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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
CURSO DE DIREITO
Daniel Augusto de Alcaniz Santos
ASPECTOS JURÍDICOS E ECONÔMICOS DA SUSPENSÃO DE FORNECIMENTO
DE ENERGIA ELÉTRICA POR INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO: DOS
IMPACTOS JURÍDICOS E ECONÔMICOS DA SUA PERMISSIBILIDADE OU NÃO
Monografia apresentada junto ao Curso de Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito
parcial à obtenção do título de Bacharel.
Orientador: Prof. Dr. Otacílio dos Santos Silveira Neto
NATAL – RN
2014
Daniel Augusto de Alcaniz Santos
ASPECTOS JURÍDICOS E ECONÔMICOS DA SUSPENSÃO DE FORNECIMENTO
DE ENERGIA ELÉTRICA POR INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO: DOS
IMPACTOS JURÍDICOS E ECONÔMICOS DA SUA PERMISSIBILIDADE OU NÃO
Monografia apresentada como pré-requisito parcial
de conclusão do Curso de Direito da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, orientado pelo
Professor Dr. Otacílio dos Santos Silveira Neto.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
NATAL – RN
2014
Santos, Daniel Augusto de Alcaniz.
Aspectos jurídicos e econômicos da suspensão de fornecimento de energia elétrica por inadimplemento do
usuário: dos impactos jurídicos e econômicos da sua permissibilidade ou não / Daniel Augusto de Alcaniz
Santos. - Natal, RN, 2014.
68f.
Orientador: Profº. Dr. Otacílio dos Santos Silveira Neto.
Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências
Sociais Aplicadas. Departamento de Direito.
1. Serviço público - Energia elétrica - Monografia. 2. Energia elétrica - Suspensão - Monografia. 3.
Inadimplência do usuário - Monografia. 4. Concessão – Monografia. I. Silveira Neto, Otacílio dos Santos. II.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BS/CCSA CDU 351
DANIEL AUGUSTO DE ALCANIZ SANTOS
ASPECTOS JURÍDICOS E ECONÔMICOS DA SUSPENSÃO DE FORNECIMENTO
DE ENERGIA ELÉTRICA POR INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO: DOS
IMPACTOS JURÍDICOS E ECONÔMICOS DA SUA PERMISSIBILIDADE OU NÃO
Objetivo: Contribuir para a discussão vigente sobre a permissibilidade da suspensão
do fornecimento de energia e fazer uma análise econômica e jurídica sobre o tema
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
Monografia apresentada como pré-requisito de
conclusão do Curso de Direito da Univerisidade
Federal do Rio Grande do Norte, orientada pelo
Prof. Dr. Otacílio dos Santos Silveira Neto.
Data de aprovação: sete de maio de 2014
__________________________________________________________
Prof. Dr. Otacílio Silveira dos Santos Neto
__________________________________________________________
Prof. MSc. Paulo Roberto Dantas de Souza Leão
__________________________________________________________
Prof. Cleanto Fortunato da Silva
DEDICO este trabalho a Dona Sandra Maria Souza de
Alcaniz, exemplo de profissional e de mãe, que durante toda a
vida lutou para poder fazer coisas como e maiores que este
trabalho possíveis. Deus foi conosco ontem, é conosco hoje, e será
conosco sempre.
“Tu deber es lutar por el derecho. Pero, el dia en que encuentres
em conflito el derecho com la justicia, lucha por la justicia”.
(Eduardo Juan Couture Etcheverry)
AGRADECIMENTOS
A Deus pela sua divina providência que me fez superar todas as
dificuldades que apareceram pelo caminho e esta árdua caminhada. A Ele, toda a
Glória hoje e sempre. Amém.
Ao pessoal de Martins, Melo e Fernandes Advogados Associados pela
imensa paciência que tiveram em relação à situação de escrita de um Trabalho de
Conclusão de Curso, especialmente ao Dr. Laumir Correia Fernandes, cujo apoio foi
essencial à conclusão desta empreitada.
Aos amigos de longa data, os quais caminham comigo por pelo menos
metade do meu tempo de vida até hoje, pelo interesse pelo tema e os constantes
incentivos nos momentos difíceis enfrentados recentemente, assim como pela boa
companhia de sempre.
À família, especialmente às figuras extremamente importantes da
minha mãe, Sandra Maria Souza de Alcaniz, sem quem eu com certeza não estaria
nesse estágio do Curso, e pela paciência com que lidou com a chatice deste filho
seu, de Seu Nivardo Everton de Alcaniz, meu querido avô, cujos conselhos e
palavras de alento sempre estiveram presentes na minha vida, de Dona Sônia Maria
Tertuliano dos Santos, minha querida avó, pelo constante apoio e interesse na
minha vida acadêmica e Rossana Carla Tertuliano dos Santos Araújo, minha mais
que querida tia, pelo jeito endurecido, mas sem perder a ternura jamais, e as
cobranças saudáveis por boa produção acadêmica.
E, finalmente, ao corpo docente desta Universidade Federal do Rio
Grande do Norte pelo nível da educação oferecida nesta instituição, especialmente
ao professor Paulo Renato Guedes Bezerra pela solicitude com a qual atende aos
seus alunos e ao meu orientador, professor Otacílio dos Santos Silveira Neto, pela
extrema paciência e pelas orientações e correções no decorrer deste trabalho.
A todos vocês, meus mais sinceros agradecimentos.
RESUMO
O serviço essencial de fornecimento de energia elétrica tem ganhado cada vez mais
importância em razão das inovações tecnológicas que demandam cada vez mais
deste serviço. O serviço deve ser contínuo para a população. É feito um histórico
sobre a evolução das atividades prestacionais do Estado. É dado, ainda, um
conceito de serviço público, além de ser feita uma análise sobre o ordenamento
jurídico da energia elétrica. Após, constatamos que não existe fundamento legal
para a proibição da suspensão do fornecimento por inadimplemento do usuário,
assim como existe um equívoco na aplicação absoluta do art. 22 do Código de
Defesa do Consumidor. Além disso, a proibição é uma ameaça ao equilíbrio
econômico-financeiro da concessão, comprometendo, a longo prazo, a própria
continuidade do serviço.
Palavras-chave: Energia Elétrica; Serviço Público; Princípio da Continuidade;
Equilíbrio Econômico-financeiro da Concessão; Suspensão.
ABSTRACT
The essential service of electricity supply has increasingly gained importance as a
result of technological innovations that demand more and more of this service. The
service must be continuous to the population. It is made a historic study on the
evolution of activities of the State. It is given, yet, a concept of public service, in
addition to being made an analysis on the legal system of the electric energy. After,
we note that there is no legal basis for banning the suspension of supply by non-
payment of the user, just as there is a misconception in the absolute application of
article 22 of the Consumer Defense Code. In addition, the ban is a threat to the
economic-financial balance of the concession, compromising the long-term continuity
of service itself.
Keywords: Electric Energy; Principle Of Continuity; Economic-financial balance of the
concession; Suspension.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 12
2 CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO ................................................................................. 14
2.1 DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS FUNÇÕES DO ESTADO ......................................... 14
2.2 O DO CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO .................................................................... 23
2.2.1 O ELEMENTO DA NECESSIDADE ................................................................. 24
2.2.2 O ELEMENTO POLÍTICO/ELEITORAL ........................................................... 24
2.2.3 O ELEMENTO JURÍDICO ................................................................................ 25
2.2.4 O QUE É SERVIÇO PÚBLICO ........................................................................ 27
3 A REGULAÇÃO DO RAMO DA ENERGIA ELÉTRICA NO BRASIL ........................ 30
3.1 O ORDENAMENTO JURÍDICO DA ENERGIA ELÉTRICA ............................................. 30
3.1.2 DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS SOBRE O SERVIÇO PÚBLICO DE ENERGIA
ELÉTRICA ............................................................................................................................. 31
3.1.2.1 O ART. 20, VIII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ......................................... 31
3.1.2.2 O ART. 22, XII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL .......................................... 31
3.1.2.3 O ART. 22, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ........................................... 33
3.1.2.4 OS ARTS. 175 E 176, §1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ........................ 33
3.1.2.5 A LEI DE CONCESSÕES DE SERVIÇOS PÚBLICOS (8.987/95) ............... 34
3.1.2.6 A LEI DA ANEEL (9.427/96) ......................................................................... 37
3.1.2.7 O ART. 22 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR .......................... 38
3.1.2.8 A RESOLUÇÃO NORMATIVA 414/2010 DA ANEEL ................................... 39
4 OS ASPECTOS JURÍDICOS DA PERMISSIBILIDADE DA SUSPENSÃO DE ENERGIA ELÉTRICA POR INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO: CONTROVÉRSIAS LEGAIS E JURISPRUDENCIAIS SOBRE A PERMISSIBILIDADE DA SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA POR INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO ........................................................................................................................................ 40
4.1 O ASPECTO LEGISLATIVO: INTERPRETANDO O “ORDENAMENTO JURÍDICO DA
ENERGIA ELÉTRICA” ........................................................................................................................ 41
4.2 O ASPECTO JURISPRUDENCIAL ................................................................................. 47
5 O ASPECTO ECONÔMICO DA SUSPENSÃO (OU DA CONTINUIDADE ABSOLUTA) DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA POR INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO ........................................................................................ 56
5.1 SOBRE A CULTURA DO CALOTE ................................................................................. 57
5.1.1 O QUE É CULTURA DO CALOTE? ................................................................ 57
5.1.2 A CULTURA DO CALOTE FERE O ORDENAMENTO JURÍDICO E O EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DA CONCESSÃO E PREJUDICA A CONTINUIDADE DO
SERVIÇO EM ÂMBITO COLETIVO ................................................................................................... 59
5.1.3 O NÃO PAGAMENTO COLETIVO DA TARIFA DE ENERGIA ELÉTRICA PODE LEVAR AO COLAPSO DO SISTEMA E DAS CONCESSIONÁRIAS DO SERVIÇO DE DISTRIBUIÇÃO DESTE SERVIÇO
............................................................................................................................................................. 60
6 CONCLUSÃO ............................................................................................................................. 64
7 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................... 66
12
1 INTRODUÇÃO
Vivemos num tempo em que cada vez mais a energia elétrica é
importante para a interdependência social. Porém, o povo brasileiro sempre se
mostrou não cumpridor de suas obrigações contratuais. Tendo isso em vista, é mais
do que comum ver os índices de inadimplência subindo ano a ano, como é possível
de verificar nos jornais televisionados e escritos.
Com as faturas de energia elétrica não é diferente. O que torna esse
caso tão especial é que, além das sanções de crédito já conhecidas, o consumidor-
usuário deste serviço fica impossibilitado de utilizar-se do serviço público essencial
de energia elétrica.
O que acontece é que existe uma celeuma processual corrente no
Poder Judiciário brasileiro acerca da possibilidade ou proibição da suspensão do
fornecimento de energia elétrica por parte da distribuidora. Uma corrente diz que
esse fato é possível e comum; outra diz que não deveria acontecer.
Cada uma destas correntes tem seu fundamento. A primeira se
fundamenta na aplicação absoluta do art. 22 do Código de Defesa do Consumidor,
que trata da continuidade do fornecimento do serviço ao consumidor, combinado
com o art. 42 do mesmo diploma legal, no sentido de que a suspensão do
fornecimento de energia elétrica atinge a dignidade da pessoa humana, expressa no
art. 1º da Constituição Federal e é um meio de cobrança de débitos que extrapola a
legalidade, além de desrespeitar o devido processo legal. Já a segunda toma como
fundamento a não aplicação absoluta do primeiro dispositivo citado, assim como a
necessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro da concessão para
o bom funcionamento do serviço público, de forma a garantir a continuidade coletiva
da sua prestação.
Utilizou-se, para perseguir a finalidade do trabalho, que é a de
contribuir para o debate vigente sobre o tema, pesquisa bibliográfica nas áreas de
direito administrativo – especialmente a legislação atinente aos serviços públicos –,
constitucional e das relações de consumo, além de uma análise econômica sobre as
consequências sobre o sistema concessionário da proibição da suspensão do
13
serviço pelo inadimplemento. Além disso, houve consulta jurisprudencial e o uso da
experiência do autor enquanto funcionário de mais de dois anos de um escritório de
advocacia que presta serviços de assessoria jurídica para a Companhia Energética
do Rio Grande do Norte, assim como a análise dos diplomas legais específicos
concernentes à matéria, como a Lei da ANEEL, a Lei de Concessões, e a Resolução
Normativa número 414/2010 da ANEEL, dentre outros.
Não nos preocuparemos, porém, em analisar todas as possibilidades e
tipos de consumidores e de inadimplementos. Neste trabalho, nos ocuparemos em
analisar o caso mais comum de todos eles: o inadimplemento do consumidor
residencial ordinário.
Assim, demos início aos trabalhos e à análise de um tema tão
intrigante como é a suspensão do serviço público pelo inadimplemento do usuário
individual.
14
2 CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO
2.1 DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS FUNÇÕES DO ESTADO
A humanidade se construiu a partir de inúmeras células
organizacionais distribuídas pelo globo, mas principalmente ao redor de rios, lagos e
montanhas. A essas células se deu o nome de tribos, as quais se desenvolveram,
tornando-se, então, cidades, que se organizaram de forma a dar atribuições a cada
um dos que nela moravam, de forma a maximizar a produção e dar mais efetividade
à execução das tarefas.
Porém, a própria sociedade não se governaria nesses moldes, o que
trouxe a necessidade de fundar uma instituição capaz de gerir os recursos e
administrar a coisa pública, confeccionar normas de convivência comum, decidir
conflitos entre particulares, organizar a força militar, estimular o comércio etc.
É nesse contexto que surge a figura do Estado. Este tinha,
inicialmente, as funções delineadas acima. Como toda instituição, é dotado de
lideranças, corpo próprio, administração própria, e tem poder acima dos
administrados. No fim das contas, a função do Estado era promover a convivência
harmônica dos cidadãos.
Com o passar dos anos e o surgimento de mercadores particulares,
assim como a criação da moeda, o Estado, além de ter encontrado alguma moeda
de troca que todos aceitassem1, e que fosse fácil e mais seguro de transportar,
criou-se, ainda, uma nova função estatal: a de cunhar moedas, fazê-las circular e,
também, evitar que essas fossem adulteradas, fiscalizando a atividade comercial e
punindo quaisquer produtores paralelos das peças.
1 Lembrando, aqui, que, no princípio da construção das sociedades coletivas, as trocas de mercadorias se davam através da permuta de uma pela outra, o que dificultava tanto o fechamento de pequenos e grandes negócios quanto o transporte de valores, dado o risco alto de assaltos e saques ocorrentes nas mais primitivas estradas já feitas.
15
Porém, mesmo com todo esse poder, ainda faltava o aprimoramento da
técnica legislativa do Estado. Tendo isso em vista, trouxe o antigo Rei Hamurabi ao
seu reino o primeiro código de leis escritas da humanidade, conhecido, hoje, como
Código de Hamurabi, na tentativa de impor ordem nas relações sociais entre
particulares. Na Grécia, milênios depois, Dracon e Sólon trouxeram codificações
distintas, enquanto, em Roma, destaca-se a Lei das 12 tábuas como grande
documento jurídico da antiguidade.
É, também, em Roma onde se dá o início de algo parecido com a
atividade prestacional do Estado que conhecemos hoje em dia, havendo uma
diferenciação entre a coisa de utilidade pública e a coisa de utilidade privada. As
instituições de caráter público já tinham poder de constrangimento de conduta sobre
os particulares naqueles tempos para que a res publica fosse mantida. Ensina-nos
Aragão (2013, p. 26-27) que “a cidade romana era dotada de serviços destinados
particularmente a garantir a segurança, as subsistência, a higiene e a saúde, o que
levou à construção de infraestruturas como aquedutos, esgotos, iluminação de ruas,
termas, celeiros, hipódromos e arenas”.
Mais à frente, com o passar dos anos e o fim da era romana por volta
do ano 476 d.C., e a instauração do sistema feudal na Europa ocidental, surgiu um
serviço que mais se traveste de utilidade pública. Tratamos, aqui das banalidades
feudais, que eram equipamentos de uso obrigatório tais como moinhos, fundições,
fornos, secadores de peixes, dentre outros equipamentos necessários para o
desenvolvimento das atividades econômicas do feudo, cujo domínio estava com o
seu senhor, mas que, mediante pagamento de uma taxa, eram fornecidos aos
servos do local. Nesse acordo, o dono das banalidades permitia o uso das
ferramentas e assumia a obrigação de dar manutenção aos equipamentos, assim
como garantir o acesso a todos ao que fosse necessário para as atividades
cotidianas. Os servos, por sua vez, estavam proibidos de possuírem equipamentos
próprios ou de utilizarem os de outro senhor. Temos, daí, que já existiam algumas
relações de direitos análogas às que temos hoje, a saber: o direito de continuidade,
pelo qual o senhor feudal era obrigado a manter suas ferramentas em condições de
uso contínuo (e necessário), assim como o direito de igualdade entre todos os
16
servos de acesso às ferramentas de trabalho, já que nenhum deles poderia ter
ferramentas próprias, assim como a igualdade na taxação, para que não houvesse
acepção entre eles.
Passando um pouco adiante, temos que, no período que compreende o
ano 1453 (a queda de Constantinopla) até o ano 1789 (ano em que se iniciou a
Revolução Francesa), com o fim do regime feudal descentralizado de governo
universal outrora implantado pelas circunstâncias decorrentes da queda de Roma
para os hérulos, e o consequente surgimento do que conhecemos hoje como Estado
Absolutista, assim como o surgimento das cidades na forma hoje conhecida,
podemos destacar duas características: o Estado podia concorrer com a iniciativa
privada sem qualquer tipo de restrição, e a inversão da ideia de serviço público. Ao
invés de um serviço que visasse o suprimento de uma necessidade coletiva, passou-
se a uma concepção de um serviço que suprisse as necessidades da Coroa em si.
Assim, sabe-se que as atividades prestacionais do Estado. Pastor (2000, pg. 301)
nos ensina que essas atividades “eram levadas a cabo mais com espírito limitador e
coativo que serviçal; com elas não se pretendia tanto proporcionar utilidades aos
súditos, mas sim servir às necessidades da monarquia ou do aparato estatal”.
Mas existe outro ponto a ser analisado, ainda que brevemente, é o
caráter religioso/espiritual que o serviço público assumiu nessa época. Como vimos,
o Estado esqueceu-se de que o serviço prestado por ele deveria atingir o bem
comum e de suprimento das necessidades da coletividade, esta formada pelos
súditos. Assim, a Igreja assumiu o papel de promover o bem comum antes
esquecido pelo aparato estatal. Com a influência de São Tomás de Aquino, dentre
outros teólogos católicos2, as atividades de assistência social passaram a ser feitas
pela instituição religiosa, tendo em vista que o bem comum transcendia o jurídico e
sua persecução passava a ser um dever moral da sociedade cristã da época.
2 Lembrando, aqui, que todos os Estados da Europa ocidental foram fundados enquanto ainda dominados pela Igreja de Roma, enquanto o leste europeu já estava, desde o Século XI, seguindo a Igreja Cristã Ortodoxa. A Reforma Protestante somente aconteceria somente no Século XVI através de Úlrico Zwinglio (1516-22), Martinho Lutero (1517) e, posteriormente, João Calvino (1536). A Igreja Católica, ainda hoje, prega a feitura de obras (tais como a caridade e a busca pelo bem comum) como elementos essenciais à salvação da alma. Por esse motivo é que a Igreja de Roma teve que tomar as rédeas de serviços que tinham como finalidade o bem da coletividade.
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Passando um pouco mais à frente, temos o advento da Guerra Civil
inglesa (1642-51) e, como consequência, o Estado liberal decorrente da nova forma
de governo inglês, vemos que os ditos direitos fundamentais de primeira geração3
começaram a surgir. Além disso, o desenvolvimento maciço e contínuo em serviços
de infraestrutura (estradas, meios de transporte e de comunicação, desapropriações
para a instalação de redes de energia elétrica anos depois) ajudaram a desenvolver
a economia do país de forma jamais vista anteriormente. Com o tempo, aquelas
atividades assistenciais outrora executadas pela igreja católica e, depois da
Reforma, pelos protestantes, passaram a ser exclusiva dos Estados, estando
aqueles proibidos de fornecê-los aos miseráveis, enfermos e idosos. Os serviços,
porém, não eram universais, nem tinha o Estado o escopo de fornecê-los dessa
forma. Eram mais serviços de forma a efetuar benesses em esferas individuais. Daí
o surgimento dos serviços de prestação individual (uti singuli).
Com isso, sabemos, que eram basicamente três as atividades
prestacionais do Estado4: a) funções típicas, desde sempre exercidas; b) as de
cunho assistencial, mas ainda não titularizadas, direcionadas exclusivamente aos
miseráveis; e c) atividades de cunho econômico. Estas últimas sempre em
discussão, como ainda estão no dia de hoje, tendo em vista que atividades de cunho
estritamente econômico geram lucro, e se argumentava, à época, que essas
atividades deveriam ser exercidas somente pela iniciativa privada5.
Já no tocante às atividades sociais exercidas pelo Estado, Pastor
(2000, p. 302) ensina que:
“a falta de tradição de sua prestação pelo estado fez com que não fossem
consideradas, em sentido estrito, como atividades públicas: sua prestação
pela Administração Pública deveria a suprir a ausência da iniciativa privada;
por isso, o Estado não se atribuiu a titularidade delas, nem o monopólio na
sua prestação, admitindo que também pudessem ser prestadas por sujeitos
privados”.
3 Ultimamente chamados de direitos fundamentais de primeira dimensão. 4 Para ver esse tema mais detalhadamente: ARAGÂO, Alexandre Santos de. DIREITO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS. Rio de Janeiro: Forense, 2013. 3 ed. 5 E, com o advento do neoliberalismo, essa ideia voltou à tona com força máxima.
18
Porém, com o passar dos anos, novas necessidades surgiram e, com
isso, a necessidade de ação estatal em novos campos da vida comum, sendo, desta
vez, ainda na economia, o desenvolvimento do progresso da atividade econômica
para contribuir com o progresso da nação. Essas necessidades, portanto,
significavam que o Estado deveria atuar prontamente dentro desses campos
(especialmente com a Revolução Industrial de 1750), notadamente na atividade
industrial, que era, então, o carro-chefe da economia moderna europeia ocidental.
Dessa forma, necessidades como ferrovias, rodovias6, eletricidade,
gás, telefone, dentre outras, surgiram e necessitavam de desenvolvimento de forma
a desenvolver a economia, assim como facilitar as comunicações e o deslocamento
de pessoas pelo território. Por isso, o exercício dessas atividades precisou ser
retirado do rol de atividades da iniciativa privada, do âmbito da liberdade econômica
e de mercado, já que havia interesse público7 na sua exploração.
Mas havia um problema com essa nova concepção de que tais
atividades deveriam ter um caráter público: o Estado era, sempre foi, como ainda
hoje é, inapto e inadequado para o exercícios de atividades claramente econômicas,
ainda que de interesse geral. Dessa forma, a noção de interesse público de
atividades econômicas, conforme foram supracitadas, foram contornadas por dois
artifícios teóricos ainda hoje utilizados, a saber: a concessão da atividade, mantendo
a sua titularidade com o Estado, mas passando a sua execução para terceiros, e o
emprego de noções do Direito Civil de propriedade imobiliária e de acessão sobre
bens imóveis de propriedade pública. Dessa maneira, o Estado continuava na posse
do bem (como estradas e águas, por exemplo), mas permitindo que particulares
explorassem o que havia de ser explorado economicamente deles, cabendo àquele
apenas a regulação da atividade exercida8.
O tempo passa e o advento de um novo elemento da vida política
haveria de mudar, como nada havia mudado antes, os rumos do Estado, tanto nas
6 Apesar de existirem por milhares de anos, somente no Século XIX é que ela virou alvo de interesse econômico por parte do Estado, com a necessidade de melhorias na interligação entre cidades e províncias, com fins de aprimoramento da circulação de mercadorias dentro de dado país, e não mais somente de pessoas como provavelmente era feito até a época. 7 Nas duas acepções da palavra: tanto o interesse geral da população quanto do Estado. 8 Cf. ARAGÃO, Ob. Cit., pg. 35.
19
suas atividades administrativas habituais, como o exercício do poder de legislar, de
executar a legislação e de prover os meios coercitivos através dos quais a execução
dessa legislação é assegurada, quanto na vida econômica em geral. A esse
elemento damos o nome de sufrágio universal. A partir do seu surgimento, o cidadão
comum, antes sem direito de voto9, necessitando, portanto, de comprovação de
condição econômica satisfatória para adquirir esse direito, passa, agora, a ser titular
do poder de decidir quem os irá representar perante os órgãos legislativos e
executivos.
Com isso, os fins do Estado se alteram, assim como os da prestação
dos seus serviços: o que era antes visto apenas como uma forma de evitar que
moribundos e mendigos inconvenientes entupissem as ruas das grandes cidades
passa a ser direito de todos, porque o Estado, agora, passa a trabalhar não somente
em função da economia, como era nos tempos do voto restrito à burguesia, mas sim
em função de toda a nação, como é até hoje.
Com a intensificação desse contexto e o espalhamento da ideia de
sufrágio universal e de democracia, juntamente com a queda das monarquias russa
e alemã, em 1917 e 1918, respectivamente, e o fortalecimento da democracia na
Europa, assim como os eventos que levaram ao crash da bolsa de valores de Nova
Iorque, em 1929, culminando com o fim da Segunda Guerra Mundial, terminada com
a rendição japonesa em 2 de setembro de 1945, surge, no contexto ainda da
reconstrução europeia, o famigerado welfare state, cuja função precípua é prover
aos cidadãos, antes relegados a um segundo plano, condições de vida dignas e
serviços públicos eficientes e universais.
De um ponto de vista menos histórico e mais jurídico, devemos anotar
que a grande característica dos Estados nacionais ao longo desse período,
continuando até hoje, é a adoção de constituições compromissórias, também
chamadas de pragmáticas. Novelino (2009, p. 113) ensina que
9 Lembrando, aqui, que, antes, como aconteceu nos anos do Império aqui no Brasil, o sistema eleitoral era executado através do sufrágio censitário, pelo qual somente quem percebesse uma renda mínima estipulada pelo Estado durante o período de tempo também por este estipulado teria capacidade de votar e de ser votado.
20
“a constituição programática (diretiva ou dirigente) se caracteriza por conter
normas definidoras de tarefas e programas de ação a serem concretizados
pelos poderes públicos. As constituições dirigentes têm como traço comum
a tendência, em maior ou menor medida, a serem uma constituição total10.
Porém, mesmo com o caráter meramente dirigente dessas
constituições, o surgimento do Estado de bem-estar social foi caracterizado pela
forte intervenção econômica, com participação direta do Estado na economia,
especialmente através do recuo do instituto das concessões anteriormente descrito,
com grande atuação da Administração indireta em atividades antes concedidas a
terceiros11, inclusive exercendo monopólio em algumas delas.
Isso tem, contudo, um motivo. Conforme vimos acima, o Estado, com o
estabelecimento do sufrágio universal, deu ao cidadão comum a capacidade de
mudar os rumos da vida e da política do país, mas não somente isso: também o
tornou destinatário dos serviços públicos antes prestados apenas de forma
secundária pelo Estado. Com a pressão social por melhores serviços, especialmente
porque, antes, os usuários ficavam à mercê das empresas prestadoras, agora,
esses serviços passam a ser a coluna da atuação estatal perceptível na sociedade.
Temos, ainda, que o crescimento do sentimento de nacionalismo (especialmente
nos países que se tornariam fascistas) e a rejeição ao que é de fora (caso da
rejeição a multinacionais, por exemplo) elevou os serviços públicos a atividades
estratégicas de interesse público nacional.
O outro fator é destacado por Aragão (2013, p. 41-2):
“Merece também menção como uma das causas da gestão direta pelo
Estado de uma série de serviços públicos a constatação de que era ele que,
em razão do interesse público na continuidade da atividade, sempre
acabava cobrindo os prejuízos das concessionárias. Ora, se era assim,
10 NOVELINO, Marcelo. DIREITO CONSTITUCIONAL. São Paulo: Método, 2009, 3ª ed, p. 113. 11 No Brasil, isso veio a acontecer de forma contundente durante os períodos de Getúlio Dornelles Vargas na presidência da República. Nessas épocas intercaladas foram fundadas a Companhia Siderúrgica Nacional (1941), a Vale do Rio Doce (1942), a Fábrica Nacional de Motores (1942), a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (1945), e a que é considerada pela população, à exceção do Banco do Brasil (1808), a maior joia do país: a Petrobras (1953).
21
melhor que o Estado gerisse logo o serviço e pelo menos auferisse, ele
próprio, os eventuais lucros”.12
Conforme vemos, a atividade prestacional do Estado sofreu uma
grande alteração de forma a abarcar, também, as necessidades e interesses dos
populares em geral. Temos, a partir daí, que serviço público é, também, serviço
essencial13.
Porém, a continuidade desse modelo ficou gravemente ameaçada
especialmente a partir da década de 80. É que, com o crescente gasto com a
máquina pública prestadora de serviços gerais e particulares, e a concorrente
diminuição da reposição de mão-de-obra, de maneira a esta se tornar escassa em
relação ao número de assistidos (especialmente quando se toca no assunto de
previdência social), acarretando, com isso, uma menor contribuição em relação ao
peso de assistidos dentro de alguns países. Some-se a isso o fato de que essas
atividades prestacionais não traziam lucro como regra. Conforme foi dito acima,
lucros somente aconteciam de forma eventual. Geralmente, o Estado, ainda que
assumisse a prestação de serviços públicos, ainda assim teria que arcar com os
prejuízos do exercício da sua titularidade.
Tendo isso em vista, ocorreram imensos déficits fiscais pelo globo
terrestre decorrentes de anos de prestação de um conjunto de serviços que não
traziam qualquer retorno financeiro ao Estado, provando que o pensamento outrora
considerado correto, na verdade, somente trouxe uma ainda maior oneração à
máquina pública. Ainda temos, na mesma época, a “vitória” dos Estados Unidos de
12 Talvez tenha sido esse o principal fator para ter-se tirado das mãos dos particulares a prestação de alguns serviços públicos e de certas atividades econômicas como a exploração de petróleo, por exemplo. Esse pensamento é compartilhado por André Buttgenbach em THÉORIE GÉNÉRALE DES MODES DE GESTION DES SERVICES PUBLICS EN BELGIQUE, Bruxelas: Maison Ferdinand Larcier S.A., 1952, p. 404. Se fizermos uma breve análise econômica deste fator, vamos ver que, embora o Estado assumisse uma atividade para a qual ele não tem aptidão, onerando ainda mais a máquina pública, seria melhor gerir o serviço para nele aplicar os seus princípios constitucionais, assim como utilizar-se dele para os fins eleitorais a que os serviços poderiam se dispor se bem prestados. Temos, ainda, e, principalmente, a necessidade de reduzir os gastos gerados pelo amortecimento dos prejuízos da iniciativa privada, assim como é possível, como é o caso da exploração de atividades econômicas, a exemplo do fornecimento de energia elétrica, objeto de estudo deste trabalho, auferir alguma receita extrafiscal com o serviço cuja prestação o próprio Estado é titular. Seria, pois, naquele momento, mais vantajoso para o Estado ele mesmo prestar o serviço do que concedê-lo a terceiros que lhe trariam problemas. 13 Associação de termos e conceitos da qual discordamos.
22
Reagan e Bush na Guerra Fria e a revolução econômica liderada por Margaret
Thatcher no Reino Unido, ambos utilizando um novo modelo de Estado que prometia
trazer uma nova roupagem e revitalizar a prestação dos serviços públicos conforme
eram conhecidos à época, assim como vencer a recessão econômica pela qual o
mundo passara desde a Crise do Petróleo iniciada em 1973.
Nesse contexto surge o Estado neoliberal, o qual restaurou a liberdade
de iniciativa e de mercado, a qual estava sufocada pelos últimos cinquenta anos.
Nesse modelo, o Estado atuaria mais como um regulador/espectador do mercado e
da liberdade no exercício da atividade comercial do que um agente direto neste.
Porém, a prestação, pelo próprio ente estatal, de serviços públicos não poderia ser
abandonada completamente, especialmente em países periféricos (como o nosso),
dado o caráter eleitoral adquirido por aqueles com o passar dos anos. Com a criação
do sufrágio universal, a necessidade de apaziguar os ânimos da parcela da
população que não estava incluída na fatia censitária do povo a quem dantes
pertencia a exclusividade do poder de voto e, consequentemente, a eleição de
membros dos poderes legislativo e executivo se tornou manifesta, de forma que a
qualidade do serviço serve, agora, como propaganda para a aquisição de votos em
cada pleito eleitoral. Dessa forma, a necessidade de prestação de serviços públicos
por parte do Estado se torna algo irreversível.
Assim, a partir da década de 1980 (intensificando-se na década de
1990), o Estado brasileiro começou a vender suas empresas públicas, seguindo,
com isso, a “moda” iniciada nos países a adotar a política neoliberal primeiramente.
Dentre essas empresas estão algumas que exerciam atividade econômica em
sentido estrito, assim como outras que exerciam serviços públicos14.
É importante, ainda, ressaltar que a Constituição Federal de 1988,
sendo pródiga em concessão de direitos e imensamente abrangente em número de
14 É válido mencionar, aqui, o grande caso de privatização de empresa pública no Rio Grande do Norte: a COSERN. Esta empresa teve 77,92% do seu capital total comprado pelo consórcio pela COELBA, Guaraniana (antiga denominação do Grupo Neoenergia) e UPTICK Participações, no dia 12 de dezembro de 1997, por meio de leilão público realizado na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, pelo valor à época de R$676,4 milhões de reais. Fonte: <http://siteempresas.bovespa.com.br/consbov/VisualizaArquivo.asp?protocolo=145981&funcao=download&Site=C>, página 18, acesso em 04/03/2014.
23
temas, trouxe a questão dos serviços públicos a nível constitucional, conforme
veremos mais à frente, em capítulo próprio para isso.
Tendo terminado esse passeio pela histórico das funções do Estado,
essencial para a compreensão do que significa o serviço público, partiremos, agora,
para o estudo do que é serviço público e das questões concernentes à definição
deste conceito.
2.2 DO CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO
Vimos no subitem anterior como as atividades prestacionais do Estado
foram se desenvolvendo no decorrer da história. É chegada a hora de vermos o que
é o serviço público.
De início, temos que entender que esse conceito tem sido construído
de formas diferentes através de toda a história. Conforme vimos no subitem acima,
as atividades do Estado e a sua importância e nível de envolvimento nas diferentes
camadas da vida social tem sido alterada constantemente.
“O conceito de serviço público, dadas as múltiplas realidades a que se
refere, se reveste de imprecisão; daí decorrem as inúmeras divergências
doutrinárias sobre sua correta significação” (SCARTEZZINI, 2006, pg. 22). Sabemos
que é um conceito construído de acordo com a realidade de cada país, de forma a
mover a ação estatal no sentido de suprir uma necessidade de uma dada localidade
em um certo período de tempo.
Mas, apesar da imprecisão do conceito em si, é possível termos
algumas certezas sobre os elementos que rodeiam a sua elaboração, sobre os quais
discorreremos neste subitem. São os elementos, a saber: o da necessidade, o
político/eleitoral e o jurídico.
24
2.2.1 O ELEMENTO DA NECESSIDADE
Para podermos falar do primeiro deles – a necessidade –, temos,
primeiro, que conceituá-lo, a fim de definirmos a forma que ele afetará o conceito
final de serviço público. De Plácido e Silva (2010, pg. 533) nos ensina que:
“Com origem análoga a necessário, do necesse latino, do que proveio
necessarius e de que se formou necessitas (necessidade), revela o
vocábulo o sentido de condição indispensável, inevitabilidade, força
indispensável, inevitabilidade, poder indeclinável. Nesta acepção, portanto,
a necessidade que se gera de imposições ou predeterminações, a que não
se pode fugir, é superior à vontade humana”.
Temos, portanto, que necessidade é a condição de imprescindibilidade
que algo toma para si, por um motivo ou por outro. Podemos tomar como exemplo a
necessidade humana de beber água, a qual é imprescindível para a manutenção da
vida em qualquer organismo, desde plantas até nós, seres humanos. Nesse sentido,
o serviço público tem um caráter de necessidade, não somente pelo aspecto político
sobre o qual foi dissertado anteriormente, mas também porque, sem ele, a vida de
uma dada sociedade não pode correr de forma normal, porque o conjunto fático
desenhado através da história mostra que, no momento presente, uma determinada
sociedade depende dele, que é imprescindível, ou seja: existe uma necessidade em
torno do serviço público, sem o qual a manutenção da vida de uma determinada
sociedade em um determinado espaço de tempo não poderia continuar.
2.2.2 O ELEMENTO POLÍTICO/ELEITORAL
O segundo aspecto diz respeito somente àquelas questões que tornam
o serviço público algo de caráter político/eleitoral. Conforme foi discorrido acima, o
advento do sufrágio universal deu ao serviço público um caráter diferente, capaz de
25
determinar o rumo de um país para um lado ou para o outro. É que a medida de
satisfação alcançada por um governo é dada através da qualidade dos serviços
públicos oferecidos, especialmente na relação custo-benefício. Não é incomum ver
propagandas partidárias referentes ao quanto o Governo tem interferido na
execução desses serviços como forma de angariar votos nas próximas eleições.
Apesar de o Estado mover a sua máquina de forma a fiscalizar o fornecimento do
serviço à população para que haja a certeza de que tudo está dentro do que deve
estar, existe um fundo eleitoral nisso.
Conforme nos ensina Dinorá Grotti (2003, pg. 87):
“Cada povo diz o que é serviço público em seu sistema jurídico. A
qualificação de uma dada atividade como serviço público remete ao plano
da concepção do Estado sobre seu papel. É o plano da escolha política, que
pode estar fixada na Constituição do país, na lei, na jurisprudência e nos
costumes vigentes em um dado tempo histórico”.
Como podemos ver, a roupagem política do serviço público também
está na decisão do que deve ou não ser considerado como tal. Assim como o as
circunstâncias decidem que o nosso corpo precisa de água, somente este sabe o
momento em que devemos fornecê-la a ele e nos dá sinais para que forneçamos o
líquido para mantê-lo funcionando. A decisão de fornecê-lo, porém, cabe à mente,
onde todas as decisões referentes ao corpo são tomadas. Acontece da mesma
forma com a necessidade do serviço. A necessidade existe, é manifesta, mas
somente uma ação política é capaz de tomar medidas para suprir essa necessidade.
2.2.3 O ELEMENTO JURÍDICO
O terceiro aspecto nos traz a noção de que o serviço público e o seu
fornecimento, nas suas inúmeras formas, está dentro do conjunto dos fatos jurídicos,
tendo em vista que normas incidem sobre ele. Esse é o aspecto mais importante e,
por isso, deter-nos-emos por um pouco mais de tempo nele.
Ensina-nos o professor Celso Antônio Bandeira de Mello (2011, pg.
682) que:
26
[...] “a noção de serviço público há de se compor necessariamente de dois
elementos: (a) um deles, que é seu substrato material, consistente na
prestação de utilidade ou comodidade fruível singularmente pelos
administrados; o outro (b) traço formal indispensável, que lhe dá justamente
o caráter de noção jurídica, consiste em um específico regime de Direito
Público, isto é, uma unidade normativa”.
Estar dentro de um regime jurídico de Direito Público significa que certa
atividade deve ser regida de acordo com princípios imperativos, incluídos dentro da
própria Constituição ou, através da atividade hermenêutica, extraídos do seu texto,
ainda que não explícitos. Esse sistema direciona a atividade estatal, especialmente
no fornecimento de serviços universais, mas também de fruição singular por parte
dos administrados.
Porém, não devemos esquecer que o substrato material é essencial
para a elevação dos serviços públicos ao status de essencial. Temos que observar
que ele é composto pelo fornecimento, aos administrados, de utilidades e
comodidades materiais, em um determinado espaço e a um determinado tempo,
sem as quais a vida em sociedade estaria seriamente comprometida. Daí dizer-se
que esses serviços são necessários. Temos, como exemplo, o fornecimento de
água, de energia elétrica, de telecomunicações, dentre outros. Essas atividades são
tão importantes que o Estado as assume como próprias15, porque existe um
interesse social e universal relevante sobre esses serviços, de forma a levantar a
atenção do ente governamental para assegurar o seu fornecimento com qualidade e
continuidade.
Falando sobre a atividade estatal da prestação dos serviços públicos,
ensina-nos Celso Antônio Bandeira de Mello (2011, pg. 683) que é “por isso que as
presta sob regime de Direito Público, diretamente ou através de alguém por ele
qualificado para tanto”. E isso é tão importante que foi colocado na Constituição
Federal de 198816. Assim, temos que o serviço público está regido por normas, dada
a sua importância para a vida comum, e é regido por princípios norteadores da sua
prestação e da interpretação das normas que sobre eles incidem.
15 Cf. MELLO, Ob. Cit., pg. 683. 16 Vide o art. 175 da Constituição Federal, sobre o qual se falará melhor em momento oportuno.
27
Mas o que define o que é serviço público? Vemos que o Estado dá a
definição sobre o que é ou não serviço público. Tendo em vista o caráter essencial
desse tipo de atividade prestacional do Estado e a omissão legislativa sobre a
definição do que é ou não serviço público, um breve trabalho hermenêutico deve ser
feito para definir o que é, para o ordenamento jurídico pátrio, serviço público ou não.
Tendo isso em vista, é possível encontrar no art. 22 do Código de
Defesa do Consumidor tratando que os serviços definidos como públicos devem ser
contínuos, da mesma forma que o art. 9º, §1º, da Constituição Federal, ao tratar do
direito de greve, determina que a lei deverá definir quais são os serviços
essenciais17. Essa regulação veio com a lei número 7.783/89, a qual, em seu art. 10,
determina o que é serviço essencial. A jurisprudência pátria tem aceitado o uso
dessa lei para fins de determinar se um serviço é essencial ou não.
Com isso, podemos não ter um conceito definido de serviço público
que perdure pela eternidade, mas podemos, com toda a certeza definir que tipo de
atividade é ou não serviço público.
Passando a diante, e tendo em vista as considerações até aqui feitas,
vamos passar a noção de serviço público.
2.2.4 O QUE É SERVIÇO PÚBLICO
Tomadas as informações anteriormente passadas, vejamos, então, o
que é serviço público.
Vimos que essa noção é formada através de milhares de anos da
história da humanidade, desde a própria criação do Estado até os dias de hoje,
percorrendo mais de seis mil anos da história escrita. Conforme já foi dito, o serviço
público tem um interesse igualmente público, tendo em vista uma necessidade
coletiva de determinados serviços, a qual é determinada de acordo com a
17 Devemos sempre nos lembrar de que a definição do que é necessário e essencial a uma sociedade é feita de acordo com aquilo que é necessário e essencial a um certo tempo, variando de localidade a localidade. Daí a dificuldade que existe em dar um conceito sólido de serviço público, tornando-se mais fácil listar uma série de atividades que caracterizem o serviço público e essencial.
28
construção tecnológica e o nível de avanço de determinada sociedade, assim como
o momento histórico pelo qual ela passa, desde a antiguidade, passando pela idade
média, até os tempos contemporâneos.
A noção de serviço público não permaneceu estática no tempo; houve uma
ampliação na sua abrangência, para incluir atividades de natureza
comercial, industrial e social. (PIETRO, 2007, pg. 89)
Igualmente, nós sabemos que a definição de quais atividades devem
ser consideradas serviço público é uma decisão política, tomada pelo poder
legislativo, que coloca na Lei ou na Constituição o que deve ou não ser considerado
como serviço público, tendo que seguir, com isso, todo o regramento é inerente ao
serviço18.
Vimos, ainda, que existe um substrato material e outro formal, os quais
praticamente por si só definem o que é o serviço público no direito brasileiro.
Lembremo-nos, também, de que, no Brasil, o conceito de serviço público é, quase
que unanimemente, pela doutrina, ligado ao conceito de serviço essencial19.
Os conceitos apresentados pela doutrina são vários e variam de autor
para autor, dentre os quais se destacam o professor Celso Antônio Bandeira de
Mello20 (2011, pg. 679), que nos ensina de uma forma, enquanto José Eduardo de
Alvarenga21 (2006, pg. 342) define serviço público no Brasil de outra forma,
18 Segundo o precioso ensinamento de Maria Sylvia Zanella di Pietro: “é o Estado, por meio da lei, que escolhe quais as atividades que, em determinado momento, são consideradas serviços públicos; no direito brasileiro, a própria Constituição faz essa indicação nos artigos 21, incisos X, XI, XII, XV e XXIII e 25, §2º, alterados, respectivamente, pelas Emendas Constitucionais 8 e 5, de 1995; isto exclui a possibilidade de distinguir, mediante critérios objetivos, o serviço público da atividade privada; esta permanecerá como tal enquanto o Estado não a assume como própria”. DIREITO ADMINISTRATIVO. São Paulo: Atlas, 2007, 20 ed., pgs. 89/90. 19 É quase unanimidade, mas temos um nome de peso que se opõe a isso. É o caso do saudoso Hely Lopes Meirelles. O mestre ensinava que “nem se pode dizer que são as atividades coletivas vitais que caracterizam os serviços públicos, porque ao lado destas existem outras, sabidamente dispensáveis pela comunidade, que são realizadas pelo Estado como serviço público”. DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO. São Paulo: Malheiros, 2005, 31 ed., pgs. 326/327. 20 “Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais –, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo”. 21 “A atividade de prestação de serviços de interesse coletivo, assim definidos na Constituição ou em lei, pelo Estado ou seus delegados, sob regime jurídico de direito público”.
29
Scartezzini22 (2006, pg. 56), que ensina de forma diversa e Aragão23 (2013, pg. 151),
o qual fala de forma diferente
Podemos dizer que serviço público é a atividade de cunho econômico
considerada necessária à persecução do bem-estar coletivo em um dado momento
histórico, em um dado espaço de tempo, definida como tal pela lei ou pela
Constituição, prestada pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes24 em caráter
universal, podendo, também ser fruída individualmente por cada um dos
administrados, e regida por um regime jurídico de Direito Público.
3 A REGULAÇÃO DO RAMO DA ENERGIA ELÉTRICA NO BRASIL
22 “Serviço público, assim, como noção, representa a atividade explícita ou implicitamente definida na Constituição como indispensável, em determinado momento histórico, tendo como finalidades a coesão e a interdependência social. A vinculação ao interesse social é o que aparta a espécie, serviço público, do gênero, atividade econômica em sentido amplo”. 23 “Serviços públicos são as atividades de prestação de utilidades econômicas a indivíduos determinados, colocadas pela Constituição ou pela Lei a cargo do Estado, com ou sem reserva de titularidade, e por ele desempenhadas diretamente ou por seus delegatários, gratuita ou remuneradamente, com vistas ao bem-estar da coletividade”. 24 Tomo esse termo emprestado porque não fui capaz de encontrar uma expressão melhor no meu singelo vocabulário para exprimir a ideia.
30
3.1 O ORDENAMENTO JURÍDICO DA ENERGIA ELÉTRICA
Sabemos que a energia elétrica é o objeto do fornecimento do que seja
talvez o mais importante dos serviços públicos conhecidos: a distribuição de energia
elétrica. Fato é que a vida moderna não pode ser pensada sem a geração,
transmissão e distribuição de eletricidade. É em torno dela que todo o
desenvolvimento tecnológico e social foi construído, especialmente a partir da
segunda década do século XX. A energia elétrica é tão necessária que é
considerada essencial para o prosseguimento da vida contemporânea,
especialmente no que tange a saúde e a segurança.
Dada essa extrema importância, os Estados nacionais produziram e
ainda produzem normas jurídicas que incidem sobre a energia elétrica e a forma
dela chegar até o cidadão comum, assim como as formas de sua geração,
transmissão e distribuição, desde a origem até o preço que deve ser cobrado por
esse serviço tão essencial e a carga tributária que sobre ele incide.
No Brasil, temos normas de quase todos os níveis a regular esse
serviço público, desde meras resoluções até mesmo normas de caráter
constitucional, as quais devem ser observadas da melhor forma possível com vistas
ao melhor fornecimento e melhor qualidade do serviço.
Sabendo disso, temos como exemplo os arts. 20, VIII; 21, XII, b; 22, IV;
175; e 176, §1º, da Constituição Federal, as leis número 8.987/9525, 9.427/9626, o
art. 22 do Código de Defesa do Consumidor, e resoluções da ANEEL, mormente a
número 414/201027.
Passemos, portanto, à análise desses dispositivos/diplomas legais.
25 Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal. 26 Institui a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL – e disciplina o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica. 27 Que é a única sobre a qual discorreremos, tendo em vista que ela trata das condições gerais para a distribuição de energia elétrica no Brasil
31
3.1.2 DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS SOBRE O SERVIÇO PÚBLICO DE
ENERGIA ELÉTRICA
Nessa parte do presente trabalho buscaremos analisar os arts. 20, VIII;
21, XII, b; 175 e 176 da Constituição Federal. Inicialmente, devemos considerar que
o serviço sobre o qual é discorrido neste trabalho não se refere somente à
distribuição da energia elétrica ao consumidor, mas também às suas fases de
geração e transmissão, que são anteriores àquela.
3.1.2.1 O ART. 20, VIII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
O primeiro dispositivo constitucional citado coloca os potenciais de
energia hidráulica dentro do rol de bens da União. Isso significa que é de
propriedade do Estado em nível federal, mas também significa que esses potenciais
somente podem ser explorados somente através de concessão e ou autorização,
sendo o produto da lavra extraída propriedade do concessionário que a explorar.
Somente no caso de se tratar de fonte de energia renovável de potencial reduzido é
que não será necessária a concessão ou autorização para a sua exploração.
3.1.2.2 O ART. 22, XII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Já o segundo dispositivo trata da exclusividade da União para a
exploração dos serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento
energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os
potenciais hidroenergéticos. Essa exploração pode ser feita tanto por parte da
própria União ou por quem lhe faça as vezes através de concessão, autorização ou
permissão.
É importante lembrarmos sempre de que, apesar de o cânone
constitucional deixar claro que a exploração deve ser feita em articulação com os
Estados onde se situem os potenciais hidroenergéticos, isso não dá base para que
32
estes interfiram nas relações firmadas entre o ente Federal e as concessionárias. É
assim que tem entendido o Supremo Tribunal Federal ao julgar sobre a matéria, de
forma que o tema está pacificado pelos seus precedentes:
“[...] as Leis fluminenses 3.915/2002 e 4.561/2005, ao obrigarem as
concessionárias dos serviços de telefonia fixa, energia elétrica, água e gás
a instalar medidores de consumo, intervêm na relação firmada entre a União
e suas concessionárias, pelo que contrariam os arts. 21, XI e XII, b; e 22, IV,
da Constituição da República.” (ADI 3.558, voto da Rel. Min. Cármen
Lúcia, julgamento em 17-3-2011, Plenário, DJE de 6-5-2011.)
"Ação direta de inconstitucionalidade contra a expressão ‘energia elétrica’,
contida no caput do art. 1º da Lei 11.260/2002 do Estado de São Paulo, que
proíbe o corte de energia elétrica, água e gás canalizado por falta de
pagamento, sem prévia comunicação ao usuário. Este STF possui firme
entendimento no sentido da impossibilidade de interferência do Estado-
membro nas relações jurídico-contratuais entre Poder concedente federal e
as empresas concessionárias, especificamente no que tange a alterações
das condições estipuladas em contrato de concessão de serviços públicos,
sob regime federal, mediante a edição de leis estaduais. Precedentes.
Violação aos arts. 21, XII, b; 22, IV; e 175, caput e parágrafo único, I, II e III;
da CF. Inconstitucionalidade. Ação direta de inconstitucionalidade julgada
procedente." (ADI 3.729, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 17-9-
2007, Plenário, DJ de 9-11-2007.)
“Concessão de serviços públicos – Invasão, pelo Estado-membro, da esfera
de competência da União e dos Municípios. (...) Os Estados-membros – que
não podem interferir na esfera das relações jurídico-contratuais
estabelecidas entre o poder concedente (quando este for a União Federal
ou o Município) e as empresas concessionárias – também não dispõem de
competência para modificar ou alterar as condições, que, previstas na
licitação, acham-se formalmente estipuladas no contrato de concessão
celebrado pela União (energia elétrica – CF, art. 21, XII, b) e pelo Município
(fornecimento de água – CF, art. 30, I e V), de um lado, com as
concessionárias, de outro, notadamente se essa ingerência normativa, ao
determinar a suspensão temporária do pagamento das tarifas devidas pela
prestação dos serviços concedidos (serviços de energia elétrica, sob regime
de concessão federal, e serviços de esgoto e abastecimento de água, sob
regime de concessão municipal), afetar o equilíbrio financeiro resultante
33
dessa relação jurídico-contratual de direito administrativo.” (ADI 2.337-MC,
Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 20-2-2002, Plenário, DJ de 21-6-
2002.)
3.1.2.3 O ART. 22, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Mais adiante temos o art. 22, IV, o qual nos informa que é de
exclusividade da União legislar sobre os temas de águas, energia, informática,
telecomunicações e radiofusão. Assim, somente a União pode criar ou extinguir
regras sobre a geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. Como as
decisões anteriormente mostradas nos comunicam, a interferência de entes
federativos não envolvidos na relação da concessão é inconstitucional.
3.1.2.4 OS ARTS. 175 E 176, §1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Já o art. 175 determina que a exploração de serviços públicos por parte
do Estado, quando não por ele próprio, deve ser feita através de concessão ou
permissão. De acordo com o art. 14 da lei número 8.987/95, toda concessão de
serviço público, precedida ou não da execução de obra pública, será objeto de
prévia licitação, nos termos da legislação própria e com observância dos princípios
da legalidade, moralidade, publicidade, igualdade, do julgamento por critérios
objetivos e da vinculação ao instrumento convocatório. É importante, ainda,
mencionar que a lei 8.666/93 deve ser aplicada subsidiariamente aos contratos de
concessão no que a legislação específica não dispor em contrário, conforme manda
o art. 124 deste diploma legal.
Temos, ainda, o art. 176, §1º, que diz da seguinte forma:
Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os
potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo,
para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União,
garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.
34
§ 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos
potenciais a que se refere o "caput" deste artigo somente poderão ser
efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse
nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que
tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá
as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em
faixa de fronteira ou terras indígenas. (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 6, de 1995) (grifamos)
Ou seja: somente podem explorar os potenciais energéticos as
empresas nacionais. A geração (produção) de energia pode ser feita tanto pelo
concessionário de serviço público como pelo produtor independente e pelo
autoprodutor de energia elétrica, os quais recebem uma concessão de uso de bem
público, com fundamento no art. 20, VIII, c/c 176, §1º, CF28.
Com isso, nós findamos o breve estudo das disposições constitucionais
referentes à energia elétrica. Vamos, então, ver a legislação infraconstitucional sobre
o assunto.
3.1.2.5 A LEI DE CONCESSÕES DE SERVIÇOS PÚBLICOS (8.987/95)
Apesar de esse ser um diploma legal que trate dos serviços públicos
em geral, e não somente do de energia elétrica, é importante mencioná-lo, porque,
além de tratar das regras para a concessão do serviço, ele ainda dá diretrizes gerais
para o seu fornecimento, inclusive criando direitos e deveres para os
concessionários.
Para os fins deste trabalho, nos ateremos aos artigos que falam da
prestação do serviço ao consumidor, a saber: arts. 6º, 7º e 7º-A.
O primeiro mencionado dá ao concessionário a obrigação de manter o
serviço funcionando com qualidade e de forma adequada, conforme mostra o texto
legal a seguir exibido:
28 Cf. SOUTO, Marcos Juruema Villela. DIREITO ADMINISTRATIVO DAS CONCESSÕES. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. pg. 54.
35
Art. 6o Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço
adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta
Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 1o Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade,
continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na
sua prestação e modicidade das tarifas. [...] (grifamos)
Conforme podemos ver, essa parte da referida lei trata de regularizar o
art. 175, parágrafo único, IV, da Constituição Federal, o qual determina que a lei
disporá sobre a obrigação de manter o serviço adequado. Assim, temos que o
serviço adequado garante a, dentre outras coisas, regularidade e a continuidade do
serviço público. Sobre esta última, discorreremos mais à frente.
Nos parágrafos seguintes, vemos que a lei em comento conceitua a
atualidade do serviço e trata do princípio da continuidade do serviço público, ao
determinar em quais circunstâncias a interrupção deste não caracteriza a violação
deste princípio29.
Já os arts. 7º e 7º-A tratam dos direitos e obrigações dos usuários do
serviço público. Essa parte específica da lei 8987/95 trata de regulamentar o art.
175, parágrafo único, II, da Constituição Federal, o qual determina que a lei disporá
sobre os direitos dos usuários. Devemos ter em mente que a figura central do
fornecimento de serviços públicos, sendo o de energia elétrica ou não, é o próprio
usuário. Daí termos disposições constitucionais sobre isso. Nas palavras de Celso
Antônio Bandeira de Melo (2011, pg. 751):
“Realmente, a figura estelar em tema de serviço público só pode mesmo ser
o usuário, já que o serviço é instituído unicamente em seu prol. Aliás, de
fora parte a promoção da ordem e da paz social, a justificativa substancial
para a existência do próprio Estado é, precisamente, a de oferecer aos
administrados as utilidades e comodidades que se constituem nos serviços
públicos”.
29 O que é um dos principais objetos de pesquisa deste trabalho. Afinal, a grande questão é: viola ou não o princípio da continuidade do serviço público a suspensão do fornecimento por inadimplemento do usuário?
36
Sabendo disso, foram elencados vários direitos aos usuários do
serviço, os quais mencionaremos:
Art. 7º. Sem prejuízo do disposto na Lei no 8.078, de 11 de setembro de
1990, são direitos e obrigações dos usuários:
I - receber serviço adequado;
II - receber do poder concedente e da concessionária informações para a
defesa de interesses individuais ou coletivos;
III - obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha entre vários
prestadores de serviços, quando for o caso, observadas as normas do
poder concedente. (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 1998)
IV - levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as
irregularidades de que tenham conhecimento, referentes ao serviço
prestado;
V - comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados pela
concessionária na prestação do serviço;
VI - contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos
através dos quais lhes são prestados os serviços.
Art. 7º-A. As concessionárias de serviços públicos, de direito público e
privado, nos Estados e no Distrito Federal, são obrigadas a oferecer ao
consumidor e ao usuário, dentro do mês de vencimento, o mínimo de seis
datas opcionais para escolherem os dias de vencimento de seus débitos.
(Incluído pela Lei nº 9.791, de 1999) (grifamos)
Com isso, passamos à análise breve da lei número 9.427/96, também
conhecida como Lei da ANEEL
37
3.1.2.6 A LEI DA ANEEL (9.427/96)
Essa lei institui a Agência Nacional de Energia Elétrica, disciplina o
regime de concessões de serviços públicos de energia elétrica e dá outras
providências.
A ANEEL tem a missão de “proporcionar condições favoráveis para
que o mercado de energia elétrica se desenvolva com equilíbrio entre os agentes e
em benefício da sociedade”30. Para isso, ela fiscaliza as concessionárias que geram,
distribuem e fornecem energia elétrica para os usuários com a finalidade de manter
o serviço adequado e o mercado em equilíbrio, garantindo, assim, a liberdade de
concorrência no setor.
Ela é autarquia de regime especial, vinculada ao Ministério de Minas e
Energia, com sede e foro no Distrito Federal (art. 1º). Sua finalidade é a de regular e
fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia
elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal (art. 2º).
As suas atribuições e a sua organização estão dispostas nos arts. 1º a
10 do diploma legal em observação. Já nos arts. 14 a 19 é tratado sobre o regime
econômico e financeiro das concessões de serviço público de energia elétrica. O
recebimento, por parte da concessionária, da tarifa pela execução do serviço, paga
pelo consumidor final, cujo valor é baseado no serviço pelo preço31, faz parte desse
regime.
30 Disponível em: <http://www.aneel.gov.br/area.cfm?idArea=635&idPerfil=2>. Acesso em: oito de abril de 2014. 31 Cuja definição se encontra no art. 15 da lei 9.427/96.
38
3.1.2.7 O ART. 22 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Essa é uma fonte pouco explorada e geralmente utilizada para proteger
o usuário de forma excessiva nas casas julgadoras de todo o país. O art. 22 do
Código de Defesa do Consumidor determina que:
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,
permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são
obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos
essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das
obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a
cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.
Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpção Neves (2013, pg. 98),
reportando-se a Rizzatto Nunes, ensinam que:
“a existência do art. 22 do CDC, ‘por si só, é de fundamental importância
para impedir que prestadores de serviços públicos pudessem construir
‘teorias’, para tentar dizer que não estariam submetidos às normas do CDC.
Aliás, mesmo com a expressa redação do art. 22, ainda assim há
prestadores de serviços que lutam na Justiça ‘fundamentados’ no
argumento de que não estão submetidos às regras da Lei 8.078/90”.
O entendimento dos autores, ao qual nos afiliamos aqui é de que,
tendo em vista a disposição inserida no dispositivo do códice consumerista, não é
possível afastar o caráter de relação de consumo que há entre gerador, transmissor
e distribuidor de energia elétrica (concessionárias) e o usuário do serviço, já que
existe disposição legal neste sentido, além da configuração de relação de consumo
através de outros elementos dados pelo próprio código, os quais apontam nesse
mesmo sentido.
Assim, é de consumo a relação entre os entes ligados ao fornecimento
desse serviço e o usuário final.
39
Mais à frente nos debruçaremos sobre as regras interpretativas para
harmonizar as aparentes antinomias entre os dispositivos atinentes à continuidade
do serviço público de fornecimento de energia elétrica.
3.1.2.8 A RESOLUÇÃO NORMATIVA 414/2010 DA ANEEL
Essa é, com certeza, a norma menos estudada dentre todas aquelas
atinentes à matéria de direito de energia elétrica pelo público geral. A Resolução
Normativa número 414/2010 da ANEEL estabelece as condições gerais do
fornecimento de energia elétrica e estabelece os prazos de execução dos serviços
requeridos por clientes, por exemplo (ligação nova de energia, religação de energia,
troca de medidor, retirada de poste etc.).
Ou seja: a resolução é a que rege as situações mais comuns do
cotidiano das concessionárias do serviço de energia elétrica, assim como dos
usuários. Infelizmente, o Poder Judiciário (e é o que mostram as decisões proferidas
em juízo) demonstram desconhecer esse instrumento normativo e tentam resolver a
questão-chave analisada por este trabalho somente a partir de uma ótica
consumerista. Mas sobre isso será discorrido mais à frente em momento oportuno.
Agora, sabendo da legislação que atinge o setor energético, é chegada
a hora de analisarmos os aspectos jurídicos da permissibilidade da suspensão do
fornecimento de energia elétrica pelo inadimplemento do usuário, para depois
analisarmos a questão econômica deste mesmo tema.
40
4 OS ASPECTOS JURÍDICOS DA PERMISSIBILIDADE DA SUSPENSÃO DE
ENERGIA ELÉTRICA POR INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO: CONTROVÉRSIAS
LEGAIS E JURISPRUDENCIAIS SOBRE A PERMISSIBILIDADE DA SUSPENSÃO
DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA POR INADIMPLEMENTO DO
USUÁRIO
De início, temos que informar ao leitor como se dará essa análise, a
qual será feita neste capítulo.
Num primeiro momento, sabemos que existe uma legislação sobre o
tema que não é tão conhecida ou sobre a qual não se debruçam de forma suficiente
os operadores do Direito para chegarmos à resolução desse tema. Da mesma
forma, existe um debate dentro da jurisprudência nacional sobre se é permitido ou
não suspender o fornecimento de energia elétrica em caso de inadimplemento do
usuário quanto à taxa paga mensalmente à distribuidora pelo serviço.
Sabendo disso, a análise dos aspectos jurídicos dessa questão tão
intrigante se dará a partir de dois focos: o estritamente legal, através da
interpretação das normas jurídicas apresentadas nos capítulos anteriores deste
trabalho enquanto sistema jurídico, e o jurisprudencial, analisando uma decisão
emblemática, que influencia todas as outras que são pela não permissibilidade da
suspensão do fornecimento do serviço em comento.
Portanto, passemos, agora, ao trabalho hermenêutico sobre as normas
aqui em comento.
41
4.1 O ASPECTO LEGISLATIVO: INTERPRETANDO O “ORDENAMENTO
JURÍDICO DA ENERGIA ELÉTRICA”
Considerando as normas atinentes à matéria de energia elétrica, mister
é lembrar-se de que nem todas elas são necessárias para chegar à resolução do
problema, estando este restrito a uma relação de consumo reconhecido pela
legislação nacional, conforme apresentado no capítulo anterior.
Assim, nós sabemos que a questão central diz respeito à uma relação
de consumo entre o fornecedor (distribuidor concessionário) e o usuário
(consumidor), tendo em vista que estamos falando de um serviço em que estão
presentes os elementos necessários para a identificação clara de uma relação de
consumo.
Na nossa legislação comum, curta é a envergadura de
diplomas/dispositivos legais que cobrem a matéria. Faremos, portanto, a análise
daquilo que incide especificamente na relação de consumo do serviço de energia
elétrica. Temos, hoje, a lei número 8.987/95, a Resolução Normativa número
414/2010 da ANEEL e o Código de Defesa do Consumidor.
A grande questão quando se fala da interrupção no fornecimento do
serviço é se o princípio da continuidade do serviço público será violado caso isso
aconteça, ainda que o consumidor final esteja inadimplente. A lei consumerista tem
vários dispositivos que tratam da continuidade e da adequação do serviço prestado
ao consumidor, senão vejamos:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o
atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua
dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos,
a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia
das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: [...]
VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos
Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...]
42
X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,
permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são
obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos
essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das
obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a
cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.
(grifamos)
O princípio da continuidade do serviço público traz a “impossibilidade
de sua interrupção e o pleno direito dos administrados a que não seja suspenso ou
interrompido” (MELLO, 2011, pg. 686), de forma que deve haver estabilidade e
segurança no seu fornecimento e qualidade na sua prestação.
Porém, precisamos prestar atenção a outra coisa importante quando
tratamos com o Código de Defesa do Consumidor: ele foi feito para reger relações
de consumo entre consumidores e fornecedores de serviços e produtos que nada
tem a ver com serviços públicos, de forma que, quando tratamos da aplicação do
CDC a essa modalidade de serviços, não se pode fazê-la da mesma forma que e
feita com os serviços comuns como se a concessionária fosse empresa qualquer,
regida por um regime jurídico de direito privado. Nesse sentido é a lição de
Alexandre Santos de Aragão (2013, pg. 495), em obra de indispensável consulta:
“Todavia, o CDC não pode ser aplicado indiscriminadamente aos
serviços públicos, já que eles não são atividades econômicas
comuns, sujeitas à liberdade de empresa e desconectadas da
preocupação de manutenção de um sistema prestacional coletivo”.
Sendo assim, temos que observar as peculiaridades do regime de
prestação dos serviços públicos, eis que não são como serviços sujeitos somente à
liberdade de iniciativa, pois, como já foi dito anteriormente, sujeitam-se a regime
jurídico diferente daquele ao qual se sujeitam os particulares integrantes de relações
43
consumeristas comuns. Porém, a aplicação do CDC não pode ser totalmente
afastada, conforme também nos ensina Aragão (2013, pg. 500):
“Apesar dessas peculiaridades inerentes ao regime jurídico dos serviços
públicos (políticas tarifárias, jus variandi da Administração Pública etc.), a
aplicação do CDC aos serviços públicos não pode ser excluída, até porque
há dispositivos legais expressos nesse sentido. Todavia, por outro lado, a
aplicação do CDC não pode ser absoluta, devendo, ao contrário, ser
realizada com extrema cautela, sob pena de desnaturar a atividade como
serviço público, privilegiando os interesses de consumidores
individualmente considerados, e postergando os seus objetivos maiores de
solidariedade social, que continuam a existir apesar das mudanças na
concepção de interesse público [...]”.
É por isso que o próprio CDC faz ressalva de si mesmo no art. 7º do
seu corpo, quando admite que sua aplicação não é absoluta, sendo ele aberto a
outras fontes jurídicas para a sua interpretação e sua aplicação. Assim nos informa o
texto legal:
“Art. 7° Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes
de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da
legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades
administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios
gerais do direito, analogia, costumes e equidade”. (grifamos)
Ou seja: na hora da aplicação da norma, devemos levar em
consideração outros dispositivos que tratem da mesma matéria, tendo em vista que
a aplicação absoluta do Código de Defesa do Consumidor por si só é capaz de levar
à desvirtuação da própria atividade.
Levando essa disposição do código em consideração, é imprescindível
mostrar que o princípio da continuidade do serviço público tem as suas ressalvas
definidas em lei e em resolução da ANEEL.
Estamos falando do art. 6º, §3º, da lei número 8.987/95 e do art. 140,
§3º, da Resolução Normativa número 414/2010 da ANEEL. Em ambos os casos são
44
apresentadas as ocasiões e possibilidades nas quais a interrupção do serviço não
caracteriza descontinuidade do serviço, conforme mostra a lei federal:
“Art. 6o Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço
adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta
Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato. [...]
§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção
em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações;
e,
II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.
(grifamos)
Já o instrumento normativo emitido pela Agência Reguladora, quase de
forma uníssona com o anteriormente mencionado, diz o seguinte:
“Art. 140 A distribuidora é responsável, além das obrigações que precedem
o início do fornecimento, pela prestação de serviço adequado a todos os
seus consumidores, assim como pelas informações necessárias à defesa
de interesses individuais, coletivos ou difusos. [...]
§3º Não se caracteriza como descontinuidade de serviço, observado o
disposto no Capítulo XIV, a sua interrupção:
I - em situação emergencial, assim caracterizada a deficiência técnica ou de
segurança em instalações de unidade consumidora que ofereçam risco
iminente de danos a pessoas, bens ou ao funcionamento do sistema elétrico
ou, ainda, o caso fortuito ou de força maior; ou
II - após prévia notificação, por razões de ordem técnica ou de segurança
em instalações de unidade consumidora, ou pelo inadimplemento do
consumidor, considerado o interesse da coletividade. (grifamos)
A partir da leitura das duas regras para a suspensão da prestação de
serviços públicos, especialmente o de fornecimento de energia elétrica, nós
percebemos que as exceções abertas ao princípio da continuidade do serviço
45
público são uma mitigação necessária a este, tendo em vista que a sua aplicação
absoluta poderia traduzir-se em outras coisas desastrosas, sobre as quais nos
debruçaremos mais a diante.
Temos, ainda, que levar em consideração o seguinte: o art. 14 da lei
número 9.427/96 determina que deve haver a contraprestação pela execução do
serviço, paga pelo consumidor final com tarifas baseadas no serviço pelo preço, nos
termos da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, sem a qual o sistema inteiro não
poderia se suster.
Sabendo disso, temos que a permissão da aplicação absoluta do art.
22 do Código de Defesa do Consumidor não deve ocorrer sob pena de, além de
provocar o desvirtuamento da própria relação entre fornecedor de serviços públicos
e usuário, tendo em vista o caráter especial da relação e o regime jurídico do próprio
fornecimento, que é diferente do regime regente das empresas prestadoras de
serviços não incluídos no rol dos públicos, ainda é capaz de instalar no Brasil o que
é chamado de cultura do calote.
Além do mais, no que tange à hierarquia das normas, tanto o CDC
quanto a Lei de Concessões, sendo ambas leis federais, estão no mesmo patamar
hierárquico, levando a análise de qual norma deve ser excluída para os campos do
tempo e da especialidade das leis.
Com isso, vemos que, além de ser lex posteriori ao códice
consumerista, a Lei de Concessões deve ser considerada lex specialis em relação
ao código pelos motivos que passam a ser apresentados nesse momento.
Em primeiro lugar, conforme vimos anteriormente, o Código de Defesa
do Consumidor tem por finalidade regular relações comerciais entre consumidores e
fornecedores sujeitos ao regime de direito privado, ligados ao princípio da livre
iniciativa, que nada tem a ver com o regime dos serviços públicos, o qual é de direito
privado e cujo fornecimento está condicionado à execução licitação feita de acordo
com as regras estabelecidas em lei. Por ser algo de caráter diferente dos serviços
comerciais, a execução e fornecimento de serviços públicos não podem estar
46
submissas às mesmas regras aplicadas da mesma forma que são a serviços
prestados com intuito meramente comercial. Com efeito, a lei número 8.078/90 não
é inteiramente aplicável às relações entre usuário e concessionária porque ela não
foi confeccionada para esse fim. Sua aplicação necessita – tendo, ainda, em vista as
omissões dela quanto à prestação de serviços público – de fontes complementares
para uma boa e equilibrada aplicação do seu conteúdo, o que não a torna, portanto,
lei especial para o tema, mas sim uma lei de aplicação geral.
Em segundo lugar, por se tratar de uma lei que visa regular as relações
de consumo em geral, ela não poderia conter regras específicas para o caso da
suposta descontinuidade do serviço público de energia elétrica. Porém, a Lei de
Concessões cobre a lacuna deixada pelo CDC ao disciplinar uma situação
específica de ocorrência exclusiva em uma relação de consumo de caráter especial,
a saber: a inadimplência por parte do usuário em relação ao pagamento da taxa de
uso do serviço público, no caso deste trabalho, de energia elétrica.
Em suma: ao contrário do que poderia ser defendido por quem apoia a
completa e absoluta aplicação do art. 22 do CDC, este código não é lei especial em
relação à Lei de Concessões. Seria lex specialis se o estivéssemos comparando ao
Código Civil32, apenas, mas esse não é o caso. Como a lei consumerista somente
diz que o serviço deve ser contínuo, e a Lei de Concessões (ou Lei de Serviços
Públicos) tem disposições que regulam o princípio da continuidade do serviço
público, esta, portanto, cobre o caso específico objeto deste trabalho, e o disciplina,
o que o CDC, até pela sua natureza, não o faz.
Ademais, a regulamentação do serviço público – incluindo os princípios
que o regem, decorrentes da sua execução – é um encargo do poder concedente,
conforme reza o art. 29, I, da própria Lei de Concessões33. Atendendo à
determinação legal é que a ANEEL, no art. 140 da Resolução Normativa número
32 Especialmente se fosse admitida a tese da exceção de contrato não cumprido, coberta pelo Código Maior do Direito Privado, no seu art. 476, o que não se admite neste trabalho, nem é o caso, tendo em vista que o Código Civil normalmente só pode ser aplicado em relações que não são de consumo, o que, como foi visto anteriormente aqui, não é verdade, já que o fornecimento de serviços públicos é regido pelo Código de Defesa do Consumidor e pela legislação específica de cada serviço. 33 Art. 29. Incumbe ao poder concedente: I - regulamentar o serviço concedido e fiscalizar permanentemente a sua prestação.
47
414/2010, o faz. O instrumento normativo emitido pelo ente da Administração
Pública, portanto, não contradiz o princípio da continuidade do serviço público, nem
dispõe de forma contrária ao Código de Defesa do Consumidor. Apenas regula uma
situação específica da prestação do serviço público.
Tendo o exposto em vista, sabemos que não existe base para a
aplicação absoluta do art. 22 do Código de Defesa do Consumidor, sob pena de
desvirtuamento da finalidade pública à qual o serviço se propõe (discorreremos
sobre isso no próximo capítulo) e da própria natureza do serviço. Além disso, a
aplicação do art. 6º, §3º, II, da Lei de Concessões é lei especial em relação a esta e
o art. 140 da Resolução Normativa número 414/2010, que estabelece e regula as
condições gerais do fornecimento de energia elétrica no Brasil, apenas regula o
princípio da continuidade do serviço público, motivo pelo qual este dispositivo não o
contradiz.
Portanto, de um ponto de vista hermenêutico-legislativo, existe a
permissão no nosso ordenamento jurídico para a suspensão do fornecimento de
energia elétrica em caso de inadimplemento do usuário, desde que observadas as
condições de que o débito seja inequívoco e do prévio aviso (o qual é emitido nas
faturas de luz ou através de carta enviada ao usuário juntamente com a cobrança do
débito e a concessão de novo prazo para a sua quitação) entregue ao usuário
anteriormente ao procedimento de suspensão.
4.2 O ASPECTO JURISPRUDENCIAL
Neste ponto, nos ocuparemos em analisar uma decisão emblemática
proferida em processo de relatoria do ex-Ministro José Augusto Delgado, a qual é
amplamente citada em várias decisões pelo país que consideram a suspensão do
fornecimento de energia elétrica por inadimplemento do usuário ilegal34.
34 Seguindo o mesmo posicionamento: REsp 430812/MG, 1ª Turma – STJ, rel. Min. José Delgado, j. 06/08/2002 (DJU 23/09/2002). AC nº2003.001.18255, 17ª Câmara Cível – TJRJ, rel. Des. Raul Celso
48
A decisão é referente ao RMS (Recurso em Mandado de Segurança)
8.915/MA (97/0062447-1), de relatoria do jurista potiguar, no qual um usuário do
serviço fez uma ligação clandestina (popularmente conhecida como gato) de energia
elétrica e, após inspeção e constatação da infração, teve o fornecimento do serviço
suspenso. Em razão disso, impetrou o Mandado contra o Diretor Regional da
Companhia Energética do Maranhão (CEMAR), o qual foi provido. A companhia
recorreu e foi derrotada em todas as instâncias.
O magistrado, em seu decisório, para basear o seu julgamento, e
seguindo o posicionamento dos colegas de grau inferior, tomou como base os
seguintes pressupostos: a) o serviço público de energia elétrica, por ser essencial,
está submetido às regras dos arts. 22 e 42 do Código de Defesa do Consumidor; b)
a suspensão do fornecimento do serviço é uma forma de coação contra o usuário
para que este quite os seus débitos, o que extrapola a legalidade, devendo a
concessionária buscar os meios legais para a obtenção dos valores devidos pelo
usuário; c) a suspensão do fornecimento pela concessionária é uma forma de
estabelecer uma Justiça privada no Brasil, o que é inconstitucional; e d) a suspensão
do fornecimento viola os princípios constitucionais da ampla defesa e da inocência
presumida.
Para a melhor compreensão da decisão, havemos por bem mostrar o
seu acórdão, in verbis:
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENERGIA ELÉTRICA.
AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE TARIFA. CORTE. IMPOSSIBILIDADE.
1. É condenável o ato praticado pelo usuário que desvia energia elétrica,
sujeitando-se até a responder penalmente.
2. Essa violação, contudo, não resulta em se reconhecer como legítimo
ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora
de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma.
3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população,
constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio
Lins e Silva, j. 27/08/2003 (DJRJ 05/09/2003). AI nº 2002.002.19949, 12ª Câmara Cível – TJRJ, rel. Des. Celso Guedes, j. 09/09/2003 (DJRJ 17/10/2003).
49
da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua
interrupção.
4. Os arts. 22 e 42, do Código de Defesa do Consumidor, aplicam-se às
empresas concessionárias de serviço público.
5. O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de
tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade.
6. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil,
especialmente, quando exercida por credor econômica e
financeiramente mais forte, em largas proporções, que o devedor.
Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da
inocência presumida e da ampla defesa.
7. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para
a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a
quem deles se utiliza.
8. Recurso improvido.
(Superior Tribunal de Justiça, Primeira Turma, RMS 8.915/MA (97/0062774-
1), Relator: Min. José Delgado. Julgado em: 12 de maio de 1998. Publicado
no DJ em: 17 de agosto de 1998)
Partamos, agora, para a análise de cada um dos pressupostos aqui
apresentados.
Em primeiro lugar, a partir da leitura do decisório e da sua
fundamentação, o Ministro considera que o serviço público de energia elétrica, por
ser essencial, está submetido às regras dos arts. 22 e 42 do Código de Defesa do
Consumidor. Isso é bem verdade. A disposição clara do art. 22 do CDC não deixa
dúvida que qualquer serviço público está inserido dentro do rol das relações
consumeristas. Por isso, as cobranças feitas pelas concessionárias, em caso de
inadimplemento, devem ser feitas de forma que não exponham o consumidor,
conforme determina o art. 42 do mesmo código.
O erro do julgador, para considerar o serviço perene, é utilizar a
aplicação absoluta do art. 22 do códice em uma relação que, conforme vimos
anteriormente, embora seja de consumo, não é equivalente a uma relação mercantil
comum. Por ser uma relação também regida pelo regime de direito público, deve-se
observar todo o arcabouço normativo em volta dela, e não somente uma norma
50
consumerista. Tratar a prestação de um serviço público como se fosse uma mera
compra de um produto ou a contratação de uma empresa para realizar a lavagem de
um carro, por exemplo, é utilizar-se de um olhar reducionista para ver um serviço tão
importante. Para os serviços equivalentes aos exemplos citados é possível o uso
exclusivo do CDC; para um serviço público, não.
O segundo pressuposto está ligado intimamente ao primeiro. A turma
julgadora (que votou por unanimidade pelo não provimento do recurso) considerou
que a suspensão do fornecimento do serviço é uma forma de coação contra o
usuário para que este quite os seus débitos, o que extrapola a legalidade, devendo a
concessionária buscar os meios legais para a obtenção dos valores devidos pelo
usuário.
Aí existe um segundo equívoco: a suspensão do fornecimento de
energia elétrica não é um meio de cobrança, mas sim a consequência de tentativas
seguidas de obtenção, por parte da concessionária, do valor que lhe é devido. Em
todo o decorrer da fundamentação da decisão é apontada a suspensão do
fornecimento como um meio vexatório de cobrança de valores devidos por usuários
às concessionárias, o que não é verdade35. É comportamento padrão das
concessionárias/distribuidoras de energia elétrica enviar a seus consumidores, ora
35 Valendo-se das palavras do Desembargador Vicente Ferreira, relator do feito ainda no âmbito do Tribunal de Justiça do Maranhão, os termos para definir a suspensão do fornecimento de energia elétrica são ainda mais fortes. Em seu voto, o magistrado faz uma indagação que foi respondida pelo mesmo erro atacado no primeiro pressuposto apresentado: “Restando fixado que a controvérsia instalada com a causa circunscreve-se à suspensão do fornecimento de energia elétrica – de sua legalidade ou não –, há de se indagar se a Impetrada, valendo-se da condição de concessionária de serviço público e de uma norma de categoria inferior à lei, tem a faculdade de compelir ao pagamento os consumidores inadimplentes, ou devedores sancionados, pela via transversa da suspensão do fornecimento, meio constrangedor e violento, de uso excepcional?”. Porém, em julgamento do STJ sobre o mesmo tema, o Ministro Humberto Gomes de Barros, relator no REsp 363493/MG, julgado em 10 de março de 2003 e publicado em primeiro de março de 2004, decide de forma completamente diversa: “A circunstância de elas prestarem serviços de primeira necessidade não as obriga ao fornecimento gratuito. Ninguém se anima em afirmar que as grandes redes de supermercados e as farmácias – fornecedoras de alimentos e medicamentos – devem entregar gratuitamente, suas mercadorias aos desempregados. O corte é doloroso, mas não acarreta vexame. Vergonha maior é o desemprego e a miséria que ele acarreta. Em linha de coerência, deveríamos proibir o patrão de despedir empregados. O fornecimento gratuito de bens da vida constitui esmola. Negamos empregos a nosso povo e o apascentamos com esmolas. Nenhuma sociedade pode sobreviver, com seus integrantes vivendo de esmolas. A lição ministrada pelo grande poeta Zé Dantas parece-me definitiva: “Seu doutor uma esmola/Para o homem que é são/Ou lhe mata de vergonha/Ou vicia o cidadão.”
51
por carta, ora através de anotações feitas na própria fatura de energia elétrica36, as
suas cobranças relativas a valores devidos. A cada um desses atos dá-se o nome
de reaviso, e tem como objetivo informar ao usuário os seus débitos perante as
distribuidoras. No caso de ser enviado em forma de carta ao endereço do
inadimplente, é dado, na correspondência, um novo prazo para pagamento do
débito, assim como é informado que, em caso de persistência na inadimplência, o
serviço será suspenso. Essa é a forma de cobrança utilizada pelas distribuidoras.
Somente se procede à suspensão do fornecimento quando, mesmo após os avisos,
o usuário permanece inadimplente37. Não prospera, então, a tese de que a
suspensão do serviço é uma violação ao art. 42 do Código de Defesa do
Consumidor.
Não é, portanto, a suspensão do fornecimento de energia elétrica uma
forma de cobrança, mas sim a consequência de várias tentativas seguidas, por parte
da distribuidora de reaver, de forma amigável, os valores que lhe são devidos. É,
também, uma forma de manter o equilíbrio econômico-financeiro da relação, assunto
sobre o qual discorreremos em momento oportuno.
Ainda comentando o segundo pressuposto, temos que os julgadores
envolvidos no feito consideram que, além de ser uma forma vexatória e humilhante
de cobrança de débitos, a suspensão do fornecimento de energia elétrica extrapola
a legalidade e que as concessionárias deveriam buscar os meios legais (leia-se
processo judicial) para cobrar as quantias devidas pelo consumidor.
Primeiramente, como já foi exposto em item anterior, o art. 29 da Lei de
Concessões dá ao poder concedente o dever de regular o serviço, incluindo os seus
princípios, seja diretamente ou através da Administração Pública Indireta. É o que
fez à época o Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, hoje ANEEL,
através da portaria número 466/1997, a qual tratava das condições gerais do
36 Conforme a disposição do art. 119, II, d, da Resolução Normativa número 414/2010 da ANEEL. 37 É importante, aqui, ressaltar que ainda existe a opção de parcelamento dos débitos de qualquer usuário, conforme a determinação do art. 118 da Resolução Normativa número 414/2010 da ANEEL, por solicitação do próprio usuário. No caso de o consumidor estar incluído na classe de baixa renda, o número mínimo de parcelas é de três. Uma vez parcelado o valor, ele é, se considerado pertinente, incluso nas faturas subsequentes do usuário, conforme também determina o inciso II, alínea i, desse mesmo artigo. Isso ajuda a evitar a suspensão do fornecimento e a insatisfação do consumidor.
52
fornecimento de energia elétrica38, disciplinando, em seu art. 7539, III, que a
interligação clandestina e a religação à revelia, assim como no ínterim do seu art.
76, o qual trata da possibilidade de suspensão de fornecimento do serviço em caso
de inadimplemento, que é possível a suspensão do serviço. Já o art. 77, §1º, deste
mesmo instrumento normativo, declara que não se caracteriza como
descontinuidade do serviço a suspensão do fornecimento efetuado nos termos dos
arts. 75 e 76 desta Portaria. Hoje em dia, essas possibilidades de suspensão estão
disciplinadas nos arts. 140, §3º, II40, 16841 e 17242, caput e incisos, da Resolução
Normativa número 414/2010 da ANEEL, além do art. 1743 da Lei da ANNEL, mas no
caso de suspensão de fornecimento de energia a consumidores que fornecem
serviços públicos, neste último caso.
Em segundo lugar, os julgadores propuseram uma solução para que as
concessionárias não ficassem prejudicadas pela inadimplência dos seus
consumidores: a busca de meios legais para tal. Considerando o conjunto fático do
caso, assim como o dos casos de inadimplência em geral, somente existiria um meio
legal para a obtenção das quantias devidas, a saber, o processo judicial. É que,
38 Como faz, hoje, a Resolução Normativa número 414/2010 da ANEEL, sendo, portanto, equivalente à antiga Portaria. 39 Este artigo trata da suspensão no caso de fraude na relação usuário/distribuidor, colocando os casos em que, constatada a fraude, a concessionária pode proceder à interrupção do serviço. É importante lembrar-nos de que a fraude somente é constatada após criteriosa inspeção feita pela concessionária em laboratório especializado (em casos como medidor defeituoso, por exemplo) ou in loco (como é o caso de haver indícios de ligação clandestina na unidade consumidora inspecionada). 40 “A distribuidora é responsável, além das obrigações que precedem o início do fornecimento, pela prestação de serviço adequado a todos os seus consumidores, assim como pelas informações necessárias à defesa de interesses individuais, coletivos ou difusos. [...] §3º Não se caracteriza como descontinuidade de serviço, observado o disposto no Capítulo XIV, a sua interrupção: [...] II - após prévia notificação, por razões de ordem técnica ou de segurança em instalações de unidade consumidora, ou pelo inadimplemento do consumidor, considerado o interesse da coletividade. 41 A distribuidora deve interromper o fornecimento, de forma imediata, quando constatada ligação clandestina que permita a utilização de energia elétrica, sem que haja relação de consumo. 42 A suspensão por inadimplemento, precedida da notificação prevista no art. 173, ocorre pelo: I - não pagamento da fatura relativa à prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica; II - não pagamento dos serviços cobráveis, previstos no art. 102; III - descumprimento das obrigações constantes do art. 127; IV - inadimplemento que determine o desligamento do consumidor livre ou especial da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, conforme regulamentação específica; ou V - não pagamento de prejuízos causados nas instalações da distribuidora, cuja responsabilidade tenha sido imputada ao consumidor, desde que vinculados à prestação do serviço público de energia elétrica. 43 “A suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de energia elétrica a consumidor que preste serviço público ou essencial à população e cuja atividade sofra prejuízo será comunicada com antecedência de quinze dias ao Poder Público local ou ao Poder Executivo Estadual”.
53
conforme foi dito acima, a suspensão já ocorre após as várias tentativas de
cobrança por parte das distribuidoras, não restando outra solução a não ser a busca
do Poder Judiciário para tal.
Quanto à isso, devemos sempre nos lembrar que a quantidade de
processos em trâmite no Brasil, a qual chega a números superiores aos 90
milhões44, sendo boa parte deles envolvendo concessionárias de serviços públicos45,
havendo uma média de aumento de 20 milhões de processos por ano, o que já
sobrecarrega o sistema judiciário no Brasil, tendo, ainda, em vista a conhecida
lentidão na resolução de conflitos e os altos custos de manutenção de um feito, tanto
para o próprio Poder quanto para os litigantes, levando-se em consideração os
gastos, no primeiro caso, com a manutenção e conservação dos autos nos arquivos
(no caso dos processos ainda físicos) e com a manutenção dos sistemas
gerenciadores dos processos virtuais, assim como funcionários e todos os outros
encargos gerados pela atividade, e, no último caso, o aumento do já alto custo com
assessoria jurídica e custas processuais, vê-se que não é economicamente viável,
nem para um lado, nem para o outro, um aumento ainda maior no número de
processos tramitando perante o judiciário. Assim, sabemos que, além de ser um
meio oneroso, é meio igualmente ineficiente para a busca, tendo em vista que,
apesar de a equação envolvendo processos em trâmite e processos julgados estar
se equilibrando mais e mais a cada dia, ainda estamos muito longe de alcançar a
equivalência ou superávit (o que seria o ideal) nessa relação46.
Além do mais, existem outros meios já utilizados para manter a
inadimplência baixa dos usuários que se mostra muito mais eficiente na persecução
do pagamento do débito adquirido pelo inadimplente: a inserção em cadastros
restritivos de crédito. Apesar de eficiente, tendo em vista que a taxa de
44 Fontes: <http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/de-100-processos-judiciais-so-30-sao-concluidos-diz-cnj/>. Acesso em: 17 de abril de 2014; e <http://extra.globo.com/noticias/brasil/numero-de-processos-judiciais-aumentou-43-em-2012-em-relacao-ao-ano-anterior-10366168.html>. Acesso em: 17 de abril de 2014. 45 Fonte: <http://ajufe.jusbrasil.com.br/noticias/100299810/cnj-trabalha-para-diminuir-o-numero-de-processos-judiciais>. Acesso em: 17 de abril de 2014. 46 Cf. SUZIN, Juliana Bonella. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA POR INADIMPLEMENTO. Disponível em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2012_2/juliana_suzin.pdf>. Acesso em: 01/04/2014.
54
inadimplência do serviço de energia elétrica em residências é de aproximadamente
1,2%47, sendo baixa em relação a outros setores da economia, ainda é bem acima
do ideal de 0,5% estabelecido pela ANEEL. Isso mostra que, mesmo com o meio
mais eficiente possível no país, a inadimplência ainda está bem acima do ideal. Para
se ter ideia da situação, se tomarmos os dados mostrados e os aplicarmos à
realidade potiguar, teremos um total aproximado de 14.503 de pessoas
inadimplentes no Estado48, jurídicas e físicas.
Assim, é ineficiente a solução de buscar, através de meio judicial, os
valores devidos por consumidores residenciais, além de extremamente onerosa,
tanto para o Estado quanto para a concessionária.
O terceiro e quarto pressupostos dão conta de que a suspensão do
fornecimento pela concessionária é uma forma de estabelecer uma Justiça privada
no Brasil, o que é inconstitucional, e que a suspensão do fornecimento viola os
princípios constitucionais da ampla defesa e da inocência presumida.
Os dois pressupostos estão eivados com equívoco. Conforme falamos
anteriormente, antes mesmo da suspensão é enviado ao usuário o reaviso, que lhe
informa dos seus débitos existentes perante a distribuidora e dando ao consumidor a
chance de contestar as cobranças administrativamente, tanto de forma presencial
nas agências de atendimento quanto via telefone, a fim de que quaisquer eventuais
enganos sejam corrigidos para evitar uma suspensão equivocada. Além disso, é
procedimento padrão das empresas distribuidoras de energia elétrica, ao chegar em
uma residência com fins de realizar a suspensão do serviço, consultar o titular
daquela unidade consumidora49 ou quem lhe faça as vezes naquele momento a fim
de que este apresente as faturas pagas para que, se a ordem de corte tivesse sido
emitida por engano, não se proceda à suspensão. Para isso, os funcionários são
treinados, para que não ocorra suspensão do fornecimento por engano, oferecendo
47 Fonte: <http://www.acendebrasil.com.br/br/sala-de-imprensa/política_tarifaria_perdas_e_inadimplencia>. Acesso em: 17 de abril de 2014. 48 Levando em consideração os dados da ABRAEE (Associação Brasileira das Distribuidoras de Energia Elétrica). De acordo com a associação, a COSERN teve, até o fim de 2012 (dado mais recente fornecido pela fonte), 1.208.552 contratos ativos, dentre residenciais e comerciais 49 Termo técnico utilizado pelas concessionárias para designar o local para o qual é fornecida a energia elétrica.
55
ao usuário a oportunidade de defender-se e comprovar que está adimplente com a
distribuidora. Ou seja: existe, sim, oportunidade de defesa para o usuário. Se não
conseguir provar que está quite para com a empresa é que se procede à suspensão.
Ainda, em caso de houver suspensão por engano, é obrigação da
distribuidora de fazer a religação da unidade consumidora em prazo de quatro horas
a partir da constatação do erro, independente do momento da verificação deste, sem
nenhum ônus para o consumidor, conforme determina o art. 176, §1º, da Resolução
Normativa número 414/2010 da ANEEL.
Vemos, com essas considerações, que a decisão do pretório
brasiliense, ainda que respeitável, está equivocada, porque toma por seus
pressupostos equivocados para a formação de uma decisão que somente levou em
conta um lado da situação, na ânsia de dar uma proteção extensiva ao consumidor,
sem levar em consideração toda a legislação atinente ao tema.
Com isso, passamos à análise dos aspectos econômicos do tema em
comento.
56
5 O ASPECTO ECONÔMICO DA SUSPENSÃO (OU DA CONTINUIDADE
ABSOLUTA) DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA POR
INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO
Neste último ponto do presente trabalho, buscaremos mostrar de que
forma é estabelecido o equilíbrio econômico-financeiro da relação e como a tarifa
paga pelo serviço é o que mantém o serviço a funcionar corretamente.
Infelizmente, os pretórios brasileiros tem uma tendência de colocar a
proteção integral ao consumidor na frente de todos os outros critérios de julgamento
e, por isso, cometem erros crassos na prolação de sentenças. Um deles é deixar de
levar em consideração os próprios deveres dos usuários na relação entre estes e as
distribuidoras de energia elétrica.
É até compreensível a tomada desse tipo de postura em decorrência
dos constantes abusos praticados por empresas na busca de lucros cada vez
maiores e, no ramo da energia elétrica, essa realidade não é diferente. Porém, isso
não é causa de justificação para decisões que esquecem-se completamente do
caráter excepcional do serviço público, motivo pelo qual a aplicação do CDC, que
tem sido feita de forma absoluta, não tem sido executada de forma adequada.
Sabemos que a continuidade dessa conduta, se chancelada pela
jurisprudência, no sentido de não admitir a suspensão do fornecimento de energia
elétrica por inadimplemento do usuário, poderá instaurar a cultura do calote. É que,
de certa forma, o cidadão necessita sofrer consequências pelo inadimplemento e
uma das poucas que é comprovadamente eficiente na sua finalidade de encerrar a
inadimplência do usuário é justamente a suspensão do seu fornecimento,
juntamente com a inserção do consumidor nos cadastros do Serviço de Proteção ao
Crédito. Conforme vimos anteriormente, os meios judiciais sugeridos pelos
defensores da continuidade absoluta do fornecimento para reaver as quantias
devidas pelos usuários inadimplentes é um meio demasiadamente oneroso e
ineficiente para os fins que se propõem.
57
Tendo isso tudo em vista, existem algumas questões a serem
respondidas: o que é cultura de calote? O que acontece se o posicionamento
contrário (não defendido neste trabalho) prevalecer? Existe violação ao equilíbrio
econômico-financeiro da relação? E o que ocorre com o sistema de concessões
para o fornecimento de energia elétrica? Quais as consequências para o Estado?
Esses questionamentos, que formam uma linha composta por relações de causa e
consequência, passarão a ser respondidos a partir de agora.
5.1 SOBRE A CULTURA DO CALOTE
5.1.1 O QUE É CULTURA DO CALOTE?
Em razão É reconhecido que atitudes que prejudicam a outra pessoa
devem ser rechaçadas com o intuito de não somente punir aquele que a cometeu,
mas também evitar que essa prática se repita. Se não há punição, então não há
razão para a abstenção dessas práticas, tendo em vista que não há mais o que
temer.
É com esse tipo de lógica que age naturalmente o ser humano. Disse
uma vez Dostoiévski que, “se Deus não existe, tudo é permitido”. Apesar de esta
frase colocar o elemento divino nesta equação50, é uma afirmação válida. Vejamos
que Deus representa o regente de toda uma ordem mundial meticulosamente
controlada por Ele mesmo, na qual quem pratica algum ato contrário à moral
estabelecida por Ele, haverão consequências impetradas pelo próprio Regente ao
transgressor, que as teme. Assim, se não existisse Deus, então não haveria
Regente, nem haveria o que ser punido, porque o próprio sistema moral criado por
Ele não existiria como consequência, o que leva, logicamente, a uma falta de
direcionamento moral generalizado, porque nada mais seria imoral, levando à falta
de abstenção de condutas consideradas imorais.
50 Não chancelamos o posicionamento ateísta.
58
Acontece da mesma forma com os regramentos do Estado e com a
aplicação das suas normas. Se não houvesse aplicação, ou mesmo inexistissem,
por exemplo, os arts. 186, 187 e 927 do Código Civil, não mais haveria a noção de
responsabilidade civil, permitindo aos particulares que praticassem tudo que bem
lhes aprouvesse, já que não haveria ilícito civil. Temos, então, que a não existência
de regras que imputem responsabilidade aos particulares ou a não aplicação destas
não constituem somente a inexistência de punição a atos ilícitos, mas também um
estímulo à sua prática.
Igualmente ocorre com o inadimplemento contratual. No Direito Civil
puro, este é causa que torna o inadimplemento da outra parte escusável, mas, como
não estamos tratando de uma mera relação entre dois particulares, mas sim de uma
relação que envolve o fornecimento de serviços públicos, que não são regidas pelas
regras de Direito Privado, mas sim do Direito do Consumidor e do Direito
Administrativo, devendo, portanto, haver uma continuidade na prestação do serviço,
embora esta esteja regulada, como vimos, pela legislação atinente ao tema.
Porém, a existência do caráter público e a obrigação de continuidade
na prestação do serviço não pressupõe que este seja gratuito51, devendo haver uma
contraprestação por parte do usuário, que é a taxa de uso da energia elétrica. Se ele
não paga, deve haver uma punição para tal; se não há a punição, isso permite a
todos que não paguem, já que não há consequências para isso.
Essa, portanto, é a cultura do calote: o uso generalizado e costumeiro,
em favor próprio, pelos usuários, do fato de não poder haver suspensão do
fornecimento de energia elétrica para permanecerem inadimplentes em relação ao
pagamento da taxa inerente ao serviço52.
51 Cf. TÁCITO, Caio. TEMAS DE DIREITO PÚBLICO (ESTUDOS E PARECERES). Rio de Janeiro: Renovar, 2002. V. 3, pg 231. Neste trabalho, o autor afirma que “a regra do art. 22 do Código de Defesa do Consumidor, visando garantir a prestação de serviços contínuos, não pode, obviamente, ser entendida como a admissibilidade de serviços gratuitos, em detrimento da elementar estabilidade financeira da concessão, que é objeto de lei ou seja de norma de igual hierarquia”. 52 Cf. FADEL, Marcelo Costa. O DIREITO DA ENERGIA ELÉTRICA SOB A ÓTICA DO CONSUMIDOR. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. pg. 102. Na passagem indicada, o autor trata não só dessa, mas de outras consequências da adoção unânime da corrente defensora da continuidade absoluta do serviço público, todas elas desastrosas para a própria prestação do serviço.
59
5.1.2 A CULTURA DO CALOTE FERE O ORDENAMENTO JURÍDICO E O
EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DA CONCESSÃO E PREJUDICA A
CONTINUIDADE DO SERVIÇO EM ÂMBITO COLETIVO
Conforme vimos, a cultura do calote é o inadimplemento generalizado e
costumeiro por parte dos usuários quanto às suas obrigações de pagar pelo serviço
contínuo e adequado recebido.
Esse comportamento gera consequências que atingem diretamente o
equilíbrio da relação entre usuários e distribuidoras de energia elétrica, dentre as
quais é a violação da ordem econômica do fornecimento de energia elétrica e a
quebra do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
É que a contraprestação pela execução do serviço, paga pelo
consumidor final com tarifas baseadas no serviço pelo preço, nos termos da Lei
no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, é integrante do regime econômico e financeiro
das concessões de energia elétrica, conforme determina o art. 14, I, da Lei número
9.427/96, mormente conhecida como Lei da ANEEL, caracterizando-se, portanto,
como um direito das concessionárias o recebimento da taxa paga individualmente
por cada usuário, de forma que o não pagamento da taxa, por si só, já caracteriza a
violação desta regra53.
Devemos, ainda, ter em mente que a doutrina e a jurisprudência tem
entendido que o recebimento da contraprestação dada pelo consumidor, pela
concessionária, é essencial e deve retribuir o serviço recebido pelo usuário e cobrir
pelo menos os custos suportados pelo distribuidor de energia, de forma a garantir
esse equilíbrio54. Isso somente é garantido, como se vê, com a recepção das tarifas,
53 É importante sempre nos lembrarmos do art. 175, IV, da Constituição, que ainda trata da política tarifária dos serviços públicos, revelando que o legislador constituinte originário quis colocar o recebimento da tarifa como um fator primordial para a manutenção do serviço e, consequentemente, da continuidade da sua prestação. 54 Cf. SUZIN, Juliana Bonella. Ob. Cit. Ainda recomenda-se ver o julgamento do REsp 1185070/RS, de relatoria do Ministro Teori Zavascki, julgado no dia 22 de setembro de 2010 e publicado do Diário da Justiça no dia 27 do mesmo dia e ano. Outros julgados que merecem citação aqui são o REsp nº
60
de acordo com o ensinamento de Caio Tácito (2002, pg. 233) em parecer dado
sobre o tema:
A garantia da equação financeira das concessões repousa,
substancialmente, na regular percepção das tarifas, fiadas pelo concedente,
como preço do serviço e causa da obrigação do usuário, na proporção da
energia consumida.
Assim, sabemos que o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de
concessão está intimamente ligado ao recebimento da tarifa pelo distribuidor do
serviço, de forma que ele é essencial à continuidade da atividade. O não
recebimento da tarifa viola este equilíbrio, levando a consequências nada agradáveis
para todo o sistema de concessões, conforme veremos a diante.
5.1.3 O NÃO PAGAMENTO COLETIVO DA TARIFA DE ENERGIA ELÉTRICA
PODE LEVAR AO COLAPSO DO SISTEMA E DAS CONCESSIONÁRIAS DO
SERVIÇO DE DISTRIBUIÇÃO DESTE SERVIÇO
Conforme sabemos e podemos observar tanto a partir da legislação do
tema como a partir do próprio caráter do serviço, o cumprimento de obrigações na
relação entre distribuidora e usuário é uma via de mão dupla55. Se existe um
excesso de tráfico em um dos dois lados, ou se uma mão está bloqueada de forma a
ter que transferir o tráfico desta para a outra, então o congestionamento gerará
dificuldade no fluxo no lado sobrecarregado, o que gera transtornos de gigantesca
ordem.
Por mais que estejamos tratando de um serviço público, não podemos
excluir da nossa análise que existe um contrato a ser observado não somente entre
604364/CE, 1ª Turma – STJ, rel. Min. Luiz Fux, j. 18/05/2004, (DJU 21/06/2004). AG nº 497589/SP, 2ª Turma – STJ, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 06/04/2004 (DJU 03/05/2004). AC nº 2003.001.22677, 15ª Câmara Cível – TJRJ, rel. Des. Sergio Lucio Cruz, j. 01/10/2003 (DJRJ 08/10/2003). AC nº 2003.001.18404, 11ª Câmara Cível – TJRJ, rel. Des. Claudio de Mello Tavares, j. 03/09/2003 (DJRJ 17/09/2003). 55 Cf.: ARAGÃO, Alexandre Santos de. RDA. 263: 35-66.
61
Estado e concessionária, mas também entre concessionária e usuário56, o qual
determina direitos e deveres para ambos os lados, inclusive para o lado consumidor
da relação, dentre as quais está o dever de manter as instalações elétricas da
unidade consumidora dentro dos padrões técnicos brasileiros, pagar a fatura de
energia elétrica até a data do vencimento, sujeitando-se o consumidor às
penalidades cabíveis no caso de descumprimento, dentre outras.
Não podemos, portanto, colocar sobre uma das partes do contrato o
encargo gerado pelas duas partes, sob pena de gerar grandes prejuízos à
concessionária. A falta de pagamento, se generalizada, levará à falta de recepção
da remuneração legalmente prevista em favor da concessionária, o que leva à
redução dos ativos da empresa, gerando um déficit no fluxo de caixa, acarretando a
insuficiência de recursos para sequer gerir o sistema de fornecimento de energia
elétrica, o que levaria as companhias à falência certa. Isso leva à dificuldade de
atração de investimentos para futura delegação do serviço57.
Ou seja: por causa do inadimplemento do usuário, todo o sistema está
comprometido, com consequências que ecoam não só no presente, mas também no
futuro, tendo em vista que a instabilidade do sistema afugenta quaisquer potenciais
investidores no serviço, e não é esse o objetivo de se conceder o serviço a
particulares. Além disso, com a falência das companhias energéticas, o nível de
desemprego cresceria de forma considerável, tendo em vista o número de
demissões que indubitavelmente aconteceria.
Portanto, a prestação, manutenção, expansão e o melhoramento do
serviço somente são viáveis a partir do cumprimento do dever do cidadão
consumidor de pagar a sua tarifa de energia elétrica regularmente, haja vista a
56 Este contrato é de adesão e pode facilmente ser achado no sítio virtual da ANEEL no endereço <http://www.aneel.gov.br/cedoc/bren2010414.pdf>. Acesso em: primeiro de abril de 2014. Também devemos nos lembrar sempre do caráter trilateral da concessão de serviços públicos, dizendo-se, portanto, que é uma relação complexa. 57 Tese confirmada por Ana Maria Goffi Flaquer Scartezzini em obra já citada neste trabalho, na qual ela fala que “essa continuidade [do serviço público] não pode ser entendida em termos absolutos sob pena de comprometer a atividade empresarial do concessionário, que tem protegida a equação econômico-financeira, a ser implementada preferencialmente pelo pagamento da tarifa, mesmo que adicionada a outras fontes de renda”. (O PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO, São Paulo: Malheiros, 2006, pg. 112)
62
essencialidade da contraprestação para a execução do supramencionado. Sem isso,
está decretada a quebra de todo o sistema do serviço58.
De forma bastante contundente, Caio Tácito (2002, pg. 233), dando
parecer sobre sentença que considerava ilegal a suspensão do fornecimento de
energia elétrica por inadimplemento do usuário, ensina que:
“Admitir-se – como pretende a decisão contestada – a omissão no
pagamento do efetivo fornecimento de que o consumidor é beneficiário,
viola o princípio capital do equilíbrio financeiro e torna inviável a
continuidade dos serviços, acarretando a insolvência do concessionário com
a correspondente paralisação da atividade, inclusive com reflexos no
sistema interligado em que se insere.
Com efeito, é inquestionável o direito subjetivo das concessionárias à
justa remuneração do capital investido na atividade, o que é primordialmente feito
através do recebimento das tarifas pagas pelos consumidores. O processo que
envolve tanto a produção como a transmissão e principalmente a distribuição (sobre
a qual nos ativemos durante este trabalho) jamais poderá operar em detrimento do
direito de cada empresa à garantia do equilíbrio econômico-financeiro, isto é, à taxa
mínima de remuneração legal, com a subtração de recursos necessários à
manutenção próprio sistema, ou à necessária expansão e melhoramentos dos seus
serviços59.
Por fim, é importantíssimo lembrar-nos de que, por ser obrigação do
Estado manter o equilíbrio econômico-financeiro da concessão, seria necessária a
majoração das tarifas de energia elétrica, em cumprimento ao art. 9º, §2º, da Lei
número 8.987/95, necessariamente encarecendo o já alto preço das faturas de
energia elétrica, dificultando, ainda mais, a continuidade do adimplemento dos
consumidores que pagam as suas faturas normalmente, levando ao aumento no
índice de inadimplência, especialmente entre os consumidores de baixa renda.
Vemos, portanto, que o serviço está seriamente comprometido se for
adotado o entendimento de que a suspensão do fornecimento de energia elétrica por
58 Cf. TÁCITO, Caio. Ob. Cit., pg. 233. 59 Cf. TÁCITO, Caio. RDA, 155: 32-45.
63
inadimplemento do usuário é ilegal, ainda mais tendo em vista que o princípio da
continuidade do serviço público não se refere à individualidade da fruição do serviço,
mas sim à coletividade desta. Assim, a adoção desta corrente colocará em risco o
princípio que ela mesma visa defender, tendo em vista que o colapso do sistema
leva ao inevitável fim da prestação deste serviço tão importante.
64
6 CONCLUSÃO
Vimos neste trabalho as coisas pertinentes à análise do tema em
questão: o histórico das atividades prestacionais do Estado, o conceito de serviço
público, a exposição das normas jurídicas incidentes sobre o serviço público de
fornecimento de energia elétrica, a análise legislativa e jurisprudencial do tema e a
análise econômica deste.
Vimos, portanto, que o Estado, desde o seu nascedouro, já adotava a
concepção de que devia prestar serviços de utilidade pública, pois tinha sido criado
dentro dessa perspectiva: promover a interdependência social.
Com o passar dos tempos, vimos que, embora tenha se afastado
momentaneamente, tendo a Igreja assumido esse papel, o aparelho estatal sempre
esteve presente na prestação destes importantes serviços.
Já a partir do New Deal, o Estado volta a assumir as funções que antes
tinha abandonado, assumindo-as mais uma vez para si próprio. A partir dos anos 80,
porém, com a onda neoliberal, mais uma vez o ente estatal afasta-se da prestação
direta do serviço, passando a delega-la a particulares, tornando-se, com isso, um
regulador da atividade.
Mas, com a regulação legislativa, veio um problema: como dar uma
interpretação que vise garantir a supremacia do interesse público sobre o privado,
sabendo que esses serviços são de prestação universal, mas, ao mesmo tempo, são
fruíveis individualmente por cada cidadão? A solução estaria no próprio regime de
direito público que rege o serviço, colocando a supremacia do interesse comum
sobre a individualidade da prestação e dos interesses relacionados a ela.
Chegamos à conclusão de que existe uma aplicação errônea da
legislação em cima dos serviços públicos. Infelizmente, a maior parte das casas
65
julgadoras, se preocupando demasiadamente com a proteção do consumidor,
desvirtuam a natureza do serviço, colocando, sem saber, em risco o próprio sistema
de fornecimento de energia elétrica. Porém, essa motivação somente existe em
razão da ignorância que permeia o próprio Poder Judiciário em relação às normas
que regulam esse serviço público tão importante. Assim, a decisão que desconhece
toda a estrutura do sistema de prestação do serviço, pretendendo dar validade à
omissão do usuário, ou somente protege-lo, levada às suas consequências,
decretará o colapso da receita da concessão, em prejuízo de toda a comunidade
servida.
Desta feita, as últimas consequências econômicas da validação do
posicionamento que legitima a proibição da suspensão deste serviço são
desastrosas, compreendendo desde a quebra do equilíbrio econômico-financeiro da
concessão entre esta e o usuário até o colapso do sistema e o desemprego de
milhares de cidadãos e a oneração do erário com o desvio de recursos e a alteração
de tarifas, encarecendo-as. Tendo isso em vista, há que se proteger essa relação
como forma de manter o serviço funcionando corretamente, assim como é
necessário manter as concessionárias funcionando, já que a proibição traria a
institucionalização do calote, assim como significaria certamente a sobreposição do
interesse privado (o usuário que não quer ter o fornecimento do serviço
interrompido) ao interesse público (o interesse de manter o serviço funcionando bem
para a coletividade a despeito da suspensão do fornecimento a um ou outro pela
inadimplência do usuário).
Portanto, é legal e razoável a suspensão do fornecimento de energia
elétrica por inadimplemento do usuário, tendo em vista os fundamentos
apresentados no presente trabalho.
66
7 REFERÊNCIAS
GROTTI, Dinorá. O SERVIÇO PÚBLICO E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE
1988. São Paulo: Malheiros, 2003;
SUZIN, Juliana Bonella. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA
ELÉTRICA POR INADIMPLEMENTO. Disponível em:
<http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2012_2/
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PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. DIREITO ADMINISTRATIVO. São Paulo: Atlas,
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