universidade federal do rio de janeiro - pós clássicas ... à grande extensão do poema – que...

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Universidade Federal do Rio de Janeiro A TRADUÇÃO IDENTIFICADORA APLICADA AO LIVRO I DAS GEÓRGICAS DE VIRGÍLIO Arthur Rodrigues Pereira Santos 2014

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  • Universidade Federal do Rio de Janeiro

    A TRADUO IDENTIFICADORA APLICADA

    AO LIVRO I DAS GERGICAS DE VIRGLIO

    Arthur Rodrigues Pereira Santos

    2014

  • A TRADUO IDENTIFICADORA APLICADA

    AO LIVRO I DAS GERGICAS DE VIRGLIO

    Arthur Rodrigues Pereira Santos

    Dissertao de Mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em Letras

    Clssicas da Universidade Federal do Rio de

    Janeiro como quesito para a obteno do Ttulo

    de Mestre em Letras Clssicas.

    Orientador: Prof. Doutor Anderson de Araujo

    Martins Esteves

    Rio de Janeiro

    Dezembro de 2014

  • Santos, Arthur Rodrigues Pereira.

    A traduo identificadora aplicada ao Livro I das Gergicas de Virglio/

    Arthur Rodrigues Pereira Santos. Rio de Janeiro: UFRJ / FL, 2014.

    ix, 108f.; 29,7 cm.

    Orientador: Anderson de Araujo Martins Esteves

    Dissertao (mestrado) UFRJ/ FL/ Programa de Ps-Graduao em

    Letras Clssicas, 2014.

    Referncias Bibliogrficas: f. 115-117

    1. Traduo identificadora. 2. Gergicas. 3. Virglio. I. Esteves,

    Anderson de Araujo Martins. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,

    FL, Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas. III. A traduo

    identificadora aplicada ao Livro I das Gergicas de Virglio.

  • A TRADUO IDENTIFICADORA APLICADA

    AO LIVRO I DAS GERGICAS

    Arthur Rodrigues Pereira Santos

    Orientador: Prof. Doutor Anderson de Araujo Martins Esteves

    Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em

    Letras Clssicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte

    dos requisitos necessrios para a obteno do ttulo de Mestre em Letras

    Clssicas.

    Examinada por:

    _________________________________________________

    Presidente, Prof. Doutor Anderson de Araujo Martins Esteves UFRJ

    _________________________________________________

    Profa. Doutora Fernanda Lemos de Lima UERJ

    _________________________________________________

    Profa. Doutora Arlete Jos Mota UFRJ

    _________________________________________________

    Profa. Doutora Tania Martins Santos UFRJ, Suplente

    _________________________________________________

    Prof. Doutor lvaro Alfredo Bragana Junior UFRJ, Suplente

    Rio de Janeiro

    Dezembro de 2014

  • AMATO PATRI HOC OPVS DEDICO

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Professor Doutor Anderson de Araujo Martins Esteves, por ter acreditado

    desde o incio nesta pesquisa, por sempre me estimular, por ter sido muito mais

    que um orientador atento e perspicaz; na verdade, um verdadeiro amigo para

    todas as horas.

    Professora Doutora Tania Martins Santos, pela afetuosa e constante solicitude

    e pela participao na banca de defesa desta dissertao.

    Professora Doutora Arlete Jos Mota, por ter feito Catulo e Marcial entrarem na

    minha vida e pela participao na banca de defesa desta dissertao.

    Aos Professores Doutores Fernanda Lemos de Lima e lvaro Alfredo Bragana

    Junior, pela participao na banca de defesa desta dissertao.

    Professora Doutora Mra Rodrigues Vieira, por ter-me apresentado na

    graduao a um certo Virglio, o que foi a origem deste trabalho.

    Aos queridos amigos Eduardo Trindade e Juliana Quaresma, pelas palavras de

    incentivo.

    querida amiga Manuelle Felix, pelo apoio constante desde o incio deste

    trabalho, pelas sugestes no seu desenvolvimento, pelas tradues do francs e

    pelas palavras de incentivo.

    Ao meu primo Rodrigo Villarino, pela troca generosa de experincias e pelas

    palavras de estmulo.

    melhor das irms, Lvia Rodrigues, por me apoiar constantemente com palavras

    doces e estimulantes e por sempre acreditar na concretizao deste trabalho.

    Aos meus amados pais, Kleber Arthur Chifarelli e Aurenir Pereira Santos, pelo

    constante incentivo e pelo suporte incondicional.

    senhorita mais linda do mundo, Fabola Xavier, pelo apoio incondicional, pela

    compreenso nos momentos difceis, pelas tradues do ingls, pela leitura da

    minha traduo, apontando valiosas sugestes, e por dar sentido minha vida.

  • RESUMO

    A TRADUO IDENTIFICADORA APLICADA

    AO LIVRO I DAS GERGICAS DE VIRGLIO

    Arthur Rodrigues Pereira Santos

    Orientador: Anderson de Araujo Martins Esteves

    Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-

    Graduao em Letras Clssicas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do

    ttulo de Mestre em Letras Clssicas.

    Este trabalho tem como objetivo a definio do conceito de traduo identificadora

    e a sua posterior aplicao prtica ao Livro I das Gergicas de Virglio. Por se

    tratar de um conceito bastante amplo, decidimos limit-lo s propostas de quatro

    tericos: Friedrich Schleiermacher, Lawrence Venuti, Antoine Berman e Haroldo

    de Campos. Apesar de estes autores apresentarem algumas diferenas

    conceituais, todos compartilham a noo bsica de que a traduo identificadora

    deve abrigar em seu corpo textual as peculiaridades genunas do texto de origem,

    podendo-se dizer que eles so adeptos, cada um sua maneira, dessa

    modalidade de traduo. Esse suporte terico forneceu diretrizes que nortearam o

    nosso processo tradutrio, marcado pela utilizao do verso decasslabo e pelas

    estratgias de estranhamento nele atuantes.

    Palavras-chave: traduo identificadora; Gergicas; Virglio

    Rio de Janeiro

    Dezembro de 2014

  • ABSTRACT

    OVERT TRANSLATION APPLIED

    TO THE BOOK I OF GEORGICS BY VIRGIL

    Arthur Rodrigues Pereira Santos

    Orientador: Anderson de Araujo Martins Esteves

    Abstract da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-

    Graduao em Letras Clssicas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do

    ttulo de Mestre em Letras Clssicas.

    This assignment has the purpose of defining the concept of overt translation and

    its posterior practical application to the Book I of Georgics by Virgil. It has a very

    broad concept, due to this reason we are going to limit it to the theories of the

    following authors: Friedrich Schleiermacher, Lawrence Venuti, Antoine Berman

    and Haroldo de Campos. Even though these authors present conceptual

    differences, they share the same basic notion that overt translation must have in

    its textual body the true peculiarities of its original text; and also we may infer that

    each one of them, in their own way, are adepts of this style of translation. This

    theoretical support was the main guideline of our translation process, marked by

    the use of decasyllable verse and by the estrangement strategies in this process.

    Keywords: overt translation; Georgics, Virgil

    Rio de Janeiro

    Dezembro de 2014

  • SUMRIO

    INTRODUO 10

    1 AS GERGICAS DE VIRGLIO 13

    1.1 Panorama 14

    1.1.1 Contexto histrico-social 14

    1.1.2 A literatura latina no processo de restaurao augustano 16

    1.1.3 O gnero didtico 22

    1.1.3.1 Origens pr-socrticas e a nova abordagem alexandrina 22

    1.1.3.2 O gnero didtico em Roma 24

    1.1.4 O grande tema das Gergicas 26

    1.1.5 Fontes predecessoras 29

    1.1.5.1 Hesodo 29

    1.1.5.2 Arato 30

    1.1.5.3 Lucrcio 31

    1.1.5.4 Varro 33

    1.2 O Livro I das Gergicas 34

    1.2.1 Promio 36

    1.2.2 Parte 1: o cultivo dos cereais 37

    1.2.3 Parte 2: o calendrio do agricultor 40

    1.2.4 Parte 3: os sinais meteorolgicos 43

    2 QUATRO CONCEPES DE TRADUO IDENTIFICADORA 45

    2.1 Os modelos binrios de Schleiermacher e Venuti 46

    2.1.1 Os dois caminhos de Schleiermacher 46

    2.1.2 Venuti e a invisibilidade do tradutor 51

    2.2 A traduo literal de Berman 54

    2.2.1 Os traos da traduo cannica ocidental 56

    2.2.2 Algumas tendncias deformadoras 59

    2.2.3 A traduo literal em ao 61

    2.3 A transcriao de Haroldo de Campos 63

  • 2.3.1 A transcriao da Ilada como modelo intensivo de traduo 67

    2.3.2 Influncias poundianas na transcriao 69

    3 O PROCESSO DA TRADUO 72

    3.1 Mtrica 73

    3.2 Estratgias de estranhamento 82

    3.2.1 Latinizao 83

    3.2.2 Literalizao 87

    4 TRADUO 96

    CONCLUSO 113

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 115

  • 10

    INTRODUO

    Em seu livro A traduo vivida, o tradutor hngaro-brasileiro Paulo Rnai

    (1981, pp. 20-21) discorreu de maneira interessante sobre a etimologia do termo

    traduo. Originrio do verbo latino traducere, que significava levar algum pela

    mo para o outro lado, o termo passou a ser entendido, com o decorrer do

    tempo, como o ato de se conduzir um texto para o domnio de outra lngua; dessa

    forma, o sujeito da ao seria o tradutor e o objeto, o texto de origem. Entretanto,

    Rnai considerou outra possibilidade, menos bvia: a de se levar o leitor para

    outro domnio lingustico que no o seu.

    Levar uma obra estrangeira para outro domnio lingustico acarreta a sua

    adaptao a esse novo meio, que se d atravs da eliminao de suas

    caractersticas peculiares, configurando-se um processo de naturalizao. No

    por acaso, Rnai chamou de naturalizadora essa maneira de traduzir. Por outro

    lado, quando se leva o leitor para o ambiente estrangeiro, o tradutor, ao contrrio,

    deve conservar justamente o que o contedo original tem de estranho e genuno,

    acentuando a sua origem extica. Essa variante foi denominada por Rnai de

    traduo identificadora.

    Sempre manifestamos interesse por essa ltima via, que tem como

    adeptos os tradutores mais criativos, preocupados, cada um sua maneira, com

    a manuteno das caractersticas exticas do texto de partida, entre os quais

    figuram Odorico Mendes, Haroldo de Campos, Joo Angelo Oliva Neto, Raimundo

    Carvalho e Trajano Vieira, para ficarmos apenas com os brasileiros.

    Resolvemos, portanto, avaliar a possibilidade de aplicao prtica dos

    conceitos fundamentais da traduo identificadora a uma obra latina clssica, as

    Gergicas de Virglio, mais especificamente ao primeiro livro dos quatro que

    compem o grande poema didtico sobre a agricultura. Em geral, as Gergicas

    no so as protagonistas do corpus potico virgiliano, cabendo esse posto s

    Buclicas, poema pastoril de forte inspirao alexandrina e Eneida, o grande

    pico da latinidade. Por consequncia, ambos os poemas contam com inmeras

    tradues, algumas de grande qualidade artstica. O mesmo no se pode dizer

    das Gergicas, as quais, a nosso ver, contam em portugus com apenas duas

    tradues vlidas artisticamente, ambas datadas do sculo XIX. Referimo-nos s

  • 11

    verses de Odorico Mendes1 e de Feliciano de Castilho2. Esse contexto foi o

    nosso motivador para uma nova abordagem tradutria aplicada a uma obra ainda

    pouco explorada. Entretanto, devido ao restrito espao de um trabalho dissertativo

    e grande extenso do poema que conta com mais de dois mil versos ,

    tivemos que nos limitar apenas traduo de seu primeiro livro.

    Antes, porm, de empreendermos a traduo, foi necessrio contextualizar

    o poema virgiliano, assim como delimitar teoricamente a amplitude conceitual que

    o tema da traduo identificadora abriga. Dessa forma, decidimos estruturar este

    trabalho em quatro captulos.

    No primeiro captulo, pretendeu-se abordar as Gergicas atravs de dois

    grandes planos, um de teor mais geral, apresentando o poema sob uma

    perspectiva panormica, no qual so tratados a contextualizao histrico-social

    da obra, o gnero literrio a que ela pertence e suas principais fontes

    predecessoras; j o segundo plano trata especificamente do primeiro livro, o

    nosso corpus propriamente dito, limitando-se a uma anlise mais detalhada de

    sua estrutura.

    No segundo captulo, buscamos delimitar conceitualmente a traduo

    identificadora segundo o ponto de vista de quatro tericos, a saber: Friedrich

    Schleiermacher (2007), Lawrence Venuti (1995), Antoine Berman (2007) e

    Haroldo de Campos (2004). Apesar de esses autores apresentarem diferenas

    conceituais no que diz respeito ao fenmeno da traduo, eles compartilham, no

    entanto, a mesma noo bsica de que ela deve abrigar em seu corpo textual as

    peculiaridades genunas do texto de origem. Dessa forma, pode-se dizer que os

    quatro tericos so adeptos, sua maneira, da traduo da identificadora.

    O terceiro captulo apresenta um carter nitidamente experimental, no

    sentido de apresentar uma descrio de nossa experincia tradutria. Ele se

    divide em dois grandes blocos temticos: o primeiro referente mtrica aplicada

    na traduo e os seus respectivos desdobramentos; o segundo trata das

    estratgias adotadas que visavam manuteno de certas caractersticas

    importantes do contedo original. Tambm nessa parte apresentamos algumas de

    nossas solues para determinados trechos do poema, acompanhadas com os

    1 MENDES, Odorico. Virgilio brazileiro ou traduco do poeta latino. Typ. W. Remquet, 1858.

    2 DE CASTILHO, Antonio Feliciano. As Georgicas de Virgilio. Typographia de Ad. Lain e J.

    Havard, 1867.

  • 12

    trechos correspondentes das tradues de Odorico Mendes e Feliciano de

    Castilho, a fim de se estabelecer um dilogo comparativo.

    Finalmente, o quarto e ltimo captulo contm a nossa traduo do primeiro

    livro das Gergicas, tendo ao lado o original latino. Buscamos assim, atravs

    desse ordenamento dos captulos, realizar um movimento gradual, que parte do

    plano mais terico (captulos 1 e 2) para o mais prtico (captulos 3 e 4).

    Para a realizao deste trabalho, tomou-se por base o texto latino da

    edio crtica de E. de Saint-Denis da Les Belles Lettres (1966), alm de

    tradues do poema didtico virgiliano,utilizadas como consulta e comparao,

    entre as quais destacamos o primeiro volume de O Virglio brasileiro: ou a

    traduo do poeta latino (1995) de Odorico Mendes, no qual as Buclicas e as

    Gergicas foram vertidas em decasslabos brancos pelo poeta e erudito

    maranhense. Outra traduo potica importante, composta em versos

    alexandrinos rimados, foi a realizada pelo poeta romntico portugus Antnio

    Feliciano de Castilho, contida na obra Gergicas e Eneida (1964), na qual

    tambm consta a traduo da Eneida empreendida por Odorico Mendes.

    Tambm nos servimos de duas tradues em prosa, as quais se

    mostraram bastante teis, a saber: As Gergicas de Verglio: verso em prosa

    dos trs primeiros livros e comentrios de um agrnomo (1948), cuja traduo e

    comentrios de Ruy Mayer solucionaram muitas dvidas que exigiam profundos

    conhecimentos tcnicos e Gergicas I (2013), recentssima traduo em prosa do

    primeiro livro do poema, empreendida por Matheus Trevizam.

  • 13

    1 AS GERGICAS DE VIRGLIO

    P. Virglio Maro (70 a. C. 19 a. C.) iniciou a composio de sua segunda

    grande obra potica, as Gergicas, por volta do ano 37 a. C3., logo aps a

    publicao de sua coletnea de poemas pastoris, as Buclicas, que tiveram como

    modelo os idlios do poeta alexandrino Tecrito, natural da cidade de Siracusa.

    Diferentemente desse trabalho anterior, concebido pelo poeta mantuano

    como uma forma de lusus (distrao), impregnada de preceitos epicuristas, com

    seus pastores-poetas vivendo isolados numa Arcdia idealizada, afastados da

    realidade dolorosa do ambiente citadino4, as Gergicas revelam um processo de

    amadurecimento, tanto no que diz respeito tcnica potica empregada quanto

    s concepes filosficas e morais.

    Trata-se agora de uma obra maior pouco mais de dois mil hexmetros

    datlicos , complexa e de natureza didtica, na qual Virglio disserta sobre os

    aspectos da agricultura italiana. O poema se divide em quatro livros, cada um

    com sua temtica definida, respectivamente: o cultivo dos cereais (Livro I); a

    arboricultura, destacando-se o plantio e manejo das videiras (Livro II); a criao

    de animais (Livro III) e, por fim, a apicultura (Livro IV) atividade que era a nica

    fonte para a produo de acar naqueles tempos. O prprio poeta anuncia em

    seus primeiros versos a ordenao de seu plano:

    Quid faciat laetas segetes, quo sidere terram

    uertere, Maecenas, ulmisque adiungere uitis

    conueniat, quae cura boum, qui cultus habendo

    sit pecori, apibus quanta experientia parcis

    hinc canere incipiam. (Georg., I, vv. 1-5)

    O que faz as searas abundantes,

    qual a melhor estrela na lavoura,

    quando olmeiros convm ligar s vides,

    o cuidado com o gado, a experincia

    3 Determinar o ano exato do incio da composio das Gergicas no tarefa das mais fceis.

    Alguns autores, como Bayet (1996, p. 203), afirmam que tal fato se deu dois anos antes, em 39 a. C.; outros, como Rostagni (1948, p. 188), no ano 37 a. C. 4 Estamos generalizando, obviamente, visto que a primeira e nona buclicas indiretamente

    apresentam como pano de fundo uma sria questo social: a espoliao de propriedades agrcolas por parte dos veteranos do exrcito de Otaviano.

  • 14

    tamanha que as abelhas laborantes

    requerem: a partir de agora vou,

    Mecenas, cantar.5 (vv. 1-7, grifo nosso)

    Neste primeiro captulo, pretendemos realizar uma anlise composta de

    dois momentos: no primeiro, estudaremos as Gergicas como um todo,

    observando aspectos mais genricos, tais como o contexto histrico-social no

    qual elas estavam inseridas, o gnero literrio a que pertencem, suas fontes,

    motivaes etc. Posteriormente, trataremos de maneira mais especfica o primeiro

    livro, que o nosso corpus propriamente dito.

    1.1 Panorama

    1.1.1 Contexto histrico-social

    As Gergicas foram concebidas lentamente durante um perodo da histria

    romana repleto de acontecimentos significativos, poucos anos aps a batalha de

    Filipos, em 42 a. C. at a de cio, no ano de 31 a. C.

    Na plancie de Filipos, as tropas comandadas por Bruto e Cssio,

    defensores da causa republicana, sucumbiram diante das foras de Otaviano e

    Marco Antnio, instaurando-se a partir da um segundo triunvirato: a Otaviano

    caberia o comando da parte ocidental da nova administrao; Antnio ficaria com

    o Egito, a Grcia e a sia menor e, por fim, Lpido que anos mais tarde foi

    afastado do poder e exilado de Roma governaria a provncia da frica, a atual

    Tunsia.

    Com a sada de Lpido definitivamente uma figura sem grandes

    ambies polticas , o comando do estado romano se polarizou entre Otaviano e

    Marco Antnio, que sempre nutriam um dio mtuo. Desde o incio do segundo

    triunvirato, conspiravam um contra o outro. Politicamente, foi um perodo marcado

    pela instabilidade, que se refletia nestes famosos versos finais do primeiro livro

    das Gergicas:

    5 Neste captulo, utilizaremos a nossa traduo do primeiro livro das Gergicas para as

    exemplificaes. Note-se que a numerao dos versos dela difere da do original latino.

  • 15

    quippe ubi fas uersum atque nefas: tot bella per orbem,

    tam multae scelerum facies, non ullus aratro

    dignus honos; squalent abductis arua colonis

    et curuae rigidum falces conflantur in ensem.

    Hinc mouet Euphrates, illinc Germania bellum;

    uicinae ruptis inter se legibus urbes

    arma ferunt; saeuit toto Mars impius orbe:

    ut, cum carceribus sese effudere quadrigae,

    addunt in spatia et frustra retinacula tendens

    fertur equis auriga neque audit currus habenas. (Georg., I, vv. 505-514)

    o certo e o errado trocam seus lugares:

    tanta guerra, to mltipla a face

    do crime polo mundo; o digno arado

    no se honra; falecem as lavouras,

    que no podem contar com seus colonos;

    forja-se em duro gldio a foice curva;

    do Eufrates Germnia a guerra impera;

    quebram-se as alianas nas fronteiras;

    polo mundo, o Mavorte se enraivece,

    como essas quadrigas disparando

    das cocheiras: a cada volta, o auriga,

    arrastado, frear tenta os cavalos,

    porm o carro nem lhe d ouvidos. (vv. 630-642)

    O propsito do triunvirato, repartir o poder a fim de que se evitassem as

    disputas sangrentas do perodo precedente, ainda to vvidas na memria do

    povo romano, mostrava-se cada vez mais ilusrio, no tardando para que os dois

    homens mais poderosos de Roma travassem guerra, culminando na derradeira

    batalha naval de cio, a 2 de setembro de 31 a. C., da qual Antnio foi

    definitivamente derrotado, vindo a suicidar-se um ano depois.

    Senhor absoluto do mundo romano, Otaviano que anos mais tarde

    receberia o religioso ttulo de Augustus aprendeu perfeitamente quais seriam as

    consequncias de um governo de aparncia ditatorial, fundado na antiga

    concepo de monarquia helenstica, o qual seu pai adotivo, Jlio Csar, tentou

    implementar: decerto ele teria o mesmo destino que este, apunhalado pelos

  • 16

    senadores conjurados. Precavido, o futuro imperador de Roma preferiu o caminho

    da conciliao:

    [...] o jovem Otaviano se posicionava no caminho da conciliao e dos compromissos, e gradualmente alcanava um ordenamento mais igualitrio, mais slido, e verdadeiramente duradouro, que representava enfim a paz aps tantas batalhas: um ordenamento no qual as exigncias do governo pessoal naquele momento indispensvel acomodavam-se com o respeito s tradies e aos direitos de diversas ordens sociais, e salvavam ao menos um pouco da aparncia da antiga Repblica. (ROSTAGNI, 1948, p. 175)

    6

    Se o perodo em que Csar governou foi marcado pelas guerras e

    revolues, o novo estgio poltico inaugurado por Otaviano se caracterizaria pela

    paz. Diferentemente do entendimento comum que temos pelo termo paz, a pax

    Romana no era do tipo inativa, na qual os homens viviam despreocupados na

    inrcia e nos prazeres: era uma paz conquistada aps grandes sofrimentos, uma

    paz que exigia trabalho e perseverana para a sua manuteno. Ela estava aliada

    com a fora: no significava apenas segurana no interior das fronteiras do novo

    imprio, mas tambm uma misso de propagar aos povos vizinhos a civilizao

    romana, impondo-lhes os seus valores. Essa noo de paz perpassou todos os

    mbitos da sociedade romana, inclusive o mbito literrio.

    1.1.2 A literatura latina no processo de restaurao augustano

    bvio que o programa de restaurao empreendido por Augusto no se

    limitava meramente reestruturao poltica: tambm ela apresentava um carter

    moral, religioso o retorno s velhas tradies e costumes da antiga Repblica

    e tambm literrio: as obras do perodo se conformavam com o iderio

    restaurador do novo governante sem perder a sua espontaneidade, sem a qual

    resultariam numa literatura servil, de perfil propagandstico. O surgimento das

    obras artsticas da era de Augusto se deve muito mais confluncia de

    6 [...] il giovane Ottaviano si meteva per la via della conciliazione e dei compromessi, e di grado in

    grado giungeva a un ordinamento pi equo, pi solido, e veramente duraturo, che rappresentava alfine la pace dopo tanto battagliare: un ordinamento in cui le esigenze del governo personale che allora era indispensabile si accordavano col rispetto alle tradizioni e ai diritti dei diversi ordini sociali, e salvavano qualche apparenza almeno dellantica Repubblica.

  • 17

    concepes de vida e arte compartilhadas tanto pelos escritores quanto pelo alto

    escalo do novo regime governamental do que a alguma forma de imposio.7

    Agora, a nova fase da literatura latina marcada por um indito senso de

    equilbrio e de serenidade, ausente na produo do perodo anterior: apesar de

    neste ter havido grandes poetas e prosadores, tais como Ccero, Catulo, Lucrcio

    e o prprio Csar, com seus comentrios de campanhas militares, faltava-lhes a

    harmonia clssica alcanada pelos escritores augustanos, os quais conseguiram

    conferir s suas obras uma aura de universalidade.

    A poesia latina, em especial, atinge uma nova fase, afastando-se dos

    modelos alexandrinos, muito comuns num Catulo ou Lucrcio, para reencontrar-

    se com os grandes clssicos gregos, como afirmou Bayet (1996, p. 202): E, visto

    que o gosto est mais amadurecido, os autores se voltam de forma mais resoluta

    aos grandes clssicos da Grcia, Homero, Hesodo, Alceu, Safo, Arquloco:

    absorvendo aquela grandeza singela, a sbria plenitude, a exatido das

    propores.8

    Outra caracterstica dessa nova fase foi o maior desenvolvimento dos

    crculos literrios. Apesar de no se constituir em nenhuma novidade o patrocnio

    efetuado por grandes personagens do Estado haja vista o famoso Crculo de

    Cipio, grupo que reunia importantes polticos, filsofos e poetas, que se prestava

    a discutir a cultura grega em suas mltiplas facetas essa iniciativa intensificou-

    se bastante durante o perodo augustano.

    Coube a C. Clnio Mecenas (68 a. C 8 d. C.) a honra de ter o seu nome

    transformado em epnimo na posteridade. De fato, quando hoje usamos o termo

    mecenas, referimo-nos a uma pessoa considerada patrono das artes. E foi

    exatamente esse um dos papis desempenhados pelo principal amigo e ministro

    do imperador Augusto.

    Mecenas, ele prprio, possua certas veleidades literrias: autor de poesias

    eruditas e ligeiras, moda alexandrina, ele trazia para a sua vida cotidiana o

    7 No entanto, sabemos atravs de dos Santos (2007, p. 49) que, a pedido de Augusto, Virglio teve

    de substituir o ltimo episdio do livro IV das Gergicas, no qual se narravam os feitos do seu carssimo amigo, Cornlio Galo, em terras egpcias, pelo fato deste ter cado em desgraa por suspeita de participar de uma rebelio contra o novo governante. 8 Et puis, parce que le got est plus mr, ils sadressent plus rsolument aux grands classiques de

    la Grce, Homre, Hsiode, Alce, Sappho, Archiloque: ils apprennent grandeur simple, sobre plenitude, justesse des proportions.

  • 18

    mesmo gosto refinado tpico de seus versos9. Essas caractersticas, aliadas

    proximidade estreita com as figuras mais importantes do imprio e ao anseio

    compartilhado com Augusto de promover uma profunda renovao no campo

    literrio foram as condies ideais que fizeram de Mecenas o maior patrono da

    histria da literatura latina.

    Mecenas reunia sob a sua proteo os maiores poetas da poca, entre os

    quais figuravam Virglio, Horcio e Proprcio, alm de poetas de menor estatura.

    Horcio, por exemplo, recebeu grande suporte financeiro de Mecenas, a quem foi

    apresentado por intermdio de Virglio. Sabe-se que o poeta das Odes viveu

    tranquilamente o resto de sua vida numa casa de campo situada na regio de

    Sabina; a casa tinha sido um presente de Mecenas. Tambm Proprcio foi

    encorajado por Mecenas a se desviar de sua temtica amorosa e compor elegias

    de tom mais patritico, melhor conformadas aos interesses pblicos.

    Igualmente, Virglio no passaria inclume forte influncia de Mecenas:

    supe-se, de acordo com a tradio, que at mesmo as Gergicas foram

    compostas graas ao pedido insistente do grande patrono, que nutria desejo pela

    criao de uma obra literria de maior escala que valorizasse a questo da

    agricultura, verdadeira fonte de riqueza e glria do Estado romano; atividade que

    ocupava naquele momento posio das menos importantes, como bem assinalou

    Perret:

    Entre as artes antigas pelas quais o renome latino e a fora da Itlia se solidificaram, nenhuma delas caiu tanto na inatividade, atravs da insegurana dos tempos, quanto o cultivo da terra. A restaurao da velhos Colonos da Itlia e o renascer das grandes formas da indstria nacional, associados com as mais antigas e felizes lembranas de Roma, tm sido a caracterstica principal na poltica de grandes lderes populares desde os Gracos at Jlio Csar. (PERRET, 1966, p. 177).

    10

    No toa que o poeta mantuano dedicou a sua segunda grande obra a

    Mecenas. De fato, no incio de cada livro, o vocativo Maecenas est presente:

    Livro I (v. 2); Livro II (v. 11); Livro III (v. 41) e Livro IV (v. 2). Na maior parte dessas

    9 Cf. ROSTAGNI, 1948, p. 177.

    10 Among the ancient arts by which the Latin name and the strength of Italy had waxed great,

    none had fallen more into abeyance, through the insecurity of the times, than the cultivation of the land. The restoration of the old Coloni of Italy and the revival of great forms of national industry, associated with the older and happier memories of Rome, had been a leading feature in the policy of great popular leaders from Gracchi down to Julius Caesar.

  • 19

    aparies, o nome de Mecenas um simples destinatrio, com exceo no

    terceiro livro: aqui, Virglio teria dado a entender que estava seguindo ordens

    expressas de seu benfeitor, ordens que estariam materializadas pelas palavras

    haud mollia iussa11. So apenas trs palavras, mas que suscitaram comentrios

    dos mais diversos estudiosos quanto natureza da relao entre o poeta e

    Mecenas, visto que elas poderiam ser a prova cabal de que as Gergicas foram

    um poema encomendado, realizado por induo de uma ordem expressa do

    ministro de Augusto. Realmente, no faltam evidncias de que houve certas

    intervenes de terceiros na composio da obra, como foi o caso da

    substituio, exigida pelo imperador, do ltimo episdio do quarto livro, o que j

    referimos anteriormente12.

    Perret (1966) j tinha observado que a natureza da relao entre Virglio e

    seu destinatrio, Mecenas, d-se de maneira diversa quando comparada, por

    exemplo, com a de Lucrcio autor de outro poema didtico, De rerum natura

    (Da natureza das coisas) e Mmio, a quem o poema foi endereado:

    O primeiro paralelo a ser notado, em comparao entre os dois poemas, est no endereamento pessoal. Mecenas se relaciona com as Gergicas do mesmo modo que Mmio com o De Rerum Natura. Mas enquanto Mmio, no corpo do poema, normalmente associado ao estudante filosfico ideal, Virglio, depois de linhas de elogios na abertura de seus vrios livros, direciona a maior parte de suas instrues para um campons imaginrio. [] Em um caso [Da natureza das coisas] ns reconhecemos um homem, nascido no mesmo patamar da aristocracia republicana, que no conhece classe superior sua no mundo, atrado por algum a quem honra pela sua exclusiva dedicao atravs das alegrias da sua amizade. No outro caso [Gergicas], mesmo que a afeio no seja menos sincera, h uma inconfundvel deferncia a uma classe superior. (PERRET, 1966, p. 215, grifo nosso).

    13

    11

    Odorico Mendes (1995, p. 237) traduziu o polmico verso 41 da seguinte forma: Por teu no fcil mando enfim, Mecenas, (grifo nosso). 12

    Ver a nota 7 deste captulo. 13

    The first parallel to be noticed, in the comparison between the two poems, is in the personal address. Maecenas stands in the same relation to the Georgics as Memmius does to the De Rerum Natura. But as Memmius in the body of the poem is often merged in the ideal philosophical student, so Virgil, after the lines of compliment at the opening of his various books, for the most part directs his instructions to some imaginary husbandman. [] In the one case we recognise the man, born into the equal relations of an aristocratic Republic, who knows of no social superior in the world, and is attracted to him whom he honours by his dedication solely by charm of friendship. In the other case, though the affection may not be less sincere, there is the unmistakeable note of deference to a social superior.

  • 20

    De fato, a relao entre Virglio e Mecenas se caracteriza pelo

    desnivelamento social, ocupando este ltimo uma posio superior. Virglio no

    pertencia classe aristocrtica, como Mecenas, apesar de no ter vindo de uma

    origem to humilde, como muitos pensam, haja vista a educao esmerada que

    lhe foi proporcionada por seu pai14. Lucrcio, no entanto, olhava Mmio como um

    seu igual. Os tempos eram outros: enquanto Lucrcio e Mmio eram cidados da

    Repblica, na qual o poder era compartilhado pela classe aristocrtica de forma

    quase igualitria, Virglio vivia num imprio ou, para sermos mais precisos, num

    principado, no qual um cidado em particular tinha importncia maior que os

    demais. O desnivelamento social entre Virglio e Mecenas nada mais , a nosso

    ver, do que o reflexo da nova estrutura social.

    Ainda assim, preferimos compartilhar da opinio de dos Santos (2007, p.

    18), segundo a qual o poeta teria aceitado a sugesto de escolher por uma

    determinada escritura no por obrigao, mas porque isso correspondia sua

    prpria inspirao. Claro que Mecenas exercia uma forte influncia, mas seria

    ingnuo pensar que esta ultrapassasse os limites do arbtrio de Virglio. O prprio

    poeta nos fornece uma pista de como se dava tal relao peculiar, atravs de

    uma interessante metfora no livro II:

    Maecenas, pelagoque uolans da uela patenti. (Georg,, II, v. 11)

    (...) tu Mecenas,

    Meu vero ornato e mor poro na fama,

    Velvolo navega em mar patente. (vv. 9-11, grifo nosso)15

    O que em outras palavras quer dizer: Mecenas o vento que empurra a

    embarcao (as Gergicas), mas o piloto ou comandante o poeta. De fato,

    Grimal (apud DOS SANTOS, 2007, p. 19), pensa que no importa tanto o sentido

    preciso de haud mollia iussa, se se trata de uma ordem, conselho ou convite, mas

    sim, a anlise dessas trs palavras num contexto maior. Por exemplo, voltemos

    passagem original onde tais vocbulos se encontram:

    14

    Ver WILKINSON, 1969, pp. 19-24 15

    MENDES, 1995, p. 181.

  • 21

    Interea Dryadum siluas saltusque sequamur

    intactos, tua, Maecenas, haud mollia iussa. (Georg., III, vv. 40-41).

    Por teu no fcil mando enfim, Mecenas,

    O intacto bosque e as Dradas sigamos.16

    Talvez a palavra-chave aqui seja o adjetivo intactos: as matas das Drades

    e os bosques intactos poderiam ser analisados como uma metfora para a nova

    temtica que estava prestes a ser abordada numa obra potica: a criao de

    animais. Trata-se de um territrio virgem (intacto), o qual nenhum poeta antes de

    Virglio empreendeu cantar.

    Seguindo essa linha de pensamento, as ordens de Mecenas faziam

    meno ao acrscimo de novos assuntos ao poema. De fato, como assinalam

    Gaillard & Martin (1990) a criao de animais no fazia parte do plano inicial de

    Virglio: o termo gergico deriva da palavra grega georgs, cujo valor semntico

    se restringia aos trabalhos da terra, agricultura propriamente dita:

    [...] enfim, Virglio diz de forma mais clara no incio do canto III que por obedecer s "ordens expressas" de seu poderoso protetor, o estadista Mecenas, que ele se decidiu a escrever um canto dedicado criao de animais. Isso no foi, portanto, a sua inteno inicial, e muito provvel que em sua mente as Gergicas deveriam ser um poema estritamente "agrcola", ou seja, limitadas aos dois primeiros cantos [...]. (GAILLARD & MARTIN, 1990, p. 206).

    17

    Assim, pode-se afirmar que apenas os dois primeiros livros

    especialmente o primeiro so essencialmente gergicos; da ser uma empresa

    nada fcil (haud mollia) tratar de uma nova temtica, ainda intacta. Grimal (apud

    DOS SANTOS, 2007, p. 26) ainda sugere a hiptese de que Virglio considerou a

    sugesto de Mecenas de tratar da criao de gado, assim como das abelhas,

    provavelmente por descobrir que essa amplificao pudesse conferir ao seu

    poema uma unidade maior.

    16

    MENDES, 1995, p. 237. 17

    [...] enfin Virgile dit de la faon la plus nette, au dbut du chant III, que cest pour obir aux ordres exprs de son puissant protecteur, lhomme dtat Mcne, quil sest dcid crire un chant consacr llevage. Telle ntait donc pas son intention premire, et il est trs probable que dans son esprit les Gorgiques devaient tre un pome strictement agricole, cest--dire limit aux deux premiers chants [...].

  • 22

    1.1.3 O gnero didtico

    1.1.3.1 Origens pr-socrticas e a nova abordagem alexandrina

    Sartre (apud GAILLARD & MARTIN, 1990, p. 198) j dizia no primeiro

    captulo do seu Quest-ce que la littrature? que a prosa utilitria por excelncia;

    nela o prosador utiliza a linguagem como uma ferramenta, a fim de exprimir a

    realidade e os objetos que a cercam, tudo atravs de um discurso marcado pela

    transparncia e pela denotao das palavras. A poesia, ao contrrio,

    essencialmente significante: a linguagem aqui no tomada como acessria pelo

    poeta; ela possui autonomia, vale-se por si mesma graas a sua beleza formal e

    as conotaes variadas do seu discurso.

    As Gergicas se enquadram no gnero da poesia didtica. Sob a

    perspectiva moderna, a existncia de tal gnero literrio pode causar certa

    estranheza: afinal, por que abordar assuntos to tcnicos e banais

    caractersticas da temtica desse gnero por meio da linguagem potica? Por

    que os antigos no se utilizaram da linguagem prosaica, certamente mais apta ao

    ensinamento de determinado contedo, devido funo denotativa de suas

    palavras?

    A explicao se deve s condies de difuso cultural nos primrdios da

    antiga Grcia: os primeiros grandes sistemas que se pretendiam explicar os

    fenmenos naturais, isto , os trabalhos filosficos e cientficos de pensadores

    pr-socrticos, entre os quais Xenfanes, Empdocles, Parmnides etc. foram

    escritos em verso devido ao fato de a transmisso de contedo ser nessa poca

    essencialmente oral. A escrita em prosa ainda era algo raro, da a opo de

    muitos filsofos pela poesia, cujo ritmo regular dos seus versos torna muito mais

    fcil a memorizao do contedo.

    Com isso, a poesia didtica dos pr-socrticos acaba tornando-se um novo

    gnero literrio ao lado do gnero pico, lrico e dramtico com suas

    peculiaridades e autonomia. Um gnero que sobreviveria por sculos afora

    mesmo quando as condies iniciais de transmisso cultural j tinham evoludo

    bastante, como assinala (GAILLARD & MARTIN, 1990):

  • 23

    [...] este gnero iria sobreviver s condies iniciais que justificaram a sua existncia, mesmo quando ele no era mais necessrio, continuando assim a se escreverem tratados em versos [...]. De fato, os poemas didticos so para os tratados em prosa o mesmo que s obras historiogrficas so as epopeias histricas. Tanto um como outro so um pouco comparveis s chamins que continuam a serem usadas ou instaladas em nossas casas de campo, apesar de o aquecimento a lenha h muito deixou de ser o mais conveniente e o mais eficaz... (GAILLARD & MARTIN, 1990, p. 199).

    18

    No entanto, segundo Perret (1966, p. 182), medida que os demais

    gneros literrios foram sendo aperfeioados, alcanando um elevado nvel de

    harmonia e simetria de composio, o gnero didtico ainda permanecia, em

    termos de forma e estrutura, um tipo de arte essencialmente rudimentar: aqui, os

    seus variados assuntos no so muito bem conectados entre si, alm de serem

    intercalados por um grande nmero de episdios, prejudicando a unidade

    artstica; acrescente a isso o surgimento da prosa literria, que demarcou

    definitivamente a fronteira entre a prosa e poesia, e temos como resultado a

    rejeio da poesia didtica no apogeu da literatura grega.

    Apenas com os poetas alexandrinos, o gnero didtico ganhou vida

    novamente. No entanto, esses poetas o conceberam de maneira diversa:

    abandonando as caractersticas irregulares de composio, tpicas do gnero at

    aquele momento, eles passaram a tratar a poesia didtica como um importante

    ramo da arte potica.

    A funo da poesia didtica tambm se alterou, uma vez que o seu antigo

    objetivo, o de investigar e explicar os fenmenos da natureza misteriosa, j no

    se fazia mais necessrio; para os alexandrinos, o principal objetivo da poesia

    didtica satisfazer a curiosidade intelectual atravs de uma informao

    interessante; caso o tema abordado deixe de s-lo, a poesia, por consequncia,

    perder o seu valor. Dessa forma, os poemas didticos de tipo alexandrino se

    apresentam mais como um refinado produto de erudio do que um tratado que

    almeje a fins prticos.

    18

    [...] ce genre allait survivre aux conditions initiales qui avaient justifi son existence: mme lorsque cela ntait plus ncessaire, on allait continuer crire des traits en vers [...] de fait, les pomes didactiques sont aux traits en prose ce que sont aux ouvrages dhistoire les popes historiques. Et les uns comme les autres sont un peu comparables ces chemines que nos continuons utiliser ou installer dans nos maisons de campagne, alors mme que le chauffage au bois a depuis longtemps cess dtre le plus commode et le plus efficace...

  • 24

    1.1.3.2 O gnero didtico em Roma

    O gnero didtico encontrou guarida em solo romano desde as fases mais

    antigas de sua literatura, como atestam as obras de nio e Nvio, nas quais a

    histria do povo romano foi contada em versos. O perfil dessas obras no era

    basicamente pico, centrado na ao heroica como costuma ser classificado ;

    em vez disso, assemelhava-se mais s obras historiogrficas.

    Ao contrrio do que aconteceu na Grcia, a poesia didtica sempre foi

    muito bem considerada entre os romanos como uma forma de arte potica das

    mais srias e elaboradas, situando-se num nvel imediatamente abaixo do gnero

    pico. De acordo com Perret (1966), essa aceitao se deve a uma melhor

    adequao das caractersticas desse gnero ao peculiar temperamento romano:

    Ele [o gnero didtico] foi mais apropriado do que qualquer outra forma para a mente romana. a nica forma pela qual os gnios de Roma produziram obras-primas superiores, comparadas no somente a qualquer obra do tipo produzida pelos gregos, mas tambm a qualquer tentativa nos tempos modernos. Como uma inveno romana, estimulada por um senso prtico de utilidade, pela paixo por vastos e massivos empreendimentos, e pela forte percepo de ordem e unidade em projetos, [esse gnero] idealizou um novo tipo de arquitetura para demandas comuns da vida, conforme a tendncia nacional em reduzir todas as coisas numa regra, em impor a vontade do mestre sobre as matrias obedientes, em usar as construes artsticas para algum fim prtico; se ele [o gnero didtico] no foi criado [pelos romanos], atingiu no entanto uma maior amplitude, um acabamento mais slido e robusto, associando grandes ideias a uma forma de arte potica a qual tem sido a mais pobre e sem substncia de todos gneros inventados pelos gnios gregos. (PERRET, 1966, p. 180).

    19

    Essa foi a razo de Virglio ter escolhido o formato didtico para a

    elaborao de suas Gergicas; o gnero idlico, presente nas Buclicas, no era

    adequado para comportar uma temtica mais elaborada, vasta e por que no

    19

    It was more suited than any other form to the Roman mind. It is the only form in which the genius of Rome has produced master-pieces superior not only to anything of the kind produced by Greece but to all similar attempts in modern times. As Roman invention, stimulated by a pratical sense of utility, by the passion for vast and massive undertakings, and by the strong perception of order and unity of design, devised a new kind of architecture for the ordinary wants of life, so in accordance with the national bent to reduce all things to rule, to impose the will of a master on obedient subjects, to use the constructive ad artistic faculties for some practical end, if it did not create, it gave ampler compass, more solid and massive workmanship, and the associations of great ideas to that form of poetic art which had been the most meagre and unsubstantial of all those invented by the genius of Greece.

  • 25

    dizer, mais sria. E o poeta mantuano ainda contava em sua poca com um forte

    modelo inspirador: o poema De rerum natura de Lucrcio.

    Publicado por Ccero logo aps a morte de seu autor, por volta do ano 56

    a. C., esse poema didtico, que se propunha a apresentar a teoria atomista de

    Epicuro, causou profunda impresso entre seus contemporneos. Em nenhuma

    obra literria anterior, tanto grega quanto romana, a Natureza tinha sido tratada

    em sua verdadeira imensido e complexidade, nem mesmo nos trabalhos pr-

    socrticos e alexandrinos.20 Alm disso, Lucrcio soube superar a aridez de sua

    temtica filosfica por meio de passagens de rara beleza potica, algo indito na

    poesia latina at ento.

    Da mesma forma que seu predecessor, Virglio teve de encontrar uma nova

    abordagem para o gnero, a qual pudesse abrigar os novos sentimentos polticos

    e sociais derivados do ideal restaurador augustano. No bastava o estilo pr-

    socrtico, pouco harmnico e desconexo; tampouco o tipo alexandrino,

    caracterstico de refinadas obras artsticas de erudio, fechadas em si mesmas,

    era compatvel com um poema que funcionasse como smbolo de um novo ideal,

    que inclua a propaganda da reagrarizao do solo italiano, aquela altura em

    estado crtico de abandono devido s sucessivas guerras civis e inatividade dos

    latifundirios.

    Visto isso, o caminho encontrado por Virglio, como assinala Perret (1966,

    p. 183), foi o da fuso desses dois estilos: combinando o esprito do primitivo

    estilo didtico presente em Hesodo e nos antigos pr-socrticos com o

    tratamento sistemtico e erudito dado pelos poetas alexandrinos. Com isso, as

    Gergicas praticamente inauguraram uma nova modalidade de poesia didtica.

    Aps as Gergicas, nenhum autor latino se atreveu a emular os versos

    virgilianos ou mesmo tratar da mesma temtica. No entanto, Columela um

    grande admirador e discpulo do poeta mantuano resolveu atacar a temtica da

    jardinagem, no totalmente desenvolvida por seu mestre. Ao contrrio dos outros

    livros de seu tratado agronmico De re rustica21, escritos em prosa, Columela

    usou o hexmetro datlico para essa temtica, numa clara referncia s

    20

    Cf. PERRET, 1966, p. 181. 21

    Ao todo, o De re rustica composto por 12 livros.

  • 26

    Gergicas. Para GAILLARD & MARTIN (1990, p. 209), Columela at que se

    mostra um grande e habilidoso versificador; dono de uma paleta riqussima.

    Sculos mais tarde, Paldio22 volta ao tema rural mais especificamente

    s tcnicas de enxerto , agora em dsticos elegacos. Obra de carter

    alexandrino, o ltimo poema gergico da literatura latina no passa de uma

    simples curiosidade erudita.

    1.1.4 O grande tema das Gergicas

    Por tudo o que j vimos at agora, poderamos concluir, num primeiro

    impulso, que a temtica principal das Gergicas seria o de ministrar preceitos aos

    pequenos agricultores italianos sobre as melhores tcnicas de produo de

    cereais, sobre o cultivo das videiras e oliveiras, alm da criao de animais, com

    o intuito de estimul-los a retornar aos campos abandonados.

    Primeiro de sua espcie talvez o nico na histria da literatura latina, o

    poema de Virglio se apresentaria como um tratado agronmico diversificado. De

    fato, quando o comparamos com uma obra literria equivalente, como, por

    exemplo, Os trabalhos e os dias de Hesodo, constata-se que esta apresenta

    certa restrio temtica, visto que nela so tratados didaticamente apenas os

    assuntos referentes ao trabalho com a terra, estando excluda a criao de

    animais.

    No entanto, seria ingnuo, dada a natureza sofisticada de sua linguagem

    potica, pensar que as Gergicas se dirigiam diretamente a essa classe de

    trabalhadores, como afirma dos Santos (2007):

    As Gergicas no se dirigiam diretamente classe dos pequenos lavradores, mas a toda elite culta, que podia dar, talvez, sua contribuio renovao ideal e moral, pois Verglio [sic] comeou seu poema num perodo (entre 38 e 36 a. C.), quando o Imprio no tinha segurana nem no exterior nem no interior: do leste pressionavam ameaadores os partos; do nordeste os germnicos, a pirataria de Sexto Pompeu ameaava, do lado de Antnio [sic], e de seus seguidores poderiam surgir novos perigos. (DOS SANTOS, 2007, p. 69).

    22

    Autor do tratado Opus agriculturae, composto de 14 livros.

  • 27

    Ou seja: os tempos estavam longe de serem tranquilos, o que seria uma condio

    bsica para um apelo concreto de retorno aos campos. Dessa forma, o mais

    apropriado seria afirmar que as Gergicas so a materializao potica de um

    ideal de nao, a qual deveria voltar os olhos novamente para o seu passado

    glorioso, fundado na agricultura.

    Sob esse novo prisma, o aspecto didtico da obra fica em segundo plano,

    tanto que, com um olhar mais atento para outras evidncias, chega-se

    concluso de que as Gergicas no so um tratado agronmico em termos

    estritos: em primeiro lugar, quando elas so comparadas com outros tratados da

    mesma espcie, tais como o tratado do cartagins Mago verdadeira Bblia da

    agronomia antiga traduzido para o latim por deciso do senado romano e o De

    re rustica, de Marco Varro, obra publicada pouco depois de Virglio iniciar a

    composio das Gergicas, nota-se uma diferena fundamental, pois nesses

    trabalhos h uma preocupao maior com os preceitos de carter tcnico, em

    especial aos que diziam respeito gesto da propriedade e relao entre os

    proprietrios e seus escravos. Essas questes importantes esto ausentes no

    poema virgiliano.

    Outra questo: apesar de as Gergicas apresentarem uma riqueza

    temtica indita, em termos de poesia didtica, ela no abrange reas essenciais

    da economia rural daquela poca, como a criao de porcos e mulas na

    verdade um tema ingrato para uma abordagem potica , a construo de vastas

    piscinas para a cultura dos peixes ou de viveiros, para os pssaros.

    Por fim, tomem-se em considerao os principais episdios ou digresses

    contidos nas Gergicas, tais como a evocao da Idade de Ouro e os pressgios

    celestes da guerra civil, no Livro I; o elogio da vida rural, no Livro II; a vvida

    descrio da peste que acometeu o gado na provncia de Nrica, no Livro III

    diga-se de passagem, tal descrio foi nitidamente inspirada na peste de Atenas,

    retratada no sexto e ltimo livro do De rerum natura de Lucrcio e finalmente, o

    episdio de Aristeu, que, por sua vez, est concatenado com o mito de Orfeu e

    Eurdice, no quarto e ltimo canto do poema. Esses desenvolvimentos narrativos

    ou descritivos no tm nenhuma finalidade prtica ou didtica, o que corrobora a

    afirmao de Sneca (apud GAILLARD & MARTIN, 1990, p. 207) de que Virglio

  • 28

    se propunha muito mais a entreter os seus leitores do que a instruir os

    camponeses.

    Fica claro, portanto, que a aparncia didtica da obra serve como pano de

    fundo para o seu verdadeiro objetivo, baseado mais em fins ticos e morais do

    que utilitrios. A verdadeira significao das Gergicas est relacionada ao

    enaltecimento dos grandes valores esquecidos pela sociedade romana, mais

    especificamente, o valor do trabalho.

    De fato, a grande originalidade de Virglio foi relacionar o trabalho, o

    esforo dos lavradores felicidade, a qual somente conquistada com trabalho

    duro. Isso fica evidente ao analisarmos o primeiro grande episdio do poema, no

    qual se narra a origem divina do trabalho: antes, os homens viviam passivamente

    numa espcie de paraso ednico, com alimentos sempre disponveis. No havia

    perturbaes, conflitos ou guerras. Esse perodo conhecido como a Idade de

    Ouro, tema mitolgico muito comum no apenas na cultura mediterrnea, mas

    tambm na hebraica, com a alegoria de Ado e Eva. No mito narrado por Virglio,

    Jpiter tinha resolvido pr termo a esse perodo, obrigando a humanidade a

    trabalhar para sobreviver.

    O fim da Idade de Ouro normalmente concebido como um mal para a

    humanidade, assim como a expulso de Ado e Eva do paraso vista como a

    origem de todos os pecados. Virglio, no entanto, opera surpreendentemente uma

    inverso desse ponto de vista:

    [...] Virglio inverte esse ponto de vista, ou seja, ele diz que a Idade de Ouro era um mal, porque nesta vida de felicidade passiva e sem preocupaes o corao e a inteligncia do homem se entorpeceram; por isso que Jpiter (isto , Deus) quis arrebatar os seres humanos deste profundo estado degradante e for-los a ganhar duramente a vida, construindo a sua felicidade, em vez de receb-la passivamente; [...]. (GAILLARD & MARTIN, 1990, p. 208).

    23

    Dessa forma, o fim da Idade de Ouro, ao invs de representar um

    malefcio, foi fundamental para o desenvolvimento da humanidade, propiciando o

    surgimento da agricultura, das ferramentas, da escrita etc. O homem teve de

    23

    [...] Virgile renverse ce point de vue: cest, dit-il, lge dor qui tait un mal, parce que dans cette vie de bonheur passif et sans problmes le coeur et lintelligence de lhomme sengourdissaient; voil pourquoi Jupiter (cest--dire Dieu) a voulu arracher les humains cet tat au fond dgradant, et les contraindre gagner durement leur vie et construire leur bonheur au lieu de le recevoir passivement; [...].

  • 29

    adotar uma atitude ativa no apenas para sobreviver, mas tambm para

    conquistar a sua felicidade. Na verdade, essa nova moral do trabalho se encaixou

    perfeitamente com o tema da agricultura, atividade que somente pode render

    bons resultados mediante o constante o esforo de quem a pratica ou, resumindo

    com as palavras do poeta: Labor omnia uincit improbus24.

    1.1.5 Fontes predecessoras

    As fontes das quais Virglio se serviu so basicamente as gregas, como Os

    trabalhos e os dias de Hesodo, os Phaenomena de Arato, as Gergicas de

    Nicandro de Clofon, os trabalhos astronmicos e geogrficos de Eratstenes

    entre outros. No entanto, o poeta mantuano tambm utilizou fontes latinas

    importantes, como os tratados De agricultura, de Cato e o De re rustica de

    Varro este, inclusive, sendo contemporneo ao perodo de composio do

    poema virgiliano , sobre o qual j fizemos meno anteriormente25, alm, claro,

    do poema de Lucrcio, De rerum natura, cuja principal influncia talvez tenha sido

    a de demonstrar o grande valor potico que uma obra didtica pode ter. Nas

    sees subsequentes, ser feita uma breve anlise dos autores considerados

    essenciais para a concepo das Gergicas de Virglio.

    1.1.5.1 Hesodo

    De acordo com Wilkinson (1969, p. 56), depois de Virglio ter se sado

    muito bem como o Tecrito romano, graas ao sucesso de suas Buclicas no

    ambiente intelectual, ele resolveu emular Hesodo, que diferentemente de

    Tecrito, foi um poeta dos primrdios da literatura grega. Apesar de ser um autor

    admirado tanto pelos poetas alexandrinos quanto pelos neotricos romanos, o

    bardo de Ascra ainda no havia sido abordado de forma apropriada.

    Na realidade, mesmo nas Buclicas, o poeta mantuano j fazia referncias

    a Hesodo, como na passagem da cloga VI (vv. 64-72), na qual, ao encontrar as

    Musas, o poeta Galo atribui a Hesodo (Ascraeus senex) os mesmos dons de

    24

    O trabalho rduo supera tudo. (traduo nossa). 25

    Ver a seo 1.1.4

  • 30

    Orfeu, ao fazer as rvores se deslocarem das montanhas a fim de ouvir o som de

    sua flauta. Tambm, na famosa cloga IV, a mitologia da Idade de Ouro

    apresenta reminiscncias com Os trabalhos e os dias.

    J no primeiro verso das Gergicas, temos quo sidere terram vertere (sob

    qual constelao lavrar a terra), refletindo o nascimento das Pliades, que

    acompanhava o incio dos trabalhos agrcolas no poema de Hesodo. Apesar de

    j parecer algo anacrnico um lavrador romano guiar-se pelas estrelas a fim de

    iniciar o seu trabalho visto que ele poderia utilizar o calendrio Juliano a

    orientao pelas estrelas revela que Virglio estava muito mais preocupado em

    estabelecer ligaes com os versos de seu modelo grego. Nada didticos tambm

    so os versos nos quais Virglio d instrues de como fazer um arado, numa

    clara conexo com os versos 427-431 de Os trabalhos e os dias: no sculo I a. C.,

    o fazendeiro ou pequeno agricultor certamente compraria tal ferramenta em

    alguma loja de artigos rurais; talvez at mesmo nos recuados tempos de Hesodo

    os lavradores faziam o mesmo.

    No entanto, a maior influncia de Hesodo na composio das Gergicas

    talvez no seja de carter episdico, tais como referncias a uma e outra

    passagem, e sim, a concepo do valor do trabalho duro conectado a um ideal de

    justia. De fato, segundo Wilkinson (1969, p. 60), dos pouco mais de oitocentos

    versos de Os trabalhos e os dias, menos de duzentos e cinquenta tratam da

    agricultura propriamente dita e, mesmo assim, apenas a cultura dos cereais

    abordada.

    Dessa forma, o poema didtico de Hesodo funciona mais como um veculo

    para ideias morais, religiosas e filosficas do que um mero tratado agronmico.

    Fora o Livro I, o mais hesidico das Gergicas, devido a um grande nmero de

    referncias e temtica compartilhada do cultivo de cereais, essa moral do

    trabalho que permeia o restante da obra.

    1.1.5.2 Arato

    Arato foi um poeta alexandrino metafrasto, ou seja, um versificador de

    tratados didticos, cuja obra era muito difundida no mundo greco-romano. De fato,

    de acordo com Perret (1966, p. 196), o seu tratado sobre os sinais

  • 31

    meteorolgicos, as Diosemeiai, era to popular em solo romano que chegou a ser

    traduzido por Ccero em sua juventude e tambm por Germnico.

    Para que se tenha uma ideia de sua popularidade, as Diosemeiai

    exerceram enorme influncia nos estudos astronmicos por quase dois mil anos,

    vindo a ser superadas apenas com as descobertas de Coprnico e Galileu. Algo

    notvel, visto que ele no era um astrnomo no sentido estrito do termo: boa

    parte do que escreveu tem a sua origem nos importantes avanos cientficos

    obtidos na academia platnica.

    Apesar disso, segundo Quintiliano (apud Wilkinson, 1969, p. 60), a matria

    de sua obra esttica, no apresentando nenhum tipo de variedade, emoo ou

    carter humano. De fato, exceto por raras passagens de cunho mitolgico, o

    poema de Arato bastante econmico de ornamentos, ainda mais quando

    comparado com as Gergicas. Em outras palavras, as Diosemeiai no passam de

    um mero catlogo em sua maior parte.

    A presena de Arato se faz sentir nitidamente no primeiro livro das

    Gergicas, em que Virglio transmite preceitos aos agricultores sobre os

    significados dos sinais celestes, associando estes de maneira magistral ao

    episdio do assassinato de Jlio Csar e das guerras civis que ocorreram aps

    esse fato.

    1.1.5.3 Lucrcio

    Difcil escrever no espao to restrito deste trabalho a tamanha influncia

    exercida por Lucrcio sobre o autor das Gergicas. De fato, talvez no exista em

    toda a histria da literatura uma relao semelhante, como nos aponta Perret

    (1966):

    A influncia, direta ou indireta, exercida por Lucrcio no pensamento, na composio, e at mesmo na dico das Gergicas foi talvez mais forte que qualquer outra exercida, antes ou at aquele momento, por um grande poeta no trabalho de outro poeta. Esse tipo de influncia mais visto normalmente na histria da filosofia do que na histria da literatura. (PERRET, 1966, p. 199).

    26

    26

    The influence, direct and indirect, exercised by Lucretius on the thought, composition, and even the diction of the Georgics was perhaps stronger than that ever exercised, before or since, by one

  • 32

    Por sua vez, Wilkinson (1969, p. 63) cita um levantado no qual consta que,

    de cada doze linhas das Gergicas, pelo menos uma remete, consciente ou

    inconscientemente, ao poema de Lucrcio. Mais facilmente rastreveis so as

    linhas que iniciam um novo pargrafo: aqui, Virglio, claramente num processo

    imitativo, utiliza-se de conectivos coesivos caractersticos do verso lucreciano, tais

    como: principio, idcirco, praeterea etc. ou o elevado uso de vocabulrio arcaico,

    to marcante em Lucrcio.

    Tamanha reverncia por parte do poeta mantuano justificvel: como j se

    falou anteriormente neste captulo mais exatamente na seo que dizia respeito

    ao gnero didtico em Roma o poema De rerum natura desde o incio se

    destacou nas letras latinas devido sua singularidade, pois Lucrcio havia

    demonstrado, pela primeira vez, que um poema didtico poderia atingir elevados

    nveis de qualidade potica sem perder o rigor descritivo e argumentativo. Alm

    disso, Lucrcio era diferente dos poetas metafrastos anteriores:

    Lucrcio pertencia a uma diferente tradio de metafrastos. Ao invs de abordar qualquer matria, embora pouco promissora e distante dos seus prprios interesses, e tratando isso como material para a exibio de virtuosidade artstica, ele escolheu um tema com o qual estava apaixonadamente comprometido, derivando sua inspirao potica mais de Empdocles do que de Hesodo. Ns j consideramos o impacto que deve ter sentido Virgilio com o surgimento do De Rerum Natura quando ele se encontrava na sua idade mais impressionvel, e como suas qualidades incidentais podem t-lo encorajado na convico de que um ostensivo poema didtico pode ser tornar essencialmente descritivo e tambm estar imbudo de fervor moral e filosfico. (WILKINSON, 1969, p. 63, grifo nosso).

    27

    Apesar de haver tambm profundas diferenas entre os dois poetas

    Lucrcio era um ateu guiado pelas concepes epicureias da Natureza, enquanto

    Virglio, embora na sua juventude tenha sido influenciado por essa doutrina

    filosfica, acreditava numa Providncia divina que regia o universo; Lucrcio

    great poet on the work of another. This influence is of the kind which is oftener seen in the history of philosophy than the of literature. 27

    Lucretius was in a very different tradition from the metaphrasts. Instead of undertaking any subject, however unpromising and however remote from the poets own interests, and treating it as material for a display of artistic virtuosity, he chose one to which he was passionately committed, deriving his poetic inspiration from Empedocles rather than Hesiod. We have already considered the impact that must have been made on Virgil by appearance of the De Rerum Natura when he was at his most impressionable age, and how its incidental qualities may have encouraged him in his belief that an ostensibly didactic poem could be made essentially descriptive and also charged with moral and philosophic fervour.

  • 33

    usava a poesia como um veculo para a cincia e Virglio como um instrumento de

    uma arte til28; Lucrcio recomendava ao seu discpulo, Mmio, o afastamento da

    vida mundana da cidade em favor dos estudos cientficos enquanto Virglio

    requeria por parte dos seus ouvintes agricultores uma atitude ativa, ao resgatar

    a antiga concepo de Hesodo de que com trabalho duro que se conquista a

    felicidade etc. certamente no haveria Gergicas se no houvesse antes De

    rerum natura.

    1.1.5.4 Varro

    Bayet (1996, p. 209) acreditava que a publicao do tratado De re rustica

    tinha sido, sem dvida, um timo pretexto usado por Mecenas para encorajar

    Virglio na ampliao temtica de seu poema. At ento, segundo o terico

    francs, o poeta mantuano contava apenas com o primeiro canto do poema, de

    forte inspirao hesidica. Gaillard & Martin (1990, p. 206), no entanto, opuseram-

    se a essa tese principalmente porque h muito tempo j estava em voga a rica

    obra de Mago, o tratadista cartagins, a qual poderia certamente oferecer um

    vasto repertrio temtico ao poema virgiliano. O certo, porm, que o tratado de

    Varro exerceu sim forte influncia na composio das Gergicas.

    Apesar de sua predominante natureza tcnica, o tratado de Varro,

    segundo Wilkinson (1969, p. 65), tem pretenses literrias. Trata-se de um

    dilogo no estilo ciceroniano no qual se encontram interessantes cenas

    descritivas, elogios e invocaes. Muitas dessas passagens inspiraram o poeta

    mantuano, como, por exemplo, a invocao das doze divindades treze,

    contando com o futuro imperador Augusto, deificado no promio do primeiro

    livro das Gergicas, promio este cuja incorporao obra se deu tardiamente;

    nitidamente tal passagem faz referncia invocao feita por Varro para

    tambm doze divindades rsticas. Ainda de acordo com Wilkinson29, os

    memorveis elogios da terra italiana e da vida rural, ambos localizados no Livro II,

    so inspirados em passagens do De re rustica.

    28

    Cf. PERRET, 1966, p. 229. 29

    Idem, ibidem, p. 65.

  • 34

    Obviamente, Virglio no se utilizou apenas dessas quatro fontes citadas

    neste captulo. Outros autores tambm exerceram determinado influxo, como os

    j referidos Cato, o Velho, autor do tratado De agri cultura, considerado por

    Gaillard & Martin (1990, p. 199) talvez o nico prosador puro das letras latinas30

    e o cartagins Mago, com seu importantssimo tratado agrcola (provavelmente o

    mais rico da Antiguidade). No entanto, baseamo-nos no critrio adotado por

    Wilkinson (1969, p. 68), para quem os quatro autores (Hesodo, Arato, Lucrcio e

    Varro) foram decisivos para a concepo original do poema.

    1.2 O Livro I das Gergicas

    Bayet (1996, p. 208) considerava o primeiro livro das Gergicas uma obra

    de transio. Segundo o terico, Virglio escreveu um poema com cerca de

    quinhentos versos, no qual existe uma combinao de preceitos primitivos

    relativos cultura de cereais, encontrados em Hesodo, com as noes

    astronmicas e meteorolgicas advindas das Diosemeiai de Arato, autor do

    perodo alexandrino. Por fim, o tratado de Cato, o Velho, veio dar o suporte

    tcnico nova empreitada virgiliana. Como se pode observar, a matria do

    primeiro livro das Gergicas bastante heterognea: mais do que a um trabalho

    coeso e verdadeiramente didtico, o qual de fato contivesse preceitos essenciais

    a qualidade da terra, a construo da propriedade rural etc. Virglio preferiu,

    talvez devido forte tradio alexandrina, a justaposio de detalhes e de

    impresses, os quais nem sempre guardavam referncia com a temtica

    proposta.

    No entanto, tomado em conjunto com os demais livros, o primeiro canto se

    integra a uma estrutura harmnica. De fato, como bem observou Wilkinson (1969,

    p. 74), as Gergicas podem ser divididas em dois grandes pares de livros (Livro

    I/Livro III e Livro II/Livro IV), os quais compartilham semelhanas tanto de

    natureza estrutural quanto semntica: o primeiro e terceiro livros so iniciados por

    longos promios enquanto o segundo e o quarto, por promios curtos; o primeiro

    e terceiros livros enfatizam tematicamente o trabalho duro, ambos apresentando

    um tom sombrio e terminando com uma catstrofe, j os livros que integram o 30

    peut-tre le seul prosateur pur des lettres latines.

  • 35

    segundo par, em contraste, tm uma tonalidade alegre, neles os agricultores

    encaram trabalhos mais leves e o final de ambos carregado de uma aura de

    felicidade e otimismo.

    Apesar de o Livro I das Gergicas apresentar uma variedade temtica que

    prejudica bastante uma viso unificadora e harmnica de seu significado, como

    nos apontou Bayet (1996, p. 208), possvel identificar nele uma grande estrutura

    divisvel em partes bem delimitadas. Por sua vez, Wilkinson (1969, p. 75-84)

    percebeu que a diviso do primeiro livro se resumiria ao promio, seguido por

    mais trs compartimentos, dentro dos quais h sempre a introduo de um novo

    assunto e, posteriormente, uma digresso de natureza episdica. Dessa forma,

    teramos a seguinte estrutura:

    a) Promio (vv. 1-42);

    b) Parte 1: Trabalhos para o cultivo de cereais (vv. 43-203);

    c) Parte 2: O calendrio do agricultor (vv. 204-350);

    d) Parte 3: Os sinais meteorolgicos (vv. 351-514).

    Como se observa, cada parte nomeada de acordo com o tema nela

    contido, assim como cada uma tem a sua prpria digresso episdica. Na

    primeira parte, surge o episdio da origem divina do trabalho, tambm conhecido

    como a teodiceia do trabalho (episdio sobre o qual j fizemos referncia na

    seo 1.1.4); na segunda, temos a descrio das regies celestes e uma pea de

    transio, na qual nos deparamos com uma tempestade outonal e, por fim, na

    terceira e ltima parte, Virglio apresenta o que talvez seja a passagem mais

    marcante de todo o primeiro livro, um verdadeiro gran finale: os prodgios

    seguintes ao assassinato de Jlio Csar.

    Nas prximas sees, sero feitos breves comentrios acerca de cada

    componente dessa grande estrutura. Cabe reiterar que os exemplos

    correspondentes s passagens do primeiro livro foram todos retirados de nossa

    traduo, que se encontra integralmente no captulo 4 deste trabalho.

  • 36

    1.2.1 Promio

    Virglio inicia o seu promio com uma descrio sumria endereada a

    Mecenas acerca da temtica que ser abordada em cada um dos livros do grande

    poema. Trata-se de uma curta introduo para todo o trabalho, a qual ocupa

    menos de cinco versos inteiros.

    Aps esse resumo, o poeta surpreende ao criar o que provavelmente seja

    o mais longo perodo da poesia latina, com quase 38 versos! Segundo Wilkinson

    (1969, p. 75), um perodo to longo anormal no s ao estilo virgiliano, mas

    tambm prtica retrica em geral, que recomendava como norma uma sentena

    no muito maior que quatro hexmetros, a fim de tornar a sua enunciao mais

    confortvel e ao mesmo tempo mais compreensvel aos ouvintes.

    Na metade desse grande bloco enunciativo, 18 linhas, o poeta invoca

    doze divindades campestres, a saber: Lber e Ceres; os faunos e as jovens

    Drades; Aristeu, a quem Virglio alcunha de morador dos bosques (cultor

    nemorum); P, deus dos pastores e rebanhos; Netuno, deus dos mares e

    Minerva, a criadora da oliveira (oleae inuentrix); Triptlemo, a quem se atribua a

    descoberta da agricultura; Silvano, divindade rstica semelhante aos faunos e,

    finalmente, os deuses e as deusas que protegem as searas espontneas, ou seja,

    aquelas cujas sementes no foram espalhadas pelo homem. A outra metade

    dedicada inteiramente a Otaviano, futuro imperador de Roma, que aqui, graas ao

    poeta mantuano, ganha status de futura divindade, apenas restando saber qual

    posto ele ocupar entre os demais deuses:

    Tuque adeo, quem mox quae sint habitura deorum

    concilia incertum est, urbisne inuisere, Caesar,

    terrarumque uelis curam, et te maximus orbis

    auctorem frugum tempestatumque potentem

    accipiat, cingens materna tempora myrto,

    an deus immensi uenias maris ac tua nautae

    numina sola colant, tibi seruiat ultima Thule

    teque sibi generum Tethys emat omnibus undis,

    anne nouum tardis sidus te mensibus addas,

    qua locus Erigonen inter Chelasque sequentis

    panditur (ipse tibi iam bracchia contrahit ardens

  • 37

    Scorpius et caeli iusta plus parte reliquit): (Georg., I, vv. 24-35)

    E tambm tu, Csar, que no sabemos

    qual divino conclio ocupars

    em breve: se das urbes e das terras

    cuidar pretendes ou senhor dos pomos

    e das estaes venha te aclamar

    o universo, cingindo a fronte tua

    mirto materno; ou no mar imenso

    te tornes o deus nico dos nautas,

    at na extrema Tule venerado;

    Ttis todo o oceano comprar

    polo honor de ter-te como genro;

    ou talvez uma nova estrela acresas

    aos meses estivais, onde um lugar

    entre Ergone e as Pinas vai se abrindo:

    o prprio Escorpio, resplandecente,

    as recolhe, te dando mais espao. (vv. 31-46)

    O promio finaliza com o pedido de Virglio para que Otaviano, como uma

    musa homrica, o auxilie na rdua tarefa que o poeta tem pela frente, a

    composio das Gergicas, que libertaro os agricultores do mau caminho da

    ignorncia.

    1.2.2 Parte 1: o cultivo dos cereais

    Trata-se da parte mais hesidica de toda a obra, na qual a ideia do valor do

    trabalho duro emerge. A primavera marca o incio das tarefas:

    Vere nouo, gelidus canis cum montibus umor

    liquitur et Zephyro putris se glaeba resoluit,

    depresso incipiat iam tum mihi taurus aratro

    ingemere et sulco adtritus splendescere uomer. (Georg., I,vv. 43-46)

    Mais uma vez liquesce a primavera

    das montanhas o gelo encanecidas,

    e a gleba fofa ao Zfiro esboroa;

  • 38

    comece logo o touro a me gemer,

    arando fundo com luzente relha. (vv. 57-61)

    A partir da, o poeta tece consideraes sobre como proceder em relao aos

    campos desconhecidos, devendo o agricultor estudar de antemo o clima e o tipo

    de solo da localidade, pois cada regio especializada em determinados

    produtos devido s leis da natureza; esse fato serve ao poeta como uma

    introduo para o subtema das terras estrangeiras:

    (...) Nonne uides croceos ut Tmolus odores,

    India mittit ebur, molles sua tura Sabaei,

    at Chalybes nudi ferrum uirosaque Pontus

    castorea, Eliadum palmas Epiros equarum?

    Continuo has leges aeternaque foedera certis

    imposuit natura locis, quo tempore primum

    Deucalion uacuom lapides iactauit in orbem,

    unde homines nati, durum genus. (...) (Georg., I, vv. 53-63)

    (...) No vs como o Tmolo

    nos envia o aromtico aafro,

    a ndia o seu marfim, os indolentes

    Sabeus o incenso, os Clibes despidos

    o ferro, o Ponto o ftido castreo,

    o Epiro as guas campes Eladas?

    Tais so as leis e condies eternas,

    impostas pola natureza a reas

    determinadas, ps Deucalio

    ter lanado ao vazio geradoras

    pedras da dura raa humana. (...) (vv. 71-82)

    Em seguida, o poeta retoma a imagem inicial: a do agricultor lavrando a

    terra com seus touros, chegada a primavera. Wilkinson (1969, p. 77) afirma que

    apenas com essa breve passagem, introdutria da primeira parte, j possvel

    entrever o mtodo virgiliano de composio: um tema dado (arar a terra na

    primavera), logo depois so desenvolvidos subtemas (neste caso, os subtemas

    das terras estrangeiras e do mito da origem humana, centrada na figura de

  • 39

    Deucalio) e novamente, com um movimento circular, a retomada do tema, mas

    dessa vez com uma informao adicional: a terra a ser arada no pobre, visto

    que o poeta a qualifica de pingue solum (solo frtil).

    Logicamente, em relao ao solo pobre, Virglio receita uma srie de

    preceitos capazes de recuper-lo, tais como a adubao, a queimada, a quebra

    dos torres, a irrigao e a drenagem, alm das preces por invernos secos e

    veres mais midos, trazendo tona o subtema religioso, de inspirao

    hesidica:

    Vmida solstitia atque hiemes orate serenas,

    agricolae; (Georg., I, vv. 100-101)

    Solstcio mido e sereno inverno

    rogai, agricultores; (vv. 130-131)

    No entanto, mesmo com todo o esforo despendido nas duras tarefas,

    mesmo com toda a experincia que o agricultor possa ter, ainda sim ele ter de

    lidar com uma variada sorte de inimigos, entre os quais os pssaros, as plantas

    daninhas e at a sombra! No verso 121, Virglio explica a causa de tanta

    dificuldade encontrada nos trabalhos agrcolas, intercalando uma nova temtica,

    de carter episdico: a teodiceia do trabalho. Atravs dela, descobre-se que o

    deus Jpiter (Pater) quis dificultar a vida dos homens que gozavam

    preguiosamente a Idade de Ouro com o intuito de aguar-lhes a inteligncia,

    favorecendo assim o surgimento das tcnicas agrcolas:

    (...) Pater ipse colendi

    haud facilem esse uiam uoluit, primusque per artem

    mouit agros, curis acuens mortalia corda,

    nec torpere graui passus sua regna ueterno. (Georg., I, vv. 121-124)

    O prprio Pai no quis que da colheita

    a estrada fosse fcil; o primeiro

    a exigir o cultivo e suas tcnicas,

    e a lapidar no estresse a humanidade,

    renegando o sossego em seu reinado. (vv. 159-163)

  • 40

    O alimento, que antes era doado generosamente pela natureza, agora teria

    de ser produzido ou caado: os campos passam a ser delimitados para o plantio,

    as feras e as aves capturadas por armadilhas, os peixes cercados com as redes,

    as constelaes passam a ser nomeadas. A natureza se torna hostil: as cobras

    adquirem veneno, os lobos competem pela caa, os mares se agitam. Em

    seguida, Virglio novamente finaliza o episdio com um movimento circular,

    retomado a vida na Idade de Ouro, na qual os homens se alimentavam sem

    esforo, ao catar as bagas de carvalho cadas no cho.

    Como j foi dito, Virglio opera uma inverso de valores aqui: em geral, o

    fim da Idade de Ouro visto como um mau acontecimento, tanto na mitologia

    mediterrnea quanto na religio judaico-crist, com a expulso de Ado e Eva do

    Paraso; entretanto o poeta faz desse fato um smbolo positivo, no qual o

    trabalho duro adquire uma justificativa de origem divina. Embora a teodiceia no

    seja um tema didtico em si, no sentido de no remeter a nenhum preceito

    pragmtico para o trabalho agrcola, seu importante significado religioso e

    filosfico afetar todo o poema em diante.

    1.2.3 Parte 2: o calendrio do agricultor

    Com o conectivo praeterea palavra lucreciana utilizada na introduo de

    uma nova temtica , Virglio comea a tratar do calendrio e de como os

    agricultores podem orientar-se pelas estrelas. Um calendrio desse tipo, como j

    foi observado, no deveria ter utilidade h tempos, configurando-se certamente

    um anacronismo. Provavelmente a sua meno na obra no tenha outro objetivo

    alm de rivalizar com o calendrio citado em Os trabalhos e os dias, de Hesodo.

    Por isso, o estilo desse bloco temtico, segundo Wilkinson (1969, p. 81)

    ainda essencialmente hesidico, apesar de que todo o suporte tcnico referente

    astronomia tenha sido fornecido pelos trabalhos de Arato e Eratstenes,

    cabendo a este ltimo, inclusive, a principal base para a detalhada descrio das

    cinco zonas celestes, presente nos versos 233-251.

    Em geral, o gnero de almanaque, bastante difundido na poesia

    alexandrina anterior, tendia ao monocromatismo, no passando de um tedioso

    catlogo em versos. Virglio, no entanto, joga com a ideia de criaturas, cuja

  • 41

    aparncia os homens primitivos associavam s constelaes, conferindo

    vivacidade a um tema comumente estril, em termos poticos:

    (...) et milio uenit annua cura,

    candidus auratis aperit cum cornibus annum

    Taurus et auerso cedens Canis occidit astro. (Georg., I, vv. 216-218)

    chega o anual cuidado com o milho

    ao abrir o ano o Touro cintilante,

    com seus chifres dourados, e cedente

    nova estrela o Co desaparece. (vv. 278-281)

    Em seguida, o poeta realiza a descrio das cinco zonas celestes e dos

    doze signos do Zodaco, pelos quais o sol passa em seu curso anual. Com o

    conhecimento da ordenao celeste, os agricultores poderiam predizer o

    surgimento das tempestades, qual o melhor momento para empreender-se a

    navegao, quando plantar ou colher etc., no sendo, portanto, em vo observar

    atentamente as constelaes e as quatro estaes do ano:

    Nec frustra signorum obitus speculamur et ortus

    temporibusque parem diuersis quattuor annum. (Georg., I, vv. 257-258)

    (...) observar nunca demais

    tanto o morrer quanto o nascer dos astros,

    e o ano bem diviso em quatro fases. (vv. 326-328)

    A meno s estaes do ano foi o mote para o subtema dos trabalhos

    ocasionais. O bom agricultor no conhece o descanso: mesmo com a chegada do

    inverno e das chuvas, ele tem de se dedicar s tarefas ocasionais, como reparar a

    relha do arado, marcar o gado ou numerar as pilhas de gros. Mesmo na poca

    dos festivais religiosos, o agricultor pode abrir canais, queimar os espinheiros,

    preparar armadilhas para a captura de aves, vender os seus produtos na cidade

    mais prxima etc. Mais uma vez, Virglio nos lembra aqui do conceito hesidico do

    trabalho duro e incessante.

  • 42

    No final da segunda parte, entre os versos 311-350, Virglio insere a

    descrio de uma tempestade, que se configura como uma pea de transio

    para a terceira e ltima parte do poema, que trata dos sinais meteorolgicos.

    Admirvel o contraste realizado pelo poeta entre as calamidades provocadas

    pela tempestade outonal e o posterior clima de serenidade presente nos festivais

    em honra a Ceres:

    Ipse pater media nimborum in nocte corusca

    fulmina molitur dextra, quo maxima motu

    terra tremit, fugere ferae, et mortalia corda

    per gentis humilis strauit pauor; ille flagranti

    aut Atho aut Rhodopen aut alta Ceraunia telo

    deicit; ingeminant Austri et densissimus imber;

    nunc nemora ingenti uento, nunc litora plangunt. (Georg., I, vv. 328-334)

    O prprio Pai, durante a noite, arroja

    seus raios coruscantes, e no choque

    a terra treme, os animais debandam,

    e estacam de pavor os humilhados;

    Ele, com seu flamante dardo, fere

    os montes Atos, Rdope e Cerunios;

    os Austros e o aguaceiro recrudescem;

    na trovoada, o bosque e a praia choram. (vv. 418-425)

    In primis uenerare deos, atque annua magnae

    sacra refer Cereri laetis operatus in herbis,

    extremae sub casum hiemis, iam uere sereno.

    Tum pingues agni et tum mollissima uina;

    tum somni dulces densaeque in montibus umbrae.

    Cuncta tibi Cererem pubes agrestis adoret;

    quoi tu lacte fauos et miti dilue Baccho;

    terque nouas circum felix eat hostia fruges,

    omnis quam chorus et socii comitentur ouantes (Georg., I, vv. 338-346)

    Antes de mais nada, venera os deuses,

    e os votos anuais magna Ceres

    cumpre, sacrificando em verde relva:

    o inverno cede a primavera amena.

  • 43

    Ento, suave o vinho, os anhos gordos,

    no monte a sombra densa, doce o sono.

    Que os jovens, para ti, adorem Ceres,

    e tu, em leite e vinho, dilua o mel;

    trs vezes o fecundo campo a vtima

    circunde, com feliz coro a seguindo: (vv. 429-438)

    Para Wilkinson (1969, p. 83), duas lies importantes os lavradores podem

    tirar dessa segunda parte: a primeira seria estudar atentamente o cu, como uma

    forma de predizer futuros acontecimentos; a segunda e aqui novamente

    ressurge a temtica religiosa, com forte inspirao em Hesodo seria, antes de

    tudo, sempre venerar os deuses. Na terceira e ltima parte, teremos o

    desdobramento da primeira lio, com a abordagem dos sinais meteorolgicos.

    1.2.4 Parte 3: os sinais meteorolgicos

    Aps o agricultor estar ciente do ordenamento do cosmos, o que

    possibilitou o surgimento posterior de um almanaque com o qual ele pudesse

    guiar-se nas tarefas agrcolas, o poeta acaba revelando nesta nova etapa

    temtica, de maneira mais explcita, que foi Jpiter quem estabeleceu os sinais

    meteorolgicos em benefcio da humanidade:

    Atque haec ut certis possemus discere signis,

    aestusque pluuiasque et agentis frigora uentos,

    ipse Pater statuit quid menstrua Luna moneret,

    quo signo caderent Austri, quid saepe uidentes

    agricolae propuis stabulis armenta tenerent. (Georg., I, vv. 351-355)

    E para que se possa ao certo as chuvas

    prever, mais o calor e os ventos frios,

    o prprio Pai disps o que a mensal

    lua nos informaria: em qual estrela

    os Austros enfraquecem; ao observar

    tanto esses indcios, manteria

    o agricultor a grei perto do estbulo. (vv. 443-449)

  • 44

    A partir da, inicia-se a terceira e ltima parte do Livro I, totalmente sobre o

    forte influxo das Diosemeiai de Arato: os sinais temporais so retratados aqui com

    grande variedade de cenrios, numa linguagem altamente elaborada, distante dos

    versos montonos e sem adornos de seu modelo alexandrino.

    Primeiramente, so abordados os sinais do mau tempo (alguns bem

    pitorescos), tais como os ventos acompanhados pela agitao repentina dos

    mares; as gaivotas marinhas, que andam a brincar na areia da praia; estrelas

    cadentes; as formigas, que agora retiram os seus ovos do fundo da terra; a sbita

    revoada de corvos pelo cu etc. Segundo o poeta, todos esses sinais so

    indicativos de forte chuva. Em seguida, as atenes esto voltadas para os sinais

    de bom tempo: o forte brilho das estrelas e da lua; a ausncia de nuvens e o

    crocitar alegre dos corvos na floresta.

    Por fim, Virglio passa a abordar os