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1 Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/IFICS Mestrado História Comparada/PPGHC GONZALO RODRIGUES PEREIRA VELOSO Tropicália pós-moderna: a “geléia geral” fragmentária no contexto dos anos 60 RIO DE JANEIRO 2005

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Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/IFICS

Mestrado História Comparada/PPGHC

GONZALO RODRIGUES PEREIRA VELOSO

Tropicália pós-moderna: a “geléia geral” fragmentária no contexto dos anos 60

RIO DE JANEIRO

2005

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GONZALO RODRIGUES PEREIRA VELOSO

Tropicália pós-moderna: a “geléia geral” fragmentária no contexto dos anos 60

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto

de Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ,como

parte dos requisitos necessários à obtenção do

título de Mestre em História Comparada.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria da Conceição Pinto de Góes

Rio de Janeiro

Agosto de 2005

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Veloso, Gonzalo Rodrigues Pereira Tropicália pós-moderna: a geléia geral fragmentária no contexto dos anos 60/ Gonzalo Rodrigues Pereira Veloso – 2005 129 folhas

Dissertação (Mestrado em História Comparada) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, IFICS, Rio de Janeiro, 2005

Orientador: Prof.ª Dr.ª Maria da Conceição Pinto de Góes

1. Música e cultura popular brasileira 2. Pós-modernismo e modernismo 3. Indústria Cultural 4. Rebeldia jovem – Teses I. Góes, Maria da Conceição Pinto de (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. IFICS/ Programa de Pós-Graduação em História Comparada III. Tropicália pós-moderna: a geléia geral fragmentária no contexto dos anos 60

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Tropicália pós-moderna: a “geléia geral” fragmentária no contexto dos anos 60

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto

de Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ,como

parte dos requisitos necessários à obtenção do

título de Mestre em História Comparada.

Aprovada em: __________________

__________________________________________________________

(Prof.ª Dr.ª Maria da Conceição Pinto de Góes, IFICS/ PPGHC, UFRJ)

__________________________________________________________ (Prof. Dr. Silvio de Almeida Carvalho Filho, IFICS/ PPGHC, UFRJ) ___________________________________________________________

(Prof. Dr. Amândio de Jesus Gomes, Instituto de Psicologia, UFRJ)

5

AGRADECIMENTOS

Agradecemos a todos os que contribuíram formal e informalmente para a realização desta

pesquisa. Inicialmente devo agradecer a meus primeiros orientadores Carlos Addor e Francisco

Carlos Teixeira da Silva que me ajudaram a enveredar no conhecimento da década de 1960; à

minha orientadora Maria da Conceição Pinto de Góes que muito me auxiliou nas questões

metodológicas e com sua vivência e farto conhecimento do período abordado.

A todos os funcionários da secretaria do PPGHC, a amiga e revisora Regina Mesquita, a

Maria Cláudia Tostes, aos funcionários do Colégio Estadual Joaquim Távora e a todos os amigos

que incentivaram a pesquisa. A meus tios Cid Veloso, médico, professor e ex-reitor da UFMG;

Roselis Veloso Castilho, ex-professora da UFMG; Magda Veloso Tolentino, professora da

FUNREI; Margarida Autran e Christina Autran Garcia, jornalistas.

Um agradecimento especial a minha mãe, a produtora cultural e socióloga Betty Autran, a

meu pai, o cineasta Geraldo Veloso e a meus irmãos o produtor editorial Lourenço e a oceanógrafa

Jacyra Veloso por todo o apoio proporcionado durante minha existência, como também a meus

avós Cristina Coutinho e Geraldo Alcântara Veloso e Lygia Portella Passos Autran e Armando

Rodrigues Pereira.

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RESUMO DA DISSERTAÇÂO

VELOSO, Gonzalo Rodrigues Pereira. Tropicália pós-moderna:a “geléia geral” fragmentária

no contexto dos anos 60, Rio de Janeiro; dissertação mestrado PPGHC/UFRJ; 2005

A pesquisa Tropicália pós-moderna: a geléia geral fragmentária terá como tema a interação do Tropicalismo com os movimentos da década de 1960. A rebeldia estudantil, o questionamento da modernidade e seus parâmetros de progresso infinito mudaram a ética e a moral dominantes. O Tropicalismo, junto com a música pop, teve grande parcela de responsabilidade na divulgação de uma nova consciência e na renovação observada junto à música popular brasileira. Deve-se salientar o nascimento de uma nova estética paralelo às transformações globais ocorridas na década de 1960, como a pós-modernidade, tão paradoxal e polêmica.

Esta pesquisa pretende tematizar o Tropicalismo como um movimento ocorrido entre os

festivais da Record de 1967 e o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Porém, deve-se ter em mente que o “som universal” criado pelos tropicalistas não se esgotou no período citado.

A intertextualidade, a paródia e a referência fragmentária da realidade mundial são

características marcantes do Tropicalismo, que julga a necessidade de compreensão desta realidade paradoxal e plural. O movimento artístico pop, por ser uma linguagem global inserida no contexto da rebelião juvenil, teve papel determinante na criação tropicalista. Assim sendo, esta pesquisa busca elementos que possam comprovar a existência de particularidades pós-modernas questionadoras do ciclo modernista na estética tropicalista.

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ABSTRACT VELOSO, Gonzalo Rodrigues Pereira, Tropicália pós-moderna:a “geléia geral” fragmentária

no contexto dos anos 60, Rio de Janeiro; dissertação mestrado PPGHC/UFRJ; 2005

The research “Post-modern Tropicalism: the fragmentary general jelly” has as its subject the musical movement known as Tropicalism and its interaction with other 1960’s manifestations. The student rebellions, the questioning of modernity and of its notion of infinite progress promoted a change on then ruling ethics and morality. Tropicalism and Pop music were greatly responsible for the spread of a new social conscience and the renovation of the Brazilian popular music. The birth of a new aesthetics, such as the paradoxical and polemic post-modernistic movement, parallels the global changes of the 60’s.

This work attempts to define the Tropicalist movement as one occurred between the TV Record Music Festival of 1967 and the exile of Caetano Veloso and Gilberto Gil after the AI-5´s (Institutional Act nº 5) promulgation. But this definition would keep in mind that the “universal sound” created by Tropicalist musicians is still contemporaneous and that the Tropicalist aesthetics and experimentalism rules the artistic creation of their members to this day. The intertextual, fragmented and parodical reference to the global reality is a peculiarity of Tropicalism, which tries to understand its paradoxes and plurality. The Pop movement, being a global artistic language present on student movements and rebellion of that time, had an important role on the Tropicalist creative process. This investigation tries to prove the existence in the Tropicalist aesthetics of post-modernistic elements that question modernity.

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RÉSUMÉ DE LA DISSERTATION

VELOSO, Gonzalo Rodrigues Pereira, Tropicália pós-moderna:a “geléia geral” fragmentária

no contexto dos anos 60, Rio de Janeiro; dissertação mestrado PPGHC/UFRJ; 2005

La recherche “Tropicália postmoderne: la gelée générale fragmentaire” aura comme

thème l’interration du tropicalisme avec les mouvements des anées 1960. La révolte des étudiants, les questions autour de la modernité et ses paramètres de progrès infinis, ont changé l’ethique et la morale dominantes. Le “tropicalisme” et la pop musique ont contribué à la divulgation d’une nouvelle conscience et du renouvellement observé auprès de la musique populaire brésilienne. Il ne faut pas oublier la naissance d’une nouvelle estéetique en paralelle aux transformations globales des années 1960, comme le postmodernisme si paradoxal et polemique.

Cette recherche essaie de thematizer le tropicalisme comme un mouvement qui a eu lieu

entre les festivals de la Record de 1967 et l’exil de Caetano Veloso et Gilberto Gil. Cependant, nous ne pouvons oublier que le “son universel” crée par les tropicalistes ne s’est pas epuisé pendant telle période.

L’intertextualité, la parodie et la référence fragmentaire de la réalité mondiale constituent des

caracteristiques importantes du tropicalisme, qui juge la nécessité de compréhension de cette réalité comme paradoxale et plurielle. Le mouvement artistique pop, étant un langage global inséré dans le contexte de la rebelión juvenile, determina la création tropicaliste. Cela dit, cette recherche poursuit des éléments comprobatoires de l’éxistence de particularités postmodernes qui questionnent le cycle moderniste dans l’esthétique tropicaliste.

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SUMÁRIO Introdução 10 Fontes e metodologia de trabalho 16

Capítulo 1- A experiência musical tropicalista 21

A paródia e o kitsch na estética tropicalista 22

A crise da modernidade 24

A lógica cultural do capitalismo tardio 27

A crise da modernidade e do conceito de superação 35

A dessacralização tropicalista, o niilismo e as vanguardas 40

Prenúncios do pós-moderno na explosão estudantil da década de 1960 44

O termo pós-modernismo e sua história 46

Jean Baudrillard e a economia política do signo 49

Capítulo 2 –A discussão sobre o conceito de progresso no Tropicalismo 53

O questionamento sobre o fim da história e o multiculturalismo 56

Capítulo 3 – Movimento de contestação estudantil e a criação artística 63

A contracultura norte-americana e a revolta estudantil 72

As barricadas estudantis do maio de 1968: elementos para a composição estética

tropicalista 78

O setor cultural no Brasil frente à conjuntura social 82

A ilusão do iminente governo popular 85

As novas estéticas de “subversão” 89

A execução de “É Proibido Proibir” 92

Capítulo 4- O momento da ruptura tropicalista 96

A formação da ideologia jovem 101

“Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades

técnicas” 106

Inserção ou questionamento da indústria cultural 111

Conclusão 117 Bibliografia 124

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INTRODUÇÃO

“A arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o

homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nessa realidade

absurda”

Glauber Rocha o filme, labirinto do Brasil de Sílvio Tendler

O movimento tropicalista será o principal objeto desta pesquisa. Ele será estudado desde o

nascimento do Tropicalismo, tradicionalmente vinculado à exibição das músicas Alegria, Alegria e

Domingo no Parque, em outubro de 1967, ao exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil na Inglaterra

em 1969. Porém, graças ao enfoque contextual que a pesquisa visará obter, deve-se somar à análise

do período da eclosão do Tropicalismo, o exame de canções anteriores e posteriores a este

momento. A fase tropicalista moldará toda a linha de trabalho de seus membros, que continuam

utilizando, até hoje, tal abordagem em suas composições. É importante chamar atenção para o

legado histórico da década de 1960 com seu papel determinante na mentalidade contemporânea e a

interpretação do período efetuada pelos tropicalistas. A citação fragmentária de toda esta realidade é

o cerne da estética tropicalista, incorporando na música popular problemáticas regionais e globais1,

a estética pop, o movimento hippie, o inconformismo e a rebeldia da juventude, o psicodelismo, a

interpretação (livre) da realidade nacional e a linguagem kitsch.

Esta pesquisa buscará observar, de forma imparcial, o momento histórico do fenômeno

conhecido como Tropicalismo concomitante à revolta estudantil e outros eventos que explicitavam

o inconformismo e o experimentalismo de uma geração. Estes acontecimentos foram observados na

segunda metade da década de 1960 em todo planeta. Caracterizada pela explosão da cultura pop,

com latentes reflexos globais, a chamada revolução dos jovens possuía a contestação dos valores

estabelecidos como principal meta. A norma capitalista era questionada em sua medula pela

juventude que passava a conviver na chamada “aldeia global” decorrente da massificação das

transmissões via-satélite e dos bens de consumo. O rápido acesso e afluxo de informação criava

uma juventude intelectualizada, originando uma geração ímpar na história, que possuía um

arcabouço intelectual universal jamais imaginado pelas gerações anteriores.

1 “O cinema sempre se dividiu entre local e global. Pasolini era completamente local, assim como Glauber e Cacá Diegues. É por isso que eles são universais. Quanto mais local um filme é, quanto mais próximo da verdade de sua gente, mais universalizado será o seu poder de comunicação.” Ao analisar o cinema Jean Pierre Gorin traz a clara expressão da realidade artística da década de 1960. Gorin fez parte, junto de Jean Luc Godard, Jean Henri Roger e outros, do Grupo Dziga Vertov, ligado ao cinema político. Dziga Vertov é o codinome de Denis Abramovich Kaufman que propunha o intitulado “cinema-olho”, o retrato cru da realidade nos filmes documentários. Ver “O cinema é política”; O Globo; 23/08/2005 No decorrer da dissertação pode-se observar a inter-relação do cinema com a música e da literatura com as artes plásticas. Na década de 1960 há uma maior permuta entre as diversas manifestações artísticas, sendo que o cinema tem um papel marcante na formação desta geração

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No Brasil, vivia-se o período da ditadura militar ainda em seu início, no que Élio Gaspari

intitula de ditadura envergonhada. A juventude tupiniquim não apresentava as mesmas

características que seus contemporâneos europeus. Aqui havia uma forte vinculação partidária no

movimento estudantil, sendo mais pungente a luta cotidiana contra a repressão da ditadura militar.

Com a preocupação voltada para conjuntura nacional, dava-se pouca importância ao processo de

questionamento do sistema exposto pelos estudantes do Primeiro Mundo. Talvez por viverem

situações onde a vinculação a partidos seria considerada um anacronismo (nos EUA os jovens

selecionados para a guerra do Vietnã queimavam seus certificados de alistamento e entravam na

clandestinidade, fugindo para países vizinhos ou comunidades alternativas), criou-se uma dinâmica

mais utópica e radical junto à juventude do chamado Primeiro Mundo, vinculado a um discurso de

caráter mais libertário. A figura do Partidão (Partido Comunista Brasileiro-PCB) e suas dissidências

tinham grande peso entre os estudantes brasileiros até o período pré-radicalização da luta de

oposição à ditadura, que se dá em fins da década de 1960.2

Parte do mercado consumidor da indústria fonográfica era formado pela platéia jovem,

ligada às discussões quanto ao papel da arte como uma arma política ou obra de caráter estético

apurado. Os festivais de música popular brasileira (MPB) eclodiam como solução para a

precariedade técnica da ainda incipiente televisão nacional, constituindo grandes aglutinadores e

formadores de opinião. Dentro destes festivais surge o movimento tropicalista musical, com

destaque para Gilberto Gil e Caetano Veloso. O Tropicalismo, com uma linguagem fragmentária e

paródica, tentava exprimir as idiossincrasias de um país que buscava a todo custo a modernização

acelerada (“50 anos em 5” como foi apregoado pelo presidente Juscelino Kubitschek) mas, por

outro lado, convivia com o arcaísmo interiorano. Utilizando novas abordagens musicais

(experimentalismo pop, música aleatória e uso de instrumentos eletrônicos), letras sofisticadas de

difícil compreensão e apresentações cercadas pela polêmica, os tropicalistas angariaram

manifestações apaixonadas de repúdio ou aceitação, principalmente junto ao público jovem e

universitário. A tomada de consciência jovem e o protagonismo da juventude nas modificações

éticas e estéticas tiveram papel determinante em todo planeta e Caetano Veloso, influenciado pelos

acontecimentos globais, dizia na época: “Estou me esforçando para respeitar meu público, que é

jovem como eu, e que está também interessado em que sejamos gente do mundo de agora.”3

O Tropicalismo, com enfoque específico no Tropicalismo musical e o experimentalismo do

chamado “grupo baiano”, é o objeto da pesquisa referida. A estética tropicalista, com sua crítica ao

2 Não pode-se esquecer que havia uma grave oposição à política imperialista norte-americana e, obviamente, à Guerra do Vietnã, sendo recorrentes as manifestações anti-Vietnã entre os estudantes brasileiros. Porém, tais manifestações nunca tinham um conteúdo existencialista e questionador da ordem política conservadora 3 “Bat-poética”; Folha de São Paulo; suplemnnto Mais; 23/02/2005, pg. 8

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modernismo e à “sociedade unidimensional”4, tinha um claro caráter contestatório, semelhante à

juventude questionadora organizadora de manifestações anti-establishment em todo o mundo. É

interessante perceber que a mudança ocorrida em diversas esferas da vida contemporânea ajudou a

redefinir o papel da cultura e, mais especificamente, da música.

O grande mote para a criação tropicalista se referia à renovação musical gerada por seus

elementos, o questionamento das bases da música nacional e da arte visceralmente engajada.

Durante suas apresentações, os tropicalistas refutavam a crítica tradicional, os canais de

comunicação, o grupo engajado da arte popular e o regime militar. O fato de não se inserirem em

uma linha estética bem definida os distanciava dos grupos engajados, sem que isso representasse

uma fácil aceitação pelo mercado consumidor. O Tropicalismo contestava a arte feita apenas em

prol da conscientização política, possuidora de propostas únicas e bem sedimentadas. Os

tropicalistas desejavam criar uma imagem do mundo sem parâmetros, uma imagem baseada em

vários estímulos e reminiscências do Brasil. A base da criação tropicalista consistia na reunião de

diversos elementos da modernidade tecnológica-industrial acrescida do tosco primitivismo nacional.

Obviamente esta pesquisa não deverá buscar respostas simplistas junto aos fatos e

acontecimentos do período para compreender o fenômeno tropicalista, nem mesmo julgar as

canções como respostas a momentos específicos e pontuais. Ao investigar tal tema, é importante ter

em mente a peculiaridade do momento histórico da década de 1960 em todo o mundo e as

reverberações de diversos movimentos filosóficos, morais, civis, éticos e reivindicações propostas

pela sociedade, principalmente por sua parcela mais jovem. O Tropicalismo, como a música pop, o

cinema “udigrudi” nacional, as artes plásticas e outras manifestações artísticas, apresentou uma

modificação radical na elaboração da obra de arte. Exibindo de forma caleidoscópica a cultura

brasileira e mundial (Geléia Geral aparece como um ótimo exemplo do amálgama entre tradição

folclórica nacional e a música estrangeira), os músicos pretendiam vicejar uma crítica requintada e

bem informada, construída num país que possuía ilhas de grande desenvolvimento tecnológico em

contraponto ao atraso da periferia e das regiões rurais. Para compreender esta crítica é necessário

observar todo o quadro cultural e político vivenciado por aquela geração. Questões políticas, que

vinham sendo produzidas com grande repercussão desde a organização dos primeiros sindicatos

proletários com a reunião da 1ª Internacional Comunista na década de 1860, viveram um momento

de aquecimento com a Guerra Civil espanhola em 1930 e explodiram após a década de 1960 com as

jornadas estudantis mundiais. Em um momento que o marxismo-leninismo era combatido pelos

estudantes anarquistas, trotskystas, maoístas e esquerdistas em geral, havia um farto arsenal para a

4 Termo cunhado por Hebert Marcuse ao se referir à sociedade contemporânea e sua racionalidade pasteurizada

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juventude que propunha que: “A humanidade não será feliz enquanto o último burocrata (burocrata

podendo simbolizar os líderes comunistas5) não for enforcado nas tripas do último capitalista.”6

Na Europa e nos EUA, a filosofia anarquista, auto-gestionária e pacifista, angariou

personalidades que propunham nova percepção crítica da revolução tecnológica. No Brasil, este

pensamento alternativo foi taxado por elementos ligados ao movimento estudantil e aos setores

mais politizados como uma atitude hippie e desbundada7. O Tropicalismo, por diversas vezes, se

aproximava da linguagem anarquista e sua percepção iconoclasta, dessacralizadora da realidade. O

que Gilberto Vasconcellos chama de linguagem da “fresta”: a procura por amalgamar diversas

tendências de forma criativa fazendo uma crítica velada à realidade, tangível através da sutileza da

língua, da alegoria e da paródia.

Devido à adaptação do discurso ao contexto, o Tropicalismo adquire um papel crucial na

produção musical atual sendo fonte inspiradora para diversos artistas posteriores à eclosão do

Tropicalismo. O crescimento da indústria fonográfica tem grande importância no processo de

adequação dos artistas ao mercado musical e a um novo modo de audição e percepção: a

reprodução em pequenos ambientes muitas vezes solitária e a utilização de aparelhos com grande

qualidade sonora que simulam verdadeiras apresentações.8 Estas transformações junto ao mercado

da cultura e à política mundial são de grande importância nesta análise, sendo um dos pilares para a

comprovação da hipótese do Tropicalismo situar-se próximo à estética pós-moderna, questionadora

da modernidade e imbuída de uma construção estética fragmentária e intertextual com

características contraditórias e enigmáticas, sempre aberta ao questionamento.

Alguns pontos serão mais aprofundados no corpo do texto como: o conceito de pós-

modernidade, o niilismo e a questão do fim das utopias. Seguindo a proposição da pós-modernidade

como um meio termo entre a exacerbação das propostas modernistas (a originalidade do autor, a

individualidade, o papel exemplar e universal de sua filosofia e o vanguardismo artístico) e a

preponderância de um mundo voltado para a interculturalidade, o fim das meta-narrativas, o

questionamento da universalidade e da padronização, esta pesquisa buscará observar o

Tropicalismo dentro da antítese entre representar uma obra de arte única e original, ser o retrato fiel

5 Nota do autor 6 Grafite dos muros parisienses durante maio de 1968

7 Desbunde: nas décadas de 1960-70 simbolizava o indivíduo que não participava politicamente, voltava-se para o auto-conhecimento, ligava-se à formação de comunidades alternativas, ou negava a luta armada e muitas vezes envolvia-se com o uso de drogas. Obviamente, não podemos imputar todas estas qualidades ao “desbundado”. Para Aurélio Buarque de Holanda significava: desvario, loucura, perder o autodomínio, por efeito de drogas. Enfim um indivíduo despolitizado e alienado da realidade que o cerca

8 A popularização da vitrola ocorre na década de 1960, num momento que cresce abruptamente a venda de LP’s e a popularidade de músicos e cantores

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de uma realidade ou criar música para recreação descompromissada. Dentro destas alternativas, os

tropicalistas irrompiam com um “som universal”9 tecido com toques de Vicente Celestino e

Monsueto, combinados com Frank Sinatra, Beatles e Jimi Hendrix. Uniam assim a música mais

avançada a reminiscências do Brasil folclórico, fazendo referências a vivências pessoais e

universais, utilizando sua percepção da contemporaneidade de forma clara e coerente com a visão

de sua geração. Os tropicalistas abalaram os conceitos musicais em seus alicerces, como nem

mesmo a Bossa-Nova havia feito, e buscavam desconstruir os rótulos e abordagens artísticas no

intuito de fazer uma estética original e contemporânea. Linda Hutcheon frisa a tendência à anti-

totalização e contradição do fenômeno pós-moderno, questionando todos os conceitos estabelecidos

ao implantar um mundo de incertezas e relativismo.

A paradoxalidade da teoria pós-moderna está vinculada à sua própria formação em meio à

oposição explícita ao modernismo e a continuidade de um pensamento vanguardista tipicamente

moderno. O anti-academicismo, a intertextualidade e a paródia são atitudes voltadas ao

questionamento das instituições e à ideologia dominante. O pós-modernismo nasce, na década de

1960, como um movimento ideológico mais ou menos consciente, conforme muitos teóricos gostam

de frisar. As modificações e manifestações que marcaram a década tiveram papel determinante na

criação da nova percepção de mundo. Os principais acontecimentos que marcaram a criação

tropicalista foram: a chegada à Lua, as transmissões via-satélite, a emancipação feminina, o

desenvolvimento científico-tecnológico, a massificação da Indústria Cultural com o advento da TV

e da vitrola10, os movimentos culturais, as manifestações estudantis e a formação de uma ideologia

jovem global. Estes acontecimentos são de enorme importância para esta análise pois, através deles,

antevê-se o instante gerador de uma nova estética (Tropicalismo) correspondente à formação de

uma teoria esclarecedora quanto ao mundo contemporâneo (pós-modernismo). Esta nova teoria,

chamada por alguns de terceiro estágio do capitalismo ou pós-modernidade, será compreendida

como um período da história contemporânea onde a cultura alcança um papel preponderante na

mentalidade coletiva, moldando a ética e o gosto através de suas mensagens e narrativas. Deve-se

frisar que dentro da pós-modernidade há espaço para o questionamento do etnocentrismo com uma

relativização cultural e pluriculturalidade impensáveis anteriormente.

O reconhecimento das minorias e a constituição de novos mercados consumidores são

conseqüências da transformação no nível das mentalidades, observada após as manifestações

estudantis e de minorias ocorridas na década de 1960. Com este reconhecimento, há uma virtual

9 Como a música Tropicalista deveria ser conhecida, segundo seu empresário Guilherme Araújo 10 A vitrola estereofônica que é popularizada em 1968, com o lançamento dos primeiros toca-discos automáticos datando de 1970. Revista Veja 30 Anos, setembro de 1998, pg. 122

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democratização do capital cultural e uma rapidez, gerada pela inovação tecnológica, da transmissão

de informação pelo mundo. Criou-se uma demanda por bens culturais particulares e assim surgiram

várias manifestações culturais que tentavam compreender e traduzir a realidade contemporânea. A

pós-modernidade, com suas manifestações anti-globalização e movimentos utópicos (hippies,

movimento-sem-terra, comunidades alternativas e movimentos anti-globalização) pode traçar um

painel positivo da relativização política e cultural. Apesar de obliterarem o lado cruel da

contemporaneidade, com a existência da mercantilização exacerbada, o crescimento do poder das

corporações transnacionais capitalistas e do capital flutuante com suas bolhas de desenvolvimento

artificial, a padronização dos gostos gerada pela massificação da indústria cultural e seus produtos

middle-brow, há na crítica e pluriculturalidade pós-modernas, uma riqueza que traz o fim dos

universalismos. Enfim, uma realidade singular, com novas tendências e enfoques, onde se faz

necessária criação de novos conceitos e abordagens.

O que se pode reconhecer na contemporaneidade é a paradoxalidade, a incerteza e a

dificuldade de construção de meta-narrativas que possam criar um conceito universal de civilização.

Em meio ao terrorismo e ao fundamentalismo religioso e ideológico atualmente observa-se a

segmentação dos grupos sociais em facções que defendem sectariamente seu ideário, ao lado de

uma crítica riquíssima, que troca informações em tempo real e discute estarrecida como podemos

dar luz a uma realidade tão contraditória. Nesta pesquisa compreende-se o pós-moderno junto a

estas idiossincrasias, mas com uma bagagem modernista e iluminista ainda marcante, criada com o

questionamento dos conceitos mais caros ao modernismo (universalidade, formação de vanguardas

originais e o individualismo burguês).

A paródia constitui a principal característica modernista herdada pelo pós-moderno. A

paródia, citação irônica ou crítica da realidade, representava o foco da estética tropicalista que

almejava cruzar a história passada com o momento presente, construindo, de forma intertextual,

uma rede complexa de citações. A pós-modernidade representaria a realidade contemporânea rica

em eventos e manifestações culturais, voltadas para um público consolidado, de valores e

comportamento semelhantes. Seguindo uma lógica onde o capital concreto possui mesmo peso que

o capital simbólico, a cultura constrói ícones e desejos com a mesma rapidez que os aniquila.

Viveríamos numa realidade ligada atavicamente a expressões áudio-visuais, onde a simulação é a

norma nas relações cognitivo-sensoriais do indivíduo moderno. A construção de um capital

simulacional, o papel dos construtores de signos e significados (os publicitários e a mídia) adquire

preponderância na venda de sonhos propalada pelo neo-liberalismo.

A estética pós-moderna teve na década de 1960 com o pop, as manifestações jovens e o

Tropicalismo o seu gérmen. Momento onde os cânones modernistas foram questionados e pôde

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surgir uma nova estética ou teoria da realidade, onde a pluralidade era apresentada em variadas

esferas, sendo latente no campo cultural e político. As manifestações estudantis compunham um

bom exemplo, pois reuniam variadas classes sociais, faixas etárias e ideologias políticas,

consistindo num local onde a variedade cultural se fazia patente.

Fontes e metodologia de trabalho

As principais fontes usadas na pesquisa foram: as canções tropicalistas, havendo também

análise de outras manifestações artísticas coetâneas, anteriores ou posteriores ao movimento;

entrevistas concedidas por seus principais expoentes e reportagens publicadas na imprensa escrita e

trabalhos sobre a MPB. Obviamente, as fontes primárias consistem nas canções tropicalistas, sendo

também de grande importância para o desenvolvimento da pesquisa o acompanhamento de outras

documentações que, muitas vezes, não dizem respeito diretamente ao objeto de pesquisa

(Tropicalismo musical) mas que introduzem informações relevantes para a contextualização do

período. Estas fontes devem ser compreendidas como inseridas dentro de seus contextos, sendo

abordadas de forma crítica e explicativa do fenômeno, relacionando as forças psico-sociais que as

moldaram.

As fontes serão abordadas de acordo com o método da análise de discurso que trata do

trinômio: produção-circulação-recepção de discursos e da importância da contextualização histórica

e social da produção cultural. Através desta metodologia poderá ser revelada a interação existente

entre os diversos eventos ocorridos no período analisado e a gênese do Tropicalismo, missão que é

de vital importância para a comprovação da hipótese deste projeto: o Tropicalismo consistir em

uma estética pós-moderna, como o pop e as agitações populares reivindicatórias (muitas vezes

claramente revolucionárias). Os códigos e práticas discursivas devem ser compreendidos como

determinados pelo contexto, compreendendo que uma mesma obra, inserida em contextos diversos,

tem apreciações divergentes.

A principal problemática ao trabalhar com o tema diz respeito à polêmica em torno da teoria

pós-moderna e o movimento tropicalista. O pós-modernismo é ainda fruto de acaloradas discussões

entre seus detratores (Fredric Jameson e Jürgen Habermas) e os que defendem uma posição crítica

em relação à padronização comportamental e as corporações multinacionais (transnacionais), mas

que vêem de bom grado a interculturalidade pós-moderna (como Hayden White e Linda Hutcheon).

No hiato das duas tendências estão os que não reconhecem a teoria pós-moderna, entendendo o

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momento atual como uma radicalização dos pressupostos modernistas, sem haver uma ruptura com

sua teoria.

No tocante à tradição dos trabalhos e estudos sobre o Tropicalismo, há a tendência em

classificá-lo como diluidor da modernização nacional e mantenedor dos traços antropofágico-

modernistas de Oswald de Andrade. O antropofagismo, inegavelmente, teve grande crédito na

formação da linguagem tropicalista, mas não alcançou o papel de norteador do movimento. Dentro

da grande teia de influências erigida pelos tropicalistas o modernismo era um dos principais temas,

por sua posição de preponderância cultural e pela crítica tropicalista ao próprio modernismo.Várias

manifestações - como a música folclórica nacional, música experimental (música serial e música

eletrônica), a poesia concreta, o cinema novo e o movimento beatnik - tiveram papel determinante

no Tropicalismo, rendendo uma arte intertextual, que reunia fragmentos da realidade planetária na

tessitura de um quadro de inventividade única.

Dentre os trabalhos mais recentes e interessantes sobre a MPB (Música Popular Brasileira)

que vicejaram na década de 1990 sublinhamos os realizados por Marcos Napolitano11 e Liv Sovik12,

ambos apresentados como tese de doutorado na USP, em história e comunicação social

respectivamente. Napolitano trata da criação da estética nacional-popular dentro da música

brasileira, enquanto Sovik defende a hipótese do Tropicalismo compor uma estética pós-moderna.

Outros estudos que podem ser considerados clássicos junto à pesquisa da MPB são: a tese de

Heloísa Buarque de Hollanda13 que trata a cultura brasileira dos anos 60 e 70, abordando desde os

CPCs (Centro Popular de Cultura da UNE) e as polêmicas dos festivais de música até a chamada

geração do desbunde de inícios dos anos 70; a tese de mestrado de Celso Favaretto14 que fala em

uma “mistura Tropicalista”, uma revisão cultural na busca de um movimento de “redescoberta” do

Brasil junto à conjuntura de dependência econômica, à concretização de uma sólida indústria

cultural e de uma política de conscientização popular empreendida por setores engajados de nossa

cultura; Gilberto Vasconcellos15 que vê o Tropicalismo como responsável por uma atitude voltada a

combater a mesmice cultural pós-64, partindo para uma ação de consciência renovada; Walnice

Galvão16 que analisa a música de protesto como reflexo de um momento onde o conformismo

estaria travestido por letras engajadas que propunham a interferência na realidade e conscientização

11 Napolitano, Marcos F.; Seguindo a canção: Engajamento Político e Indústria Cultural na Trajetória da Música Popular Brasileira (1959-1969), tese de doutorado apresentada em novembro de 1998, junto ao Programa de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo 12 Sovik, Liv; Vaca Profana: teoria pós-moderna e música popular brasileira, tese de doutorado defendida junto à ECA/USP, 1994 13 Hollanda, Heloísa Buarque de; Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70, Rio de Janeiro, Rocco, 1992 14 Favaretto, Celso; Tropicália: Alegoria, Alegria, São Paulo, Ateliê Editorial, 1996

15 Vasconcellos, Gilberto; Música Popular: de olho na fresta, Rio de Janeiro, 1977 16 Galvão, Walnice; “MMPB: uma análise ideológica”; In. Sacos de gatos: ensaios críticos, São Paulo, Duas Cidades, 1976, pg.94

18

do público enquanto tolhe a ação do espectador ao exibir dois “seres imaginários” presentes nas

canções: o “dia que virá” e o culto à canção como objeto fetiche.

Nesta pesquisa deve-se ter em mente a adequação do Tropicalismo à realidade circundante,

a problematização da noção de representação na arte. Questões como a representação, a apropriação

e o uso de uma linguagem multifacetada fazem com que haja tendência em abordar o movimento

dentro da ótica pós-moderna. A influência burlesca na literatura, o experimentalismo da arte pop, o

crescimento de uma nova sensibilidade jovem, a liberação da instintividade e a chamada “revolução

dos costumes” tiveram forte apelo na construção das músicas tropicalistas: “ela pensa em

casamento/ e eu nunca mais fui à escola/ sem lenço sem documento/ eu vou”.17

Dentro de uma sociedade abalada pela ditadura militar a música era representante dos

canais de resistência ao regime militar constituindo, junto a outras manifestações artísticas, um dos

últimos bastiões do pensamento livre no Brasil. Porém, os tropicalistas não enveredavam pelos

caminhos da “música de protesto” engajada, surgindo, assim, uma oposição ao seu

experimentalismo. Esta divisão entre partidários de uma arte voltada para a realidade do povo mais

humilde e os que valorizavam a busca de novas tendências e sonoridades permanece enraizada em

nossa cultura até os dias de hoje. Alguns pesquisadores ainda tratam o Tropicalismo como uma

“macaquice” de país subdesenvolvido não aludindo à importância desta manifestação para a

“retomada da linha evolutiva da música popular brasileira”, como afirmava Caetano Veloso. ”Linha

evolutiva” que pode ser problematizada através do questionamento do conceito de progresso e

evolução inserido no capítulo que versa sobre o mencionado conceito. Idéia de evolução diferente

da concebida pelos integrantes do grupo engajado que pretendiam criar uma arte ligada ao povo, a

temas e sonoridades rurais, pouco valorizadas pelo mercado.

Caetano propunha a fusão da arte popular com o a arte erudita, num processo de acesso

massificado às grandes obras primas da cultura universal. A atitude de reunir o burlesco e o culto, o

lowbrow ao highbrow, gera uma cultura de massas também conhecida como midbrow que procura

uma configuração intelectualizada a obras que devem ter compreensão universal, obras que buscam

a popularização do “bom-gosto cultural”.18 O que os tropicalistas buscavam criar se assemelhava a

esta cultura midbrow, tentando transformar o artista em algo similar à apresentação de José

Agrippino de Paula feita por Carlos Heitor Cony: “um artista que, através do moderno e bem

informado artesanato literário, consegue construir o seu universo peculiar e universal; para ser mais

17 Alegria, Alegria de Caetano Veloso, 1967 18 Questões discutidas por Umberto Eco Apocalípticos e Integrados, São Paulo, Perspectiva, 1976 Onde trabalha com o conceito de Dwight MacDonald exibido em Against the American Grain, Random House, New York, 1962

19

exato, seu universo particularmente universal.” 19 Exatamente como se pode definir a estética pós-

moderna e o Tropicalismo (os dois não são similares, fique bem entendido): manifestações que

buscavam traduzir as ansiedades, sonhos e percepções de seus autores, erigidas de forma

fragmentária e referencial. Alguns analistas como Gilberto Vasconcellos faziam questão de

enfatizar a sagacidade da crítica política tropicalista afirmando que era a forma mais inteligente de

“incorporação da matéria política” da MPB. Na fresta, na fronteira entre o sofisticado e o brega, o

Tropicalismo realizava sua crítica à massificação e padronização comportamental e ideológica

propagandeada pelo mass media, invertendo e subvertendo o significado dos símbolos da indústria

cultural.

Deve-se ter em mente o estudo das características da obra tropicalista como antecessora de

uma série de revisões da música popular e inclusão de elementos internacionais na música brasileira

que, como já foi observado, nem a Jovem Guarda ou a Bossa-Nova reuniram tão bem. Com a

introdução de instrumentos elétricos, a maior atenção para a música internacional e a nova

mentalidade jovem global, os tropicalistas pavimentaram o caminho para o aparecimento de

manifestações inusitadas como o “forrócore” dos Raimundos, o “maracatu dub” de Chico Science e

Nação Zumbi, o rock de Rita Lee, o soul de Tim Maia, o rock brega de Raul Seixas

(contemporâneo de Caetano Veloso e Gilberto Gil em Salvador) enfim, variados grupos e

movimentos musicais que propõem a utilização do tempero nacional junto à base cosmopolita.

Um dos principais motivos para a introdução de elementos estrangeiros na MPB estaria

ligado ao crescimento da indústria fonográfica e ao processo de modernização nacional. Estes

elementos provocaram um fluxo de informações jamais visto anteriormente, sendo um ótimo meio

para a exposição de uma crítica à realidade nacional e para a apropriação de novos elementos

estilísticos. Aproveitando este rescaldo cultural, os tropicalistas criaram meios de difundir sua

estética através de práticas impactantes e cercadas de polêmica, servindo-se da indústria cultural

para exibir suas obras. As principais questões a serem trabalhadas vertem exatamente desta

construção crítica tropicalista, da identificação com os anseios da juventude mundial e da idéia do

Tropicalismo estar ligado atavicamente à indústria cultural, questão esta que será criticada nesta

dissertação. A indústria cultural foi o principal tema e referência para a crítica à realidade

contemporânea realizada pelos músicos tropicalistas e pelo movimento pop artístico mundial.

A relevância desta pesquisa reside no fato dela ter como temática as transformações vividas

pela sociedade contemporânea e seus reflexos na cultura brasileira e mundial. Ao fazer uma

19 Revista Civilização Brasileira; “Inquérito: o Romance urbano”, Rio de Janeiro, Ano, número 7, maio de 1966, pg. 220

20

abordagem baseada na análise da música brasileira num período pontual, busca-se tratar a cultura

como determinante na formação de uma nova realidade. Uma realidade onde a cultura adquire

função mediadora entre a infraestrutura e a superestrutura, onde a cultura modifica os padrões

materiais e simbólicos e se sobrepõe a outras esferas, eclodindo como a principal influência junto à

sociedade voltada para a criação de novos anseios e desejos, muitas vezes baseados no simulacro e

na ilusão, bases da cultura áudio-visual contemporânea.

Por ter um enfoque voltado para a compreensão de uma nova realidade, não se limitando ao

estudo da música tropicalista com suas características e problemáticas, esta pesquisa busca

contribuir de forma decisiva para que se retenha um período da história mundial caracterizado pela

rebeldia e inventividade. Um período que alguns colocam como o ocaso das utopias, o último

suspiro das ideologias revolucionárias e que será visto nesta pesquisa como um momento de

conflito ideológico e de grande criatividade artística. Um período onde o mundo viveu

acontecimentos que iriam modificar para sempre a sua história e que o Tropicalismo buscou

abranger em suas mudanças, conflitos e permanências.

21

CAPÍTULO 1

“Weder dem Vergangenen anheimfallen noch dem Zukünftigen. Es

Kommt darauf ein ganz gegenwärtig zu sein.”

“Não almejar nem os que passaram nem os que virão. Importa ser

de seu próprio tempo.”

Karl Jaspers, epígrafe de Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt

A experiência musical tropicalista

A presente pesquisa visa buscar elementos que aproximem a estética tropicalista do

denominado “terceiro estágio do capitalismo”, descrito por Ernest Mandel em seu O capitalismo

tardio. Para correlacionar o Tropicalismo e o pós-moderno é primordial focalizar o objeto de nossa

pesquisa sob uma ótica diferenciada dos trabalhos anteriores sobre o tema. Faz-se mister realizar

uma abordagem não só interdisciplinar como também dar primazia a uma fundamentação teórica

baseada na contextualização do momento gerador do movimento tropicalista, buscando auxílio

junto aos enunciados desta estética, de modo a compreendê-los como condicionados e adequados à

sua realidade circundante. Por buscar relacionar a estética tropicalista à perspectiva pós-moderna, é

necessária uma breve explanação sobre o nascimento do termo “pós-modernismo” e a compreensão

deste polêmico conceito.

Quanto ao movimento tropicalista, será abordado o período 1967-1969, tendo como marco

principal: o III Festival da Música Popular Brasileira (MPB) organizado pela TV Record (outubro

de 1967), palco do lançamento do “som universal” tropicalista, representado pelas músicas Alegria,

Alegria e Domingo no Parque; finalizando com a instituição do AI-5, o aprisionamento e

conseqüente exílio de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Não esquecendo a importância de sua

produção posterior, útil para o diálogo com o Tropicalismo e os ideais estéticos contemporâneos. O

papel do Tropicalismo será discutido junto às transfigurações da MPB na década de 60, sua relação

com a indústria cultural e as transformações conjunturais suscitadas pelo advento da cultura de

massas (mass media) coadunadas com a solidificação de um mercado jovem, de caráter

contestatório e inovador.

Haverá a tentativa de compreender a magnitude do fenômeno cultural na década de 1960,

com enfoque na música e estética tropicalistas. Ao tratar de um tema sempre suscetível a

influências hodiernas, a cultura da época deve ser analisada sob a perspectiva de um conjunto

heterogêneo e plural, nunca compreendida como um bloco uniforme. A música, principal enfoque

22

desta pesquisa, por sua propensão em utilizar a linguagem coloquial e estar mais aberta a várias

influências, terá que ser analisada de maneira peculiar.

Deve-se compreender o fenômeno musical como uma manifestação espontânea e bissexta,

com grande capacidade de retratar o ambiente e a mentalidade de uma época, uma espécie de

laboratório sonoro para a pesquisa histórica. Um laboratório com uma inesgotável capacidade de

suprir os pesquisadores de detalhes e informações sobre a sociedade e a conjuntura contemporânea

à criação artística. Porém, todas estas formas de examinar a música devem, indiscriminadamente,

tomar como parâmetro o contexto mental, social e político contemporâneo à criação, principalmente

quanto ao papel da música como mediadora entre diversas áreas culturais. Esta pesquisa se

aproxima das abordagens contemporâneas da música que levam em conta o contexto, como é

colocado no Dicionário do pensamento social do século XX: “A história social da música é

encarada cada vez mais em termos do objetivo de recuperar o significado de uma dada peça musical

por meio de consideração dos valores culturalmente específicos que lhe informam a produção, o

consumo e disseminação.“20 É de suma importância o instante que a produção cultural se insere e as

conseqüências do contexto nesta produção para poder entender as motivações e influências de seus

produtores. Especificamente falando, a urbanização e a massificação da indústria cultural, correlato

às mudanças ocorridas no mundo serão os principais temas desta pesquisa sobre a música

tropicalista e sua inserção nos movimentos de questionamento da realidade contemporânea. A

compreensão do Tropicalismo como imbuído de uma forte crítica e necessidade de se adaptar à

urbanização, às premissas mais caras ao alto modernismo e à ditadura servirá como o ponto de

partida. A análise das letras musicais e os meios de comunicação são as principais fontes para a

comprovação da hipótese do Tropicalismo consistir num movimento contemporâneo, com

características semelhantes à estética pós-moderna.

A paródia e o kitsch na estética tropicalista

Diante de novas atitudes e visões de mundo, o Brasil, pela sua riqueza e pluralidade cultural,

deveria representar o novo paradigma para as transformações contemporâneas e o Tropicalismo

assumiria o papel de agente transformador e crítico dessa nova ordem. Essa transformação passava

inexoravelmente pelo reconhecimento do descentramento parodístico e do kitsch praticados pela

estética tropicalista. Quando se coloca um trabalho como uma obra centrada significa que esta obra

segue normas bem definidas quanto a seu conteúdo e formato. Já a obra descentrada representaria a

20 Outhwaite, William e Bottomore, Tom; Dicionário do pensamento social do século XX, versão brasileira; Renato Lessa e Wanderley Guilherme dos Santos; Rio de Janeiro, Zahar, 1996

23

obra que não seguiria conduta pré-estabelecida, que faria uso da paródia21 e da fragmentação,

questionando a tradição musical nacional. Affonso Romano coloca a questão do descentramento

muito bem:

“E a paródia de Caetano se dá sempre em dois níveis. Primeiro, numa relação intertextual referindo-se a textos

de outros autores, citando-os e deles se apropriando. Em segundo lugar, de uma maneira sonora, usando a linguagem musical que outros usam, mas justamente para lhes dar uma nova usança.” 22

A intertextualidade pode ser denominada também de apropriação ou bricolagem, sendo suas

características básicas o sincretismo e o uso de um leque variado de influências e adaptações tanto

musicais como relacionados à produção de narrativas ou obras artísticas. O sincretismo designaria a

prática de amalgamar elementos díspares e até mesmo antagônicos, na construção de um elemento

novo que ainda preservaria sinais de sua origem plural. É interessante notar que o pós-modernismo

tem como característica a profusão de signos e a preocupação com o texto, com a preponderância

de uma linguagem comercial ou populista, que mascara qualquer diferença entre a cultura erudita e

a cultura popular, o que alguns acusariam de consistir na mercantilização da obra de arte. A música

pop da década de 1960 tem um papel importante dentro da estética pós-moderna e sua total inserção

na chamada indústria cultural. O rock inglês e norte-americano dos anos 1960, que muito teria

influenciado o Tropicalismo, tinha uma atitude agressiva e questionadora, agindo contra o chamado

sistema comercial da arte e da indústria cultural. Porém, desde a década de 1980, com a supremacia

de determinados canais de veiculação da música (principalmente com a solidificação da MTV

norte-americana), criou-se um mercado da música balizado pelas aparições dos artistas em revistas

específicas do público de rock e nos vídeo-clipes televisivos. Assim, houve a pavimentação de um

canal singular de veiculação musical, os vídeo-clipes, que passam a moldar letras, cenografia e

noção temporal da música contemporânea, servindo de parâmetro para os processo criativos atuais.

A hipervisualização, típica da pós-modernidade e de canções tropicalistas (Alegria, Alegria e

Domingo no Parque), é utilizada maciçamente pelos músicos atuais em seus vídeos, realizados

com a preocupação que a música deva ser elaborada como o videomaker elabora um vídeo, de

forma fragmentária e multifacetada..

Na década de 1960 a imagem adquire um peso cada vez maior na formação do mercado

consumidor, havendo uma intervenção na estética visual das mercadorias e das manifestações

culturais dentro da indústria cultural. Cientes de tais acontecimentos, os tropicalistas utilizavam

cenografias e figurinos de forte apelo visual, certos que tais procedimentos lhes renderiam maior

21 “A paródia é uma linguagem que corta a linguagem convencional, invertendo o significado de seus elementos. Ela denuncia e faz falar aquilo que a linguagem normal oculta. Tirando um texto de seu uso habitual e colocando-o em outro contexto faz-lhe ressaltar o ridículo.” Sant’anna; Affonso Romano de; Música popular e moderna poesia brasileira; Petrópolis, Vozes, 1977, pg. 109 22 Sant’anna; Affonso Romano de; Música popular e moderna poesia brasileira; Petrópolis, Vozes, 1977, pg. 109

24

repercussão junto à indústria cultural. Episódios como a campanha da indústria têxtil (Rhodia) e a

adoção de uma linguagem jovem mostram a atração exercida pela indústria cultural junto aos

tropicalistas. Porém, a veiculação de sua estética junto à mídia não esvaziava o caráter crítico e

desmistificador das obras tropicalistas. A sua exposição tinha um cunho polêmico e dessacralizador,

com várias críticas à sua “frescura”23 ou apropriação de estrangeirismos. Em conformidade com seu

tempo, o Tropicalismo inseria elementos de uma realidade inapresentável e absurda na simulação

do real. Exibia trabalhos voltados não apenas para o seu ramo de atuação (a música tropicalista),

mas para estímulos visuais e sonoros que pudessem estar de acordo com os novos meios de

comunicação e percepção.

A crise da modernidade

Por convenção, deve-se usar determinados termos correntes ao vocabulário cotidiano como

modernismo, modernidade, pós-modernismo e pós-modernidade. Para fazer uso de tais conceitos é

imprescindível delimitá-los e compreendê-los. Nos dias de hoje, há uma grande discussão no

sentido de encontrar uma denominação apropriada para a realidade contemporânea. É fluente o uso

do termo “crise da modernidade” ou “fim da modernidade” para se referir ao mundo

contemporâneo, no momento que se inicia o questionamento maciço dos valores e do processo

modernizador infindável.

Muitos colocam essa crise como o colapso da estrutura capitalista extrativista e predadora,

que tende a esgotar os bens minerais e acarreta graves conseqüências para o modelo econômico

neo-liberal. Com a tendência ao esgotamento dos bens naturais e a virtual impossibilidade de dar a

toda população acesso aos avanços da modernidade, despontam movimentos preservacionistas ou

ligados ao fomento de materiais e combustíveis alternativos. Desta virtual dificuldade em

harmonizar o uso dos bens naturais, surge uma questão colocada por vários autores: a definição de

novos parâmetros de desenvolvimento e o questionamento desta idéia de eterno desenvolvimento e

modernização.

Fredric Jameson e Jean Baudrillard, de forma diversa, vêem a crise da modernidade como o

avanço de um novo período do capitalismo, o que alguns chamam do “terceiro estágio do

capitalismo”, “sociedade pós-industrial”, “capitalismo multinacional”, “sociedade do espetáculo e

da imagem”, “sociedade do simulacro”, enfim, denominações que remetem a uma permanência do

capitalismo, agora fundado em novas bases. Esse “novo” sistema seria caracterizado pela:

23 Referência a matéria “Interdependência ou a frescura instalada em nossa música popular?” de Sérgio Cabral no Pasquim de 07/1969 número II, onde criticava Egberto Gismonti pela adoção de influências musicais orientais em sua produção.

25

globalização e transnacionalização do capital, descolonização das antigas colônias africanas e fuga

da produção para áreas do Terceiro Mundo no objetivo de baratear a produção. O setor cultural teria

como particularidades: o simulacro e a mercantilização da obra de arte, paralela à culturalização da

mercadoria e o esmaecimento das propostas das vanguardas modernistas que se destacavam pela

originalidade e experimentalismo em suas obras. O chamado pós-moderno, principalmente no

tocante às atividades produtivas, se liga ao progresso das forças produtivas, à manutenção da

exploração do trabalhador através do recrudescimento da mais-valia relativa, ao redimensionamento

dos custos buscando a terceirização, ao máximo aproveitamento das capacidades, a maciça

mecanização e informatização industrial. Há a busca intermitente do lucro pelo empresariado, o

fomento do mercado especulativo mundial, o nascimento de novas técnicas produtivas, o uso

maciço da tecnologia no mundo produtivo e cultural (outra característica do ideal de progresso

interminável modernista) e, mais eloqüentemente, o emprego da imagem junto à formação de uma

realidade simulacional, muitas vezes irreal, para estimular o desejo de consumo e nortear o

imaginário contemporâneo.

No que se refere à estética e às práticas culturais, o pós-modernismo simbolizou uma clara

tendência à abertura a novas linguagens e propostas, com um singular esmaecimento do

universalismo e de suas conseqüências. Ihab Hassan24, um dos principais teóricos da pós-

modernidade, elencou entre as diferenças esquemáticas do pós-modernismo e do modernismo: o

acaso, a dispersão, a história local e pessoal, o individual, a ironia, a imanência em comparação

com o projeto modernista, que sobrepunha-se com o centramento, a grande narrativa, a metafísica e

a transcendência, respectivamente. No pós-modernismo a tendência seria a justaposição

heterogênea de estilos e imagens, valorização da crítica à uniformidade e à racionalidade. Há ainda

uma dificuldade em se usar o termo pós-moderno em detrimento de moderno ou modernismo. Essa

dificuldade se dá pelo peso de uma tradição modernista que paira sobre as mentes contemporâneas,

as influenciando e questionando sua validade. O pós-modernismo, observado genérica e

esquematicamente, apresenta oposições em relação ao modernismo. Porém quando se conclui que o

pós-modernismo e sua tendência à efemeridade, ao questionamento e à fragmentação o aproximam

das vanguardas tipicamente modernas e, de sua avidez pela originalidade, surge um paradoxo.

Nos anos 1960 foi criado um ambiente propício para o desenvolvimento de mercados

consumidores de produtos alternativos, com o crescimento de uma mentalidade comunitária jovem,

avessa ao consumismo. A mesma crítica ao consumismo provocou o crescimento da procura por

produtos naturais, orgânicos, autênticos e ecologicamente corretos, nascendo um mercado de alto

24 Hassan, Ihab; The Dismemberment of Orpheus, extraído de Connor, Steven; Cultura Pós-moderna; São Paulo, Ed. Loyola; 1992, pg. 94

26

poder aquisitivo. Na cultura a procura por artistas vinculados a um discurso alternativo gera uma

indústria fonográfica forte e diversificada. No intuito de abastecer os desejos de um mercado jovem

e sequioso por novidades, a indústria investe em gêneros de pouco destaque e em obras esquecidas

de artistas pré-indústria fonográfica. A arqueologia sonora passa a constituir um dos principais

passatempos dos músicos das décadas de 1950 e 1960, ajudando a formar uma geração com rara

percepção histórica da música, possuidora de acesso a sonoridades e temas graças à facilidade de

transmissão de informações gerada pela revolução tecnológica.

Ao observar essas permanências, ou sofisticações da modernidade, há a indagação em

corroborar o nascimento de um novo sistema produtivo de alcance global, pois persistem os

sintomas modernistas, ainda muito bem fundados, junto a uma série de transformações que podem

ser classificadas como pós-modernas. O que assistimos atualmente é a transição ou aprimoramento

de um sistema com claras repercussões em todo o planeta. Modificações que se iniciam após a

Segunda Guerra Mundial com a vitória dos aliados e o auxílio concedido pelo Plano Marshall às

nações vítimas da guerra que ajudarão a consolidar o capitalismo sob os moldes norte-americanos

em toda a Europa e, conseqüentemente, em todo o mundo. É interessante observar que, junto ao

predomínio do modelo norte-americano no setor produtivo, há a fixação de uma cultura norte-

americana como representante do que poderia haver de mais refinado. Com o rock, a cultura norte-

americana toma de assalto todo o mundo e assim são lançados os pilares do pop. Cultura pop que

era assimilada por todo o mundo, principalmente através do fomento da indústria fonográfica e do

cinema norte-americano, que transmitiam as músicas e o modo de vida ianque. As universidades

buscam cientistas e professores na Europa destruída pela guerra. Os mercados europeus, com suas

indústrias se reerguendo, passam a constituir valiosos mercados consumidores de produtos dos

EUA.

Neste momento, o fluxo de difusão cultural é transformado com a proeminência dos norte-

americanos no envio de produtos culturais. Fluxo este que sempre foi em via contrária com a

Europa moldando os gostos e difundindo seus produtos pelo mundo. O mais interessante dentro

desta questão da mudança do pólo cultural é ver que sempre houve uma interação entre os dois

pólos: metrópole e colônia, Europa e Oriente, o Velho e o Novo Mundo. Muitas vezes a interação

foi feita de forma desfavorável para o lado dos colonizados. Todavia, é inegável a forte influência

da expansão marítima na mudança dessa mentalidade. Da mesma forma que os europeus adquirem

a cultura americana com um gosto de exotismo e descoberta de novos hábitos, impositiva ou

pacificamente, os americanos se adestram na cultura européia. As trocas entre o Novo e o Velho

Mundo frutificam novas culturas originais e embebidas de influências diversas, os africanos levados

pela escravidão, os europeus colonizadores, os indígenas autóctones e um novo homem, o colono

27

que possui na América espanhola uma denominação específica criollo e as variadas miscigenações

geradas pela variedade racial. Estes colonos é que irão transformar a América num continente onde

irá vicejar uma cultura sincrética, que não possui um foco bem definido. Uma cultura que explora

influxos eruditos e locais, transformando o eruditismo católico europeu numa versão palatável ao

Novo Mundo. 25

A entrada de produtos norte-americanos, após a Segunda Guerra, é feita de forma maciça

pela indústria fonográfica havendo, acima de tudo, a descoberta de novas sonoridades e linguagens

artísticas, não propagadas pela mídia. Produtos como o jazz, o blues, a literatura beatnik e outras

manifestações marginalizadas pela indústria cultural adquirem um espírito mítico junto ao público

europeu. O Brasil não se viu livre da avalanche de produtos norte-americanos após a Segunda

Guerra, com o rock tendo papel disseminador da cultura jovem, semelhante ao realizado na Europa

e no resto do mundo.

Porém, o fato do pós-moderno estar intimamente ligado à permanência das práticas

capitalistas, práticas estas cada vez mais corporativas e globais, provoca uma análise dúbia do pós-

moderno. Contraditoriamente, o pós-moderno é situado como uma manifestação de pluralidade

cultural e compreensão de novas identidades sociais e culturais, sendo, ao mesmo tempo o

responsável pelo virtual domínio de uma infraestrutura capitalista global nos moldes norte-

americanos, implementando a transnacionalização do capital. Através da dominância do sistema

capitalista a nível global há uma virtual preservação de práticas comuns ao imperialismo, agora

exercido de forma mais sutil e cruel.26 Essas visões ocasionam abordagens que apresentam o

período atual como uma modernidade avançada. Anthony Giddens afirma: “Em vez de estarmos

entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as

conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que

antes.”27

A lógica cultural do capitalismo tardio

Em oposição a Giddens, Fredric Jameson sugere a imposição da lógica cultural como o

principal marco para compreender as modificações do capitalismo contemporâneo. A cultura se

torna uma “segunda natureza”28 havendo uma enorme distenção da esfera da cultura, o que Jameson

25 Vide o notável e original sincretismo cultural e religioso ocorrido na América Latina 26 Ver Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo; São Paulo, Companhia das Letras, 1989 27 Giddens, A., Consequências da Modernidade; São Paulo, Unesp, 1991; pg. 12-13 28 Jameson, F.; Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio; São Paulo, Ática, 1996, pg. 13

28

coloca também como a esfera da mercadoria, “(...) uma aculturação do Real imensa e

historicamente original, um salto quântico no que Benjamin ainda denominava a ‘estetização’ da

realidade.”29 Jameson afirma que atualmente a própria cultura teria se transformado em um produto

de consumo, ao mesmo tempo que configuraria num meio de transformar produtos e desejos

supérfluos em necessidades indispensáveis.

É importante observar o pensamento de Jameson para compreender a capacidade

simulacional e a importância da imagem no mundo atual. Ele ressalta o crescente prestígio dos

veículos de comunicação junto à indução ao consumo consistindo nos principais formadores de

opinião presentemente. Não sem motivos, há o cerceamento do que pode ser veiculado nestes

canais de comunicação, pois eles consistem o chamado quarto poder ou o que alguns imaginam

como a sociedade civil30. Sociedade que se faz ouvir através dos meios de comunicação. Como

melhor exemplo citamos a censura dos meios jornalísticos na cobertura das guerras, quando, para

não enfraquecer o moral da tropa, a imprensa não pôde relatar baixas ou ataques inimigos. Uma

cobertura imune à censura poderia fomentar a oposição à guerra entre os cidadãos, como ocorreu

durante a guerra do Vietnã, de onde a televisão transmitia ao vivo as cenas de guerra, com toda sua

violência e agressividade. Cenas veiculadas nos noticiários transmitiam para dentro dos lares

americanos as atrocidades da guerra, relatando mortes de soldados norte-americanos e trazendo o

repúdio da sociedade à guerra. Sendo a primeira guerra transmitida via satélite e ao vivo, as reações

eram imediatas aos acontecimentos, com a juventude tomando a frente dos protestos pacifistas

denunciando massacres de vietnamitas e o alistamento compulsório nos EUA. A mesma imprensa

que é manipulada no intuito de divulgar notícias falsas voltadas a confundir o inimigo e testar seu

poder de reação.(o Pentágono divulgou a notícia do ataque a Fallujah, bastião da resistência

iraquiana, meses antes do efetivo ataque para poder estudar a reação e organização do oponente; ou

um escândalo recente quando um falso repórter pago por instituições de propaganda republicana

fazia questões combinadas, no intuito de fazer propaganda para o governo norte-americano)31

Goebbels, o responsável pela propaganda nazista alemã, do controle psicológico e cultural de sua

população é um personagem típico do crescente poder da cultura e da sua importância.

A cultura passa a permear todas as esferas da vida cotidiana, da produção à construção das

idéias, passando pela comercialização de mercadorias. Há a transposição da esfera da produção de

mercadorias para a esfera da produção de imagens e sonhos simbolizados por mercadorias.

29 Jameson, F.; Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio; São Paulo, Ática, 1996, pg. 14 30 Casos clássicos são: a deposição de Richard Nixon da presidência norte-americana por causa do escândalo de Watergate e o impeachment de Fernando Collor de Melo no Brasil 31 Rich, Frank; “Repórteres falsos promovem Casa Branca”; Folha de São Paulo; 20/02/2005, originalmente publicado no New York Times

29

Nas obras construídas sob a égide pós-moderna há a virtual simulação de um real

inexistente, como Jameson diz de forma negativa:

“(...) a produção cultural é relegada a um espaço mental que não é mais o do velho sujeito monádico, mas o de um ‘espírito objetivo’ coletivo e degradado...”

“Se sobrou algum tipo de realismo aqui, é o ‘realismo’ derivado do choque da percepção desse confinamento e da consciência gradual de que estamos condenados a buscar a História através de nossas próprias imagens pop e dos simulacros daquela história que continua sempre fora de nosso alcance.”32

Essa negatividade é explicada pela visão de Jameson ligada ao marxismo com a dificuldade

em totalizar coerentemente o fenômeno pós-moderno. Além dessa dificuldade, há a apreensão do

papel da simulação na vida contemporânea, simulação que promove uma massificação de imagens

publicitárias e midiáticas que fruem com grande desenvoltura na formação da mentalidade

contemporânea. Jameson vê a história fora do alcance do indivíduo comum consistindo, na verdade,

numa construção realizada por variados canais de difusão de informações e imagens.

Variados elementos tomam parte atuante na simulação de uma linguagem baseada na

imagem. O gadget e o kitsch são dois elementos que servem para Jean Baudrillard apresentar a

teoria do simulacro e sua inserção tanto no mundo da cultura, quanto no mundo econômico, onde a

construção de desejos e miríades consumistas supérfluas é a constante. Lembrando a estética pós-

moderna, o gadget e o kitsch exibem características ligadas à nova norma cultural. A definição do

kitsch realizada por Baudrillard é elucidativa:

“O kitsch constitui, como a engenhoca (gadget), uma das categorias maiores do objeto moderno. (...) O kitsch surge com o equivalente do clichê (lugar-comum) no discurso. (...) O kitsch pode encontrar-se em todo o lado... Será melhor defini-lo como pseudo-objeto, isto é, como simulação, cópia, objeto factício e estereótipo, como pobreza de significação real e sobreabundância de sinais, de referências alegóricas, de conotações discordantes...”33

O termo kitsch surge na Alemanha para especificar uma fase de gênese estética de um estilo

marcado pela falta de estilo, com sua marca supérfula e pouco usual. A palavra kitsch, no sentido

moderno, aparece em Munique por volta de 1860. Palavra usual no sul da Alemanha, kitschen

significa fazer móveis novos com velhos; verkitchen quer dizer trapacear, receptar. Ludwig Giesz

atribui o termo ao verbo alemão kitschen, que significa literalmente, colher o lixo das ruas numa

aproximação do conceito artistic rubisch associado ao termo junk art. O termo, enfim, é permeado

de um sentido negativo.

32 Jameson, Frederic; Pós-modernismo: lógica cultural do capitalismo tardio, São Paulo, Ática, 1996, pg. 52 33 Baudrillard, J.; A Sociedade de Consumo, Lisboa, Edições 70, 1975, pg. 175

30

“O Kitsch é a mercadoria ordinária (Duden), é uma secreção artística derivada da venda dos produtos de uma sociedade em grandes lojas que assim se transformam, a exemplo das estações de trem, em verdadeiros templos”34

O kitsch surge como categoria cultural, como uma linha bem clara de pensamento e de ação

para fundamentar a nova percepção artística contemporânea. O kitsch teria um papel subversivo e

dessacralizador, alguns viam o uso do mau-gosto, do kitsch como representativo da carnavalização

do movimento tropicalista, ou do esvaziamento de sentido do próprio movimento. Gilberto

Vasconcellos caracterizava o uso do kitsch pelos tropicalistas como a “caricaturização da

modernização reflexiva”35, ou seja, o kitsch seria utilizado para expor a modernização brasileira e

as suas dificuldades e idiossincrasias. Através da exibição de características kitsch, o Tropicalismo

tornava público o processo modernizador nacional, “a criança sorridente, feia e morta” que “estende

a mão” o faz tendo “uma roseira/ autenticando eterna primavera/ e nos jardins os urubus passeiam a

tarde inteira entre os girassóis”, junto ao monumento que é “bem moderno” simbolizariam a

permanência do arcaísmo, da miséria e da forte formação cristã brasileira coadunada à ditadura

militar que passeia e observa os movimentos estudantis e culturais, militares auxiliados pela

tecnocracia estatal que cria a visão de Brasil grande e do milagre econômico. O kitsch seria prática

comum dos tropicalistas e da música pop que buscaram extrapolar e refundar os limites do bom-

gosto tradicional. Os Beatles e suas franjas, que depois se tornariam moda entre a Jovem Guarda; as

batas indianas e a roupa colorida dos hippies, longe dos padrões ocidentais tradicionais; o uso da

linguagem coloquial e a criação de neologismos; todos estes exemplos seriam ótimos para reter um

pouco do uso do kitsch por parte da geração de 1960.

Porém, com a introdução de modelos mais despojados e ligados à cultura jovem, a indústria

se adequou ao gosto do público consumidor gerando a padronização e o esvaziamento do sentido

catártico e dessacralizador originais da manifestação kitsch. No caso da cultura, da obra de arte,

mais especificamente, surge o problema da reprodução ser tão grande que venha atingir níveis que

superexponham a obra, causando a banalização e a perda da chamada aura pertencente à obra de

arte original. Até mesmo o conceito de originalidade se perde pois há a uma forte rede de

influências e referências nas criações artísticas ocasionando um virtual esvaziamento do sentido de

originalidade e ineditismo, tão prezados pelo alto modernismo. Quando se fala da música

tropicalista há a dificuldade de conceituar quanto a sua originalidade. Influenciada pelo

experimentalismo do grupo Música Nova (Rogério Duprat, Júlio Medaglia, dentre outros), há

referências nas canções tropicalistas ao iê-iê-iê, ao pop internacional, à música nordestina e à

música clássica. Essas relações entre variadas tendências explicam, em parte, a dificuldade de reter

34 Moles, Abraham; O Kitsch, pg. 10 35 Vasconcellos, Gilberto; Música Popular: de olho na fresta, Rio de Janeiro, 1977, pg. 49

31

uma originalidade nas canções tropicalistas, principalmente quando os Mutantes fazem clara

referência aos Rolling Stones em Mágica ou Caetano Veloso canta Vicente Celestino, Coração

Materno, em tom melodramático, numa referência ao Brasil rural e tosco. A massificação do kitsch

resulta na multiplicação industrial e na vulgarização ao nível do objeto, dos sinais distintivos tirados

de todos os registros e da oferta desordenada de sinais. Jameson afirmava que:

“(...) os pós-modernismos têm revelado um enorme fascínio justamente por essa paisagem ‘degradada’ do brega e do kitsch, dos seriados de TV e da cultura do Reader’s Digest, dos anúncios e dos motéis, dos late shows e dos filmes B hollywoodianos, da assim chamada paraliteratura (...) todos esses materiais não são mais apenas ‘citados’, como poderiam fazer um Joyce ou Mahler, mas são incorporados à sua própria substância.”36

O kitsch surge, com a sua massificação e penetração no mercado consumidor como

categoria cultural, resultado da:

“(..) multiplicação industrial e da vulgarização ao nível do objeto, dos sinais distintivos tirados de todos os registros (o passado, o neo, o exótico, o folclórico e o futurista) e da oferta desordenada de sinais ‘já feitos’. Baseia-se, como a ‘cultura de massa’, na realidade sociológica da sociedade de consumo.”37

A linguagem tropicalista explora a estética dita popular, ou de “mau gosto”, com a inserção

de variadas linguagens e influências junto a suas criações, imbuídas do estilo kitsch, ou brega. Os

tropicalistas apresentavam a simbiose da tradição da música popular com a popularidade da Jovem

Guarda, a bossa nova e o brega38. Os tropicalistas aliavam à estética ligada ao bom gosto a cultura

embebida do eruditismo do alto modernismo, o canto popular, as festas regionais e o “mau gosto”

que dominavam a cena entre a população de menor renda. Essa aliança que se dava em variadas

instâncias, como foi falado anteriormente, possuía a intencionalidade, a consciência dos artistas pop

da década de 1960, como uma de suas características mais marcantes. Em todas as esferas culturais

havia a clara tendência da interdisciplinariedade, da interculturalidade como premissa básica. As

artes plásticas se embebiam da música para produzir seus trabalhos como os músicos se inspiravam

nas artes plásticas para produzir. Caetano Veloso compôs a canção Lindonéia inspirado no quadro

de Rubens Gerchman, Lindonéia ou a Gioconada de Subúrbio, que retratava uma moça de

subúrbio como lhe parecia no quadro de Gerchman. O multifacetamento da obra de arte pós-

moderna, também característica do Tropicalismo, é um dos flagrantes do maior interesse por nichos

pouco explorados e linguagens pouco usuais. Por outro lado, a operação sincrética e a bricolagem

36 Jameson, F.; Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio; pg. 28 37 Baudrillard, J. Op. Cit., pg. 176

38 Repetidas vezes os Tropicalistas revisitavam temas populares e músicos ligados ao brega como Vicente Celestino, Sílvio Caldas, Humberto Teixeira, dentre outros

32

tropicalista norterariam a tendência, habitual presentemente, do sampler com o emprego de trechos

de músicas e referências a sonoridades distintas sem qualquer nexo lógico.

Celso Favaretto dedica um capítulo inteiro do clássico Tropicália: alegoria, alegria à

explicação do procedimento cafona tropicalista, definindo-o como: “resultante da conjugação de

estágios diferenciados de um mesmo fenômeno cultural, equivale a uma operação descentradora.”

(Favaretto afirma que a descolonização no nível da cultura coincide com o descentramento do

sujeito, com o consequente esvaziamento das ideologias) Ele critica a tendência, citando Augusto

Boal39 e Affonso Romano40que viam no cafonismo uma “adaptação estilística, efetuada pela

pressão da modernização, assimilando-o a uma reação localista, provinciana, contra a penetração da

moda internacional;”41 ou pela transformação do mau gosto em símbolo de contestação, no uso

sistemático do deboche. Favaretto vê incorreções nestas análises:

“(...) o Tropicalismo, como qualquer manifestação artística, refere-se ao social, porém esta referência deve ser buscada em seu modo de construção. Segundo a caracterização da paródia, feita anteriormente, o procedimento cafona produz o efeito de uma indeterminação nas canções: a cena que expõe é radicalmente um outro corroído pelo ‘riso mortuário do eu dessacralizado’42, um espaço de jogo em que o político não é ordenado por um trabalho que se inscreva nos modos institucionalizados, mas uma prática ou um conjunto de experiências variadas, ainda não determinadas, e tidas como ‘não sérias’43 A ideologia e o sistema social são atingidos pela análise do sujeito na sua relação com a língua e o sexo, pela confusão dos valores estabelecidos, e pela exibição das convenções repressoras. A exposição do absurdo não implica a sua contemplação, podendo levar à desmistificação. O riso cafona é criticado, no fundo, por não traduzir intenções. Estas são tributárias de uma estética que, ao dissociar forma e conteúdo, privilegia a linearidade e a temporalidade do discurso, como ocorria na maior parte das canções da época. Vista à luz da utopia, é certo que a crítica Tropicalista pode ser considerada inócua, pois suas manifestações se esgotavam no próprio momento da ocorrência sem propor nenhum modelo que preenchesse o vazio resultante. Compunha uma sintaxe de atos, entendida como semântica, que teve a eficácia de produzir um curto-circuito na música brasileira.”44

O procedimento cafona seria sinônimo de uma linguagem kitsch, onde o uso de alegorias

virtualmente díspares nos traria uma imagem do Brasil fragmentário e irreal. Favaretto afirma que o

uso desta linguagem indeterminante e intencionalmente inapresentável seria uma atitude de defesa

tropicalista contra a censura e a perseguição política que a cultura nacional estava passando naquele

momento. Ao apresentar a construção de uma nação inexistente haveria a antropofagização ou

descolonização de elementos modernos externos que se adequam à construção e levam à

contradição, graças à reunião desses elementos modernos dentro de uma nação ainda aprisionada

pela realidade arcaica. Exibem, desta forma, um Brasil onde o avanço industrial, a indústria de

automóveis e a criação de um produto “made in Brazil” convivem com o jegue, a rendeiras de bilro

39 “Que Pensa Você da Arte de Esquerda?”, folheto de apresentação da I Feira Paulista de Opinião de 1968 40 “Tropicalismo! Tropicalismo! Abre as Asas sobre Nós”, Jornal do Brasil, 02/03/1968 41 Favaretto, Celso; Tropicália: alegoria, alegria; 2 ed. rev.; São Paulo, Ateliê Editorial, 1996, pg. 107 42 Kristeva, Julia; “Une poétique ruinée”, introdução a La poétique de Dostoievski de M. Bakhtin, Paris, Seuil, 1970, p. 19 extraído de Favaretto, Celso; Tropicália: alegoria, alegria 43 Lyotard, J. F.; Des dispositifs pulsionnels, Paris, UGE, 1973, p. 135 44 Favaretto, C.; Op. Cit.; pg. 108-109

33

e a cultura primitiva nacional representada pelo velhos e cegos sanfoneiros das feiras do interior

nordestino que tanto fascinaram Gilberto Gil na sua infância. Caetano é muito claro no tocante à

inserção do chamado brega, ou o kitsch em sua criação:

“O que me interessou a princípio foi o problema da música comercial no Brasil. Antes disso o que me interessou foi quebrar o cerco de bom gosto então vigente, então todas as coisas que estavam fora desse cerco começaram a me fascinar mais do que o que estava dentro e eleito, o eu estava dentro e eleito começou a me desinteressar. (...) Então num determinado momento João Gilberto passou a soar pra mim tão estranho quanto Gregório Barrios em matéria de bom gosto aí eu comecei a me interessar muito, a ficar fascinado nas coisas que não estavam dentro do bom gosto, de uma certa forma, estabelecido no grupo de gente que fazia música no Brasil naquela época.”45

A canção Saudosismo composta por Caetano Veloso investia nessa crítica ao bom gosto,

sendo contra a canonização da geração Bossa-Nova pela crítica especializada. Caetano, nesse

momento, tinha a visão que elementos populares poderiam ser amalgamados ao Tropicalismo, com

a Jovem Guarda e músicas “dor-de-cotovelo” tendo um papel marcante na definição deste novo

estilo. A inclusão de ritmos populares, situados muito longe do que poderíamos consagrar como

uma produção de qualidade insofismável, o uso de guitarras distorcidas e a linguagem pop são

marcas tropicalistas. Este sincretismo é utilizado largamente pelos artistas que aderem ao pop na

década de 1960. O rock’n’roll formara-se através da assimilação de ritmos negros (rhythm’n’blues,

gospel, blues, boogie-woogie) pelos brancos norte-americanos ligados ao country interiorano. Os

tropicalistas viam sua música mudar de acordo com o sabor dos acontecimentos mundiais,

influenciados pela mídia e pelas discussões pungentes ocorridas no período.

Voltando para a canção Saudosismo que parecia uma homenagem à influência de João

Gilberto e acaba deflagrando um happening de Caetano Veloso. Numa letra criada poucos dias

antes do show, Caetano entrava tocando violão em compasso bossa nova e rapidamente mudava o

ritmo com guitarras distorcidas e gritos, cantando “Quarta feira de cinzas no país/e as notas

dissonantes se integraram /ao som dos imbecis/sim, você, nós dois/já temos um passado, meu

amor/a bossa, a fossa, a nossa grande dor/como dois quadradões”. Com argúcia, Caetano mescla

estilos e realiza a crítica da questão da superação do fenômeno bossa-novista criando manifestações

questionadoras quanto ao virtual encastelamento e canonização de alguns ritmos musicais.

Interrogava-se também sobre a incapacidade para criar saídas viáveis para a música brasileira, que

alcançava o poder de porta-voz de toda uma sociedade oprimida pela repressão militar e convivia

com a censura dos meios divulgadores de suas manifestações. Augusto de Campos dizia que, com o

amadurecimento, Caetano podia “... transitar da interpretação cool de João Gilberto, para as mais

‘quentes’, gênero jovem-guarda; das inflexões de cantador nordestino para as dos intérpretes típicos

45 Entrevista concedida ao Pasquim, In. O Som do Pasquim; Rio de Janeiro, Editora Codecri, 1976, pg. 110

34

de ritmos hispano-americanos, incorporando ainda como citação, as ‘imitações’ líricas ou irônicas

de cantores da velha guarda.”46 Em Saudosismo há claramente a tentativa de desmistificação de

toda tradição musical nacional. Caetano voltava-se para a compreensão da Bossa-Nova como uma

manifestação de alta sofisticação, mas que deveria ser reatualizada esteticamente com a projeção de

novos artistas e linguagens que usassem tanto esta sofisticação bossa-novista como as linguagens

tipicamente popularescas e de mau gosto. A cantora Elis Regina, um dos baluartes da canção

tradicional, recebeu a canção Saudosismo pasmada, como a Revista Veja imprimia: “Numa das

mesas, a perplexidade de Elis Regina é desabafada numa série de palavrões - só os mais próximos

entendem - e por uma interrogação: ‘ Não sei mais o que devo cantar. O que está acontecendo? Para

onde vai a música brasileira?’”47 Elis exibia seu assombro com todo o processo inventivo dos

tropicalistas, principalmente pelo uso deliberado de uma proposta multicultural que, fazendo uso de

fragmentos sonoros, episódios históricos e pessoais, transforma eventos banais em música. Música

que traria o alicerce para inovações estruturais tecnológicas e estéticas, constituindo o primeiro

movimento musical nacional a ter consciência do movimento pop de vanguarda que se alastrava

pelo planeta na década de 1960. Elis Regina, uma das líderes da Frente Única detratora das

guitarras elétricas e que, mais tarde, cantaria os Beatles com percussão de samba48, se interrogava:

qual o caminho a seguir? Esta interrogação permeava os corações e mentes de toda a geração que

vivia o período e que também presumia: este caminho seria seguido de forma voluntária ou seria

imposta pela indústria ou até mesmo pela censura do regime militar?

Enquanto alguns passavam o tempo se interrogando sobre o caminho a seguir, o grupo

baiano botava “o bloco na rua”, assumindo posições estéticas e cenográficas cada vez mais radicais.

Na apresentação de Proibido Proibir um hippie – Johnny Grass – subia ao palco urrando e

pulando, numa atitude folclórico-primitiva que chocava os que assistiam aos festivais para ouvir

músicas de protesto. O uso de roupas cada vez mais exóticas e pouco usuais trazia um

estranhamento imediato aos mais “certinhos”. No derradeiro show na Boate Sucata havia uma

bandeira, criação de Hélio Oiticica, que dizia: “Seja marginal, seja herói” homenageando o famoso

bandido Cara de Cavalo. Realizados em outubro de 1968, os shows da Boate Sucata ficaram

consagrados como o momento de maior radicalização do Tropicalismo, culminando com a prisão

46 Campos, Augusto; Balanço da bossa, São Paulo, Perspectiva, 1968, pg. 160 47 Veja; “Com eles, briga na certa”; 16/10/1968, pg. 58 48 Canta Carry that Weight dos Beatles

35

dos músicos por, supostamente, tocar o hino nacional em ritmo iê-iê-iê.49 Johnny Grass, o hippie de

Proibido Proibir tinha uma consciência ímpar do momento, talvez visão que faltasse aos setores

mais engajados brasileiros:

“Muita gente se sente agredida por nós, mas o que acontece com Caetano aconteceu nos Estados Unidos com Bob Dylan. No dia em que Bob Dylan rompeu com as tradições musicais – inclusive canções de protesto – foi uma grita geral. Mas Bob Dylan acabou vencendo porque é um cara sério e sabe o que quer.”50

Comparando Caetano a Dylan, Grass tinha um insight perfeito para se compreender a poesia

e narratividade da música de Caetano, ligando-o a Dylan, mais ainda quando observava a

transformação de Dylan com a adoção da guitarra elétrica e os subsequentes protestos de seus fãs.

Momentos similares aos que os tropicalistas enfrentavam por aqui, com perseguições e

“questionamentos” por parte de seus detratores que achavam que se o Tropicalismo continuasse

como modismo “(...) mais um brochante intelectual, como tantos outros – destinado a cair na roda

viva do consumo e ser transformado em produto industrial pra ser vendido nas boutiques grã-

finóides.”51 Havia, na década de 1960, a refutação do processo de entrelaçamento da superestrutura

com a infraestrutura, quanto ao perigo da cultura se transformar em objeto de consumo ou, ainda

pior, ser um estimulante para o próprio consumo, como Jameson e outros pensadores analisam a

mercantilização da cultura.

A crise da modernidade e do conceito de superação

As discussões sobre a crise da modernidade e do universalismo iluminista têm início na

segunda metade do século XIX com Friedrich Nietzsche e a polêmica sobre decadência dos

parâmetros iluministas. Gianni Vattimo trata o pensamento de Nietzsche e Martin Heidegger como

a única forma possível de análise da pós-modernidade (contemporaneidade) dentro de parâmetros

cabíveis, pois ambos condenam uma dita “superação crítica” do pensamento europeu, “pela boa

razão de que isso (este conceito de superação) teria significado continuar prisioneiros da lógica de

49 “Chefes militares revelaram, no Rio, a alguns jornalistas de intimidade, as dificuldades que vêm enfrentando para conter as exaltações de

companheiros mais jovens, ‘face às provocações eu caracterizaria uma ameaça de desmoralização da Revolução de 31 de Março’, partida dos mais diferentes setores, incluindo o meio artístico (...) Ontem, circularam rumores inclusive que foi necessário conter uma ação contra o cantor Caetano Veloso, que se exibia na cidade e que cantara o HINO NACIONAL em ritmo ‘tropicália’” SNI, 11/10/1968 Extraído de Folha de São Paulo, 02/11/1997, Suplemento “Mais”; pg. 9 Tal citação demonstra a ameaça da “desmoralização da Revolução de 31 de Março”, que também é lembrada pelos ministros de Costa e Silva na ocasião da promulgação do AI-5

50 Veja; 23/10/1968, pg. 61 51 Correio da Manhã; “Diagnóstico (ou autópsia) do Tropicalismo”, 14/03/1968

36

desenvolvimento própria desse mesmo pensamento.”52 Dentro do modernismo o progresso se

basearia na apropriação e reapropriação dos “fundamentos”. “A noção de superação, que tanta

importância tem na filosofia moderna, concebe o curso do pensamento como um desenvolvimento

progressivo, em que o novo se identifica com o valor através da mediação da recuperação e da

apropriação do fundamento-origem.”53 Essa colocação, posta em xeque por Nietzsche e Heidegger,

invalida qualquer tentativa de criação de um novo princípio que venha substituir (“superação

crítica”) o fundamento anterior. Notável observar que Caetano Veloso se referia à tradição musical

brasileira da mesma forma que o modernismo apreciava o progresso:

“Se temos uma tradição e queremos fazer algo novo dentro dela, não só teremos de senti-la, mas conhecê-la. E é este conhecimento que vai nos dar a possibilidade de criar algo novo e coerente com ela.

Se a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e violão sem sétimas e nonas não resolve o problema.”54

Ao fazer tais afirmações, Caetano Veloso discutia o papel do uso da tradição na formação de

uma linguagem nova que estava sendo gestada naquele momento e perguntava: qual o melhor

caminho a seguir? O romantismo telúrico primitivo das canções folclorizadas dos grupos

politizados ou se abrir para influências advindas dos novos meios de comunicação. A exposição de

Caetano, realizada num debate sobre os caminhos da música brasileira, tinha o desejo de defender

uma atitude mais aberta a influências externas como a música estrangeira e a adequação da canção a

determinados moldes da indústria cultural. Neste momento, 1966, os músicos tropicalistas não

haviam composto as canções mais experimentalistas que iriam caracterizar o movimento. Para ser

mais preciso, Caetano Veloso e Gilberto Gil seguiam uma fase ainda ligada à canção de protesto,

samba e Bossa-Nova. Porém a declaração deixa antever o exercício de construção estética

tropicalista, baseada na referência à tradição, unida ao experimentalismo e ao movimento pop. Um

amálgama da música pop internacional (Jimi Hendrix, Bob Dylan, Janis Joplin, Joan Baez, Beatles,

Cream, Traffic, dentre vários outros) com a tradição folclórica latina e nacional (rumba, cumbia,

embolada, samba canção, canções oficiais, música clássica). O que alguns viam como tentativa de

esvaziamento da crítica e da realidade podia ser abordado como inserção da música brasileira no

contexto pop global, com a revisão de linguagens esquecidas junto a uma nova e radical atitude

perante o sistema capitalista. A tradição que Caetano Veloso se referia era ligada a nosso folclore

musical popular, às coisas do Brasil arcaico, que contava com a reunião de mitos e rituais de

52 Vattimo, Gianni; O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna; tradução Eduardo Brandão; São Paulo Martins Fontes,1996; pg. VI 53 Vattimo,G.; Op. Cit; pg. VI e VII 54 Revista Civilização Brasileira; “Que caminho seguir na música popular brasileira”, Rio de Janeiro, Ano, número 7, maio de 1966, pg. 378

37

culturas diversas, o candomblé baiano, os rituais religiosos católicos, a musicalidade sertaneja e do

recôncavo baiano. Reunindo variadas manifestações culturais essa suposta “tradição popular”

brasileira estaria alicerçada numa teia complexa de referências e influências, havendo uma natural

dificuldade em sua homogeneização.

Nietzsche contemplava a concepção de progresso interminável modernista e vinculava à

prática modernizante um eterno diálogo com a tradição ligando a busca da modernidade ao

aperfeiçoamento desta tradição, tanto junto à infraestrutura quanto à superestrutura. Caetano Veloso

se aproxima, com seu discurso defensor da retomada da “linha evolutiva”, do pensamento

nietzschiano que salientava a obrigação de se conhecer a tradição para poder modificá-la. Caetano

possuía uma visão abrangente de nossa história musical e achava que qualquer sonoridade deveria

ser alvo de estudos e usos. O samba, os cantores e cantoras da Rádio Nacional, o pop de língua

inglesa, a salsa, a rumba e os sons latinos, todos estes ritmos e manifestações poderiam ser

aproveitados, implícita ou explicitamente, nas criações tropicalistas. A valorização da tradição

musical e a simbiose com a música eletrônica e pop trazia à tona o intuito de se fazer um apanhado

histórico-musical contemporâneo, um encontro da alta e baixa cultura, do eruditismo instituído pela

alta cultura com o burlesco da baixa cultura. Esvaziando este apanhado de sentido cronológico e

analiticamente anômalo, o Tropicalismo tentava realizar a compreensão e a adequação aos

acontecimentos globais, caracterizados pelo individualismo crescente e a especulação financeira.

Uma realidade que o Tropicalismo já abordava ao criticar a inovação tecnológica e a

industrialização desenfreada, sem espaço para a humanização do espaço do trabalho, que trazia o

consumismo descontrolado, a alienação por parte dos que consomem e marginalização dos

excluídos. Um retrato que era bem retratada por Tom Zé em Parque Industrial: “despertai com

orações/ o avanço industrial/ vem trazer a nossa redenção/ (...) pois temos o sorriso engarrafado/ já

vem pronto e tabelado/ é somente requentar e usar”

Tom Zé é o músico tropicalista com maior atuação entre as hostes do circuito alternativo

contemporâneo, após a entronização de Caetano e Gil entre os baluartes da música popular

brasileira. Fazendo um som anárquico, Tom Zé investe contra a “globarbarização” do

“Companheiro Bush”, o machismo do pagode e a prostituição infantil gerada pelo turismo sexual

praticado por europeus, no litoral nordestino. Alcançando um público restrito, mas consciente e

politizado, ele continua veiculando sua mensagem polifônica e multicultural, de respeito, tolerância

e reconhecimento às expressões mais desconhecidas. Tom Zé, que estava esquecido num posto de

gasolina em sua terra natal, Irará, no interior da Bahia, voltou ao circuito para refletir sobre a

realidade e a música brasileiras. Graças ao processo inverso de influência visto nos anos !960, com

a descoberta dos ídolos norte-americanos pelos músicos ingleses e latino-americanos, David Byrne,

38

um dos integrantes do grupo nova-iorquino Talking Heads, trouxe de volta à música o maldito

músico brasileiro que Byrne havia escutado e, intrigado, buscou maiores informações sobre sua

produção. O interesse do primeiro mundo sobre a música de um país subdesenvolvido,

principalmente de músicos tão marginalizados por aqui, pode ser expresso como reflexo da

indústria cultural contemporânea. As manifestações culturais do Terceiro Mundo (muitas vezes

trazendo sotaque de Primeiro Mundo, como o heavy metal do Sepultura, o manguebit do Nação

Zumbi, dentre outros) passam a ser veiculadas no circuito alternativo europeu e norte-americano

tendo um papel revolucionário e inovador, contrário ao tradicional exotismo primitivo tradicional

exibido no exterior tradicionalmente.

O paradoxo pós-moderno é representado pela crença na adoção de medidas para

salvaguardar as culturas e técnicas de menor difusão visando o enriquecimento do sistema como um

todo, e, por outro lado, a pós-modernidade fomenta o crescimento das grandes corporações

transnacionais e dos interesses ligados a sociedades anônimas desvinculadas de uma idéia de bem-

estar social, defensoras do neo-liberalismo. A concepção de pós-modernidade, de tendência

pluralista, constitui uma linha de pensamento que contempla o ser humano como um ser social que

se adapta ao seu meio de acordo com suas necessidades e possibilidades.

A pluralidade seria incrementada pela indústria cultural para permitir a todos a possibilidade

de escolher os produtos e idéias (atualmente cada vez mais imbuídas da carga mercadológica) de

acordo com sua percepção. Obviamente, o pós-modernismo, ou o pós-moderno, não constitui um

movimento de idéias uniformes, que defende opiniões semelhantes e bem delimitadas. A

denominação pós-modernismo engloba a tendência contemporânea que procura compreender,

criticar ou se adequar ao mundo atual. Todos os pensadores que se debruçam sobre a compreensão

da realidade contemporânea devem estar cientes das discussões sobre a existência do chamado

fenômeno pós-moderno, até mesmo para podermos compreender as modificações ocorridas no

mundo atual.

Um pensador importante para uma abordagem ‘pós-histórica’ é Arnold Gehlen. Ao indicar

que o progresso tornou-se uma rotina, no qual a capacidade humana de dispor das técnicas se

intensificou e a experiência da realidade se tornou uma experiência de imagens, há o sentimento

flagrante da existência de uma realidade distinta da retratada e analisada pelos pensadores

predecessores, que carecem de novos enfoques e metodologias. Para Gehlen, o papel da novidade é

determinante junto à sociedade de consumo que demanda uma renovação pela pura sobrevivência

do sistema, “... a novidade nada tem de ‘revolucionário’ e perturbador, ela é o que permite que as

39

coisas prossigam do mesmo modo.”55 O progresso se impõe como o ideal da sociedade moderna

porém, como o seu ideal é sempre vazio, sempre objetivando um novo progresso, não se cria uma

meta-teoria para balizá-lo. Apoiado pelo individualismo56 e pelo crescimento dos ideais

consumistas, o conceito de progresso está mais ligado às inovações tecnológicas, aos produtos e ao

consumo desenfreado. Hoje se consome largamente produtos ligados a modismos e tendências

transitórias, com a música possuindo uma enorme demanda por novidades. Porém sabemos que a

avidez transforma desconhecidos em celebridades, os usa e deglute novamente, no incessante

trabalho de criação de novas estrelas e respectiva colocação no ostracismo de astros fugazes. Esta

regra vale tanto para cantores de ritmos consagrados como para gêneros musicais que sofrem com

várias idas e vindas junto ao mercado consumidor. Vejamos o caso do reggae, do forró e do choro.

Os três ritmos estão situados dentro de um determinado nicho de mercado ligado aos universitários

e jovens estudantes. Cada ritmo representa platéias que talvez não comunguem dos mesmos ideais,

mas rememoram ritmos que já tiveram um tempo de grande popularidade e são redescobertos por

elementos jovens. Jovens que cultuam ídolos que não eram mais vivos quando a maior parte deles

estava nascendo. Através de imposições mercadológicas, ou devido ao interesse enciclopédico de

alguns elementos, estes ritmos têm uma sobrevida de sucesso, arrebanhando espectadores por todo

o mundo.

Outro nicho consistiria nos aficionados por novidades que fazem tudo para estar up to date e

se informam nos canais alternativos a respeito de novas propostas e sonoridades. Este público

alternativo fomenta uma cena que tem pouca divulgação mas possui grande influência na criação

musical contemporânea. A criação de um mercado global fez surgir não só a pasteurização de

gostos e a hiper-exposição de determinados artistas, mas também provocou o surgimento de novos

nichos e a redescoberta de outros, num processo enriquecedor que deu voz a artistas e movimentos

sem chances de veicular suas mensagens. Alguns movimentos tiveram que se adequar para angariar

um público cativo, como o rock que “embranqueceu” o blues e o rythmin’n’blues, misturando-os ao

country com Jerry Lee Lewis e Elvis Presley. Outros artistas investiram num processo de clara

marginalização voluntária com a consciência da inviabilidade em agradar um mercado consumidor

muito grande, como o rap, o acid rock, o free jazz e tantos outros que preferem abarcar um mercado

menor mas fiel, a ter que fazer concessões para obter maior vendagem.

55 Vattimo, G.; Op. Cit.; pg. XII 56 Contra essa idéia de fortalecimento do individualismo contemporâneo, Fredric Jameson rebate afirmando que, com o esmaecimento do sujeito, característica marcante do pós-moderno, há o fim do estilo único e original, das atitudes autênticas e o experimentalismo das vanguardas do alto modernismo. Jameson observa este momento como prolixo em sentimentos que “(...) são agora auto-sustentados e impessoais...” Ver Jameson, Frederic; Pós-modernismo: lógica cultural do capitalismo tardio, São Paulo, Ática, pg. 43

40

A dessacralização tropicalista, o niilismo e as vanguardas

Na análise quanto ao papel do niilismo no discurso de Nietzsche e Heidegger, Gianni

Vattimo discorre sobre a crise de paradigmas contemporânea e assinala esses dois autores ao

referir-se à crise teleológica enfrentada pelo indivíduo. Para Nietzsche essa crise residiria na

potencial “morte de Deus”57, ou a desvalorização dos valores supremos e universais; “somente onde

não há instância terminal e interruptiva, bloqueadora, do valor supremo-Deus, os valores podem

manifestar-se em sua verdadeira natureza, que é a convertibilidade, e a

transformabilidade/processualidade indefinida.”58 Dessa forma, o ser estaria diretamente vinculado

ao processo de transformação do valor de uso em valor de troca, base da definição heideggeriana de

niilismo.

Essas vicissitudes criam terreno para a reivindicação de valores não mais universais, mas

ligados à valorização das culturas populares e marginais. Há o desenvolvimento de uma cultura

voltada para o questionamento do paradigma iluminista de universalização dos direitos civis e da

liberdade59. Nietzsche e Heidegger ressaltam o simulacro60 e a virtual fantasia contemporânea

levada a cabo em virtude do enfraquecimento das teleologias e da tentativa de ‘refundação’ da

existência. “O mundo verdadeiro tornou-se fábula” como escreve Nietzsche em um dos capítulos de

Crepúsculo dos Ídolos.

O Tropicalismo estaria imbuído de traços niilistas como a dessacralização e a iconoclastia

com a crítica dos mitos internacionais e nacionais. A exposição desses mitos em suas obras era uma

das principais formas de contestação da ordem estabelecida, de uma atitude anti-establishment

característica da geração sescentista. Os tropicalistas não respeitavam nenhuma convenção ou

movimento cultural e, como os niilistas russos, questionavam todo universalismo e movimentos

bem estabelecidos. Negavam a vivência dentro do sistema consumista e possuíam a praxis do

combate e a descrença na ordem estabelecida como principal motor de sua luta e expressão estética.

Porém, diferente da idéia que as atitudes niilistas teriam como principal característica a falta de

perspectiva e a depressão criativa, a descrença em relação às instituições e o questionamento do

57 Vattimo, Gianni; O fim da modernidade; São Paulo, Martins Fontes, 1996, pg. 5 58 Vattimo, G.; Op. Cit.; pg. 6 59 Liberdade questionada por Robert Kurz: “(...) ao efetivarem sua liberdade e igualdade na esfera da circulação, as pessoas não fazem nada mais que efetuar a ‘automediação’ do capital, ou seja, fazem com que a mais valia produzida ou o lucro deixe a forma mercadoria e se transforme de novo em forma dinheiro. Por isso a liberdade e a igualdade da circulação não são nada mais que uma engrenagem para o fim da realização do capital.” Folha de São Paulo; suplemento Mais, 16/01/2005 60 Simulacro: ação simulada para exercício ou experiência; cópia ou reprodução imperfeita ou grosseira. Novo Dicionário Aurélio, Aurélio Buarque de Holanda, Nova Fronteira O simulacro, entendido como uma das características da pós-modernidade, teria um papel determinante junto ao mundo do mass media, constituindo a reprodução de uma realidade inexistente. O mito da caverna platônico é um dos melhores exemplos do simulacro

41

poder renderam ótimas manifestações críticas ao sistema capitalista, como a música pop dos anos

1960, conhecida pela sua rebeldia e consciência estética.

O termo niilismo é utilizado muitas vezes no sentido pejorativo, na intenção de criticar

partidários da autogestão ou o fim do sistema representativo de poder, como foi usado contra

Bakunin e outros anarquistas. No caso da obra tropicalista nos soa uma comparação válida se

pensarmos nos eventos de 1968 e a tomada de consciência mais radical dos movimentos juvenis da

época. O niilismo estaria representado por uma geração altamente crítica incapaz de aceitar idéias

unívocas ou filosofias universalistas. A negação pura e simples tinha um espaço maior graças à

repressão violenta e a criação de novos valores éticos e morais. O movimento tropicalista pode ter

dialogado com práticas niilistas de descrença absoluta na ordem social vigente, como é traduzido o

termo niilismo, mas também esteve embebedido da atitude radicalmente refundadora voltada para a

construção de uma nova estética cultural, sem parâmetros com estéticas anteriores.61 A palavra teria

surgido no romance Pais e Filhos de Turgueniev e foi usada correntemente pelos revolucionários

russos, em 1860/70, que buscavam a destruição de tudo e a reconstrução a partir do nihil (nada).

Apesar do caráter referencial e paródico tropicalista, o que poderia parecer contraditório junto ao

pensamento niilista, o desejo de criar uma linguagem desmistificadora, ligada ao inconformismo e

oposição à ordem estabelecida, em muito se assemelhava ao espírito destruidor niilista, à busca de

novos conceitos e parâmetros estéticos.

Com a combativa oposição à “caretice”, o Tropicalismo inseria uma linguagem violenta e

catártica na arte nacional, redundando em uma obra complexa e fragmentária, um quebra-cabeça

voltado para a compreensão da história de nossa cultura nos quadros pintados nas músicas

tropicalistas ou nas sonoridades dos penetráveis de Hélio Oiticica. A sinestesia é um dos sintomas

mais pungentes nas obras da década de 1960, imbuídos da linguagem lisérgica e do uso de drogas

alucinógenas que geravam tal reação. Caetano, que colocava o dadaísmo como uma de suas

principais influências artísticas, era fascinado por seu irracionalismo e escárnio que pretendiam

abolir a cultura e a arte tradicionais, projetando o reencontro com a realidade autêntica. Os

dadaístas, influenciados pelas teses de Sigmund Freud, buscavam as manifestações do

subconsciente como fonte de criação artística. A correlação entre o dadaísmo e o Tropicalismo não

é gratuita pois Caetano Veloso relata que em Tropicália, na estrofe “Viva a banda da-da/ Carmem

Miranda da-da-da-da”62, há clara referência ao movimento e sua mensagem subconsciente ligada

tanto ao próprio dadaísmo, com suas propostas de uma arte autêntica e iconoclasta, como à

cangaceira Dada, companheira de Corisco. Percebe-se que há a proposta de reunir a realidade

61 Dicionário Michaelis/UOL 62 Gilberto Gil e Caetano Veloso criam a música Dada para o disco “Tropicália II” de 1993 onde não faz menção direta e explícita ao dadaísmo

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nacional e seus arcaísmos com movimentos artísticos contrários à racionalidade iluminista. O

Tropicalismo criava uma arte sem fronteiras, que não se limitasse espacialmente, e patrocinava a

tomada de consciência perante a realidade circundante.

“Claro que a frase mais famosa do Rei Roberto, seguida da Banda de Chico e do nome de Carmem Miranda (cuja última sílaba repetida evocava o movimento dada e, para mim, misturava seu nome ao de Dada, a famosa companheira de Corisco, estes dois últimos personagens reais e figuras centrais de Deus e o Diabo na Terra do Sol), dava, de forma elítptica mas imediatamente perceptível por qualquer brasileiro que ouvisse canções (nunca foram poucos), uma reestudada geral na tradição e no significado da música popular brasileira.”63

O pensamento de Nietzsche e Heidegger auxilia a apreensão dos fundamentos que levaram

ao questionamento da modernidade, desde um período anterior a seu apogeu dentro da academia.

Apogeu que se dá no século XX, principalmente após a 2ª Guerra, e seria o foco da revolta

contemporânea contra os parâmetros modernistas e seus dogmas universais, herdados do

iluminismo. Para essa pesquisa é deveras relevante a abordagem de Vattimo sobre a crise da

modernidade e o enfoque no niilismo como uma das formas de compreensão da

contemporaneidade. O niilismo e a virtual descrença nas teleologias é um dos pontos principais do

debate quanto ao esmaecimento das meta-narrativas e a conseqüente descrença nas utopias. O

ceticismo quanto à ordem vigente, a vontade de se iniciar do zero, como era a visão dadaísta e

niilista, é coerente com o desejo da juventude da década de 1960 de uma “rejeição total”64 da

sociedade, expressão do inconformismo visceral da geração. Nietzsche e Heidegger já observavam

a aproximação das manifestações culturais marginalizadas com a cultura de massas, obra que

atualmente é realizada pelo mass media. Uma passagem de Caetano Veloso pode ser a melhor

forma de explicitar o questionamento do ultrapassamento modernista:

“Apesar de (...) Augusto dizer que ‘o antigo que foi novo é tão novo quanto o mais novo novo’, como que a indicar apenas que ele se filia a uma milenar linhagem de vanguardistas, sempre senti que, subjacente ao critério de avanço, está a visão sincrônica. Isto não é nenhuma descoberta: em textos tão claros e tão entusiasmados quanto os que apontam para uma estética do ‘novo’ os concretistas (sobretudo Haroldo) defenderam uma crítica de mirada sincrônica, trans-histórica. O que eu quero dizer é que esse aspecto do aparato teórico deles me atraiu mais e me pareceu mais profundo neles mesmos do que a paixão da novidade. É como se a campanha do novo não fosse senão uma estratégia de manutenção da altura do nível de exigência. As rupturas modernistas podem ser explicadas de diversos ângulos, mas é inegável o caráter de revitalização do acervo amado embutido em muitas atitudes aparentemente destrutivas.”65

Caetano tinha clara consciência quanto ao papel do passado, da tradição como referência

para novas criações e experiências. O modernismo, com sua capacidade revitalizadora das

narrativas tradicionais e suas atitudes mais iconoclastas, seria o pano de fundo na manutenção da

tradição, muitas vezes objetivando sustentar a universalidade discursiva. Há no discurso de Caetano

63 Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg.186 64 Roszak, Theodore; A Contracultura, Petrópolis, Vozes, 1972, pg. 56 65 Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 228

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um questionamento quanto ao papel das vanguardas na legitimação do processo de infindável

progresso e superação modernistas, aludindo, concomitante, à tradição. Caetano, ao discorrer sobre

as atitudes aparentemente destrutivas que, na verdade, refundam a tradição, exemplifica

praticamente seu procedimento criativo, criando um elo entre a inventividade concretista e a

profusão de referências tropicalistas.

Eduardo Subiratis, estudioso da realidade contemporânea e do esmaecimento das

vanguardas, comenta uma afirmação de Roberto Schwarz66 sobre a crise das vanguardas em nosso

tempo e a vinculação de seu radicalismo a um processo cultural de signo regressivo. Este tipo de

pensamento, problematizador do conceito de vanguarda, é usual no que concerne ao movimento

pós-moderno e suas conseqüências. Para Subiratis haveria a conversão de um movimento atrelado à

ruptura, à emancipação e aos mais altos valores sociais utópicos numa tendência integrada às

formas de poder que anteriormente atacava. Existiria uma vinculação das vanguardas com um

“princípio de racionalidade formal, já a partir do cubismo, e uma função racionalizadora da cultura,

patente nas correntes de De Stijl ou de Bahaus, completamente identificados com o

desenvolvimento tecnológico e industrial.”67 Subiratis defende a tese que a “utopia social e cultural

das vanguardas, de signo revolucionário e emancipador, carregava implícitos os momentos de sua

integração a um processo regressivo de colonização tecnológica da vida e racionalização coercitiva

da sociedade e da cultura.”68 Os elementos formais do pós-moderno são uma reiteração dos

componentes estilísticos das vanguardas previamente despojadas de suas dimensões simbólicas e

críticas. A pós-modernidade, dentro desta linha de pensamento, seria a última conseqüência

regressiva acarretada pelo espírito das vanguardas e por falta de espírito de seus epígonos. Ou seja,

as vanguardas atuais seriam simulacros de manifestações inconformistas e questionadoras, que

teriam função esvaziadora de sentido da indignação e da revolta críticas das vanguardas passadas.

Surge, dentro das vanguardas, a tendência valorizadora da ruptura com a história anterior,

ambiciosa pela criação de uma nova era onde predominaria a “...concepção racionalista da história

como triunfo absoluto da razão no tempo e no espaço e, com ela, das idéias de justiça social e de

paz; e, por último, a fé em um progresso indefinido fundado no desenvolvimento cumulativo e

linear da indústria, da tecnologia e dos conhecimentos científicos.”69 Atualmente, ao contrário dos

pioneiros da vanguarda que fundiam o progresso industrial e a ordem racional da cultura com a

66 “Sabe-se que progresso científico e conteúdo social reacionário podem andar juntos. Esta combinação, que é uma das marcas do nosso tempo, em economia, ciência e arte, torna ambígua a noção de progresso. Também a noção próxima, de vanguarda presta-se à confusão. O vanguardismo está na ponta de qual corrida?” “Nota sobre vanguarda e conformismo” (1967); In. O Pai de Família..; Rio de Janeiro, 1978, pg. 43 67 Subiratis, Eduardo; Da vanguarda ao pós-moderno; tradução Luís Carlos Daher, Adélia Bezerra de Menezes e Beatriz Canabrava; 4 ed. São Paulo, Nobel, 1991, pg. 1 e 2 68 Subiratis, E.; Op. Cit.; pg. 2 69 Subiratis, E.; Op. Cit.; pg. 12 e 13

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liberdade individual e a paz social, relaciona-se como conseqüência do avanço industrial a angústia,

a insegurança e o sentimento opressor de vigilância. Para Subiratis havia a aproximação da

concepção de civilização imperialista desenvolvida por Spengler, Antonin Artaud e Paul Gauguin

que associavam “sua expansão (da civilização imperialista) destrutiva junto a seu esvaziamento

vital, com sua racionalização, sua separação da história e seu progresso tecnológico.”70 Através de

visão parecida, os tropicalistas buscavam compreender e criticar a sociedade industrial moderna, a

revolução tecnológica e todo seu aparato ideológico. Músicas como Nova Era, Cibernética,

Futurível e Acrílico, dentre outras, faziam críticas mordazes contra a racionalização e a

mecanização propalada pela modernidade.

“Um astronauta risonho/ como um boneco falante/ numa pequena vitrine/ de plástico transparente/ uma pequena vitrine/ a escotilha da cabine

Mundo do lado de fora/ a ilha/ a Terra distante/ pequena esfera rolante/ a Terra bola azulada/ numa vitrine gigante

O cosmonauta, a vitrine/ no cosmos de tudo e nada/ de éter de eternidade/ de qualquer forma vitrine/ tudo que seja ou que esteja/ dentro e fora da cabine/ éter-cosmo-nave-nauta/ acoplados no infinito/ uma vitrine gigante/ plataforma de vitrines”

71

O progresso e as inovações tecnológicas eram questionados ao estarem coadunados com

práticas imperialistas e ao racionalismo burguês iluminista. Em Vitrines Gil demonstra a sua

impressão sobre a corrida espacial em paralelo à mercantilização da cultura e dos meios de

comunicação. Gil escreveu a música no período que esteve na Espanha fazendo o show da Rhodia

“Momento 68” e, atualmente, se surpreende com a lucidez ao abordar tais temas:

“É engraçado hoje em dia eu me debruçar sobre essas coisas que eu não imaginava que pudessem ter o valor que a gente resgata agora, e que pra mim eram somente impulsos, assomos, e ver que de fato eram manifestações de alma poética, poesia já, reveladoras de um espírito de época, e das quais tudo o que eu vim a fazer depois parece carbono, cópia melhorada, desdobramento.”72

Assim Gilberto Gil exibe a essência do projeto tropicalista que seria balizado pelas

influências infantis do folclore nordestino junto à compreensão da dinâmica global e seus

desdobramentos. Processo produtivo que é repetido até hoje por seus elementos e justifica a

abordagem de suas carreiras de forma abrangente, não se restringindo ao período tropicalista.

70 Subiratis, E.; Op. Cit.; pg. 13 71 Vitrines, Gilberto Gil, 1969 72 Rennó, Carlos (org.) Gilberto Gil: Todas as Letras; São Paulo, Companhia das Letras; 1996, pg. 104

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Prenúncios do pós-moderno na explosão estudantil da década de 1960

A juventude de 1960 questionava o processo modernizador desmedido e formou os

primeiros movimentos ecológicos com preocupações preservacionistas e reivindicatórias de uma

nova apreensão do processo modernizador. Neste momento na China a revolução cultural revia os

conceitos de hierarquia e privilégios sociais, influenciando marcantemente os movimentos sociais

em todo mundo. É elucidativo deparar-se com visão de Edgar Morin quanto aos acontecimentos do

maio de 1968 parisiense. No julgamento de Morin, os estudantes de Paris agiam em consonância

com outros movimentos estudantis que questionavam o progresso da sociedade capitalista:

“Não se deve idealizar 68 nem o responsabilizar pelo que está fora do seu alcance. Maio foi o revelador de uma crise de civilização. A opinião sociológica dominante na época pensava que a sociedade industrial, na qual vivíamos, progredia com base em alicerces sólidos; achava-se que era a menos pior das sociedades. Maio revelou que o subsolo da sociedade estava minado. A juventude, elo mais frágil da sociedade, quando já não se é mais criança, mas ainda não se tem um lugar na vida adulta, sentiu o mal-estar no tempo.

Maio foi também o coroamento da autonomia jovem começada nos anos 50. Houve o encontro das aspirações de liberdade, de poesia e de comunidade com a mensagem revolucionária de grupos anarquistas, trotskistas, maoístas.”73

O leitor deve estar se inquirindo: onde o movimento pós-moderno encontra o Tropicalismo?

Por quê estes questionamentos quanto ao papel da história, das utopias e convicções universais

devem ser estudados para que possamos ter uma nova visão do fenômeno tropicalista? A tarefa

desta pesquisa consiste na observação da música tropicalista em um contexto de variadas

modificações e questionamentos vividos pelo mundo na década de 60, entendida como um período

de adaptação ao acelerado processo de modernização tecnológica e imposição de novos valores.

Década marcada pela consolidação da indústria da mídia e seus tentáculos por todo o mundo,

culminando com a penetração da cultura por todas as esferas da vida contemporânea.

O pós-modernismo irrompeu como a concretização de uma sociedade marcada pela

culturalização da mercadoria, como exposto por Jameson, ou pela imagem que transpõe o sentido

do real dentro de uma hipervisualização e do simulacro, seguindo Jean Baudrillard e Guy Debórd.

Levando-se em conta tal visão fatalista, o pós-modernismo estaria vinculado ao capital e ao

empresariado ávido pela liberdade de mercado para capitalizar mais riquezas e poder nas mãos do

sistema capitalista corporativo. Os monopólios e trustes atuais, quando a concentração da riqueza e

de poder se faz presente com toda a sua robustez, são a melhor imagem da pós-modernidade

criticada por estes autores.

73 Silva, Juremir Machado da; entrevistando Edgar Morin; “O elo mais frágil”; Folha de São Paulo, suplemento “Mais”, 10/05/1998

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Paralelamente ao virtual pessimismo das críticas habituais ao pós-modernismo, brotam

manifestações que clamam pela descentralização do pensamento ocidental e trazem bons agouros

para os países que não fazem parte do eixo do desenvolvimento europeu e norte-americano. Por

conseguinte, há o aparecimento e divulgação de cenas culturais marginalizadas pelo etnocentrismo,

abrindo caminho para o surgimento do reggae jamaicano, já nos fins da década de 60, da música

indiana e para sonoridades vindas de recantos mais inóspitos como a música africana e, até mesmo,

o Tropicalismo, que foi ouvido pelos Rolling Stones na vinda ao Brasil em 1968. 74 Estas culturas

marginalizadas vêem o interesse da mídia crescer enormemente. O motivo é flagrante na

valorização da diversidade e negação da centralidade cultural, advindo um processo de rápida

adaptação da indústria aos novos mercados consumidores e à difusão desses produtos alternativos

(no caso da música e da cultura também chamados de étnicos).

O termo pós-modernismo e sua história

Em 1916, antes de ser um termo corrente nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, o espanhol

Ortega y Gasset assinava um ensaio Nada moderno y muy siglo XX, no qual sustentava que a

Idade Moderna fizesse parte do passado, pois teria se iniciado com a descoberta da América e

terminaria em 1900. Portanto, o século XX já seria uma nova era, ainda não denominada. Ortega y

Gasset estudou o poder destrutivo do consenso popular que poderia levar a uma virtual

mediocrização cultural encorajando a formação de Estados totalitários.

No mundo hispânico, o termo “post-modernismo” tem o primeiro registro na década de 30.

Frederico de Onís empregou-o para tratar de um refluxo do modernismo, “a busca de um refúgio

contra o seu formidável desafio lírico num perfeccionismo do detalhe e do humor irônico, em

surdina, cuja principal característica foi a nova expressão autêntica que concedeu às mulheres.”75

Por outro lado, haveria um “ultramodernismo” que provocou o radicalismo modernista, um inédito

impulso similar ao das vanguardas que criavam uma “poesia rigorosamente contemporânea” de

alcance universal.76 Os principais representantes destas vanguardas - Jorge Luís Borges, Pablo

74 Engraçado notar que os Rolling Stones foram a cultos afro-brasileiros e levaram fitas dos Mutantes para a Inglaterra, quando aqui estiveram na década de 1960. Exigiram que Rita Lee abrisse seu primeiro show no Brasil, mas erroneamente intitulam a música Sympathy for the Devil como um samba 75 Anderson, Perry; As origens do pós-modernismo, tradução de Marcus Penchel, Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 1999, pg. 10 76 Frederico de Onís, Antologia de la poesia española e hispanoamericana (1882-1932), Madri, 1934, p. xiii, xxiv É interessante perceber que este “ultramodernismo” vem a reboque de uma tradição vanguardista espanhola que remonta ao ultraísmo, que se baseava na “...refundição das vanguardas de todo o mundo, a supressão da rima e da pontuação, o valor visual-tipográfico do poema, o culto da imagem indireta e dupla, à maneira cubista, a permuta de sensações na metáfora – e, generalizante, a reação contra o século XIX, contra o sentimentalismo e contra o tragicismo (culto do humor)”.Frontín, José Luis Giménez; Movimentos Literários de Vanguarda, Rio de Janeiro, Biblioteca Salvat, 1979, pg. 123 Com as homenagens a Góngora, há o nascimento da chamada “geração de 27”, que retomavam as vanguardas literárias, trazendo a influência surrealista e a expressão em prosa. O ultraísmo é assim intitulado após a criação do manifesto “Ultra” ,em 1918, por Rafael Cansinos-Assens. Extraído de Anderson, Perry; As Origens da Pós-modernidade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999

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Neruda, Frederico Garcia Llorca e César Vallejo - teriam suas obras publicadas numa antologia de

poetas de língua espanhola em 1934.

No Brasil, Bezerra de Freitas escreve Forma e expressão no romance brasileiro - Do

período colonial à época postmodernista, publicado em 1947, onde localiza a gênese do

modernismo brasileiro na Semana de Arte Moderna de 1922, caracterizada pelo futurismo e a

ruptura operada por Mário de Andrade. O pós-modernismo seria inaugurado com uma reação

indigenista nos anos 30.

Bem mais tarde, em 1973, Gilberto Freyre, um dos primeiros a usar o termo Tropicalismo77,

utiliza a expressão pós-moderno para designar uma realidade nacional e global, no livro Além do

apenas moderno:

“Este livro reúne um grupo de ensaios em que são abordados uns tantos aspectos de possíveis futuros humanos, em geral, brasileiros em particular. Aspectos os mais diversos. Todos tendo, porém, a ligá-los entre si o serem principalmente pós-modernos, ora em continuação a tendências apenas modernas, ora em oposição a essas tendências. E quase sempre contendo, além de sobrevivências, constantes. Por vezes, atualizando arcaísmos.”78

A citação de Gilberto Freyre é elucidativa quanto ao conceito de pós-modernidade no Brasil,

num período pouco posterior à eclosão do movimento tropicalista. Há a ambivalência em se

trabalhar sob o ponto de vista moderno, junto ao arcaísmo marcante da realidade brasileira. Sob

outro ângulo, há o pós-modernismo que se assemelha, em alguns aspectos, ao modernismo ou nega-

o veementemente, exibindo sua atávica contradição. Contradição usada repetitivamente pelos

tropicalistas dentro de sua proposta de criação ambivalente, com destaque ao processo de

modernização e às reminiscências do arcaísmo. Gilberto Freyre defendia a imagem do Brasil como

um paraíso para todas as raças, local onde a miscigenação gerou uma cultura única da tolerância e

do sincretismo. Os tropicalistas vão utilizar a idéia de uma cultura originalmente miscigenada com

a prática da antropofagia oswaldiana79, onde se deglutia as informações provenientes do exterior e

as digeria na criação de uma linguagem única e paradigmática. A aproximação entre Tropicalismo e

antropofagia é justificável pois os tropicalistas utilizaram os elementos antropofágicos como: a

busca de um primitivismo telúrico, próximo ao herói Macunaíma; a aposta na união de influências

77 Gilberto Freyre, buscava ressaltar a vocação brasileira para o estético e exuberante, características da influência dos trópicos sobre o homem e a sociedade como o próprio Caetano Veloso exibe em seu livro Verdade Tropical; “Tropicalismo, me soava conhecida e gasta, já a tinha ouvido significando algo diferente, talvez ligado ao sociólogo Gilberto Freyre (o que mais tarde se comprovou), de todo modo algo que parecia excluir alguns dos elementos que mais nos interessava ressaltar, sobretudo aqueles internacionalizantes, antinacionalistas, de identificação com toda a cultura urbana do Ocidente.”( Veloso, Caetano; Verdade Tropical; São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 192) ; sem deixar de citar o Tropicalismo visto nas artes plásticas que também era conhecido como neo-concretismo, com Hélio Oiticica; também havia o teatro de José Celso Martinez Corrêa com seu “Rei da Vela”, “Roda Viva”, dentre outras, que se inseriam nessa linguagem Tropicalista, ou até mesmo a obra de Glauber Rocha, com destaque para Terra em Transe, mesmo sem o reconhecimento de Glauber quanto a existência da estética Tropicalista em sua obra. Sob outro ponto de vista o Tropicalismo, ou Tropicalista, seria a pessoa que “trata de assuntos concernentes às regiões tropicais; médico que se ocupa especialmente de doenças peculiares dessas regiões”. In. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, Francisco Fernandes, Celso Pedro Luft, F. Marques Guimarães. 30a edição, São Paulo, Globo, 1993 78 Freyre, Gilberto; Além do apenas moderno 79 Prática de caráter marcadamente modernista.

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diversas na formação de uma estética original e a observação de outras manifestações culturais:

“Segundo uma visão pau-brasil, com ‘olhos livres’, primitivos (na verdade civilizadíssimos)

apropriaram-se de materiais e formas de cultura, inventariados no tratamento artístico em que se

associam uma matriz dadaísta e uma prática construtivista.”80 Porém, o Tropicalismo diferia da

antropofagia oswaldiana devido a seu processo criativo e contexto histórico. Os tropicalistas

operavam a deslegitimização de estéticas predecessoras sendo que Celso Favaretto sublinha o

distanciamento da antropofagia modernista do Tropicalismo. Favaretto apresentava a diferenciação

histórica entre os dois movimentos artísticos, frisando que a antropofagia buscava fundir a

originalidade nativa e a técnica, na assimilação da cultura nativa, da cultura internacional e da

tecnologia. De outra maneira, o Tropicalismo tratava das antíteses arquetípicas do Brasil, das

vicissitudes nacionais expondo o arcaico e o moderno, realçando as “indeterminações históricas, os

recalques sociais e o sincretismo cultural, montando uma cena fantasmagórica toda feita de

cacos.”81

O Tropicalismo não mais se atinha ao papel original da cultura nativa e na reação ao modelo

cultural imposto pelos europeus, como era hábito entre os modernistas, mas buscava participar dos

debates relativos ao papel da indústria cultural que opunham a busca de influência em outras

culturas à manutenção de uma música brasileira livre do contágio de outras formas comerciais.

Exibida de forma fragmentária, amalgamando variadas linguagens numa colagem que sobrepunha

Catulo da Paixão Cearense (“o luar do sertão”) e José de Alencar (Iracema) a Louis Malle (Viva

Maria) e Brasília (“monumento no planalto central do Brasil”82, “Brasília, sem ser nomeada, seria o

centro da canção monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso

ridículo.”83).

O Tropicalismo apropria-se de outras expressões artísticas, investindo na intertextualidade84

e sobreposição de sonoridades e letras. A fragmentação é uma das armas da composição tropicalista

justapondo palavras, sons e ritmos. A justaposição de sons e sílabas é patente em Irene (ir, rir,

Irene), não se restringe a sílabas e alcança as palavras com uma “técnica de fragmentação do texto

(que) tem um efeito de simultaneidade cubista para aprender as diversas faces de uma imagem: ‘o

sol se reparte em crimes/ espaçonaves guerrilhas/ em cardinales bonitas/ eu vou’ ”85, unidas à

80 Favaretto, Celso; “Tropicalismo e Antropofagia”; In. Tropicália: alegoria, alegria; 2a edição, São Paulo, Ateliê Editorial, 1996; pg. 48

81 Favaretto, Celso; Ibidem; Op. Cit.; pg. 52

82 Letra de Tropicália 83 Veloso, Caetano; Verdade Tropical; São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 185 84 Intertextualidade compreendida como a inserção de expressões e narrativas variadas na tessitura de uma estética heterogênea, onde há a explicitação da construção do discurso. Como Umberto Eco, ao comentar seu livro O Nome da Rosa: “(...) os livros sempre falam sobre outros livros, e toda estória conta uma estória que já foi contada.” Eco, Umberto; Postscript to The Name of the Rose; 1983/1984; extraído de Linda Hutcheon; Poética do pós-modernismo; Rio de Janeiro, Imago, 1991, pg. 167 85 Sant’anna; Affonso Romano de; Música popular e moderna poesia brasileira; Petrópolis, Vozes, 1977, pg.107-108

49

justaposição de estrofes, ritmos e canções heterogêneas, quando há a utilização da intertextualidade

e da reunião de variadas estéticas poético-musicais nas canções tropicalistas. As referências partem

do iê-iê-iê e do folclore nacional, indo até a música serial ou indiana, exibindo uma percepção

estética cada vez mais voltada para a compreensão contextual dos acontecimentos mundiais. Uma

arte que pressupõe a interação entre os diversos âmbitos culturais no afã de construir uma

linguagem moldada pela juventude global.86

Jean Baudrillard e a economia política do signo

Jean Baudrillard analisa o domínio da televisão atualmente com a imposição de novas

estéticas e a conseqüente renovação mental e ética preconizada pela simulação e massificação

cultural: “...todas estas teorias são impensáveis sem o impacto da televisão como um aparato de

simulação que integra os fluxos de significação e informação com os de mercadorias, e que faz

escoar o real para fora da ordem das mercadorias e dos acontecimentos, reduzindo-os a várias

imagens que se referem apenas a outras imagens.”87

O signo adquire o papel primordial nesta sociedade com o que Baudrillard chama de

economia política do signo, onde a esfera de significação é idêntica à esfera da troca, ou seja, os

objetos já não são mais valorizados de acordo com sua utilidade ou seu poder de encantamento.

Atualmente, o valor do objeto é determinado pela sua significação dentro de uma cadeia de

referentes que dependem cada vez mais do consenso de variados elementos como: os meios de

comunicação, os anseios de determinada classe social e o uso de técnicas rebuscadas ou inovadoras

em sua criação. O capitalismo contemporâneo simularia o real num lugar onde a “realidade” não

existiria.

Huyssen, observando suas implicações políticas e sociais, afirma que a teoria sobre mídia de

Baudrillard não passava de uma teoria sobre a percepção de imagens. Baudrillard exibe um mundo

simulacional baseado na “suposição de que o desenvolvimento da produção de mercadorias, aliado

à tecnologia da informação, levou ao ‘triunfo da cultura da representação’ que inverte a direção do

determinismo, de modo que as relações sociais ficam saturadas de signos culturais em mutação, a

ponto de não mais podermos falar em classes sociais ou normatividade e nos depararmos com o

86 “Uma dimensão gigantesca desse legado foi esquecida, que foi precisamente a dimensão cultural. De um lado, a ambição de fundir as artes. De outro, uma visão abrangente da natureza(...)” Paglia, Camille; entrevista para Folha de São Paulo, “Mais”, 10/09/2005 Texto onde Paglia critica o esquecimento de determinados pressupostos da cultura sescentista como a interculturalidade e a relação harmoniosa com a natureza 87 Huyssen, Andreas; Memórias do modernismo, tradução Patrícia Farias, Rio de Janeiro, ed. UFRJ, 1997, pg. 83

50

‘fim do social’.”88 Featherstone mostra que Baudrillard usava uma abordagem determinista ao

defender a simulação como manifestação onipresente na esfera cultural, social e econômica

contemporâneas, o que seria contraditório na abordagem da realidade heterogênea, ambivalente e

paradoxal. Baudrillard imaginava uma consciência moldada pelo mass media e seu poder

simulacional, o que poderíamos ver como uma visão universalista e modernista do fenômeno pós-

moderno o que seria a antítese da pluralidade propagandeada pelos teóricos pós-modernos. Ao

observar a sociedade contemporânea, Baudrillard tinha maior atenção aos fenômenos ocorridos na

indústria cultural e na massificação normatizadora propagada por ela, semelhante aos estudos de

Jameson que também tratava a cultura como a principal esfera social e econômica contemporânea.

Há outra linha de abordagem dos acontecimentos pós-modernos que fazem referência ao

pluralismo, ao enriquecimento cultural e à crise da universalidade iluminista. A derrocada do

etnocentrismo civilizatório iluminista e a primazia da compreensão de novas identidades

permitiram o fomento de expressões marginalizadas que adquiriram espaço nos canais de

comunicação para seus discursos, considerado por alguns como o descentramento do discurso. A

construção das letras tropicalistas, de cunho auto-referencial, tinham semelhança na linguagem não-

ficcional difundida pelo New Journalism norte-americano, que clamava por uma literatura feita de

impressões, geralmente reais, do autor usando linguagem coloquial que transportava o leitor para o

mundo do autor/jornalista.89

Alguns imaginam que o pós-modernismo seria apenas mais uma permanência modernista;

outros o vêem como uma ruptura, um movimento que não mais apostaria no eterno

desenvolvimento e evolução modernista. Este problema está colocado no centro das discussões

quanto à real postura contemporânea, apesar de poucos se debruçarem com afinco capaz de elucidar

questões cruciais decorridas do debate: a representação do pós-moderno simbolizaria uma ruptura

ou a conservação das práticas modernistas? Sempre influente, com o peso da tradição e

estratificação acadêmicas, os conceitos modernistas continuam largamente utilizados atualmente,

porém a concepção mais cara ao modernismo, a racionalidade iluminista e a noção universalizante,

são questionadas com a invocação do multiculturalismo e do relativismo cultural e científico.

As formas e práticas pós-modernas são, muitas vezes, de difícil percepção entre os teóricos

contemporâneos, até mesmo porque, como Steve Connor nos chama a atenção:

88 Featherstone, Mike; Cultura de Consumo e Pós-modernismo, Livraria Nobel, São Paulo, 1995 89 Tom Wolfe, Truman Capote e Jimmy Breslin tem maior destaque no New Journalism. Também há o desenvolvimento do chamado jornalismo gonzo, onde o autor deve necessariamente passar pelas experiências dos entrevistados, para poder compreender de forma mais abrangente o foco de seu trabalho. Com características semelhantes a literatura beatnik irrompia com sua coloquialidade e aversão à ordem estabelecida

51

“Na cultura popular, como em outros campos, a condição pós-moderna não é um conjunto de sintomas simplesmente presentes num corpo de evidência sociológica e textual, mas um complexo efeito do relacionamento entre prática social e teoria que organiza, interpreta e legitima suas manifestações.”90

Connor chama a atenção para o peso que a influência contextual possui sobre a criação

cultural. Com o prestígio da cultura áudio-visual houve uma modificação na percepção estética e

variados elementos passaram a consistir ricas fontes para a criação cultural. Neste momento a

cultura se transformou num dos principais meios de veiculação e consolidação de uma nova

sociedade, agora baseada na imagem e no consumo, que, por um lado, propagam o capitalismo e,

por outro, exibem novas linguagens que possibilitam o enriquecimento e a pluralidade cultural.

Connor frisa a heterogeneidade do pós-moderno com suas variadas e contraditórias manifestações,

não consistindo, desta forma, num movimento teoricamente estruturado.

No Brasil, há atualmente uma crítica aos chamados fenômenos pós-modernos,

principalmente devido a seu caráter neo-liberal e a anunciação do fim das utopias. Nicolau

Sevcenko se refere ao que Ernest Mandel intitula o terceiro estágio do capitalismo, como o terceiro

estágio da montanha russa:

"...a síncope final e definitiva, o climax da aceleração precipitada, sob cuja intensidade extrema relaxamos nosso impulso de reagir, entregando os pontos entorpecidos, aceitando resignadamente ser conduzidos até o fim pelo maquinismo titânico. Essa etapa representaria o atual período, assinalado por um novo surto dramático de transformações, a Revolução da Microeletrônica"91

Sevcenko pinta um futuro sombrio com a alienação do indivíduo e a total imprevisibilidade

de se entender o mundo contemporâneo. É interessante comparar essa perspectiva com o

pensamento de Hayden White, voltado à valorização do descentramento e da pluralização cultural

nas narrativas contemporâneas. White reflete sobre a criação de novos paradigmas, que a vida "será

mais bem vivida se não tiver um sentido único, mas muitos sentidos diferentes.” Nós “(...)

precisamos de uma história que nos eduque para a descontinuidade de um modo como nunca se fez

antes; pois a descontinuidade, a ruptura e o caos são o nosso destino." 92 A história não mais é

escrita por historiadores, mas por todos que, por algum motivo, tenham público para consumi-la. A

interdisciplinariedade e a relativização da história tradicional nos trazem uma narrativa mais solta,

muitas vezes romanceada e apta à absorção de um público mais amplo.

Há a standarização de algumas esferas da vida contemporânea, no mundo industrial e muitas

vezes junto aos canais de comunicação. Na cultura, na criação de produtos e no debate ideológico

90 Connor, Steve; Cultura pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo; Ed. Loyola, São Paulo, pg. 149 91 Sevcenko, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pg.16 92 White, Hayden. “The burden of History”, History and Theory. 1966; extraído da internet Marcos Antunes de Lima “Pós-modernidade e teoria da história.”

52

vive-se uma grande produção transmitindo a sensação de multiplicidade cultural e ideológica. Há a

valorização de pensamentos minoritários e a eclosão de movimentos reivindicatórios de indígenas,

GLS, curdos, albaneses, enfim, o reconhecimento da alteridade e a relativização do etnocentrismo.

Toda narrativa adquire valor dentro da tessitura da história, que se acomoda junto ao seu nicho

cultural. Há a multiplicação de temas ligados à história, abarcando desde a história de gênero até a

história material no sentido mais restrito, como a história da moda, do vinho dentre outras. Essa

virtual dispersão temática não deve ser mal vista, pois, apesar da profusão de estímulos que

vivenciamos e da inconstância do conhecimento filosófico e científico atual (“Tudo que é sólido se

desmancha no ar” como dizia Karl Marx), há espaço para a divulgação e estudo de temas pouco

caros à historiografia tradicional. Cresce a intertextualização e o historicismo93 na narrativa

ficcional com o sentimento que a história é uma construção narrativa que interage com a história

real, edificando em nosso imaginário uma história balizada, muitas vezes, em ficções. Haja visto

muitos possuírem uma percepção da Revolução Francesa ou de outros eventos históricos

estabelecida pela indústria cultural: televisão, cinema, edições ou seminários. O

espectador/consumidor atualmente tende a basear sua visão de mundo num sistema que privilegia

os sentidos auditivos e visuais, herança trazida da década de 1960 e das inovações no mundo da

comunicação ocorridas no período.

O Tropicalismo insere a poesia de sua música, com cunho claramente fragmentário e

multicultural, numa linguagem pós-moderna. Com letras inspiradas em histórias em quadrinhos e

nos meios de comunicação, o movimento reúne a defesa do kitsch na sua cenografia e costumes, da

Jovem Guarda e de uma revolução estética nos cânones modernistas nacionais e internacionais. A

busca do questionamento do establishment, praticado pela juventude de todo o mundo, é fincada

como bandeira primordial dos tropicalistas, que também questionavam a esquerda revolucionária

nacional e o policiamento ideológico. O relato de Gilberto Gil é esclarecedor: “Música pop é a

música que consegue se comunicar de maneira tão simples como um cartaz de rua, um outdoor, um

sinal de trânsito, uma história em quadrinhos.”94 A música representaria um meio de grande

facilidade de propagação de suas mensagens, introdutora de elementos provenientes de outros

meios de comunicação em sua criação, influenciando e sendo influenciada pela indústria cultural.

93 Fredric Jameson discute a questão do novo historicismo arquitetônico: “(...) os produtores culturais não podem mais se voltar para lugar nenhum a não ser o passado: a imitação de estilos mortos, a fala através de todas as máscaras estocadas no museu imaginário de uma cultura que agora se tornou global Evidentemente, essa situação determina o que os historiadores da arquitetura chamaram de ‘historicismo’, a saber, a canibalização aleatória de todos os estilos do passado, o jogo aleatório de alusões estilísticas, e, de modo geral, aquilo que Henri Lefebvre chamou de primazia crescente do ‘neo’.” Jameson, F.; Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio; São Paulo, Ática, 1996, pg. 45 Jameson se referia principalmente ao pastiche, quando divaga sobre o historicismo, mas demonstra que atualmente há o hábito em utilizar estilos pretéritos na confecção de idéias, algumas originais e outras nem tanto 94 Gilberto Gil, fascículo quinzenal “História da música popular brasileira”, Ed. Abril, São Paulo, 1971, pg. 10

53

CAPÍTULO 2

A discussão sobre o conceito de progresso no Tropicalismo

Gilberto Gil, um artista questionador que trabalha numa linguagem auto-referencial e

abrangente, possui uma visão única da música nacional e mundial e tem um papel determinante na

“evolução” da música brasileira. Investindo em temas contemporâneos, Gil profere interrogações

que são correntes, de uma forma geral, em toda sociedade. As músicas Cibernética, Era Nova e O

Fim da História exibem com maestria sua visão crítica do desenvolvimento tecnológico, a

contestação do sentido de ultrapassamento infinito inerente ao desenvolvimento calcado nos

padrões modernos. Gil dialoga com a tradição cultural primitiva brasileira e produz uma música

antenada aos acontecimentos coetâneos. Em Era Nova, Gilberto Gil critica a superação inerente ao

modernismo e à sua ideologia histórica (o iluminismo racionalista), também analisada por

Nietzsche.95 Gil canta:

“Falam tanto numa nova era/ Quase esquecem do eterno é/ Só você poder me ouvir agora/ Já significa que dá pé/ Novo tempo sempre se inaugura/ A cada instante que você viver/ O que foi já era, e não há era/ Por mais nova que possa trazer de volta”

Para Gil, a música Era Nova trataria da imperceptibilidade da passagem do tempo, “da

ambigüidade eternamente presente em nós de termos em relação ao tempo uma percepção e uma

não-percepção: a de que ele passa quando pensamos e a de que ele não passa quando não pensamos

– isto é: sem que você possa perceber”96 Preocupado com a percepção do novo e do tempo passado,

Gil se volta para compreender o futuro e as modificações que irão suceder. Em Futurível, de forma

irônica e otimista, Gil antevia que o futuro seria norteado pelas novas tecnologias, “o novo estágio

de humanóide se inicia” e que nosso “corpo será mais brilhante/ a mente mais inteligente/ tudo em

superdimensão/ o mutante é mais feliz/ feliz porque/ na nova mutação/ a felicidade é feita de

metal”. Gil reagia ao tema das atribuições da tecnologia no mundo contemporâneo e nossa iminente

dependência dessas inovações. Em Cibernética haveria a correlação entre o desenvolvimento

tecnológico e a libertação do homem. Muito influenciado pelo psicodelismo, que propunha uma

conscientização do indivíduo através do auto-conhecimento, do uso de drogas e da implantação de

um novo sistema econômico, escrevia Gil em Cibernética:

95 Ver página. 18 deste capítulo 96 Rennó, Carlos (org.); Gilberto Gil, Todas as Letras, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pg. 190

54

“Mas será quando a ciência/ Estiver livre no poder/ A consciência, livre do saber/ E a paciência, morta de esperar/ Aí então tudo todo o tempo/ Será dedicado a Deus/ E a César dar adeus às armas caberá/ Que a luta pela acumulação de bens materiais/ Já não será preciso continuar”

Dialogando com o cristianismo primitivo e o comunitarismo inato, com o avanço da ciência

e seu poder de equalizar os problemas materiais Gil propala o que poderíamos chamar do sonho

modernista, a solução universal da desigualdade social e dos eternos enigmas estudados pela

ciência. Numa letra escrita em tom crítico quanto ao progresso científico, observa-se uma

preocupação do autor, correlata a seus contemporâneos quanto ao caminho que a racionalidade

iluminista deveria seguir. Questionava os reais anseios dos cientistas: estudar para dominar a

natureza e seus mistérios e que o conhecimento seja democratizado ou para transformá-lo em mais

um símbolo de poder e consumo? Questões que permeavam as cabeças pensantes da época, que

acreditavam que a ciência e a tecnologia seriam os fatores mais marcantes do século XX.

Em Cibernética há a discussão quanto à temporalidade, semelhante a Jeca Total que

também se concentrava nas questões da modernização simultânea ao arcaísmo e à discussão sobre a

temporalidade tão presente nas obras tropicalistas. Em Jeca Total Gilberto Gil discutia: “(...) as

interseções entre os mundos rural e urbano e no encantamento evolutivo dos vários Brasis no

sentido campo-cidade...”97, remontando aos temas do período tropicalista. Dentro da discussão

sobre a temporalidade, o Jeca Tatu, com as “mudanças técnicas e sócio-culturais recentes no país”98

(a composição é de 1975), transfiguraria-se no Jeca Total, dentro de “um tempo perdido/

interessante a maneira do tempo/ ter perdição/ quer dizer, se perder no correr/ decorrer da história/

Glória, decadência, memória/ Era de Aquarius/ ou mera ilusão.” Retomava-se o movimento da

história como tema, dialético ou sobrenatural, seguindo parâmetros característicos do imaginário

das décadas de 1960/70.

Superbacana, Eles de Caetano Veloso e Parque Industrial de Tom Zé são ótimas

amostras de um conceito de futuro, por vezes positivo, como Superbacana, ou críticos quanto à

modernização e industrialização nacional, no caso de Parque Industrial e Eles onde Caetano

explicita a aversão à sociedade capitalista e suas imposições. Em Superbacana, Caetano se referia

ao processo modernizador, desde o desenvolvimento tecnológico e social até a invasão de histórias

estrangeiras em nossa mitologia, principalmente através da linguagem das histórias em quadrinhos

imbuídas de caráter fantasioso e hiperbólico. Caetano busca transmitir com clareza, através da

sensibilidade poética, as mudanças tecnológicas com a utilização do superlativo. O realce do

prefixo super, no sentido de demonstrar uma linguagem contemporânea era um recurso utilizado em

demasia pelos tropicalistas. Na canção Superbacana o autor se consagra como o super bacana e

97 Rennó, Carlos (org.) Gilberto Gil: Todas as Letras; São Paulo, Companhia das Letras; 1996, pg.171 98 Ibidem

55

canta a música conclamando à fragmentação e ao multiculturalismo quando: “O mundo explode

longe muito longe/ O sol responde e o tempo esconde/ E o vento espalha e as migalhas caem sobre

Copacabana”.

Numa ode ao universalismo, a explosão longínqua vem a ter suas migalhas encontradas em

Copacabana, bairro que serve não só como rima para Superbacana mas também como referência da

cidade e do cosmopolitismo brasileiro. Citar Copacabana, bairro símbolo da modernidade nacional

com seu cosmopolitismo e provincianismo, simbolizava um pretexto para exibir a contradição

visceral da modernização nacional, de uma nova imagem nacional com a urbanização concomitante

ao arcaísmo interiorano. “Me engana esconde o superamendoim/ E o espinafre biotônico/ No

comando do avião supersônico/ Do parque eletrônico e do poder atômico/ Do avanço econômico”,

Caetano exibe os símbolos do avanço tecnológico e de criação de uma sociedade baseada em novos

paradigmas com suas novas percepções e práticas sociais. Caetano dizia que a canção consistia

numa lista de nomes de produtos industriais, “(...) uma arenga a um tempo amarga e divertida por

vivermos num país periférico...”99; uma música que seria uma “sátira-colagem do folclore

urbano”100, exibindo, através de jogos amagramáticos (“Superbacana” e “Copacabana”) e cadeias

de rimas e assonâncias, a vida citadina e as inovações trazidas pelo progresso e modernização

global.

A linguagem coloquial utilizada na canção Alegria, Alegria, (lema utilizado por Wilson

Simonal e usurpado por Chacrinha, uma das personalidades tropicalistas, em seu programa de TV)

simbolizou a coesão da música com o contexto vivido pelo letrista, numa composição estilo

“manchetes em bancas de revistas”, a melhor síntese da profusão de notícias observadas na década

de 1960 com a massificação da televisão através da multiplicação de estações repetidoras e do

lançamento de satélites de transmissão. A adequação à linguagem cotidiana possibilitava aos

tropicalistas uma maior penetração no mercado fonográfico, porém a construção da estética

tropicalista e a referência a movimentos amaldiçoados pelo público politizado traziam embaraço e

problemas de aceitação. A linguagem rebuscada e intelectualizada os afastava do grande público,

enquanto o uso de instrumentos eletrônicos, o experimentalismo e a defesa da Jovem Guarda

incompatibilizava a relação dos tropicalistas com os setores da música de protesto. O principal

motivo da repulsa parecia ser a inserção de sonoridades iê-iê-iê similares ao que seria, na visão dos

tradicionalistas, o pior tipo de submúsica, voltada para o consumo fácil, que utilizava as artimanhas

da indústria fonográfica para ser a campeã de vendagem. Situação que trazia o questionamento,

muito bem colocado por Capinam:

99 Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 189 100 Campos, Augusto (org.) Balanço da Bossa: antologia crítica da moderna música popular brasileira, São Paulo, 1968, pg. 159

56

“Qual a arte que se espera ter em nosso mundo mais facilidade de venda? Aquela que é o resultado da alienação propiciada por este contexto ou aquela que tem a lucidez de criticá-lo ao mesmo tempo em que pretende ser vendido por este contexto organizado em mercado?” 101

Para Capinam a música de protesto deveria se adequar às necessidades do mercado cultural

e não se perder no romantismo primitivo, sublinhando que não seria necessário a música brasileira

se alienar diante da realidade nacional para fazer uma música boa e comercializável. A bronca de

Capinam se justificava pela total inadequação da realidade do produtor em relação ao tema de suas

obras, pelo distanciamento entre o artista e seu suposto público alvo. Chama-se atenção para o fato

de jovens universitários brancos de classe média desejarem conscientizar o povo humilde e sem

educação formal, através de obras politizadas voltadas para esse público. A inviabilidade de tal

estética havia sido colocada por Bertold Brecht em crítica ao realismo político e sua linguagem

tosca e ingênua, na afirmação de uma arte para o povo. A dificuldade de realizar uma arte

conscientizadora e esteticamente aceitável era colocado por Maurice Capovilla, em artigo de junho

de 1962, discorrendo sobre a missão do cinema novo de se integrar à “(...) realidade social de país

subdesenvolvido e dessa forma espelhando seus problemas e não mistificando ou idealizando,

rechaçando portanto a imitação dos cânones estrangeiros, e com eles as formas importadas de

narcose, ilusão e opressão do povo.”102 Pena que o discurso intelectualizado distanciava os artistas

engajados da realidade nacional e dos seus prováveis seguidores, os operários e camponeses. Com

uma retórica que abarcava um pequeno público, também ligado à classe média, a cultura de protesto

não alcançava o intento de conscientizar as massas proletárias em prol da revolução social.

Apresentavam-se para platéias já conscientizadas, que assistiam tais manifestações no afã de

corroborar suas opiniões.

O questionamento sobre o fim da história e o multiculturalismo

Os teóricos apregoam como as principais características do pós-modernismo: o fim das

meta-narrativas, o que para alguns soa como o fim da história; o simulacro; o questionamento da

temporalidade ocidental; o nivelamento de hierarquias e o apagamento das fronteiras geográficas,

raciais e sociais. Gil dialoga com essas características em sua produção musical, inserindo novos

elementos nesta discussão e popularizando suas idéias com a veiculação maciça de sua produção

pelos meios de comunicação, só possível a veículos ligados à indústria cultural. A música tem 101 Revista Civilização Brasileira; “Que caminho seguir na música brasileira”; pg. 381 102 Capovilla, Maurice; “Cinema Novo”; Revista Brasiliense; São Paulo, nº 42, pg. 135-138; jul/ago 1962. Extraído de Ridenti, Marcelo; Em busca

do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV, Rio de Janeiro, Record, 2000

57

maior peso nessa veiculação devido a sua reprodutibilidade, infinitamente maior que qualquer outra

obra artística, como o cinema ou a fotografia, tratados no conhecido trabalho de Walter

Benjamin103. A música é reproduzida em variados meios e contextos, servindo desde a audição

concentrada e solitária caseira ao som ambiente dentro de bares, restaurantes ou elevadores. Em sua

reprodução há a difusão da música nas rádios que divulgam a mesma canção em locais os mais

distantes do planeta, milhares de vezes por dia, alcançando inumeráveis ouvintes. Enfim, a música

possui uma importância gigantesca no imaginário contemporâneo, atravessando variadas

apreensões e propagando sua mensagem para um público que pode não ter um conhecimento

profundo das problemáticas contemporâneas, mas se sensibiliza através de canções que relatam seu

cotidiano. A música possui o poder de tratar poeticamente esta realidade e abordar temas

pertinentes a outras áreas culturais como o cinema, as artes plásticas e a literatura, por exemplo.

Duas passagens do livro de Zuenir Ventura são elucidativas quanto à importância da linguagem

escrita para a geração de 1960:

“Na verdade, a geração de 68 teve com a linguagem escrita uma cumplicidade que a televisão não permitiria depois. O boom editorial do ano indica um tipo de demanda que passava por algumas inevitáveis futilidades, mas se detinha de maneira especial em livros de densas idéias e em refinadas obras de ficção.” Ou “Um passeio pelas livrarias do país em 68, tal como fizera Caetano em Alegria, alegria, reforça essa impressão que nossa revolução sexual não começou na cama, mas nas prateleiras; na teoria, antes da prática.”104

Em outra diretiva via-se que a linguagem escrita se coadunava à poesia falada tanto em

saraus e recitais, que voltam à moda com os beatniks, como na música:

“Parecia-me que eu estava realizando aquele progresso de ser poeta por outras vias que não as do poema impresso. Aliás, não estava longe de confirmar essa ilusão Augusto (de Campos, defensor de primeira hora do grupo Tropicalista) ao dizer que o que havia de interessante na poesia brasileira- a ‘informação nova’- tinha migrado das páginas dos livros para as vozes da canção popular.”105

O Tropicalismo realizava a ligação entre as variadas discussões contemporâneas que

marcavam fortemente seus adeptos. Gilberto Gil, em 1991, escreve O Fim da História criticando

Francis Fukuyama que proclamava o fim da história devido à crise do socialismo na URSS e o fim

das utopias, com potencial predominância do capitalismo neoliberal: “Não creio que o tempo/

Venha comprovar/ Nem negar que a História/ Possa acabar” O tempo, o conceito de progresso a

metafísica continuam sendo tema tropicalista.

O modernismo reivindicava a universalização de um pensamento filosófico, baseado na

liberdade e igualdade, na convicção da criação de uma meta-teoria civilizatória que todos os povos

103 Benjamin, Walter; A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução (1936) 104 Ventura, Zuenir; 1968: O Ano que Não Terminou, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, pg. 54 e pg. 32-33 105 Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 229

58

deveriam seguir106. A pós-modernidade remete à compreensão da particularidade e da pluralidade

cultural, junto ao esmaecimento das meta-teorias, tão caras ao modernismo. O modernismo, no que

concerne à ciência, busca a universalização de conceitos, no propósito de formalizar uma teoria

geral explicadora das transformações, enquanto os pós-modernistas suspeitam do progresso e da

ciência, criando o que alguns chamam de neo-ludismo107. As meta-narrativas típicas do

modernismo vivem seu ocaso com a pluralização teórica, étnica e cultual.

Outras peculiaridades importantes do pós-moderno são a virtual formação da chamada

aldeia global ocorrida com a redefinição das fronteiras e identidade do Estado-nação, com graves

repercussões como guerras tribais e étnicas que, ironicamente, nos remetem ao primitivismo pré

Estado moderno. Existe a dificuldade da aceitação do outro, a difusão de imagens e mercadorias

sem limites fronteiriços ou culturais, uma vil padronização dos gostos e estímulos perpassando a

sociedade atual. O leitor irá se perguntar: afinal o pós-modernismo seria a defesa da pluralidade e

do respeito à diferença identitária ou a radicalização e remissão de antigas lutas de defesa de

identidades marginalizadas e colocadas no limbo por gerações? A resposta que este estudo pode

conceder estaria baseada numa das principais e sempre sublinhadas características do chamado pós-

moderno: a contraditoriedade e a paradoxalidade. Na referência à pluralidade há uma virtual e

perigosa relativização das diferenças e idiossincrasias identitárias culminando na inexplicabilidade

da realidade contemporânea. O pós-moderno, ao questionar a universalização e as meta-teorias,

nega a si próprio como uma ideologia fixa e traz à tona a dificuldade e impossibilidade em

compreender a contemporaneidade com parâmetros modernistas universais. Sob um ângulo otimista

(esquecendo o corporativismo neo-liberal pasteurizador contemporâneo), há o nascimento de um

fenômeno que não é mais concebido do centro para a periferia, mas da periferia para o centro. Os

mercados em desenvolvimento são os dos países localizados anteriormente na periferia do

capitalismo: China, Brasil e México. Obviamente, graças ao esgotamento dos mercados

tradicionalmente consolidados e, principalmente, à força do multiculturalismo observado nestes

locais, coadunado à abertura a influências vindas do exterior, cresce a procura da indústria cultural

por produtos exclusivos, com sofisticações e especializações de acordo com o variado gosto do

mercado consumidor. Essa abertura exige uma adaptação dos países tradicionalmente considerados

pólos culturais para o diálogo com estéticas ligadas aos países subdesenvolvidos. O diálogo se dá

através dos interesses mercadológicos e de processos migratórios que enriquecem e pluralizam as

discussões no campo cultural.

106 O uso do tempo passado pode ser considerado errôneo, pois a imposição de modos de vida e de “civilização” ainda hoje é observada, desde a guerra contra o terrorismo e a adequação de todo o mundo à democracia representativa, até os conflitos entre as mais diversas nacionalidades e etnias 107 Site internet The Po-Mo Page Postmodern, Postmodernism, Postmodernity.htm

59

A Inglaterra é um exemplo vivo do processo de enriquecimento cultural. A chamada

“swinging London”, dos anos 1960/70 foi palco de uma revolução na cultura e de costumes, graças

à população fortemente miscigenada incluindo a presença de indianos, paquistaneses, jamaicanos,

africanos, latino-americanos e norte-americanos que acorriam à capital cultural mundial. Jimi

Hendrix, por exemplo, só encontrou lugar para suas estripulias em Londres onde havia uma platéia

aberta às experimentações estéticas. Obviamente nos referimos a Londres pois ali frutificou um

movimento pop de grande criatividade e ressonância mas sobretudo por ter sido a cidade que

Caetano Veloso e Gilberto Gil passaram seu exílio após o AI-5. Os tropicalistas encontraram ali

lugar para a troca e o enriquecimento cultural. Local onde Gilberto Gil travou contato com músicos

do pop inglês e pôde aprender muito sobre as novas concepções musicais em voga na época. Para se

ter uma idéia da interação, Gilberto Gil tocou com Jim Capaldi, baterista da banda Traffic, uma das

mais renomadas do rock inglês, foi ao Festival da Ilha de Wight, um dos últimos da era dos grandes

festivais de música,108 assistindo a shows e eventos alternativos, e consumiu o melhor e mais

sofisticado da arte produzida no período. Experiências que geraram o aperfeiçoamento de Gil com a

guitarra e a língua inglesa e também motivaram canções pouco conhecidas, de grande approach

jovem sobressaindo o psicodelismo e o alternativismo. Canções como Crazy pop rock, escrita em

parceria com o “maldito” Jorge Mautner, que entoava: “From the city runs eletricity in my brains/

from the cars runs gasoline up in my veins/ my blood intoxicated by twenty-seven trips/ my eyes

hallucinated by the Holy Ghost I met”. Gil compôs uma canção de cunho claramente psicodélico,

que se referia às ‘viagens’ propiciadas pelo LSD, droga da moda na década. Na música ressaltava a

correlação da sinestesia e os efeitos da droga que simbolizava uma porta imprescindível para o

auto-conhecimento e reflexão individual. Em The Three Mushrooms Gil novamente utilizava a

linguagem psicodélica e narrava em detalhes sua experiência com cogumelos alucinógenos: “The

first mushroom/ makes room for my mind/ to get inside the magic room/ of Dionysus house”.

Outra canção que retrataria esta fase mística e psicodélica de Gil seria O sonho acabou.

Inspirado na frase de John Lennon, The dream is over, Gil faz o apanhado de uma geração que

propagou o movimento hippie com seus ideais comunitários e a dificuldade em manter este sonho

vivo. O sonho de um mundo mais justo onde a solidariedade, própria dos movimentos libertários, se

encontrava num beco sem saída com a manutenção do sistema capitalista, a potencial adaptação e

adequação da estética contestatória. A canção O sonho acabou dizia: “Quem não dormiu no

108 A década de 1960 ficou conhecida como a Era dos grandes festivais de música pop que teve como embrião o bem sucedido festival de Monterey, realizado em 1967 na Califórnia, contando com a presença dos mais renomados astros da música pop. Monterey surge como exemplo para a realização de outros festivas, onde invariavelmente a juventude exibia sua filosofia alternativa e inconformista. Em 1969, é realizado o festival de Woodstock, que para muitos significou a exposição explícita dos novos valores juvenis e a normatização do movimento de contestação dos jovens. Festival que, para muitos, foi o apogeu e ocaso do pop contestador, sendo rapidamente substituído por propostas mais claramente comerciais. Festivais que seriam a base para o formato dos grandes shows e eventos posteriores, com s platéias cada vez maiores, atrações de grande poder junto à mídia, eventos que passam a ter um formato mercantil cada vez mais explícito, avesso às propostas dos festivais anteriores

60

sleeping bag nem sequer sonhou/ (...) o sonho acabou/ foi pesado o sono pra quem não sonhou”, em

clara referência ao festival de Glastonbury caracterizado pelo misticismo e pelas experiências

lisérgicas de seus participantes. Gil reproduzia não só o fim do festival mas, principalmente, o

começo do fim de um pensamento que propunha a reunião da sociedade civil na transformação

global na sua essência. O sonho acabou constituía uma música exemplar da dificuldade de

manutenção das utopias, principalmente após o recrudescimento do liberalismo econômico e

conservadorismo político, coadunado à apropriação dos valores contestatórios pela indústria

cultural.

Em Londres, Gilberto Gil encontrou espaço para refletir sobre o que havia lhe trazido até ali,

recordando os momentos passados e travando conhecimento de uma realidade nova e única. Essa

reflexão, junto à saudade do Brasil, propiciou a construção de canções primordiais para a moderna

MPB. Expresso 222 e Back in Bahia são frutos dessa reflexão. Em Expresso 222 Gil remonta à

sua infância, aos trens baianos e às viagens pelo interior, enquanto que Back in Bahia, escrita no

primeiro verão após o retorno ao Brasil, baseada em ritmos nordestinos, o cordel e as emboladas,

expressava toda a felicidade em estar de volta à terra natal, falando sobre as diferenças entre as

vivências londrinas e baianas. O retorno ao Brasil possibilitou uma renovação criativa e a

oxigenação necessária para a retomada do “processo evolutivo” da MPB, com a indicação de novos

caminhos e a valorização da raiz folclórica nacional, conforme é citado na última estrofe da canção:

“como se ter ido fosse necessário para voltar”.Back in Bahia, de levada contagiante, representava a

musicalidade universalista de Gil e sua paixão pelas coisas da Bahia. Essas canções, escritas num

processo de grande fecundidade, demonstravam a percepção da intertextualidade tropicalista, sua

percepção da história como um processo interminável de referências ao passado, a idéias e

discursos consagrados na edificação de uma estética transformadora.109 Referências que iam de

ritmos nordestinos, improviso, embolada, galope, martelo, a poesia concreta.110 O uso do piano no

estilo rhythm´n´blues era outra homenagem a Londres e às experiências ali vividas, “onde não sei se

por sorte ou por castigo dei de parar”. Londres fervilhava neste momento e norteava o

109 Devemos chamar a atenção para o que chamamos de obras Tropicalistas como todo o processo criador do grupo Tropicalista, não se restringindo apenas ao período comumente ligado ao movimento (1967-1969). A contiuuidade do projeto experimental proposto pelo Tropicalismo, a inserção de elementos estrangeiros (pop, o rock, as guitarras distorcidas, o movimento jovem e os hippies) junto à musicalidade tradicional brasileira. Exemplos não faltam, como a concepção do disco Tropicália II de 1993 propõe. Discos como a trilogia Re de Gilberto Gil (“Refavela”, “Refazenda” e “Realce”) que traziam o “choque/ entre a favela-inferno e o céu/ Baby-blue-rock/ sobre a cabeça/ de um povo chocolate-e-mel”, como demonstra Gil na música Refavela, ou quando clama por velejar no infomar “que aproveite a.vazante da infomaré/ que leve um oriki do meu velho orixá/ ao porto de um disquete de um micro em Taipe” mesclando a revolução informática à religião afro-brasileira. O encontro do grupo Tropicalista em 1976 no lendário grupo “Doces Bárbaros” representou a união de seus elementos e o prosseguimento do “processo evolutivo” da MPB. O grupo Tropicalista se reunia num momento onde começa a se discutir uma distenção política, quando Gil e Caetano, especificamente, tinham seus trabalhos aclamados e reconhecidos. Tendo a estética hippie como tônica, tanto nas vestimentas, como nos temas das músicas continuavam a buscar, como diz Gil, sobre a música Chuck Berry Fields Forever, “uma visão dinástica do sincretismo religioso e cultural das Américas resultante da junção das culturas da Europa e África, utilizando música popular como fio condutor do processo e como um dos modos de apreende-lo.” Rennó, Carlos (org.) Gilberto Gil: Todas as Letras; São Paulo, Companhia das Letras; 1996, pg. 178. O mesmo “Doces Bárbaros” que compunha São João Xangô Menino, que se referia às matas de Oxossi e as fogueiras de São João. Para melhor compreender a correlação do Tropicalismo e sua carreira posterior ver o relato de Gilberto Gil. Nota 49 na página 27 deste capítulo 110 Rennó, Carlos (org.) Gilberto Gil: Todas as Letras; São Paulo, Companhia das Letras; 1996, pg.130

61

caleidoscópio sonoro erigido por Gil em Back in Bahia. A referência à sua terra natal possuía um

cheiro tropical como o calor, a cor, o sol e o sal brasileiros como só mesmo a saudade por Cely

Campelo era capaz de traduzir. Cely Campelo, que servia como referência ao iê-iê-iê e ao rock

brasileiro da década de 1950, estereotipado e fortemente americanizado, era a forma de Gil manter

a cadência de uma obra permeada pelo regionalismo universal ou por um universalismo regional.

Gil reinseria a questão dos padrões de comportamento e bom-gosto citando o rock da década de

1950 como um dos pilares da abertura da música brasileira, o que para alguns consistia um gosto

questionável. A mesma Cely Campelo que seria citada literalmente em Retiros Espirituais do

disco “Refazenda” era a fonte para questionar os cânones da MPB: “Eu diria, o problema se reduz/

Aos espirituais sinais desta canção/ Retirar tudo que eu disse/ Reticenciar que eu juro/ Censurar

ninguém se atreve/ É tão bom sonhar contigo, ó/ Luar tão cândido”

Esta pesquisa objetivará apreender o pós-modernismo como uma nova percepção da

realidade, um enfoque cada vez mais descentralizado, tendo a complexidade e a pluralidade dos

discursos contemporâneos como umas de suas principais propriedades. Apesar da dificuldade de

compreensão das manifestações pós-modernas, com ataques de lados distintos, há a unanimidade de

classificar tais manifestações como sintomas da multiplicidade de enfoques teóricos e das

contradições contemporâneas. Sintomas que podem ser observados positivamente graças à criação de

novos meios de difusão de idéias e culturas antes relegadas ao segundo plano. Com um papel dúbio,

o pós-modernismo mexe com o sentido de universalidade discursiva e inclui novos discursos num

conjunto heterogêneo e enriquecedor.

Há, com o pós-modernismo, o questionamento da realidade imposta pelas meta-teorias,

através de uma análise da produção e propagação das narrativas, um exame detalhado e plural de seus

agentes e suas intenções. Ao perceber a discursividade como uma construção conscientemente

determinada pelos indivíduos de acordo com o contexto vivido por eles e suas intenções, a teoria pós-

moderna pode abarcar variadas expressões sócio-culturais e empreender o estudo particular das

manifestações contemporâneas. A abordagem plural pós-moderna auxilia o estudo do Tropicalismo.

Uma estética fragmentária e heterogênea, semelhante ao Tropicalismo, deve ser analisada através de

uma metodologia que busque compreender os fenômenos culturais como reflexo de seu momento

histórico. Sintetizando, o Tropicalismo e suas características - a paródia, a intertextualidade, a

fragmentação, a referência cruzada, o experimentalismo - são peculiares da nova ordem mundial onde

as velhas premissas não bastam para a explicação das particularidades das variadas expressões

contemporâneas. Neste contexto de mútuas influências, a música produzida no Brasil seguia as

mesmas tendências mundiais. Com a formação de um ciclo de influências gerador de movimentos

que seguiam tendências semelhantes, apesar de suas particularidades, inicia-se uma nova cena global

62

com forte participação jovem, em consonância à cena pop internacional. As inclinações estéticas e

expedientes similares fundam uma nova expressão alternativa, de tendência contestatória, jovem e

planetária, que será a base para a experimentação tropicalista e suas experiências intertextuais.

63

CAPÍTULO 3

Movimento de contestação estudantil e a criação artística

Atualmente, a década de 1960 é foco de numerosos estudos que versam principalmente sobre a

influência dos eventos da década na formação do mundo contemporâneo e, mais especificamente,

quanto ao crescimento da chamada indústria cultural e sua avassaladora influência sobre o mundo

simbólico. Alguns autores, como Jean Baudrillard, tematizam o período sob a ótica da consolidação da

sociedade do simulacro. É engraçado dizer que a pós-modernidade seria resultante de uma virtual crise

das utopias e das meta-narrativas, quando entendemos a década de 60 como o momento de

consolidação da indústria cultural, ou mass media, da radicalização política e filosófica que será o

mote para uma revolução nos costumes jamais vista, ocorrências que remetem às utopias comuns ao

modernismo. Porém ao relativizar o conceito de utopia os diversos movimentos sociais que surgiram

no período vieram a esvaziar a idéia de um conceito universal de sociedade ideal.

Esta pesquisa buscará tematizar a cultura como uma esfera que permeia tanto a infraestrutura

quanto a superestrutura sócio-cultural. Sinal de uma globalização exacerbada, do crescimento das

trocas econômicas e culturais, a pós-modernidade irromperia com a formação de uma juventude

questionadora, fruto do acesso à informação e da revolução comportamental. Geração que tem como

referenciais as viagens à Lua, a colonização do espaço, o crescimento das desigualdades sociais e da

exploração do homem, a revolução científico-tecnológica e o uso maciço de drogas expansoras da

consciência. A juventude do período se conscientizava através da praxis, da vivência cotidiana, com

ênfase na percepção instintiva e telúrica.

É primordial a problematização do papel da juventude dos anos 1960, o mito de ser uma geração

utópica, questionadora e crítica acima de tudo, em detrimento da juventude contemporânea consumista

e sem utopias. O fenômeno da crise das utopias nasce quando há o recrudescimento do sistema

capitalista e suas formas de persuasão e domínio ideológico. Após o fracasso dos movimentos utópicos

da década de 1960 e o afastamento de seus maiores baluartes, o sonho de “uma nova consciência e

juventude”111 estava enterrado. De várias formas foi colocado esse fracasso das utopias: o

neoliberalismo e o movimento yuppie, a apropriação da contra-cultura e da cultura de protesto por

parte da indústria.

Para o fenômeno pós-moderno, a conscientização da juventude teve um papel de destaque com o

nascimento de uma outra instância de poder constituída pelos estudantes. Graças à sua força de

111 Como escreveu Belchior em Como nossos pais: “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos/ ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”, onde traduz a desilusão e a crise dos preceitos mais nobres da geração juvenil da década de 60 e a acomodação da geração de 1970: (a canção é de 1976) “Quem nos deu a idéia de uma nova consciência e juventude/ tá em casa/ guardado por Deus/ contando o vil metal”

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polarização, os estudantes levavam a reboque reivindicações de outros movimentos sociais servindo de

propagadores de uma “nova consciência” política, vinculada às lutas civis em prol de grupos

tradicionalmente sem representatividade. A mudança nos hábitos fica patente quando percebemos a

revolução sexual e de costumes, com uma sensível mudança nos padrões de comportamento de toda a

sociedade. Obviamente não se deve obliterar que a pílula anticoncepcional favoreceu a revolução

sexual, bem como a entrada maciça das mulheres no mundo do trabalho decorrente das Grandes

Guerras. Havia uma atmosfera de indignação levando ao reconhecimento do capitalismo como um

sistema excludente por parte do Concílio do Vaticano.112 O contexto auxiliava a luta por maiores

direitos às minorias e ao questionamento do capitalismo e de sua ideologia motriz: o iluminismo. Os

estudantes eram a parte atuante e manifestante da sociedade que via ansiosa, maravilhada e espantada

as transformações nos costumes. A revista Manchete, uma das mais lidas do Brasil, falava

abertamente sobre as manifestações estudantis e sua repressão. Referindo-se aos estudantes norte-

americanos, Manchete contava que os universitários questionavam não só o sistema educacional e

algumas injustiças, mas a sociedade como um todo:

“Educados sob o impacto dos meios de comunicação de massa e sujeitos a serem chamados a qualquer momento para a guerra, eles se aplicam, em muitos casos, a paixão pela militância política. Na opinião dos conservadores, esse estado de espírito os leva a aceitar irrefletidamente palavras de ordem radicais.”113

A juventude se interrogava sobre seu papel no mundo contemporâneo caracterizado pela

desumanização e fortalecimento das grandes corporações capitalistas que transformavam o poder

numa atividade impessoal e desvinculada da realidade, onde a procura por índices e estatísticas

positivas se sobrepõe ao bem estar social. Por outro lado, cresciam movimentos de contestação da

ordem estabelecida, com a difusão do pensamento de filósofos e artistas de linha mais radical. as

universidades, apesar de sua pequena representatividade proporcional na população, possuíam grande

influência na formação da mentalidade da época. Numa sociedade de base racional, o especialista

adquiria um papel decisório em várias instâncias. As universidades que formavam os especialistas, que

protagonizavam discussões e descobertas científicas em seu ambiente, não conseguiam apaziguar a

massa de estudantes, a maioria de classe média remediada, e transformá-los em especialistas a serviço

do mercado. Os estudantes queriam melhores condições de estudo, aulas que tivessem a criatividade

como base para a construção do conhecimento, alojamentos unisex e o fim da rigidez do ensino

tradicional. Porém as reivindicações não paravam por aí: desejavam que o poder fosse exercido pela

sociedade civil, que tivesse moldes populares e autogestionários, sem qualquer tipo de preconceito

112 Ver Góes, Maria da Conceição Pinto de, Os caminhos e descaminhos da América Latina, mimeo, março de 2004 113 Revista Manchete; Nº 849, 27/07/1968, pg. 92

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sexual ou racial, enfim almejavam reestruturar a sociedade capitalista e socialista. Os estudantes

desejavam injetar o amor e a solidariedade nos corações e mentes de todos no mundo. Desejo este um

pouco megalômano mas com a cara da juventude da década de 1960, imperativa, hiperativa,

sonhadora, ambiciosa e empreendedora. Uma juventude que teve o mundo em suas mãos: por um mês

parou uma das principais economias do mundo (França), provocou graves feridas na sociedade norte-

americana, deixou o Brasil de pernas para o ar no ano de 1968, quase impediu a realização da

Olimpíada do México e lutou frontalmente contra a polícia, muitas vezes sobrepujando-a (zengakuren

japoneses que combatiam contra o uso de bases militares no solo japonês e contra a Guerra do Vietnã,

com bastões, escudos e capacetes; e possuíam uma grande disciplina de luta, ou os estudantes de

Varsóvia, Bonn, Bélgica e Uruguai). Uma juventude nascida para deixar a sua marca indelével, uma

marca que até hoje é usada como inspiração para movimentos estudantis e artísticos e ainda influencia

e molda costumes.

A pesquisa considera de grande importância a análise mais aprofundada do movimento

estudantil e da música tropicalista devido à polêmica suscitada pelas experimentações tropicalistas e

também pela sua vivência no ambiente universitário brasileiro. Os tropicalistas, com suas alusões às

modificações da vida urbana e à juventude mundial, encontravam-se claramente conectados aos

acontecimentos contemporâneos e investiam na parodização e no descentramento para tematizar a

realidade.

Deve-se compreender o Brasil, até mesmo pela sua grandeza e pluralidade cultural, como

possuidor de uma cultura aberta a influências regionais e estrangeiras. É notável a facilidade com que a

indústria cultural cria demandas, as comercializa e depois exaure os produtos, sejam eles obras de arte,

músicas ou vestuário. Também é interessante observar o poder do mercado ao abarcar diversos nichos

e instâncias consumidoras. Com a comunicação via-satélite, que debutava nas décadas de 1950/60,

houve uma abrangência cada vez maior dessa indústria cultural e sua avidez por novos consumidores.

A juventude, por sua ingenuidade, passa a ser considerada o mais cobiçado mercado pela propaganda

áudio-visual, com a música tendo papel fundamental na propagação da ideologia jovem. O

Tropicalismo é ligado ao nascimento de uma nova ótica sobre a realidade ao dessacralizá-la e expor

suas atávicas incongruências. Utilizava a televisão e uma linguagem kitsch, ciente do poder da imagem

no mundo dominado pela mídia. Enquanto apresentava a realidade nacional, o Tropicalismo, além de

propagar a pluriculturalidade e a idéia de valorização de manifestações marginais, fundia vários ritmos

e sonoridades em sua música, efetuando a pesquisa de musicalidades exóticas e tradicionais, realizada

em harmonia com os integrantes do pop mundial.

Parte da juventude da década de 1960 que deseja “alcançar o poder”, como era dito na época,

observava a revolução tecnológica com a expectativa que ela melhoraria a vida do homem, com a

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diminuição dos afazeres domésticos e laborais, liberando-o para o crescimento intelectual e o lazer.

Com as modificações tecnológicas e a diminuição da jornada de trabalho, há um redirecionamento dos

capitais abrindo-se campo para uma das indústrias mais fortes atualmente: a indústria do

entretenimento, um dos pilares da transposição de um mundo real e concreto para uma realidade

onírica e simulacional. Indústria cultural que apresenta o maior crescimento atualmente e que abarca

desde roteiros intelectuais de turismo histórico ou literário até o comércio de games eletrônicos e

parques temáticos, sempre utilizando o hedonismo e a fantasia como principais veículos de propagação

e fomento.

Há o aumento, sem comparações anteriores, do tempo ocioso dos trabalhadores e estudantes.

Esse tempo é voltado para a obtenção de cultura e informação e daí nasce uma geração ligada aos

acontecimentos planetários, que toma partido e luta por suas reivindicações. Nessa conjuntura, parecia

que a juventude mundial voltava-se para as mesmas idéias e a música popular era um terreno fértil

para a contestação da ordem estabelecida. Os festivais, graças a sua popularidade e visibilidade, eram

ótimos canais para a veiculação das mensagens dos músicos, como bem coloca Zuza Homem de

Mello:

“Entre as 24 músicas selecionadas para a fase paulista do FIC, algumas tinham tudo a ver com o que ocorria. Basta ver os títulos: ‘É Proibido Proibir’ (Caetano Veloso), ‘Canção do Amor Armado’ (Sérgio Ricardo), ‘Questão de Ordem’ (Gilberto Gil), ‘América, América’ (César Roldão Vieira) e ‘Para Não Dizer que Não Falei de Flores’ (Geraldo Vandré). Até em músicas com títulos despretensiosos como ‘Flor e Pedra’ (Carlos Castilho e Vitor Martins), na qual um sujeito alienado, vendo a juventude protestar com pedras e bombas, decide ter a mesma conduta, o tema vinha à tona.”114

O ano de 1968 foi um momento místico para a história contemporânea. Um ano ligado às

revoltas estudantis e ao crescimento do poder jovem. Um período de preparação para a Era de

Aquário. No Brasil e em vários outros países havia uma clara tendência à universalização da política

contestatória ao poder instituído. Multiplicavam-se as manifestações populares exigindo liberdade de

expressão nos países socialistas e as lutas nos países de Primeiro Mundo, virtualmente democráticos,

exigindo uma radical modificação social. Os músicos tropicalistas, antenados como uma parabólica,

uma Parabolicamará, que deglute a urbanidade e sua massa informacional, tinham acesso à

informação e a utilizavam na construção de sua estética, dialogando com o movimento juvenil global.

Sempre produzindo no hiato entre uma música dedicada aos temas contemporâneos (como a revolução

comportamental propagada pela juventude mundial) e uma tradição atávica à sua formação cultural, os

tropicalistas se referiam aos acontecimentos com uma consciência rara entre seus companheiros

114 Mello, Zuza Homem de; A era dos festivais, São Paulo, Ed. 34, 2003, pg.273

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músicos. Apesar da tendência em utilizar temas folclóricos ou políticos nas canções produzidas na

década de 60, o grupo tropicalista buscava empreender a síntese de uma nova ordem cultural: a

revolução jovem, que exercia forte influência sobre eles e os colocava irremediavelmente indispostos

perante aqueles setores que imaginavam ser impossível existir um “som universal”. Descrente da

existência de uma música que pudesse abarcar temas globais, numa estética de roupagem fragmentária

e plural, os tradicionalistas requisitavam a produção de canções que emitissem uma mensagem

engajada e demagógica, ingênua muitas vezes. Havia a tendência em mitificar o poder revolucionário

do povo, havendo uma verdadeira “fetichização do povo como entidade histórica.”115

Os tropicalistas se inspiravam nos movimentos estudantis que possuíam bandeiras universais e se

reuniam em protestos globais contra a guerra do Vietnã, o capitalismo e o autoritarismo. Em

sucessivas manifestações que ocorriam em variados países do mundo - Itália, Espanha, Colômbia,

Iugoslávia, Polônia, Thecoslováquia, Inglaterra, Alemanha, Venezuela, Argentina, Uruguai, Bélgica,

Japão, México e Brasil - havia um sentimento comum na luta contra a opressão da sociedade desigual

baseada na propriedade dos meios de produção por parte da classe burguesa. A burguesia torna-se a

classe impositora de sua visão de mundo a toda sociedade com a consagração da democracia

representativa. Em todos os continentes surgiram movimentos armados ou pacifistas que buscavam

modificações sistêmicas na vida econômica, política e cultural.

A letra de Soy loco por ti América exprime o valor que se dava na época aos movimentos

guerrilheiros, com Cuba como destaque. A letra de Capinam diz “Que su nombre sea Martí”, em

alusão a José Martí, poeta e um dos líderes da luta de libertação de Cuba do jugo colonial espanhol;

“El nombre del hombre muerto/ ya no se puede decirlo, quién sabe?/ (...) antes que a definitiva noite se

espalhe em Latinoamérica/ (...) el nombre del hombre es pueblo”; contando a história da perseguição

aos opositores do imperialismo norte-americano. Obviamente vem à lembrança a figura de Che

Guevara que havia sido assassinado na Bolívia em outubro de 1967, ano da composição,

principalmente se observamos que: “um poema ainda existe/ com palmeiras, com trincheiras, canções

de guerra, quem sabe canções do mar”; lembrando o momento de combate iminente vivido no Brasil,

com o início das ações de guerrilha urbana e rural. O poema seria o anunciante da revolução. O lirismo

da poesia foi a chave para a criação de uma música de alto grau de sofisticação, ciente da formação de

um público mais seleto e intelectualizado que passa a se interessar pela música popular mas que não vê

com receio a apropriação da cumbia e outros ritmos caribenhos na melodia. A adequação do

115 Netto, José Paulo; Realismo e anti-realismo na literatura brasileira; vários autores, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1974 Extraído de Vasconcellos, Gilberto; Música Popular: de olho na fresta, Rio de Janeiro, 1977, pg. 42

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Tropicalismo à poesia foi, direta ou indiretamente, uma influência de Bob Dylan116. Caetano dizia

sobre Dylan:

“No momento em que os ingleses dominavam o jogo com sua versão do rock´n´roll do lado de lá do Atlântico, do lado de cá Dylan já apresentava o espessamento desse caldo em que os Beatles e Rolling Stones beberam, mostrando onde está a nascente de onde jorra a energia.”117

A música buscava abordar, sob o prisma da esquerda revolucionária, a América Latina e suas

problemáticas. Soy loco por ti América apostava na reunião de variados ritmos latinos, numa letra em

espanhol e português, que retratasse a união do povo latino americano contra a exploração norte-

americana e a valorização da diversidade e riqueza cultural latinas. Augusto de Campos, ao comentar

as críticas feitas ao hibridismo da música, lembra:

“Quanto aos pseudopuristas que fingem horrorizar-se com o hibridismo da composição, seja-me permitido recordar-lhes O samba e o tango, de Amado Regis, com Carmem Miranda (Odeon, abril de 1937), onde o samba ‘faz convite ao tango para parceiro’ e eles se dão as mãos em ritmo e letra: ‘ Hombre yo no sé porque te quiero/ y te tengo amor sincero/ diz muchacha do Prata/ pero, no Brasil é diferente/ yo te quiero simplesmente/ teu amor me desacata.”118

Os movimentos estudantis e culturais se fortaleceram e passaram a ter preponderância sobre os

outros movimentos sociais graças à virtual liberdade dentro do ambiente estudantil e à repressão mais

rude dos movimentos de trabalhadores. Por ter maior liberdade de ação e reflexão, a juventude

adquiriu um papel importante junto às reivindicações sociais e na busca da manutenção das utopias,

com o caso mais flagrante de maio de 1968 na França. Utopias que representavam uma problemática,

pois esses mesmos estudantes, que buscavam lhes manter vivas, questionavam, de forma niilista, a

existência de uma ordem universal capaz de nortear as meta-narrativas e os movimentos políticos. Os

estudantes exigiam que o sonho fosse colocado em prática, contestavam a legitimidade de uma

universalização ideológica e propagandeavam as várias utopias, que todo homem tivesse o direito de

viver intensamente sua própria visão de utopia. Abrindo o leque de opções, teleológicas ou não, há a

criação de espaço para variadas ideologias e culturas que estavam soterradas diante do manto da

universalidade e das contingências da unanimidade.

Roberto Schwarz, um dos críticos do Tropicalismo, reafirma o processo de mediação entre as

manifestações e reivindicações estudantis globais:

116 “Um aspecto importante da obra de Bob Dylan é que ele representa, melhor do que ninguém, uma nova direção da poesia do mundo: a do poema cantado. E não é à toa que os festivais de canções se venham tornando tão populares. Acho, por isso, que a obra de Bob Dylan e as dos poetas-cantores de nosso tempo devem ser estudadas como o início de um novo caminho e de uma arte em mudança.” Antônio Olinto; O Globo, 08/03/1969 117 Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 272 118 Campos, Augusto; “Viva a Bahia-ia-ia”; In. Balanço da Bossa; São Paulo; Perspectiva, 1968, pg. 159

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“Em 1968 a efervescência política no Brasil havia aumentado e passara ao enfrentamento direto com a ditadura. Era este o contexto em que a oposição lia o noticiário internacional e também o da França. É claro que algo das palavras de ordem francesas passou para as nossas ocupações de universidades e de fábricas, aos enfrentamentos de rua, etc, dando a estas uma vibração, por assim dizer, atualizada e planetária, além de enriquecer o repertório das nossas aspirações assumidas.”119

Apesar de propagar-se rapidamente e ter um caráter universal, o movimento estudantil nunca

possuiu uma homogeneidade ideológica, sendo impossível reconhecer uma ideologia universal

estudantil. No caso de Paris, havia inumeráveis tendências combatendo juntas nas barricadas,

superando divergências no intuito de derrubar o poder da burguesia francesa.

Schwarz criticava o Tropicalismo por seu caráter exclusivista pois, ao adotar uma linguagem

sofisticada e imprimir uma roupagem contraditória a suas composições, afastava-se do grande público,

sendo atacado mesmo não sendo o responsável direto pelo “imperialismo e sociedade de classes.”120

Porém, por suas características elitistas, contribuiria para a “consolidação do privilégio”.121 Schwarz

sublinha que o “país estava irreconhecivelmente inteligente”, porém a “inteligência” brasileira se

circunscrevia a um público ainda pequeno, se comparado à grande massa da população. A música

tropicalista, que pretendia confundir e tirar o ouvinte da sua pasmaceira, tinha um conteúdo mais

trabalhado, limitando seu público aos que buscavam novas experiências e possuíam um nível

intelectual mais elevado. Obviamente, as canções de maior exposição como Alegria, Alegria tinham

entrada em variados níveis sociais122mas sua reflexão sobre o processo urbanizador modernizante era

percebida por poucos.

Para haver a entendimento da mensagem tropicalista mais sofisticada, como Alfomega, era

necessário compreender a união de sons e palavras, para poder dar sentido à canção, à massa sonora do

baixo e guitarra elétricos, aos grunhidos e ao improviso semelhante ao free jazz ou fusion tocado na

época. Cônscios do que estava acontecendo de mais novo, os tropicalistas rendiam-se a Jimi Hendrix,

guitarrista ícone do pop mundial, e ao trompetista Miles Davis, o jazzista de carreira mais brilhante e

inventiva de todo o século. Em 1969, ano do lançamento do “disco branco” de Caetano Veloso e

também de “Eletric Ladyland” de Hendrix, “Abbey Road” dos Beatles e “Bitches Brew” de Miles

Davis, havia uma clara feição experimental nos trabalhos artísticos mais atualizados. O que chamava

119 Folha de São Paulo, suplemento “Mais”, 10/05/1998, pg. 10

120 Schwarz, Roberto; “Cultura e Política nos anos 60”; O pai de família e outros estudos; Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1979, pg. 92 121 Ibidem 122 “Caetano Veloso, como já havíamos previsto em nossa seção, tornou-se, quase num abrir e fechar de olhos, um ídolo de nossa música popular, conquistando principalmente o público jovem que no Festival da Record o aplaudiu de pé. Apesar da onda de protestos e de incompreensões, sua Alegria, Alegria é um passo, bem dado, na tentativa de conseguir, para nossa música popular, uma linguagem mais universal.” Lima, Marisa Alvarez; Marginália: na idade da pedrada; Salamandra, Rio de Janeiro, 1996, pg. 77 Editado inicialmente em 1967, no periódico A Cigarra

70

atenção era o incessante diálogo entre os vários ramos da música, um potencial fim das fronteiras entre

os gêneros. Miles Davis comentava sobre Jimi Hendrix e o processo de criação musical:

“He had a natural ear for hearing music... it was great. He influenced me and I influenced him and that´s the way great music is always made. Everybody´s showing somebody else something and then moving on from there...” 123

Miles reconhece o poder da influência e a riqueza do contato com novas sonoridades para a

produção musical. Um fator que esta pesquisa busca tratar é o clima, propício à reunião e ao diálogo,

vivido na segunda metade da década de 1960. O questionamento dos alicerces da tradição cultural e da

política constitui o pólo agregador de variadas manifestações que criavam espaço para o surgimento de

experiências únicas na história da música. A diversidade de sonoridades e a dificuldade do público em

rotular as produções experimentais levaram a críticas agressivas aos tropicalistas e a todos os que

enveredavam por essa vertente. Jimi Hendrix era acusado de popularizar o blues às custas da

incorporação de elementos do rock e do country brancos e Miles Davis de subverter o jazz, fazendo

uma música comercial ligada ao pop e seus instrumentos elétricos. O próprio Miles Davis, em 1970,

ano da morte de Jimi Hendrix, grava o LP “Live Evil” no qual o percussionista brasileiro Aírto

Moreira, que tocou várias vezes com Miles e Hermeto Pascoal, faz sua participação demonstrando um

faro aguçado para caça de novas sonoridades. Miles Davis passa a usar uma sonoridade pop, com a

improvisação alcançando seus níveis mais radicais. Num momento que Miles flertava com o rock -

coloca o pedal wha-wha (comumente utilizado por guitarristas para a distorção das notas) em seu

trompete e institui o free jazz e o fusion como tendência – ele vem buscar a base para sua “cozinha”124

sonora no Brasil. O jazz no Brasil era taxado como música de classe média alienada e imperializada.

Diante da experiência fusion, mesmo entre seus mais fervorosos defensores, Miles encontrou

resistência e críticas que o acusavam de usurpar a tradição do jazz ao incluir guitarra e baixo elétricos

em sua banda. Hendrix, que também investia na criação de uma música sem fronteiras, denominada

por ele de música interestrelar, também afirmava a necessidade de romper qualquer fronteira cultural.

Em relação a Jimi Hendrix Caetano colocava prontamente:

“Eu me impressionava com a modernidade de Hendrix, seu canto falado, sempre meio escondido atrás dos sons dos instrumentos, sua guitarra meio blues meio Stockhausen, sua figura marginal, tudo fazia dele um emblema da época, tudo levava a pensar que nele os temas fundamentais se radicalizavam.”125

Curiosamente, o jazz norte-americano, uma música realizada predominantemente por músicos

negros que utilizavam instrumentos eruditos como o clarinete e o saxofone para improvisações pouco 123 Taylor, Derek; texto de introdução do CD “Eletric Ladyland” 124 “No jargão brasileiro, seção de acompanhamento dos grupos de música popular, geralmente formado por piano, guitarra, baixo, bateria e percussão.” Autran Dourado, Henrique; Dicionário de termos e expressões da música, São Paulo: Ed. 34; 2004 125 Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 270

71

usuais junto aos músicos clássicos, tinha como seus principais admiradores o público europeu, que

ajudou a reerguê-lo, dando uma concepção cult e sofisticada diferente da imagem de músicos malditos

e drogados, construída nos EUA. Fazendo a mediação da cultura erudita com a cultura negra, uma

hibridação entre os dois ramos culturais numa relação de troca e enriquecimento de ambos, o jazz

presenciou uma das manifestações de maior sucesso na realização da união de sonoridades distintas. O

blues eletrificado era admitido com ressalvas pelos puristas do delta do Mississipi, assim como a bossa

nova entre os sambistas de raiz. Os problemas do embate da tradição, da cultura dividida em eruditos e

populares, alta cultura e baixa cultura, são uma constante no período, suscitando a renovação musical

vivenciada atualmente.

Para os que defendem a música “genuinamente” nacional, ligada às origens folclóricas, é

relevante frisar que, semelhante ao jazz, a modinha surge no Brasil no século XVII, entre brancos que

tocavam modas portuguesas e mestiços ligados aos lundus. Depois de ser difundida no século XVIII

para Portugal, através de Domingos Caldas Barbosa que a tocava nos salões da corte portuguesa. A

modinha proveniente do Brasil seria reciclada em Portugal adquirindo elementos europeus ligados à

valsa vienense e também influenciando o fado (canção urbana portuguesa que teria fortes ligações com

a música brasileira e os lundus levados após a volta de D. João VI a Portugal). Assim cairia por terra o

mito da origem genuína e totalmente original da música brasileira. Por ser uma nação miscigenada e

heterogênea, é notável “a coexistência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições cujas

bases podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas, etc.”126

Até mesmo o crítico musical e historiador José Ramos Tinhorão remete à eterna interação entre a

cultura brasileira, a cultura européia e a norte-americana, ao observar a influência da música norte-

americana no período pós-primeira guerra mundial. Para Tinhorão havia uma clara influência das

bandas de ragtime e outros ritmos ligados à música negra norte-americana nas gafieiras cariocas. “Essa

influência era tão poderosa que, em 1929, o musicólogo Cruz Cordeiro, escrevendo sobre discos na

sua revista “Phono Arte”, acusava Pixinguinha de transplantar recursos da música norte-americana

para a música brasileira.”127 Tinhorão criticava essa influência norte-americana mas é obrigado a

retratar a dificuldade em localizar uma sonoridade eminentemente nacional, que, para ele, estaria

representada pelo samba de morro feito apenas com instrumentos de percussão. Referindo-se à entrada

de elementos pop na MPB, Caetano dizia: “A própria atração pela cena pop norte-americana (e o culto

que lhe renderam os ingleses criadores do neo-rock dos anos 60) era apenas um dos elementos que,

126 Velho, Gilberto; “Projeto, emoção e orientação em sociedades complexas” In. Individualismo e cultura; Rio de Janeiro, Zahar, 1981, pg. 16; extraído de Vianna, Hermano; O mistério do samba; Rio de Janeiro, Jorge Zahar 1995, pg. 41 127 Tinhorão, José Ramos, Música Popular: um tema em debate, Rio de Janeiro, Editora Saga, 1966, pg.36

72

nessa viragem tropicalista, tínhamos deixado de desprezar como ‘vulgares’ para cultuarmos como

‘saudáveis’”128

“O analfomegabetismo/ somatopsicopneumático/ que também significa/ que eu não sei de nada sobre a morte/ que

também significa/ tanto faz no sul como no norte/ que também significa/ Deus é quem decide a minha sorte”

Utilizando o procedimento concretista de reunir palavras e criar neologismos compostos, Gil

alude à espiritualidade e à filosofia, com claro enfoque na existência humana. Gil diz que o

“analfomegabetismo – o analfabeto cósmico, a nossa profunda ignorância acerca do universo aberto,

vasto e vago do esoterismo”129, agindo em contraposição à valorização de raízes unívocas primitivistas

A composição de palavras, através da justaposição, reforçava o estranhamento e a criação de

neologismos aproximava o Tropicalismo da construção poética concretista. Com a aplicação desses

neologismos e a criação de um estranhamento ao ouvinte de menor percepção, os tropicalistas se

distanciavam do grande público que consumia canções de amor com referência ao cotidiano urbano e

suas novas vicissitudes. A música tropicalista, talvez pela autoreferencialidade e crítica bem

formulada, continua atual até hoje com claros reflexos em vários grupos. Destaque para o movimento

Mangue Beat pernambucano que propunha a refundação do maracatu, com abertura para sonoridades

eletrônicas e sons aleatórios. Chico Science e Nação Zumbi, como o Tropicalismo, provocou uma

revolução dos cânones do folclore pernambucano, levando o guardião do folclore local, Ariano

Suassuna, a adverti-los quanto ao perigo da intromissão de estilos externos na musicalidade

pernambucana.

A contracultura norte americana e a revolta estudantil

Graças à conjuntura cultural mundial não faltavam artifícios para a criação tropicalista. Um dos

principais pólos de irradiação do poder jovem era os EUA onde os movimentos de contestação

obtinham grande repercussão. Havia uma contracultura bem sedimentada e para ajudar em sua

polarização, o governo norte-americano patrocinava uma das guerras mais insanas da história

contemporânea: a Guerra do Vietnã. Uma guerra onde a nação mais poderosa econômica e

belicamente do mundo lutava contra um país agrário, possuidor de um exército constituído por

camponeses, sem maiores arroubos tecnológicos e militares. O radicalismo cresce no território norte-

americano com manifestações violentas contra a guerra e há a formação, incompreendida por muitos,

128 Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg.198 129 Rennó, Carlos (org.) Gilberto Gil: Todas as Letras; São Paulo, Companhia das Letras; 1996, pg. 109

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de uma juventude politizada ligada a ações contestatórias sob a égide das idéias de Herbert Marcuse e

sua filosofia baseada na crítica à sociedade unidimensional.

Alguns acontecimentos marcaram a história do período como a repressão às manifestações na

universidade americana de Kent State, em Ohio, que ocasionou quatro mortes, sendo motivo de

manifestações de repúdio à violência nos campus universitários de todo mundo. O ocorrido em Kent

inspirou uma das canções mais pungentes da história da música popular norte-americana, Ohio de Neil

Young. A letra exibe a contradição da sociedade americana, no plano externo da guerra fria, com o

envio insano de jovens soldados para o Vietnã e, no plano interno, a repressão aos opositores da

política beligerante.A música interpretada por Neil Young conta:

“Tin soldiers and Nixon coming/ We´re finally on our own/ This summer I hear a drumming/ Four dead in Ohio”

Os acontecimentos de Ohio, junto à sedimentação da cultura de protesto norte-americana com

Crosby, Sills, Nash &Young, Joan Baez e Bob Dylan130 influenciavam a música nacional. Utilizando

um discurso diverso do pop, a música folk norte-americana se assemelhava à nossa canção de protesto

quando se observa a atávica ligação com o folclore local e a preocupação dogmática de conscientizar o

público através da canção. Os músicos de protesto, tanto do Brasil como dos EUA, faziam referência a

temas regionais e à população comum, sendo a música responsável por explicitar o papel da arte como

meio de propagação de mensagens políticas. As letras de Crosby, Stills, Nash &Young, num estilo

country-hippie, se assemelhavam às canções de protesto brasileiras e sua pungente mensagem política,

conclamavam a ação direta, o solidarismo, a tomada de uma nova consciência. A diferença se dava em

relação ao contexto dos movimentos sociais norte-americanos e ao poder de penetração da música

popular em todos os EUA, enquanto a música de protesto brasileira negava cegamente a participação

junto ao mercado fonográfico. Outra diferença estava no que concerne à mensagem de solidarismo

comunitário, típico do movimento hippie, que não tinha muitos adeptos no Brasil nesta época.131

Porém, ambos movimentos contavam com o mesmo público: a classe média urbana universitária e

intelectualizada, não alcançando uma platéia mais popular.

Outros eventos que marcaram a geração norte-americana foram as marchas de Washington em

1967 e 1969 e a manifestação popular em Chicago na ocasião da reunião do Partido Democrata em

1968. A Convenção Democrata de Chicago também foi tema de uma música composta por Graham

130 Caetano comenta a influência de Bob Dylan em sua música: “Agora, o Tropicalismo estabelecido, eu ouvia e reouvia maravilhado “Bringin it all back home”, que (Antônio) Peticov me recomendara.” Falando mais : “Embora os Beatles fossem obviamente mais ingênuos, Dylan parecia atrelado a uma concepção romântica do poeta, sem as incursões (explícitas) pela metalinguagem, pelo atonalismo e pelo concretismo que os Beatles apresentavam.” In. Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 271-272 131 Um dos motivos dos ataques aos tropicalistas era o uso de costumes e atitudes hippies em suas apresentações, ataques estes vindos dos setores mais conservadores como também dos universitários e intelectuais

74

Nash, que congrega todo o sonho libertário e comunitário de transformação do mundo e a crença nas

utopias, traduzindo o ideal de parte da juventude mundial:

“Though your brother bound and gagged/ And they´ve chained him to a chair/ Won´t you please come to Chicago/ Just to sing/ In a land that´s known as freedom/ How can such a thing be fair/ (...) We can change the world/ Re-arrange the world/ It´s dying to get better/ Politicians sit yourself down/ There´s nothing for you here/ (...) It´s dying - if you believe in justice/ It´s dying - if you believe in freedom/ It´s dying - let a man live his own life/ It´s dying - rules and regulations, who needs them” Chicago

Havia uma luta objetiva contra a guerra do Vietnã e os EUA viviam um momento único em sua

história. A massificação dos meios de comunicação, o crescimento de uma geração crítica voltada para

o auto-conhecimento e sistematicamente anti-establishment, o crescimento da população urbana e a

inadaptação ao mercado de trabalho surgiam como conseqüência da modificação cultural e tecnológica

vivida na época. Várias determinantes levaram a um movimento de integração social único na história

da república norte-americana. O “lar dos bravos e terra da liberdade” possuía uma mocidade

questionadora que se organizava em movimentos caracteristicamente anti-sistema: partido yippie,

SDS- Students for Democratic Societ, (a chamada Nova Esquerda), movimentos ligados a filosofias

alternativas e marginais como hippies, hells angels, beatniks, enfim numerosos grupos voltados para

questionar e transformar o sistema em sua medula.

A “Nova Esquerda” tinha a concepção de praxis política desvinculada da corrida parlamentar,

negando o processo eleitoral e institucional, dando primazia aos movimentos sociais e à ação direta.

Subseqüentemente, ocorre a progressiva mitificação de modelos rebeldes e libertários. Heróis que

demonstravam a inadequação ao american way of life, como Marlon Brando e James Dean, ou os que

propunham ideais de solidariedade e pacifismo como Gandhi e Che Guevara.132 Dentro dos

movimentos de contestação, havia espaço manifestantes anti-sistema mais radicais como os Weather

Men,133 que partiram para a franca luta armada e realizavam suas ações sob efeito de LSD.

Influenciados por Carlos Marighella, através da leitura de seu manual da luta armada urbana134, os

Weather Men uniram-se aos Black Panthers para resgatar da prisão o psicólogo e defensor do uso do

LSD, Timothy Leary. A agressividade e a combatividade tomavam de assalto o contexto cultural e

132 Ernesto Guevara foi transformado em mito após a vitória da guerrilha castrista cubana e seu alistamento incondicional à proposta da revolução socialista global. Che lutou na Guatemala, onde conheceu Fidel Castro, em Cuba, Angola, Bolívia. Hoje além do mito revolucionário incondicional, Che é utilizado em t-shirts, biquínis e estampas variadas tendo significados tão distintos quanto o seu uso

133 Entre seus integrantes destacavam-se Jerry Rubin, Abbie Hoffman, John Sinclair (que é inspiração para a música com seu nome, composta por

John Lennon e gravada no LP“Some time in New York City” onde Lennon diz: “If he´d been a soldier man, shooting gooks in Vietnam, If he was the CIA, selling dope and making hay, He´d be free, they´d let him be

134 Mariguela, Carlos; Manual do guerrilheiro urbano e outros escritos, 2ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim; 1974

75

político. Jimi Hendrix tocava sua guitarra com sons distorcidos lembrando gemidos e gritos,

metralhadoras atirando e helicópteros voando na clássica Machine Gun, Hendrix buscava dar uma

ambiência militar, transportando o ouvinte, em seu som psicodélico, para a selva vietnamita. Hendrix,

na introdução de Machine Gun, durante o ano novo de 1970 no legendário Fillmore East, dedicava a

todos os que combatiam noVietnã contra o regime comunista vietcong e aos estudantes que lutavam

contra a mesma guerra no campus universitário de Berkeley.

No Brasil, os estudantes se ligavam cada vez mais nas canções de protesto, com um enfoque

claramente anti-americano. Os músicos brasileiros que buscavam criar dentro de uma proposta mais

próxima da música norte-americana, com influências no jazz, blues ou country, seriam classificados

como americanizados e bregas. O Tropicalismo inseria elementos da musicalidade norte-americana

com uma roupagem tanto ligada ao chamado “mau-gosto” do iê-iê-iê como ao improviso dos músicos

do rock psicodélico, ou acid rock, que estourava nos EUA e na Europa. Estas atitudes eram reprovadas

veementemente pela platéia universitária que clamava por temas regionais, ligados ao protesto e

oposição ao regime militar..

O Black Power e os Black Panthers formavam grupos voltados para uma dura crítica ao sistema

capitalista e realizavam ações paramilitares e guerrilheiras. Reivindicavam a devolução de tudo que foi

roubado dos negros em anos de exploração; uma educação que ensinasse a verdadeira história e o

papel do negro na sociedade atual. Os Black Panthers propunham que os negros fossem julgados por

um júri das comunidades negras e seu principal objetivo político era um plebiscito, supervisionado

pela ONU, em toda colônia negra e com a participação dos súditos das colônias africanas. A idéia de

um poder negro independente e a luta radical contra o preconceito trouxe reflexos no Brasil com a

maior conscientização, principalmente do público das periferias das grandes cidades que passaram a

escutar soul music com toques norte-americanos (Black Rio, Bebeto, Tim Maia, Toni Tornado -

vencedor do V Festival Internacional da Canção com BR-3 - e Erlon Chaves faziam a chamada música

black nacional). É curioso observar que Jorge Ben no IV Festival da TV Record, em novembro de

1968, foi o mais vaiado pela platéia quando fez o gesto do poder negro, com o punho cerrado e o braço

erguido, após defender Queremos Guerra135. Jorge Ben repetia o gesto dos atletas norte-americanos

Tommie Smith e John Carlos, primeiro e terceiro colocados nos cem metros rasos, que cerraram seus

punhos no pódio olímpico no instante da execução do hino dos Estados Unidos e, por esse motivo,

tiveram suas medalhas caçadas, gesto típico do movimento Black Panthers.136 A mesma platéia, que

135 Mello, Zuza Homem de; A era dos festivais: uma parábola; São Paulo, Ed. 34, 2003; pg.320

136 Para ter uma visão mais clara da mentalidade dominante nos órgãos de repressão, com toda a sua dificuldade de compreensão da sociedade brasileira: “O Festival Internacional da Canção, que obtém repercussão internacional, tem sido uma fonte de mensagens, que quando não trata da subversão (caso de Geraldo Vandré), aborda sempre temas que podem afetar a nossa juventude. Homenagens já foram prestadas a Jane Joplin (sic) e ao guitarrista Hendrix. È fator público e notório que ambos morreram por causa de excesso de tóxicos. Agora, o sr. Augusto Marzagão, prepara uma

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exigia consciência política dos músicos, vaiava o gesto de Jorge Ben, talvez por entender que não

havia preconceito racial por aqui ou por temer que movimentos de gênero descentralizassem a

oposição ao regime militar brasileiro. Para termos uma breve visão do que acontecia no Brasil, com

medo que o movimento negro tomasse as mesmas proporções alcançadas nos EUA, o gesto do punho

cerrado estava proibido de ser exibido no VII Festival Internacional da Canção de 1972. Caso este

gesto fosse realizado, a rede Globo de televisão, patrocinadora do festival, teria o sinal tirado do ar.

Dentro do contexto da conscientização racial, o movimento tropicalista não explicitou a solidariedade

ao movimento negro mas, ao realizar o apanhado das características do Brasil, buscou tematizar a

riqueza racial e cultural nacional. O Tropicalismo questionou a ordem estética valorizando

criticamente a brasilidade:

“Eu brasileiro confesso/ minha culpa meu pecado/ meu sonho desesperado/ meu bem guardado segredo/ minha aflição/ eu brasileiro confesso/ minha culpa, meu degredo/ pão seco de cada dia/ tropical melancolia/ negra solidão” Marginalia II137

Estaria incutida na nacionalidade brasileira uma culpa visceral, uma aflição existencial, em sua

maioria, cria de uma relação entre culturas européias e africanas. Povos que tinham aculturado e

dizimado as populações autóctones. O sentimento de degredo, o banzo, sempre esteve presente no

pensamento colonial brasileiro, que sempre “macaqueou” o estrangeiro na eterna referência à

ilustração erudita contra o primitivismo selvagem indígena. O fato de estar longe das matrizes culturais

traria a sensação de exílio, de distanciamento do que ocorria nos grandes pólos irradiadores de cultura.

A sensação de exílio também era emitida no sentido de distanciamento em relação à realidade

nacional, no sentimento saudosista de uma nação idealizada. Tom Jobim e Chico Buarque

compartilhariam de sentimento parecido quando compuseram a canção Sabiá. “Vou voltar, sei que

ainda/ Vou voltar para o meu lugar/ Foi lá e ainda é lá Que eu hei de ouvir cantar um sabiá” Durante

séculos a cultura nacional, o “bom-gosto” erudito, esteve atrelado ao que ocorria na Europa, em Paris

especialmente. A sensação de melancolia tropical era dividida com os escritores árcades da

Inconfidência, os realistas, os parnasianos, os futuristas, enfim, toda a tradição cultural brasileira e a

eterna referência a movimentos internacionais. O que a música Marginalia II criticava era a relação de

dependência cultural, de total subserviência intelectual aos modismos estrangeiros. A música, de

homenagem ao Poder Negro americano. Pretende trazer um grupo atuante do “Black Power” para se exibir no FIC. É desnecessário falar nos inúmeros problemas criados pelo referido grupo para as autoridades americanas. Por outro lado a atuação deste grupo poderá criar uma situação desagradável que felizmente não existe entre nós, que é a discriminação racial.(À D.O. para conhecer e em seguida à D. I. )” Informe nº 359 de 26/07/1971 Secreto (DOPS-GB); pasta 90, folha 17, Arquivo Público Estadual. FIC que ficou conhecido pela desistência de um grupo considerável de músicos (Sérgio Ricardo, Chico Buarque, Tom Jobim, Edu Lobo, Paulinho da Viola) que protestavam contra a censura que podava suas obras

137 Marginalia II de Torquato Neto, gravada por Gilberto Gil em 1968

77

Torquato Neto e Gilberto Gil, tinha claras influências modernistas antropofágicas, com a utilização do

deboche e a paródia a grandes autores de literatura:

“Minha terra tem palmeiras/ onde sopra o vento forte/ da fome com medo muito/ principalmente da morte/ o lê lê lá lá

A bomba explode lá fora/ agora o que vou temer/ oh yes nós temos banana/ até para dar e vender/ o lê lê lê lá lá”

Parodiava Gonçalves Dias e, por tabela, Oswald de Andrade e Murilo Mendes, assumindo a

feitura de uma estética fragmentária, aglutinadora de várias referências. Os integrantes do

Tropicalismo eram, como toda a sua geração, muito ligados à literatura e usavam com hábito a alusão

a histórias e passagens poéticas. O uso destas artimanhas referenciais esteve no centro da prática

artística tropicalista, tanto em relação aos músicos como os eventos teatrais e cinematográficos (Terra

em Transe de Glauber Rocha e Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade no cinema; Rei da Vela e

Roda Viva no teatro, os melhores exemplares de obras tropicalistas fora da área musical). No caso de

Marginalia II, a menção a Gonçalves Dias e a “Canção do Exílio” tem uma forte carga crítica ao

regime militar representado como o vento forte da fome, que trazia o medo da morte, responsável

pelas bombas que explodiam lá fora para afugentar a oposição. O regime que desejava frisar a

modernização avançada, mas que acabava corroborando nosso atraso e arcaísmo, era satirizado:

“Aqui é o terceiro mundo/ pede a benção vai dormir/ entre cascatas palmeiras/ araçás e bananeiras/ ao canto do juriti/ aqui meu pano de glória/ aqui meu laço e cadeia”

O modernismo antropofágico, uma das referências tropicalistas, prenunciava uma nova atitude

perante as manifestações culturais estrangeiras: pretendia deglutir elementos internacionais na

formação de uma linguagem própria, ao mesmo tempo cosmopolita e interiorana. A valorização da

linguagem coloquial, a tomada de consciência quanto à realidade brasileira e suas idiossincrasias,

obviamente utilizava o conhecimento erudito adquirido através de viagens ao continente europeu. Os

antropófagos, no Manifesto Antropofágico de 1922, conclamavam a retomada da sociedade matriarcal

primitiva: “A luta entre os que se chamaria de Incriado e a Criatura-ilustrada pela contradição

permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia.

Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem.” Devedores de créditos aos antropófagos

modernistas os tropicalistas utilizaram a deglutição para gerar uma estética intertextual, pluricultural e

multinacional, mas dentro de uma dinâmica original que utilizava a antropofagia dentre outras formas

de expressão. Atualmente os tropicalistas são venerados na Europa e nos Estados Unidos, onde

existem admiradores tropicalistas entusiasmados por sua pluralidade.

78

As barricadas estudantis do maio de 1968: elementos para a composição

estética tropicalista

Na Alemanha e em outros países europeus os protestos também tinham como pano de fundo a

recusa às estruturas sociais vigentes, a preocupação com a adaptação ao mundo do trabalho após a

formatura na universidade e, obviamente, o movimento anti-guerra do Vietnã. Eram manifestações de

caráter nitidamente autogestionárias e autônomas, como afirmava o líder alemão Rudi Dutschke:

“Em toda parte surgem espontaneamente grupos de vanguarda, dotados de autonomia perfeita. Não estão de forma alguma submetidos às decisões de uma instância central, isto é, manipuladora; pelo contrário, empreenderam uma luta sem tréguas contra a manipulação e a repressão das capacidades criadoras dos homens. (...) Devemos igualmente ultrapassar pela crítica os conceitos antigos do socialismo, sem destruí-los nem conservá-los artificialmente.”138

Observa-se esta passagem, que poderia ser escrita por qualquer manifestante jovem europeu,

pois há uma clara tendência em questionar o stalinismo e os partidos comunistas europeus após os

acontecimentos em Praga (1968) e a denúncia durante o XX Congresso do Partido Comunista

Soviético, por parte de Nikita Kruchev, dos crimes praticados por Stálin. Uma conseqüência da criação

de uma ideologia jovem era defesa da criatividade e liberdade contra as imposições éticas. A busca de

saída para o stalinismo, o burocrativismo soviético, a guerra fria, o capitalismo, a participação real dos

cidadãos na vida política e a implantação de conselhos autogestionários nas fábricas e nas

universidades são temas pungentes para os movimentos estudantis. Constituíam reivindicações

partilhadas pelos estudantes de Paris, Nanterre, Varsóvia, Praga, Roma, Pisa,Berlim, Berkeley, Cidade

do México e Tóquio. Gilberto Gil, ciente da importância dos acontecimentos globais, cantava em

Questão de Ordem139: “Se eu ficar em casa/ fico preparando/ palavras de ordem/ para os

companheiros/ que esperam nas ruas/ pelo mundo inteiro/ em nome do amor”, com um fundo de

guitarra distorcida e gritos e sussurros em sua apresentação. É visível a consonância da letra com os

protestos estudantis, a preparação das idéias para serem expostas nas ruas pela juventude que lutava,

acima de tudo, em nome do amor e da paz. Gretchen Dutschke, ex-esposa de Rudi Dutschke,

demonstra a planetarização da ideologia estudantil libertária quando relata a grande influência cultural

e política norte-americana nos movimentos estudantis europeus:

138 Dutschke - “É preciso ultrapassar os conceitos antigos do socialismo” In. Revista Civilização Brasileira 19/20; maio/agosto 1968, pg. 100

139 Canção apresentada no IV Festival da Record de 1968, onde foram lançadas Proibido Proibir, 2001 e Dom Quixote

79

“As primeiras manifestações críticas aconteceram no fim dos anos 50 com os beatniks nos Estados Unidos e os

existencialistas na Europa. Eles nos influenciaram muito. A Guerra do Vietnã também foi, naturalmente, um acontecimento

importante, não só nos Estados Unidos, mas também na Alemanha.”140

Tais relatos possibilitam traçar uma linha entre os diversos movimentos culturais e políticos da

época que possuíam uma raiz semelhante: o inconformismo, a valorização de manifestações antes

marginalizadas e a luta pela construção de uma realidade cosmopolita rica de influências. Num

ambiente propício ao questionamento da tradição, o nascimento do Tropicalismo - com a utilização de

uma cultura fragmentária, que fazia uso da paródia e da referência esvaziada do seu sentido autêntico -

seria fruto do deslocamento das meta-narrativas e do esmaecimento do indivíduo singular e original.

Sintomas típicos de uma ordem mental que prima pela pluralidade e valorização da particularidade, da

mesma forma que, paradoxalmente, uniformiza o indivíduo e investe em mercados novos e pontuais,

transnacionalizando o capital na busca de maiores lucros ou vantagens tarifárias.

A ideologia libertário–anarquista permeava parte do movimento estudantil europeu e ajudava a

instituir um clima festivo e iconoclasta às manifestações que marcaram uma geração, sendo lembrada

como um dos símbolos de um período emblemático e utópico.141 Laurent Joffrin observa as jornadas

de maio de 1968 em Paris afirmando que “nos fatos em si não há uma ideologia, mas uma tendência

fortemente anarquista. Não havia cálculo, e tudo se resumia num pensamento contra a autoridade.”142

O caráter festivo de maio de 1968 na França, também frisado como iconoclasta, a desforra dos

silenciosos e a proliferação do imaginário, seria típico de um momento de vazio de poder institucional,

onde a festa e a violência tomam conta das ruas. Este vazio de poder, ou questionamento do poder

instituído, era realizado mais fortemente nas universidades, junto aos artistas e a intelectualidade

burguesa e também contava com a participação de sindicatos libertários que tomavam a ação direta

como palavra de ordem. Em todo mundo, os acontecimentos colocavam a necessidade de uma

reformulação política e social, deixando de lado a lógica moderna iluminista e a prerrogativa da

universalidade. Os princípios do modernismo começavam a ser refutados. Após ser canonizado dentro

das instituições sociais e políticas, o modernismo passava a sofrer com a proposição da padronização

de seu modelo e as decorrências deste fato.

140 Dutschke, Gretchen; Folha de São Paulo; caderno Mais; 10/05/1998, pg. 14

141 Um filme que retrata a geração de maio de 1968 é Os Sonhadores de Bernardo Bertolluci., onde critica a irresponsabilidade e ingenuidade da geração da década de 1960

142 Paulo Roberto Pires; “O legado possível da primavera parisiense”; O Globo; “Maio de 68”; Caderno Especial, 09/05/1998

80

Os movimentos de libertação dos povos coloniais 143, os movimentos estudantis e pelos direitos

civis consistiam em manifestações plurais, que chamavam atenção do mundo para lugares distantes e,

muitas vezes desconhecidos, como Biafra e Camboja. A imprensa realizava a verdadeira integração

planetária através dos meios de comunicação e o desejo de informação e conhecimento

contemporâneos. Em conseqüência do crescimento da imprensa mundial e da veiculação maciça de

notícias por todo o planeta, surge a imprensa como uma espécie de “quarto poder” institucional ou a

voz da sociedade civil organizada. A imprensa possuiu um papel determinante durante a Guerra do

Vietnã, realizando a cobertura do front.no que inicialmente deveria consistir num triunfo retumbante

das forças da “liberdade e da democracia”, e acabou chocando o mundo e a sociedade americana ao

exibir, durante a hora do jantar, soldados ianques morrendo.

No Brasil, mesmo dentro de um contexto de repressão mais profunda, com a caça da liberdade

de imprensa e repressão, foi feita uma cobertura jornalística, até certo ponto, isenta da repressão às

manifestações estudantis no Brasil e na Europa. A linha editorial era pautada por um debate de idéias

impensável num país vivendo no autoritarismo. Em 1968, mais precisamente no dia 13 de dezembro,

foi promulgado o Ato Institucional número 5 (AI-5). Após sua promulgação, os jornais passaram a ser

lidos anteriormente por censores para terem permissão de circular. Os direitos civis foram suprimidos

(o cidadão podia ter seu direito de exercer sua profissão suspenso, como o jornalista Antonio Calado;

ter seus bens confiscados; ser preso sem direito a habeas-corpus ou acusação formal) e um regime de

exceção passou a vigorar no país. Obviamente o contexto favorecia tal repressão: no campo cultural

fervilhavam idéias vanguardistas; no mundo político, apesar das perseguições, o setor estudantil se via

cada vez mais fortalecido; na economia havia a imposição de uma tecnocracia estatal, enfim, não

faltavam justificativas para a promulgação do Ato Institucional nº 5. Este Ato colocou o Brasil no

período de maior repressão do regime militar contra a cultura e grupos de esquerda que ousassem se

opor ao regime.

O episódio, que serviu para o recrudescimento da ditadura de Costa e Silva, foi gerado pelos

comentários do deputado federal Márcio Moreira Alves condenando a invasão da Universidade de

Brasília por parte da polícia. O deputado veio à tribuna do Congresso questionando-o: “Quando o

exército não será um valhacouto de torturadores?”, chegou a propor o boicote à parada de 7 de

setembro e que: “Esse boicote pode passar também [...] às moças, às namoradas, àquelas que dançam

143 Ainda em 1980 Stevie Wonder cantava um reggae para celebrar a tardia libertação colonial dos povos africanos e afirmar a pluralidade cultural: “They want us to join their fighting/ But our answer today/ Is to let all our worries / Like the breeze through our fingers slip away/ Peace has come to Zimbabwe/ Third World’s right on the one/ Now’s the time for celebration/’Cause we´ve only just began (...) You ask me am I happy/ Well as a matter of fact/ I can say that I´m ecstatic/ ‘Cause we all just made a pact/ We’ve agreed to get togheter/ Joined as children in Jah/ When you’re moving in the positive/ Your destination is the brightest star ” Master Blaster extraído do disco “Hotter Than July”

81

com os cadetes e freqüentam os jovens oficiais.”144 A recusa do Congresso Nacional em punir o

deputado trouxe um grande mal-estar entre os poderes executivo e legislativo. No calor dos debates

quanto à cassação de Márcio Moreira Alves, o deputado da ARENA e presidente da comissão

parlamentar de Constituição e Justiça, Djalma Marinho, discursou no plenário. Inspirado por Calderón

de La Barca, Djalma proferiu a seguinte frase, depois transformada em palavra de ordem de outros

parlamentares: “Ao rei tudo, menos a honra.” E terminava seu discurso dizendo: “Pode este episódio

abater-se sobre o parlamento como um inconfundível epitáfio de submissão, mas também pode se

transmudar na revelação que somos uma instituição viva.“ O acontecimento serviu de justificativa para

fechar o Congresso e o regime militar endurecer, numa repressão sangrenta que levou à polarização

maior no campo político e à radicalização dos movimentos de oposição, que conviviam com as

experiências da luta armada, o desbunde ou o exílio.

Na reunião de promulgação do polêmico AI-5 o ministro da economia Delfim Neto discursou:

“Eu creio que a revolução (sic) não veio apenas para restaurar a moralidade administrativa neste país mas principalmente para criar condições que permitissem a modificação de estruturas que facilitassem o desenvolvimento econômico. Esse é realmente o objetivo básico. Mais do que isso, creio que institucionalizando-se tão cedo, possibilitou toda sorte de contestação que terminou agora com esse episódio a que acabamos de assistir. Realmente esse episódio é o sinal mais marcante da contestação global do processo revolucionário.” 145

Ironias à parte, Delfim usou a alegação de que a “contestação global do processo revolucionário”

deveria ser reprimida para auxiliar o processo de mudanças estruturais exigidas pela modernidade.

Fica clara nesta afirmação a proposta de modernização nacional calcada na tecnocracia e estatismo,

ligada à repressão aos movimentos de contestação internos e externos.146 O que mais chama atenção na

fala de Delfim Neto, e tem grande valor para a compreensão da crítica política realizada pelo

Tropicalismo, é o fato de citar um movimento universal contestatório que abarcaria a sociedade civil

mundial.

Em consonância ao medo da eclosão de uma revolta, o regime inicia a perseguição aos

opositores ligados ao setor cultural. Anteriormente, as perseguições políticas oficiais se davam nos

âmbitos sindicais e políticos, sendo brandas em relação à imprensa e aos setores culturais e estudantis.

Com a instituição do AI-5 promove-se uma peneira mais fina, se atendo aos movimentos culturais,

inicialmente aos que tinham claras tendências de oposição e protesto mas, com a sofisticação da

144 Discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves de setembro de 1968, extraído de Gaspari, Elio; A ditadura envergonhada; São Paulo; Companhia das Letras; 2002, pg. 316

145 Delfim Neto durante a reunião de promulgação do AI-5

146 A Operação Condor da década de 1970, baseada na proteção das ditaduras da América Latina contra o inimigo comunista é um bom exemplo

82

repressão, acaba perseguindo os artistas que alegorizavam e parodiavam a realidade nacional de forma

velada. Desta forma, os tropicalistas acabam sendo alvo de investigações e sendo presos após o

tumultuado show de outubro de 1968, na boate Sucata. O jornal, no dia seguinte ao show, colocava:

“O show de Caetano, Gil e Mutantes estava no auge quando a moça se levantou e interveio aos gritos: ‘Pára, pára!’ Veloso & Cia. não poderiam perder a deixa e o espetáculo foi num crescendo à loucura, até terminar o ‘happening’, Caetano estirado no chão, a música trepidante, o frenesi”147

A reação da moça da platéia era uma reação enérgica de parte da população que começava a ver

o experimentalismo e o happening tropicalista com ressalvas. O experimentalismo que, da mesma

forma que a música de protesto, causava urticária à direita radical, tinha o poder de questionar a função

do músico no palco e sua inserção na indústria cultural trazendo forte resistência por parte dos grupos

politizados de esquerda e da direita mais inteligente que compreendiam a parodização feita pela

Tropicália como uma afronta à moralidade nacional. O happening, o teatro de agressão de José Celso

Martinez e o cinema de Glauber Rocha passavam a ser obras de grande perigo para a ditadura militar,

pois pretendiam conscientizar o espectador através da constatação da própria passividade perante os

acontecimentos. “O objetivo é abrir uma série de Vietnãs no campo da cultura, uma guerra contra a

cultura oficial, de consumo fácil.”148 O regime militar, cioso da atuação dos artistas, prende os

principais representantes da oposição cultural e inicia uma fase onde a música deixa de utilizar a

alegoria e a paródia como base criadora e passa a se ocupar em encobrir com metáforas e aforismas a

realidade nacional. O Brasil entra no período de Julinho de Adelaide, de “afaste de mim esse cálice” e

“apesar de você amanhã há de ser outro dia”, criando novas formas de driblar a censura e a

perseguição política, quando a “matéria política se encontra suspensa ou recalcada.”149

O setor cultural no Brasil frente à conjuntura social

No Brasil, o caráter libertário das manifestações estudantis e populares era colocado em segundo

plano. Havia a primazia das correntes ligadas ao marxismo-leninismo, em sua maioria, além dos

movimentos maoístas, trotskistas e católicos. Exprimindo essa preponderância, a música realizada

pelos quadros vinculados à juventude estudantil também deveria contar com forte cunho social e

revolucionário, caindo, muitas vezes, no puro dogmatismo. A cultura possuía um papel revolucionário

e a música uma relevância ainda maior graças a seu poder de difusão e inculcação de mensagens

147 Última Hora, 11/10/1968 148 Ventura, Zuenir; 1968: O Ano que Não Terminou, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, pg. 87 149 Santiago, Silviano; “Fazendo perguntas com o martelo”; In. Vasconcellos, Gilberto; Música Popular: de olho na fresta, Rio de Janeiro, 1977, pg. 10

83

políticas. Através de um discurso participante e nacionalista, os músicos deveriam propiciar o

desenvolvimento da politização das massas mas esqueciam a dimensão estética da arte com a

realização de obras toscas e propostas estéticas ingênuas e ultrapassadas. Muitas canções foram

elaboradas com temas recorrentes como o cangaceiro, o sertanejo ou os jangadeiros (no III Festival da

TV Record de 1967 nada menos que 62 músicas tinham jangadeiros como tema), buscando um

vínculo, muitas vezes artificial, com as classes populares. Como coloca Walnice Galvão, a música de

protesto seria o reflexo de um momento onde o conformismo estaria travestido por letras engajadas

que propunham a interferência na realidade e a conscientização do público, enquanto tolhia a ação do

espectador ao exibir dois “seres imaginários” presentes nas canções: o “dia que virá” (“Vim de longe/

vou mais longe; quem tem fé vai me esperar; escrevendo numa conta/ pra junto a gente cobrar/ no dia

que vem vindo...” em Aroeira, de Geraldo Vandré ou, numa fase ligada à música de protesto, Gilberto

Gil e Caetano Veloso compõem Batucada “O samba vai vencer/ quando o povo perceber que é o dono

da jogada”) e o culto à canção como objeto fetiche (“Qualquer canção/ quase nada/ vai fazer o sol

levantar/ vai fazer o dia nascer” em Avarandado de Caetano Veloso em seu disco “Domingo”).

Geraldo Vandré imaginava que toda música tinha uma forte carga de protesto, quando o artista criava a

sua obra estaria traçando sua visão da realidade, tendo como objetivo a conscientização da platéia

quanto aos problemas sociais e a realidade brasileira. A música de protesto possuía grande penetração

junto à classe média urbana, que, contraditoriamente, constituía seu maior público consumidor. Luís

Carlos Maciel sublinhava o protesto como uma operação de catarse, utilizada desde a Grécia antiga:

“O ódio reprimido envenena o organismo. Acumula, acaba por explodir em violência cega. A catarse

artística efetua uma descarga de emoções, desmobiliza-a.”150

Sérgio Ricardo colocava a impossibilidade da música resolver a situação política nacional: “A

música não pode resolver coisa alguma, e eu apenas me coloco como participante do quadro nacional,

de onde transmito a minha notícia, cantando ou filmando, que é o que sei fazer.”151 Os músicos da

estética do protesto e da conscientização popular propagavam a imagem do Brasil prestes a estar na

vanguarda do anti-imperialismo. Porém, a mensagem veiculada pela canção não condizia com a futura

realidade de recrudescimento da ditadura, nas perseguições aos “subversivos” e na constituição de uma

oposição baseada nos grupos estudantis e artísticos como únicos representantes da oposição. Carlos

Lyra e Chico de Assis compõem Subdesenvolvido, em 1963, para o Centro Popular de Cultura da

União Nacional dos Estudantes, o famoso CPC da UNE. Na música, há uma óbvia aversão aos Estados

Unidos e ao imperialismo:

150 “Eles dizem ‘não’, mas todo mundo aplaude”; Veja, 27/11/1968 Interessante pesquisa para os interessados na história da música de protesto 151 “Eles dizem ‘não’, mas todo mundo aplaude”; Veja, 27/11/1968

84

“(...) Só nos mandaram o que sobrou de lá: matéria plástica, que entusiástica, que coisa elástica, que coisa drástica. Rock balada, filme de mocinho, ar refrigerado e chiclete de bola e coca-cola. O povo brasileiro tem personalidade. Não se deixa influenciar com facilidade. Embora pense como americano: I am going to kill that indian before he kills me. O povo brasileiro embora pense, dance, cante como americano, não come como americano, não bebe como americano/ vive menos, sofre mais/ Isso é muito importante, muito mais que importante/ pois difere os brasileiros dos demais/ Personalidade, Personalidade, Personalidade/ Sem igual; porém/ Subdesenvolvida, Subdesenvolvida/ Essa é que é a vida nacional ”

Os Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes consistiram num dos

movimentos que trouxeram a oxigenação na cultura nacional e a divulgação de nossa música.

Percorriam fábricas e bairros populares divulgando a arte popular, ligada intrinsecamente à

conscientização política e social. O anteprojeto do manifesto do CPC da UNE de 1962 propunha uma

arte não mais “... incomunicável e independente dos processos materiais.”152 O artista deveria levar em

conta a vida cotidiana e material para construir sua obra. Obviamente, os tropicalistas, que não se

colocavam à distância dos problemas nacionais, resolveram trabalhar junto a propostas estéticas que

aliam esta vida material e cotidiana nacional aos acontecimentos globais, na busca de uma imagem

intertextual da realidade nacional e mundial. A fragmentação do discurso residia a principal opção pela

desconstrução da imagem do Brasil estereotipado ou ambiciosamente moderno.

A imagem do Brasil tropicalista seria gestada concomitante à enorme multiplicidade cultural e às

várias mediações realizadas em nossa cultura. Mediações que vem ocorrendo desde as modinhas de

carnaval de Chiquinha Gonzaga e as transposições da cultura popular para a cultura erudita realizadas

por Ernesto Nazareth, Guerra Peixe e, o mais célebre, Villa-Lobos, que seriam os pais da interseção

entre o erudito e o popular em nossa música, haveria a predominância de um estilo visceralmente

miscigenado na música brasileira. Resultante desta miscigenação, há a formação de uma música que se

adapta ao seu contexto de veiculação e exibição. A adequação ao público consumidor sempre foi uma

das principais preocupações dos músicos brasileiros, gerando contrastes entre suas vidas públicas, as

vivências cotidianas e a imagem que buscavam reproduzir frente à platéia erudita, como o caso de

Luciano Gallet que tocava piano em cinemas onde se dirigiam “mulheres da rua do Núncio,

marinheiros, a mais linda esfera da sociedade”153, como o próprio relatava com ironia.

152 Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, redigido em março de 1962, “Arte popular revolucionária”, extraído de Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70, de Heloísa Buarque de Hollanda, Rio de Janeiro, Rocco, 1992

153 Travassos, Elizabeth; Modernismo e música brasileira; Rio de Janeiro, Jorge Zahar, Ed. 2000, pg. 13

85

A ilusão do iminente governo popular

Na década de 1960, vivia-se o que Daniel Aarão Reis 154 chama de utopia do impasse, a crença

de que o governo militar não possuía condições políticas e históricas para se manter por muito tempo

no poder. A sociedade civil se revoltaria contra a política de desenvolvimento econômico com

repressão à oposição, patrocinada pelo regime ditatorial, unindo-se ou simpatizando com a luta, às

vezes armada, contra a ditadura. Antes do golpe alguns achavam que era chegado o momento da

constituição de um governo popular no Brasil. Observamos a declaração de Luís Carlos Prestes para a

TV em março de 1964: “Não estamos no governo, mas estamos no poder.”155 Mesmo após a

consumação do golpe militar e da perseguição política em 1964, ainda em 1968, os estudantes e

manifestantes de oposição continuavam achando que a queda do regime militar era uma questão de

tempo. O fim do golpe se propagaria através da revolta estudantil e trabalhista gestada nas passeatas e

embates com os órgãos de repressão. Luís Travassos, um dos líderes estudantis da época, colocava

peremptoriamente: “Na verdade o que se discutia então era qual a estratégia para terminar com o

capitalismo no Brasil.”156

Os setores da música popular brasileira (MPB) ligados à canção de protesto não viam com bons

olhos a tendência subversora e dessacralizadora dos tropicalistas, lutando contra a inserção de

instrumentos elétricos e a popularização da Jovem Guarda e protestando com manifestações ruidosas,

por vezes violentas. A famosa e polêmica passeata organizada pela chamada Frente Única, que

clamava pelo reconhecimento da música genuinamente nacional contra o avassalador iê-iê-iê, constitui

um ótimo exemplo destas manifestações. Nela figuravam com destaque: Elis Regina, Edu Lobo,

Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, Zé Kéti, os componentes do MPB-4 e, pasmem, Gilberto Gil, que

passava pelo dilema entre assumir uma postura mais radical e anti-sistema adotando uma música

“universal” ou ficar ao lado de seus companheiros defensores da música tradicional. Na passeata era

cantado o hino da Frente Popular: “Moçada querida/ cantar é a pedida/ cantando a canção/ da pátria

querida/ cantando o que é nosso/ com o coração”.

Nada mais sintomático vindo de um grupo que via com pavor a inclusão de uma linguagem

estética estrangeira como o iê-iê-iê na MPB, também acusada de ser popularesca e apontada como

responsável pelo esvaziamento da música tradicional brasileira. Mais tarde, Gil colocava

explicitamente que alguns músicos temiam perseguições ideológicas da velha guarda da MPB e que

154 Reis, Daniel Aarão; Ditadura militar, esquerdas e sociedade- Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 2000, pg. 52

155 Extraído de Cultura e participação nos anos 60, Buarque de Hollanda, Heloísa e Gonçalves, Marcos A.; São Paulo, Brasiliense, 1982, pg. 12. 156 Ventura, Zuenir; 1968: O Ano que Não Terminou, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, pg. 61

86

suas carreiras fossem estigmatizadas se adotassem uma estética pop ou experimental. Capinam não

concordava com a negação do mercado realizada pela esquerda cultural, ressaltando: “(...) o

comportamento pré-capitalista da esquerda brasileira que resiste à industrialização e vê o mercado

como grande sacrifício de sua arte.”157

Como sabemos, a cultura representava o último bastião da oposição ao regime militar e deveria

representar toda a sociedade na luta pela liberdade e democracia. Havia uma efervescência cultural

expressa por Paulo Emílio Salles Gomes como “parte de uma corrente mais larga e profunda que se

exprimiu igualmente através da música, do teatro, das Ciências Sociais e da literatura.”158 Outra visão

sobre o fortalecimento da oposição intelectual é exposto por Michael Löwy que tinha os intelectuais

como uma categoria social definida: “eles são os produtores diretos da esfera ideológica, os criadores

de produtos ideológicos culturais”159 que seriam gerados pelo “traumatismo ético-cultural e político

moral”, fruto da reificação do trabalho intelectual e cultural. Daí o fomento da crítica ao sistema

capitalista e à ordem social estabelecida, por parte dos movimentos alternativos e de uma

intelectualidade desvinculada do pensamento das grandes corporações. No Brasil, Carlos Nelson

Coutinho, em entrevista concedida a Marcelo Ridenti, reafirmava o papel da intelectualidade após o

fechamento dos canais de representação política de oposição:

“(...) as pessoas que tinham forte interesse pela política terminavam levando esse interesse para a área da cultura. Isso teve um lado positivo. Claramente a cultura tem uma dimensão política. Mas, às vezes, também tem um lado negativo, no sentido de que se politizaram excessivamente disputas que na verdade são mais culturais que partidariamente políticas. (...) A esquerda era forte na cultura e em mais nada. É uma coisa muito estranha. Os sindicatos reprimidos, a imprensa operária completamente ausente. E onde a esquerda era forte? Na cultura.”160

Correlata à crença no poder da cultura como propagador da luta contra a ditadura e a

desigualdade social, o setor estudantil vivia grande efervescência, mesmo vivendo dentro da luta diária

contra a repressão nos conflitos de rua. Em 1968, o Brasil viveu momentos de pura adrenalina com as

ocupações de universidades como o campus da Praia Vermelha da UFRJ (Universidade Federal do Rio

de Janeiro) ou o campus da UNB (Universidade Nacional de Brasília)161; os combates que resultaram

157 Revista Civilização Brasileira; “ Que caminho seguir na música brasileira; pg. 379

158 Salles Gomes, Paulo Emílio Cinema: trajetória no subdesenvolvimento; Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, pg. 82

159 Löwy, Michael; Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários; São Paulo: Ciências Humanas, 1979, pg. 1 In.: Ridenti, Marcelo; Em busca do povo brasileiro; Rio de Janeiro, Record, 2000 pg. 53

160 Ridenti, Marcelo; Em busca do povo brasileiro; Rio de Janeiro, Record, 2000 pg. 55

161 O filme Barra 68: sem perder a ternura (produção de 2000) trata da invasão da polícia à universidade ocorrida em 29/08/1968

87

na morte de Édson Luís em março; a intensificação e maior agressividade das manifestações

estudantis162, em junho com a famosa “sexta-feira sangrenta” e a passeata dos 100 mil; com a prisão de

1.240 estudantes no congresso da UNE em Ibiúna163 em outubro; a expansão da guerrilha e a

radicalização política. Momento de radicalização da oposição e paralelamente da ditadura militar, o

ano passou a ter um caráter mítico no Brasil graças a estes acontecimentos e por consistir no último

ano da “ditadura envergonhada.”164 A ditadura também toma atitudes de força e aumentam as

perseguições políticas, o uso da tortura e o desaparecimento de presos políticos.

“Atenção/ ao dobrar a esquina/ uma alegria / atenção menina/ você vem?/ quantos anos você tem?/ Atenção/ Precisa ter olhos firmes/ pra este sol/ para esta escuridão/ Atenção/ tudo é perigoso/ tudo é divino, maravilhoso/ Atenção para o refrão:/ É preciso estar atento e forte/ não temos tempo de temer a morte.”

O sol, que para ser enfrentado precisa ter olhos firmes, firmeza de caráter e posições bem

definidas, enquanto a escuridão representaria o obscurantismo e violência da repressão à oposição. Ao

mencionarem o temor e a atenção, característicos da época, havia a informação de uma realidade de

perseguição política e o clamor pela tomada de consciência quanto a esta realidade. A tensão

aumentava e os tropicalistas reinventavam a música de protesto com Gal Costa apresentando a canção

Divino Maravilhoso de forma agressiva “(...)rompendo com o que tinha sido (a sua carreira anterior)

passando a seguir a estética tropicalista, buscando uma maneira extrovertida de se comunicar.”165 Com

essa mudança de atitude, um rebuscamento do desempenho vocal com claras influências de cantoras

de blues como Janis Joplin e seguindo a tendência de Rita Lee dos Mutantes, Gal Costa passa a utilizar

glissandos, uivos e gritos em suas músicas. Sons guturais, acompanhados de longos solos de guitarra,

em jam sessions intermináveis, como as vividas pelos blueseiros norte-americanos. Os Mutantes, com

sua facilidade decompor rocks, geraram músicas épicas, que faziam clara referência ao rock

162 Assim retrata Elio Gaspari “Édson Luís morrera na quarta-feira e fora sepultado na sexta, 29 de março. Passariam sábado e o domingo, mas os estudantes e a tropa tinham um encontro marcado em todo país para a segunda-feira, 1º de abril, aniversário da ‘Revolução Redentora de 31 de Março’. Ao anoitecer, o centro do Rio viu uma pancadaria sem paralelo desde agosto de 1961, quando polícia e defensores da legalidade constitucional se enfrentaram por quase uma semana. Morreram mais um estudante e um marítimo. O balanço de dois hospitais mostrava que uma liderança então desconhecida organizava pelotões de jovens dispostos a brigar: dos 56 feridos listados, trinta eram policiais. ‘ Poucas vezes a polícia apanhou tanto,’ registrou Zuenir Ventura, elegante e minucioso cronista de 1968- O ano que não terminou .(pgs. 110 e seguintes) “O governo só retomou o controle da situação quando 1200 soldados do 2º Batalhão de Infantaria Blindada desceram pela avenida Presidente Vargas e ocuparam a Cinelândia.” Gaspari, Elio; A ditadura envergonhada; São Paulo- Companhia das Letras, 2002, pg. 282

163 É engraçado observar os comentários de lucidez atordoante de Josef Mengele sobre o setor estudantil e os métodos utilizados pela polícia para

reprimi-lo. Em carta de abril de 1964, enviada a Wolfgang Gerhard, Mengele comentava: “Com facilidade, agentes pagos poderiam se disfarçar como estudantes profissionais em todos os países e desmascarar os cabeças dos bandos. Assim, pôde ser desmontado por aqui [no Brasil] um congresso de líderes estudantis que se reuniram (e pernoitaram) secretamente numa fazenda...”

164 Ver Gaspari, Elio; A ditadura envergonhada; São Paulo, Companhia das Letras, 2002

165 Mello, Zuza Homem de; A era dos festivais: uma parábola; São Paulo, Ed. 34; 2003

88

internacional e brasileiro. Ao gravarem Mágica, com o mesmo riff166 de Satisfaction dos Rolling

Stones, apresentavam a linguagem pop ao público nacional. Os Mutantes também regravaram rocks

nacionais de sucesso como Rua Augusta de Ronnie Cord. A polarização política e estética aumentava,

enquanto os músicos tropicalistas tinham como referência o movimento de contestação global

presenciado pela juventude. De forma distinta do rock juvenil da década de 1950 ou da Jovem Guarda,

os tropicalistas adequavam a linguagem pop à musicalidade nacional interrogando e criticando a

própria juventude e suas principais premissas: “É essa a juventude que quer tomar o poder?”167,

questionava Caetano Veloso. Ao buscar novos parâmetros para a recepção e concepção da obra de

arte, os tropicalistas entendiam ser necessário o uso de novos meios de propagação cultural e a inter-

relação entre estes diversos meios. Através da nova estética haveria a disseminação de obras de arte

atreladas tanto a seu conteúdo estético como também voltadas para a compreensão e crítica da tradição

artística anterior. Eram possuidoras de sentimento de renovação cultural ligado a concepções niilistas e

dadaístas que reuniam o sentido de uma arte nova e original com o folclore nacional e a cultura

primitiva brasileira, que viesse representar o ano zero da nova estética,.

Lindonéia é outra música que traduz a tensão do momento político. Inspirada na obra de Rubens

Gerchman, Caetano Veloso fala de uma empregada doméstica suburbana que, através da leitura de

folhetins e dos programas de televisão, trava contato com a realidade “linda/feia”. A obra de

Gerchman só foi percebida após Nara Leão chamar a atenção para um quadro que, “por ser uma

espécie de crônica melancólica da solidão anônima feita em tom pop e metalinguístico, tinha

parentesco direto com o Tropicalismo musical...”168 Há em sua letra uma alusão cifrada à repressão e

aos virtuais párias da sociedade: “despedaçados atropelados/ cachorros mortos nas ruas/ policiais

vigiando/ o sol batendo nas frutas/ sangrando.”

Assim ocorria uma polarização crescente em torno dos temas expressos pelos artistas. A música,

de forma mais específica, sofreu grande pressão da sociedade civil para que representasse o

descontentamento com o regime. Outro fator que possuiu grande peso na construção da moderna MPB

consistiu na solidificação das redes de TV nacionais, que tinham como carro chefe os programas

musicais “O Fino da Bossa”, “Primeira Audição”, “Esta Noite se Improvisa”, “Jovem Guarda” e,

obviamente, os Festivais da Canção.

A televisão brasileira, que buscava se consolidar nesse período, adotou a MPB como principal

meio de divulgação com a veiculação de programas gerados ao vivo pelas emissoras, numa época em 166 “Termo originário do jazz que é amplamente empregado na música popular de vários países, em geral com referência a um padrão rítmico-melódico recorrente, às vezes modulando harmonicamente e atingindo por progressão tonalidades vizinhas ou estranhas.” Autran Dourado, Henrique; Dicionário de termos e expressões da música, São Paulo: Ed. 34; 2004 167 Passagem do discurso de Caetano durante a apresentação de É Proibido Proibir em 15 de setembro de 1968 no TUCA durante a final paulista do III Festival Internacional da Canção 168 Veloso, Caetano; Verdade Tropical; São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 274

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que não era comum o uso do chamado videoteipe. A obrigatoriedade de fazer os programas ao vivo

marcou a MPB, pois era necessário que a TV colocasse uma programação que obtivesse audiência e

buscasse driblar as limitações técnicas. Ao transmitir programas como o “O Fino da Bossa” ou “Jovem

Guarda”, a limitação técnica era patente. Mas essa precariedade seria contraditória no tocante às

problemáticas suscitadas por ela, que acabariam desencadeando o nascimento de um estilo criativo

próprio, como conta Renato Ortiz: “Nessa fase de pioneirismo, onde as coisas ainda estão por

construir, a iniciativa individual é fundamental, ela é parte integrante das estruturas que ‘funcionam

mal’. A improvisação é nesse sentido uma exigência da época.”169 O tema da criatividade ressurge na

análise de José Miguel Wisnick quanto à formação de um sistema aberto na música “que passa por

verdadeiros saltos produtivos, verdadeiras sínteses críticas, verdadeiras reciclagens: são momentos em

que alguns autores, isto é, alguns artistas, individualmente e em grupo, repensam a economia do

sistema.”170 Uma das expressões de reavaliação seria encabeçada pela bossa nova e pelo Tropicalismo,

que remeteriam a cultura nacional a um questionamento das estruturas solidificadas na música popular

brasileira.

As novas estéticas de “subversão”

Uma canção despretensiosa, que provocou uma das maiores polêmicas já observadas na MPB,

foi exibida no III Festival Internacional da Canção em 1968. A apresentação de É Proibido Proibir

constituiu um claro divisor de águas dentro da futura criação estética musical brasileira. Tal

acontecimento já apresentava antecedentes na rivalidade clara entre os defensores da música mais

tradicional ou mais engajada contra os partidários de novas sonoridades (influência estrangeira e

utilização de instrumentos elétricos). Para termos uma vaga idéia, as platéias entravam em confronto,

muitas vezes físico, em defesa de seus ídolos. Alguns fãs ficaram famosos pelas loucuras cometidas

para favorecer seus cantores preferidos. Por exemplo, a torcida de O Combatente - apresentada no III

Festival da TV Record em 1967 por Jair Rodrigues, Quarteto Novo e Walter Santos que dizia “Tem

liberdade me esperando, eu vou/ Tem esperança me acenando, eu vou/ Tem verdade me levando, eu

vou” - chegou a realizar passeatas que terminaram na redação do jornal Última Hora. Os defensores de

169 Renato Ortiz; A moderna tradição brasileira, São Paulo, ed. Brasiliense, 1o reimpressão, 1995,pg. 97

170 José Miguel Wisnick; “O Minuto e o Milênio ou Por Favor, Professor, uma Década de Cada Vez”, In Anos 70-Música Popular, Rio de Janeiro, Europa, 1980, pg. 15

90

O Combatente constituíam um grupo bem organizado, com idéias articuladas e opositor do regime

militar, militando junto aos artistas do Teatro de Arena.171 A platéia, que fazia uso da vaia para

demonstrar sua repulsa, vai se radicalizando, chegando a constituir um grupo de pressão junto aos

jurados dos festivais.

Platéia capaz de ser ‘conservadoramente revolucionária’, como afirmava Caetano Veloso, no

lendário discurso no Teatro da Universidade Católica de São Paulo:

“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado. São (sic) a mesma juventude que vão sempre, sempre matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem. (...) Que juventude é essa? Vocês jamais vencerão ninguém (...) vocês são iguais sabe a quem? Vocês são iguais sabe a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles.(...) Vocês estão querendo policiar a música brasileira, mas é americana, mas eu e Gil já abrimos o caminho, o que vocês querem?”

O discurso traz um breve detalhamento da delicada situação que a música brasileira passava,

com grandes disputas ideológicas e estéticas. Durante esse período a cultura havia alcançado uma

posição singular, sendo que mesmo com a instituição da censura, não havia sofrido diretamente com

perseguições mais violentas de seus elementos, ao contrário dos sindicatos e partidos políticos.

Caetano Veloso não tinha grandes expectativas em relação a É Proibido Proibir. Ele afirmava

que a música fora baseada em uma fotografia dos acontecimentos de maio de 1968 em Paris com o

grafite “É proibido proibir”, frase que Buñuel afirma ser surrealista,172 publicada na revista Manchete e

vista por Guilherme Araújo, produtor dos tropicalistas. É Proibido Proibir só foi criada diante da

insistência de Guilherme Araújo sobre o que seria um bom mote para uma nova composição, apesar da

crença de Caetano que “(...) uma natureza de choque efêmero desses ditos: se reprisados, eles revelam

uma ingenuidade que trabalha com os próprios impulsos que os inspiraram.”.173 Além disso, Caetano

pensava que poderia haver certa confusão entre o que acontecia aqui e as manifestações de Paris.

É Proibido Proibir discorre sobre um momento capital da história contemporânea. O maio

parisiense de 1968, com a negação às convenções pequeno-burguesas (o movimento se inicia em

Nanterre graças à revolta dos estudantes locais pela separação em alojamentos masculinos e

femininos) e aos esquemas políticos estabelecidos (com a profusão de grupos políticos anarquistas,

trotskistas e maoístas, concomitante à crítica ao stalinismo e aos movimentos sociais e sindicais

tradicionais) é, até hoje, um dos marcos da década de 1960. A espontaneidade juvenil e o alcance do

171 Mello, Zuza Homem de; A Era dos Festivais; uma parábola; São Paulo; Ed. 34; 2003, pg.193

172 Ver Verdade Tropical, Caetano Veloso, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 297

173 Ibidem

91

movimento estudantil, que paralisou a França durante uma semana com greves de várias categorias,

foram determinantes na formação do imaginário contemporâneo. Sempre que se alude aos eventos

estudantis vem a recordação do maio parisiense e sua característica libertária, representada pela

pichação “É Proibido Proibir: lei de 10 de maio de 1968” dentre outras como “Bientôt de charmantes

ruines” (Breve, charmosas ruínas).174

Em Paris emanava um forte sentimento libertário, onde os muros da cidade adquiriram

importância junto à veiculação de mensagens e idéias. A inscrição de mensagens nos muros (grafite ou

pichação) obteve a aura de veículo de comunicação sem intermediários. Baudrillard ao comentar o

grafite observava:

“Estamos face a um novo tipo de intervenção da cidade, não mais como lugar do poder econômico e político, mas sim como espaço/tempo do poder terrorista dos mídia, dos signos e da cultura dominante”. Os grafites: “...provêm da categoria de território. Eles territorializam o espaço urbano decodificando-o – esta rua, aquele muro, tal quarteirão assume vida através deles, tornando-se território coletivo. E eles não se circunscrevem ao gueto, eles exportam o gueto para todas as artérias da cidade, eles invadem a cidade branca e revelam que ela é o verdadeiro gueto do mundo ocidental.”175

A pluralidade cultural consiste a base da pintura mural e do grafite. Nos Estados Unidos há a

politização do grafite. Em 1967, na cidade de Chicago, o Black Power inaugurou uma pintura mural

coletiva reunindo 21 artistas, intitulada Wall of Respect, dando fôlego para um movimento comunitário

de tomada dos muros urbanos. Em Paris, no ano de 1968, através do silk screen e da serigrafia, os

Ateliês de Arte Popular cobriram a cidade com cartazes que defendiam reformas sociais, utilizando o

código verbal ou visual, de forma conjunta ou isolada.176

É Proibido Proibir teria como mote um grafite e a vontade tropicalista de sacudir as estruturas

da música nacional e, mesmo com o temor de provocar reações desmesuradas, Caetano e os Mutantes

efetivaram o cisma na MPB ao criar uma música que exprimia, de forma exuberante, o contexto global

da época. A massificação do grafite gera um fenômeno urbano que democratiza a veiculação de

mensagens e idéias, que não mais viriam acondicionadas em livros ou programas de televisão. O

grafite era um meio que dava voz aos excluídos do ciclo de formação de opinião e que aquire grande

peso na periferia intelectual, principalmente entre os jovens. Caetano frisava o happening e a busca por

novas formas de expressão de sua poesia e o grafite lhe assessorava com farto material na

representação de uma arte que não obedecia fronteiras culturais ou geográficas. A intermediação entre

174 Ver Olgária C. F. Mattos; Paris 1968: as barricadas do desejo, São Paulo, Brasiliense, 1989

175 Baudrillard, Jean; L´Echange Symbolique et la Mort, Gallimard, 1976 apud. Matos, Olgaria C. F.; Paris 1968 as barricadas do desejo, São Paulo, Ed. Brasiliense, pg. 63

176 Knauss, Paulo; Grafite urbano contemporâneo; mimeo Encontro da ABEA/2000

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a linguagem dos guetos, o discurso político e as manifestações populares expressa nos muros tinha

caráter totalmente avesso a limitações estéticas, concepções de autoria ou ideológicas. O Tropicalismo

utilizava esse tipo de linguagem para colocar de forma visível, no sentido literal, o discurso atrelado às

modificações culturais de seu tempo. As canções tropicalistas sempre faziam referência à TV, às

histórias em quadrinhos, aos outdoors e ao cinema, utilizando o que podemos chamar de visualização

da letra. A visualização da letra representava uma técnica onde o uso de imagens consagradas no

imaginário popular projetava, como um filme, a realidade nacional. Para fixar a letra e dar uma maior

visibilidade é utilizado o recurso de mencionar imagens claras repetidas várias vezes (“o sorvete é

morango/ é vermelho”). Assim garantia uma aproximação do que Augusto de Campos denominou

como a montagem einsensteniana de Domingo no Parque, com seus closes e fusões.177

A execução de “É Proibido Proibir”

Explorando novas tendências musicais surgem citações claras à música de Jimi Hendrix e sua

guitarra distorcida em É Proibido Proibir, uma voz gutural e primitiva de fundo, arfando e dando a

impressão estranha e imprecisa à introdução da música, prática pouco comum até a introdução de uma

linguagem psicodélica no rock´n´roll do final da década de 60 também reafirmava o universalismo

tropicalista. Unidos a um piano fazendo escalas, os ruídos passam a ser acompanhados por uma bateria

e um baixo, com um ritmo próximo ao chamado iê-iê-iê. Após a introdução, há o início da letra da

música: “A mãe da virgem diz que não/ E o anúncio da televisão estava escrito no portão/ E o maestro

ergueu o dedo e além da porta/ ao porteiro, sim/ E eu digo não/ E eu digo não ao não/ Eu digo é

proibido proibir...” Na opinião de Luiz Carlos Maciel, Caetano verificava com a música:

“(...) a afirmação repressiva dos valores estabelecidos pela estrutura social vigente. Essa verificação vai das restrições sexuais familiares (´A mãe da virgem diz que não´), à manipulação das consciências por exigência da economia capitalista de consumo (´E o anúncio da televisão´), à codificação da ideologia dominante numa superestrutura jurídica e formal (´Estava escrito no portão´), ao cerceamento da liberdade artística através da estética tradicional (´E o maestro ergueu o dedo´) e, finalmente, ao policiamento organizado dos interesses da classe dominante (´E além da porta há o porteiro´).”178

É Proibido Proibir, escrita em compasso ternário, deveria soar como uma marchinha,

intercalada por frases de cunho anarquista. Após sua feitura, Caetano não pensava nela como uma

música de festival, mas novamente Guilherme Araújo o persuade a inscrevê-la no III Festival

177 Campos, Augusto; Balanço da Bossa; Ed. Perspectiva, São Paulo, 1968, pg. 141

178 Maciel, Luiz Carlos; Correio da Manhã, 11/10/1968

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Internacional da Canção de 1968, patrocinado pela emergente TV Globo e sediado no Maracanãzinho.

Caetano, em seu livro de memórias, define bem a sua repulsa ao festival e a antevisão da forte

oposição do público:

“Minha recusa foi resistente. Até que, relacionando essa insistência de Guilherme com a que ele mostrou para me convencer a escrever o ‘É Proibido Proibir’, pensei, primeiro em tom de brincadeira, depois já antevendo o que poderia fazer, em inscrever exatamente essa canção no tal festival. Eu dizia a ele, quase em tom de ameaça, que poria a música no certame como mero pretexto para fazer da minha apresentação ali um happening.”179

Dentro do festival o que se viu foi um grande movimento de aversão à música, com fortes

ataques da chamada esquerda estudantil para o fato dos tropicalistas não assumirem explicitamente

posição contra o regime militar, principalmente após a apresentação de uma música com um caráter

crítico avassalador. A cenografia tropicalista mais radical, a capa de plástico verde e colete prateado

usados por Caetano dando-lhe caráter andrógino, vestimentas alusivas ao movimento hippie

(abominado pela esquerda estudantil por ser considerado um movimento alienado politicamente ou, na

gíria da época, desbundado) foram apresentados pela primeira vez no Festival Internacional da Canção

(FIC) de 1968, tendo grande peso na formação de uma imagem alienada do movimento. A participação

de um estrangeiro, Johnny Grass,180 que uivava e pulava no palco, serviu como gota d’água para os

protestos mais violentos. Os jurados do festival se empenhavam, enquanto isso, em fazer com que a

representação não interferisse no julgamento. Porém, com o desenrolar da apresentação, o

descontentamento e a vaia da platéia à música, em contraponto ao lendário discurso de Caetano181

onde procurava sintetizar a proposta tropicalista e o momento que o mundo vivia, provocaram o

abandono do festival por Caetano que passa a renegar a estrutura dos festivais. É sintomática a ocasião

da cisão de Caetano com a estrutura televisiva. No mesmo período da apresentação de É Proibido

Proibir há o primeiro, e talvez o único, programa tropicalista da TV nacional, “Divino Maravilhoso”,

quando os tropicalistas resolveram radicalizar as propostas pop e utilizar uma linguagem e uma

estética cada vez mais agressivas. Enquanto a indústria cultural absorvia a guinada pop proposta pelo

Tropicalismo, Torquato Neto, Gilberto Gil, Caetano Veloso e o grupo tropicalista extremavam suas

experiências estéticas. No programa Caetano cantava plantando bananeira e parodiava canções

natalinas com o fundo de paredes pichadas e cobertas de colagens. “Divino Maravilhoso” foi

considerado por alguns como o programa mais anárquico feito até os dias de hoje na televisão

179 Veloso, Caetano; Verdade Tropical; pg. 298-299

180 “O ‘hippy’ proibido dos Tropicalistas”; Veja; 23/10/1968, pg. 61

181 Ver página 30 e parte do discurso de Caetano Veloso

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brasileira, principalmente levando-se em conta a ditadura militar. Realizando banquetes dentro de

jaulas, deglutindo e parodiando a influência hippie, os tropicalistas propunham a atualização dos

parâmetros culturais nacionais. Através da utilização do happening e de uma proposta cênica ligada ao

chamado “teatro de agressão”, o programa propunha que a arte abarcasse múltiplas manifestações. O

programa “Divino Maravilhoso” era quase idêntico ao show realizado na boate Sucata, com longos

improvisos musicais e o mesmo espírito iconoclasta. Fernando Faro, diretor musical da TV Tupi,

comentava antes da estréia do programa:

“Acredito no “Divino Maravilhoso” porque se os artistas Tropicalistas foram discutidos, isto é um sinal de popularidade. Se foram agredidos, é porque se comunicaram com mais força. Se eles irritam, causam perplexidade, é porque essa comunicação foi feita fora dos códigos.”182

Iniciava-se, com a radicalização das propostas tropicalistas apresentadas no FIC e no programa

televisivo “Divino Maravilhoso”, uma nova era para o movimento tropicalista e para a vida de seus

integrantes. Após as polêmicas apresentações na boate Sucata, onde supostamente o hino nacional foi

tocado em ritmo “tropicália”183, Gilberto Gil e Caetano Veloso são presos e interrogados por militares,

sendo, posteriormente, exilados. O mais importante é perceber que os militares não distinguiam

claramente as manifestações culturais do período classificando-as, de forma genérica, como

esquerdistas e subversivas.184 Com uma proposta inovadora e original, o mal entendido em relação ao

Tropicalismo era geral. O Tropicalismo investiu na crítica da modernidade acelerada que dividia o país

junto ao arcaísmo. A hibridação de diferentes períodos e a contextualização marcaram a música

tropicalista em conjunção a práticas globais adotadas por diversos artistas e movimentos estéticos.

Dentro da discussão quanto ao papel do Tropicalismo junto à afirmação de uma estética pós-moderna,

nota-se que a década de 60 seria virtualmente o campo de provas, o germinadouro desta nova estética:

“(...) eles (os anos 60) de fato forneceram o background, embora não a definição, para o pós-moderno,

pois foram decisivos no desenvolvimento de um conceito diferente sobre a possível função da

arte...”185

É irônico quando se percebe que o movimento tropicalista teria inscrito no FIC as canções É

Proibido Proibir e Questão de Ordem, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, respectivamente, para

182 Calado, Carlos; Tropicália: a história de uma revolução musical, São Paulo, editora 34, 1997, 234

183 Ver nota 48, página 33 desta dissertação

184 “De há muito, o chamado ‘Grupo Baiano’ da Música Popular Brasileira, que vem atuando principalmente nas Emissoras Unidas (Televisão

Record – Canal 7 e Rádio Pan-Americana, Jovem Pan), vêm cantando ‘músicas de protesto’, subliminarmente atacando o regime vigente e exaltando os regimes socialistas” SS/Deops, 04/03/1968. Extraído de Folha de São Paulo, 02/11/1997, Suplemento “Mais”; pg. 9

185 Hutcheon, Linda; Poética do pós-modernismo; Rio de Janeiro, Imago, 1991 pg. 25

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desestabilizar a polarização estética e propor uma nova visão da música popular brasileira, buscando

sua essência na tradição folclórica paralelamente à adequação ao pop. Na proposta tropicalista seria

determinante o esvaziamento da tradição imutável e arcaica, com o questionamento da modernidade

nacional, comandada de cima para baixo, um processo de modernização liderado por uma tecnocracia

aliada ao exército. O Tropicalismo buscava a construção estética de um movimento embebido da

cultura brasileira que, desde seus primórdios, se caracterizou pelo pluralismo cultural e racial.

Seguindo esta argumentação, há a tendência em trabalhar o Tropicalismo dentro de uma linguagem

intertextual, questionadora dos cânones modernistas, voltada para a paródia e indeterminação. Uma

estética preocupada com o esmaecimento do sujeito e a massificação industrial, correlacionado à

conseqüente desindividualização e a construção de uma personalidade esquizofrênica dos seres

humanos contemporâneos.

O movimento tropicalista, como toda uma geração inspirada pela revolta estudantil, pela

contracultura e o questionamento do sistema, poderia ser sintetizado existencialmente no poema Let´s

play that de Torquato Neto:

“Quando eu nasci/ um anjo louco muito louco/ veio ler a minha mão/ não era um anjo barroco/ era um anjo muito louco, torto/ com asas de avião/ eis que esse anjo me disse/ apertando minha mão/ com um sorriso entre os dentes/ - vai bicho, desafinar/ o coro dos descontentes.”186

Uma década marcada pela forte indignação ligada ao sentimento inexorável de revolta perante a

geração antecessora. Revolta que traduzia o desprezo pelos valores, pelo modo de vida e pela

sociedade baseada na acumulação de capital. Geração que negava de forma veemente o capitalismo,

que possuiu em Torquato um de seus maiores ícones, tradutores de seus anseios e ideais. Os que

permaneceram no país, após o exílio provocado pelo AI-5, produziram uma arte escapista e maldita,

sem meios de manifestar seu pensamento A geração pós AI-5 conviveu com o desaparecimento e

amordaçamento de seus ídolos, criando uma arte marginal que terá como principais meios de

divulgação textos mimeografados, revistas (Navilouca), filmes e eventos multimídia.

186 Extraído de Castelo Branco, Edwar de Alencar; “O anjo torto da Tropicália”, In. Nossa História; Ano 2, número 14, dezembro de 2004

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CAPÍTULO 4

“Look what´s happen out in the streets, Got a revolution, got a revolution”

Volunteers, Jefferson Airplane, 1968

O momento da ruptura tropicalista

O III Festival Internacional da Canção da TV Globo de 1968 consagrou a canção, Sabiá, como

vencedora, fruto da união de Tom Jobim e Chico Buarque; aclamou Geraldo Vandré e Para não dizer

que não falei das flores que teve sua vitória proibida pelos militares187 por seu conteúdo político e

repudiou veementemente Caetano Veloso e Gilberto Gil com suas experiências tropicalistas como as

improvisações e os arranjos pop188 de Questão de Ordem e É Proibido Proibir. As canções de

Caetano e Gil sintonizavam-se com a tomada de consciência sobre o papel da arte e da estética na

construção de uma nova concepção artística, em que interessava mais o processo de concepção da obra

do que a obra em si, próximo ao que alguns teóricos, influenciados pelo estruturalismo, chamam de

“arte aberta”. 189 Obra aberta que Umberto Eco diz ser uma obra de arte ambígua, dotada de uma

pluralidade de significados e ao mesmo com um único significado. Uma obra que, de acordo com o

espectador, adquire um novo enfoque com o significado sendo transmutado de acordo com os

187 Mello, Zuza Homem; A Era dos Festivais; São Paulo, Ed. 34, 2003, pg. 286 Também podemos perceber a polêmica suscitada por Pra não dizer que não falei de flores na declaração do Secretário de Segurança da Guanabara, General Luís de França Oliveira: “Essa música é atentatória à soberania nacional do País, um achincalhe às Forças Armadas e não deveria nem mesmo ser inscrita.” Veja, 09/10/1968, pg. 54

188 A cultura pop representa a mediação entre a cultura popular e os símbolos de consumo com a cultura erudita e seus veículos de propagação. Na música, o pop, simboliza a popularização e edificação de uma consistente indústria fonográfica e cultural, tendo como principais suportes o rock’n’roll e a necessidade de comunicação com um público cada vez maior. Dentro da especificidade dos anos 1960, o pop rock utilizado por Caetano e Gil se assemelhava à música realizada pelos músicos ingleses e norte-americanos, com guitarras destorcidas e o uso do happening (“Happening: Manifestação artística das décadas de 1960/70, que misturava elementos próprios de diversas artes em atuações mais ou menos improvisadas, nas quais o público devia também interferir e que constitui uma importante etapa no desenvolvimento da pop art.” Extraído de Marcondes, Luiz Fernando; Dicionário de Termos Artísticos; Rio de Janeiro, Pinakotheke, 1998, pg. 148

189 Eco, Umberto; Obra Aberta, São Paulo, Perspectiva, 1968 “ No fundo da rebelião dos jovens parece haver um poderoso e irreversível impulso no sentido de colocar a problemática social, econômica e política em contato com a riqueza da moderna capacidade criativa e imaginativa, com o objetivo de efetuar a reestruturação dessa problemática em termos de ‘obra aberta’. A arte moderna, contestando os valores ‘clássicos’ de ‘acabado’ e ‘definido’, propões uma obra indefinida e plural, aberta, verdadeira rosa de resultados possíveis, regida e governada pelas leis que regem e governam o mundo físico no qual estamos inseridos.” , Cutolo, Giovanni; “A abertura de Obra Aberta”, Obra Aberta, pg. 11-12 Curioso ver as características da obra aberta serem resultantes do modernismo e a obra de arte ser regida pela ordem que governa o mundo físico, antítese do pensamento Tropicalista e da pós-modernidade que não se limita à ordem física e material, investindo no subconsciente e no inconsciente através de shows e happenings que unem diversas formas de percepção: audiovisuais, sensoriais e expansores artificiais da consciência (como o uso de drogas, principalmente psicodélicas). Talvez o conceito de obra aberta tenha influenciado decisivamente o Tropicalismo quando vemos a idéia de uma obra de arte que adquire variados sentidos, dependendo da percepção e sensibilidade do espectador da obra. Antes de Umberto Eco escrever seu livro, Haroldo de Campos, um dos expoentes do movimento concreto nacional e defensor do Tropicalismo, publicou um artigo intitulado “A Obra de Arte Aberta” onde discutia as novas formulações estéticas e as novas formas de expressão e comunicação da obra de arte atual. In. Agora na Teoria da Poesia Concreta, São Paulo, edições Invenção, 1965, pg, 28-31 Apud. “A Abertura de Obra Aberta”, Giovanni Cutolo; Eco, Umberto; Obra Aberta, São Paulo, Perspectiva, 1968, pg. 9. Livros de Umberto Eco que marcou a geração da década de 1960 como Zuenir Ventura gosta de frisar: “A obra aberta, de Umberto Eco, fornecia um excelente álibi para que se fizesse da leitura um ato tão intencional quanto a escritura. A recepção ganhava uma absoluta autonomia em relação à emissão. A leitura de um livro, um filme, ou um quadro eram capazes de descobrir sentidos, significados, e sobretudo, mensagens, nem sempre vislumbradas pelo próprio autor.” Ventura, Zuenir; 1968: O Ano que Não Terminou, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, pg. 55

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conceitos e preconceitos deste espectador. Alguns trabalhos, mesmo possuindo um caráter bem

definido conceitualmente podem ser reconhecidos como “abertos” pois possuiriam variadas

interpretações, conforme o espectador. Eco diz: “Cada fruidor é, assim, uma ‘interpretação’ e uma

‘execução’, pois em cada fruição a obra revive numa perspectiva original.”190

Através de várias atitudes, o Tropicalismo demonstra claramente o intuito de balançar as

estruturas do “mesa bem posta” do banquete da MPB, sendo o discurso após a vaia a É Proibido

Proibir a atitude mais pungente e lendária. Com o lançamento do LP conceitual “Panis et Circensis” e

os discos solo de Caetano Veloso e Gilberto Gil os happenings começaram a fazer parte, cada vez

mais, das apresentações tropicalistas. Questão de Ordem e É Proibido Proibir eram canções de claro

intuito provocativo, demonstrativos da continuidade do grupo baiano como mantenedor da proposta

multicultural e de pluralidade estética. O LP surgiu como um marco do movimento que criticava os

guardiões da cultura popular e seu reacionarismo purista. Ao reunir as experiências de desconstrução

poética da realidade nacional à sonoridades modernas, o som universal tropicalista passou a ter um

caráter polêmico, polarizando a briga quanto à validade da inserção de novas linguagens e

sonoridades, chamadas de imperialistas, em nossa cultura. As músicas Questão de Ordem e É

Proibido Proibir foram inscritas no festival com o intuito de criar polêmica e chocar a platéia ligada à

música de protesto. A fecundidade de Caetano na criação de músicas e letras com temas baseados na

sua rotina de jovem artista migrante e na vida urbana exibia a sede por informação de sua geração,

facilitada pela massificação dos meios de comunicação e da TV. Esta massificação surge como um dos

sintomas pós-modernos pois através da indústria cultural há a formação de uma nova organização do

capital e da cultura contemporâneos, diretamente ligados ao capital simulacional e representacional,

criados e manipulados pela indústria cultural.

O despontar de uma geração que “lê tanta notícia”, que tem acesso à informação como nenhuma

geração havia tido na história da humanidade, ajudava a modificar a visão de mundo de toda

população. Surgia, naquele momento, uma geração que lê jornal diariamente, tendo preocupações as

mais variadas. A televisão era o meio de comunicação que mais se desenvolvia e transformava toda a

esfera da produção material e cultural: “Ela nem sabe até pensei em cantar na televisão”.A TV exercia

um poderoso atrativo sobre a música que também vivia uma revolução graças à popularização de seus

ídolos. Os programas de televisão eram o principal meio de divulgação dos cantores. Tanto os músicos

ligados à música de protesto, como os tropicalistas usavam o palco dos festivais transmitidos pelas

TVs para propagar suas mensagens e alavancar suas carreiras artísticas.

190 Eco, Umberto; Obra Aberta, São Paulo, Perspectiva, 1968, pg. 40

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É importante ter em mente que a arte, neste momento, estava cingida aos acontecimentos

planetários e, de forma mais específica, às manifestações de oposição à ordem instituída. Estas

manifestações eram o pano de fundo para a criação de estéticas que não se limitavam a

questionamentos quanto aos conceitos tradicionais, mas criticavam as vanguardas, suas inovações e

sua dificuldade de popularização. No Tropicalismo havia uma interseção entre a música erudita e a

música popular gerada por músicos de vanguarda como John Cage, Pierre Boulez e Karlheinz

Stockhausen que investiam na música atonal e aleatória. Rogério Duprat, maestro tropicalista, Júlio

Medaglia, Sandino Haohagen, Damiano Cozzella e o engenheiro sonoro Manoel Barenbein faziam a

interseção entre a música experimental e o regional brasileiro compondo arranjos para as músicas

tropicalistas. Representantes do grupo “Música Nova” se relacionaram com os músicos experimentais,

aprendendo com Boulez e Sockhausen, além de estudarem na Alemanha no mesmo período que Frank

Zappa, guitarrista experimental norte-americano. O grupo “Música Nova” teve um profícuo contato

com o grupo baiano sendo o responsável pelos arranjos e orquestrações dos discos tropicalistas de

Gilberto Gil e Caetano Veloso. Rogério Duprat e o grupo experimental deram um tom ímpar aos

arranjos, aproximando-os da música pop mundial, em conjunto com um toque tropical e arcaico de

canções clássicas de nosso folclore. A mistura de pop e música brasileira, exemplificada pelo disco

Transa de Caetano Veloso, gravado no exílio em Londres, mostra o melhor do folclore nacional,

capoeira, samba misturado com reggae e pop, expondo toda a verve experimental e referencial do

grupo. Um disco que sobrepujava a idéia de adequação de Caetano Veloso ao pop e a negação da

música brasileira propalada por seus antípodas. Dentro de um contexto diferente, onde se iniciava um

balanço do Tropicalismo, a questão da nacionalidade e das raízes brasileiras se faz presente. Sem

obliterar sua metodologia fragmentária, Caetano reunia “Portobelo Road” a “Triste Bahia”, Gregório

de Matos a Monsueto Menezes sempre utilizando a poesia e a prosa na construção do inventário

tropicalista da realidade mundial. Obviamente, o principal foco deste contexto era o Brasil e seu

folclore, como Caetano já vinha fazendo desde seu primeiro disco londrino ao incluir Asa Branca de

Luís Gonzaga e Humberto Teixeira. O mesmo Humberto Teixeira foi revisitado por Gilberto Gil no

seu disco de despedida do Brasil em direção ao exílio. Neste disco Gil toca 17 Légua e meia, um

baião de Humberto Teixeira em ritmo pop e com os improvisos de guitarra sendo que ao cantar

fazendo referência à frase “eu viajei sem parar” repetidas vezes, frisava o cosmopolitismo do “som

universal”. No mesmo disco, Gil cantava Aquele Abraço, música que se transformou num hino para a

cidade do Rio de Janeiro, reunindo de forma detalhista, com riqueza impressionante, tanto rítmica

quanto poeticamente, o cotidiano carioca. Um samba que traduzia a forte influência do Brasil e da sua

musicalidade no som tropicalista. Dentro de um momento de reflexão sobre a prisão e o Tropicalismo,

o disco “Gilberto Gil” tinha a tônica do questionamento quanto ao papel do homem perante a inovação

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tecnológica e o uso de referências cada vez mais brasileiras. Gil explana sobre as motivações da feitura

do disco e, mais especificamente, da canção Aquele Abraço: “Finalmente eu ia poder ir embora do

país e tinha eu dizer bye bye; sumarizar o episódio todo que estava vivendo, e o que ele representava,

numa catarse.”191 Uma catarse que rendeu a ele dois meses em primeiro lugar nas paradas de sucesso.

Numa vendagem recorde para os padrões tropicalistas havia a pergunta: o compacto Aquele Abraço

representaria a adaptação de Gil ao samba e à música brasileira ou os consumidores buscavam na

música uma alternativa para compreender os acontecimentos? A ditadura militar recrudescia e a

população via com saudosismo seus artistas partirem. Com a promulgação do AI-5 há uma

conscientização maior da população quanto ao autoritarismo do regime militar encadeando uma

oposição maciça à ditadura. A mesma catarse de Gilberto Gil era vivenciada por toda a população que

se via exilada em sua própria nação, exilada de seus direitos políticos e cerceada em seu pensamento e

expressão cultural. Gilberto Gil cantava aquele abraço com dor no peito de deixar o Rio de Janeiro,

mas, acima de tudo, de sair num momento de perseguição violenta aos opositores do autoritarismo

militar.

Havia na cena cultural a discussão sobre o papel da arte junto aos acontecimentos políticos, com

a vertente mais ruidosa propondo uma abordagem mais realista e popular. Os elementos sintonizados

com as vanguardas estéticas se degladiavam contra os setores tradicionais e questionavam a própria

forma de exibição e a passividade da audiência. O questionamento vinha imbuído do uso de objetos e

temas corriqueiros, além da máxima da anti-arte de que “qualquer um pode fazê-lo”. A anti-arte

representaria uma manifestação cultural que não seguia as tendências tradicionais, buscando acabar

com a contradição entre obra de arte erudita e o objeto de uso cotidiano. Seria um termo ligado ao

dadaísmo e retomado pelos happenings da década de 1960. O movimento de vanguarda Fluxus,

comandado por George Maciunas abrangia várias manifestações artísticas e tinha o happening como

principal forma de promoção, propondo a qualidade não preciosa, reproduzível, como base da arte

contemporânea. Preocupados com as discussões quanto ao papel da arte e do artista contemporâneo, os

brasileiros passam a produzir no sentido de viabilizar uma arte que pudesse fruir junto aos anseios do

público. Hélio Oiticica cria seus penetráveis e parangolés, Lygia Clark inova com suas obras

interativas questionando o papel da obra de arte veiculado nas grandes galerias. Lygia e Oiticica, a

exemplo dos tropicalistas estavam voltados para os estímulos cotidianos: Lygia com o uso de suas

obras com seus pacientes192 e Hélio com seu contato com as comunidades carentes e amizade com o

191 Rennó, Carlos (org.); Gilberto Gil, Todas as Letras, São Paulo, Companhia das Letras, 1996

192 Lygia conclamava : “Interaja com a arte. Torne-se objeto de suas próprias sensações. Um homem imerso no mito não pode ser um homem livre.” Panfleto da exposição Lygia Clark realizada no Paço Imperial em 1998

100

famoso bandido Cara de Cavalo. Lygia pretendia que seus bichos fossem transformados em

mercadorias de camelôs, evitando, desta forma, que fossem expostos em museu. Tal atitude demonstra

claramente a oposição à arte tradicional e seus meios de propagação. Na década de 60, com o auge da

aceitação do modernismo dentro da academia e do ideal iluminista de racionalidade, há o crescimento

de uma resistência aos ideais de progresso infinito e a racionalidade matemática desumana. A arte, que

não poderia ser impermeável à rapidez da propagação das notícias, é um dos principais canais para

essa resistência, que surge junto ao rock, a participação e conscientização juvenil e a filosofia oriental,

trazida pelo movimento beatnik e hippie. Como Augusto de Campos que, em 1967, fortemente

influenciado pela teoria de McLuhan e a música tropicalista, ponderava:

“Como disse naquela oportunidade, os novos meios de comunicação de massa, os jornais e revistas, rádio e televisão, têm suas grandes matrizes nas metrópoles, de cujas ‘centrais’ se irradiam as informações para milhares de pessoas de regiões cada vez mais numerosas. A intercomunicabilidade universal é cada vez mais intensa e mais difícil de conter, de tal sorte que é literalmente impossível a qualquer pessoa viver a sua vida diária sem se defrontar a cada passo com o Vietnã, os Beatles, as greves, 007, a Lua, Mao ou o Papa.”193

Numa obra que deve ponderar sobre a “organização original da desordem”194, Caetano buscava,

através de cacos de citações construir uma estética voltada para o entendimento do mundo

contemporâneo diante as vicissitudes do Brasil agrário e arcaico. “Por entre fotos e nomes/ sem livros

e sem fuzil”, Caetano examina a imprensa sob o foco do noticiário global e trata desde a guerrilha, na

alusão ao fuzil e às “espaçonaves guerrilhas” e ídolos cinematográficos (Brigitte Bardot), aos hábitos e

símbolos de consumo como tomar uma coca-cola ou cantar na televisão. Em canções alusórias ao

contexto circundante, os tropicalistas se colocavam no bojo da discussão quanto ao papel da arte

dentro da pretensa reunião de variadas manifestações artísticas, da improbabilidade de se fazer da arte

uma expressão isolada e circunscrita à sua especificidade, como dizia José Ramos Tinhorão: deve-se

preservar o analfabetismo para assim preservar a cultura popular de inovações. Em referência à união

dos vários ramos artísticos, Caetano comentava “(...) o mais importante no momento é a criação de

uma organicidade de cultura brasileira, uma estruturação que possibilite o trabalho em conjunto, inter-

relacionando as artes e os ramos intelectuais.”195

A formação da ideologia jovem

193 Campos, Augusto (org.) Balanço da Bossa: antologia crítica da moderna música popular brasileira, São Paulo, 1968, pg. 130

194 Eco, Umberto; Obra Aberta, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1967, pg. 127

195 Revista Civilização Brasileira; “Que caminho seguir na música popular brasileira”, Rio de Janeiro, Ano, número 7, maio de 1966, pg. 378

101

Nos Estados Unidos e na Europa vivia-se o questionamento quanto o papel das inovações

tecnológicas e o mundo do trabalho, se a unidimensionalidade e o racionalismo iriam levar a

humanidade para o caminho do obscurantismo ou para o desenvolvimento infindável. As idéias

questionadoras corriam o mundo com uma impressionante velocidade. Para isso auxiliavam o

desenvolvimento tecnológico com a comunicação via-satélite e a TV, mas também a proliferação do

ensino universitário em todo o mundo. O ensino universitário facilitava a propagação de informações

entre um público jovem de tendência renovadora.

No mesmo período, Leslie Fiedler fala sobre o nascimento de uma nova sensibilidade junto à

juventude norte-americana, caracterizada por sua “exclusão da história”196, cujos novos valores, entre

eles o desinteresse e desligamento da realidade circundante, encontravam espaço junto a uma nova

literatura pós-moderna, produzindo uma mistura de gêneros e classes sociais que negava os

formalismos modernos, buscando uma volta ao sentimentalismo e ao burlesco da literatura popular. A

veemente utilização da linguagem popular junto a novas estéticas simboliza a negação da cultura

erudita, a valorização da linguagem coloquial e da arte voltada para a gosto da maioria, como a

oposição aos valores vigentes, a busca pelo reconhecimento de uma cultura marginalizada e relegada a

segundo plano.

Dentro do ambiente universitário brasileiro suscitaram movimentos ideologicamente díspares,

com as reuniões estudantis constituindo palco de lutas encarniçadas pela representação estudantil197.

Em Salvador a cena universitária não era muito diferente. Havia grande efervescência no campus,

principalmente graças ao reitor da Universidade Federal da Bahia, Edgard Santos, que criou cursos de

teatro, música e dança, arregimentando para a universidade profissionais ligados a práticas

experimentalistas. Ciente da influência das transformações ocorridas com a gestão de Santos, Caetano

comentava:

“Essa escola (Seminários Livres de Música liderada por Hans Joachim Koellreutter), como todas as escolas de arte fundadas por aquele reitor, trouxera para Salvador as informações da vanguarda internacional – o que, como já contei, nos modelou a todos os membros da geração.”198

Era intenso o trânsito entre o setor cultural e o setor universitário. Sempre houve uma

aproximação da boemia intelectual com a universidade, mas nesse período há a evidência da discussão

acadêmica como canal de oposição e compreensão da sociedade contemporânea. Os músicos baianos

partilham da construtiva vivência junto ao meio universitário. Este convívio, tanto na Bahia quanto no

196 “Cross the Border, Close the Gap”, Playboy, dezembro de 1969, p. 151, 230, 252-258; reimpresso em Collected Papers, vol. 2, p. 461-85

197 Com destaque para os congressos da UNE e outras representações estudantis, e no campo cultural os Centros Populares de Cultura

198 Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg 276

102

Rio e em São Paulo, fez com que os baianos adquirissem uma personalidade cosmopolita e plural,

reunindo a compreensão da cidade grande, sob a visão do homem do interior. Visão indispensável para

a formação de músicas que pintam de forma cubista imagens do Brasil, com sua modernidade

subjetiva e atípica, convivendo junto à pobreza e arcaísmo dos rincões tradicionais. Os tropicalistas já

tendiam para a irracionalidade, questionando o conceito de modernidade e sua eterna busca de

superação do antigo.

Os baianos teriam vindo para o Sudeste tentar a sorte no mundo musical graças a eventos ligados

à estética do protesto, como o teatro “Opinião”. Maria Bethânia havia sido chamada para cantar com o

grupo “Opinião” e forçado a ida de seu irmão Caetano Veloso para acompanhá-la no Rio de Janeiro.

Gilberto Gil, empregado de uma grande empresa de cosméticos, segue para São Paulo, onde irá acabar

seguindo a carreira musical.199 O grupo, inicialmente, fazia músicas inspiradas no cancioneiro

folclórico tradicional200 ou na canção de protesto201, caso de Gil, ou na bossa nova, caso de Caetano202.

Com o passar do tempo, o Tropicalismo se abre para a música pop, com citações de música estrangeira

junto à Jovem Guarda e a paródia de canções tradicionais.203 Gilberto Gil colocava a questão: “Nossa

intenção era puramente estética. Eu sempre soube que um artista não muda as bases de uma sociedade.

Tanto pensava assim que o Tropicalismo, em certa medida, era contra uma visão muito difundida na

música popular brasileira que a arte é uma arma de luta política.”204 O uso da música como

instrumento de propaganda política e conscientização era a bandeira do setor nacionalista que

pretendia instaurar a hegemonia da arte política. Gil os atacava após Caetano ser vaiado com É

Proibido Proibir: “Não temos culpa se eles não querem ser jovens. É isso mesmo, querem que a gente

199 Gilberto Gil já fazia jingles desde 1962, ainda na Bahia, quando foi lançado um compacto simples da Petrobrás com Gil cantando “Coça,coça, lacerdinha”, jingles que seriam criadas também durante a década de 1970 quando promovia, junto a Jorge Ben, a Jurubeba Leão do Norte. O próprio Gil diz: “Meu trabalho é freqüentemente permeado por uma tendência a se aproximar das idéias do slogan e do jingle, que foi por onde eu comecei basicamente a fazer música.: depois de compor algumas canções em casa eu fui logo trabalhar para uma agência de publicidade em Salvador, fazendo jingles.” Rennó, Carlos (org.); Gilberto Gil, Todas as Letras, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pg. 158

200 “Existem composições de Caetano Veloso e de Gilberto Gil que são transcrições quase literais de uma ou outra cantiga de rua, enriquecidas por uma harmonia mais erudita ou uma complementação pessoal.” Soares Regis, Flávio Eduardo de Macedo; “A nova geração do samba”, In. Revista Civilização Brasileira, Ano I, número 7, maio de 1966, pg. 370

201 Como exemplo de músicas ligadas à estética do protesto: Retirante quando canta; “ eu tenho que voltar/ tenho que ver ainda o meu sertão/ que um dia deixei por lá” ou em Roda típica canção de protesto que clama; “quem tem dinheiro no mundo/ quanto mais tem, quer ganhar/ e a gente que não tem nada/ fica pior do que está/ seu moço, tenha vergonha/ acabe a descaração/ deixe o dinheiro do pobre/ e roube de outro ladrão”.

202 Ver o LP Domingo e as canções “Avarandado” ou “Coração Vagabundo” onde Caetano exprime toda sua influência bossa novista

203 Chão de Estrelas de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas ou Coração Materno de Vicente Celestino

204 Manchete; 18/10/1975

103

cante sambinhas. Mas não tenho raiva deles não, eles estão embotados pela burrice que uma coisa

chamada Partido Comunista resolveu pôr na cabeça deles.”205

Até mesmo a bossa nova passa a ser alvo dos tropicalistas. Acusavam-na de servir a um projeto

estético ultrapassado que necessariamente deveria seguir a linha evolutiva na música brasileira, linha

que trazia a exposição de uma realidade mais crua e agressiva que a proposta pela Bossa-Nova. Porém,

os tropicalistas não criticavam levianamente os bossa-novistas. Tinham uma verdadeira paixão por ela,

principalmente por João Gilberto e seu disco Chega de Saudade, que representou uma verdadeira

revolução na MPB, com a riqueza harmônica e o “caráter coloquial da narrativa musical”.206 Os

tropicalistas criticavam, de forma iconoclasta, todas as formas consagradas de se fazer música no

Brasil, e assim Caetano cantava em Saudosismo: “Eu, você, nós dois/ Já temos um passado meu amor/

Um violão guardado, aquela flor/ E outras mumunhas mais/ Eu, você, João/ Girando na vitrola sem

parar/ E o mundo dissonante que nós dois tentamos inventar (...) Lobo, lobo bobo/ Lobo, lobo bobo/

(...) Chega de saudade, chega de saudade”

Há, de forma contraditória, a saudade como colocava João Gilberto em Chega de Saudade, o

desejo de reconfortar a pessoa que não tem seu amor retribuído cantada com uma voz baixa, um violão

com notas e melodias difíceis, características da Bossa-Nova, entremeada a guitarras elétricas

distorcidas exibindo a tendência pop e simbolizando o fim de uma era na MPB. Uma era que havia

sido de importância capital para toda a música nacional, mas principalmente para o grupo tropicalista.

“A bossa nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delícias para a minha

inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança de estágio cultural que nos

levou a rever o nosso gosto, o nosso acervo e – o que é mais importante – as nossas possibilidades.”207

Há necessidade de reformular a estética bossa-novista, que é grande influenciadora dos músicos de

protesto e dos tropicalistas, na busca da inserção de elementos pop em sua música. Porém, o

questionamento da Bossa Nova é feito seguindo o respeito à obra, ao processo criativo que, como frisa

Caetano, estava vinculado à quebra de barreiras da música brasileira.

A Bossa-Nova, que já havia buscado recursos junto ao cool jazz, com o uso de improvisos

longos e bem trabalhados, terá um papel de grande relevância na consolidação do bebop norte-

americano, com os famosos shows de Stan Getz com Tom Jobim e na pesquisa dos músicos de jazz

das sonoridades brasileiras desde os anos 1950. Podemos citar Miles Davis, que toca com Airto

Moreira na sua melhor fase fusion, Dizzy Gillespie, que tem Paulinho da Costa na percussão em

205 Jornal da Tarde

206 Campos, Augusto (org.) Balanço da Bossa: antologia crítica da moderna música popular brasileira, São Paulo, 1968, pg. 63

207 Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 35

104

meados dos anos 1970 e Carlos Santana, que grava Dorival Caymmi – Promise of a fisherman - com

acompanhamento dos onipresentes Airto Moreira e Flora Purim, também em meados da década de

1970. A reunião de diversos fatores foi responsável pela mudança de comportamento em relação à

música estrangeira e a possível mediação entre as diversas sonoridades. Abre-se uma via de mão

dupla, um diálogo enriquecedor da música brasileira com os norte-americanos. Passa a existir um

grande interesse por parte dos estrangeiros em conhecer culturas “primitivas” e a sonoridade brasileira,

principalmente a procurada pelos estrangeiros como samba e música regional, mantendo-se vínculo

com sonoridades que também eram utilizadas pelos tropicalistas, mas com enfoque diferente quanto à

interpretação.

Surge mercado para os produtos periféricos, havendo o fortalecimento da troca entre Brasil e

EUA. Os músicos brasileiros obtêm sucesso nos EUA, sem serem conhecidos no seu país: Airto

Moreira e Sérgio Mendes, dentre vários outros. A música mais tocada em todo o mundo é a célebre

Garota de Ipanema, estando à frente dos Beatles. Não se deve ter uma falsa idéia, muito difundida na

década de 1960, que a utilização de elementos estranhos às tradições nacionais destruiria as

manifestações populares e instauraria o monopólio da arte feita para o consumo fácil e universal,

propagado pela indústria cultural. O que ocorreu, além do enriquecimento de nossa música, foi a maior

difusão, preservação de festas e expressões culturais populares por parte da população, e a divulgação

no exterior dessas manifestações.208 A Bossa-Nova, desta forma, popularizou a MPB

internacionalmente e foi de grande valia para a consolidação do samba de morro carioca como a

música nacional. Caetano comenta:

“É óbvio para mim que também essa elasticidade do mercado, que passou a estender seus tentáculos na direção de formas brutas de manifestação musical – não apenas os sambas de rua do Rio e as novíssimas formas de samba de rua da Bahia (que já surgiram depois de formado o hábito de se gravar e radiodifundir esse tipo de coisa), mas toda uma variada gama de estilos abordados de modo mais documental -, se deve, em última análise, à bossa nova.”209

Caetano ressalta as preocupações da indústria cultural em manipular um mercado consumidor

mais diversificado, onde surge a necessidade de veiculação de produtos da cultura popular em seus

programas, da mesma forma que há uma adaptação das manifestações populares aos anseios da

indústria e do mercado. Hoje há o temor que as manifestações de cultura popular venham perder suas

208 O maracatu, que vivia momentos de ocaso é um ótimo exemplo de revitalização após ser citado como uma das principais influências do grupo “Chico Science e Nação Zumbi”

209 Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg 39

105

características elementares para poderem melhor servir ao mercado.210 Mas, como é bem lembrado por

Hermano Vianna211, o samba, desde fins da década de 1920, estava se impondo como a música

nacional e assim se mantém até hoje.

Não se pode deixar de mencionar que as interconexões e mediações entre a música popular

nacional e as influências estrangeiras sempre foram uma constante em nossa música, sendo defendido

que o samba, música eminentemente nacional como foi dito anteriormente, nasceu de uma mistura dos

lundus, maxixes, polcas, cateretês e outros ritmos regionais e exportados. Havia uma interação entre a

aristocracia e as manifestações populares desde Domingos Caldas Barbosa, que fazia enorme sucesso

na corte portuguesa em 1775, a Catulo da Paixão Cearense. O viajante inglês narra uma festa em

Salvador no ano de 1802:

(..) em algumas casas de gente mais fina ocorriam reuniões elegantes, concertos familiares, bailes e jogos de cartas. Durante os banquetes e depois da mesa bebia-se vinho de modo fora do comum, e nas festas maiores apareciam guitarras e violinos, começando a cantoria. Mas pouco durava a música dos brancos, deixando lugar à sedutora dança dos negros, misto de coreografia africana e fandangos espanhóis e portugueses.”212

A própria música erudita tupiniquim nasce da união dos ritmos populares com o eruditismo

europeu. Muitos músicos que ajudaram a formar nossa tradição musical foram músicos de bares e

tabernas, enquanto estudavam os eruditos. Luciano Gallet, como citado anteriormente, tinha essa dupla

jornada trabalhando num cinema no Largo do Rossio, onde meretrizes e seus clientes eram os

principais freqüentadores, e como professor da Escola Nacional de Música. A mediação entre a cultura

popular nacional e a cultura erudita sempre foi flagrante em todas as áreas culturais onde houve o

transplante da linguagem erudita européia para realidade nacional, como nas modinhas e maxixes

brasileiros.

210 O samba é uma manifestação que sofreu modificações profundas após a popularização dos desfiles de escolas de samba e a concorrência entre elas. Os figurinos, os carros alegóricos, as mega-alas contribuem para o caráter espetacular das escolas de samba atuais

211 Vianna, Hermano; O mistério do samba; Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995

212 Vianna, Hermano; O mistério do samba; Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995; citado por Wanderley Pinho; 1959 Salões e damas do Segundo Reinado, 3ª edição, São Paulo, Martins; pg. 37

106

“Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades

técnicas”213

Os tropicalistas norteavam suas performances por atitudes agressivas e libertárias, provocando a

platéia, acusando-a pela passividade e permanência do tradicionalismo. O teatro de agressão214,

idealizado por José Celso Martinez e o grupo Oficina, era uma clara alusão à tomada de consciência

do espectador através de estímulos a reações, muitas vezes de repulsa, tendo influências diretas de

Antonin Artaud e sua intuitividade. O grupo Oficina levava ao limite a frase de Frantz Fanon “Todo

espectador é covarde ou traidor”. O Oficina queria sacudir o público pela medula, buscando retratar

todos seus recalques e privilégios, num questionamento da própria personalidade do espectador. José

Celso clamava:

“É preciso provocar o espectador, agredi-lo intelectualmente, formalmente, sexualmente, politicamente, chamá-lo de burro, recalcado e reacionário. O objetivo é abrir uma série de Vietnans no campo de cultura, uma guerra contra a cultura oficial de consumo fácil. O sentido da eficácia do teatro hoje é o sentido da guerrilha teatral a ser travada com as armas do teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura e a apatia que vivemos.”215

Não é gratuita a ligação do projeto tropicalista do teatro Oficina com a música do grupo baiano.

Caetano, que já havia assistido Os pequenos burgueses de Gorki em 1965, foi à encenação de O rei

da vela e dali saiu desnorteado.“Eu tinha escrito Tropicália havia pouco tempo quando ‘O rei da vela’

estreou. Assistir a essa peça representou para mim a revelação de que havia de fato um movimento

acontecendo no Brasil. Um movimento que transcendia a música popular.”216

José Celso causou um grande rebuliço no meio teatral falando a língua universal do movimento

pop mundial. Exibindo a crítica aos heróis populares criados pela televisão (Roda Viva) e à sociedade

burguesa paulista (Rei da Vela) sempre de forma polêmica e agressiva, José Celso é acusado de

213 Veloso, Caetano; entrevista concedida a Manchete, citada em Verdade Tropical do próprio Caetano Veloso, pg. 207

214 Teatro de agressão pode ser entendido como “... uma relação de luta, uma luta entre os atores e o público. (...) a peça o agride intelectualmente, formalmente, sexualmente, politicamente. Quer dizer que ela qualifica o espectador de cretino, reprimido e reacionário. (...) O teatro tem necessidade hoje de desmistificar, de colocar este público em seu estado original, frente a frente com a sua grande miséria, a miséria do pequeno privilégio obtido em troca de tantas concessões, tantos oportunismos, tantas castrações, tantos recalques, em troca de toda a miséria de um povo.” Extraído de entrevista em Partisans n. 47 (Paris, Maspero) In. O pai de família..., de Roberto Schwarz, pg. 85 Schwarz diz que o Oficina (grupo teatral liderado por José Celso Martinez Corrêa) ergue-se a partir da experiência da desagregação da burguesia nacional após 1964 e que esta desagregação se repete no palco, agora ritualmente em forma de ofensa. Luís Carlos Maciel, o responsável pela introdução do termo “teatro de agressão” mostra que esta linguagem propõe confrontar o espectador para finalmente arrancá-lo de sua passividade habitual. Maciel, L. C.; Geração em transe: memória do tempo do Tropicalismo, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, pg.169 Elio Gaspari coloca que José Celso pretendia lançar o “teatro da porrada”, numa atitude onde: “É preciso provocar o espectador, chamá-lo de burro, recalcado, reacionário.” Gaspari, Elio; A ditadura envergonhada; São Paulo, Companha das Letras, 2002. pg. 299

215 Veja, 04/12/1968, pg. 56

216 Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg 244

107

imoral. Em Rei da Vela a antropofagia de Oswald de Andrade subverte a platéia que é conclamada a

seguir um “conceito sério de violência, porque o público está cheio de preconceitos e não vibra. É

preciso revê-lo, chocá-lo, provocá-lo.”217 Diretamente inspirado no Living Theater, o Oficina buscava

o que havia de mais atual no exterior, mas também influenciava grupos estrangeiros realizando turnê

internacional, passando Paris em maio de 1968. Ali o grupo Oficina vê, da sacada do hotel, as

manifestações estudantis, chegando a ter alguns de seus integrantes feridos por uma bomba de gás

lançada dentro do quarto.218

O cinema, muitas vezes citado por Caetano Veloso como fonte de inspiração, era um sonho para

o jovem músico que almejava dirigir um filme. Caetano escreveu artigos sobre o tema na Bahia, no

início da década de 1960. Para muitos o cinema era o meio de expressão artística mais adequado para

retratar o mundo contemporâneo e sua magia pela linguagem áudio-visual. O Tropicalismo se

destacava por sua composição poético-visual e letras com clara alusão ao cinema e sua linguagem.

Fruto de contatos com Glauber Rocha e seu espírito efervescente desde a Bahia, os tropicalistas

seguiam discussões referentes ao papel da arte e sua estetização. Assistentes de Federico Fellini e da

nouvelle vague francesa, os tropicalistas buscavam sintetizar uma linguagem burlesca e popular,

adicionando um apurado senso estético à roupagem tupiniquim de sua música. Uma obra de arte aberta

à influência, um fragmento do processo artístico humano. A priorização da construção de letras

fragmentárias, de acordo com um público bem informado e espectador assíduo de cinema, aludia à

indústria cultural e a implantação de novas apreensões de mundo. O cinema era o grande programa dos

tropicalistas, fonte inesgotável de influências e vivências que ajudaram a construção do imaginário

daquela geração. Caetano, que já convivia com Glauber Rocha nos cineclubes baianos, exibe o papel

capital que Glauber teve na tomada de consciência sobre a realidade ímpar brasileira, que deveria ser

esmiuçada, regurgitada, deglutida e cuspida em forma de crítica:

“(...) temos então de considerar como deflagrador do movimento (o Tropicalismo) o impacto que teve sobre mim o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66-7. Meu coração disparou na cena de abertura, quando, ao som do mesmo cântico de candomblé que já estava na trilha sonora de Barravento – o primeiro longa-metragem de Glauber -, se vê, numa tomada aérea do mar, aproximar-se a costa brasileira.”219

Essa passagem fica ainda mais interessante quando vemos a declaração de José Celso: “Fui

violentamente influenciado pelo filme Terra em Transe, de Glauber Rocha. Agora Caetano se diz

217 Folha de São Paulo, 04/10/1967

218 O leitor que tiver assistido ao filme Sonhadores de Bernardo Bertolucci, notará a semelhança entre a realidade e o cinema.

219 Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 99

108

influenciado pelo meu espetáculo. Tenho certeza de que nossa geração vai começar algo de novo.”220

Essa atávica consciência de José Celso com relação às influências mútuas é impressionante pois havia

uma clara correlação entre teatro, cinema e música, num processo de influências e diálogos entre as

várias artes. Essas expressões artísticas viviam momentos de grande renovação, sendo que o ambiente

teatral e cinematográfico era, de forma geral, mais aberto às inovações estéticas que a música. Gilberto

Gil também foi atingido pelas inovações teatrais quando foi assistir à montagem de A cantora careca

de Eugène Ionesco, dirigida por Líbero Ripoli Filho, onde cortavam pedaços do texto intercalado com

seqüências de comerciais de televisão, o que ajudou a estar informado sobre a nova narrativa que

estava sendo concebida na época.

A conjuntura favorecia o aparecimento de novas abordagens, ligadas tanto ao âmbito local

quanto aos acontecimentos mundiais. As artes aproveitam e constituem a estética mais apropriada para

a propagação de uma crítica ao establishment. Apesar de haver uma clara aproximação entre o

Tropicalismo musical e a obra de Hélio Oiticica, Tropicália exibida na exposição Nova Objetividade

Brasileira, realizada em 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, observa-se que o teatro e

o cinema tiveram um peso preponderante no movimento mundial que extrapolava as fronteiras da

música ou do cinema. Como analisava Caetano em 1975: “Na verdade, a gente nunca teve convicção

de nada. Nós não carregávamos o mundo nas costas. Pode ser simplesmente que a gente naquela época

estivesse na vanguarda das mudanças do comportamento que se delineavam no mundo.”221

Hélio Oiticica aviltava as tentativas de coerção e aburguesamento da estética tropicalista criando

uma estética voltada para a imagem e a percepção sensorial. No catálogo da exposição londrina na

Whitechapel Gallery, em 1969, Oiticica exibia sua proposta para a experiência vivida pelo visitante ao

penetrar na obra de arte “Tropicália” e aproximava-se da canção homônima de Caetano Veloso:

“Tropicália é um tipo de labirinto fechado, sem caminhos alternativos para a saída. Quando você entra nele não há teto, nos espaços que o espectador circula há elementos táteis. Na medida em que você vai avançando, os sons que você ouve vindos de fora (vozes e todos tipos de som) se revelam como tendo sua origem num receptor de televisão que está colocado ali perto. É extraordinária a percepção das imagens que se tem: quando você se senta numa banqueta, as imagens da televisão chegam como se estivessem sentadas à sua volta. Eu quis, neste penetrável, fazer um exercício de imagens em todas as suas formas: as estruturas geométricas fixas (se parece com uma casa japonesa-mondrianesca), as imagens táteis, a sensação de caminhada em terreno difícil (no chão há três tipos de coisas: sacos com areia, areia, cascalho e tapetes na parte escura, numa sucessão de uma parte a outra) e a imagem televisiva. (...) Eu criei um tipo de cena tropical, com plantas, areias, cascalhos. O problema da imagem é colocado aqui objetivamente – mas desde que é um problema universal, eu também propus este problema num contexto que é tipicamente nacional, tropical, brasileiro. Eu quis acentuar a nova linguagem com elementos brasileiros, numa tentativa extremamente ambiciosa em criar uma linguagem que poderia

220 Bar, Décio; “Antropofagia”; In. “História do Rock Brasileiro”, volume 1; Super Interessante, Ed; Abril,. 2004, pg. 56-57, texto publicado

originalmente na Revista Realidade, 12/1968

221 Manchete; 18/10/1975

109

ser nossa, característica nossa, na qual poderíamos nos colocar contra uma imagética internacional da pop e op art, na qual uma boa parte dos nossos artistas tem sucumbido.”222

Oiticica criticava a adequação simplória ao pop e op art, propondo a organização de uma estética

única e original de face tropical e nacional. Os tropicalistas passam a expressar o desejo e o gosto de

uma geração mais sofisticada intelectualmente, cansada das mensagens panfletárias dos engajados ou

da arte pronta para o consumo. Esse grupo se envolve na criação de uma arte de difícil compreensão,

que abusa do intertexto, da paródia e da referência aos hábitos contemporâneos. Como os dadaístas, os

tropicalistas buscavam criar uma nova linguagem, um regresso ao espontaneísmo infantil, que

destruísse toda a tradição estética introduzindo a anti-arte e utilizando instrumentos de uso cotidiano

nas obras de arte. Rogério Duprat segurar um pinico como uma xícara na capa de Panis et Circensis

ou as letras tropicalistas produzidas como as colagens de Hans Arp223, embaralhadas ao acaso, dando

ao interlocutor diversas visões da mensagem do autor, comporiam claros indícios da cultura geral do

grupo.

O “som universal” tropicalista era imbuído de uma concepção pluralista e de uma linguagem

planetária, utilizando o pop e o kitsch em suas composições. Outros músicos achavam que este “som

universal” seria responsável pela padronização da música e adequação do músico ao mercado e à

indústria fonográfica. Vemos Sidney Miller comentar: “Universalização (da música popular brasileira)

responde a um processo de estagnação do mercado interno (novas demandas não atendidas) e a um

‘mecanismo empresarial’ que reflete uma iniciativa internacional no sentido da universalização do

gosto popular.”224

O cinema reafirmava a possibilidade de construir uma estética nova e adequada à sua época.

Enquanto se exibia o cinema novo, os músicos passaram a criar letras alusórias a imagens, típicas da

arte cinematográfica. Com Glauber Rocha alavancando o interesse pela cultura nacional no exterior, o

Tropicalismo negava-se a retratar a realidade nacional ligada à pobreza e à fome, como era sucesso no

exterior. Através da estética da fome, Glauber rompe com a busca do primitivismo condicionado pelo

colonialismo, “somente com uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se

222 Extraído de Marcos Napolitano, Seguindo a canção: Engajamento Político e Indústria Cultural na Trajetória da Música Popular Brasileira (1959-1969), tese de doutorado apresentada em novembro de 1998, junto ao Programa de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, pg. 212

223 Jean Hans Arp; escultor, pintor e poeta francês contemporâneo

224 Sidney Miller, “O universalismo e a Música Popular Brasileira” In. Revista Civilização Brasileira, 21/22, set/dez. 1968, pg. 207-221. Extraído de Marcos Napolitano, Seguindo a canção: Engajamento Político e Indústria Cultural na Trajetória da Música Popular Brasileira (1959-1969), tese de doutorado apresentada em novembro de 1998, junto ao Programa de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, pg. 212

110

qualitativamente: e a mais nobre manifestação da fome é a violência.”225 Glauber pensava que, ao

revelar as entranhas do Brasil, do Brasil miserável e atingido pela modernização e urbanização, como

era realizado pelo Cinema Novo, iríamos sobrepujar o pensamento terceiro mundista e a pobreza

material, conscientizando o público “de sua própria miséria”226. Ao colocar a violência como um dos

elementos principais da tomada de consciência da América Latina em relação à exploração histórica,

Glauber se unia ao Tropicalismo musical na agressividade das letras e a exposição de uma situação

complexa nacional., bem como as concepções teatrais de José Celso Martinez que buscavam agredir a

platéia, tirá-la de sua passividade e conscientizá-la. Os tropicalistas não se limitavam a expor a miséria

unindo a criança que estende a mão ao monumento bem moderno do planalto central.

As letras de Domingo no Parque e Alegria, Alegria possuem características cinematográficas:

“Como lembrou Décio Pignatari, enquanto a letra de Gil lembra as montagens eisenstenianas, com

seus closes e suas ‘fusões’, a de Caetano Veloso é uma ‘letra-câmara-na-mão’, mais ao modo informal

e aberto de um Godard, colhendo a realidade casual ‘por entre fotos e nomes.’”227 Com a

intertextualidade servindo como norteador das propostas tropicalistas, o cinema e seu clima de fantasia

eram notáveis colaboradores da nova estética e sua notável percepção do presente inter-relacionado

com a tradição e o passado.

Gil conta que Domingo no Parque tinha como principal preocupação discutir a riqueza de

contradições do ser humano, afirmando a dificuldade da limitação de fronteiras e o fim do

nacionalismo:

“Não se poderia, tá entendendo, em nome de um nacionalismo, adotar posição ufanista bem parecida com a mentalidade nazista que deveria obrigar as pessoas de determinada nação a simplesmente ignorar qualquer tipo de influência que a cultura e os costumes de outros povos pudessem exercer sobre ela.”228

Gil se referia a críticos como Sérgio Cabral, Carlos de Assis e José Ramos Tinhorão que

vituperavam os “frescos”229 que buscavam inspiração no exterior. Imaginavam que a decisão dos

Beatles de “(...) se internarem na Índia foi conseqüência exclusivamente de um vazio da realidade

musical da velha e desgastada Inglaterra, onde nada havia para oferecer ao conjunto.”230 Os Beatles

225 Rocha, Glauber; “Uma estética da fome”; Revista Civilização Brasileira; Ano I, Número 3, julho de 1965, pg. 168 226 Ibidem

227 Campos, Augusto; Balanço de Bossa...; São Paulo, Perspectiva, 1968, pg. 141

228 Folha de São Paulo; 06/10/1967

229 Cabral, Sérgio; “Interdependência ou a frescura instalada e nossa música popular”; In. Pasquim, julho de 1969, num. 3

230 Ibidem

111

constituíam o principal parâmetro para os músicos do iê-iê-iê, e, após a gravação de “Revolver”, mais

notavelmente da gravação de “Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band”, foram a maior inspiração

dos músicos ligados à cultura pop nos anos 1960.231 Sérgio Cabral clamava pela valorização das

sonoridades brasileiras tão pouco exploradas, entendia que os artistas deveriam estar intrinsecamente

ligados à realidade nacional e condenava: “Decidiram decretar a falência da música popular brasileira

porque com o Intelsat e os meios de comunicação não há mais fronteiras.”232 Consciente das

transformações vividas em seu tempo, Sérgio Cabral observava de forma pessimista a chamada

revolução tecnológica, temendo o enfraquecimento da cultura popular brasileira, inserindo elementos

estrangeiros em doses maciças através dos canais de comunicação. Assim via com escárnio os

comentários de Rita Lee, vocalista dos Mutantes que não gostava de samba, considerando-os como

uma atitude fascista da classe média esculhambar a cultura popular.233

Inserção ou questionamento da indústria cultural

Domingo no Parque e Alegria, Alegria podem ser consideradas as primeiras canções ligadas ao

“som universal” tropicalista. Apresentadas em 1967, traziam em sua proposta estética uma forte carga

inovadora e intertextual, enfatizando ou fatos da realidade contemporânea, caso de Alegria, Alegria,

ou através de uma parábola sobre o amor e a traição, escrita de forma simples e pungente como a

canção Domingo no Parque, ao examinar o lazer e desavenças de trabalhadores urbanos. Os

tropicalistas investiam numa linguagem fragmentária, onde a referência à contemporaneidade era

realizada com a sobreposição do primitivismo arcaico brasileiro à modernidade latente nos meios de

comunicação e na industrialização, quando “um poeta desfolha a bandeira/ e eu me sinto melhor

colorido/ pego um jato, viajo, arrebento/ com o roteiro do sexto sentido.”

Havia um claro elo entre as várias artes, simbolizado pela indústria de comunicação ou de

entretenimento. As diferentes expressões constroem seus mercados e públicos através da veiculação de

suas obras nos canais de comunicação. Há uma nova forma de financiamento do trabalho artístico, não

mais restrito às galerias, museus ou grandes distribuidoras. A publicidade se desenvolve voltada,

231 Falando sobre Alegria, alegria Caetano Veloso divagava sobre os Beatlles e a nova criação musical, distinta da bossa nova. “Em flagrante e intencional contraste com o procedimento da bossa nova, que consistia em criar peças redondas em que as vozes internas dos acordes alterados se movessem com natural fluência, aqui opta-se pela justaposição de acordes perfeitos maiores em relações insólitas. Isso tem muito a ver com o modo como ouvíamos os Beatles (...) A lição que, desde o início, Gil quisera aprender dos Beatles era a de transformar alquimicamente lixo comercial em criação inspirada e livre, reforçando assim a autonomia dos criadores – e dos consumidores.” Veloso, Caetano; Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 169-170

232 Ibidem

233 Cabral, Sérgio; Pasquim, agosto 1969, num. 8

112

principalmente, para o público jovem. Mutantes, Caetano Veloso e Gilberto Gil realizam trabalhos

publicitários e criam jingles, com destaque para a campanha da gigante química Rhodia, em 1968,

quando os Mutantes apresentavam a Moda Mutante. O mundo da publicidade, o poder da imagem

dentro da propaganda, com a popularização da impressão colorida e, muito mais importante, o

surgimento da TV e sua massificação, ajudaram a fomentar o grafismo e o desenho industrial. O

fortalecimento do mercado publicitário e o maior acesso aos meios de comunicação ajudaram na

criação de novas linguagens iconográficas, sendo marcante a introdução de uma linguagem colorida e

abstrata junto a esses meios de comunicação e publicidade.

Na década de 60, com a ênfase no mercado consumidor juvenil, surgiu uma brecha para o

desenvolvimento de uma linguagem visual conhecida como psicodélica. O psicodelismo das artes

gráficas era acompanhado pela música, cinema, moda, enfim, por quase todos os canais de divulgação

de mensagens para o público jovem. É interessante perceber que Antônio Peticov, após observar as

capas de dos LPs Fifth Dimension do Byrds, e Disraeli Gears do Cream, passa a criar pôsteres com a

linguagem psicodélica, popularizando a arte pop por vários meios culturais e sendo um dos precursores

do psicodelismo no Brasil.234 Peticov abriu, na época, uma loja de pôsteres com numa linguagem

psicodélica na Rua Augusta. As capas dos discos de Caetano Veloso, Tropicália de autoria do artista

gráfico Rogério Duarte, o disco coletivo A Banda Tropicalista do Duprat, Jardim Elétrico dos

Mutantes e Gal Costa de 1968 seguiam a tendência psicodélica em suas capas. Num momento onde a

visualidade alcançava papel dominante na veiculação de mensagens, o “mosaico informativo” onde a

“mídia era a mensagem”, parodiando McLuhan, os tropicalistas se uniam ao movimento jovem

mundial, utilizando as mesmas formas de expressão que a juventude fazia uso. A introdução da cultura

jovem como principal mercado consumidor e sua propagação através dos quadrinhos, das artes

plásticas, da música, da literatura e do cinema transformaram a sensibilidade artística da época. Com o

psicodelismo há a afirmação da cultura jovem como um dos principais mercados consumidores. O

pop, maior veículo do psicodelismo, consistiu num meio de consolidação da cultura de massas e de

assimilação de obras com referências eruditas que dialogavam com a cultura popular.235

O desenho industrial tomava corpo junto às modificações ocorridas no mundo industrial e

cultural, aproveitando-se da primazia concedida à linguagem visual e ao grafismo, que faziam uma

verdadeira revolução estética. Rogério Duarte, um dos principais desenhistas da época, produzia capas

234 Antônio Peticov, que apresentou o LSD aos Mutantes, foi preso em 1970, na cidade de São Paulo, mais especificamente no pavilhão 7 do Carandiru, por porte de LSD. Após fugir para Londres, viveu com a ajuda de Gilberto Gil e outros amigos que constituíam uma comunidade brasileira na Inglaterra

235 Jeff Beck e Rod Stewart tocam Greensleeves, retomando a tradição clássica num disco de rocks e blues, ou Gilberto Gil que se questiona quanto ao papel da civilização em Cultura e Civilização

113

de discos e cartazes de filmes, sendo seu maior ícone o cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol

onde retém a alma do filme e o transforma na imagem mais poderosa do cinema novo.

Concomitantemente, Duarte exibe a hiper modernidade de traços circulares formando um sol simples

com pitadas psicodélicas, junto à figura de um herói primitivo, herança do Brasil arcaico e sertanejo,

rústico e violento:o cangaceiro Corisco, protagonizado por Othon Bastos.

O emprego de uma linguagem visual também se fazia presente no meio politizado estudantil.

Zuenir Ventura chama a atenção para a criação de cartazes de maior criatividade visual e a atenção

voltada para o tema, quando Fernando Gabeira se reunia com os estudantes de Desenho Industrial

objetivando “elevar o nível estético das mensagens.”236

Dentro de um contexto mais amplo de criação e veiculação de seus trabalhos, a arte vivia um

momento de questionamento de suas atribuições: adotar uma arte com clara preponderância de temas

políticos?237 A arte simbolizaria a cultura erudita e o consumo por um público seleto e elitizado ou

deveria adquirir um caráter plural com a exposição de valores ligados tanto à cultura popular como à

cultura de elite? Os tropicalistas enveredavam pela exibição da pluralidade, do uso de símbolos

populares e eruditos na formulação fragmentária do Brasil, contrapondo com situações contraditórias

para exibir a realidade mundial. Seguiam tendências ligadas à cultura do mass media, reunindo

linguagens distintas no intuito de criar uma cultura adequada aos valores modernos da

reprodutibilidade da obra de arte e a popularização dos bens artísticos através do mundo da

informação. Mesmo com a veiculação do programa Divino Maravilhoso ou com a polêmica

provocada por seu trabalho, o grupo tropicalista não teve uma significante vendagem de LPs. Graças à

sua atitude inovadora e agressiva, os tropicalistas sempre foram chamados para trabalhos publicitários,

estrelando comerciais238 de fábricas têxteis, Rhodia239, ou os Mutantes divulgando os combustíveis

Shell.

Apesar da grande aversão ao Tropicalismo, os festivais posteriores adotam uma linguagem

próxima aos tropicalistas com cartazes exibindo uma tipografia psicodélica (cartaz do IV Festival da

236 Ventura, Zuenir; 1968: O Ano que Não Terminou, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, pg. 53

237 Geraldo Vandré afirmava em 1967 “... a música popular deve ser comprometida com a realidade nacional em termos culturais, focalizar os anseios, necessidades e frustrações do povo. Não deve, porém ser apenas ‘notícia dessa realidade’, pois precisa dizer coisas ao povoe dirigir-se a esse povo.” Folha de São Paulo, 25/11/1967 “Vandré: Música deve representar o povo”

238 Ver página 10

239 “... assinaram com a Rhodia, associando suas propostas musicais ao lançamento dos novos padrões de tecido, propositadamente denominados Tropicália e difundidos, por exemplo, nos camisolões ostentados por Gal e Gil na foto da capa do disco coletivo. A coleção seria promovida no show Momento 68, estrelado por Gil, Caetano, Eliana Pittman, Raul Cortez e Walmor Chagas, com direção de Régis Duprat e coreografia de Lennie Dale. A mais nova edição do conhecido esquema de ‘música e moda’, ou ‘show e desfile’, de Livio Rangan deveria percorrer o Brasil e atingir o exterior, repetindo-se o processo que vinha se atrelando às novidades dos festivais desde 1965.” Mello, Zuza Homem de; A era dos festivais, São Paulo, Ed. 34, 2003, pg. 307 Sobre o programa da Rhodia ver pg. 13 deste capítulo

114

Record de 1968) e as guitarras passam a ser cada vez mais tocadas. Em contrapartida, numa reação do

grupo ligado à defesa da tradição nacional contra a inserção de instrumentos elétricos, há a proibição

do uso da guitarra no V Festival da Record de 1969, onde o cartaz dizia claramente: “Queremos ver os

Beatles pelas costas”; num festival que teria apenas frevo, samba e marcha “que são nossas coisas,

coisas nossas”. Novamente os Beatles representando o imperialismo e a entrada de elementos

alienígenas em nossa música. Obviamente, essa acusação se baseava na crítica à Jovem Guarda e ao

experimentalismo dos tropicalistas que reconheciam a influência do grupo inglês em sua música,

principalmente após a aproximação com Rogério Duprat e o círculo da música experimental.

Evidenciando a consciência de seu papel dentro da indústria cultural e a proposta de sincretismo da

cultura pop e ritmos regionais, lembramos a passagem de Verdade Tropical:

“Ele (Rogério Duprat) dizia que nós não podíamos seguir na defensiva, nem ignorar o caráter de indústria do negócio em que nos tínhamos metido. Não podíamos ignorar suas características da cultura de massas cujo mecanismo só poderíamos entender se o penetrássemos. Dizia-se apaixonado por uma gravação dos Beatles chamada ‘Strawberry fields forever’, que, a seu ver sugeria o que devíamos estar fazendo e parecia-se com a ‘Pipoca Moderna’ da Banda de Pífanos.”240 A adequação à indústria fonográfica, o uso de uma linguagem coloquial e o contato com elementos

de variados contextos artísticos enriquecem intelectualmente os tropicalistas oferecendo-lhes subsídios

para exercerem a crítica à MPB e às injustiças e mazelas mundiais. Augusto de Campos defende o

Tropicalismo, compreendendo seu papel determinante no rompimento com o arraigado tradicionalismo

da MPB:

“É o momento que o artista, consciente de sua responsabilidade frente ao povo, aproveita para elevá-lo em seu gosto, oferecendo-lhe algo mais elaborado que o force a participar com mais inteligência na sua apreciação. Uma gravação altamente inventiva como Sgt. Peppers jamais seria aceita pela massa se não fosse imposta pela personalidade dos Beatles

Essa consciência tiveram Caetano e Gil, que souberam sentir o momento exato em que a própria massa espera que o artista não se repita. Essa consciência faltou a Vandré, por exemplo, a quem escapou este paralelo com sua própria estória: assim como o boiadeiro troca o cavalo pelo caminhão, o violeiro também acaba seduzido a trocar a viola pela guitarra elétrica.”241

Muitas vezes o Tropicalismo é acusado de se coadunar à indústria fonográfica no intuito, puro e

simples, de fazer sucesso e aumentar as vendagens de discos. Porém eles mesmos tinham consciência

que a realização de novas experiências musicais estaria diretamente vinculada à exposição nos

veículos de comunicação. Induzidos por Guilherme Araújo, um astuto produtor, os tropicalistas se

ligaram nas inovações cênicas e de figurino e investem em atitudes e opiniões polêmicas. Roupas de

240 Veloso, Caetano; Verdade Tropical; São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg. 131

241 Mendes, Gilberto; “De como a MPB perdeu a direção e continuou na vanguarda”; In. Campos, Augusto; Balanço de Bossa...; São Paulo, Perspectiva, 1968, pg 123

115

plástico, postura agressiva no palco, androginia: atitudes que revelavam o inconformismo embebido

pelo dadaísmo, onde a polêmica era utilizada para chocar o espectador causando uma sensação de

estranhamento ao questionar o papel da obra de arte e o mundo contemporâneo. Ciente do poder dos

veículos de comunicação, Caetano, em entrevista a Augusto de Campos, afirmava:

“Acredito que a necessidade de comunicação com as grandes massas seja responsável, ela mesma, por inovações musicais. O rádio, a TV, o disco criaram, sem dúvida, uma nova música: impondo-se como novos meios técnicos para a produção de música, nascidos por e para um processo novo de comunicação, exigiram/possibilitaram novas expressões.”242

A massificação e a reprodução da obra de arte são outras características marcantes da cultura

contemporânea. Há um peso ainda maior junto à indústria fonográfica: os discos de 78 rotações

aposentados e substituídos por LP’s com gravação superior a 60 minutos, enquanto os antigos

gravavam menos de 10 minutos em cada lado. Atualmente, há uma vaga idéia de que isso representou

a popularização da música em todos os estratos sociais. Desde o primeiro reprodutor sonoro até os

anos 60 com toca-discos estereofônicos, houve uma corrida às lojas de discos com a popularização

das vitrolas. A audição solitária passou a ser uma realidade, moldando gostos por todo o mundo. A

partir do momento que a música saiu dos salões da nobreza e passou a ser executada em grandes

teatros, onde a burguesia podia participar, a reprodução do som surgiu como uma avassaladora

revolução. A popularização da música alcançou níveis intangíveis anteriormente. Os astros pop são

seguidos por milhares de fãs que buscam repetir suas atitudes e filosofias de vida. A atitude dos fãs,

aterrorizadora muitas vezes, passa a ser típica de uma sociedade voltada para a estetização e

mitificação de celebridades e para a padronização de valores. Atitudes que eram explicitadas pelos fãs

das canções de protesto e pelos partidários da “música universal” tropicalista em nível nacional, ou

pelos admiradores dos Beatles ou dos Rolling Stones, em nível externo, que defendiam os valores

propalados por seus ídolos.

A atitude de compreensão da indústria cultural, feita de forma crítica pelo Tropicalismo, é usada

de maneira oportunista por Dom e Ravel, compositores da famosa Eu te amo, meu Brasil, que

diziam: “Pode colocar que é fabricada mesmo. Para uma música fazer sucesso, nós estudamos o

mercado com todos os detalhes. Temos um trabalho planificado, pastas com paradas de sucesso,

épocas do ano, faixas de público...”243 Os músicos brasileiros começavam a compreender e se

242 Campos, Augusto; Balanço de Bossa...; São Paulo, Perspectiva, 1968, pg. 187/188

243 Mello, Zuza Homem de; A era dos festivais, São Paulo, Ed. 34, 2003, pg. 391 Extraído de entrevista concedida à revista Veja, em fevereiro de 1971

116

adequar aos anseios do mercado e às imposições da indústria fonográfica. Vigora a concepção de uma

obra de arte voltada diretamente para os anseios do mercado e totalmente adequada à fruição entre o

público consumidor. As canções são escritas segundo as necessidades do nicho mercadológico para o

qual o produtor está voltado, vinculando a produção artística ao gosto da maioria. De maneira crítica

o Tropicalismo buscou driblar a imposição pasteurizadora da indústria cultural com a

intertextualidade e a paródia sendo sua principal arma contra as imposições do mass media. Ao reunir

o folclore e a cultura popular, com o cinema nouvelle vague e o modernismo antropofágico, os

tropicalistas aspiravam enfocar a realidade vivida por eles, sem olvidar o processo modernizador

dominante.

117

CONCLUSÃO

Esta pesquisa procurou trabalhar um fenômeno cultural que teve papel de destaque durante a

década de 1960 e que ainda é fruto de polêmicas e estudos. Pensamos que o enfoque deste estudo,

baseado na interação da música popular brasileira com a indústria fonográfica paralela à revolta

estudantil e às transformações ocorridas na esfera cultural, é pouco observado nas demais pesquisas

sobre a música popular brasileira contemporânea. O tema pós-modernidade surge quase que

naturalmente no estudo da estética tropicalista. A temática intertextual, a fragmentariedade do

discurso, a anomia do metadiscurso, o questionamento das teleologias e da civilização etnocêntrica e a

construção de uma análise da sociedade contemporânea através das lentes de músicos jovens e

intelectualizados são elementos que expressam a clivagem cultural, racial e religiosa presente na

cultura brasileira desde seus primórdios.

A aceitação do outro e a inserção das particularidades através da universalização do catolicismo

pela Igreja Católica, muitas vezes são responsáveis por colocar o Brasil como uma nação de cunho

plural e intercultural. Geralmente, nos locais que possuem uma maior variedade cultural, as mediações

culturais ocorrem com maior freqüência. O Brasil construiu canais de negociação e assimilação entre

as culturas, dando margem ao sincretismo. A tradição cultural indígena é indispensável para a

compreensão da própria terra e a imposição de alguns hábitos europeus não tem espaço por aqui. O

banho diário, o uso de roupas leves, a consciência e a percepção ambiental mais aguçada são até hoje

preservados pela população. A originalidade de nossa colonização traz a criação de uma cultura

impregnada de diversos matizes, somando à cultura portuguesa, temperos africanos, germânicos,

holandeses, franceses, italianos, japoneses, enfim, de culturas que convivem cristalizando uma cultura

heterogênea e plural em seu gérmen.

Com a afirmação da multiculturalidade, o Tropicalismo objetivou tratar o quadro nacional

(ditadura militar, radicalização dos movimentos sociais, polarização na área cultural) dentro de um

âmbito global (movimentos de contestação à ordem vigente, tanto capitalista quanto socialista;

acelerado desenvolvimento industrial e tecnológico e a formação de uma ideologia juvenil

inconformista). Sem sobrepujar a realidade nacional em detrimento do contexto externo, ou vice-versa,

o Tropicalismo tendeu à revisão crítica de toda a tradição cultural mundial. Investiam na criação de

uma linguagem intertextual, carregada de símbolos eruditos e burlescos, típica de uma nova linguagem

estética. Uma linguagem em consonância com as modificações ocorridas em todas as esferas da

realidade contemporânea. O Tropicalismo retratava o avanço industrial244, pegava um jato e

244 Parque Industrial, Tom Zé, 1968, do LP “Tropicália ou Panis et Circensis”

118

arrebentava com o roteiro do sexto sentido245 e via a formação de um segundo estágio de humanóide246

se aproximando de uma nova ordem social, econômica e, principalmente, pós-moderna que tomava

corpo na década de 1960.

Deve-se entender o nascimento do pós-moderno como um processo de questionamento dos

cânones modernistas, diretamente vinculado à descoberta de uma nova percepção estética e afirmação

de novos valores como a valorização do orientalismo, das culturas indígenas americanas e das culturas

marginalizadas. Enfim, há o processo de florescimento de uma contra-cultura que para alguns acabará

sendo cooptada pela indústria cultural com sua sede pela exploração de novas estéticas e criação de

mercados consumidores. Os críticos contemporâneos do pós-modernismo relacionam-no à

perplexidade e alienação individual, à normatização e ao crescimento do poder das grandes

corporações transnacionais. Porém, sob outro viés, a pós-modernidade cria movimentos de revolta e

inconformismo dentro de si, gerando uma cultura pluralista e libertária valorizadora do

desenvolvimento científico-tecnológico e que também se questiona sobre seu papel na sociedade

contemporânea, abrindo espaço para o experimentalismo mais radical.

A cultura na pós-modernidade adquire um papel determinante e ajuda a formar tanto um

mercado consumidor (palavra muito utilizada nesta época) para a própria cultura como, graças ao

caráter simulacional do mundo atual, vender produtos os mais variados: de sabão em pó a telefone

celular. Há a culturalização da mercadoria tendo como consequência a compra e o consumo de

determinados produtos, seguindo a publicidade e o imaginário criado em torno da mercadoria.

Na música, observam-se conseqüências claras da valorização do pluriculturalismo com a

inclusão de sonoridades variadas que redundam numa nova concepção musical com o uso do sampler

e referência clara a outras obras (com destaque para os rappers que abusam no uso de trechos de

outras melodias e canções). A música alternativa tem um crescimento enorme com a consolidação de

gravadoras independentes, que investem em sonoridades miméticas com referência a variados matizes

culturais. O Tropicalismo teve papel determinante na criação de espaço para o surgimento de uma cena

alternativa e underground brasileira, fazendo o intermédio entre a realidade nacional e mundial. O

movimento esteve fortemente vinculado aos questionamentos que a contra-cultura fazia na época, que

conduziram à criação de uma nova percepção, rotulada de pós-modernidade cultural.

A pesquisa objetivou se concentrar na incidência das modificações estruturais no mundo

contemporâneo. Modificações que serviam de inspiração para a criação artística tropicalista. A década

de 1960 teve como marca o inconformismo de sua juventude, o questionamento das meta-narrativas, a

luta pelos direitos das minorias, a mercantilização da cultura e a culturalização da mercadoria, a

245 Geléia Geral, Torquato Neto e Gilberto Gil; 1968, do LP “Tropicália ou Panis et Circensis” 246 Futurível, de Gilberto Gil, 1969

119

pasteurização por um lado e a multiplicação de opções por outro. Enfim, a década de 60 teve um

caráter transformador muito pungente e serviu como marco para as gerações posteriores. Toda a

produção cultural da década teve forte tendência rebelde demonstrando a nova percepção que abarcava

todas as esferas da vida contemporânea, uma realidade analisada sob um novo ângulo. Um período

onde as certezas universais viveriam seu ocaso e a contestação do modernismo acadêmico alcançou

sua maior força. Houve a valorização da imagem e do áudio-visual, com a necessidade da retratação

em “carne e osso” do acontecimento, a preponderância do imediatismo e da tendência simulacional.

O simulacro, uma das características mais marcantes da pós-modernidade descrita por Jean

Baudrillard, estaria presente na estética tropicalista com sua tendência desconstrutivista e a

caracterização de uma realidade de fragmentos dessemelhantes em sua essência. Platão, um dos

pioneiros na conceituação do termo simulacro, retratou o mito da caverna: o homem preso na caverna,

contemplando apenas sombras que, ao ser libertado e enxergar a realidade, não se contenta e crê nas

sombras contra a realidade. O mito da caverna seria o primeiro relato de uma realidade simulada,

realidade que se vê enevoada, contraditória, confusa, passível de variadas interpretações. Transparece,

paralelamente a uma certa falsidade, fantasia e onirismo, a sensação da realidade simulada simbolizar

a verdade. O caráter simulacional da cultura contemporânea é quase consenso entre os estudiosos da

indústria cultural e da história atual. O papel primordial da televisão atualmente, e do cinema no início

do século XX, a música pop se transformando em porta-voz de uma nova percepção e mentalidade,

enfim, a capacidade de presenciar fatos ocorridos a grande distância e que repercutiam decisivamente

no mundo imprimem um padrão diferente ao cotidiano contemporâneo.

O sonho da rebeldia juvenil, inspiração para a criação caleidoscópica tropicalista, com suas

propostas utópico-revolucionárias, foi alvo de análise por parte dos membros do Tropicalismo. A

incorporação de elementos dissociados da realidade local, a ambiência cenográfica revolucionária e a

sensibilidade voltada para a reflexão sobre as transfigurações da contemporaneidade são métodos

compartilhados pelo Tropicalismo e pela pós-modernidade. Através da dubiedade e contradição,

ambos se adaptam ao simulacro e à preponderância da cultura em todas as esferas da sociedade

contemporânea. A simulação seria mais um dos elementos utilizados pelo Tropicalismo na crítica à

situação social, cultural e política da década. As letras, com clara alusão cinematográfica e áudio-

visual, a cultura psicodélica e os happenings transmitiam evidências da nova apreensão estética

realizada pelos tropicalistas embasada explicitamente na simulação de uma “realidade que nunca

existiu”247, de uma realidade brasileira que ocorreu apenas na música tropicalista e na mescla cultural

realizada por eles.

247 Favaretto, Celso; Tropicália: alegoria, alegria, São Paulo, Ateliê Editorial, 1996, pg. 55

120

O método da análise de discurso auxiliou bastante esta pesquisa graças à visão contextual e

abrangente do tema e do objeto desta investigação. Ao realizar a abordagem baseada na análise de

discurso, pode-se fazer um amplo levantamento dos acontecimentos e da ideologia contemporâneos ao

Tropicalismo, sem olvidar a teoria nascida posteriormente ao movimento e seus desmembramentos. O

movimento tropicalista carece de um exame que não fique restrito ao pensamento de seus membros,

mas que conte com variados relatos que sejam correlacionados com os fatos determinantes da década

de 1960. Almejando realizar uma pesquisa com base na música tropicalista, vicejou-se um estudo

sobre a pavimentação do caminho para a pós-modernidade e suas conseqüências atuais.

Esta dissertação objetivou comprovar a força da cultura pop mundial no Brasil, principalmente

junto ao Tropicalismo, que, de forma crítica com relação ao capitalismo e sua pasteurização cultural,

propunha renovar a cultura nacional com o transculturalismo248 e a busca de referências na cultura

popular. Os tropicalistas propunham criar uma arte desvinculada dos interesses da indústria cultural

mas o próprio pop termina sendo absorvido e se transforma em mercadoria pronta para o consumo

desta indústria.249

Numa proposta intertextual e paródica, o Tropicalismo trouxe novas tendências para a música

popular brasileira criando espaço para a discussão sobre o pluralismo da nossa cultura. Ao introduzir

elementos estrangeiros em sua música, o Tropicalismo buscou reatualizar a tradição cultural nacional.

A salada sonora criada visava exibir a riqueza da música regional com suas várias feições e utilidades.

Sob a visão global, as guitarras distorcidas deveriam buscar a ligação da tendência experimental e

internacional com os arcaísmos de nossa cultura. Arcaísmos, chamados de “macumba para turista” por

Oswald de Andrade, no caso tropicalista tinham outra avaliação: seriam os catalisadores de uma nova

concepção artística, a mistura da “estética da fome” glauberiana com o transculturalismo pop, com

primazia à intertextualidade e compreensão do contexto.

O Tropicalismo questionava o projeto civilizatório modernizador processado pela ditadura

militar. Eram patentes na época os excessos, as imposições políticas e desvios financeiros, a repressão

à oposição e a estruturação da indústria cultural. Esta situação constituía farto estoque de referências

para os músicos tropicalistas e artistas pop da década de 1960. Investindo numa postura ambígua e

contraditória, sofisticadíssima para os padrões da época, houve dificuldade no reconhecimento das

criações tropicalistas pelo público e pela crítica. Talvez a objeção tivesse sido gerada pela

fragmentariedade de seu discurso e pela tessitura plural, fruto de variadas influências. Citando

Saudosismo, uma canção que, como foi exposto na dissertação, provocou grande discussão no

248 Movimento no qual há uma interligação e apropriação cultural tão grandes que não há mais o discernimento das referências culturais. Não há uma clara fronteira entre as variadas tendências culturais citadas na produção cultural 249 Sobre a inclusão dos movimentos de contestação no seara de produtos mercantilizáveis pela indústria cultural ver a obra de David Graeber

121

momento de seu lançamento, Caetano Veloso cantava no LP “Transa”, intercalado por Gal Costa:

“You don’t know me/ you don’t know me at all/ eu você nós dois/ nós temos um passado meu amor/

um violão guardado, aquela flor/ e outras mumunhas mais”250. Em seu disco londrino Caetano

mandava um recado para os que não o haviam compreendido. Para os que achavam que o

Tropicalismo se restringia a um movimento aculturado e mercantilizado, Caetano reafirmava a

continuidade de seu projeto de retomar a “linha evolutiva” da MPB e a ligação atávica do som

produzido pelos tropicalistas com os processos modernizadores da música nacional e o

experimentalismo internacional.

Um campo que ainda rende muitos e preciosos estudos é o vínculo da arte pop, principalmente o

pop rock de língua inglesa da década de 1960, com o Tropicalismo. A forte influência destes músicos

na estética tropicalista deve-se ao papel da música como tradutora da ideologia jovem mundial. Os

festivais e eventos onde os músicos pop se apresentavam, eram logo tomados por uma atmosfera

libertária, com o uso de drogas, o amor livre e a conscientização da necessidade da transformação

ideológica e sensorial como normas. Os tropicalistas, maravilhados com as notícias sobre a rebeldia

mundial juvenil e suas manifestações, intercediam em nossa cena cultural se referindo à nova

mentalidade jovem que tomava de assalto os estudantes de todo o mundo. Com todo o peso da tradição

folclórica nacional sobre seus ombros, os tropicalistas ousaram misturar: ritmos caribenhos, guerrilha

urbana e libertação latino-americana; Vicente Celestino e a música serial que, posteriormente, foram

referências claras na criação de movimentos como o mangue beat, que revisitou a Tropicália com

Maracatu Atômico de Gilberto Gil e Jorge Mautner. Maracatu Atômico representou a transposição

realizada por Chico Science e Nação Zumbi, que uniram maracatu com a guitarra distorcida

denominado por eles de “maracatu psicodélico”, sempre se referiram aos tropicalistas como ídolos,

gravando com Gilberto Gil e Jorge Ben após seu reconhecimento na mídia251.

A introdução do pop no Brasil deve ser compreendida como a gênese das mudanças ocasionadas

pela imposição de novos valores culturais e mercadológicos e alterações impostas pela realidade pós-

moderna. O BRock, como é conhecido o movimento de bandas da década de 1980 no Brasil, tem

como referência a linguagem descompromissada e irônica do pop americano (punk, surf-music, ska,

reggae, hardcore), mas deve ao Tropicalismo a abertura para o consumo de novas sonoridades,

embebidas do cosmopolitismo e das tendências internacionais (muitas vezes imposições da indústria

cultural de valor artístico discutível). O BRock, na verdade, descendia diretamente do rock nacional da

250 Letra da canção Nine of ten 251 Jorge Ben canta com o Nação Zumbi em Malungo em homenagem póstuma a Chico Science e Gilberto Gil toca algumas vezes com o grupo e Chico Science em shows e no CD “Afrociberdelia’ na música Maço. No encarte do CD “Da Lama ao Caos” eles escrevem: “Em meados de 91 começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade (Recife) um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo é engendrar um ‘circuito energético’ capaz de conectar as boas vibrações do mangue com a rede mundial de circulação de conceitos pop, imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.”

122

década de 1970, de Rita Lee que, com os LP’s “Fruto Proibido” e “Entradas e Bandeiras”, se firmou

como a principal figura que melhor incorporava o espírito rocker na cena musical nacional. A

“garotinha tropicalista” brigou com seus parceiros dos Mutantes e partiu para uma redefinição de suas

diretrizes. Sua atitude rendeu a consolidação do rock e das guitarras elétricas com a criação das letras

em português, expondo a nova atitude pop e a estética hippie como a mentalidade juvenil dominante

no mundo. Rita Lee expunha sua posição musical contrapondo a problemática da criação cultural de

entretenimento à criação consciente e politizada e o experimentalismo realizado pelos Mutantes.

Querendo colocar sua carreira em uma nova dinâmica, Rita, como Raul Seixas e os tropicalistas,

desejava “trocar de toca”252, ser “uma metamorfose ambulante”253, ver “tornarem-se os ancestrais, os

pais do rock and roll”254. Ela dizia:

“Troco de idéia/ quando você me toca/ sempre tive vontade/ de trocar minha toca/ E quem me vê vai saber/ que estou por aí/ tocando pra você se divertir com a minha cara”255

O rock brasileiro da década de 1970 é uma área onde ainda podem frutificar grandes trabalhos

relacionados ao papel associador da indústria fonográfica em relação aos rebeldes músicos da década e

o respaldo que as gravadoras lhes granjeava. A publicidade alcançada por estes astros e a atitude

contestadora consistiam peças importantes para a compreensão da música pop do período. Entendido

como um dos pilares da indústria da música contemporânea, o pop ainda deve ser foco de estudos que

possam desvendar suas reentrâncias, conhecendo de forma consistente a indústria cultural e seu papel

determinante na formação da cultura de massas contemporânea, a principal esfera do mundo pós-

moderno.

Objetivou-se colocar, de forma sucinta, a afinidade do movimento tropicalista com a realidade

circundante. As passeatas estudantis, no Brasil e no resto do mundo, formaram uma geração de forte

consciência política, crente nas utopias socialistas, libertárias ou liberais. Tais manifestações surgiram

como foco de questionamentos quanto ao desenvolvimento tecnológico propagado pelo modernismo

iluminista, à criação de empregos para uma geração inconformista dotada de formação acadêmica, ao

esgotamento das riquezas naturais e ao processo interminável de progresso e modernização. Este

contexto veio influir na estética criada para representar o “som universal”, uma arte que exprimisse o

momento que o mundo passava com “o Sol256 nas bancas de revistas/ espaçonaves, guerrilhas e

Cardinales bonitas”, uma estética auto-referencial que abusa do intertexto e da alusão para criar uma

252 Troca toca; do disco “Entradas e Bandeiras” de 1976 253 Metamorfose Ambulante; Raul Seixas, 1973 254 Chuck Berry Fields Forever; Gilberto Gil, 1976. Para melhor compreender o paralelo entre estas canções e esta pesquisa ver: Rennó, Carlos (org.) Gilberto Gil: Todas as Letras; São Paulo, Companhia das Letras; 1996, pg.179 255 Troca toca; do disco “Entradas e Bandeiras” de 1976 256 Suplemento do Jornal dos Sports carioca, publicado na década de 1960

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cena irreal e hiperbólica. Uma realidade que ajudasse a inventariar todas as contradições de nosso país

com sua riqueza e originalidade cultural.

Concluindo, esta pesquisa abordou o Tropicalismo através da ótica pós-moderna graças à sua

preocupação com o processo transformador observado em todo o planeta, principalmente a ligação do

mundo do capital e da mercadoria com a cultura. Pensa-se que o Tropicalismo não foi um movimento

solitário na crítica e observação da realidade contemporânea co-existindo com variadas expressões

culturais que também buscavam a compreensão do contexto mundial. Surgindo num momento de

questionamento dos metadiscursos e da ideologia modernista, o Tropicalismo se uniu a variadas

tendências que buscavam imprimir uma nova concepção artística contra a tradição cristalizada nas

instituições modernas. Com um raro tino crítico, os tropicalistas colocaram a cultura do Brasil em

papel de destaque frente à cultura global. Ao utilizarem a linguagem pop, a referência aos

movimentos de contestação globais junto à exposição da tradição folclórica e cultural nacional, os

tropicalistas revolucionaram a música brasileira e recolhem dividendos até os dias atuais quando são

citados por músicos da vanguarda do pop mundial como Kurt Cobain e Sean Lennon. Beck, músico

californiano, chegou a fazer uma canção com o título Tropicália, demonstrando o papel determinante

da estética tropicalista nas criações musicais posteriores. Hoje, quando, de forma geral, questiona-se o

conceito de nacionalidade, o papel original da cultura nacional e seu valor frente a outras culturas,

surgem artistas voltados para o conhecimento do movimento Tropicalista e da cultura brasileira.

Esta dissertação tentou delimitar o caráter transcultural da cultura brasileira que, desde a

colonização, observou a convivência de povos e culturas os mais diversos transformando o Brasil

numa sociedade multi-racial, com matizes culturais que remetem à colonização européia, à imigração

asiática, ao escravismo africano e, obviamente, às várias nações indígenas que aqui habitam. Nosso

país, em especial, e o continente americano, de maneira geral, detiveram a particularidade de

amalgamar culturas diversas na formação de uma cultura original e aberta, advindo daí criações

artísticas riquíssimas e de rara percepção como o movimento Tropicalista.

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Revista Veja Entrevista com Rogério Duprat, Veja, 09/09/1970 Eles dizem não mas todo mundo aplaude, Veja, 27/11/1968 Tigres, elefantes e agora Os Mutantes, Veja, 08/01/1969 A cancão de Elis no Olympia de Paris e O “hippy” proibido dos tropicalistas; Veja, 23/10/1968 Os baianos que vão; Veja, 30/07/1969 Um festival ligado na tomada, Veja, 20/11/1968 Zé vale-tudo; 04/12/1968 Ele grava para milhares as canções dos festivais, Veja, 30/10/1968 Violenta América Latina, Veja, 04/06/1969 Últimos do Pa... Tropi...; Veja, 12/11/1969 Um paraíso feito com raiva; Veja, 05/02/1969 Os baianos melancólicos; Veja, 04/06/1969 Com eles, briga na certa; 16/10/1968 A música dos Mutantes no Festival; Veja, 02/10/1968 As combatidas flores de Geraldo Vandré; Veja, 09/10/1968 Com eles, briga na certa; Veja, 16/10/1968 Jimi Hendrix, rock interplanetário, Veja, 22/01/1969 O México Violento; Veja, 09/10/1969 A Zengakuren ataca outra vez, Veja, 25/09/1968 Existe algo de concreto nos baianos, Veja, 13/11/1968 Um festival de protestos, Veja, 25/09/1968 Stockhausen, o bom guru do som eletrônico, Veja, 29/01/1969 O ‘hippy’ proibido dos tropicalistas; Veja; 23/10/1968

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Correio da Manhã Uma Geléia Geral de Vanguarda, CM, 21/09/1968 Chico Buarque, menino mau, 06/03/1968 Diagnóstico (ou autópsia) do tropicalismo, 14/03/1968

Folha de São Paulo O combatente na voz do povo”, FSP, 03/10/1967 A linha dura ameaça o festival, FSP, 04/10/1967 Amor e ódio na música de Gilberto Gil, FSP, 06/10/1967 Neste festival a Bossa Nova está morrendo, FSP, 10/10/1967 Sobre o III Festival, FSP, 11/10/1967 O som universal (de Caetano e Gil), FSP, 12/10/1967 Uma noite de contrastes, FSP, 14/10/1967 Uma noite Tropicalista, FSP, 14/08/1968 Há 20 anos, 400 mil hippies faziam a história sob a chuva de Woodstock, FSP, 02/01/1989, Ilustrada, pg. 1 e 6 Letras, (especial de 70 anos da Semana de Arte Moderna de 1922), FSP, 08/02/1992 O escritor beat Jack Kerouac era infantil, FSP, 21/10/1989 Para Ginsberg, EUA vivem stalinismo soft, entrevista de Allen Ginsberg, FSP, 25/01/1992 Gugu ou “Tropicália 3, FSP, 21/03/1999 A “Feira Permanente de MPB”, FSP, 27/06/1999 Pré-moderno ou Pós-moderno, FSP, 28/03/1999 A Última Utopia, FSP, Caderno Mais especial, 10/05/1998 Conexão Americana, FSP, 23/07/1998 1997: O que o ano radical tem a dizer a 1997, FSP, 23/02/1997 O tropicalismo do cárcere ao poder, FSP, 02/11/1997 Repórteres falsos promovem Casa Branca; Folha de São Paulo; 20/02/2005

O elo mais frágil, 10/05/1998 Golpe de marketing, Caderno Mais; Folha de São Paulo, 10/05/1998 escrito por Contardo Calligaris

Jornal do Brasil A geração beat chega em livros ao Brasil, JB, 06/02/1984 Romaria psicodélica, JB, 01/05/1996 AI-5, JB, Caderno B especial, 13/12/1998 O tropicalismo segundo Caetano Veloso, JB, Caderno B especial, 26/10/1997 O outro João, JB, 04/06/1999 68: O ano radical, JB, Caderno B especial, 03/05/1998 As ilusões do pós-modernismo, Terry Eagleton, Caderno Idéias, JB, 20/06/1998 Tropicologia ou a ciência de uma civilização quente, JB, 22/02/1969 Um delírio tropicalista, JB, 15/10/1968 Tropicalismo! Tropicalismo! Abre as asas sobre nós, JB, 02/03/1968 Diagnóstico (ou autópsia) do Tropicalismo, JB, 14/03/1968

Internacional Magazine Entrevista com Gilberto Gil, Ano IX, Edição 52, 1999

O Globo A Banda de Ipanema saiu para a moda Tropicália, O Globo, 12/02/1968 Allen Ginsberg, o guru da ‘revolução de mochila’, O Globo, 06/04/1997 A revolta das letras no julgamento do século, O Globo, 14/07/1996 O sobrevivente da santíssima trindade beatnik, O Globo, 27/04/1997 Gozos da memória, O Globo, 26/10/1997 Página plena de força rítmica, O Globo, 22/11/1997 A geléia renovada, O Globo, 07/09/1997 Lembranças de maio de 68: 30 anos, O Globo, 09/05/1998

“O legado possível da primavera parisiense”; Paulo Roberto Pires; 09/05/1998 “O cinema é política”; 23/08/2005

Manifestos Tropicalismo, Hélio Oiticica , Rio de Janeiro 04/03/1968

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O Pasquim Interdependência ou a frescura instalada e nossa música popular; julho de 1969, n.III O samba saiu de moda; julho de 1969, n. IV A música jovem na realidade; agosto de 1969, n. VI A invasão do paraíso; 28 de agosto de 1969; n. X Caetano, aquele abraço; 28 de agosto de 1969, n. X Meu prezado Sigmund; 18 de setembro de 1969, n. XIII Caetano, meu santo; 18 de setembro de 1969, n. XIII Grash, bitubitum, troim, grahst, trilex, arechguebim, 2 de outubro de 1969, n. XV Caetano; 30 de outubro de 1969, n. XIX Cultura e civilização; 19 de novembro de 1969, n. XXI Os festivais já encheram o saco; 17 de dezembro de 1969, n. XXV O Som do Pasquim; Rio de Janeiro, Editora Codecri, 1976

DOCUMENTOS OFICIAIS Informe nº 359 de 26/07/1971 Secreto (DOPS-GB)

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