universidade federal do rio de janeiro - pós clássicas ... à grande extensão do poema – que...
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
A TRADUO IDENTIFICADORA APLICADA
AO LIVRO I DAS GERGICAS DE VIRGLIO
Arthur Rodrigues Pereira Santos
2014
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A TRADUO IDENTIFICADORA APLICADA
AO LIVRO I DAS GERGICAS DE VIRGLIO
Arthur Rodrigues Pereira Santos
Dissertao de Mestrado apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em Letras
Clssicas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como quesito para a obteno do Ttulo
de Mestre em Letras Clssicas.
Orientador: Prof. Doutor Anderson de Araujo
Martins Esteves
Rio de Janeiro
Dezembro de 2014
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Santos, Arthur Rodrigues Pereira.
A traduo identificadora aplicada ao Livro I das Gergicas de Virglio/
Arthur Rodrigues Pereira Santos. Rio de Janeiro: UFRJ / FL, 2014.
ix, 108f.; 29,7 cm.
Orientador: Anderson de Araujo Martins Esteves
Dissertao (mestrado) UFRJ/ FL/ Programa de Ps-Graduao em
Letras Clssicas, 2014.
Referncias Bibliogrficas: f. 115-117
1. Traduo identificadora. 2. Gergicas. 3. Virglio. I. Esteves,
Anderson de Araujo Martins. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
FL, Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas. III. A traduo
identificadora aplicada ao Livro I das Gergicas de Virglio.
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A TRADUO IDENTIFICADORA APLICADA
AO LIVRO I DAS GERGICAS
Arthur Rodrigues Pereira Santos
Orientador: Prof. Doutor Anderson de Araujo Martins Esteves
Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em
Letras Clssicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte
dos requisitos necessrios para a obteno do ttulo de Mestre em Letras
Clssicas.
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Anderson de Araujo Martins Esteves UFRJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Fernanda Lemos de Lima UERJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Arlete Jos Mota UFRJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Tania Martins Santos UFRJ, Suplente
_________________________________________________
Prof. Doutor lvaro Alfredo Bragana Junior UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Dezembro de 2014
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AMATO PATRI HOC OPVS DEDICO
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AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Anderson de Araujo Martins Esteves, por ter acreditado
desde o incio nesta pesquisa, por sempre me estimular, por ter sido muito mais
que um orientador atento e perspicaz; na verdade, um verdadeiro amigo para
todas as horas.
Professora Doutora Tania Martins Santos, pela afetuosa e constante solicitude
e pela participao na banca de defesa desta dissertao.
Professora Doutora Arlete Jos Mota, por ter feito Catulo e Marcial entrarem na
minha vida e pela participao na banca de defesa desta dissertao.
Aos Professores Doutores Fernanda Lemos de Lima e lvaro Alfredo Bragana
Junior, pela participao na banca de defesa desta dissertao.
Professora Doutora Mra Rodrigues Vieira, por ter-me apresentado na
graduao a um certo Virglio, o que foi a origem deste trabalho.
Aos queridos amigos Eduardo Trindade e Juliana Quaresma, pelas palavras de
incentivo.
querida amiga Manuelle Felix, pelo apoio constante desde o incio deste
trabalho, pelas sugestes no seu desenvolvimento, pelas tradues do francs e
pelas palavras de incentivo.
Ao meu primo Rodrigo Villarino, pela troca generosa de experincias e pelas
palavras de estmulo.
melhor das irms, Lvia Rodrigues, por me apoiar constantemente com palavras
doces e estimulantes e por sempre acreditar na concretizao deste trabalho.
Aos meus amados pais, Kleber Arthur Chifarelli e Aurenir Pereira Santos, pelo
constante incentivo e pelo suporte incondicional.
senhorita mais linda do mundo, Fabola Xavier, pelo apoio incondicional, pela
compreenso nos momentos difceis, pelas tradues do ingls, pela leitura da
minha traduo, apontando valiosas sugestes, e por dar sentido minha vida.
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RESUMO
A TRADUO IDENTIFICADORA APLICADA
AO LIVRO I DAS GERGICAS DE VIRGLIO
Arthur Rodrigues Pereira Santos
Orientador: Anderson de Araujo Martins Esteves
Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-
Graduao em Letras Clssicas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do
ttulo de Mestre em Letras Clssicas.
Este trabalho tem como objetivo a definio do conceito de traduo identificadora
e a sua posterior aplicao prtica ao Livro I das Gergicas de Virglio. Por se
tratar de um conceito bastante amplo, decidimos limit-lo s propostas de quatro
tericos: Friedrich Schleiermacher, Lawrence Venuti, Antoine Berman e Haroldo
de Campos. Apesar de estes autores apresentarem algumas diferenas
conceituais, todos compartilham a noo bsica de que a traduo identificadora
deve abrigar em seu corpo textual as peculiaridades genunas do texto de origem,
podendo-se dizer que eles so adeptos, cada um sua maneira, dessa
modalidade de traduo. Esse suporte terico forneceu diretrizes que nortearam o
nosso processo tradutrio, marcado pela utilizao do verso decasslabo e pelas
estratgias de estranhamento nele atuantes.
Palavras-chave: traduo identificadora; Gergicas; Virglio
Rio de Janeiro
Dezembro de 2014
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ABSTRACT
OVERT TRANSLATION APPLIED
TO THE BOOK I OF GEORGICS BY VIRGIL
Arthur Rodrigues Pereira Santos
Orientador: Anderson de Araujo Martins Esteves
Abstract da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-
Graduao em Letras Clssicas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do
ttulo de Mestre em Letras Clssicas.
This assignment has the purpose of defining the concept of overt translation and
its posterior practical application to the Book I of Georgics by Virgil. It has a very
broad concept, due to this reason we are going to limit it to the theories of the
following authors: Friedrich Schleiermacher, Lawrence Venuti, Antoine Berman
and Haroldo de Campos. Even though these authors present conceptual
differences, they share the same basic notion that overt translation must have in
its textual body the true peculiarities of its original text; and also we may infer that
each one of them, in their own way, are adepts of this style of translation. This
theoretical support was the main guideline of our translation process, marked by
the use of decasyllable verse and by the estrangement strategies in this process.
Keywords: overt translation; Georgics, Virgil
Rio de Janeiro
Dezembro de 2014
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SUMRIO
INTRODUO 10
1 AS GERGICAS DE VIRGLIO 13
1.1 Panorama 14
1.1.1 Contexto histrico-social 14
1.1.2 A literatura latina no processo de restaurao augustano 16
1.1.3 O gnero didtico 22
1.1.3.1 Origens pr-socrticas e a nova abordagem alexandrina 22
1.1.3.2 O gnero didtico em Roma 24
1.1.4 O grande tema das Gergicas 26
1.1.5 Fontes predecessoras 29
1.1.5.1 Hesodo 29
1.1.5.2 Arato 30
1.1.5.3 Lucrcio 31
1.1.5.4 Varro 33
1.2 O Livro I das Gergicas 34
1.2.1 Promio 36
1.2.2 Parte 1: o cultivo dos cereais 37
1.2.3 Parte 2: o calendrio do agricultor 40
1.2.4 Parte 3: os sinais meteorolgicos 43
2 QUATRO CONCEPES DE TRADUO IDENTIFICADORA 45
2.1 Os modelos binrios de Schleiermacher e Venuti 46
2.1.1 Os dois caminhos de Schleiermacher 46
2.1.2 Venuti e a invisibilidade do tradutor 51
2.2 A traduo literal de Berman 54
2.2.1 Os traos da traduo cannica ocidental 56
2.2.2 Algumas tendncias deformadoras 59
2.2.3 A traduo literal em ao 61
2.3 A transcriao de Haroldo de Campos 63
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2.3.1 A transcriao da Ilada como modelo intensivo de traduo 67
2.3.2 Influncias poundianas na transcriao 69
3 O PROCESSO DA TRADUO 72
3.1 Mtrica 73
3.2 Estratgias de estranhamento 82
3.2.1 Latinizao 83
3.2.2 Literalizao 87
4 TRADUO 96
CONCLUSO 113
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 115
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INTRODUO
Em seu livro A traduo vivida, o tradutor hngaro-brasileiro Paulo Rnai
(1981, pp. 20-21) discorreu de maneira interessante sobre a etimologia do termo
traduo. Originrio do verbo latino traducere, que significava levar algum pela
mo para o outro lado, o termo passou a ser entendido, com o decorrer do
tempo, como o ato de se conduzir um texto para o domnio de outra lngua; dessa
forma, o sujeito da ao seria o tradutor e o objeto, o texto de origem. Entretanto,
Rnai considerou outra possibilidade, menos bvia: a de se levar o leitor para
outro domnio lingustico que no o seu.
Levar uma obra estrangeira para outro domnio lingustico acarreta a sua
adaptao a esse novo meio, que se d atravs da eliminao de suas
caractersticas peculiares, configurando-se um processo de naturalizao. No
por acaso, Rnai chamou de naturalizadora essa maneira de traduzir. Por outro
lado, quando se leva o leitor para o ambiente estrangeiro, o tradutor, ao contrrio,
deve conservar justamente o que o contedo original tem de estranho e genuno,
acentuando a sua origem extica. Essa variante foi denominada por Rnai de
traduo identificadora.
Sempre manifestamos interesse por essa ltima via, que tem como
adeptos os tradutores mais criativos, preocupados, cada um sua maneira, com
a manuteno das caractersticas exticas do texto de partida, entre os quais
figuram Odorico Mendes, Haroldo de Campos, Joo Angelo Oliva Neto, Raimundo
Carvalho e Trajano Vieira, para ficarmos apenas com os brasileiros.
Resolvemos, portanto, avaliar a possibilidade de aplicao prtica dos
conceitos fundamentais da traduo identificadora a uma obra latina clssica, as
Gergicas de Virglio, mais especificamente ao primeiro livro dos quatro que
compem o grande poema didtico sobre a agricultura. Em geral, as Gergicas
no so as protagonistas do corpus potico virgiliano, cabendo esse posto s
Buclicas, poema pastoril de forte inspirao alexandrina e Eneida, o grande
pico da latinidade. Por consequncia, ambos os poemas contam com inmeras
tradues, algumas de grande qualidade artstica. O mesmo no se pode dizer
das Gergicas, as quais, a nosso ver, contam em portugus com apenas duas
tradues vlidas artisticamente, ambas datadas do sculo XIX. Referimo-nos s
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verses de Odorico Mendes1 e de Feliciano de Castilho2. Esse contexto foi o
nosso motivador para uma nova abordagem tradutria aplicada a uma obra ainda
pouco explorada. Entretanto, devido ao restrito espao de um trabalho dissertativo
e grande extenso do poema que conta com mais de dois mil versos ,
tivemos que nos limitar apenas traduo de seu primeiro livro.
Antes, porm, de empreendermos a traduo, foi necessrio contextualizar
o poema virgiliano, assim como delimitar teoricamente a amplitude conceitual que
o tema da traduo identificadora abriga. Dessa forma, decidimos estruturar este
trabalho em quatro captulos.
No primeiro captulo, pretendeu-se abordar as Gergicas atravs de dois
grandes planos, um de teor mais geral, apresentando o poema sob uma
perspectiva panormica, no qual so tratados a contextualizao histrico-social
da obra, o gnero literrio a que ela pertence e suas principais fontes
predecessoras; j o segundo plano trata especificamente do primeiro livro, o
nosso corpus propriamente dito, limitando-se a uma anlise mais detalhada de
sua estrutura.
No segundo captulo, buscamos delimitar conceitualmente a traduo
identificadora segundo o ponto de vista de quatro tericos, a saber: Friedrich
Schleiermacher (2007), Lawrence Venuti (1995), Antoine Berman (2007) e
Haroldo de Campos (2004). Apesar de esses autores apresentarem diferenas
conceituais no que diz respeito ao fenmeno da traduo, eles compartilham, no
entanto, a mesma noo bsica de que ela deve abrigar em seu corpo textual as
peculiaridades genunas do texto de origem. Dessa forma, pode-se dizer que os
quatro tericos so adeptos, sua maneira, da traduo da identificadora.
O terceiro captulo apresenta um carter nitidamente experimental, no
sentido de apresentar uma descrio de nossa experincia tradutria. Ele se
divide em dois grandes blocos temticos: o primeiro referente mtrica aplicada
na traduo e os seus respectivos desdobramentos; o segundo trata das
estratgias adotadas que visavam manuteno de certas caractersticas
importantes do contedo original. Tambm nessa parte apresentamos algumas de
nossas solues para determinados trechos do poema, acompanhadas com os
1 MENDES, Odorico. Virgilio brazileiro ou traduco do poeta latino. Typ. W. Remquet, 1858.
2 DE CASTILHO, Antonio Feliciano. As Georgicas de Virgilio. Typographia de Ad. Lain e J.
Havard, 1867.
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trechos correspondentes das tradues de Odorico Mendes e Feliciano de
Castilho, a fim de se estabelecer um dilogo comparativo.
Finalmente, o quarto e ltimo captulo contm a nossa traduo do primeiro
livro das Gergicas, tendo ao lado o original latino. Buscamos assim, atravs
desse ordenamento dos captulos, realizar um movimento gradual, que parte do
plano mais terico (captulos 1 e 2) para o mais prtico (captulos 3 e 4).
Para a realizao deste trabalho, tomou-se por base o texto latino da
edio crtica de E. de Saint-Denis da Les Belles Lettres (1966), alm de
tradues do poema didtico virgiliano,utilizadas como consulta e comparao,
entre as quais destacamos o primeiro volume de O Virglio brasileiro: ou a
traduo do poeta latino (1995) de Odorico Mendes, no qual as Buclicas e as
Gergicas foram vertidas em decasslabos brancos pelo poeta e erudito
maranhense. Outra traduo potica importante, composta em versos
alexandrinos rimados, foi a realizada pelo poeta romntico portugus Antnio
Feliciano de Castilho, contida na obra Gergicas e Eneida (1964), na qual
tambm consta a traduo da Eneida empreendida por Odorico Mendes.
Tambm nos servimos de duas tradues em prosa, as quais se
mostraram bastante teis, a saber: As Gergicas de Verglio: verso em prosa
dos trs primeiros livros e comentrios de um agrnomo (1948), cuja traduo e
comentrios de Ruy Mayer solucionaram muitas dvidas que exigiam profundos
conhecimentos tcnicos e Gergicas I (2013), recentssima traduo em prosa do
primeiro livro do poema, empreendida por Matheus Trevizam.
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1 AS GERGICAS DE VIRGLIO
P. Virglio Maro (70 a. C. 19 a. C.) iniciou a composio de sua segunda
grande obra potica, as Gergicas, por volta do ano 37 a. C3., logo aps a
publicao de sua coletnea de poemas pastoris, as Buclicas, que tiveram como
modelo os idlios do poeta alexandrino Tecrito, natural da cidade de Siracusa.
Diferentemente desse trabalho anterior, concebido pelo poeta mantuano
como uma forma de lusus (distrao), impregnada de preceitos epicuristas, com
seus pastores-poetas vivendo isolados numa Arcdia idealizada, afastados da
realidade dolorosa do ambiente citadino4, as Gergicas revelam um processo de
amadurecimento, tanto no que diz respeito tcnica potica empregada quanto
s concepes filosficas e morais.
Trata-se agora de uma obra maior pouco mais de dois mil hexmetros
datlicos , complexa e de natureza didtica, na qual Virglio disserta sobre os
aspectos da agricultura italiana. O poema se divide em quatro livros, cada um
com sua temtica definida, respectivamente: o cultivo dos cereais (Livro I); a
arboricultura, destacando-se o plantio e manejo das videiras (Livro II); a criao
de animais (Livro III) e, por fim, a apicultura (Livro IV) atividade que era a nica
fonte para a produo de acar naqueles tempos. O prprio poeta anuncia em
seus primeiros versos a ordenao de seu plano:
Quid faciat laetas segetes, quo sidere terram
uertere, Maecenas, ulmisque adiungere uitis
conueniat, quae cura boum, qui cultus habendo
sit pecori, apibus quanta experientia parcis
hinc canere incipiam. (Georg., I, vv. 1-5)
O que faz as searas abundantes,
qual a melhor estrela na lavoura,
quando olmeiros convm ligar s vides,
o cuidado com o gado, a experincia
3 Determinar o ano exato do incio da composio das Gergicas no tarefa das mais fceis.
Alguns autores, como Bayet (1996, p. 203), afirmam que tal fato se deu dois anos antes, em 39 a. C.; outros, como Rostagni (1948, p. 188), no ano 37 a. C. 4 Estamos generalizando, obviamente, visto que a primeira e nona buclicas indiretamente
apresentam como pano de fundo uma sria questo social: a espoliao de propriedades agrcolas por parte dos veteranos do exrcito de Otaviano.
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tamanha que as abelhas laborantes
requerem: a partir de agora vou,
Mecenas, cantar.5 (vv. 1-7, grifo nosso)
Neste primeiro captulo, pretendemos realizar uma anlise composta de
dois momentos: no primeiro, estudaremos as Gergicas como um todo,
observando aspectos mais genricos, tais como o contexto histrico-social no
qual elas estavam inseridas, o gnero literrio a que pertencem, suas fontes,
motivaes etc. Posteriormente, trataremos de maneira mais especfica o primeiro
livro, que o nosso corpus propriamente dito.
1.1 Panorama
1.1.1 Contexto histrico-social
As Gergicas foram concebidas lentamente durante um perodo da histria
romana repleto de acontecimentos significativos, poucos anos aps a batalha de
Filipos, em 42 a. C. at a de cio, no ano de 31 a. C.
Na plancie de Filipos, as tropas comandadas por Bruto e Cssio,
defensores da causa republicana, sucumbiram diante das foras de Otaviano e
Marco Antnio, instaurando-se a partir da um segundo triunvirato: a Otaviano
caberia o comando da parte ocidental da nova administrao; Antnio ficaria com
o Egito, a Grcia e a sia menor e, por fim, Lpido que anos mais tarde foi
afastado do poder e exilado de Roma governaria a provncia da frica, a atual
Tunsia.
Com a sada de Lpido definitivamente uma figura sem grandes
ambies polticas , o comando do estado romano se polarizou entre Otaviano e
Marco Antnio, que sempre nutriam um dio mtuo. Desde o incio do segundo
triunvirato, conspiravam um contra o outro. Politicamente, foi um perodo marcado
pela instabilidade, que se refletia nestes famosos versos finais do primeiro livro
das Gergicas:
5 Neste captulo, utilizaremos a nossa traduo do primeiro livro das Gergicas para as
exemplificaes. Note-se que a numerao dos versos dela difere da do original latino.
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quippe ubi fas uersum atque nefas: tot bella per orbem,
tam multae scelerum facies, non ullus aratro
dignus honos; squalent abductis arua colonis
et curuae rigidum falces conflantur in ensem.
Hinc mouet Euphrates, illinc Germania bellum;
uicinae ruptis inter se legibus urbes
arma ferunt; saeuit toto Mars impius orbe:
ut, cum carceribus sese effudere quadrigae,
addunt in spatia et frustra retinacula tendens
fertur equis auriga neque audit currus habenas. (Georg., I, vv. 505-514)
o certo e o errado trocam seus lugares:
tanta guerra, to mltipla a face
do crime polo mundo; o digno arado
no se honra; falecem as lavouras,
que no podem contar com seus colonos;
forja-se em duro gldio a foice curva;
do Eufrates Germnia a guerra impera;
quebram-se as alianas nas fronteiras;
polo mundo, o Mavorte se enraivece,
como essas quadrigas disparando
das cocheiras: a cada volta, o auriga,
arrastado, frear tenta os cavalos,
porm o carro nem lhe d ouvidos. (vv. 630-642)
O propsito do triunvirato, repartir o poder a fim de que se evitassem as
disputas sangrentas do perodo precedente, ainda to vvidas na memria do
povo romano, mostrava-se cada vez mais ilusrio, no tardando para que os dois
homens mais poderosos de Roma travassem guerra, culminando na derradeira
batalha naval de cio, a 2 de setembro de 31 a. C., da qual Antnio foi
definitivamente derrotado, vindo a suicidar-se um ano depois.
Senhor absoluto do mundo romano, Otaviano que anos mais tarde
receberia o religioso ttulo de Augustus aprendeu perfeitamente quais seriam as
consequncias de um governo de aparncia ditatorial, fundado na antiga
concepo de monarquia helenstica, o qual seu pai adotivo, Jlio Csar, tentou
implementar: decerto ele teria o mesmo destino que este, apunhalado pelos
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senadores conjurados. Precavido, o futuro imperador de Roma preferiu o caminho
da conciliao:
[...] o jovem Otaviano se posicionava no caminho da conciliao e dos compromissos, e gradualmente alcanava um ordenamento mais igualitrio, mais slido, e verdadeiramente duradouro, que representava enfim a paz aps tantas batalhas: um ordenamento no qual as exigncias do governo pessoal naquele momento indispensvel acomodavam-se com o respeito s tradies e aos direitos de diversas ordens sociais, e salvavam ao menos um pouco da aparncia da antiga Repblica. (ROSTAGNI, 1948, p. 175)
6
Se o perodo em que Csar governou foi marcado pelas guerras e
revolues, o novo estgio poltico inaugurado por Otaviano se caracterizaria pela
paz. Diferentemente do entendimento comum que temos pelo termo paz, a pax
Romana no era do tipo inativa, na qual os homens viviam despreocupados na
inrcia e nos prazeres: era uma paz conquistada aps grandes sofrimentos, uma
paz que exigia trabalho e perseverana para a sua manuteno. Ela estava aliada
com a fora: no significava apenas segurana no interior das fronteiras do novo
imprio, mas tambm uma misso de propagar aos povos vizinhos a civilizao
romana, impondo-lhes os seus valores. Essa noo de paz perpassou todos os
mbitos da sociedade romana, inclusive o mbito literrio.
1.1.2 A literatura latina no processo de restaurao augustano
bvio que o programa de restaurao empreendido por Augusto no se
limitava meramente reestruturao poltica: tambm ela apresentava um carter
moral, religioso o retorno s velhas tradies e costumes da antiga Repblica
e tambm literrio: as obras do perodo se conformavam com o iderio
restaurador do novo governante sem perder a sua espontaneidade, sem a qual
resultariam numa literatura servil, de perfil propagandstico. O surgimento das
obras artsticas da era de Augusto se deve muito mais confluncia de
6 [...] il giovane Ottaviano si meteva per la via della conciliazione e dei compromessi, e di grado in
grado giungeva a un ordinamento pi equo, pi solido, e veramente duraturo, che rappresentava alfine la pace dopo tanto battagliare: un ordinamento in cui le esigenze del governo personale che allora era indispensabile si accordavano col rispetto alle tradizioni e ai diritti dei diversi ordini sociali, e salvavano qualche apparenza almeno dellantica Repubblica.
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concepes de vida e arte compartilhadas tanto pelos escritores quanto pelo alto
escalo do novo regime governamental do que a alguma forma de imposio.7
Agora, a nova fase da literatura latina marcada por um indito senso de
equilbrio e de serenidade, ausente na produo do perodo anterior: apesar de
neste ter havido grandes poetas e prosadores, tais como Ccero, Catulo, Lucrcio
e o prprio Csar, com seus comentrios de campanhas militares, faltava-lhes a
harmonia clssica alcanada pelos escritores augustanos, os quais conseguiram
conferir s suas obras uma aura de universalidade.
A poesia latina, em especial, atinge uma nova fase, afastando-se dos
modelos alexandrinos, muito comuns num Catulo ou Lucrcio, para reencontrar-
se com os grandes clssicos gregos, como afirmou Bayet (1996, p. 202): E, visto
que o gosto est mais amadurecido, os autores se voltam de forma mais resoluta
aos grandes clssicos da Grcia, Homero, Hesodo, Alceu, Safo, Arquloco:
absorvendo aquela grandeza singela, a sbria plenitude, a exatido das
propores.8
Outra caracterstica dessa nova fase foi o maior desenvolvimento dos
crculos literrios. Apesar de no se constituir em nenhuma novidade o patrocnio
efetuado por grandes personagens do Estado haja vista o famoso Crculo de
Cipio, grupo que reunia importantes polticos, filsofos e poetas, que se prestava
a discutir a cultura grega em suas mltiplas facetas essa iniciativa intensificou-
se bastante durante o perodo augustano.
Coube a C. Clnio Mecenas (68 a. C 8 d. C.) a honra de ter o seu nome
transformado em epnimo na posteridade. De fato, quando hoje usamos o termo
mecenas, referimo-nos a uma pessoa considerada patrono das artes. E foi
exatamente esse um dos papis desempenhados pelo principal amigo e ministro
do imperador Augusto.
Mecenas, ele prprio, possua certas veleidades literrias: autor de poesias
eruditas e ligeiras, moda alexandrina, ele trazia para a sua vida cotidiana o
7 No entanto, sabemos atravs de dos Santos (2007, p. 49) que, a pedido de Augusto, Virglio teve
de substituir o ltimo episdio do livro IV das Gergicas, no qual se narravam os feitos do seu carssimo amigo, Cornlio Galo, em terras egpcias, pelo fato deste ter cado em desgraa por suspeita de participar de uma rebelio contra o novo governante. 8 Et puis, parce que le got est plus mr, ils sadressent plus rsolument aux grands classiques de
la Grce, Homre, Hsiode, Alce, Sappho, Archiloque: ils apprennent grandeur simple, sobre plenitude, justesse des proportions.
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mesmo gosto refinado tpico de seus versos9. Essas caractersticas, aliadas
proximidade estreita com as figuras mais importantes do imprio e ao anseio
compartilhado com Augusto de promover uma profunda renovao no campo
literrio foram as condies ideais que fizeram de Mecenas o maior patrono da
histria da literatura latina.
Mecenas reunia sob a sua proteo os maiores poetas da poca, entre os
quais figuravam Virglio, Horcio e Proprcio, alm de poetas de menor estatura.
Horcio, por exemplo, recebeu grande suporte financeiro de Mecenas, a quem foi
apresentado por intermdio de Virglio. Sabe-se que o poeta das Odes viveu
tranquilamente o resto de sua vida numa casa de campo situada na regio de
Sabina; a casa tinha sido um presente de Mecenas. Tambm Proprcio foi
encorajado por Mecenas a se desviar de sua temtica amorosa e compor elegias
de tom mais patritico, melhor conformadas aos interesses pblicos.
Igualmente, Virglio no passaria inclume forte influncia de Mecenas:
supe-se, de acordo com a tradio, que at mesmo as Gergicas foram
compostas graas ao pedido insistente do grande patrono, que nutria desejo pela
criao de uma obra literria de maior escala que valorizasse a questo da
agricultura, verdadeira fonte de riqueza e glria do Estado romano; atividade que
ocupava naquele momento posio das menos importantes, como bem assinalou
Perret:
Entre as artes antigas pelas quais o renome latino e a fora da Itlia se solidificaram, nenhuma delas caiu tanto na inatividade, atravs da insegurana dos tempos, quanto o cultivo da terra. A restaurao da velhos Colonos da Itlia e o renascer das grandes formas da indstria nacional, associados com as mais antigas e felizes lembranas de Roma, tm sido a caracterstica principal na poltica de grandes lderes populares desde os Gracos at Jlio Csar. (PERRET, 1966, p. 177).
10
No toa que o poeta mantuano dedicou a sua segunda grande obra a
Mecenas. De fato, no incio de cada livro, o vocativo Maecenas est presente:
Livro I (v. 2); Livro II (v. 11); Livro III (v. 41) e Livro IV (v. 2). Na maior parte dessas
9 Cf. ROSTAGNI, 1948, p. 177.
10 Among the ancient arts by which the Latin name and the strength of Italy had waxed great,
none had fallen more into abeyance, through the insecurity of the times, than the cultivation of the land. The restoration of the old Coloni of Italy and the revival of great forms of national industry, associated with the older and happier memories of Rome, had been a leading feature in the policy of great popular leaders from Gracchi down to Julius Caesar.
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aparies, o nome de Mecenas um simples destinatrio, com exceo no
terceiro livro: aqui, Virglio teria dado a entender que estava seguindo ordens
expressas de seu benfeitor, ordens que estariam materializadas pelas palavras
haud mollia iussa11. So apenas trs palavras, mas que suscitaram comentrios
dos mais diversos estudiosos quanto natureza da relao entre o poeta e
Mecenas, visto que elas poderiam ser a prova cabal de que as Gergicas foram
um poema encomendado, realizado por induo de uma ordem expressa do
ministro de Augusto. Realmente, no faltam evidncias de que houve certas
intervenes de terceiros na composio da obra, como foi o caso da
substituio, exigida pelo imperador, do ltimo episdio do quarto livro, o que j
referimos anteriormente12.
Perret (1966) j tinha observado que a natureza da relao entre Virglio e
seu destinatrio, Mecenas, d-se de maneira diversa quando comparada, por
exemplo, com a de Lucrcio autor de outro poema didtico, De rerum natura
(Da natureza das coisas) e Mmio, a quem o poema foi endereado:
O primeiro paralelo a ser notado, em comparao entre os dois poemas, est no endereamento pessoal. Mecenas se relaciona com as Gergicas do mesmo modo que Mmio com o De Rerum Natura. Mas enquanto Mmio, no corpo do poema, normalmente associado ao estudante filosfico ideal, Virglio, depois de linhas de elogios na abertura de seus vrios livros, direciona a maior parte de suas instrues para um campons imaginrio. [] Em um caso [Da natureza das coisas] ns reconhecemos um homem, nascido no mesmo patamar da aristocracia republicana, que no conhece classe superior sua no mundo, atrado por algum a quem honra pela sua exclusiva dedicao atravs das alegrias da sua amizade. No outro caso [Gergicas], mesmo que a afeio no seja menos sincera, h uma inconfundvel deferncia a uma classe superior. (PERRET, 1966, p. 215, grifo nosso).
13
11
Odorico Mendes (1995, p. 237) traduziu o polmico verso 41 da seguinte forma: Por teu no fcil mando enfim, Mecenas, (grifo nosso). 12
Ver a nota 7 deste captulo. 13
The first parallel to be noticed, in the comparison between the two poems, is in the personal address. Maecenas stands in the same relation to the Georgics as Memmius does to the De Rerum Natura. But as Memmius in the body of the poem is often merged in the ideal philosophical student, so Virgil, after the lines of compliment at the opening of his various books, for the most part directs his instructions to some imaginary husbandman. [] In the one case we recognise the man, born into the equal relations of an aristocratic Republic, who knows of no social superior in the world, and is attracted to him whom he honours by his dedication solely by charm of friendship. In the other case, though the affection may not be less sincere, there is the unmistakeable note of deference to a social superior.
-
20
De fato, a relao entre Virglio e Mecenas se caracteriza pelo
desnivelamento social, ocupando este ltimo uma posio superior. Virglio no
pertencia classe aristocrtica, como Mecenas, apesar de no ter vindo de uma
origem to humilde, como muitos pensam, haja vista a educao esmerada que
lhe foi proporcionada por seu pai14. Lucrcio, no entanto, olhava Mmio como um
seu igual. Os tempos eram outros: enquanto Lucrcio e Mmio eram cidados da
Repblica, na qual o poder era compartilhado pela classe aristocrtica de forma
quase igualitria, Virglio vivia num imprio ou, para sermos mais precisos, num
principado, no qual um cidado em particular tinha importncia maior que os
demais. O desnivelamento social entre Virglio e Mecenas nada mais , a nosso
ver, do que o reflexo da nova estrutura social.
Ainda assim, preferimos compartilhar da opinio de dos Santos (2007, p.
18), segundo a qual o poeta teria aceitado a sugesto de escolher por uma
determinada escritura no por obrigao, mas porque isso correspondia sua
prpria inspirao. Claro que Mecenas exercia uma forte influncia, mas seria
ingnuo pensar que esta ultrapassasse os limites do arbtrio de Virglio. O prprio
poeta nos fornece uma pista de como se dava tal relao peculiar, atravs de
uma interessante metfora no livro II:
Maecenas, pelagoque uolans da uela patenti. (Georg,, II, v. 11)
(...) tu Mecenas,
Meu vero ornato e mor poro na fama,
Velvolo navega em mar patente. (vv. 9-11, grifo nosso)15
O que em outras palavras quer dizer: Mecenas o vento que empurra a
embarcao (as Gergicas), mas o piloto ou comandante o poeta. De fato,
Grimal (apud DOS SANTOS, 2007, p. 19), pensa que no importa tanto o sentido
preciso de haud mollia iussa, se se trata de uma ordem, conselho ou convite, mas
sim, a anlise dessas trs palavras num contexto maior. Por exemplo, voltemos
passagem original onde tais vocbulos se encontram:
14
Ver WILKINSON, 1969, pp. 19-24 15
MENDES, 1995, p. 181.
-
21
Interea Dryadum siluas saltusque sequamur
intactos, tua, Maecenas, haud mollia iussa. (Georg., III, vv. 40-41).
Por teu no fcil mando enfim, Mecenas,
O intacto bosque e as Dradas sigamos.16
Talvez a palavra-chave aqui seja o adjetivo intactos: as matas das Drades
e os bosques intactos poderiam ser analisados como uma metfora para a nova
temtica que estava prestes a ser abordada numa obra potica: a criao de
animais. Trata-se de um territrio virgem (intacto), o qual nenhum poeta antes de
Virglio empreendeu cantar.
Seguindo essa linha de pensamento, as ordens de Mecenas faziam
meno ao acrscimo de novos assuntos ao poema. De fato, como assinalam
Gaillard & Martin (1990) a criao de animais no fazia parte do plano inicial de
Virglio: o termo gergico deriva da palavra grega georgs, cujo valor semntico
se restringia aos trabalhos da terra, agricultura propriamente dita:
[...] enfim, Virglio diz de forma mais clara no incio do canto III que por obedecer s "ordens expressas" de seu poderoso protetor, o estadista Mecenas, que ele se decidiu a escrever um canto dedicado criao de animais. Isso no foi, portanto, a sua inteno inicial, e muito provvel que em sua mente as Gergicas deveriam ser um poema estritamente "agrcola", ou seja, limitadas aos dois primeiros cantos [...]. (GAILLARD & MARTIN, 1990, p. 206).
17
Assim, pode-se afirmar que apenas os dois primeiros livros
especialmente o primeiro so essencialmente gergicos; da ser uma empresa
nada fcil (haud mollia) tratar de uma nova temtica, ainda intacta. Grimal (apud
DOS SANTOS, 2007, p. 26) ainda sugere a hiptese de que Virglio considerou a
sugesto de Mecenas de tratar da criao de gado, assim como das abelhas,
provavelmente por descobrir que essa amplificao pudesse conferir ao seu
poema uma unidade maior.
16
MENDES, 1995, p. 237. 17
[...] enfin Virgile dit de la faon la plus nette, au dbut du chant III, que cest pour obir aux ordres exprs de son puissant protecteur, lhomme dtat Mcne, quil sest dcid crire un chant consacr llevage. Telle ntait donc pas son intention premire, et il est trs probable que dans son esprit les Gorgiques devaient tre un pome strictement agricole, cest--dire limit aux deux premiers chants [...].
-
22
1.1.3 O gnero didtico
1.1.3.1 Origens pr-socrticas e a nova abordagem alexandrina
Sartre (apud GAILLARD & MARTIN, 1990, p. 198) j dizia no primeiro
captulo do seu Quest-ce que la littrature? que a prosa utilitria por excelncia;
nela o prosador utiliza a linguagem como uma ferramenta, a fim de exprimir a
realidade e os objetos que a cercam, tudo atravs de um discurso marcado pela
transparncia e pela denotao das palavras. A poesia, ao contrrio,
essencialmente significante: a linguagem aqui no tomada como acessria pelo
poeta; ela possui autonomia, vale-se por si mesma graas a sua beleza formal e
as conotaes variadas do seu discurso.
As Gergicas se enquadram no gnero da poesia didtica. Sob a
perspectiva moderna, a existncia de tal gnero literrio pode causar certa
estranheza: afinal, por que abordar assuntos to tcnicos e banais
caractersticas da temtica desse gnero por meio da linguagem potica? Por
que os antigos no se utilizaram da linguagem prosaica, certamente mais apta ao
ensinamento de determinado contedo, devido funo denotativa de suas
palavras?
A explicao se deve s condies de difuso cultural nos primrdios da
antiga Grcia: os primeiros grandes sistemas que se pretendiam explicar os
fenmenos naturais, isto , os trabalhos filosficos e cientficos de pensadores
pr-socrticos, entre os quais Xenfanes, Empdocles, Parmnides etc. foram
escritos em verso devido ao fato de a transmisso de contedo ser nessa poca
essencialmente oral. A escrita em prosa ainda era algo raro, da a opo de
muitos filsofos pela poesia, cujo ritmo regular dos seus versos torna muito mais
fcil a memorizao do contedo.
Com isso, a poesia didtica dos pr-socrticos acaba tornando-se um novo
gnero literrio ao lado do gnero pico, lrico e dramtico com suas
peculiaridades e autonomia. Um gnero que sobreviveria por sculos afora
mesmo quando as condies iniciais de transmisso cultural j tinham evoludo
bastante, como assinala (GAILLARD & MARTIN, 1990):
-
23
[...] este gnero iria sobreviver s condies iniciais que justificaram a sua existncia, mesmo quando ele no era mais necessrio, continuando assim a se escreverem tratados em versos [...]. De fato, os poemas didticos so para os tratados em prosa o mesmo que s obras historiogrficas so as epopeias histricas. Tanto um como outro so um pouco comparveis s chamins que continuam a serem usadas ou instaladas em nossas casas de campo, apesar de o aquecimento a lenha h muito deixou de ser o mais conveniente e o mais eficaz... (GAILLARD & MARTIN, 1990, p. 199).
18
No entanto, segundo Perret (1966, p. 182), medida que os demais
gneros literrios foram sendo aperfeioados, alcanando um elevado nvel de
harmonia e simetria de composio, o gnero didtico ainda permanecia, em
termos de forma e estrutura, um tipo de arte essencialmente rudimentar: aqui, os
seus variados assuntos no so muito bem conectados entre si, alm de serem
intercalados por um grande nmero de episdios, prejudicando a unidade
artstica; acrescente a isso o surgimento da prosa literria, que demarcou
definitivamente a fronteira entre a prosa e poesia, e temos como resultado a
rejeio da poesia didtica no apogeu da literatura grega.
Apenas com os poetas alexandrinos, o gnero didtico ganhou vida
novamente. No entanto, esses poetas o conceberam de maneira diversa:
abandonando as caractersticas irregulares de composio, tpicas do gnero at
aquele momento, eles passaram a tratar a poesia didtica como um importante
ramo da arte potica.
A funo da poesia didtica tambm se alterou, uma vez que o seu antigo
objetivo, o de investigar e explicar os fenmenos da natureza misteriosa, j no
se fazia mais necessrio; para os alexandrinos, o principal objetivo da poesia
didtica satisfazer a curiosidade intelectual atravs de uma informao
interessante; caso o tema abordado deixe de s-lo, a poesia, por consequncia,
perder o seu valor. Dessa forma, os poemas didticos de tipo alexandrino se
apresentam mais como um refinado produto de erudio do que um tratado que
almeje a fins prticos.
18
[...] ce genre allait survivre aux conditions initiales qui avaient justifi son existence: mme lorsque cela ntait plus ncessaire, on allait continuer crire des traits en vers [...] de fait, les pomes didactiques sont aux traits en prose ce que sont aux ouvrages dhistoire les popes historiques. Et les uns comme les autres sont un peu comparables ces chemines que nos continuons utiliser ou installer dans nos maisons de campagne, alors mme que le chauffage au bois a depuis longtemps cess dtre le plus commode et le plus efficace...
-
24
1.1.3.2 O gnero didtico em Roma
O gnero didtico encontrou guarida em solo romano desde as fases mais
antigas de sua literatura, como atestam as obras de nio e Nvio, nas quais a
histria do povo romano foi contada em versos. O perfil dessas obras no era
basicamente pico, centrado na ao heroica como costuma ser classificado ;
em vez disso, assemelhava-se mais s obras historiogrficas.
Ao contrrio do que aconteceu na Grcia, a poesia didtica sempre foi
muito bem considerada entre os romanos como uma forma de arte potica das
mais srias e elaboradas, situando-se num nvel imediatamente abaixo do gnero
pico. De acordo com Perret (1966), essa aceitao se deve a uma melhor
adequao das caractersticas desse gnero ao peculiar temperamento romano:
Ele [o gnero didtico] foi mais apropriado do que qualquer outra forma para a mente romana. a nica forma pela qual os gnios de Roma produziram obras-primas superiores, comparadas no somente a qualquer obra do tipo produzida pelos gregos, mas tambm a qualquer tentativa nos tempos modernos. Como uma inveno romana, estimulada por um senso prtico de utilidade, pela paixo por vastos e massivos empreendimentos, e pela forte percepo de ordem e unidade em projetos, [esse gnero] idealizou um novo tipo de arquitetura para demandas comuns da vida, conforme a tendncia nacional em reduzir todas as coisas numa regra, em impor a vontade do mestre sobre as matrias obedientes, em usar as construes artsticas para algum fim prtico; se ele [o gnero didtico] no foi criado [pelos romanos], atingiu no entanto uma maior amplitude, um acabamento mais slido e robusto, associando grandes ideias a uma forma de arte potica a qual tem sido a mais pobre e sem substncia de todos gneros inventados pelos gnios gregos. (PERRET, 1966, p. 180).
19
Essa foi a razo de Virglio ter escolhido o formato didtico para a
elaborao de suas Gergicas; o gnero idlico, presente nas Buclicas, no era
adequado para comportar uma temtica mais elaborada, vasta e por que no
19
It was more suited than any other form to the Roman mind. It is the only form in which the genius of Rome has produced master-pieces superior not only to anything of the kind produced by Greece but to all similar attempts in modern times. As Roman invention, stimulated by a pratical sense of utility, by the passion for vast and massive undertakings, and by the strong perception of order and unity of design, devised a new kind of architecture for the ordinary wants of life, so in accordance with the national bent to reduce all things to rule, to impose the will of a master on obedient subjects, to use the constructive ad artistic faculties for some practical end, if it did not create, it gave ampler compass, more solid and massive workmanship, and the associations of great ideas to that form of poetic art which had been the most meagre and unsubstantial of all those invented by the genius of Greece.
-
25
dizer, mais sria. E o poeta mantuano ainda contava em sua poca com um forte
modelo inspirador: o poema De rerum natura de Lucrcio.
Publicado por Ccero logo aps a morte de seu autor, por volta do ano 56
a. C., esse poema didtico, que se propunha a apresentar a teoria atomista de
Epicuro, causou profunda impresso entre seus contemporneos. Em nenhuma
obra literria anterior, tanto grega quanto romana, a Natureza tinha sido tratada
em sua verdadeira imensido e complexidade, nem mesmo nos trabalhos pr-
socrticos e alexandrinos.20 Alm disso, Lucrcio soube superar a aridez de sua
temtica filosfica por meio de passagens de rara beleza potica, algo indito na
poesia latina at ento.
Da mesma forma que seu predecessor, Virglio teve de encontrar uma nova
abordagem para o gnero, a qual pudesse abrigar os novos sentimentos polticos
e sociais derivados do ideal restaurador augustano. No bastava o estilo pr-
socrtico, pouco harmnico e desconexo; tampouco o tipo alexandrino,
caracterstico de refinadas obras artsticas de erudio, fechadas em si mesmas,
era compatvel com um poema que funcionasse como smbolo de um novo ideal,
que inclua a propaganda da reagrarizao do solo italiano, aquela altura em
estado crtico de abandono devido s sucessivas guerras civis e inatividade dos
latifundirios.
Visto isso, o caminho encontrado por Virglio, como assinala Perret (1966,
p. 183), foi o da fuso desses dois estilos: combinando o esprito do primitivo
estilo didtico presente em Hesodo e nos antigos pr-socrticos com o
tratamento sistemtico e erudito dado pelos poetas alexandrinos. Com isso, as
Gergicas praticamente inauguraram uma nova modalidade de poesia didtica.
Aps as Gergicas, nenhum autor latino se atreveu a emular os versos
virgilianos ou mesmo tratar da mesma temtica. No entanto, Columela um
grande admirador e discpulo do poeta mantuano resolveu atacar a temtica da
jardinagem, no totalmente desenvolvida por seu mestre. Ao contrrio dos outros
livros de seu tratado agronmico De re rustica21, escritos em prosa, Columela
usou o hexmetro datlico para essa temtica, numa clara referncia s
20
Cf. PERRET, 1966, p. 181. 21
Ao todo, o De re rustica composto por 12 livros.
-
26
Gergicas. Para GAILLARD & MARTIN (1990, p. 209), Columela at que se
mostra um grande e habilidoso versificador; dono de uma paleta riqussima.
Sculos mais tarde, Paldio22 volta ao tema rural mais especificamente
s tcnicas de enxerto , agora em dsticos elegacos. Obra de carter
alexandrino, o ltimo poema gergico da literatura latina no passa de uma
simples curiosidade erudita.
1.1.4 O grande tema das Gergicas
Por tudo o que j vimos at agora, poderamos concluir, num primeiro
impulso, que a temtica principal das Gergicas seria o de ministrar preceitos aos
pequenos agricultores italianos sobre as melhores tcnicas de produo de
cereais, sobre o cultivo das videiras e oliveiras, alm da criao de animais, com
o intuito de estimul-los a retornar aos campos abandonados.
Primeiro de sua espcie talvez o nico na histria da literatura latina, o
poema de Virglio se apresentaria como um tratado agronmico diversificado. De
fato, quando o comparamos com uma obra literria equivalente, como, por
exemplo, Os trabalhos e os dias de Hesodo, constata-se que esta apresenta
certa restrio temtica, visto que nela so tratados didaticamente apenas os
assuntos referentes ao trabalho com a terra, estando excluda a criao de
animais.
No entanto, seria ingnuo, dada a natureza sofisticada de sua linguagem
potica, pensar que as Gergicas se dirigiam diretamente a essa classe de
trabalhadores, como afirma dos Santos (2007):
As Gergicas no se dirigiam diretamente classe dos pequenos lavradores, mas a toda elite culta, que podia dar, talvez, sua contribuio renovao ideal e moral, pois Verglio [sic] comeou seu poema num perodo (entre 38 e 36 a. C.), quando o Imprio no tinha segurana nem no exterior nem no interior: do leste pressionavam ameaadores os partos; do nordeste os germnicos, a pirataria de Sexto Pompeu ameaava, do lado de Antnio [sic], e de seus seguidores poderiam surgir novos perigos. (DOS SANTOS, 2007, p. 69).
22
Autor do tratado Opus agriculturae, composto de 14 livros.
-
27
Ou seja: os tempos estavam longe de serem tranquilos, o que seria uma condio
bsica para um apelo concreto de retorno aos campos. Dessa forma, o mais
apropriado seria afirmar que as Gergicas so a materializao potica de um
ideal de nao, a qual deveria voltar os olhos novamente para o seu passado
glorioso, fundado na agricultura.
Sob esse novo prisma, o aspecto didtico da obra fica em segundo plano,
tanto que, com um olhar mais atento para outras evidncias, chega-se
concluso de que as Gergicas no so um tratado agronmico em termos
estritos: em primeiro lugar, quando elas so comparadas com outros tratados da
mesma espcie, tais como o tratado do cartagins Mago verdadeira Bblia da
agronomia antiga traduzido para o latim por deciso do senado romano e o De
re rustica, de Marco Varro, obra publicada pouco depois de Virglio iniciar a
composio das Gergicas, nota-se uma diferena fundamental, pois nesses
trabalhos h uma preocupao maior com os preceitos de carter tcnico, em
especial aos que diziam respeito gesto da propriedade e relao entre os
proprietrios e seus escravos. Essas questes importantes esto ausentes no
poema virgiliano.
Outra questo: apesar de as Gergicas apresentarem uma riqueza
temtica indita, em termos de poesia didtica, ela no abrange reas essenciais
da economia rural daquela poca, como a criao de porcos e mulas na
verdade um tema ingrato para uma abordagem potica , a construo de vastas
piscinas para a cultura dos peixes ou de viveiros, para os pssaros.
Por fim, tomem-se em considerao os principais episdios ou digresses
contidos nas Gergicas, tais como a evocao da Idade de Ouro e os pressgios
celestes da guerra civil, no Livro I; o elogio da vida rural, no Livro II; a vvida
descrio da peste que acometeu o gado na provncia de Nrica, no Livro III
diga-se de passagem, tal descrio foi nitidamente inspirada na peste de Atenas,
retratada no sexto e ltimo livro do De rerum natura de Lucrcio e finalmente, o
episdio de Aristeu, que, por sua vez, est concatenado com o mito de Orfeu e
Eurdice, no quarto e ltimo canto do poema. Esses desenvolvimentos narrativos
ou descritivos no tm nenhuma finalidade prtica ou didtica, o que corrobora a
afirmao de Sneca (apud GAILLARD & MARTIN, 1990, p. 207) de que Virglio
-
28
se propunha muito mais a entreter os seus leitores do que a instruir os
camponeses.
Fica claro, portanto, que a aparncia didtica da obra serve como pano de
fundo para o seu verdadeiro objetivo, baseado mais em fins ticos e morais do
que utilitrios. A verdadeira significao das Gergicas est relacionada ao
enaltecimento dos grandes valores esquecidos pela sociedade romana, mais
especificamente, o valor do trabalho.
De fato, a grande originalidade de Virglio foi relacionar o trabalho, o
esforo dos lavradores felicidade, a qual somente conquistada com trabalho
duro. Isso fica evidente ao analisarmos o primeiro grande episdio do poema, no
qual se narra a origem divina do trabalho: antes, os homens viviam passivamente
numa espcie de paraso ednico, com alimentos sempre disponveis. No havia
perturbaes, conflitos ou guerras. Esse perodo conhecido como a Idade de
Ouro, tema mitolgico muito comum no apenas na cultura mediterrnea, mas
tambm na hebraica, com a alegoria de Ado e Eva. No mito narrado por Virglio,
Jpiter tinha resolvido pr termo a esse perodo, obrigando a humanidade a
trabalhar para sobreviver.
O fim da Idade de Ouro normalmente concebido como um mal para a
humanidade, assim como a expulso de Ado e Eva do paraso vista como a
origem de todos os pecados. Virglio, no entanto, opera surpreendentemente uma
inverso desse ponto de vista:
[...] Virglio inverte esse ponto de vista, ou seja, ele diz que a Idade de Ouro era um mal, porque nesta vida de felicidade passiva e sem preocupaes o corao e a inteligncia do homem se entorpeceram; por isso que Jpiter (isto , Deus) quis arrebatar os seres humanos deste profundo estado degradante e for-los a ganhar duramente a vida, construindo a sua felicidade, em vez de receb-la passivamente; [...]. (GAILLARD & MARTIN, 1990, p. 208).
23
Dessa forma, o fim da Idade de Ouro, ao invs de representar um
malefcio, foi fundamental para o desenvolvimento da humanidade, propiciando o
surgimento da agricultura, das ferramentas, da escrita etc. O homem teve de
23
[...] Virgile renverse ce point de vue: cest, dit-il, lge dor qui tait un mal, parce que dans cette vie de bonheur passif et sans problmes le coeur et lintelligence de lhomme sengourdissaient; voil pourquoi Jupiter (cest--dire Dieu) a voulu arracher les humains cet tat au fond dgradant, et les contraindre gagner durement leur vie et construire leur bonheur au lieu de le recevoir passivement; [...].
-
29
adotar uma atitude ativa no apenas para sobreviver, mas tambm para
conquistar a sua felicidade. Na verdade, essa nova moral do trabalho se encaixou
perfeitamente com o tema da agricultura, atividade que somente pode render
bons resultados mediante o constante o esforo de quem a pratica ou, resumindo
com as palavras do poeta: Labor omnia uincit improbus24.
1.1.5 Fontes predecessoras
As fontes das quais Virglio se serviu so basicamente as gregas, como Os
trabalhos e os dias de Hesodo, os Phaenomena de Arato, as Gergicas de
Nicandro de Clofon, os trabalhos astronmicos e geogrficos de Eratstenes
entre outros. No entanto, o poeta mantuano tambm utilizou fontes latinas
importantes, como os tratados De agricultura, de Cato e o De re rustica de
Varro este, inclusive, sendo contemporneo ao perodo de composio do
poema virgiliano , sobre o qual j fizemos meno anteriormente25, alm, claro,
do poema de Lucrcio, De rerum natura, cuja principal influncia talvez tenha sido
a de demonstrar o grande valor potico que uma obra didtica pode ter. Nas
sees subsequentes, ser feita uma breve anlise dos autores considerados
essenciais para a concepo das Gergicas de Virglio.
1.1.5.1 Hesodo
De acordo com Wilkinson (1969, p. 56), depois de Virglio ter se sado
muito bem como o Tecrito romano, graas ao sucesso de suas Buclicas no
ambiente intelectual, ele resolveu emular Hesodo, que diferentemente de
Tecrito, foi um poeta dos primrdios da literatura grega. Apesar de ser um autor
admirado tanto pelos poetas alexandrinos quanto pelos neotricos romanos, o
bardo de Ascra ainda no havia sido abordado de forma apropriada.
Na realidade, mesmo nas Buclicas, o poeta mantuano j fazia referncias
a Hesodo, como na passagem da cloga VI (vv. 64-72), na qual, ao encontrar as
Musas, o poeta Galo atribui a Hesodo (Ascraeus senex) os mesmos dons de
24
O trabalho rduo supera tudo. (traduo nossa). 25
Ver a seo 1.1.4
-
30
Orfeu, ao fazer as rvores se deslocarem das montanhas a fim de ouvir o som de
sua flauta. Tambm, na famosa cloga IV, a mitologia da Idade de Ouro
apresenta reminiscncias com Os trabalhos e os dias.
J no primeiro verso das Gergicas, temos quo sidere terram vertere (sob
qual constelao lavrar a terra), refletindo o nascimento das Pliades, que
acompanhava o incio dos trabalhos agrcolas no poema de Hesodo. Apesar de
j parecer algo anacrnico um lavrador romano guiar-se pelas estrelas a fim de
iniciar o seu trabalho visto que ele poderia utilizar o calendrio Juliano a
orientao pelas estrelas revela que Virglio estava muito mais preocupado em
estabelecer ligaes com os versos de seu modelo grego. Nada didticos tambm
so os versos nos quais Virglio d instrues de como fazer um arado, numa
clara conexo com os versos 427-431 de Os trabalhos e os dias: no sculo I a. C.,
o fazendeiro ou pequeno agricultor certamente compraria tal ferramenta em
alguma loja de artigos rurais; talvez at mesmo nos recuados tempos de Hesodo
os lavradores faziam o mesmo.
No entanto, a maior influncia de Hesodo na composio das Gergicas
talvez no seja de carter episdico, tais como referncias a uma e outra
passagem, e sim, a concepo do valor do trabalho duro conectado a um ideal de
justia. De fato, segundo Wilkinson (1969, p. 60), dos pouco mais de oitocentos
versos de Os trabalhos e os dias, menos de duzentos e cinquenta tratam da
agricultura propriamente dita e, mesmo assim, apenas a cultura dos cereais
abordada.
Dessa forma, o poema didtico de Hesodo funciona mais como um veculo
para ideias morais, religiosas e filosficas do que um mero tratado agronmico.
Fora o Livro I, o mais hesidico das Gergicas, devido a um grande nmero de
referncias e temtica compartilhada do cultivo de cereais, essa moral do
trabalho que permeia o restante da obra.
1.1.5.2 Arato
Arato foi um poeta alexandrino metafrasto, ou seja, um versificador de
tratados didticos, cuja obra era muito difundida no mundo greco-romano. De fato,
de acordo com Perret (1966, p. 196), o seu tratado sobre os sinais
-
31
meteorolgicos, as Diosemeiai, era to popular em solo romano que chegou a ser
traduzido por Ccero em sua juventude e tambm por Germnico.
Para que se tenha uma ideia de sua popularidade, as Diosemeiai
exerceram enorme influncia nos estudos astronmicos por quase dois mil anos,
vindo a ser superadas apenas com as descobertas de Coprnico e Galileu. Algo
notvel, visto que ele no era um astrnomo no sentido estrito do termo: boa
parte do que escreveu tem a sua origem nos importantes avanos cientficos
obtidos na academia platnica.
Apesar disso, segundo Quintiliano (apud Wilkinson, 1969, p. 60), a matria
de sua obra esttica, no apresentando nenhum tipo de variedade, emoo ou
carter humano. De fato, exceto por raras passagens de cunho mitolgico, o
poema de Arato bastante econmico de ornamentos, ainda mais quando
comparado com as Gergicas. Em outras palavras, as Diosemeiai no passam de
um mero catlogo em sua maior parte.
A presena de Arato se faz sentir nitidamente no primeiro livro das
Gergicas, em que Virglio transmite preceitos aos agricultores sobre os
significados dos sinais celestes, associando estes de maneira magistral ao
episdio do assassinato de Jlio Csar e das guerras civis que ocorreram aps
esse fato.
1.1.5.3 Lucrcio
Difcil escrever no espao to restrito deste trabalho a tamanha influncia
exercida por Lucrcio sobre o autor das Gergicas. De fato, talvez no exista em
toda a histria da literatura uma relao semelhante, como nos aponta Perret
(1966):
A influncia, direta ou indireta, exercida por Lucrcio no pensamento, na composio, e at mesmo na dico das Gergicas foi talvez mais forte que qualquer outra exercida, antes ou at aquele momento, por um grande poeta no trabalho de outro poeta. Esse tipo de influncia mais visto normalmente na histria da filosofia do que na histria da literatura. (PERRET, 1966, p. 199).
26
26
The influence, direct and indirect, exercised by Lucretius on the thought, composition, and even the diction of the Georgics was perhaps stronger than that ever exercised, before or since, by one
-
32
Por sua vez, Wilkinson (1969, p. 63) cita um levantado no qual consta que,
de cada doze linhas das Gergicas, pelo menos uma remete, consciente ou
inconscientemente, ao poema de Lucrcio. Mais facilmente rastreveis so as
linhas que iniciam um novo pargrafo: aqui, Virglio, claramente num processo
imitativo, utiliza-se de conectivos coesivos caractersticos do verso lucreciano, tais
como: principio, idcirco, praeterea etc. ou o elevado uso de vocabulrio arcaico,
to marcante em Lucrcio.
Tamanha reverncia por parte do poeta mantuano justificvel: como j se
falou anteriormente neste captulo mais exatamente na seo que dizia respeito
ao gnero didtico em Roma o poema De rerum natura desde o incio se
destacou nas letras latinas devido sua singularidade, pois Lucrcio havia
demonstrado, pela primeira vez, que um poema didtico poderia atingir elevados
nveis de qualidade potica sem perder o rigor descritivo e argumentativo. Alm
disso, Lucrcio era diferente dos poetas metafrastos anteriores:
Lucrcio pertencia a uma diferente tradio de metafrastos. Ao invs de abordar qualquer matria, embora pouco promissora e distante dos seus prprios interesses, e tratando isso como material para a exibio de virtuosidade artstica, ele escolheu um tema com o qual estava apaixonadamente comprometido, derivando sua inspirao potica mais de Empdocles do que de Hesodo. Ns j consideramos o impacto que deve ter sentido Virgilio com o surgimento do De Rerum Natura quando ele se encontrava na sua idade mais impressionvel, e como suas qualidades incidentais podem t-lo encorajado na convico de que um ostensivo poema didtico pode ser tornar essencialmente descritivo e tambm estar imbudo de fervor moral e filosfico. (WILKINSON, 1969, p. 63, grifo nosso).
27
Apesar de haver tambm profundas diferenas entre os dois poetas
Lucrcio era um ateu guiado pelas concepes epicureias da Natureza, enquanto
Virglio, embora na sua juventude tenha sido influenciado por essa doutrina
filosfica, acreditava numa Providncia divina que regia o universo; Lucrcio
great poet on the work of another. This influence is of the kind which is oftener seen in the history of philosophy than the of literature. 27
Lucretius was in a very different tradition from the metaphrasts. Instead of undertaking any subject, however unpromising and however remote from the poets own interests, and treating it as material for a display of artistic virtuosity, he chose one to which he was passionately committed, deriving his poetic inspiration from Empedocles rather than Hesiod. We have already considered the impact that must have been made on Virgil by appearance of the De Rerum Natura when he was at his most impressionable age, and how its incidental qualities may have encouraged him in his belief that an ostensibly didactic poem could be made essentially descriptive and also charged with moral and philosophic fervour.
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33
usava a poesia como um veculo para a cincia e Virglio como um instrumento de
uma arte til28; Lucrcio recomendava ao seu discpulo, Mmio, o afastamento da
vida mundana da cidade em favor dos estudos cientficos enquanto Virglio
requeria por parte dos seus ouvintes agricultores uma atitude ativa, ao resgatar
a antiga concepo de Hesodo de que com trabalho duro que se conquista a
felicidade etc. certamente no haveria Gergicas se no houvesse antes De
rerum natura.
1.1.5.4 Varro
Bayet (1996, p. 209) acreditava que a publicao do tratado De re rustica
tinha sido, sem dvida, um timo pretexto usado por Mecenas para encorajar
Virglio na ampliao temtica de seu poema. At ento, segundo o terico
francs, o poeta mantuano contava apenas com o primeiro canto do poema, de
forte inspirao hesidica. Gaillard & Martin (1990, p. 206), no entanto, opuseram-
se a essa tese principalmente porque h muito tempo j estava em voga a rica
obra de Mago, o tratadista cartagins, a qual poderia certamente oferecer um
vasto repertrio temtico ao poema virgiliano. O certo, porm, que o tratado de
Varro exerceu sim forte influncia na composio das Gergicas.
Apesar de sua predominante natureza tcnica, o tratado de Varro,
segundo Wilkinson (1969, p. 65), tem pretenses literrias. Trata-se de um
dilogo no estilo ciceroniano no qual se encontram interessantes cenas
descritivas, elogios e invocaes. Muitas dessas passagens inspiraram o poeta
mantuano, como, por exemplo, a invocao das doze divindades treze,
contando com o futuro imperador Augusto, deificado no promio do primeiro
livro das Gergicas, promio este cuja incorporao obra se deu tardiamente;
nitidamente tal passagem faz referncia invocao feita por Varro para
tambm doze divindades rsticas. Ainda de acordo com Wilkinson29, os
memorveis elogios da terra italiana e da vida rural, ambos localizados no Livro II,
so inspirados em passagens do De re rustica.
28
Cf. PERRET, 1966, p. 229. 29
Idem, ibidem, p. 65.
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Obviamente, Virglio no se utilizou apenas dessas quatro fontes citadas
neste captulo. Outros autores tambm exerceram determinado influxo, como os
j referidos Cato, o Velho, autor do tratado De agri cultura, considerado por
Gaillard & Martin (1990, p. 199) talvez o nico prosador puro das letras latinas30
e o cartagins Mago, com seu importantssimo tratado agrcola (provavelmente o
mais rico da Antiguidade). No entanto, baseamo-nos no critrio adotado por
Wilkinson (1969, p. 68), para quem os quatro autores (Hesodo, Arato, Lucrcio e
Varro) foram decisivos para a concepo original do poema.
1.2 O Livro I das Gergicas
Bayet (1996, p. 208) considerava o primeiro livro das Gergicas uma obra
de transio. Segundo o terico, Virglio escreveu um poema com cerca de
quinhentos versos, no qual existe uma combinao de preceitos primitivos
relativos cultura de cereais, encontrados em Hesodo, com as noes
astronmicas e meteorolgicas advindas das Diosemeiai de Arato, autor do
perodo alexandrino. Por fim, o tratado de Cato, o Velho, veio dar o suporte
tcnico nova empreitada virgiliana. Como se pode observar, a matria do
primeiro livro das Gergicas bastante heterognea: mais do que a um trabalho
coeso e verdadeiramente didtico, o qual de fato contivesse preceitos essenciais
a qualidade da terra, a construo da propriedade rural etc. Virglio preferiu,
talvez devido forte tradio alexandrina, a justaposio de detalhes e de
impresses, os quais nem sempre guardavam referncia com a temtica
proposta.
No entanto, tomado em conjunto com os demais livros, o primeiro canto se
integra a uma estrutura harmnica. De fato, como bem observou Wilkinson (1969,
p. 74), as Gergicas podem ser divididas em dois grandes pares de livros (Livro
I/Livro III e Livro II/Livro IV), os quais compartilham semelhanas tanto de
natureza estrutural quanto semntica: o primeiro e terceiro livros so iniciados por
longos promios enquanto o segundo e o quarto, por promios curtos; o primeiro
e terceiros livros enfatizam tematicamente o trabalho duro, ambos apresentando
um tom sombrio e terminando com uma catstrofe, j os livros que integram o 30
peut-tre le seul prosateur pur des lettres latines.
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segundo par, em contraste, tm uma tonalidade alegre, neles os agricultores
encaram trabalhos mais leves e o final de ambos carregado de uma aura de
felicidade e otimismo.
Apesar de o Livro I das Gergicas apresentar uma variedade temtica que
prejudica bastante uma viso unificadora e harmnica de seu significado, como
nos apontou Bayet (1996, p. 208), possvel identificar nele uma grande estrutura
divisvel em partes bem delimitadas. Por sua vez, Wilkinson (1969, p. 75-84)
percebeu que a diviso do primeiro livro se resumiria ao promio, seguido por
mais trs compartimentos, dentro dos quais h sempre a introduo de um novo
assunto e, posteriormente, uma digresso de natureza episdica. Dessa forma,
teramos a seguinte estrutura:
a) Promio (vv. 1-42);
b) Parte 1: Trabalhos para o cultivo de cereais (vv. 43-203);
c) Parte 2: O calendrio do agricultor (vv. 204-350);
d) Parte 3: Os sinais meteorolgicos (vv. 351-514).
Como se observa, cada parte nomeada de acordo com o tema nela
contido, assim como cada uma tem a sua prpria digresso episdica. Na
primeira parte, surge o episdio da origem divina do trabalho, tambm conhecido
como a teodiceia do trabalho (episdio sobre o qual j fizemos referncia na
seo 1.1.4); na segunda, temos a descrio das regies celestes e uma pea de
transio, na qual nos deparamos com uma tempestade outonal e, por fim, na
terceira e ltima parte, Virglio apresenta o que talvez seja a passagem mais
marcante de todo o primeiro livro, um verdadeiro gran finale: os prodgios
seguintes ao assassinato de Jlio Csar.
Nas prximas sees, sero feitos breves comentrios acerca de cada
componente dessa grande estrutura. Cabe reiterar que os exemplos
correspondentes s passagens do primeiro livro foram todos retirados de nossa
traduo, que se encontra integralmente no captulo 4 deste trabalho.
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1.2.1 Promio
Virglio inicia o seu promio com uma descrio sumria endereada a
Mecenas acerca da temtica que ser abordada em cada um dos livros do grande
poema. Trata-se de uma curta introduo para todo o trabalho, a qual ocupa
menos de cinco versos inteiros.
Aps esse resumo, o poeta surpreende ao criar o que provavelmente seja
o mais longo perodo da poesia latina, com quase 38 versos! Segundo Wilkinson
(1969, p. 75), um perodo to longo anormal no s ao estilo virgiliano, mas
tambm prtica retrica em geral, que recomendava como norma uma sentena
no muito maior que quatro hexmetros, a fim de tornar a sua enunciao mais
confortvel e ao mesmo tempo mais compreensvel aos ouvintes.
Na metade desse grande bloco enunciativo, 18 linhas, o poeta invoca
doze divindades campestres, a saber: Lber e Ceres; os faunos e as jovens
Drades; Aristeu, a quem Virglio alcunha de morador dos bosques (cultor
nemorum); P, deus dos pastores e rebanhos; Netuno, deus dos mares e
Minerva, a criadora da oliveira (oleae inuentrix); Triptlemo, a quem se atribua a
descoberta da agricultura; Silvano, divindade rstica semelhante aos faunos e,
finalmente, os deuses e as deusas que protegem as searas espontneas, ou seja,
aquelas cujas sementes no foram espalhadas pelo homem. A outra metade
dedicada inteiramente a Otaviano, futuro imperador de Roma, que aqui, graas ao
poeta mantuano, ganha status de futura divindade, apenas restando saber qual
posto ele ocupar entre os demais deuses:
Tuque adeo, quem mox quae sint habitura deorum
concilia incertum est, urbisne inuisere, Caesar,
terrarumque uelis curam, et te maximus orbis
auctorem frugum tempestatumque potentem
accipiat, cingens materna tempora myrto,
an deus immensi uenias maris ac tua nautae
numina sola colant, tibi seruiat ultima Thule
teque sibi generum Tethys emat omnibus undis,
anne nouum tardis sidus te mensibus addas,
qua locus Erigonen inter Chelasque sequentis
panditur (ipse tibi iam bracchia contrahit ardens
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Scorpius et caeli iusta plus parte reliquit): (Georg., I, vv. 24-35)
E tambm tu, Csar, que no sabemos
qual divino conclio ocupars
em breve: se das urbes e das terras
cuidar pretendes ou senhor dos pomos
e das estaes venha te aclamar
o universo, cingindo a fronte tua
mirto materno; ou no mar imenso
te tornes o deus nico dos nautas,
at na extrema Tule venerado;
Ttis todo o oceano comprar
polo honor de ter-te como genro;
ou talvez uma nova estrela acresas
aos meses estivais, onde um lugar
entre Ergone e as Pinas vai se abrindo:
o prprio Escorpio, resplandecente,
as recolhe, te dando mais espao. (vv. 31-46)
O promio finaliza com o pedido de Virglio para que Otaviano, como uma
musa homrica, o auxilie na rdua tarefa que o poeta tem pela frente, a
composio das Gergicas, que libertaro os agricultores do mau caminho da
ignorncia.
1.2.2 Parte 1: o cultivo dos cereais
Trata-se da parte mais hesidica de toda a obra, na qual a ideia do valor do
trabalho duro emerge. A primavera marca o incio das tarefas:
Vere nouo, gelidus canis cum montibus umor
liquitur et Zephyro putris se glaeba resoluit,
depresso incipiat iam tum mihi taurus aratro
ingemere et sulco adtritus splendescere uomer. (Georg., I,vv. 43-46)
Mais uma vez liquesce a primavera
das montanhas o gelo encanecidas,
e a gleba fofa ao Zfiro esboroa;
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comece logo o touro a me gemer,
arando fundo com luzente relha. (vv. 57-61)
A partir da, o poeta tece consideraes sobre como proceder em relao aos
campos desconhecidos, devendo o agricultor estudar de antemo o clima e o tipo
de solo da localidade, pois cada regio especializada em determinados
produtos devido s leis da natureza; esse fato serve ao poeta como uma
introduo para o subtema das terras estrangeiras:
(...) Nonne uides croceos ut Tmolus odores,
India mittit ebur, molles sua tura Sabaei,
at Chalybes nudi ferrum uirosaque Pontus
castorea, Eliadum palmas Epiros equarum?
Continuo has leges aeternaque foedera certis
imposuit natura locis, quo tempore primum
Deucalion uacuom lapides iactauit in orbem,
unde homines nati, durum genus. (...) (Georg., I, vv. 53-63)
(...) No vs como o Tmolo
nos envia o aromtico aafro,
a ndia o seu marfim, os indolentes
Sabeus o incenso, os Clibes despidos
o ferro, o Ponto o ftido castreo,
o Epiro as guas campes Eladas?
Tais so as leis e condies eternas,
impostas pola natureza a reas
determinadas, ps Deucalio
ter lanado ao vazio geradoras
pedras da dura raa humana. (...) (vv. 71-82)
Em seguida, o poeta retoma a imagem inicial: a do agricultor lavrando a
terra com seus touros, chegada a primavera. Wilkinson (1969, p. 77) afirma que
apenas com essa breve passagem, introdutria da primeira parte, j possvel
entrever o mtodo virgiliano de composio: um tema dado (arar a terra na
primavera), logo depois so desenvolvidos subtemas (neste caso, os subtemas
das terras estrangeiras e do mito da origem humana, centrada na figura de
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Deucalio) e novamente, com um movimento circular, a retomada do tema, mas
dessa vez com uma informao adicional: a terra a ser arada no pobre, visto
que o poeta a qualifica de pingue solum (solo frtil).
Logicamente, em relao ao solo pobre, Virglio receita uma srie de
preceitos capazes de recuper-lo, tais como a adubao, a queimada, a quebra
dos torres, a irrigao e a drenagem, alm das preces por invernos secos e
veres mais midos, trazendo tona o subtema religioso, de inspirao
hesidica:
Vmida solstitia atque hiemes orate serenas,
agricolae; (Georg., I, vv. 100-101)
Solstcio mido e sereno inverno
rogai, agricultores; (vv. 130-131)
No entanto, mesmo com todo o esforo despendido nas duras tarefas,
mesmo com toda a experincia que o agricultor possa ter, ainda sim ele ter de
lidar com uma variada sorte de inimigos, entre os quais os pssaros, as plantas
daninhas e at a sombra! No verso 121, Virglio explica a causa de tanta
dificuldade encontrada nos trabalhos agrcolas, intercalando uma nova temtica,
de carter episdico: a teodiceia do trabalho. Atravs dela, descobre-se que o
deus Jpiter (Pater) quis dificultar a vida dos homens que gozavam
preguiosamente a Idade de Ouro com o intuito de aguar-lhes a inteligncia,
favorecendo assim o surgimento das tcnicas agrcolas:
(...) Pater ipse colendi
haud facilem esse uiam uoluit, primusque per artem
mouit agros, curis acuens mortalia corda,
nec torpere graui passus sua regna ueterno. (Georg., I, vv. 121-124)
O prprio Pai no quis que da colheita
a estrada fosse fcil; o primeiro
a exigir o cultivo e suas tcnicas,
e a lapidar no estresse a humanidade,
renegando o sossego em seu reinado. (vv. 159-163)
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O alimento, que antes era doado generosamente pela natureza, agora teria
de ser produzido ou caado: os campos passam a ser delimitados para o plantio,
as feras e as aves capturadas por armadilhas, os peixes cercados com as redes,
as constelaes passam a ser nomeadas. A natureza se torna hostil: as cobras
adquirem veneno, os lobos competem pela caa, os mares se agitam. Em
seguida, Virglio novamente finaliza o episdio com um movimento circular,
retomado a vida na Idade de Ouro, na qual os homens se alimentavam sem
esforo, ao catar as bagas de carvalho cadas no cho.
Como j foi dito, Virglio opera uma inverso de valores aqui: em geral, o
fim da Idade de Ouro visto como um mau acontecimento, tanto na mitologia
mediterrnea quanto na religio judaico-crist, com a expulso de Ado e Eva do
Paraso; entretanto o poeta faz desse fato um smbolo positivo, no qual o
trabalho duro adquire uma justificativa de origem divina. Embora a teodiceia no
seja um tema didtico em si, no sentido de no remeter a nenhum preceito
pragmtico para o trabalho agrcola, seu importante significado religioso e
filosfico afetar todo o poema em diante.
1.2.3 Parte 2: o calendrio do agricultor
Com o conectivo praeterea palavra lucreciana utilizada na introduo de
uma nova temtica , Virglio comea a tratar do calendrio e de como os
agricultores podem orientar-se pelas estrelas. Um calendrio desse tipo, como j
foi observado, no deveria ter utilidade h tempos, configurando-se certamente
um anacronismo. Provavelmente a sua meno na obra no tenha outro objetivo
alm de rivalizar com o calendrio citado em Os trabalhos e os dias, de Hesodo.
Por isso, o estilo desse bloco temtico, segundo Wilkinson (1969, p. 81)
ainda essencialmente hesidico, apesar de que todo o suporte tcnico referente
astronomia tenha sido fornecido pelos trabalhos de Arato e Eratstenes,
cabendo a este ltimo, inclusive, a principal base para a detalhada descrio das
cinco zonas celestes, presente nos versos 233-251.
Em geral, o gnero de almanaque, bastante difundido na poesia
alexandrina anterior, tendia ao monocromatismo, no passando de um tedioso
catlogo em versos. Virglio, no entanto, joga com a ideia de criaturas, cuja
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aparncia os homens primitivos associavam s constelaes, conferindo
vivacidade a um tema comumente estril, em termos poticos:
(...) et milio uenit annua cura,
candidus auratis aperit cum cornibus annum
Taurus et auerso cedens Canis occidit astro. (Georg., I, vv. 216-218)
chega o anual cuidado com o milho
ao abrir o ano o Touro cintilante,
com seus chifres dourados, e cedente
nova estrela o Co desaparece. (vv. 278-281)
Em seguida, o poeta realiza a descrio das cinco zonas celestes e dos
doze signos do Zodaco, pelos quais o sol passa em seu curso anual. Com o
conhecimento da ordenao celeste, os agricultores poderiam predizer o
surgimento das tempestades, qual o melhor momento para empreender-se a
navegao, quando plantar ou colher etc., no sendo, portanto, em vo observar
atentamente as constelaes e as quatro estaes do ano:
Nec frustra signorum obitus speculamur et ortus
temporibusque parem diuersis quattuor annum. (Georg., I, vv. 257-258)
(...) observar nunca demais
tanto o morrer quanto o nascer dos astros,
e o ano bem diviso em quatro fases. (vv. 326-328)
A meno s estaes do ano foi o mote para o subtema dos trabalhos
ocasionais. O bom agricultor no conhece o descanso: mesmo com a chegada do
inverno e das chuvas, ele tem de se dedicar s tarefas ocasionais, como reparar a
relha do arado, marcar o gado ou numerar as pilhas de gros. Mesmo na poca
dos festivais religiosos, o agricultor pode abrir canais, queimar os espinheiros,
preparar armadilhas para a captura de aves, vender os seus produtos na cidade
mais prxima etc. Mais uma vez, Virglio nos lembra aqui do conceito hesidico do
trabalho duro e incessante.
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No final da segunda parte, entre os versos 311-350, Virglio insere a
descrio de uma tempestade, que se configura como uma pea de transio
para a terceira e ltima parte do poema, que trata dos sinais meteorolgicos.
Admirvel o contraste realizado pelo poeta entre as calamidades provocadas
pela tempestade outonal e o posterior clima de serenidade presente nos festivais
em honra a Ceres:
Ipse pater media nimborum in nocte corusca
fulmina molitur dextra, quo maxima motu
terra tremit, fugere ferae, et mortalia corda
per gentis humilis strauit pauor; ille flagranti
aut Atho aut Rhodopen aut alta Ceraunia telo
deicit; ingeminant Austri et densissimus imber;
nunc nemora ingenti uento, nunc litora plangunt. (Georg., I, vv. 328-334)
O prprio Pai, durante a noite, arroja
seus raios coruscantes, e no choque
a terra treme, os animais debandam,
e estacam de pavor os humilhados;
Ele, com seu flamante dardo, fere
os montes Atos, Rdope e Cerunios;
os Austros e o aguaceiro recrudescem;
na trovoada, o bosque e a praia choram. (vv. 418-425)
In primis uenerare deos, atque annua magnae
sacra refer Cereri laetis operatus in herbis,
extremae sub casum hiemis, iam uere sereno.
Tum pingues agni et tum mollissima uina;
tum somni dulces densaeque in montibus umbrae.
Cuncta tibi Cererem pubes agrestis adoret;
quoi tu lacte fauos et miti dilue Baccho;
terque nouas circum felix eat hostia fruges,
omnis quam chorus et socii comitentur ouantes (Georg., I, vv. 338-346)
Antes de mais nada, venera os deuses,
e os votos anuais magna Ceres
cumpre, sacrificando em verde relva:
o inverno cede a primavera amena.
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Ento, suave o vinho, os anhos gordos,
no monte a sombra densa, doce o sono.
Que os jovens, para ti, adorem Ceres,
e tu, em leite e vinho, dilua o mel;
trs vezes o fecundo campo a vtima
circunde, com feliz coro a seguindo: (vv. 429-438)
Para Wilkinson (1969, p. 83), duas lies importantes os lavradores podem
tirar dessa segunda parte: a primeira seria estudar atentamente o cu, como uma
forma de predizer futuros acontecimentos; a segunda e aqui novamente
ressurge a temtica religiosa, com forte inspirao em Hesodo seria, antes de
tudo, sempre venerar os deuses. Na terceira e ltima parte, teremos o
desdobramento da primeira lio, com a abordagem dos sinais meteorolgicos.
1.2.4 Parte 3: os sinais meteorolgicos
Aps o agricultor estar ciente do ordenamento do cosmos, o que
possibilitou o surgimento posterior de um almanaque com o qual ele pudesse
guiar-se nas tarefas agrcolas, o poeta acaba revelando nesta nova etapa
temtica, de maneira mais explcita, que foi Jpiter quem estabeleceu os sinais
meteorolgicos em benefcio da humanidade:
Atque haec ut certis possemus discere signis,
aestusque pluuiasque et agentis frigora uentos,
ipse Pater statuit quid menstrua Luna moneret,
quo signo caderent Austri, quid saepe uidentes
agricolae propuis stabulis armenta tenerent. (Georg., I, vv. 351-355)
E para que se possa ao certo as chuvas
prever, mais o calor e os ventos frios,
o prprio Pai disps o que a mensal
lua nos informaria: em qual estrela
os Austros enfraquecem; ao observar
tanto esses indcios, manteria
o agricultor a grei perto do estbulo. (vv. 443-449)
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A partir da, inicia-se a terceira e ltima parte do Livro I, totalmente sobre o
forte influxo das Diosemeiai de Arato: os sinais temporais so retratados aqui com
grande variedade de cenrios, numa linguagem altamente elaborada, distante dos
versos montonos e sem adornos de seu modelo alexandrino.
Primeiramente, so abordados os sinais do mau tempo (alguns bem
pitorescos), tais como os ventos acompanhados pela agitao repentina dos
mares; as gaivotas marinhas, que andam a brincar na areia da praia; estrelas
cadentes; as formigas, que agora retiram os seus ovos do fundo da terra; a sbita
revoada de corvos pelo cu etc. Segundo o poeta, todos esses sinais so
indicativos de forte chuva. Em seguida, as atenes esto voltadas para os sinais
de bom tempo: o forte brilho das estrelas e da lua; a ausncia de nuvens e o
crocitar alegre dos corvos na floresta.
Por fim, Virglio passa a abordar os