu ir, tinha duas tias minhas e dois tios. Depois eu fui e

meu pai foi também. Só que nem eu e meu pai chegamos a nos

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internar, porque eu era criança. Então doutor Varela conseguiu uma

casa ao lado da linha de ferro. Então ficamos por lá, né?! Muito

tempo depois que meu pai faleceu é que eu retornei a retomar para

lá. Meu pai faleceu e minha mãe também havia falecido. Dessa

forma, o hospital era o mesmo que ser a minha moradia. Eu saia um

mês, passava seis meses, quatro anos, seis anos... Eu passei a

minha vida assim.

Duas tias minhas, a finada Dona Maria, a finada Adelmira, finado

Joaquim e meu outro finado tio. Todos tiveram hanseníase e meu

pai também. Meu pai é Francisco. Essas cinco pessoas tiveram

hanseníase, comigo seis. Todos fomos para o mesmo lugar. Fiquei

eu e o meu irmão novo que eu tenho não saiu de perto da gente,

não. Ele não ficou isolado. Meu irmão tinha uma saúde de bicho.

Não teve nada no mundo, não houve problema nenhum com ele.

Todos morando com meu pai e minha mãe. Eu entrei em 47, sai

[pela primeira vez] em 1956.

Era bem amplo. Era um sítio, era quase do tamanho dessa

cidade aqui. Dentro de lá é cheio de prédio. E toda verdura tinha lá:

mangueira, coqueiro, jabuticaba, laranja, jaca. Tudo o que a gente

procurava tinha lá. Foi o melhor tempo na minha vida foi lá no

hospital. Eu ainda desejava se ainda tivesse um hospital daquele.

Tempos depois, me botaram dentro do carro do caminhão e

saíram. Minha mãe correu atrás do caminhão. Ela com esse meu

irmão novo no colo, ele já bem grandão, porque ela amamentava a

gente bem grande. Ela com ele no colo e correndo atrás do

caminhão para me tirar de dentro.

Ela não queria que eu saísse de onde ela estava. É tanto que

ela forçou tanto a barra que o doutor teve que pegar uma casa para

colocar eu, meu pai, meu irmão e ela para morar. Lá no leprosário,

no lado de fora do muro.

Lá era um hospital, mas tinha uma casa que servia o hospital,

mas não para doente, apenas para o pessoal sadio morar. Era até

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uma casa de taipa naquela época, não tinha tijolo. Não era

comunidade, mas a casa era fora do hospital.

Todo mundo que era paciente vivia naquele hospital. Como eu

era criança como meu irmão e minha mãe não queria ficar sem meu

pai, o doutor Varela pegou a casinha e colocou a gente lá. Mas o

meu pai ia todo dia pegar comida na cozinha do hospital para a

gente comer. Naquele meu tempo eram isolados. Aquele leprosário

era isolado, não tinham casas ali por perto não. Era só o leprosário

mesmo.

Quando chegava uma pessoa da família a gente tinha um banco

num prego lá em cima do telhado. Aquele banco vivia “atrepado” no

telhado só para quando uma pessoa da família chegasse para nos

visitar se sentarem. A gente colocava o banquinho lá em cima num

prego. Afiava aquele prego e botava lá para ninguém sentar. Apenas

para a visita se sentava no banco.

É porque a hanseníase depende muito do nosso organismo. Se

o organismo da pessoa for forte, não acontece nada não. Você vê

que uma gripe vive passando de uma pessoa para outra. Mas tem

gente que não gripa. Eu mesmo. Não me lembro há quantos anos

que gripei. Faz muito tempo.

Agora eu me lembro que, no tempo em que eu adoeci, meu tio

Joaquim vivia aqui e ele não sabia que era doente. Ele tinha uma

égua. Quando ele chegava nela e tirava a cela e botava eu em cima.

Eu era um garotinho, botava em cima para dar água à égua numa

lagoa que tinha. Eu acho que foi assim que peguei a doença. O

calor, porque o animal é quente demais.

Meu tio ele me botava em cima dela. Eu sei que depois eu

peguei a doença. Aquele calor dela. Ele doente, tirava a cela e me

colocava em cima da égua. O bacilo pega. É por isso que... Não se

engane que nem toda a doença é hanseníase. Porque a

hanseníase... Eu chamo hanseníase, mas o nome é lepra. Ela pega

se ele não teve nenhum tratamento. Ela pega até num espirro, até a

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gente conversando, na saliva, pode pegar. Agora depois do

tratamento ela não pega em ninguém mais. Começou o tratamento,

acabou.

As minhas tias, dizem que em Santa Cruz elas trabalhavam na

casa de um homem que tinha hanseníase. Elas pegaram lá. Dizem

que uma transmitiu para a outra. Já uma delas transmitiu para os

meus tios, entende? Para o meu pai e para mim também.

Agora depende do organismo do indivíduo. Porque às vezes tem

dez pessoas numa casa e só adoece uma. Seria para adoecer

todos, não é? Se existe contato, deveria, mas devido ao organismo o

outro não recebe aquela doença. Só que hoje a hanseníase... Os

leprosários acabaram. Não existe em São Paulo, não existe em

lugar nenhum. Está ficando pouco porque tem o medicamento. A

mesma coisa acontece com a gripe. Essa vacina que tem, eu tomo

de ano em ano. Eu não sei quantos anos que eu não tenho gripe.

Por esse tempo me vacinaram contra a chikungunya. Eu tomei. Tem

gente que só falta morrer. Tem uma velhinha ali com mais de 90

anos que passou mal. Eu não senti nada. Eu tomei no posto. As

meninas vieram dar aqui, mas eu tinha tomado no posto. Eu tinha

ido por lá para resolver um problema e aproveitei para tomar, não é?

Eu não senti nada. É por isso que eu digo que tem muitos

organismos diferentes uns dos outros.

Você sabe que a Hanseníase não gosta de calor, ela já é

quente, né? [risos] Ela é tão quente que quando nasce um caroço na

pessoa queima a pele, de tão quente.

Então eu fui para o interior para trabalhar e ela voltou

novamente. Porque naquela época não tinha medicação para

controlar. Tornei a voltar. E assim eu fiquei naquela oscilação: vinha

e voltava.

Até que chegaram a fazer umas casinhas lá que doaram para a

gente. Foram 30 casas que fizeram, eu peguei uma casa dessas e

fiquei lá por um tempo. E depois eu disse: “sabe de uma coisa, está

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bom de eu sair daqui agora e procurar outro destino”. E fui embora

para o Rio, passei uns tempos por lá. Então retornei para Santo

Antonio que já conhecia tudo isso aqui. Já possui 16 casas aqui em

Santo Antonio, hoje eu não tenho nenhuma. Não tenho neto?!

Acontece o seguinte. Eu passei pela vida e não vivi. Porque uma

pessoa que adoece com 10 aninhos, ela não tem experiência. Eu

Perdi uma aposentadoria que exército iria me dar. Porque eu

cheguei lá, o tenente de guerra me deu um documento para me

aposentar. Agora eu apresentei para o meu médico, ele não sabia e

disse: “Não, isso é para tirar um documento para você”, mas era

uma aposentadoria para mim. Porque na época que era para eu

servir estava hospitalizado, então tinha aquele direito. Eu ainda me

lembro das frases que Tenente de Guerra disse: “Doutor Silvino,

existe uma lei que ampara esse rapaz que o senhor não apresentou,

agora é preciso que ele apresente um atestado a fim de ser

beneficiado. Aguardo suas ordens – Tenente de Guerra”. Isso eu

gravei bem novo. Aí o que acontece, esse documento eu deixei lá na

mesa, no birô do médico, e não procurei nada mais. Hoje eu tô

amargando. Ganhando o pouco, o que podia estar ganhando mais.

Mas a gente só tem aquilo que Deus quer. Muita gente blasfêmia a

vida e vive uma vida tão boa, né? Eu peço a Deus para carregar

minha cruz até o fim, entendeu? Para quê desespero? Eu não pedi

para ser doente. Se hoje eu sou “hanseniano” é porque o criador

permitiu. Porque uma folha de uma árvore só cai de cima dela se for

por permissão dele.

E então, eu vivi assim nesse mundo assim sem preconceito. O

preconceito que tem somos nós mesmos. O dono do problema, ele é

quem faz tudo aquilo. O preconceito é a gente quem faz. Se a gente

passa num canto e alguém olhar para a gente, a gente já pensa que

está olhando os nossos defeitos. Aí é por isso que às vezes eu não

procuro nem sair de casa. Vou, assim, no caso, quando vou para o

banco. Às vezes, eu estou mais eu tenho Maurício... Eu tenho um

documento para resolver lá, ela manda minha menina ir para eu não

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ir, devido eu ter essas úlceras nos pés. Meus pés são bem

pequenininhos. [sorriso] Aí, para evitar, ele diz: “Mande sua menina

que eu faço”. Um dia desses a Receita Federal começou a pegar

meu trocadinho e aí precisou do documento dele. Ele é um pai para

mim. O que eu peço ele resolve. Então eu levei, mas nem precisou,

porque eu levei para a receita federal, mandaram fazer uma perícia.

A receita federal disse que eu estava isento de imposto, mas só que

eles pegaram cinco anos de imposto e não ressarciram meu dinheiro

para trás. Eu queria saber o porquê disso. Eu tenho que conseguir

um advogado para a gente saber onde está o erro.

Tive alta em diversas vezes na minha vida, né? Não existia um

medicamento suficiente, né?! Hoje eu ainda tenho essas veias

estranguladas. Tudo isso aqui são veias estranguladas.

Eu tomava muito uma injeção chamada Promim. Eu tomei muito

essa injeção e era tão forte que eu saia... Eu era criança, tinha 10

anos, saia pegando nas paredes, com vontade de vomitar. Uma

injeção grande. Era uma injeção para mim e outro garoto que tinha

lá.

Naquela época eu fui internado, vou te dizer, o tratamento era

como de bicho. Tinha um tal doutor Heitor que era baixinho e tinha

uma coisa de ferro que nem um raspa-coco. Era mesmo como um

raspa-coco. A gente se sentava naquele banquinho e ele começava

a raspar. As lágrimas chegavam a escorrer no rosto da gente. Muita

gente quebrou o nariz devido àquilo. Saia um sangue e ele

passavam naquela lamina. E aquilo ali era para olhar os bacilos. E

tirava daquilo ali. Ele fazia aquilo toda a semana. Teve gente que

ficou com defeito no nariz. O que acontece é que o nariz entope,

devido a ele engrossar. É por isso que o doutor passa primeiro o

“raspa-cocozinho” para poder operar. Tem que tirar aquele resíduo

para colocar na lâmina e fazer a biópsia. Se sair aquela sujeira de

dentro, toda furada... Dizem que parece um bode, sai aquela sujeira

toda furada como se alguém tivesse furado. Aquilo tudo é o bacilo

que fica dentro o nariz. Se alguém estiver perto de alguém suando e

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não estiver tomando o remédio, pega. Hoje é uma beleza. Hoje o

camarada está com hanseníase? Remédio em casa mesmo, não

tem protocolo nenhum.

É o seguinte, eu boto essas mãos e esses braços na água

fervendo. Eu posso ver que a água está fervendo, mas não sinto

nada. Pode esse lado do meu rosto aqui, nesses meus lábios

superiores não tem força de nada.

Nesse lado aqui eu faço todos os movimentos, mas nesse aqui

eu não faço, entende? Isso é dormente. Nesse eu sinto até o

mosquito bater aqui, mas devido o problema da hanseníase, ela

baixou meus olhos. Chora de mais. Eles ficaram arriados. Uma vez

eu fui internado no Walfredo [hospital], devido à hanseníase e as

úlceras que tenho no pé. Essa perna aqui apodreceu. Abriu-se uma

[fileira] aqui, outra aqui, abriram aqui [mostrando], mas isso tudo foi

tirado. Isso aqui, você está vendo? Aqui abriram tudo. Aqui tiraram

uma ferida, aqui tiraram um tendão, aqui tiraram outro. Eu vou dizer

uma coisa, eu sofri. E o doutor lá operando os tendões. Eles já

estavam tão velhos que até estavam amarelos. Para cicatrizar tinha

que tirar aqueles tendões. Eu sentado na cama e um balde grande

recebendo o sangue, ele olhando de vez em quando, depois dizia

para mim e dizia: “O senhor não está sentindo nada não, seu

Célio?”. “Eu disse: não que eu quero aprender, doutor”. Ele riu

demais comigo. Ele disse: “esse sangue velho e doente só faz mal a

gente”. Eu sei que tenho sofrido muito, só que eu peço muito a Deus

que me dê força.

É o seguinte. Eu posso dizer que nunca fiquei [curado].

Compreende?! Que a gente fica bem, que a gente fica normal, mas

foi no ano de 1965 foi que sanou a hanseníase. O senhor vê esse

braço, ainda pode ver as marcas da hanseníase aqui, né? Isso aqui

eu senti uma dor tão grande nesse braço que eu vivia com ele na

tipoia. A hanseníase é a coisa mais fácil de alguém conhecer. Quem

tem hanseníase, é só apertar aqui e a pessoa não aguenta... a dor.

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O que me chamou atenção lá no hospital é o que eu vi de

grandeza naquela época! Eu me alimentava bem, não faltava nada.

Sabe que não faltava nada?! Naquela época, o doutor Varela

trouxe... Não tinha aquelas carnes de charque? Aquele saco desse

tamanho assim? [mostrando] Carne com mais de dois e quatro

dedos de grossura. A gente comia aquilo e nunca faltava hoje o que

tinha de capa de costela, não tem cheiro, não tem sabor. A carne.

Naquela época a gente sentia de longe o aroma da carne. Hoje em

dia o povo diz que é carne de jumento. Que tanto jumento é esse? É

que o preparo daquele tempo era um hoje é outro. Hoje você come o

tomate, mas ele só dá se você usar produto químico, a laranja só dá

se adubar, a roça só dá se adubar, abobora só dá se adubar. Tudo!

A pessoa enche uma carreta de abacate lá no sul, ele tem que vir

verde, porque se colocar maduro não vai prestar. Tem que vir verde.

Mas de baixo da carreta eles colocam carbureto. E o alimento está

nos fazendo mal, porque nosso intestino não é de ferro. A gente está

vendo que tudo que a gente come é veneno. A banana! Você vê

uma banana, puxa a casca e quase não tem conteúdo, o miolo

pequeno e fino como um dedo. A banana verde é colocada no

carbureto, fica amarela. O carbureto fica todo dentro dela e a gente

come.

No hospital, lá eu, graças a Deus, só trabalhei para fazer

amizade, entende? Um dia desses fui ver numa pensão os

hansenianos, eu precisei de umas provas [documentos] e

mandaram-me ir para lá. Quando cheguei lá o hospital estava

fechado. Eu fui na “saúde” e falei com Ieda. Ela é muito conhecida

minha. Ela disse: “Seu Célio, o senhor só vai encontrar essas provas

onde o senhor morava”. Então eu fui lá, peguei três provas, não é?!

O pessoal até já faleceu um dia desses. Quase todos foram embora.

Agora é porque Jesus está achando que eu mereço viver que

mais tempo, mas o pessoal do meu tempo foi quase todo. O poder

de Deus é grande demais. Minha mãe faleceu, ela estava com 97

anos. Eu digo sempre que com a ajuda de Deus eu vou imitar ela.

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Aqui, se chegar lá hoje é uma clínica que fizeram. E os prédios

estão todos desmoronados. Acho que ainda tem uns, mas a maioria

foi tudo abaixo. Agora com os tijolos que tinham lá era para aqueles

prédios não se acabarem nunca. O homem é uma fera que destrói

tudo. Tinha um hospital lá que era da gente, hoje só tem os

escombros. Mas o pessoal arrancou os fios de cobre e deixaram só

a metralha [entulho]. Fizeram um prédio por lá de terceiro andar ao

lado do cemitério só que o engenheiro condenou. Só estão somente

as lajes, os restos carregaram tudo. Parece que já tinha uns 56

sanitários. Estava quase no ponto, mas o engenheiro veio e

condenou. Então, os ladrões carregaram os sanitários, os tubos de

alumínio, carregaram tudo, sabe! Hoje tem somente as três lajes, por

lá. Aquele muro que tinha botou abaixo e fizeram uma vila para o

povo das favelas.

Eram trinta casas que fizeram para quem vivia no hospital.

Deram para cada um uma casinha, tanto que ganhei uma. Só que o

resto do hospital, que era muito grande, fizeram uma vila para o

pessoal das favelas. Mas só tem só gente ladra, maconheiros. Um

dia desses passei ao lado com meu filho. Não chego mais lá, não.

Passei só por lá.

Um dia desses o doutor Maurício perguntou se ainda existia

aquele cemitério. Disse para ele que só havia escombros. Até os

tijolos carregaram para fazer casas.

Encontrei um senhor. Mandaram me chamar porque viram que

eu era uma pessoa experiente com a hanseníase. Mandaram me

chamar para olhar o pé de um rapaz que não conseguia pisar no

chão. Só pisava com os dedos, mas com dificuldade. Eu cheguei lá

e disse: “mostre-me aqui seu pé”. Ele levantou o pé e eu disse: “aqui

tem um prego. Aqui no seu calcanhar tem um prego”.

Não percebeu, e eu disse que tinha um pequeno prego.

Perguntei se ele tinha uma pinça, mas ele disse que não. Perguntei

se ele tinha alguma tesoura e ele disse que sim. Eu esterilizei,

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botando na água fervendo e depois queimei, limpei e puxei. Ele

gritou muito. Um prego bem pequenino. Ele só veio sentir quando

havia inflamado dentro do corpo. Ele não tinha hanseníase.

É porque quem já teve hanseníase, sabe mais que o médico.

Porque o médico nunca teve. Só pode saber uma coisa sobre a

hanseníase se eu contar. E eu fui portador de hanseníase.

Entendeu? Veja bem, dentro daquele Giselda eu dei muita aula.

Aquele povo que estava fazendo estágio. Dei aula para muitos.

Hanseníase eu conheço ela só em olhar, porque muda a fisionomia.

A orelha engrossa, o nariz engrossa, os lábios engrossam e a pele

muda de cor. Fica mais escuro. O povo diz assim: “A mancha de cor

vermelha é hanseníase”. Muitas vezes não é. Se ela tiver alto-relevo

pode ser hanseníase. Ela fica áspera e cheia de caroços pequenos.

E alto-relevo. Mas para a gente saber se aquela mancha tem

dormência, precisa-se pegar um algodão, mandar a pessoa fechar

os olhos e passar o algodão. Se ele não sentir, tem lesão. As

pessoas dizem que não se sente algodão, mas se você observar

que um mosquito, quando pousa, nós sentimos. O mosquito nos

incomoda quando pousa? Quando não há lesão nós sentimos.

Hoje, o povo vem aqui e diz que fez tratamento com o doutor

Maurício para hanseníase. “Que passou um ano tomando o remédio,

mas ele suspendeu”. Eu pergunto se ainda sente alguma coisa. E

que não se “abestalhe” também. Digo: “você se recuperou, mas

hanseníase não merece confiança. É traiçoeira”. Era o que o doutor

dizia: “olhe, Seu Célio, o senhor terá alta. Não vá trabalhar na

enxada, não vai fazer esforço como pessoas saudáveis fazem

porque a sua pele não tem a resistência”. Nessa época, quando eu

cheguei aqui até montar num cavalo eu montei. O resultado é esse.

Graças a Deus eu estou bem. Eu estou me sentindo, com o

senhor aqui presente, um menino!

Agora, só que o exame que eu fiz parece que não deu muito

bom. Eu sou um camarada curioso.

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O bicho vem grampeado e eu sou um pouco curioso. Eu abri,

olhei, e vi que... Eu olhei que o triglicerídeo deu alto. Era para dar

152, mas deu 245 e o meu colesterol total deu 235. Mas eu não

esquento com isso não. Eu como aquele pão integral, mas eu não

sei o porquê estou tomando remédio para baixar aquelas taxas. Não

sei por que continua com a taxa daquele jeito. Eu fiz um eletro, a

dona fez um assombro medonho. Fizeram um assombro dizendo

que eu tinha uma veia entupida. Fui para o cardiologista e ele

mandou fazer um eco-cardiograma. Eu fiz e estou com ele para

apresentar. Muitas coisas são normais, muitas coisas eu não

entendo o que é e deixo para eles. Eu vou lá e ele vai me dizer, não

é?

Às vezes eu vou lá, não é? Mas eu já vi tudo, que as coisas

estão normais, não é? Mas tem umas coisas que só quem entende é

ele mesmo.

É porque é cheio de números. Agora eu fiz uma ultra na próstata

e acusou um negócio na urina. A doutora disse que tinha um

problema na urina. Agora só quando eu for para o urologista que irei

saber. Agora eu não me esquento. Sobre a minha próstata, ela disse

que estava normal. Agora tem noites que eu urino demais. Quando

eu vou para Natal tem vezes que eu mal urino, mas tem noites que

são muitas vezes. A minha filha gosta de repolho e bota tomate, bota

melão. Primeiro que melão tem muita água, não é? Até a maçã tem

água também. Eu bebia pouca água, mas disseram que eu tinha que

beber muita água. No dia que eu fui bater a ultra eu bebi uns 10

copos de água. Eu não sabia nem onde é que estava essa água,

porque eu bebi em casa. É obrigado a beber água que era para ela

fazer o exame. Quando a bexiga estiver cheia tem que ir. Eu notei e

disse: “só deve ir quando a bexiga estiver cheia?” E disse: “Eu já

tinha bebido dez copos de água, eu vou fingir aqui”, e disse que

estava com vontade de urinar.

Mas eu não estava agüentando era esperar. Ela disse: “Então

está na sua vez” e fui para lá. A doutora fez os exames, tudo

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direitinho. Eu só fui urinar quando cheguei em casa. Quando eu fiz

pela primeira vez [risos]... De vez em quando eu rio. Era água

demais que eu tinha bebido. Só que era para elas terem dito para eu

tomar logo em casa, não dizer quando eu cheguei lá. Então eu tomei

logo dez copos de uma vez. Eu não estava nem com vontade de

urinar, mas para eu não ficar até de noite lá. Mas parece que deu um

problema na urina. Eu sei porque deu para ver ali no exame. É

porque a gente recebe aqui ali e só sabe quando o doutor vai olhar

aquilo, não é?

E nós, curiosos, vamos dar uma olhadinha. Eu não conheço

tudo, mas aquele que está dizendo normal, que ta leve, qualquer

coisa alterada eu já sei que é que não está perturbar, não é?

A minha religião é católica, mas só que para a gente se salvar

não precisa de religião. Porque religião não salva ninguém. Salva a

gente fazendo o que Deus determinou para a gente fazer. A gente

fazer as boas obras. O que é que diz [a bíblia]: “Dais com uma mão

e que a outra não veja”. Muita gente diz: “Como uma mão pode ver

se ela não tem olhos?”. É onde está isso aqui. Eu digo que “dar com

uma mão para que a outra não veja” é você dar uma coisa e não

dizer a ninguém que deu. Se você disser, você está se vangloriando.

Porque se eu der uma coisa e se glorificar dizendo para o povo que

dei, eu estou me vangloriando, regozijado. É para eu dar e ficar na

minha. Porque quando Jesus andou no mundo fez muito milagre,

não foi? Ele não fez em troca de dinheiro não, ele obrou os milagres

que ele podia obrar. Se aquele camarada fosse merecedor. Porque

se eu tenho fé em Deus, a fé que eu tenho é pouca. Porque se eu

tivesse muita fé em Deus, se eu pedisse uma coisa ele mandava

logo e eu iria me perder. Eu estaria agora me vangloriando pior de

que os outros. Quando Deus manda a gente nem lembra mais o que

pediu. Por isso que eu digo que minha fé é pouca. Porque eu tenho

fé que nós temos um criador, mas fé para eu pedir a ele e mandar

não. Ele pode me dar com o tempo, mas se ele mandasse logo eu

iria me regozijar. Eu iria me considerar um Deus. Porque eu pedi e

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ele me mandou. Imagina se eu planto um roçado, eu iria pedir a

Deus que mandasse chuva só no meu roçado, quando ele mandou

tudo de bom para todo mundo. Quando ele manda algo de bom é

para toda a terra. Ele é bom, nós somos defeituosos. Pode olhar os

dedos de nossas mãos, eles não são perfeitos. A lua, o sol, tudo tem

defeito.

Porém, tem um pedacinho pequeno, mas por intermédio dele a

gente se perde. Nem tudo o que a gente vê a gente pode contar.

Muitas vezes chega uma pessoa e conta uma história de uma

pessoa, mas eu, para mim, enterrei. É para a gente mais adiante

fazer isso. E principalmente, dentro de favela, logo no Rio de

Janeiro...

Eu morava na favela Honório Gurgel. Eu morei lá. A primeira

viagem que eu fiz foi em 1965. Eu cheguei, fiquei lá e botei uma

bodega, que lá se chama birosca. Montei uma pequena birosca e

todo mundo me amava. Só me chamava de “Paraíba”, “velho

Paraíba”. “Nós vamos te ajudar aqui, porque nós queremos que você

suba”. Mas dizem que o sangue faz mal ao corpo. Chegou uma

prima minha lá, e me viu desenvolvendo. Tanto ela fez que eu fui

embora. Porque eu não gosto de briga, eu sempre fui da paz. E ela

queria briga e eu não queria, então decidi ir embora. Mas eu tenho

muita gente da minha família lá. Eu tenho primo, tenho cunhado,

tenho muita gente.

Meu irmão morava, lá em Irajá. Eu vivia lá. Esse já é falecido há

muitos anos. Eu ia para lá, mas eu morava mesmo em Honório

Gurgel, numa favela. Naquela época, era barraco, era de taboa. E

era coberto com telhas “brasilite”, não é? Teve uma enchente muito

grande do rio. O recruta que tinha chegado há pouco tempo lá,

começou a chover grosso, caindo pedras de granizo. E eu disse: “e

agora, o que é isso?”. Caindo muitos trovões, eu já estava um pouco

assustado, porque aqui no norte não tem chuva assim. Eu me sentei

em cima de uma mesa. Tinha uma mesa que o lastro dela... O pé

dela era bem largo, então, eu me sentei em cima, botando uma mala

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de couro que eu tinha em cima também. E começou a água subir, a

mesinha não aguentou e só se balançou. Eu disse: “essa mesinha,

ela vai virar comigo! Espera ai!” E eu botei umas cordas nos caibros,

e amarrei a malinha em cima. E desci. Eu disse: “agora eu vou lá

para o morro da Penha”. Porque no Morro da Penha são 365

degraus, a água não vai muito. Ai quando eu cheguei no portal, a

água estava dando aqui [sinaliza com as mãos que a água estava

abaixo da cintura]. Lá em cima onde eu estava morando, no barraco,

a água estava pequena, mas quando eu cheguei lá na baixa estava

por aqui [sinaliza com as mãos que a água estava acima da cintura].

Eu disse: “eu não sei nadar, eu não vou mais”. Eu tinha uma escada

do meu cunhado, meu cunhado estava fazendo um barraco. Eu

fiquei “atrepado” em cima das taboas. Eu fechei os olhos e pedi a

Deus que impedisse que eu morresse, que o inverno acabasse para

eu poder ir embora. Quando eu abri os olhos, a chuva estava quase

sanando. Vi o barro e percebi que a água baixou. E depois foi minha

cunhada que começou a implicar, eu disse: “agora eu vou embora

daqui. Eu tenho fé em Deus que lá eu não vou mais não. A minha

cunhada vem aqui de vez em quando, e diz: “Vamos, vamos morar

uns tempos lá”. Eu disse: “não, eu fiz uma promessa para não ir

mais lá”. Eu não vou mais não, por aqui eu vou ficar. Eu já sou

velhinho, não é? E de lá eu vim para aqui. O meu lugar é aqui

mesmo. Foi onde eu nasci, não é?

Eu tenho 80 anos. Não está completo que eu estou com 80,

sabe. Eu completo no dia 24 de fevereiro. Eu dou graças a Deus

porque eu falo lucidamente.

Um dia chegou meu irmão aqui que é mais novo que eu dez

anos. E minha mulher se sentou aqui, ele se sentou ali. Eu fiquei até

com vergonha. Eu conversando com a esposa dele e ela dizia que

eu estava mais lúcido do que ele. Se eu botar um objeto num canto -

pode passar 10 anos - eu sei encontrar.

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Acontece o seguinte, a pessoa com 18, 17 é uma idade crítica.

Ela pode fazer tanta bobagem. Você vê o seguinte, o camarada que

pega um carro e outro pega também e vão disputar um “racha”. Me

diga uma coisa, esses caras estão pensando em morrer? Não estão,

entendeu? Porque o cara novo hoje não pensa no dia de amanhã,

ele só pensa no hoje. Ele vai pra uma festa, faz bagunça, faz tudo.

Pensa que um dia ele não vai prestar contas. Mas só que ele vai.

Todos nós depois da morte, nós ainda temos uma provação que nós

vamos prestar conta do que fizemos de bom ou de errado. É por isso

que eu acho importante, porque no dia que o pai eterno vier para a

terra o mar vai dar de conta de todos aqueles que morreram dentro

dele e a terra também. Para nós contarmos o que fizemos de bom

ou de errado. Agora ele que vai julgar, porque eu e o senhor não

pode julgar ninguém, quem somos nós para julgar? E tem muita

gente aqui na terra que julga. Mas ninguém pode julgar, só ele. O dia

que ele vier para a terra vai julgar vivos e mortos. Os vivos são dele,

os mortos é do demônio. E hoje o que mais nós temos aqui é

mortos. Vivos tem muito pouco, porque quem quer fazer o bem hoje

é muito difícil. Hoje o senhor vê um camarada que às vezes tem uma

vaca, um toro, uma cabra, um carneiro, quer se julgar melhor que o

outro que não tem. E ninguém pode fazer isso. Porque Jesus é justo,

mas ele não é vingador. É por isso que eu digo para o senhor. Faça

tudo direitinho como eu disse que você vai até onde o deus pai

determinou. Se ele trouxe uma vida longa para você, você vai ter.

Porque nós não podemos ultrapassar, a gente só pode ter aquilo

que Deus quer. Porque se eu estou hoje com 80 anos, foi permitido.

Se ele consentir, eu vou imitar minha mãe. Minha mãe faleceu com

97 anos e meu pai com 93 anos. E meu pai era doente, ele tinha

úlcera no estomago, que só foi descoberta quando morreu.

A hanseníase, só mata se não houver o tratamento. Se não

houver o tratamento ela mata. Meu pai tinha uma úlcera no

estomago, foi quando vieram descobrir foi depois de morto. Tem um

atestado dele de óbito por ali. A úlcera catarral. Ele tossia muito,

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botava aquela baba para fora, eu não sabia de nada. Ele foi para o

médico, vindo descobrir depois do que ele morreu. Hoje não, hoje a

medicina é um negócio fantástico. Mas naquela época não existia

nem doutor. Existia um farmacêutico, mas era geralmente receitado

remédios do mato.

Antigamente saia junto de outros amigos e botávamos toda a

velocidade e saltava de cima. Eu era bom, perfeito que nem o

senhor. Eu tinha na base dos 22 anos. Aprontava essas coisas

todas. Eu sei que depois que aconteceu isso eu me lembro de que

bem que o doutor dizia. Tarde demais. Era para eu ter feito antes.

Mas eu pulava do cavalo. Ele disse a mim que não fizesse e eu

fazia. Um rapaz sem experiência, novo. Uma pessoa com 25 anos,

28 anos, não tem a experiência de uma pessoal adulta de 40 anos.

A pessoa até com 45 anos ainda faz bobagem.

O senhor viu o que eu fiz que não deu para mim e não vai fazer.

Não beber. Pare de beber. É o seguinte, se quiser beber cerveja,

beba sem álcool. Para começar, se o senhor exagerar lá vem uma

cirrose. A pessoa que exagera numa coisa não dá certo. Tudo feito

com exagero pode fazer mal. Até mesmo o alimento, se você

exagerar não faz bem. O senhor tem que só vai com o cavalo

desembestado, você tem que parar ele. O mesmo é como a gente.

Se a gente jogar baralho, vemos que aquilo não tem futuro. Porque o

senhor está tirando do seu bolso para dar aos outros. Eu já joguei

muito. Eu ganhei muito dinheiro em jogo e também perdi. Se eu

ganhar dinheiro de um pobre que tira de casa para jogar, porque o

vício é miserável... Se eu ganhar aquele dinheiro é maldito. É um

dinheiro maldito e que não vai me fazer bem. Eu ganhei tanto

dinheiro e onde está esse dinheiro? Depois eu vim acordar que eu

estava perdendo minhas noites de sono perdendo dinheiro em jogo,

quando ganhava era um dinheiro mal vindo. Entenda que a gente

tem que ganhar o dinheiro com o suor do nosso rosto. Não é porque

o senhor não está trabalhando na enxada, porque o senhor estudou

e vai ganhar o seu dinheiro. O senhor teve que estudar.

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Teve que estudar para chegar onde você está. Tem gente que

por ver alguém sentado num computador, diz: “essa pessoa está

ganhando dinheiro fácil, sentado”. Eu digo: “não, porque ele está

sentado de frente ao computador e não pode errar não, porque se

ele errar o computador erra também”. É o que eu digo ao senhor.

Procure não perder as noites de sono. Se alimentar apenas o

suficiente.

Alimentar-se de acordo, não exagerando. Tudo demasiado é

exagero. O senhor procure não perder suas noites de sono. Se você

perder uma noite de sono você não acha mais nunca. Você não

consegue ter aquela noite de sono, você não consegue mais

recuperá-la. Hoje eu estou dormindo pouco devido à idade, mas tem

velho que dorme demais. Eu durmo pouco. Só que eu acho bom. Na

noite que eu dormir muito eu acordo com preguiça.

A pessoa tem que acordar com aquele prazer, aquela satisfação.

É por isso que eu digo que se você for bom tem que andar com uma

pessoa melhor que você. Se você andar com um pedaço de mal

caminho, você sendo uma boa pessoa, o povo diz: “olha com quem

fulano está andando”. Dançar é bom.

Dançar é bom porque é uma física. Dançando o suor desce e

tem saúde. A pessoa para de suar e acabou. Tudo isso que eu digo

para o senhor.

Eu nem fumo, nem bebo. Eu não tenho vício mais. Eu já fui um

cara que já tive vício, mas eu achei... Essas minhas mãos não eram

assim não. Isso eu comecei a beber e eu fora do sério, comecei a

dar murro em mesa, quebrei os dedos. E depois que foi que me

orientei que estava tudo errado.

Isso aqui foi quando eu era muito novo, na base dos 25 anos.

Hoje eu não tenho inveja de quem tem vício. Pode beber, pode

dançar, pode farrear. Eu jogava muito baralho. Hoje o povo diz: “mas

rapaz, você deixou?!” e eu digo que deixei mesmo. A gente com

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força de vontade e a ajuda do pai eterno a gente deixa. Eu deixei

tudo.

Não, eu acho que era eu mesmo, a minha convicção. Eu que eu

quero fazer, com a ajuda do pai eterno eu faço. Entende?! Pensei

numa coisa, com a ajuda dele eu faço.

A pessoa que é como eu. A pessoa que pensa em orientar um

pouco, porque mulher é bom, mas complicado. A mulher foi feita por

derradeiro que o homem. O homem, Jesus fez para ser o varão, a

semelhança dele. Mas depois que ele fez o homem se arrependeu,

porque a fera maior que tem no mundo é o homem. Ele vai lá dentro

de uma mata e pega um leão bravo, que nasceu na selva, pega e

traz pra casa e deixa-o tão doméstico, que ele entra numa roda de

fogo se o homem mandar, isso é uma fera ou não é? Pegar um leão

feroz, e deixa doméstico do jeito de uma pessoa. Não é isso? Aí

justamente é o casal, para se unirem em matrimônio eles precisam

pensar um pouco. Sentar e conversar para depois não dizer que

errou.

Quando eu casei eu tinha 26 anos. Eu tenho um retrato que se o

senhor olhar vai dizer que não sou eu. Naquela época eu não podia

andar não, porque era mulher que era assim que... O cara

namorador parece que ele tem um círculo de mulheres. Porque tem

homens com boa aparência, mas as mulheres os odeiam. Mas eu

era um camarada que eu cheguei numa festa, tinha uma menina lá,

que parecia uma princesa. O meu amigo acenava para ela e mesma

dava aquela “carreira” de perto dele, com ódio dele. E depois

arranjou uma namorada e ficou por lá. Eu disse para ele ficar pelo

local que eu daria uma volta. Ele disse que não, só se fosse com ele,

porque fomos juntos e éramos amigos. Eu disse: “não, você

conseguiu uma namorada, você queria sair perto de mim”. Ele

apaixonado e eu pensei em dar uma volta por ai. Cheguei lá na

frente, essa que fazia cara feia para ele, eu a vi e ela e acenei com a

cabeça. Ela retribuiu. Eu sempre fui um cara desenvolvido e fui lá.

Fui lá sozinho.

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Eu falava com ela, marcava um encontro. Ela morava em

Brejinho. Eu marquei o dia determinado para a gente se encontrar.

Ela foi minha namorada por muito tempo, mas como era muito

namorador, trocava o nome delas. Num canto era Cecília, noutro

local era Josi...

Pode gravar. Pode acreditar. Era uma coisa. Tanto que elas

diziam “mais rapaz!”. Quando foi um dia quatro se encontraram.

Uma delas disse: “eu tenho um namorado que mora em canto fulano

de tal” e a outra disse: “o meu também mora lá”. A outra também...

Elas se questionaram se o nome era o mesmo e um disse: “qual é o

nome do seu?”. Um era Pedro, outro Célio, outro Joaquim. Quatro

namoradas minhas se encontraram, eram amigas, e eu perdi todas

as quatro. Eu nunca fui de confusão, mas eu perdi foram todas as

quatro. O local era Redenção onde morava. Por perto de Brejinho.

Mas quando a gente tem uma companheira era para sempre,

porque se você troca uma vida boa. Quando você só tem uma

pessoa, um está vivendo com o outro. Quando você tem mais de

uma, não consegue ter amor suficiente pelas duas.

Naquela época as coisas eram diferentes. Hoje uma mulher

quando casa, deveria ter uma grande festa. Hoje mulheres têm

demais. Não, pela caridade! Na minha época...

Um homem dizer que ficou com uma mulher por aí muito difícil.

Naquela época fazia-se um casamento, era aliança no dedo, todos a

cavalo. Todos os convidados à cavalo. O rapaz tirava o cacho de flor

que levava na cabeça. Hoje se casam do jeito que quiserem. Se a

mulher quiser ir com um traje bonito, mas se não quiser por ir do

jeito que estamos. Na minha época tinha que ser tudo de branco, a

mulher com o vestido pelo chão, véu capela.

Hoje mudou porque o povo não quer mais casar, porque tem

mulher demais. As mulheres estão dando sopa. Uma mulher de 10

anos já não é mais virgem. Antes uma mulher com 25 ainda era

moça. Hoje passou de 10 anos é um negócio... Fantástico. Hoje está

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demais. Ninguém quer casar mais não. Porque o casamento é um

negócio que tem muita responsabilidade. Você vai realizar um

julgamento. Hoje você vai numa igreja e testa um juramento e vai ser

fiel a sua esposa até o fim da sua vida. Era também do mesmo jeito.

O que é que adianta uma pessoa prestar o juramento e depois

mudarem de ideia. Um dia chegou um amigo chorando e

desabafando, dizendo que estava num tempo difícil. Disse que sua

mulher não queria mais morar com ele. Disse que um dia ele foi para

a psicóloga e ela me aconselhou a assistir filmes pornôs para

esquecer ela. Agora eu nunca tive isso, não sei se é amor. Eu não

sei o que é amizade. Eu não sei o que é paixão. Se o senhor me

perguntar eu não vou saber.

Quando acontece, eu digo que não dá. Quando alguém me trai

eu digo: “pegue suas coisas e acompanhe ele”. Ela disse que eu

tinha que dar tudo dentro de casa. Hoje eu não tenho nada porque

acho que é bobagem, eu só quero uma geladeira, uma mesa, um

filtro. Eu disse que ela arrumasse um carro para levar tudo,

deixando-me aqui. Ela disse que a criança ficaria comigo e eu disse

que estava ótimo. Ela levou todas as coisas, eu fui para Nova Cruz e

comprei tudo de novo. Depois ela soube que eu tinha comprado e

botou na justiça, pois disse que eu não tinha dado. Ela foi lá em casa

e sargento falou: “o senhor passou tantos anos com sua mulher,

mas ela não teve direito a nada?”. Eu disse: “eu dei tudo o que tinha

dentro de casa para ela. Tenho todas essas coisas, mas...”. Ele

disse que eu estava certo e que ela não prestava. Passei 25 anos

com ela.

Agora eu só faço ficar. Eu tenho uma pessoa, mas nada de

responsabilidade. Hoje eu compro uma casa e dar a uma mulher. Eu

já dei duas casas para mulheres. Eu ganhava dinheiro fácil. Eu

recebi um dinheiro de uma indenização e dei tudo... Para meus filhos

e essas mulheres. Hoje eu vivo pagando aluguel dessa casa, pode

acreditar, na maior tranquilidade do mundo. Não esquento a cabeça.

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Meu irmão. Ele mora em Genipabu. Ele tem uma pousada lá em

Genipabu. Ele vinha aqui... É. Acontece o seguinte... Ele está

morando em Genipabu. Eu tenho 80 e ele tem 70. Um homem

trabalhador. Até hoje é um homem trabalhador e tem três bugres

naquelas dunas.

Bem de vida, porque quando ele chega aqui ele “chora” demais.

Porque quem sempre tem as coisas nunca diz que tem. Ele,

comparado a mim, é rico. Ele vinha aqui de tempo em tempo. Ele me

deixou o telefone dele ai, o cartão, mas eu não ligo para ele, sabe.

Para quê? Eu tenho vergonha. Ele é rico, procura não ligar para

mim, então eu não quero me rebaixar não. Eu nunca pedi, vou me

rebaixar não. Ele é quem dá tudo a nós [Jesus]. Se ele não der,

quem é que vai dar? Ele não desampara ninguém, pode ser rico ou

pobre, pode ser aleijado, ele não desampara ninguém. Porque ele

veio para a remissão dos pecados, ele não veio por um, ele veio por

todos. Só que nós às vezes temos uma condição melhor que a gente

e não olha aquele pobre que chega mendigando na porta de nossas

casas. Eu já sou diferente, se eu puder ajudar, eu ajudo. Porque eu

não sei o dia de amanhã. Muita gente já tem me ajudado e a gente

só Pode fazer o que Deus quer. Não posso ultrapassar, não é? A

gente só pode ar aquilo que tem e que pode. É por isso que eu vivo

por aqui, porque aqui é tranquilo. Aqui se for preciso, pode passar

até a noite aqui na calçada. Em Natal não pode. A minha filha tem

uma casinha lá no Bairro Nordeste, mas quem é que pode anoitecer

na calçada?

Minha filha ela é nova. Ela tem 46 anos. Ela é solteira. Ela vem

aqui e passa segunda, terça, quarta, quinta e sexta. Quando sai

deixa tudo na geladeira prontinho. Eu só preciso ferver e comer. Eu

tenho três filhos. Mas quem está sempre aqui é ela...

Dinheiro também não é para a felicidade da gente não, porque

dinheiro não é tudo na vida da gente. Se fosse assim o presidente

da república não morreria, doutor não morreria, deputado, senador,

não morreria. Dinheiro não é tudo. Chegou à hora de ir, se Jesus

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mandar buscar, ele vai. Um dia nós nascemos e um dia temos que

desaparecer. Porque a gente não vai ficar para ser eternos. Eterno

só tem Deus e se ele decidir, não tem que volte atrás. É por isso que

eu digo que se você procurar o que eu digo... Porque se Jesus deu

uma vida. Porque quando nossa sentença já está escrita não tem

como retirar. Agora a gente desobedecendo, a gente morre cedo.

Porque quando eu estou dentro de casa, chega um amigo batendo

na porta me chamando para uma festa. Eu deixo de estar no meu

amado sossego, vou com ele. Lá um barulho, uma pessoa atira e

pega em mim, eu morro. O povo vai dizer: “mais rapaz, fulano de tal

morreu, chegou a hora dele morrer”. Não, ele desobedeceu,

entendeu? Eu e nem o senhor, não temos amigos. O único que nós

temos é aquele ali de cima. Quantos amigos matam outros? Isso

não é amizade. É por isso, que o senhor procure andar com que é

melhor do que o senhor, para ficar lá em cima. E não fazer nada

extrapolado.

O senhor pega um tênis diz: “eu vou fazer um treino”, porque é

boa uma física. A pessoa, que Deus não queira, quebra uma perna.

O senhor não é craque de bola, vai gastar quase o que não tem, por

quê? Por causa de uma brincadeira de mau gosto. O senhor tem

que fazer isso mesmo. Porque se eu não faço as loucuras que eu fiz

eu não hoje estaria bem, em forma. Foi a minha desobediência,

porque conselho eu tive.

Isso aqui antigamente era uma casinha e acolá. Foi se

desenvolvendo e se tornou uma cidade. Agora só falta prefeito, né?

Porque a entrada de Santo Antônio não tem nada de vista nem para

um lado e nem para o outro. Isso aqui era para ser bem visto. Nova

Cruz...

Ali devia ser uma coisa muito bonita, né?! Mas não tem nada,

porque o prefeito só faz ganhar o dinheiro e nada faz.

A Pedra da Onça aquilo ali antigamente era um ponto turístico, mas

só que o prefeito não liga para isso não.

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Brejinho é a entrada de Santo Antônio devia ser uma entrada

que nem tem em Monte Alegre.

Muito bonito né?! Mas só que aqui em Santo Antônio não tem

prefeito. É que tem aquela saída, daquele ponto que turístico, tem

aquela entrada que sai de Santo Antônio para Brejinho, tem a outra

para Nova Cruz, que é onde o senhor foi para a Vaquejada. Aquilo

ali era para ser uma vista muito bonita, né? Aquilo tem para

Goianinha tem para São José de Campestre, todas elas tem essas

saídas... não tem vista nenhuma.

Pelo menos aqui é tranquilo. Eu fico aqui às nove e dez horas

aqui na calçada, mas acontece que em Natal ninguém pode ficar.

Aqui é da minha menina. Ela deixa isso aqui para eu não estar

parado, porque ela passa dois dias em Natal. Ela foi ontem, passa

ontem e hoje e amanhã ela está aqui. Porque ela é quem cuida de

mim, né? Mas a família dela é lá em Natal. Então ao invés de minha

irmã ser mais velha, então elas cuidam também. Tem uma que levou

uma queda e quebrou o fêmur e não anda. Eu comprei um “anda já”

para ela. Para ela ir tomar banho. Arrumei uma cadeira de rodas e

dei para ela também. Ela nem quer mais o “anda já”, quer logo a

cadeira de rodas. Já é velhinha, quase tem preguiça de falar. Agora

fuma demais.

Sou diferente eu acordo de três e meia, quatro horas. Vou deitar

às sete horas, oito horas. Mas hoje eu não vou dormir, vou me

deitar. E eu fico pensando no que se passou o dia até que o sono

chegar. Eu já estou acordado. Três horas, três e meia, eu já estou

de pé. Às vezes minha filha pergunta para a mim se eu não vou

dormir. Eu digo que não estou com sono e vou fazer alguma

atividade.

Eu vou no barbeiro, vou conversar com os colegas. Faço coisa

aqui que muita gente não faz. Eu pego coisas aqui que ninguém não

faz. Acontece o seguinte, como é que um homem de 80 anos

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consegue fazer isso? O doutor disse para mim que eu faço isso e

posso ir para a cama. Eu faço.

Eu tenho um amigo que teve uma paralisia, que passou de um

lado para outro. Do lado direito para o lado esquerdo. Ele andava

com a cocha puxando. Ele só andava com o carro, hoje ele só anda

de muletas. Para descer do carro tinha que ser com a muleta, para

subir tinha que ser com a muleta. Por causa disso. Eu não faço isso

não. Porque eu já vi gente nova que não bota a perna em cima da

outra perna. Só com a ajuda da outra mão.

Hoje tem gente que se espanta por não conseguir fazer isso. E

eu faço. Porque antigamente quando eu era mais novo, as minhas

pernas eram boas, eu virava as costas com as mãos para cima e

voltava de novo. Encostava no chão e voltava. Hoje eu não faço

mais devido aos pés.

A ficção muitas vezes antecipa a realidade, como anuncia Oscar Wilde

(2007): “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. Um artifício de

ficção expressa bem a minha intenção.

Esse episódio de ficção a seguir se insere a partir da narrativa de seu Célio, e

sobre alguns momentos específicos da sua vida, que em mim funcionaram como

impulsionadores para modelar essa breve narrativa ficcional, por meio da maneira

que enxerguei alguns acontecimentos, ora explícitos ora implícitos, ao longo daquela

entrevista. E por se tratar de ficção, um pseudônimo assumirá o protagonismo,assim

como os outros elementos do cenário receberão outros papéis e atuações, conforme

pode ser notado a seguir.

Ao contrário de outros grandes sedutores, Aurélio não é fruto da mera

imaginação. Nasceu em 1937 no estado do Rio Grande do Norte, e é filho de uma

origem simples, como tantos outros homens do campo, o que talvez explique as

suas ambições pela abundância.

Do campo para a vida na cidade, da cidade para o coração de inúmeras

mulheres. Aurélio chega aos oitenta anos, um lendário aventureiro, inconfundível

sedutor e colecionador de amores ousados.

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O audacioso sedutor nordestino é filho de Seu Antônio e de Dona

Guilhermina. Cresce numa localidade denominada Cabana, um distrito rural pouco

povoado e pobre, distante dos grandes centros e com estradas esburacadas, o que

dificulta a vida da população, que depende do auxílio do governo para sobreviver.

Aquele povo simples vivia longe da agitação das grandes cidades, mas

vigiado pelos olhares e comentários recíprocos entre vizinhos, que pareciam

trabalhar em regime de plantão, ora sentados à frente das casas, ora plantados nas

praças e de onde mais fosse possível compartilhar o falatório do dia a dia. Os que

escapavam dessa vigilância era uma pequena parcela da população, que não atraía

com importância aqueles olhares e assim seguiam despercebidos daquela gente. É

o caso das crianças.

Desde muito pequeno Aurélio foi entregue aos cuidados das vizinhas, pois os

seus pais saiam diariamente para trabalhar no campo. E outras vezes precisavam

vender na feira da pequena cidade a sua produção de subsistência. Aurélio passa a

maior parte da sua infância nos colos das senhoras e moças da vizinhança. E, ao

que parece, o contato com as mulheres lhe deu dupla vantagem: além de ter sido

cuidado por muitas mãos carinhosas e afetivas, passou a conhecer precocemente,

sem que pudesse perceber, as intimidades do mundo feminino.

Logo no início da adolescência sente que precisava retribuir com uma moeda

de troca todo aquele carinho que continuava a receber das meninas. Chamegos e

afagos tornam-se mais intensos e frequentes. A atenção que conferia às mulheres

ultrapassava o usual, e uma forma de amar e envolver se consolida como a sua

personalidade sedutora.

Ainda na puberdade foi tomado por outra paixão, o jogo. Essas duas paixões,

as mulheres e o jogo, passam a fazer parte da sua própria vida logo cedo. Com

Marília descobre os primeiros caminhos do amor aos 12 anos de idade, e com

Marcela, uma garota de 19 anos, as cartas de pôquer.

Anos depois, aos 17 anos de idade, Aurélio abandona temporariamente a sua

terra natal e segue rumo à capital a fim de participar de um exame obrigatório para a

admissão nas forças armadas. Imaginando que poderia ser convocado, decidiu-se

pelo exército brasileiro por ser o caminho escolhido por uma maioria de brasileiros

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que não se afina com a água do mar ou com as alturas. Porém, logo após o

alistamento foi dispensado por excesso de contingência, o que permitiu o seu rápido

retorno à saudosa Cabana.

A partir daqui a sua vida muda de direção e muitos acontecimentos do seu

passado, até agora não relatados, começam a fazer sentido. Uma nova vida, outro

mundo está por vir.

Logo cedo se envolve nos círculos de jogos e experimenta o gosto do lucro

fácil e do acúmulo de dinheiro nas rodadas de pôquer que participa com os

jogadores da redondeza. O rótulo de afortunado passa a marcá-lo na comunidade, e

se vê cercado de amigos e mulheres em muitas noites intermináveis de jogos,

bebidas e diversão.

É claro que não tardaria a chegar a sua primeira derrota, a segunda, a

terceira, mas como um bom jogador passa a denominar aqueles momentos como

“fase difícil, mas que passa”. Após as sucessivas perdas recupera a sorte, e com

mais apetite ultrapassa noites inteiras jogando e apostando todos os recursos que

empilhou contra os outros jogadores.

Em pouco tempo se torna proprietário de vários imóveis do local. O jogo

torna-se um meio de vida, prestígio e fama. Aurélio, aos 25 anos de idade, é o jovem

mais promissor da localidade. Rumores sobre a sua sorte e habilidade com as cartas

se espalham por todas as direções.

Aurélio é conhecido também nos cabarés como o amante vigoroso e

generoso com todas as suas amantes. Gastava volumosos maços de dinheiro todas

as noites com bebidas e mulheres. Onipresente, possuía várias amantes dentro e

fora dos cabarés da região. O prazer parecia inesgotável, o luxo e a sorte o

acompanhavam por onde estivesse. Mas a sorte estava por mudar.

Os seus pais, que até aqui pareciam esquecidos, entram em cena ao serem

tomados por um mal estranho que adormece o corpo e produz muitas dores da

cabeça aos pés. Aurélio descobre que esse mesmo mal havia há pouco tempo

adoecido as suas tias. Diante da situação, decide retornar ao campo e encontrar os

seus pais, ali as coisas começam a fazer sentido.

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Aurélio interroga os seus pais e aos poucos percebe que se trata de um mal

que atingia a família há muito tempo, mas que agora parece ter ganhado força. Ao

tomar banho observa que as marcas que estão nas suas costas são semelhantes

àquelas que acometem os seus parentes, e apenas agora se pergunta: estou

doente? Sofro do mesmo mal?

Antes mesmo de encontrar uma resposta para a sua reflexão, abandona o

jogo, mulheres, e agora não possui o mesmo otimismo, tampouco o desejo

incontrolável de viver como antes. Como era comum na época, o médico de família

era o mesmo para toda a localidade, e atendia os pacientes alternando o

atendimento nos dias disponíveis entre os diversos municípios. Mas numa quinta-

feira à tarde, com o sol no alto da sua cabeça, uma tarde quente como tantas as

outras, Aurélio vai procurar o médico, que acabava de chegar à região. E após um

minucioso exame em todo o seu corpo descobre que tem os mesmos sintomas dos

seus parentes. Por algum tempo Aurélio reflete: mas que doença é essa?

Como a coragem sempre foi o seu forte, decidiu descobrir o que acontecia, e

a resposta não demorou a chegar. Pouco tempo depois da consulta médica recebe a

visita de agentes do governo e a agonia toma conta do ambiente. Aqueles homens

traziam consigo uma ordem. Era preciso acompanhar toda aquela gente para um

local desconhecido. Eles não tinham escolha, pois junto a esses agentes estavam

homens da polícia que pareciam guarnecer a situação. Às pressas todas as suas

roupas são colocadas em uma espécie de sacola, a mobília e a casa dos seus pais

são deixadas para trás. Nem a sua riqueza o protegeu da situação. Minutos depois

estavam Aurélio, os seus pais e os seus tios, todos na boleia de um caminhão rumo

ao local designado por aqueles homens.

A sua sorte estava mudada, naquele momento parecia tê-lo abandonado.

Aurélio estava a caminho do desconhecido. Mal iniciou o percurso não hesitou em

perguntar para aqueles homens para onde estavam sendo conduzidos. Com a frieza

de um carrasco um deles respondeu: “para o seu novo mundo”.

Quatro horas depois, chegam a uma espécie de fazenda cercada por longas e

altas cercas, onde são chamados a desembarcar da boleia do caminhão e levados

ao interior de um pavilhão construído dentro daquela fazenda. As construções se

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assemelhavam a uma vila. Lá continham pequenas casas próximas umas das outras

e bem ao longe era possível enxergar algumas pessoas diante das janelas e portas

das casas. Sem receber alegações ou mais explicações são conduzidos a pequenas

celas, os homens separados das mulheres e das crianças.

Apenas no dia seguinte, depois de uma noite desconfortável em camas mal

cobertas e janelas estreitas, que dificultavam a passagem do ar, foram visitados por

homens com guarda pó brancos, porém um pouco manchados de pó e fuligem.

Esses homens vestidos com a aparência de enfermeiros pedem que os visitantes

levantem-se para ouvir o médico responsável. E em som audível o médico informa

que, a partir daquele momento, aquelas pessoas jamais poderiam retornar às suas

casas, pois em poucos meses próximo dali seriam construídas suas sepulturas.

Aflitos, questionaram ao médico que loucura era aquela. E o médico, com a frieza de

um magarefe, os abateu com um grito: Lepra! Estão com lepra!

Voltemos à realidade. Tomo a seguir alguns fragmentos da entrevista para

religar as narrativas de vida ao histórico da doença.

Eu morava num sítio que se chamava Arisco. Daqui para lá dá

uma base de uns seis quilômetros. Nasci em 1937, me hospitalizei

em 1947, com dez aninhos de idade. Passei nove anos lá no

leprosário [...] Nessa época não sabia o que tinha.

O Egito Antigo se constitui em uma das principais referências da lepra, datada

há cerca de 1350 a.C.. A revista americana Science, em 2001, apresentou o

resultado de um estudo desenvolvido por pesquisadores do Instituto Pasteur de

Paris que defendem a tese da provável origem da doença no Egito, divergindo da

crença de que o seu surgimento ocorreu na Índia. A conclusão se apoia na análise

do genoma de diferentes cepas da mycobacterium leprae em diversos países dos

cinco continentes.

Embora as origens da moléstia apontem para a África, as referências

documentais de caráter médico mais antigas sobre a doença remontam à Índia,

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onde são encontradas evidências da lepra no livro Susruta Samhita, que datam por

volta de 600 anos antes de Cristo. Susruta foi um grande médico hindu, responsável

pelas principais obras da antiga medicina indiana (CLARO, 1995). O livro Susruta

Samhita contém conhecimentos de anatomia e descrições de técnicas cirúrgicas,

descrições de sinais, sintomas e formas da doença.

Do Egito a doença teria se estendido para a Índia, China e Japão. Na Europa,

chega aproximadamente no século IV a.C., inicialmente na Grécia, trazida por

soldados dos conquistadores persas Darius e Xerxes, ou proveniente do regresso de

tropas de Alexandre, o Grande, das guerras gregas de conquistas na Ásia. Na

Alexandria – o mais famoso centro de estudos de medicina da Antiguidade – se

investigava a chamada "Elephantíasis", que, por muito tempo, foi confundida com a

lepra e tratada como tal. Após o século XV, a doença foi disseminada no continente

Americano, provavelmente pelos colonizadores espanhóis e portugueses.

Apesar de tantos anos de evidência da hanseníase, é no período de 1098 e

1179 d.C., que Santo Hildegardo, – abade alemão com variada gama de

conhecimentos médicos – tornou-se o primeiro a escrever sobre as formas

diferenciadas da moléstia, bem como sobre a adoção de um tratamento sistemático

para a doença. As anotações se referiam a associações simbólicas dos tipos de

lepra "ulcerosa", uma "rubra" e outra "alba", e ainda especificavam que a doença do

tipo "rubra" se manifestava em indivíduos coléricos, com vícios de embriaguez e gula

(CUNHA, 2002). Já os tipos de hanseníase "alba" eram mais comuns em

“libidinosos” e, como esses vícios dificilmente podiam ser controlados, a doença

tardaria a atingir a cura.

Hildegardo demonstra uma análise preocupada com o julgamento moral do

doente. O seu conhecimento médico é posto como recurso para ajuizar o curso

moral do doente, fato que se compreende, uma vez que a imprecisão em descrever

a hanseníase, quanto aos seus sintomas, etiologia e transmissibilidade eram

recorrentes. Apesar de essa imprecisão tornar os dados ambíguos, as informações

sobre sintomas da doença caracterizavam um período – desde a Antiguidade – em

que médicos preocupavam-se mais com a identificação da moléstia do que com

tratamentos do doente, pois julgavam alguns deles ineficazes.

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Na Europa medieval, entre as causas do aumento de casos de hanseníase, a

principal, segundo Cunha (2002), consistia na dificuldade médica de diagnóstico. Os

médicos medievais não distinguiam a hanseníase de outras doenças

dermatológicas, chegando a classificá-la de duas formas, “lepra verdadeira” e “lepra

falsa”. É Hildegardo, no século XII, que a diferenciou de outras patologias como

escabiose, descamações e ulcerações dermatológicas de etiologias diversas,

possibilitando, mais tarde, também o diagnóstico diferencial da doença em relação

ao escorbuto e à sífilis.

Com referência àquela época, apesar do trabalho de Hildegardo, a

hanseníase continuava a ser confundida com outras doenças existentes como

elefantíase, sífilis e demais dermatoses. Até o século XIV, o nome lepra mantinha o

significado de lesões provocadas por queimaduras, escamações, escabiose, câncer

de pele, lúpus, escarlatina, eczemas, sífilis além da ”lepra verdadeira” (CUNHA, op.

cit.)

Embora as doenças de pele remetam a etiologias distintas, ao longo dos

séculos a lepra está fortemente ligada à maioria delas. Entre elas, a sífilis e o caráter

que lhe é atributo, o pecado. Essa conotação moral como no caso da sífilis reflete na

lepra o temor do contágio, ao mesmo tempo em que aumenta o castigo do leproso,

ao atribuir a causa da doença a um comportamento libidinoso.

Mesmo com informações imprecisas sobre a doença, d'Haucourt (1994),

defende que a proliferação da moléstia é devida às condições sanitárias na Idade

Média, período em que havia altos índices de mortalidade infantil, bem como uma

baixa expectativa de vida dos adultos, em torno de trinta anos. Durante a Idade

Média acredita-se que as principais causas da disseminação da doença é o

contágio, a hereditariedade, o clima e a alimentação inadequada, aliados à

subnutrição e à penúria.

Hoje, estudiosos acreditam que a alimentação, tratada isoladamente, não

representa fato importante no tratamento, mesmo porque a escassez de alimentos

era evidente na época, predominando o milho, leite, ovos, castanhas, pouca carne e

nenhuma verdura (D'HAUCOURT, 1994). O que teria tornado a hanseníase

endêmica está na associação de elementos, tais como as más condições de

habitação, higiene e alimentação, somadas ao acelerado crescimento populacional e

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ao consequente aumento do número de indivíduos no reduzido espaço das cidades

medievais, favorecendo maior aglomeração entre doentes e os sadios e gerando

propagação de várias doenças, inclusive a hanseníase.

O movimento das Cruzadas e dos peregrinos é também considerado fator de

disseminação da hanseníase na Europa medieval. Muitos cruzados eram infectados

pela doença ou por aquilo que, à época, é considerado hanseníase. Conforme

Rosen (1994), com a extensão das Cruzadas no Oriente Médio, durante décadas –

período de grande infestação de doenças –, os cruzados, ao retornarem para suas

casas, provavelmente levam a lepra até o mais remoto povoado, contribuindo para a

disseminação da doença.

Bonnassie (1985) descreve os estudiosos Virchow e Hansen, como

defensores da teoria de que a lepra existia na Europa na época da introdução do

cristianismo, tornando-se endêmica na Idade Média entre quase todos os povos

europeus ou dominados pela Europa. Esses estudiosos concordam que a

possibilidade de contágio pode ter sido muito maior no referido período, porque não

se conhecia onde a doença era endêmica até então. E assim, por meio das

Cruzadas, a doença se disseminou de forma mais acelerada configurando-se, na

maioria das vezes, em uma epidemia.

Na tentativa de controlar a epidemia da doença ao longo dos séculos, as

suspeitas relativas à incurabilidade da lepra eram tratadas nos ambientes de

reclusão, os médicos procuram apenas aliviar sintomas sem aprofundar-se nas

causas. A reclusão de doentes se constituiu em uma prática que perdurou por vários

séculos, com a lepra não foi diferente. Como a reclusão de doentes era comum em

épocas de limitadas técnicas para tratamento, é possível que médicos, em períodos

históricos distintos, agissem em prol desta medida. Como bem ilustra Bonnassie

(1985), em uma passagem de Gordônio, datada de 1697: em casos de lepra

confirmada ou verdadeira, não deveria haver intervenção, a não ser para prolongar a

vida. Propunha-se, portanto, uma postura de cautela em relação à doença, apesar

de não se acreditar na cura do doente, devido às concepções fatalistas que

envolviam a moléstia.

A partir da Idade Média disseminou-se na Europa um conjunto de ações

terapêuticas para o tratamento das doenças, baseados em recursos disponíveis da

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época. Parte desses tratamentos se fundamentava em prescrições de estudiosos

dedicados sobre o assunto. Outras seguiam as referências religiosas e a sua

influência na cura das pessoas.

No combate a hanseníase, Santo Hildegardo prescrevia tratamentos

utilizando pomadas e longos banhos de suor por vários dias, além de banhos em

“sangue” de cavalo e emplastros de terra e sangue. Conforme Cunha (2002), para

uma das formas de lepra, considerada por Santo Hildegardo como "incurável", ele

recomendava banhos de lama e sangue de menstruação, com a maior frequência

possível. De modo semelhante, na Espanha medieval, Gordônio registrava o uso de

sangrias, banhos quentes, ingestão de caldo de carne de cobra e até a extirpação

dos nódulos. Nessa época, o sangue, como fator de força e saúde, é amplamente

utilizado.

Hoje as terapêuticas com o uso do sangue continuam bastante difundidas, a

exemplo da auto-hemoterapia, que consiste na retirada de cinco ml de sangue do

paciente para injetá-lo instantes depois em outro local do corpo. Esse método visa

estimular o sistema imunológico, tratando diversas doenças, inclusive a hanseníase.

Apesar dos diversos avanços terapêuticos de hoje, na Idade Média a lepra

não possuía cura. Por esse motivo, uma das formas da doença era classificada

como “incurável”, e as outras como “cura espontânea”. Alguns autores como Hecht,

Schadewaldt e Varron, segundo Bonnassie (1985), atribuem a cura espontânea vista

pelos médicos da época como conseqüência da melhoria nas condições de higiene

e dos esclarecimentos sobre a sua importância. Sabe-se hoje que essas

manifestações semelhantes à doença não se constituem em lepra, apesar de

receberem a mesma denominação. Contudo a hanseníase, ao assumir essa dupla

configuração, “cura espontânea” e incurável”, passa a englobar um universo que

inclui a maioria dos problemas de pele, que vão de dermatites simples ao câncer de

pele, tornando o seu diagnóstico mais difícil.

Hecht, Schadewaldt e Varron, colocam - a partir de observações - que

médicos da época negam que a transmissibilidade pudesse ocorrer por intermédio

das migrações ou do deslocamento de soldados, comerciantes e povoadores, ou

ainda pelas Cruzadas. Também acreditam que onde a doença não é corriqueira, não

há risco de uma disseminação mais acelerada. Entretanto, observam em alguns

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casos que a doença se dissemina mais aceleradamente, configurando-se, na

maioria das vezes, em epidemia, fato atribuído por estes estudiosos às condições de

higiene como elemento de propagação da doença.

Estigma

O preconceito que tem somos nós mesmos. O dono do

problema, ele é quem faz tudo aquilo. O preconceito é a gente quem

faz. Se a gente passa num canto e alguém olhar para a gente, a

gente já pensa que está olhando os nossos defeitos. Aí é por isso

que às vezes eu não procuro nem sair de casa.

O termo estigma é de origem grega e significa marca feita em escravos a

ferro e fogo. Talvez por isso traga consigo esse forte sentido semântico de marcar

para identificar. Na sociologia o estigma é um tipo especial de relação entre atributo

e estereótipo, em referência a uma característica profundamente depreciativa. Assim

o estigma não se reduz a uma “propriedade” ou “técnica”, pois não está limitado à

referência a apenas um atributo (GOFFMAN, 1988), mas a um tipo especial de

relação entre o atributo e o estereótipo.

Esse conceito desenvolvido por Goffman (1988) é utilizado para explicar três

tipos fundamentais de relação estigmatizante: abominações do corpo, como as

marcas corporais originadas de doenças como a hanseníase; defeitos de caráter, a

dimensão moral da religiosidade e o seu julgamento da conduta do homem; e

proveniência social, nacionalidade, religião, casta. Goffman (1988) define o estigma

baseando-se nessas três acepções.

Embora, por um lado, a dimensão física da doença se refira às consequências

diretas da lepra, tais como as mutilações, por outro lado a ideia de pecado e

poluição ligados à moléstia parece trazer consigo toda uma perspectiva

estigmatizante da doença, transformando-a em uma poderosa alusão para o sentido

de punição e sofrimento.

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Assim a lepra passa a agregar, além do sentido de necrose, os castigos

provenientes da vontade divina sobre os homens. Dessa maneira, a denominação

lepra se desloca de uma dimensão meramente clínica para incorporar os resultados

das associações entre as dimensões sociais da doença, tais como o estigma em

torno da enfermidade.

A estigmatização associada à lepra está ligada a um momento específico da

humanidade, proveniente da origem do termo a partir das traduções da bíblia do

hebraico para o grego, que datam de 300 anos a.C., onde a palavra hebraica

tsara’ath, um termo genérico empregado para diversas condições associadas à

impureza religiosa, foi traduzida como lepra (GRAMBERG,1959). Essa tradução

ligada à impureza fortaleceu ao longo dos séculos o estigma da lepra como uma

menção para o castigo aplicado por Deus nos homens e por isso se constituiu em

um dos maiores problemas relacionados à doença até os dias de hoje.

Em 1967, com o objetivo de diminuir a estigmatização da terminologia lepra, o

pesquisador brasileiro Abrahão Rotberg propôs um amplo estudo por meio de

enquête internacional visando desestigmatizar a moléstia causada pelo bacilo

Mycobacterium leprae.

Após a conclusão daquele estudo Roteberg defendeu a substituição do termo

lepra por hanseníase. Dessa maneira, como parte dos esforços para combater a

moléstia e o preconceito vinculado à doença em todo o mundo, o Brasil adotou a

substituição de lepra pela nova terminologia hanseníase, a partir de 1995, tendo por

base a lei 9010/95.

Após a aplicação da lei, todos os documentos públicos oficiais para que

pudessem circular, em todo o território nacional, passaram a utilizar a nomenclatura

hanseníase, em substituição à lepra. Essa estratégia visava a eliminação do estigma

da doença.

Hoje, talvez seja possível perceber que a estratégia de proibição do uso da

terminologia lepra pode ter se tornado ineficiente, dentre outros fatores, devido ao

seu caráter impositivo. Essa proibição parece ter negligenciado todo o significado

que a lepra constituiu ao longo dos séculos de existência. E, sobretudo, a maneira

com a qual os doentes e o restante da sociedade lidam com a lepra.

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Nesse contexto, talvez possa fazer sentido uma referência ao mito de Gyges.

Narrado por Platão (2006), no livro II de a República, o mito em torno do anel de

Gyges é utilizado há séculos como um exemplo clássico para refletir sobre questões

éticas. No mito de Gyges, Platão narrou à história de um camponês que descobriu

um anel mágico, que permitiu transformar a sua vida. Dessa maneira, parece

oportuno recrutar o mito do Anel de Gyges como alusão à substituição da

nomenclatura da lepra por hanseníase.

Gyges era um pastor do antigo reino da Lídia, século VII a.C., que hoje

corresponde ao território da Turquia. Certo dia, após uma forte tempestade, houve

um grande tremor de terra, quando se abriu uma fenda no solo bem perto de onde

ele estava. Diante dos seus olhos apareceu um grande cavalo de bronze, uma

espécie de estátua oca, com uma grande fenda em sua base.

Dentro dela era possível enxergar o cadáver de um gigante que jazia

completamente despido a não ser pelo belo anel de ouro que trazia em sua mão.

Gyges entrou na estátua de bronze e, maravilhado com o cenário, pegou o anel

daquele gigante para por em seu próprio dedo sem saber a surpresa que lhe estava

reservada.

Dias depois, em uma assembleia dos pastores onde se preparavam para

apresentar ao rei um relatório sobre os rebanhos, Gyges, sentado entre os outros,

inadvertidamente girou a pedra do anel para dentro da mão. A partir desse momento

percebeu que os outros pastores passaram a falar dele como se não estivesse

presente - estava invisível. Admirado, tornou a virar a pedra para fora e voltou a ficar

visível. Prudente, repetiu a experiência e o resultado foi o mesmo.

Imediatamente e sem revelar aquele segredo, tratou de convencer a

assembleia a enviá-lo ao palácio real a fim de apresentar o relatório sobre os

rebanhos ao rei. Assim que chegou a corte Gyges, usando dos seus poderes,

seduziu a rainha, matou o rei e usurpou o trono, iniciando a sua longa dinastia.

O mito do anel de Gyges parece ter sido a inspiração para a substituição da

terminologia lepra por hanseníase. Pois assim como o anel mágico de Gyges, a

substituição do termo lepra por hanseníase parece ter tido a intenção de funcionar

como um artifício para conferir a invisibilidade ao estigma da lepra.

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No caso da lepra, essa invisibilidade não parece ter funcionado como no mito

de Gyges, pois, ao associar a nova terminologia – hanseníase a lepra – seja pelos

sintomas da doença ou pela associação ao nome do descobridor da etiologia da

doença, Hansen, é possível notar que apenas a mudança na nomenclatura não foi

uma ação suficiente para eliminar o estigma da lepra.

Talvez a solução encontrada por Roteberg não fizesse muito sentido porque

desconsiderou que a lepra é uma doença cifrada, inacabada e da ordem da

metamorfose. E desse modo, mesmo o desenvolvimento de modernas terapêuticas

e até mesmo a descoberta da sua cura não são suficientes para eliminar o seu

estigma. Sobretudo, a adoção de uma imposição da lei, como forma de erradicar um

estigma.

Assim, ao que parece, o efeito imediato dessa mudança limitou-se a

substituição de um termo por outro. Pois ambos os termos remetem a mesma

doença e aos mesmos problemas a ela ligados.

Por outro lado, a alusão ao giro do anel para dentro da mão, na lepra, apesar

de se constituir em um esforço para significar a substituição da terminologia lepra

por hanseníase,não parece se constituir em um recurso com sentido. Pois além de

essa mudança na terminologia da doença não ter sido uma iniciativa ou uma escolha

feita pelos leprosos, essa imposição da lei não parece ter efeito sobre eles, na

medida em que ao longo dos séculos os leprosos não aparentam ter receio de

serem descobertos.

Assim, essa estratégia isoladamente parece ter se mostrado insuficiente para

eliminar o estigma da lepra, funcionando apenas como um recurso para dissimular a

existência do estigma, dos doentes e da doença, satisfazendo, dessa maneira,

apenas a regra do jogo imposta pela lei que institucionaliza a obrigatoriedade da

nova terminologia.

A minha família adoeceu quase tudo. Antes de eu ir, tinha duas

tias minhas e dois tios. Depois eu fui e meu pai foi também. Só que

nem eu e meu pai chegamos a nos internar, porque eu era criança.

Então doutor Varela conseguiu uma casa ao lado da linha de ferro.

Então ficamos por lá, né?! Muito tempo depois que meu pai faleceu

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é que eu retornei a retomar para lá. Meu pai faleceu e minha mãe

também havia falecido. Dessa forma, o hospital era o mesmo que

ser a minha moradia. Eu saia um mês, passava 6 meses, 4 anos, 6

anos... Eu passei a minha vida assim.

Duas tias minhas, a finada Dona Maria, a finada Adelmira, finado

Joaquim e meu outro finado tio. Todos tiveram hanseníase e meu

pai também. Meu pai é Francisco. Essas cinco pessoas tiveram

hanseníase, comigo seis.

Todos fomos para o mesmo lugar. Fiquei eu e o meu irmão

novo que eu tenho, não saiu de perto da gente não. Ele não ficou

isolado. Meu irmão tinha uma saúde de bicho. Não teve nada no

mundo, não houve problema nenhum com ele. [...] Eu entrei [no

Hospital Colônia] em 47.

QUEM JAMAIS PÔDE SONDAR AS PROFUNDEZAS DO ABISMO

(Júlio Verne)

Pode parecer paradoxal, mas esse trecho da entrevista parece replicar o

modo como Júlio Verne, em Vinte mil léguas submarinas, recrutou a pergunta feita

há seis mil anos por Eclesiastes: “Quem jamais pôde sondar as profundezas do

abismo?”. Naquela ficção o personagem professor Aronnax respondeu, “apenas dois

homens, entre todos, têm o direito de responder: o Capitão Nemo e eu” (VERNE,

2011, pg. 258). Mas, ao voltarmos à realidade, nesta tese, apenas o seu Célio pôde

sondar as profundezas do abismo.

Viver no lado de fora dos muros do hospital colônia permite arriscar

comparações entre o que acontece dentro e fora de um hospital colônia. Mas a

realidade desses dois mundos e modos de vida só pode ser sentida por quem

vivenciou a doença de dentro daqueles muros. Seu Célio poderia contar muitas

histórias, mas ele só sabe contar as histórias sobre ele mesmo, sobre a lepra, e a

vida no leprosário.

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Aos 10 anos de idade seu Célio descobriu que tinha a doença. Talvez o

encontro precoce da lepra com seu Célio tenha, além de conseguido capturar e

estrangular toda a sua a infância, parece também ter subvertido toda uma lógica que

é comum ao cotidiano das demais crianças. Permitindo-o conhecer, no lugar das

brincadeiras, as artimanhas da doença; ao invés de um sorriso infantil, as dores; e

no lugar da liberdade, o enclausuramento. Esses fatos de certa maneira exigiram

que aquela criança estivesse preparada para assumir sozinha a sua própria vida

desde muito cedo.

De acordo com o ponto de vista da biomedicina, a lepra pode ficar inoculada

no corpo durante décadas, antes de se manifestar. Assim, é pouco provável saber

quando a doença de fato se manifestou em seu Célio. Mas o fato é que seu Célio

não conheceu outra vida fora da doença, pois os seus pais e os familiares foram

igualmente vítima da lepra.

Se estivéssemos na Noruega do século XIX, onde predominava a teoria

hereditária da doença defendida por Daniel Cornelios Danielssen, certamente esse

trabalho de pesquisa seria completamente diferente, a história seria diferente. Mas,

a ideia de contágio defendida por Hansen mudou tudo. De um lado permitiu que se

investigasse a possibilidade de uma cura para a lepra, e de outro teve como

consequência a prática do exílio contra os leprosos que até recentemente era

defendida fortemente.

A década de 1930 no Brasil foi a época da edificação dos leprosários. No

período essas instituições funcionavam como uma medida profilática para a doença.

O lema baseava-se na internação dos doentes para proteger a sociedade do

contágio. Outras doenças altamente contagiosas como a varíola e a poliomielite não

receberam o mesmo tratamento baseado em internamento compulsório. Talvez por

isso até hoje a lepra tenha uma conotação de punição.

Na entrevista, seu Célio se refere a um médico filantropo, o doutor Varela.

Hoje o nome Varela Santiago está ligado a um hospital de tratamento filantrópico

voltado ao atendimento de crianças. Situado em Natal, assiste a todo o Rio Grande

do Norte, além de atender crianças de estados próximos.

Desde 1947 esse médico parecia perceber as angústias dos pacientes mais

carentes e as suas famílias e, por isso, atuava para além da medicina pragmática.

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Quando seu Célio se internou pela primeira vez no hospital colônia, o Doutor Varela

Santiago não o separou dos seus pais. Acomodou-os em uma casa que ficava “ao

lado da linha de ferro”.

Somente depois de ter se tornado órfão que seu Célio retornou para dentro

dos muros do hospital. “O hospital era o mesmo que ser a minha moradia”. E depois

que ficou adulto “saia um mês, [e quando voltava ao hospital] passava seis meses,

quatro anos, seis anos... Eu passei a minha vida assim”.

Toda a família que seu Célio possuía esteve internada no hospital colônia na

mesma época em que estava internado. Ou seja, é como se não existisse vida fora

dos muros do hospital. Tudo estava ali dentro, a sua casa, os seus parentes, que

sempre estiveram doentes, e até um irmão que não se contaminou com a lepra,

apesar da permanência junto ao grupo de familiares leprosos. O seu irmão é a única

referência de saúde que seu Célio tinha da sua família. Ele tinha “uma saúde de

bicho”.

O seu irmão sadio e o seu pai, Francisco, são os personagens mais presentes

nas narrativas de seu Célio. O irmão pela referência à saúde e ao sucesso

profissional que encontrou quando se tornou adulto, e o seu pai pela presença

afetiva desde os momentos que antecederam o internamento até o fim dos seus

dias. Esses fatos poderiam transformar seu Célio em um homem revoltado com a

vida, mas essas adversidades foram fundamentais para que passasse a guiar desde

muito cedo a sua própria vida.

Seu Célio pouco a pouco foi perdendo os seus familiares, e ficando sozinho.

Era necessário aprender a sobreviver e se impor diante daquele caminho. A

realidade não parecia oferecer alternativa. Era preciso saber viver com a lepra, ou

ela poderia devorá-lo.

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LEPRA E SAÚDE PÚBLICA

Eu me aposentei em 1972, pelo fundo rural. Aí fiquei ganhando

40 contos, naquele tempo eram 40 contos de réis. Quando eu tinha

vindo do hospital, quando eu me aposentei eu ainda estava

trabalhando de enxada. Entende? [...]

[Mas antes de me aposentar] eu era obrigado a fazer [trabalhar

de enxada] porque não tinha quem me desse de comer, nem tinha

aposentadoria, precisava trabalhar pra sobreviver. Trabalhei um

tempo em agricultura, pra mim e meu pai, mais para meu pai.

Eu me lembro. Meu pai comprava bode, matava bode e às vezes

me levava. Eu andando descalço, que na época a pobreza era

grande demais. Eu andando, quando passava naquelas lagoas,

quando elas estavam secas, pois, quando vem um tempo seco, elas

racham. Aquela lama racha, não é? E eu pisando em cima daquilo

ali não aguentava. Os pés doíam demais. Não tinha nada de

ferimento, mas doía demais. Meu pai parava lá na frente e dizia:

“meu filho, o que é? Está cansado?”. Eu disse: eu não, papai! Meus

pés estão doendo. Ele esperava até eu recuperar [...].

A ficção muitas vezes antecipa a realidade, como anuncia Oscar Wilde

(2007), “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. O artifício de ficção

a seguir, expressa bem a minha intenção.

A vida transcorria tranquilamente em um belo local próximo de águas frescas

e com um sol que fazia brotar as plantações de trigo. Próximo dali passava uma

ferrovia que ligava uma pedreira à cidade. Era possível ouvir o som dos trens se

aproximando da pequena vila enquanto se observava a agitação dos comerciantes

que dependiam daquele movimento para fazer negócios.

Mas contrastando com essa realidade era possível notar que às margens

dessa ferrovia dezenas de pessoas sobreviam ao abandono. Entre elas Pablo, um

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garoto que ficou órfão aos cinco anos de idade e por esse motivo passou a morar na

rua.

Apesar dessa adversidade, diferentemente de uma maioria de moradores de

rua que buscavam sustento na esmola, Pablo optou pelo trabalho. E tão logo foi

abandonado começou a fazer pequenos serviços nas ruas da cidade, como carregar

compras e água em troca de alguns miúdos.

Aos nove anos de idade conseguiu sair das ruas e ir trabalhar em uma

fazenda da região, onde passou a morar em um pequeno sobrado que dividia com

outros trabalhadores. Certamente o suor no seu rosto e o calo em suas acanhadas

mãos é o resultado daquele abandono que marcou decisivamente a sua infância.

No entanto embora esse sofrimento pudesse transformá-lo em uma criança

amargurada, Pablo parece enxergar no trabalho um refúgio para aquela dor. O

trabalho no campo parecia distrai-lo, pois enquanto colhia o trigo entoava cantigas

que rememoravam os seus pais. Às vezes aqueles cantos eram interrompidos por

gotas de lágrimas que desciam em seu rosto, outras vezes pelo barulho do trem que

se aproximava das plantações. Essa era a rotina que alimentava o seu cotidiano na

pequena localidade.

Certo dia, após o serviço, Pablo se banhava nas águas do rio que irrigava a

plantação, quando de repente teve a sua visão tomada por uma garota de pele bem

viçosa e olhos negros que havia entrado no rio. Embora ela guardasse certa

distância dele, era possível ver no seu sorriso a alegria com que fazia do banho uma

diversão.

A garota deveria ter uns 15 anos de idade. Para Pablo ao longo dos seus 9

anos e com o seu corpo franzino, ela sequer poderia tê-lo notado. Mas a ansiedade

em querer conhecê-la o fez se aproximar dela e perguntar o seu nome. Ela disse se

chamar Beatriz. Tão logo iniciaram a conversa, Beatriz ouve o chamado dos seus

pais que estavam às margens do rio e corre em direção a eles, encerrando

subitamente a conversa com Pablo.

No outro dia antes que o sol pudesse se pôr, Pablo corre para o mesmo local

onde avistou Beatriz e ao se preparar para mergulhar nas águas do rio percebe que

ela já estava lá e o fitava com um belo sorriso. Ele apressou-se e, com braçadas

rápidas, se aproximou dela, estavam tão próximos que era possível sentir a

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respiração um do outro. Beatriz se assustou com a situação, e repentinamente

correu em direção à vila dizendo que se veriam depois.

Na tarde seguinte Pablo chega ao rio ainda mais cedo e pacientemente

esperou o pôr do sol e o cair da noite trazendo o frio às águas, mas Beatriz não

apareceu. Por quarenta e cinco dias esteve naquele local em todas as tardes no

mesmo horário. Ele parecia obcecado por encontrá-la. Até que, quando pensou que

nunca mais voltaria a revê-la, surpreendentemente a avistou.

Ao perceber que Beatriz aproximava-se, Pablo docemente lhe fixou um olhar

tão profundo que pôde mergulhar no negro dos seus olhos, nesse momento, de

forma inesperada, foi combalido por um beijo. Aquela situação o deixou em êxtase

ficando atordoado por alguns instantes. Após se recuperar do susto, emitiu um

sonoro suspiro e perguntou o porquê do seu desaparecimento. Gentilmente Beatriz

o conteve com um gesto sutil de pedido de silêncio. Disse que precisava lhe contar

algo de muito importante e por isso pediu que a escutasse atentamente. Falou-lhe,

com certo tremor na voz, porém sem rodeios, que precisava se mudar para outra

cidade.

Embora ela demonstrasse aflição após contar os seus planos, Pablo

permaneceu tranquilo e confiante, pois precisava ouvi-la, era o momento oportuno

para que ela desabafasse. Beatriz, com um olhar triste e aos soluços, contou-lhe

que não poderia mais encontra-lo, pois viajaria imediatamente. Nesse momento foi

possível que Pablo percebesse a sua aflição e delicadamente segurou-lhe as mãos,

transmitindo ternura no olhar.

Beatriz parecia mais calma, mas, como num piscar de olhos, o tomou em

seus braços intensamente e confessou ter lepra. A partir desse momento

subitamente Pablo a empurrou, escapando daquele abraço, e pediu que ela não o

procurasse mais. Atônita, Beatriz desmaia e no chão permanece, Pablo a havia

abandonado.

Doente e desiludida Beatriz precisava viajar para se tratar da lepra, pois a

cidade não possuía recursos médicos suficientes. Após uma consulta clínica o

médico da região informou aos seus pais que viajariam de trem e que tudo seria

pago pela prefeitura do local.

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Dias depois é chegado o momento da viagem. Beatriz precisava encontrar

alguma motivação para superar, além do problema de saúde, aquela decepção, e

tentar transformar os momentos de sofrimento e dor em esperança, dando um novo

sentido para a viagem.

Rememorando as novelas de Júlio Verne que lia diariamente, imaginou

aquela viagem repleta de aventuras, paisagens e de pessoas que poderia conhecer.

Beatriz passou a contar as horas que faltavam para embarcar, depositando todas as

suas esperanças naquele trem, pois de um lado cuidaria da saúde e de outro da

decepção.

Beatriz passou a se imaginar numa longa viagem rumo aos 9300 quilômetros

que interligam Moscou a Vladivostok na lendária Transiberiana. Enquanto

imaginava-se naquela viagem, era possível sentir todo aquele conforto das cabines

aquecidas por ar quente e os sabores mais variados dos coquetéis servidos pela

tripulação. Vislumbrava o momento de desobedecer aos seus pais e escapar, ainda

que por um instante, dos seus olhares para experimentar a famosa vodca russa.

Mas a aspereza da realidade trouxe-a de volta a sua terra natal e a colocou

em outro cenário. A viagem na Transiberiana só poderia continuar a existir em sua

imaginação e nas obras de Júlio Verne. Pois, ao contrário daquela fantasia, a sua

viagem estava destinada para partir de Puerto Quijarro a Santa Cruz de La Sierra.

Em um itinerário de pouco mais de 600 quilômetros de trem, por paisagens e

paradas nem sempre agradáveis. Apesar de hoje o percurso ter uma duração de

cerca de dezenove horas, naquela época poderia demorar dias e até mesmo

semanas.

Ao contrário do luxuoso trem transiberiano, os vagões eram comuns e sem

nenhum tipo de aquecimento. Quase sempre estavam lotados e os passageiros

viajavam de pé e dormiam no chão. Aqueles que conseguiam uma poltrona para se

acomodar logo percebiam o desconforto, pois eram duras e apoiadas em recostos

posicionados em noventa graus. A cada parada em uma estação, entravam

vendedores de toda a espécie de mercadorias. Oferecendo desde pequenos lanches

regionais acompanhados de um refresco que era transportado em um grande balde

sem tampa arrastado pelos corredores dos vagões, a animais que eram negociados

ali mesmo, tais como coelhos, cães e cavalos.

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Em 1950 as comunicações naquela localidade eram restritas aos jornais

impressos e ao falatório da população. Beatriz pouco poderia saber além dos boatos

sobre descarrilamentos e dos bandidos que aterrorizavam os passageiros, roubando

os seus pertences enquanto cochilavam. Beatriz nada conhecia sobre a fama

daquela ferrovia, tampouco sobre qual era o destino reservado aos leprosos que

usavam aquele trem.

Chegado o dia do embarque, tão logo soa o terceiro silvo na estação, que

anunciava a última chamada de passageiros, Beatriz subitamente é arrebatada dos

seus pais, por enfermeiros, e lançada no terceiro vagão da locomotiva, enquanto

seus pais foram violentamente detidos por guardas. Todos foram surpreendidos por

aquela armadilha.

No vagão do trem Beatriz pôde sentir como nunca a solidão e enxergar de

perto a dura realidade que a esperava, uma volumosa quantidade de leprosos que

definhavam entre os outros doentes iguais a ela, além de um amontoado de corpos

embalsamados das vítimas de febre amarela que se abateu sobre a cidade naquela

época.

Deprimida e em lágrimas Beatriz caminhou em direção a uma pequena janela,

quando pôde enxergar por meio dela Pablo correndo e gritando em direção a

locomotiva. Mas era tarde demais, o trem da morte já levava Beatriz para bem

distante dali, de onde jamais poderia retornar.

Voltemos à realidade, agora para falar do fenômeno da segregação. O

fenômeno da segregação social talvez seja tão antigo quanto o surgimento da

sociedade. Segregar, de um ponto de vista semântico, denota desligar, desunir,

desmembrar, separar com o objetivo de isolar e de evitar contato. E de certo modo

essa acepção confere a terminologia o sentido de fragmentar, despedaçar, partir e

até mesmo quebrar.

Diante disso, apesar da definição de segregação, entre outros sinônimos

significar “evitar” e “isolar”, o uso dessa terminologia parece encontrar o seu sentido

completado quando está associada ao termo estigma. Pois, embora a segregação e

o estigma apresentem concepções distintas, e aparentemente independentes, para

ambas, a existência de um pressupõe uma relação simbiótica com o outro

fenômeno.

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O termo estigma originalmente é uma definição criada no mundo grego

antigo, com a finalidade de denominar as marcas feitas a ferro e fogo em seus

escravos, e essa concepção parece ter servido como uma referência até hoje para

designar aquele que deve ser segregado.

O modo de vida e a maneira de organização social descritas por outros povos

ainda mais antigos que os gregos como os sumérios, babilônios, assírios e até

mesmo os egípcios, revelam um pouco que o sentido do estigma pode ser tão antigo

quanto a segregação.

Contudo, a escassez e até a inexistência de informações de natureza

documental que resultasse no modo de vida de sociedades ainda mais antigas,

dificultam uma pesquisa mais precisa quanto às origens dos fenômenos do estigma

e da segregação social. Algumas poucas evidências podem ser encontradas em

tabletes mesopotâmicos, o que remete como um importante ponto de partida para os

estudos dessa natureza na direção da civilização mais antiga da humanidade, os

sumérios.

Situada entre o Mediterrâneo e o Golfo Pérsico, a Suméria localizava-se na

região que o historiador grego Políbio chamava de Mesopotâmia, um vasto território

com clima quente, porém prestigiado pelo abraço dos rios Eufrates e Tigre, que com

abundância irrigavam o solo mesopotâmico. Essa localização privilegiada entre os

dois rios possibilitou que diversos grupos étnicos como os sumérios, assírios e

babilônicos dominassem sucessivamente essa região em épocas distintas e se

desenvolvessem em contraste às terras escaldantes do deserto (OPPENHEIM,

1964).

Nessas areias foram abrigadas por quase 5000 anos verdadeiras relíquias da

mais antiga civilização conhecida, os sumérios. A sociedade que se conhece hoje se

desenvolveu graças à herança do conhecimento desse povo. Os Sumérios foram os

idealizadores e desenvolvedores da escrita e da roda, além de serem os

responsáveis por dividir o tempo em minutos e segundos.

Os sumérios dominaram a natureza e construíram cidades gigantescas, o que

permitiu que cultivassem a sua cultura e escrevessem o primeiro capítulo do

surgimento da civilização. Em suas caravanas cruzaram o deserto abrindo as

primeiras rotas de comércio do mundo antigo. No entanto, há 4000 anos essa

civilização desapareceu completamente e por um longo tempo a sua própria

existência permaneceu um mistério.

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A história e a memória desse povo eram conhecidas apenas no Antigo

Testamento, mas graças às pesquisas arqueológicas do século XIX as areias do

deserto cederam algumas das chaves desta civilização, o que permitiu constatar

naquele passado enterrado que nas populações da região mesopotâmica estava o

berço da civilização.

A Suméria, conhecida como a terra de reis civilizados ou terra nativa se

apoiou em uma organização social estratificada, o que permitiu o seu

desenvolvimento, e serviu de alicerce para que outras sociedades posteriores se

estruturassem baseada nesse modelo de segregação.

Em sua base estavam os agricultores, pastores e escravos. Mais acima os

artesãos, camponeses e comerciantes. Em seguida os escribas, responsáveis pelos

registros escritos da cidade. E acima de todos os estratos estava o rei, que também

assumia as funções de chefe militar e sacerdote religioso. Essas informações

constam nos escritos cuneiformes cunhados em diversos tabletes que se encontram

na biblioteca de Assurbanipal (BIRCHETTE, 1973). Diferente do mundo grego, que

marcava os escravos a ferro e fogo, na sociedade sumeriana os escribas assumiam

esse papel de “estigmatizar”, ao nomear e contabilizar, por meio da escrita, aqueles

que seriam controlados e punidos nos diferentes estratos que envolviam o modo de

vida do povo Sumério.

A severa organização social dos Sumérios permitiu que se dedicassem a

agricultura, com o desenvolvimento de técnicas de drenagem que permitiam o

controle sobre as enchentes e a viabilidade na irrigação das plantações. Assim foi

possível o desenvolvimento do comércio e de outras atividades econômicas.

Mas a maior herança dos sumérios está na invenção da escrita, por meio dela

inauguraram o conceito de civilização, o que impactou no direito, nas artes e em

toda a civilização que se conhece hoje. Graças à escrita é possível que hoje as

pesquisas desenvolvidas sobre a Suméria se dediquem ao estudo do

desenvolvimento dos registros administrativos, econômicos, culturais e políticos da

época (KINNIER & REYNOLDS, 1990; MOORE, 1988; OPPENHEIM, 1964; SAGGS,

1965; SPIEGEL & SPRINGER, 1997).

Embora tenha sido pouco discutido por pesquisas que estudam a Suméria,

descobertas arqueológicas do século XX revelaram que os sumérios tratavam das

questões médicas tanto ligadas à doença quanto à cura, baseando-se em

explicações a partir de uma ramificada relação entre deuses, seres humanos e

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espíritos que atormentavam os vivos. A etiologia das doenças para os sumérios

estava associada diretamente a um pensamento sobrenatural. A enfermidade e a

saúde ligavam-se à ação dos deuses, e o adoecimento era uma consequência do

afastamento da proteção divina. (BIGGS, 1995; FINGER, 1994; OPPENHEIM, 1964;

SCURLOCK, 1995; STOL, 1992).

Na antiguidade e não apenas na Suméria, os sacerdotes exerciam um papel

fundamental nas estratificadas sociedades antigas. Além da responsabilidade de

conduzir a vida espiritual da sociedade, cabia aos sacerdotes o cuidado sobre os

corpos da população. Sendo a sua atribuição identificar a doença e trata-la a fim de

promover a cura do doente.

Na Mesopotâmia da Antiguidade o tratamento das moléstias era da

responsabilidade de duas instâncias, uma sacerdotal e a outra médica. A primeira

que era conduzida por um sacerdote que recebia a denominação de "ashipu" ou

"asipu". Esse sacerdote era o responsável pela identificação dos sintomas e a

descoberta de qual demônio causou a moléstia. O seu método baseava-se na

utilização de recursos adivinhatórios e na realização de um demorado interrogatório.

Já o conceito de médico da época era chamado "ashu" (ou "asu"). Possuía a tarefa

de tratar a enfermidade prescrevendo a utilização de ervas e poções, juntamente à

prática de encantamentos e orações.

Apesar da função sacerdotal e médica utilizarem recursos distintos no

diagnóstico e tratamento dos doentes, ambas trabalhavam conjuntamente no

atendimento de uma mesma enfermidade. No entanto, o sacerdote acumulava o

papel de curandeiro além de outras funções religiosas, enquanto "ashu" atuava

exclusivamente na atribuição inerente à atividade médica (ADAMSON, 1991;

BIGGS, 1995; SPIEGEL & SPRINGER, 1997).

Na Mesopotâmia, a população utilizava uma concepção médica que se

baseava na associação de diversos sintomas a entidades sobrenaturais como

demônios e espíritos. Para cada moléstia existia uma referência maligna temível que

identificava a doença. Assim, a partir de cada referência demoníaca o sacerdote

poderia prescrever o tratamento adequado para que fosse executado pelo doente.

Fundamentalmente essas terapêuticas consistiam no uso de poções feitas a partir

da mistura de ervas que eram ingeridas pelos enfermos ou espalhadas pelo seu

corpo enquanto eram entoados encantos, e a outra forma de tratar esses males

amparavam-se em rituais de exorcismo. Algumas dessas referências médicas são

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bastante antigas e foram encontradas na Antiga Mesopotâmia e escritas na língua

cuneiforme da Suméria, datando cerca de 2000 a.C. (SAGGS, 1965).

Os egípcios antigos utilizariam de outros artifícios para interpretar as

enfermidades. O pensamento egípcio antigo baseava-se na imortalidade da alma,

que recebia a denominação de “ba”. Os egípcios acreditavam que a mumificação era

necessária, pois após a morte, “ba” necessitava daquele corpo para continuar

existindo (FINGER, 2000).

No Egito antigo existia a crença de que as moléstias eram provenientes de

encantamento, feitiçaria e de espíritos das sombras. O povo egípcio acreditava que

esses espíritos tinham acesso aos doentes por meio dos orifícios do corpo e

utilizavam dos canais denominados de “metu” para percorrer todo o corpo e

contaminar a um órgão ou todo o restante do organismo (MARTÍN-ARAGUZ et al.,

2002).

A forma que tratavam esses enfermos consistia muitas vezes na extrusão

dessas entidades malignas por meio do uso da força de deuses e do preparo de

poções mágicas. O doente era considerado curado caso o mal fosse banido por um

dos orifícios pelos quais pôde entrar no organismo (FINGER, 1994; GROSS, 1998;

MARTÍN-ARAGUZ ET AL., 2002).

Os antigos egípcios também investigavam as moléstias de modo

experimental, a exemplo de um documento que revela essa preocupação. Trata-se

de um papiro médico (papiro de Ebers) de cerca de 1500 a.C. O referido documento

detalha o fenômeno do transtorno emocional, hoje descrito como histeria. (NASSER,

1987).

O mito da impureza, e os textos sagrados

Passemos agora a focalizar a narrativa sobre a lepra, a partir do livro Vedas,

a Bíblia e algumas referências sobre orixás. Iniciemos com o livro Vedas.

Na Índia Antiga os primeiros registros escritos correspondem há 2000 a.C. e

relatam a sua cultura, religiosidade e organização social. A denominação desses

registros é descrito como Vedas e pode ser traduzido do sânscrito com o significado

de conhecimento (KAK, 1997a, 1997b).

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Os documentos oriundos dos Vedas são o alicerce de todo o saber da

sociedade indiana da antiguidade. Entre os textos mais importantes estão os

escritos Atharva Veda, que é um documento essencial para a compreensão da

prática médica conhecida como Ayurveda. Essa terminologia sânscrita pode ser

traduzida como conhecimento da vida. Todo esse saber da medicina ayurvédica

emerge a partir da necessidade em se compreender as relações entre mente, corpo

e mundo externo.

A acepção ayurvédica coloca na mesma direção o homem e o universo. Para

essa forma de compreensão existe uma relação direta entre o microcosmos e o

macrocosmos (Kak, 1997a; SUBBARAYAPPA, 2001). A integração entre princípios

fundamentais que constituem o homem e o universo ao seu redor são a base para a

compreensão da atividade médica ayurvédica e pauta-se no sistema de ideias

denominado Samkhya, originado na Índia há 700 a.C.

O Samkhya alude que a Purusha e a Prakriti são os elos responsáveis pela

origem do universo. A primeira pode ser descrita como Consciência Pura e a última

Matéria Original Pura. O fato de ambas receberem a denominação de “pura” aponta

para a inexistência de um molde estabelecido. Esses princípios produzem o Buddhi,

que pode ser entendido como cognição ou intelecto, constituindo-se no elemento

essencial para guiar a consciência no mundo externo.

Os saberes desenvolvidos a partir dos Vedas fez florescer o conhecimento

ayurvédico, que foi organizado na forma de tratados médicos. O Charaka Samhita,

escrito há 250 a.C., recebe o nome do médico Charaka e trata-se do mais antigo

documento de fundamentos essenciais da concepção do saber ayurvédico,

descrevendo as suas percepções sobre o funcionamento do corpo humano (MENON

& HABERMAN, 1969; RAO, 1968). O outro tratado Susruta Samhita foi escrito há

150 a. C., e apresenta referências de estudos sobre a lepra. Assim como o primeiro,

recebe o nome de um médico indiano, Susruta. Nesses escritos são encontrados

estudos sobre fundamentos de cirurgia e anatomia humana (MENON &

HABERMAN, 1969; RAO, 1968; SUBBARAYAPPA, 2001).

O Sushruta Samhita utiliza a denominação de kushtha como uma descrição

de três sintomas no tecido cutâneo. São elas: perda de sensibilidade local,

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ulcerações e decomposição dos membros como mão e da estrutura do nariz.

(OPROMOLLA, 1981)

As referências sobre a lepra são anteriores ao próprio Sushruta Samhita. Nos

Vedas datam cerca de 1400 a.C., onde é denominada de kushtha (LOWE 1947), e

nessa época já eram observadas a existência de normas e procedimentos sobre a

sua profilaxia.

Em diversos locais do planeta podem ser encontradas evidências da lepra. No

Egito antigo há referências da lepra há cerca de 1300-1800 a.C., que foram

encontradas em um documento denominado de Papiro de Ebers. Trata-se de

registros sobre problemas na pele que eram medicados com unguentos. No entanto,

boa parte dessas referências resulta de traduções vagas que podiam designar

diversas enfermidades diferentes. Exemplo desse fato se baseia em referências

babilônicas da lepra como doença escamosa. Já na Assíria a palavra epqu, embora

signifique escamoso, foi traduzida pelos assírios como lepra (OPROMOLLA, 1981).

Traduções da narrativa bíblica contribuíram para a dispersão da lepra. No

entanto, algumas dessas traduções contribuíram para o fortalecimento do estigma

em torno da doença.

Há cerca de 300 anos a.C., com a tradução bíblica do hebraico para o grego,

que a palavra de origem hebraíca tsara’ath recebeu a denominação de lepra, que

para os gregos significa escama. Essa tradução foi utilizada pelos gregos para

nomear outras moléstias de natureza escamosa, como a psoríase e a própria lepra,

que era designada de elefantíase (OPROMOLLA, 1981).

Na Bíblia (1981) também são encontradas citações de traduções distintas que

se referem à lepra. Em Levítico, nos capítulos 13 e 14, a expressão hebreia tsara’ath

ou saraath é utilizada para nomear impureza. Entre os judeus tsara’ath era o termo

utilizado para designar a tomada de uma coloração branca nos pelos e na pele

doente. Para os hebreus a tsara’ath exigia a purificação das roupas dos enfermos e

o seu isolamento até que o mal fosse extinto (OPROMOLLA, 1981). Dessa maneira,

o maior problema causado por essa tradução bíblica imprecisa – ao atribuir o

significado de tsara’ath (impuro) a lepra (escamoso) – pauta-se no fato de adicionar

ao estigma do leproso, o sentido de impuro.

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Talvez o sentido da lepra como um atributo de castigo divino esteja bem

representado na passagem bíblica que narra o episódio do rei Uzias. Essa narrativa

bíblica busca mostrar o caso de um soberano obediente a Deus, que se torna

próspero e audacioso ao conquistar parte do mundo conhecido daquela época. As

sucessivas vitórias o tornaram um monarca poderoso, porém presunçoso, ao ponto

de seu orgulho levá-lo rapidamente da notoriedade ao isolamento.

O fragmento a seguir mostra que nem mesmo o poder soberano do rei Uzias

pôde torná-lo imune a imposição do castigo divino que se manifestou no seu corpo,

por meio da lepra. Ao transgredir as leis sagradas, o rei Uzias é advertido pelos

sacerdotes e excluído do templo. Indignado, tenta impor-se como rei e é castigado

pela lepra, segundo a vontade de Deus. O sofrimento imposto pela doença o

acompanhou por toda a vida, mantendo-o afastado do templo.

Uzias, que estava com um incensário na mão, pronto para queimar o incenso, irritou-se e indignou-se contra os sacerdotes; e na mesma hora, na presença deles, diante do altar de incenso no templo

do Senhor, surgiu lepra em sua testa. [ ]

O rei Uzias sofreu de lepra até o dia em que morreu. Durante todo esse tempo morou numa casa separada, leproso e excluído do templo do Senhor. [ ] (Bíblia Sagrada, II Crônicas 26).

Conforme as escrituras bíblicas, o rei Uzias era amparado por Deus, vivia em

abundância e colecionava feitos, sendo conhecido dentro e fora do reino. Com toda

essa grandiosidade, transformou-se em um rei poderoso, mas a arrogância o levou

ao fracasso diante do Senhor. O rei Uzias, ao desrespeitar as orientações dos

sacerdotes sobre o templo acendeu o incenso, mas apagou a chama da estrela que

lhe servia de bússola, sendo castigado na fronte pela lepra.

A lepra é vista na narrativa do rei Uzias como uma forma de castigo e

condenação, que alcança qualquer homem sob a sombra de Deus. Há uma pintura

de Rembrandt do século XVII conhecida como o rei Uzias ferido pela lepra, que a

respeito desse episódio mostra que nem mesmo um rei pode escapar da punição

divina. Ao ser marcado na face e corpo pela lepra, o rei Uzias expõe a sua

fragilidade e revela que pode sofrer as punições de Deus assim como qualquer outro

homem.

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Apesar das inúmeras especulações em torno da doença ligada à

precariedade da higiene, na literatura sagrada a lepra assume outra conotação, a

impureza religiosa. Essa conotação ao longo dos anos estimulou as práticas de

segregação dos doentes, que incluía desde a queima de objetos pessoais, como

roupas e utensílios domésticos, a recomendação para evitar o contato direto do

doente com elementos considerados “puros”, como um pássaro, a água ou outros

elementos da natureza.

A água, como elemento que representa a pureza em muitas sociedades,

traduz nas escrituras sagradas o meio de salvação de Naamã. De acordo com as

escrituras bíblicas, é por meio da imersão que o rio Jordão concedeu a Naamã a sua

cura. Desse modo, assim como no batismo, o mergulho nas águas transforma o

homem impuro em purificado. Essa passagem talvez configure a lepra como o

símbolo pagão no homem, e o batismo enquanto meio de sua salvação.

Naamã, comandante do exército do rei da Síria, era muito respeitado e honrado pelo seu senhor, pois por meio dele o Senhor dera vitória à Síria. Mas esse grande guerreiro ficou leproso.

[ ]

Eliseu enviou um mensageiro para lhe dizer: "Vá e lave-se sete vezes no rio Jordão; sua pele será restaurada e você ficará purificado".

Mas Naamã ficou indignado e saiu, dizendo: "Eu estava certo de que ele sairia para receber-me, invocaria em pé o nome do Senhor, o seu Deus, moveria a mão sobre o lugar afetado e me curaria da lepra”.

Não são porventura Abana e Farpar, rios de Damasco, melhores do que todas as águas de Israel? Não me poderia eu lavar neles, e ficar purificado? E voltou-se, e se foi com indignação.

Então chegaram-se a ele os seus servos, e lhe falaram, e disseram: Meu pai, se o profeta te dissesse alguma grande coisa, porventura não a farias? Quanto mais, dizendo-te ele: Lava-te, e ficarás purificado.

Assim ele desceu ao Jordão, mergulhou sete vezes conforme a ordem do homem de Deus e foi purificado; sua pele tornou-se como a de uma criança.

[ ]

(Bíblia Sagrada, 2 Reis – 5)

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A cura de Naamã o converte ao Deus de Israel. Conforme as escrituras

sagradas, Naamã, agora ex-leproso, está puro como uma criança. A redenção de

Naamã, por meio do mergulho no rio Jordão, traz a cura da doença e o

renascimento para outra vida. A extinção da lepra representa o ressurgimento do

homem higienizado e preparado para servir o Deus de Israel.

A deformidade física, característica própria da doença, as poucas informações

sobre o modo de transmissão, controle e cura, sobretudo, o medo da exclusão social

que acompanha os leprosos, contribuem, certamente, para tornar a lepra uma

doença temida entre as populações.

O terror da lepra se constitui em conhecimentos e suposições sobre a

doença. Tais informações passam a circular no imaginário da população a partir de

representações simbólicas que possibilitam recuperar e construir imagens da lepra

que, por meio de sinais como nódulos, mutilações, mão-em-garra, queda do cabelo,

configuram o imaginário em torno da doença.

Na Idade Média, nas cidades acometidas pela epidemia de lepra, conforme

afirma Delumeau (1989), qualquer pessoa ou coisa podia ser temida, pois as

medidas profiláticas não surtiam o efeito desejado, restando, nesses casos, acreditar

na providência divina.

No referido período, a crença na influência divina nas calamidades, flagelos e

doenças era um fato aceitável pela grande maioria da população, como um flagelo

da ira de Deus. Assim, acreditavam na existência de seres misteriosos que

habitavam os céus, provocando loucura e doenças entre os homens. Por isso,

concordavam que convinha tratar com prudência aqueles que eram responsáveis

por sua saúde ou doença; prosperidade ou miséria.

No antigo testamento das escrituras sagradas, o personagem Jó ilustra uma

passagem, ocorrida há mais de 1500 anos antes de Cristo. A fim de testar a sua fé,

o seu Deus impõe-lhe a perda de toda a sua riqueza. E, como se mantém resignado,

é outra vez testado, agora com a lepra.

A doença representa a prova de aflição em vida e meio de resignação por

meio da fé do homem. A lepra é referida nessa passagem com uma carga

maniqueísta que põe em teste final um fiel, diante dos desígnios de Deus.

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E, vindo outro dia, em que os filhos de Deus vieram apresentar-lhes perante o Senhor, veio também Satanás entre eles apresentar-se perante o Senhor.

[ ]

E disse o Senhor a Satanás: Observaste o meu servo Jó? Porque ninguém há de semelhante a ele, homem sincero e reto, temente a Deus, e desviando-se do mal, e que ainda retém a sua sinceridade, havendo tu incitado contra ele, para o consumir sem causa.

Então Satanás respondeu ao Senhor, e disse: Pele por pele, e tudo quanto o homem tem dará pela sua vida.

Estende, porém, a tua mão, e toca-lhe nos ossos e na carne, e verás se não blasfema de ti na tua face!

E disse o Senhor a Satanás: Eis que ele está na tua mão; poupa, porém a sua vida.

Então saiu Satanás da presença do Senhor, e feriu a Jó duma chaga maligna desde a planta do pé até ao alto da cabeça.

[ ]

Então sua mulher lhe disse: ainda reténs sua sinceridade? Amaldiçoa a Deus e morre.

Mas ele lhe disse: como fala qualquer doida, assim falas tu; receberemos o bem de Deus, e não receberíamos o mal? Em tudo isso não pecou Jó com os seus lábios.

[ ]

(Bíblia Sagrada, 1998. Jó. 2, 7-10)

O livro de Jó, uma das mais conhecidas e cultivadas descrições bíblicas, é

responsável por fortalecer a fé e o imaginário coletivo em torno do controle divino

sobre o destino dos homens, colocando assim em teste a fragilidade e a resiliência

da existência humana diante dos desígnios divinos.

Por fim, algumas referências às alegorias presentes no catolicismo popular e

na religião afro-brasileira. Dessa maneira, na Idade Média a lepra passa a assumir

outra configuração, embora mantenha o sentido de punição divina herdado da

Antiguidade. O leproso, apesar de continuar mantido distante da sociedade, passa a

ser abrigado e não encarcerado como em outros períodos da Idade Média, que

antecederam as concepções de caridade pregadas por São Francisco de Assis.

Na doutrina de São Francisco de Assis o leproso, além dos problemas de

saúde, sofria do mesmo abandono que os pobres da época. Se constituindo em

pessoas indefesas e carentes de ajuda, inclusive, para sobreviver. Essa ideia de

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acolher os doentes sobreviveu durante séculos, mas no fim da Idade Média retornou

a configuração de reclusão.

Todavia, ainda na Antiguidade, muitos homens acreditavam que, para se

proteger da fúria sagrada, além da boa conduta moral é necessário buscar amparo

naqueles que são intermediários entre eles e Deus. Para esses indivíduos, muitos

santos que habitam os céus precisavam ser invocados a proteger os homens das

diversas doenças que, por sua vez, receberam os nomes dos respectivos santos. A

peste bubônica recebe o nome de Mal de São Roque ou de São Sebastião; a

gangrena era chamada de Fogo de Santo Antônio e a lepra de Mal de São Lázaro.

A literatura sagrada narra a história de dois Lázaros. Uma das descrições

refere-se ao Lázaro da parábola, “Lázaro e o Rico”, que alude àquele que sobrevivia

das migalhas que comia, enquanto os cães lhe lambiam as chagas. A outra fala do

Lázaro descrito como o padroeiro dos leprosos e mendigos, ou Lázaro de Betânia,

corporifica Lázaro como aquele que teve a sua cura concedida por vontade divina.

Segundo as escrituras, dias depois de ter sido selado o túmulo do Lázaro de

Betânia, ele ressuscitou por vontade de Jesus Cristo e por isso hoje é conhecido

como o santo protetor do leproso. A semelhança entre esses dois Lázaros está no

fato de que ambos necessitam da caridade alheia para sobreviver, e até ressuscitar.

E, talvez por isso, representam bem o leproso.

Com a colonização do Brasil o comércio escravocrata ganha fôlego, e para

manter as lavouras em funcionamento um grande contingente de população negra é

trazido ao país. Os primeiros que trabalharam em solo brasileiro foram os africanos

de origem Iorubá, provenientes da Nigéria, Togo e Benin. Esse povo trazia consigo

uma cultura consolidada que foi massacrada pelos portugueses.

Segregados da população branca de origem europeia, os Iorubás eram

proibidos de manifestar a sua fé, que se baseava no culto a divindades do

candomblé. A estratégia que utilizaram para escapar da proibição católica ao

candomblé pautou-se na substituição dos nomes dos santos europeus por

divindades africanas.

Os Iorubas passaram a relacionar as divindades africanas aos santos

europeus católicos. Como o número de santos católicos é bem maior que a

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quantidade de divindades africanas, os escravos passaram a associar cada orixá a

um ou mais santos católicos.

Em Omulú e Obaluaiê, orixás que existem apenas combinados, acontece uma

simbologia dupla representada por São Roque, que é o protetor contra pragas e

padroeiro dos cirurgiões, enquanto São Lázaro simboliza a passagem pela morte e

ressurreição.

Para o candomblé, essas entidades possuem o poder de trazer a peste e

também de promover a cura dos males que provocaram nos homens. Entre os

orixás, Obaluaiê ou São Roque é considerado como o médico, pela sua capacidade

de curar as pestes.

Obaluaiê e Omulu é um orixá coberto dos pés à cabeça por finas tiras de

palha com o objetivo de ocultar as suas feridas. É uma entidade que se apresenta

sempre séria e com a postura curvada, devido às fortes dores e tremores de febre

que sofre constantemente. Além de indumentária composta por palha seca, utiliza

como arma um cetro adornado em contas e búzios denominado de xaxará, que

serve como captador de energias negativas e purificador de almas e ambientes.

Visualmente utiliza as cores preta, branca e vermelha.

Apesar de temido Omulu e Obaluaiê tem o poder de auto-metamorfosear a

sua aparência esquálida em um belo rosto sob as palhas, e transformar as suas

próprias feridas e chagas em pipocas. Talvez por isso a pipoca e o milho ajudem a

compor a sua simbologia. Esse orixá é adorado como senhor da passagem desta

vida, que na mitologia grega poderia ser comparado ao barqueiro Caronte.

De acordo com o Candomblé, os filhos de Omulú e Obaluaiê tendem a

assumir um comportamento autodestrutivo e depressivo. Esse comportamento

muitas vezes é disfarçado de ceticismo e de atitudes que tentam omitir o seu

sofrimento com atitudes desapegadas a fim de evitarem sofrer ou causar sofrimento

nos outros. Essa postura muitas vezes aumenta o sofrimento dos seus parentes,

enquanto aguardam na fé a cura do filho de Omulú e Obaluaiê.

Uma das leituras que podem ser feitas do orixá Omulú e Obaluaiê,

pode refletir no modo como os Iorubás compreendem o fenômeno de saúde e

doença. Para eles são dimensões que existem juntas e por isso são

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interdependentes. A existência de uma leva ao surgimento da outra. Bem e mal

parecem andar lado a lado.

Herança mecanicista e isolamento compulsório

Era bem amplo. Era um sítio, era quase do tamanho dessa

cidade aqui. Dentro de lá é cheio de prédio. E toda verdura tinha lá:

mangueira, coqueiro, jabuticaba, laranja, jaca. Tudo o que a gente

procurava tinha lá. Foi o melhor tempo na minha vida foi lá no

hospital. Eu ainda desejava se ainda tivesse um hospital daquele.

Tempos depois, me botaram dentro do carro do caminhão e

saíram. Minha mãe correu atrás do caminhão. Ela com esse meu

irmão novo no colo, ele já bem grandão, porque ela amamentava a

gente bem grande. Ela com ele no colo e correndo atrás do

caminhão para me tirar de dentro.

Ela não queria que eu saísse de onde ela estava. É tanto que

ela forçou tanto a barra que o doutor teve que pegar uma casa para

colocar eu, meu pai, meu irmão e ela para morar. Lá no leprosário,

no lado de fora do muro.

Lá era um hospital, mas tinha uma casa que servia o hospital,

mas não para doente, apenas para o pessoal sadio morar. Era até

uma casa de taipa naquela época, não tinha tijolo. Não era

comunidade, mas a casa era fora do hospital.

Todo mundo que era paciente vivia naquele hospital. Como eu

era criança como meu irmão e minha mãe não queria ficar sem meu

pai, o doutor Varela pegou a casinha e colocou a gente lá. Mas o

meu pai ia todo dia pegar comida na cozinha do hospital para a

gente comer.

UMA ALMA TRISTE PODE MATAR MAIS DO QUE UMA BACTÉRIA

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Todas as vezes que leio, escrevo ou falo sobre a lepra durante o período de

internamento compulsório, sempre imagino os campos de concentração nazistas.

Penso naquelas cercas altas com muros vigiados dia e noite. Imagino um pátio com

poeira nos tempos quentes e lama em épocas chuvosas. Para mim é sempre um

lugar tomado pela escuridão. Com pessoas vestidas aos trapos, sujas e mal

alimentadas. É como se eu pudesse ver o modo que aquelas pessoas eram

tratadas. Sequestradas violentamente dos seus lares, separadas das famílias e

postas em alojamentos por sexo e idade. Pelo menos nesse último parágrafo a

situação é bastante semelhante ao modelo dos leprosários no Brasil. As crianças

eram enviadas ao preventórios onde ficavam completamente isoladas de seus pais

pelo resto da vida. E muitas delas até hoje desconhecem a sua paternidade. Apesar

de pais e filhos desejarem se comunicar por meio de cartas – uma vez que era

negado o direito de visita a ambos – todas as correspondências eram interceptadas

e muitas vezes destruídas. Isoladas do restante do mundo as crianças cresciam

longe do afeto dos pais. Talvez por isso, muitas vítimas dessa segregação evitam

até hoje falar sobre o assunto. Isso foi o que aconteceu com um interlocutor que

viveu em um preventório em Natal e hoje, apesar de adulto, se negou a voltar a falar

sobre esse assunto. Situação a meu ver absolutamente compreensível.

Em 1947, para evitar essa situação, a mãe de seu Célio, ao perceber que ele

foi jogado na carroceria de um caminhão e dali seria levado para longe dela,

subitamente correu com todas as suas forças atrás daquele caminhão. Era preciso

salvar o seu filho e a si mesma daquele tormento. Pois, uma alma triste pode matar

mais do que uma bactéria. O trecho da entrevista em discussão pode ser revisto

conforme a seguir:

Tempos depois, me botaram dentro do carro do caminhão e saíram.

Minha mãe correu atrás do caminhão. Ela com esse meu irmão novo

no colo, ele já bem grandão, porque ela amamentava a gente bem

grande. Ela com ele no colo e correndo atrás do caminhão para me

tirar de dentro.

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A narrativa de seu Célio sobre o hospital colônia transmite uma imagem

diferente daquela que sempre esbocei em minha mente. Seu Célio descreve que

“Era um sítio, era quase do tamanho dessa cidade aqui”, além de ser descrito como

um local com um variado pomar. Segundo as palavras de seu Célio, “foi o melhor

tempo da minha vida foi lá no hospital”.

Apesar da burocracia do hospital colônia estar baseada na segregação entre

doentes e sadios, como seu Célio mesmo diz, “tinha uma casa que servia o hospital,

mas não para doente, apenas para o pessoal sadio morar”. Ao que parece, na sua

percepção isso não se constituía em um problema para os pacientes. Sobretudo

porque a casa ficava do lado externo aos muros da colônia.

Mas essa aparente boa convivência entre os sadios e doentes não impediu

que seu Célio fosse levado em um caminhão sem sequer comunicarem essa

decisão aos seus pais. Esse fato parece ter sido percebido como grave não por seu

Célio, mas pela sua mãe, que a partir daquele momento não permitiu que ele se

afastasse dela.

Como seu Célio era uma criança na época, e hoje a sua mãe já está falecida,

dificilmente se conhecerá outra versão para esse fato. A respeito do que a sua mãe

pensava sobre aquela situação e até mesmo o seu pai e tios. E se houve alguma

conversa entre eles e os dirigentes do hospital. Jamais saberemos outra versão de

como se desenrolou aquela história do caminhão.

O fato é que, após esse acontecimento, o doutor Varela Santiago permitiu a

convivência de toda a família em uma casa do lado externo ao muro do hospital,

contrariando a norma básica da instituição, o isolamento. Essa atitude deu-se com a

finalidade de tranquilizar a família de seu Célio, que após o episódio do caminhão

passou a se preocupar, além do problema de saúde, com a manutenção da unidade

de toda a família. Dentro ou fora dos muros do leprosário.

Essa questão parecia se constituir em algo tão fundamental quanto o

processo de tratamento da lepra. Uma vez que até o momento a doença não tinha

cura, pelo menos era preciso tentar manter a dignidade daquelas pessoas e evitar

que, ao menos naquele episódio, o hospital colônia de Natal não repetisse as

mesmas histórias tristes de separação de famílias inteiras pelo bacilo da lepra.

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No curso da história das doenças imputa-se a concepção de que a lepra,

além de castigo divino, é um mal incurável e transmissível. Portanto, assim como na

Europa medieval, no Brasil do século XX institucionalizou-se que é preciso segregar

os doentes dos sãos. O pensamento no Brasil, baseado na concepção de

isolamento compulsório, isolou milhares de doentes com a pretensão de proteger a

sociedade do contágio, enquanto se desenvolvia o tratamento e a cura da moléstia.

No entanto, em diversos locais do mundo onde a hanseníase é endêmica, os

esforços de instituições de governo e de segmentos do poder público demonstram

ineficácia no controle e combate da moléstia. O fato deve-se, sobretudo, a

negligência dessas entidades ao estudar a doença. Visto que na maioria das vezes,

a atuação dos profissionais abandona os diversos aspectos socioculturais que

envolvem a hanseníase. O fracasso no combate a doença no Nepal elucida o fato

(PERSON, 1986).

No Nepal, na década de 1980, a estratégia dos gestores de saúde, baseada

na limitação do tratamento da doença aos aspectos biomédicos, permitiram que a

hanseníase fosse negligenciada, sobretudo na dimensão social, fortalecendo o

estigma e consequentemente dificultando a detecção, terapêutica e cura até os dias

de hoje.

No Brasil, a solução não foi diferente. O poder público, abalizado na ideia de

isolar a doença, com a finalidade de reduzir o sofrimento dos doentes e familiares,

recomendou que o isolamento do hanseniano se estendesse a toda família

(MIRANDA, 1980).

O fato é que a política isolacionista encontrou resistências ainda no século

XIX, quando a postura de enclausurar os doentes já era criticada no país, por vários

segmentos intelectuais, a exemplo de Machado de Assis na obra O alienista,

publicada em 1882 (ASSIS, 1991). Nessa obra, o Dr. Simão Bacamarte,

personagem expoente da terapêutica do isolamento, leva o terror a cidade de Itaguí,

que naquele cenário parecia ter sido tomada por uma epidemia de alienados que

necessitavam de internamento para a proteção da sociedade. Em O alienista,

Machado de Assis mostra que é um equívoco tratar o louco por meio da segregação

e do isolamento compulsório.

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Apesar das críticas impressas na literatura, na vida cotidiana décadas depois,

no Brasil, o leproso passou a receber o mesmo tratamento reservado aos doentes

mentais. Assim, a ideia de proteger a sociedade de enfermidades, sobretudo da

lepra, se estendeu até o final do século XX, quando o Estado mostrou a sua

inabilidade ao tentar resolver contingências públicas, encarcerando milhares de

leprosos até a década de 1985.

Dessa maneira, coube o isolamento aos leprosos, e a separação dos filhos

dos doentes para os preventórios, situação que mesmo após algumas medidas

legais não obteve a devida reparação. Criados em 1927, estima-se que os

preventórios isolaram no país cerca de 33.689 filhos de hansenianos.

Na Primeira República, a legislação sanitária brasileira – baseada nos

conhecimentos científicos da época – previa o isolamento de pessoas com

hanseníase em colônias construídas especificamente para esse fim. Os Decretos de

nº 5.156, de 1904 (Regulamento Sanitário Federal), e nº 10.821, de 1914,

dispunham sobre a matéria. O Decreto Federal nº 16.300, de 31 de dezembro de

1923, reforçou a disposição de que o isolamento de pessoas com hanseníase

deveria ocorrer preferencialmente em colônias, definidas nesta norma como

estabelecimentos nosocomiais, oferecendo assim assistência hospitalar nas

colônias.

Uma vez que faltavam estabelecimentos desse tipo no Brasil, era impossível

cumprir integralmente a imposição legal. Dessa maneira, até o final da década de 20

do século passado, havia um clima de pânico social em relação aos doentes.

Marginalizados, os portadores de hanseníase não podiam trabalhar e, sem

condições de subsistir, mendigavam pelas ruas.

O primeiro governo do Presidente Getúlio Vargas (1930-45), baseado na

concepção de contágio estimulada pela ciência da época (BERTOLLI, 1996),

defendia o lema divulgado pelas elites dirigentes em saúde, “isolar os leprosos para

proteger a sociedade do contágio”, e ao mesmo tempo essa sociedade clamava pelo

combate à hanseníase de modo ainda mais disciplinado e sistematizado.

Essas políticas reforçaram a concepção do isolamento compulsório, que

consistia em deter e manter os doentes de hanseníase internados compulsoriamente

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em hospital colônia. Ao concluir a rede de hospitais colônia do país, o isolamento

obrigatório ocorreu em massa.

Na década de 1930 o governo Getúlio Vargas determinou o internamento

forçoso de pessoas diagnosticadas com hanseníase nos chamados leprosários. Os

doentes que possuíssem filhos menores de idade recebiam um tratamento de dupla

segregação, além de isolados da sociedade era determinada a retirada imediata das

crianças da sua tutela para que fossem conduzidas compulsoriamente ao

internamento em instituições denominadas preventórios, pois essas crianças eram

consideradas leprosas em potencial.

Instituídos em 1927 os preventórios funcionavam como uma medida

profilática e foram responsáveis pela segregação de milhares de famílias em todo o

país. Em Natal, Rio Grande do Norte, o local recebeu o nome de Educandário

Oswaldo Cruz, e hoje funciona como uma unidade escolar da rede infantil.

Talvez o momento mais cruel experimentado pelos leprosos do Brasil a partir

do isolamento compulsório foi a separação violenta de seus filhos e principalmente a

suspensão de quaisquer direito de comunicação entre eles, visto que as cartas

escritas pelos pais eram frequentemente interceptadas por agentes do governo,

impossibilitando que pais e filhos recebessem notícias uns dos outros. A situação

era mais extrema no caso das crianças menores que, devido à ausência de contato

com os seus genitores, ao crescerem, sequer conheciam a sua filiação.

A partir da década de 1940 - quando foi possível encontrar resposta

significativa ao combate da doença, por meio da introdução do uso de sulfonas no

tratamento dos doentes – é que a terapêutica se modernizou. Na década de 60, o

desenvolvimento de tratamentos mais modernos aliados a sulfona deu início à ideia

de extinguir no Brasil o isolamento compulsório dos pacientes leprosos.

No Brasil, apenas em 1986 é extinto o isolamento e internamento

compulsório, realizados nos hospitais colônia. Pretendia-se a partir disso integrar o

indivíduo à sociedade. Todavia, devido aos problemas ligados a doença, mesmo

após longos anos de terapêutica no isolamento compulsório muitos desses

pacientes, por terem recebido tratamento tardio, estavam com sequelas, mutilações,

cegos ou com dificuldades de locomoção irreversíveis.

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Além disso, com o fim do isolamento compulsório, muitos pais e crianças

perderam definitivamente a possibilidade de se reencontraram. Pois em muitos

casos restaram apenas os prontuários médicos dos adultos. Documentação

insuficiente para reaproximar pais e filhos, sobretudo porque parte dessas crianças

não obtinham qualquer tipo de registro que os ligasse aos seus pais. Fato que

agravava a reintegração dessas famílias.

Em 2007 visando a reparação do período compulsório, o Governo Federal

decretou, em Medida Provisória 373/2007, o pagamento de indenização a esses

indivíduos que foram internados compulsoriamente no país até 31 de dezembro de

1986. A indenização visou funcionar como uma pensão vitalícia para os doentes.

No mesmo ano de 2007 passa a vigorar com o valor de R$ 750,00 por meio

da lei 11520/07. Porém, como podia ser esperado, o precário valor indenizatório

associado às sequelas sofridas por muitos internos e o preconceito de familiares

inviabilizaria a reintegração social. Dessa maneira, muitos desses casos em que os

pacientes não receberam a atenção necessária de parentes durante o convívio

familiar optaram por retornaram aos hospitais colônia.

Em 2014, outra política de governo, uma Parceria Público Privado, culmina na

transferência de ex-internos para unidades não especializadas com a finalidade de

redução de custos governamentais. Além da transferência dos doentes, essa política

de governo promoveu a demolição dos leprosários. Dessa maneira, muitos

pacientes que na maioria eram idosos e incapacitados para o trabalho foram

reencaminhados a familiares que conseguiram manter algum tipo de contato com

esses doentes, enquanto outros foram entregues à própria sorte.

O período de isolamento compulsório foi responsável por deixar nos doentes

marcas profundas no corpo e na memória de famílias inteiras pela ausência de

momentos que jamais serão recuperados.

No livro Ciência Sem Dogmas Rupert Sheldrake (2014) propõe uma reflexão

que põe em questão o modelo mecanicista. Segundo o seu argumento, diversas

pessoas se surpreendem com a persistência dos cientistas ao afirmarem que as

plantas, assim como os animais, funcionam como máquinas. Possuindo um cérebro

programado geneticamente, que se assemelha aos robôs autômatos.

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Ao contrário dessa concepção, Sheldrake (1994) defende a tese de que os

organismos são auto-organizados e dessa maneira sustentam as suas próprias

finalidades. Enquanto as máquinas são a prova da auto-organização humana, uma

vez que resultam da inteligência orgânica para serem concebidas e construídas com

finalidades próprias e limitadas ao interesse do fabricante, o homem.

Embora até o século XVI a concepção dominante se baseasse numa leitura

vitalista do mundo, apenas no século seguinte a ideia de modelos mecânicos torna-

se a referência para explicar o funcionamento do planeta, das coisas e até mesmo

das pessoas. Se a primeira analogia tomava como base a natureza vegetativa e

animal, no mecanicismo as engrenagens dos modernos relógios buscam revelar a

dinâmica da vida no planeta.

Com o relógio a metáfora passa de vida para máquina e a concepção de

modelos mecânicos como analogia passa a ser a explicação sobre a maneira como

as coisas funcionam no universo. Consequentemente, o domínio da mecânica torna-

se uma demonstração de poder. Assim, o domínio da técnica sobre as engrenagens

torna-se uma expressão do controle do homem sobre o mundo.

O advento do mecanicismo põe em evidência uma ciência que tem por

alicerce o experimento em detrimento de preceitos filosóficos. A Física se sobrepõe

aos demais campos do saber, e do mesmo modo o matematicismo pragmático,

utilitarista. Os fenômenos passam a ser analisados por meio do prisma da

modelagem mecânica de base física e matemática, amparados por leis imutáveis

que regem toda a matéria que habita o planeta.

René Descartes (1596-1650) talvez seja o maior e mais conhecido expoente

do mecanicismo. Na obra O discurso do método, Descartes eleva o relógio a

analogia do funcionamento da natureza. O relógio para ele é um grande mecanismo

composto de diferentes partes que necessitam de harmonia e coordenação entre os

diversos componentes para que funcione adequadamente.

Apesar de não terem sido bem recepcionadas nos séculos XVII e XVIII, a

revolução mecanicista inaugurada por Descartes influenciou áreas do saber como as

ciências da saúde, que até hoje se apoiam em bases conservadoras herdadas do

mecanicismo, tais como a concepção de fragmentação entre a mente o corpo e a

leitura segmentada dos organismos com base na relação entre partes e todo. A

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partir da revolução mecanicista os níveis de explicação se resumiram a corpo (e

alma como partes da natureza), e espírito (elemento imaterial que por meio da alma

interagia com seres corporificados), eliminando-se a concepção de alma da

natureza, que foi substituída por alma racional ou espírito humano (SHELDRAKE,

2014).

As ciências do século XVII trouxeram contribuições fundamentais para a

compreensão de fenômenos da época, o que inclui uma interpretação que contradiz

as escrituras sagradas. Conforme “1:24 Gênesis, O senhor disse: produza a terra

seres viventes de acordo cada espécie” (Bíblia Sagrada, 1981). De acordo com

Sheldrake (2014), o fato das escrituras se aterem à criação divina como o ente

responsável pela reprodução da vida no planeta se insere apenas no século XVII,

quando se amplia a compreensão do mundo por meio da concepção de fenômenos

indiretos gerados na natureza.

Dessa maneira, o surgimento da vida no planeta resulta da autorreprodução

dos diferentes organismos, que ao interagirem no ambiente aquático, como os

microrganismos vegetais e animais marinhos, assim como no ambiente terrestre as

plantas e os demais animais, se reproduzem, garantindo “que deem fruto segundo a

sua espécie, cuja semente esteja nele, sobre a terra (Bíblia Sagrada, 1981, Gênese

1:11).

Essa mesma divindade que oferta a vida é também a devoradora de toda a

sua prole. De acordo com o Mahãbhãrata, Bhagavad-Gitã (1986), a deusa indiana

Kali representa a criação e a destruição. Conforme Sheldrake (2014) assim como a

deusa Kali, outras entidades possuem uma semelhante natureza destrutiva, como

exemplos Nêmeses, que representava a destruição que punia os deuses, e Erínias,

a deusa da vingança que castigava os mortais.

O materialismo e a natureza, ou a grande mãe, estão relacionados pelo uso

da expressão mater, que em latim equivale à palavra mãe, e é essa raiz que origina

a palavra matéria. Para Sheldrake (2014), o materialismo é um culto inconsciente

direcionado a mãe natureza, que é a origem da própria matéria e de todas as coisas.

Mas apesar da aproximação na terminologia, diferentemente das máquinas,

os organismos são dotados de criatividade. Essa concepção era defendida pelos

vitalistas dos séculos XVIII e XIX (SHELDRAKE, 2014). Para ele, vitalistas como

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Hans Driesch (1867-1941) acreditavam em um princípio organizador que

denominava de enteléquia (en=dentro, telos=propósito). Segundo esse princípio

organizador, o mundo animal e vegetal era orientado quanto quais as formas e

finalidades deveriam encerrar em si mesmos.

Sheldrake (2014), afirma que, representando a superação do mecanicismo e

vitalismo, a filosofia organicista se desenvolve a partir de 1926 por meio da tese

discutida por Smuts em Holism and Evolution, “a tendência da natureza para formar

todos que são maiores do que a soma de suas partes por meio da evolução criativa”.

Essa concepção revela que em toda a natureza os “todos” ou partes inteiras

são compostos por partes por meio de um padrão de organização denominado de

quarks. Para Sheldrake (2014), todos esses sistemas organizados são hierarquias

aninhadas. Por exemplo, a compreensão de uma frase exige mais que a interligação

das letras e palavras ou mesmo do conhecimento da composição química da tinta

que as imprime no papel. Dessa maneira para ele, a expressão hólons foi criado por

Artur Koestler para designar todos os compostos de partes que por sua vez se

constituem em todos.

A insuficiência do mecanicismo e do vitalismo faz emergir a teoria dos

sistemas complexos, teoria da complexidade e ciência da complexidade. Surge

como outra possibilidade de estudar a auto-organização dos “todos” ou hólons que

em níveis de organização distintos, emergem e ultrapassam as partes que os

originaram (SHELDRAKE, 2014).

Do mito da pureza à compreensão da complexidade

Apesar de a segregação social existir desde a origem das sociedades

humanas e ter funcionado ao longo dos séculos como mecanismo de separação

entre as pessoas, talvez a recente metamorfose que a segregação passou tenha

tornado-a ainda mais perigosa, ao transformá-la em um poderoso artifício de limpeza

racial.

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No século XIX surge a eugenia como o resultado do pensamento do sobrinho

de Charles Darwin, Francis Galton, que em 1869 publica as suas ideias em seu

livro Hereditary Genius (BIZZO, 1994).

Galton sustentou a concepção de diferenças raciais a partir da teoria de

transmissão dos caracteres, conhecida como a Teoria Pangenética de Charles

Darwin. Galton se apoiou nessa teoria para defender que os caracteres adquiridos

numa geração são transmissíveis para gerações posteriores.

Essa conclusão foi alcançada com base na observação de profissionais de

sucesso, como advogados e médicos. Para fundamentar o argumento de

transmissibilidade, Galton utilizou de dados estatísticos para revelar que os pais de

sucesso transmitiam caracteres seus aos filhos.

Assim, Galton observou que os filhos desses profissionais geralmente

seguiam a carreira de seus pais. E isso podia ser verificado, segundo Galton, pois

nasciam igualmente inteligentes e bem-sucedidos. Por outro lado, os filhos de

genitores pobres geralmente continuavam pobres.

Galton ignorou as diferentes condições materiais e sociais de existência

básicas para que os indivíduos pudessem se desenvolver. Mesmo assim, conseguiu

disseminar a eugenia baseando-se no argumento de que quanto mais pura a raça,

mais forte e melhor ela será.

Nas Américas, os Estados Unidos foram a sede das teses segregacionistas

que surgiram na segunda metade do século XIX. Esses estudos se apoiavam nas

teorias biológicas. Embora recebessem críticas no século XX, em outubro de 1994 o

livro The bell curve, ao retomar os resultados de diversas pesquisas sobre o

quociente intelectual e estudos sobre distinções entre a cognição de brancos e

negros, trouxe a tona o eugenismo e todo o debate em torno desse tema.

No final do século XIX, o pensamento eugenista desembarcou no Brasil e se

disseminou sob uma influência mais branda que as ideias originalmente inglesas e

americanas. Nos anos de 1870, nas faculdades de Medicina do país, começou a se

discutir, por meio dos periódicos e jornais acadêmicos, a necessidade de formar

médicos higienistas, dado o seu papel diante do cenário infeccioso da sociedade da

época. Como essas informações eram veiculadas apenas entre os médicos, a

população em geral não possuía nenhum conhecimento sobre o assunto.

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A primeira metade do século XX, em torno de 1920, trouxe consigo uma

contradição. Apesar da Teoria Pangenética de Darwin ter recebido na época críticas

dirigidas por pesquisadores que a avaliavam como antiquada, por outro lado a

concepção eugênica parece não ter recebido o mesmo tratamento. Embora se

apoiasse nas mesmas bases teóricas da pângenese, o eugenismo conseguia

usufruir do prestígio de inovação cientifica, quando na realidade não passava de

ramificações da pangenética.

Ao contrário da decadência, houve uma disseminação crescente da eugenia

na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil. Em São Paulo, na cidade de Piracicaba,

nascia a Sociedade Brasileira de Eugenia, que representava médicos higienistas e

outros cidadãos que compartilhavam do mesmo ideal e princípios da doutrina

higienista. Resultado de um paradoxo, o higienismo se consolidou na literatura

cientifica, médica e de formação de professores. Assim, essa concepção ganhou

fôlego para atingir grande parte da população que até então não tinha acesso ao

pensamento higienista. (SCHWARCZ, 1993; BIZZO, 1994)

A abrangência das ideias do eugenismo provavelmente se estendeu para

diversos setores. No entanto parece ter influenciado especialmente segmentos

ligados a organização e formação de mão-de-obra profissional, como exemplo o

setor da indústria nacional. Nascia assim, no país, um modelo de funcionário padrão.

Um indivíduo cujo destino e vocação precisava se adequar aos interesses da

produção fabril.

A terminologia higienismo desenvolvida no século XX corresponde a um

termo substitutivo para a denominação eugenia, criada por Galton na Inglaterra do

século XIX. O higienismo teve por finalidade modificar e padronizar os

comportamentos dos operários, constituindo-se em uma estratégia para imputar no

operário a mentalidade de organização e disciplina voltadas para a vocação do

trabalho.

A mentalidade higiênica extrapola os domínios da produção fabril e passa a

integrar o cotidiano dos brasileiros. A limpeza, a esterilização dos ambientes e das

coisas, a separação do sujo do limpo, passaram a compor o cenário da sociedade

brasileira do início do século XX.

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Nas fábricas o argumento era romper com o modelo quase escravista e

burocrático a fim de convencer o operário das vantagens que uma mudança poderia

proporcionar, tais como maior proximidade da fábrica com a casa e com a escola

onde os filhos poderiam estudar, para no futuro ocuparem postos de trabalho

operário na fábrica. Por outro lado, havia outra finalidade oculta nessa concepção.

Era importante separar o rico do pobre, isolando-o para que ficasse bem afastado

das elites, em locais construídos especificamente para isso, que recebiam a

denominação de vilas operárias.

O discurso industrialista higienista era compartilhado por outros segmentos

como na medicina e na literatura. Na medicina o discurso dos higienistas colocava

os pobres em função da insalubridade dos hábitos e residências pouco higiênicas. O

pobre é o lado oposto do rico. É sujo, mal educado, cheio de superstições e feioso.

Representa a sombra onde são lançados os entulhos e restos abandonados pelos

ricos.

O saber da medicina passa a utilizar do seu poder para combater as

moléstias infecciosas que julgam ser oriundas dos pobres. A estratégia é ocupar e

dominar os lares do trabalhador, prescrever normas e hábitos higiênicos, fiscalizar

os dormitórios, a vestimenta e a limpeza das mãos na manipulação dos alimentos. O

pensamento médico passa a basear-se na ideia de que ao dominar aqueles espaços

as infecções serão controladas, as casas deixarão de ser fétidas e os pobres

poderão circular sem o risco de ameaçar a população saudável.

Na literatura romancista a visão repugnante da pobreza ganha forma nas

obras O Cortiço, de Aluísio Azevedo (1997), e no personagem do livro Urupês, Jeca

Tatu, de autoria de Monteiro Lobato (1969). Na obra O Cortiço, a trama centra-se no

debate da ascensão social e sobre o preço que se pode pagar por essa mudança

social. Porém, outro aspecto também importante é perceber que o tratamento que o

pobre recebia no fim do século XIX não é diferente da maneira que é assistido no

século XXI.

Embora o tema da moradia pobre e aglomerada atravesse séculos e encontre

na medicina argumentos de combate à insalubridade como meio para eliminar a

propagação de moléstias, por outro lado, pouco se discute sobre a existência de

comprovação científica ligada as consequências da aglomeração nesses ambientes

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pobres. Contudo, ainda hoje a relação entre pobreza e insalubridade é tomada pela

medicina como indício de disseminação de pestes e doenças como a lepra.

Em Urupês, publicado por Monteiro Lobato em 1918, o autor denuncia a

maneira que o pobre sobrevivia na São Paulo daquela época (LOBATO, 1969). O

personagem Jeca Tatu simboliza a pobreza e precariedade das camadas populares

do país. Jeca era um personagem franzino, amarelado devido à doença da

ancilostomose, causada provavelmente por andar com os pés no chão e não possuir

hábitos considerados adequados para os higienistas.

No decorrer da trama, após ter sido descoberto por um médico higienista,

Jeca passa a receber tratamento adequado para a sua saúde, e por esse motivo

retoma a vida produtiva. Deixa de ser considerado preguiçoso tornando-se

prestigiado pela sociedade do local como um eficiente trabalhador. Ao que parece,

Lobato parte da denúncia do descaso dos poderes públicos com o pobre, mas ao

mesmo tempo, devolve ao poder público o poder de transformação do personagem,

ao por a medicina higiênica como a ferramenta para combater o mal que afligia as

elites, a pobreza.

Talvez essa leitura pode ser paradoxal, pois ao mesmo tempo em que retira a

potência do personagem Jeca Tatu como um símbolo de resistência ao sistema

dominante que é diluído pelo discurso médico, alimenta a crença de que é preciso

combater o amarelão como artifício mais eficaz para se eliminar também a pobreza.

Por outro lado, Azevedo (1997) parece criticar o higienismo ao narrar, no

romance O Cortiço, que a ambição de ascensão social do protagonista João Romão

somente poderia ser alcançada no momento em que transformasse as condições

precárias do cortiço em uma moradia que atendesse aos padrões de higiene e

organização da época. Assim, aos poucos o cortiço foi se transformando em uma

vila e João Romão recebeu o esperado reconhecimento social.

Essas obras, O Cortiço e Urupês talvez tenham conseguido revelar por meio

de pontos de vista diferentes a verdadeira finalidade da doutrina higiênica. Pois, o

argumento higienista de que ao defender as melhorias nas condições de vida se

defende a saúde do pobre, é na verdade um argumento enganoso. Na medida em

que a ideia higienista de oferecer condições de moradia sanitárias e em espaços

adequados encobre que a verdadeira intenção é fixar os pobres no interior da

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habitação, dificultado que desenvolvam outras pretensões em espaços externos ao

ambiente doméstico. E, por outro lado, passem a ocupar o tempo restante com o

trabalho nas fábricas que integram a sua vizinhança.

Esse adestramento que eliminava aglomerações, por meio da percepção de

que era importante manter-se no lar, constitui-se numa estratégia de deslocamento

do público para o privado que contava com o apoio dos médicos e intelectuais

higienistas.

No Brasil, um nome merece destaque como um dos precursores desse

cenário higienista: Oswaldo Cruz. Talvez esse fato seja devido a uma das revoltas

mais populares da história do Brasil, a Revolta da Vacina, de 1904. Essa revolta

refletiu a vontade popular de contestação da política do governo federal de impor a

política higienista de imunização por meio da vacinação compulsória de toda a

população, a fim de prevenir o contágio da varíola. Essa política de Estado tornou-se

o estopim de um levante popular conhecido como a Revolta da Vacina.

No protagonismo e como defensores da vacinação compulsória, alinharam-se

o cientista Oswaldo Cruz e os apoiadores como Pereira Passos, prefeito do distrito

federal, além do engenheiro Lauro Muller. De acordo com o historiador Sevcenko

(1984), o presidente Rodrigues Alves transferiu de maneira autoritária a Oswaldo

Cruz e os seus dois assessores poderes ilimitados, tornando-os imunes contra

quaisquer ações judiciais. No lado oposto, os sanitaristas encontram a resistência da

população mais carente e de intelectuais como Ruy Barbosa, embora outros

intelectuais como Olavo Bilac apoiassem a política de governo.

O dia 10 de novembro de 1904 marca o início do conflito, motivado pela

prisão de um grupo de estudantes que protestavam contra a vacinação compulsória.

Nos dias seguintes o aumento da ação policial violenta acirrou os ânimos, gerando

mais repressão da polícia sob a coordenação do governo.

A política de vacinação antivariólica era parte de um programa mais amplo de

reorganização ou saneamento do espaço urbano carioca. Essa política compulsória

redefiniu os rumos da cidade do Rio de Janeiro, que na época era a capital do país,

além de se constituir na modelagem do planejamento sanitário do Brasil, que

sobrevive há muitas décadas, onde a pobreza é responsabilizada pela disseminação

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das enfermidades e, por esse motivo, o pobre é visto como o agente propagador das

moléstias, assim como acontece com a lepra.

A concepção sanitária higienista do início do século XX, baseava-se em

práticas políticas de saneamento das áreas urbanas e de eliminação das moradias

populares improvisadas, erguidas com sobras de madeira e lona e por esse motivo

receberam a denominação de barracos.

Essas moradias ocupavam os morros da cidade, e iam na contramão do

planejamento governamental urbano do Rio de Janeiro, que pretendia alargar e

iluminar as ruas e avenidas, além de remover das proximidades o que era visto pela

população mais abastada como paisagem desordenada e pobre.

Em 1904, além dos motivos políticos que alimentavam o movimento de

mudança social, existia o motivo médico contra o qual a população também lutava.

No século XIX, a prática de vacinação era pontual, e para grupos de

população específicos como crianças e idosos que eram vacinados contra a varíola.

Mas, a partir de 1904, a obrigatoriedade da vacinação e a pouca divulgação de

informações sobre o efeito clínico colocou a população diante da questão da

validade do método. Sobretudo a população mais carente, para quem a vacina era o

caminho mais curto para a morte e outras complicações de saúde, visto o efeito

adverso da medicação.

Por outro lado, os jornalistas divulgavam que a intenção da campanha

compulsória era desmoralizar as moças da cidade, pois curiosos desejavam injetar

as vacinas nas coxas e braços da população feminina. A revolta passou pelo 15º

aniversário da proclamação da república e se estendeu até o dia 23 de novembro,

resultando em invasões dos morros pela polícia e com a prisão e transferências para

estado remotos do Brasil como o Acre e Amazônia, onde esses exilados eram

lançados a sua própria sorte em meio à densa floresta amazônica.

Apesar das consequências da revolta, o modelo de vacinação compulsória,

implantado por Oswaldo Cruz, tornou-se vitorioso e mostrou-se eficaz no controle da

doença no país, tornando-o um famoso sanitarista e pesquisador no Brasil e no

mundo. Esse mesmo modelo compulsório retornará anos depois como medida

profilática para conter a lepra, por meio da construção de hospitais colônia e do

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internamento compulsório da população doente, que na maioria das vezes era

composta de pessoas pobres.

Esse modelo higienista culminou por promover, em 1929, o lema de que era

preciso isolar os doentes para proteger a sociedade do contágio. Fato esse que

desencadeou a institucionalização dos leprosários e preventórios no Brasil. Dessa

maneira, se a vacinação compulsória representava uma agressão contra a

intimidade, anos depois, o internamento compulsório dos leprosos significou uma

violência irreparável do estado, que durou mais de meio século no Brasil.

A questão da higienização e do mito da pureza nos é apresentada pela

assepsia que seu Célio dá à ideia do banquinho

Naquele meu tempo eram isolados. Aquele leprosário era

isolado, não tinham casas ali por perto não. Era só o leprosário

mesmo. Quando chegava uma pessoa da família a gente tinha um

banco num prego lá em cima do telhado. Aquele banco vivia

“atrepado” no telhado só para quando uma pessoa da família

chegasse para nos visitar se sentarem.

A gente colocava o banquinho lá em cima num prego. Afiava

aquele prego e botava lá para ninguém sentar. Apenas para a visita

se sentava no banco.

DE TODAS AS PAIXÕES BAIXAS, O MEDO É A MAIS AMALDIÇOADA

(Fiódor Dostoiévski)

Muitas vezes que fazemos qualquer menção à lepra imediatamente

associamos a mutilações, feridas e sobretudos ao contágio. Parece que esse é o

principal pilar que sustenta o temor das pessoas durante séculos da existência da

doença. O fato curioso é que, mesmo após o desenvolvimento de modernas

terapêuticas de combate às moléstias, a lepra continua sendo a doença mais antiga

da humanidade. Isso por que até hoje não foi erradicada do planeta.

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Essa ideia de contágio cria um temor grande sobre os leprosos. Mas o que é

mais contagiante na lepra? A doença em si, por meio do bacilo micobacterium

leprae, ou o medo que se constitui sobre a lepra?

Sobre esse ponto de vista não é necessário ser nenhum especialista para

responder a essa questão. Pois basta imaginar que no país há em média mais de

um caso da doença por cada mil habitantes. Isso significa dizer que são inúmeros os

grupos de pessoas com a lepra que circulam próximos a todo o resto da população,

e nem por isso a doença saiu do controle, tornando-se epidêmica.

No cinema o filme Ben-Hur (1959), dirigido por Willian Wyler, exibe uma

sequencia de cenas que mostram a lepra como uma doença de causa

desconhecida, porém altamente contagiante. O vale dos leprosos era o local

reservado aos doentes de lepra da trama. A história acontece por volta dos anos 30,

no período em que Jesus Cristo estava vivo. E apenas ao Cristo cabia o poder de

curar a lepra.

Na literatura, quando a lepra não é tratada como contagiosa é vista como uma

doença hereditária, logo se mantendo o motivo da segregação. Como exemplo o

personagem do livro de Júlio Verne, Viagem ao centro da terra (1863), Doutor Otto

Lindenberg, que em sua excursão nas entranhas da terra, ao se deparar com um

leproso, comenta com o seu sobrinho Alex que aqueles coitados eram proibidos de

ter filhos para não propagar a doença.

A lepra é uma doença que há muitos séculos domina além dos corpos dos

doentes, o imaginário da população. Em parte a literatura romancista, o cinema e as

artes em geral não contribuíram para a diminuição do estigma da lepra. Até mesmo

a literatura cientifica durante muitos anos alimentava o temor em torno da doença.

Apenas recentemente, por volta dos anos de 1960, no país, é que as instituições

oficiais passaram a oferecer outro tratamento à doença, além de buscar outros

meios para eliminar o estigma, como a substituição do termo lepra por hanseníase.

Apesar das inúmeras críticas relacionadas à mudança do nome, essa foi a medida

mais disseminada como estratégia de combate ao preconceito.

Se hoje a situação é insustentável não é difícil entender como em 1947 os

doentes eram tratados. Seu Célio conta que como as pessoas eram isoladas

naquela época, nem mesmo existiam casas nos arredores do leprosário. As visitas

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eram recebidas de maneira a evitarem contato com qualquer objeto utilizado por um

leproso.

No hospital colônia existia um banquinho que ficava preso ao telhado. Era

guardado ali com o objetivo de servir aos visitantes, evitando que entrassem em

contato com qualquer objeto que fosse manuseado por um leproso.

Segundo seu Célio, o banquinho que era utilizado pelos visitantes também

era isolado dos doentes. Para isso “afiava aquele prego e botava [o banquinho] lá

para ninguém sentar”.

O fato curioso é que mesmo depois de completamente curado da lepra e

décadas depois desse episódio do banquinho, o seu Célio me tratou em sua

residência do mesmo modo com que tratava as suas visitas no leprosário. Pediu que

escolhesse entre duas cadeiras, aquela que desejava sentar, enquanto sentou-se

em um local de sua preferência.

Eu só compreendi a situação quando durante a entrevista o seu Célio narrou

o episódio do banquinho. Naquele momento pedi para que trocasse de lugar comigo,

mas ele não aceitou. Restou-me apenas abraçá-lo após o término daquela

entrevista.

Se contrapondo a essas concepções de fragmentação, assepsia e

isolamento, nascem as ciências da complexidade. As ciências da complexidade

surgem devido a insuficiências como essas, comuns às chamadas ciências

modernas. E talvez por esse motivo as ciências da complexidade podem ser

compreendidas como uma ciência da contaminação. Contaminação por levar em

devida consideração a importância de articular muitas vezes territórios que se

mostram disciplinares, deficientes, insuficientes e sem sintonia. A complexidade

emerge para sintonizar-se com os fenômenos novos que não admitem a ideia de

solução, mas a problematização (ALMEIDA, 2012a).

Uma pesquisa divulgada recentemente no Reino Unido põe em cheque esse

modelo isolacionista que vitimou milhares de leprosos no Brasil, e segue em direção

a um olhar mais abrangente sobre o mundo. Mel Greaves, diretor do Centro de

Evolução e Câncer, do Instituto de Pesquisa do Câncer, em Londres, concluiu, após

trinta anos de evidências, que crianças expostas ao contato com certo número de

bactérias, até o primeiro ano de vida, podem reduzir significativamente as chances

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de desenvolverem a leucemia. Greaves defende a ideia de que os pais devem evitar

a prática de isolar os seus filhos, pois o contato com certos tipos de bactérias

comuns a maioria das crianças fortalece o sistema imunológico, evitando o

desenvolvimento de doenças como a leucemia (Nature, 2018).

A leitura da ciência da complexidade (ALMEIDA, 2012a) ultrapassa tanto a

visão clássica mecanicista, na qual a máquina é um todo organizado, constituído de

componentes e com funções delimitadas e previsíveis, quanto supera o modelo

organicista da natureza. Com a complexidade, até mesmo a noção de vida é

modificada. Passando a relacionar-se com a noção de auto-organização. As coisas

e os fenômenos têm uma história, evoluem, se transformam em parte, se auto-

organizam intrinsecamente ou auto-eco-organizam (ALMEIDA, 2012b).

Por outro lado, também é possível pensar em auto-organização utilizando o

seguinte argumento: a natureza é como um organismo amplo, uma mãe que é

criada pelos seus filhos e que assume a dupla configuração: mãe e madrasta, sendo

meio de criação e, ao mesmo tempo, utilizando como meio de regulação da própria

natureza a destruição e a morte (MORIN, 1973).

A figura de Yemanjá talvez possa representar bem essa duplicidade entre a

mãe da vida, mãe natureza, aquela que é fértil e ao mesmo tempo aquela que

possui o controle sobre a vida de sua prole. Jorge Amado (2012) escreveu em seus

versos que, para amar Yemanjá, que é mãe e esposa, é preciso morrer. Talvez por

isso, tanto ele quanto Dorival Caymmi concordavam que “é doce morrer no mar”.

Iemanjá é assim terrível porque ela é mãe e esposa. Aquelas águas nasceram-lhe no dia em que seu filho a possuiu. Não são muitos no cais que sabem da história de Iemanjá e de Orungã, seu filho. Mas Anselmo sabe e também o velho Francisco. No entanto, eles não vivem contando essa história, que ela faz desencadear a cólera de Janaína. Foi o caso que Iemanjá teve de Aganju (deus da terra – o deserto), um filho, Orungã, que foi feito Deus dos ares, de tudo que ficar entre a terra e o céu. Orungã rodou por estes ares, mas o seu pensamento não saía da imagem da mãe, aquela bela rainha das águas. Ela era mais bonita que todas e os desejos dele eram todos para ela. E um dia, não resistiu e a violentou. Iemanjá fugiu e na fuga seus seios se romperam, e assim surgiram as águas, e também essa Bahia de Todos os Santos. E do seu ventre fecundado pelo filho, nasceram os orixás mais temidos, aqueles que mandam nos raios, nas tempestades e nos trovões (AMADO, 2012).

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O mito de Yemanjá, desconhecido por muitos que vivem no cais, representa a

transfiguração de uma mãe que, ao escapar do assédio de um dos seus filhos,

escorrega e cai. Com a queda corta os seios dando origem às águas dos rios e

mares, e ao mesmo tempo, aquela dor faz brotar do seu ventre a maioria dos orixás

bons e maus. E assim como os mistérios do mar ainda não decifrados, estão os

segredos sobre Yemanjá, que no simbolismo dos orixás é a mãe de todas as águas

e até mesmo do mar, que gera a vida e de onde vem à música e o amor. Esse

mesmo mar, a pedido de Yemanjá, em um dado dia poderá chamar os seus filhos

para a morte (AMADO, 2012). Talvez o seu Célio compartilhe dessa mesma

convicção sobre a vida e a morte, e isso pode ter fortalecido o seu desejo de voltar

as suas origens, conforme a transcrição a seguir:

Eu morava na favela Honório Gurgel. Eu morei lá. A primeira

viagem que eu fiz foi em 1965. Eu cheguei, fiquei lá e botei uma

bodega, que lá se chama birosca. Montei uma pequena birosca e

todo mundo me amava. Só me chamava de “Paraíba”, “velho

Paraíba”. “Nós vamos te ajudar aqui, porque nós queremos que você

suba”. Mas dizem que o sangue faz mal ao corpo. Chegou uma

prima minha lá, e me viu desenvolvendo. Tanto ela fez que eu fui

embora. Porque eu não gosto de briga, eu sempre fui da paz. E ela

queria briga e eu não queria, então decidi ir embora. Mas eu tenho

muita gente da minha família lá. Eu tenho primo, tenho cunhado,

tenho muita gente.

Meu irmão morava, lá em Irajá. Eu vivia lá. Esse já é falecido há

muitos anos. Eu ia para lá, mas eu morava mesmo em Honório

Gurgel, numa favela. Naquela época, era barraco, era de taboa. E

era coberto com telhas “brasilite”, não é? Teve uma enchente muito

grande do rio. O recruta que tinha chegado há pouco tempo lá,

começou a chover grosso, caindo pedras de granizo. E eu disse: “e

agora, o que é isso?”. Caindo muitos trovões, eu já estava um pouco

assustado, porque aqui no norte não tem chuva assim. Eu me sentei

em cima de uma mesa. Tinha uma mesa que o lastro dela... O pé

dela era bem largo, então, eu me sentei em cima, botando uma mala

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de couro que eu tinha em cima também. E começou a água subir, a

mesinha não aguentou e só se balançou. Eu disse: “essa mesinha,

ela vai virar comigo! Espera ai!” E eu botei umas cordas nos caibros,

e amarrei a malinha em cima. E desci. Eu disse: “agora eu vou lá

para o morro da Penha”. Porque no Morro da Penha são 365

degraus, a água não vai muito. Ai quando eu cheguei no portal, a

água estava dando aqui [sinaliza com as mãos que a água estava

abaixo da cintura]. Lá em cima onde eu estava morando, no barraco,

a água estava pequena, mas quando eu cheguei lá na baixa estava

por aqui [sinaliza com as mãos que a água estava acima da cintura].

Eu disse: “eu não sei nadar, eu não vou mais”. Eu tinha uma escada

do meu cunhado, meu cunhado estava fazendo um barraco. Eu

fiquei “atrepado” em cima das taboas. Eu fechei os olhos e pedi a

Deus que impedisse que eu morresse, que o inverno acabasse para

eu poder ir embora. Quando eu abri os olhos, a chuva estava quase

sanando. Vi o barro e percebi que a água baixou. E depois foi minha

cunhada que começou a implicar, eu disse: “agora eu vou embora

daqui. Eu tenho fé em Deus que lá eu não vou mais não. A minha

cunhada vem aqui de vez em quando, e diz: “Vamos, vamos morar

uns tempos lá”. Eu disse: “não, eu fiz uma promessa para não ir

mais lá”. Eu não vou mais não, por aqui eu vou ficar. Eu já sou

velhinho, não é? E de lá eu vim para aqui. O meu lugar é aqui

mesmo. Foi onde eu nasci, não é?

É DOCE MORRER NO MAR

(Jorge Amado)

Em 1965, quando seu Célio conseguiu alta médica, decidiu se mudar para o

Rio de Janeiro. Essa foi à primeira viagem de longa distância que havia feito. Ao

chegar à cidade, se instalou na favela Honório Gurgel, onde montou um pequeno

comércio. Nessa “birosca”, como os seus clientes a chamavam, seu Célio também

recebeu um codinome, era chamado de “Velho Paraíba”.

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Esse codinome ou apelido “Paraíba”, embora não gerasse um incômodo

aparente em seu Célio, é uma expressão utilizada, sobretudo, no sudeste do Brasil.

Possui a conotação de nordestino, e é empregada a fim de nomear todas as culturas

dos estados que constituem a região nordeste do Brasil.

O filme “O homem que virou suco”, lançado em 1979 e dirigido por João

Batista de Andrade, contava a história do personagem “Deraldo”, que protagonizava

no papel de um operário do metrô de São Paulo. Assim como seu Célio, Deraldo

também foi tentar a vida no sudeste do Brasil, onde logo recebeu o mesmo apelido,

“Paraíba”. Assim, do mesmo modo que o seu Célio, para Deraldo a origem

nordestina simbolizava força e coragem para superar as adversidades da vida.

Talvez, essa coragem permitiu que seu Célio conseguisse superar as

dificuldades de estar longe de casa e obter êxito no comércio que instalou no Rio de

Janeiro. No entanto, com a chegada de uma sua prima a sua residência, o seu

destino começou a mudar. Utilizando das palavras de seu Célio, “o sangue faz mal

ao corpo”. E por isso, junto a presença daquela prima, surgiram os

desentendimentos entre os dois, o que culminou no fim daquele comércio.

Naquele mesmo ano, seu Célio havia construído um barraco de tábuas que

era coberto por telhas “brasilite”, quando houve uma enchente que inundou a favela

Honório Gurgel. Como seu Célio disse, no Rio de Janeiro ele era um “recruta” [um

recém-chegado], e por isso se assustou com aquele volume de água. Além dos

trovões, choveu granizo, e nesse momento seu Célio decidiu abandonar o barraco e

ir para o Morro da Penha, subindo as escadarias da Penha, baseado na crença que

a água não chegaria até aquela altura.

Na tentativa de indicar a altura que água da enchente alcançou, seu Célio

ficou de pé diante de mim, e com a mão pronada colocada na altura dos quadris,

disse: “a água estava dando aqui”. Seu Célio parecia estar revivendo todo aquele

suplício. Continuou de pé e disse que onde estava morando “a água estava

pequena, mas quando eu cheguei na baixa estava por aqui” [seu Célio repetiu o

gesto de água na altura da cintura].

Seu Célio permaneceu de pé, até o término desse trecho da entrevista, com o

fôlego tomado por um aparente cansaço. A sensação que transparecia era de

alguém que acabava de escapar de uma experiência de afogamento. Imaginei que

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seria melhor interromper a entrevista, pois eu não conseguia saber ao certo o que

poderia acontecer com ele, caso aquela situação permanecesse daquele jeito ou

evoluísse para um estado mais crítico de agonia.

Por isso, fiz um gesto de quem pede uma pausa, mas, para a minha surpresa,

seu Célio não concordou em parar a entrevista. E disse, “Eu não sei nadar, eu não

vou mais”. Nesse momento, seu Célio havia retomado a entrevista, sem que tivesse

aparentemente percebido a minha preocupação com o estado de aflição que ele

transparecia. E por isso continuou, “Eu fiquei atrepado em cima de umas táboas. Eu

fechei os olhos e pedi a Deus que impedisse que eu morresse, que o inverno

acabasse para eu poder ir embora. Quando eu abri os olhos, a chuva estava quase

sanando”.

Seu Célio representa bem nesse trecho de entrevista a imagem de um

homem corajoso e de muita fé em entidades divinas. Pois, parece acreditar que o

seu destino foi modificado graças a sua devoção ao sagrado. E por esse motivo

prometeu jamais retornar ao Rio de Janeiro. Mesmo após insistentes convites de

parentes que ainda residem lá.

Talvez a frase “É doce morrer no mar”, de autoria de Jorge Amado, e que

virou música nos versos de Dorival Caymmi, seja para o seu Célio uma máxima para

os últimos dias do seu destino. Pois, segundo ele diz, “Eu não vou mais não, porque

aqui eu vou ficar. Eu já sou velhinho, não é? E de lá vim pra aqui. O meu lugar é

aqui mesmo. Foi onde eu nasci, não é?”

Seu Célio parece desejar “morrer no mar”. Afinal, parece ser doce morrer no

mar. Nesse mesmo mar que é narrado por Jorge Amado como uma força grandiosa

da natureza. Tão grandiosa que chega a tocar nas águas de Santo Antônio do Salto

da Onça. O local onde seu Célio escreveu a sua história e, talvez por isso, é o local

onde deseja selar o seu destino.

Embora o fenômeno da morte seja inevitável, seu Célio parece ter conseguido

driblá-la muitas vezes. Ao longo dos seus 80 anos, a sua sabedoria tem se revelado

um importante recurso para lidar com as ameaças contra a sua vida.

É porque a hanseníase depende muito do nosso organismo. Se

o organismo da pessoa for forte, não acontece nada não. Você vê

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que uma gripe vive passando de uma pessoa para outra. Mas tem

gente que não gripa. Eu mesmo. Não me lembro há quantos anos

que gripei. Faz muito tempo.

Agora eu me lembro que, no tempo em que eu adoeci, meu tio

Joaquim vivia aqui e ele não sabia que era doente. Ele tinha uma

égua. Quando ele chegava nela e tirava a cela e botava eu em cima.

Eu era um garotinho, botava em cima para dar água a égua numa

lagoa que tinha. Eu acho que foi assim que peguei a doença. O

calor, porque o animal é quente demais.

Meu tio ele me botava em cima dela. Eu sei que depois eu

peguei a doença. Aquele calor dela. Ele doente, tirava a cela e me

colocava em cima da égua. O bacilo pega. É por isso que... Não se

engane que nem toda a doença é hanseníase. Porque a

hanseníase... Eu chamo hanseníase, mas o nome é lepra. Ela pega

se ele não teve nenhum tratamento. Ela pega até num espirro, até a

gente conversando, na saliva, pode pegar. Agora depois do

tratamento ela não pega em ninguém mais. Começou o tratamento,

acabou.

As minhas tias, dizem que em Santa Cruz elas trabalhavam na

casa de um homem que tinha hanseníase. Elas pegaram lá. Dizem

que uma transmitiu para a outra. Já uma delas transmitiu para os

meus tios, entende? Para o meu pai e para mim também.

Agora depende do organismo do indivíduo. Porque às vezes tem

dez pessoas numa casa e só adoece uma. Seria para adoecer

todos, não é? Se existe contato, deveria, mas devido ao organismo o

outro não recebe aquela doença. Só que hoje a hanseníase... Os

leprosários acabaram. Não existe em São Paulo, não existe em

lugar nenhum. Está ficando pouco porque tem o medicamento. A

mesma coisa acontece com a gripe. Essa vacina que tem, eu tomo

de ano em ano. Eu não sei quantos anos que eu não tenho gripe.

Por esse tempo me vacinaram contra a chikungunya. Eu tomei. Tem

gente que só falta morrer. Tem uma velhinha ali com mais de 90

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anos que passou mal. Eu não senti nada. Eu tomei no posto. As

meninas vieram dar aqui, mas eu tinha tomado no posto. Eu tinha

ido por lá para resolver um problema e aproveitei para tomar, não é?

Eu não senti nada. É por isso que eu digo que tem muitos

organismos diferentes uns dos outros.

O HOMEM NÃO ESTÁ CONDENADO A MORTE,

ESTÁ CONDENADO A VIVER

(Franz Kafka)

Um fato intrigante para quem pesquisa a hanseníase é a questão que sempre

é colocada por leprosos, trata-se da existência de uma relação comparativa entre

outras doenças infecciosas como a tuberculose e até mesmo a gripe e a lepra. Na

obra História da Humanidade Contada pelos Vírus (UJVARI, 2015), os

microrganismos, tais como os vírus e bacilos, apresentam propriedades bastante

distintas, como é o caso do agente causador da lepra que é um bacilo, enquanto na

gripe é um vírus. Além dessas diferenças, ambas as doenças apresentam

sintomatologia e terapêutica distintas. No entanto, são contagiosas. Talvez esse seja

o principal motivo das comparações.

De acordo com o seu Célio, a possibilidade de uma pessoa desenvolver uma

doença como a lepra ou a gripe, depende da resistência individual de cada corpo.

Apesar de não pertencer ao universo de linguagem epidemiológico dos cientistas,

ele afirma a partir da sua experiência que apesar de “Você vê que uma gripe vive

passando de uma pessoa para outra”, mesmo assim “Não me lembro há quantos

anos que gripei”.

Para seu Célio a lepra é mais transmissível que a gripe. Pois há diversas

formas de contágio, como no “espirro, até a gente conversando, na saliva, pode

pegar”.

Para seu Célio a causa do seu adoecimento está ligada ao contato físico que

teve com uma égua que era montada pelo seu tio “Joaquim”. Conforme seu Célio, o

seu tio Joaquim o colocava naquela égua “quente” sentado no lombo do animal em

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pelo, sem a cela. Seu Célio conta que o tio Joaquim fazia isso porque não sabia que

também estava doente, e ao sentar seu Célio na cela, o contaminou. Para seu Célio,

“o animal era quente demais”.

A ideia de contágio da lepra por meio de um objeto já foi discutida há pouco

no trecho da entrevista em que seu Célio narra o episódio do “Banquinho”. Naquele

caso, a ideia de contágio pautava-se pelo isolamento. Assim, a regra do grupo se

baseava em evitar que um doente sentasse no banquinho, a fim de não transmitir a

doença para o banquinho, evitando que os visitantes que se sentassem naquele

banquinho fossem contaminados pela lepra.

Retomando a entrevista, “a égua é quente demais”, seu Célio apresenta outra

concepção para a causa da doença: o calor do animal. Segundo seu Célio, o calor

do corpo do animal é responsável por transmitir a lepra para uma pessoa saudável.

Seu Célio acredita que pegou a doença por meio do “calor, porque o animal é

quente demais”. Surge aí outra explicação de seu Célio para a forma de transmissão

da doença, o calor.

Seu Célio diz que, em relação à lepra, “o nome é lepra”, apesar de chamar

“hanseníase”. Pois, nem todas as doenças são hanseníase, isso porque a

hanseníase só contamina se não houver o tratamento. Após o tratamento, termina o

contágio.

Embora pareça paradoxal o fato de seu Célio discernir que após o tratamento

não há mais contágio, na época em que a sua família adoeceu sequer existia

tratamento adequado para a lepra, e muito menos a cura para a doença. Segundo

seu Célio, por isso, toda a sua família, inclusive ele mesmo, ficou doente de lepra.

Pois uma de suas tias foi contaminada onde elas trabalhavam, “em Santa Cruz na

casa de um homem que tinha hanseníase”. Dessa tia, passou para a outra tia, que

por sua vez contaminou o seu pai Francisco, que contagiou por último seu Célio.

Para seu Célio o seu adoecimento pode estar ligado ora a essa tragédia que

ocorreu na sua família, a contaminação de todos os seus parentes, até mesmo ele,

ora ao acaso que diferencia a natureza dos organismos, “porque às vezes tem dez

pessoas numa casa e só adoece uma”.

Segundo Kafka, “o homem não está condenado à morte, está condenado a

viver”. Na leitura de seu Célio, condenado a viver com essa responsabilidade de

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evitar que outras pessoas se contaminem com a lepra, uma vez que a sua própria

família foi a responsável pela contaminação em cadeia da doença, para todos os

membros, atingindo inclusive a ele.

Apesar da hanseníase há algumas décadas se constituir em uma doença

curável, os séculos de associação da doença a ideia de contágio impuseram o

sentido de mal incurável e mortal.

É o seguinte. Eu posso dizer que nunca fiquei. [curado]

Compreende?! Que a gente fica bem, que a gente fica normal, mas

foi no ano de 1965 foi que sanou a hanseníase. O senhor vê esse

braço, ainda pode ver as marcas da hanseníase aqui, né? Isso aqui

eu senti uma dor tão grande nesse braço que eu vivia com ele na

tipoia. A hanseníase é a coisa mais fácil de alguém conhecer. Quem

tem hanseníase, é só apertar aqui e a pessoa não aguenta... a dor.

Naquela mesma tarde de domingo, após uma rápida pausa eu percebi que

seu Célio estava com vontade de retornar a entrevista. Eu pude notar que havia

juntado as duas palmas das mãos, colocando-as entre as pernas. E junto aquele

movimento sacudiu a cabeça para baixo e para cima como se tivesse ansioso para

retomar a conversa. Foi quando lentamente retirou as mãos que estavam entre as

pernas e as separou dizendo, “É o seguinte. Eu posso dizer que nunca fiquei [curado

da hanseníase]. Compreende?! Que a gente fica bem, que a gente fica normal, mas

foi no ano de 1965 foi que sanou a hanseníase”.

Pode parecer um contrassenso o fato de seu Célio dizer que a hanseníase

sanou em 1965, quando no Brasil a medicação para a cura da doença somente

estaria disponível na década de oitenta. Mas o fato é que naquela época certamente

seu Célio sentiu um alívio no mal-estar tão significativo que pode se afirmar que a

hanseníase havia sanado. É claro que muitos dos sinais da doença ainda

permaneceram, como ele mesmo relata: “O senhor vê esse braço, ainda pode ver as

marcas da hanseníase aqui, né? Isso aqui eu senti uma dor tão grande nesse braço

que eu vivia com ele na tipoia”. E, por outro lado, outros sintomas desagradáveis

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ainda permanecem, “Quem tem hanseníase, é só apertar aqui [as articulações do

cotovelo] e a pessoa não aguenta... a dor”.

Após soltar o seu cotovelo, seu Célio abriu os braços com as mãos voltadas

para cima e disse com saudade “o que eu vi de grandeza naquela época!”, se

referindo ao hospital colônia. “Eu me alimentava bem, não faltava nada. Sabe que

não faltava nada?!”

O que me chamou atenção lá no hospital é o que eu vi de

grandeza naquela época! Eu me alimentava bem, não faltava nada.

Sabe que não faltava nada?! Naquela época, o doutor Varela

trouxe... Não tinha aquelas carnes de charque? Aquele saco desse

tamanho assim? [mostrando] Carne com mais de dois e quatro

dedos de grossura. A gente comia aquilo e nunca faltava hoje o que

tinha de capa de costela, não tem cheiro, não tem sabor. A carne.

Naquela época a gente sentia de longe o aroma da carne. Hoje em

dia o povo diz que é carne de jumento. Que tanto jumento é esse? É

que o preparo daquele tempo era um hoje é outro. Hoje você come o

tomate, mas ele só dá se você usar produto químico, a laranja só dá

se adubar, a roça só dá se adubar, abobora só dá se adubar. Tudo!

A pessoa enche uma carreta de abacate lá no sul, ele tem que vir

verde, porque se colocar maduro não vai prestar. Tem que vir verde.

Mas de baixo da carreta eles colocam carbureto. E o alimento está

nos fazendo mal, porque nosso intestino não é de ferro. A gente está

vendo que tudo que a gente come é veneno. A banana! Você vê

uma banana, puxa a casca e quase não tem conteúdo, o miolo

pequeno e fino como um dedo. A banana verde é colocada no

carbureto, fica amarela. O carbureto fica todo dentro dela e a gente

come.

No hospital, lá eu, graças a Deus, só trabalhei para fazer

amizade, entende? Um dia desses fui ver numa pensão os

hansenianos, eu precisei de umas provas [documentos] e

mandaram-me ir para lá. Quando cheguei lá o hospital estava

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fechado. Eu fui na “saúde” e falei com Ieda. Ela é muito conhecida

minha. Ela disse: “Seu Célio, o senhor só vai encontrar essas provas

onde o senhor morava”. Então eu fui lá, peguei três provas, não é?!

Entusiasmado, seu Célio comenta que “a carne charque era gorda mas

saborosa e se sentia de longe o seu aroma”. Utilizando as mãos, as colocou bem

separadas uma da outra para tentar mostrar o volume de carne charque que

chegava ao hospital colônia. “Mas hoje são uma espécie de capa de costela”. Ao

ponto de “o povo” dizer que se trata de carne de “jumento”. Nesse trecho da

entrevista foi possível perceber a alegria e o orgulho que tomavam a feição de seu

Célio no momento em que falava das boas lembranças que tinha do hospital colônia.

Sobretudo, diante do contraste que é o drama grave de conviver com a lepra e as

consequências do seu tratamento no hospital colônia.

[...] O pessoal até já faleceu um dia desses. Quase todos foram

embora.

Agora é porque Jesus está achando que eu mereço viver que

mais tempo, mas o pessoal do meu tempo foi quase todo. O poder

de Deus é grande demais. Minha mãe faleceu, ela estava com 97

anos. Eu digo sempre que com a ajuda de Deus eu vou imitar ela.

Com o mesmo tom de saudade, seu Célio recordou que recentemente

precisou ir ao hospital em busca de alguns documentos. Foi quando percebeu que

muitos dos seus amigos haviam falecido há pouco tempo: “O pessoal até já faleceu

um dia desses. Quase todos foram embora”.

Após alguns rápidos segundos de silêncio, seu Célio apontou o dedo para

cima e disse, “Agora é porque Jesus está achando que eu mereço viver mais tempo

[...]”. “O poder de Deus é grande demais. Minha mãe faleceu, ela estava com 97

anos. Eu digo sempre que com a ajuda de Deus eu vou imitar ela”.

Embora pareça contraditório afirmar que a lepra não é fatal, essa afirmação

pode parecer paradoxal, pois, ao longo dos séculos a doença tem se mostrado uma

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moléstia com consequências terríveis para o corpo. Dessa maneira, a lepra tem

resistido ao longo de séculos, tornando-se a doença mais antiga que se tem registro.

Seu Célio, seu amigos, assim como a sua mãe, mesmo tendo sofrido inúmeras

mutilações e complicações relacionadas à lepra, além do preconceito ligado a

doença, são um testemunho vivo de como lutam para resistir à lepra e, tentam

prolongar a vida.

Apesar de a morte possuir o significado de uma imposição quase inevitável

que pesa sobre todos os vivos (MORIN, 1973), em qualquer acepção, seja na

presença material da morte ou na circunstância da ideia da morte, a humanidade se

depara com um fenômeno iminente e inevitável, mas que ao mesmo tempo permite

que outras metamorfoses se consolidem a partir de rearranjos celulares originados

na ordem, desordem, necrose e auto-organização1.

Morin (1973) compreende as ideias de auto-organização e de complexidade

como resultado implícito ou explícito do esfacelamento do velho paradigma,

deixando claro que o novo paradigma ainda não está concluído. E que a natureza

não é desordenada, passiva ou amorfa, mas trata-se de uma totalidade complexa.

Assim, o homem não é uma entidade isolada em relação a essa totalidade

complexa, mas se constitui em um sistema aberto com relação de autonomia e

dependência organizadora no seio de um ecossistema.

Uma das contradições da complexidade para Morin (1973) está no fato de

que a complexidade social se exprime por meio da relação de competição e

hierarquia. Mas esse aspecto também se esgota aí, visto que a competição forte

pode conduzir todo o sistema a uma hierarquia rígida, e até mesmo a uma dispersão

fatal.

Por outro lado, a concepção de desordem entendida como condutas

aleatórias, competições e conflitos é ambígua. Pois um dos constituintes da ordem

social compreendida como diversidade, variedade, elasticidade e complexidade

continua a ser desordem. Nesse caso, a iminência permanente conferida pela

1 Os estudos de Henri Atlan (1972) sobre a teoria dos automata de John Von Neumann, e o princípio

order from noise, de Heinz Von Foerster, desenvolvidos no centro de pesquisas na Universidade Mac

Gill em Montreal, se tornaram decisivos para que se pudessem desenvolver pesquisas sobre os

Sistemas com Auto-Organização (self-Organizing Systems), até então desconhecidos na França

(Morin, 1973).

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desordem é que mantém a sociedade o significado complexo e vivo de

reorganização permanente, contrastando fortemente com a ordem mecânica

(MORIN, 1973).

A ordem viva é a que renasce sem parar, e a desordem é constantemente

absorvida pela organização, metamorfoseada ou esvaziada. Absorvida, esvaziada,

rejeitada, recuperada, metamorfoseada sem cessar, a desordem renasce sem parar.

E assim surge a lógica, o segredo, o mistério, da complexidade e o sentido profundo

do termo auto-organização: uma sociedade se autoproduz sem parar porque se

autodestrói sem parar (MORIN, 1973). O fenômeno da apoptose talvez se constitua

em um exemplo desse sistema complexo, na medida em que representa a morte

celular programada com a finalidade de permitir a renovação do organismo

(SHELDRAKE, 2014).

A morte, por se constituir em um fenômeno identificado pelo mundo animal, é

muitas vezes utilizada como um artifício para simularem a própria morte a fim de

confundir os diversos predadores do mundo animal. Mas a morte é, sobretudo,

concebida como transformação de um estado noutro estado (MORIN, 1973).

Um artigo da Fiocruz (2016) apresentou uma importante descoberta de uma

pesquisadora brasileira, a doutora Anna Beatriz Robottom Ferreira. Em sua pesquisa

ela identificou como o mycobacterium leprae encontrou uma maneira de se camuflar

no organismo e assim conseguir sobrevida. Essa habilidade foi comprovada nos

laboratórios da Fiocruz, ao identificar que “como em um baile de máscaras” o bacilo

da lepra se disfarça sendo capaz de confundir o sistema imunológico, que passa a

oferecer uma resposta compatível a contaminação por um vírus. Dessa maneira o

bacilo da lepra aprendeu a se camuflar diante da ofensiva do sistema imunológico

humano e com isso pôde sobreviver.

Conforme Morin (1973), o aumento na ordem da complexidade resulta em

hipercomplexidade, e a compreensão desse fato é possível por meio de estudos da

complexidade organizacional dos sistemas vivos, a que se pode chamar automatas

naturais (Von Neumann), sistemas autoprodutores (Maturana), sistemas auto-

organizadores.

Entre as diversas diferenças encontradas nos organismos vivos concebidos

como máquinas naturais, e as máquinas artificiais, mesmo as mais aperfeiçoadas,

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como os computadores, construídas pelo homem, há uma distinção fundamental que

diz respeito à desordem, ao ruído, ao erro. Segundo essa concepção, a lepra pode

ser compreendida como um ruído. Pois, segundo Morin (1973), o ruído é, em termos

de comunicação, toda a perturbação que altera ou perturba a transmissão de uma

informação.

Assim, o sentido de desordem aqui utilizado refere-se a todo o fenômeno que,

em relação ao sistema considerado, parece obedecer ao acaso e não ao

determinismo do sistema. É tudo aquilo que não obedece à estrita aplicação

mecânica das forças segundo os esquemas pré-fixados da organização. Já o erro é

toda a recepção inexata de uma informação, em relação à sua emissão (MORIN,

1973).

De acordo com Morin (1973), no que diz respeito a maquina artificial, tudo

aquilo que é desordem, ruído, erro, aumenta a entropia do sistema, quer dizer,

acarreta a sua degradação, a sua degenerescência e a sua desorganização. Tem-se

a noção de entropia, dado que as noções de organização e de informação estão

ligadas, não só à noção de desordem, mas também às de ruído e de erro enquanto

geradores de desordem.

Mas o organismo vivo, por seu lado, funciona apesar de e com a desordem, o

ruído, o erro, os quais estão produzindo o aumento de entropia no sistema não são

necessariamente em sentido degenerativo, podendo ser regenerativo. E com o

bacilo da lepra a situação não é diferente, ora se metamorfoseia em vírus

(FIOCRUZ, 2016), ora retorna como surto reacional. E com o doente, ora é doença

maldita, ora é possibilidade de redenção (FOUCAULT, 2010).

Esses princípios de organização da vida é que são os princípios da

complexidade. É este fenômeno de reorganização permanente que dá aos sistemas

vivos flexibilidade e liberdade em relação às máquinas. Para Morin (1973), enquanto

a máquina artificial deve ser perfeitamente determinada e funcionalizada, o sistema

auto-organizador é tanto mais complexo quanto menos estritamente determinado,

quanto mais dotadas de autonomia relativa são as partes que o constituem, quanto

menos as suas complementaridades possam ser empírica e logicamente

dissociadas de concorrências e de antagonismos, quer dizer, de um certo ruído.

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Dessa maneira, o ruído não está só ligado ao funcionamento, mas ainda mais

à evolução do sistema vivo. A mutação é uma perturbação que pode ser assimilada

a um ruído, no momento da transmissão de uma mensagem genética por duplicação

de ruído, que provoca um erro em relação à informação emitida, erro esse que, por

sua vez, deveria provocar uma degenerescência no novo sistema vivo. Ora,

acontece que, em certos casos, o ruído provoca o aparecimento de uma inovação e

de uma complexidade mais rica. Nesse caso, o erro em vez de degradar a

informação, enriquece-a (ATLAN, 1972).

Porém, mesmo por mais automatizado que esteja, o funcionamento do

organismo tolera certamente uma parte de desordem, ou seja, há um certo limite

para isso. Pois há células que proliferam de forma descontrolada, vírus inimigos que

penetram no seu interior, e só para além de volume de desordem tolerável é que

entra em movimento o sistema imunológico, forçando o restabelecimento da ordem

que reprime a desordem interna e destrói o desorganizador externo por intermédio

da produção de anticorpos.

O sistema hipercomplexo é, em comparação com um sistema menos

complexo, fracamente hierarquizado, fracamente especializado, não estritamente

centralizado, mais fortemente dominado pelas competências estratégicas e

heurísticas, mais fortemente dependente das intercomunicações, e, por todas estas

características, mais fortemente submetido à desordem, ao ruído, ao erro (MORIN,

1973).

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CENÁRIO MACROSCÓPICO DA LEPRA

No livro O Macroscópio - para uma visão global, o biólogo Joel de Rosnay

(1977) sugere que o complexo é a religação entre o “infinitamente grande” (a visão

telescópica) e o “infinitamente pequeno” (a visão microscópica). Para ele, essa

religação é explicitada pela metáfora do macroscópio.

Aqui, agora exponho a dinâmica da epidemiologia da lepra e mais uma vez

uso como artifício narrativo um texto ficcional que oferece luminosidade para tratar

dessa reflexão:

Estava no chão após uma noite de sonhos intranquilos. Câimbras dificultavam

a sua locomoção. Enxergava apenas o chão, pois estava com a face colada nele.

Cinco minutos se passaram e ainda estava lá. Dali era possível ouvir bem o som das

engrenagens de um pequeno relógio acomodado próximo à cabeceira da sua cama

embalando um sonoro badalo nos seus marcadores a cada minuto. E também dali

era possível escutar o barulho do vento sob a copa das árvores que cercavam a

pequena casa onde morava.

No momento seguinte, ainda assustado, conseguiu movimentar suavemente

os membros inferiores e logo depois os superiores. Percebeu que não estava

machucado com a queda da cama. E aos poucos tomou ânimo e virou-se sobre o

braço esquerdo, para aproximar os joelhos ao abdômen. Em um fôlego levantou-se.

Tudo parecia como antes, as coisas permaneciam no mesmo lugar. Talvez

por isso ele deixou de lado preocupações e voltou-se para a cozinha, a fim de

preparar o café. Acendeu o fogo e colocou o bule no bico da chama, enquanto

preparava-se para sair, colocando a sua camisa predileta.

Antes que pudesse terminar de se arrumar viu o seu antebraço direito

chamuscado como se tivesse o queimado em algum lugar. Mas não deu importância

a esse fato e por isso voltou à cozinha para tomar o café. Foi nesse momento que

percebeu que aquele café não parecia tão quente como de costume. E, por isso,

segurou a xícara com as duas mãos a fim de tentar sentir o calor do café, enquanto

andava em direção a uma pequena janela.

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Ao chegar à janela a abriu utilizando uma das suas mãos e naquele momento

notou também que deveria sentir frio, pois a madrugada estava chuvosa. Mas o

tempo não parecia estar frio como esperado. Ficou atordoado com todas aquelas

sensações estranhas, mas com o passar do tempo, dia a após dia, parecia se

acostumar com essas mudanças em seu corpo.

Hoje, 87 dias após aquela queda, ele nota pequenas manchas em suas

orelhas e nariz. São avermelhadas como os hematomas que resultam de uma

coceira. Apesar de estar em abril, em plena primavera, o que o fez pensar que essas

coisas eram comuns em períodos mais quentes. Pôde imaginar que talvez em maio,

com a chegada da neve, o frio levasse consigo esse seu mal estar. De qualquer

modo, continuou a escrever no seu diário: “Bergen, 01 de abril de 1874. Sinto algo

de estranho no meu corpo”.

Ao amanhecer, Njord caminhava como de costume em direção ao Mount

Floyen para uma localidade onde exercia o ofício de pescador. E por isso, em sua

comunidade, era o responsável pela conservação do pescado, fundamental no

período de inverno. A tradição Viking parece ter deixado as suas marcas de

resistência. O que fez o povo norueguês aprender desde cedo a superar as

adversidades.

Depois do trabalho, durante o retorno para casa Njord ficou encharcado por

uma forte chuva. Afinal Bergen é conhecida como a cidade mais chuvosa da Europa.

E ao perceber que ainda estava distante de casa, aproveitou para descansar um

pouco se sentando em uma pedra para retirar as pesadas botinas. Foi nesse

momento que notou algumas feridas à mostra em todas as partes dos seus pés.

Assustado, decidiu caminhar descalço. Foi quando se deparou com um

homem vestindo uma longa túnica preta. Mesmo desconfiado, Njord decidiu parar e

pedir ajuda aquele homem. Após cerca de cinco minutos de conversa, pouco sabiam

um do outro. Mas mesmo assim aquele senhor parecia perceber que Njord estava

longe de casa e precisava de ajuda.

Diante da situação, aquele estranho senhor o convidou a segui-lo até a sua

casa. Njord o seguiu, e ao chegar à casa do homem, foi chamado a entrar. Era uma

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construção grande, toda revestida em madeira e bastante elevada em relação ao

terreno.

Para entrar na casa foi necessário subir alguns degraus, que os levaram a

uma varanda, onde ficava a porta principal. Após abrir aquela porta, lá dentro

deparou-se com um amplo salão, e ao atravessá-lo foi possível enxergar à sua

esquerda uma escada que o levava a uma espécie de subsolo. Ao descê-la notou

um ambiente fétido, escuro e úmido. Ali embaixo avistou dezenas de pessoas,

homens, mulheres e até crianças.

O local funcionava como um ambiente de acolhimento de todos os tipos de

enfermidades. Era uma instalação hospitalar clandestina. Tão logo Njord percebeu

do que se tratava, imaginou que poderiam prendê-lo ali, e por isso pensou em

escapar. Mas antes que tivesse tempo foi levado ao encontro de médicos, quando

pôde conhecer um doutor que o examinou por completo, e ao contrário do que Njord

imaginou, ali mesmo o médico tomou providências medicamentosas.

Njord teve os seus ferimentos tratados e foi enfaixado em tecido. Poucas

horas depois já se sentia melhor, e com os machucados menos doloridos. Foi

quando decidiu que deveria voltar a estrada e ir para a sua casa. Mas antes era

preciso agradecer aquele homem que o ajudou.

Apoiando-se em uma parede onde estava encostada a sua cama, Njord

conseguiu se levantar e subir as escadas daquele porão. No grande salão estavam

o homem que o ajudou e o médico, ambos diante de uma lareira. Njord se

aproximou e despediu-se daqueles homens, para em seguida partir em direção a

sua casa.

Ao anoitecer, precisou desviar o caminho pelo centro de Bergen, região que

não visitava há muito tempo. Mal chegou ao local, notou que as pessoas da

redondeza passam a observá-lo e insultá-lo. De fato antes usava uma bata que

escondia o seu corpo, mas após ter sido enfaixado assumia uma aparência

estranha. Certamente algo havia mudado. Se antes mal o notavam, agora gritavam,

leproso!

Apesar de a noite ter chegado Njord decidiu voltar para o caminho de casa,

contornando de longe o centro da cidade. Mas com o tempo chuvoso, a estrada

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estava enlameada. E como os seus pés permaneciam descalços, os ferimentos se

misturavam com a lama do chão, naquele caminho completamente deserto.

Mais à frente para outra vez para descansar. Diante dele, o lago Lille com

as suas águas cristalinas. Njord ensaiou lavar os pés, quando viu o seu reflexo como

num espelho d’água. Aquela imagem o deixou perplexo, pois o seu rosto estava

desfigurado. Agora pode entender o que se passou no centro de Bergen.

Tomado pelo desespero desejou se lançar permanentemente naquelas

águas e pôr fim aquele sofrimento. Estrategicamente procurou por uma pedra mais

alta por onde fosse possível saltar de ponta cabeça. Tudo estava pronto, não havia

ninguém para confessar a sua dor e tampouco nada de importante estava a sua

espera. No horizonte enxergou a imensidão do lago. Fechou os olhos, respirou e

preparou-se para pular. Em uma fração de milésimos de segundo, imaginou que

poderia fazer tudo diferente. E decidiu lutar pela vida.

Voltemos à realidade. Completamente desconhecidos por milhões de anos,

os microrganismos sempre estiveram presentes na natureza. Estima-se que é

incalculável a quantidade hospedada no planeta. O corpo humano possui milhões ou

talvez bilhões de micro seres com dimensões variadas, a exemplo de algumas

bactérias que podem medir micro frações de centésimo de milímetro. Muitos desses

microrganismos são responsáveis pela saúde do corpo, como os lactobacilos. Mas

inúmeros outros podem levar o homem ao adoecimento e em últimas consequências

até à morte.

Esse universo imperceptível aos olhos e muito menos ao tato é povoado por

toda uma espécie de material orgânico, como micros resíduos de insetos, pele e até

a excreção de micro seres, responsáveis por complicações a saúde tais como

algumas alergias.

No século XIX microrganismos bacterianos passaram da obscuridade ao alvo

dos holofotes, graças ao empenho de centenas de pesquisadores que contribuíram

na consolidação de fundamentos para a área da microbiologia, a exemplo de

Pasteur, Hansen e Koch. Provavelmente o fato de ir à contramão do discurso da

hereditariedade permitiu que Hansen perseguisse com obstinação uma resposta

para a causa da doença.

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Em 1874, após afastar a ideia de hereditariedade defendida pelo seu mentor

Danielssen, Hansen publicou um trabalho sobre uma célula que continha material

leproso (BECHLER, 2012). Ainda que com poucos recursos técnicos, ali era possível

perceber que os microrganismos assemelhavam-se a bastões, revelando prováveis

indícios sobre o agente etiológico da lepra.

Essa primeira revelação do bacilo atraiu a atenção para a sua hipótese, mas

outra vez foi duramente criticado por defensores do modelo hereditário que

contestavam a pouca solidez na demonstração do achado de Hansen (BECHLER,

2012), fragilizada, sobretudo, pelo precário laboratório onde desenvolvia os seus

estudos. Apenas cerca de cinco anos depois, com o desenvolvimento de modernos

microscópios e do avanço de estudos sobre os microrganismos, Hansen pôde

examinar e demonstrar mais adequadamente os bacilos da lepra.

Após incontáveis controvérsias e disputas quanto à etiologia da moléstia,

em 1887 Hansen viajou para os Estados Unidos onde investigou a ação da lepra em

imigrantes Noruegueses. Era um último recurso para pôr fim a hipótese de

hereditariedade. E após densa pesquisa nos EUA, o fato de não ter encontrado

sequer um caso da doença entre os imigrantes noruegueses o fez afastar

definitivamente a hipótese de hereditariedade defendida pelo seu mentor. A partir

daí a tese de Armaneur Hansen passou a ser prestigiada, e com isso recebeu

notoriedade como pesquisador, culminado em anos depois, ao seu nome, os

créditos por desvendar o agente etiológico da lepra.

O ano de 1868 registra um importante momento da histologia norueguesa.

Atravessado de um lado pelo pesquisador Gerhard Henrik Armauer Hansen, e do

outro, pelo Mycobacterium leprae. Um encontro inevitável, que não tardou a

acontecer.

Por mais de dois mil anos, o agente etiológico da lepra permaneceu

encoberto à percepção das ciências médicas. Talvez pela sua maleabilidade biótica

e, sobretudo, pela fragilidade técnica da medicina. Até que em 1841, na cidade de

Bergen, o oitavo dos quinze filhos de um modesto casal de comerciantes recebeu o

nome de Hansen.

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Hansen dedicou a vida à medicina, concluindo os seus estudos em 1866. E

ao retornar para Bergen, em 1868, integrou um importante grupo de pesquisadores

na área da lepra. Liderados por Daniel Cornelius Danielssen, que defendia a

transmissão da doença por via hereditária, Hansen logo se opôs a essa tese e

investigou a ação de microrganismos como agente etiológico da lepra (BECHLER,

2012).

Se durante séculos o bacilo causador da lepra foi o responsável pela

proliferação da moléstia mais antiga da humanidade, é também verdade que não foi

necessário durante esse tempo o uso de artifícios para mascarar a sua identidade.

Posto que na Antiguidade e Idade Média ter lepra significava ser punido com um

castigo divino. E no século XIX, a lepra passou a ser justificada pela herança

hereditária, e naquele mesmo século, foi estudada como uma doença infecto-

contagiosa.

No século XIX, talvez pela influência do evolucionismo darwiniano, a

sociedade médica creditou a tese da hereditariedade de Danielssen. No momento

em que a ideia de contágio não era disseminada com clareza, Hansen teria o

desafio de provar que a doença é infectocontagiosa e causada por microrganismos.

Os esforços de Hansen em perseguir microrganismos foi uma guinada

decisiva nos estudos sobre a lepra. Ao custo de suas declarações se tornarem

motivo de inimizades, críticas e até chacotas por parte da comunidade científica da

época.

A sua obsessão em provar a existência de um bacilo causador da lepra o fez

inoculá-lo em animais, enfermeiras, no olho de uma paciente e até em si mesmo.

Embora essas ações não produzissem resultado clínico, o fato lhe gerou um

processo judicial. Armauer Hansen parece ter sido um dos primeiros pesquisadores

que percebeu a potência dos microrganismos sobre os corpos. Talvez por ter

convivido com doenças dominadas por micro agentes patológicos como o vírus da

sífilis, mantida em segredo até a sua morte.

A hanseníase é uma moléstia infecciosa crônica, causada pelo

Mycobacterium leprae, descoberto em Bergen, na Noruega, por Gerhard Henrik

Armauer Hansen e publicado em 1874 (BECHELLI, 1988). Esse fato talvez se

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constitua em uma das mais importantes descobertas da medicina, que deva ser

creditada a todos os entusiastas pesquisadores da época.

A micobactéria ácido-resistente denominada Mycobacterium leprae (M.

leprae), cuja principal característica é a fácil adaptação ao ambiente intracelular é

causadora da hanseníase. Para Joplinge Macdougall. (1991), mesmo podendo ser

encontrada em vários tipos de células, é mais comum em macrófagos, pois a partir

do trabalho de fagocitose do macrófago, o bacilo da lepra se instala em células

nervosas, musculares, endoteliais (dos vasos sanguíneos), melanócitos (da pele) e

condrócitos (da cartilagem). Segundo Veronesi (1988), a evolução da infecção e da

doença depende da resistência individual das pessoas.

A hanseníase divide-se em quatro tipos específicos, como mostram Queiroz e

Puntel (1997):

a) Indeterminada (I) ou precoce: fase inicial da doença. Apresentam-se manchas hipocrônicas de limites imprecisos e áreas de hipestasia térmica seguidas de alterações de sensibilidade dolorosa e tátil. O indivíduo pode permanecer na forma indeterminada durante muito tempo, antes de ocorrer a polarização para a forma tuberculóide ou virchoviana, o que dependerá do seu comportamento imunológico; b) Tuberculóide (T): pólo não contagioso, habitualmente estável, com bacterioscopia, em geral, negativa, lesões bem delimitadas e frequente acometimento nervoso; Virchoviana (V): pólo contagioso, com grande número de bacilos, apresentando lesões cutâneas difusas e acometimento sistêmico; Dimorfa (D): muito instável, com baciloscopia positiva ou negativa e manifestações cutâneas polimorfas. (QUEIROZ; PUNTEL, 1997, p. 40).

A transmissão da doença acontece por três possíveis rotas: a pele, o tubo

gastrointestinal e as vias aéreas. Entretanto, independente da via de entrada,

somente uma parte das pessoas infectadas apresenta sinais da lepra após o período

usual de incubação, variável entre três e cinco anos. Há relatos de variações de seis

anos e até de várias décadas para o aparecimento dos primeiros sinais ou sintomas

da lepra em determinados indivíduos. Estes dados originam-se de pesquisas com

indivíduos que mantiveram contato com leprosos algumas vezes. E após a

realização de exame de biopsia, resultados revelaram a presença de bacilo na pele,

no nervo ou no músculo. Contudo, na maioria dos casos não foi verificado o

desenvolvimento da moléstia em revisões subseqüentes. O que, conforme Veronesi

(1988), levanta a hipótese de predisposição orgânica de alguns indivíduos à doença.

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Atualmente, a moléstia continua um desafio para a ciência, que tenta

reproduzi-la por meios artificiais – in vitro – com a finalidade de criar uma possível

vacina. Entretanto, somente a partir de 1960 são desenvolvidas técnicas para

transmitir o bacilo a camundongos, o que facilitou a descoberta do tratamento para a

doença. Porém, é por meio do apoio dos organismos internacionais, como a

Organização Mundial de Saúde (OMS), que se tornou possível a descoberta da cura

e combate a enfermidade, que ocorreu por meio da utilização de poliquimioterapia

anos depois.

Conforme o Ministério da Saúde (2016), os sintomas iniciais da hanseníase

são manchas brancas ou avermelhadas, dor nos nervos dos braços, das mãos, das

pernas ou dos pés, e partes do corpo com formigamento ou dormência. Outros

sintomas correlatos são: alteração da sensibilidade ao calor, frio e dores

principalmente nas mãos e pés; em alguns casos, diminuição da força muscular;

congestão nasal frequente, sangramentos e feridas em regiões do corpo, além da

sensação de areia nos olhos e visão embaçada ou ressecada. Entretanto, caso o

paciente não seja tratado, com a evolução da doença, a vítima da hanseníase pode

também apresentar caroços no corpo e insensibilidade à dor em casos de

queimaduras ou cortes.

Embora o conhecimento biomédico disponível sobre a cadeia epidemiológica

de transmissão da lepra seja ainda bastante impreciso, estudos sobre o

desenvolvimento da infecção e da doença revelaram que a propagação da lepra

depende da resistência individual de cada pessoa (VERONESI, 1988). Mesmo após

décadas de estudos, muitas questões ainda não foram solucionadas, principalmente

no que diz respeito às propriedades biológicas do bacilo de Hansen e às

informações quanto ao modo de transmissão e a resistência das pessoas expostas

aos riscos de adquirir a moléstia. Assim, Moraes acredita que:

As vias de eliminação do bacilo pelo hospedeiro e as vias de

penetração no indivíduo susceptível tem sido alvo de muitos

estudos, apontando principalmente as vias respiratórias como a

porta de entrada e saída dos bacilos. Entretanto, não há provas

conclusivas de que a transmissão seja exclusivamente respiratória,

pois alguns pesquisadores continuam estudos sobre a transmissão

pela via cutânea, mucosa digestiva, ou pelas secreções humanas.

(MORAES, 1990, p. 9).

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Conforme observações, médicos explicam que o bacilo de Hansen, após se

instalar no organismo, prefere as células nervosas, além disso, é o único bacilo

capaz de penetrá-las. Suspeita-se que essa intrusão ocorra por meio dos vasos

sanguíneos em uma área do tecido conjuntivo que emoldura o interior do ducto ou

canal nervoso, chamado de endoneurais. Ele separa cada fibra nervosa, funciona

como um isolante. Além dos nervos e da pele, outros tecidos podem ser acometidos

pela lepra: unhas das mãos e dos pés, nariz, boca, olhos, testículos, músculos,

apenas para citar os mais importantes.

Do ponto de vista epidemiológico, a hanseníase continua sendo um grave

problema de saúde pública em vários países da Ásia, África, América Latina e

Caribe. Em 1994, a Organização Mundial de Saúde calculou que em 79 países do

mundo existia número significativo de doentes. Conforme o Ministério da Saúde

(2016), em 2014 o Brasil ocupa o segundo lugar na prevalência com 1,27 casos por

10.000 habitantes. Em 2015, passa a ocupar o quinto lugar, com 1,01 casos.

Apesar dessa melhora, dados publicados pela Organização Mundial da Saúde

(2016) informam que entre os países endêmicos, a Índia, Indonésia e Brasil são

responsáveis por 80% dos casos de hanseníase no mundo. E conforme a Fiocruz

(2016), o Brasil é o único país no mundo que não conseguiu eliminar a propagação

da hanseníase.

No Brasil, em 1985, a cada 10.000 habitantes, 19 desenvolvia a doença, este

número reduz em 1994 para 1,7. Deve-se isto ao Programa Nacional de Eliminação

da Hanseníase (PNEH), que em 2004 redireciona a política de erradicação da

doença. O princípio básico está fundamentado na correção do cálculo. Até 2004, o

índice de prevalência no país era calculado de acordo com a seguinte fórmula:

número de casos em curso de tratamento somado aos casos em abandono de

tratamento e aos casos que recebem medicação além do tempo preconizado. De

acordo com os critérios recomendados pela OMS, a prevalência deve ser composta

apenas pelos casos em curso de tratamento. Essa divergência fazia com que o

coeficiente calculado para o Brasil impossibilitasse a comparação com outros países

e levasse o país a ser considerado como o mais endêmico do mundo.

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Em finais de 2004, após o trabalho de atualização de registros, a prevalência

da hanseníase no Brasil cai, e é calculada como de 1,7 casos por 10.000 habitantes.

Hoje, o país está próximo de atingir a meta da OMS que é uma prevalência de um

caso para cada 10.000 habitantes. Mas ao analisar o dado como média nacional,

verifica-se que a distribuição da hanseníase no país não é homogênea. De acordo

com o Ministério da Saúde (2016), a prevalência é de 1,01 casos por 10.000

habitantes. Todavia, os estados de Mato Grosso (7,75), Tocantins (4,20), Maranhão

(3,76), e Mato Grosso do Sul (2,33), apresentam expressiva magnitude da doença.

No entanto, é na região nordeste que se encontra a maior endemicidade do país:

8.958 casos, correspondendo a 43,2% da prevalência nacional.

Hoje, a hanseníase afeta cerca de 20.000 brasileiros, segundo o Ministério da

Saúde (2016). Os estados de Rondônia, Pará, Tocantins, Maranhão, Piauí, Mato

Grosso do Sul e Mato Grosso superam a marca de dois doentes a cada dez mil

habitantes. Por outro lado, a doença está controlada apenas nas regiões sudeste e

sul, que possuem índices abaixo de 1/10.000 habitantes. Nesse sentido, o Brasil

registra, no final de 2015, um coeficiente de prevalência de hanseníase de 1,01

casos / 10.000 habitantes – que equivale a 20.702 casos em curso de tratamento em

2015 - e um coeficiente de detecção geral de casos novos de 14,07 / 100.000

habitantes, equivalendo a 28.761 casos novos no mesmo período. A situação não é

mais grave porque, desde o início de 2004, a doença foi eleita como prioritária pelas

autoridades de saúde no país.

Apesar de diversos segmentos da ciência defender a tese de que o indicador

pobreza é importante para a compreensão da propagação da moléstia, como

sinalizado por Moraes (1990), fatores ligados à pobreza como aglomeração, má

alimentação e saneamento básico podem favorecer a disseminação da doença.

Nota-se, por outro lado, que a pobreza, por si, não é responsável pela propagação

da doença. Como há décadas tem sido veiculada, sobretudo, na biomedicina

pragmática. Dados do Ministério da Saúde (2016) demonstram essa relação de

independência estatística, ao evidenciar que entre as áreas de baixa endemicidade

da doença, encontra-se o estado considerado o mais pobre do país: Alagoas (0,65).

E o Rio Grande do Norte (0,50), que apesar de não se situar ao lado de Alagoas,

pertence a região Nordeste. Os dados aproximam esses estados às regiões mais

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devolvidas do país: o sudeste e sul, apresentando índices que variam de 0,10 a 0,57

por 10.000 habitantes, aproximando Alagoas (0,65) ao estado do Paraná (0,57).

Entre 1972 e 1987, a OMS investiu maciçamente para desenvolver um

tratamento contra a lepra, em laboratórios de vários lugares do mundo, o qual

consiste na junção de três drogas: Dapsona, Rifanpicina e Clofazimina. Segundo

Sarno (2003), por conseguinte, no ano de 1981, a OMS passa a recomendar essa

combinação de medicamentos, a poliquimioterapia (PQT), em inglês, diz-se

Multidrug Therapy (MDT), que começa a ser usada na Índia (que possui alta

incidência da doença) e, posteriormente, em outros países. Contudo, segundo Claro

(1995), o Brasil só adotou o esquema quimioterápico oficialmente em 1991.

Atualmente, erradicar a hanseníase é uma questão mundial e, por isso, a

OMS – Organização Mundial de Saúde – conveniou-se a governos de países onde a

doença é endêmica. No Brasil, o convênio prevê que a OMS forneça o medicamento

para a doença (PQT) e o Ministério da Saúde responsabilize-se por diagnosticar,

treinar profissionais, dispor de estrutura clínica para o atendimento dos pacientes e

oferecer remédios (Talidomida e Predinisona) para o surto reacional. Pois, o surto

reacional faz parte da terapêutica, e é uma resposta do organismo durante o

tratamento, que ao tentar eliminar o bacilo, produz inflamação na pele e nos nervos,

causando manchas e caroços no corpo, além de causar perda de sensibilidade nas

mãos, nos pés, nos olhos, e ferimentos que não cicatrizam motivados por causa dos

distúrbios do sistema nervoso periférico.

Em países endêmicos, os programas de controle enfrentam outras

dificuldades, como a demora dos doentes para buscar o diagnóstico, tratamento e

cura, que em muitos casos, quando isso é feito, alguns pacientes apresentam um

estágio mais desenvolvido da doença, que segundo Veronesi (1988), a depender da

resistência imunológica de cada indivíduo, pode interferir na duração da terapêutica.

No Brasil, independente do nível socioeconômico, o indivíduo infectado pelo

bacilo da hanseníase é encaminhado a uma das unidades básicas de saúde,

assistida pelo Sistema Único de Saúde (SUS), onde realiza o tratamento com a

medicação de forma gratuita, financiada pela OMS.

Por se tratar de uma doença de notificação compulsória, as instituições

públicas são obrigadas a informar ao ministério da saúde todos os casos da doença

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em tratamento. No Rio Grande do Norte, o Hospital Estadual Giselda Trigueiro –

especializado no tratamento de doenças infecto-contagiosas –, é o centro de

referência para o tratamento da hanseníase.

Integra também a rede de tratamento da doença o Hospital Universitário

Onofre Lopes (HUOL/UFRN) que, apesar de não se constituir o centro de referência

em hanseníase, trata os indivíduos que foram diagnosticados na unidade, ou

aqueles encaminhados a unidade hospitalar, com a moléstia.

O paciente de hanseníase ao ser encaminhado a uma unidade de tratamento

hospitalar pública, apresentando os sintomas, segue diretamente para uma unidade

ambulatorial, onde é possível realizar o exame de biopsia, para o diagnóstico

preciso. É no setor de dermatologia que a equipe médica reavalia o doente e

orienta-o a seguir o tratamento. Todavia, caso resida onde haja centro de saúde

capacitado para o atendimento ambulatorial de rotina o doente será encaminhado

para se tratar naquela unidade, juntamente com a medicação necessária. Esse

procedimento é padronizado para todo o país.

No caso do paciente buscar atendimento no hospital, motivado por sintomas,

porém sem o diagnóstico, é orientado a procurar, imediatamente, o serviço de

dermatologia do hospital. Uma vez diagnosticada a hanseníase, será encaminhado

para o ambulatório. Contudo, desenvolvendo alguma complicação durante o

tratamento, como, por exemplo, dificuldade ocular, é encaminhado ao setor de

oftalmologia; surto reacional, ou problema motor nas mãos ou nos pés, seguirá para

um serviço de fisioterapia interno, ou externo ao hospital. Assim como demais

complicações clínicas, será encaminhado para o respectivo tratamento, por meio do

SUS.

Apresentando surto reacional, o paciente necessitará de talidomida ou

predinisona, ambas as substâncias não estão disponíveis para comercialização.

Assim, para adquiri-las, o doente deve se encaminhar até a farmácia do Hospital

com o receituário médico e receber a medicação gratuitamente. Porém, na ausência

de surto reacional, o paciente recebe, apenas, o PQT - Poliquimioterápico, que é

entregue no próprio ambulatório. Nesses casos, é liberado para retornar a sua

residência, sob a orientação de voltar mensalmente ao hospital, para consulta e

recebimento de medicação, até findar o tratamento. O processo de cura é específico

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para cada situação: pode variar de seis meses a um ano se não houver interrupção

ou abandono. Conforme o Ministério da Saúde (2006), caso o indivíduo apresente

menor quantidade de bacilos (formas paucibacilares), é utilizado para tratamento e

cura da doença o Poliquimioterápico (PQT) durante seis meses em seis doses de

medicação. Caso exista maior quantidade de bacilos (formas multibacilares) é

recomendado um ano ou 12 doses.

Segundo observações em campo, é consenso entre os profissionais de saúde

responsáveis pela distribuição de medicamentos nas unidades hospitalares, que

para erradicar o bacilo da hanseníase a primeira dose de PQT distribuída em

ambulatório é considerada imprescindível, por isso a própria enfermagem

supervisiona o paciente, acompanhando a ingestão do remédio após a consulta com

o médico. Profissionais da saúde acreditam que esse método reduz

significativamente o risco do paciente não ingerir a principal dose do medicamento e,

em conseqüência, não se curar. Este procedimento objetiva a minimizar a

possibilidade do doente ser agente transmissor, nos casos contagiantes da doença.

Mesmo como os avanços da ciência e os esforços de combate a moléstia, ela

persiste como um mal que atravessa gerações. Certamente há algo de distinto na

lepra, que a transforma em uma forte simbologia de temor ao longo dos séculos, e a

reveste de uma importância histórica e social para a humanidade. Esse fato pode

ser elucidado por meio de pelo menos dois componentes, de um lado a visão

estigmatizante da lepra e, de outro lado, pela a terapêutica experimental que durante

séculos vitimou os leprosos.

Historicamente no país a terapêutica da lepra representa as associações

entre variados recursos disponíveis, e muitos deles experimentados ao longo de

vários séculos de combate à moléstia. A fim de atender às demandas sociais de

saúde da população brasileira, e com o objetivo de eliminar a doença, tornou-se

objeto de atenção entre os médicos e estudiosos do assunto, ainda no Brasil

colônia, a identificação do diagnóstico, tratamento e controle da hanseníase.

Os portugueses, e de um modo geral os europeus, segundo Santos Filho

(1960), chegam ao Brasil e introduziram a "caixa de botica", espécie de conjuntos de

determinados medicamentos considerados úteis ao tratamento de diversas doenças,

inclusive a hanseníase. Porém, o desconhecimento da cura da lepra, além da

limitação dos medicamentos dificultou a prática da terapêutica europeia em terras

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coloniais. Hoje, pouco se conhece sobre determinadas doenças como a lepra. Do

mesmo modo, há incertezas sobre outras doenças como a sífilis, que segundo Ujvari

(2015) é de origem indígena, herdada pelos colonizadores e disseminada na

Europa.

Diante da escassez de recursos, a medicina no Brasil, desde o começo da

colonização até o início do século XIX, teve como alternativa encontrada para a

terapêutica das doenças a fusão de várias formas de tratamento – seja de origem

indígena ou europeia –, inclusive para os casos de lepra. Embora no século XVI

muitos colonizadores acreditassem que diversas moléstias, como a lepra, fossem

transmitidas por meio do ar corrompido ou miasmas.

Desde a chegada ao Brasil, os portugueses perceberam que os indígenas

detinham maior conhecimento e domínio das ervas do que os europeus. E talvez por

isso os procedimentos para tratar a lepra eram árduos para os colonizadores. No

entanto, para o indígena as dificuldades eram redobradas, pois desconheciam a

lepra – logo não poderiam utilizar precisamente o conhecimento sobre as ervas

disponíveis. E por outro lado, também não havia reciprocidade entre o universo

simbólico do nativo com o do colonizador. Assim era difícil que os índios aceitassem

a doença como castigo ou vontade divina.

Durante a colonização do Brasil, os conhecimentos europeus e indígenas

eram amplamente utilizados entre as tentativas de cura da lepra por intermédio de

plantas medicinais, banhos com águas termais, banhos de lama, sangrias, choques

elétricos e até picadas de cobras. Assim, as tentativas de curar a lepra dividiam a

terapêutica, que utilizava desde experiências europeias, baseadas tanto em notícias

que chegavam da Europa, quanto os conhecimentos locais.

O tímido advento de uma forma de saber médica tornou a terapêutica do

leproso – experimental –, tal como as incontáveis tentativas de regeneração e de

despertar da criatura operada no laboratório do doutor Frankenstein, (FIGUEIREDO,

2010).

Assim, com o advento da tecnologia da Idade Contemporânea, a medicina

recuperou o mesmo princípio do pulso da corrente elétrica que trouxe vida a

Frankenstein, e que no século XX inspiraria a terapêutica dos manicômios, a qual

Nise da Silveira era radicalmente contrária.

No meio desse caminho estava outro método usado na tentativa de cura dos

leprosos: o galvanismo. Esse procedimento consistiu na aplicação de banhos

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galvânicos em banheiras isoladas: o paciente, submerso em água tépida e

levemente acidulada, recebe por meio de fios cujos polos estão dirigidos à coluna

cervical e à água, leves choques de uma corrente contínua alimentada por pilhas.

Conforme era esperado, de acordo com Souza-Araujo (1956), o galvanismo

não trouxe benefícios acreditados. Embora os médicos justificassem que o método,

além de tornar o sangue menos coagulável, azia com que fosse restabelecida, em

parte, a sensibilidade periférica das áreas atingidas pela doença. Tratava-se assim

de um recurso rudimentar e cruel, além de ineficaz.

De modo menos indolor, outro método: a aplicação de resina de caju também

era uma tentativa dos médicos brasileiros, na intenção de minimizar sintomas

apresentados pelos hansenianos. De acordo com Souza-Araujo (1956), após a

extração, a resina era aplicada sob a forma de emplastro que permanecia sobre os

nódulos por 24 horas. Mesmo a pele ficando com ferimentos após a aplicação,

estudiosos acreditavam que depois de as queimaduras serem devidamente tratadas,

obter-se-ia o desaparecimento dos nódulos. Mas de fato o método agravava o

sofrimento do doente com o acúmulo do problema de saúde e as feridas causadas

pela resina do caju.

Naquela época, outro recurso utilizado por médicos brasileiros era a

prescrição da ingestão de veneno de cobra em quantidades diluídas (1/18 de gota)

para ser misturado à mucilagem. A prescrição do veneno produzia a liquefação do

sangue, assim os doentes envenenados vertiam sangue pelos pulmões, gengiva,

reto, bexiga, uretra, aliviando os sintomas da lepra, (SOUZA-ARAÚJO, 1960).

Além dessas sangrias, feitas a cada três ou quatro semanas, eram

recomendados banhos diários e prolongados por imersão em águas tépidas e

acrescidas de sabão, usando-se esponja para acelerar a descamação. Depois do

banho, aplicam-se pomadas ou unguentos de plantas misturadas, por vezes, com

óleos, a exemplo do de amêndoas.

Em alguns estados do Brasil, o tratamento era específico, como no caso de

Goiás, onde às águas termais de Caldas de Santa Cruz possibilitavam outra

terapêutica: eram recomendados banhos diários com águas quentes e vapores,

após os quais o paciente submetia-se ao cautério. Este processo, por sua vez,

consistia em pressionar um ferro candente diretamente sobre nódulos e tubérculos

aparentes na pele.

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Essas diversificadas experiências de terapêutica médica são igualmente

responsáveis pelo mal-estar de milhares de doentes que sentiam no corpo a

purgação de um mal, a condenação pela lepra.

Apesar de o caráter maldito da doença ter sido diminuído com o

desenvolvimento de uma forma médica de sua compreensão, essa configuração não

é suficiente para aliviar a dor dos leprosos, pois, continuavam vítimas da medicina

experimental. No Pará, os pacientes submetiam-se a tratamentos com ervas – a

exemplo das folhas de açacu – que, após cozidas em infusão, eram ingeridas e

tinham efeito laxante, provocando evacuações líquidas de até quatro vezes ao dia.

Segundo Souza-Araujo (1956), a sequência do tratamento consistia em

banhos mornos da água de casca de açacu cozida ou ainda banhos de vapor. Estes

últimos eram feitos da seguinte forma: colocava-se casca de açacu em água

fervente numa panela grande sobre a qual se estendia uma rede onde deitavam o

doente coberto por um lençol. Assim, a evaporação da água quente promovia a

transpiração, aliviando os sintomas da doença. A maioria desses métodos

justificava-se no argumento de que era difícil tratar uma moléstia cujo diagnóstico

era desconhecido. E por esse motivo os leprosos eram as maiores vítimas dessa

experimentação terapêutica.

É no século XX que a compreensão e o diagnóstico da lepra se

desenvolveram no país. Conforme Souza-Araújo (1956), é a partir do médico

brasileiro Joaquim Cândido Soares de Meirelles, que em 1831, em Paris, apresentou

um quadro comparativo entre a elefantíase dos gregos e a dos árabes: filariose e a

lepra. O quadro apontou como diferença fundamental entre as doenças a forma e o

aspecto das manchas apresentadas pelos doentes. A partir disso, verificou e

concluiu que não havia os mesmos sintomas nas duas doenças, elefantíase e lepra,

pois no caso da lepra, após ter se destacado da superfície do corpo largas escamas

leprosas ou depois de terem sido arrancadas com esforço, elas não tardariam a se

reproduzirem. Os nódulos podem oferecer, no espaço de alguns meses ou anos, um

número mais ou menos considerável de descamações sucessivas. Os tipos de

elefantíases dos gregos e árabes se diferenciam por não apresentarem tais

sintomas. Devido ao fato de as descrições entre as três moléstias serem confusas,

Joaquim Meirelles afirma que a maior parte das publicações referentes à lepra era

inexata, falsa ou ininteligível, prejudicando o diagnóstico.

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É a partir da distinção entre elefantíase, filariose e hanseníase que a questão

da sensibilidade periférica nos hansenianos era descrita por Meirelles, além de

contribuir para um diagnóstico diferencial entre a hanseníase e várias outras

doenças que também são com ela confundidas desde a Antiguidade, como sífilis e

demais dermatoses que igualmente se caracterizam por pequenas manchas

elípticas ou irregulares no antebraço, região cervical, membros inferiores, tórax, ou

como abstração completa da sensibilidade cutânea, quase sempre no terço inferior

da face anterior do antebraço, popularmente chamadas de "panos" (SOUZA-

ARAUJO, 1956).

As observações de Meirelles esclarecem que a hanseníase produz alto nível

de insensibilidade na pele a ponto do doente ferir-se com objeto cortante ou

queimar-se, e permanecer sem a consciência do ferimento. Assim, a inobservância

deste importante sintoma – perda de sensibilidade da pele – levou muitos doentes a

produzirem deformações no corpo como cortes, queimaduras e até mutilações.

No Brasil, uma das prováveis vítimas mais célebres da lepra é o artista

Antônio Francisco Lisboa, cujo codinome Aleijadinho, o tornou conhecido no país. O

apelido se deve as consequências de sucessivas mutilações das quais passou ao

longo da sua vida, devidas ao agravamento do seu estado de saúde causado pelo

seu trabalho com entalhes. A atividade de escultor exigia o árduo manuseio com

diversas ferramentas, que muitas vezes machucavam os ferimentos já existentes por

todo o corpo.

Conforme estudos de pesquisadores do Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional (IPHAN,1969), inúmeras são as hipóteses do quadro de saúde do

Aleijadinho. Esses quadros passam da lepra, poliomielite à sífilis. Todavia, ainda

hoje a lepra inevitavelmente faz parte da sua biografia.

No entanto, o fato que merece atenção está na maneira como o Aleijadinho

se adaptou as consequências da lepra, utilizando de artifícios malabarísticos para

continuar esculpindo. Isso mostra a importância da sua obra frente às dores e ao

preconceito ligados a enfermidade. Sobretudo numa época em que era

desconhecida a cura da lepra, quando os casos de doentes que evoluíam para as

feridas incuráveis eram tratados com a mutilação dos membros necrosados, e

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passavam a sofrer com essas consequências da moléstia, como foi o caso do

Aleijadinho em Minas Gerais e o seu Célio no Rio Grande do Norte.

É o seguinte, eu boto essas mãos e esses braços na água fervendo.

Eu posso ver que a água está fervendo, mas não sinto nada. Pode

esse lado do meu rosto aqui, nesses meus lábios superiores não

tem força de nada.

Nesse lado aqui eu faço todos os movimentos, mas nesse aqui eu

não faço, entende? Isso é dormente. Nesse eu sinto até o mosquito

bater aqui, mas devido o problema da hanseníase, ela baixou meus

olhos. Chora de mais. Eles ficaram arriados. Uma vez eu fui

internado no Walfredo [hospital], devido à hanseníase e as úlceras

que tenho no pé. Essa perna aqui apodreceu. Abriu-se uma [fileira]

aqui, outra aqui, abriram aqui [mostrando], mas isso tudo foi tirado.

Isso aqui, você está vendo? Aqui abriram tudo. Aqui tiraram uma

ferida, aqui tiraram um tendão, aqui tiraram outro. Eu vou dizer uma

coisa, eu sofri. E o doutor lá operando os tendões. Eles já estavam

tão velhos que até estavam amarelos. Para cicatrizar tinha que tirar

aqueles tendões. Eu sentado na cama e um balde grande recebendo

o sangue, ele olhando de vez em quando, depois dizia para mim e

dizia: “O senhor não está sentindo nada não, seu Célio?”. “Eu disse:

não que eu quero aprender, doutor”. Ele riu demais comigo. Ele

disse: “esse sangue velho e doente só faz mal a gente”. Eu sei que

tenho sofrido muito, só que eu peço muito a Deus que me dê força.

SOFRER E CHORAR SIGNIFICA VIVER

(Fiódor Dostoiévski)

A expressão “sofrer e chorar significa viver” parece mais uma chave que

transparece a história de vida de seu Célio. Uma história que vincula o sofrimento e

a dor, próprios da lepra, à vida de um leproso.

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Nessa parte da entrevista, seu Célio parecia desejar contar a sua história

utilizando o seu corpo como uma ilustração. Usando de um tom de voz alto, disse:

“É o seguinte, eu boto essas mãos e esses braços na água fervendo. Eu posso ver

que a água está fervendo, mas não sinto nada”. Nesse momento apontava com um

dos dedos para os lábios enquanto dizia que os lábios não tinham mais força.

Como em uma consulta médica, seu Célio tentava mostrar para mim que a

face esquerda do seu rosto perdeu a sensibilidade tátil. Comprometendo os lábios e

as suas pálpebras, que também perderam o reflexo de movimento assim como a

sensibilidade tátil. Segundo seu Célio, a perda da sensibilidade nas pálpebras faz

com que os olhos lacrimejem com frequência e possuam uma aparência de

“arriados”.

Seu Célio conta que certa vez [após o fim do isolamento compulsório] ficou

internado no hospital Walfredo para tratar das úlceras que possui no pé. Nesse

momento seu Célio aponta para os locais do seu pé que precisaram ser mutilados

para a retirada das úlceras. Mostra também uma das pernas, dizendo: “essa perna

aqui apodreceu”, e foi preciso retirar parte do tendão e muitos outros tecidos. Seu

Célio recorda com angustia ao lembrar do sofrimento que teve motivado por essa

necessidade de amputação.

Para ter a certeza de que eu estava atento ao que dizia, seu Célio usava a

expressão “você está vendo?”. Contando que fizeram diversas incisões em várias

partes da sua perna para retirar o tecido que estava necrosado e por isso

comprometia a cicatrização das feridas ou úlceras, como ele mesmo preferia

chamar.

Segundo seu Célio, no momento da cirurgia havia um balde grande onde o

médico depositava os diversos tecidos necrosados a medida que eram removidos

cirurgicamente das pernas, pés e tornozelos de seu Célio. Com um gesto que

buscava demonstrar abundância, seu Célio movimentava o seu braço esquerdo de

baixo para cima com a mão pronada de modo a que eu percebesse quanto de tecido

foi lançado naquele balde.

Por mais que gesticulasse em minha frente, eu tentava imaginar aquela

cirurgia de remoção e mutilação de diversos tecidos necrosados e tomados de

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sangue do corpo de seu Célio, que sistematicamente eram depositados em um

balde para que fossem descartados após a cirurgia.

Apesar de se tratar de uma cirurgia de amputação não houve a aplicação da

anestesia geral, pois a todo o momento o médico conversava com o seu Célio para

saber se estava bem, enquanto justificava que a operação era a atitude mais

acertada para que pudesse melhorar de saúde. Dessa maneira, seu Célio

acompanhou toda a cirurgia consciente e por isso pode contar em detalhes o que viu

e sentiu. Conforme as palavras de seu Célio dizem, “Eu vou te dizer uma coisa, eu

sofri”.

Tive alta em diversas vezes na minha vida, né? Não existia um

medicamento suficiente, né?! Hoje eu ainda tenho essas veias

estranguladas. Tudo isso aqui são veias estranguladas.

Eu tomava muito uma injeção chamada Promim. Eu tomei muito

essa injeção e era tão forte que eu saia... Eu era criança, tinha 10

anos, saia pegando nas paredes, com vontade de vomitar. Uma

injeção grande. Era uma injeção para mim e outro garoto que tinha

lá.

Naquela época eu fui internado, vou te dizer, o tratamento era

como de bicho. Tinha um tal doutor Heitor que era baixinho e tinha

uma coisa de ferro que nem um raspa-coco. Era mesmo como um

raspa-coco. A gente se sentava naquele banquinho e ele começava

a raspar. As lágrimas chegavam a escorrer no rosto da gente. Muita

gente quebrou o nariz devido àquilo. Saia um sangue e ele

passavam naquela lamina. E aquilo ali era para olhar os bacilos. E

tirava daquilo ali. Ele fazia aquilo toda a semana. Teve gente que

ficou com defeito no nariz. O que acontece é que o nariz entope,

devido a ele engrossar. É por isso que o doutor passa primeiro o

“raspa-cocozinho” para poder operar. Tem que tirar aquele resíduo

para colocar na lâmina e fazer a biópsia. Se sair aquela sujeira de

dentro, toda furada... Dizem que parece um bode, sai aquela sujeira

toda furada como se alguém tivesse furado. Aquilo tudo é o bacilo

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que fica dentro o nariz. Se alguém estiver perto de alguém suando e

não estiver tomando o remédio, pega. Hoje é uma beleza. Hoje o

camarada está com hanseníase? Remédio em casa mesmo, não

tem protocolo nenhum.

UMA CHANCE É SEMPRE UMA CHANCE

(Júlio Verne)

Retomo a entrevista relembrando de alguns episódios do internamento de seu

Célio no hospital colônia São Francisco de Assis. O primeiro deles foi às altas

médicas concedidas ao longo de sua vida. Isso pode parecer estranho e até mesmo

contrariar a ideia de internamento compulsório. Mas diferente de hoje, naquela

época a medicação para a terapêutica dos doentes era escassa. Principalmente pelo

fato de não existir uma cura para a lepra, todo o tratamento estava baseado em

amenizar os sintomas da doença.

Como em muitos hospitais colônia os recursos eram escassos, para alguns

médicos não fazia muito sentido manter o doente internado sem que o ambulatório

estivesse em condições de tratá-lo. Dessa maneira era comum a prática de alta

médica de alguns pacientes que não apresentavam quadros clínicos mais graves. É

importante lembrar que aos dez anos de idade seu Célio estava no estágio inicial da

doença. E, talvez por isso, ainda não tivesse sido vítima de nenhuma sequela mais

grave, como as mutilações que fizeram parte da sua vida adulta.

Apesar de muito jovem, aos 10 anos de idade, o medicamento que os

médicos aplicavam nele era o Promim. Seu Célio lembra que o remédio

desencadeava dores terríveis que o faziam se apoiar nas paredes, além de

sensação de náuseas. Além dele, também se recorda de outra criança que recebia a

mesma injeção. Hoje seu Célio atribui àquela terapêutica a responsabilidade pelas

suas “veias estranguladas”.

Após relatar esse episódio, seu Célio sinalizou com o braço esquerdo para

mim, tentando chamar a minha atenção para o que ele desejava mostrar. Como seu

Célio estava sentado em uma cadeira bem próximo a mim, bastou que curvasse um

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pouco o corpo para frente e lentamente com uma das mãos levantou a barra da

calça, e aos poucos revelou a panturrilha tomada por varizes, nódulos e ulcerações.

Em seguida soltou a barra da calça que voltou a cobrir a panturrilha, enquanto dizia

a seguinte expressão: “Tudo isso aqui são veias estranguladas”.

A partir desse momento da entrevista seu Célio parecia se sentir mais a

vontade. É possível que por esse motivo tenha projetado as pernas para frente da

base da cadeira, pois até agora estavam recolhidas para baixo da cadeira e

encobertas por um cobertor.

Ao projetá-las para frente comentou comigo sobre como os seus pés estavam

pequenos. Após esse comentário seu Célio sinalizou para que eu olhasse para os

seus pés. Obedecendo ao seu pedido, pude ver naquele momento grossas meias

que envolviam pés muito pequenos. Embora por um instante eu pudesse imaginar

milhares de motivos para aquele ato de confiança, seu Célio me surpreendeu outra

vez e curvou-se para frente tocando aquelas meias e sem receios as retirou,

revelando os seu pés.

Enquanto os pés estavam à mostra, seu Célio contou que os seus pés

sofreram com a lepra. E por isso precisaram ser mutilados por diversas vezes até

que chegaram a um tamanho tão pequeno que não era mais possível que se

apoiasse neles para andar, sem que utilizasse do auxílio de uma bengala. Logo

após mostrá-los, os cobriu, sorriu e continuou a entrevista. Seu Célio parecia estar

imerso em meio a sua narrativa. E talvez por isso seu Célio transparecesse estar

confortável e ansioso para narrar outros episódios.

Sem que tivéssemos alguma pausa, seu Célio retomou a entrevista dizendo

que naquela época em que foi internado “o tratamento era como de bicho”. Segundo

seu Célio, “tinha um tal doutor Heitor que era baixinho e tinha uma coisa de ferro que

nem um raspa-coco. A gente sentava naquele banquinho e ele começava a raspar.

As lágrimas chegavam a escorrer no rosto da gente”.

Ao falar desse trecho da entrevista seu Célio gesticulava bastante, parecia

que estava lembrando e sentindo as mesmas dores de quando fazia essa espécie

de raspagem para a biopsia. Com as mãos levadas a cabeça disse que as pessoas

pareciam um bode de tanta sujeira que tem dentro do nariz.

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Encontrei um senhor. Mandaram me chamar porque viram que

eu era uma pessoa experiente com a hanseníase. Mandaram me

chamar para olhar o pé de um rapaz que não conseguia pisar no

chão. Só pisava com os dedos, mas com dificuldade. Eu cheguei lá

e disse: “mostre-me aqui seu pé”. Ele levantou o pé e eu disse: “aqui

tem um prego. Aqui no seu calcanhar tem um prego”.

Não percebeu, e eu disse que tinha um pequeno prego.

Perguntei se ele tinha uma pinça, mas ele disse que não. Perguntei

se ele tinha alguma tesoura e ele disse que sim. Eu esterilizei,

botando na água fervendo e depois queimei, limpei e puxei. Ele

gritou muito. Um prego bem pequenino. Ele só veio sentir quando

havia inflamado dentro do corpo. Ele não tinha hanseníase.

É porque quem já teve hanseníase, sabe mais o que o médico.

Porque o médico nunca teve. Só pode saber uma coisa sobre a

hanseníase se eu contar. E eu fui portador de hanseníase.

Entendeu? Veja bem, dentro daquele Giselda eu dei muita aula.

Aquele povo que estava fazendo estágio. Dei aula para muitos.

Hanseníase eu conheço ela só em olhar, porque muda a fisionomia.

A orelha engrossa, o nariz engrossa, os lábios engrossam e a pele

muda de cor. Fica mais escuro. O povo diz assim: “A mancha de cor

vermelha e hanseníase”. Muitas vezes não é. Se ela tiver alto-relevo

pode ser hanseníase. Ela fica áspera e cheia de caroços pequenos.

E alto-relevo. Mas para a gente saber se aquela mancha tem

dormência, precisa-se pegar um algodão, mandar a pessoa fechar

os olhos e passar o algodão. Se ele não sentir, tem lesão. As

pessoas dizem que não se sente algodão, mas se você observar

que um mosquito, quando pousa, nós sentimos. O mosquito nos

incomoda quando pousa? Quando não há lesão nós sentimos.

Hoje, o povo vem aqui e diz que fez tratamento com o doutor

Maurício para hanseníase. “Que passou um ano tomando o remédio,

mas ele suspendeu”. Eu pergunto se ainda sente alguma coisa. E

que não se “abestalhe” também. Digo: “você se recuperou, mas

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hanseníase não merece confiança. É traiçoeira”. Era o que o doutor

dizia: “olhe, Seu Célio, o senhor terá alta. Não vá trabalhar na

enxada, não vai fazer esforço como pessoas saudáveis fazem

porque a sua pele não tem a resistência”. Nessa época, quando eu

cheguei aqui até montar num cavalo eu montei. O resultado é esse.

REUNO EM MIM MESMO A TEORIA E A PRÁTICA

(Machado de Assis)

A história de seu Célio se confunde com a sua experiência de leproso. Aos 80

anos de idade, seu Célio já acumula pelo menos 70 anos de convivência com a

lepra. Portanto, se aos 10 anos de idade seu Célio já estava internado em um

hospital colônia, isso significa dizer que provavelmente a lepra já havia se

manifestado em seu corpo há alguns anos antes, por meio de sintomas que naquela

época seu Célio sequer conseguia identificar.

Seu Célio inicia esse trecho de entrevista contando uma história de um

vizinho que o procurou para que pudesse examiná-lo. Esse vizinho não conseguia

pisar com os pés no chão, pois sentia fortes dores nos pés. Seu Célio, ao pedir para

que o senhor mostrasse o pé machucado, logo pôde perceber que não se tratava de

lepra, mas de um prego que havia penetrado na sola do pé daquele vizinho. Naquele

mesmo instante seu Célio disse, “aqui tem um prego. Aqui em seu calcanhar tem um

prego”. Pediu-lhe uma tesoura ou pinça e em seguida a esterilizou, “botando

na água fervendo e depois queimei, limpei e puxei [o prego]”. “Ele não tinha

hanseníase”.

Após terminar de narrar a experiência de extração do prego do pé do vizinho,

seu Célio, parou de falar por um instante, se aprumou com firmeza na cadeira que

estava sentado e disse, “É porque quem já teve hanseníase, sabe mais do que o

Médico”. Com essa frase talvez o seu Célio desejasse revelar que em muitos casos

a experiência é mais importante do que a teoria. Não se trata aqui da experiência de

quem assistiu ou deu assistência a um ou a diversos episódios de pacientes em

tratamento de lepra, mas de quem de fato adoeceu de lepra. Conforme seu Célio

fala, “[...] o Médico nunca teve [lepra]”. E por esse motivo o seu Célio conclui que,

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“[Alguém] Só pode saber uma coisa sobre a hanseníase se eu contar. Eu fui

portador de hanseníase. Entendeu?”.

Antes mesmo que eu pudesse confirmar que havia entendido o que o seu

Célio acabava de dizer, ele utilizou a mão direita para apontar na direção que fica a

cidade de Natal, como quem desejasse sinalizar um local, e disse, “Veja bem, dentro

daquele Giselda eu dei muita aula”. “Aquele povo todo fazendo estágio. Dei aula

para muitos”.

Seu Célio contou para mim um pouco daquilo que ensinava nos encontros

com os estudantes que estagiavam no Hospital Giselda Trigueiros. Contou como

fazia para identificar a hanseníase, “Hanseníase eu conheço ela só em olhar, porque

muda a fisionomia”. De acordo com seu Célio, quando o indivíduo tem hanseníase,

pode-se notar que a orelha assim como o nariz e os lábios ficam mais espessos. E a

pele também muda de cor assumindo uma tonalidade mais escura. Segundo seu

Célio, outro equivoco é o fato de a população em geral afirmar que “a mancha na cor

vermelha é hanseníase”, pois muitas vezes não é hanseníase. Pode ser hanseníase

se a mancha ficar em alto-relevo, áspera e repleta de caroços pequenos. A maneira

de se testar é por meio do uso de um algodão. Se o paciente não sentir o local

tocado pelo algodão, ele tem a lesão.

Esse detalhamento apresentado por seu Célio para o diagnóstico da

hanseníase evidencia a importância do saber da tradição (ALMEIDA, 2010) e a sua

contribuição para uma compreensão mais clara sobre a doença. Além de revelar que

não é apenas o saber da ciência que possui todas as respostas para a compreensão

de fenômenos como a lepra. Mas ambas são lentes de leitura sobre o mundo que,

juntas, ampliam a capacidade de percepção dos fatos.

Talvez por esse motivo, quando as pessoas procuram o seu Célio e contam

que fizeram tratamento com o doutor Maurício para hanseníase, e a medicação já foi

suspensa, seu Célio orienta a pessoa que o procurou para que mesmo se não sentir

mais nenhum sintoma ligado à lepra “[...] que não se abestalhe também”, ou seja,

“você se recuperou, mas hanseníase não merece confiança”.

Isso porque seu Célio sentiu na pele como a doença pode ser “traiçoeira”.

Pois apesar de o médico ter dito para ele que depois da alta médica não trabalhasse

na enxada ou fizesse qualquer tipo de esforço físico como as demais pessoas

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saudáveis, mesmo após ter recebido essas orientações, “Nessa época, quando

cheguei aqui, até montar de cavalo eu montei. E o resultado foi esse”.

Você sabe que a Hanseníase não gosta de calor, ela já é

quente, né? [risos] Ela é tão quente que quando nasce um caroço na

pessoa queima a pele, de tão quente.

Então eu fui para o interior para trabalhar e ela voltou

novamente. Porque naquela época não tinha medicação para

controlar. Tornei a voltar. E assim eu fiquei naquela oscilação: vinha

e voltava. Até que chegaram a fazer umas casinhas lá que doaram

para a gente. Foram 30 casas que fizeram, eu peguei uma casa

dessas e fiquei lá por um tempo. E depois eu disse: “sabe de uma

coisa, está bom de eu sair daqui agora e procurar outro destino”. E

fui embora para o Rio, passei uns tempos por lá. Então retornei para

Santo Antonio que já conhecia tudo isso aqui. Já possui 16 casas

aqui em Santo Antonio, hoje eu não tenho nenhuma. [...]

Acontece o seguinte. Eu passei pela vida e não vivi. Porque uma

pessoa que adoece com 10 aninhos, ela não tem experiência. Eu

Perdi uma aposentadoria que exército iria me dar. Porque eu

cheguei lá, o tenente de guerra me deu um documento para me

aposentar. Agora eu apresentei para o meu médico, ele não sabia e

disse: “Não, isso é para tirar um documento para você”, mas era

uma aposentadoria para mim. Porque na época que era para eu

servir estava hospitalizado, então tinha aquele direito. Eu ainda me

lembro das frases que Tenente de Guerra disse: “Doutor Silvino,

existe uma lei que ampara esse rapaz que o senhor não apresentou,

agora é preciso que ele apresente um atestado a fim de ser

beneficiado. Aguardo suas ordens – Tenente de Guerra”. Isso eu

gravei bem novo. Aí o que acontece, esse documento eu deixei lá na

mesa, no birô o médico, e não procurei nada mais. Hoje eu to

amargando. Ganhando o pouco, o que podia estar ganhando mais.

Mas a gente só tem aquilo que Deus quer. Muita gente blasfêmia a

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vida e vive uma vida tão boa, né? Eu peço a Deus para carregar

minha cruz até o fim, entendeu? Para quê desespero? Eu não pedi

para ser doente. Se hoje eu sou “hanseniano” é porque o criador

permitiu. Porque uma folha de uma árvore só cai de cima dela se for

por permissão dele. E então, eu vivi assim nesse mundo assim sem

preconceito. O preconceito que tem somos nós mesmos. O dono do

problema, ele é quem faz tudo aquilo. O preconceito é a gente quem

faz. Se a gente passa num canto e alguém olhar para a gente, a

gente já pensa que está olhando os nossos defeitos. Aí é por isso

que às vezes eu não procuro nem sair de casa. Vou, assim, no caso,

quando vou para o banco. Às vezes, eu estou mais eu tenho

Maurício... Eu tenho um documento para resolver lá, ela manda

minha menina ir para eu não ir, devido eu ter essas úlceras nos pés.

Meus pés são bem pequenininhos. [sorriso] Aí, para evitar, ele diz:

“Mande sua menina que eu faço”. Um dia desses a Receita Federal

começou a pegar meu trocadinho e aí precisou do documento dele.

Ele é um pai para mim. O que eu peço ele resolve. Então eu levei,

mas nem precisou, porque eu levei para a receita federal, mandaram

fazer uma perícia. A receita federal disse que eu estava isento de

imposto, mas só que eles pegaram cinco anos de imposto e não

ressarciram meu dinheiro para trás. Eu queria saber o porquê disso.

Eu tenho que conseguir um advogado para a gente saber onde está

o erro.

PARA QUE TEMER AS TORTURAS DA DOR, QUANDO

A MORTE APARECIA DE IMEDIATO?

(Júlio Verne)

Seu Célio retoma a concepção de doença quente para explicar a dor que está

ligada ao surgimento de um dos sintomas da lepra, o aparecimento de nódulos ou

caroços pelo corpo. Segundo ele, “quando nasce um caroço na pessoa queima a

pele, de tão quente”. Mesmo assim, decidiu ir “para o interior para trabalhar”.

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A medicina distingue a lepra em pelo menos dois estágios, o estágio bacilar,

aquele em que o indivíduo está contaminado pelo micobacterium leprae, quando

precisa iniciar o tratamento para combater a moléstia, e o estágio pós-bacilar,

quando o paciente, embora esteja curado da lepra, sente mal estar, dores

frequentes, além do aparecimento de nódulos pelo corpo.

Nesse último estágio, a causa é o surto reacional. Ocorre quando o paciente

já está curado. Isso por que o surto reacional é uma resposta equivocada do sistema

imunológico que, ao buscar combater o bacilo da lepra – que é inexistente porque já

foi eliminado do corpo do paciente –, motiva uma ação imunológica que provoca

erupções pelo corpo, a formação de nódulos na pele, e um mal-estar que produz no

paciente a sensação de que a lepra não foi curada.

No entanto, para o paciente não há essa distinção. O fato de o surto

reacional trazer dores e outras complicações faz com que o paciente interprete o

episódio como um retorno da doença, após uma suposta cura. Por esse motivo, é

possível que as complicações relacionadas ao surto reacional justifiquem os

retornos de seu Célio ao hospital colônia, em busca de tratamento.

Mas com o fim do período de internamento compulsório, o poder público no

Rio Grande do Norte construiu para os pacientes do leprosário casas populares.

Embora seu Célio tenha morado por algum tempo em uma delas, decidiu “procurar

outro destino”. Mudou-se para o Rio de Janeiro e, depois de algum tempo, optou por

retornar a Santo Antônio do Salto da Onça.

Ao retornar para a sua terra natal, seu Célio recorda que desde jovem era

simpatizante de jogos e apostas. Vivia uma vida de abundância alimentada pela sua

habilidade e sorte nos jogos de carta. Seu Célio lembra que esses episódios o

acompanharam boa parte da sua vida.

No entanto, com arrependimento, confessa que se sente responsável pela

destruição de muitos lares e pais de família que, ao perderem as rodadas de jogo de

cartas, perdiam também as suas posses.

De um lado isso permitiu que seu Célio conseguisse possuir cerca de

dezesseis casas no interior. Muitas dessas casas foram perdidas como pagamento

de apostas dos seus adversários. Outras foram adquiridas graças ao montante

acumulado ao longo das inúmeras partidas de carteado.

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Por outro lado, para seu Célio essa sorte cobrou um preço muito alto. Acredita

que foi castigado por ter trazido a infelicidade para muitas famílias que perderam

tudo, por sua culpa. E por isso foi punido com a perda de todas as dezesseis casas

que ganhou com os jogos, e também perdeu a saúde, sofrendo com a perda dos

membros que foram mutilados pela lepra.

Esse relato consta de uma conversa posterior a entrevista, que optei por não

transcrever na integra, mas discuti-lo a partir da expressão que provocou essa

declaração espontânea: “Já possui 16 casas aqui em Santo Antônio, hoje não tenho

mais nenhuma. Não tenho neto!”. Esse trecho também pode revelar a angustia que

persegue seu Célio. Pois além de ter perdido as casas e sofrer com a doença,

também pode ter sido punido ao não ter netos.

O título selecionado para a entrevista, “Eu passei pela vida, eu não vivi”,

parece transparecer como Seu Célio lamenta o sofrimento causado pela lepra. E

durante a entrevista, enquanto dizia que “uma pessoa que adoece com 10 aninhos,

ela não tem experiência”, seu Célio apontava com o dedo contra a testa, parecia que

desejava mostrar que o termo “experiência” possuía o sentido de culpa ou pecado.

Parecia não se conformar que uma criança fosse punida com a lepra.

A ideia de punição é retomada por seu Célio em outros trechos: “Hoje eu to

amargando. Ganhando pouco, o que podia estar ganhando mais”. Logo em seguida

seu Célio afirma que a punição é justificada pelo poder e pela vontade divina: “Mas a

gente só tem aquilo que Deus quer. Muita gente blasfêmia a vida e vive uma vida tão

boa, né?”. Talvez por esse motivo seu Célio encontra na resignação a possibilidade

de redenção: “Eu peço a Deus para carregar minha cruz até o fim, entendeu? Para

quê desespero? Eu não pedi para ser doente. Se hoje sou ‘hanseniano’ é porque o

criador permitiu. Porque uma folha de uma árvore só cai de cima dela se for por

permissão dele”.

Finalizando o trecho da entrevista seu Célio fala do preconceito ligado ao

leproso ao dizer que “às vezes eu não procuro nem sair de casa”, para evitar pensar

que estão olhando para ele por conta dos “nossos defeitos”. “Meus pés são bem

pequenininhos” [causado pelas mutilações]. Por esse motivo quando se depara com

“um documento para resolver”, conta com a ajuda da sua filha e do médico que

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cuida do seu tratamento e que seu Célio considera como um amigo, o doutor

Maurício.

Seu Célio parece driblar todo esse sofrimento e dor com uma serenidade de

quem se preocupa em resolver os problemas do cotidiano com a mesma lucidez em

que vive cada instante dos seus 80 anos de vida.

Eu tenho 80 anos. Não está completo que eu estou com 80,

sabe. Eu completo no dia 24 de fevereiro. Eu dou graças a Deus

porque eu falo lucidamente.

Um dia chegou meu irmão aqui que é mais novo que eu dez

anos. E minha mulher se sentou aqui, ele se sentou ali. Eu fiquei até

com vergonha. Eu conversando com a esposa dele e ela dizia que

eu estava mais lúcido do que ele. Se eu botar um objeto num canto -

pode passar 10 anos - eu sei encontrar.

NÃO IMPORTA O MINUTO QUE PASSA, MAS O MINUTO QUE VEM

(Machado de Assis)

Segundo Almeida (2009), envelhecemos todos na mesma direção, assim

como os rochedos e as estrelas. No entanto, a flecha do tempo não corresponde

apenas ao envelhecimento. Implica também no aparecimento de acontecimentos, de

novas manifestações que atestam a criatividade da natureza.

Os acontecimentos não se confundem aqui a sucessão de fatos relatáveis,

mas trata-se de pertencer a ordem da emergência. Assim, conforme Almeida (2009),

a característica essencial do acontecimento reside no fato de que ele introduz uma

diferença entre aquilo que é previsível e o que não é.

Talvez por isso, a queda do muro de Berlin tenha surpreendido, pois poucas

pessoas previam esse fato novo. Dessa maneira, acontecimento é associado ao

incerto. E é precedido por flutuações (ALMEIDA, 2009), ou seja, está na ordem do

possível, embora não determinístico.

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Para seu Célio, que na época da entrevista estava para completar os 80 anos,

talvez não perceba a ordem do tempo por meio dessas concepções teóricas, mas

certamente encontrou uma maneira de exprimir como compreende o tempo. Para

seu Célio a data 24 de fevereiro vem demarcar os seus 80 anos. Mas não parece

ser a cronologia que delimita a idade para seu Célio, pois ao narrar o fato de que o

seu irmão mais novo de 70 anos não aparenta ter a mesma lucidez que ele, isso

pode transparecer uma leitura que busca romper com os determinismos.

Dessa maneira, ter 80 anos significa lucidez, memória e, sobretudo,

imprevisibilidade. Uma vez que, embora o futuro seja incerto, usando aqui as

palavras de Machado de Assis, não importa o minuto que passa, mas o minuto que

vem.

Acontece o seguinte, a pessoa com 18, 17 é uma idade crítica.

Ela pode fazer tanta bobagem. Você vê o seguinte, o camarada que

pega um carro e outro pega também e vão disputar um “racha”. Me

diga uma coisa, esses caras estão pensando em morrer? Não estão,

entendeu? Porque o cara novo hoje não pensa no dia de amanhã,

ele só pensa no hoje. Ele vai pra uma festa, faz bagunça, faz tudo.

Pensa que um dia ele não vai prestar contas. Mas só que ele vai.

Todos nós depois da morte, nós ainda temos uma provação que nós

vamos prestar conta do que fizemos de bom ou de errado. É por isso

que eu acho importante, porque no dia que o pai eterno vier para a

terra o mar vai dar de conta de todos aqueles que morreram dentro

dele e a terra também. Para nós contarmos o que fizemos de bom

ou de errado. Agora ele que vai julgar, porque eu e o senhor não

pode julgar ninguém, quem somos nós para julgar? E tem muita

gente aqui na terra que julga. Mas ninguém pode julgar, só ele. O dia

que ele vier para a terra vai julgar vivos e mortos. Os vivos são dele,

os mortos é do demônio. E hoje o que mais nós temos aqui é

mortos. Vivos tem muito pouco, porque quem quer fazer o bem hoje

é muito difícil. Hoje o senhor vê um camarada que às vezes tem uma

vaca, um toro, uma cabra, um carneiro, quer se julgar melhor que o

outro que não tem. E ninguém pode fazer isso. Porque Jesus é justo,

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mas ele não é vingador. É por isso que eu digo para o senhor. Faça

tudo direitinho como eu disse que você vai até onde o deus pai

determinou. Se ele trouxe uma vida longa para você, você vai ter.

Porque nós não podemos ultrapassar, a gente só pode ter aquilo

que Deus quer. Porque se eu estou hoje com 80 anos, foi permitido.

Se ele consentir, eu vou imitar minha mãe. Minha mãe faleceu com

97 anos e meu pai com 93 anos. E meu pai era doente, ele tinha

úlcera no estomago, que só foi descoberta quando morreu.

A hanseníase, só mata se não houver o tratamento. Se não

houver o tratamento ela mata. Meu pai tinha uma úlcera no

estomago, foi quando vieram descobrir foi depois de morto. Tem um

atestado dele de óbito por ali. A úlcera catarral. Ele tossia muito,

botava aquela baba para fora, eu não sabia de nada. Ele foi para o

médico, vindo descobrir depois do que ele morreu. Hoje não, hoje a

medicina é um negócio fantástico. Mas naquela época não existia

nem doutor. Existia um farmacêutico, mas era geralmente receitado

remédios do mato.

Antigamente saia junto de outros amigos e botávamos toda a

velocidade e saltava de cima. Eu era bom, perfeito que nem o

senhor. Eu tinha na base dos 22 anos. Aprontava essas coisas

todas. Eu sei que depois que aconteceu isso eu me lembro de que

bem que o doutor dizia. Tarde demais. Era para eu ter feito antes.

Mas eu pulava do cavalo. Ele disse a mim que não fizesse e eu

fazia. Um rapaz sem experiência, novo. Uma pessoa com 25 anos,

28 anos, não tem a experiência de uma pessoal adulta de 40 anos.

A pessoa até com 45 anos ainda faz bobagem.

O senhor viu o que eu fiz que não deu para mim e não vai fazer.

Não beber. Pare de beber. É o seguinte, se quiser beber cerveja,

beba sem álcool. Para começar, se o senhor exagerar lá vem uma

cirrose. A pessoa que exagera numa coisa não dá certo. Tudo feito

com exagero pode fazer mal. Até mesmo o alimento, se você

exagerar não faz bem. O senhor tem que só vai com o cavalo

desembestado, você tem que parar ele. O mesmo é como a gente.

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Se a gente jogar baralho, vemos que aquilo não tem futuro. Porque o

senhor está tirando do seu bolso para dar aos outros. Eu já joguei

muito. Eu ganhei muito dinheiro em jogo e também perdi. Se eu

ganhar dinheiro de um pobre que tira de casa para jogar, porque o

vício é miserável... Se eu ganhar aquele dinheiro é maldito. É um

dinheiro maldito e que não vai me fazer bem. Eu ganhei tanto

dinheiro e onde está esse dinheiro? Depois eu vim acordar que eu

estava perdendo minhas noites de sono perdendo dinheiro em jogo,

quando ganhava era um dinheiro mal vindo. Entenda que a gente

tem que ganhar o dinheiro com o suor do nosso rosto. Não é porque

o senhor não está trabalhando na enxada, porque o senhor estudou

e vai ganhar o seu dinheiro. O senhor teve que estudar.

Teve que estudar para chegar onde você está. Tem gente que

por ver alguém sentado num computador, diz: “essa pessoa está

ganhando dinheiro fácil, sentado”. Eu digo: “não, porque ele está

sentado de frente ao computador e não pode errar não, porque se

ele errar o computador erra também”. É o que eu digo ao senhor.

Procure não perder as noites de sono. Se alimentar apenas o

suficiente.

Alimentar-se de acordo, não exagerando. Tudo demasiado é

exagero. O senhor procure não perder suas noites de sono. Se você

perder uma noite de sono você não acha mais nunca. Você não

consegue ter aquela noite de sono, você não consegue mais

recuperá-la. Hoje eu estou dormindo pouco devido à idade, mas tem

velho que dorme demais. Eu durmo pouco. Só que eu acho bom. Na

noite que eu dormir muito eu acordo com preguiça.

A pessoa tem que acordar com aquele prazer, aquela satisfação.

É por isso que eu digo que se você for bom tem que andar com uma

pessoa melhor que você. Se você andar com um pedaço de mal

caminho, você sendo uma boa pessoa, o povo diz: “olha com quem

fulano está andando”. Dançar é bom.

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Dançar é bom porque é uma física. Dançando o suor desce e

tem saúde. A pessoa para de suar e acabou. Tudo isso que eu digo

para o senhor.

Eu nem fumo, nem bebo. Eu não tenho vício mais. Eu já fui um

cara que já tive vício, mas eu achei... Essas minhas mãos não eram

assim não. Isso eu comecei a beber e eu fora do sério, comecei a

dar murro em mesa, quebrei os dedos. E depois que foi que me

orientei que estava tudo errado.

Isso aqui foi quando eu era muito novo, na base dos 25 anos.

Hoje eu não tenho inveja de quem tem vício. Pode beber, pode

dançar, pode farrear. Eu jogava muito baralho. Hoje o povo diz: “mas

rapaz, você deixou?!” e eu digo que deixei mesmo. A gente com

força de vontade e a ajuda do pai eterno a gente deixa. Eu deixei

tudo.

Não, eu acho que era eu mesmo, a minha convicção. Eu que eu

quero fazer, com a ajuda do pai eterno eu faço. Entende?! Pensei

numa coisa, com a ajuda dele eu faço.

E NÃO É SOBRE O MAR QUE A LUA É MAIS BELA?

(Jorge Amado)

Olhando para mim de maneira serena, seu Célio disse, “a pessoa com 18,17

é uma idade crítica. Ela pode fazer tanta bobagem”. Nesse momento eu me lembrei

da poesia do intelectual baiano, Jorge Amado, “E não é sobre o mar que a lua é

mais bela?”.

Para mim foi uma surpresa ouvir aquele comentário, pois, até aquele

momento eu nutria as minhas esperanças nos jovens. E talvez por isso não

compreendesse que a vida se harmonizava bem com o passar dos anos, assim

como a lua é mais bela diante do mar.

Mas embora eu não tivesse feito nenhum comentário a respeito da minha

opinião, seu Célio disse, “Você veja o seguinte, o camarada pega um carro, e o

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outro pega também e vão disputar um racha. Me diga uma coisa, esses caras estão

pensando em morrer?

Segundo seu Célio, como os jovens não pensam no futuro, mas somente no

presente, eles esquecem que “um dia vão prestar contas”. Esse acerto de contas

que seu Célio se refere acontecerá após a morte e será diante de um juiz divino.

Para seu Célio, nesse momento os homens serão avaliados sobre as coisas boas e

ruins que cada um fez.

Na ideia de julgamento que seu Célio acredita, nenhum ser humano está apto

para dizer o que é o certo ou o errado, embora exista “muita gente aqui na terra que

julga. Mas ninguém pode julgar, só ele [Deus]”. Assim, “o dia que ele vier para a

terra vai julgar os vivos e os mortos. Os vivos são dele, os mortos é do demônio”.

Após essas palavras, seu Célio suspira e diz: “E hoje o que mais nós temos

aqui é mortos. Vivos têm muito pouco, porque quem quer fazer o bem hoje é muito

difícil”. E se afastando do recosto da cadeira, e com o dedo indicador apontado em

minha direção, com a finalidade de me aconselhar, disse as seguintes palavras:

“Faça tudo direitinho como eu disse, que você vai até onde o deus pai determinou.

Se ele trouxe uma vida longa para você, você vai ter. Porque se eu estou hoje com

80 anos, foi permitido. Se ele consentir, eu vou imitar a minha mãe. Minha mãe

faleceu com 97 anos e meu pai com 93 anos”.

Após me aconselhar, o seu Célio se recostou na cadeira e estirou as pernas

para frente numa aparente demonstração de tranqüilidade, enquanto falava: “A

hanseníase, só mata se não houver o tratamento. Se não houver o tratamento ela

mata”. Mantendo a mesma postura de demonstração de serenidade, seu Célio

disse: “Meu pai tinha uma úlcera no estômago, foi quando vieram descobrir foi

depois de morto. Tem um atestado de óbito por ali. Úlcera catarral. Ele tossia muito

botava aquela baba para fora, eu não sabia de nada”.

Na opinião de seu Célio, a medicina de hoje é muito desenvolvida, pois no

passado mal existiam médicos. Quem receitava os remédios era um farmacêutico

que geralmente indicava medicação “do mato”. E mesmo com a escassez de médico

no passado, ao que parece seu Célio não evitava as aventuras que colocavam em

risco a sua integridade física.

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Conforme seu Célio conta, “Eu era bom, perfeito que nem o senhor. Eu tinha

na base de 22 anos. Aprontava essas coisas todas [se referia a saltar do cavalo em

movimento]”. Com a aparência de quem lamentava o passado, seu Célio olhou para

baixo enquanto movimentava a cabeça de um lado para o outro.

Em seguida, disse: “Um rapaz sem experiência, novo. Uma pessoa com 25

anos, 28 anos, não tem a experiência de uma pessoa adulta de 40 anos. A pessoa

até 45 anos ainda faz bobagem”. Nesse momento eu sorri porque compreendi o

significado de adulto para seu Célio. É possível que a frase “só se vira adulto aos 45

anos de idade” transpareça que aos 80 anos seu Célio ainda demonstre um desejo

de viver por muito mais anos. Afinal, talvez seja aos 80 anos que a lua é mais bela.

Com a intenção de me aconselhar para que eu pudesse ter uma vida tão

longa quanto à dele, seu Célio me contou alguns dos seus pré-requisitos para a

longevidade. O primeiro pré-requisito: “O senhor viu o que eu fiz que não deu para

mim e não vai fazer. Não beber”; o segundo pré-requisito: “A pessoa que exagera

numa coisa não dá certo. Tudo feito com exagero pode fazer mal”, “Até mesmo o

alimento, se você exagerar não faz bem”; e o último, não jogar baralho.

Esse último pré-requisito que seu Célio apresentou parece ter o

acompanhado por muitos anos. Inclusive as recordações resistem a se apagarem da

sua memória. Talvez por isso, lamente as consequências do jogo de cartas em sua

vida.

Segundo seu Célio, por meio do baralho foi possível ganhar bastante dinheiro.

O suficiente para que tivesse uma vida estável hoje. No entanto, se questiona sobre

o destino daquele dinheiro. Para seu Célio, o dinheiro acumulado de apostas com

pessoas que chegaram a perder o pouco que tinham é um dinheiro maldito. Por isso,

nada restou do dinheiro ganho com o baralho.

Após desabafar a sua história com o jogo de cartas, seu Célio retoma aqueles

pré-requisitos como se fossem máximas. Assim, recomenda que as pessoas

precisam ganhar dinheiro com o suor dos seus rostos; alimentar-se sem exageros;

não perder noites de sono; e escolher bem as suas companhias.

Portanto, afirma seu Célio, “Eu não fumo nem bebo. Eu não tenho vício mais”.

“Hoje eu não tenho inveja de quem tem vício”. Segundo ele, para ter mudado

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precisou contar com a ajuda do “pai eterno” [Deus]. E com essa ajuda seu Célio

conseguiu abandonar os vícios.

A pessoa que é como eu. A pessoa que pensa em orientar um

pouco, porque mulher é bom, mas complicado. A mulher foi feita por

derradeiro que o homem. O homem, Jesus fez para ser o varão, a

semelhança dele. Mas depois que ele fez o homem se arrependeu,

porque a fera maior que tem no mundo é o homem. Ele vai lá dentro

de uma mata e pega um leão bravo, que nasceu na selva, pega e

traz pra casa e deixa-o tão doméstico, que ele entra numa roda de

fogo se o homem mandar, isso é uma fera ou não é? Pegar um leão

feroz, e deixa doméstico do jeito de uma pessoa. Não é isso? Aí

justamente é o casal, para se unirem em matrimônio eles precisam

pensar um pouco. Sentar e conversar para depois não dizer que

errou.

Quando eu casei eu tinha 26 anos. Eu tenho um retrato que se o

senhor olhar vai dizer que não sou eu. Naquela época eu não podia

andar não, porque era mulher que era assim que... O cara

namorador parece que ele tem um círculo de mulheres. Porque tem

homens com boa aparência, mas as mulheres os odeiam. Mas eu

era um camarada que eu cheguei numa festa, tinha uma menina lá,

que parecia uma princesa. O meu amigo acenava para ela e mesma

dava aquela “carreira” de perto dele, com ódio dele. E depois

arranjou uma namorada e ficou por lá. Eu disse para ele ficar pelo

local que eu daria uma volta. Ele disse que não, só se fosse com ele,

porque fomos juntos e éramos amigos. Eu disse: “não, você

conseguiu uma namorada, você queria sair perto de mim”. Ele

apaixonado e eu pensei em dar uma volta por ai. Cheguei lá na

frente, essa que fazia cara feia para ele, eu a vi e ela e acenei com a

cabeça. Ela retribuiu. Eu sempre fui um cara desenvolvido e fui lá.

Fui lá sozinho.

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Eu falava com ela, marcava um encontro. Ela morava em

Brejinho. Eu marquei o dia determinado para a gente se encontrar.

Ela foi minha namorada por muito tempo, mas como era muito

namorador, trocava o nome delas. Num canto era Cecília, noutro

local era Josi...

Pode gravar. Pode acreditar. Era uma coisa. Tanto que elas

diziam “mas rapaz!”. Quando foi um dia quatro se encontraram. Uma

delas disse: “eu tenho um namorado que mora em canto fulano de

tal” e a outra disse: “o meu também mora lá”. A outra também... Elas

se questionaram se o nome era o mesmo e um disse: “qual é o

nome do seu?”. Um era Pedro, outro Célio, outro Joaquim. Quatro

namoradas minhas se encontraram, eram amigas, e eu perdi todas

as quatro. Eu nunca fui de confusão, mas eu perdi foram todas as

quatro. O local era Redenção onde morava. Por perto de Brejinho.

Mas quando a gente tem uma companheira era para sempre,

porque se você troca uma vida boa. Quando você só tem uma

pessoa, um está vivendo com o outro. Quando você tem mais de

uma, não consegue ter amor suficiente pelas duas.

Naquela época as coisas eram diferentes. Hoje uma mulher

quando casa, deveria ter uma grande festa. Hoje mulheres têm

demais. Não, pela caridade! Na minha época...

Um homem dizer que ficou com uma mulher por aí muito difícil.

Naquela época fazia-se um casamento, era aliança no dedo, todos a

cavalo. Todos os convidados à cavalo. O rapaz tirava o cacho de flor

que levava na cabeça. Hoje se casam do jeito que quiserem. Se a

mulher quiser ir com um traje bonito, mas se não quiser por ir do

jeito que estamos. Na minha época tinha que ser tudo de branco, a

mulher com o vestido pelo chão, véu capela.

Hoje mudou porque o povo não quer mais casar, porque tem

mulher demais. As mulheres estão dando sopa. Uma mulher de 10

anos já não é mais virgem. Antes uma mulher com 25 ainda era

moça. Hoje passou de 10 anos é um negócio... Fantástico. Hoje está

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demais. Ninguém quer casar mais não. Porque o casamento é um

negócio que tem muita responsabilidade. Você vai realizar um

julgamento. Hoje você vai numa igreja e testa um juramento e vai ser

fiel a sua esposa até o fim da sua vida. Era também do mesmo jeito.

O que é que adianta uma pessoa prestar o juramento e depois

mudarem de ideia. Um dia chegou um amigo chorando e

desabafando, dizendo que estava num tempo difícil. Disse que sua

mulher não queria mais morar com ele. Disse que um dia ele foi para

a psicóloga e ela me aconselhou a assistir filmes pornôs para

esquecer ela. Agora eu nunca tive isso, não sei se é amor. Eu não

se o que é amizade. Eu não sei o que é paixão. Se o senhor me

perguntar eu não vou saber.

Quando acontece, eu digo que não dá. Quando alguém me trai

eu digo: “pegue suas coisas e acompanhe ele”. Ela disse que eu

tinha que dar tudo dentro de casa. Hoje eu não tenho nada porque

acho que é bobagem, eu só quero uma geladeira, uma mesa, um

filtro. Eu disse que ela arrumasse um carro para levar tudo,

deixando-me aqui. Ela disse que a criança ficaria comigo e eu disse

que estava ótimo. Ela levou todas as coisas, eu fui para Nova Cruz e

comprei tudo de novo. Depois ela soube que eu tinha comprado e

botou na justiça, pois disse que eu não tinha dado. Ela foi lá em casa

e sargento falou: “o senhor passou tantos anos com sua mulher,

mas ela não teve direito a nada?”. Eu disse: “eu dei tudo o que tinha

dentro de casa para ela. Tenho todas essas coisas, mas...”. Ele

disse que eu estava certo e que ela não prestava. Passei 25 anos

com ela.

Agora eu só faço ficar. Eu tenho uma pessoa, mas nada de

responsabilidade. Hoje eu compro uma casa e dar a uma mulher. Eu

já dei duas casas para mulheres. Eu ganhava dinheiro fácil. Eu

recebi um dinheiro de uma indenização e dei tudo... Para meus filhos

e essas mulheres. Hoje eu vivo pagando aluguel dessa casa, pode

acreditar, na maior tranquilidade do mundo. Não esquento a cabeça.

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QUEM TEM MUITO MEDO DE MORRER, PORQUE AINDA NÃO VIVEU

(Franz Kafka)

Se algum dia alguém me perguntar como é o seu Célio, eu responderei com

rapidez: humano. Muitas vezes cometemos o equívoco de tentar classificar as

pessoas como ricas ou pobres, gordas ou magras, alegres ou tristes e saudáveis ou

doentes. Talvez um dos maiores problemas dessas classificações por estereótipos é

que isso não funciona.

Cada pessoa é um universo de possibilidades e por isso não pode ser

reduzida a apenas um único atributo. O seu Célio não é apenas um leproso, mas um

humano como nós, que um dia foi criança e ao longo da sua vida adulta acumulou

experiências particulares que permitiram que hoje ele pudesse compartilhar um

pouco da sua história. É provável que entre nós em algum momento alguém se

identifique com o seu Célio, seja por meio de um episódio que ele já contou ou por

episodio que começará a ser contado.

Nesse trecho de entrevista, para contar a sua história seu Célio parecia ter

recorrido à religião e à filosofia grega. Mesmo que nunca tivesse a chance de ter lido

uma só página da bíblia ou da filosofia, pois nunca pode frequentar uma escola.

Mesmo assim, seu Célio parece retomar o capítulo da criação do universo, quando

diz que “A mulher foi feita por derradeiro que o homem. O homem, Jesus fez para

ser o varão a semelhança dele”.

Porém, de acordo com seu Célio, “depois que ele [Deus] fez o homem se

arrependeu, porque a fera maior que tem no mundo é o homem”. Para explicar a

fera que existe no homem seu Célio fala da capacidade que o homem possui de

dominar um leão feroz. Embora essa história pareça ter sido adaptada do mito de

Hércules no episódio do leão de Neméia, trata-se aqui de um artifício criado por seu

Célio para explicar a importância do diálogo em um casamento.

Seu Célio casou-se aos 26 anos de idade. E sobre essa época ele comenta

que “Eu tenho um retrato que se o senhor olhar vai dizer que não sou eu”. Seu Célio

conta que quando era jovem andava cercado de mulheres e era namorador.

Segundo ele, apesar de ter sido um jovem de boa aparência, o que garantia o seu

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sucesso com as mulheres não era a aparência, mas o modo como lidava com a

paquera: “eu sempre fui um cara desenvolvido”.

Segundo seu Célio, houve um período que chegou a ter quatro namoradas ao

mesmo tempo, e para evitar que elas descobrissem, ele criava nomes fictícios para

cada uma delas, do mesmo modo passou a criar outros para si também. Com a

alegria de um adolescente, seu Célio diz com êxtase: “Pode gravar. Pode acreditar”.

Enquanto seu Célio falava sobre essa época da sua vida, eu pude observar

que mal se encostava à cadeira de tanto entusiasmo. As suas pernas eram lançadas

para frente e para trás numa agitação frenética e cheia de vida. E, do mesmo modo,

sorria e agitava os braços. Aquele conjunto de movimento saltava aos meus olhares,

pois dizia para mim como seu Célio estava feliz ao se lembrar daquela época.

Mas apesar daquela euforia, seu Célio parou por um instante e, olhando para

mim como se quisesse me aconselhar, disse: “Mas quando a gente tem uma

companheira era [é] para sempre, porque se você troca uma vida boa. Quando você

só tem uma pessoa, um está vivendo com o outro. Quando você tem mais de uma,

não consegue ter amor suficiente pelas duas”.

E continua: “naquela época fazia-se um casamento era aliança no dedo,

todos a cavalo”. Movendo a cabeça de um lado para o outro sucessivamente, seu

Célio diz, “Hoje o povo não quer mais casar, porque tem mulher demais”. “Porque o

casamento é um negócio que tem que ter muita responsabilidade”.

Apontando o dedo para cima, como se recrutasse o “céu” como testemunha,

seu Célio diz que tanto na época quando casou quanto nos dias de hoje os casais

prestam o juramento da fidelidade até o fim da vida. Mas que isso não adianta se

mudarem de ideia. E desabafa: “Um dia chegou um amigo chorando [...] sua mulher

não queria mais morar com ele”. “Agora eu nunca tive isso, não sei o que é amor. Eu

não sei o que é amizade. Eu não sei o que é paixão. Se o senhor me perguntar eu

não vou saber”.

Seu Célio conta que “Quando acontece, [a traição] eu digo que não dá”.

Talvez em toda a entrevista esse foi o único momento em que eu vi o seu Célio olhar

para baixo como se estivesse lembrando de uma experiência triste. Mas mal

terminou a frase, levantou a cabeça como quem está pronto para viver uma nova

vida e falou: “Quando alguém me trai eu digo: pegue as suas coisas e acompanhe

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ele”. Talvez para o seu Célio o sentido da traição seja comparável a um meio de se

morrer. É possível que por esse motivo o seu Célio “agora só faz ficar”.

Graças a Deus eu estou bem. Eu estou me sentindo, com o

senhor aqui presente, um menino!

Agora, só que o exame que eu fiz parece que não deu muito

bom. Eu sou um camarada curioso.

O bicho vem grampeado e eu sou um pouco curioso. Eu abri,

olhei, e vi que... Eu olhei que o triglicerídeo deu alto. Era para dar

152, mas deu 245 e o meu colesterol total deu 235. Mas eu não

esquento com isso não. Eu como aquele pão integral, mas eu não

sei o porquê estou tomando remédio para baixar aquelas taxas. Não

sei porque continua com a taxa daquele jeito. Eu fiz um eletro, a

dona fez um assombro medonho. Fizeram um assombro dizendo

que eu tinha uma veia entupida. Fui para o cardiologista e ele

mandou fazer um eco-cardiograma. Eu fiz e estou com ele para

apresentar. Muitas coisas são normais, muitas coisas eu não

entendo o que é e deixo para eles. Eu vou lá e ele vai me dizer, não

é?

Às vezes eu vou lá, não é? Mas eu já vi tudo, que as coisas

estão normais, não é? Mas tem umas coisas que só quem entende é

ele mesmo.

É porque é cheio de números. Agora eu fiz uma ultra na próstata

e acusou um negócio na urina. A doutora disse que tinha um

problema na urina. Agora só quando eu for para o urologista que irei

saber. Agora eu não me esquento. Sobre a minha próstata, ela disse

que estava normal. Agora tem noites que eu urino demais. Quando

eu vou para Natal tem vezes que eu mal urino, mas tem noites que

são muitas vezes. A minha filha gosta de repolho e bota tomate, bota

melão. Primeiro que melão tem muita água, não é? Até a maçã tem

água também. Eu bebia pouca água, mas disseram que eu tinha que

beber muita água. No dia que eu fui bater a ultra eu bebi uns 10

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copos de água. Eu não sabia nem onde é que estava essa água,

porque eu bebi em casa. É obrigado a beber água que era para ela

fazer o exame. Quando a bexiga estiver cheia tem que ir. Eu notei e

disse: “só deve ir quando a bexiga estiver cheia?” E disse: “Eu já

tinha bebido dez copos de água, eu vou fingir aqui”, e disse que

estava com vontade de urinar.

Mas eu não estava agüentando era esperar. Ela disse: “Então

está na sua vez” e fui para lá. A doutora fez os exames, tudo

direitinho. Eu só fui urinar quando cheguei em casa. Quando eu fiz

pela primeira vez [risos]... De vez em quando eu rio. Era água

demais que eu tinha bebido. Só que era para elas terem dito para eu

tomar logo em casa, não dizer quando eu cheguei lá. Então eu tomei

logo dez copos de uma vez. Eu não estava nem com vontade de

urinar, mas para eu não ficar até de noite lá. Mas parece que deu um

problema na urina. Eu sei porque deu para ver ali no exame. É

porque a gente recebe aqui ali e só sabe quando o doutor vai olhar

aquilo, não é?

E nós, curiosos, vamos dar uma olhadinha. Eu não conheço

tudo, mas aquele que está dizendo normal, que ta leve, qualquer

coisa alterada eu já sei que é que não está perturbar, não é?

QUANDO O CORAÇÃO TRANSBORDA, A LÍNGUA FALA

(Miguel de Cervantes)

Pode parecer ingênuo dizer que quando o coração transborda a língua fala,

mas esse é um privilegio para algumas pessoas como o seu Célio. Arrisco dizer que

em outros casos semelhantes ao dele, a maioria das pessoas iria optar por viver na

penumbra da doença, ao falar sobre ela e sobre si mesmo.

Mas com o seu Célio tudo é diferente. Enquanto eu continuava de prontidão

para anotar e gravar qualquer suspiro que ele pudesse dar, eu fui surpreendido por

um largo e demorado sorriso, seguido da frase, “Eu estou me sentindo um menino,

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com o senhor aqui presente, um menino!”. É claro que ouvir que a minha presença

era agradável fez com que inevitavelmente devolvesse a gentileza com outro sorriso.

E assim começou essa etapa da entrevista. Ao iniciar esse trecho seu Célio

sorriu como uma criança que acabou de preparar uma travessura. E confessou, “eu

sou um pouco curioso”, referindo-se a abertura dos envelopes que contém o

resultado dos exames de saúde, que ele faz com frequência: “O bicho vem

grampeado”. Mesmo assim “eu abri, olhei e vi”.

Embora seu Célio transpareça não conseguir interpretar por completo o

resultado de alguns exames, como ele mesmo conta, “[...] muitas coisas eu não

entendo, eu deixo para eles [médicos]”, isso não limita a sua curiosidade: “Às vezes

eu vou lá, [mostrar os exames para os médicos] não é? Mas já vi tudo”.

Ao que parece seu Célio, ao longo de tantos anos de doença, pôde

acompanhar a evolução da medicina e das terapêuticas da saúde, sobretudo às

ligadas a lepra. Isso talvez o tenha credenciado a até mesmo a duvidar daqueles

diagnósticos e opiniões de profissionais de saúde, como ele falou: “Eu fiz um eletro,

a dona fez um assombro medonho. Fizeram um assombro dizendo que eu tinha uma

veia entupida”. Por isso, seu Célio procurou um cardiologista para examinar se essa

avaliação de veia entupida procedia, “Eu vou lá e ele vai me dizer, não é?”.

Além da cardiologia, consultou-se na urologia. Segundo seu Célio, esse

exame também identificou algum problema na saúde, a partir do sumário de urina.

Apesar dessas adversidades seu Célio parece tentar se adaptar aos problemas de

saúde. Afinal o seu prontuário contém experiências muito mais dolorosas que a

coleta de uma ampola de sangue para um hemograma. E talvez por isso muitos

desses exames e da terapêutica atual sejam tratados com certo humor e travessura

por seu Célio.

Como é o caso do exame de ultrassonografia, contado por seu Célio. Para

que realizasse o exame foi solicitado que bebesse dez copos de água, e assim que

a bexiga estivesse cheia ele poderia fazer o exame. Desse modo, para resolver o

problema, seu Célio contou que fez o seguinte, “só deve ir quando a bexiga estiver

cheia?” E disse: “Eu já tinha bebido dez copos de água, eu vou fingir aqui, e disse

que estava com vontade de urinar”.

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Segundo seu Célio, de vez em quando ri ao se lembrar do que fez. Nesse

momento coloca as palmas da mão na coxa e sorri discretamente, parecia que

estava revendo aquele episódio e a maneira como resolveu o problema do exame

médico. E confessou: “Eu não estava nem com vontade de urinar, mas para não

ficar a noite toda lá [urinei]”.

Talvez esse episódio da vida de seu Célio revele muito mais que o modo

como lida com a saúde e a burocracia dos exames médicos. Mas pode transparecer

que, apesar de ter vivido por décadas enclausurado em um hospital colônia e ter

passado por inúmeras mutilações, o seu coração aos 80 anos parece transbordar de

esperança.

A minha religião é católica, mas só que para a gente se salvar

não precisa de religião. Porque religião não salva ninguém. Salva a

gente fazendo o que Deus determinou para a gente fazer. A gente

fazer as boas obras. O que é que diz [a bíblia]: “Dais com uma mão

e que a outra não veja”. Muita gente diz: “Como uma mão pode ver

se ela não tem olhos?”. É onde está isso aqui. Eu digo que “dar com

uma mão para que a outra não veja” é você dar uma coisa e não

dizer a ninguém que deu. Se você disser, você está se vangloriando.

Porque se eu der uma coisa e se glorificar dizendo para o povo que

dei, eu estou me vangloriando, regozijado. É para eu dar e ficar na

minha. Porque quando Jesus andou no mundo fez muito milagre,

não foi? Ele não fez em troca de dinheiro não, ele obrou os milagres

que ele podia obrar. Se aquele camarada fosse merecedor. Porque

se eu tenho fé em Deus, a fé que eu tenho é pouca. Porque se eu

tivesse muita fé em Deus, se eu pedisse uma coisa ele mandava

logo e eu iria me perder. Eu estaria agora me vangloriando pior de

que os outros. Quando Deus manda a gente nem lembra mais o que

pediu. Por isso que eu digo que minha fé é pouca. Porque eu tenho

fé que nós temos um criador, mas fé para eu pedir a ele e mandar

não. Ele pode me dar com o tempo, mas se ele mandasse logo eu

iria me regozijar. Eu iria me considerar um Deus. Porque eu pedi e

ele me mandou. Imagina se eu planto um roçado, eu iria pedir a

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Deus que mandasse chuva só no meu roçado, quando ele mandou

tudo de bom para todo mundo. Quando ele manda algo de bom é

para toda a terra. Ele é bom, nós somos defeituosos. Pode olhar os

dedos de nossas mãos, eles não são perfeitos. A lua, o sol, tudo tem

defeito.

Porém, tem um pedacinho pequeno, mas por intermédio dele a

gente se perde. Nem tudo o que a gente vê a gente pode contar.

Muitas vezes chega uma pessoa e conta uma história de uma

pessoa, mas eu, para mim, enterrei. É para a gente mais adiante

fazer isso. [...]

NINGUÉM SE SALVA SOZINHO

(Fiódor Dostoiévski)

Embora a ideia de salvação de certa maneira tenha influenciado, sobretudo, a

sociedade ocidental, e por esse motivo possua um forte apelo religioso, para o seu

Célio, “a gente para se salvar não precisa de religião. Porque a religião não salva

ninguém”. Apesar de se autodeclarar católico seu Célio diz crer que a salvação

acontece a partir do momento em que o homem cumpre o que Deus determinou.

Para seu Célio, o homem deve “fazer as obras boas”. E assim disse: “O que é

que diz [a Bíblia]: Dais com uma mão e que a outra não veja”. Segundo se Célio, ao

pronunciar essa sua máxima, “Muita gente diz: como uma mão pode ver se ela não

tem olhos? E onde está isso aqui”. E devido a essa incompreensão, seu Célio

recorre à explicação, “dar com uma mão para que a outra não veja é você dar uma

coisa e não dizer a ninguém que deu”.

Durante a entrevista, foi possível perceber que em sua terra natal, seu Célio é

considerado pelos vizinhos uma pessoa que além de experiente é preparada para

orientar as outras pessoas sobre diferentes assuntos que vão desde os cuidados

médicos com a saúde, passando pelo lado espiritual e até mesmo sobre a política.

Talvez a sua história de vida o autorize a falar sobre tantos temas diferentes e por

isso as suas ideias façam tanto sentido para quem as escuta.

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Seu Célio continuou a falar sobre a ideia de perdão e salvação alertando que

se perde o sentido da doação quando existe a intenção de se vangloriar. Conforme

as suas palavras, “É para eu dar e ficar na minha”. Essa conduta que seu Célio

apresenta em relação a discrição no ato de fazer a caridade encontra na Bíblia

(1998), no livro de Mateus 8.1-2, um provável fundamento: “E descendo ele do

monte, seguiu-o uma grande multidão. E, eis que veio um leproso, e o adorou,

dizendo: Senhor, se quiseres, podes me tornar limpo”.

Após ter ouvido o pedido daquele leproso, Jesus consentiu a sua cura,

conforme Mateus 8. 3-4 “E Jesus, estendendo a mão, tocou-o dizendo: Quero; sê

limpo. E logo ficou purificado da lepra. Disse-lhe então Jesus: não digas a alguém,

mas vai, mostra-te ao sacerdote, e apresenta a oferta a Moisés, determinou [...]”.

Dessa maneira, os versículos citados parecem coincidir com o pensamento

de seu Célio. Sobretudo, ao observarmos o comentário que fez a seguir: “quando

Jesus andou no mundo fez milagre, não foi? Ele não fez em troca de dinheiro não,

ele obrou os milagres que ele podia obrar. Se aquele camarada fosse merecedor”.

Depois de concluir o raciocínio sobre como Jesus operava o milagre, seu

Célio virou-se para mim e se aproximou ao ponto de segurar firmemente as minhas

mãos, como se desejasse falar algo e por isso fosse necessário a minha máxima

atenção. E disse, “Porque se eu tenho fé em Deus, a fé que eu tenho é pouca.

Porque se eu tivesse muita fé em Deus, se eu pedisse uma coisa ele mandava logo,

e eu iria me perder”.

Em seguida apertou ainda mais as minhas mãos e falou, “Quando Deus

manda [as graças], a gente nem lembra mais o que pediu”. Por meio dessas últimas

frases, seu Célio pareceu criticar a conduta do homem em relação ao seu

comportamento diante do sagrado. Pois ao dizer que o homem não se recorda o que

pediu, pode-se pensar em pelo menos duas suposições. A primeira baseia-se no

fato de que o homem não tem memória ou talvez também não tenha gratidão; a

segunda baseia-se na ideia de que o homem pede a Deus coisas sem importância e

por isso não se recorda daquilo que pediu.

Mas se for levado em consideração a frase em que seu Célio autocritica a sua

própria fé nesse trecho de entrevista: “Por isso eu digo que a minha fé é pouca”,

talvez uma provável interpretação se apoie na ideia de merecimento. Por isso,

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apesar de acreditar que será atendido por Deus, seu Célio deixa transparecer que

isso não acontecerá de imediato. Pois, segundo seu Célio, embora Deus seja bom,

“somos defeituosos”.

E um dos maiores defeitos do homem acontece, de acordo com seu Célio, por

intermédio daquilo que falamos. Para ele nem tudo deve ser comentado, pois “por

um pedacinho pequeno [a língua] a gente se perde”.

Dinheiro também não é para a felicidade da gente não, porque

dinheiro não é tudo na vida da gente. Se fosse assim o presidente

da república não morreria, doutor não morreria, deputado, senador,

não morreria. Dinheiro não é tudo. Chegou à hora de ir, se Jesus

mandar buscar, ele vai. Um dia nós nascemos e um dia temos que

desaparecer. Porque a gente não vai ficar para ser eternos. Eterno

só tem Deus e se ele decidir, não tem que volte atrás. É por isso que

eu digo que se você procurar o que eu digo... Porque se Jesus deu

uma vida. Porque quando nossa sentença já está escrita não tem

como retirar. Agora a gente desobedecendo, a gente morre cedo.

Porque quando eu estou dentro de casa, chega um amigo batendo

na porta me chamando para uma festa. Eu deixo de estar no meu

amado sossego, vou com ele. Lá um barulho, uma pessoa atira e

pega em mim, eu morro. O povo vai dizer: “mais rapaz, fulano de tal

morreu, chegou a hora dele morrer”. Não, ele desobedeceu,

entendeu? Eu e nem o senhor, não temos amigos. O único que nós

temos é aquele ali de cima. Quantos amigos matam outros? Isso

não é amizade. É por isso, que o senhor procure andar com que é

melhor do que o senhor, para ficar lá em cima. E não fazer nada

extrapolado.

O senhor pega um tênis diz: “eu vou fazer um treino”, porque é

boa uma física. A pessoa, que Deus não queira, quebra uma perna.

O senhor não é craque de bola, vai gastar quase o que não tem, por

quê? Por causa de uma brincadeira de mau gosto. O senhor tem

que fazer isso mesmo. Porque se eu não faço as loucuras que eu fiz

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eu não hoje estaria bem, em forma. Foi a minha desobediência,

porque conselho eu tive.

O QUE MAIS RECEAMOS

É O QUE NOS FAZ SAIR DOS NOSSOS HÁBITOS

(Fiódor Dostoiévski)

Antes que pudéssemos recomeçar, a entrevista foi interrompida pelo

chamado de algumas crianças que desejavam comprar os doces que eram vendidos

por seu Célio. Foi quando eu pude observar que bem próximo à janela da casa,

naquela pequena sala de estar, era possível visualizar em cima de algumas

prateleiras presas a parede cerca de oito frasqueiras que continham balas e outros

bombons colocados ali para que fossem comercializados.

Tão logo aquelas crianças chegaram, para que a entrevista não fosse

interrompida seu Célio pediu para que elas voltassem mais tarde. Nesse momento

eu disse a ele que não teria problema algum se ele atendesse aquelas crianças. E

assim aconteceu, seu Célio ouviu o que aquelas crianças desejavam e vendeu os

doces que foram pedidos.

Em menos de um minuto depois, outro grupo de crianças apareceu, mas

dessa vez vieram acompanhadas por uma mulher adulta, que olhou bem para dentro

da sala e perguntou: “seu Célio, tudo bem com o senhor?” Ele sorriu e respondeu

que sim. Apontando para mim, seu Célio disse que estava conversando com uma

visita de Natal. Terminada aquela venda, seu Célio falou: “olha, eu vou guardar isso

aqui senão não vamos conseguir conversar”. Sorrindo, foi guardar as frasqueiras de

doces.

Ao retornar para a entrevista, seu Célio pronunciou a seguinte frase, “Dinheiro

também não é para a felicidade da gente. Se fosse assim o presidente da república

não morreria, doutor não morreria, deputado, senador, não morreria. Dinheiro não é

tudo”.

Em seguida, sentou-se na mesma cadeira, que ficava a um metro e meio da

porta e a metade dessa distância da pequena janela. Enquanto eu continuava

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sentado em outra cadeira, que me deixava a poucos centímetros de seu Célio. E a

todo o tempo o gravador de voz ficava entre nós dois, em cima de um móvel de

madeira que deveria ter um pouco mais de um metro de altura. O que facilitaria a

captação do som, pela proximidade entre as nossas vozes e o gravador.

Devidamente sentado seu Célio retomou a entrevista utilizando um gesto que

já havia repetido outras vezes. Apontando o dedo para cima, falou: “Dinheiro não é

tudo. Chegou à hora de ir, se Jesus mandar buscar, ele vai. Um dia nós nascemos e

um dia temos que desaparecer. Porque a gente não vai ficar para ser eternos.

Eterno só tem Deus e se ele decidir, não tem quem volte atrás. Porque se Jesus deu

uma vida. Porque quando nossa sentença já está escrita não tem como retirar”.

Seu Célio parece acreditar e assumir que o destino é uma máxima infalível e

controlada por Deus, cabendo apenas a Deus a escolha de quem viverá e por

quanto tempo viverá. Sendo essa escolha uma sentença que já existe antes mesmo

do nosso nascimento. E por isso só estará sujeita a mudança de planos se o curso

do destino do homem foi alterado por desobediência do próprio homem.

A desobediência, para seu Célio, muitas vezes está relacionada a amizades

que influenciam no comportamento das pessoas. Desse modo, um convite para

jogar uma partida de futebol, pode produzir consequências imprevisíveis, que vão de

um machucado leve ate contusões bastante graves.

Segundo seu Célio, “a gente desobedecendo, a gente morre cedo”. Dessa

maneira, ele acredita que devemos ter uma vida doméstica, pois ao sair para outros

ambientes, com amigos, “deixo de estar no meu amado sossego, vou com ele. Lá

tem um barulho, uma pessoa atira e pega em mim, eu morro”. “O povo vai dizer:

mais rapaz, fulano de tal morreu, chegou a hora dele morrer”. Segundo seu Célio,

“não chegou a hora dele morrer”, mas “ele” desobedeceu.

Esse argumento está baseado naquela que parece ser uma máxima para seu

Célio, “Eu nem o senhor, não temos amigos. O único amigo nós temos é aquele ali

de cima. Quantos amigos matam os outros?”.

Usando um gesto de quem desejava me aconselhar, seu Célio aponta o dedo

para mim, enquanto movimenta suavemente a cabeça para baixo e para cima e diz:

“É por isso, que o senhor procure andar com quem é melhor do que o senhor, para

ficar lá em cima. E não fazer nada extrapolado”.

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Parece que seu Célio vê na obediência a garantia de sua vida. Por isso, de

um lado obedece aos desígnios de Deus e por outro obedece às normas da

medicina. Sendo que a primeira se sobrepõe à última. Assim, a ideia de destino, que

é segundo seu Célio uma criação de Deus, se constitui na referência mais

importante. Dessa maneira, para seu Célio, talvez a obediência seja concebida

como uma estratégia para que o homem não se desvie do seu destino e com isso

não antecipe a sua morte.

Meu irmão. Ele mora em Genipabu. Ele tem uma pousada lá em

Genipabu. Ele vinha aqui... É. Acontece o seguinte... Ele está

morando em Genipabu. Eu tenho 80 e ele tem 70. Um homem

trabalhador. Até hoje é um homem trabalhador e tem três bugres

naquelas dunas.

Bem de vida, porque quando ele chega aqui ele “chora” demais.

Porque quem sempre tem as coisas nunca diz que tem. Ele,

comparado a mim, é rico. Ele vinha aqui de tempo em tempo. Ele me

deixou o telefone dele ai, o cartão, mas eu não ligo para ele, sabe.

Para quê? Eu tenho vergonha. Ele é rico, procura não ligar para

mim, então eu não quero me rebaixar não. Eu nunca pedi, vou me

rebaixar não. Ele é quem dá tudo a nós [Jesus]. Se ele não der,

quem é que vai dar? Ele não desampara ninguém, pode ser rico ou

pobre, pode ser aleijado, ele não desampara ninguém. Porque ele

veio para a remissão dos pecados, ele não veio por um, ele veio por

todos. Só que nós às vezes temos uma condição melhor que a gente

e não olha aquele pobre que chega mendigando na porta de nossas

casas. Eu já sou diferente, se eu puder ajudar, eu ajudo. Porque eu

não sei o dia de amanhã. Muita gente já tem me ajudado e a gente

só Pode fazer o que Deus quer. Não posso ultrapassar, não é? A

gente só pode ar aquilo que tem e que pode. É por isso que eu vivo

por aqui, porque aqui é tranquilo. Aqui se for preciso, pode passar

até a noite aqui na calçada. Em Natal não pode. A minha filha tem

uma casinha lá no Bairro Nordeste, mas quem é que pode anoitecer

na calçada?

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Minha filha ela é nova. Ela tem 46 anos. Ela é solteira. Ela vem

aqui e passa segunda, terça, quarta, quinta e sexta. Quando sai

deixa tudo na geladeira prontinho. Eu só preciso ferver e comer. Eu

tenho três filhos. Mas quem está sempre aqui é ela...

LÁGRIMAS NÃO SÃO ARGUMENTOS

(Machado de Assis)

Aos 80 anos de idade, a família de seu Célio é composta por três filhos e o

seu irmão mais novo. Apesar de os nomes dessas personagens parecerem

incógnitas durante toda a entrevista. Apenas duas personagens parecem tem

relevância para o seu Célio. Uma dessas personagens é a sua filha solteira de 46

anos de idade, que passa toda a semana com ele, ajudando nas tarefas domésticas.

E o outro personagem é o seu irmão, que seu Célio prefere se referir como “irmão

mais novo”.

A figura desse “irmão mais novo” está presente em diversos momentos da

vida de seu Célio, que vão desde o período do internamento até os dias de hoje.

Esse seu irmão mais novo é aquele que seu Célio, em outros trechos da entrevista,

contou que, embora tivesse se internado em meio aos parentes leprosos, ele jamais

adoeceu.

Segundo seu Célio, esse irmão mais novo tem hoje 70 anos de idade, e por

ser um homem trabalhador, apresenta boas condições financeiras. Mas parece que

a admiração que o seu Célio possui do irmão mais novo termina no momento em

que se trata da generosidade desse irmão. Pois, embora para o seu Célio esse

irmão deva ser considerado rico, se comparado ao seu padrão de vida, seu Célio

disse: “ele chora demais”. E, talvez por isso, essa riqueza parece ter afastado esse

irmão mais novo de seu Célio.

Ao falar sobre esse afastamento, seu Célio começa a balançar as pernas com

uma intensidade alta, e afasta as costas da cadeira de modo a apoiar os cotovelos

nas coxas e as mãos sob o queixo. Um silêncio tomou o ambiente, foi possível ouvir

um suspiro que pôde significar angústia, tristeza ou decepção. Foi a partir desse

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momento que seu Célio disse com certa tristeza no olhar, “Ele vinha aqui de tempo

em tempo. Ele me deixou o telefone dele aí, o cartão, mas eu não ligo para ele,

sabe. Para quê? Eu tenho vergonha. Ele é rico, procura não ligar para mim, então eu

não quero me rebaixar não. Eu nunca pedi, vou me rebaixar não”.

Após desabafar, seu Célio respira profundamente e diz, “Ele é quem dá tudo

a nós [Jesus]. Se ele não der, quem é que vai dar? Ele não desampara ninguém,

pode ser rico ou pobre, pode ser aleijado, ele não desampara ninguém”.

Enquanto eu ouvia o seu Célio, lembrava-me que nas escrituras sagradas

existe um episódio no livro de Lucas que descreve a cura de dez leprosos. Segundo

a Bíblia Sagrada (1998), no caminho para Jerusalém, Jesus e os seus discípulos se

depararam em uma aldeia com dez leprosos que, ao ver em Jesus, rogaram por

ajuda. E após Jesus ter curado todos os dez discípulos, apenas um deles retornou

para agradecer.

Talvez seu Célio enxergue em seu irmão um daqueles leprosos que não

retornou para agradecer a Jesus. Pois, conforme as palavras de seu Célio, ao longo

da entrevista, esse seu irmão mais novo, além de ter sido poupado da lepra,

recebeu de Deus outras grandes recompensas, mas nada fez para agradecer. Como

seu Célio diz, “Só que nós às vezes temos uma condição melhor que a gente [que a

de seu Célio] e não olha aquele pobre que chega mendigando na porta de nossas

casas”.

Seu Célio parece recrutar a máxima cristã da compaixão a fim de se

contrapor a postura individualista do seu irmão mais novo. E acrescenta o modo que

pensa à sua concepção de compaixão, ao dizer: “Muita gente tem me ajudado e a

gente só pode fazer o que Deus quer. Não posso ultrapassar, não é?”. Após concluir

essa frase seu Célio recosta-se outra vez à cadeira, mas permanece com o

movimento de balanço das pernas.

Talvez esse momento de balanço das pernas transparecesse ansiedade pelo

seu desejo de que as suas palavras pudessem ecoar e ajudassem na transformação

do seu irmão mais novo. É possível também que aquele balançar das pernas

significasse uma angústia e ao mesmo tempo representasse o sentimento de

conformação diante da vida e do comportamento do seu irmão mais novo. É

possível também que aquele movimento simbolizasse apenas um reflexo do seu

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corpo diante da tensão gerada ao falar da insatisfação que alimenta sobre o

comportamento do seu irmão mais novo.

A resposta sobre o que seu Célio estaria pensando naquele momento, ao

certo não foi revelada. Tampouco me achei no direito de invadir aquele nível de

intimidade. Mas a mensagem que pareceu que o seu Célio desejava passar está na

frase que usa para concluir o assunto, “É por isso que eu vivo aqui, porque aqui é

tranquilo. Aqui se for preciso, pode passar até a noite na calçada”.

[...] se chegar lá [se referindo ao local onde viveu: hospital

colônia São Francisco de Assis] hoje é uma clínica que fizeram. E os

prédios estão todos desmoronados. Acho que ainda tem uns, mas a

maioria foi tudo abaixo. Agora com os tijolos que tinham lá era para

aqueles prédios não se acabarem nunca. O homem é uma fera que

destrói tudo. Tinha um hospital lá que era da gente, hoje só tem os

escombros. Mas o pessoal arrancou os fios de cobre e deixaram só

a metralha [entulho]. Fizeram um prédio por lá de terceiro andar ao

lado do cemitério só que o engenheiro condenou. Só estão somente

as lajes, os restos carregaram tudo. Parece que já tinha uns 56

sanitários. Estava quase no ponto, mas o engenheiro veio e

condenou. Então, os ladrões carregaram os sanitários, os tubos de

alumínio, carregaram tudo, sabe! Hoje tem somente as três lajes, por

lá. Aquele muro que tinha botou abaixo e fizeram uma vila para o

povo das favelas.

NADA DEVERIA MUDAR SOMENTE PORQUE HAMLET

MOROU AQUI, MAS ISSO MUDA TUDO

(Niels Bohr)

Prigogine vê e nos faz ver (2009) a partir da lente de Niels Bohr como é

estranho que quando pensamos que Hamlet morou no Castelo de Kronberg, na

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Dinamarca, este castelo pareça completamente diferente. Ainda que nada devesse

mudar, o fato de Hamlet ter morado naquele castelo, muda tudo.

Embora as palavras de Bohr façam ressoar no modo como os cientistas

creem que os castelos sejam construídos (de pedras), e por isso admiram a maneira

como o arquiteto as arrumou, esses mesmos cientistas cometem um equívoco ao

tentar desatar Hamlet do castelo (Prigogine, 2009). E com o seu Célio não é

diferente.

Essa leitura parece ir em direção a muitas histórias como a que é contada por

seu Célio a partir do Hospital Colônia São Francisco de Assis. Aquele hospital

colônia poderia, como outras construções, integrar um cenário comum ao nosso

cotidiano, como as escolas, os mercados e as lojas que vemos enquanto

caminhamos todos os dias do trabalho para casa. Mas o fato de seu Célio ter

morado naquele hospital colônia muda tudo.

Talvez essa concepção apresentada por Prigogine (2009) se constitua em um

elo que permita explicar a ligação de seu Célio ao hospital colônia. E por meio desse

motivo se torne possível compreender a angústia de seu Célio diante da demolição

do Hospital Colônia. É provável que a questão levantada por Prigogine (2009) em

relação ao Castelo de Kronberg, possa servir aqui como uma referência para tentar

se compreender o sentimento de seu Célio diante da demolição do Hospital Colônia

São Francisco de Assis.

Conforme Prigogine (2009), com a demolição o que restará do castelo de

Kronberg a não ser as perguntas que fazemos sobre ele? Mesmo que essa questão

possa parecer retórica, por outro lado, pode se constituir também em uma crítica

sobre a qual se repouse a maneira fragmentada de como os cientistas observam a

realidade, e buscam a partir dessa observação separar o que é inseparável, a

existência humana e a realidade da natureza.

Embora a demolição do hospital colônia possa simbolizar o desmoronamento

da história de vida de seu Célio, o fato de seu Célio ter vivido entre aquelas paredes,

muda tudo. Talvez a sua presença tenha feito com que aquelas paredes passassem

a falar uma língua completamente diferente. Isso explica o fato de seu Célio ter um

grande apreço por aquele hospital colônia, conforme ele se recorda: “com os tijolos

que tinham lá, era para aqueles prédios não se acabarem nunca”.

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Seu Célio parece enxergar a partir de dentro da arquitetura do hospital colônia

a trajetória de sua transformação. Talvez por isso, cada tijolo ajude-o a contar um

pouco da história da lepra no Rio Grande do Norte, a partir da história do hospital

colônia São Francisco de Assis.

É possível que esses escombros possam ajudar na tarefa de descortinar

história da lepra, a partir de um significado completamente novo e diferente do ponto

de vista das pessoas que enxergam ali apenas escombros do que foi um dia o

Hospital Colônia São Francisco de Assis.

Eram trinta casas que fizeram para quem vivia no hospital.

Deram para cada um uma casinha, tanto que ganhei uma. Só que o

resto do hospital, que era muito grande, fizeram uma vila para o

pessoal das favelas. Mas só tem só gente ladra, maconheiros. Um

dia desses passei ao lado com meu filho. Não chego mais lá, não.

Passei só por lá.

Um dia desses o doutor Maurício perguntou se ainda existia

aquele cemitério. Disse para ele que só havia escombros. Até os

tijolos carregaram para fazer casas.

UMA GAIOLA ESTÁ SEMPRE A PROCURA DE UM PÁSSARO

(Franz Kafka)

Em 1929 foi inaugurado o Hospital Colônia São Francisco de Assis, era

necessário ocupar aquele espaço para o fim que foi construído. Naquele ano apenas

30 leprosos estavam internados. Segundo as palavras de Kafka, uma gaiola está

sempre à procura de um pássaro.

Talvez por isso o efeito das diligências que utilizavam as carrocerias dos

caminhões para o recolhimento dos leprosos, contribuiu para que em pouco tempo

aquele hospital se tornasse uma referência em internamento de leprosos no Estado

do Rio Grande do Norte.

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Embora no Brasil o ano de 1985 se constitua no marco para o término do

internamento compulsório, muitos leprosos, após conquistarem a liberdade, não

conseguiram reconstruir os laços familiares que haviam sido interrompidos. Em

alguns casos sequer existiam familiares daquele leproso no lado externo do muro do

hospital colônia. Outra situação comum, quando se encontrava algum parente, era a

rejeição daquele doente por parte da família. São raros os relatos de leprosos que,

após o término do isolamento compulsório, conseguiram se reinserir à sociedade

externa aos muros do leprosário.

Esse episódio assemelha-se em parte ao que os ex-presidiários passam após

o cumprimento de uma pena. Ao retornarem ao convívio coletivo, fora da prisão, na

maioria das vezes, sofrem outro julgamento, motivado pelo preconceito da

sociedade. E em muitos casos sequer encontram uma oportunidade para a

apelação. Dessa maneira, carregam consigo a condenação e a exclusão do convívio

social.

Do mesmo modo são os leprosos que foram libertos do internamento

compulsório. Embora já estivessem curados da doença, ou seja, apesar de terem

cumprido a pena, carregavam consigo o estigma de leproso, além das muitas

marcas de anos de internamento, tais como mutilações, glaucoma, diabetes entre

outros problemas causados pela terapêutica. Por esses motivos, também são

excluídos do convívio social.

Diante da dificuldade de reinserção social, a solução encontrada pelo poder

público foi reabrigar todos os egressos que retornaram aos hospitais colônia. Esse

fato aconteceu em todo o país. Existia aí uma contradição, apesar de existir a cura

da lepra e de estar ao alcance da sociedade em geral, isso não foi suficiente para

curar a sociedade do preconceito.

No período pós 1985, essas instituições passaram a assumir caráter

ambulatorial, tratando aqueles pacientes que não possuíam mais a lepra, porém

necessitavam de cuidados médicos ligados a diabetes, amputações, problemas

cardiovasculares entre outras complicações de saúde.

E apesar desses ex-leprosos não possuírem um local para onde ir, a partir de

1985 gradativamente esses hospitais colônia começaram a ser desmontados e

demolidos. Os pacientes que apresentavam alguma complicação de saúde foram

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transferidos para os hospitais públicos, e os outros pacientes outra vez foram

lançados a sua própria sorte. Isso aconteceu em diversos leprosários, como foi o

caso do Dom Rodrigo de Menezes em Salvador – BA.

Em Natal – RN, com o término das atividades do Hospital Colônia São

Francisco de Assis no ano de 1990, o poder público utilizou aquele terreno para a

construção de casas que foram distribuídas aos pacientes da colônia. Foram

construídas cerca de trinta casas e o local passou a ser chamado de Vila dos

Egressos.

A vila está situada no bairro Felipe Camarão, localizado na zona oeste de

Natal. A Vila dos Egressos recebe da população de Natal a denominação de “vila ou

favela”. Os natalenses, quando perguntados sobre a Vila dos Egressos, geralmente

fazem diversas recomendações de cautela para quem deseja ir conhecer o local,

pois alegam que os assaltos são frequentes na região.

O projeto de construção da Vila dos Egressos parece não ter funcionado para

o fim que foi planejado. Segundo seu Célio, em pouco tempo as casas foram

ocupadas por pessoas que não viviam no hospital. E essas pessoas transformaram

o ambiente em um local perigoso para o convívio familiar. Seu Célio também

recebeu uma casa na Vila dos Egressos, mas optou por viver em Santo Antônio do

Salto da Onça.

Isso aqui antigamente era uma casinha e acolá. Foi se

desenvolvendo e se tornou uma cidade. Agora só falta prefeito, né?

Porque a entrada de Santo Antônio não tem nada de vista nem para

um lado e nem para o outro. Isso aqui era para ser bem visto. Nova

Cruz...

Ali devia ser uma coisa muito bonita, né?! Mas não tem nada,

porque o prefeito só faz ganhar o dinheiro e nada faz.

A Pedra da Onça aquilo ali antigamente era um ponto turístico, mas

só que o prefeito não liga para isso não.

Brejinho é a entrada de Santo Antônio devia ser uma entrada

que nem tem em Monte Alegre.

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Muito bonito né?! Mas só que aqui em Santo Antônio não tem

prefeito. É que tem aquela saída, daquele ponto que turístico, tem

aquela entrada que sai de Santo Antônio para Brejinho, tem a outra

para Nova Cruz, que é onde o senhor foi para a Vaquejada. Aquilo

ali era para ser uma vista muito bonita, né? Aquilo tem para

Goianinha tem para São José de Campestre, todas elas tem essas

saídas... não tem vista nenhuma.

Pelo menos aqui é tranquilo. Eu fico aqui às nove e dez horas

aqui na calçada, mas acontece que em Natal ninguém pode ficar.

Aqui é da minha menina. Ela deixa isso aqui para eu não estar

parado, porque ela passa dois dias em Natal. Ela foi ontem, passa

ontem e hoje e amanhã ela está aqui. Porque ela é quem cuida de

mim, né? Mas a família dela é lá em Natal. Então ao invés de minha

irmã ser mais velha, então elas cuidam também. Tem uma que levou

uma queda e quebrou o fêmur e não anda. Eu comprei um “anda já”

para ela. Para ela ir tomar banho. Arrumei uma cadeira de rodas e

dei para ela também. Ela nem quer mais o “anda já”, quer logo a

cadeira de rodas. Já é velhinha, quase tem preguiça de falar. Agora

fuma demais.

Sou diferente eu acordo de três e meia, quatro horas. Vou deitar

às sete horas, oito horas. Mas hoje eu não vou dormir, vou me

deitar. E eu fico pensando no que se passou o dia até que o sono

chegar. Eu já estou acordado. Três horas, três e meia, eu já estou

de pé. Às vezes minha filha pergunta para a mim se eu não vou

dormir. Eu digo que não estou com sono e vou fazer alguma

atividade.

Eu vou no barbeiro, vou conversar com os colegas. Faço coisa

aqui que muita gente não faz. Eu pego coisas aqui que ninguém não

faz. Acontece o seguinte, como é que um homem de 80 anos

consegue fazer isso? O doutor disse para mim que eu faço isso e

posso ir para a cama. Eu faço.

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Eu tenho um amigo que teve uma paralisia, que passou de um

lado para outro. Do lado direito para o lado esquerdo. Ele andava

com a cocha puxando. Ele só andava com o carro, hoje ele só anda

de muletas. Para descer do carro tinha que ser com a muleta, para

subir tinha que ser com a muleta. Por causa disso. Eu não faço isso

não. Porque eu já vi gente nova que não bota a perna em cima da

outra perna. Só com a ajuda da outra mão.

Hoje tem gente que se espanta por não conseguir fazer isso. E

eu faço. Porque antigamente quando eu era mais novo, as minhas

pernas eram boas, eu virava as costas com as mãos para cima e

voltava de novo. Encostava no chão e voltava. Hoje eu não faço

mais devido aos pés.

NUNCA SE FEZ NADA GRANDE

SEM UMA ESPERANÇA EXAGERADA

(Júlio Verne)

A cidade de Santo Antônio do Salto da Onça recebe esse nome por ter

servido de cenário para um salto perigoso de uma onça, às margens do rio Jacu.

Certo dia, uma onça pintada que frequentava a região foi avistada por um caçador

armado de espingarda. Ao perceber a movimentação e o perigo que corria, a onça

tentou se esconder nas grandes pedras que ficavam às margens do rio Jacu. Mas

ao ouvir o primeiro tiro do caçador, a onça subiu em uma dessas pedras.

No entanto, de lá do alto da pedra a onça não encontrava um meio de

escapar daquele caçador. Foi quando percebeu que o caçador se preparava para

dar o seu tiro certeiro. Nesse instante, a onça se sentiu ameaçada, e talvez por isso

os seus instintos a fizeram enxergar que a única chance era tentar saltar para a

outra pedra que ficava bastante distante e de lá se arriscar escapar pelo rio.

Para fugir de um caçador, a onça pintada saltou de uma pedra que margeia o

rio Jacu, para outra bem distante. Esse salto lhe custou um machucado que a fez

perder a agilidade, mas salvou a sua vida. Conforme essa história, contada por seu

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Célio, aquela pedra foi batizada pelo padre que assumia a paróquia com o nome de

Pedra da Onça, e por isso a cidade passou a ser conhecida como Santo Antônio do

Salto da Onça.

Como na ficção, a vida imita a arte e a história de vida de seu Célio parece se

encontrar com a história que deu o nome a sua terra natal. A astúcia de seu Célio

permitiu que diante de diversos desafios impostos pela lepra, ele conseguisse, por

meio de saltos cada vez mais altos, driblar a lepra.

É verdade que o custo cobrado pela natureza, para que seu Célio

conseguisse escapar das armadilhas da lepra era cada vez mais alto, doloroso e

muitas vezes mutilante. Como o seu Célio já contou em outros trechos da entrevista,

ele jamais pôde descansar da perseguição da lepra. E assim conseguiu sobreviver

até hoje, de um lado o caçador e de outro a onça.

Hoje, apesar dos 80 anos de idade, seu Célio parece ter muito carinho pela

cidade onde nasceu. E talvez por esse motivo se incomode com a maneira com a

qual o poder público administra a cidade. Ao falar da cidade, mal se continha

naquela cadeira. Agitava-se, sorria, e se movimentava, para que o corpo pudesse

falar como ele estava se sentindo naquele momento. E com o mesmo entusiasmo de

quem narrou o primeiro trecho dessa entrevista, narrou também esse último trecho,

sem poupar energia e nenhum detalhe.

Segundo seu Célio, ele faz coisas que ninguém faz, como colocar uma perna

em cima da outra sem a ajuda das mãos. E há algum tempo atrás chegava a dar

cambalhotas. E por isso, se pergunta, como pode um homem de 80 anos de idade

conseguir? Enquanto os seus amigos da sua idade estão praticamente imóveis, seja

pela paralisia cerebral ou pelo uso de muletas?

Esse personagem de nome Célio traz consigo muito mais que uma história de

quem sobreviveu à lepra em um hospital colônia. Seu Célio é, além disso, um

exemplo de como o saberes da tradição podem contribuir para o aprendizado de

gerações inteiras que ainda estarão por vir.

Talvez algumas poucas palavras não consigam dar conta da maneira como

o seu Célio conviveu com a lepra, sem que com isso permitisse que a doença fosse

maior do que ele. Mas como de algum modo é necessário pelo menos tentar

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sintetizar em palavras a vitalidade e o desejo de continuar vivo de seu Célio, tomo

aqui de empréstimo uma das ideias que comovia o escritor francês Julio Verne,

“nunca se fez nada grande sem uma esperança exagerada”.

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APÊNDICE

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Termo de consentimento esclarecido – nota explicativa

O termo de consentimento esclarecido que segue anexo não contou com a

assinatura do entrevistado devido ao impedimento causado por algumas de suas

limitações físicas, em decorrência de sequelas da doença. Dessa maneira, a

autorização para entrevista foi concedida por via oral, sendo verbalizada durante a

gravação da referida entrevista. Isso ocorreu logo após eu ter apresentado uma

explicação sobre a natureza do termo de consentimento esclarecido. A partir desse

esclarecimento, o entrevistado foi consultado sobre o seu desejo de consentir a

entrevista e a sua utilização nessa tese de doutorado e em outros trabalhos que

poderiam surgir a partir desta tese. O entrevistado concordou em autorizar a

gravação e o referido uso, sem impor quaisquer restrições. No entanto, por questões

éticas, o nome do entrevistado foi substituído por um nome fictício ao longo de toda

a transcrição da entrevista para a tese, sendo aqui chamado de Célio. Além disso,

uma cópia desse termo de consentimento esclarecido foi entregue ao entrevistado

para que pudesse manter contato comigo caso necessitasse de mais algum

esclarecimento, ou desejasse rever a sua autorização. A confirmação da

autorização dessa entrevista está disponível em uma mídia gravada, sob os meus

cuidados, para quaisquer consultas e esclarecimentos que se façam necessários.

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ANEXO

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TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO INFORMAÇÕES E OBJETIVO DO ESTUDO - Você está sendo convidado a participar de uma entrevista sobre o tema da hanseníase. O objetivo desse estudo é conhecer a leitura que as pessoas possuem sobre esse assunto. DESCRIÇÃO DO ESTUDO E DOS PROCEDIMENTOS - Esse estudo é uma pesquisa de Doutorado em Ciências Sociais e está vinculado a Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN e ao Grupo de Estudos em Complexidade – GRECOM. O procedimento consiste em iniciar uma conversa sobre o assunto e ouvir o senhor (a), utilizando gravador, máquina fotográfica e filmadora. Mas no momento em que você assim desejar pode deixar de participar do estudo, caso seja do seu interesse. BENEFÍCIO - Você não terá nenhum benefício direto com o estudo, mas o conhecimento obtido com ele pode nos permitir compreender melhor quais são as principais dificuldades vividas pelas pessoas que tiveram hanseníase. Porém o estudo visa ajudar a esclarecer melhor o que é a hanseníase, no período de internamento obrigatório e hoje. RISCOS E DESCONFORTO - Você não enfrentará nenhum risco de saúde derivado desta pesquisa. Se o senhor(a) se sentir constrangido ou sentir a sua privacidade violada pela pesquisa, você pode solicitar a reversão do consentimento, deixando, então, de fazer parte do grupo de pessoas que cooperam com o estudo. CONFIDENCIALIDADE - Na divulgação de qualquer artigo ou apresentação de trabalhos com dados relativos à pesquisa, COMO GOSTARIA QUE O SEU NOME FOSSE APRESENTADO nas publicações ligadas a pesquisa ? ( ) GOSTARIA QUE MANTIVESSE O MEU NOME ORIGINALMENTE ( ) GOSTARIA QUE SUBSTITUISSE O MEU NOME POR UM OUTRO FICTÍCIO. DECLARAÇÃO VOLUNTÁRIA DE ENTENDIMENTO E ANUÊNCIA - Eu entendo que irei fazer parte de um estudo como voluntário. Posso me recusar a participar do estudo ou retirar-me dele sem perda de quaisquer benefícios que eu poderia receber em outra situação. O estudo, seus procedimentos, constrangimentos, foram explicados a mim. Estou livre para deixar de participar do estudo em quaisquer momentos se for de meu interesse. Qualquer alteração no projeto que possa envolver a mim deve ser comunicado a mim, a meu representante. Tive a oportunidade de discutir todas as dúvidas que tive e recebi respostas, que foram por mim entendidas. Foi-me dito que deverei contatar ALAIM PASSOS BISPO ou pelo telefone (84) 99683-2070 ou e-mail: [email protected] a qualquer momento durante ou depois do estudo se eu tiver mais alguma dúvida. Desse modo, autorizo a ALAIM PASSOS BISPO, gravar, filmar e fotografar essa entrevista e utilizar em sua pesquisa, e publicações diversas. Nome do paciente: ________________________________________________________________ Assinatura do paciente: ____________________________________________________________ Data: __________________________ Nome do representante legal do paciente: _____________________________________________ Assinatura do representante legal do paciente: ________________________________________ Data: __________________________