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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ) EDUARDO DE ALMEIDA SANTOS A NARRATIVA COMO DISPOSITIVO: a interferência da palavra na disputa da existência em certos territórios do rio de janeiro RIO DE JANEIRO 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)

EDUARDO DE ALMEIDA SANTOS

A NARRATIVA COMO DISPOSITIVO: a interferência da palavra na disputa da

existência em certos territórios do rio de janeiro

RIO DE JANEIRO

2015

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Eduardo de Almeida Santos

A NARRATIVA COMO DISPOSITIVO: a interferência da palavra na disputa da

existência em certos territórios do Rio de Janeiro

Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências da Literatura da Faculdade de Letras da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como requisito

parcial à obtenção do título de mestre em Ciência da Literatura.

Orientadora: Profa. Dra. Beatriz Resende

Rio de Janeiro

2015

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Eduardo de Almeida Santos

A NARRATIVA COMO DISPOSITIVO:

a interferência da palavra na disputa da existência em certos territórios do Rio de

Janeiro

Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências da Literatura da Faculdade de Letras da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como requisito

parcial à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura.

Aprovada em:

_____________________________________

Prof.ª Dr.ª Beatriz Resende (UFRJ)

Orientadora

______________________________________

Prof. Dr. André Luiz Gardel Barbosa (UNIRIO)

_______________________________________

Prof.ª Dr.ª Martha Alkimin de Araújo Vieira (UFRJ)

Rio de Janeiro

Maio de 2015

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RESUMO

SANTOS, Eduardo de Almeida. A narrativa como dispositivo: a interferência da

palavra na disputa da existência em certos territórios do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,

2015. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura) – Faculdade de Letras,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

O presente trabalho trata das questões relativas principalmente dos dramaturgos

de periferias e as relações estabelecidas em sua produção e vivência. Analisando

historicamente as noções de comunidade, favela e território e obras e histórias do Teatro

na Laje, Nós do Morro, Apalpe e Última Estação, tendo como foco a obra Oh Menino,

deste último grupo.

Palavras-chave: dramaturgia; dispositivo; memória; interferência da palavra.

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ABSTRACT

SANTOS, Eduardo de Almeida. A narrativa como dispositivo: a interferência da

palavra na disputa da existência em certos territórios do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,

2015. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura) – Faculdade de Letras,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

The present work deals with issues relating mainly Playwrights peripheries and

the relationships established in their production and lives. Historically analyzing the

notions of community and slum area and works and stories of the Teatro da Laje, Nós do

Morro, Apalpe and Última Estação, focusing on the Oh Menino work of the latter group.

Kew-words: dramaturgy; device to memory; word interference.

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Sumário Agradecimentos ............................................................................................................................. 7

Introdução ..................................................................................................................................... 9

Capítulo 1 Território ................................................................................................................... 13

Capítulo 2 Discursos e “descobertas” da favela .......................................................................... 16

Capítulo 3 Favela/comunidade como mercado e potência e a disputa por ser território ............. 27

Capítulo 4 A afirmação como território (nação, narrações e fronteiras vacilantes) .................... 33

Capítulo 5 A dramaturgia como dispositivo – “ser dispositivo ou ser agenciamento” (uma

coleção da Nike, dramaturgia, política e outros itens) ................................................................ 36

Capítulo 6 Processos e métodos de concepção ........................................................................... 47

6.1 Um dramaturgo para chamar de seu .................................................................................. 48

6.2 O re-enactment, o “copia e cola” e o “cover” como estratégias de disputa do campo da

literatura, performance e subjetividades ................................................................................. 49

Capítulo 7 Cartografia de afetos e narrativas .............................................................................. 58

Capítulo 8 O direito à memoria e ao pertencimento ................................................................... 71

8.1 A história do lugar como centro da narrativa .................................................................... 71

8.2 Falar de um menino para falar de si próprio ..................................................................... 74

Conclusão .................................................................................................................................... 82

Referências .................................................................................................................................. 87

Anexos......................................................................................................................................... 93

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AGRADECIMENTOS

Não acredito muito em essências, por isso agradeço a todos aqueles que de uma

forma ou de outra mantiveram comigo ou passaram por mim em permanentes relações de

negociação, conflitos, afetos e empréstimos recíprocos. Em especial, aos amigos que

fizeram parte de minha formação em Teatro e como ser humano, tanto no MGT como na

Escola Livre de Teatro. Alegórico aos meus professores, queria saudar em especial os

mestres Marcus Faustini, Alexandre Damascena e Leo Munck. As orientações recebidas

ao longo da vida por Maria Helena Werneck e Beatriz Resende. Afetivamente, queria

agradecer enormemente a pessoas que me acompanham nesta jornada de vida e, diga-se

de passagem, de afeto: Carole Numes, Ione de Almeida, Moisés Santos, Mariane Santos

e Norma Sueli. Queria agradecer a companheiros de formação acadêmica ou como ser

humano, como Juliana Caetano, Joyce Hirota e Milton Garruga, pelas conversas e dicas

para a vida.

Agradeço imensamente a todos aqueles que fizeram parte de mais este passo

profissional e que generosamente compartilharam seus conhecimentos.

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Isso de a gente querer ser exatamente o que a gente é ainda vai nos levar além.

Paulo Leminski

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9

INTRODUÇÃO

Como um texto pode dialogar com seu território de forma a expressar em suas

palavras os contatos e interações existentes em uma comunidade? Como as formas e

expressões literárias podem ser um dispositivo que transformam o desejo de aparência e

existência (não apenas de forma física, mas de forma sensível) em forma estética? Essas

perguntas são fruto de um interesse pessoal pelo tema, bem como produto de uma

observação da diferenciação existente na qualidade e relação de práticas escritas de cenas

no denominado “teatro de comunidade”, quando o dramaturgo/dramaturgista é oriundo

da própria comunidade.

No campo da vivência pessoal, cabe ressaltar que tive um trânsito artístico muito

próximo desse dito “tipo de teatro”: quando partilhei formações artísticas no Teatro da

Cidade das Crianças,1 em que membros de grupos oriundos de Santa Cruz, Campo

Grande, Paciência (bairros periféricos da cidade do Rio de Janeiro) e Itaguaí (município

vizinho da mesma cidade) se encontraram na Escola Livre de Teatro (ELT),2 a fim de

buscar ferramentas práticas artísticas e relações societais. O próprio grupo MGT Os

Coloridos (situado na cidade de Itaguaí), onde iniciei minhas atividades teatrais, tinha

certos traços do denominado “teatro de comunidade”.

Em uma observação3 mais detida desse tipo de teatro/relação, há a percepção da

existência de uma diferença sensível na questão da narrativa no chamado “teatro de

comunidade”. O porquê e como se opera essa distinção nas produções de trabalhos

sociais, ou não, entre grupos que “importam” dramaturgos de fora da comunidade e

outros, que têm seus trabalhos pautados por dramaturgos do próprio território. Foi esse o

estímulo que me levou a investigar os fatores existentes no campo social, cultural e

econômico que interferem no campo da estética e da construção do texto dramatúrgico.

Para dar conta dessa análise, há a intenção de promover um estudo que cruze os

campos do chamado “teatro comunitário”4 e algumas abordagens das ciências sociais,

1 A Cidade das Crianças é um equipamento de cultura e lazer da Prefeitura do Rio de Janeiro, localizado

próximo à fronteira entre o Rio (mais especificamente Santa Cruz ) e Itaguaí, que conta com parque

aquático, lanchonetes, planetário, biblioteca e teatro. 2 A Escola Livre de Teatro foi uma das ações apresentadas pelo projeto Reperiferia, que se propunha a

rediscutir, repensar, recriar as ideias de periferia através de espetáculos e oficinas que articulassem um

diálogo com a comunidade. 3 Esse tipo de observação sempre ficou clara para mim tanto como público como realizador. 4 Do ponto de vista da sociologia, uma comunidade é um conjunto de pessoas que se organizam sob o

mesmo conjunto de normas, geralmente vivem no mesmo local, sob o mesmo governo ou compartilham do

mesmo legado cultural e histórico. Os estudantes que vivem no mesmo dormitório podem formar uma

comunidade, assim como as pessoas que vivem no mesmo bairro, aldeia ou cidade. Fichter (1967), em

suas Definições para uso didático, ressalta que uma palavra, que é rodeada de significados múltiplos, requer

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como, por exemplo, o “interacionismo social”,5 para analisar questões referentes à

produção de tal dramaturgia. Por exemplo: qual é a ingerência dos fatores já citados e

como se articulam, dialogam e interferem nesses dramaturgos? Como o processo de

subjetividade e intersubjetividade construído no processo coletivo traduz as lembranças

e interferem na criação da ficção teatral? De que maneira o olhar da vivência é transmitido

de forma estética, com conhecimento da história pessoal, local, coletiva, e ainda se projeta

na observada diferença sensível de dramaturgia? De que forma a palavra interfere na

percepção e construção da realidade?

Assim sendo, o recorte principal deste estudo será a estrutura dramática produzida

por dramaturgos de grupos de “periferia” e/ou “comunidade”, que tenham como base as

memórias e narrativas de sua comunidade. É esse espaço de partilha do sensível e agenda

de desejos que este trabalho pretende desenvolver, tendo como objeto principal os textos

do coletivo Última Estação produzidos por Sandro D’ França, ao mesmo tempo em que

se articula uma cartografia de outras experiências, de grupos semelhantes, como o Nós

do Morro e o Teatro da Laje e o projeto de narrativas do Apalpe, de Marcus Faustini.

Essas ações pensam a palavra como potencialidade de agir-influenciar sobre o

mundo. A análise, assim, se voltará às formas de articular a vivência dessas comunidades,

seus artistas em sua relação com a produção de material estético e à importância desses

processos de inserção nesse processo e nesse diálogo de artistas-comunidade-público. De

certa forma, é o que nos diz Ranciére em seu livro A partilha do sensível:6

A conexão dessas “simples práticas” com modos de discurso, formas de vida,

ideias do pensamento e figuras da comunidade não é fruto de nenhum desvio

maléfico. Em compensação, o esforço para pensá-la implica abandonar a pobre

dramaturgia do fim e do retorno, que não cessa de ocupar o terreno da arte, da

política e de todo objeto pensado (2005, p. 14).

Dessa forma, esta dissertação pretende articular essas noções com os exemplos

práticos desses projetos, entre as ações do que se vive e o que se escreve e também nas

possibilidades de inclusão da subjetividade na construção de material artístico. Assim,

não se pretende estudar o material/obra de forma isolada. Nem como algo pertencente

uma cuidadosa definição técnica, ao que propõe: comunidade é um grupo territorial de indivíduos com

relações recíprocas, que servem de meios comuns para lograr fins comuns. 5 A visão interacionista social (Vygotsky) considera os fatores sociais, comunicativos e culturais para a

aquisição da linguagem, estudando as características da fala dos adultos. Segundo esse ponto de vista

teórico, a interação social e a troca comunicativa são pré-requisitos básicos para a aquisição da linguagem.

Nessa perspectiva, a linguagem é atividade constitutiva do conhecimento de mundo e onde a criança se

constrói como sujeito. 6 Jacques Rancière (Argélia, 1940) é um filósofo francês, professor da European Graduate School de Saas-

Fee e professor emérito da Universidade de Paris.

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apenas ao caráter artístico, nem como algo pertencente apenas à esfera econômica-

política, mas sim como uma composição plural de troca e/ou articulação refletida na

forma da palavra.

Como resultado secundário disso é que esta dissertação vai examinar alguns dos

pontos presentes na discussão sobre o território, favela e comunidade, dado que um dos

sujeitos da dramaturgia é, além do próprio dramaturgo e do próprio drama, a relação

apreendida com o espaço. É o exame de como esse habitus7 se projeta como personagem

de forma a recriar e interferir na relação com a realidade, conforme explicita Bourdieu:

“Sendo produto da história, o habitus é um sistema de disposições aberto,

permanentemente afrontado a experiências novas e permanentemente afetado por elas.

Ele é durável, mas não imutável” (Bourdieu, 2002, p. 83).

Foi necessário perceber essas trilhas como instrumentos conceituais que auxiliam

a pensar as relações, mediações entre os condicionamentos sociais exteriores e as

subjetividades dos sujeitos nas respectivas escritas dramatúrgicas; não olhar o fato como

destino e detido no passado e só (e apenas) influenciado por ele, mas também como uma

ação do presente, considerando-o não como destino. Mas tendo o leque de possibilidades

articuladas (ou não), da identidade social, da experiência biográfica e de um sistema de

orientação consciente ou inconsciente. Por isso foi necessária uma pequena mudança de

título na escrita deste trabalho.

Inicialmente, este trabalho se chamaria “Texto, interações e memória: uma análise

comparativa da dramaturgia dos denominados grupos de ‘comunidade’” (aliás, foi esse o

nome do projeto aprovado na seleção do Programa de Pós-Graduação em Ciência da

Literatura da UFRJ). Mas, no decorrer da experiência da escrita, algumas questões foram

ficando claras para definir a mudança do nome para “A narrativa como dispositivo: a

interferência da palavra na disputa da existência em certos territórios do Rio de Janeiro”.

A primeira delas era que, embora os dramaturgos escolhidos inicialmente (Luís

Paulo Corrêa da Rocha e Sandro D’França) fossem de uma riqueza absurda, ocorreu uma

7 Habitus refere-se aos estilos de vida, valores, disposições e expectativas de determinados grupos sociais

que são adquiridos através das atividades e experiências da vida cotidiana. Em outras palavras, o habitus

pode ser entendido como uma estrutura da mente, caracterizado por um conjunto de hábitos adquiridos de

esquemas psicológicos-representacionais, sensibilidades, disposições e gostos. O conceito foi desenvolvido

pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu com o objetivo de pôr fim à antinomia indivíduo/sociedade dentro

da sociologia estruturalista. Relaciona-se à capacidade de uma determinada estrutura social ser incorporada

pelos agentes por meio de disposições para sentir, pensar e agir. Diz respeito às disposições incorporadas

pelos sujeitos sociais ao longo de seu processo de socialização; integra experiências passadas, atua como

uma matriz de percepções, de apreciações, de ações. Essa “matriz”, ou conjunto de disposições, nos fornece

os esquemas necessários para a nossa intervenção na vida diária. Conforme trata o autor, essas disposições

não são fixas, não são a personalidade nem a identidade dos indivíduos: “habitus é um operador, uma matriz

de percepção, e não uma identidade ou uma subjetividade fixa” (Bourdieu, 2002, p. 83).

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soma natural do projeto com os processos criativos das produções dramatúrgicas do

Teatro da Laje e das iniciativas literárias do Apalpe. A segunda questão, e ainda mais

importante, é que a escrita começou a avançar em torno da produção de subjetividades na

experiência do concreto. Se antes a intenção era observar como a experiência e o habitat

se transformavam em dramaturgia, ao longo do processo, percebi que essa transformação

da memória em habitat, em material cênico ou literário, se transformava em uma

experiência artística com ecos na realidade – ou, ao menos, na percepção dela.

A transformação dos temas do cotidiano em material artístico transformava

aquelas comunidades e aqueles sujeitos em sujeitos de vozes ativas dispostos a disputar

o imaginário das cidades. A arte nesses casos não era apenas do registro e, embora não

focada nesse ponto, era uma grande transformadora (ou, no mínimo, punha em disputa) a

estrutura social e o pensamento sobre a hierarquia simbólica da cidade. Arte, nesses casos,

pode ser considerada como produtora de um saber prático que também é uma das

maneiras de pensar as relações de poder (e as relações de vida), o que Agamben8 (por

exemplo) chamaria de “viventes” e dos “dispositivos”.

Por fim, a mudança de nome se dá para atender um objeto de pesquisa maior e por

perceber que não é só a “realidade” que influencia a escrita. A escrita também influencia

a realidade em formas e estratégias de participação que tornam a comunidade autora do

espetáculo, e é ela a protagonista. Nela, sua cultura, seu jeito, suas memórias se exercem

até simbolizadas por indivíduos.

8 Giorgio Agamben (Roma, 22 de abril de 1942) é um filósofo italiano, autor de obras que percorrem temas

que vão da estética à política. Seus trabalhos mais conhecidos incluem sua investigação sobre os conceitos

de “estado de exceção” e “Homo sacer”.

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1 TERRITÓRIO

Para iniciar o discurso sobre algo é necessário primeiro admitir que existe o “algo

em si” e o “discurso sobre ele”. Falar ou escrever sobre determinado assunto significa, no

mínimo, que existe a “presença” filtrada pela linguagem e que gera, no mínimo, uma

“represença”, ou uma representação. Esse registro é realizado sempre por um enunciador,

que pode ser mais ou menos interessado – mas sempre interessado (não é possível negar

o envolvimento do autor como sujeito humano em suas próprias circunstâncias).

Lançados esses pequenos fundamentos para a reflexão teórica delimitemos um

ponto escolhido de discurso – quem fala sobre tudo, acaba por falar sobre nada. Têm me

interessado recentemente: as construções da identidade, a palavra e as relações

estabelecidas na “favela”, “comunidade” e/ou “território”. O presente texto é uma

tentativa de captar alguns sujeitos do discurso que estão envolvidos no jogo da

representação e apontar os diversos processos sociais mutantes e seus múltiplos

significados para as palavras, relações e identidades, principalmente em relação à

“favela”, à “comunidade” e/ou ao “território” na cidade do Rio de Janeiro.

Acredito, e muito, que, para iniciar essas questões, podemos mediá-las por alguns

dos pensamentos presentes no livro Orientalismo, de Edward Said.9 Said analisa como se

deu a construção da representação do “Oriente” feita pelo/com/e/em/para o “Ocidente” .

Mas o seu estudo tem um horizonte de aplicação muito mais amplo, o seu uso como

referencial teórico é totalmente plausível para analisar os jogos de representação do

“Outro” feita pelo/com/e/em/para o “Eu” – principalmente quando eles se encontram em

relação de poder e autoridade. Assim sendo, é possível mediar as relações entre centro e

periferia e/ou cidade e favela.

Poderíamos ler as citações abaixo extraídas da introdução do referido livro como

feitas para pensar a “realidade” desses territórios se substituíssemos as palavras referentes

a Oriente e orientalismo por favela/comunidade e o Ocidente, por centro/cidade.

Como um ponto de partida muito grosseiramente definido, o orientalismo pode

ser discutido e analisado como instituição organizada para negociar com o

Oriente – negociar com ele fazendo declarações a seu respeito, autorizando

opiniões sobre ele, descrevendo-o, colonizando-o, governando-o: em resumo,

o orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter

autoridade sobre o Oriente (SAID, 2007, p. 15).

9 Edward Wadie Said foi um dos mais importantes intelectuais palestinos, crítico literário e ativista da causa

palestina.

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Ou ainda:

O Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento,

imagística e vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o

Ocidente. [...] É um erro concluir que o Oriente era essencialmente uma ideia,

ou uma criação sem uma realidade correspondente. [...] Ele tem uma realidade

crua obviamente maior que qualquer coisa que pudesse ser dita a respeito no

Ocidente (Ibid., 2007, p. 17).

As relações instauradas e percebidas nessas frases pela negociação do “Oriente”

(que poderíamos pensar e substituir para este trabalho pelas palavras

“favela/comunidade”) são fruto de um discurso que visa enquadrar os vazamentos da

realidade transbordante desses territórios. É uma espécie de enquadramento, mesmo que

múltiplo, que tem no seu intuito desde “descrever o outro” até “dominar o outro”, sendo

resultado de uma relação complexa que vai além da “realidade crua” ou das simples

representações.

É obvio que essas relações são um processo, e não apenas algo calcificado e

estático. É antes um campo (para citar Bourdieu)10 em disputa por jogadores com

estruturas e possibilidades assimétricas (mas que ainda assim estão em “disputa” e estão

em um “campo”). Logo, tratar de favela/comunidade/periferia é tentar se perguntar, e

depois tentar captar como, na evolução do tempo, os “jogadores” (ou os atuantes) desse

campo representaram e se deixaram representar? Ou que mudanças, modulações,

refinamentos e até revoluções têm lugar no pensamento sobre a favela? Como é que as

relações são transmitidas, reproduzidas e mediadas de uma época para outra? Podendo

usar novamente Said para indagar:

Finalmente, como podemos tratar o fenômeno cultural e histórico do

orientalismo [favela/comunidade] como um tipo e obra humana induzida – e

não um mero raciocínio incondicionado – em toda a sua complexidade

histórica, detalhe e valor sem ao mesmo tempo perder de vista a aliança entre

o trabalho cultural, as tendências políticas e o Estado e as realidades específicas

da dominação? (SAID, 2007, p. 27).

Para começar a responder essas questões desse processo é necessário admitir o

primeiro ponto básico: o significado de favela e comunidade não é um significado “uno”,

ele é múltiplo, e, de acordo com o enunciador, pode ser encarado desde o pejorativo até

o elogioso. Assim, comunidade pode ser entendida desde carência até como potência.

10 Bourdieu compreende que os atores sociais estão inseridos espacialmente em determinados campos

sociais, a posse de grandezas de certos capitais (cultural, social, econômico, político, artístico, esportivo

etc.) e o habitus de cada ator social condiciona seu posiciomento espacial e, na luta social, identifica-se

com sua classe social. Bourdieu afirma que para o ator social tentar ocupar um espaço é necessário que ele

conheça as regras do jogo dentro do campo social e que esteja disposto a lutar (jogar).

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Para ilustrar tal raciocínio, poderíamos citar a palavra “favelado”, que pode ser usada

tanto para exprimir um preconceito e julgamento étnico-social colocados por

enunciadores que nomeiam o outro como “pobre, malandro-bandido e mal-educado”,

como pode ser uma ideia de autoafirmação elogiosa para falar do “orgulho de possuir

valores e relações mais próprias e verdadeiras com a vida-realidade”. Assim:

A antropologia nos ensina a prestar atenção nas palavras. As palavras têm vida,

vão mudando de significado no decorrer do tempo e em diferentes espaços.

Nas dinâmicas sociais os significados de dicionários vão se transformando.

Houve um tempo em que se discutiu muito sobre o uso das palavras “favela”

e “comunidade” . Ouvindo moradores, concluí que essas palavras não

deveriam ser vistas como nomeações excludentes. As duas palavras vieram “de

fora”. Foram usadas para estigmatizar (favela) ou para minorar estigmas

(“comunidade” foi introduzida pela Igreja Católica e, posteriormente, por

projetos governamentais). Mas elas foram sendo reapropriadas por moradores

dessas áreas, por diferentes pessoas e por diferentes gerações (NOVAES, 2013,

p. 11).

Com isso, é possível entender, reconhecer e dialogar com a enormidade de estudos

sobre a favela e a comunidade carioca. Uma boa perspectiva desses estudos foi feita no

livro Um século de Favela, organizado por Alba Zaluar e Marcos Alvito e também pela

palestra da Dr.ª Lícia Valladares, professora pesquisadora do Iuperj, ministrada no Centro

Cultural do Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro no ano de 2002. Eles sintetizam

uma espécie de história, estudos e “descobertas” sobre a favela e comunidade. Tais

narrativas dão importância a “quem está falando”, como está “sendo falado” e “como está

sendo falado” (tópicos importantes para pensarmos sobre os enunciadores e atuantes do

discurso sobre a favela), uma tentativa de explanar qualitativa, quantitativa e

cronologicamente os registros sobre a favela/comunidade.

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2 DISCURSOS E “DESCOBERTAS” DA FAVELA

Lícia Valladares, por exemplo, afirma em sua palestra no CCBB (Rio), que, em

recente levantamento, foram catalogadas publicações entre os anos de 1906 e 2000 de

mais de 600 títulos11 sobre o assunto favela, disponíveis em bibliotecas públicas do Rio

de Janeiro. Com isso, ela principia o seu discurso pela problematização da noção de “até

que ponto a discussão sobre a favela é algo novo e relevante?”, ou ainda, “até que ponto

essa discussão no contemporâneo se situa sobre a questão de colocar novos rótulos (ou

manter os velhos)”.

Ela sinaliza discursos possíveis sobre a favela/comunidade, como o de João do

Rio (para exemplificar o discurso da literatura), o da polícia, o da política e, ainda, o

discurso da mídia (só para citar alguns exemplos). Com isso, ela passa a falar de alguns

tópicos importantes desse “estudo sobre a favela” e a “descoberta da favela/comunidade”

que vamos propor aqui (somado às descrições do livro Um século de favela).

Cronologicamente, poderíamos ordenar tais fatos e dados da seguinte forma:

- Na Semana de Arte Moderna de 1922, os artistas “descobrem” a favela,

valorizando-a como símbolo da identidade nacional. Exemplos em Anita Malfati e

Portinari. Outro ponto de destaque nos anos 1920 é a visita de estrangeiros à Favela da

Providência;12

- Na década de “30”, ela menciona “a descoberta da música popular brasileira

sobre as favelas”, o filme de Humberto Mauro Favela dos meus amores (1930) e o Código

de Obras da Cidade do Rio de Janeiro, de 1937, que definiu o que era favela para o ente

público.

- Já na década de “40”, o destaque é o poder público “descobrindo” a favela como

fenômeno urbano generalizado. Acontece o primeiro censo das favelas em 1948, que

contou 107 favelas (comparado ao censo de 2000, corresponderia a 7% do quantitativo

de favelas desse ano). São produzidas também nos anos 1940 as primeiras teses sobre as

favelas.

11 Cabe notar que embora mais de 600 títulos existam sobre o assunto, existe um nicho de favelas estudadas,

segundo a pesquisadora menos de 30 aparecem constantemente nesses trabalhos. 12 Primeira Favela do Brasil. Aliás o próprio nome favela tem início aí e em carregado de explicações

diversas. Alguns dizem que é pela semelhança com os “favos” produzidos por colônias d abelha outros pela

questão de ser semelhantes as plantas usadas como camuflagem pelos soldados do governo que lutaram em

Canudos com promessas que na volta receberiam moradias (e com o seu não recebimento se instalaram no

morro da providencia).

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- Na década de “50” há duas “grandes descobertas da favela”. A primeira delas é

a da Igreja Católica,13 um dos grandes atores das favelas cariocas. A segunda é a

descoberta das favelas pelos agentes políticos (então como possibilidade de currais

eleitorais – fato esse que se mantém até a contemporaneidade).14 Outra menção é o início

da atuação da Fundação Leão XIII sobre algumas favelas.

- Na década de “60” as favelas são “descobertas” pelos americanos,

principalmente pelos piscors, voluntários da paz que, de certa forma, saíam pelo mundo

para viver com as comunidades pobres e lhes “ensinar o desenvolvimento comunitário”.15

Existe também nessa década a difusão da Teoria da Marginalidade Social (que propunha

que a marginalidade poderia ser solucionada por questões da educação em forma e

tempo).

- Já nos anos 1970, 1980 e 1990 há a “descoberta” das favelas (de forma

consistente) pela universidade brasileira e pela pós-graduação. Há o financiamento de

teses e pesquisas. Para Lícia Valladares, a “universidade legitima a favela como território

a ser pesquisado” (na maioria das vezes, apenas como objeto de estudo da pobreza). Uma

nota importante, segundo ela, é que das mais de 600 favelas do Rio de Janeiro apenas 25

foram objetos de pesquisa.

- No ano de 1990 em diante há uma “descoberta” que merece um destaque

individual: a “descoberta” das favelas pelas ONGs, com o propósito de extensão da

cidadania aos excluídos, considerando principalmente a pobreza reduzida à exclusão

social.

- No século XXI há uma mudança na perspectiva. A “descoberta” que se dá é a

percepção da favela como produto que tem valor de venda. Um produto de exportação,

até o nível global (na era da globalização, a favela tende a se globalizar também). São

exemplos disso: agências de notícias, turismo, hotelaria, artesanato, quadro e camisetas

na Feira Hippie de Ipanema, produtos artísticos (todos focados na favela enquanto

potencial simbólico).

Esta pequena narrativa sobre as relações mantidas e as participações e percepções

sobre a história e percepção sobre a favela é para tentar perceber as linhas possíveis de

13 Para a pesquisadora, o termo “comunidade” se origina aí. Principalmente pela ala da Teologia da

Libertação, que tinha a expectativa de agregar a sociedade em torno de uma identidade comum, ao mesmo

tempo em que se encobriam as carências urbanas e econômicas. 14 Uma “brincadeira” interessante nesse ponto é a representação no filme Tropa de elite II da ascensão das

milícias em conluio com o poder público. A permissividade de certos problemas sociais em troca dos votos. 15 Essa noção do externo que ensina alguma humanidade à comunidade é até hoje presente na relação com

a comunidade e a favela. Projetos sociais ou metodologias, como o teatro aplicado, têm até hoje essa

concepção.

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operações dos sujeitos (novos ou velhos) construtores das narrativas na favela, ou nas

comunidades, ou nos territórios. É importante notar aí que os modelos construídos nem

sempre são realizados pelos próprios moradores. Muitas das vezes (aliás, na maioria das

vezes), a representação e o aparelhamento teórico se dão pelo olhar externo,16 de acordo

com uma visão interessada – como já exposto no início do texto. É por vezes a visão do

estrangeiro, do ente público, do agente político, dos próprios moradores em suas múltiplas

percepções, entre outras. Essas visões, aliás, não se anulam. A visão da década ou do

enunciador anterior não é simplesmente abandonada na década ou no enunciador

seguinte. Podem se somar, reduzir, contrastar, se sobrepor, entre outras possibilidades.

É importante perceber o caminho que dessas taxações que vão de personagens e

seres planos, manifestos quase como arquétipos, ou que poderiam ser “lidos” inicialmente

pela definição (ou percepção) crítica de Stuart Hall do “sujeito do Iluminismo”:

Um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão

de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que pela

primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que

permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou “idêntico” a ele – ao

longo da existência do indivíduo (HALL, 2006, p. 2).

E posteriormente vão passar pela outra definição do autor – de “sujeito

sociológico”, aquele em que o eu em essência é modificado de acordo com os mundos

culturais até chegar à disputa do direito de ser e se representar como “sujeito pós-

moderno”: “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades

que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente (HALL, 2006, pp. 2-3).

Portanto, este texto tem a pretensão de apresentar alguns diálogos e tensões entre

esses múltiplos modelos e a inclusão e o diálogo dos participantes. É uma tentativa de

falar para além “cidade partida” ou de alguma “comunidade carente, folclórica ou

imaginada”.17 É antes perceber a colocação, como já foi falado, do sujeito no discurso e

a reminiscência com os outros discursos que ora se somam, ora se negam, ora confluem,

ora se sobrepõem, entre outras possibilidades.

Todas essas noções são plausíveis de terem sua trilha/caminho investigado por

questões-perguntas como: “a relação histórica”, “suas interações sociais”, “quem é o

emissor”, “quem é este em relação à favela e/ou comunidade”, “quem se quer apresentar

16 Marcus Vinicius Faustini tem uma observação interessante sobre como o poder é representado tanto na

literatura como no cinema brasileiro e sua falta de complexidade. Descreve o autor que o pobre/favela é

sempre produto de uma visão simplista que, muitas das vezes, resultam em personagens simples e planos. 17 Para a noção de favela como algo imaginado é interessante ler e cruzar esse conceito com o proposto por

Benedict Andersen em seu livro Comunidades imaginadas.

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aos outros”. Perguntas que podem ser totalmente respondidas ou não, mas o processo de

tentar responder é um dos caminhos possíveis para se teorizar e tentar compreender a

“realidade”.

É desses rastros que surgem, por exemplo, uma dramaturgia social. Essa escrita

dramática é muitas das vezes apresentada como a narrativa do exótico ou do overside da

sociedade, onde se apresenta uma tela dos excluídos, dos não assistidos, ou dos que não

pertencem à sociedade-cidade. Cabe ressaltar, no território perigoso da ausência de

estatísticas, que a maioria dessas dramaturgias ditas sociais hoje são produzidas por

dramaturgos de fora da comunidade, muitas vezes escritas em seus apartamentos

confortáveis, longe do convívio ordinário com esses territórios. Longe muitas das vezes

também, dos processos de criação de cena por estes grupos e sem considerar o seu habitat.

Aliás, esses territórios, quando fazem uso dessa ideia de dramaturgia social, se utilizam

disso como uma espécie de capital social ou de venda da ideia da mitologia dos

“excluídos”.

Outra miscigenação e resultado de representação possível é a favela/comunidade

folclórica, onde todos os problemas são superados por pessoas mulatas e negras que são

criativas e estão sempre dançando, criando e superando todas as dificuldades, registrada

em um tempo da rememoração de um passado/presente nostálgico, sempre no campo da

poesia e da fantasia. Quanto a isso, cabe ressaltar e dialogar com um bom exemplo: um

capítulo recente do programa A grande família, da Rede Globo, intitulado “O bom

selvagem” (2012).18

Nesse capítulo, que explorou com metalinguagem e um humor refinado sem

pompa as relações entre representação e o subúrbio/comunidade de fato. O episódio

girava em torno da pesquisa de uma equipe de televisão sobre o subúrbio para

“enriquecer” de verossimilhança uma novela que falaria sobre o subúrbio (é interessante

notar como fenômeno da representação que, no momento desse capítulo, a própria

emissora tinha no ar duas novelas sobre a favela-comunidade – Lado a lado, que situa

seus acontecimentos no surgimento da Favela da Providência, e Salve Jorge, cujas

locações eram numa favela pacificada).

Em uma cena emblemática, Agostinho (Pedro Cardoso), que se posicionará

estrategicamente para receber os visitantes (a equipe de televisão interessada em

pesquisar a comunidade), de chinelo, pôs o carro para lavar na calçada enquanto

cantarolava a melosa “Todo menino é um rei/ Eu também já fui rei...”. Foi interpelado

18 O bom selvagem ou mito do bom selvagem é um lugar comum ou tópico literário na literatura e no

pensamento europeu da Idade Moderna, que nasce com o contato com as populações indígenas da América.

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por Bebel (Guta Stresser), que lembrou: “Faz uns vinte anos que no subúrbio ninguém

canta esse tipo de música”. Ele rebateu: “Mas é assim que a televisão gosta, o subúrbio

nostálgico, a vidinha mansa que não existe mais”. Na sequência, decidiu que era preciso

fazer “uma feijoada de domingo”, outro clássico dessa periferia idealizada, de que a “TV

gosta”, mesmo contra os argumentos de sua esposa, dizendo que o povo lá gostava de

comida japonesa e queijos e vinhos também (a percepção que essa comunidade é

consumidora e híbrida nos seus costumes e formas de agir).

Eis o tema da noite/episódio: a oposição entre o real e o mero simulacro – em

relação especificamente à favela/subúrbio/comunidade. O título do episódio, “O bom

selvagem”, era referência a Jean-Jacques Rousseau, que dissertou, no século XVII, sobre

um “homem puro”, intocado pelas contaminações da civilização. A analogia procede: o

“bom suburbano” também não existe. Mas, antes, é representada assim ou usa desses

subterfúgios para angariar maior visibilidade e investimento (como uma espécie de forma

de capital social).

É preciso notar que:

Todos esses movimentos sociais, por mais bem articulados que sejam seus

objetivos, se chocam com um paradoxo aparentemente irresolvível. Porque não

somente a comunidade do dinheiro, aliado com um espaço e tempo

racionalizados, os define num sentido oposicional, como também os

movimentos têm que enfrentar a questão do valor e de sua expressão, bem

como a organização necessária do espaço e do tempo apropriada à sua própria

reprodução. Ao fazê-lo, eles se abrem necessariamente ao poder dissolutivo do

dinheiro, assim como às cambiantes definições de espaço e de tempo que

surgem por meio da dinâmica da circulação do capital (HARVEY, 1992, p.

217).

O que está em jogo é que, como todo movimento articulado, existem as

intervenções e interferências da realidade e da expectativa financeira inserida (assim

como da expectativa relacional e societal). Mas o que é fundamental afirmar é que existem

modelos positivos, e não apenas modelos negativos, e, enquanto as representações, por

vezes, operam nos extremos, a “realidade” não opera em nenhum deles, mas no entre e

em constante fruição. Os seus graves problemas sociais estão em jogo, ao mesmo tempo

em que suas imaginações e criatividade. Nunca é um ou outro, mas sempre o seu jogo ou

a disputa de seu território. Os seus processos sociais são mutantes (como em todas as

comunidades).

É importante voltar a lembrar que as palavras favela e comunidade – e suas

múltiplas conotações e possibilidades, que vão do adjetivo pejorativo ao substantivo de

identidade folclórica de felicidade – não estão necessariamente estáticas. Suas fronteiras

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geográficas, identitárias e culturais estão se definindo em um processo constante. E todos

esses processos de “descoberta” não se sobrepõem, mas vão se juntando, tencionando e

dialogando, de forma direta ou não.

E, embora exista uma noção territorial no Rio,19 que apresenta uma cartografia

hierarquizada sobre os locais de moradias, existe uma noção presente na “favela”/

“comunidade”, que tanto denuncia as desigualdades como afirma potencialidades. Aliás,

acredito que é nessa ponte que existe um dos caminhos a serem percorridos para entender

como essas palavras foram do estigma ao emblema.

Mas é preciso ler essas descobertas e essas estratégias com uma dose de crítica e

nos depararmos com os mecanismos do sistema financeiro no concreto. E também

entender que esses descobrimentos e essas vivências não são exclusividade do território

nacional. Para comprovar tais afirmações, poderíamos apoiar a nossa leitura em livros

como Rebel city, de David Harvey, ou Planeta Favela, de Mike Davis.

David Harvey trata nesse livro da questão de enfretamento das subjetividades

perante o capital – demonstrando que a qualidade de vida em uma cidade frequentemente

é algo definido por seus habitantes, sua forma de vida, seu modo de ser. Para ele – que é

também um dos grandes estudiosos contemporâneos de O capital, de Karl Marx – uma

questão é o papel das grandes metrópoles. Harvey discorda do pessimismo que, por vezes,

o pensamento crítico lança sobre elas. Para ele, esses grandes centros para onde fluem as

multidões de todo o mundo no século XXI, diz, são bem mais que templos da

desigualdade, da vida automatizada e cinzenta, da devastação da natureza. Harvey

argumenta que para que o capital possa vender algo como único (para se amplificar o

monopólio), ele depende da inventividade de uma população para fazer algo, para fazer

algo diferente. O capital tende a ser homogeneizante – as pessoas não! Ele enxerga o

florescimento do poder e do movimento popular através das diferenciações produzidas

pela população, e que tentam definir alguma coisa radicalmente diferente. Aliás, contra o

pessimismo, Harvey acredita que é dessas tensões que surgirão novas formas de se viver.

Dito isso, ele pontua sobre o papel de multidões para as quais o capital não oferece

alternativa.

Essas multidões estabelecem novas formas de sociabilidade, identidade e valores.

É nas metrópoles que aparece a coesão reivindicante das periferias; ou, ainda, novos

movimentos, como o Occupy; as fábricas recuperadas por trabalhadores em países como

19 Esta noção de uma sociedade de cartografia social hierarquizada não é uma “exclusividade” da cidade

do Rio de Janeiro, mas nela se encontra com grande força e potência. Imageticamente falando e grande

parte dos esforços do poder público se dão sobre uma cidade preponderantemente Zona Sul e Centro.

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a Argentina; as famílias que fogem ao padrão nuclear-heterossexual-monogâmico. Nessas

cidades, portanto, concentram-se tanto as energias do capital quanto as melhores

possibilidades de superá-lo. Elas não são túmulos, mas arenas em disputas. Aí se dá o

choque principal entre dois projetos20 para a humanidade.

Outra hipótese de Harvey diz respeito à própria (re)construção de um projeto pós-

capitalista. O autor de Cidades rebeldes está empenhado em identificar e compreender

formas de organização social distintas das previstas por um marxismo mais tradicional.

Ele reconhece: ao menos no Ocidente, enxergar na classe operária fabril o grande sujeito

da transformação social equivale quase a um delírio – como nota, cabe aqui a importância

de saber reler o marxismo (e como ler as questões sindicais e partidárias no Brasil). Sobre

o marxismo, para não o pensar como algo turvo, é importante não acreditar que ele tenha

práticas acabadas, mas como forma de confrontação. Esse enfrentamento de realidade é

uma das grandes questões dos partidos à esquerda: (re)articular os movimentos sociais

em meio a enfrentamentos contemporâneos. Não cabe nostalgia em relação às batalhas

dos séculos passados: é hora de tecer redes entres os que buscam de muitas maneiras, nas

cidades, construir formas de vida além dos limites do capital.

Já para Mike Davis, outro pensador importante sobre o assunto:

A segregação urbana não é um status quo inalterável, mas sim uma guerra

social incessante na qual o Estado intervém regularmente em nome do

“progresso”, do “embelezamento” e até “justiça social para os pobres”, para

redesenhar as fronteiras espaciais em prol de proprietários de terrenos,

investidores estrangeiros, a elite, com suas casas próprias, e trabalhadores de

classe média (DAVIS, 2006, p. 105).

Em Planeta Favela, o autor oferece uma contribuição ímpar (tanto com dados

como por observações teóricas) para desvendar a “desconhecida” (ou seria ignorada?) e

gigantesca escala de favelização e de empobrecimento das cidades do chamado “Terceiro

Mundo” (que hoje não é denominado mais assim). Ele faz a seguinte

proposição/constatação: considerando-se que a população das favelas cresce na base de

25 milhões de pessoas a cada ano – conforme lembra Mike Davis ao citar os dados da

UN-Habitat – e que as mais altas taxas de urbanização são observadas nos países pobres,

que eram, ou ainda são, predominantemente rurais, esse processo atinge a maioria da

população do planeta. Nesse tipo de estudo, o autor coloca ainda em questão a dimensão

do fato, sobretudo em relação às boas práticas (best practices), como têm tentado algumas

20 Harvey pontua como dois projetos para a humanidade , nos ao contrário acreditamos em uma mundo

com uma dose maior de “projetos” e “possibilidades”

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agências internacionais de desenvolvimento. Esse ponto me interessa em particular para

tratar, mesmo que marginalmente, de algumas questões do Teatro Aplicado, mas isso é

assunto para depois.21

Davis revela que, ao contrário de aliviar o problema, essas instituições,

especialmente o Fundo Monetário Internacional (FMI), que impôs os Planos de Ajuste

Estrutural (PAEs) aos países do Terceiro Mundo, foram cruciais na explosão da pobreza,

responsáveis pelo desemprego de um bilhão de pessoas, ou um terço da mão-de-obra dos

países do Sul, no final dos anos 1990, segundo dados da CIA citados pelo autor.

O autor nos mostra que, em vez da simbolização imaginada das cidades de ferro

e vidro, o mundo está, na verdade, sendo dominado pelas favelas. Os números que

abundam ao longo da obra não são novos, embora nunca tenham sido apresentados juntos

e com tal ênfase. A tendência de empobrecimento urbano vem sendo mostrada por

numerosos autores e instituições, muitos dos quais presentes na extensa bibliografia final.

O autor tenta mostrar que há tendências, no processo de urbanização recente, que são

universais, apesar de se tratar de diferentes países. Em um estilo direto e, por vezes,

chocante, Davis valoriza o conhecimento empírico (sendo pouco dado a longas abstrações

ou desenvolvimento conceitual), que alguns atribuem a sua origem proletária e de

militante de esquerda. Seu trabalho tem finalidade militante, e o estilo contraria a

abstração e o distanciamento usuais da maior parte dos trabalhos acadêmicos. O tema do

crescimento e do empobrecimento das cidades do Terceiro Mundo é cercado e abordado

por meio de inúmeras entradas. A formação de “superurbanizações” e “megacidades” –

que podem merecer a alcunha de “Leviatã”, como a região que engloba São Paulo, Rio

de Janeiro e Campinas – abre uma longa lista de temas, como, por exemplo, o crescimento

de favelas provocado por guerras, expulsões, catástrofes, recessão econômica (como no

caso da América Latina), alto crescimento econômico e urbano (como nos casos da Índia

e da China), segregação, racismo; tragédias decorrentes de desastres nacionais, incêndios

(sejam eles naturais ou “forçados”), áreas contaminadas, explosões tóxicas; os males do

transporte rodoviarista, como a poluição do ar e os acidentes de trânsito, entre outros.

A “crise sanitária” – tratada na seção “Viver na merda” – mereceu uma descrição

dramática, ilustrada por dados sobre centenas ou milhares de habitantes de favelas que

disputam apenas uma latrina em algumas cidades da África ou da Ásia. Aborda-se ainda

o impacto da carência de água,22 ou o altíssimo preço que os pobres pagam por ela. Davis

21 Ver o apêndice “Por uma nova crítica na representação”. 22 A questão da água (ou a crise dela) é assunto importantíssimo para um Rio-São Paulo 2014-2015 (período

de escrita dessa dissertação).

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lembra que, mesmo em circunstâncias trágicas como as mencionadas, a orientação

implementada pelo FMI e pelo Banco Mundial foi a da privatização do saneamento. A

água, assim como a “defecação humana”, foi transformada em negócio global, inclusive

em cidades nas quais a população mal tem recursos sequer para comer. Cabe nesta última

nota uma menção a uma situação real que acontece na cidade do Rio de Janeiro. Na

retirada das pessoas da Vila do Autódromo, por causa das Olimpíadas, algumas delas não

conseguem se manter frente aos novos gastos. Mesmo recebendo a casa em troca, o custo

da manutenção ordinária as inviabiliza (já que, antes, água e luz, por exemplo, eram

usadas “clandestinamente”). Ou, ainda, na Grécia, a recente vitória do Syriza, com a

promessa/ação de religar a luz de mais de 300 mil famílias.

Voltando a Davis, devemos observar que, para ele, o “Big Bang da pobreza” tem

suas raízes quando, entre 1974 e 1975, o FMI e o Banco Mundial reorientam as políticas

econômicas do Terceiro Mundo, abalado pelos preços do petróleo. A orientação aos

países devedores de abandonar suas estratégias de desenvolvimento foi claramente

explicitada no Plano Backer, em 1985. Davis classifica o impacto dessa direção na

América Latina como “maior e mais longo do que a Grande Depressão”, considerando a

realidade das décadas que ficaram conhecidas como décadas perdidas.

O Brasil, por exemplo, cresceu 7% ao ano de 1940 a 1970. Na década de 1980

cresceu 1,3% e na década de 1990, 2,1%, segundo o IBGE. Ou seja, o crescimento

econômico do país nas duas últimas décadas do século XX não conseguiu incorporar nem

mesmo os ingressantes da população economicamente ativa (PEA) no mercado de

trabalho, o que acarretou consequências dramáticas para a precarização do trabalho e,

consequentemente, também para a crise urbana.

Quem acompanha a vida de qualquer grande cidade no Brasil é testemunha do

crescimento explosivo das periferias abandonadas ou da favelização a partir do início dos

anos 1980. Não que o germe já não estivesse lá. Historicamente as favelas do Rio de

Janeiro e de Recife surgiram no final do século XIX e começo do século XX, quando uma

parte da mão-de-obra escrava libertada ficou sem alternativa de moradia (o restante

passou a viver de favor). Ou, ainda, a primeira favela do rio foi povoada pelos soldados

que, após a -Guerra de Canudos, não tiveram a promessa de moradia cumprida e vieram

a se alojar no Morro da Providência.23 Décadas se passaram e nem o trabalho passou à

23 A ocupação do Morro da Providência surgiu a partir de uma promessa que o governo fez aos soldados

do Rio de Janeiro enviados à Guerra de Canudos, que consistia em entregar-lhes residências caso saíssem

vitoriosos. Ao retornarem ao Rio de Janeiro em 1897 e verem a promessa não ser cumprida, os soldados se

apropriaram de uma região de morro que passou, a partir daí, a ser chamado de Morro da Providência, em

referência à providência tomada pelos soldados. O Morro da Providência passou a ser chamado de Morro

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condição absoluta e geral de mercadoria, nem a moradia, como acontecera no capitalismo

central.

Entretanto, o aumento do desemprego e da pobreza urbana a partir dos anos 1980

contribuiu para mudar a imagem das cidades no Brasil: de centros de modernização que

se destinavam a superar o atraso e a violência localizados no campo, passaram a

representar crianças abandonadas, epidemias, enchentes, desmoronamentos, tráfego

infernal, poluição do ar, poluição dos rios, favelas e... violência! Esse cenário, aliás, é

muito facilmente percebido no que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro. Em uma escala

de trinta anos o crescimento proporcional da violência foi absurdo – de cidades

relativamente pacíficas, passou-se a viver com o medo (concreto e simbólico). As taxas

de homicídio no Brasil, segundo o IBGE, passaram de 17,2 mortos para cada 100 mil

habitantes em 1980 para 35,9 mortos em 1989 e, finalmente, para 48,5 em 1999.

Mike Davis usa termos como “fardo humano”, “humanidade excedente” e “massa

permanentemente supérflua” e considera que até mesmo o acesso à terra gratuita situada

em meio adverso, obtida por meio de invasões, deverá acabar (seja por enfretamento ou

cooptação). Essa é, segundo Davis, a verdadeira crise do capitalismo, e nada, segundo o

autor, parece apontar para a mudança desse quadro. Para acrescentar, gostaria de dizer

que já ouvi uma espécie de leitura de que, para o capital, na era da globalização, havia

gente sobrando, ou melhor, que parte da força de trabalho, em vez de exército industrial

de reserva, seria “óleo queimado”. O livro de Davis acaba sem deixar resquício de

esperança, sobretudo ao chamar a atenção para a criminalização das favelas, agora no

foco dos estrategistas militares norte-americanos (novamente uma grande janela de

comparação com o que acontece na atualidade Rio de Janeiro).

Essa falta de saída, ou a ausência de qualquer proposta, tem gerado críticas no

meio intelectual ao trabalho de Davis. Cabe notar a falta do vislumbre que percebeu

Harvey. O texto, inclusive, pode alimentar uma atitude contrária àquela que pretende

Davis e promover o medo em relação às cidades e às pessoas que moram nela. Não

percebe ele os potenciais dos movimentos sociais ou das atuações de ciclos de mudança.

Ao contrário, ele tem uma tendência de percebê-los como meros produtos da

informalidade urbana e do paroquialismo. Davis inclui propostas de urbanização de

favelas, de microcréditos, de regularização fundiária, de construção por conta própria,

da Favela em referência a um dos morros junto aos quais a cidadela de Canudos foi construída, assim

batizado em virtude da planta Cnidoscolus quercifolius (popularmente chamada de favela) que encobria a

região.

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entre outras. As críticas são pertinentes, mas deixam de considerar especificidades

históricas e geográficas que alimentam muitas lutas sociais.

Davis aponta corretamente o caráter reformista, não pouco frequentemente

regressivo, de muitas das propostas apontadas como soluções para os problemas

habitacionais. Mas a busca de alternativas ou exemplos de soluções nem sempre leva à

cooptação ou à acomodação (em um capítulo futuro vamos tratar da questão de

dispositivos e agenciamentos, que, creio, contribuirão para esta análise). Mas é

importante estabelecer aqui que, muito frequentemente, mostrar que esses problemas têm

soluções que estariam à mão se houvesse mais justiça social é alimento fundamental para

o avanço da luta democrática; do contrário, parece que a única ação seria desistir.

Por fim, em um capítulo intitulado “As ilusões do construa-você-mesmo”, Mike

Davis demonstra que, quando os governantes do dito “Terceiro Mundo” abdicaram da

batalha contra as favelas na década de 1970, o Banco Mundial e o FMI despejaram ações

intervencionistas milionárias para políticas habitacionais de cunho neoliberal calcadas no

discurso de melhorar as favelas em vez de substituí-las (novamente, é possível fazer

diversas ligações com as estratégias usadas no Brasil). O ponto fraco principal e agravante

desses programas foi a vetorização de implantação imposta de cima para baixo. Outro

ponto que Davis ataca são as ideias do intelectual e arquiteto anarquista John Turner e do

presidente do Bando Mundial Robert McNamara. O primeiro falava sobre a

“autoconstrução” na favela como panaceia da emancipação autogestionária no mundo

habitacional e o segundo, neoliberalista fervoroso, injetou investimentos nos projetos de

reformulação das favelas impostas de cima para baixo em uma ilusão do que era correto

fazer com as favelas.

Agregado a esse “novo modelo” de recuperação das favelas, Davis demonstra,

embasado nas teorias de De Soto, um certo tipo de papel das ONGs24 de se promoverem

por meio das favelas para a obtenção de lucros, com o gerenciamento de privatizações da

terra informal. Já no quinto capítulo, o autor argumenta sobre o aumento do preço da terra

nas favelas, sobre a criminalização e o processo de segregação como condicionante estatal

de estratificação das classes sociais – sobre esse ponto, vejamos o capítulo a seguir.

24 Quanto a esse papel, um filme que traz considerações reveladoras é o Quanto vale ou é por quilo?, no

qual se faz uma metáfora dos papeis das ONGs ao montar o filme junto da história “Pai contra mãe”, de

Machado de Assis.

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3 FAVELA/COMUNIDADE COMO MERCADO E POTÊNCIA E A DISPUTA

POR SER TERRITÓRIO

Um outro ponto que devemos considerar sobre as descobertas da favela é o

surgimento da população de favela e comunidade como potencial mercado consumidor.

As questões pertinentes à “periferia” e à “comunidade” estão ganhando cada dia mais

destaque por parte da mídia e do sistema econômico no Brasil. Seja pelo seu quantitativo

habitacional, seja por motivos econômicos (a classe C e D são as grandes classes

consumidoras do Brasil hoje).

A intelectualidade e os sistemas de representações não poderiam ignorar isso.

Esses territórios, direta ou indiretamente, pertencem e são capazes de interferir na história,

logo não faz mais sentido ignorar “a fala dessas bocas”.25 Também não faz mais sentido

tentar representar um mundo a que essas pessoas não pertençam. Esses territórios

renovados e transformados em uma subcultura potencial têm a necessidade de um

linguajar para entender e de uma imagem para se reconhecerem.

É obvio que esse fenômeno é muito amplo e caminha entre o social, o econômico

e o artístico. Engloba questões que vão da cidadania, memória social, ações de afirmação,

hibridizações e disputas em/para/com o mercado. Os grupos de comunidade, como o Nós

do Morro (Vidigal-RJ), por exemplo, são projetos que mesclam o cunho estético, cultural

e social, e não apenas a visão da favela como forma folclórica. Realizam projetos de

integração com a comunidade, promoção da cidadania e peças de capacidade estética

avançada. Outra iniciativa comunitária que pode ser citada é o Museu da Maré, que é um

conjunto de ações voltadas para o registro, preservação e divulgação da história das

comunidades da Maré26 (Complexo da Maré) na cidade do Rio de Janeiro, em seus

diversos aspectos, sejam eles culturais, sociais ou econômicos.

A palavra, a comunidade, a economia, entre outros fatores, tem se posicionado

como possibilidade de existência. Poderíamos observar as similaridades em:

Pensemos nos Estados coloniais e em três instituições fundamentais no sentido

de moldar imaginações: os censos, os mapas e os museus. [...] Juntos eles

também criaram realidades unificadas, por mais distintas que fossem;

25 Em alusão a Sartre, em seu famoso discurso que salientava que “as bocas falarão por elas mesmas”. 26 O museu envolve vários núcleos de ação que têm como centro a exposição permanente, mas que se

desdobram em outras ações, como a organização de acervo documental; a realização de pesquisa em história

oral; o desenvolvimento de atividades lúdicas e educativas, como o grupo de contadores de histórias; além

da realização de diversos eventos, como exposições itinerantes, seminários, oficinas e produção de material

temático. Atualmente, funcionam no espaço o Arquivo Dona Orosina Vieira, a Biblioteca Elias José, cursos

e demais projetos especiais, como o Marias Maré e a exibição semanal de filmes, o Maré Ponto Cine.

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categorias raciais claras em territórios onde os grupos se misturavam e

fundiam; histórias sequenciais e lógicas; mapas e fronteiras fixas. Os censos,

mais que espelhar, construíram realidades claras e rígidas, permitindo prever

políticas para essas populações devidamente imaginadas. Os mapas

estabelecem limites, demarcaram espaços e constituíram um novo discurso

cartográfico capaz de comprovar a vetustez das unidades territoriais. Por fim,

não se pode descurar da importância da imaginação museológica e dos serviços

arqueológicos coloniais que se conformaram como instituições de poder e de

prestígio. Edifícios viraram monumentos, e histórias particulares foram

consagradas como nacionais, nos novos museus coloniais. Com essas

operações comuns, e ordenadas, os dados retirados dos censos, dos museus e

dos mapas passaram a ser signo puro, e não mais bússolas do mundo

(ANDERSON, 2008, p. 15).

Logo, o que as comunidades estão fazendo é criar seus próprios mecanismos de

registros imagéticos, em situações concretas, como o museu, no empoderamento de dados

do censo (e o uso do capital social)27, ou a sua galeria de representação de prosódia,

personagens e afetos pela dramaturgia (só para ficar com alguns exemplos).

Fato é que, diante das novas possibilidades de circulação e trânsito econômico e

artístico, através de suportes midiáticos como internet, TVs a cabo (sejam elas legais ou

não), o jogo para ser, se representar e se deixar representar, estão se alterando em uma

velocidade cada vez maior. As possibilidades estão maiores e, cada vez mais, a favela

“em si” se distancia do folclórico e caminha para fenômenos de urbanização e modos de

vida híbridos ou em devir, que passam pelo passado, mas caminham para o

contemporâneo. A existência que se dá como histórica, mas como “hoje” também.

É nítido que não é de hoje que a disseminação dos produtos simbólicos pela

televisão e outras tecnologias encontram eco nas regiões periféricas (o que acontece hoje

é seu aceleramento). Ao mesmo tempo em que a descentralização das empresas e a

simultaneidade de informações se somam para quebrar a noção do sentido restrito de

periferia e popular. Mas, hoje, esse processo se encontra mais expandido e, embora

existam ainda as questões geográficas e econômicas, não dá mais para tensioná-las pela

ótica tradicional de olhar, mas sim de experiências em meio a modais cada vez mais

populares de troca de informações e possibilidades de criação.

A própria produção cultural e vivência estão cada vez mais além dos limites do

tradicional. Aliás, é o trânsito entre fronteiras, dos indivíduos que reclamam de seus

lugares e que não querem se perder na massa e, ao mesmo tempo, querem usufruir dos

desejos e commodities oferecidas pela cultura de massas – lastro dos processos mutantes

27 O uso do capital social, nesse caso, é usado através da dívida histórica que a administração, ou o Estado

brasileiro, tem com certos povos ou comunidades. Um bom exemplo disso é o movimento pela política de

cotas.

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artísticos e de vivências da atualidade. Esses integrantes das favelas/comunidades são,

sobretudo, seres desejantes e em processo.

Tais considerações são muito aproximadas do que podemos observar no livro de

Nestor Cancline. E, acreditando no poder de síntese do autor e na sua aplicabilidade como

instrumental de análise de tal fator social, econômico e cultural, deixo abaixo algumas

das citações que eu acredito que “falem por si mesmas” e construirei pequenos diálogos

com elas em relação às produções artísticas da periferia/comunidade:

“Desconsiderados” sob o aspecto de culturas populares. É nesses cenários que

desmoronam todas as categorias e os pares de oposição convencionais

(subalterno/hegemônico, tradicional/moderno) usados para falar do popular.

Suas novas modalidades de organização da cultura, de hibridação das tradições

de classes, etnias e nações requerem outros instrumentos conceituais. Como

analisar as manifestações que não cabem no culto ou no popular, que brotam

de seus cruzamentos ou em suas margens? (CANCLINE, 2011, p. 283).

As representações de “comunidades” no Brasil, extremamente ligadas ao

imaginário da cultura popular brasileira, devem ser analisadas além do seu folclore. É

necessário observar a ótica do olhar para falar da “favela” e da “comunidade” para

conseguir entender que tais territórios vão além do “folclorizado” e “calcificado”. Ações

e manifestações artísticas que ocorrem lá passam desde o imaginário coletivo, até

procedimentos altamente contemporâneos. Se tal olhar puder se distanciar, entenderá

melhor o jogo do lastro de realidade e o lastro desse imaginário e como as suas

manifestações artísticas ora atuam em uma ponta, ora em outra e ora no seu entre. Com

tal entendimento, é possível pleitear que a análise de suas produções artísticas seja feita

por obras intelectuais de ponta que analisem a contemporaneidade. É necessário deixar

de analisar essas produções artísticas como “cotistas”, ou, no linguajar popular, “café com

leite”. São manifestações potentes dos dias de hoje e é preciso realizar sua leitura com

instrumentos para analisar um teatro potente nos dias de hoje. É preciso se desapegar de

velhos instrumentos e conceitos para tentar captar essas “velhas novidades”. No meu

campo de pesquisa, cabe ressaltar o surgimento cada vez mais plural de dramaturgias que

não se contentam apenas em mostrar a luta da comunidade, mas a disputa da existência

de sujeitos: “oferta simbólica heterogênea, renovada por uma constante interação do local

com redes nacionais e transnacionais de comunicação” (CANCLINE, 2011, p. 285).

Talvez pela escassez de espaço nesta dissertação, não fique claro a seguinte noção:

o seu território, obviamente, não é puro e inviolável e as manifestações artísticas e de

vivência desses territórios são múltiplas e impossíveis de serem definidas como regra ou

estrutura única. Os indivíduos que as produzem são heterogêneos, em meio a territórios

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heterogêneos, com constante trânsito em meio à produção de mídias nacionais,

transnacionais e multinacionais. Seja através da TV, do teatro, do cinema, DVDs

(originais ou piratas), internet, entre outras mídias. Logo, eu acredito e observo que a

produção de seus bens simbólicos, logicamente, caminha para os heterogêneos (insumos

heterogêneos geram produtos heterogêneos). Embora esta última afirmação pareça óbvia

em excesso, ela é necessária para construir uma outra ótica para olhar as comunidades,

favelas e indivíduos, muitas das vezes colocados no mesmo “bolo”. Vai haver nesses

territórios manifestações, gestos e articulações que caminham no que poderia ser dito

como folclórico, mas vai haver também, até manifestações de vanguarda.

Quanto aos indivíduos, é importante ressaltar e discutir um pouco do imaginário

que os circunda, como “negros, malandros e/ou bandidos”. O primeiro ponto é que a

demografia das comunidades do Rio de Janeiro é heterogênea, mas se fôssemos falar em

“maioria”, a “maioria” demográfica das favelas no Rio de Janeiro seria de migrantes

nordestinos28 ou descendentes de tais. Outro ponto pode ser expresso e discutido na frase

“quando o morro desce, a cidade para”, para relacionar os habitantes das favelas à

marginalidade. Mas, talvez, a frase inversa seja mais verdadeira: “quando o morro não

desce, a cidade para”, pois, a maior parte de seus moradores são trabalhadores em,

infelizmente (e muito por conta desse sistema), funções baixas do setor de serviços.

Noções de culto, popular e massivo, levantam um problema: a organização da

cultura pode ser explicada por referência a coleções de bens simbólicos?

Também a desarticulação do urbano põe em dúvida que os sistemas culturais

encontrem sua chave nas relações da população com certo tipo de território e

de história que prefigurariam em um sentido peculiar os comportamentos de

cada grupo. O passo seguinte desta análise deve ser trabalhar os processos

(combinados) de descolecionamento e desterritorialização (CANCLINI, 2011,

p. 302).

Este trabalho não pretende apresentar uma essencial da produção artística da

favela. Até porque não acredito em um que de “essência” do procedimento artístico da

favela. Mesmo focando em um recorte de procedimentos semelhantes (ou com um ponto

de resultado semelhante), existe a clara noção de que esse é apenas um dos tipos de

procedimento existentes nessa diversidade de produção. O olhar, antes, está em alguns

aspectos do processo artístico-político em que estão inseridas e articuladas as produções,

dentro das coleções de possibilidades em que elas costumam ser enquadradas – e como

28 Em uma reportagem sobre a Escola Livre de Teatro (ELT) em Santa Cruz que eu presenciei e foi

concedida para um importante jornal do Rio de Janeiro, uma repórter enviada para fazer as fotos da turma

questionou se não havia mais membros “de cor” no grupo (do total de treze alunos, apenas dois eram

“negros”).

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elas avançam em relação a isso. Desta forma, tentar pensar sobre o local apontado, o

prefigurado e os caminhos (mutantes) possíveis desse tipo (se é que é possível chamá-lo

assim) de processo artístico de representação. Mesmo quando o foco de análise estiver

sobre obras que, mesmo se enquadrando nos descolecionamentos, se articulem sobre as

possibilidades de territorizar (mesmo que imageticamente) esse espaço-tempo múltiplo e

diverso. “Mas, ainda que as decisões e benefícios dos intercâmbios se concentrem na

burguesia das metrópoles, novos processos tornam mais complexa a assimetria”

(CANCLINE, 2011, p. 310).

É fácil perceber que a maioria de oportunidades em relações econômicas e

artísticas se concentram nas classes mais favorecidas (nem que sejam territorialmente),

como se pode observar na distribuição dos equipamentos culturais pela cidade do Rio de

Janeiro. Mas é importante ressaltar também o surgimento de novos projetos e processos.

Exemplificando: se, por um lado, não existe uma escola fixa de arte em Santa Cruz, por

outro lado, é possível suscitar oficinas diversas no bairro e que seus moradores circulem

por outros cantos da cidade. Com isso, o empoderamento e as possibilidades de

representação têm acentuado o caminhar em outras direções e relações possíveis. Outro

ponto é que os novos atores culturais não se articulam apenas em equipamentos culturais

ditos “oficiais” e é pratica comum (e crescente) também a apresentação de projetos em

outros espaços e por outras redes de fomento.29

Até mesmo o problema lido da juventude “Nem-nem”30 pode ser parcialmente

relido como retrato estatístico de um momento da vida desses jovens de hoje, pois ele não

apreende os múltiplos movimentos de entrada e saída da escola, dos múltiplos projetos e

do mercado de trabalho dessa geração. Poderíamos fazer uma analogia com uma metáfora

de Bourdieu sobre as trajetórias individuais, que ele compara com uma rede de metrô

urbano. Consideramos que usuários podem sair de uma estação e fazer transferências

diferentes para pegar o trem para as diferentes estações, mas o limite das escolhas

individuais está na matriz que contorna a rede, fazendo-a histórica e socialmente

determinada e acrescentarmos que:

Certamente, essa matriz (produto histórico) não é imutável. Movimentos

sociais, disputas de poder, mutações em padrões culturais, intervenção de

projetos e programas sociais podem ampliar essa matriz, estabelecendo outro

contorno, com outros limites, que serão explorados pelos usuários (NOVAES,

2013, p. 15).

29 É importante destacar o aumento significativo de trabalhos e práticas de financiamentos coletivos, em

especial o crowdfunding. 30 Termo criado para designar a juventude que nem trabalha nem estuda.

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O que se abre são espaços para trajetórias incomuns, não lineares, não previsíveis,

e uma ampliação do campo de possibilidades nas aéreas onde moram. Considerando, é

claro, que isso não redime o poder público de sua responsabilidade histórica, mas que,

antes, essas múltiplas possibilidades permitem a esses sujeitos trajetórias de visibilidade

e que permitem a essas manifestações periféricas a disputa para além do lugar onde

estavam.

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4 A AFIRMAÇÃO COMO TERRITÓRIO (NAÇÃO, NARRAÇÕES E

FRONTEIRAS VACILANTES)

Parafraseando Eduardo Coutinho,31 é possível dizer que a

favela/comunidade/periferia, que foi primeiro uma construção da e pela “cidade/centro”,

está se tornando uma construção de seus próprios habitantes e sujeitos ou, para empregar

as palavras de alguns críticos, foi primeiro “ficção” e, mais tarde, tem se tornado uma

“autobiografia”.

A favela/comunidade está caminhando no sentido de não se orientar mais pelo

velho centro, mas sim na direção de criar e caminhar nos seus próprios modelos, se

tornando cada vez mais central dentro de seus nichos comunitários (e até indo além disso).

Poderíamos partir da premissa de Homi K. Bhabha,32 quando diz que “o cânone

não nasce, ele é escolhido” (2005, p. 9) e acrescentar que, hoje, o cânone não nasce, mas

está sendo disputado! A cidade é o lugar das pessoas e suas percepções. Os movimentos

periféricos sabedores que fazem parte da cidade reivindicam a sua inserção. Entendem

que a cidade é o todo, e não uma parte. Consideram a periferia como parte integrante e

interessante dessa cidade. As manifestações artísticas e o poder público têm estado nessa

dinâmica. Ferramentas de agenciamento e dispositivos de controle têm dialogado com

essa nova pujança econômica e de subjetividades.

A identidade, a palavra, as representações caminham no sentido de disputar,

reivindicar o seu direito ao pertencimento – tanto como memória quanto como território

imagético-simbólico.

Na presente situação, a filiação identitária é tudo menos instantânea ou dada

em definitivo; ela é, isto sim, um problema, uma reivindicação, um objeto de

apropriação de indivíduos. Meio de constituir-se e dizer o que se é, maneira de

afirmar-se, de reconhecer. [...] Antes institucionalizada, a identidade cultural

se tornou aberta e reflexiva (LYPOVETSKY, 2004, p. 95).

A periferia/favela tem criado operações de modo a construir a sua identidade,

produzida a partir da sua imanência. Assim, ela se apropria de ferramentas de dominação

de forma a incluir sua subjetividade para o seu “eu” e para o “outro”. Seu território, além

de constar nos mapas, almeja hoje ser visitado. Exemplos não faltam, vão desde os city

31 Eduardo de Faria Coutinho é professor titular de Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio

de Janeiro (UFRJ). Tem grande destaque em Literatura Comparada especialmente em Estudos Culturais. 32 Homi Bhabha é professor doutor “Anne F. Rothenberg” de Humanidades, diretor do Centro de

Humanidades Mahindra, conselheiro sênior do presidente e reitor da Universidade Harvard. Seu trabalho

seminal, O local da cultura, apresenta uma teoria sobre o hibridismo cultural.

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tour pelas favelas para “gringos verem” à inserção jornalística da comunidade pelo

Parceiros do RJ33 (programa da Rede Globo), que promove reportagens feitas por

moradores dessas áreas que ampliam a visibilidade daquele espaço. Os movimentos

sociais também se apropriaram dos censos e passaram a reivindicar uma maior correlação

entre jovens negros e populações carentes com as vagas oferecidas pelas universidades

federais – o que resultou nas políticas de cota. Outro ponto é a inclusão desses jovens no

mercado, seja por iniciativas de qualificação profissional (como as do Viva Rio), seja pela

metodologia de criação de negócios por esses jovens, como é o caso do Agência Para a

Juventude. Mas, sobretudo, o que merece destaque é a criação, por essas comunidades,

dos seus próprios “museus e outras operações de lembrança.

A disputa pelo direito de representação do seu passado e seu direito de

pertencimento ao futuro é uma das grandes questões sobre a favela/periferia/comunidade.

Pode-se reparar uma “equipamentização” desses territórios, seja pelo bondinho para

percorrer a Cidade de Deus, ou o teleférico que está sendo instalado no Morro da

Providência (que é uma espécie de favela-museu a céu aberto devido a suas questões de

memória e história), ou até em iniciativas mais tradicionais, como o Museu da Favela,34

localizado na favela da Maré (RJ), que tenta registrar um pouco da favela ao longo do

espaço-tempo.

Mas o direito à lembrança e o pertencimento da subjetividade têm outras

operações. Nesse sentido, os coletivos artísticos têm atuado para se tornarem instituições

de poder, prestígio e memória. É o funk, é o rap, com letras sobre os hábitos das

comunidades e sua convicção de que o baile de verdade só existe na favela. É o carnaval,

com sua distribuição de formas de vivência pela cidade. São os grupos de teatro, cada vez

mais interessados em formar seus próprios atores e contar histórias de seus próprios

moradores, a fim de criarem suas mitologias de surgimento. Ou, os “favela movies”, que

estão cada vez mais diversos – e hoje permitem tanto o olhar totalmente externo como

também o produto artístico produzido por profissionais da própria favela/comunidade.

É claro que esse movimento não é simples e puro. Nem todas as favelas e

comunidades conseguiram pleitear o seu pertencimento de território para além do registro

em papel e da estatística. Nem todos possuem sistemas que interessam à mídia captar. Ao

mesmo tempo em que a mídia inclui parte da favela para dar voz aos excluídos, ela dá

voz a apenas parte dela. A crítica de Licia Valladares continua viva (quando menciona

33 Parceiros do RJ foi uma iniciativa do jornalismo da Globo que selecionava alguns habitantes de

comunidade para serem uma espécie de repórteres dos bairros. 34 Já citado anteriormente.

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que apenas 25 favelas teriam sido alvo de pesquisas). A inclusão não é para todos. O

movimento é dialético, ao mesmo tempo em que existe o movimento de se mostrar algo,

esse mesmo movimento ajuda a encobrir uma outra parte das favelas e comunidades.

Outro ponto é que a inclusão da sua manifestação artística como ponto de captação

da rota do capital pode interferir no desejo de incluir os seus bens simbólicos e a sua

subjetividade em troca de maior captação financeira. Não há a ingenuidade de acreditar

que essas novas manifestações possam criar novas narrativas, totalmente puras, da

favela/comunidade. Mesmo as que propõem no mínimo o diálogo entre “vetores de cima”

e “vetores de baixo” podem estar fortemente influenciadas pelo capital. Mas essas novas

ações colocam em jogo até que ponto esses vetores estão em cima e embaixo e até que

ponto as suas relações não são apenas de dominação, mas também de troca, diálogo e

fruições.

Não se deve também achar ingenuamente que existe uma identidade única e

autêntica emanada por sujeitos iguais, mas sim identidades plurais em constante trânsito

e reinvindicação. Ou, ainda, “dito de outra forma, não existe uma identidade autêntica,

mas uma pluralidade de identidades, construídas por diferentes grupos sociais em

diferentes momentos históricos” (ORTIZ, 2006, p. 8).

O que está ocorrendo com essas comunidades é que existe a consciência de

estarem inseridas no tempo secular e serial, em contraste com os jogos e enunciadores

interessados. Existe, assim, uma série de implicações de continuidade e memória e, assim,

se escolhe “esquecer”, “lembrar” e “representar” a vivência dessa continuidade. O lugar

desses indivíduos e suas representações é o lugar da identificação, retido na tensão da

demanda e do desejo, do pertencimento e do porvir. Por vezes inventando e por vezes

mascarando.

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5 A DRAMATURGIA COMO DISPOSITIVO – “SER DISPOSITIVO OU SER

AGENCIAMENTO” (UMA COLEÇÃO DA NIKE, DRAMATURGIA, POLÍTICA

E OUTROS ITENS)

O que eu fiz? Usei o mesmo método que os atraiu para o tráfico para retirá-los.

Viajava para Nova York, comprava os melhores tênis, casacos, e andava na favela.

Todos se viravam, numa coreografia de cotovelo e pescoço, para me admirar. Tinha

que trabalhar com ostentação.

José Junior (Afro Reggae)

Neste momento, queria fazer uma reflexão de uma questão pessoal: recentemente,

estive em uma reunião de um grupo político/movimento de “esquerda”. O grupo estava

rediscutindo a sua “identidade” e possuía alguns membros em partidos políticos (sendo

alguns vereadores e deputados eleitos) e outros, membros em movimentos sociais,

sobretudo relacionados a trabalho e terra. O “grande problema” deles, que os forçava a

rediscutir seu programa e ações: as políticas sociais implementadas pelos governos de

FHC e ampliadas nos governos Lula-Dilma, que eclipsavam a percepção da luta de

classes.

Esse “eclipse da política” é um dos grandes problemas para os “agentes da

política” da contemporaneidade. Refiro-me assim a agentes porque acredito que esse

problema de a política estar eclipsada atinge tanto os políticos tradicionais e os

movimentos sociais, como também atinge os atuantes da política que agem micro

politicamente ou de outras formas. Desse último tipo de agir, cabe notar, por exemplo, os

grupos e atuantes teatrais que optam por fazer um teatro mais “engajado” e/ou “político”.

As questões das políticas sociais, as penetrações tecnológicas e midiáticas e as

consequências das relações entre distribuição de renda e crescimento econômico

acabaram por misturar as tradicionais clivagens teóricas, políticas e suas práticas.

Inseridos nesses cenários, ficou difícil enxergar com nitidez as categorias e os pares de

oposição convencionais e sólidos (como o subalterno/hegemônico, o tradicional/moderno

e o trabalhador/capital).

Talvez as lutas de classes continuem a existir, mas elas se encontram muito mais

turvas em decorrência de suas novas modalidades de organização cultural, de novas

dinâmicas de consumo e da hibridação das tradições de classes. É cada vez mais notório

que as sociedades estão se deslocando de uma localização da “arquitetura que era possível

definir” para o “território do gás e do vazado”. É esse deslocar para o lugar do “território

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do gás e do vazado” que dessincronizou as aplicabilidades das teorias da “arquitetura

sólida”. Mudar de lugar deveria ter como processo natural o abandonar das velhas

operações e dos velhos instrumentos conceituais. Mas abandonar algo e criar algo novo

não é tão fácil assim.

O primeiro ponto é que formar novos conceitos e novos léxicos não anulam por

completo os conceitos e léxicos antigos. Por trás de palavras, comportamentos e conceitos

existe todo um caminho e processo. Uma nova palavra não apaga de imediato as relações

de uma antiga palavra. Talvez isso seja mais próximo da questão do “cânone” e sua

disputa: uma nova obra que entre no cânone não necessariamente retira outra do cânone.

E, mesmo quando a retira, ela não apaga a percepção e as relações criadas por ela na

memória de alguns. Não se desaparece simplesmente. As palavras e conceitos têm em si

ação e memória.

O segundo ponto é que algumas coisas que são lidas como “inexistências” (como

as “inexistências de classes”) não são coisas em si inexistentes, estão apenas mais turvas

nas suas possibilidades de visualização. Assim, se, por um lado, o confronto entre capital

e trabalho não esteja sendo compreendido como campo integralmente em disputa e as

disputas e oposições convencionais não sejam mais possíveis de serem percebidas da

forma clássica, por outro lado, o capitalismo atual continua produzindo processos de

exclusão – mesmo nos casos em que incluem. É essa relação dialética que provoca esse

eclipse político ou torna a sua visualização turva. As relações de dominação não colocam

em lados opostos do campo os seus “jogadores”, mas os misturam, sem, no entanto, retirar

a “vantagem” de alguns. As ferramentas de dominação passaram a operar não mais com

o objetivo de excluir diretamente, mas sim com o de inclusão com matrizes geradoras de

exclusão (que não necessariamente são percebidas).

O que foi percebido é que colocar em lados opostos poderia causar revolta e

estados de reivindicação. Assim, colocaram no mesmo lado agentes desiguais, sem tirar

suas desigualdades. Exemplificando, o capitalismo percebeu que excluir alguém era

perder uma possibilidade de mercado, portanto se tornou um mecanismo para ampliar sua

inclusão econômica, mas essa inclusão não tirou o seu mecanismo implícito, o processo

de “dessubjetivação”. Ou, ainda, as populações periféricas do Rio de Janeiro têm ao seu

alcance possuir bens desejáveis do consumo moderno (como celulares e TVs compradas

a prazo), mas não conseguem ter o pleno direito a uma saúde de qualidade (vide a crise

da saúde pública na maior parte do Brasil).

É sintomático disso o processo de apropriação de ícones da contracultura ou da

ideologia da “esquerda” pelo mercado. Assim, é comum ver a iconoclastia do Che

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Guevara apropriada pela indústria da moda. De certa forma, “capitalizaram o Che”. Outro

ponto assimilado é o tênis All Star, que foi ícone contra o sistema comercial e da revolta

da juventude. Hoje, a empresa produtora de tal tênis tem como acionista majoritária a

Nike, possivelmente a maior representante do sistema mainstream da cultura da moda em

relação a tênis e material esportivo. Assim, mesmo fugindo do “capitalismo” ou da

“dominação”, se pertence a ela. Mesmo sendo contra, se é incorporado a isso.

Mas a vida é potência e resiste como afirmação. E os caminhos podem ser

percorridos em direção inversa. Podem-se usar as estratégias de dominação como

ferramentas de libertação. A “verdade” é que as estratégias são só estratégias. Dominação

ou libertação dependem do seu uso e contexto. Deleuze, por exemplo, dizia que era a

repressão que determinava a diferença entre os dispositivos (de controle) para os

agenciamentos de desejo.

O canal observado foi um em que a arte estava além dos mecanismos de

contenção. Não manifesta apenas como recurso de inclusão ou como geradora de renda,

ou como alternativa para a violência, mas sim como uma estética. É como uma

possibilidade estética, dentro do território, que, para falar dele, pode falar além dele –

falando até mesmo de trajetórias individuais. São textos dramatúrgicos que permitem dar

uma trajetória de visibilidade a sujeitos únicos (além da representação comunidade como

sujeito são seus indivíduos como sujeitos). É o direito de se “achar interessante”, de

“merecer o registro e a memória”. É talvez a melhor forma de mostrar o “território”, “a

favela” e a “comunidade” para além de onde estavam.

A noção de “dispositivo” é discutida por Agamben no ensaio “O que é um

dispositivo”. Nesse trabalho, esse autor traça as definições e origens da palavra ao longo

do tempo. Algumas podem ser usadas neste capítulo para poder discutir a aplicabilidade

da palavra. No ensaio, ele divide o significado em três pontos ao ler o pensamento de

Foucault. O primeiro dele nos chama a atenção (os outros dois se relacionam à função e

às relações de poder) para a ideia de profanação. Sobre a primeira definição, ele coloca

da seguinte forma: “É um conjunto heterogêneo, linguístico e não linguístico que inclui

qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia,

proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre

esses elementos” (AGAMBEN, 2009, p. 29).

Agamben apresenta dois grandes grupos ou classes existentes: os seres viventes

(substâncias) e os dispositivos em que estes são capturados; os sujeitos são resultados da

relação entre esses dois polos. “Chamo sujeito o que resulta da relação e, por assim dizer,

do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos” (p. 41). Nesse sentido, “um mesmo

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indivíduo pode ser o lugar dos múltiplos processos de subjetivação: o usuário de telefone

celular, o escritor de contos, o navegador na internet etc.” (p. 41). Ele coloca, de certa

forma, que poderia chamar de dispositivo: “Chamarei literalmente de dispositivo

qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar,

interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os

discursos dos seres viventes” (p. 40).

Para o pessimista Agamben, estamos diante do corpo social mais dócil

(reverberando o conceito foucaultiano) e frágil jamais constituído na história da

humanidade. Tal docilidade se reflete no modo como o indivíduo permite que seus gestos

cotidianos, sua saúde, seus divertimentos, ocupações, alimentação e desejos sejam

comandados e controlados por dispositivos. Como proposta de antídoto a essa indiferença

mútua entre os seres viventes e dispositivos, Agamben apresenta a ideia de profanação.

Profano, pois, seria aquilo que de sagrado ou religioso – de ordem divina e separado do

alcance dos homens – que era, é restituído ao uso e propriedade dos homens. O que foi

ritualmente separado pode ser restituído pelo rito à esfera profana, e isso urge. É no

reforço à necessidade de retomada dos dispositivos, só que na ação da profanação,35 que

o primeiro ensaio é concluído.36

Mas vamos nos deter sobre a questão do teatro e da política para voltarmos a isto:

as percepções de estratégias de dominação ou agenciamento. Façamos algumas analogias

e desenvolvamos um pouco mais isso, tendo dois exemplos como norte: a encenação de

Esperando Godot descrita por Susan Sontag no seu ensaio “Esperando Godot em

Sarajevo” e pelas observações iniciais colhidas por mim em relação ao Coletivo Última

Estação, da favela da João XXIII. São dois exemplos que estão situados fora do

mecanismo do teatro privatizado (e depois “privado”) e que servem para discutir essas

questões.

Sontag escreve o seu ensaio sobre a experiência de ser convidada para encenar

algo na temporalidade do cerco (o mais longo da história da guerra moderna) que foi

realizado pelas forças sérvias da autoproclamada República Srpska e do Exército Popular

Iugoslavo. Durou de 5 de abril de 1992 a 29 de fevereiro de 1996, durante a Guerra da

Bósnia, entre as mal equipadas forças de defesa da Bósnia e Herzegovina, o Exército

35 Considerando a Profanação como a transformação do dispositivo de violência/poder de constituir e de

manter em violência/poder de revolucionar 36 As reticências clamam por um maior aprofundamento e essa requisição é atendida no ensaio posterior do

mesmo volume e em Profanações (sobretudo no capítulo “Elogio à profanação”), outro título do mesmo

autor.

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Popular Iugoslavo e o Exército da “República Srpska”, situados nas colinas que rodeiam

a cidade.

Após a Bósnia e Herzegovina fazerem a sua declaração de

independência da República Socialista Federativa da Iugoslávia, os sérvios, cujo objetivo

estratégico era criar um novo Estado sérvio da República Srpska, o qual incluiria parte do

território da Bósnia e Herzegovina, cercaram Sarajevo com uma força de cerca de 18

mil homens. Baseados nas colinas circundantes, assaltaram a cidade com armamento

pesado, que incluía artilharia, morteiros, tanques, canhões antiaéreos, metralhadoras

pesadas, lançadores múltiplos de foguetes, mísseis lançados de aeronaves e rifles

“sniper”. Em 2 de maio de 1992, os sérvios bloquearam a cidade. As forças de defesa do

governo bósnio, que estavam muito mal equipadas, foram incapazes de romper o cerco.

E os residentes ficavam na expectativa de uma intervenção internacional (capitaneada

pelos EUA – intervenção essa que “demorou muito a acontecer”).

Estima-se que mais de 12 mil pessoas foram mortas e 50 mil feridas durante o

cerco, sendo 85% das vítimas civis. Por causa dessas mortes e da migração “forçada”,

em 1995 a população da cidade caiu para 334.663 pessoas (64% da população de antes

da guerra).

Para alguns, Esperando Godot poderia ser, ao mesmo tempo, uma obra

perfeitamente adequada à situação ou uma obra não adequada a essa situação.

Considerariam adequada pela “semelhança” de contexto da época de encenação (o cerco)

e da produção da obra (Segunda Guerra Mundial). Inadequada, porque seria melhor nessa

“realidade do cerco, terror e guerra” montar uma comédia ou um Vaudeville para distrair

as pessoas. Logo, seria possível pensar tanto que a peça de Beckett fora escrita para

Sarajevo e sobe Sarajevo como poder-se-ia perguntar sobre quem assistiria a uma

apresentação de Esperando Godot em Sarajevo naquelas condições.

O primeiro desses pensamentos poderia ser complementado com a possibilidade

que uma boa obra tem de parecer ser feita para determinados contextos, sejam eles do

“mundo concreto”, como o da “realidade do imaginário e subjetividade”. Assim,

Esperando Godot pode penetrar profundamente tanto para uma realidade de guerra

concreta como para o conflito do indivíduo contemporâneo que não percebe o porquê de

sua existência em vida de classe média em uma “cidade perfeitamente normal”. Já a

pergunta sobre os espectadores é respondida pela própria Sontag em seu ensaio, quando

diz que provavelmente seriam as mesmas pessoas que iriam assistir Esperando Godot

caso não houvesse um sítio.

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Mas produzir teatro nesse tipo de condição é, além disso, um gesto político (aliás,

talvez, todo teatro o seja). Não o gesto político panfletário da tradicional falação em vez

da ação. Não é do tipo que a encenação explica o que está acontecendo e tenta em uma

forma didática (ou seria uma “colonização pseudolibertária”?) mostrar a verdade e a

forma correta de agir. Ou, ainda, a pretensão do artista de acreditar que pode levar os fatos

e as notícias de verdade ao mundo. O gesto político operado por Sontag é o de agenciar a

vivência como potência e estender a realização teatral como vetor de manifestação de

subjetividades.

O que essa ação promove é para o público a de revigorar, consolar e a

possibilidade de transcender para alguns (quando o seu sentido de realidade é

ressignificado e “transportado”). Para os profissionais de teatro, isso ganha uma potência

ainda maior porque encenar nesses contextos lhes permitia serem normais e realizarem o

seu cotidiano antes da guerra (e não se aterem apenas às atividades do estado de sítio

como carregadores de água ou receptores passivos de ajuda humanitária – passividade

frente ao cerco).

É claro que existia o risco iminente de morte em se encenar em um território com

tal conflito. A própria Sontag admite isso. Para ela, tanto os atores como os espectadores

poderiam “ser assassinados ou mutilados por tiros de um franco-atirador ou pelo obus de

um morteiro, na ida ou na volta do teatro” (SONTAG, 2005, p. 384), mas isso não era um

risco só deles, o mesmo poderia ocorrer nas suas próprias casas ou na rua, em atividades

necessárias. Privar-se do prazer teatral não significaria um estado de segurança, apenas a

manutenção desse estágio onde o biopoder retirava “as manifestações de subjetividade e

resistência”.

O raciocínio exposto acima me lembra de um fato que eu presenciei em uma aula

de teatro ministrada por Alexandre Damascena no projeto Escola Livre de Teatro, na

Cidade das Crianças, em Santa Cruz (RJ). Na ELT, eram oferecidas oficinas de formação

e capacitação artísticas em um bairro (Santa Cruz) periférico e carente de equipamentos

culturais da cidade do Rio de Janeiro. Em uma das aulas em que o professor Alexandre

Damascena emitia alguns comandos improvisacionais de ação e lugar, como “curtindo na

praia”, “o carnaval para você”, ele emitiu o comando “tiroteio onde você mora”. Mediante

isso, uma parte da turma se abaixou, a outra tentou se esconder, e um garoto (Tony)

caminhou normalmente. Após essa ação e com o jogo teatral em pausa, uma boa parte

das pessoas se dirigiu a ele e perguntou: “Tony, era um tiroteio, você ouviu, né? ”. Ao

que ele respondeu de imediato “– Claro que eu ouvi, mas tem tiroteio vira e mexe no meu

bairro. Se eu for me esconder, gritar, fugir toda vez, eu não vou viver”. Esse gesto pode

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ser lido como metáfora tanto para Sarajevo como para nossas vidas. A guerra, ou os

dispositivos de controle, está sempre cerceando as pessoas; se elas deixarem de agir por

esse temor, terão sua potência de vida roubada.

Mas voltemos a Sontag, para depois retornarmos novamente ao “teatro de

comunidade”. O fazer teatro é uma dessas possibilidades de ser potência em vida. E o

teatro era um vetor libertário em um contexto em que a guerra era um misto de

desapontamento, dispositivo de cerceamento da vida e espetáculo de mídia. No ensaio de

Sontag existe a menção a um diálogo dela com o dono do hotel onde ela estava hospedada.

O dono do hotel comentou, surpreendido, que não tinha uma lotação tão alta e com tantos

jornalistas desde as Olimpíadas de Inverno – em uma clara demonstração de como até a

guerra pode ser lida como uma espécie de espetáculo.

É importante perceber que o teatro como gesto político ou agenciamento vai além

da mera reprodução de fatos ou da simples identificação, como a que poderia ocorrer no

contexto de Sarajevo à espera da intervenção do presidente americano (Clinton) e a

chegada do mensageiro para dizer que os “personagens/eles” esperaram em vão. Esse

teatro é capaz de se articular à vivência de forma a encantá-la e vetorizá-la. Vai além da

mera psicologia, ou da mera reprodução de fatos, ou, ainda, da “ideia”. Ele é potência,

onde alguns percebem carência.

Agora cabe notar que toda essa potência tem limites: a peça Esperando Godot não

tinha a capacidade de parar a guerra no mundo concreto. Sontag também admite que sua

ajuda em fazer teatro não seria superior a de outras áreas (apenas, era aquilo que ela podia

fazer) e que, talvez, a maior mudança fosse nela mesmo. E, fundamentalmente, se fez

teatro para e com Sarajevo. Dito isso, voltemos a trabalhar a questão do “teatro

comunidade” e suas possibilidades de se tornar agenciamento ou dispositivo.

A periferia/favela/comunidade do Rio de Janeiro, como já foi dito por aqui, foi

constantemente “descoberta” e “representada” ao longo dos séculos XX e XXI.

“Descobriram” e a “representaram” nesses períodos os modernistas brasileiros, a Igreja

Católica, a literatura, os piscors, as ONGs, os agentes públicos, os agentes políticos,

dentre outros. Mas essas descobertas e representações nem sempre foram agenciamentos

e incluíam as subjetividades. Muitas das vezes, foram dispositivos de “aprisionamento”

e controle. Nem sempre foram os próprios sujeitos a portarem suas vozes e, muitas das

vezes, o que viria para querer “facilitar” ou “ajudar” se tornava uma espécie de

“colonização”.37

37 É por esse tipo de hipótese que afirmo o que já disse antes: “É desses rastros que surgem, por exemplo,

a “dramaturgia puramente social”. Essa escrita dramática é muitas das vezes apresentada como a narrativa

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Aliás, esses territórios, quando fazem uso dessa ideia de dramaturgia social, se

utilizam disso como uma espécie de capital social para venda da ideia da mitologia dos

“excluídos” ou dos exóticos. Mas outra miscigenação e resultado de representação

possível é a favela/comunidade folclórica, onde todos os problemas são superados por

pessoas mulatas e negras que são criativas e estão sempre dançando, criando e superando

todas as dificuldades, registradas em um tempo da rememoração de um presente

nostálgico, sempre no campo da poesia e da fantasia. Mas, prioritariamente, o que se vê

encenado, quando o dramaturgo é da comunidade, é a memória coletiva, a memória da

vivência, os hábitos, costumes, prosódias, perspectivas, sonhos e críticas. Cabe ressaltar

aqui o diálogo de memória e vivência, ou memória e prática como pode ser expresso em

“A memória coletiva é da ordem da vivência” (ORTIZ, 2006, p. 8).

A tentação de ser bom também entra nesse jogo e tenta-se ensinar para a

“comunidade” como fazer teatro, como ser bom, como ser um ser humano pleno e

realizado entre outros ensinamentos. Mas tudo isso sempre pela ótica do enunciador e no

erro de considerar sempre pelas carências e ignorar os processos de subjetividades

gerados pelas ausências (isso quando estas realmente existem). Nesse ponto, cabem

críticas a procedimentos de teatro na comunidade, como o teatro aplicado, quando o

facilitador se vê quase como um papel de piscors enfrentando a realidade posta para

mostrar a sua verdadeira realidade e progresso do ser humano.

Outro ponto que poderíamos colocar como adendo a isso é o surgimento da

população de favela e comunidade tanto como produto quanto como potencial mercado

consumidor que está ganhando cada dia mais destaque por parte da mídia e do sistema

econômico no Brasil. Como produto, por que a favela ganhou o status de produto tipo

exportação e de interesse imagético. Como mercado, pelos motivos de quantitativo

habitacional e econômico (a classe C e D são as grandes classes consumidoras do Brasil

hoje).

Como também já dissemos, nem a intelectualidade nem os sistemas de

representação poderiam ignorar isso. Esses territórios, direta ou indiretamente, pertencem

e são capazes de interferir na história e, logo, com a percepção de que não dá mais para

ignorar “a fala dessas bocas” no sentido concreto, se criam caminhos curvos. Assim como

também não faz mais sentido tentar representar um mundo a que essas pessoas não

pertençam. Esses territórios renovados e transformados em uma subcultura potencial têm

do exótico ou do overside da sociedade, onde se apresenta uma tela de excluídos, não assistidos ou dos que

não pertencem à sociedade-cidade. Cabe ressaltar, no território perigoso da ausência de estatísticas, que a

maioria dessas dramaturgias ditas sociais, hoje, são produzidas por dramaturgos de fora da comunidade,

muitas vezes escritas em seus apartamentos confortáveis, longe do convívio ordinário com esses territórios.

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a necessidade de um linguajar para se entenderem e de uma imagem para se

reconhecerem. Só que cabe aqui notar a metodologia do incluir para excluir.

É importante lembrar que as palavras favela e comunidade, e suas múltiplas

conotações e possibilidades, com suas fronteiras geográficas, identitárias e culturais,

estão se definindo e a se definir em um processo constante. E todos esses processos de

“descoberta” não se sobrepõem, mas vão se juntando, tensionando e dialogando de forma

direta ou não. A palavra “favelado”, por exemplo, vai do adjetivo pejorativo, para

exprimir um preconceito étnico-social, até um substantivo de identidade folclórica de

felicidade e modo de vida (razão pela qual muitos dos habitantes desses territórios

preferem a palavra “favela” à palavra “comunidade”).

Fato é que existem modelos positivos, e não apenas modelos negativos, e,

enquanto as representações, por vezes, operam nos extremos, a “realidade” não opera em

nenhum deles, mas no entre. Os seus graves problemas sociais estão em jogo, ao mesmo

tempo em que suas imaginações e criatividade. Nunca é um ou outro, mas sempre o seu

jogo ou a disputa de seu território. Os seus processos sociais são mutantes (como são

todas as comunidades).

As dinâmicas de representação e alguns dispositivos de subjetividade, que

deveriam ser agenciamento, muitas das vezes não percebem isso ou não são usados para

tal. É comum ver ONGs que trabalham com teatro continuarem reproduzindo

pensamentos para pessoas com poucas competências, desejos e subjetividades.

Facilitadores que, na forma errada de querer libertar, acabam por colonizar. É nesse

sentido que eu acredito em fenômenos culturais, artísticos, sociais e políticos quando

realizados por membros desses próprios territórios ou, no mínimo, por pessoas que

entendam que o teatro que se faz para e com eles tem muita mais potência.

Para entrarmos no território da análise concreta, pensemos um pouco sobre o texto

dramático e a temporada de Oh Menino realizada pelo Coletivo Última Estação.38 Esse

grupo tem esse nome porque se localiza no bairro de Santa Cruz, uma das possibilidades

de ser a última estação para pessoas que pegam o trem da Supervia na Central do Brasil

(RJ). As encenações do coletivo acontecem em três eixos temáticos principais: a questão

do modal e suporte artístico, a adaptabilidade dos clássicos e a inclusão das memórias,

afetividades e pertencimentos dos moradores em material estético (principalmente em

dramaturgia e encenação).

38 Mais informações sobre o coletivo e sobre o texto serão dadas nos capítulos finais desta dissertação.

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O texto Oh Menino teve como metodologia a captação de lembranças e vivências

de Mateus (um menino da “comunidade” João XXIII) pelo diretor e dramaturgo Sandro

D’França (também morador da João XXIII). No final do processo, gerou-se uma peça que

tinha como mote a apresentação no palco das histórias que só um menino da periferia

poderia contar. Mas esse mote mais esconde do que mostra. Não existe na peça uma

propriedade dessa periferia imaginada. Outro ponto é que as “lembranças” provêm de um

jogo de Mateus criança (representado pelo próprio Mateus) com a imersão do Mateus

adulto (representado por Luiz Salazar). Esse Mateus adulto, na realidade, é uma versão

do próprio Mateus criança, só que fracassada. Essa versão adulta não conseguiu realizar

seus sonhos e desejos, por isso a necessidade da volta à infância. A cena inicial dialoga

com Alice no País das Maravilhas na busca pelo coelho branco, só que, para o

dramaturgo, é a perseguição do Mateus velho ao Mateus novo “como um dia de cão. Mas

um cão bravo mesmo”. É uma Alice que opera a mudança do agir pelo desejo pelo agir

pela fuga, ou pela necessidade, ou pela responsabilidade. Logo, o que se verá adiante é

que as pseudo-lembranças são, na realidade, as projeções dos desejos do coletivo e a

vontade de pertencer e se catalogar como potência estética.

Algumas questões do texto são dignas de nota para pensar sobre isso como:

- A prosódia dos personagens. A Barbie, por exemplo, tem uma fala em que ela

diz: “Ih, mas o colega só fala isso”, colocando em cheque quem é o emissor da Barbie –

o nosso imaginário sempre nos remete à norma culta –, mas quem tem o brinquedo é que

cria as suas falas. Embora a indústria possa ter criado um conceito de beleza para a Barbie

americana-europeia, o jogo da manipulação e apropriação se dá pelo emissor. Para uma

menina da “periferia”, a Barbie fala do jeito mencionado, até porque é ela mesma a

propositora da enunciação desse personagem;

- A cena em que Matheus jovem retorna à cena para ver TV e interfere e é

interferido pelos temas abordados. Em uma espécie de apropriação do conteúdo da

televisão. O programa Jornal, que ele assiste, por exemplo, retrata a “economia” feita no

cofrinho ou a briga de Mateus com o irmão pelo uso do computador. Ou, quando, ao ver

a novela, existe a possibilidade de misturar seus personagens com personagens de outros

programas, como vilões e mocinhas de novelas com índios de programas de bang bang –

numa espécie de imaginação criativa autoral;

Por fim, é interessante concluir como as relações presentes na vida do dramaturgo

se transfiguram e misturam com a tentativa de narrativa de memória de uma criança;

assim, recursos de hibridação com uma obra literária (Alice) e a vida cotidiana se

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misturam, a fim de criar uma dramaturgia sobre o desejo de produção de arte para grupos

de teatro de certos territórios não tradicionalmente contemplados (o cenário teatral

carioca é prioritariamente realizado na Zona Sul e centro da cidade, tanto em patrocínios,

cursos de formação regular, bem como em equipamentos culturais).

Em relação a esse não contemplamento, é interessante notar a distribuição das

apresentações feitas pelo coletivo. Na Zona Oeste do Rio não existe a cultura de peças

que ficam em temporadas. Assim, o grupo realizou sua “temporada” em mais de dez

espaços diferentes, que foram de um teatro propriamente dito, passando por um centro

cultural e um centro social, e chegou à apresentação final em uma rua da comunidade,

onde alguns membros do coletivo residiam (significando em espaços já convencionais e

ressignificando em espaços não convencionais).

Esses procedimentos adotados são para mim os grandes vetores desses

agenciamentos. Agenciamentos que não se fazem pela simples falação, mas sim pela

apropriação de bens e sistemas, ressignificando e recanalizando-os. Aliás, os melhores

agenciamentos são aqueles que percebem o desejo e se descolam do mero plano e vão

para o campo efetivo da ação (mesmo que seja através da palavra). Eles podem até se

valer do sistema mercadológico para inverter os processos de dessubjetivação.

Assim, a riqueza está em perceber que o desejo pode ter até a possibilidade de se

“linkar” com ferramentas tradicionais de agenciamentos ou produtos comuns do

capitalismo, como foi o caso das estratégias de José Junior com seus Nikes e Adidas

importados (implícitos na epígrafe deste ensaio). Ou, no vetor artístico, como montar um

Beckett em Sarajevo. Ou, ainda, a criação de dramaturgias híbridas para valorizar as

histórias, dialogar com o cânone e manifestar os conflitos dos sonhos contra os

imperativos sociais do mundo. No fim, são as tentativas de ir além da regulação ordinária

e opressora dos dispositivos. Pois, se o poder e o controle são adaptáveis e apropriadores,

as mutações e hibridizações da sociedade, da população, da cultura e da natureza estão

sempre vazando, recriando suas manifestações de política na vida.

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6 PROCESSOS E MÉTODOS DE CONCEPÇÃO

As questões citadas como resultados e investigações do processo de trabalho

dramatúrgico da Companhia Última Estação como “modal e suporte artístico”,

“adaptabilidade dos clássicos” e “inclusão das memórias, afetividades e pertencimentos

dos moradores em material estético (principalmente em dramaturgia e encenação) ” estão

presentes em todos os trabalhos dramatúrgicos aqui estudados.

Dois processos fundamentais dessas construções que desejo fazer na construção

deste trabalho são a existência de um dramaturgo* (no sentido 2) e da possibilidade de

articulação, montagem e colagens de clássicos.

Do primeiro processo, como vamos observar com mais detalhes, um dos

enriquecimentos que a dramaturgia tem, pelo fato de o dramaturgo ser oriundo da própria

comunidade, é o fato de ele circular pela comunidade, de poder ver e sentir as

experiências, de coletar e ir elaborando imageticamente fábulas para aquele território.

Seja para representá-lo ou para ressignificá-lo. Outro ponto, ainda, é poder coletar e

experimentar lembranças, contos e causas da comunidade e dos atores (tanto o Teatro da

Laje como o Última Estação coletam histórias, lembranças e memórias em seu processo

dramatúrgico, histórias dos moradores para inserções na tessitura dramatúrgica). E,

embora o Apalpe não seja dramaturgia cênica, também trabalha com a questão da

experiência da memória pelo uso do território. No Nós do Morro é constante a presença

do dramaturgo até nas adaptações dos clássicos.

Outro ponto fundamental no processo de criação artística é o de copiar e colar,

reusar e reutilizar obras e métodos. Um dado importante é que essa adaptabilidade se dá

muito menos pela formação específica do que pela vivência e pelos jogos dos atores e

autores. Isso é importante no sentido de que as criações literárias seguem muito menos as

origens dos mitos e fábulas do que as vivências e articulações dos criadores literários. É

uma apreensão do original respeitosamente desrespeitosa. Para exemplificar, podemos

citar Alice como base do Oh Menino, que inscreve na obra Alice uma frase que pode

significá-la, mas que não está inscrita na história original, ou, ainda, a peça do Teatro da

Laje que utilizou a Bíblia, mais especificamente o livro do Êxodo, para estabelecer uma

analogia entre a saga do povo hebreu à procura da terra prometida, Canaã, com a do povo

da Vila Cruzeiro à procura da sua terra prometida, Ipanema.

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6.1 UM DRAMATURGO PARA CHAMAR DE SEU

As experiências do cotidiano trazem uma identidade que potencializa na hora da

montagem do espetáculo e da construção textual. O “morar no local” ou circular por ele

facilita a conversa e a troca entre autor/ator/plateia. É a transformação da experiência do

cotidiano em realização artística com autores e atores no mesmo percurso e com

experiências próximas. Mas essas experiências precisam de tradução. Acredito que isso

se dá no âmbito, principalmente, da função do dramaturgo.

A atividade do dramaturgo nesses territórios não é de apenas produzir um texto,

mas, sim, se dá pelo sentido 2 da dramaturgia, que “consiste em instalar materiais textuais

e cênicos, em destacar os significados complexos do texto ao escolher uma interpretação

particular, em orientar o espetáculo no sentido escolhido” (PAVIS, 2008, p. 113). São

conjuntos que elaboram e colaboram com as escolhas estéticas e ideológicas, ou, ainda,

“a dramaturgia, no seu sentido mais recente, tende, portanto, a ultrapassar o âmbito de

um estudo do texto dramático para englobar texto e realização cênica” (PAVIS, 2008, p.

113).

Os grupos citados aqui, a meu ver, têm o seu destaque na experiência cênica,

principalmente, por possuírem um autor nessa função, um dramaturgista que frequenta os

ensaios, que percebe a corporeidade dos atores, sua prosódia, suas relações com a

comunidade e com o espaço. A dramaturgia, para eles, não se dá apenas no palco e pelo

palco, começa antes e se estende no depois. Começa antes porque o texto tradicionalmente

não se dá no isolamento, costuma, muitas das vezes, ser oriundo de um bate-papo com os

moradores, de uma pesquisa videográfica, de entrevistas e depoimentos. Se estende no

depois, porque a experiência cênica não termina no momento da peça, mas suas

reminiscências se dão no território. É o morador que pode contemplar ou, ao menos, ver

tensionado o seu modo de vida, o seu cotidiano e o material artístico.

Marina Henrique Coutinho faz a seguinte pergunta em seu livro A favela como

palco e personagem:

Quais circunstâncias favorecem a comunidade-favela para exercer o seu papel

como autora dos processos criativos ou a sua autonomia dentro de um

“projeto”?; que tipo de política estabelecida entre “agentes externos” e

comunidades é capaz de criar uma relação que garanta à comunidade o seu

verdadeiro direito de voz?; ou, ainda, que circunstâncias permitem que os

projetos respirem dentro da dinâmica da comunidade-sujeito, assegurando à

favela/comunidade o seu direito de, por meio do teatro, nomear o mundo? (p.

22).

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Acredito que a estratégia fundamental dessa participação é desses dramaturgos

que conseguem compor uma arquitetura cênica de pessoas que são capazes de interferir

em seu território e no seu destino; que conseguem compreender e mostrar, através de um

gesto estético, que a favela/comunidade/território não é mais um espaço externo à

organização da polis. Poderíamos fazer uma analogia desses dramaturgos (e os de fora),

usando o conceito da educação bancária de Paulo Freire. A questão da educação bancária

é a imposição de conteúdos estabelecidos fora da comunidade. Esses dramaturgos agem

contra isso no sentido da composição do drama. A tentativa deles é trazer o lócus da sua

circulação para o centro do palco.

Não acontece de forma gratuita a composição dessas dramaturgias. Não é gratuito

o ganho estético que vem da produção de um professor de teatro em contato com o habitat

dos seus alunos e de improvisações desprovidas de preconceitos (Teatro da Laje). Ou,

ainda, a criação de cenas de um certo realismo fantástico através de um processo quase

documental gerado pelo Coletivo Última Estação. Fora o início do Nós do Morro, em

duas peças que tratavam de forma cênica do cotidiano do morro – com destaque para a

peça Biroska, que reproduzia diversos causos (e até o cenário) de uma birosca (bar)

conhecida da comunidade. São, antes, as estratégias de captação e representação da

realidade que colocam em cena o concreto, o rústico (pensando analogamente ao conceito

de Peter Brook – para um teatro que recria o lugar do acontecimento cênico) junto aos

afetos e vivências.

6.2 O RE-ENACTMENT, O “COPIA E COLA” E O “COVER” COMO ESTRATÉGIAS

DE DISPUTA DO CAMPO DA LITERATURA, PERFORMANCE E

SUBJETIVIDADES

Tem umas coisas que nem a cota dá conta! Tipo eu! Esses

malucos que vêm da “perifa” conseguem ler uns livros, não têm

paciência para a disciplina acadêmica e inventam logo uma

banda, um grupo de teatro, mete um rap, um funk, a poesia, vira

punk. O partido não entende e a economia criativa não suporta

nossa indisciplina errante. O que resta para nós é inventar a

vida! Outra institucionalidade! Outra representação! Que nem

essa dele cantando “Sweet child o mine” (cover), todo meu

aprendizado foi fazendo cover de quem eu admirava. Fazer

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cover não é imitar, é transformar em experiência e reoperação

aquilo que te forma. O resto é história.

Marcus Vinicius Faustini

Práticas não originais podem dar origem a originalidades? Como se dá a relação

sobre a potência criativa do re-enactment, do “copia e cola” e do “cover” como estratégias

de disputa do campo da literatura, performance e subjetividade? Esse fragmento pretende

dialogar com as formas artísticas contemporâneas produzidas por sujeitos normalmente

excluídos do eixo tradicional de representação e que se apropriam de ferramentas de

construções artísticas já usadas por outros para criar assim sua “originalidade”. Como

objeto específico, nos debruçaremos sobre os trabalhos de partilhas sensíveis propostas

na metodologia do Apalpe e da Agência de Redes para a Juventude (ambas, iniciativas de

Marcus Vinicius Faustini).

Os dois trabalhos citados têm como norte a “produção de subjetividade” a partir

de reconfigurações de formas, processos e metodologias já usados e que possam servir

como formas de se organizar e vetores de conteúdo para se manifestarem no mundo e no

campo artístico e cultural – bem como no direito à representação e na disputa do território.

No Apalpe, Faustini apresentava como oficina os processos, procedimentos e o que ele

denominava de “memorial-inventário” usados na construção do seu livro Guia afetivo da

periferia39 e incentivava os jovens que se inscreviam nas oficinas a se apropriarem dessa

instrumentação para produzirem suas próprias literaturas, literalidades e performances

“de” e “com” seus territórios. Tal iniciativa, segundo ele, era fruto de uma “tentativa” e

tinha como objetivo:

Esgarçar o Guia afetivo da periferia. Quando eu estava fazendo esse livro, eu

pensava assim: “tá, eu vou fazer um livro”. Eu demorei mais de trinta anos

para me encorajar a escrever um livro. Porque a gente nunca é encorajado a

escrever na periferia, a gente é encorajado a falar. A gente vai ser camelô, a

gente vai ser diretor de teatro; tudo que envolve a fala. É difícil se sentir

encorajado com coisas que envolvem a palavra. Como eu pensei: “já que eu tô

escrevendo um livro e tô tendo “sacação” para escrever um livro – “sacação”

de organização estética, de pensamento, da voz do personagem. Eu tenho que

desdobrar isso ao máximo (Entrevista sobre o Apalpe, 23/06/2010. Disponível

em: http://www.youtube.com/watch?v=fGUi12iFluE).

39 O Guia afetivo da periferia é o primeiro livro de Faustini, construído no entre do jogo ficcional sobre

memórias, objetos e territórios do autor.

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Logo, instrumentalizar a literatura era, para ele, colocar a possibilidade de o livro

ir além e se constituir em ação no mundo concreto. Que a palavra gerada ali se

desdobrasse e se encontrasse com a possibilidade de desenhar as subjetividades “da” e

“na” cidade, performando suas palavras e vivências, e para ver suas paisagens e sujeitos

representados – principalmente na escrita.40

Já no Agência de Redes para a Juventude, ele apresenta uma série de “técnicas”,

procedimentos artísticos e composições literárias, como Guia de monstruosidades,

Abecedários, Mapas, entre outros. Esses instrumentos estão divididos em quatro grupos

maiores (“Bússola”, “Extensão e experimentação”, “Intensidade e precisão”,

“Agenciamento” e “Fluxo”) que sempre articulam uma noção de mundo prática com um

procedimento artístico. Tal alinhamento foi formatado para que se inicie o projeto com

discussões sobre desejo e forma e culmine com uma ação concreta, com a gestão e

aplicação de um projeto econômico e artístico (no ano de 2012, 24 projetos tiveram o

apoio de um prêmio de R$10.000,00 cada para colocar a “ideia” em “prática”).

O projeto, no final, acaba por transformar a articulação de sujeito e subjetividade

em ação concreta no mundo. É uma trajetória que parte do sujeito, passa pelo plano

societal e chega a uma interferência no mundo, além, é claro, das discussões,

experimentações e percepções referentes ao território e a representação. Cabe notar que,

embora os projetos tenham produtos finais diferentes (no Apalpe, é a produção de

literatura e performance e no Agências, projetos de arte, cultura e economia), ambos se

aproximam muito de uma ideia defendida por Faustini na mesma entrevista ao YouTube:

O Apalpe é uma tentativa de criar uma relação com as palavras na cidade,

plasticamente. O lugar da palavra não precisa ser só o livro, ou o texto teatral...

a caverna, né. Essa palavra que nós estamos falando é do mundo cognitivo, não

da oralidade. A palavra como estética que se reconhece. Então o Apalpe é uma

tentativa de um designer para se relacionar.

Esse conceito de “designer para se relacionar” parece ser o punctum em comum

dos projetos. É o direito estético como produtor do direito à cidade e sua disputa nas

representações de subjetividades. Partindo do uso de iniciativas literárias, busca-se o

direito de pertencimento ao mundo, não apenas como sujeito passivo ou carente, mas sim

como potência produtora. Como nos diz Rancière, são “atos estéticos como configurações

40 É justo questionar o lugar da distribuição da palavra, apesar das constantes reclamações sobre a crise da

literatura, cada vez mais a sociedade consome palavras e narrativas, como se pode observar na redação

publicitária, nas performances literárias e nas narrativas digitais. O próprio Faustini justifica que as questões

relacionadas ao Guia, para que seu livro fosse além da livraria (que ele, provocativamente, chama de

caverna).

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da experiência, que ensejam novos modos de sentir e induzem novas formas da

subjetividade política” (RANCIÈRE, 2009, p. 11). Busca-se inserir a sua subjetividade

na relação com o mundo. Logo, o que se produz é a conversão do instrumento artístico

em direito de poder filtrar e dialogar com o mundo pela sua própria retina e, além disso,

disputar os direitos de subjetividade do mundo e no mundo, mesmo que não usando de

formas ou dispositivos originais. É criar sua originalidade através da cópia. É o direito de

desenhar a cidade interferida pela subjetividade de cada um. É importante notar que as

formas de expressão do sujeito e de construção de literalidades não estão presas às ideias

de “gênio”; antes, elas estão organizadas como ferramentas, possíveis de serem acessadas

e usadas como “ferramentas acessíveis” e não sujeitas ao caráter de aura e inspiração.

É digno de nota que o campo da contemporaneidade tem usado de iniciativas já

produzidas para re-operar o mundo. Um exemplo de muito sucesso é a de Marina

Abramovic em seu re-enactment41 Seven easy pieces, no Guggenheim, em novembro de

2005. Por sete noites consecutivas, ela recriou sete performances, cinco de outros artistas

que realizam suas performances pela primeira vez nas décadas de 1960 e 1970 e duas

peças dela mesma. Assim, o “programa se constituiu” de: Seedbed, de Vito Acconci

(1972), Action pants, de Valie Export, Pânico genital (1969), The condicionado , de Gina

Pane (1973), Como explicar imagens a uma lebre morta, de Joseph Beuys (1965) e as de

origem própria: Lips de Thomas (1975) e Entrando no outro lado (2005).

A artista aparentemente usava os suportes já usados em uma outra época ou lugar

(inclusive os dela mesmo) para se colocar presente,42 para realizar uma operação no

museu que dialogasse com o passado, mas se realizasse no “aqui agora”. Uma espécie de

captação de forças do passado, do acontecimento como “agenciamento de forças” visíveis

e invisíveis (DELEUZE, 1980, p. 12) para dialogar com o presente. De fato, essa série é

muito poderosa e um grande marco da arte contemporânea43 (até então, a performance

era vista como tendo como sua única possibilidade o instante único da realização

original). Com isso, pode-se voltar a coisas já feitas para re-operar e dialogar com o

presente, usando da ideia original do artista para ter a possibilidade de articular com seu

tempo e espaço.

41 Re-enactment é o termo usado para as refeituras de performances. A apresentação de Marina Abramovic

é considerada o inicial institucional de tal prática. 42 A presença é algo interessante na performance, não por acaso a própria Marina vem a apresentar

posteriormente, no Moma, uma retrospectiva de algumas obras suas intituladas A artista está presente. 43 Me refiro aqui ao sentido de arte contemporânea mais trivial, aquela que é produzida nos dias de hoje

sem usar de conceitos das histórias da arte ou da filosofia, marcadas pelo tempo.

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Mas, além desse momento, podemos e precisamos voltar mais um pouco à

questão da possibilidade da cópia. É preciso voltar à perda da aura da obra de arte (afinal,

a obra artística com aura não poderia ser copiada, já que algo em sua imanência seria

diferente e única). Devemos refletir um pouco sobre as observações de Walter Benjamin44

em seu ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.

No ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Walter

Benjamin discorre sobre a experiência do público frente à obra de arte. Ele diz que, em

épocas anteriores (ao tempo do ensaio dele), a experiência da obra de arte era única e se

pautava no que ele chama de “aura” (uma espécie de distância, culto e admiração). Tendo

uma perspectiva de uma visão histórica, desde o seu caráter de associação ao ritual

religioso, passando pela distinção social (na época da sociedade burguesa), até o tempo

de seu ensaio.

A perda da “aura”, para ele, foi dada mediante a possibilidade da reprodução em

massa da obra de arte; quando não faz mais sentido distinguir entre o original e as cópias

(como no caso da fotografia, por exemplo). Benjamin vai salientar que o processo de

reprodução já acontecia (fundição, reprodução de moedas, gravura em madeira,

xilogravura etc.) Porém, é no caso da arte gráfica e em especial na evolução da fotografia

que o processo da perda da “aura” se dá, para ele. Benjamin reconhece nesse germe do

cinema uma possibilidade “política” de apropriação das massas em relação à arte. Ao se

distinguir, articular e desassociar o “valor de culto” e o “valor de exposição”, junto à

criação e perda da “aura” (que seria uma espécie do “valor de culto”), pode-se interferir

e operar nas dicotomias de dissolução entre o sagrado e o profano, o simbólico e o

pragmático, o selvagem e o racional, e tratar a arte como objeto plausível de ser acessado.

Este processo libertaria, assim, a arte para novas possibilidades, tornando-se uma arte

acessível ao povo e que poderia ser usada na forma de uma politização estética livre da

influência política partidária.

O que Benjamin acredita é que, nesse fato, desde que observadas as técnicas, a

arte poderia gerar uma politização capaz de moldar o senso crítico daquele que a observa,

criando um novo tipo de espectadores e críticos da arte que, ao mesmo tempo, assistissem

e pudessem formular suas noções críticas e pensamentos reflexivos. Tudo isso gerado a

partir da perda do hic et nunc, da noção de autenticidade, do valor de culto e da unicidade

44 Walter Benedix Schönflies Benjamin foi um ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu

alemão, associado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica. Entre as suas obras mais conhecidas, contam A

obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1936), Teses sobre o conceito de história (1940) e a

monumental e inacabada Paris, capital do século XIX, enquanto A tarefa do tradutor constitui referência

incontornável dos estudos literários.

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da obra. É a partir do momento que a obra deixa de ser “única” e “aural” que ela se torna

algo plausível de ser utilizada e apropriada no plano do cotidiano.

Poderíamos ainda somar a esse conceito de “perda de áurea” a compreensão de

Arthur C. Danto45 em relação à obra de arte em seu livro Após o fim da arte que nos diz

que “não há limitação a priori de como as obras de arte devem parecer” (DANTON, 2006,

p. 50), podemos dizer assim, que não há condição de reprodução ou distribuição

específica para a arte de nosso tempo. Isso, de certa forma, liberta o artista para criar,

fazer, destruir ou não o seu marco artístico, independentemente da sua distribuição e

reprodução.

O que acontece na arte hoje é que, mesmo que se desloque sobre ela a reprodução,

ou, ainda, mesmo que seja ela reprodução, não é esse o seu traço marcante. Uma obra

pode se constituir sobre criação, reprodução ou apropriação, mas, ainda sim, não é isso o

que a difere de um objeto ordinário, e não é isso que a faz gerar sentido e pertencimento

ao mundo ou não, ao mesmo tempo em que isso não a impede de ser e gerar sentido, e de

ser arte.

Mas são esses processos artísticos de perda de áurea que têm a capacidade de

vetorizar outros ganhos. É nessa linha que segue o trabalho de Faustini: organizando os

dispositivos46 artísticos estruturados no cópia e cola e procedimentos para gerar potências

e novos discursos (na estrutura da cidade, nas representações e nos sujeitos da arte). Essa

apropriação é importante, já que uma parte localizada no status quo da “voz corrente

artística”, se já não pode se apoiar na aura da obra, tenta se voltar para a aura dos interesses

da literatura ou do gênio do indivíduo.

Mas o projeto vai além e, como os processos artísticos desses projetos de pós-

aura, ele mescla, por exemplo, a construção de um inventário poético plástico com a

projeção de um projeto de vida, ou, ainda, um abecedário com a questão do direito à

cidade, misturando ideia e desejo, forma e território. É a concretização da frase “arte

sempre produz coisas”. Esses processos de recriação poderiam se aproximar da ideia

deleuziana de dispositivos. Tornando-se, e tendo a potência de linhas de visibilidade,

enunciação, força, subjetivação, ruptura, fissura, fratura, tensão, clareamento, que ora se

entrecruzam, ora se misturam, e ora se afastam, de modo a reconfigurar e reoperar, através

de variações ou mesmo mutações de agenciamento.

45 Arthur Coleman Dant foi um filósofo e crítico de arte americano. Professor emérito de filosofia da

Universidade de Columbia (Nova York) desde 1951, ele é também crítico de arte da revista The Nation. 46 Ou em uma concepção do Agamben os profanando.

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Essas atividades artísticas, poéticas e literárias se tornam operações plásticas,

efetivas e concretas sobre o mundo. Em um dos casos, por exemplo, uma jovem negra

produziu um inventário/exposição sobre os homens brancos que namorou. Outra criou

um mapa-instalação com uma série de fotografias sobre as cicatrizes do seu corpo. Uma

terceira criou um inventário plástico sobre o seu cabelo (submetido nas impressões: da

moda, da “neura”, do preconceito e do orgulho). São experiências culturais, literárias,

filosóficas e cênicas. É o pôr em jogo o direito de pertencimento literário puramente

político e hegemônico como observamos no texto de Eduardo Coutinho:

Até recentemente, a obra literária era vista como uma espécie de “fato natural”

e os discursos que se erigiam sobre ela partiam dessa premissa: tratava-se de

um texto que em algum momento fora definido como literário. Agora, porém,

esse privilégio vem sendo posto em xeque, tornando problemático todo tipo de

estudo que o toma como ponto de partida. Para muitos estudiosos, não há

realidade em um discurso literário – a literatura é uma prática intersubjetiva

como muitas outras – e sua especificidade, ou melhor, sua “literalidade”, não

passa de uma construção elaborada por razões de ordem histórico-cultural. Do

mesmo modo, a “nação” e o “idioma”, que até então constituíam referenciais

seguros para a literatura comparada, hoje se revelam como constructos frágeis,

sem nenhuma base de sustentação. A primeira, dado originário que veio a

constituir-se como “literaturas nacionais”, contraponto fundamentalmente dos

estudos comparatistas, é agora vista como uma “comunidade imaginada”, com

o mesmo peso de outras calçadas em referenciais distintos, como língua, etnia

ou religião; e o segundo, responsável por conferir homogeneidade a um corpus,

que funcionou muitas vezes como construção datada, baseada em interesses

puramente políticos e hegemônicos (2010, p. 120).

Parece que as estruturas de construção textual propostas na metodologia ensaiam

a transformação dos afetos e experiência de vida em um estabelecimento de um novo

olhar sobre o mundo (ou a constituição e legitimação dele), regido pelas percepções sutis,

e não pela percepção grosseira e excludente (até porque é um olhar muito mais próximo).

São as inquietações sobre a atualização que as move em direção às próprias atualizações

artísticas. E, além de arte, é política e poder.

Nos projetos das Agências, isso é ainda mais concreto, com a juventude criando

ações sobre seus territórios que passam por invenções de grifes de moda, rádios

comunitárias, mostras de teatro, exposições e práticas de “artistas consagrados” e “artistas

dos territórios”. São invenções da realidade como forma de existir. É a concretização de

vínculos e a intensificação de encontros na perspectiva de habitar melhor o mundo,

mesmo que usando a estrutura do outro.47 Esse processo de reatar a atividade do corpo e

do intelecto com o mundo concreto pode ter outras intensidades e jogos diferentes das

47 Em relação a isso cabe notar que não é a estrutura o primordial e sim seu modo de significância.

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propostas originais das criações artísticas originais. Talvez se perca algo nesse entre, mas

perder coisas podem gerar outras (como estamos vendo), e uma dessas manifestações de

ganho é o de colocar no território afetos e potências, inventando ou recolocando a noção

de realidade e território. São novos agenciamentos, novos e possíveis, tecendo laços

afetivos dentro da contemporaneidade. É o uso dos seus objetos, músicas e lembranças

como obras de arte.

As noções de construir/desconstruir operada por essas práticas liga para públicos

à margem das possibilidades de produção de sentido e de presença a partir da mistura de

técnicas artísticas e objetos e lugares do cotidiano. É ainda o potencial da língua exposto

em comunidades imaginadas: “basicamente, a coisa mais importante quanto à língua é

sua capacidade de gerar comunidades imaginadas, efetivamente construindo

solidariedades particulares” (ANDERSEN, 1989, p. 189). É a construção-invenção da

realidade. É o pôr em xeque fronteiras levantadas sobre a arte e a representação de forma

sólida nessas temporalidades ambivalentes líquidas de nação-espaço. É o objeto

pedagógico, na qual os indivíduos trabalham construções de suas narrativas, de forma

enunciativa presente, construídas na repetição e na reoperação e pulsação do sinal

original.

Assim se alarga o ponto do efêmero, incorporando a “vida” na “escrita” e a

“escrita” na “vida” através do engajar para não se deixar esquecer e para se colocar

presente, de forma a lembrar o que foi perdido ou ainda não mencionado. É o trazer da

presença pelo vetor do repetido, efêmero, precário e frágil. Pensando corpo, voz, palavra,

presença e subjetividades não como um ato retrospectivo, mas como um ato ampliado

para a cidade. Sem manter a ilusão da permanência e retenção do efêmero de maneira

aparentemente duradoura, tratando de habitar o mundo de uma forma assumidamente

efêmera e transitória, mas assumidamente com a posição da disputa do campo.

Esse diálogo com o evento, o acontecimento, a produção de presença e a partilha

de uma vivência sensível é muito mais do que um diálogo com a lógica da reprodução ou

da representação, tendo conteúdo que pode ser consumido e operado, centralizador e

canalizador de relações possíveis, relações diferenciadas que geram as suas

subjetividades no design do território. Tirando a arte dos espaços institucionais e

tornando-a ação, reação, encontro, tensão. É importante ressaltar como adendo que na

criação literária do Apalpe a culminância do conto era sempre precedida por uma

performance ou uma instalação, de modo a fisicalizar na cidade o direito à palavra.

De fato, o núcleo principal é o procedimento que, por suas ferramentas, cria

questionamentos que tecem relações sutis com sua própria vivência, que transforma a

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vontade de potência em vontade de aparência, e a aparência em fato, através de fatos

concretos experimentados, vivenciados e compartilhados.

Talvez, o que está em questão no pensamento dos direitos estéticos e nos

dispositivos artísticos não seja referente a sua originalidade nem se são técnicas de re-

enatment, ou “copia e cola” ou o uso do cover, mas como sua organização e manifestação

ajudam a criar condições para o reconhecimento dos conflitos reais e a ampliação da

potência na direção do que mais importa (neste ponto): o fortalecimento da democracia,

a superação das desigualdades e o reconhecimento e legitimação das diferenças através

de disputas nos campo da literatura, socioculturais e subjetividades marcadas pela

presença do indivíduo. Nota: frase que copie e colo e deixo aqui para encerrar este

trabalho:

Tudo o que fazemos/articulamos/propomos est diretamente ligado a nossa

forma de habitar o mundo, seja com a lógica de produtividade-execução, seja

com a de criação-invenção. Subverter concepções artísticas ou sobre arte é

subverter formas de habitar, subverter modos de vida. [...] A experiência

estética não se constitui a priori no ato de criação, cabendo ao artista dá-la ao

público no momento de execução da obra. Ela se dá em relação, no tempo

presente do aqui e agora, no encontro, considerando, ainda, que a potência

desse encontro será determinada pela capacidade de mobilização de afetos ali

investida (BARDAWIL, 2010, pp. 256-257).

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7 CARTOGRAFIA DE AFETOS E NARRATIVAS

A cartografia (do grego chartis = mapa e graphein = escrita) é a ciência que trata

da concepção, produção, difusão, utilização e estudo dos mapas. Historicamente, (como

vocábulo) foi pela primeira vez proposta pelo historiador português Manuel Francisco

Carvalhosa, segundo visconde de Santarém, numa carta datada de 8 de Dezembro de

1839, escrita em Paris e endereçada ao historiador brasileiro Francisco Adolfo de

Varnhagen, vindo a ser internacionalmente consagrada pelo uso. Das muitas definições

usadas na literatura, colocamos aqui a atualmente adaptada pela Associação Cartográfica

Internacional (ACI): “Conjunto dos estudos e operações científicas, técnicas e artísticas

que intervêm na elaboração dos mapas a partir dos resultados das observações diretas ou

da exploração da documentação, bem como da sua utilização”.

O objeto “mapa” pode ser conceituado como um tipo específico de desenho que

tem a função de demarcar um lugar (território) ou uma determinada porção do espaço

num dado momento, tendo como finalidade a de facilitar a nossa orientação nesse espaço

e aumentar o nosso conhecimento sobre ele. O mapa nos mostra uma área de um

determinado ângulo, ou seja, é uma imagem desse lugar visto de cima, do topo, numa

escala bem menor que a real – e muitas das vezes realizado de fora e para fora.

Os mapas também podem ser pensados como objetos estéticos, abertos por

diferentes métodos, conectáveis e modificáveis que se prestam a interpretações poéticas,

incorporam valores culturais e crenças políticas ao figurarem e reconfigurarem o espaço,

como definem Deleuze48 e Guattari:49

O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável,

reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser

rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado

por um indivíduo, um grupo, uma formação social (DELEUZE, 1995, p. 22).

48 Gilles Deleuze nasceu em 18 de janeiro de 1925 e é considerado um dos maiores filósofos do século

passado. Filho de uma família de classe média, passou a maior parte de sua vida em Paris (não gostava de

viajar). Deleuze estudou filosofia na Universidade de Sorbonne entre 1944 a 1948. Durante sua vida toda

foi professor, primeiro em liceus (até 1957) e depois em universidades como Lyon, Paris VIII e Vicennes. 49 Félix Guattari (Villeneuve-les-Sablons, Oise, 30 de Março de 1930 — Cour-Cheverny, 29 de agosto de

1992) foi um filósofo, psicanalista e militante revolucionário francês praticamente autodidata, que não

chegou a cumprir a burocracia de nenhum título universitário, produziu uma grande quantidade de textos e

que se relacionou de forma produtiva com muitas das figuras mais importantes das últimas três ou quatro

décadas. Militou política e ativamente tanto nas organizações tradicionais quanto na maioria das

alternativas importantes do seu tempo cronológico e foi criador de uma série de movimentos, fundador de

uma série de dispositivos políticos que tiveram um papel importantíssimo nas tentativas de transformação

do que é o mundo moderno e pós-moderno.

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Quando entendemos a cartografia como a experimentação do pensamento

ancorado no real, como a experiência entendida como um saber-fazer, isto é, um saber

que emerge do fazer (KASTRUP, 2010, p. 18), com base na construção do conhecimento

e da atenção que configura o campo perceptivo do processo em curso, podemos avançar

em seu sentido subjetivo também. O sentido da cartografia poética é o de

acompanhamento de percursos, aplicação em processos de produção, conexões de rede

ou rizomas. “A cartografia surge como um princípio do rizoma que atesta, no pensamento,

sua força performática, sua pragmática um princípio inteiramente voltado para uma

experiência ancorada no real” (DELEUZE, 1995, p. 21). É dentro dessa perspectiva que

queremos experimentar o termo de cartografia para fazer um pequeno inventário.

Mapeando algumas experiências dramatúrgicas que cartografam os afetos e experiências

de existência em determinados territórios. Para tais, além do objeto propriamente dito, e

que queremos passar nesta dissertação por alguns dramaturgos e processos que ajudaram

na cartografia afetiva e de pertencimento em algumas comunidades do Rio de Janeiro.

São eles Luís Paulo Correa da Rocha, Verissimo Junior e o Apalpe, de Marcus Vinicius

Faustini. Dramaturgos e escritores estes que são bons exemplos de artistas que dispensam

a mediação. São membros, oriundos e trabalhadores destes territórios e que irão de certa

forma gerar falas como as de Heloisa Buarque de Holanda “A periferia não precisa mais

de mediação. Os intelectuais estão todos desempregados. Eles estão dispensados”.

(Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0405200511.htm). A despeito da

apropriação (ou tomada) de voz por estes sujeitos destes territórios. Abaixo segue a

cartografia de alguns desses sujeitos.

Luís Paulo Corrêa e Castro,50 dramaturgo do grupo de teatro Nós do Morro,

sediado no Vidigal, favela da Zona Sul carioca cravada num morro à beira-mar entre o

Leblon e São Conrado. É talvez o nome mais tradicional dessa dramaturgia dita “de

comunidade” (até pelo fator tempo, sua peça Biroska estreou pelo Nós do Morro em

1989). Cabe notar que Luís Paulo rejeita a noção de “comunidade”. Afirma ele: “Essa

coisa de fortalecer a comunidade”, diz, é reação ao “segurança de shopping que olha feio”,

às “senhoras que puxam a bolsa de lado”. Ele diz que seu trabalho principal é o de unificar

a cidade, que já existem territórios demais e o importante seria liquidá-los, que a

dramaturgia do Nós do Morro não é a da cidade partida, e sim a da cidade para todos, de

um teatro que não seja o do social, mas sim o da qualidade artística.

50 Oriundo da comunidade e principal dramaturgo do “Nós do Morro”

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Mas, contrariando um pouco a si mesmo, a favela é um de seus personagens

principais, com as figuras que habitam esse universo. Para tal demonstração, usaremos

três textos desse autor que, no fundo, tratam do mesmo assunto: a própria comunidade, a

vida na favela e seus personagens. Embora os textos tomem caminhos diferentes, tenham

abordagens próprias e se dirijam a públicos distintos – É proibido brincar é uma peça

infantil, Abalou se destina ao público adolescente e Noites do Vidigal apresenta uma

temática adulta –, as três peças trazem a discussão para a favela, não apenas como cenário,

mas quase como o epicentro das questões, como palco e personagem – tendo seus

personagens e suas prosódias como centralidades na narrativa.

É proibido brincar é um texto que traz como características principais a

originalidade e a irreverência em cima do jogo e do universo lúdico – embora, por vezes,

essa irreverência assuma o primeiro plano e atrapalhe, para alguns críticos, a compreensão

da peça como texto dramatúrgico, ou melhor, para o esforço dramatúrgico que há no texto

(abrindo a brecha, é claro, de se entender a dramaturgia além do texto). A narrativa brinca

com a ficção científica e se passa no Rio de Janeiro, na favela do Vidigal, no século XXI

e, através de uma analogia, a peça discute as relações do capital e do poder na cidade: o

Governador, vilão da peça, é um tirano que domina a cidade e obriga os cidadãos a

trabalharem incessantemente. A meta é produzir cada vez mais, e o Governador não

poupa esforços ou sacrifícios da população para alcançá-la. Mesmo menores de idade são

forçados a trabalhar como adultos. As crianças que não aceitam o trabalho pesado e que

se recusam a parar de brincar organizam focos rebeldes nos morros. São protagonistas da

peça, conduzem a ação.

A relação com a mídia é trazida logo à tona no início da peça: um informe

extraordinário da televisão – uma declaração do Governador, que, aproveitando o

aniversário do pacotão que acabou com os feriados e as brincadeiras na cidade, resolve

extinguir o natal. Essa medida extra revoltou ainda mais as crianças, que já eram

obrigadas a trabalhar em jornada integral, proibidas de brincar, e que agora sequer tinham

direito ao feriado de natal. A narrativa prossegue criando um grande imbróglio, no qual

entra um disco voador, que pousa no morro com seus extraterrestres, um grupo de

crianças rebeldes do morro do Salgueiro, os assistentes trapalhões do Governador, uma

baleia e seu filhote, que surgem na praia do Vidigal, além dos rebeldes locais e da avó de

um deles, Sinhá Tiana. O final, claro, é feliz. Depois de muitas confusões, o Governador

é obrigado a se arrepender e revogar todas as medidas desumanas, e os extraterrestres

voltam a seu planeta com o segredo da felicidade que aprenderam com as crianças, agora

livres para brincar em paz.

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O que impressiona, observando a encenação, é o fato de um texto intrincado, com

um discurso político-social contundente, se mostrar interessante para as crianças,

conseguindo prender sua atenção. Outro ponto de interesse é o fato de tratar de temas que

perpassam interesses econômicos e sociais com uma boa dose de alegria.

Nesse texto podem ser notados alguns traços característicos da obra de Luís Paulo

Corrêa e Castro. O primeiro e mais evidente é o que já foi dito: a leveza para tratar de

problemas imanentes da realidade. O segundo é a presença constante de um diálogo com

a tradição, com a memória e o pertencimento. O autor costuma introduzir isso de forma

arquetípica em um personagem que simboliza o habitante tradicional da “favela”. Sinhá

Tiana é a representante dessa categoria em É proibido brincar, desde seu nome, que

denota um exemplo de prosódia caraterística, até em suas ações, falas, vocabulário e

pronúncia. Sua relação com as crianças é intensa e lembra muito a avó desses espaços

abertos de muitas pessoas. Ela briga e brinca, e embora sua tendência seja de educar

segundo a ordem vigente – reclama das crianças que brincam, é proibido –, ela não hesita

quando os rebeldes resolvem invadir o palácio, e não só os acompanha como os representa

(em uma cena, ela dialoga com o vigia do palácio). E quando, por ocasião de uma

dificuldade intransponível, é através da mandinga de Sinhá Tiana que as crianças

conseguem trazer de volta a nave espacial sequestrada pelo Governador. Aí entra um

outro braço da tradição, o das religiões afro-brasileiras dos ancestrais, a macumba, o

candomblé, a umbanda, religiões que são apresentadas em seus rituais, gestos e palavras

sagradas, transmitindo, assim, aquela tradição.

A peça Noites do Vidigal traz um personagem análogo à Sinhá Tiana: Dona

Feliciana, apresentada no texto como a moradora mais antiga do morro (lembrando que

o pertencimento à tradição é elemento fundamental da estrutura dramatúrgica de Luís

Paulo). Ela se choca com as transformações pelas quais passa a favela, e tem saudades

dos “bons tempos” (é importante frisar a percepção da fala na dramaturgia até nos

pequenos sinais). Lembra de vários personagens marcantes do Vidigal, conta histórias,

canta. Compõe de forma dialética com o seu irmão, o malandro Tio Mário a estruturação

da tradição. Dona Feliciana, assim como Sinhá Tiana, é depositária das tradições, tanto

das profanas e festivas quanto das religiosas. Ela é a dona do terreiro, a mãe de santo a

quem recorre Cícero quando está mais desesperado. Outro ponto que volta é que, assim

como É proibido brincar, Noites do Vidigal, trata do passado, do pertencimento, sendo

uma peça de época. Porém, aqui se trata de um passado recente, o início dos anos 1980.

A trama gira em torno do universo da escola de samba Acadêmicos do Vidigal, que

chegou a desfilar no segundo grupo na Marquês de Sapucaí, mas foi extinta há quase vinte

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anos. Os dois personagens principais, o mestre-sala Tião e a porta-bandeira Aparecida,

são casados e têm problemas de relacionamento. Tião é cegamente apaixonado por

Aparecida, que está cansada do ciúme doentio do marido e de sua devoção à escola.

Aparecida é uma mulher belíssima e vaidosa, que ambiciona melhorar de vida e sair da

favela. Tião, muito querido pela comunidade, vive feliz no morro. A outra ponta do

triângulo é Candonga, dono da birosca e compositor da escola. Candonga é um malandro

da nova geração – em contraste com o malandro clássico, Tio Mário –, personagem que

se assemelha aos sambistas que enriqueceram com o crescimento das escolas de samba e

a consolidação da “era industrial” do carnaval carioca.

A peça se inicia com a cena da morte de Tião, assassinado após uma confusão na

favela. Não se sabe quem o matou. É a véspera do desfile da escola, o primeiro que faria

na Sapucaí. A confusão começa com uma briga causada pelo mestre-sala, enciumado com

as gentilezas que Candonga dedicava à sua esposa. No meio da briga, chega a polícia,

perseguindo Amarildo (quase um exercício de futurologia com os dias atuais), jovem

malandro irmão de Tião. Todos correm, há uma perseguição, ouve-se um tiro, e Tião cai

morto. A peça então recorre a um flashback e traz a narrativa de volta para a antevéspera

da morte de Tião. Os preparativos para o desfile, a expectativa, a composição do samba-

enredo, detalhes da confecção das fantasias, os ensaios da escola. Em meio a essa

atmosfera, os personagens são apresentados e desenvolvem suas pequenas tramas. Eles

compõem uma espécie de painel humano da favela. O malandro clássico, Tio Mário, faz

parte do núcleo da velha guarda da escola, junto com o compositor Matusalém, o néscio

Jurandir, o barbeiro Ernesto e o dono da birosca e também compositor Candonga. O

nordestino Cícero faz parte dessa turma, embora seja um trabalhador convicto. É o

contraponto de Mário, malandro que jamais trabalhou. Cícero é casado com Gonçalina e

pai de Ciça. Um dos eixos da trama se inicia quando Cícero resolve comprar uma

televisão, o que muda os hábitos de sua casa. A começar pelas visitas que aparecem na

janela apenas para ver televisão. E, depois, a própria esposa, Gonçalina, se torna de tal

maneira viciada em TV que para de comer, tomar banho e dormir, fica o tempo todo

grudada no aparelho. Cícero se desespera, pois a mulher deixa de cozinhar para ele e sua

filha Ciça, até que resolve levar a esposa ao congá de Dona Feliciana, que lhe “dá uns

passes” e resolve o problema. Mas depois que voltam para casa, o vício continua. A

questão da relação com a televisão é um dos temas recorrentes nos textos de Luís Paulo.

Em todos os três textos estudados há pelo menos uma menção à televisão. Em É proibido

brincar, o Governador distrai e aprisiona os extraterrestres, levando-os para a sala de

“supervídeo” do palácio, submetendo-os às “novelas de fábrica” e ao “Trabalhadores

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Park”. Em outra cena, o líder rebelde Pé de Arraia diz ter quebrado a TV de sua casa com

uma “pedrada bem certeira”, depois de um diálogo sobre os efeitos da programação sobre

crianças pequenas:

SAYONARA – Para de gritar, menino! Parece até que viu mula sem cabeça.

BARBARELA – Fica vendo aqueles troços na televisão e fica assim todo

agitado.

PÉ DE ARRAIA – Ainda bem que a televisão lá de casa eu quebrei com uma

pedrada bem certeira.

ZERO – É, mas a tua avó te deu a maior surra por causa disso.

PÉ DE ARRAIA – Mas, pelo menos, acabou aquela chateação de novela de

fábrica: “Querida, hoje estou muito mais feliz que ontem. Fiz mais oito horas

extras e produzi mais quatro rádios de pilha. Posso te dar um beijinho?”.

SAYONARA (continua imitando a novela) – “Oh, meu bem, não é fantástico?

Cada dia meu amor pelo trabalho aumenta mais por causa dessas coisas. É

claro que você pode me dar um beijinho. Você me ama realmente?”.

PÉ DE ARRAIA – “É claro, meu amor. Depois da fábrica, das linhas de

produção, do setor de expedição, e do faturamento das mercadorias, você é a

coisa que eu mais amo neste mundo” (É proibido brincar, pp. 13-14).

Em Noites do Vidigal, há uma cena quase idêntica a essa, quando os personagens

Amarildo e Ciça parodiam uma cena amorosa típica das telenovelas. Mas a presença da

TV nessa peça vai além: ela é personagem, é uma das questões centrais. Um momento

crucial do texto é a chegada de uma equipe de televisão ao morro para fazer um

documentário. E aí se revela o choque cultural entre favela e asfalto, a desconfiança inicial

do pessoal do morro, rapidamente esquecida com uma rodada de cerveja, e surge a

questão tão discutida hoje em dia, a exploração da miséria por parte dos meios de

comunicação de massa. No espetáculo, a TV tinha tal força que o desfecho da peça, a

cena da perseguição e morte de Tião, era exibido num vídeo em seis televisões

distribuídas pelo teatro. O ensaio geral da escola de samba, que acontece na última cena,

tinha transmissão direta para esses mesmos monitores, pela câmera da equipe de TV2.

Em Abalou, a televisão deixa de ser uma questão central, e é apenas mencionada

em uma ou outra cena. Alguns personagens são citados, como Xuxa e Marlene Mattos,

por exemplo, mas a discussão não vai muito além disso. Abalou é definida por seu autor

como um musical funk. Aliás, é assim sub intitulada. É o único dos textos estudados que

tem como época o tempo presente, os dias de hoje. Escrita e encenada pela primeira vez

em 1997, a peça pode ser considerada premonitória, tal a precisão com que descreve a

explosão do funk que viria a acontecer dois a três anos depois. Na verdade, o fenômeno

que veio a acontecer no “asfalto” a partir do sucesso nacional do Bonde do Tigrão, em

2000/2001. Dentro do universo funk adolescente dos morros, descreve tipos curiosos,

como as irmãs evangélicas Esther e Cleuzeia, que frequentam o baile escondidas da mãe;

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a dupla de MCs Pilantra e Lagartão, o maior sucesso do Vidigal; o empresário

inescrupuloso Big Ben, que enriqueceu com a ascensão do funk, entre outros. No caso de

Abalou, a tradição é introduzida não através de um personagem, mas de um núcleo de

personagens. Curiosamente, por um grupo de fantasmas, que observam e intervêm na

realidade dos vivos. A peça abre com as três figuras em cena, jogando baralho e bebendo

cerveja. Situação idêntica à da cena que abre Noites do Vidigal, muito embora nesta não

sejam fantasmas, mas os integrantes da velha guarda da escola de samba. Talvez a opção

do autor por fantasmas revele uma certa ironia, um humor cáustico, insinuando que as

tradições, diante da virulência das informações contemporâneas, sejam hoje apenas

espectros, pálidas sombras do que foram um dia. Ou, ainda, uma potencialização ainda

maior com a re-encenação da tradição, ao fazer uma espécie de referência a Shakespeare.

Apesar de a abertura da peça apresentá-los em cena, o texto só lhes dá a palavra na terceira

cena. Eis a rubrica que antecede sua cena: “Na birosca do céu, Ricardo, Eládio e

Waldemar jogam o carteado”. Enquanto jogam, Eládio e Waldemar – os dois mais antigos

– conversam sobre a situação atual e se queixam muito de um barulho terrível, uma

“zoeira dos seiscentos diabos”. Ricardo, fantasma de uma geração mais jovem, informa-

os que se trata de um baile. Era o baile funk. Os fantasmas resolvem visitar o baile. Aí se

arma a comédia. Eles acabam por interferir na trama e mudar o rumo dos acontecimentos.

Não se trata aqui de concentrar a tradição num só personagem, como em É proibido

brincar e Noites do Vidigal, nem de fazê-la redentora ou portadora de uma verdade

última, mas de acenar às coisas do passado de maneira quase memorialista (e negando a

fala inicial do autor uma cartografia de gestos e hábitos do território). Assim, Eládio e

Waldemar citam os bailes de antigamente, com salões de chão encerado e crooner, e as

orquestras Tabajara e do Maestro Cipó, enquanto Ricardo relembra seus bailes soul, com

funks de James Brown, músicas lentas etc. Esses personagens são análogos aos da velha

guarda de Noites do Vidigal e são movidos pelas mesmas paixões e vícios: bebida,

mulheres, música, jogos (em um jogo de tradição e contemporaneidade).

Outro elemento importante nos três textos de Luís Paulo Corrêa e Castro é o

jogo.51 É proibido brincar é uma peça toda construída sobre brincadeiras e jogos de

crianças, e sua proibição é uma questão central da narrativa. Em Abalou, além do carteado

dos fantasmas, são citados o jogo do bicho e o jogo de dados. Em Noites do Vidigal, há

até uma cena dedicada ao “sete-onze”, jogo de dados a dinheiro muito comum entre a

malandragem. O futebol também aparece em Noites do Vidigal, com citações relativas à

51 Cabe notar que boa parte da estrutura do Nós do Morro foi levantada inicialmente em uma espécie de

programa de auditório da favela.

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seleção brasileira que disputaria a Copa de 1982, e outras ao clássico Fla-Flu, que na gíria

dos malandros também significa flagrante.

Outra questão: a da relação do autor com o espetáculo, e seu resultado no texto.

Luís Paulo é presença constante nos ensaios, e frequentemente reescreve cenas, corta

outras, além de procurar os atores, a fim de esclarecê-los a respeito de cenas que considera

mal compreendidas. O alcance do autor de teatro vai além da mera produção do texto.

Uma das grandes qualidades de Abalou é essa, a boa utilização que faz do jargão

das galeras do funk. A “língua” funk, linguajar do qual o Brasil tomou conhecimento

depois da disseminação do estilo nas rádios e programas de TV nacionais. Termos como

“pancadão”, “shock”, “mulão”, “bolado”, “fui”, “demorou” e o próprio título da peça,

“abalou”, não apenas se referem ao universo funk, mas trazem todo um contexto

sociocultural que ali está representado. A trama é simples: dois MCs do Vidigal (Pilantra

e Lagartão) estouram nas paradas e enriquecem da noite para o dia, mesmo explorados

pelo empresário inescrupuloso; um outro MC, mais “cabeça”, luta para mostrar seus raps

“com substância” para o tal empresário (Big Ben); dois grupos de meninas rivais se

hostilizam; a menina mais interessante (Tininha), líder de um dos grupos, é apaixonada

pelo MC fracassado, que no final consegue mostrar seu talento e alcança o sucesso, com

a ajuda de Tininha e a intervenção dos fantasmas nostálgicos. Mas não é apenas o enredo

que sustenta a peça. A sua força de comunicação, a sua potência é a facilidade de

reconhecimento do universo criado aqui, a capacidade dessa representação criar uma

identificação imediata do público com a favela que vê em cena. Os números musicais, tal

como em Noites do Vidigal, são um ponto alto do espetáculo. A linguagem realista da

encenação identifica para o espectador as cenas de baile com o próprio baile, apesar da

multidão que constitui o público de um baile funk ser condensado no espetáculo por uma

dúzia de atores.

Outro “dramaturgo” que merece ser citado aqui é Verissimo Junior, dramaturgo e

diretor do Grupo Teatro da Laje. Formado por moradores da Vila Cruzeiro, o grupo

promove um diálogo entre as manifestações culturais e as práticas cotidianas das favelas

cariocas com elementos da dramaturgia universal, mostrando a contribuição desses

enlaces para o teatro contemporâneo. É novamente um grupo de comunidade que não está

fazendo teatro amador, mas está reinventando o modo de fazer e produzir teatro.

Geralmente os textos dos espetáculos produzidos surgem através de improviso feito pelos

atores e a partir de algumas direções dadas. Traz também o traço da hibridização com

obras clássicas como base para a estrutura do espetáculo. O último espetáculo utilizou a

Bíblia, mais especificamente o livro de Êxodo, para estabelecer uma analogia entre a saga

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do povo hebreu à procura da terra prometida, Canaã, com a do povo da Vila Cruzeiro à

procura da sua terra prometida, Ipanema – e os percursos e dificuldades em cada uma

delas.

Além desses estudos com a Bíblia, o grupo iniciou uma pesquisa pela Vila

Cruzeiro, entrevistando os moradores e colhendo materiais (engraçados, constrangedores,

tristes etc.), que se tornaram base para a construção da dramaturgia. Teatro este que vem

do traço da dramaturgia que colhe com o morador suas histórias e memórias e depois

volta para ele, transformado em material cênico- e que faz com que no grupo existia “uma

sensação de gosto de ver vários moradores se sentindo representados, se identificando e

se divertindo com essas histórias, que eram um pouco constrangedoras”. E o espetáculo

como uma “arma”, para problematizar essa questão social.

Um questionamento importante que sempre fizemos nesta dissertação – qual a

interferência dos atores e do local na dramaturgia? – poderia ser respondido com o fato

de todos os atores morarem na comunidade Vila Cruzeiro facilitar a montagem da

dramaturgia. As experiências do cotidiano trazem uma identidade que potencializa na

hora da montagem do espetáculo. Morar no local facilita a conversa entre ator e plateia,

já que os atores fazem o mesmo percurso e vivem as mesmas experiências. E assim surgia

um sentimento de representação e de dupla troca entre público e atores (uma diferença

fundamental que existe entre os grupos analisados é esse vínculo fundamental para a

história desses grupos). O público da Vila Cruzeiro (como também é o caso do Nós do

Morro forma a nossa mais fiel plateia). O público sempre prestigia e irradia energia. Em

conversas e depoimentos, essas reações estão à margem do público tradicional, é antes

um público que prestigia e participa.

Para exemplificar essa análise, poderíamos observar ainda no espetáculo A viagem

da Vila Cruzeiro à Canaã de Ipanema numa página de Facebook, do próprio grupo. Esse

espetáculo conta a saga de um grupo de jovens moradores de uma favela da Zona Norte

do Rio de Janeiro para encontrar uma faixa de areia onde possam ficar num sábado de

sol. Em sua jornada, o grupo enfrenta uma situação surreal: a interdição de todas as praias

aonde chegam por motivos diversos: algumas estão reservadas para a final de

campeonatos esportivos, outras são áreas privativas de hotéis de luxo, outras, ainda, são

destinadas à prática de naturismo etc. Durante o périplo, um dos integrantes do grupo

narra os acontecimentos à medida que os registra em fotos que comporão o álbum de sua

página no Facebook e imagina legendas que assemelham a situação do grupo a dos

hebreus peregrinando pelo deserto, após a saída do Egito, em busca da terra prometida.

A construção do espetáculo partiu de um conceito central: o direito à cidade. O paralelo

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entre a situação do grupo que protagoniza a peça e a do povo hebreu, narrada no livro

bíblico do Êxodo, busca, por um lado, recuperar o caráter parodístico e jocoso da cultura

popular e, por outro, conferir ao acontecimento narrado na peça um caráter histórico e

épico.

A música tem um dos papeis mais importantes nos espetáculos. Em vários, é

utilizada tanto na construção propriamente de cenas como para dar nuances no espetáculo.

Não ficam apenas como plano de fundo. Elas comentam, elas contam histórias, elas fazem

parte desse jogo teatral. Um exemplo que pode ser dado é a trilha sonora do filme Os dez

mandamentos (clássico de Elmer Bernstein). No filme, a música marca a peregrinação

dos israelistas até Canaã; na peça, ela é inserida para marcar a peregrinação do grupo de

amigos até a tão sonhada praia. Esse método de inserção da música é utilizado em vários

outros momentos, como quando no final do espetáculo, já cansados de buscar o seu lugar

ao sol, o grupo de amigos canta o clássico de Roberto Carlos, Detalhes, de maneira

descontraída, para mandar um recado para aqueles que pensaram terem finalmente

conseguido os expulsar. “Não adianta nem tentar me esquecer / Durante muito tempo em

sua vida eu vou viver!”.

A narrativa do espetáculo é fragmentada e composta de episódios independentes,

cada um representando uma faixa de areia visitada pelo grupo. As fotos que vão sendo

tiradas ao longo do espetáculo servem, igualmente, para pontuar e enquadrar os episódios.

A impossibilidade de permanência numa praia e a consequente partida para outra

funcionam como ganchos a unirem esses diversos quadros, que, no entanto, possuem

valor próprio e se bastam. O espetáculo tem caráter polifônico e polissêmico, à medida

que os vários elementos cênicos (narrativa, música, dança, objetos, figurinos) aparecem

com voz e significados próprios para narrar a sequência dos acontecimentos, e não apenas

como apoiadores ou meros coadjuvantes do texto. As possibilidades expressivas de cada

um desses elementos foram buscadas e investigadas exaustivamente. Na busca da mais

ampla liberdade de criação, o grupo partiu do pensamento da filósofa Marilena Chaui,

para quem “a realidade criada não está aquém nem além da obra, assim como não está na

obra, mas é a própria obra de arte”. Assim, a realidade com a qual e sobre a qual interessou

trabalhar foi a realidade concreta do espaço cênico e de tudo o que o povoa, sobretudo o

corpo do ator. A confrontação do teatro com as novas mídias, como os sites de

relacionamento, que funcionam como espaços de convivência e sociabilidade da

juventude, ocorre de forma a escapar, por um lado, da ideia simplista e reducionista que

nega a importância dessas novas tecnologias e, por outro, do formalismo que pensa sua

incorporação pelo teatro como um fim em si. Buscando superar esse falso dilema, o grupo

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propõe um diálogo entre o teatro e essas novas formas de expressão de maneira ativa,

afirmando, por contraste, o caráter artesanal e a condição de um dos últimos redutos de

certos traços de humanidade, à medida que prioriza a presença do ator como principal

elemento mediador desse diálogo.

Em um texto enviado pela internet pelo membro do grupo Hugo Bernado a esta

pesquisa, e assinado pelo grupo existe a seguinte afirmação:

A importância de ter um professor como o Verissimo é incalculável. O

Verissimo sonhou com o projeto do grupo e, mais que sonhar, ele trabalhou e

correu atrás para a realização do mesmo. Além de idealizador do grupo, o

Verissimo foi produtor, divulgador, formador de plateia, sonoplasta, ator,

diretor, pintor... Verissimo foi contrarregra, voz política, dinamizador,

dramaturgo, elaborador de projetos e mil outras funções. Verissimo é a cabeça

do grupo. Não só no sentido de ser o membro pensante, mas também por ter

características como os olhos de criação, boca orientadora e ouvidos sempre

atentos para cada sugestão nossa. Verissimo trouxe sua bagagem universitária,

trouxe sua vivência na área teatral e dividiu sem restrições com a gente. Ele

costumava usar uma metáfora na qual nós éramos uma tribo e, se cada membro

dessa tribo fizesse uma atividade diferente, iríamos ter um saldo muito positivo

e com bastante diversidade. E o que temos a dizer é que nessa tribo nós tivemos

o melhor dos caciques. E esse cacique foi mais do que um líder, esse cacique

foi um pai, um alguém que nos ensinou mais do que artes cênicas. Ensinou-

nos a vida, nos ensinou a crescer como pessoa. E, por mais clichê que possa

parecer essa frase, ela é real. Tudo o que o grupo Teatro da Laje é hoje em dia

é graças à liderança do Verissimo. Ele tem uma parcela inenarrável em relação

à nossa formação como indivíduo. O Verissimo é o maior influenciador e

realizador dessa história. Não só da história da Laje, mas da história de cada

ator (texto enviado à pesquisa).

Isso revela uma trajetória muito próxima de alguns teatros teoricamente

denominados como aplicados, no desenvolvimento de um teatro através de um líder que

traz as boas práticas, notando, é claro, que esse teatro não se resumia à questão da arte em

si, mas abrangia diversos de seus aspectos vinculados à produção concreta (como

formação de plateia e distribuição).

A experiência do Apalpe é ainda mais concreta no sentido de reconhecer o

território e produzir a partir dele. Em uma experiência dos anos 2010, Marcus Vinicius

Faustini resolveu (em suas palavras) esgarçar o seu livro Guia afetivo da periferia. Esse

livro é um livro de passagens sobre diversos territórios físicos e psicológicos do autor,

sobretudo em Santa Cruz, entremeado por ficção. Após pensar sobre os dispositivos que

lhe permitiram estruturar o seu livro, ele resolveu expandir a sua ideia através de oficinas

de escritas literárias com jovens de diversos territórios da cidade do Rio de Janeiro,

articuladas em parceria com a professora Heloisa Buarque de Holanda. Na palavra dos

dois sobre o que é o Apalpe:

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O Apalpe tem um significado diferente para cada um de nós dois. Eu sou uma

professora de literatura crente na palavra. Acredito piamente na palavra. A

palavra é uma carta de alforria. Sabendo lidar com ela, uma pessoa é livre e

poderosa. O Apalpe, para mim, é sobretudo escrita, não é tanto memória. É

mais o exercício da palavra em relação à experiência de cada um. Mas não é

qualquer palavra. É uma palavra que vai ser muito trabalhada. Vamos fazer

oficinas, palestras, grupos de motivação; vamos dar todos os recursos para as

pessoas fazerem um uso competente da palavra. Quando a pessoa conquista a

palavra, conquista o mundo (Heloísa Buarque de Hollanda).

O Apalpe é uma tentativa de criar uma relação com as palavras na cidade

plasticamente. É a palavra como estética, que se reconhece. O Apalpe é um

projeto-ação designer para se relacionar com a cidade e com as pessoas a partir

da palavra. Quem vai procurar o Apalpe é quem quer expressar a existência. O

Apalpe é o lugar do encontro, aonde a cidade se encontra. Queremos reunir

pessoas de diferentes lugares da região metropolitana do Rio de Janeiro

(Marcus Vinicius Faustini. Disponível em:

http://apalpe.wordpress.com/2010/06/22/apalpe-apresentada-por-seus-

coordenadores/. Acesso em: 20/10/2014).

A estratégia disposta era selecionar agentes interessados no enlaçamento da

palavra com a cidade e fazer um looping de dez semanas que terminasse com uma

intervenção literária na cidade. Os contos seriam estendidos em sua possibilidade de

distribuição. Distribuídos na internet, pertencentes a uma revista e fisicalizados em

performances e intervenções na cidade. A ideia era articular realização, construção e

intervenção de forma que o popular falasse do próprio popular (ou, parafraseando Sartre,

de forma que as bocas falassem por elas mesmas, ou, ainda, as mãos escrevessem por elas

mesmas).

Dessas oficinas foi criado um material que fica no entre da palavra e do direito à

memória. É uma memória que reaviva o presente e interfere na disputa da existência. O

orgulho por ser e nomear influencia na percepção do território, como vemos no início do

conto produzido por Cristina Hare (uma das participantes das oficinas):

Eu dizia que morava em Madureira e, se muito íntimo, eu confessaria que era

em Cascadura. Mas, na verdade, eu morava mesmo era em Engenheiro Leal.

Engenheiro Leal é o nome do bairro onde passei a maior parte da minha vida,

e que fica espremido entre Madureira, Cascadura e Cavalcanti. A linha auxiliar

de trem divide a minha rua ao meio e atravessá-la implicava risco evidente,

não só porque não havia passarela, mas também pela possibilidade de

descoberta de outros mundos e histórias.

Quando George Orwell criou, no 1984, o conceito de novilíngua, isto é, a

modificação ordenada e sistêmica da gramática e do léxico para impossibilitar certos

pensamentos, ele apenas identificava algo comum: a língua é um campo de batalha

político-ideológico. Nesse campo de batalha, a vitória é a extinção de um conceito avesso

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a seus interesses. Assim, quando se vence, alija-se o adversário da possibilidade de dizer

o que pensa, visto que não há mais palavra que defina tal coisa. A possibilidade de nomear

o seu espaço e poder inseri-lo como dignidade simbólica no espaço físico concreto é um

dos gestos importantes da criação teatral popular. Toda vez que um grupo de comunidade,

um escritor popular (ou até mesmo um de fora da comunidade) nomear algo que não tenha

sido nomeado, ele traz à existência a possibilidade de se reconhecimento daquilo. Muitas

das vezes essas escritas estão no além-drama ou no além-romance. São escritas estéticas

mescladas com o poder de serem dispositivos. É a forma de reconhecer e afirmar como

direito certa possibilidade de prosódia, de habitat (em mais uma das noções de Bourdieu),

e até de reconhecimento do espaço físico.

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8 O DIREITO À MEMÓRIA E AO PERTENCIMENTO

Uma das disputas primordiais travadas neste dissertação é como a questão estética

tem possibilidade de interferir na “realidade” social e econômica, ou como diz o título

como a palavra pode gerar interferência na existência e na disputa pelo pertencimento e

memória. Para tanto, os dramaturgos, citados, muitas das vezes trabalham em processos

que beiram o colaborativo observando fala prosódia e construção física ou se debruçam

sobre os processos de vivência ou da coleta de história oral para demonstrar a potência

dos seus territórios. Articulam vivência e desejo em material estético de forma a reoperar

e reconstruir a percepção da realidade. Processos estes que põem como narrativa desde

o “seu lugar” até a si próprio.

8.1 A HISTÓRIA DO LUGAR COMO CENTRO DA NARRATIVA

A cidade é o lugar das pessoas. A cidade é o todo, e não uma parte. Considerar a

periferia parte integrante desta cidade é a síntese do trabalho da Cia. Última Estação.

Ademir Lago

Iniciamos este projeto com indagações como “como um texto pode dialogar com

seu território de forma a expressar em suas palavras os contatos e interações existentes

em uma comunidade? Como a forma das palavras pode ser um dispositivo que transforme

o desejo de aparência e existência em forma dramática?” e, afirmando que tínhamos como

desejo mostrar “esse espaço de partilha do sensível e agenda de desejos”. Neste capitulo

vamos observar como isso se desenvolve através do histórico do Coletivo Última Estação

(Santa Cruz).

O grupo surgiu do encontro de amigos principalmente oriundos de um projeto do

então Reperiferia,52 chamado Escola Livre de Teatro (ELT) e de oficinas de teatro da

Lona Cultural de Santa Cruz. O Reperiferia também contava com um outro projeto, que

era a Escola Livre de Cinema. Esta escola tinha uma ação metodológica denominada

“catadores de imagens”, que consistia na captura de imagens do cotidiano, inventários de

52 Projeto que tinha como principal premissa repensar as iniciativas artísticas da periferia e da região

metropolitana do Rio de Janeiro.

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hábitos locais e imagens que os representassem. Dessa união de amizade e inciativas

surgiu o coletivo.

O primeiro trabalho do coletivo foi o espetáculo de curta duração53 Nove filhos,

que nasceu para homenagear a moradora já falecida Izabel Mendes da Costa, que criou

seus nove filhos e virou referência na comunidade. Através de uma série de entrevistas

com a comunidade (principalmente com a família) e de memórias dos próprios atores e

autores, o espetáculo contava com nove personagens e seus conflitos e expectativas.

Depois do falecimento da mãe, aos 98 anos, os filhos não sabiam o que fazer, gerando

confusão e divertimento para o público. O espetáculo fez diversas apresentações, com um

bom número de público na Lona Cultural de Santa Cruz, durante março e abril de 2008.

Mediante o sucesso do primeiro trabalho e da expectativa de retratarem mais

histórias de pessoas do conjunto, surgiu o segundo trabalho: A Horta de Hortega. O

coletivo trouxe à história do morador Paulo Roberto Horta Hortega, um senhor, pai e avô

de família, louco por filmes de ficção e heróis, que tudo que ocorria em sua vida era

motivo para fantasias. O espetáculo estreou em 22 de junho de 2008 e ficou em cartaz até

o fim do mesmo mês.

O terceiro espetáculo foi Do outro lado da serra, que contou a história de Silvana

Maria da Silva, mulher que teve doze filhos e foi removida de uma favela no Recreio dos

Bandeirantes,54 bairro de classe média alta, para morar no conjunto Guandu, conjunto

habitacional recém-construído na época, onde não havia luz nem asfalto, no bairro de

Santa Cruz. O espetáculo mostrava a inadequação e o descobrimento do lugar. O

espetáculo teve sua estreia no dia 7 de novembro de 2008 e ficou em cartaz até o fim do

ano. O grupo considera esse espetáculo o responsável pelo contemplamento em edital do

Governo do Estado do Rio de Janeiro em 2009. O espetáculo também foi reapresentado

em abril de 2011, pelo projeto Cena Oeste, no Teatro Arthur Azevedo, em Campo Grande.

Depois dessas iniciativas, e com o sucesso de público, o grupo, pela demanda da

comunidade e pelo desejo de ampliar o seu trabalho, lançou uma nova iniciativa, o

Produto Vagão – oficina que nasceu graças à procura de pessoas da comunidade pelo

teatro. A primeira das peças vinculadas a essa iniciativa veio logo e contou a história

mitológica dos doze trabalhos de Hércules, ligada à história de um menino, morador da

Comunidade de Antares, que vendia ovo – já começava a latejar na dramaturgia do grupo

53 Esse formato de 15 a 30 minutos daria a tônica dos trabalhos apresentados principalmente na Lona

Cultural. 54 Cabe notar aqui a grande questão hierárquica que existe no espaço urbano do Rio de Janeiro, até mesmo

perante a favela.

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a mistura e hibridização com o clássico. Teve sua estreia dia 24 de abril de 2009 e ficou

em cartaz até o mês de maio.

Com as oficinas bem encaminhadas e as histórias de curta duração fazendo

sucesso na comunidade, o coletivo ganhou um edital do estado com o Projeto Guandu –

no caminho de um rio. Guandu55 é rio que corta a comunidade e foi modificado ao longo

do tempo. Esse espetáculo contava a história de seis moradores do conjunto Guandu, e

sua transformação desde sua invasão, em 1994. O espetáculo estreou dia 18 de julho de

2009 e ficou em cartaz até outubro, fazendo um circuito de Lonas Culturais por toda a

cidade do Rio de Janeiro.

Paralelamente, o Produto Vagão realizava seu segundo trabalho, Nós, os cantores

do rádio, que contava a trajetória do rádio brasileiro desde sua criação em 1922 até os

dias de hoje, e como a música influencia e se propaga em uma comunidade. A dramaturgia

era uma tentativa de costurar a história real do rádio mediante a história de uma família,

“a história da fictícia Rádio Corcovado”, que foi à falência devido à popularização das

rádios. Na rádio, ocorre um assassinato da dona do prédio onde se encontra instalada a

rádio, movimentando o caráter dos personagens e a mente do público, a fim de adivinhar,

no fim do espetáculo, quem havia assassinado a personagem Valentina. Estreou em 4 de

fevereiro de 2010, fazendo depois uma temporada de carnaval.

Logo em seguida, veio Medeias XXIII, terceiro trabalho do Produto Vagão,

baseado na história do épico Medeia, contada de uma forma simplificada em apenas 23

minutos. O espetáculo foi apresentado na Casa de Cultura Ser Cidadão.

Depois disso, chegava a gestação do maior projeto do grupo e que novamente foi

premiado por um edital do governo estadual: Oh! Menino.

55 O rio Guandu, de pequeno porte em condições naturais, se tornou bastante caudaloso após a transposição

das águas do rio Paraíba do Sul, sendo primeiramente usado para a produção de energia elétrica pela

empresa Light Serviços de Eletricidade e para uso industrial. Hoje, é voltado principalmente para o

abastecimento de água da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Sua água abastece cerca de 80% da

população do Rio de Janeiro. Suas nascentes localizam-se na Serra do Mar, em diversos municípios. Alguns

riachos se unem na represa de Ribeirão das Lajes, um dos formadores do rio Guandu, que é importante para

a regulação da vazão. No complexo de Lajes (da Light), recebe as águas do rio Paraíba do Sul através de

uma transposição em Barra do Piraí pela estação elevatória de Santa Cecília. Entre Paracambi e Japeri, o

Ribeirão das Lajes recebe as águas do rio Santana, passando finalmente a denominar-se rio Guandu. Depois

disso, recebe ainda as águas dos poluídos rios de Queimados, como o Abel e os Poços/Queimados, e os

córregos de Seropédica. No município de Nova Iguaçu, localiza-se a estação de tratamento de água (ETA)

do Guandu, considerada a maior do mundo, com uma vazão de até 47m³/s. Depois da estação de tratamento,

recebe as águas do rio Guandu-mirim e é dividido em vários canais na altura do bairro carioca de Santa

Cruz, sendo o principal deles o canal de São Francisco, que serve à importante zona industrial desse bairro,

em que se encontram a Companhia Siderúrgica da Guanabara (Cosigua) e a termelétrica de Santa Cruz,

terminando por desaguar na baía de Sepetiba.

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8.2 FALAR DE UM MENINO PARA FALAR DE SI PRÓPRIO

Nesse espetáculo, é possível dizer que as interações sociais e simbólicas como

fonte produtora de conteúdo artístico se manifestam desde a criação do título: Oh!

Menino. O texto não se denomina “O menino”; se assim fosse, ele poderia se propor a

analisar o arquétipo de um menino ou almejar sua representação. A proposição da

colocação de um “Oh” (pronunciado com certa exclamação), em vez de um “O” (simples)

ou “O:” (ou que nos remetesse a uma apresentação de um sujeito específico) nos remete

à interferência no título, uma forma de invocação e chamamento. Tal forma é usada por

mães para chamar o seu filho para retornar a casa em ruas de comunidades. Explicitando

que não é para especificar alguém, mas sim a relação e o espaço.

O texto apresenta em seu início uma grande didascália de duas páginas que traz

uma sinopse/mote da história, ao mesmo tempo em que traz algumas das reações,

recomendações e dedicatórias por parte do diretor. É uma didascália que não se remete à

questão apenas da “dramatúrgica tradicional”, mas a componentes humanos e afetivos

que estão juntos da sua produção, como a relação com o grupo, a possibilidade de

financiamento ou, ainda, o estágio de vida de cada um. Isso tudo se apresenta como

realidade de vida, elemento da construção cênica e o desejo de se ver como representação

possível. É a formação de identidade pela construção cênica. Outro ponto que merece a

atenção é a inclusão da observação sobre o prêmio56 recebido do governo que possibilitou

a montagem da peça.

A sinopse/mote da história é de certa forma uma menção a Alice no País das

Maravilhas, de Lewis Carol, que inicia a fantasia desse menino através da pergunta do

livro: “De onde veio e para onde quer ir...?”. Ou, ainda, a pretensão de miscigenação da

fábula infantil com a história real e a prospecção de memória. Cabe notar que a escolha

de Alice como livro norteador é sintomática, principalmente em relação à entrada no País

das Maravilhas. Como se vê no texto, existe a entrada do Matheus adulto em outro mundo,

o mundo da sua infância – que hoje é possivelmente a entrada no mundo das maravilhas.

Essa infância lida na ótica do poético é tida como a época onde não existiam as

preocupações com o futuro e a respectiva manutenção financeiro-social. É a época da

56 As diferenças entre território e cultura no Rio de Janeiro não se dão apenas na observação sobre os

equipamentos, mas também na distribuição e concessão de prêmios. É raro observar algum grupo da Zona

Oeste (excluindo a Barra da Tijuca) ganhar algum edital.

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felicidade (ainda que não sabida), o simplesmente “estar”, e a da felicidade por pequenas

coisas.57

Alice busca esse outro lugar seguindo o coelho até uma terra de fantasia no

instante em que não se sente à vontade para caminhar na orientação tradicional. Não quer

casar com alguém para simplesmente dar prosseguimento ao curso natural do que se

espera dela na sociedade. A peça logo vai embaralhando o que é Alice e o que é memória

e identidade da favela/comunidade, descolecionando e trazendo novas relações para com

o território, como pode ser observado no seguinte trecho:

Noções de culto, popular e massivo, levantam um problema: a organização da

cultura pode ser explicada por referência a coleções de bens simbólicos?

Também a desarticulação do urbano põe em dúvida que os sistemas culturais

encontrem sua chave nas relações da população com certo tipo de território e

de história que prefigurariam em um sentido peculiar os comportamentos de

cada grupo. O passo seguinte desta análise deve ser trabalhar os processos

(combinados) de descolecionamento e desterritorialização (CANCLINI, loc.

cit.).

A estrutura narrativa veste os personagens com a roupa da individualidade

compartilhada, articulada e tensionada pelo coletivo. É, ao mesmo tempo, a possibilidade

de uma história que somente um menino de periferia poderia contar, junto ao desejo de

introdução da arte como prática ordinária na vida feita por um coletivo para ser e para se

reconhecer. É o texto dramático em que o espaço cênico é o espaço social, com o dentro

e o fora em osmose permanente. Cabe ressaltar ainda as indicações mistas entre literatura

e o programa da peça presentes na segunda página como a metáfora para localizar o dia

de Matheus adulto: “Imagine agora uma pessoa em um dia de cão. Matheus está nele.

Mas não é um dia do seu cão de estimação, o Júnior, é um dia de cão bravo”. A narrativa

que se segue vai misturar o Alice no País das Maravilhas e as responsabilidades de um

Matheus adulto – é o momento do Matheus adulto constatar que ele “não seguiu o

coelho”, mas, antes, se entregou ao lugar ordinariamente preparado para ele pela

expectativa social. Essa hibridação de ficcionalidades é ao mesmo tempo literatura e

projeções de desejos sociais vivos.

Uma nota importante a ser ressaltada é que uma dramaturgia de memória, que

pretende ter como enunciador somente a “memória de uma criança”, não é possível a

existência do “lembrando” adulto. Esse Matheus adulto é a figura emblemática do artista

57 É interessante, por exemplo, situar que o próprio dramaturgo em uma recente entrevista tinha que ter um

emprego formal em uma construtora para poder manter suas atividades artísticas.

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de áreas menos favorecidas e o desejo de poder permanecer como artista.58 Existe,

inclusive, uma menção direta disso em fala de Matheus jovem para Matheus adulto: “ –

Lembra que eu queria ser cientista ou ator? Imagina como isso é frustrante para mim! E

fora que você engordou demais! Nunca concretizava isso numa fase adulta. Que

decepção! Cabe agora, a nós que temos um pouco de espectador e ao mesmo tempo

diretor de nossos planejamentos, ao acabar de assistir esta peça, enxergar a base que temos

que seguir: o imaginário e o resgate da nossa infância lúdica ou a realidade cruel do nosso

cotidiano”. Após essas pequenas proposições e observações sobre a didascália inicial,

embarquemos na análise do texto propriamente dito.

A primeira cena, que segue a narração da didascália inicial, é um Matheus

correndo e fugindo e que, nessa tentativa, acaba encurralado por um “exército” que o

captura.59 Matheus se pronuncia e não se conforma de ter que sair daquele lugar, que é

para ele “tão bom”, o que é agravado ainda mais pelo fato de ter ficado lá apenas sete

meses, e não nove, que seria o tempo normal (indicando assim uma possível cesariana

precoce).60 Mas, após muita resistência e disputa, o menino é levado para a cegonha.

Após esse “encaminhamento para o nascimento”, um dos personagens vai fazer

as vezes de narrador para anunciar a história de Matheus, o menino, mas será

interrompido pelo próprio Matheus, que alega que a evocação correta não é “o menino”,

e sim “Oh! Menino – com uma interjeiçãozinha”. Em uma segunda tentativa, o narrador

volta a anunciar “a fantástica história de Matheus”, quando sofre novamente a

interferência do menino, que dessa vez alega que a sua história não tem nada de fantástica

– que ele vai morar é em Santa Cruz, o último bairro do Rio de Janeiro.

Na terceira tentativa, e agora sem subtítulos para a história – e torcendo para não

ser interrompido – o personagem anuncia a peça “que vai começar Matheus...” e, se

dirigindo ao grupo, pergunta: “Como é mesmo?”, ao que todos respondem: “Oh!

Menino”. Com isso, o texto tem a indicação de um pique-pega em que todos tentarão

pegar Matheus, mas não conseguirão.

58 Em uma observação não científica, é possível observar que a recomendação por parte dos pais de famílias

de classe média nessa região a seus filhos é que trabalhem em uma profissão séria, como administração e

direito. Naquelas de renda mais baixa, a recomendação é a de que optem por tarefas técnicas e estáveis. É

possível também notar a carência de escolas de artes na Zona Oeste do Rio de Janeiro e da Baixada

Fluminense. 59 Não se trata de violência nessa cena, e sim de um “jogo” de Matheus, que deseja ficar mais tempo naquele

lugar (que, pelo contexto subsequente, se entende ser a barriga da mãe). 60 A questão da cesariana é interessante de ser observada, pois é no Brasil que se tem um dos maiores

índices de cesariana. Seja pelo lado “mais rico” da população, que encontra médicos que lucram mais com

esse tipo de operação, seja pelo lado “mais carente”, que encontra médicos interessados em otimizar o seu

trabalho, dado que esse parto é bem mais rápido e “previsível”.

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A peça, anunciada pelo narrador, tem seu início com um Matheus em cena falando

das suas profissões almejadas: cientista e ator. Essas falas de Matheus são ao mesmo

tempo emitidas junto às falas da mãe (que só aparece em off durante toda a peça) e o

manda tirar as “caquinhas” do cachorro e limpar o quintal. Tais enunciações e

personagens são interrompidos pelo barulho do despertador. É importante notar aqui duas

metáforas importantes: a primeira é a escolha da atividade proposta pela mãe. A mãe não

pede para o menino estudar ou fazer alguma atividade que seja extraordinária, pede para

Matheus tirar a “caquinha” do cachorro, atividade que é decorrente do cotidiano – que se

repete dia após dia na obrigatoriedade. Esse recolhimento pode ser aproximado também

de atividades de extratos sociais baixos (Matheus exerce uma atividade próxima à do

Gari), enquanto sonha em ser cientista ou ator famoso – para não precisar fazer mais

aquilo.

Outro ponto é o despertar que ocorre mediante o despertador. Esse acontecimento

abre o processo de metaficção da peça em duas possibilidades. Deixando aberto tanto a

possibilidade da fantasia como o jogo de construção, podendo ser, assim, tanto as

projeções da criação cênica ou as do adulto que rememora a sua infância através do sonho.

O outro ponto do despertador é que ele se soma à ideia das “caquinhas” como signos do

trabalho e enfatiza mais ainda as necessidades do trabalho e do cotidiano sobre a vida

desse Matheus adulto, como se verá na cena seguinte.

O Matheus adulto, representado pelo ator Luiz Salazar, acordado pelo

despertador, fala: “– Ainda me lembro, queria tanto ser ator, cientista, inventar robô. E

agora o despertador me acorda para eu ir trabalhar”, opondo, assim, o contraste da vida

sonhada com a necessidade do trabalho cotidiano. Mas essa oposição entre sonho e

realidade é ainda mais tensionada com a fala do próximo personagem/entidade, um coro

de três mulheres que representam a mulher grávida de Matheus. Nota-se também que

Matheus/Salazar não é casado com três esposas, mas, sim, está no momento em que a

imposição da voz social, de forma bruta, exige que ele dê conta do ordinário. Ela é

representada por um coro, para que, mesmo indiretamente, peça/imponha que ele assuma

o papel que a sociedade lhe dá –o de ser pai e trabalhar para sustentar a família.

Sem necessidade de locomoções espaciais e com um tempo acelerado, na cena

seguinte o personagem já está com sua esposa prestes a dar à luz (simultaneamente, com

um fundo sonoro de um cachorro latindo – aquele mesmo da metáfora do dia de cão bravo

e que irá em um crescente até ficar relativamente perturbador) e se vê surpreendido por

seu chefe, que pede para falar com ele. Os personagens não estão no território do

Realismo. Antes, estão no tempo-espaço da sensação/pressão da vida. Matheus/Salazar

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pede que ele, o chefe, espere um pouco mais, ao passo que este se nega e Matheus lhe

entrega o seu pedido de demissão. A cena se encerra com um cachorro latindo (de certa

forma, para concretizar a metáfora do “dia de cachorro brabo”).

O próximo passo é um diálogo com a Alice, de Carrol, só que ao invés de seguir

um coelho branco, o Matheus adulto segue a si mesmo, até o seu País das Maravilhas,

que é a sua infância. Logo em seguida, tem um diálogo entre o seu Matheus da infância

e o seu Matheus adulto, em uma espécie de paródia da cena de Alice com o coelho branco,

o túnel e as bebidas:

De repente, todos começam a falar ao mesmo tempo na cabeça de Salazar.

Matheus aparece correndo e Salazar olha fixamente para ele, e começa e segui-

lo. Sobe uma música de caixinha de música, até que Matheus adulto se vê em

frente ao Matheus criança.

SALAZAR E MATHEUS – Eu sou você? Você sou eu? Eu sou...

MATHEUS – Ah, deixa de ser idiota, não vê que eu sou você e você sou eu!

SALAZAR – Mas como? Eu só posso estar ficando maluco... Esses

brinquedos, eu me lembro deles.

MATHEUS – Não há mais degraus para você descer, Sr. Matheus, você

chegou ao fundo do poço!

SALAZAR – Eu há pouco tempo estava em casa, com o cachorro latindo, com

minha esposa e meu patrão, minha nossa! Minha esposa estava prestes a dar à

luz! Onde ela está?

MATHEUS – Calma, relaxa, tome uma dessas suas bebidinhas que só fazem

sua barriga crescer! Já já você esquece tudo!

SALAZAR – Você não pode ser real, isso é fruto da minha imaginação! Me

belisque para ver se eu estou sonhando!

MATHEUS – É pra já! (Belisca Salazar.)

SALAZAR – Ai! Se você sou eu quando criança, porque está aparecendo para

mim?

MATHEUS – Pelo fato de eu estar extremamente decepcionado com você!

Nunca imaginaria ficar como você está hoje! Careca, barbudo e barrigudo! E,

ainda, trabalhando em uma...

Essa frase desabafo de Matheus menino é interrompida pelos gritos de sua mãe,

lhe alertando que “amanhã tem escola”. Matheus criança esconde o Matheus adulto entre

seus brinquedos e é tirado de cena por sua mãe, deixando Matheus adulto entre seus

brinquedos. Estes, ao perceberem que Salazar61 está ali, e sem saber quem ele representa,

começam a reivindicar a sua posse. Os brinquedos argumentam que ele é o que falta para

ficarem milionários (em um jogo de tabuleiro), ou a última parte da coleção (dita por uma

espécie de Barbie), ou mais um soldado para o exército. Diante da argumentação geral,

combinam dividi-lo em quatro e são surpreendidos por Salazar e sua revelação de que ele

61 A própria questão de nomes é algo interessante de se observar: a opção do autor por nomear a partir do

nome real dos atores já indica de certa forma a aproximação entre quem compõe a peça e, talvez, a falta de

vislumbre de encenações por outros grupos.

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é Matheus (os bonecos percebem que esse é o nome do “mestre supremo”), mas ainda

não o reconhecem como mestre, até porque não existe a memória do futuro.

É digna de nota a prosódia dos personagens. A Barbie, por exemplo, tem uma fala

em que ela diz “Ih, mas o colega só fala isso”, em uma prosódia própria das periferias e

comunidades do Rio, colocando em xeque quem é o emissor da Barbie – o nosso

imaginário sempre nos remete à norma culta, mas quem tem o brinquedo é quem cria as

suas falas. Embora a indústria possa criar um conceito de beleza americana-europeia para

a Barbie, no jogo da manipulação (a brincadeira) a apropriação se dá pelo emissor. Para

uma menina da “periferia”, a Barbie fala na prosódia dela e com suas gírias, até por que

ela é a outra da enunciação (e efetiva enunciadora) desse personagem.

Em seguida, o boneco que havia pedido a convocação para o exército se mostra

de certa forma enlouquecido, e tenta a todo custo executar a sua supremacia através da

captura de Salazar para compor o seu exército, enquanto os outros bonecos tentam

protegê-lo ou escondê-lo. A tentativa de captura/domínio consome boa parte da peça,

havendo algumas pequenas intervenções nessa ação dramatúrgica, entre as quais

podemos destacar:

A cena em que Matheus jovem retorna à cena para ver TV. Ele interfere e é

influenciado pelos temas abordados, em uma espécie de apropriação do conteúdo da

televisão, profanando, assim, a lógica de um dos principais dispositivos de controle da

contemporaneidade (dando margem à subjetividade em um dos mecanismos mais

excludentes). Quando não se é representado, pode-se imaginar. O Jornal, por exemplo,

tem a seguinte fala:

ROGERIA – Bom dia, sou Nilcea Fonseca e esse é mais um Jornal da Família,

que traz como destaque a economia com o repórter Paulo Cesar.

WALLACE – A economia parece estar fluindo bem por aqui, Nilcea. Hoje

Matheus guardou mais duas moedas de 1 real em seu cofre. O menino anda

realizando uma ótima economia, depois que começou a guardar dinheiro.

Esse retratar a si próprio é seguido no jornal, ligando a meteorologia com o “tempo

fechado gerado com a mãe de Matheus após o mesmo não recolher a caquinha”, ou, ainda,

mencionando a briga de Matheus com o irmão pelo uso do computador.

Esse desejo de interferência e representação também é percebido quando, ao ver

a novela, existe a possibilidade de misturar seus personagens com personagens de outros

programas, como vilões e mocinhos de novelas mexicanas com índios de programas de

bang bang – numa espécie de imaginação criativa autoral.

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Essas observações sobre a o embate entre a realidade e a representação, entre a

inevitabilidade e o desejo, entre o Matheus criança e o Matheus adulto, são expressas no

seguinte diálogo:

MATHEUS – Que droga, essa TV desliga sempre nas melhores horas!

SALAZAR – Eu era feliz e não sabia... Hoje nem assistir televisão eu consigo,

não tenho tempo para nada.

MATHEUS – Posso te falar uma coisa?

SALAZAR – Fala, pode falar.

MATHEUS – Eu nunca quero crescer...

SALAZAR – Oh menino, mais você já cresceu.

MATHEUS – Então posso te fazer um pedido?

SALAZAR – Tá, pode...

MATHEUS – Não perca a eterna criança que tem em você, não me deixa ir

embora de vez. Promete pra mim?

Já a definição da “estirpe” dos personagens é expressa no seguinte diálogo:

ROGÉRIA – Idiota é você, seu brinquedo do Paraguai!

ALINE – Cala essa boca, antes vir do Paraguai do que vir dentro de uma

caixinha de papelão com hambúrguer, batata-frita e refrigerante.

VERUSKA – Então é essa a coleção de que você faz parte?

THAYNA – Eu recebo ordens de um brinquedo de lanchonete!

ROGÉRIA – E qual o preconceito? Somos feitos do mesmo látex.

Essa afirmação também nos remete à questão sobre “raça” e condição social. O

fato de ser brinquedo de lanchonete não tira a possibilidade de afetividade desenvolvida

pelo brinquedo. Assim, por analogia a essa afirmação de igualdade, como o exemplificado

pelo tipo de materialidade, poderíamos dizer que os homens são todos iguais

independentemente da cor da pele ou da condição social (afirmação antipreconceito

expressa pela forma da ludicidade).

Durante esse último acontecimento, volta-se à linha de ação principal, a da

perseguição. O personagem representado por Aline desafia Salazar para uma partida de

xadrez. Salazar, perdendo a partida, resolve invocar o Monkey, personagem até então

pouco citado, para ganhar o jogo por ele. E, embora a entrada desse personagem em cena

não represente nenhuma lógica e pareça não ter não muito sentido, é na verdade a

brincadeira ou a terceira margem como solução. É ir além do jogo que tem apenas a

dicotomia como solução, é o externo que não se sabe de onde vem como salvação.

O jogo é ganho por Matheus adulto e o seu macaco Monkey, que é devolvido ao

Matheus criança. Os outros brinquedos expressam a gratidão ao Matheus adulto e chega

o momento da volta do sonho. Nessa volta, cabe ressaltar a consciência de realidade e o

desejo de permanência do sonho expressa no diálogo:

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SALAZAR (passando mal) – Oh menino! Eu preciso despertar desse sonho,

tenho que encarar a realidade.

MATHEUS – Não, por favor, não vai embora!

SALAZAR – Você me pediu para que eu não te perdesse, e já que te achei,

vou te pedir uma coisa também.

MATHEUS – O quê?

SALAZAR – Mesmo sendo um menino, continue sempre sonhando para se

tornar um bom homem. Quando a gente para de sonhar, a vida perde a graça.

Com isso, o personagem Matheus adulto volta ao momento da gravidez da mulher

e da chegada do seu patrão. Só que agora ele não chega com uma carta de demissão, e

sim com um aumento salarial. Junto a isso, continua o primeiro diálogo do Matheus sobre

nascer de apenas de sete meses e a imposição dos outros para que ele pegue a cegonha

que está atrasada. Há depois uma junção da cena em que o Matheus do início da peça está

para nascer (uma volta à cena inicial da captura para a cegonha) e o nascimento do filho

do Matheus adulto, possibilitando, no mínimo, uma dupla leitura: o nascimento como

ciclo da metaficção (o tornar a nascer para tornar a representar) ou o nascimento como

acontecimento simbólico da permanência do sonho.

Por fim, é interessante concluir como as relações presentes na vida do dramaturgo

se transfiguram e misturam com a tentativa de narrativa de memória de uma criança.

Assim, recursos de hibridação com uma obra literária (Alice, de Lewis Carrol) e vida

cotidiana se misturam a fim de criar uma dramaturgia sobre o desejo de produção de arte

para grupos de teatro em certos territórios, não tradicionalmente contemplados (o cenário

teatral carioca é prioritariamente realizado na Zona Sul e no centro da cidade).

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CONCLUSÃO

Para iniciar a conclusão deste trabalho, talvez fosse importante fazer duas

citações, que podem ser lidas como contraditórias ou altamente complementares. São elas

“nações são imaginadas, mas não é fácil imaginar. Não se imagina no vazio e com base

em nada” (ANDERSON, 2008, p. 16) e “a ideia de que algo dos contextos reconhecidos

em uma cultura seja básico ou primário, ou apresente o inato ou que suas propriedades

sejam algo essencialmente objetivo ou real, é uma ilusão cultural” (COCCO, 2009, p.

230).

O que quero dizer com isso é que, dentro dos procedimentos de escrita cênica

desses autores, acredito no hibridismo e na heterogeneidade como resposta dialética nos

processos formativos. Aliás, é a dialética o sentido desse vetor duplo, dessas partilhas de

criações. Escrever para criar e criar o que se escreve. E, se antes existia pelo olhar do

outro o “eu verdadeiro” da representação das comunidades, hoje, elas se fazem a pergunta

de forma fisicalizada, em dramaturgias e contos sobre o “eu verdadeiro como

questionamento”, de forma a deixar nítidas as disputas pelas fronteiras vacilantes (sejam

elas psíquicas, culturais, territoriais), ao mesmo tempo em que todas essas mediações

atuam a partir de uma construção que possui lastro, mas que não é construída sobre algo

único e calcificado permanentemente.

Podemos citar, ainda, que “a linguagem não deve ser comparada com a espécie,

que é imutável na sua essência, e sim com o indivíduo, que se renova sem cessar”

(ERNEST, 1950, p. 9). Os limites dessa produção literária se dão quase que no território

da ambivalência da sociedade moderna. Sejam eles a figura da comunidade/favela, os

costumes de gosto, os poderes, a política, a ordem social, a sensibilidade, a cegueira da

burocracia, a visão das instituições, a linguagem...

Para encontrarmos a favela-comunidade como representação, precisamos

entender inicialmente como ela foi escrita temporalmente na cultura e na consciência

social. Mais ainda, temos que adicionar o seu entendimento como um processo de disputa

pelo significado textual (por exemplo) que é produzido por meio da articulação de

diferença da linguagem e das representações.

Para estudarmos esse tipo de produção dramatúrgica, devemos olhar a linguagem

e a retórica, mas também o seu valor como dispositivo, através da inclusão de

especificidades que põem em jogo o campo de significados e símbolos associados com

esses indivíduos e territórios. Temos que lê-los não de forma restritiva, mas de diversas

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possibilidades: a afirmação de lugar, a inserção dos jovens, a nostalgia, novas etnicidades,

novos movimentos sociais, a palavra como uma espécie de museu etc.

Para entendermos esses territórios como forma de processo e elaboração

cultural,62 podemos pensar nessa palavra como dispositivo de narração ambivalente e

profanadores que mantém a cultura em sua posição mais produtiva, como uma força de

subordinação, fraturando, recriando, difundindo reprodução, criando, recriando,

copiando, forçando, disputando e se reescrevendo.

Essa não é nem unificada nem unitária em relação a si mesma, nem deve ser vista

simplesmente como “outro” em relação ao que está fora ou além dela. Mesmo o outro

tem por base um pouco do real. O que tem que ser observado é o jogo de forças, na sua

composição e nas suas representações, que produzem protagonismos e antagonismos.

Não se deve negar a existência das categorias e problemas historicamente construídos,

mas, sim, registrar os avanços das novas potências criativas que aí estão. O que estamos

debatendo são as complexas estratégias discursivas de identificação cultural e endereço

que funcionam em nome da “comunidade”, da “favela” e do “território” As fronteiras

problemáticas desse tipo de escrita são promulgadas no espaço e no tempo, em suas

junções, fissuras e articulações.

É fundamental afirmar que as pessoas não são simplesmente um ponto, um evento

histórico ou agentes passivos dessas narrativas e desses processos sociais, mas são, antes

de tudo, agentes importantes desse campo que, muitas das vezes privados da visibilidade

imediata do historicismo, estão criando para si novos cânones de representação ou, no

mínimo, disputando o direito de pertencimento do seu olhar e da sua forma de agir sobre

o imaginário da cidade. Tal mudança de perspectiva se dá por vários vieses, que vão do

campo econômico, passando pelo da técnica, até chegar à agenda de desejos. É a partir

dessa instabilidade de significação cultural que o significado dos termos favela e

comunidade devem ser lidos ou, ainda, a partir de seus processos dramatúrgicos e de

representação como uma dialética de várias temporalidades que não pode ser um

conhecimento estabilizado em sua enunciação.

Marcando e se deixando marcar por liminaridades identitárias, produzindo um

discurso de vários gumes tanto em territórios sociais, como em territórios imagéticos e

psíquicos, oferecendo a sua identidade de forma a participar concretamente dos novos

conceitos da cidade em representações emergentes que pleiteiam para si o direito de ser

centro dela. Através de um movimento cultural que pode ser lido como social ou artístico,

62 No sentido gramsciano.

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mas, fundamentalmente, como um movimento que coloca as coisas em disputa. Por fim,

se trocássemos a palavra nação por comunidade/favela, poderíamos usar:

Por fim, as nações são imaginadas como comunidades na medida em que

independem das hierarquias e desigualdades efetivamente existentes, elas

sempre se concebem como estruturas de camaradagem horizontal. Estabelece-

se a ideia de um “nós” coletivo, irmanando relações em tudo distintas

(ANDERSON, 2008, p. 12).

E, se considerarmos que essas camaradagens e camadas como não fixas , mas sim

sobrepostas e flutuantes (e por vezes contraditórias). Poderemos assim, vislumbrar o

funcionamento dessa escrita dramática como dispositivo e algumas de suas relações

conflitantes, outras profanadoras e algumas pacificações.

Outro ponto é que colocar essa produção artística apenas como fenômeno

sociológico sem potência estética é uma distinção que reitera desigualdades e enfraquece

o campo da arte. E, para isso mudar, uma nova crítica, um novo modo de olhar é

necessário. A ampliação das expressões da linguagem das periferias pode também tirar a

arte do mausoléu de revelar identidades nacionais e mimetizar a Europa — fundamento

do projeto moderno da arte no país.

É preciso deixar claro o não desenvolvimento consciente de um possível tópico:

o de teatro aplicado (ou qualquer outro conceito próximo), tradicionalmente, ao se falar

sobre as dramaturgias associadas a favela- comunidades costumasse ligar a mesmas a

uma tendência de um teatro de ação política popular tendo como maior potência (e quase

exclusivamente o que social). Marina Henrique Coutinho em seu livro “A Favela como

Palco e Personagem” nos fornece uma definição deste tipo de teatro o applied theatre

(traduzido como teatro aplicado) “performance comunitária, teatro para mudança social,

teatro popular, teatro de intervenção, teatro para o desenvolvimento, teatro comunidade e

teatro para solução de conflitos” (COUTINHO, 2010, p. 26). Assim sendo, o objetivo

principal desse teatro não seria a arte em si, mas as propulsões e desenvolvimentos sociais

trazidos por ela. Marina Henrique Coutinho nos diz também no mesmo livro:

A base teórica do teatro aplicado defende que os processos criativos, que

envolvam quase sempre a colaboração entre artistas e grupos comunitários,

devam permitir a emersão de um teatro que responda à comunidade, que exerça

uma comunicação e um impacto específico para os seus participantes e

plateias; que os interesses, temas, histórias e formas estéticas da comunidade

sejam apropriados pela cena (COUTINHO, 2010, p. 27).

É preciso reconhecer onde isto potencializa este procedimento e onde este o

fragiliza. A potencialização se dá pela luz que lança na capacidade desta arte ressignificar

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e rearticular tanto no plano do simbólico como do concreto. Mas esse caminho, por vezes,

corre o perigo da despotencialização e da restrição. Ao dar a esse teatro o selo de “social”

ou de “cultural”, às vezes o diminui no campo de “artístico” ou “estético”. Esse talvez

seja um dos pontos chaves para se avançar na crítica (e na produção): colocar essa

produção artística apenas como fenômeno sociológico sem potência estética é uma

distinção que reitera desigualdades e enfraquece o campo da arte.

Este teatro e a própria arte de periferia está sempre sendo ligado (e sendo

analisado) por questões de sociologia, antropologia e educação (mas muitas das vezes o

desprezando como fenômeno estético). Poderíamos ligar a isto está ligado a uma questão

apresentada por Bourdieu no livro “A economia das trocas simbólicas” quando o mesmo

diz que costumeiramente a arte é segregada em três categorias: a “arte social”, a “arte pela

arte” e a “arte burguesa”. Estas três categorias e como únicas não existem no mundo

“real”, mas são extremamente demarcadas dentro de algumas “Estruturas objetivas de

campos” e “habitus”. Mesmo considerando que toda arte é ao mesmo tempo politica e

estética ainda assim não se legitima o fenômeno social como possibilidade estética (ou

no máximo se legitima o mesmo por uma estética menor). Estas estruturas de analises

podem ser consideradas até algumas das vezes como objeto de poder. Ao se enquadra

esta arte como social, se cria um nicho especifica para ela, mas também a segrega em um

espaço estético-relacional especifico.

É nítido e notório que isto atua em diversos níveis indo da escola e seu cânone

sobre o que deve ser ou não ensinado até chegar aos mercados e sistemas de significação

sobre o que deve ou não ser admirado. Duas outras observações que podemos colher do

autor:

A forma das relações que as diferentes categorias de bens simbólicos mantêm

com os demais produtores, com as diferentes significações disponíveis em um

dado estado do campo cultural e, ademais, com sua própria obra, depende

diretamente da posição que ocupam no interior do sistema de produção e

circulação de bens simbólicos e, ao mesmo tempo, da posição que ocupam na

hierarquia propriamente cultural dos graus de consagração, tal posição implica

numa definição objetiva de sua prática e dos produtos dela derivados

(BOURDIEU, 2013, p. 154).

E ainda:

Logo, não há posição no sistema de produção e circulação de bens simbólicos

( e em geral na estrutura social) que não envolva um tipo determinado de

tomada de posição e que não exclua também todo um repertório das tomadas

de posição e que não exclua também todo um repertório das tomadas de

posição abstratamente possíveis. Para que assim seja, não é preciso que as

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tomadas de posição possíveis ou inviáveis tornem-se objetos de proibição ou

prescrições explicitas (BOURDIEU, 2013, p. 160).

O que cabe notar é a segregação que essa arte ocupa, até nos terrenos literários

onde a mesma é vista como subliteratura. Menosprezada por questões técnicas das mais

variadas (e muita das vezes injustificadas) ela não consegue ser lida pela crítica como arte

com significação nela mesma, ou capaz de falar além dela (como a “arte ” que não tem

sub título é considerada). A questão da técnica é muita das vezes a forma da demonstração

de poder e dominação. Mesmo que a diferença não exista a priori e que a invenção do

cânone da técnica não seja questionado. Outro ponto que é importante ser ressaltado é

como é importante aceitar a arte como fenômeno vulgar e ordinário destas locais.

Em “O mestre ignorante”, Rancière aponta que nem sempre processos de

emancipação social carregam emancipação intelectual — questão central da conversa

sobre o livro na entrevista. Não se deve colocar como exceção a produção de bens

simbólicos mas algo que deve ser entendido e proposto até como fenômeno vulgarizado

(ou no sentido dos dispositivos profanado). Não deve-se pensar a arte e o processo

artístico como heroico ou como único. É importante que estas manifestações estejam

alçadas não apenas como fenômenos isolados, mas como produtos e significados culturais

naturais de um grupo de pessoas (como é olhada a arte dos “Outros territórios” do Rio de

Janeiro). E se não se pode ver assim é por vezes uma miopia do olhar e por vezes que

estes territórios não tem o suporte de políticas públicas eficientes para propulsionar os

desejos e aspirações destas comunidades e juventudes que são potentes que querem se

ver, enxergar, fantasia, discutir entre outros inúmeros outros verbos de ações que não

caberiam nestas páginas.

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ANEXOS

Engenheiro Leal – Conto de Cristina Hare

(Cristina Hare é Jornalista e atriz. O conto aqui retratado foi publicado no site e

na Revista do Apalpe – sem número de edição)

Eu dizia que morava em Madureira, e se muito íntimo, eu confessaria que era em

Cascadura. Mas na verdade eu morava mesmo era em Engenheiro Leal.

Engenheiro Leal é o nome do bairro onde passei a maior parte da minha vida, e

que fica espremido entre Madureira, Cascadura e Cavalcanti.

A linha auxiliar de trem divide a minha rua ao meio e atravessá-la implicava em

risco evidente, não só porque não havia passarela, mas também pela possibilidade de

descoberta de outros mundos e estórias.

O trem passa.

Todas as manhãs eu descia a rua rumo ao colégio, uniformizadamente correta de

azul marinho e branco. Conga nos pés, short Silze (última moda) para a aula de educação

física. No caminho, cruzava com alguns vizinhos voltando da noite anterior no mais

estiloso visual black-power carregando debaixo do braço o elepê de James Brow,

enquanto donas-de-casa traziam bisnagas quentinhas também debaixo do braço, porém

sem tanto orgulho e exibicionismo.

O trem passa.

A rua inerte e algumas poucas tamarineiras de frutos que de tão azedos só serviam

pra fazer marimba, constituíam o meu principal cenário.

Na escola, eu encurtava a saia e falava palavrões que hoje não passam de palavras

corriqueiras, e isso era o máximo que eu conseguia transgredir.

Em casa, eu tirava os sapatos antes de entrar para não arranhar o assoalho encerado

e pedia a bênção aos meus pais antes de sair: Bença pai! Bença mãe!

O trem passa. Os dias passam.

Aos domingos, a vitrola amanhecia berrando Roberto Carlos. Eu detestava! Dizia

que era coisa de pa-ra-í-ba, porque paraíba era a naturalidade de tudo que eu achava

cafona, naquela época.

Pra compensar, o cheiro do almoço de domingo, o mais esperado da semana,

invadia o ar, pouco antes de começar o programa do Chacrinha.

O tempo passou.

O trem ainda passa.

E a Conga? Ah! A Conga virou All Star!

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“Oh Menino” de Sandro D’ França

(Sandro D’ França é ator diretor e dramaturgo. O Texto “Oh Menino” foi recebido por

e-mail enviado pelo autor e embora o mesmo já tenha sido encenado como espetáculo da

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Cia.Teatral Última Estação com Direção e Texto de Sandro D’França e Supervisão de

Anderson Barnabé ele ainda não foi publicado.Segue na Integra o texto recebido)

Sinopse

Pensando em meio de seus brinquedos, vídeo-game e do seu “macaco em inglês”,

Matheus se vê em um mundo de perguntas: - O que devo ser quando crescer? Será que

vou tirar uma nota boa na prova da Tia Neiva? Porque demora tanto para chegar o dia das

aulas de Teatro? Nossa, porque tantos porquês?

Resolve então pegar um livro para ler. Entre gibis, e os livros que decorou de tanto ler, o

que o chama atenção é um de Lewis Carrol. Chama-se “Alice no país das Maravilhas”. A

primeira frase do livro bate com o seu pensamento de uns instantes atrás “... De onde

veio, e para onde quer ir?”... Começa ali a imaginação de Matheus.

A Cia. Teatral Última Estação, Trás desta vez uma fábula infantil em cima de uma história

real de um menino morador da comunidade do Liberdade, situada em Santa Cruz.

Esse é o quinto trabalho da Cia. Que mostra ao público uma forma diferente de fazer

teatro. Com papel e caneta na mão, a Cia. Procura e bate papo com moradores, a fim de

transportar suas histórias para o palco.

Bem vindos a História de Matheus Fonseca, o nosso Matheus Menino.

(em off)

Imagine agora uma pessoa em um dia de cão. Matheus está nele. Mais não é um

dia do seu cão de estimação, o Júnior, é um dia de cão bravo. Não que o Junior não seja.

Matheus está na crise dos 30. Fez a ordem natural das coisas. Nasceu, se desenvolveu,

cresceu e esta se reproduzindo. Aprendeu bem isso nas aulas de ciências da Tia Neiva e

sabe que a última etapa, o “Morrer”, poderia chegar a qualquer momento, o fazendo ficar

tenso e ansioso como sempre. Mais voltando ao dia de cão, sua esposa está em trabalho

de parto, aguardando o choro do seu primogênito que está pra nascer, avista um menino

em sua cabeça, mais não seu filho, e sim ele mesmo quando criança. Matheus o segue e

cai em um buraco. Mais não um buraco como o de Alice no país das maravilhas, mais

sim em seu próprio buraco, ou digamos, em sua própria memória, seus pensamentos, suas

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lembranças. O Matheus menino, cobra agora que o Matheus homem, seja tudo aquilo que

ele quis ser, e mostra pra ele, que o lúdico, o imaginário de antes, pode sim ser real. Em

um mundo de personagens que só ele construiu, o Matheus Adulto, se vê novamente

dialogando com seu “Macaco em inglês” e seus outros brinquedos que o mesmo deixou

com os contratempos da fase adulta, entrar no esquecimento. O Matheus menino, cobra

o resgate disso, e afirma que ele vive uma coisa que não estava planejada:

- Lembra que eu queria ser cientista ou ator? Imagina como isso é frustrante pra

mim! E fora que você engordou demais! Nunca concretizava isso numa fase adulta. Que

decepção!

Cabe agora, a nós que temos um pouco de espectador e ao mesmo tempo diretor

de nossos planejamentos, ao acabar de assistir esta peça, enxergar a base que temos que

seguir: O imaginário e o resgate da nossa infância lúdica ou a realidade cruel do nosso

cotidiano.

A Seguir, Oh menino. Primeiro espetáculo infanto-juvenil do Conjunto Teatral Última

Estação. Com o elenco:

Luiz Salazar

Rogeria Nascimento

Thayna Canto

Thiago Silva

Veruska Thaylla

e o nosso menino, Matheus Fonseca.

Pedimos para que desliguem seus celulares e que se desliguem também. A viagem é longa

e fabulosa. É proibido não gravar ou não fotografar todos os detalhes na memória. Voltem

ao tempo, sejam crianças novamente e tenham um bom espetáculo.

Sandro D’França

(Em cena, entra um exército, logo correndo entra Matheus. Após ser encurralado pela

tropa, a mesma pega Matheus e o coloca no alto.)

Todos – Sai, sai, sai, sai...

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Matheus - Eu não vou!

Veruska – Mais você precisa ir Menino! Uma hora todos precisam ir.

Matheus – Mais está tão bom aqui. Porque tenho que sair?

Aline – Menino deixe de ser teimoso e vá logo.

Matheus – Eu nem me acostumei ainda!

Thayna – E era pra se acostumar?

Salazar – O tempo de sete meses é tão curto que você nem viu passar.

Matheus – O normal não seria de nove? Porque só eu tenho que ser de sete?

Rogeria – Oh menino! Chega de tantos porquês. E entra logo nessa bolsa.

Matheus – Eu vou nascer de uma cegonha?

Veruska – Isso mesmo! De uma linda cegonha que já está atrasada. Agora entre

logo na bolsa!

Todos – Sai, sai, sai, sai...

Rogeria – Senhoras e Senhores, Homens e Mulheres, Meninos e Meninas! Sejam

bem vindos a história de Matheus, o menino.

Matheus – Com licença, não é o menino, é Oh menino, tem uma interjeiçãozinha

aí entendeu?

Rogeria – Senhoras e Senhores, Homens e Mulheres, Moços e Moças, Meninos e

Meninas! Sejam bem vindos a fantástica história de Matheus...

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Matheus – Ei! Que mané história fantástica é essa? Na minha história não tem

nada de fantástica, sabe onde eu vou morar? Em Santa Cruz, o último bairro do Rio de

Janeiro! Tem alguma coisa de Fantástica nisso? (...)

Rogeria – Senhoras e Senhores, Homens e Mulheres, Moços e Moças, Meninos e

Meninas, Animais, Plantas e todos os seres vivos da terra! Espero que agora sem ser

interrompida vocês Sejam bem vindos a história nada fantástica de Matheus... Como é

que é mesmo?

Todos – Oh Menino!

(Todos tentam pegar Matheus em uma brincadeira de pega-pega mais não

consegue)

Matheus – Quando crescer quero ser cientista!

Veruska (Em Off) – Matheus, deixe de pensar besteiras e vá logo limpar as

caquinhas que seu cachorro fez!

Matheus – Ah mãe! Depois eu tiro! Juro que quando eu crescer vou criar um robô

que limpe coco de cachorro.

Veruska – Disse para ir agora! E esquece esta história de robô, de cientista.

Matheus – É por isso que quero ser ator! (Entram todos pedindo autógrafos,

seguranças em cima dele, as meninas tentando agarra-lo) Vou ser rico, ser famoso e nunca

mais vou limpar coco de cachorro!

Veruska – Oh menino! Pare de inventar casos só pra não limpar o quintal! Vá

logo! (Todos saiem menos Salazar)

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Matheus – Hum... (barulho de despertador)

Salazar – Ainda me lembro, queria tanto ser ator,cientista inventar robô. E agora

o despertador me acorda pra eu ir trabalhar.

Rogéria, Veruska e Thayná Grávidas – Ahhhh, Matheus, vai nascer agora, me leva

pro hospital...

Salazar – Mulher é tão escandalosa que quando gritam tem força de três!

Rogeria, Veruska e Thayna – Ahhhh!

Salazar – Pare de gritar! Afinal de contas, nem seis meses de gravidez você tem e

já tá achado que o bebê vai nascer?

(Rogeria, Veruska e Thayna começam a falar coisa com coisa, o cachorro começa

a latir.)

Aline – Matheus preciso falar com você.

Salazar – Agora não posso Sr.Alfredo, minha esposa, está dando a luz.

Aline – É sobre luz mesmo que gostaria de falar.

Salazar – Agora não Sr.Alfredo, por favor.

Aline – Agora sim.

Salazar – Agora Não.

Aline - Agora sim você vai assinar a sua demissão!

Salazar – Demissão? Estou demitido por quê?

Rogeria, Veruska e Thayna – Vai nascer! (O Cachorro latindo)

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Derrepente todos começam a falar ao mesmo tempo na cabeça de Salazar.

Matheus aparece correndo e Salazar olha fixamente para ele e começa e segui-lo.

Sobe uma música de caixinha de música, até que Matheus Adulto se vê em frente

ao Matheus Criança.

Salazar e Matheus – Eu sou você? Você sou eu? Eu sou...

Matheus – Ah, deixa de ser idiota, não vê que eu sou você e você sou eu!

Salazar – Mais como? Eu só posso estar ficando maluco...Esses Brinquedos, eu

me lembro deles.

Matheus – Não há mais degraus para você descer Sr.Matheus você chegou ao

fundo do poço!

Salazar – Eu há pouco tempo estava em casa com o cachorro latindo com minha

esposa e meu patrão, Minha nossa! Minha esposa estava prestes a dar a luz! Onde ela

está?

Matheus – Calma, relaxa, tome uma dessas suas bebidinhas que só fazem sua

barriga crescer! Já já você esquece tudo!

Salazar – Você não pode ser real, isso é fruto da minha imaginação! Me belisque

para ver se eu estou sonhando!

Matheus – É pra já! (Belisca Salazar)

Salazar – Ai! Se você sou eu quando criança porque está aparecendo pra mim?

Matheus – Pelo fato de eu estar extremamente decepcionado com você! Nunca

imaginaria ficar como você está hoje! Careca, barbudo e barrigudo! E ainda trabalhando

em uma...

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Veruska (Off) – Matheus! Vai dormir, você tem escola amanha!

Salazar – É a mamãe???

Matheus – Xiiii! Ela não pode saber que você esta aqui! Já vou mãe! Deita ai entre

meus brinquedos!

Salazar – Mais é a mamãe, quero falar com ela!

Matheus – Deita aí homem de Deus. Já vou dormir mãe!

Veruska – Nada disso! Hoje você dorme aqui comigo! Vem pra cá agora!

Matheus – Oba!

Salazar – Ei, oh menino! Vem cá! Ai ai, eu não gosto de ficar sozinho! E muito

menos com esses brinquedos... To sentindo eles em cima de mim! Ai meu Deus!

Todos os brinquedos – Ele é meu! Ele é meu!

Veruska – Ele é meu! Tem muito tempo que estou esperando o meu Ken!

Thayna – Não, não, não! Só estava faltando ele para eu ficar milionária no jogo

de tabuleiro!

Rogeria – Negativo! Ele é a última peça que faltava da coleção que eu faço parte!

Aline – Não! Ele vem pro meu exército!

Veruska – Ah não! E eu vou ficar sem meu Ken?!

Thayna – E eu vou deixar de ser milionária?

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Rogeria – E a minha coleção vai ficar faltando uma peça?

Aline – Não! Ele vem pro meu exército!

Salazar – Opa! Gente eu não sou de ninguém! Eu só quero saber o que está

acontecendo aqui!

Veruska – Oh! Ta vendo? Meu Ken ta confuso!

Rogeria – Deixe de ser idiota e achar que o mundo é cor de rosa! Vamos apanhá-

lo.

Thayna – Isso companheira, vamos dividi-lo em quatro!

Aline – Não! Ele vem pro meu exército!

Veruska – Ih, mais o colega só fala isso?

Aline – Não! Ele vem pro meu exército!

Rogeria – Esse Maluco está com problemas de pilha! Vamos levar o intruso para

a estante e lá decidimos o que fazer com ele.

Salazar – Peraí! Antes de vocês me levarem eu preciso resolver uma coisa (Salazar

tira a pilha de Thiago) Agora sim, vocês podem me levar mais eu não sou quem vocês

estão procurando.

Veruska – Oh, o meu Ken ta confuso de novo!

Salazar - Que Ken? Meu nome não é Ken, meu nome é Matheus!

Veruska, Rogeria e Thayna – Ohhhh! Ele tem o nome do mestre supremo!

Matheus – Mãe vou pegar o MONKEY!

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Veruska – Não sai daqui meu Ken!

Thayna – Não some, vamos ser milionários!

Rogeria – Nem se atreva a sair daqui!

Salazar – Oh Menino! Não me deixa mais aqui sozinho, você não sabe o que me

aconteceu, os seus brinquedos...

Matheus – A pilha!

Salazar – Que pilha?

Matheus – A pilha que você tirou do meu boneco, olha, eu não gosto que mexam

nos meus brinquedos.

Salazar – Não, não Põe a pilha nele não...

Aline – Não! Ele vem pro meu exército!

Matheus – Já sei! Deve estar no banheiro! Vou lá pegar!

Salazar – Não vai embora! Vem aqui, oh menino!

Aline – Não! Ele vem pro meu exército!

Salazar – mais você é chato demais!

(As meninas vem e pega Matheus Adulto e o leva, Thiago fica sozinho em cena)

Aline – Eles estão pensando que estou com problemas de pilha! (Risos) Mais não

estou. Não, não! Ele vem pro meu exército! (Risos) E você? Quer vir pro meu exército?

(Risos)

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(Entra as meninas, uma por cima da outra)

Rogeria – Tá vendo alguma coisa aí em cima?

Thayna – Não por aqui ainda não!

Rogeria – Mais olha direito, tente enxergar de longe algum rastro dele!

Thayna – Não to vendo nada!

Rogeria – Não é possível! E você ai em baixo? Está vendo alguma coisa?

Veruska – Sim, estou vendo!

Rogeria – O que?

Veruska – Poeira!

Rogeria – Ah! Raios! Foi por culpa sua que perdemos ele de vista! Eu mandei

vocês olharem ele!

Veruska – Eu? A culpa foi dela!

Thayna – Minha? Não, a culpa foi dela!

Rogeria – Qual das duas quer ir para a estante primeiro?

Veruska – Eu não, eu não quero ir!

Thayna – Pelo amor de Playmobil, não me mande pra lá!

Rogeria – Então as duas vão agora mesmo atrás do forasteiro! Se eu perder-lo de

vista meu plano vai por água a baixo, ei me esperem!

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Salazar – Olha ainda bem que você me ajudou a escapar daquelas malucas!

Imagine que elas estão pensando que eu sou uma pessoa que eu não sou! Ta entendendo

o que to querendo dizer? Não? Ah, o importante é que estou com você agora e nada de

ruim vai me acontecer! (...) E eu ainda achava você chato...

Matheus – Maãeee! Vou assistir televisão!

(Matheus senta no chão e pega um controle remoto gigante. O mesmo olha pro

controle, olha pros lados e vai de boca nos botões mordendo-os)

Veruska – Oh menino! Já não disse pra parar com essa mania de morder botão de

controle remoto?

Matheus – Mais mãe, eu não mordi nada!

Veruska – E eu sou cega é?

Matheus – Mais mãe, é que eu to ansioso!

Veruska – Ansioso por quê?

Matheus – Hum... Nada não mãe! Deixa pra lá!

Veruska – Se eu pegar você de novo mordendo botão de controle seu pai vai ter

uma conversinha com você entendeu?

Matheus – Sim mãe! Prometo que não faço mais isso! (Olha pro controle e abre a

boca pra morder)

Veruska – Oh menino!

Matheus – Estava bocejando mãe, to com sono. (...) O que vou ver na televisão...

Hum... (Liga a TV)

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Rogeria – Bom dia, Sou Nilcea Fonseca e esse é mais um Jornal da Família, que

trás como destaque a economia com o repórter Paulo César.

Wallace – A economia parece estar fluindo bem por aqui Nilcea, Hoje Matheus

guardou mais de duas moedas de 1 real em seu cofre. O menino anda realizando uma

ótima economia, depois que começou a guardar dinheiro.

Rogeria – Agora vamos a Meteorologia com o repórter Ezequiel Daher.

Diego – Hoje o tempo fechou para Matheus que mais uma vez não tirou o coco

que seu cachorro júnior fez no quintal. O furacão Nilcea, passou por aquela região

trazendo pânico e gritos ouvidos pelos vizinhos.

Rogeria – Esporte. O repórter João Lucas trás novas informações sobre a nova

modalidade que esta dando o que falar na família, é com você João.

Diogo – Futebol? Basquete? Tênis? Não! O esporte que está disparado na Família

de Matheus é... Xadrez! Matheus é o jogador mais experiente que a cada dia se supera

mais! Xeque mate nos adversários!

Rogéria – Tumulto na frente do computador, quem explica melhor isso pra gente

é o repórter Robert da Silva.

Tiago – O tumulto começou quando Matheus, pediu para jogar no computador e

seu irmão não deixou, o menino reclamou com seu pai e o mesmo deu-lhe uma bronca.

Rogeria – Mais após a bronca, a briga cessou?

Tiago – Não. O irmão de Matheus disse que ia colocar senha no seu computador

para o menino não mexer, e o pai retirou-o de lá e não deixando ninguém mexer!

Rogeria – Que coisa. Mais informações desse caso absurdo depois dos nossos

comerciais. Não saia daí, voltamos já com o Jornal da Família!

Matheus – Fala sério! Vou ver outro canal.

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Rogeria – Há! Vocês não vão me pegar! Eu sou o gatilho mais rápido da Zona

Oeste! Jerônimo!

Thayna – Armando Daniel, não podemos mais ficar nas garras daquela mulher

que faz o que queres com nossa relação.

Aline – Me desculpe Joana Beatriz, não posso brigar com ela por você, porque

não podemos ficar juntos!

(Entra Salazar mais fica olhando de longe)

Matheus – Caramba! É agora que o Armando Daniel conta que vai ficar com a

Maria Clarisse!

Thayna – Mais porque não?

Veruska – Porque ele se casará comigo sua traidora!

Thayna – Oh, Armando Daniel você e Maria Clarisse! Não pode ser!

Veruska – Claro que pode! Afinal, fomos criados no mesmo laboratório que você

ajudou a construir sua cientista maquiavélica!

Matheus/Salazar - É! Pega ela Maria Clarisse! Acaba com o laboratório e com os

seres ruins que moram nele!

Matheus (Dando um abraço) – Você! Onde você estava! Porque você sumiu?

Salazar (Sem graça pelo abraço) – Estava, estava... Por aí, se eu contar pra você

não vai acreditar mesmo!

Matheus – Você não vai acreditar! A Maria Clarisse e o Armando Daniel vão

destruir o laboratório da Doutora Joana!

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Salazar – Eu me lembro desse capítulo! Mais eu queria vê-lo de outra forma! Olha

só: (Entra Música de fundo)

Rogeria – Armando Daniel, não podemos mais ficar nas garras daquela mulher

que faz o que queres com nossa relação!

Thayna (De Homem) – Me desculpe Joana Beatriz, não posso brigar com ela por

você, porque não podemos ficar juntos!

Rogeria – Mais porque não?

Aline – Porque ele se casará comigo sua traidora!

Thayna – Oh, Armando Daniel você e Maria Clarisse! Não pode ser!

Veruska – Claro que pode! Afinal, todos nós fomos criados no mesmo laboratório

que você ajudou a construir sua cientista maquiavélica.

Rogeria – Nós? Mais nós quem?

(Entram os meninos do velho Oeste)

Matheus/Salazar - É! Pega ela Maria Clarisse! (Os dois rindo – A TV desliga)

Matheus – Que droga, essa TV desliga sempre nas melhores horas!

Salazar – Eu era feliz e não sabia... Hoje nem assistir televisão eu consigo, não

tenho tempo pra nada.

Matheus – Posso te falar uma coisa?

Salazar – Fala, pode falar.

Matheus – Eu nunca quero crescer...

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Salazar – Oh menino, mais você já cresceu.

Matheus – Então posso te fazer um pedido?

Salazar – Tá, pode...

Matheus – Não perca a eterna criança que tem em você, não me deixa ir embora

de vez. Promete pra mim?

Aline – Não!

Matheus – Não? Por quê?

Aline – Ele vem pro meu exército!

Salazar – Ai, eu não acredito! Você não tinha ido embora?

Aline – Não, ele vem pro meu exército!

Matheus – Ué, você conhece a Matilda?

Salazar – Matilda? Esse boneco é chato pra caramba!

Matheus – Epa! Não fala do meu boneco! Eu gosto muito dele! (Da um abraço em

Aline e a mesma aperta Matheus) Me solta Matilda, você ta me machucando!

Salazar – Solta ele o espantalho!

Aline – Não, ele vem pro meu exército! E se você quiser que eu o solte, tem que

vir também (...) pro meu exército! (Risos)

Matheus – Ué! Essa frase não está programada pra você falar!

Salazar – Solta ele ou te aplico meus golpes de Karatê!

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Matheus – Eu fiz karatê algum dia?

Aline – Não se atreva a tocar um dedo em mim!

Salazar – Você é muito marrento, vou lhe mostrar como sou forte!

(Dá-lhe um golpe mais Aline defende e dá um soco em sua cabeça deixando o

desmaiado)

Matheus – Socorro! Me solta Matilda! Socorro!

Aline – Não, você vem pro meu exército! (Risos)

Rogeria – O intruso! Achamos ele! Finalmente meu plano vai dar certo!

Veruska – Acorda meu Ken!

Thayna – Acorda pra sermos milionários!

Salazar – A Matilda levou o Matheus! Tenho que ir atrás dele! Meninas preciso

muito da ajuda de vocês. A Matilda levou o mestre supremo para o seu exército! E se não

resgatá-lo, poderá ser tarde de mais!

Rogeria – Este intruso está inventando esta história para fugir!

Thayna – Também acho!

Veruska – Dá pra vocês acreditarem ao menos uma vez no meu kenzinho?

(As três começam a falar como a cena do inicio da peça e Salazar começa a sentir-

se mal.)

Veruska – O que foi meu kenzinho?

Thayna – Esta passando mal?

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Rogeria – Nem pense em morrer agora!

Salazar – Meninas, minha esposa está precisando de mim ela vai dar a luz ao meu

primeiro filho!

Thayna – Que esposa? Ele ta ficando louco...

Veruska – Você já é casado? Ai essa Suzy me Paga!

Rogeria – Mais uma história pra tentar escapar! Intruso, você está se perdendo...

Salazar – Perdendo! Claro! O Matheus pediu para que eu não o perdesse, ele já

estava prevendo que ia sumir!

Thayna – Se ele sumiu mesmo onde vamos encontrá-lo?

Salazar – Não sei, mais creio que se eu achá-lo poderei voltar para onde está a

minha esposa!

Veruska – Agora eu que to confusa kenzinho, como vamos fazer isso?

Salazar – Eu tenho um plano e se o Matheus estiver com a Matilda, além de salvá-

lo e poder voltar pra minha casa é o fim daquela Capitã de meia tigela! Juntos?

Todos – Juntos!

Aline – Já está tudo pronto! Quero todos vocês posicionados a frente da estante.

Tenho certeza que aquele imbecil virá atrás de nós.Vão! Ele vem pro meu exército!

(O Exército fica de guarda, mais acabam todos dormindo, Salazar entra)

Salazar – Estava me esperando espanta neném?

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Aline – Imbecís! Deveria ter chamado ursinhos de pelúcia para fazer a guarda!

Sabia que iria vir, decidiu entrar pro meu exército agora?

Salazar – Agora não!

Aline – Agora sim!

Salazar – Agora não!

Aline - Agora sim!

Salazar (Sentindo-se mal) - Eu vou entrar sim, mais pra pegar o Matheus e ir

embora! E ninguém vai me impedir!

Aline – Ah não é? (Aline faz um sinal e se exército vem em cima de Salazar, ele

corre com medo) Vai correr seu medroso! Encare Agora!

Salazar – Eu também tenho meu exército! (Assobia - Entram as meninas e dançam

para o exército de Matilda, no final elas batem nos soldados até que eles caiam.)

Aline – Idiotas! Você veio atrás do Matheus, então tente levá-lo!

(Aparece Matheus ao fundo preso na bolsa em que começou o espetáculo.)

Matheus – Socorro! Me tira daqui!

Aline – Quero propor um jogo a você. Se ganhar leva o menino mais se perder

entra pro meu exército e ele e essas idiotas se tornam meus soldados também.

Thayna – Nos chamou de idiotas!

Veruska – Ei lindinha, só quem pode nos chamar assim é ela aqui ó!

Rogeria – Idiota é você seu brinquedo do Paraguai!

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Aline – Cala essa boca, antes vir do Paraguai do que vir dentro de uma caixinha

de papelão com hambúrguer, batata-frita e refrigerante.

Veruska – Então é essa a coleção que você faz parte?

Thayna – Eu recebo ordens de um brinquedo de lanchonete!

Rogeria – E qual o preconceito? Somos feitos do mesmo látex.

Veruska – O que é isso, latéxi?

Salazar – (Passando mal) Meninas, por favor, depois vocês discutem, Matilda qual

é o jogo que você me propõe?

Aline – Simples forasteiro, Uma partida de Xadrez!

Salazar – Xadrez, eu só era bom nisso quando era criança!

Matheus – Socorro!

Salazar – Tá bom, eu aceito a sua proposta, mais onde estão as peças?

Aline – As suas estão aí, mais vivas do que nunca! Exército, posição! Você

começa!

Salazar – Meninas confiem em mim! Vai ser difícil, mais vou tirar vocês dessa!

Quero Torre, duas casas para a direita.

Aline – Torre, uma casa a frente.

Salazar – Rei, uma a esquerda.

Aline – Bispo uma casa a direita, acho que você perdeu uma peça!

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Salazar – Tenho que me lembrar, Cavalo duas a frente!

Aline – Cavalo, L para frente e direita! Mais uma peça! Meu caro acho que deve

desistir!

Matheus – Não me deixa aqui! Socorro!

Salazar – Não posso perder o menino, só tenho uma peça.

Aline – Vamos, quero logo finalizar o jogo!

Salazar – Rainha uma casa a esquerda!

Aline – Acho que você perdeu! Cheque mate!

Veruska – Matheus! Seu cabeça de vento, ele ta no banheiro, na tampa do vaso!

Vê se não esquece mais esse bicho aqui não, oh menino!

Salazar – Valeu mãe! Matilda espere, você não pode dar o cheque mate.

Aline – Porque não?

Salazar – No Tabuleiro, suas peças têm uma a mais que nas minhas.

Aline – É verdade, serei justa, coloque uma peça de volta no tabuleiro.

Salazar – Não precisa! Eu tenho outra sobrando, MONKEY!!!

Aline – Não pode ser! O macaco não!

(Monkey vem derrubando os soldados e encarando Aline a mesma vai

enfraquecendo-se até cair no chão repetindo a frase que sempre fala)

Salazar (Abraçando as meninas) – Conseguimos! Monkey! Como eu pude me

esquecer de você meu amigão!

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Rogeria – É intruso, você conseguiu! Não o tenho na minha coleção, mais valeu

por não ter entrado para o exército desse louco!

Thayna – Estou pobre... Não serei mais milionária, mais obrigado por me salvar.

Veruska – Oh Lindão! Saiba que mesmo não sendo quem eu estava procurando e

não sendo musculoso igual aos outros bonecos heróis, você sempre será o meu Ken!

(Veruska da um beijo em Salazar)

Salazar – Obrigado meninas! Eu não conseguiria nada sem a ajuda de vocês e do

meu amigão que me acompanhou tantos anos da minha vida. Não te esqueço nunca mais

viu Monkey?

Matheus – Me tira daqui!

Salazar – O Matheus! Esquecemos dele.

Matheus (abraçando Salazar) – Eu achei que nunca ia sair dali! Monkey! Você

achou ele pra mim! Obrigado! Muito obrigado mesmo!

Salazar (passando mal) – Oh menino! Eu preciso despertar desse sonho, tenho que

encarar a realidade.

Matheus – Não, por favor, não vai embora!

Salazar – Você me pediu pra que eu não te perde-se, e já que te achei, vou te pedir

uma coisa também.

Matheus – o que?

Salazar – Mesmo sendo um menino, continue sempre sonhando para se tornar um

bom homem. Quando a gente para de sonhar a vida perde a graça.

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Matheus – Tá bom, nunca vou deixar de sonhar, mesmo que grande!

Meninas – Ai, Matheus! Vai nascer agora, me leva pro hospital!

Aline – Senhor Matheus preciso falar com você.

Matheus – Senhora Alfreda! Nunca fiquei tão feliz em vê-la! Minha esposa está

dando a luz!

Aline – É sobre luz mesmo que gostaria de falar.

Salazar – Agora não Senhora Alfreda, por favor.

Aline – Agora sim.

Salazar – Agora Não.

Aline - Agora sim você vai assinar a sua demissão!

Matheus – Mais demitido por quê?

Aline – Trouxe a luz que vai ajudar você! Você está demitido do cargo anterior!

Porque você foi promovido Senhor Matheus! Parabéns!

Meninas – Promovido? Vai nascer!

Salazar – Que feliz noticia senhora Alfreda!

Aline – Não! Senhora Alfreda não, apenas Alfreda, afinal de contas agora somos

sócios!

Meninas – Sócios? Vai nascer!

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Salazar – Preciso levar minha esposa ao hospital, acho que meu filho está

querendo vir antes da hora igual a mim.

Aline – Vamos lhe dou a carona até o hospital!

Salazar – Engraçado, a senhora, ou quer dizer, você parece com alguém que eu

conheço...Vamos! (Salazar sai com as meninas e com Aline, após volta) Eu disse que não

ia te esquecer mais. (Pega um Monkey pequeno) você a partir de hoje, vai ser do meu

filho!

(...)

Matheus – Eu não vou, não adianta, eu não vou sair daqui!

Todos – Sai, sai, sai, sai...

Matheus - Eu não vou!

Veruska – Mais você precisa ir Menino! Uma hora todos precisam ir.

Matheus – Mais está tão bom aqui. Porque tenho que sair?

Thiago – Menino deixe de ser teimoso e vá logo.

Matheus – Eu nem me acostumei ainda!

Thayna – E era pra se acostumar?

Salazar – O tempo de sete meses é tão curto que você nem viu passar.

Matheus – O normal não seria de nove? Porque só eu tenho que ser de sete?

Rogeria – Oh menino! Chega de tantos porquês. E entra logo nessa bolsa.

Matheus – Eu vou nascer de uma cegonha?

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Veruska – Isso mesmo! De uma linda cegonha que já está atrasada. Agora entre

logo na bolsa!

Todos – Sai, sai, sai, sai...

(música de enceramento, o exército trás Matheus na bolsa)

Todos – Parabéns senhor! É um lindo Menino!

Salazar (Tirando Matheus da bolsa) – E não é que o menino é a cara do pai?

FIM

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FIGURAS

Cena de Guandu no caminho de um rio

Primeira logo do grupo que remetia a distribuição das estações de trem na Cidade do Rio

de Janeiro

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Cartaz produzida para a peça memória Do outro lado da serra.

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Fotografia de Oh Menino

Cena de “Oh Menino”

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Teatro Da Laje cena do espetáculo A viagem da Vila Cruzeiro à Canaã de Ipanema numa

página de Facebook.

Teatro da Laje em Intervenção Urbana

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Nós do Morro em peça sobre a memória da comunidade

Nós do Morro em uma adaptação de Shakespeare.