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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO TATIANA MARIANO FEITOZA LOS MISTERIOS DEL PLATA: LITERATURA DE AUTORIA FEMININA E ROSISMO NA ARGENTINA DO SECULO XIX

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

TATIANA MARIANO FEITOZA

LOS MISTERIOS DEL PLATA: LITERATURA DE AUTORIA FEMININA E ROSISMO NA ARGENTINA DO SECULO XIX

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Rio de Janeiro, 2009LOS MISTERIOS DEL PLATA: LITERATURA DE AUTORIA FEMININA

E ROSISMO NA ARGENTINA DO SÉCULO XIX

TATIANA MARIANO FEITOZA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas Hispânicas)

Orientadora: Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva

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Rio de Janeiro, 2009LOS MISTERIOS DEL PLATA: LITERATURA DE AUTORIA FEMININA E ROSISMO

NA ARGENTINA DO SÉCULO XIX

Tatiana Mariano Feitoza

Orientadora: Professora Doutora Claudia Heloisa I. Luna Ferreira da Silva

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Literaturas Hispânicas.

Examinada por:

_______________________________Presidente, Profa. Doutora Cláudia Heloisa I. Luna Ferreira da Silva - UFRJ

_______________________________Profa. Doutora Angélica Soares - UFRJ

_______________________________Profa. Doutora Maria Lizete dos Santos - UFRJ

_______________________________Profa.Doutora Maria Aparecida da Silva – UFRJ

_______________________________Prof.Doutora Sonia Cristina Reis – UFRJ

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Rio de Janeiro, 2009

FICHA CATALOGRÁFICA

Feitoza, Tatiana Mariano M289mfe Los Misterios del Plata: literatura feminina e rosismo na Argentina no século XIX/Tatiana Mariano Feitoza.- Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. 133f.: - il. (algumas color.)

Orientadora: Claudia Luna Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Departamento de Letras Neolatinas, 2009. Bibliografia: f. 95-100

1.Manso de Noronha, Juana Paula (1819-1875). Los Misterios del Plata – crítica e interpretação. 2. Manso de Noronha, Juana Paula (1819-1875). Los Misterios del Plata- Personagens. 3. Mulheres e literatura. 4. Romance Argentino-Séc. XIX-História e crítica. 5.Condições sociais-Argentina-Séc XIX. 6. Literatura e Sociedade-Argentina. I. Claudia Luna. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.

CDD A863.59

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Meus Agradecimentos

A Deus, Pela força, ânimo e dons concedidos.

À memória de meu pai,Jamais ausente nos meus pensamentos, o testemunho do meu afeto.

A minha família,Pela paciência, pelos alicerces e pelos caminhos carinhosamente apontados.

A meus amigos,Pela paciência e ausência necessárias.

Aos demais professores do departamento de Letras Neolatinas, bibliotecários, em especial a Marisa, que me ajudou a encontrar materiais que enriqueceram minha dissertação, através do COMUT (Programa de Comutação Bibliográfica), o que permitiu a importação de textos.

Ao Instituto Cultural Brasil Argentina: agradeço imensamente à bibliotecária Patrícia que, ao longo do curso, se tornou uma grande e sábia amiga, me acolhendo em momentos de dor, alegria e superação, além de me conceder empréstimos de inúmeros livros e extensão do prazo para entrega, economizando, assim, tempo de idas e vindas à biblioteca.

E àqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para que esta jornada chegasse ao fim.

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À Profa. Dra. Cláudia Heloisa I. Luna Ferreira da Silva, mestre e orientadora competente, pela gentileza de ter-me orientado com precisão e esmero, pondo à minha disposição indicações bibliográficas e empréstimo de livros que não poucas vezes se traduziram no empréstimo de valiosos estudos, cumpre-me um grande agradecimento especial e grande admiração.

Os meus sinceros agradecimentos.

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RESUMO

FEITOZA, Tatiana Mariano. Los Misterios del Plata: Literatura de autoria

feminina e rosismo no século XIX na Argentina. Dissertação (Mestrado em

Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio

de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

Um dos assuntos recorrentes das ciências humanas, na vida contemporânea,

é a história da emancipação feminina, ou seja, o questionamento das

condutas e comportamentos femininos em relação aos mandatos patriarcais

e conjugais. Nosso trabalho aborda a Argentina do século XIX, onde houve

um grande interesse por parte das mulheres pela sua participação como

sujeito na sociedade, o que ocasionou inúmeros esforços para atingir seu

objetivo, a emancipação. Tratamos também das semelhanças do tratamento

da questão do rosismo entre a obra Los Misterios del Plata, de Juana Manso

de Noronha, e outras obras canônicas do antirrosismo literário argentino

(Facundo, Amalia e El Matadero). Constatamos, por outro lado, uma singular

diferença quanto ao papel atribuído à personagem feminina na obra de

Manso, em especial no desenlace da trama em relação aos das obras

canônicas. Abordamos, finalmente, a constituição da autoria feminina e do

rosismo na obra de Juana Manso de Noronha.

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RESUMEN

FEITOZA, Tatiana Mariano. Los Misterios del Plata: Literatura de autoria

feminina e rosismo no século XIX na Argentina. Dissertação (Mestrado em

Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio

de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

Uno de los temas recurrientes de las ciencias humanas en la

contemporaneidad es la historia de la emancipación femenina, o sea, la

discusión de las conductas y comportamientos femeninos en relación a los

mandatos patriarcales y conyugales. Nuestro trabajo aborda la Argentina,

donde hubo un gran interés de las mujeres por su participación como sujeto

en la sociedad, lo que ocasionó innúmeros esfuerzos para alcanzar su

objetivo, la emancipación. Trataremos también de las semejanzas del tema

rosismo entre Los Misterios del Plata, de Juana Manso de Noronha y otras

obras canónicas del antirrosismo literario argentino (Facundo, Amalia e El

Matadero). Constatamos, por otro lado, una diferencia del papel atribuido al

personaje femenino de la obra de Manso, en especial, en el desenlace de la

trama en relación a las obras canónicas. Abordamos, finalmente, la

constitución de la autoría femenina y del rosismo en la obra de Juana Manso

de Noronha.

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RIASSUMERE

FEITOZA, Tatiana Mariano. Los Misterios del Plata: Literatura de autoria

feminina e rosismo no século XIX na Argentina. Dissertação (Mestrado em

Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio

de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

Un degli argomenti ricorrenti delle scienze umane contemporanee è la storia

dell’emanicipazione femminile, ossia, il contendimento delle condotte e

comportamenti femminili in relazione ai mandati patriarcali e coniugali. Il nostro

lavoro aguzza l’Argentina del secolo XIX, dove ebbe un grande interesse dalla parte

delle donne per la loro partecipazione come soggetto nella società, cagionando così,

attraverso gli innumeri sforzi per attingere tale obiettivo, la loro emanicipazione.

Trattiamo anche delle somiglianze della questione del rosismo tra l’opera Los

Mistérios del Plata, di Juana Manso de Noronha e altre opere canoniche

dell’antirrosismo letterario argentino (Facundo, Amalia e El Matadero). Costatiamo

una singolare differenza nel ruolo attributo al personaggio femminile nell’opera di

Manso, in relazione allo scioglimento della trama e delle opere canoniche.

Abbordiamo, insomma, la costituzione dell’autoria femminile e del rosismo nell’opera

di Juana Manso de Noronha.

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ABSTRACT

FEITOZA, Tatiana Mariano. Los Misterios del Plata: Literatura de autoria

feminina e rosismo no século XIX na Argentina. Dissertação (Mestrado em

Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio

de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

One of the currently subjects in the contemporary human science is the women's

emancipation history, that is, the questioning about the conducts and women's

behavior regarding to patriarchal and marital mandates. This approach aims

Argentine of the 19th century, where women had interests of their involvement as a

person in the society, resulting on their emancipation through innumerous efforts.

This approach shows rosismo's resemblances between the work Los Misterios del

Plata, by Juana Manso de Noronha and others literary argentinian anti-rosismo

canonical works (Facundo, Amalia and El Matadero). There is a singular difference

on the women's character play in Manso's work, regarding to the plot ending and the

canonical works. Finally, the approach shows the female and rosismo constitution on

Juana Manso de Noronha work.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................p.19

I – GÊNERO E LITERATURA

1.1 – Concepção de gênero e distinção sexual.................................................p.23

1.2 – A trajetória da mulher rumo à emancipação.............................................p.29

1.3 – Inserção da mulher na escrita...................................................................p.33

II – LITERATURA E SOCIEDADE NA ARGENTINA DO SÉCULO XIX

2.1 - Relações de poder, autoridade e violência................................................p.38

2.2 - A sociabilidade da mulher Argentina..........................................................p.44

2.3 – Civilização e Barbárie: a luta antirrosista...................................................p.55

2.4 - Os Cânones na Literatura e a representação da mulher............................p.59

2.5 – As mulheres na literatura e a representação do rosismo...........................p.65

III – O ROSISMO E A PARTICIPAÇÃO DE JUANA MANSO

3.1 A militante de Álbum de Señoritas e a emancipação da mulher...................p.69

3.2- Rosismo no romance....................................................................................p.80

3.3- Los Misterios del Plata: Um caso de dupla autoria?.....................................p.89

IV- CONCLUSÃO.................................................................................................p.104

V – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................p.107

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VI – ANEXOS........................................................................................................p.112

I - INTRODUÇÃO

Este trabalho teve como ponto de partida o resgate de textos literários de

autoria feminina do século XIX, na América Hispânica, que venho ampliando desde

o grupo de pesquisa na graduação e que permitiu o acesso aos textos que

selecionei para esta análise, que desenvolve o tema da ditadura de Juan Manuel de

Rosas sob a visão da autora Juana Manso de Noronha1.

Nosso tema é a análise da autoria feminina e o gênero na obra selecionada;

Los Misterios del Plata. A pesquisa que desenvolvemos se insere no contexto da

literatura feminina produzida na época do Rosismo2. Trata-se, inicialmente, de nos

acercarmos aos argumentos teóricos capazes de nos subsidiar; num segundo

momento, do trabalho de análise e interpretação da própria obra de autoria feminina.

Nosso problema constitui-se, por conseguinte, em investigar qual a atribuição

dada à mulher na obra de Manso e qual a visão da autora na época da ditadura de

Rosas na mesma obra. Nossa hipótese é que, diferentemente de outros romances

contemporâneos, além de a mulher ser o personagem principal, Manso construiu

uma heroína que enganou o anti-herói, Rosas, e, assim, o texto se ocupou em

ressaltar um “final feliz”.

1 Todas as obras resgatadas foram gravadas em disquetes e em cds a fim de formarmos um grande acervo na Faculdade de Letras da UFRJ.

2 O termo “rosismo” se refere ao período compreendido entre 1829 e 1852 no qual a Argentina foi governada por Juan Manuel de Rosas, um rico fazendeiro que polarizou as províncias depois da independência das facções inimigas, os federais (que o apoiavam e que pleiteavam a divisão política em províncias autônomas, desassociadas do controle portenho) e os unitários (defensores de um poder central comandado por Buenos Aires e a quem Rosas perseguia implacavelmente. O rosismo, a ideologia da ditadura, serviu de pano de fundo para todas as narrações de Manso.

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Este trabalho tem como objetivo estudar a literatura de autoria feminina

produzida no governo de Juan Manuel de Rosas, na Argentina do século XIX, ao

mesmo tempo em que a trajetória em busca da emancipação feminina, temas

explorados por uma das autoras mais importantes que escreveu na Argentina nesse

século, mais exatamente entre 1846 e 1876.

O quadro teórico que dará suporte ao estudo é composto por Simone de

Beauvoir (1980), Marta Lamas (1996), Lea Fletcher (1994) e Nelly Richard (2002),

que trataram a questão do gênero. Francine Masiello (1997) e Cristina Iglesia (1988)

nos situarão na época de Rosas. A situação da mulher em Hispanoamérica será

tratada por George Duby e Michelle Perrot (1991), Cristina Arambel-Guiñazú e Claire

Emilie Martin (2001). E, por fim, com relação ao estudo sobre a questão de poder,

partimos de autores como José Gil (1989), Norberto Bobio (1989), Foucault (1979) e

Vazques (1977).

Manso foi pedagoga e escritora (1819-1875). Durante o governo de Juan

Manuel de Rosas emigrou a Montevidéu com seus familiares e viajou posteriormente

a Cuba, Brasil e EUA. De volta a sua pátria em 1854, propiciou a criação de escolas

e bibliotecas públicas e defendeu a emancipação da mulher. Entre suas obras estão

La família del comendador, Compendio de historia de las Províncias Unidas del Rio

de la Plata e Los Misterios del Plata.

O Rosismo inspirará uma série de obras escritas pelos inimigos de Rosas,

como por exemplo, El matadero, de Esteban Echeverría, Facundo, de Domingo

Faustino Sarmiento e Amalia de José Mármol. Todas são muito conhecidas e têm

sido objeto regular de estudo. Por outro lado, as obras das mulheres da mesma

época, como Juana Manuela Gorriti e Eduarda Mansilla, entre outras, com o mesmo

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teor, não chamaram a atenção que mereciam. As obras de conteúdo político

escritas por mulheres contradizem a noção de que a mulher do século XIX não saía

do ambiente privado do lar e não manifestava interesse político, característica, ao

contrário, tão presente naqueles anos.

O presente trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro, focalizaremos os

aspectos gerais da literatura feminina; para tanto analisaremos a questão do gênero,

que é uma das formas de compreender as mulheres como parte integral da

sociedade e não como um sujeito isolado. A questão teórica feminina, nesse caso

traçada a partir do estudo de Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo (1980),

representa um novo modo de falar do gênero. Esta autora insistiu na igualdade entre

os sexos e incitou as mulheres a se emanciparem e terem uma vida independente.

Faremos uma breve análise sobre a escrita feminina, em seguida analisaremos a

história das mulheres desde o surgimento do Salão Literário (século XVII) até os

salões do século XIX na América Hispânica e as sociedades de beneficência, o que

instaura, aos poucos, a mulher no meio público e possibilita que a escrita se torne

autônoma.

No segundo capítulo apresentamos a formação da mulher escritora na

Argentina do século XIX. Especificamos as relações de poder, autoridade e violência

que foram usadas para compor a obra de Manso, na época da ditadura de Rosas.

A sociabilidade da mulher na Argentina explicou a sua função na sociedade

em tempo de guerra civil. No tópico seguinte, examinamos o par civilização e

barbárie e o tratamento do tema da mulher na literatura canônica do antirrosismo.

No tópico sobre as mulheres na literatura, será analisada a atuação da mulher em

meio ao conflito entre unitários e federais, na obra de Manso.

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O terceiro capítulo se inicia com a origem do Álbum de Señoritas, que inclui

referência a suas atividades literárias e periodísticas, com a finalidade de situar seus

trabalhos no contexto de época e discute como a questão da emancipação feminina

foi apresentada através do Álbum. O segundo tópico enfoca o rosismo em Los

Misterios del Plata. E finalmente, no último tópico, indagamos se esta obra de Manso

é um caso de dupla autoria.

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I - LITERATURA FEMININA: ASPECTOS GERAIS

“Arguye de inconsecuente el gusto de los hombres.”

SOROR JUANA INÉS DE LA CRUZ

1.1 – Concepção de Gênero e distinção sexual

Começaremos nosso trabalho fazendo uma breve análise da questão de

gênero e sexo, já que este tema é primordial para o estudo da Literatura Feminina.

O gênero é um tema novo, um novo departamento que desperta o interesse na

investigação por parte de vários estudiosos da área de literatura, no que se refere

aos paradigmas históricos existentes, como, por exemplo, o da mulher dependente

do marido, que deve cuidar da família e não tem vida social. Tal estudo é uma

forma de compreender as mulheres não como um aspecto isolado da sociedade, e

sim como uma parte integrante da mesma.

Vejamos a abordagem da questão em El género: La construcción cultural de

la diferencia sexual de Marta Lamas (1996). Em sua acepção recente, gênero é

sinônimo de mulher. Nos últimos anos, certo número de livros e artigos cuja matéria

é a história das mulheres substituíram em seu título o termo “mulheres” por “gênero”.

Para Marta Lamas, o emprego de gênero trata de destacar a seriedade acadêmica

de uma obra, porque gênero soa mais neutro e objetivo que “mulheres”. Esse uso do

termo gênero é um aspecto do que se poderia chamar a busca da legitimidade

acadêmica por parte das estudiosas feministas do século XX, na década de setenta.

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Mas isto é somente um aspecto. Gênero, como substituição de mulheres, se

emprega, também, para sugerir que a informação sobre as mulheres é

necessariamente informação sobre os homens, que um estudo implica o outro. Além

disso, gênero é empregado, também, para designar as relações sociais entre os

sexos. Seu uso explícito se opõe às explicações biológicas. Gênero passa a ser

uma forma de denotar as “construções culturais” (LAMAS, 1996, p.270-271).

O estudo do gênero está ligado à teoria feminista e, como exposto no

parágrafo anterior, podemos apresentá-los como sinônimos, o que nos remonta aos

debates feministas dos anos setenta, quando foi exposta, pela primeira vez, a

distinção entre sexo e gênero. Os estudos antropológicos dos papéis que adquiriram

homens e mulheres em sociedades distintas da ocidental mostram que tanto as

patentes diferenças de categorias, como a feminina e a masculina, como os papéis

masculinos e femininos eram produto de contextos históricos e sociais específicos.

Sendo assim, se entendia que o sexo era o fator biológico, e o gênero, a construção

social do sexo.

Os papéis sexuais assumidos como naturais e baseados num fato biológico

inato haviam sido o principal argumento da discriminação das mulheres no seu

espaço. O peso dos costumes e da tradição havia imperado sobre a lógica

masculina e a crescente vontade social e política que as mulheres tinham, referente

a uma participação equivalente à dos homens na sociedade, era menosprezada.

Segundo Lamas, gênero é um conceito que na década de setenta do século

XX começou a ser utilizado nas Ciências Sociais como categoria de aceitação

específica (Ibidem, 1996, p.97). Seguindo ainda o pensamento dessa autora,

podemos estabelecer duas etapas vinculadas diretamente ao desenvolvimento do

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feminismo. A primeira iria de meados do século XIX até os anos setenta do século

XX, e teve como objetivo lutar pela reivindicação de direitos e outras demandas

políticas que assumiam diversas tendências ideológicas. O que se buscava era

resgatar do esquecimento as mulheres escritoras, pensadoras, lutadoras que

haviam sido excluídas ao longo da história; tentava-se denunciar essa realidade que

colocava a mulher de lado na sociedade e que a limitava em todos os campos.

A segunda etapa, que engloba a atualidade, busca uma ruptura simbólica da

figura legitimada de mulher e do discurso construído sobre ela, mediante diferentes

perspectivas teóricas que pretendem analisar os efeitos da invisibilidade e

marginalização das experiências das mulheres dos espaços do poder, tais como a

escritura e o âmbito político. Segundo Lamas:

Impera a compreensão teórica da situação da mulher, a reflexão e o estudo dos mecanismos que possibilitaram, ao longo da história, e, em cada época, a dominação da mulher por parte do homem. O gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças que distinguem o sexo e o gênero, é uma forma primária de relações significantes de poder (LAMAS, 1996, p.17). (tradução nossa)

A respeito da distinção entre sexo e gênero, a obra de Nelly Richard (2002) é

bastante esclarecedora. Em seu capítulo intitulado Literatura de mulheres e escrita

feminina: como textualizar a diferença genérico-sexual? vimos que a autora procura

comentar as idéias em torno das marcas de sexo e gênero na escrita e,

fundamentalmente, na literatura de mulheres.

Assim como outras escritoras e críticas literárias feministas de renome,

Richard faz o seguinte questionamento: “É a mesma coisa falar de literatura de

mulheres e escrita feminina? Falar de escrita feminina é o mesmo que se perguntar

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como o feminino, em tensão com o masculino, ativa as marcas da diferença

simbólico-sexual e as recombina na materialidade escritural dos planos dos textos?”

(RICHARD, 2002, p.129).

Inúmeras pesquisadoras buscam características literárias na imagem da

mulher, ou seja, buscam um estilo do feminino, ou então um tema que corresponda

o argumento citado. Diante disso, Richard diz que, para superar a análise temática

da imagem da mulher, como método para explicitar as equivalências de identidade,

entre a definição de gênero (ser mulher) e sua representação literária (o feminino),

devemos refazer aquelas perguntas, como por exemplo: “o que faz, de uma escrita,

uma escrita feminina? Temos expectativas diferentes quando lemos o texto poético

de uma mulher?” (Ibidem, 2002, p.129-130).

Richard diz que a ‘literatura de mulheres’ “designa um conjunto de obras

literárias cuja assinatura tem valência sexuada” e que tal literatura “se mobiliza para

delimitar um corpus, baseado no recorte da identificação sexual”, sendo que para

isolar esse corpus se apelaria a uma “identidade de gênero” (Ibidem, 2002, p.129).

Segundo ela, a ‘escrita feminina’ deveria necessariamente construir

representações antipatriarcais, contra-hegemônicas, sendo que esse tom seria dado

pelo lugar político a partir de onde ela é produzida:

Qualquer literatura que se pratique como dissidência da identidade, a respeito do formato regulamentar da cultura masculino-paterna, assim como qualquer escrita que se faça cúmplice da ritmicidade transgressora do feminino-pulsátil, levaria o coeficiente minoritário e subversivo (contradominante) do ‘feminino’. Quaisquer escritas, prontas para alterar as pautas da discursividade masculina/hegemônica, compartilharia o “devir-minoritário” (Deleuze-Guattari) de um feminino que opera como paradigma de desterritorialização dos regimes de poder e

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captura da identidade, normatizada e centralizada pela cultura oficial. (Ibidem, 2002, p.133)

No parágrafo anterior Richard fez referências a Julia Kristeva, que defende

que a escrita coloca em funcionamento um “processo interdialético de várias forças

de subjetivação” (Kristeva apud RICHARD, p.132), sendo as principais forças a

“raciocinante-conceitualizante (masculina), garantindo a instituição do signo” e a

“semiótico-pulsátil (feminina), que excederia a finitude da palavra com sua energia

transverbal” (Ibidem, p.132). Isso nos poderia ajudar a definir qual das forças

predomina – a identificada como masculina ou como feminina e, a partir dessa

concepção, poderíamos definir qual das forças seria a determinante na execução do

texto.

Richard, desde esse ponto, defende a “feminização da escrita” ao invés de

“escrita feminina”. A autora rejeita, assim, a coincidência natural entre determinante

biológico (ser mulher) e identidade cultural (escrever como mulher), o que permitiria

lermos nas entrelinhas da representação, onde inclusive o espaço e as marcas do

feminino (e do masculino) estariam menos limitados e naturalizados. Ainda segundo

ela:

Somente depois de romper com a crença determinista, na qual a função anatômica (ser mulher/ser homem) e papel simbólico (o feminino/o masculino) se correspondem naturalmente, e com o mito da Identidade-Una do corpo de origem, é possível tornar extensivo o valor contestatório do feminino (entendido transversalmente) ao conjunto das práticas anti-hegemônicas (Ibidem, 2002, p.134).

Percebe-se, a partir disso, que tanto o feminino quanto o masculino podem

transgredir a dinâmica monológica dos signos, escrevendo de forma transgressora e

interrogando as hegemonias estabilizadas. Para a autora, o fundamental seria que a

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crítica feminista continuasse a “pensar o feminino como em tensão com o marco da

intertextualidade cultural”, e não em isolamento (RICHARD, 2002 p.136). É nesse

sentido que todas as vozes, inclusive as masculinas, que se proponham a

questionar cânones rígidos e fechados, bem como as ortodoxias patriarcais devem

ser resgatas como possíveis aliadas das vozes femininas e feministas

emancipatórias. Dentro desse panorama, haverá produções literárias femininas que

não se comparam com esses princípios transgressores, exatamente porque rompem

a ilusão errônea de que o corpo determinaria o pertencimento ou a inserção cultural.

Mas, temos de ter em mente que:

A explicação de porque o feminismo é prioritário para as mulheres e porque as mulheres são prioritárias para o feminismo (dizer prioritário não é dizer exclusivo, nem menos ainda excludente), tem obviamente a ver com o fato de que, ao serem elas as que se inserem mais desfavoravelmente nas estruturas sociais e culturais, a tarefa crítica de desorganizar e reinventar os signos da cultura, desde um ponto de vista não hegemônico, é mais vital e decisiva para elas que para aqueles que, apesar de tudo, continuam se beneficiando dos privilégios de autoridade da própria cultura que criticam (Ibidem, 2002, p.161).

Apresentada a discussão sobre gênero e sexo, passemos, agora, ao estudo

da questão teórica feminina, que conferirá um singular respaldo para os tópicos

expostos neste primeiro capítulo.

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1.2 – A trajetória da mulher rumo à emancipação

Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, aborda a questão feminina,

demonstrando que a inferioridade feminina não é natural e sim construída

socialmente, fato que, no seu entender, é um modo novo de falar do gênero.

Beauvoir insiste na igualdade entre os sexos e incita as mulheres a se

emanciparem, principalmente através da independência econômica. Na história das

sociedades, são alterados continuamente os conceitos em relação aos fenômenos

sociais que traduzem as diferentes manifestações da vivência humana (religião,

moral, política, etc.), em escala universal, por força da dinâmica da própria vida, em

cada sociedade, no tempo e no espaço.

Primitivamente, por exemplo, não havia diferença entre o status social da

mulher e do homem, tampouco entre o trabalho de ambos. À mulher coube o cultivo

da primeira agricultura, domesticação e criação dos animais de pequeno porte,

tarefas domésticas, criação dos filhos, etc. Essas atividades não eram consideradas

inferiores às do homem, tendo tanta importância social e laboral quanto as deste,

como a caça, pesca, criação dos animais de maior porte e guerra.

Em seu desenvolvimento, as tribos (que surgiram antes da família) atingiram

tal grau de evolução que nelas a propriedade coletiva da terra, assim como dos

instrumentos, ferramentas, rebanho, colheita, passou a constituir propriedade das

famílias, que começaram a administrar e defender esses bens (BEAUVOIR, 1980,

p.87).

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O advento da propriedade privada representou, portanto, um fator de

superação e progresso, mas também um motivo de lutas e, futuramente, de guerras.

Com a consolidação do patriarcado, simbolizado pela autoridade masculina, os

homens eram proprietários; todavia, o direito materno (reminiscência da antiga fase

de promiscuidade sexual e do matriarcado)3, isto é, a contagem da descendência,

impedia que os filhos desses proprietários se tornassem herdeiros, por isso esse

direito “devia ser abolido, e o foi” (SOARES, 1978, p.5). Daí se considera que “a

queda do direito materno foi a grande derrota histórica do sexo feminino” (Ibidem).

A partir de então, o controle da propriedade e da riqueza em geral passou às

mãos do homem, a quem a mulher teve de se submeter, na condição de

dependente. Daí em diante, quer no âmbito doméstico, quer no social, a mulher se

encontrou invariavelmente num plano e numa condição inferiores aos do homem.

Em seu livro, Beauvoir nos diz que “O homem é assim, em conseqüência

dessa diferenciação, o princípio ativo, enquanto a mulher é o princípio passivo,

porque permanece dentro da sua unidade não desenvolvida” (BEAUVOIR, 1980,

p.30). A mulher não representava a autoridade na casa; nunca mandava, nem

mesmo era livre, senhora de si própria. Para todos os atos da vida religiosa, a

mulher precisava de um chefe (o pai ou o marido), e para todos os atos de sua vida

civil necessitava de um tutor (Ibidem, p.103).

Seguindo com o estudo, temos a história que registra e o progresso dos

povos que comprova as concepções dominantes e as leis que sempre colocaram os

dois sexos em condições de desigualdade jurídica, desfavorecendo a mulher,

situando-a, como vimos, numa posição de dependência e de subordinação,

obrigando-a por isso a uma luta constante por sua emancipação e afirmação social. 3 BEAUVOIR, 1980, p.87

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A Revolução Francesa4 e o desenvolvimento capitalista aceleraram o progresso e a

emancipação social da mulher. A Revolução Socialista (1917) constituiu a etapa

mais avançada dessa luta.

No século XIX surgiu a Revolução Industrial5 e uma de suas conseqüências é

a participação da mulher no trabalho de produção. Historicamente, “os homens

apegaram-se à velha moral que vê na família a garantia da propriedade privada. A

exigência da mulher no lar tanto mais firmemente quanto sua emancipação tornou-

se uma ameaça (BEAUVOIR, 1980, p.17). Assim, essa relação de produção e de

troca propiciou o advento do capitalismo industrial, numa seqüência de modificações

nas condições de vida, nos hábitos e no pensamento humano, caracterizados pela

Revolução Industrial. Foi ressaltado em O Segundo Sexo que a mulher reconquista

a importância social que perdera desde as épocas pré-históricas, porque escapa do

lar e tem, com a fábrica, ou melhor, com o uso de sua mão-de-obra nas fábricas,

nova participação na produção. Essa é a grande revolução que, no século XIX,

transforma o destino da mulher, abrindo, assim, uma nova era. Além disso, mostra

que a sorte da mulher está estreitamente ligada à história da propriedade privada,

substituída pelo patriarcado que escravizou a mulher à vida conjugal, mas a

4 Revolução Francesa é o nome dado ao conjunto de acontecimentos que, entre 5 de Maio de 1789 e 9 de Novembro de 1799, alteraram o quadro político e social da França. Em causa estavam o Antigo Regime (Ancien Régime) e a autoridade do clero e da nobreza. Foi influenciada pelos ideais do Iluminismo e da Independência Americana (1776). Está entre as maiores revoluções da história da humanidade. A Revolução é considerada como o acontecimento que deu início à Idade Contemporânea. Aboliu a servidão e os direitos feudais e proclamou os princípios universais de "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" (Liberté, Egalité, Fraternité), frase de autoria de Jean-Jacques Rousseau. Para a França, abriu-se em 1789 o longo período de convulsões políticas do século XIX, fazendo-a passar por várias repúblicas, uma ditadura, uma monarquia constitucional e dois impérios.

5 A Revolução Industrial consistiu em um conjunto de mudanças tecnológicas com profundo impacto no processo produtivo em nível econômico e social. Iniciada na Inglaterra em meados do século XVIII, expandiu-se pelo mundo a partir do século XIX. Ao longo do processo (que de acordo com alguns autores se registra até aos nossos dias), a era agrícola foi superada, a máquina foi suplantando o trabalho humano, uma nova relação entre capital e trabalho se impôs, novas relações entre nações se estabeleceram e surgiu o fenômeno da cultura de massa, entre outros eventos. Essa transformação foi possível devido a uma combinação de fatores, como o liberalismo econômico, a acumulação de capital e uma série de invenções, tais como o motor a vapor. O capitalismo tornou-se o sistema econômico vigente.

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Revolução Industrial é a contrapartida dessa decadência, o que resultará na

emancipação feminina (BEAUVOIR, 1980, p.17).

Além das palavras de Beauvoir, cabe considerar que a emancipação da

mulher só se torna possível quando ela pode participar, em escala social, da

produção, e quando o trabalho doméstico lhe toma apenas um tempo insignificante.

Esta condição só pode ser alcançada com a grande indústria moderna, que não

apenas permite o trabalho da mulher em grande escala, mas até o exige, e tende

cada vez mais a transformar o trabalho doméstico privado em uma indústria pública.

O desenvolvimento econômico contribuiu para minimizar a dependência da mulher

em relação à família, ao homem, tendo a chance de ser equiparada potencialmente

a este.

Duby e Perrot analisam a imagem do século XIX como “austero” e “opressivo”

para as mulheres. Para estes autores, seria incorreto pensar que essa época é

apenas o tempo de uma longa dominação, de uma absoluta submissão das

mulheres. Em suas concepções, esse século assinala o nascimento do feminismo,

palavra emblemática que tanto designa importantes mudanças estruturais (trabalho

assalariado, autonomia do indivíduo civil, direito à instrução) como o aparecimento

coletivo das mulheres na cena política (DUBY e PERROT, 1991, p.9).

Dando continuidade ao pensamento dos autores:

Será preferível dizer que o século XIX é o momento em que a vida das mulheres se altera, ou mais exatamente o momento em que a perspectiva de vida das mulheres se altera: o tempo da modernidade em que se torna possível uma posição de sujeito. Apesar da extrema codificação da vida cotidiana feminina, o campo das possibilidades alarga-se e a aventura não está longe (Ibidem, p.9). (tradução nossa)

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Veremos no próximo tópico a inserção da mulher na literatura, mais

especificamente, no início, na escrita.

1.3 - A inserção da mulher na escrita

A história tem sido quase sempre escrita pela elite social e intelectual, o que

não é novidade. Revelar o papel da mulher na história da cultura tem sido, porém,

uma idéia e prática já reconhecidas por diversas áreas mais recentemente. Vários

textos manifestaram o interesse da mulher e a preocupação por participar nos

debates da época para questionar e modificar seu papel subalterno. Ao longo do

século XIX, lutaram para obter seus direitos à educação e a uma maior participação

nas esferas políticas, laborais e intelectuais.

Na década de 70 do século XX, a defesa da igualdade entre os sexos passa

pela afirmação da diferença (CAVALCANTI, 2006, p.158). A mulher aprendeu a

conviver sem conflito com o autenticamente feminino. Somente nessa última

década, os avanços sócio-culturais permitiram à mulher uma relação íntima com o

saber, rompendo aquela fase marginalizada, que marcou a expressão feminina

anteriormente. No espaço privado, isto é, em seu lar, a mulher podia expressar suas

idéias, relativas unicamente a este universo doméstico. Para ela o homem reservou

este ambiente, para ser vista como “a rainha do lar”. No espaço público, entretanto,

ele reinava. A partir do século XIX a mulher passou a ter um papel importante no

círculo social, o que, mais tarde, lhe proporcionaria a participação sócio-política e

cultural na sociedade. Daremos início ao estudo da inserção na mulher na escrita

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apresentando o salão literário, espaço onde as pessoas eram livres para se

expressar. Tomaremos como base o livro Las mujeres toman la palabra, de Maria

Cristina Arambel-Guiñazú e Claire Emilie Martin (2001).

O Salão Literário surgiu no século XVII na França e se estendeu por toda

Europa, sobretudo a partir do século seguinte. Depois de sua institucionalização na

Espanha, passou aos vice-reinos americanos. Devido ao clima de incerteza política

que reinava na Espanha, cujo rei era prisioneiro dos franceses, os habitantes do

vice-reino do Rio de la Plata examinaram criticamente a validez legal do vínculo que

os unia com a Europa e decidiram em 25 de maio de 1810 criar o primeiro governo

autônomo. Nesta atmosfera revolucionária nasceu o Salão Literário, que

proporcionava aos homens a oportunidade de debater sobre o destino do país,

assim como entrar em contato com os futuros colaboradores para a ação política.

No entanto, as mulheres também assistiam ao salão.

Guiñazú e Martin especificam muito bem como era a participação feminina no

salão:

A partir da segunda metade do século XIX, a dama da burguesia crioula6 é a organizadora da vida social e, como tal, a encarregada de estabelecer os contatos entre políticos, negociantes e intelectuais. Os costumes dos salões, estabelecidos em toda a América Hispânica, têm quase o valor de uma instituição e regulamentam as atividades sociais. (...) As mulheres que se destacavam como anfitriãs ou damas galantes haviam sido especialmente educadas para essas funções.7 (tradução nossa)

Parafraseando as autoras, a importação dos primeiros pianos faz com que

se alternem a música e os bailes. A interação entre homens e mulheres aumenta e

6 Filhos e descendentes de europeus.7 GUIÑAZÚ e MARTIN, 2001, p.16. No original: A partir de la segunda década del siglo, la dama de la burguesía criolla es la organizadora de la vida social y, como tal, la encargada de establecer los contactos entre políticos, negociantes e intelectuales. La costumbre de la tertulia, establecida en toda la América hispana, tiene casi el valor de una institución y reglamenta las actividades sociales. (…) La mujer que lucía sus talentos de anfitriona u de dama galante había sido especialmente educada para esas funciones.

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as jovens ganham a espontaneidade e a chance para participar das conversas. A

europeização dos hábitos muda o comportamento da mulher americana e, a partir

da independência, sua função de formadora de costumes adquire relevância

(GUIÑAZÚ e MARTIN, 2001, p.18).

Nas sociedades urbanas as mulheres ingressam no campo de trabalhos

voluntários chamados de Beneficência Pública.8 As integrantes da burguesia

exerceram influência política desde as salas de suas casas, onde estabeleceram

contato entre o público e o privado. Os diálogos, considerados indispensáveis na

formação da dama burguesa, ofereciam a oportunidade de discutir e disseminar

notícias que abarcavam desde avanços científicos até a moda européia. A

educação, sinônimo de bons modos, se limitava, salvo casos excepcionais, a alguns

conceitos de religião, a conhecimentos musicais, à adoção de regras

comportamentais e às noções básicas de leitura e escrita (Ibidem, p.18).

A mulher que passou a se dedicar à escrita, no século XIX, enfrentou

numerosas limitações de ordem social e cultural devido à própria condição de

gênero. A maior parte dos textos de autores desse século considerava uma

transgressão a mulher desejar estudar e desenvolver interesses fora do ambiente

doméstico. A escrita não era para as mulheres uma simples transgressão das leis

que lhe proibiam o acesso à criação artística. Foi muito mais que isso, um território

clandestino. Seria apenas um desabafo? Não, a escrita feminina é mais um registro

escrito do inconformismo da mulher perante aquelas regras.

Segundo Beauvoir, ao reconhecer seu potencial, a mulher passou a lutar

pelos seus direitos. A valorização das diferenças é, antes de tudo, a constatação de

que o universo feminino existe e não pode mais ser encoberto. A literatura 8 Veremos esse assunto, mais detidamente, no próximo capítulo.

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produzida pela mulher baseia-se neste seu universo, sendo mesmo resultante de

lutas pela sua emancipação desde os primórdios.9

Entre o público e o privado, a mulher que escreve estabelece seu mundo

imaginário, procurando dizer de si mesma aos outros e propondo maneiras

inovadoras de estar e de fazer. No século XIX, as mulheres que escreviam viviam

sob o preconceito e a invisibilidade; as escritoras que emergiram causaram impacto

e deixaram suas marcas, pois estavam trilhando um caminho até então proibido. Ao

longo dos anos, a mulher vai conseguindo se impor no meio social e apresentar

suas idéias em relação a seu lado intelectual, encontrando seu modo de escrever; e

a partir daí é instaurada a escrita feminina. É natural, portanto, que o termo “escrita

feminina” tenha sido considerado uma conquista.

A escritura vai se tornando, aos poucos, autônoma. Esse assunto tem sido

tema de debates e pesquisas de vários estudiosos da área, e resultado em diversos

textos. Por exemplo, alguns dos trabalhos resultantes foram os de uma grande

reunião entre expositoras latino-americanas num congresso em 1992, na cidade de

Buenos Aires, o que originou o livro intitulado Mujeres y cultura en la Argentina del

siglo XIX; compilado por Lea Fletcher (2001). Nele, encontramos artigos que

contribuem para a construção e reconstrução das histórias das mulheres argentinas

do século XIX, assim como para resgatar a voz das escritoras que antes era

silenciada.

Temos, também, no Brasil, o GT (Grupo de Trabalho) A Mulher na Literatura,

da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística

(ANPOLL), que comemorou 20 anos de existência em 2005, com a publicação de

9 Para essa questão, ver Beauvoir, 1980, v.1 e 2

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uma coletânea de artigos organizada por Ana Lúcia Gazzola. Ambos os trabalhos

tratam do resgate da memória e de experiências pessoais.

As mulheres, atualmente, escrevem também por todas as dos séculos

anteriores e mesmo por aquelas que, hoje em dia, em culturas mais restritivas, ainda

são silenciadas. Podemos considerar que a escrita feminina é justamente este livre

expressar-se do universo feminino, paralelo ao masculino, sem imitá-lo, por um lado,

mas sem desconhecê-lo, por outro.

A criação literária como elo de comunicação de sua vida privada com o

público, através da palavra escrita, abre para a mulher um leque de possibilidades

liberadoras para sua vida e minimiza o estagnado cenário cultural de domínio

masculino. Ao se tratar, por exemplo, do tema de poder, autoridade e violência na

época do rosismo, tanto na escrita feminina quanto na masculina, a produção da

mulher era silenciada. Era a confirmação de que muito ainda precisava ser feito

para que aquela literatura produzida por mulheres pudesse ser considerada

autenticamente feminina.

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II – LITERATURA E SOCIEDADE NA ARGENTINA NO SÉCULO XIX

2.1- Relações de poder, autoridade e violência

A perspectiva de Foucault sobre o estudo das relações de poder é

fundamental para a análise das condições requeridas para que as grandes

estratégias de poder se exerçam em micro-relações. As relações de poder são,

segundo este autor: “um feixe aberto de relações mais ou menos organizado, mais

ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado” (FOUCAULT, 1989, p.47).

Permeadas por definições variadas, as questões do poder/autoridade serão

abordadas aqui segundo a perspectiva de alguns autores, para que este tema seja,

de maneira eficaz, aclarado para nosso estudo. Norberto Bobbio afirma que “poder”

significa “uma faculdade, potência legalmente atribuída, possibilidade e capacidade

de fazer (...); significa usar uma força para fazer valer a própria vontade, a legítima

atualização da vontade” (BOBBIO, 1989, p.47). Seguindo seu raciocínio, o autor

define “autoridade” como um ato gerador de qualquer coisa ou de alguém, fonte ou

origem, como está bem expresso na área lingüística e cultural pelo termo latino

auctoritas, que tem os seguintes significados: gerar, propor, sustentar, desenvolver,

autorizar, consentir (Ibidem, p.47).

José Gil trata da questão do poder e da autoridade fazendo uma ligação entre

eles:

A autoridade é atributo do poder que se confere quando é legitimado por um consenso; não existe autoridade não

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reconhecida ou não admitida. O exercício legítimo do poder confere a autoridade; esta pressupõe aquela transferência de forças do qual o prestígio constituiu um excedente, já não como um poder que ultrapassa as fronteiras das competências originais, mas enquanto “poder do poder”. Não se trata de um atributo do prestígio, mas de um atributo de poder. Os indivíduos que reconheceram a autoridade de um chefe aceitam que ele mande; a relação social de reciprocidade encontra-se desequilibrada neste plano, visto que um tem de mandar para que outros obedeçam. (GIL,1989, p.73)

Vimos no parágrafo anterior a relação entre poder e autoridade, ou seja, o

poder não é basicamente estar em condições de impor a própria vontade contra

qualquer resistência. É, antes, dispor de uma confiança tal que o grupo confie aos

detentores do poder a realização dos fins coletivos. Em suma, é dispor de uma

autoridade, sem que esta autoridade implique uma idéia de coerção.

Em seu livro O que é poder? Gérard Lebrun afirma que “o poder que possuo é

a contrapartida do fato de que alguém não o possui”. E apresenta um simples

exemplo, o de um professor que adota a informalidade na relação entre ele e seus

alunos e permite que os mesmos o chamem de “você”. Ainda assim, detém um

poder (de dar-lhes notas) que os alunos não têm sobre ele. Isto é o essencial

(LEBRUN, 1984, p.18).

Bobbio usou as palavras potência e força em sua definição de “poder”. Lebrun

dirá que “potência” designa uma virtualidade, uma capacidade determinada, que

está em condições de exercer-se a qualquer momento. E que “força” não significa

necessariamente a posse de meios violentos de coerção, mas de meios que

permitem influir no comportamento de outra pessoa (Ibidem, p.12). A força não é

sempre um ato físico e direto; pode ser o uso da sedução, da manipulação, do

conhecimento, etc. A força é a canalização da potência, é a sua determinação. E é

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graças a ela que se pode definir a potência das relações sociais ou, mais

especificamente, políticas.

Seguindo com as idéias iniciais de Foucault, é recomendado o estudo das

relações de poder em práticas efetivas, onde produz efeitos reais. De acordo com

suas palavras:

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou aí, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são os alvos inertes ou consentidos do poder, são sempre centros de transmissão (FOUCAULT, 1979, p.183).

Assim, para este autor, ninguém escapa das relações de poder, o que

significa também que todos estão em condições de disputá-lo e, portanto, de resistir

ao seu exercício, o que coloca a possibilidade de luta e da construção de um contra-

poder. Com esta concepção, Foucault nega algumas premissas da ciência instituída:

que o poder deve ser analisado a partir do Estado e de seus aparelhos repressivos;

e que este tenha sempre um caráter negativo, posto que associado à violência e à

repressão.

Para Foucault, embora nas sociedades ocidentais o poder seja representado,

predominantemente, de forma negativa, em sua acepção jurídica, deve-se chamar a

atenção para o fato de que ele também possui um sentido positivo (sem conotação

moral), à medida que tem eficácia produtiva, posto que visa a moldar e aprimorar o

indivíduo.

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Com isso, este autor não nega o lugar estratégico ocupado pelo Estado nas

relações de poder, nem tampouco desconhece que tais relações de poder sejam

caracterizadas pela desigualdade. Refuta apenas a idéia de que as relações de

poder, difusas ao nível da sociedade, sejam derivadas única ou exclusivamente do

Estado. Recusa também a interpretação de que os indivíduos compõem uma massa

inerte, homogênea, sobre a qual o poder seria exercitado.

As relações de poder são constitutivas de um dado campo de força,

fomentando seu constante movimento e sua reprodução. Esta é entendida como

produção simultaneamente do mesmo (existência de estruturas relativamente

estáveis) e do novo (mudança). Trata-se, portanto de uma lógica contraditória

(SAFFIOTI, 1988, p.152).

Há que se problematizar como as relações de violência se inscrevem em um

dado campo de força. Vasquez, ao analisar a relação entre a violência e a práxis10

social, observa que o objeto da violência é formado por seres que corporificam

relações sociais, e não por indivíduos abstratos. Nas palavras do autor:

As ações humanas que se exercem sobre eles não se dirigem tanto ao que têm de seres corpóreos, físicos e sim a seu ser social; ou seja, à sua condição de sujeitos de determinadas relações sociais, econômicas, políticas, que se encarnam e cristalizam em determinadas instituições; instituições e relações que não existem, portanto, à margem dos indivíduos concretos (VASQUEZ, 1977, p.378).

Convém, neste momento, fazer uma breve abordagem sobre a violência como

atributo humano, de acordo com o pensamento de Vasquez. Segundo ele, toda

10 Atividade orientada para um resultado, por oposição a conhecimento; ação; na filosofia marxista, o conjunto de práticas que permitem ao Homem, pelo seu trabalho, transformar a Natureza, transformando-se também a si mesmo, numa relação dialéctica. Disponível em: www.priberam.pt

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práxis é um processo de formação, ou mais exatamente, de transformação de uma

matéria. Destacamos neste fragmento sua justificação:

O sujeito imprime uma determinada forma à matéria depois de havê-la desarticulado ou violentado. O curso desse processo leva em conta a natureza do objeto de sua ação para poder desarticulá-lo e moldá-lo. Por outro lado, o objeto só é objeto da atividade transformadora do sujeito na medida em que perde sua substantividade para converter-se em outro (VASQUEZ, 1977, p.373).

Para Vasquez, o objeto é tirado de sua própria legitimidade para se expor ao

que o sujeito estabelece com sua atividade. O objeto sofre assim a influência de

uma lei exterior e, na medida em que aceita a legalidade estranha que lhe é imposta,

se transforma. Assim, segundo ele, a transformação do objeto exige, por um lado, o

reconhecimento e a submissão a sua legalidade e, por outro lado, sua alteração ou

destruição. Quando esta alteração ou destruição se exerce sobre um objeto real,

físico, pode ser considerada violenta, e os atos realizados para alterar ou destruir

sua resistência física podem ser considerados violentos. A violência como

característica humana é aclarada neste fragmento:

Na medida em que a atividade prática humana se exerce sobre um objeto físico, real, e exige a alteração ou destruição física de sua legalidade ou de algumas de suas propriedades, pode-se dizer que a violência acompanha a práxis. A violência se manifesta onde o natural ou o humano, como matéria ou objeto de uma ação, resiste ao homem. Verifica-se justamente numa atividade humana que detém, desvia e finalmente altera uma legalidade natural ou social. Nesse sentido, a violência é exclusiva do homem, na medida em que ele é o único ser que para manter-se em sua legalidade propriamente humana necessita destruir ou violar constantemente uma legalidade exterior (a da natureza). (Ibidem,p.373)

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Vasquez conclui que, como destruição de uma ordem estabelecida, a

violência é um atributo humano, mas que não se mostra apenas pela presença da

força. Na natureza há forças naturais, mas a violência não é a força em si, ou em

ação, mas sim o uso da força. Na natureza, as forças atuam, mas não se usam; só

o homem usa a força em si mesma como força. Por isso, ele diz que força em si não

é violência, e sim apenas a força usada pelo homem. Daí o caráter exclusivamente

humano da violência.

A práxis esbarra no limite oferecido por indivíduos e grupos humanos. A

violência se insere na práxis na medida em que tende a vencer ou a saltar um limite

através da força. O corpo é o objeto primeiro e direto da violência, mesmo que esta,

a rigor, não se dirija em última instância ao homem11 como ser meramente natural, e

sim como ser social e consciente. A violência visa a dobrar a consciência, obter seu

reconhecimento, e a ação que se exerce sobre o corpo dirige-se, por isso, a ela

(VAZQUES, p.379-380).

É evidente que a violência não tem caráter absoluto, posto que não prescinde

de uma base legitimadora para seu exercício, revelando, por outro lado, que a

ideologia subjacente às relações opressoras não é suficiente para assegurar a

subordinação de seres singulares ou de categorias humanas, uma vez que tais

relações não se produzem ao largo das lutas pelos poder. Se existissem adversários

a priori vencidos, deixariam de se apresentar nesta condição. Em outras palavras, a

violência é reguladora das relações sociais, como nos momentos em que

transformações substantivas nas relações de gênero, por exemplo, são

ameaçadoras para a ordem social vigente.

2.2 – A sociabilidade da mulher na Argentina 11 O autor utiliza o termo “homem” como sinônimo de humanidade.

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A participação da mulher na sociedade argentina começou através de sua

circulação no Salão Literário, através dos trabalhos de beneficência e se destacou

com a implementação das atividades educacionais para as mulheres durante o

governo de Sarmiento. Veremos, agora, como ocorreu cada forma de participação.

Como vimos no tópico 1.3, o Salão Literário surgiu no século XVII na França e

se estendeu por toda Europa, sobretudo, a partir do século seguinte. Estes

estabelecimentos recebiam pessoas, em sua maioria homens, que difundiam idéias

políticas e científicas. Eram espaços importantes para a mobilização social, para o

intercâmbio de idéias e diversos debates.

A instituição do salão não servia somente aos interesses políticos dos

homens, também estava ao serviço da mulher que carecia de aspirações de

participação social ou política, mas que se preocupava pelo seu futuro imediato. De

fato, o salão proporcionava às mulheres a oportunidade de conhecer seus futuros

maridos. Esta função adquiria suma importância na sociedade da época, onde cada

classe se perpetuava a si mesma com o fim de preservar o patrimônio da classe, por

um lado, e de impedir que a classe trabalhadora ascendesse mediante o casamento

aos bens de uma classe superior aos quais não tinham direito segundo a ordem

social estabelecida. Os salões puderam cumprir esta função porque desde seu

começo foram mistos (GARRELS, 1989, p.27-38).

O perfil social do salão consistia nos seguintes elementos: a conversa, o jogo

de cartas, os bailes, a execução de peças musicais, e, para tanto, requeria a

participação feminina. Graças à presença simultânea de ambos os sexos sob um

mesmo teto, a intervalos regulares, estabelecendo vínculos com os de sua classe,

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se asseguravam a perpetuação do patriarcado, assim como o futuro político da

nação independente. Ainda no vice-reino havia começado a se difundir a moda

francesa dos salões, que no universo portenho se resumiu à figura modesta das

tertúlias. Estas se manifestavam num estilo sem muita formalidade, enquanto em

países como a França a progressiva complexidade dos modelos e das formas

sociais havia levado a reforçar o caráter exclusivo dos círculos aristocráticos do

século XIX (MYERS, 1999, p.119).

Podemos destacar este fragmento como exemplo da sociabilidade12 de um

salão na América Hispânica:

A sociedade em geral de Buenos Aires é agradável: depois de ser apresentado a uma família, era considerado elegante visitá-la, num horário em que se crê mais conveniente sendo sempre bem recebido (...) Estas tertúlias são muito agradáveis e desprovidas de toda cerimônia, o que constitui parte de seu encanto. À noite a família se congrega na sala cheia de visitantes, especialmente se a casa pertence a alguém importante. As diversões consistem em conversas e debates, mas também há valsa, música e algumas vezes canto. Ao entrar, se saúda a dona da casa e esta é a única cerimônia.13 (tradução nossa)

A segunda instituição que facilitou o contato da mulher com o mundo fora do

lar foi fundada em 1823 por Bernardino Rivadavia antes de sua presidência,

enquanto era ministro, no governo de Martin Rodrigues (1820-1824). A Sociedade

de Beneficência seria o primeiro modelo de instituição de caridade, surgida em

12 Qualidade do que é sociável; propensão para a vida em sociedade; urbanidade. Disponível em: www.priberam.pt

13 MYERS, 1999, p.120. No original: La sociedad en general de Buenos Aires es agradable: después de ser presentado en forma a una família, se considera completamente dentro de la etiqueta visitar a la hora que uno crea más conveniente, siendo siempre bien recebido(...) Estas tertúlias son muy deliciosas y desprovistas de toda ceremonia, lo que constituye parte de su encanto. A la noche la família se congrega en la sala llena de visitantes, especialmente si la casa es de tono. Las diversiones consisten en conversación y debates, pero también, valsar música algunas veces canto. Al entrar, se saluda a la dueña de casa y ésta es la única ceremonia.

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Buenos Aires durante a primeira metade do século XIX, a congregar oficialmente as

mulheres portenhas da classe alta num grupo de caráter filantrópico e educativo.

Um dos objetivos principais desta associação era o de prover serviços sociais aos

mais desamparados: as mulheres e as crianças; já que a vida social sob os

governos liberais da década de 1820 havia retirado das mãos do clero a assistência

pública (MYERS, 1999, p.139).

A Sociedade de Beneficência se ocupou das crianças órfãs, de mães

solteiras, com doenças físicas e mentais, quer dizer, dos mais variados desvalidos.

Para as mulheres membros da sociedade, significou a oportunidade de pôr seu

talento e energia ao serviço de projetos úteis, alheios à frivolidade dos salões e das

horas de ócio improdutiva passadas em seu lar. Mariquita Sánchez de Mendeville

figurava entre as damas patrícias designadas por Rivadavia como as primeiras

administradoras deste órgão do Estado. Participou até 1834, ano anterior a seu

exílio (LITTLE, 1985, P.272-273).

Outra função importante da Sociedade de Beneficência foi a de fundar e

administrar estabelecimentos educativos públicos para meninas. No entanto,

somente depois da queda de Rosas (1852) pôde prosperar esta faceta da obra

social dirigida por mulheres, dado que o governante decretara seu fechamento em

1838 (MASIELLO, 1997, p.32). Voltou a funcionar em 1852 e até 1876 esta entidade

pública teve o monopólio da educação feminina na cidade de Buenos Aires (LITTLE,

1985, p.277).

Em última instância, a Sociedade de Beneficência, assim como o salão

literário, constituía um lugar intermédio entre o privado e o público. O caráter

ambíguo de ambas as instituições, uma formal e a outra informal, manteve de fato a

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mulher afastada dos altos círculos da política partidária que dominou o panorama

nacional de 1810 até 1880. A mulher da classe alta, apesar da relativa liberação do

recinto do lar que representavam, nesta época de guerra civil permanente, a

Sociedade de Beneficência e o salão, continuava ocupando um lugar marginal

(MYERS, 1999, p. 139).

A terceira instituição que permitiu à mulher ingressar na vida social foi a

escola. A criação de escolas para meninas estava submetida à polêmica de convir

ou não educar formalmente a mulher. Na colônia, a educação pública,

especificamente aquela dirigida à mulher, havia sido inexistente. Posteriormente,

durante o governo de Rosas, o estado da educação continuou sendo deplorável,

segundo consignam a maioria das fontes históricas.

Na cidade de Buenos Aires, antes da criação da Sociedade de Beneficência,

havia somente uma escola pública para mulheres, a de San Miguel. As demais

eram privadas e careciam de controle da qualidade de ensino. No nível secundário,

existiam na década de 1840 dois colégios para homens, o Colégio Republicano

Federal e o Colégio San Martin; mas não havia nenhum para meninas. As que

queriam aprender algo deviam recorrer às aulas particulares, com que ganhavam a

vida mulheres como Rosa Guerra, uma das primeiras jornalistas do país (MYERS,

1999, p. 139). Durante o período rosista, os intelectuais que se expressaram com

mais veemência sobre o tema da educação da mulher foram Juan Bautista Alberdi e

Domingo Faustino Sarmiento. A visão de Alberdi14 não diferia da posição do próprio

Rosas ao se opor ao estímulo da educação pública para a mulher. Em seu livro

14 Juan Bautista Alberdi (29 de agosto de 1810 - 19 de junho de 1884) foi um argentino teórico, político e diplomata. Embora ele tenha vivido a maior parte de sua vida no exílio, em Montevidéu e no Chile, ele foi um dos mais influentes argentinos liberais da sua época.

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Bases y puntos de partida para la organización política de la República Argentina ele

manifesta esta visão com respeito a esta questão no seguinte argumento:

A mulher como artifício modesto e poderoso, que desde seu lugar faz dos costumes privados e públicos, organiza a família, prepara o cidadão, joga com as bases do Estado, sua instrução não deve ser brilhante. Não deve consistir em talentos de ornamento e luxo exterior, como a música, o baile, a pintura, segundo sucedeu até aqui. Necessitamos de senhoras e não de artistas. A mulher deve brilhar com o brilho da honra, da dignidade, da modéstia de sua vida. Seus destinos são sérios; não vieram ao mundo para ornamentar o salão, e sim para embelezar a solidão fecunda do lar. Apegar-se a sua casa é salvá-la e para que a casa a atraia, deve-se fazer dela um éden. Compreende-se que a conservação desse éden exige uma assistência e um trabalho incessante e que uma mulher trabalhadora não tem tempo a perder, nem o gosto de se dissipar em vãs reuniões.15 (Tradução nossa)

O perigo que se associava com a educação da mulher era o de contaminar a

pureza de seu espírito, garantia de sua afetividade como esposa e mãe de futuros

cidadãos da pátria. Alberdi, que acunhou o lema “governar é povoar” 16, acreditava

que a elevação da raça crioula deveria ser obrigação da mulher perante o Estado.17

O homem que realmente trabalhou a favor da educação da mulher e sua

maior participação na vida ativa foi Sarmiento18. Convencido de que a mulher

superava o homem como educadora de crianças e jovens, instituiu amplos 15 ALBERDI, 1914, p.79-80. No original: En cuanto a la mujer, artificie modesto y poderoso, que desde su ricón hace las costumbres privadas y públicas, organiza la família, prepara el ciudadano, echa las bases del Estado, su instrucción no debe ser brillante. No debe consistir em talentos de ornato y lujo exterior, como la musica, el baile, la pintura, según há sucedido hasta aqui. Necesitamos señoras y no artistas. La mujer debe brillar com el brillo del honor, de la dignidad, de la modéstia de su vida. Sus destinos son sérios; no han venido al mundo para ornar el salón sino para hemorsear la soledad fecunda del hogar. Darte apego a su casa, es salvarla y para que la casa la atraiga, se debe hacer de ella um éden. Bien se comprende que la conservación de esse éden exige uma asistencia y uma laboriosidad incesantes y que uma mujer laboriosa no tiene tiempo de perderse, ni el gusto de disiparse en vanas reuniones16 gobernar es poblar17 Não obstante, Alberdi se caracteriza por suas contradições, de modo que se encontram também escritos que sustentam esta afirmação. Em Obras Completas de Juan Bautista Alberdi, v.8 p.396-397, temos: “Creia que la Argentina sólo podría avanzar cuando sus mujeres dejaran de vivir bajo el yugo de las leyes y de las costumbres españolas que las sometían primero a la potestad de sus padres y luego a la de sus esposos.”18 Domingo Faustino Sarmiento Albarracín (15 de fevereiro de 1811 - 11 de setembro de 1888) foi um argentino ativista, intelectual e escritor. Seus escritos cobriram uma ampla gama de gêneros e temas, a autobiografia de jornalismo, a filosofia política e história. Ele era um membro de um grupo de intelectuais, conhecida como a "Geração de 1837", que teve uma grande influência sobre a Argentina do século XIX. Sarmiento estava particularmente preocupado com questões educacionais, e agora é considerado "O Mestre" da América Latina.

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programas de renovação do sistema escolar, dando à mulher a formação adequada

para instruir os argentinos da nação progressista que ele vislumbrava. Defendeu a

necessidade de criar um sistema de escolas públicas financiadas pelo Estado;

ofereceu a possibilidade de formar as jovens mulheres como professoras primárias e

secundárias mediante a contratação de professoras norte-americanas; tudo em

nome da civilização, motivo recorrente de sua vida e obra. Dois anos depois do

término da presidência de Sarmiento, em 1876, a educação pública passou das

mãos da Sociedade Beneficente às do Estado, e incluiu oficialmente as mulheres

entre os docentes (LITTLE, 1985, p.275-276).

Little ainda diz que, apesar de seus esforços em prol da educação feminina,

Sarmiento foi criticado porque os cursos que implementou para as mulheres nas

escolas públicas tinham como objetivos não só a instrução, mas a melhoria de seu

conhecimento nas tarefas diárias, tais como a economia doméstica, a criação dos

filhos e a higiene pessoal. Todos estes programas, inclusive a prática da educação

física, haviam sido pensados com a finalidade de assegurar a contínua reprodução

da população em nível nacional. “Sarmiento cria que as mulheres sãs trabalhariam

melhor e teriam filhos mais fortes que as fracas que haviam levado uma vida

sedentária e de reclusão”.19

É evidente a influência do pensamento de Alberdi nesta convicção de

Sarmiento: a mulher que se dedica a criar seus filhos povoa o território com novos

cidadãos e possibilita assim a missão do governo, que é governar o povo.

Sarmiento nunca questionou a importância da função doméstica da mulher: ela se

19 LITTLE, 1985, p.277. No original: Sarmiento creia que las mujeres sanas trabajarian mejor y tendrian hijos más fuertes que las débiles que hubieran llevado una vida sedentária y de reclusión.

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deve à sociedade em primeiro lugar como esposa e mãe, e somente depois a si

mesma como mulher (GARRELS, 1989, p.29). Somente em 1926, a reforma do

Código Civil significou o reconhecimento da plena autonomia da mulher como

indivíduo com os mesmos direitos civis que o homem (LITTLE, 1985, p.292).

Enquanto se seguiu defendendo a mulher através de seus esforços de

esposa e mãe, o casamento e a maternidade foram santificados tanto pelos unitários

como pelos federais. Esta subordinação da metade do gênero humano a uma dupla

e única função que prosperou durante todo o período do rosismo e no pós-rosismo20,

e persistiu ainda no século XX, põe a descoberto a obsessão do homem por regular

todos os aspectos do comportamento feminino: por um lado, a negação da

individualidade da mulher no plano pessoal e de sua independência, no legal; por

outro, a proibição expressa de participar em atividades políticas; depois a hostilidade

em torno da educação pública laica para a mulher, manifestada pela Igreja Católica,

a que se somou o próprio Rosas; finalmente, a negação da existência do desejo

sexual na mulher “respeitável”.

Este conjunto de atitudes, às que se somam outras à medida que se pesquisa

a história das mulheres, evidencia que para o homem seria inadmissível ter de

confirmar que a mulher possuísse um intelecto equivalente ao seu e uma

sexualidade completamente dissociada da maternidade (ALDARACA, 1982, p.76-77-

78).

Em meados do século XIX, essas realidades conviviam juntas, mas não se

aceitavam. Admiti-las seria sacudir o suporte sobre o que se assentava a

20 Após o governo de Rosas.

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sociedade: o Estado, a Igreja, a família. A mulher que tinha acesso à participação

do salão, na Sociedade de Beneficência ou nas escassas escolas privadas que

existiam formava parte da classe privilegiada. Mas, como em qualquer época, a

sociedade de meados do século XIX se sustentava graças ao trabalho das mulheres

das classes populares, mais numerosas e completamente anônimas.21 Enfim,

inúmeros livros afirmam sua integração ao corpo social mediante seus ofícios de

costureiras, lavadeiras, passadeiras, cozinheiras, amas de leite, fabricantes de

velas, vendedoras em feiras, etc.

A mulher, geralmente, se via obrigada a trabalhar devido à ausência de uma

figura masculina que assegurasse o sustento da família por causa da guerra civil

que mantinha o marido longe do lar por longos períodos de tempo ou porque era

mãe solteira ou casada, depois abandonada ou viúva. A mulher se transformava no

chefe de sua casa quando o homem não podia cumprir este papel ou diretamente

assumia sua responsabilidade de pai de família. Tentava preservar assim a unidade

familiar, que desde seu lugar central na sociedade de época girava ao redor de uma

pessoa: a mulher criolla.22

Um aspecto importante a ter em conta ao reconstruir a vida privada e pública

da mulher no rosismo é o fato de que as convulsões sociais do momento, o estado

permanente de guerra civil, provocaram a absorção do privado pelo público, ou pelo

menos mantiveram uma fronteira pouco clara entre os dois âmbitos (MYERS, 1999,

p.111). O lar “como microcosmos do Estado” (MASIELLO, 1997, p.29) foi

21 Geralmente a mulher não era branca.22 Filha de pais europeus.

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transformado pela guerra que agitava o país, como se reflete em numerosas

variantes que existiam sobre a família tradicional.

Além de todas as combinações possíveis, o princípio do patriarcado, que

organizava hierarquicamente os membros do grupo familiar sob a autoridade e

proteção de uma figura masculina, seguiu conduzindo a família argentina na época

do rosismo, e esta, respaldada pelos poderes eclesiástico e estatal, permaneceu

como pilar da sociedade. O novo modelo da família argentina teve como resultado

paradoxal o fomento da auto-estima da mulher transformada no chefe do lar.

(BELLUCCI, 1994, p. 254).

Apesar das exigências surgidas na conjuntura histórica definida pela presença

de Rosas no poder, a mulher argentina não substituiu seus deveres domésticos

pelas atividades públicas, e sim, combinou-os com suas novas atividades. A mulher

havia perdido, durante anos, a oportunidade de se integrar na vida social: o espírito

antiliberal do rosismo lhe atribuiu o lar como âmbito exclusivo para o

desenvolvimento de seus talentos e o exercício de suas funções. No entanto, esta

imposição provocou, em algumas delas, a vontade de se afirmar como pessoa

através da escrita.

Diante da situação restrita a que estava submetido o comportamento feminino

no período, houve entre as mulheres contemporâneas a Rosas algumas que

burlaram as leis e os costumes para seguir a própria vontade. Destacam-se três

nomes: Mariquita Sánchez, Encarnación Ezcurra e Camila O´Gorman, mulheres que

passaram a ser conhecidas na história por terem desafiado com êxito, as duas

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primeiras, ou com um final trágico, a terceira, as convenções morais da época.

Convém repassar brevemente a história de cada uma delas.

Mariquita Sánchez e Encarnación Ezcurra foram dois casos de rebeldia

adolescente. Mariquita foi contra o casamento de conveniência sem a aprovação da

mulher. Prova disso é que ela escreveu uma carta ao Vice-Rei Sobremonte com o

objetivo de pedir autorização para casar com seu primo Martin Thompson. Ela

consegue a autorização, sem o consentimento dos pais, e, mais adiante, se casa

com Martin. Essa é a posição de uma mulher que segue os seus princípios

(GUIÑAZÚ e MARTIN, 2001, p.38).

Um caso um pouco diferente foi o casamento de Encarnación Ezcurra com

Juan Manuel de Rosas. Ela tinha dezessete anos e ele, dezenove; a oposição ao

casamento veio da parte dos pais de Rosas, que o julgavam muito jovem para se

casar. Mas eles decidiram fingir uma gravidez para que os pais consentissem na

união. O casamento foi celebrado em 16 de março de 1813, alguns dias antes de o

futuro ditador cumprir vinte anos (SÁENZ QUESADA, 1991, p.49).

O casamento de Encarnación Ezcurra e Juan Manuel de Rosas, tanto como o

de Mariquita Sánchez e Martin Thompson, foi harmonioso e fecundo. Encarnación e

Mariquita foram as duas mulheres mais célebres no período rosista até 1838, ano da

morte da esposa de Rosas. Esses dois casais eram a prova de que o amor poderia

dar como resultado um casamento feliz. A nova moral burguesa passou a condenar

os casamentos arranjados pelos pais sem o consentimento da noiva. Numerosos

escritos contemporâneos defenderam em suas obras o direito de a mulher se casar

por amor (GARRELS, 1989, p.31).

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O caso de Camila O´Gorman é o mais conhecido exemplo de rebeldia

feminina que representa a atitude de algumas mulheres do século XIX. Ela, de

dezenove anos, pertencia a uma família federal e era amiga de Manuelita Rosas,

filha do ditador. Seu pretendente, Ladislao Gutiérrez, era o mais novo padre da

província de Tucumán. O irmão de Camila, Eduardo, que era sacerdote, conhecia o

jovem e o convidou à reunião de sua família. Sem querer, Eduardo estava abrindo a

porta de sua casa para o maior escândalo que sacudiu a sociedade durante o

rosismo e teria repercussão por muitos anos. (FLETCHER, 1994, p.172)

Camila fugiu com o padre em 1847 e apesar da intensa busca por parte das

autoridades, não foram encontrados, até que, depois de seis meses, foram

localizados na província de Corrientes. Rosas decidiu que a infração cometida pelo

casal, a burla cometida contra a instituição familiar, a Igreja e o Estado, merecia ser

punida com a pena de morte, e em 18 de agosto de 1848 ambos foram fuzilados.

Como era de esperar, a opinião unitária manipulou o ocorrido em benefício próprio,

denunciando a imoralidade do casal. A conduta de Camila havia sido contrária às

da sociedade para a mulher de sua classe; ameaçava a estabilidade da família,

prejudicava a integridade moral dos membros da Igreja, desafiava a moral do regime

rosista. No entanto, o caso de Camila representa uma exceção dentro do quadro da

sociedade da época. (FLETCHER, 1994, p.173 e ZANETTI, 1986, p.488) A grande

maioria das mulheres argentinas no período de 1830 a 1852 seguiu os conceitos

morais ditados pela Igreja e pelas regras de comportamento prescritas pela ordem

patriarcal; conceitos e regras feitos precisamente para evitar esse tipo de situação.

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2.3 – Civilização e Barbárie: a luta antirrosista

O período da ditadura de Rosas foi o momento que propiciou o surgimento de

uma literatura eminentemente argentina. Ricardo Rojas foi o primeiro a estudar a

literatura nacional neste período, que se iniciou com a obra do poeta e ensaísta

Esteban Echeverria. Também foi Rojas o primeiro a chamar “proscritos” aos autores

argentinos que escreveram no exílio ao longo dos anos da ditadura. O título do

capítulo XVII do décimo segundo tomo de seu manual de literatura se chama “Os

proscritos”23 e leva o subtítulo “A história da literatura Argentina”24, que se realiza

fora do país, de 1838 a 1853. Precisamente porque rendiam “um culto cego à

autoridade da terra”25 enquanto a letra era o instrumento empregado para se

desenvolver na vida pública e na ação política, os intelectuais do antirrosismo foram

designados com o termo “proscritos”: vítimas da perseguição e da censura por idéias

contrárias ao regime, eram privados da escrita e proibidos de se comunicar com

seus leitores. Por causa desta exclusão, toda a literatura do exílio foi escrita desde a

perspectiva da oposição.

A burguesia ilustrada a que pertenciam os letrados inimigos de Rosas se

conhece com o nome de Geração de 1837, pelo Salão Literário que congregou a

maioria deles entre junho de 1837 e janeiro de 1838 em Buenos Aires. Os membros

da Geração de 37 incluem alguns dos autores das obras mais representativas do

romantismo argentino. Esteban Echeverria (1805-1851), Domingo Faustino

Sarmiento (1811-1888) e José Marmól (1807-1882). As outras figuras chaves deste

grupo foram o advogado e ensaísta Juan Bautista Alberdi (1810-1884), o critico Juan

23 Los Proscriptos24 La historia de la literatura Argentina25 RAMOS, 1989, p.69. No original: Un culto ciego a la autoridad de la tierra

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Maria Gutiérrez (1809-1878), os historiadores e romancistas Vicente Fidel López

(1815-1904) e Bartolomé Mitre (1821-1906). Todos eles lutaram contra o rosismo;

de seus escritos saíram as três obras canônicas do antirrosismo literário: El

matadero, de Echeverria (escrito em 1838), Facundo, de Sarmiento (1845) e Amalia

de Mármol (romance publicado como entregas de folhetim em 1851-1852 e como

livro em 1855). Todos eles, de uma forma ou outra, estiveram vinculados ao

acontecimento social e político da época. Por isso, todos são representantes da

chamada tradição hispano-americana, segundo o qual:

O letrado crioulo da época das independências e das pós-independências – ao menos até um pouco além do século XIX -, esteve diretamente envolvido na crista dos manejos sociais e políticos (...) o letrado crioulo se dedicará a desenhar e edificar a nação, impregná-la do sentido de si mesmo, marcá-la com seu selo.26 (tradução nossa)

Não se trata de politização da literatura nacional, e sim de que a literatura

nacional na América Hispânica nasceu impregnada de política. A versão da história

nacional que proporiam os proscritos em suas obras constituía uma alternativa ao

discurso oficial. No caso do antirrosismo literário, houve um deslocamento desde a

margem do exílio à centralidade do poder constitucional depois da queda de Rosas

em 1852. A prática da escritura, então, se converteu num gesto carregado de

transcendência política. A escritura foi um dos instrumentos, o outro foi a ação

bélica, que contribuiu para configurar os contornos da nação moderna no continente

hispano-americano.27

26 LASARTE, 1994, p.223. No original: El letrado criollo de la época de las independencias y las posindependencias – al menos hasta algo más Allá de la mitad del siglo XIX - , estuvo directamente involucrado en la cresta de los manejos de los poderes sociales e políticos (...) el letrado criollo se dedicará a diseñar y edificar la nación, impregnaria del sentido de si mismo, marcarla con su impronta.27 Algumas são as interpretações do processo de construção da nação nas ex-colônias espanholas. Para Antonio Benitez-Rojo, o “nacional” começa a emergir quando “se establece (...) la conexión imaginaria entre el recinto amurallado de la ciudad y

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Na Argentina de meados do século, a luta entre unitários e federais foi o

confronto que ficaria conhecido como o par civilização e barbárie. Sarmiento o usa

como subtítulo de seu livro Facundo que encerra a essência do conflito sóciopolítico

que inspirou as primeiras obras autenticamente nacionais no país. Ali se lê que “a

luta atual da República Argentina é somente entre civilização e barbárie” 28 . O termo

“barbárie” se converteu nas mãos dos letrados em sinônimo de rosismo; em poucas

palavras, quem escreveu na época de Rosas, escreveu sobre o rosismo.

Dentro do esquema apresentado por Sarmiento se inscreve a divisão da

experiência de homens e mulheres contemporâneos de Rosas em duas esferas

distintas: a pública e a privada. A origem desta divisão surgiu em meados do século

XVIII com a Revolução Industrial. Na Europa e nos Estados Unidos houve a

necessidade de um grande número de homens e mulheres como mão-de-obra e, ao

mesmo tempo se desenvolveu uma cultura de classe média ou burguesa (DUBY e

PERROT, 1991, p.10-20). Estas mudanças chegaram à América Hispânica junto

com outras da Ilustração européia e influenciaram quem refletia durante a ditadura

sobre o lugar da mulher na sociedade. Na Europa estava na moda o debate

periodístico acerca do que se chamava a questão da mulher. Jean Jacques

Rousseau teve uma influência decisiva na elaboração do mito da mulher como

“rainha do lar” 29, que na prática limitava a vida útil das mulheres às funções de

esposa e mãe (ALDARACA, 1982, p.70). Este mito constituiu o ideário burguês

europeu e rioplatense: é o ideal que resume os julgamentos de Alberdi e Sarmiento,

examinados anteriormente.

el escenario indígena interior” (1993, p.187). Para Julio Ramos, entre 1800 e 1875, “las letras eran la política” (1989, p.63). Ramos se refere ao periodismo mais que ao livro, já que o primeiro era o “meio básico de distribuição da escritura” em todo o século XIX. (1989, p.92)28 SARMIENTO, 1997, p.363. No original: la lucha actual de la Republica Argentina lo es solo de civilización y barbarie.29 Ángel del hogar

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A subordinação da mulher, que Rousseau atribuía à ordem natural criada por

Deus, justificava seu estado de ignorância perpétua, o que, segundo critério da

época, garantia sua virtude. De acordo com a lógica desta mentalidade, se exaltou

a abnegação como a maior qualidade feminina, e o desejo de realizar sua potência

através do casamento e da maternidade. Resumindo, o gênero “mulher” transcendia

as fronteiras entre classes sociais e raças, e unificava as burguesas e as plebéias,

mestiças, índias, mulatas e negras, livres e escravas, frente ao sexo masculino

(Ibidem, p.66).

Este modelo de mulher proposto pelo liberalismo europeu se encaixa sem

dificuldade àquela mulher da família hispânica, dominante na colônia. Por isso a

sociedade tradicionalista durante os anos do rosismo incorporou a noção do “rainha

do lar” em seu ideário. Em linhas gerais, tanto unitários como federais incorporaram

os ideais de Rousseau sobre a mulher. Ironicamente, apesar das diferenças de

enfoques antirrosistas durante o século, os homens estavam todos de acordo sobre

o lugar da mulher na sociedade.

2.4 – Os Cânones30 na literatura

Detive-me em revisar no tópico anterior as noções de “rainha do lar” e das

esferas separadas porque ambas informam sobre a maneira de pensar dos autores

30 Cânone (ficção) conjunto de obras que são consideradas "genuínas", "oficiais" dentro de um determinado universo fictício. Fala-se também de um Cânone Literário do Ocidente (Harold Bloom), ou seja, uma lista de clássicos da literatura.

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do antirrosismo literário sobre a mulher. Interessa-me destacar neste tópico certas

passagens de três textos canônicos do antirrosismo literário: El matadero, Facundo

e Amalia, onde os autores escreveram sobre a mulher durante as guerras civis no

período rosista. De modo especial, importa ressaltar os tipos de papéis femininos

presentes nestas passagens: a mulher dentro de sua esfera em seu papel de

esposa e mãe; a mulher fora de sua esfera, onde adota funções do sexo oposto;

assim como o cruzamento entre ambas as esferas (que revela a dimensão do

espaço privado, assim como a do público). Não deixa de surpreender que as

referências às mulheres sejam bastante escassas em El matadero e em Facundo.

Já em Amalia, a presença de numerosas mulheres no romance permite avaliar o

julgamento de Mármol sobre a função da mulher na sociedade e seu papel na

política.

Em El matadero, as únicas mulheres presentes são as “negras achuradoras”31

(ECHEVERRÍA, 1997, p.94) que participam ativamente do esquartejamento dos

restos de carne. Echeverria as descreve como “caranchos de presa” 32 (Ibidem) e

“harpías” 33(Ibidem), já que disputam com as gaivotas e os cachorros em busca de

comida. Essas mulheres contribuem para a atmosfera violenta e imunda do

matadouro34. Todas elas são velhas, feias e vulgares; o matadouro não é um

espaço doméstico, portanto não há lugar para feminilidade idealizada ali. Não há

esposas, não há mães neste conto. Há somente uma massa informe e ignorante

(homens e mulheres) que mantêm no poder a Rosas. As negras se situam

claramente à margem do ideal.31 Do quechua achúray, repartir. www.rae.esNegras achuradoras vem a ser mulheres que repartiam as vísceras de uma rês, ou seja, vaca ou boi.32 Falcão. Disponível em: www.rae.es33 Águia www.rae.es34 Lugar onde se abatem as reses para o consumo público; carnificina.

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Um texto anterior de Echeverria revela uma imagem muito distinta da mulher.

O longo poema narrativo La cautiva, de 1837, se estrutura ao redor do tema do amor

romântico: “no qual os seres estão mais apaixonados da idéia de amor que do

amante de carne e osso, sustento secundário do ideal sublime”.35 O poema não

trata especificamente do conflito entre unitários e federais, e sim daquele conflito

entre o homem crioulo e o indígena na luta por conquistar ou impedir a conquista,

respectivamente, dos territórios ao sul das províncias de Buenos Aires para sua

incorporação à nova nação.

No entanto, Echeverria esboça um retrato da mulher que parece contradizer

o ideal da feminilidade da época: a protagonista, Maria, se liberta do cativeiro dos

indígenas matando um índio e salva duas vezes a vida de seu marido. Preso e

ferido ao começar o poema, depois agonizante e moribundo, o marido vem a ser

uma figura secundária por sua passividade. Echeverria inverte os papéis

tradicionalmente atribuídos ao homem e à mulher: as decisões importantes se

situam do lado dela, não do dele. A debilidade e impotência do marido permitem

que Maria o substitua nas cenas determinantes do poema. Desde o título La cautiva

destaca o protagonismo da mulher.

Apesar das aparências, La cautiva tem uma ideologia burguesa de esferas

separadas. Maria, apesar de seu “instinto poderoso” e de seu “afeto generoso”, que

lhe prestam a força necessária para fugir do índio e depois liberar seu marido, é mal

retribuída por ele. Como recompensa, Maria recebe a ingratidão do homem que

ama: “já não és digna de mim. / Do selvagem a topeza/ terá manchado a pureza / de

tua honra, e manchado teu corpo santificado/ por carinho e teu amor/ já não me é

35 ECHEVERRÍA, 1997, p.94. No original: en el que los seres están más enamorados de la idea de amor que del amante de carne y hueso, sustento secundario del ideal sublime

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dado te querer”.36 Ao final, ele morre e Maria fica desamparada. Sua vida já não

tem mais sentido. “O que fará Maria? Na terra/ já não se enraíza sua vida” 37. A

posição de Echeverría é clara: enquanto vive o marido, é dever da mulher assegurar

seu bem estar (o dele); uma vez desaparecido, a mulher não tem razão de ser. A

“varonil fortaleza” (Ibidem, Epílogo) de Maria se justifica somente quando seu marido

está vivo e incapacitado. Depois da morte do seu homem, a mulher perde sua

essência e sua função: Maria se assemelha a uma “mísera demente”, (Ibidem, Parte

IX) perde sua beleza e se transforma em “pálido fantasma”, (Ibidem) desaparecem

suas ilusões e seus desejos, que “a deixaram sozinha e triste /sofrer até

enlouquecer.” 38

Apesar da inversão de papéis que parece apontar a um questionamento da

rígida divisão entre os sexos vigente em meados do século XIX, Echeverría em La

cautiva não faz mais que reforçar esta divisão. O poema culmina com a morte de

Maria, e o epílogo, dedicado a esta mulher modelo de abnegação, a glorifica com

estas palavras: “O destino de tua vida/ foi amar, amar teu delírio/ o amor causou teu

martírio/ tu fostes sobre-humana”.39 Estes quatro versos encerram o essencial da

ideologia burguesa sobre o lugar da mulher na sociedade e os limites de sua

participação fora do âmbito doméstico.

Quanto a Facundo, defende que a barbárie existe ali onde não há civilização,

e antes e depois de 1845, em artigos e ensaios pedagógicos, Sarmiento havia

defendido a educação como o caminho a seguir para erradicar o

subdesenvolvimento intelectual da população. No que diz respeito à mulher, no

36 ECHEVERRÍA, 1997, parte III. No original: ya no eres digna de mi. / Del salvaje ta torpeza/ habrá ajado la pureza/de tu honor, y mancillado/tu cuerpo santificado/por mi cariño y tu amor/ya no me es dado quererte.37 Ibidem, parte IX. No original: Qué hará Maria? En la tierra/ya no se arraiga su vida.38 Ibidem, Epílogo. No original: sola y triste la dejaron/sufrir hasta enloquecer.39 Ibidem. No original: “El destino de tu vida/fue amar, amar tu delírio/amor causo tu martírio/ te dio sobrehumano ser.

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capítulo anterior comentei os esforços louváveis de Sarmiento para promover a

educação. Mas no fundo, Sarmiento não discorda dos demais opositores de Rosas.

Seus escritos não deixam de ser conservadores porque nunca perdem de vista o

objetivo final das iniciativas promovidas por ele: as mulheres educadas serão

melhores mães e formarão melhores cidadãos.

O romance de Mármol, Amalia, é muito mais explícito a respeito do vínculo

entre a mulher e o conflito político entre rosistas e antirrosistas. Dado que todo o

romance se constrói com base na oposição, e dado que abunda a presença feminina

em suas páginas (desde o título da obra), é natural que apareçam as mulheres em

meio ao conflito. Graciela Batticuore observou que uma grande parte da atividade

feminina em Amalia se concentra nas visitas que as mulheres fazem umas às

outras, assim como nas cartas que escrevem, e se deduz que as visitas e as cartas

têm uma função política (BATTICUORE, 1998, p.43).

. A visita mais memorável do romance é sem dúvida a da cunhada de Rosas,

Josefa Ezcurra, à casa de Amalia, onde chega sem prévio aviso para confirmar sua

suspeita de que Eduardo Belgrano, o homem que Amalia ama, é o fugitivo que

procura Rosas. Já as cartas por si remetem à política, porque constituem textos

fictícios (escritos pelos personagens do romance) dentro de outro real (escrito por

Mármol), cuja intenção é a mesma: condenar o regime rosista.

Quando Amalia protege Eduardo escondendo-o em sua casa, está

determinando o rumo de certos acontecimentos políticos futuros; o mesmo sucede

com dona Marcelina, a dona do prostíbulo onde se reúnem os conspiradores

inimigos de Rosas. As mulheres abrem seu espaço privado para que os homens

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façam dele um uso político. No romance, os homens fogem da Mazorca40 e se

escondem na casa das mulheres. Rosas inverteu a ordem sobre a qual sustenta a

ideologia burguesa: “a emigração”41, escreve Mármol com amargura, “deixa em

poder das mulheres, dos covardes e dos mazorqueiros a cidade de BA.”42

Na cena do diálogo da Senhora de N. com Amalia, se destaca o papel que

cumprem as mulheres dada a ausência dos homens na cena política: a idosa

unitária explica à jovem Amalia que “se nos apresentamos às festas dos federais, é

por nossos filhos, ou por nossos maridos.”43

Apesar da colaboração unitária à atividade política dos homens, é preciso

lembrar que tanto ou mais importante que este é seu papel feminino tradicional.

Amalia e sua amiga Florência, quando não estão ocupadas em defender os homens

que amam, se dedicam a sonhar com seu futuro de mulheres casadas. Mármol

admite a participação limitada da mulher na atividade política, ainda que não em

detrimento do casamento e da maternidade.

A perspectiva dos autores canônicos do antirrosismo literário sobre o papel da

mulher durante o período rosista resulta ser homogênea, posto que qualquer

atuação fora do ambiente doméstico, qualquer gesto heróico, deve remeter ao amor

da mulher por seu companheiro. O amor ao seu homem é, então, o elemento

mediador necessário entre a mulher e a ação política, entendida como a

organização da vida pública, assim como as estratégias e lutas que esta amplia.

Segundo esta noção, durante o século XIX argentino a política é uma atividade

40 (PIERINI, 2002, nota 21): A Sociedade Popular Restauradora, mais conhecida como a Mazorca foi uma força de choque organizada entre os seguidores de Rosas, primeiro para conseguir seu regresso ao poder, e depois para hostilizar seus opositores, chegando em muitos casos a bárbaras execuções. Rosas a dissolveu em 1846, incorporando seus membros a milícias. A Mazorca tem uma dimensão mítica nas crônicas, memórias e romances que refletem a época. 41 La emigración42 MÁRMOL, 2000, p.320. No original: deja en poder de las mujeres, de los cobardes y de los mashorqueros la ciudad de BA.43 Ibidem, p.320. No original: se nos presentamos a sus fiestas de los federales es por nuestros hijos, o por nuestros maridos.

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masculina. A política é importante e poderosa precisamente porque as mulheres

foram excluídas dela. Por outro lado, se se parte de uma definição distinta, se

comprova que a mulher desde seu duplo papel de esposa e mãe atuou sempre na

política.

Dependendo do que se entenda por “política”, se acharam argumentos para

justificar a exclusão ou defender a inclusão da mulher neste âmbito. O que se

desprende do conjunto de escritos de Echeverría, Sarmiento e Mármol é a convicção

de que o destino primordial de toda a mulher é cumprir com seus deveres de esposa

e mãe. Quem empreendeu lentamente a reforma desta mentalidade foram aquelas

mulheres que começaram sua atividade literária durante o rosismo, dentre elas

Juana Manso. Elas realizaram esta mudança ao insistir na capacidade intelectual da

mulher, sem questionar jamais a importância da maternidade, nem a

responsabilidade da mulher como suporte moral da família.

2.5 – As mulheres na literatura e a representação do rosismo

A mulher que tentou participar do círculo social e escrever enfrentou durante o

século XIX as dificuldades particulares em razão de seu sexo, dificuldades com

raízes históricas, morais e religiosas. Como disse Graciela Batticuore:

Em um período no qual a letra se converte em arma poderosa de combate, a representação de uma mulher

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escrevendo, ainda que se trate de uma carta, constitui uma cena irritante, incomôda, quando não impossível, na medida em que remete a dois fantasmas: a mulher autora e a mulher politizada. “ 44 (tradução nossa)

Aquelas mulheres cujos escritos abarcam as questões da época, tais como

Juana Manso, Juana Manuela Gorriti45 e Eduarda Mansilla46, se expõem a maiores

críticas por parte não somente da instituição literária, mas também do público em

geral. O receio de expor sua escrita e de a mesma ser ignorada motivou o uso do

pseudônimo por parte de muitas mulheres que se dedicavam a esse trabalho.

A segunda dificuldade assinalada é o receio da perda da feminilidade. Tem

relação com a primeira, dado que ao se entregar a uma atividade intelectual,

essencialmente masculina, a mulher corria perigo (na imaginação popular) de se

masculinizar e, conseqüentemente, de perder seus atributos femininos. No entanto,

apesar destes obstáculos, as mulheres começaram a escrever em todos os gêneros

no país.

A mulher argentina começa a se dedicar ao ofício de escritora num período

politicamente conservador e moralmente reacionário. Circunscrita às expectativas

sociais e morais da época, deve lutar pelo direito de desenvolver seu talento literário.

Exposta aos obstáculos, decide cruzar os limites do meio doméstico. Ao escrever e

44 BATTICUORE, 1998, p.40. No original: En un período en el que la letra se convierte en arma poderosa de combate, la representación de una mujer escribiendo , aunque se trate de una carta, constituye una escena irritante, incomoda, cuando no imposible, en la medida en que remite a dos fantasmas: la mujer autora y la mujer politizada.45 Juana Manuela Gorriti nasceu na província de Salta, Bolívia em 15 de junho de 1819. Veio de uma família rica.

De sua família, herdou o dom das letras e as virtudes patrícias, e juntamente com eles, a angústia das lutas, a pobreza e o exílio de seu país. Retorna a Bolívia em 1865. Sua popularidade aumentou em 1866, quando prestou atendimento aos feridos no cerco de Callao, sob a liderança do general Prado. Continua em Lima por um longo período e desenvolve, paralelamente, atividades literárias, educacionais e sociais.

46 Eduarda Mansilla Damasia Ortiz de Rozas Garcia nasceu em 11 de dezembro de 1834. Foi uma escritora argentina do século XIX. Seus trabalhos transcenderam o nível nacional, para merecer o privilégio de ser traduzido para outras línguas e que é, sem dúvida, uma das primeiras mulheres argentinas, que atingiram um nome e uma posição altamente considerados por sua obra literária. Seus trabalhos têm abrangido quase todos os gêneros, com verdadeiras incursões no romance, ficção, peças de teatro, ensaios filosóficos, jornal artigos sobre diversos temas e crítica de música.

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ao publicar suas obras de ficção, as mulheres contemporâneas aos autores da

Geração de 1837 lançam um desafio ao sistema sustentado pela ideologia do

“rainha do lar” e das esferas separadas. A escritura lhes permite assumir sua nova

identidade de autoras, distinta da anterior de esposa e mãe, sem que nenhuma das

duas negue a outra. Concretamente, Manso se instala definitivamente na esfera

pública e converte a escritura num instrumento para ascender ao tradicionalmente

vedado à mulher: a história e o conhecimento. (CASTRO, 1994, p.41).

Desta forma se converte numa das maiores escritoras argentinas do século

XIX. Ela explora em sua obra Los Misterios del Plata o conflito sóciopolítico que

confronta nesse momento a unitários e federais. Sua história inspirada no rosismo,

que não constitui a totalidade de suas obras, mas que ocupa um lugar importante

em sua produção literária, consiste de romances e periódicos que examino nos

capítulos seguintes.

Manso constrói mundos onde os personagens femininos levam a cabo ações

extraordinárias. Isto é evidente naquelas histórias onde a valentia e a nobreza de

espírito das protagonistas desencadeiam a ação e determinam seu desenlace. Em

seu romance Los Misterios del Plata, a mulher, inicialmente, tem um papel passivo,

mas cuja força espiritual e integridade moral constituem o suporte com que conta a

protagonista para a execução de seu fim.

Na situação criada, a protagonista, desde seu papel no centro da família,

exerce poder sobre o homem. Concordo com Foucault quando ele diz que “poder”

são as relações de força que se estabelecem entre indivíduos.(FOUCAULT, 1979,

p.77).

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Estas relações têm sua origem no desequilíbrio da ordem social burguesa,

produto da violência do rosismo. O homem se encontra impossibilitado para a ação

por causa da guerra, no presente romance ele está preso. Neste caso uma mulher

ama um homem que se encontra em perigo. Ela tenta salvá-lo porque sempre pode

fazê-lo: ela nunca está presa, nem ferida, nem é perseguida por Rosas. Às vezes

consegue seu propósito, outras vezes não. O importante é que a protagonista tem

em suas mãos o destino de um ou mais homens nestas histórias de amor e guerra.

Seu poder se centra na sua capacidade de influir no desenrolar dos acontecimentos

através de suas decisões.

A protagonista da ficção de Manso se constitui partindo do modelo de “rainha

do lar”. É esposa e mãe, mulher inteligente, modelo necessário para sobreviver num

mundo em guerra; daí a valentia, imprescindível para enfrentar sozinha e sem temor

situações excepcionais criadas pela guerra (fundamentalmente em defesa do marido

e do filho). Este romance adapta a definição burguesa da feminilidade às exigências

de uma sociedade em estado de violência permanente. O amor é um veículo nesta

ficção para ensaiar uma interpretação da realidade durante a ditadura.

Se compararmos o exposto na seção anterior sobre o tratamento da mulher

durante o período rosista na obra dos autores canônicos do antirrosismo literário,

com o tratamento do mesmo tema por parte de Manso, torna-se evidente que a

autora dedicou parte de sua produção narrativa exclusivamente a este tema,

enquanto que os homens apenas o analisaram.

Um aspecto fundamental das histórias inspiradas no rosismo é a presença da

loucura, geralmente a da protagonista, no desenlace destas obras. Entre os

escritores consagrados, somente Echeverría insinua no canto nono de La Cautiva

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que Maria perde a razão depois da morte de seu marido. Sua loucura, no entanto,

parece ser o efeito do esgotamento físico e emocional sofrido ao longo de todo o

poema, somado ao sofrimento natural pela perda do homem amado. A loucura de

Maria fica sem solução e, o que é mais importante para o presente argumento,

culmina com a morte da mulher. No caso do romance de Manso, a loucura está

presente na protagonista que enlouquece quando vê seu marido sendo

encaminhado à morte.

A diferença entre o tratamento literário da mulher na política durante o

rosismo por parte de autores e autoras parece se centrar na freqüência da aparição

da loucura como metáfora do sofrimento da mulher nas obras escritas por mulheres.

No capítulo seguintes analisamos os múltiplos tipos de relações entre homens e

mulheres, unitários e federais em LMP47. Presta-se atenção ao grau de adequação

entre o ideal feminino defendido pela mentalidade da época, por um lado, e o

comportamento real da protagonista em LMP, por outro. Também examinamos os

múltiplos entrecruzamentos entre o mundo privado dos sentimentos e o público da

política de guerra, com o qual se revela a dimensão política da história de amor.

III – O ROSISMO E A PARTICIPAÇÃO DE JUANA MANSO

“Baje usted pues la voz en sus discursos y en sus escritos a fin

de que no llegue hasta aquí el sordo rumor de la displicente turba”

Manso, 1867

3.1 – A militante de Álbum de Señoritas e a emancipação da mulher

47 Usaremos esta abreviação para se referir ao corpus (Los Misterios del Plata)

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Juana Manso de Noronha é praticamente desconhecida do público leitor

atual. Manso foi conhecida como amiga e colaboradora de Domingo Faustino

Sarmiento em seus trabalhos com a educação. Além de atuar neste campo, Manso

também trabalhou na área jornalística, onde desenvolveu parte de seu trabalho

literário.

Em 1854 começou a escrever e publicar uma revista cultural chamada Álbum

de Señoritas, dirigida ao público feminino de Buenos Aires. Foi uma experiência

breve, já que se viu obrigada a abandonar a imprensa depois de oito números. O

fracasso48 do Álbum de Señoritas revela a magnitude do impacto que produziram

suas páginas na sociedade da classe alta, que constituía o único público leitor na

Argentina ao chegar ao final a ditadura de Rosas. Uma breve análise do Álbum de

Señoritas ajuda a compreender as razões que levaram sua autora a se interessar

pela realidade social de seu tempo, através de sua obra jornalística, literária e

pedagógica, projetando-se, assim, na esfera pública.

Observam-se certas particularidades na capa desta publicação. Por um lado,

o título de Álbum de Señoritas49, como assinala Constanza Meyer, “desde seu título

tenta separar a mulher do homem, já que é senhorita e não senhora”.50 Acompanha

o seguinte subtítulo: Periódico de Literatura, Modas, Belas Artes e Teatros. Por

outro, o Álbum de Señoritas abre uma seção com o título chamado “A Redação”51 no

qual define seu propósito:

48 Veremos mais detidamente a causa deste fracasso no final do presente tópico.49 Vale ressaltar que o periódico estudado, Álbum de Señoritas, encontra-se disponível na Sala do Tesouro, na Biblioteca Nacional da Argentina. Como não foi possível o acesso a tal material, realizei esta pesquisa com base em estudos, como por exemplo, o texto de Lea Fletcher e o artigo de Lelia Área chamado El periódico Álbum de Señoritas de Juana Manso (1854): una voz domestica en la fundación de una nación. Ambos os materiais citados se encontram na bibliografia, ao final de todo o trabalho.50 MEYER, 1994, p.122. No original: desde su nombre intenta separar a la mujer del hombre en tanto que señorita y no señora.51 La Redacción

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A ilustração de meus compatriotas, (…) único propósito. Emancipá-las das preocupações torpes e ultrapassadas que lhes proíbem até hoje fazer uso de sua inteligência, (...) seu melhor adorno é a verdadeira fonte de sua virtude e da felicidade doméstica.52 (Tradução nossa)

Estes detalhes são importantes. O primeiro, porque o título e o subtítulo

parecem anunciar um conteúdo de acordo com o gênero de leituras femininas

próprias da época (moda, comentários sociais, resenhas culturais). O segundo

detalhe importa porque revela em Manso a vontade de associar seu nome com suas

opiniões pessoais. Destaca-se o aspecto revolucionário da ânsia de fugir do

anonimato desta escritora, o que a situa no pólo oposto à maioria de seus

congêneres que preferiram ocultar-se detrás de um pseudônimo, assinar somente

com iniciais ou diretamente omitir sua assinatura. No fragmento abaixo, Manso faz

um balanço parcial de sua publicação:

Chegamos ao quinto número do Álbum neste primeiro mês de sua existência. Não economizei sacrifícios para dar-lhe vida e consistência. Toda minha ambição era fundar um jornal dedicado inteiramente às senhoras, e cuja única missão fosse ilustrar. J.P.M de Noronha 53 (Tradução nossa)

O quinto artigo da primeira entrega assinala a existência pessoal como base

da alma humana: “Eu penso, logo existo: o eu, pensa, sente e obra, e quem lhe dá a

certeza de que pensa, sente e obra é a consciência. O testemunho da consciência é

irrecusável. O juízo pode se extraviar, a consciência jamais....”54.

52 MANSO apud MEYER, 1994, p. 122. No original: la ilustración de mis compatriotas, (...) único propósito. Emanciparlas de las preocupaciones torpes y añejas que lês prohiben hasta hoy hacer uso de su inteligencia, (…) su mejor adorno, es la verdadera fuente de su virtud y de la felicidad doméstica.53 MANSO apud AREA, 1997, p168. No original: Hemos llegado al 5º número del Álbum en este primer mes de su existencia. Ningun sacrificio he ahorrado para darle vida y consistencia. Toda mi ambición era fundar un periodico dedicado enteramente a las señoras, y cuya única misión fuese ilustrar. J.P.M de Noronha.54 MANSO apud AREA, 1997, p.168. No original: Yo pienso, luego existo: el yo, piensa, siente y obra, y quien le da la certeza de que piensa, siente y obra, es la conciencia. El testimonio de la conciencia es irrecusable. El juicio puede extraviarse, la

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Este breve esboço da estrutura do Álbum põe em evidência, como indicou

Meyer, a particularidade existente entre o título e o subtítulo. Meyer analisou esta

manobra da autora como:

Uma das estratégias de que se deve servir o gênero para sair da clausura do lar… que buscam estender ao público feminino as ferramentas para se mover no espaço político e social, convidando-a a atravessar as fronteiras do doméstico”55 (tradução nossa)

Esta observação é fundamental para compreender como se inscreve a

aparição do Álbum no contexto da sociedade rio-platense a dois anos da queda de

Rosas. Inclui os cinco elementos que permitem interpretar o conteúdo desta

publicação e explica a indiferença com que se recebeu a obra, assim como a

hostilidade com que se premiou a sua autora. Meyer enuncia os seguintes pontos

chave: estratégias, público feminino, ferramentas, espaços e fronteiras. Ou seja, o

Álbum como empreendimento de uma só mulher é a ferramenta da que se vale a

autora para sair de uma esfera e ingressar na outra: ao se publicar, o doméstico

entra no domínio público. Manso cruza desta forma a fronteira implícita que a

cultura tradicional havia traçado entre o mundo feminino e o masculino. Este gesto

se converte em uma estratégia para comunicar a mensagem da escritora ao público

feminino receptor.

De acordo com o contexto sóciopolítico da época que viu nascer esta

publicação, se compreenderá porque não pôde prosperar em uma sociedade

culturalmente estagnada que emergia de dezessete anos de regime conservador

conciencia jamás55 MEYER, 1994, p.124. No original: una de las estrategias de las que deben servirse el género para salir del encierro del hogar...y que buscan extenderle al público feminino las ferramientas para moverse en el espacio político y social, invitándola a atravesar las fronteras de lo doméstico.

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(1835-52). Outro fator que contribuiu para o fracasso do Álbum foi a coincidência de

sua publicação no momento da máxima expansão do ideário burguês, cuja definição

da mulher em nível doméstico e estatal significava uma volta ao modelo da família

da colônia.

No período em que a educação pública para as mulheres não existia no país,

Manso aprendeu a ler, a escrever e a pensar graças a seu pai, um engenheiro de

idéias liberais. Em meados do século XIX, como já indicado, a instrução era

considerada perigosa virtude da mulher. Para Manso, a educação foi a primeira

causa a qual dedicou toda sua vida, tomando como exemplo seu amigo Sarmiento.

A segunda causa que a preocupou intensamente, o que também a assemelha a

Sarmiento, foi a luta contra o rosismo.

Em 1829, Rosas havia subido ao governo provincial de Buenos Aires com a

investidura de “faculdades extraordinárias”56, das quais abusaria a partir de 1835.

Com o advento do partido federal ao poder, pela censura que se instalou no país, e

pela perseguição de que foram vitimas os opositores ao regime, o pai de Manso

emigrou ao Uruguai em 1836. Ter vivido no exílio por razões ideológicas durante

catorze anos vincula Manso de certa forma com a geração dos proscritos argentinos.

Desde Montevidéu a escritora denunciou nos periódicos uruguaios a tirania federal,

colaborando desta forma com a obra nacionalista dos exilados unitários.

Em 1852 começou uma nova etapa na vida de Manso. Ao agravar-se nesse

ano a perseguição contra os emigrados unitários, Manso se refugiou no Rio de

Janeiro, onde viveu cerca de dez anos. O exílio brasileiro foi importante porque aqui

56 Consistia na não limitação das suas atribuições, faculdades legislativas e judiciárias. Em 1835 começa o período conhecido como a ditadura de Rosas, esse poderia intervir como quisesse no equilíbrio político de várias províncias.

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ingressou na vida pública ao fundar o primeiro jornal feminino57 chamado O jornal

das Senhoras, com o subtítulo Moda, Literatura, Belas-Artes, Teatro e Crítica,

modelo de jornal publicado na Europa. Iniciou deste modo sua carreira literária. O

Jornal, cuja primeira entrega se publicou em 1 de janeiro de 1852 (dois anos antes

da primeira entrega do Álbum) é a versão primitiva do periódico portenho: “Este

jornal dedicado exclusivamente às senhoras tratará desses direitos e dessa

educação, cuja principal tendência é a emancipação moral da mulher” (Manso, 1852,

nº1-4).

Muzart diz que “No círculo ilustrado o Redator é sempre recebido com certo

prestígio do homem que em letra de imprensa pode dizer muita coisa, propícia ou

fatal a alguém” (MUZART,2003). No editorial de Manso de 1º de janeiro de 1852

vemos:

Ora pois, uma Senhora à testa da redação de um jornal! Que bicho de sete cabeças será? Contudo em França, em Inglaterra, na Itália, na Espanha, nos Estados Unidos, em Portugal mesmo, os exemplos abundam de Senhoras dedicadas à literatura colaborando em diferentes jornais. Porventura a América do Sul, ela só, ficará estacionária nas suas idéias, quando o mundo inteiro marcha ao progresso e tende ao aperfeiçoamento moral e material da Sociedade? (MANSO, 1852, janeiro, n.1-4)

57 MUZART, Zahidé Lupinacci. Uma espiada na imprensa das mulheres no século XIX. Revista Estudos Feministas. v.11 n.1 Florianópolis jan./jun. 2003.

Disponível em www.scielo.br. Acesso em: 20 junho. 2008.

COELHO, Nelly Novaes. A Emancipação da Mulher e a Imprensa Feminina (séc. XIX – séc. XX). Kplus. São Paulo, edição nº28, 01 dez de 2001.

Disponível em: http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=119&rv=Literatura. Acesso em: 06 junho. 2008.

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A respeito do fragmento acima – “Ora, pois, uma Senhora à testa da redação

de um jornal! Que bicho de sete cabeças será?" – Muzart afirma que essa é a frase

de destaque do editorial de Juana Manso e o bicho-de-sete-cabeças era a mulher,

chefe de um jornal. Essa atitude rompeu com a imprensa tradicional da época, que

dedicava ao público feminino somente temas como bordados, cosméticos e modas,

e criou um sentido para as reivindicações das mulheres e, sobretudo, o de instrução,

de educação, de mudança de atitudes, de idéias. E conclui dizendo que a imprensa

feminista teria nascido no Brasil, tendo como diretora Manso; suas idéias foram

tomadas como exemplo por outras mulheres que também se tornaram jornalistas, e

assim, os periódicos se expandiram por todo o país (MUZART, 2003).

Vale ressaltar o comentário de Constanza Meyer sobre a seleção do termo

“senhorita” e não “senhora”58 para o título do Álbum. A intenção de pôr distância

entre a mulher e o homem está ausente no Jornal, dirigido em principio à mulher

brasileira casada, a “senhora” do título, a quem Manso falava de direitos, de sua

missão no lar e fora dele, e da importância de sua educação, dando como exemplo a

liberdade da mulher norte-americana.

Dentro da produção escrita da autora, somente três obras são literárias: O

Álbum e dois romances, Los misterios del Plata, escrito em 1846 e publicado

posteriormente, e La família del comendador, escrito conjuntamente com o Álbum.

Depois de 1854, os escritos de Manso foram pedagógicos. Cada um dos três textos

literários de Manso revela a presença de um discurso político subjacente. Por um

lado, o Álbum denuncia o estado lamentável da cultura no país e propõe a educação

como ferramenta para combater a barbárie, ao mesmo tempo que tenta provocar no

público feminino a tomada de consciência de seu estado de inferioridade dentro da 58 señorita, señora

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sociedade da época. Em segundo lugar, Los misterios del Plata é um dos primeiros

romances de denúncia ao regime do caudilho Rosas, que, segundo Masiello,

complementa Amalia, de José Mármol (MASIELLO,1997, p.95). Já La família del

comendador denuncia a escravidão praticada na oligarquia brasileira. Estas três

obras revelam o alto grau de consciência sóciopolítica da escritora, o que era pouco

comum na mulher de meados do século XIX.

Manso se dedicou a opinar sobre o estado presente e futuro da nação como

haviam feito seus amigos Mármol, com Amalia, e Sarmiento, com Facundo. A

diferença entre ela e os escritores consagrados radica em que, desde sua condição

de mulher, seu discurso não se reveste da mesma autoridade que o de Sarmiento

ou o de Mármol, porque, como explica Zuccotti: “a palavra feminina no século XIX,

se se caracteriza por algo, além de seu perigo, é a falta de autoridade de que está

investida” 59. Manso contribui para o projeto de construção da nação à margem do

discurso oficial, sem o direito legítimo de opinar sobre questões fora do âmbito

doméstico (PRATT, 1993, p.54).

Relegada à periferia do discurso antirrosista produzido por homens de 1837, a

palavra de Manso reclama seu direito de existir e gera sua própria autoridade

marginal, aquela que deriva precisamente de sua condição subordinada. Foucault

afirma que daí nasce a resistência à imposição da vontade de quem domina

(FOUCAULT, 1979, p.71). Levando este pensamento ao campo do discurso

sóciopolítico no período rosista, resulta evidente que o Ábum representa o esforço

de Manso por ingressar no debate público sobre a questão nacional no mesmo

patamar que seus compatriotas masculinos.

59 ZUCOTTI, 1994, p.105. No original: la palabra femenina en el siglo XIX, si por algo se caracteriza, además de por su peligrosidad, es por la falta de autoridad de que está envestida.

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Limitar-me-ei a destacar suas reflexões sobre a situação da mulher na época

em que viveu a autora. A inclusão de artigos sobre a mulher e para ela converte o

Álbum em uma clara alternativa às demais propostas (Moda, Literatura, Belas-Artes,

Teatro). Em cada exemplar se pode comprovar como a reivindicação da inteligência

da mulher ronda o Álbum de modo direto e deliberado. Algumas das linhas mais

explícitas neste sentido são as da nota da redação na primeira entrega. Diz a

autora:

Quero e hei de provar que a inteligência da mulher, longe de ser um absurdo ou um defeito, um crime, ou um desatino, é seu melhor adorno, é a verdadeira fonte de sua virtude e da felicidade doméstica porque Deus não é contraditório em suas obras, e quando formou a alma humana, não lhe deu sexo. Fez igual em sua essência, e a adornou de faculdades idênticas.60 (Tradução nossa)

Ao afirmar que a inteligência da mulher é sua maior virtude, e que é a garantia

de sua felicidade no lar, a autora priva as mulheres burguesas de seus atributos

míticos. O mito cumpria uma função social e econômica bem definida dentro da

ordem liberal que sucedeu ao rosismo. Os fazendeiros portenhos, do mesmo modo

que os burgueses europeus, precisavam de paz e ordem para o exercício de sua

atividade comercial. Necessitava-se encontrar um meio de acabar com as guerras

civis, cujo saldo mais problemático havia sido a criação de milhares de lares sem

homens. O rosismo havia conseguido pacificar as províncias defendendo uma volta

ao modelo da família patriarcal espanhola, dentro de cujo esquema a mulher se

definia como a mãe e esposa. Portanto, o único trabalho que se esperava dela era o

reprodutivo (PRATT, 1993, p.59).60 MANSO, apud AREA, 1997, p.151. No original: Quiero, y he de probar que la inteligencia de la mujer, lejos de ser un absurdo, ó un defecto, un crimen, ó un desatino, es su mejor adorno, es la verdadera fuente de su virtud y de la felicidad doméstica porque Dios no es contradictorio en sus obras, y cuando formó el alma humana, no le dio sexo – La hizo igual en su esencia, y la adornó de facultades idénticas.

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Neste contexto se inscreve a noção de “rainha do lar” que Manso combate. A

escritora nega que a ignorância na mulher possa ser uma virtude, como demonstram

as referências ao tema em seu periódico. Dedica-se a defender a necessidade de

educar a mulher para que ela adquira consciência de seu próprio valor e possa

melhorar suas condições de vida, dentro do lar e fora dele.

Em 1854 se fala de carreira literária no sentido do exercício da escritura como

atividade remunerada. Manso é uma vez mais precursora, porque foi uma das

primeiras vozes que se elevaram em defesa da profissionalização da atividade

literária (RAMOS, 1989, p.64-65). De acordo com a evidência que oferece o

conteúdo polêmico de grande parte do Álbum, esta autora possuía um alto grau de

autoconsciência como mulher, assim como a importância de sua atividade

jornalística e literária.

Meu país, seus costumes, seus acontecimentos políticos e todos os dramas espantosos que servem de teatro já há tantos anos, são mistérios para o mundo civilizado. Mistérios negros como o abismo, quase incríveis nesta época e que é necessário que apareçam à luz da verdade para que o crime não possa levar por mais tempo a máscara da virtude. 61

Com o lançamento do Álbum, Manso quis dividir com o público leitor suas

opiniões sobre o estado da cultura e da educação e seu efeito sobre a condição

feminina numa época em que a literatura como política constituía ofício de homens e

era vedado ao sexo oposto. A escritora ingressava na esfera pública com seu

periódico, ali onde não havia espaço para o pensamento feminino. Na realidade, o

Álbum tentou combater a barbárie postulando a criação de um espaço novo,

61 MANSO, 1936, Prólogo. No original: Mi país, sus costumbres, sus acontecimientos políticos y todos los dramas espantosos de que sirve de teatro ha ya tantos años, son ten de misterio para el mundo civilizado. Misterios negros como el abismo, casi increíbles en esta época y que es necesario que aparezcan a la luz de la verdad para que el crimen no pueda llevar por más tiempo la máscara de la virtud.

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intermédiário, entre a esfera pública masculina e a esfera privada feminina. Esta

“zona alternativa” (MEYER, 1994, p.123) era o lugar a partir do qual a mulher podia

participar ativamente nos debates sobre temas da atualidade sem abandonar suas

obrigações domésticas. Este espaço novo eliminava fronteiras antes delimitadas

entre o âmbito masculino e o feminino.

A invasão do espaço vedado constitui uma infração grave, uma ameaça ao

equilíbrio social. O Álbum representava um novo espaço cultural, proporia um novo

modo de observar, pensar e narrar a realidade; exigia de seus leitores um novo

modo de ler. O público de 1854 não soube como se situar frente a tanta novidade:

Hemos llegado al 5º y último número del Álbum en este primer mes de su existencia. Ningun sacrificio he ahorrado para darle vida y consistencia. Toda mi ambición era fundar un periódico dedicado enteramente a las señoras, y cuya única misión fuese ilustrar; lo había conseguido así en el Rio de Janeiro donde El Jornal das Señoras está en el tercer año de su publicación. Las simpatías que merecí en aquella corte, los testimonios todos de deferencias y de apoyo, con que me favorecieron, me indujeron a esperar otro tanto en mi país…Infelizmente mis esperanzas fueron pasajeras, que el viento del desengaño deshojó al querer abrir…” (“A Nuestras Subscritoras” en Álbum de Señoritas 5 – 29/1/1854)62

Manso representava uma anomalia, uma ameaça e um perigo, e sua voz

pronunciada no momento errado lhe trouxe o seguinte trato reservado: “ao diferente

(...) o descrédito, a indiferença, quando não atitudes muito violentas que têm como

objetivo e finalidade o calar de toda voz que pretenda desacomodar uma ordem

estabelecida”63 (AREA, 1997, p. 169). Seu maior mérito foi o valor que manifestou

62 Chegamos ao 5º e último número do Álbum de Señoritas neste primeiro mês de sua existência. Não economizei sacrifícios para dar vida e consistência. Toda minha ambição era fundar um periódico dedicado inteiramente às senhoras, e cuja única missão fosse ilustrar; havia conseguido assim no Rio de Janeiro onde o Jornal das Senhoras está no terceiro ano de sua publicação. As simpatias que mereci naquela corte, os testemunhos todos de deferência e de apoio, com o qual me favoreceram, me induziram a esperar o mesmo de meu país...Infelizmente minhas esperanças foram flores passageiras, que o vento do desengano desfolhou ao querer abrir... apud AREA63 AREA, 1997, p.178. No original: Al diferente (...) el descrédito, la indiferencia cuando no actitudes mucho más violentas que tienen como objetivo y finalidad el acallar toda voz que pretenda desacomodar un orden establecido.

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ao lutar por um ideal, qualidade que contribuiu para forjar o lugar que ocupa hoje em

dia como uma das vozes mais antigas que se elevaram a favor da emancipação

feminina no país.

O Álbum de Señoritas apresenta de forma sistemática o pensamento da

autora sobre a emancipação da mulher, enquanto símbolo do progresso social e

político de um povo. Suas duas versões serviram para a expressão das opiniões da

redatora sobre assuntos de índole política, assuntos que a mentalidade

contemporânea, burguesa, ditava que deveriam carecer de interesse para o sexo

feminino. Por serem os artigos do Álbum ensaios sobre temas da atualidade, o

gênero mesmo se presta para que Manso se comunique de forma direta, sem

recorrer a eufemismos, metáforas ou outras estratégias retóricas.

3.2 – Rosismo no romance

Alguns anos antes de fundar e escrever seu periódico, em 1846, Manso havia

começado a escrever Los misterios del Plata. É uma ficcionalização da história, já

que parte de um episódio real da luta entre unitários e federais ocorrido na década

de 1830. Durante sua viagem aos Estados Unidos, começa a pensar numa história

para revelar “os dramas espantosos” (MANSO, 1936, Prólogo) que aconteciam no

seu país e escolheu como título, Los misterios del Plata, para homenagear o modelo

francês, Los misterios de Paris, de Eugène Sue, datado de 1842 (PIERNI, p. 467).

Outros escritores tomaram como modelo o título da obra de Sue, por

exemplo: Los misterios de Madrid (1844) de Martínez Villergas; Les mystères de

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Londres (1844) de Paul Feval; Les mystères du peuple, de Sué (1849-1856); Los

misterios de la Índia de Xavier de Montepin e Los misterios argentinos (1865) de

Manuel Olascoaga. Pierini diz que:

Esta livre adaptação do termo “mistério” não era rara no mundo hispânico. Segundo Romero Tobar, nos mistérios aparecidos à sombra do modelo francês se apresenta uma estranha mescla de temas nos quais aparecem reunidos alguns dos tópicos da literatura popular tradicional com as questões candentes da polícia do momento. Desta maneira é a ficção que proporciona as estruturas para a exposição de uma realidade que se quer denunciar e combater.” 64

(Tradução nossa)

Em seu prólogo Manso declara: ”Al poner a esta obra el título de “MISTERIOS DEL

PLATA”; no es mi ánimo imitar los Misterios de Paris de Eugenio Sue; ni hacer otros

Misterios de Londres.”65 (MANSO, 1936, Prólogo). Na obra de Sue os “mistérios” que

o autor pretende desvendar são a situação miserável das classes trabalhadoras de

Paris. Já na obra de Manso o objetivo é político e partidarista. O mistério a

desvendar perante o mundo civilizado é a situação de seu país.66

Por se tratar de um romance, a autora se adequou às pautas do gênero:

recriação literária de certo aspecto do mundo real. Quer dizer, criação de um mundo

fictício em que sucedam fatos comuns (os que constituem a guerra civil), assim

como fatos extraordinários (por exemplo, a determinação de uma mulher em salvar a

vida de um homem ilustre, como veremos adiante). Los Misterios del Plata

64 PIERINI, p. 468. No original: Esta libre adaptación del termo “misterio” no es infrecuente em el mundo hispánico. Según Romero Tobar, en los misterios aparecidos a la sombra del modelo francés se presenta una extraña mezcolanza de temas en la que aparecen reunidos alguno de los tópicos de la literatura popular tradicional con las cuestiones candentes de la policía del momento. De tal manera, es la ficción la que proporciona las estructuras para la exposición de una realidad que se quiere denunciar y combatir.65 Ao pôr nesta obra o título Misterios del Plata; não minha intenção imitar os Mistérios de Paris de Eugenio Sue; nem fazer outros Mistérios de Londres.66 Conferir citação da página 76.

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apresenta em embrião muitas das idéias desenvolvidas sob a forma de ensaio no

Álbum, sobretudo no que diz respeito às questões relacionadas ao governo da

nação e à função social da mulher. Se se aceita que em princípio o romance seja

um veículo para narrar uma história, não um foro para debater opiniões, se

compreende porque estas idéias de Manso se ocultam atrás da trama.

Los Misterios del Plata esboça o pensamento social e político de Manso

exposto no Álbum. Isto se efetua através das peripécias que vivem seus

protagonistas, assim como o amor que une e que a guerra não pode destruir. Antes

de analisar como Manso emprega este gênero para lançar suas idéias no âmbito

público, é necessário localizar Los misterios del Plata dentro da produção literária

argentina em meados do século XIX.

Segundo Garrels, o primeiro romance publicado na Argentina foi La familia

del comendador, de Juana Manso (seus capítulos apareceram nas oito entregas do

Álbum em janeiro e fevereiro de 1854); no mesmo ano apareceu em forma de livro

em Buenos Aires. A historiografia literária oficial geralmente considera Bartolomé

Mitre como o primeiro romancista do país, esquecendo que seu romance Soledad,

de 1847, foi publicado em La Paz, Bolívia. Outros atribuem a Amalia, de Jose

Mármol, esta distinção (Amalia apareceu, de forma incompleta, no suplemento

literário do periódico La Semana, de Montevideo, em 1851. Em 1855 começaram a

circular os oito tomos de sua versão definitiva em Buenos Aires. Duas obras mais

entram nesta disputa literária: o pequeno romance ou grande conto La Quena, de

Juana Manuela Gorriti, é o primeiro romance escrito por uma argentina, em 1845,

ainda que publicado em Lima; e La novia del hereje, de Vicente Fidel Lopez, de

1854, que apareceu alguns meses depois de La familia del comendador.

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(GARRELS,1989, p.33-34). Não importa tanto qual foi o primeiro romance nacional,

tendo em conta que segundo o critério que se empregue se chegará a conclusões

díspares; o essencial é que Juana Manso foi precursora da narrativa argentina.

Iniciou-se no gênero, com o romance de cunho político que linda com o panfleto,

pela urgência de seu tom e seu objetivo imediato.67

Voltando a La familia del comendador, sua importância radica em sua

temática antiescravista, que foi possível desenvolver porque se ambienta no Brasil

prévio à abolição dos escravos. O Brasil foi lugar de exílio da autora durante a

ditadura de Rosas. Manso pôde recriar a realidade pela qual se passava no Brasil:

Abolição dos escravos. Com ela a autora se situa na vanguarda da maioria de seus

contemporâneos, para denunciar as atitudes racistas da oligarquia brasileira, assim

como o costume dos casamentos arranjados pelos pais sem o consentimento das

filhas. La familia del comendador não retrata a sociedade argentina e sim a

brasileira, não se encontra nesse romance referência alguma à realidade política

que vivia o país de Rosas, ao contrário de Los misterios del Plata, romance que tem

no rosismo seu ponto de partida e sua razão de ser.68

Se Los Misterios del Plata inaugura o romance feminino na Argentina, se há

de convir que se cruzam em seu texto as influências dos narradores românticos.

Para começar, se destacam numerosos elementos em comum com El matadero,

67 Segundo o “Diccionario de la lengua española de la Real Academia Española”, um panfleto é um “libelo difamatorio” ou um “opúsculo de caráter agressivo”. Difere do romance, seu conteúdo se baseia na realidade e seu objetivo é a vontade de modificar algum aspecto dela, habitualmente de forma urgente. O romance político, de acordo com a definição de Alejandra Laera, é que “hace un uso político de la ficción” (LAERA, 1998, p.118). Seu objetivo se assemelha ao panfleto, com a diferença de que é uma obra de literatura. O romance histórico é um texto que recria uma época do passado real na vida social e política de uma nação concreta; não pretende mudar a realidade social e política do momento em que se escreve.68 Podemos adiantar o próximo tópico que trata da autoria da obra de Manso. Ela escreveu vinte sete capítulos completos do romance. As página finais foram escritas por Ricardo Isidro López Muniz, que disse: “Hasta aqui llegó en su manuscrito la aoutora. Quedando trunca la obra, el editor la ha terminado, de acuerdo con las indicaciones de uma persona competente e conocedora de nuestra historia nacional, afin de conservar, en lo posible, el caráter de romance histórica que tiene este trabajo. Se ha tratado, también, de conservar el estilo de la autora.” (MANSO, nota 1). A nota não dá o nome do especialista em história argentina a quem consultou. López Muniz também prolongou o romance.

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como por exemplo, rosismo, mazorca69, conflito entre federais e unitários. Ainda que

seja impossível saber se Manso teve conhecimento do conto antes de sua

publicação em 1871: a descrição realista da massa popular que apóia o ditador,

heterogênea, vulgar, assim como as dos membros da Mazorca, aparecem na obra

de Echeverria. Além disso, o retrato físico e moral do protagonista, prototípico do

intelectual unitário, “uno de eses hombres-tipos que una vez vistos no se olvidan

más” 70(MANSO, p.27) remete ao retrato do rapaz unitário reproduzido por

Echeverria em El Matadero.

De Facundo, cuja leitura Manso havia feito, dado que Sarmiento foi um de

seus amigos fiéis, o romance toma emprestado o discurso progressista. Também a

criação de dois personagens a meio caminho entre a civilização e a barbárie: Simon

e Miguel, gaúchos a serviço do bando federal, mas possuidores de uma consciência

moral, que provam que nem tudo é irrecuperável na massa que apóia a Rosas:

No podía comprender de un golpe que las opiniones políticas de un individuo no puede jamás ser delitos de muerte. No podían comprender que el hombre tiene derechos sagrados de propiedad y de seguridad individual, que sólo son atropellados por los tiranos. (...) Esta libertad de si mismo, esta materialidad de la Idea libertad él la comprendía y amaba con pasión, pero había aún alguna distancia para que llegase a comprender la libertad intelectual, y lo que vale el libre albedrío de cada hombre.71 (MANSO, p.89)

Outra notável coincidência entre Los misterios del Plata e o Facundo é o

destaque que as duas dão à figura histórica de Valentin Alsina. Manso admira este

69 Deu-se o nome “mazorca” ao braço armado da Sociedade Popular Restauradora, grupo de partidários de Rosas que se formou em 1833 com o objetivo de apoiar sua candidatura ao governo com as “faculdades extraordinárias” que ele exigia depois de seu primeiro mandato.70 Um desses homens que uma vez visto, não se esquece mais. 71 Não podiam comprender de um golpe que as opiniões de um indivíduo não podem jamais ser delitos de morte. Não podiam compreender que o homem tem direitos sagrados de propriedade e de segurança própria, que somente são atropelados pelos tiranos.(...) Esta liberdade de si mesmo, esta materialidade da idéia da liberdade, ele a comprendía e amava com paixão, mas ainda havia alguma distancia para se chegar a compreender a liberdade intelectual, e o que vale o livre arbítrio de cada homem.

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unitário que conseguiu escapar da Mazorca; em palavras da autora: “El héroe de

este romance histórico es don Valentin Alsina; como se publicase antes de la caída

de Rosas (i.e., en enero de 1852, en el Brasil), se hizo uso del seudonimo de

Avellaneda para perpetuar el mártir de Tucumán” 72(MANSO, nota 3).

Além do diálogo das obras de Echeverria e de Sarmiento, a de Manso, Los

Misterios del Plata lembra a Amalia de Mármol. No entanto, vale lembrar da

possível influência de Manso em Mármol, dada a amizade entre ambos. O primeiro

romance foi escrito quase integralmente antes de 1850, enquanto o segundo

começou a aparecer em forma de folhetim em 1851, como já dito anteriormente. Los

Misterios del Plata foi escrito entre 1846 e 1850. Foi produto do exílio iniciado na

Filadélfia e concluído em Garavatá (Rj, Brasil). Em 1852 circulava em português e

por entregas no O Jornal das Senhoras (4 de janeiro a 2 de junho), e só em 1899

aparece em forma de livro o romance completo (PIERINI, p.469).

Quanto às semelhanças no nível temático, todas tratam do problema do

rosismo; mas entre Los Misterios del Plata e as três obras canônicas do antirrosismo

literário há uma diferença principal. Esta se apóia na analogia em termos de

argumento que vincula Los Misterios del Plata com o poema narrativo de

Echeverria, La cautiva, escrito e publicado quando o rosismo não havia alcançado

ainda o ápice do terror no ano de 1840. Existem marcas da La cautiva (publicada em

1837) na construção da esposa do protagonista, Adelaida Maza de Avellaneda.

Antes de desenvolver esse tema, convém fazer um breve resumo do argumento do

romance e mostrar como se insere dentro do movimento romântico rioplatense.

72 O herói deste romance histórico é don Valentin Alsina; como se publicou antes da caída de Rosas, se fez uso do pseudônimo de Avellaneda para perpetuar o mártir de Tucumán.

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Podemos identificar elementos românticos no romance de Manso. O

protagonista e a mulher que o acompanha vivem o sentimentalismo romântico de

forma diferente; enquanto Valentin Avellaneda sente pela pátria um amor

exacerbado, sua esposa vive o mesmo sentimento de lealdade nacional através do

amor que lhe demonstra Valentin, igualmente descomedido, e que devido aos

perigos que decide enfrentar ao final para salvar seu marido, a convertem na

verdadeira protagonista do romance.73

A história do resgate do preso político por amor vem a ser o argumento da

obra no plano superficial. A heroína Adelaida não se enquadra na tradicional

imagem de beleza, inocência e passividade associada com as criações do

Romantismo. Valentin é o típico personagem romântico pela sua melancolia, seu

desejo de realizar um sonho, sua ânsia de regresso à pátria, que Rosas impede.

O tema da religião está presente na forma alegórica como Manso apresenta a

captura de Avellaneda nas mãos dos partidários de Rosas como recriação da Paixão

de Jesus Cristo, um novo Calvário que por isso converte o personagem romântico

em um novo Messias, porta voz da verdade segundo o dogma unitário:

Dos guardias colocaron el preso enfrente a sus torpes verdugos y continuaron a sostenerlo porque el peso de cadenas con que lo habían cargado no le dejaba movimiento alguno(…) De la manera cómo lo colocaron, quedaba frente a frente con la imagen de Cristo y fijos los ojos en aquel símbolo de la redención y del martirio (…) Avellaneda (…) ante la figura de Dios-hombre crucificado, en tanto que sus sicarios volvían las espaldas al altar, parecía allí como el símbolo de la humanidad esclavizada demostrando toda la

73 Veremos no próximo tópico.

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inutilidade del sacrificio y martirios del Cristo. 74(MANSO, p.76)

Os procedimentos estilísticos mais habituais no Romantismo europeu estão

presentes no romance de Manso: a associação da natureza com os sentimentos do

protagonista, a caracterização do herói como pessoa reconhecida, o anti-herói

Rosas, assim como o emprego de estratégias retóricas que conferem ao estilo da

autora um aspecto decididamente romântico: uso de hipérboles para se referir ao

inimigo, do discurso político da época, de procedimentos irônicos e antíteses. Com

referência ao procedimento irônico, temos:

Acabe usted si es su intención hacerme fusilar ahora mismo, lo prefiero yo a escucharme tantas infamias y desatinos de la boca de um hombre que se llama Juez de Paz!!! Título sagrado que está profanando el vil ejecutor de las venganzas de un déspota (MANSO, p.76).

Los Misterios del Plata narra a história de Valentin Avellaneda, exilado unitário

que decide deixar Montevidéu e regressar ao seu país, a Argentina de Rosas, para

se estabelecer na província de Corrientes com sua esposa e seu filho Adolfo.

Durante a viagem de barco é vitima de uma emboscada, o que o impede de chegar

ao seu destino e cumprir seu sonho de contribuir para o crescimento de seu país

através da luta pela civilização. A descrição de sua captura, detenção, interrogatório

e tortura nas mãos dos partidários de Rosas, permite a Manso denunciar as

atrocidades do regime rosista e lutar pela superioridade do projeto progressista do

partido opositor.

74 Dois guardas colocaram o preso enfrente a seus torpes carrascos e continuaram sustentando-o porque o peso das correntes, que haviam posto, não deixava que ele fizesse nenhum movimento. (…) De maneira que como o colocaram, ficava frente a frente com a imagem de Cristo e com os olhos fixados naquele símbolo de redenção e de martírio. (…) Avellaneda diante da figura de Deus-homem crucificado, tanto que seus sicários voltavam as costas ao altar, parecia ali como o símbolo da humanidade escravizada demostrando toda a inutilidade do sacrifício e martírios do Cristo.

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O resgate final do herói unitário se deve à participação ativa de Adelaida, que

não economiza meios para salvar Valentin de uma morte certa, burlando os

obstáculos que a separam de seu marido e que separam a ambos da liberdade tão

ansiada e provocando a ira de Rosas, que se vinga mandando matar seu pai e seu

irmão:

La furia de Rosas no tuvo límites al saber la fuga de Avellaneda y sus compañeros de evasión y desde entonces decretó la muerte del doctor Maza y de su hijo Ramón, cobardemente asesinado aquél y fusilado éste, por la mazorca capitaneada por Salomón.75 (MANSO, p.219)

Como já vimos, este romance responde em grande medida à tipologia

tradicional do Romantismo europeu quanto à temática abordada e as figuras

retóricas escolhidas para desenvolvê-la. Os grandes temas do movimento são a

preocupação pela história, particularmente a história do país do(a) autor(a); o cultivo

dos sentimentos, com uma marcada preferência por emoções fortes produzidas pelo

amor, a religião, a vida e a morte; e finalmente o compromisso do(a) autor(a) com os

conflitos sociais e políticos do momento que vive. Devido à formação romântica de

Manso, mulher que possuía uma educação superior à de muitos homens de sua

época, que dividia os ideais políticos e sociais da Geração de 1837, e que lia e

traduzia, do inglês, do francês e do português, fica claro que tinha conhecimento

sólido das obras européias deste período.

Se na base do Romantismo europeu se situa o questionamento individual

frente à visão do mundo iluminista, que o interpretava em termos da razão, assim

como a rebeldia aos dogmas da fé impostos pela Igreja, no caso dos escritores rio-

platenses, pela conjuntura política, o ideal romântico se nutre dos elementos que lhe

75 A fúria de Rosas não teve limites ao saber da fuga de Avellaneda e de seus companheiros de evasão e, desde então, decretou a morte do doutor Maza e de seu filho Ramón, covardemente assassinado aquele e fuzilado este pela mazorca capitaneada por Salomão.

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inspira o rosismo. Os temas que dominam são o enfrentamento permanente entre

unitários e federais, aquele entre Rosas e certos caudilhos do interior, e aquele outro

entre unitários exilados na primeira onda de emigração de 1829 (como o próprio

Valentin Alsina) e os jovens do grupo de Echeverria. Desde o começo os jovens da

geração de 1837 tentaram se desvincular das lutas entre as facções políticas, sem

êxito, porque os proscritos constituíam no imaginário social da época um grupo

homogêneo de unitários no exílio (ROJAS, 1925, p.201). Vale a pena citar as

palavras de Echeverría:

Um dos nossos grandes erros políticos e também de todos os patriotas, foi aceitar a responsabilidade dos atos do partido Unitário e fazer solidária sua causa com a nossa. Eles nunca pensaram numa restauração: nós queremos uma regeneração. Eles não têm nenhuma doutrina; nós pretendemos ter uma; um abismo nos separa.76(LUNA, 1995, p.62) (tradução nossa)

.Nesta atmosfera caótica era compreensível que o romance histórico quisesse

dizer a verdade, ou seja, dizer sua alternativa à versão oficial dos fatos. Tentou-se

explicar a realidade que recriava, para “amenizar sua angústia (...) e esclarecer o

enigma do presente”77 (JITRIK, 1994, p.169,174). No caso dos poetas, contistas e

narradores exilados como Manso, Mármol, Echeverría e Sarmiento, desejavam

deixar o registro escrito das inacabáveis lutas entre unitários e federais tais como se

viviam durante o rosismo, o que pode ser interpretado como o legado deixado à

posteridade como testemunho fiel de quem sofreu as iniqüidades do regime.

76 Carta de 1 de outubro de 1846 a dois amigos chilenos, reproduzida em Felix Luna. No original: Uno de nuestros grandes errores políticos y también de todos los patriotas, ha sido aceptar la responsabilidad de los actos del partido Unitário y hacer solidaria su causa con la nuestra. Ellos no han pensado nunca sino en una restauración: nosotros queremos una regeneración. Ellos no tienen doctrina alguna; nosotros pretendemos tener una; un abismo nos separa.77 JITRIK, 1994, p.169, 174. No original: Paliar su angustia (...) y esclarecer el enigma del presente.

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3.3 – Los Misterios del Plata: Um caso de dupla autoria?

Los Misterios del Plata é um romance político escrito em dois níveis paralelos.

A trama visível é a história da captura e posterior liberação de um defensor da

liberdade e da civilização. Nessa dicotomia está a trama secundária, que consiste

na luta da mulher do protagonista pelos mesmos ideais de liberdade e civilização,

mas através dos modestos meios que estão ao seu alcance. Na base da trama está

o amor da mulher a seu marido.

Los Misterios del Plata é um romance sobre o rosismo, mas também é uma

historia de amor entre um homem e uma mulher unitários. O amor do casal é um

vínculo estabelecido por Juana Manso para dar seu parecer acerca da ditadura: a

união final do herói e de sua esposa, que Rosas não pode impedir, é uma defesa

dos valores unitários frente ao despotismo do ditador.

O romance de tema amoroso se associa com a mulher escritora. A primeira

obra de ficção de Manso combina as características destes dois subgêneros

díspares: o romance político e o romance romântico.

Como correspondente ao subgênero do romance político, Los Misterios del

Plata trata do poder: por um lado, imposição da vontade do ditador sobre o povo; por

outro, relações de força desiguais dos protagonistas entre si e seu entorno, seguindo

a acepção do poder proposta por Foucault (1979, p. 177). O romance de Manso,

como romance político, trata da luta pelo poder entre unitários e federais; entretanto

uma análise mais detida revela uma segunda leitura possível, onde o poder deixa de

ser um objeto concreto de desejo ao se converter em estratégia para conseguir um

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fim que transcende a ele. Seguindo esta linha de interpretação, o esforço de

Adelaida para salvar a vida de seu marido parte de e se justifica somente pelo amor

que a une a ele. Os riscos que corre para conseguir este único objetivo redefinem

sua posição de mulher frente a Valentin Avellaneda, frente ao inimigo e frente aos

que colaboram com ela no resgate. As ações empreendidas por Adelaida no

romance constituem a estratégia que ela adota para conseguir o que deseja. A

história de amor é a história desta estratégia e sua função é transmitir as idéias

sociais e políticas da autora.

Antes de examinar o alcance da protagonista Adelaida, é preciso retratá-la e a

seu marido, porque ambos participam desta dinâmica. A princípio, Valentin

Avellaneda e sua esposa Adelaida se adaptam ao modelo de herói e de heroína

criados no Romantismo. No entanto, até o final do romance Adelaida excede as

limitações associadas com seus papéis de esposa e mãe, enquanto que seu marido

não cumpre com as expectativas de seu gênero. A seguir examino os retratos dos

protagonistas tais como aparecem na obra.

No quarto capítulo, Manso descreve o aspecto de Avellaneda e infere seus

traços morais e intelectuais com base em suas características físicas:

El doctor Avellaneda...era un hombre alto, flaco y pálido. Su fisonomía noble y tranquila era como el transparente de una alma más noble... Una barba negra y fina sombreaba su rostro varonil; su ancha y clava frente era el asiento de la inteligencia y de todas las más distinguidas facultades del espíritu... su boca … y sus ojos… traicionaban el orador locuaz, el literario infatigable que ha gastado las mejores horas de su juventud en estudios profundos, y tal vez el político que luchó para dar a su patria leyes y constitución.” (MANSO p.28).78

78 O doutor Avellaneda...era um homem alto, magro e pálido. Sua fisionomia nobre e tranqüila era como o transparente de uma alma mais nobre...Uma barba negra e fina sombreava seu rosto varonil: sua larga testa era o assento da inteligência e de todas as mais distinguidas faculdades do espírito...sua boca atraiçoava...o orador loquaz, o incansável literário que gastou as melhores horas de sua juventude em estudos profundos, e talvez o político que lutou para dar a sua pátria leis e constituição.

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A beleza varonil é a carta de apresentação do protagonista masculino de Los

Misterios del Plata. Assim, o herói romântico é o intelectual unitário em pessoa.

Sua barba negra é o signo inconfundível de sua identificação com a causa unitária.

No plano psicológico, Avellaneda responde à imagem convencional do

protagonista das obras européias do mesmo período:

Con una mano sosteniendo su frente, con la otra caída negligentemente sobre la rodilla... Su rostro expresaba en aquel momento una profunda aunque suave tristeza; parecía que una lágrima estaba pronta a correr por sus pálidas facciones (MANSO, p.28).79

A razão da lágrima de Avellaneda não é somente a perda da mulher amada,

mas também o amor que sente pela sua pátria:

A medida que las lejanas y floridas escenas de su primera juventud, los azares de la vida errante del proscripto le eran más amargos. A medida que contemplaba la riqueza y hermosura de su suelo patrio, más amarga se le tornaba su peregrinación por tierra extraña80 (MANSO, p.28).

O sentimento de apego à terra onde se nasce é um tema recorrente em toda

a literatura romântica. É uma manifestação de nacionalismo incipiente, que não só

precede a constituição definitiva da nação, mas também que a antecipa.

Avellaneda derrama outra lágrima solitária até o final do romance, agora

preso na câmara de tortura reservada aos traidores do regime, pois não suspeitava

que o libertaria, no capítulo seguinte, a sua esposa. Assim expressa Manso a

impotência de seu protagonista:79 Com uma mão sustentando a testa, com a outra caída negligentemente sobre o joelho...Seu rosto expressava naquele momento uma profunda, ainda que suave tristeza; parecia que uma lágrima estava pronta a correr por sua pálida feição. 80 A medida que as distantes e floridas cenas de sua juventude, os acasos da vida errante do proscrito lhe eram mais amargos. A medida que contemplava a riqueza e a beleza do solo de sua pátria, mais amarga ficava sua peregrinação por terra estranha.

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Avellaneda era hombre!... su corazón se partió de dolor y un impulso natural más poderoso que su orgullo, hizo caer de sus ojos una lagrima que se perdió en la sombría oscuridad de su prisión; quitándole a Rosas un triunfo cierto y deseado por él. El llanto de un hombre libre!81 (MANSO, p.199).

Apesar dessa economia nos sentimentos, que confere a sobriedade ao

protagonista masculino, frente à habitual emotividade da heroína romântica, em

duas oportunidades Avellaneda chora abundantemente: a primeira depois de

entender o plano de evasão que prepara sua mulher, ante a perspectiva de seu

eventual fracasso; e a segunda, após o êxito da fuga no barco que leva a família

unitária de volta à Banda Oriental (MANSO, p.210 e 216). São dois choros distintos:

um de desespero e o outro de alegria. As lágrimas do herói romântico denotam a

complacência dos autores e autoras do período no cultivo da expressão de

sentimento. É patente um certo sentimento dito feminino no personagem masculino

que não sabe ou não pode conter suas emoções (MASIELLO, 1997, p.33, 40-42).

A devoção de Adelaida ao marido forma parte do papel tradicional de “rainha

do lar”, papel que ela interiorizou, desempenhando-o fielmente ao longo de todo o

romance (já que suas únicas preocupações são o bem estar de seu marido e do seu

filho). Seu retrato físico e espiritual não corresponde ao da heroína romântica

tradicional. Segundo Ivia Alves :

Em nenhum texto de autoria feminina se encontra uma mulher tão formosa e tão harmoniosa quanto aquelas pintadas pelos autores românticos e mesmo realistas. As escritoras preferem falar muito mais das atitudes e comportamentos do que fotografar a exterioridade do corpo e do rosto. São em rápidas pinceladas que elas descrevem as suas personagens femininas, que em geral, são moralmente fortes, seguras e nas dificuldades familiares tomam o rumo

81 Avellaneda era homem!... seu coração se partiu de dor e um impulso natural mais poderoso que seu orgullo, fez cair de seus olhos uma lágrima que se perdeu na sombra escura de sua prisão; tirando de Rosas um triunfo certo e desejado por ele. O pranto de um homem!

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da vida do casal (CAVALCANTI, LIMA E SCHNEIDER, 2006, p.55).

A partir desse comentário de Alves, podemos destacar o fragmento da obra

de Manso que faz referência ao caráter de Adelaida e não à beleza exterior da

mulher no Romantismo:

La mujer de Avellaneda no era bella, pero tenia uno de esos rostros, donde el señor se complace en grabar en signos misteriosos las nobles facultades del alma, su rostro no era bello, pero poseía el difícil don de expresar todos los sentimientos con la misma facilidad de la palabra, naturalmente, con la misma rapidez del pensamiento... porque esta mujer viva de imaginación y apasionada de caráter, poseía a la vez una voluntad de bronce y una fuerza tal de carácter capaz de acallar y encubrir las sensaciones más tumultuosas de su alma... 82(MANSO, p.29)

Juana Manso escreveu vinte e sete capítulos completos de Los Misterios del

Plata, mais dez das treze páginas do capitulo 28. Manso havia começado a redação

de sua obra em 1846 e a havia abandonado em algum momento anterior a 1850. O

editor, Ricardo Isidro López Muniz, redigiu as duas páginas e metade do capitulo 28,

assim como os dois últimos. Estes detalhes editoriais são importantes porque é

precisamente nas páginas acrescentadas por Lopez Muniz onde ocorre a

metamorfose de Adelaida em mulher de ação (PIERINI, 2002, p.472).

A intervenção do editor cria uma ruptura no texto a partir da qual surgem

alguns problemas. Primeiro: dado que Manso não é autora material dos 30 capítulos

da obra, pode Los Misterios del Plata ser considerado como o primeiro romance

argentino escrito por uma mulher? Segundo: dado que Adelaida deixa de lado sua

passividade característica a partir da intervenção do editor, é licito afirmar que

Manso escreveu um romance onde a mulher exibe qualidades distintas daquelas

82 A mulher de Avellaneda não era bela, mas tinha um deses rostos, onde o señor se agrada em gravar em signos misteriosos as nobres faculadades da alma, seu rosto nao era belo, mas possuia o difícil don de expresar todos os sentimentos com a mesma facilidade da palabra, com a mesma rapidez do pensamento...porque esta mulher de imaginação fértil e apaixonada de caráter, possuia uma vontade de bronze e uma força tal de caráter capaz de calar e encobrir as sensações mais tumultuosas de sua alma...

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associadas com o ideal de feminismo da época? Terceiro: qual a contribuição de

Los Misterios del Plata à narrativa do período, tendo em conta que Manso não

escreveu os dois últimos capítulos?

A resposta às duas primeiras perguntas é afirmativa se se conseguir

demonstrar que esta obra é conceitualmente o produto de uma só pessoa, Juana

Manso. O terceiro problema será estudado mais adiante.

Há vários indícios que permitem entender que Los Misterios del Plata deve

ser considerada uma obra integral de Manso. Observamos que em 2 de junho de

1852 apareceu um artigo em O Jornal das Senhoras onde Manso comenta a gênese

de sua obra.83 A autora considerava seu romance suficientemente acabado em

1852, quando começou a circular o jornal: na edição de Los Misterios del Plata de

1924 (MASIELLO, 1997, p.98), segue-se ao prólogo um breve texto de Manso

intitulado “ Una palabra sobre este libro”84(MANSO, prólogo) onde a autora comenta

o propósito abertamente propagandístico de seu romance. Chama “esta obra” e

“este libro” no início e no final do texto: “Al poner a esta obra el título...” e “Llamamos

la atención de los lectores sobre las notas de este libro”85 (Ibidem, prólogo). Dois

fatos respaldam a opinião de Manso: para começar, a metamorfose de Adelaida é a

culminação de um processo iniciado no começo da obra; depois, é provável que

Lopez Muniz tenha interpretado as passagens centradas em Adelaida como

presságios de um protagonismo futuro maior, o que lhe permitiu completar a obra do

modo como o fez. A seguir explicaremos porque não consideramos que a parte

acrescentada pelo editor não o torna o segundo autor da obra e sim, um

colaborador.

83 MANSO, 1852-1854, ns. 1-484 Uma palavra sobre este livro.85 Ao pôr nesta obra o título... e Chamamos a atenção dos leitores sobre as notas deste livro.

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Em primeiro lugar, a ação da romance se acelera entre o capitulo 28 e 29, no

momento em que Adelaida decide tomar a situação em suas próprias mãos e Manso

estivera preparando esta transformação. O retrato que faz da personagem no

capitulo 4 a apresenta como uma heroína não convencional “...si las circunstancias

lo exigían (...) enganaria al conservador más suspicaz”86 (Ibidem, 1936, p.28). Esta

capacidade de autocontrole por parte de uma mulher, produto de sua inteligência, é

evidente quando Adelaida não reage no momento da detenção de seu marido por

forças de Rosas: “serenó las veloces palpitaciones de su corazón y miró

agradablemente a aquellos, cuya sola vista le helaba de pavor, hasta la última gota

de su sangre”87 (MANSO, 1936, p.59).

Mais adiante, no capitulo 24, ocorre um enfrentamento entre Adelaida e o

comandante da embarcação onde se encontra preso seu marido, quando ela

demonstra ter a suficiente coragem para interrogá-lo acerca do destino de

Avellaneda. Esta é a resposta que recebe:

Vengo efectivamente a llevar al salvaje e inmundo unitário Avellaneda, pero ignoro aún dónde debo conducirlo ni lo que S.E (Rosas) dispondrá de él; además de eso, a Ud qué se le importa, no sabe que los inmundos unitarios no tienen parientes!88 (Ibidem, p.161)

A vulgaridade dos epítetos empregados para designar os inimigos do regime

imposto pela retórica rosista, somada ao tom insolente com que um homem se dirige

a uma mulher, é suficiente para provocar um esboço de discurso patriótico em

Adelaida: “Yo sé – replico Adelaida – que Ud es un miserable instrumento de la

86 ...se as circunstâncias o exigissem (...) enganaria o conservador mais suspicaz.87 Serenou as velozes palpitações de seu coração e olhou agradavelmente aqueles, cuja vista a fazia gelar de pavor, até a última gota de seu sangue.88 Venho efetivamente levar o selvagem e imundo unitário Avellaneda, mas ignoro onde devo conduzi-lo, nem o que ele (Rosas) disporá dele; além disso, ao senhor que lhe importa, não sabe que os imundos unitários não têm parentes!

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tiranía y yo debo y quiero saber lo que Uds pretenden hacer de mi esposo!”89

(Ibidem, p.162).

Em segundo lugar, o fato de Lopez Muñiz ter decidido acelerar o desenlace

do romance mediante a conversão radical da protagonista em mulher de ação revela

que ele provavelmente percebeu no retrato de Adelaida uma heroína ativa em

potencial. Não somente investiu tempo e esforço em editar e completar a obra, mas

também se esmerou por preservar o espírito da obra e imitar o estilo da autora,

como ele mesmo afirma90. Segundo Masiello, Lopez Muñiz terminou de redigir os

dois últimos capítulos no mesmo ano da publicação da obra em forma de livro:

192491 (MASIELLO, 1997, p.98); Manso faleceu em 1875. Portanto, é licito pensar

que o surpreendente giro a partir do final do capitulo 28 é a culminação de um

processo iniciado pela própria autora na obra incompleta.

Apesar do complemento de Lopez Muñiz, consideramos este romance como

obra de Juana Manso e, portanto, como o primeiro romance escrito por uma mulher

na Argentina. Manso cria aqui uma protagonista que se molda ao ideal feminino de

sua época, ao mesmo tempo em que não reluta em ignorar certas pautas de

comportamento próprias desse ideal quando o julga oportuno, ao se ver perseguida

pelas circunstâncias da guerra.

Nos capítulos escritos pela autora aparece um elemento que está ausente

das páginas agregadas por Lopez Muñiz: a loucura incipiente de Adelaida. Manso

propõe uma mulher que, sem enlouquecer totalmente, apresenta sintomas claros de

um começo de loucura, além de se retratar como a única pessoa capaz de salvar

89 Eu sei – replicou Adelaida – que o senhor é um miserável instrumento da tirania e eu devo e quero saber o que os senhores pretendem fazer com meu esposo!90 citado em Manso, LMP, nota 1.91 Em sua edição de LMP publicada em 1924, Ricardo López explica que Manso deixou um manuscrito do romance sem terminar e que ele se encarregou da tarefa de completar o relato em seu estilo que, segundo afirma, é fiel à intenção da autora.

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seu marido do inimigo. Ainda omitindo a seção acrescentada por López Muniz, o

personagem criado por Manso na personagem de Adelaida representa uma

inovação importante a respeito da função da mulher no centro do conflito entre

unitários e federais.

Em Los Misterios del Plata a loucura da protagonista não se manifesta pela

primeira vez no desenlace, mas ocupa a parte central da história. Em Adelaida

aparecem sinais que revelam sua presença desde o capitulo 9, em sua palidez, seu

“rosto desfigurado, ojos llorosos y miradas vagas” e “Adolfo oía a sus padre con una

especie de veneración religiosa, en tanto la desesperación de Adelaida aumenta

gradualmente”92(MANSO, p.70). Quando seu marido já está preso, Adelaida é uma

“mujer pálida y deshecha por la enfermedad y los pesares”93 (Ibidem, p.160).

Conforme avança a trama, a esposa de Avellaneda desenvolve sintomas cada vez

mais inequívocos de confusão mental. Ao comandante da embarcação onde está

preso seu marido, confessa: “...mi cabeza no está buena he sufrido mucho estos

días” e poucos instantes depois volta a pôr em relevo sua palidez, somada à “su

mirada ardiente”94 (Ibidem, p.163). Finalmente, Adelaida está “abatida y enferma”95

(Ibidem, p.163), deixou de falar, possivelmente porque, como aponta Manso, “con la

ausencia de su marido, parecia haberse ausentado su espiritu” 96( Ibidem, p.176).

A loucura de Adelaida é passageira e representa sua resposta ao sofrimento

extremo causado pelo desespero, como ressalta constantemente a autora. A

captura e o posterior aprisionamento de seu marido são os momentos de crise

92 “rosto desfigurado, olhos chorosos e olhar vago” e “Adolfo ouvia seu pai com uma espécie de veneração religiosa, enquanto o desespero de Adelaida aumenta gradualmente”93 mulher pálida e desfeita pela enfermidade e pelos pesares.94 Minha cabeça não está boa e poucos instantes depois volta a por em realce sua palidez, esta vez somada à imobilidade e ao seu olhar ardente.95 Abatida e enferma.96 Com a ausência de seu marido, parecia que seu espírito havia se ausentado.

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provocam estes episódios de loucura da mulher. O desespero é tal que Adelaida

chega a desconfiar da providência divina, ao acusar a Deus de ser injusto porque

permite que sofram os inocentes: “Oh! Dios no es justo cuando consiente al crimen

triunfar de la virtud y de la inocencia!97 (MANSO. p.70).

Nas narrativas de mulheres com o fundo de guerra civil e violência, são

inevitáveis as perdas dos seres queridos, especialmente de homens, vítimas

prediletas da Mazorca por motivos políticos: “Para la mujer que es esposa e madre,

la pérdida de su marido significa perder parte de si misma”98 (ALDARACA, 1982,

p.71) porque “ser madre es la esencia positiva de ser mujer”99 (Ibidem), e “la esposa

es madre gracias a su hombre”100 (Ibidem). A “essência” cuja perda coincide com a

aparição da loucura, no caso da mulher, é aquilo que a define perante a sociedade e

perante si mesma como mulher, como foi explicado no capitulo anterior, no século

XIX, ou seja, o casamento e a maternidade.

Nas páginas acrescentadas por Lopez Muñiz não são atribuídos traços de

loucura a Adelaida. O editor segue outro caminho ao criar sua própria versão desta

mulher com base no retrato que dela fez Manso e a transforma na verdadeira

heroína do romance porque faz depender de sua iniciativa o desenlace favorável.

No capitulo 29 ocorre a conversão da esposa submissa em uma mulher forte e

decidida que toma o destino de sua família inteira entre suas mãos frente aos

poderosos aliados de Rosas. Além da colaboração de alguns amigos e

simpatizantes, Adelaida conta com a ajuda divina. O começo de sua transformação

radical se anuncia com estas palavras: “Se propuso arrancarlo de las garras del

97 Oh! Deus não é justo quando concede ao crime triunfar da virtude e da inocência.98 Para a mulher que é esposa e mãe, a perda do marido significa perder parte de si mesma.99 Ser mãe é a essência positiva de ser mulher.100 A esposa é mãe graças a seu homem.

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tirano, o sucumbir en un intento”101. (MANSO. 1936, p.203). Adelaida decide lutar

contra a tirania através da ação e do risco.

O gesto de Adelaida se dá mediante uma das mais tradicionais estratégias

adotadas pela mulher que quer obter seu propósito sem delatá-lo: a adoção de

disfarces. O primeiro é de mulher federal, para se confundir com guardas que têm

acesso à casa de Rosas:

Adelaida vestida con una pollera de balleta y uno de esos grandes pañuelones que usan en Buenos Aires las mujeres de la clase que, sin ser proletaria, puede llamarse trabajadora, se encaminó, con la morena Marica, a la casa de Rosas, nada menos.102 (Ibidem, p.206).

E seguindo seu disfarce, consegue penetrar na prisão marítima e se

comunicar com seu marido através de mensagens ocultas engendradas por ela

mesma, acerca do plano de liberação, que resulta em êxito:

Adelaida (…) compró una cantidad de pan, tabaco y papel de cigarrillos: con maestría, que envidiaría el más experto, colocó dentro de dos de los panes papeles escritos enterando al doctor Avellaneda de sus propósitos y escribió en algunos de los papeles de cigarrillos (que llenó de tabaco y armó perfectamente la morena Marica), lo que no había podido decir en los panes mensajeros103 (Ibidem, p.208).

O uso do disfarce é uma das estratégias textuais mais correntes empregadas

pela mulher escritora para desestabilizar uma trama convencional. Assim, Los

Misterios del Plata é uma história dividida em dois níveis distintos: o político e o

101 Propôs a arrancá-lo das garras do tirano ou sucumbir na tentativa.102 Adelaida vestida com uma saia e um desses grandes lenços que usam em Benos Aires as mulheres de classe que, sem ser proletária, pode se chamar de trabalhadora, se encaminhou com a morena Marica, à casa de Rosas, nada menos.103 Adelaida comprou uma quantidade de pão, tabaco e papel de cigarros: com a maestria, que invejaria o mais especialista, colocou dentro de dois pães papéis escritos informando ao doutor Avellaneda os seus propósitos e escreveu em alguns dos papéis de cigarro (que encheu de tabaco e armou, perfeitamente, a morena Marica), o que não poderia ser dito nos pães mensageiros.

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erótico; do mesmo modo, podemos estabelecer uma analogia entre dois aspectos da

personalidade de Adelaida: a submissa e a empreendedora. Se a mulher não pode

conseguir seu objetivo mediante a força, deve recorrer a estratégias que estejam ao

seu alcance e que lhe permitam realizar o que pretende de forma mais sutil.

Esta é uma história de amor cuja protagonista feminina monopoliza pouco a

pouco o espaço e a função do seu companheiro, ao tomar emprestado os traços de

personalidade tradicionalmente associados ao varão (a força, a atividade e a

racionalidade), ao mesmo tempo em que abandona aqueles associados à mulher (a

fragilidade física, a passividade e a emotividade). É esse o processo de capacidade

para refletir e tomar decisões importantes para o desenvolver da trama que

transforma o personagem feminino em heroína.

A impotência do homem é o que justifica a atuação da mulher. Cabe ressaltar

que a inversão de papéis é momentânea, já que se deve a uma situação de risco de

morte que exige este recurso extremo. Ainda depois da resolução do resgate,

permanece a mensagem do romance: “a mulher tem a capacidade para pensar e

atuar com inteligência, igual ao homem” (MANSO, p.218) Los Misterios del Plata

ultrapassa dessa forma os estereótipos literários difundidos pelos romances do

século XIX.

O projeto de resgate de Valentin por parte de sua esposa adquire uma

dimensão quase mística quando se compara a Joana d’Arc:

Si Juana de Arco se inspiro en la divinidad de su misión y la realizó, Adelaida buscó fuerzas, astucias y medios en el amor a su marido y en el cariño de su hijo a quien no concebía que tuviera que criar huérfano y, como la heroína francesa, ésta heroína esposa salió triunfante.104 (Ibidem, p.203).

104 Se Joana d’Arc se inspirou na divindade de sua missão e a realizou, Adelaida buscou forças, astúcias e meios no amor a seu marido e no carinho de seu filho a quem não concebia que fosse criado órfão e, assim como à heroína francesa, esta heróica esposa se saiu triunfante.

100

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Também é um gesto patriótico, descrito como “campaña libertadora”105

(MANSO, p.207), aludindo à obra de San Martin e Bolívar. Heroína, santa e mártir,

esposa fiel, boa mãe e defensora dos ideais da pátria através dos modestos meios a

seu alcance, Adelaida é a versão corrigida do ideal feminino do século XIX

adequada ao conflito político do período rosista.

Los Misterios del Plata é uma história de amor, mas também, e

fundamentalmente, uma denúncia contra o rosismo. Aponta a seguinte realidade

inadmissível para a época: a mulher argentina tinha inquietudes que transcendiam o

ambiente doméstico. E o que é mais radical ainda, tais inquietudes se canalizavam

para a política, à atividade masculina, posto que consiste em organizar a vida

pública dos cidadãos: a “rainha do lar” está fora do lugar, fora, justamente, do lar.

Manso escreve um romance em pleno rosismo, no qual produz um episódio real,

com personagens contemporâneos a 1846; propõe uma protagonista que burla os

planos de Rosas, com o qual o romance adquire duas dimensões: romance político

entre inimigos do partido no poder e história de amor.

A maior inovação de Manso se cristaliza no fato, extremamente audacioso,

dadas as circunstâncias e o momento histórico em que se passa, de que uma

mulher escreva um romance de tema político. A política partidária sempre foi um

dos três pilares da sociedade argentina, junto à instituição militar e à Igreja católica;

são três âmbitos dos quais a mulher do século XIX está excluída. A principal

contribuição de Manso à narrativa do antirrosismo é a criação de uma história

centrada em uma mulher que participa ativamente do desenvolvimento da trama, ao

compensar a incapacidade de ação de seu companheiro, prisioneiro de Rosas.

105 Campanha libertadora.

101

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Entre os autores canônicos do romantismo, somente Echeverría havia

proposto uma heroína com qualidades semelhantes em La cautiva; não obstante, o

poema não transcorre durante o rosismo. Mas, além disso, a ameaça da loucura da

protagonista é outra contribuição de Manso à narrativa do período. Apenas sugerido

em La cautiva, este tema é recorrente em Los Misterios del Plata. A aparição da

loucura na ficção feminina do antirrosismo ressalta as dificuldades particulares que

enfrenta a mulher em meio a uma sociedade em guerra permanente.

Concluindo, Los Misterios del Plata é uma história de amor: a de um homem

pela sua pátria, e da mulher pela sua pátria também, vivida através do amor pelo

homem. Desde a perspectiva da mulher, esta história de amor se inscreve no

esquema do Romantismo literário em suas duas vertentes: amor, paixão ao

companheiro e ao país; erotismo e sentimentalismo patriótico confundido em um

único afã de protagonismo feminino.

102

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IV – Conclusão

Vimos no decorrer deste trabalho que a mulher que assumiu a escrita como

ofício no século XIX enfrentou numerosas limitações de ordem social e cultural por

sua condição de gênero. Era-lhe vetada qualquer atividade fora do lar. Sua atenção

deveria ser direcionada ao casamento e à maternidade.

A educação representou o primeiro passo para a autonomia feminina, ou seja,

a negação das limitações impostas pela mentalidade da época. Apesar desses

obstáculos, graças a seus esforços contínuos para vencê-los, e ajudadas por seu

talento, um grande número de autoras aparecem na cena literária da Europa, dos

Estados Unidos e da América Latina. Vimos que alguns espaços também

propiciaram o início de sua emancipação: o Salão Literário e a Sociedade de

Beneficência.

Participar do círculo social dos salões, expor uma visão crítica, escrever e se

dedicar a uma atividade intelectual eram meios para começar a pôr fim à

subordinação e autoridade machistas que sofriam todas as mulheres, ajudá-las a

transcender a fronteira do lar e permitir que expusessem suas opiniões inclusive

sobre a política do país.

103

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A partir da década de setenta do século XX, inúmeras áreas passam a se

interessar e a pesquisar o tema da mulher na literatura e na escrita, resgatando,

assim, as vozes silenciadas do passado. Dentre essas vozes, a que resgatamos foi

a obra de Manso, escrita no exílio durante a ditadura de Rosas. O discurso de

Manso em Los Misterios del Plata difere, como vimos, dos outros autores do

antirosismo literário, Sarmiento, Echeverría e Mármol, não pela posição adotada

frente às maldades do regime, e sim, pela participação da mulher no conflito político

entre os unitários e federais; ela (Adelaida) enganará o tirano (Rosas), tomará o

papel do homem (seu marido), será a heroína e promoverá o desenlace da ficção. A

obra também serviu de ferramenta de denúncia “ao mundo civilizado” das

atrocidades de tal ditadura por parte da autora.

Vimos que, na narrativa argentina, o primeiro conto e o primeiro romance

apareceram depois que Echeverria voltou da França em 1830 e começou a difundir

por Buenos Aires sua poesia inspirada na estética romântica. Vale ressaltar que,

além de constituírem o primeiro conto e o primeiro romance, segundo as histórias

literárias, El matadero e Amalia introduziram na narrativa argentina o tema do

rosismo. Los Misterios del Plata nunca teve a popularidade nem a influência

daquelas duas obras mais célebres, apesar de que, ideologicamente, contém uma

denúncia política e social tão violenta quanto elas.

Ao situar a ação desta mulher no mundo dividido em dois lados, bons e maus,

civilizados e bárbaros, unitários e federais, Manso refletiu sobre sua condição de

mulher unitária, que atua no mesmo sentido que o homem, que luta pela mesma

causa, crê nos mesmos ideais que ele, mas mesmo assim, sua luta não é

reconhecida. O romance parece sugerir que as diferenças entre os sexos dependem

104

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em grande parte de fatores externos. No episódio em que Adelaida se disfarça para

atingir seu propósito: o de resgatar seu amor, ainda que a heroína possa vencer as

limitações impostas pela cultura ao seu comportamento, através do disfarce ela

demonstra que a atuação dita feminina não está somente no sexo, e sim em sua

capacidade de enfrentar obstáculos e de superação.

Também vimos que, de acordo com o conteúdo do Álbum de Señoritas,

Manso foi pioneira em âmbitos distintos: defendeu a inteligência da mulher numa

época onde somente se valorizava sua modéstia e sua submissão à autoridade

masculina; expressou com maior convicção que ninguém no século XIX a

necessidade de educar a mulher, preparando o terreno para o êxito das liberdades

civis que lhes seriam outorgadas na década de setenta.

A palavra de Manso não responde a uma estratégia discursiva especialmente

feita para expressar eufemicamente o que sua condição de mulher a proíbe de dizer

e até de pensar. Sua natureza veemente condiciona sua obra no mesmo sentido em

que o nacionalismo militante dos exilados de 1837 condiciona a sua: apontando o

que importa em sua expressão e uma verdadeira autenticidade no seu propósito.

105

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VI – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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111

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VI - ANEXOS

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

1. La Mazorca. Disponível em: www.agendadereflexion.com.ar

2. Juana Manso de Noronha. Disponível em: www.todo-argentina.net/

3. Soldados Federais. Disponível em: www.peronvencealtiempo.com.ar

4. Bandeira do Regimento de Patrícios de Buenos Aires. Disponível em:

www.peronvencealtiempo.com.ar

5. Juan Manuel de Rosas. Disponível em: www.peronvencealtiempo.com.ar

6. O bilhar. In: DUBY, G. & PERROT. História das mulheres na literatura: O

século XIX. Porto: Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1991 p.54

7. Batalla de Caseros 3 de fevereiro de 1852. Disponível em:

www.rincondelvago.com

8. Gravura do século XIX representando uma cena de um exame para

professoras primárias. In: DUBY, G. & PERROT. História das mulheres na

literatura: O século XIX. Porto: Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1991 p.195.

9. Capa de Los Misterios del Plata. Edição disponível em:

www.cervantesvirtual.com

112

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10. Capa de Los Misterios del Plata. Disponível em: www.amazon.com

11. Passeio do Prado (século XIX). In: DUBY, G. & PERROT. História das

mulheres na literatura: O século XIX. Porto: Afrontamento, São Paulo:

EBRADIL, 1991. p. 204

12. Retrato de uma família de Resiutta (século XIX). In: DUBY, G. & PERROT.

História das mulheres na literatura: O século XIX. Porto: Afrontamento, São

Paulo: EBRADIL, 1991. p. 156.

13. Leitora. In: DUBY, G. & PERROT. História das mulheres na literatura: O

século XIX. Porto: Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1991. p. 591.

14. Reclame Publicitário das Penas. In: DUBY, G. & PERROT. História das

mulheres na literatura: O século XIX. Porto: Afrontamento, São Paulo:

EBRADIL, 1991. p.185.

15. Interior do Salão. In: DUBY, G. & PERROT. História das mulheres na

literatura: O século XIX. Porto: Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1991.

p.159.

16. LE COMTE, Baile de sociedade (século XIX). In: DUBY, G. & PERROT.

História das mulheres na literatura: O século XIX. Porto: Afrontamento, São

Paulo: EBRADIL, 1991. p.227.

17. Florence Nightingale. In: DUBY, G. & PERROT. História das mulheres na

literatura: O século XIX. Porto: Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1991.

p.247.

18. A Liberdade guiando o povo. Disponível em: www.historiadomundo.com.br

113

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1 - La MazorcaDisponível em: http://www.agendadereflexion.com.ar

114

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2 - Juana Manso de Noronha Disponível em: www.todo-argentina.net

115

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO · Nosso trabalho aborda a Argentina do ... dove ebbe un grande interesse ... por fim, com relação ao estudo sobre a questão de poder, partimos

3 - Soldados Federais Disponível em: http://www.peronvencealtiempo.com.ar

116

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4 - Bandeira do Regimento de Patrícios de Buenos AiresDisponível em: http://www.peronvencealtiempo.com.ar

117

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5 - Juan Manuel de Rosas Disponível em: http://www.peronvencealtiempo.com.ar

118

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6 - O bilhar

119

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7 - Batalla de Caseros 3 de fevereiro de 1852Disponível em: www.rincondelvago.com

120

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8 - Gravura do século XIX representando uma cena de um exame para professoras primárias

121

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9 - Edição disponível em: http://www.cervantesvirtual.com

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10 - Capa do corpus Disponível em: www.amazon.com

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11 - Passeio do Prado

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12 - Retrato de uma família de Resiutta (século XIX)

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13- Leitora

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14- Reclame Publicitário das Penas

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15- Interior do Salão

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16 - LE COMTE, Baile de sociedade (século XIX)

129

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17 - Florence Nightingale

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Impossível atravessar a vida sem que um trabalho seja

feito até o fim e que nos faça sentir uma imensa

realização por nós mesmos, sem que uma amizade te

faça feliz em momentos de carência e solidão, sem

padecer com alguma doença, sem perder alguém

especial, sem que um amor nos abandone, sem que a

gente se engane com as pessoas.

Esse é o custo de viver. O importante não é o que

acontece, mas como reagimos.

Crescemos...

Quando não perdemos a esperança, nem diminuímos a

vontade, nem a realidade e temos orgulho de vivê-la.

Quando aceitamos nosso destino, mas também temos

garra para mudá-lo.

Quando aceitamos o que deixamos para trás,

construindo o que temos pela frente e planejamos o

que está por vir.

E este é o nosso caminho...

Tatiana

132