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Universidade Federal do Rio de Janeiro NA FENDA DOS DIAS: leituras a partir de algumas datas na obra de Armando Freitas Filho Mariana Quadros Pinheiro 2009

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

NA FENDA DOS DIAS: leituras a partir de algumas datas na obra de Armando Freitas Filho

Mariana Quadros Pinheiro

2009

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NA FENDA DOS DIAS: leituras a partir de algumas datas na obra de Armando Freitas Filho

Mariana Quadros Pinheiro

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como quesito para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária) Orientador: Prof. Dr. João Camillo Barros de Oliveira Penna

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2009

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NA FENDA DOS DIAS: leituras a partir de algumas datas na obra de Armando Freitas Filho

Mariana Quadros Pinheiro

Orientador: João Camillo Barros de Oliveira Penna

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária) Examinada por:

___________________________________ Presidente, Prof. Dr. João Camillo Barros de Oliveira Penna

___________________________________ Prof. Dr. Edson Rosa da Silva – PPG Letras Neolatinas – UFRJ ___________________________________ Prof. Dr. Jaime Ginzburg – PPG Literatura Brasileira – USP ___________________________________ Pr. Dra., Ana Maria Amorim de Alencar – PPG Ciência da Literatura – UFRJ, Suplente ___________________________________ Pr. Dra., Lucia Teixeira de Siqueira e Oliveira – PPG Ciências da Linguagem – UFF, Suplente

Rio de Janeiro Fevereiro de 2009

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PINHEIRO, Mariana Quadros.

Na fenda dos dias: leituras a partir de algumas datas na obra de Armando Freitas Filho/ Mariana Quadros Pinheiro. – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2009.

xiii, 124f.: il.; 28cm. Orientador: João Camillo Barros de Oliveira Penna Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-Graduação em Ciência

da Literatura, 2009. Referências Bibliográficas: 1. Tempo e Enunciação 2. Armando Freitas Filho 3. Literatura brasileira

contemporânea. I. PENNA, João Camillo Barros de Oliveira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. III. Título.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Marcio Shimabukuro, a quem devo tudo, ontem e hoje; à minha família,

por permitir que fosse possível este texto desconhecido; a Deyse e a Airton, pelos dias de

abrigo, sem os quais não poderia ter concluído este trabalho; a João Camillo Penna, por

guiar meus descaminhos; a Armando Freitas Filho, pela leitura cuidadosa, pelo apoio e pela

poesia; a Lucia Teixeira e a Marcelo Diniz, por terem marcado esta trajetória

permanentemente; a Milla Benicio, por me acompanhar nos primeiros e nos últimos

momentos deste projeto; a Renan Nuernberger, pelo diálogo, frutífero sempre, ainda

quando bissexto; a Marcelo de Paulos, pelas correções e pela companhia; a Mariana Furloni

e a Diogo Rolins, por seguirem os diversos desvios deste trabalho, dia a dia; àqueles cuja

presença torna a passagem dos dias mais leve, estimulante, feliz: Ana Cristina Petra,

Antonio Andrade, Bruno Siqueira, Joana Regattieri, Luciano Salim, Marina Calaza, Pedro

Martins, Roberto Bozzetti, Tatiana Clarkson.

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Dedico esta dissertação a meu pai, vazio a partir de que falo e em direção a que caminho – para sempre?

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SINOPSE Exame da cisão entre o tempo lingüístico e o tempo crônico em algumas obras datadas de Armando Freitas Filho.

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RESUMO

NA FENDA DOS DIAS: leituras a partir de algumas datas na obra de Armando Freitas Filho

Mariana Quadros Pinheiro

Orientador: João Camillo Penna

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação

em Ciência da Literatura (Teoria Literária), Faculdade de Letras, da Universidade Federal

do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Ciência da Literatura.

Este trabalho busca iluminar as fraturas instauradas pelas marcas do calendário

dispersas pela obra de Armando Freitas Filho. Para tanto, discutimos as relações e as

dissociações entre o tempo crônico, registrado por algumas datas, e o tempo lingüístico,

desenvolvido nos textos redigidos pelo poeta carioca. Os diferentes procedimentos de

datação na obra de Freitas Filho nos levam a analisar, em três ensaios, os vários registros

sugeridos pelas datas, sempre de forma lacunar. A leitura da inscrição instersticial de

história, sujeito e vida é guiada por aquelas marcas resistentes à significação. Na fenda dos

dias, seguimos os vestígios da cronologia.

Palavras-chave: tempo – enunciação – poesia contemporânea – Armando Freitas Filho

Rio de Janeiro Fevereiro de 2009

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ABSTRACT

IN THE BREACH OF DAYS: READINGS FROM SOME DATES IN THE WORKS OF ARMANDO FREITAS FILHO

Mariana Quadros Pinheiro

Orientador: João Camillo Penna

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Teoria Literária), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura.

This work aims to highlight the fractures established by some calendar marks

scattered in the workmanship of Armando Freitas Filho. In order to achieve so, we discuss

the relations and the dissociations between chronological time, recorded by some dates, and

linguistic time, developed in the texts written by the Brazilian poet. The different dating

procedures in Freitas Filho’s works lead us to examine, in three essays, the various records

which the dates suggest, always in lacunary form. The reading of interstitial inscription of

history, subject and life is guided by those marks resistant to signification. In the breach of

days, we follow the traces of chronology.

Key-words: time – enunciation – contemporary poetry – Armando Freitas Filho

Rio de Janeiro Fevereiro de 2009

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Esta pesquisa foi desenvolvida com o apoio do CNPq.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO – nos rastros do silêncio ........................................................................... 14 1 FRAGMENTOS DA HISTÓRIA (A FLOR DA PELE) .................................................. 20

1.1 UM TABLÓIDE ........................................................................................................... 21

1.2 ENTRE DICIONÁRIO E POESIA ............................................................................... 23

1.3 O QUE SE NOTICIA: RIO, SETEMBRO, 1978 ......................................................... 28

1.4 UMA OBRA ABERTA ................................................................................................ 44

1.5 PARA ALÉM DE UM DATA PRECISA, A VIOLÊNCIA INCONTORNÁVEL ...... 51

1.6 DE DENTRO DA FERIDA .......................................................................................... 54

2 UMA BIOGRAFIA IMPOSSÍVEL? (3X4) ..................................................................... 56

2.1 ASSINAR: REIVINDICAR .......................................................................................... 58

2.2 UMA BIOGRAFIA IMPOSSÍVEL .............................................................................. 62

2.3 UM ÁLBUM FOTOGRÁFICO .................................................................................... 66

2.4 AUTO-RETRATO: ANTI-RETRATO ........................................................................ 71

2.5 AUTOBIOGRAFIA: ALOBIOGRAFIA ...................................................................... 84

2.6 BIOGRAFIA: TANATOGRAFIA ................................................................................ 91

3 O DESAJUSTE BIOGRÁFICO (FIO TERRA, NUMERAL) ........................................... 93

3.1 ESCREVER O DIA ...................................................................................................... 94

3.2 ESCREVER A VIDA ................................................................................................. 100

3.3 “SOB A CARGA DO CORPO” ................................................................................. 108

3.4 “NUMERANDO ATÉ A MORTE” ............................................................................ 118

3.5 ENTRE A FINITUDE DA VIDA E O INFINITO DA LINGUAGEM ..................... 128

CONSIDERAÇÕES FINAIS – como um galgo ............................................................... 130

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 133 ANEXOS 1 A FLOR DA PELE (1978) 2 LONGA VIDA (1982), 3X4 (1985)

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... Os dias são os passos

na pista o tempo que corre atrás do atleta são pegadas em branco

dia a dia, adeus são vestígios do silêncio? Os dias são os sentidos de um tecido

que se usa vestido

como a pele bailarina mais nua do corpo? Os dias são as redes balançando suas malhas e falhas na pausa das varandas dia sim, dia não? Os dias são as notícias

mínimas invisíveis a olho nu acontecendo nas entrelinhas nas páginas de poeira e ventania de um jornal nenhum?

Armando Freitas Filho, Dr. Acaso,

À mão livre (1979)

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INTRODUÇÃO – nos rastros do silêncio

A primeira data que nos fez ver a fenda aberta pelas marcas da cronologia foi

“Setembro de 1978”. Aposta às margens de um poema em prosa editado em papel-jornal

por Armando Freitas Filho, a inscrição do tempo instaurava frente a nossos olhos um

vestígio irredutível à análise dos textos. A data remetia a um tempo estranho ao poema.

Alienígena, ela fraturava a obra, atraindo-a para aquele decurso apenas indiciado. Mas

exatamente o que ocorreu em setembro de 1978? A marca do calendário instigava a

interrogação, sem respondê-la.

Outras marcas nos fizeram reencontrar aquela fratura apenas entrevista quando do

primeiro contato com um procedimento de datação na obra do poeta carioca. Transitamos

pelas páginas de seus livros e nos deparamos, aqui e ali, com alguns traços, já afastados da

palavra ainda encontrada naquela primeira data. “1.X.82”, “5 VII 98”, “10 VII 2004”. O

desenho dos números no papel delineava as pegadas que seria preciso seguir. Elas nos

levariam a uma compreensão mais acurada dos poemas? Poderiam fazê-lo embora

apartadas das palavras até mesmo por sua constituição gráfica?

Esta dissertação constitui a tentativa de relançar essas questões, suscitadas pela

perplexidade surgida desde as primeiras leituras dos poemas datados de Armando Freitas

Filho. Essas interrogações podem ser resumidas por um trecho do poema que serve de

epígrafe a este trabalho: os dias são vestígios do silêncio? Ante as datas, o olhar transita por

vestígios. Ante as marcas do calendário, os ouvidos parecem desejar alguma palavra a

preencher o silêncio aberto por esses elementos que pouco significam. De que esses traços

são o rastro? É possível reconstituir o percurso ali apenas indiciado?

As perguntas parecem frívolas. Datamos: documentos, cartas, eventos.

Acostumamo-nos aos calendários, sobre nossas mesas de trabalho ou pendurados em

nossas paredes. Recorremos ordinariamente a eles como um recurso para direcionar nossas

ações conforme o tempo demarcado da cronologia. Delimitados pelo nascer e o ressurgir do

sol, os dias nos guiam de acordo com um fenômeno físico perfeitamente observável. Não

há qualquer fenda, portanto. Não resta qualquer vestígio não calculado. Por que interrogar

as relações entre o vazio e as marcas do calendário se elas parecem tão distantes daquele

silêncio a que o poeta associou o dia?

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Datamos: apomos traços de modo a organizar um devir que não se pode capturar. Só

assim, é possível transitar pelos dias como quem caminha por vias previsíveis, sólidas.

Essas vias são rarefeitas, no entanto. Talvez o costume nos tenha levado a esquecer aquele

vazio de que partimos. O caráter cíclico do fenômeno natural segundo o qual mensuramos o

dia torna a sucessão de luz e sombra apenas o retorno do mesmo. Os crepúsculos repetem-

se, monótonos, idênticos. Sem aqueles marcos, que instituem a diferença em meio à

circularidade natural, a organização da cronologia se esvai. Precisamos das datas, de seus

vestígios, transmitidos socialmente a fim de demarcar o andamento das atividades,

coletivas e individuais, de acordo com um ritmo dessa forma controlado. Guiados por esses

traços, podemos experimentar a sucessão dos processos naturais ou sociais como o meio de

orientação a que nos habituamos, como defende Norbert Elias, chamar de “tempo”:

É nessa capacidade de aprender com experiências transmitidas de uma geração para outra que repousam o aprimoramento e a ampliação progressivos dos meios humanos de orientação, no correr dos séculos. É essa função de meio de orientação que hoje concebemos e experimentamos como sendo o ‘tempo’. (ELIAS, 1998, p. 33)

Válido para todos, o tempo – ou, antes, o tempo crônico – institui as pegadas a partir

de que podemos delinear um caminho nítido em meio à indiferença natural ou física.

Vemos a indistinção ressurgir quando, isolados, ficamos apartados das marcas que nos

guiam no fluxo da vida. O silêncio pode, então, se fazer ouvir. Não poucas vezes a

percepção desse vazio terá sido testemunhada. Encarcerados, náufragos, alienados

disseminam-se por narrativas da fratura aberta pela marginalização da sociedade e,

conseqüentemente, da cronologia. Sob a voz desses exilados, reencontramos os dias visados

como “pegadas em branco” – para retomar o poema de Armando Freitas Filho citado na

epígrafe. Sem nome, conforme escreve Camus em O estrangeiro, os dias mostram ser os

sintomas do vazio:

Assim, com as horas de sono, as recordações, a leitura da minha ocorrência e a alternância da luz e da sombra, o tempo passou. Tinha lido que na prisão se acabava perdendo a noção do tempo. Mas para mim isto não fazia muito sentido. Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser, ao mesmo tempo, curtos e longos. Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos que acabavam por se sobrepor uns

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aos outros. E nisso perdiam o nome. As palavras ontem ou amanhã eram as únicas que conservavam um sentido para mim. (CAMUS, 2001, p. 84)

Indiferente, o curso do mundo surge apenas como “alternância de luz e sombra”. Os

marcos temporais parecem, assim, aniquilados. Podemos dizer, com Norbert Elias: “Uma

‘hora’ é algo invisível” (op. cit., p. 7) – e também um dia, um mês, um ano. Sem o

calendário, torna-se evidente que o tempo crônico é invisível, é inaudível, é em branco.

Sem ele, a única distinção ainda válida é aquela instituída pela diferença entre hoje, ontem

e amanhã. Esse resíduo temporal, esse outro tempo, está ligado ao exercício da fala, ao

presente da enunciação. Em relação ao “agora”, exclusivamente lingüístico, distinguem-se

o antes e o depois. Apesar da monotonia do ciclo natural, mesmo que afastados da

orientação oferecida pelo calendário, estamos, portanto, ainda diante de categorias

temporais. Estamos no tempo. Não um tempo qualquer, mas aquele, lingüístico, definido

por Benveniste em “A linguagem e a experiência humana”:

O que o tempo lingüístico tem de singular é o fato de estar organicamente ligado ao exercício da fala, o fato de se definir e de se organizar como função do discurso. Este tempo tem seu centro – um centro ao mesmo tempo gerador e axial – no presente da instância da fala. Cada vez que um locutor emprega a forma gramatical do ‘presente’ (ou uma forma equivalente), ele situa o acontecimento como contemporâneo da instância do discurso que o menciona. É evidente que este presente, na medida em que é função do discurso, não pode ser localizado em uma divisão particular do tempo crônico, porque ele admite todas as divisões e não se refere a nenhuma em particular. (BENVENISTE, 2006, p. 74-5).

O tempo lingüístico é re-produzido a cada vez que se enuncia. Enquanto é

conservada a capacidade enunciativa – ainda que em solilóquios como os produzidos pelos

solitários –, a experiência temporal é mantida. Parecemos encontrar, assim, nessa

experiência inexpugnável, o substrato sólido sobre o qual se constrói a via rarefeita dos

dias. Também essa temporalidade é movediça, contudo. Uma vez que o centro do tempo

lingüístico é um presente “reinventado a cada vez que um homem fala” (idem, p. 75), as

categorias geradas a partir desse eixo – passado, futuro – são também recriadas

continuamente ao longo do discurso em relação a que ganham sentido. “Antes”, “agora”,

“depois” podem referir, portanto, qualquer divisão do tempo crônico e, também por isso,

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não se submetem a qualquer uma delas, como defende Benveniste. Essas diferenças

temporais, cujo marco é deslocado incessantemente, não se deixam imobilizar.

Sem se associar às marcas do relógio ou do calendário, que poderiam estabilizar seu

eixo, o tempo lingüístico parece esgarçar o tecido dos dias, lançando-os rumo a um

ressurgimento eterno que se aproxima também do vazio. Os dias tornam-se, então, “ao

mesmo tempo, curtos e longos” – como escreve Camus –, sobrepondo-se uns aos outros.

Será essa sucessão sem amarras, perpetuamente re-enunciada, um tempo atravessado pelo

silêncio, vislumbrado apenas quando se abandona a vida em comunidade? Será a

possibilidade de uma experiência a-social, vivida por aqueles que abdicam ao calendário?

Será a eternidade? – perguntaria o náufrago Crusoe (re) criado por Tournier:

Depois de a explosão ter destruído o mastro-calendário, nunca mais senti a necessidade de contar o meu tempo. A lembrança deste acidente memorável e de tudo o que o antecedeu permanece no meu espírito com uma vivacidade e uma frescura inalteráveis, prova suplementar de que o tempo congelou na altura em que a clepsidra voava em pedaços. Desde aí, não será na eternidade que eu e Sexta-feira estamos instalados? (TOURNIER, 2001, p. 191-2)

A renúncia à cronologia parece constituir um recurso capaz de silenciar os marcos

temporais a partir dos quais guiamos a vida – congelar o tempo ou mobilizá-lo

infinitamente como um presente sempre re-enunciado aproximando-se em um mesmo

efeito de atemporalidade. Há, portanto, uma fenda, socialmente instituída. Entre o tempo

crônico, e o tempo lingüístico, irredutível ao calendário, a fratura se estabelece.

A leitura das datas na obra de Armando Freitas Filho permite-nos pensar essa cisão

– ou, mais adequadamente, pensar a obra a partir dessa cisão. A fenda entre as datas e as

palavras é o sintoma de que a escrita é infiltrada por um decurso que não se identifica ao

tempo instituído pela enunciação. Nas entrelinhas, aqueles traços fazem o real infiltrar-se

na obra. Eles criam um “efeito de real” – diria Barthes –, fundado “na carência do

significado em proveito só do referente” (BARTHES, 2004b, p. 190). Dupla carência: o

mínimo de conteúdo das datas levando o tempo narrado nos enunciados a um movimento

centrífugo rumo a um referente que se revela, a cada vez, em fuga. O real torna-se, então,

um horizonte, uma “obsessão” – diria Viviana Bosi em texto que sintetiza as preocupações

que atravessam a escrita desta dissertação:

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A obsessão de alcançar através da escrita o real, ‘morder o mundo’, ‘inscrever-se intenso’, demonstra o esforço para vir à tona, forcejar, interromper, sempre por frestas, entrelinhas, ‘como a umidade do muro que teima em vazar, a despeito da cal’, ou ‘a luz que fura a parede, de tão furiosa’ – sempre à procura da dose certeira (BOSI, 2003, p. 20).

“À procura da dose certeira”. O real invade, em desajuste, a obra: está em excesso

ou em falta. Referir o tempo crônico torna-se, então, em nossa aposta de leitura, um modo

de instituir sucessivas lacunas na obra, visto que o referente não é pleno – também ele

atravessado pelo vazio – tampouco é plenamente inscrito. Em cada capítulo deste trabalho,

as fraturas mobilizam as interrogações sobre as relações entre os poemas e aquilo que se

registra – história, sujeito, vida –, sempre de forma intersticial. A cada ensaio, soma-se uma

peça em um mosaico cuja fragmentação visa a iluminar a multiplicidade dos modos como o

real fende a obra de Armando Freitas Filho. Estes os estilhaços:

1) FRAGMENTOS DA HISTÓRIA (A FLOR DA PELE): “Setembro, 1978”. O

vazio que instiga a análise é entrevisto pela presença dessa data, às margens do

texto de Armando Freitas Filho e das fotografias de Roberto Maia, na primeira

edição do poema em prosa. Lendo a publicação em papel-jornal lançada em

1978, questionaremos as fendas abertas pelo caráter datado da obra, constituído

pelos diversos procedimentos de associação do texto à ordem do dia: a

construção de um simulacro de jornal, a citação de um trecho (também datado)

de um dicionário, a data aposta à margem do poema em prosa. Interrogaremos

também a duração da página quase em branco em que se apõe a data “Setembro,

1978”. Associado ao mecanismo introdutório da engrenagem poética – uma

entrada de verbete –, o procedimento de datação concorre com a possibilidade

de reprodução sem fim de novos textos naquele espaço vazio. O presente do

indicativo, em que se narra um acontecimento infinitamente atualizado,

contrapõe-se, pois, ao marco cronológico instituído pelo rastro do calendário.

Essa dissensão entre o tempo lingüístico e o tempo crônico guiará a discussão

dos registros da história, desenvolvida no ensaio. A ausência da data nas edições

posteriores do trabalho do poeta é também uma ausência que contribuirá para a

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discussão do registro da história como um processo cuja potência decorre das

fronteiras entre o teor datado e o caráter insituável do tempo na obra.

2) UMA BIOGRAFIA IMPOSSÍVEL? (3X4): “s./d.” O vazio que se busca

entrever é instaurado pela convocação irônica do tempo crônico, inscrito na obra

como aquilo que se nega. Outras rubricas são convocadas ironicamente:

assinatura e topônimo. Em um livro cujo título, “3x4”, parece prometer um

retrato do sujeito, a fratura instaurada pela perversão desses elementos leva-nos

a discutir a precária identidade entre o autor e o texto em que se quer infiltrar.

Em outras palavras: interrogaremos os efeitos de sentido da corrupção das

rubricas, que poderiam constituir o fundamento e a possibilidade da escrita

autobiográfica. A partir da análise dessa perversão, será possível abordar a

atração da autobiografia em direção à biografia – a escrita da própria vida

tornando-se um registro do eu como um outro.

3) O DESCOMPASSO BIOGRÁFICO (FIO TERRA, NUMERAL): “5 IV 98”... “5

VII 98”. Em Fio terra, parcialmente composto por uma série datada, as marcas

do calendário estabelecem uma espécie de face-a-face com o poema, ocupando

uma posição especular frente aos versos. As datas parecem ter seu referente

facilmente determinado: indicam o dia preciso em que cada poema foi dado

como concluído. Embora evidente, o dado não é insignificante. Ao contrário,

convida a que se interrogue a fenda entre o poema escrito e a escrita do poema,

que se quer ritmar com aquelas datas. “16 VI 1999”... A fratura é expandida em

Numeral, cuja datação se associa aos números que intitulam os textos de modo a

demarcar o inacabamento da grafia da duração do corpo engajado no gesto

enunciativo. A fratura entre o tempo da enunciação, indiciado pelas datas, e o

tempo grafado no livro nos levará a pensar um outro registro biográfico, aquele

delineado pela tentativa – provisória, precária – de inscrever o processo em que

o corpo, vivo, empenha-se no processo enunciativo.

Deslocando-nos entre esses fragmentos, seguiremos os rastros do silêncio.

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1 FRAGMENTOS DA HISTÓRIA (A FLOR DA PELE)

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As águas passadas movem os moinhos: as pás, os pés descalços na areia de ontem aonde? ...

Armando Freitas Filho,

longa vida (1982)

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A flor da pele é uma obra datada. Não entenda o leitor que se menospreze assim o

poema em prosa de Armando Freitas Filho. Não se trata de afirmar a perda de interesse

devido à obsolescência da obra. Ao contrário, a data – “Setembro, 1978” – é um dos

motivos que nos fazem retornar ao texto trinta anos depois. Não porque suscite a nostalgia

despertada por algumas fotografias antigas, já amareladas, mas talvez porque menos

represente algo do que suscite interrogações. O que em setembro de 1978? Em que

condições?

A flor da pele é um texto localizado. “Rio” é o topônimo apresentado abaixo da

data. Mais uma vez, a identificação poderia ser um fator a diminuir o interesse pela obra,

restrita talvez aos problemas da capital fluminense. Porém, não o faz. “Rio” não apenas

indica um espaço, mas lança uma dúvida: substantivo ou verbo? De que ri o “eu”?

Ainda novas questões: data e local se distribuem sob uma gravura ambígua1: Cristo

Redentor ou bunda? É impossível decidir. Sob o impacto das interrogações lançadas por

esses elementos, pode-se retornar ao texto, em busca das representações do tempo e do

espaço, apenas indiciados no conjunto aqui descrito.

Não avancemos para o poema ainda. Não sem antes notar que A flor da pele não é

mais um texto datado e localizado. O poema em prosa teve duas novas publicações: em

1979, no livro À mão livre e, em 2003, na reedição dessa coletânea em Máquina de

escrever, obra poética reunida e revista de Armando Freitas Filho. Nessas versões, data,

local e gravura estão ausentes. A supressão poderia indicar que a obra está infensa ao

anacronismo. Porém, não basta inverter a lógica que identifica “datar” a “obsoletar”. Há

talvez mais do que o apagamento das marcas da passagem do tempo e dos possíveis

deslocamentos de lugar. Como haviam sido a data, o local e a gravura na edição anterior, a

retirada do conjunto pode levar o leitor a interrogar o registro do tempo e do espaço de

produção da obra relançada em 1979 e em 2003. Por que não mais no Rio, em setembro de

1978?

Indicações de tempo e espaço, apagamento de data e lugar são os primeiros

sintomas da inscrição da História no texto. Em busca das marcas desse registro, voltamos

agora ao poema de Armando Freitas Filho.

1 Uma vez que nos referimos às imagens e ao suporte da edição de 1978, disponibilizamos, anexas, reproduções digitalizadas do folheto em que se publicou A flor da pele.

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1.1 UM TABLÓIDE

Em Máquina de escrever, na página 594, em que se enumeram as obras de

Armando Freitas Filho, A flor da pele é descrito como um tablóide. O leitor que tenha

acesso apenas ao texto publicado na obra poética reunida surpreende-se certamente com tal

descrição. Aparentemente, nada no texto escrito autoriza aquela caracterização. No livro,

apenas encontramos as palavras a reproduzir crescentemente um verbete de dicionário,

grafadas sobre papel offset (75g/m²), dificilmente encontrado em jornais.

Com o folheto editado em 1978 nas mãos, começamos a compreender o estatuto

atribuído a A flor da pele. Nesse panfleto, publica-se o texto em papel-jornal. Além disso,

na capa, o retângulo desenhado pela reprodução do primeiro verbete é similar àquele

encontrado nos textos das primeiras páginas dos jornais. Ao lado da “notícia”, fotografias

margeiam os textos escritos, à maneira das ilustrações nos periódicos. Acima do conjunto, o

título, em letras garrafais, simula também a disposição gráfica das manchetes jornalísticas.

No interior do folheto, mais uma vez o desenho das palavras e as fotografias retomam a

prática de disposição de textos e fotos nos tablóides. Por fim, na última página, explicitam-

se a data e o lugar da publicação, em uma apropriação de um importante recurso dos textos

jornalísticos pouco freqüentemente encontrado em edições de obras literárias.

A flor da pele parece, assim, encaminhar-se para um modo da escrita que não é

aquele habitualmente adotado nas obras de Armando Freitas Filho. Com efeito, Palavra,

Dual, Marca registrada e De corpo presente, obras do poeta anteriores à primeira

publicação de A flor da pele, atendem a critérios usuais para se definir um texto literário:

são livros de poemas, escritos em versos e publicados em brochuras. O trabalho de 1978,

diferentemente, aproxima-se de um espaço da escrita comumente associado à linguagem

ligeira, a ser renovada – e muitas vezes descartada – pelos textos, mais atuais, da próxima

edição do jornal. É significativa dessa cisão que os jornais contemporâneos tenham seções

reservadas a textos com fins artísticos, como crônicas, ensaios, críticas, em uma

explicitação de que é outro o estatuto dos textos publicados no restante da edição.

Ao simular graficamente a participação em um tablóide, A flor da pele parece,

assim, destituir-se do estatuto de obra-de-arte. Consumível, intimamente vinculado a um

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momento histórico do Rio de Janeiro, o texto seria mais um produto da redação, em ritmo

industrial, de notícias em periódicos.

Evidentemente, a oposição entre textos com fins artísticos, e por isso não-

descartáveis, e textos ordinários, e por isso consumíveis, falseia a complexidade da questão.

É, contudo, uma fratura tão presente no pensamento sobre a arte – especialmente, no

pensamento não especializado – que pode ser encarada como um sintoma da relação do

homem ocidental com a atividade produtiva. O fazer humano estaria dividido entre dois

modos de produzir: de um lado, as obras-de-arte, cuja construção é tão singular que se torna

irrepetível; de outro, os produtos da técnica, reprodutíveis porque a sua forma é apenas algo

a ser consumido, e não a ser apreciado ou resguardado2.

A flor da pele não é, no entanto, um tablóide usual. Sua divulgação transtorna a

fratura entre arte e técnica, singularidade e reprodutibilidade. O primeiro indício dessa

perversão é o próprio fato de o tablóide ser formado por textos de Armando Freitas Filho e

fotos de Roberto Maia. Artistas, seus trabalhos presumíveis são obras-de-arte.

O paralelo com as artes plásticas pode ser revelador: do mesmo modo que não

esperamos encontrar matérias jornalísticas redigidas por Armando Freitas Filho,

dificilmente caracterizaríamos a Lata de Campbell’s Soup de 19 cents, feita por Warhol na

década de 1960, como um simples cartaz de propaganda de um produto industrial. Assim

como a Pop Art tensiona a cisão entre produtos industriais e artísticos, A flor da pele

perverte a separação entre o texto poético, portanto singular, e o jornalístico, portanto

consumível e descartável.

2 Seguimos o pensamento de Agamben em L’homme sans contenu. Sobre a cisão no modo produtivo ocidental, ele afirma: « Avec le développement de la technique moderne à partir de la première révolution industrielle dans la seconde moitié du XVIIIe siècle, et avec l’affirmation d’une division du travail de plus en plus étendue et aliénante, le statut, le mode de la présence des choses produites par l’homme devient en fait double : d’une part il y a les choses qui entrent dans la présence selon le statut de l’esthétique, c’est-à-dire les oeuvres d’art, et de l’autre, celles que adviennent à l’être selon le statut de la technique, donc les produits au sens strict » (AGAMBEN, 1996, p. 81). [Com o desenvolvimento da técnica moderna a partir da primeira revolução industrial na segunda metade do século XVIII e, com a afirmação de uma divisão do trabalho mais e mais ampla e alienante, o estatuto, o modo da presença das coisas produzidas pelo homem se torna de fato duplo : de um lado, há as coisas que entram na presença segundo o estatuto da estética, isto é, as obras de arte, e, de outro, aquelas que vêm a ser segundo o estatuto da técnica, portanto os produtos no sentido restrito.] Ao longo deste capítulo, retornaremos a esse livro, fundamental para a compreensão do gesto político envolvido na aproximação de A flor da pele a outros meios de expressão, como as artes plásticas, e também para a análise da última página, quase em branco, nessa obra. OBSERVAÇÃO: Todas as traduções, como a divulgada nesta nota, cuja autoria não é indicada são obras da autora desta dissertação.

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A aparição de autores inesperados para tablóides desestabiliza a oposição, simplista,

entre escrita jornalística e literária. Leva não apenas A flor da pele a se aproximar de um

modo industrial de produção, mas também a problematizar a descartabilidade dos jornais.

De fato, esse poema em prosa ilumina o caráter singular dos textos jornalísticos –

freqüentemente reservado às obras canonicamente aceitas como artísticas. Em seu gesto,

Armando Freitas Filho traz à tona um modo de observar os periódicos não mais como

simples produtos inautênticos e perecíveis3.

Temos, assim, uma obra no limite entre o jornal e a literatura, no espaço desenhado

entre o tablóide carregado de valor estético e a obra-de-arte cujo potencial estético é

problematizado. O suporte utilizado na edição de 1978 é, portanto, o primeiro sintoma de

que A flor da pele tem um estatuto definível pela indiscernibilidade: nem exatamente

produto industrial, tampouco evidentemente uma obra-de-arte.

1.2 ENTRE DICIONÁRIO E POESIA

Novo recurso intensifica o processo de perversão observado no simulacro de jornal

construído: os textos publicados no tablóide não são as costumeiras matérias jornalísticas.

Na primeira página de A flor da pele, reproduz-se, tal qual, o verbete “pele” da edição de

1975 do dicionário organizado por Aurélio Buarque de Holanda. Trata-se, claro está, de um

trabalho com a palavra que não se identifica por inteiro àquele realizado nos jornais

ordinários. Temos um jornal imprevisto – ou, inversamente, um folheto literário

surpreendente.

Abaixo da reprodução do verbete, cita-se a fonte de onde foi extraído o texto. A

referência bibliográfica indica que a integridade do trecho é mantida. Indica também que a

primeira peça de A flor da pele participa do mecanismo engendrado por Armando Freitas

Filho por meio de um desvio. Deslocado do espaço do dicionário, o verbete tem sua função 3 Devemos, em grande medida, as considerações aqui brevemente desenvolvidas à análise de alguns artistas plásticos por Argan em A arte moderna. Cito, em especial, sua análise da tela Três bandeiras (1958), de Jasper Johns, reveladora da transformação do objeto massificado pela Pop-Art: “Sua referência ao objeto (objeto que se inspira no ready-made de Duchamp), aliás, passa, ainda que mediada e arrefecida pelo decalque, através da referência direta à escultura, mesmo que seu uso de ‘figuras correntes’ consiga sempre se transformar em pura pintura; como, por exemplo, no caso da Bandeira e do Alvo que, recuperando para a visão, em sua identidade e de uma maneira nova, um objeto que, no estereótipo corrente, perdeu sua força de imagem, colocam-no imediatamente em crise, assimilando-o à pintura, ao ‘puro pintar’” (ARGAN, 1992, p. 666).

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costumeira desestabilizada. Embora nenhuma palavra seja alterada na primeira reprodução

do texto, o estatuto da passagem do dicionário parece ficar suspenso: trata-se ainda – ou

apenas ainda – de um trecho a definir uma palavra da língua portuguesa?

A resposta à questão é problemática, visto que o procedimento de retomada lança o

texto do dicionário Aurélio em uma zona de indecisão: simultaneamente peça do trabalho

de um poeta e parte de um famoso dicionário brasileiro – a citação abaixo do verbete não

nos deixando esquecer essa inserção primeira. Embora a referência bibliográfica comprove

o texto do verbete como obra de Aurélio Buarque de Holanda, o desvio funda um novo

objeto graças a um gesto cuja autoria é atribuída ao poeta carioca. É significativo que, no

folheto de 1978, leiamos no topo da primeira página: “Textos: Armando Freitas Filho”.

A semelhança com o ready-made é patente. O desvio do texto do dicionário,

realizado por Armando Freitas Filho, tem talvez seu correlato nos famosos ready-mades de

Duchamp. Sua obra mais famosa, Fonte, de 1917, é assinada por meio do pseudônimo R.

Mutt. A aposição de uma rubrica ao objeto deslocado confirma que o mictório exposto já

não é mais aquele produzido em alguma oficina ou indústria. Além disso, o fato de o nome

assinado no mictório não ser “Duchamp” reforça o caráter problemático da autoria no

ready-made. Se o autor não é mais aquele que produziu materialmente o objeto, tampouco

importa identificar como o autor da obra o indivíduo que deslocou o mictório.

Do mesmo modo, em A flor da pele, a referência do dicionário reproduzido constitui

uma assinatura em concorrência com aquela, no topo da página, que garantiria a Armando

Freitas Filho o posto de autor dos textos. O autor é, assim, uma figura problemática, que

não encontra suas marcas nos elementos materiais da obra ou sua confirmação na realidade

biográfica de seu produtor. Ao contrário, ele se esquiva a toda tentativa de defini-lo por

uma produção substancial: é o agente de um gesto, mais que de um objeto positivo. É,

portanto, aquilo que não podemos encontrar na obra senão como ausência.

No ready-made, temos um duplo vazio: o daquele que produziu o objeto deslocado

– a indústria ou rede de operários, no caso do mictório, ou Aurélio Buarque de Holanda, no

exemplo do verbete – e, no espaço aberto por essa fenda, uma nova ausência, a de

Duchamp ou a de Armando Freitas Filho, cujos gestos criam novas obras a partir das

primeiras. Podemos dizer, assim, que Aurélio Buarque de Holanda é o autor do verbete no

dicionário. Armando Freitas Filho, por sua vez, é aquele que instaura uma segunda fratura

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nesse texto, ao deslocá-lo. Ao fazê-lo, garante-lhe uma nova autoria, se entendemos “o

autor como gesto”4.

A própria ação de transferir o trecho é, portanto, um procedimento artístico.

Armando Freitas Filho é autor de um verbete tornado poema em prosa na medida em que

adota frente a ele uma “atitude diferente”, para usar as palavras de Argan ao refletir sobre a

função estética do gesto de deslocamento do objeto no ready-made:

Retirando-o de um contexto em que, por serem todas as coisas utilitárias, nada pode ser estético, situa-o numa dimensão na qual, nada sendo utilitário, tudo pode ser estético. Assim, o que determina o valor estético já não é um procedimento técnico, um trabalho, mas um puro ato mental, uma atitude diferente em relação à realidade (ARGAN, 1992, p. 358).

O que constitui o ready-made como obra-de-arte não é, pois, tanto a produção

material de um novo objeto, mas a transformação de um produto naquilo que ele não era

anteriormente. Tal mudança não logra, todavia, destituir por completo o objeto de seu

estatuto anterior. O verbete deslocado é ainda um trecho de dicionário, mesmo que

pervertido. Da mesma forma, o mictório retirado de seu contexto guarda seu poder de

desestabilização justamente porque tem seu estatuto situado entre a obra-de-arte criada sem

que surgisse qualquer suporte material original e o produto industrial que foi – e, mesmo

que como vestígio, ainda é.

Assim como um mictório invertido e assinado assume características dificilmente

associadas a um mictório qualquer – a singularidade do gesto de desvio do objeto

sobrepujando sua reprodutibilidade e utilitarismo –, também no texto do Aurélio é apontado

um teor poético. Desse modo, o procedimento de reprodução da passagem do dicionário a

situa no limiar entre um e outro estatuto de texto: nem somente dicionário nem apenas

poema, o verbete citado desenha um espaço insituável, porque negativo, entre esses dois

lugares da escrita.

De fato, copia-se um trecho que não tem, à primeira vista, características

comumente associadas à escrita literária: o caráter singular da conformação entre expressão

4 Retomamos o título de um ensaio de Agamben. Em “O autor como gesto”, o filósofo defende: “Se chamarmos de gesto o que continua inexpresso em cada ato de expressão, poderíamos afirmar então que [...] o autor está presente no texto apenas em um gesto, que possibilita a expressão na mesma medida em que nela instala um vazio central” (AGAMBEN, 2007a, p. 53).

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e conteúdo, que o tornaria um enunciado único. Um verbete é ordinariamente lido como um

texto prosaico, para retomar a oposição entre prosa e poesia estabelecida por Valéry5.

Segundo o escritor francês, na prosa, o significante não se harmoniza com o significado.

Por isso, os recursos expressivos podem ser esquecidos uma vez se tenha transmitido o

conteúdo. Terminada a enunciação, a linguagem perece e é substituída por seu sentido.

Diferentemente, a poesia, que não se restringe ao texto em verso, tem a força de

recomposição dos significantes. A obra poética é, então, definida pela reconstituição da

singularidade da trama expressiva a cada nova leitura.

Enquanto item do dicionário, o verbete parece convidar poucos leitores a atentarem

para a construção do sentido como um jogo entre a seleção particular de significantes a

veicular determinados significados. Mais freqüentemente, a leitura de um dicionário tem

um fim definido: a depreensão das acepções de um vocábulo. Tal leitura utilitária leva,

certamente, ao privilégio do sentido veiculado, em detrimento da forma única que permitiu

que os significados viessem à luz. Ao contrário, enquanto peça de uma engrenagem

literária, a construção particular do plano da expressão do verbete é iluminada.

O deslocamento das acepções de “pele” torna possível, então, que seja

desestabilizada a oposição entre linguagem prosaica e poética. Esses dois modos do

discurso não se cindem essencialmente, mas a partir de critérios sociais de eleição entre os

textos cuja trama expressiva se deve ignorar e aqueles que devem ter essa urdidura levada

em conta. Podemos mesmo defender que também a linguagem prosaica – toda nossa

linguagem – é atravessada por recursos retóricos cujo esquecimento decorre antes do tempo

dedicado aos diferentes tipos de texto do que a uma cisão estrutural entre eles6. A distância

5 Guiamo-nos pelas reflexões de Valéry em “Poesia e Pensamento abstrato”. Nesse ensaio, ele afirma: “Prosa e poesia servem-se das mesmas palavras, da mesma sintaxe, das mesmas formas e dos mesmos sons ou timbres, mas diferentemente coordenados e excitados. A prosa e a poesia distinguem-se, portanto, através da diferença de certas ligações e associações feitas e desfeitas em nosso organismo psíquico e nervoso, enquanto os elementos desse modo de funcionamento são idênticos. É por isso que devemos nos precaver de raciocinar sobre a poesia como se faz com a prosa. O que é verdadeiro para uma não tem mais sentido, em muitos casos, quando se quer encontrá-lo na outra” (VALÉRY, 1999, p. 204). 6 Devemos à leitura de “Criticism and crisis”, de Paul De Man, a defesa de que o texto literário não difere da linguagem prosaica tendo em vista a suposta prevalência dos recursos retóricos na poesia. No ensaio, o crítico afirma: “We know that our entire social language is an intricate system of rhetorical devices designed to escape from the direct expression of desires that are, in the fullest sense of the term, unnameable – not because they are ethically shameful (for this would make the problem a very simple one), but because unmediated expression is a philosophical impossibility” (DE MAN, 2006, p. 9). [Sabemos que toda nossa linguagem social é um intricado sistema de desvios retóricos designados para escapar da expressão direta de desejos que são, no sentido mais completo do tempo, inomináveis – não porque sejam eticamente

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entre prosa e poesia observar-se-ia, então, em relação às diferentes temporalidades na

produção e na recepção dos textos: de um lado, a desaceleração necessária para que se

recomponham as relações íntimas entre significante e significado na poesia; de outro, a

aceleração a mitigar os diversos modos pelos quais, mesmo naqueles textos considerados

comumente descartáveis, forma e conteúdo se dispõem de modo único e significativo.

Nesse sentido, o gesto de deslocamento do verbete constitui uma interessante forma

de desfazer hierarquias constituídas nos textos e a partir deles. Retirado do dicionário, o

próprio texto do Aurélio parece convidar a uma leitura que leve em conta a singularidade de

sua trama, em um movimento de recomposição dos recursos expressivos freqüentemente

reservado à poesia.

O procedimento de citação inverte, assim, o movimento realizado por meio da

construção do simulacro de jornal em A flor da pele. Enquanto a produção da obra como

tablóide faz o texto poético transitar para a esfera da descartabilidade própria dos produtos

industriais, a constituição do verbete como um poema em prosa faz com que o trecho do

dicionário se aproxime da obra-de-arte. Em um e outro caso, seja por meio da apropriação

de recursos da pop-art ou do ready-made, encontramos a mesma indecisão entre o objeto

da técnica e a obra artística, como defende Agamben em L’homme sans contenu:

Dans les deux cas – sauf por l’instant que dure l’effet d’extranéation – le passage d’un statut à l’autre est impossible : ce qui est reproductible ne peut devenir original, et ce qui est non reproductible ne peut être reproduit. L’objet ne peut advenir à la présence, il reste enveloppé d’ombre, suspendu pour ainsi dire dans les limbes inquiétants entre être et non-être ; c’est précisément cette impossibilité qui confère aussi bien au ready-made qu’au pop-art tout leur sens énigmatique7 (AGAMBEN, 1996, p. 103).

Entre a originalidade que se faz ver por meio da reprodução dos objetos que

compõem o tablóide e a reprodutibilidade observada nos poemas que o constituem,

constrói-se a notícia divulgada em A flor da pele. Antes mesmo da leitura dos verbetes que

vergonhosas (pois isso iria tornar o problema o mais simples), mas porque a expressão imediata é uma impossibilidade filosófica.] 7 Nos dois casos – salvo pelo instante em que dura o efeito de alienação – a passagem de um estatuto a outro é impossível: o que é reprodutível não pode se tornar original, e o que é não reprodutível não pode ser reproduzido. O objeto não pode vir à presença, ele permanece involucrado de sombra, suspenso por assim dizer nos limbos inquietantes entre o ser e o não-ser; é precisamente essa impossibilidade que confere tanto ao ready-made quanto à pop-art todo seu sentido enigmático.

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divulgam o acontecimento ali publicado, estamos diante de um “sentido enigmático” –

aquele formado pelo “limbo entre ser e não-ser” no poema, de que um dos sintomas é

certamente o limiar entre singularidade e descartabilidade.

Esse sentido enigmático é adensado por meio das sucessivas retomadas do trecho do

dicionário. As reproduções do verbete instauram novos problemas. Após a primeira

aparição do trecho do Aurélio, o texto do dicionário já não é mais preservado. Estamos

frente a uma ação que, embora em continuidade à citação tal qual do verbete, não lhe é

idêntica. Agora a retomada é ocasião para os desvios no – e não mais do – texto. A análise

dessas alterações é fundamental para que se compreenda o registro da história indiciado por

aquela data e pelo local – Rio/ Setembro, 1978 – inscritos na obra.

1.3 O QUE SE NOTICIA: RIO, SETEMBRO, 1978

Na primeira página do encarte, em letras garrafais: A FLOR DA PELE. O título

estabelece um pequeno abalo na linguagem: retoma a locução adverbial “à flor da pele”,

mas a partir do deslocamento causado pela supressão da crase. Minimiza-se, dessa forma, o

significado comumente atribuído a essa expressão de modo: “à superfície de”. Surge, em

detrimento deste, um efeito de sentido de demonstração, construído pela presença do artigo

definido: ao longo do texto, será apresentada a flor da pele, sua superfície – sabemos, uma

vez que o significado associado à expressão adverbial (“à superfície de”) permanece como

som, vestígio e memória. Ao produzir a diferença no seio do que é aparentemente idêntico,

a escrita de A flor da pele leva, desde o título, ao choque dos sentidos.

No verbete citado na primeira página, a apresentação da pele como superfície,

anunciada ainda que ambiguamente pelo título, é corroborada. Nas acepções 1 a 5, a pele é

definida como a camada que reveste exteriormente os corpos. Confirma-se, desse modo, o

tema do limite exterior, presente como resto do deslocamento provocado sobre a expressão

adverbial “à flor da pele”, no título.

A essa caracterização da pele como cobertura fixada ao corpo, acrescenta-se um

novo efeito de sentido: a pele é elemento dissociável do organismo. Por isso, pode ser

ingerida, como atesta a sexta acepção do Aurélio: “Partes coriáceas e nervosas que se

encontram nas carnes comestíveis; pelanca”. De acordo com as acepções 8 a 10, a pele,

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separada do corpo, é também o material a ser transformado artesanal ou industrialmente

para a produção de agasalhos e ornamentos. O dicionário faz coexistirem, assim,

representações díspares daquilo que define como camada aderente ou membrana separada

do organismo.

Novas figurações se afastam da definição da pele como superfície ou limite exterior

do indivíduo. Na acepção 12, a palavra é metonímia para o corpo próprio, como mostram

os exemplos apresentados pelo Aurélio: “sentir na pele (q.v.); defender a pele”. O valor

metonímico do substantivo definido é reencontrado em algumas expressões apresentadas no

verbete: “estar na pele de”, “salvar a pele”, “sentir na pele”. Na primeira expressão, surge o

tema da identificação: comungar aquilo que identifica o sujeito, sua pele, permite

compreender a posição assumida por outrem. Na segunda, a proteção da fina fronteira que

separa o eu e os outros torna-se figura da defesa do que é próprio ao indivíduo. Além disso,

nessa expressão, soma-se um novo tema, visto que é preciso salvar aquilo que está sob

ameaça. A figura da pele como fronteira que defende o sujeito das invasões alheias vai se

delineando, desse modo. Caracteriza-se a comunicação entre o sujeito, faltoso, e os outros

como fundamentada na tensão e a pele, figura do frágil limite entre os indivíduos, torna-se

espaço, metonímico, de resistência às forças exteriores.

Também na definição de “sentir na pele”, a membrana que cobre o corpo remete à

totalidade do sujeito, à sua carne: “Sentir na pele. Ressentir-se profundamente de (alguma

coisa); sofrer na própria carne”. Mais uma vez, a temática da violência. O indivíduo

ressente-se de algo. A pele é, assim, a parte do corpo que mais bem representa a

vulnerabilidade do indivíduo, que sofre, na carne protegida por essa membrana, os efeitos

da relação tensa entre um sujeito que se quer protegido e um exterior que lhe ataca.

O efeito de sentido de violência ou de degradação é confirmado nas demais

expressões definidas pelo dicionário. Em “cair na pele de” e “cortar na pele de”, a palavra é

novamente a metonímia de um sujeito violentado, visto que essas expressões significam,

respectivamente, zombaria e difamação. Nas demais expressões do Aurélio, o tema da

agressividade se fortalece: a violação da pele alheia não veicula apenas metáforas para o

sofrimento emocional, mas também significa a destruição orgânica da fronteira que protege

o corpo. Em “pele anserina”, a membrana que reveste os organismos é deteriorada pela

doença ou alterada pelas alterações físicas do ambiente (como o frio) ou psicológicas do

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sujeito (o desejo). Em “pele e osso”, novamente a pele é elemento que ajuda a construir

uma imagem de fragilidade e de debilitação fisiológicas. Adensando o efeito de sentido de

violência, imbricado ao tema da destruição, a pele é cortada em “tosar na pele de” e,

finalmente, arrancada em “tirar a pele a” e em “tirar a pele de”. A pele, já anteriormente

caracterizada como separada do corpo, é agora figurada em meio ao processo de ser

dissociada e usurpada.

Revestimento, membrana disjungida do corpo, metonímia do sujeito, parte a ser

violentada. A pele suscita múltiplos temas nas definições do Aurélio. A leitura do verbete

confirma, portanto, o que alertava o deslocamento gerado na expressão que dá título ao

folheto: a apresentação da pele não será simples.

Além disso, quando atentamos para a data e o local expostos na referência citacional

sob o verbete reproduzido, vemos os diversos significados urdidos no verbete iluminarem

as condições sociais que, de forma fragmentária e oblíqua, são divulgadas no tablóide. A

explicitação de data e local – “Rio de Janeiro, 1975” – não responde apenas aos modelos de

referência bibliográfica. Em um texto poético, que como tal não tem de atender às normas

citacionais, data e lugar da edição do dicionário reproduzido reforçam a historicidade do

verbete e, conseqüentemente, da palavra “pele”. O texto retomado mostra, portanto,

acepções válidas em um tempo determinado e em uma sociedade precisa, a brasileira.

Tal modo de compreender a questão vai ao encontro da concepção bakhtiniana da

linguagem, segundo a qual a palavra é o fenômeno ideológico por excelência. Assim, a

palavra é um campo preeminente para a análise das transformações sociais:

As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais (BAKTHTIN, 2004, p. 41).

O verbete, como registro das diversas acepções de um vocábulo, é certamente um

espaço privilegiado para a exposição das diversas camadas ideológicas que se começam a

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tecer em uma sociedade. Para a compreensão da política que faz avançar a engrenagem

poética em A flor da pele, é preciso expandir, ainda, o papel de indicador das relações

sociais para outras formas de linguagem. No tablóide, fotografias à margem do texto escrito

fazem surgir novos efeitos de sentido.

As figuras ao lado do verbete parecem confirmar a fragmentação como modo de

produção dos textos: às múltiplas temáticas presentes nas acepções do dicionário,

acrescentam-se figuras aparentemente sem relação com o verbete ou mesmo entre si,

intensificando as dúvidas acerca do acontecimento noticiado em A flor da pele.

À esquerda, há a fotografia de uma boca escancarada até seu limite máximo. A foto,

polissêmica, amplia a dispersão dos sentidos, uma vez que é difícil estabelecer se é ícone de

uma careta ou de um grito. Um e outro sentidos são contíguos à violência definida no

verbete, apresentando um possível efeito dessa brutalidade na pele agredida. Porém, essa

fotografia não apenas reitera os conteúdos do texto ao lado. Numa direção oposta à

primeira, a foto da boca escancarada pode ser analisada como um convite à penetração. A

imagem de uma profundidade aberta se contrapõe à caracterização da pele como superfície,

recorrente no trecho do dicionário.

Ao lado, à direita, a foto de uma mulher exibindo seu corpo e um grande adorno de

plumas reforça o distanciamento do conjunto de imagens em relação ao conteúdo do texto

escrito. O acessório, que ocupa grande parte da área superior da foto, parece ser metonímia

para a constituição da mulher como adorno, pura exposição. O olhar detido sobre essa

fotografia faz aumentar o efeito de incongruência entre as imagens e a palavra do

dicionário: ao contrário da imagem à esquerda, em que podemos reconhecer o tema do

sofrimento presente no verbete, nessa fotografia, é difícil depreender uma temática que nos

faça associá-la ao texto do Aurélio.

Há, por fim, abaixo das duas fotografias, a imagem de seres cujos rostos não têm

contornos definidos. O desenho, pouco nítido, remete aos sistemas prisionais por meio do

desenho de grades na janela e de bandejas como as de restaurantes populares. Mais uma

vez, não podemos associar os efeitos de sentido suscitados pela imagem àqueles

construídos no verbete.

As fotografias não ilustram o texto do dicionário, já que é difícil notar recorrências

temáticas entre palavra e imagens. A observação de que não há um vínculo que nos permita

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tornar as figuras e o verbete um todo coeso é confirmada quando notamos que não há

marcas evidentes da relação das figuras entre si: os temas encontrados na foto da boca

escancarada não são revisitados na imagem da mulher ou na gravura dos homens sem rosto.

As figuras à esquerda da primeira página são, dessa forma, postas lado a lado, mas não

permitem uma leitura que as torne um todo orgânico de sentido.

Assim, a notícia a ser desenvolvida ao longo do folheto, desde a primeira página,

mostra ser formada a partir da tensão entre os sentidos e de fragmentos que pouco se

comunicam. A ausência de elementos coesivos não implica, porém, a impossibilidade de

analisar as complexas relações estabelecidas entre as duas linguagens convocadas no

folheto. As relações entre palavra e imagem não se estabelecem apenas em termos de

recorrências temáticas. Podem-se, mais além, observar analogias de procedimentos

estéticos entre meios de expressão diferentes. Essa é a proposta de Aguinaldo José

Gonçalves em Laokoon revisitado:

[...] compreender, nas obras, o “mais além” das influências temáticas ou das correspondências estilísticas entre pintura e poesia; detectar, dentro de alguns princípios, o que chamo de homologia estrutural entre as duas artes, numa época [o século XX] em que os artistas podem desenvolver livremente suas experiências de invenção (GONÇALVES, 1994, p. 207).

Tal orientação pode iluminar as relações entre os textos de Armando Freitas Filho e

as fotografias de Roberto Maia. De fato, embora palavra e imagem não se unam por

recorrências ou contrapontos temáticos, há nexos estruturais. O procedimento metonímico

na fotografia da mulher ecoa as acepções que chamam atenção para o significado

metonímico do substantivo “pele”. A polissemia da foto com a boca escancarada reitera,

além disso, a ambigüidade do título: do mesmo modo que, em “A flor da pele”, a

sonoridade remete a significados distintos, passíveis de serem diferenciados apenas por

meio da materialidade escrita da língua, a imagem da boca veicula diferentes temáticas. Se

no título e na imagem da boca há a iteração de procedimentos, entre a foto e o verbete, ao

contrário, estabelece-se uma relação de contraponto. A polissemia dessa fotografia de

Roberto Maia contrasta com a linguagem definidora do verbete. Com efeito, ainda que haja

efeitos de sentido diversos no Aurélio, cada temática é delimitada a seu espaço próprio por

meio da numeração e dos claros limites entre as expressões.

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No interior do folheto, fotografia e palavra novamente se conjugam. O aspecto

visual das palavras é também apropriado de forma significativa. No verbete na parte

superior do papel, o espaço ocupado pelo texto é ampliado em relação à reprodução da

primeira página. Esse recurso visual retoma a ampliação do trecho do dicionário por meio

de sucessivos acréscimos. O gesto de alterar o texto do verbete citado explicitará novos

sentidos da palavra definida, significados urdidos em dada situação social e que haviam

sido ignorados ou recalcados na definição do Aurélio.

Já na primeira acepção, um acréscimo faz com que seja expandida a definição

apresentada no Aurélio: a “couro” adiciona-se “que arranho”. O substantivo deixa de ser,

assim, apenas um sinônimo popular de pele e torna-se parte, ator, da encenação de um gesto

de violência. A reduplicação participa, pois, de uma força transgressora: se, por um lado,

apropria-se do caráter aberto de todo dicionário, sempre pronto a acolher novas acepções,

por outro, perverte o efeito de sentido de objetividade, comum a esse tipo de obra, por meio

da inserção da primeira pessoa do discurso. O texto do dicionário é, desse modo, violado,

sem, porém, ser suprimido por completo. Assim como o título recuperara a locução

adverbial “à flor da pele” para violentá-la mas não a destruir, também a reprodução do

verbete mantém o texto do Aurélio como espaço a sofrer sucessivas agressões.

O deslocamento da palavra do dicionário se dá também por sutis processos de

supressão. Ainda na primeira entrada do verbete, perverte-se a definição de pele como

“membrana que reveste exteriormente o corpo” por meio da exclusão do prefixo “re” no

verbo “revestir”. A pele é caracterizada, assim, como vestimenta8. A trapaça faz com que

ressurja uma temática presente no texto do Aurélio. De fato, no dicionário, a pele era já

definida como membrana separada do corpo. A retomada, porém, nunca é simples

corroboração: à configuração temática reiterada, une-se o tema da violência, presente no

Aurélio apenas nas definições das expressões ao fim do verbete. Justamente porque

cobertura dissociável do corpo, a pele torna-se o espaço privilegiado para a agressão.

Nas acepções 2 a 5, adensa-se a violência. O acréscimo de orações adjetivas

confirma o tema da brutalidade contra os limites individuais do outro: epiderme, couro ou

pele “que arranho”, “que eu, aos poucos, arranco” – a ressonância dos sons velares

8 Há uma divergência nos textos da versão de 1978 e de 2003. No folheto de 1978, há a supressão do prefixo “re-” na segunda reprodução do trecho do dicionário. Tal supressão é mantida nos dois textos seguintes. No texto de 2003, a supressão só aparece na terceira reprodução do verbete.

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intensificando os rasgos graduais da e na exterioridade alheia –, “que dispo”, “que

estendo”. As novas invasões acrescentam ao texto do dicionário um caráter dramático por

meio dos verbos no presente do indicativo. É encenado um cerco invasivo, que tende à

destruição crescente dos limites do outro. A exposição da pele como espólio leva ao ápice o

primeiro ato da encenação de violência a que assiste o leitor: nas definições que, no

Aurélio, apontavam para a pele como revestimento e proteção do sujeito, caracteriza-se o

outro como despojado daquilo que demarca as fronteiras entre ele e o eu violador.

Na sexta acepção, conclui-se a ação de espoliar a pele: “partes coriáceas e nervosas

que se encontram nas carnes comestíveis que eu devoro; até a pelanca”. A aproximação

chega à introjeção da pele violentada. É retomada, além disso, a configuração da pele como

comida, que aparecera na primeira reprodução do dicionário nas sexta e décima primeira

acepções. Porém, aqui, não é mais de comida apenas que se trata, mas do ato de comer,

marcado pela presença dos verbos. Além disso, a preposição “até” dá caráter de imoderação

aos atos de tomada crescente daquele que se agride.

A imoderação aparece também na conjunção da figura da pele como algo

comestível à configuração temática da sexualidade, como lemos na nona acepção: “Odre de

onde escorre (de dentro) o seu mel”. O mel que escorre do odre, tornado corpo, é

transbordamento. O outro, seu mel, são, assim, caracterizados não apenas como superfície,

mas também como o que vem à tona.

Na oitava acepção, um novo procedimento de trapaça contra a palavra do Aurélio: a

substituição. O substantivo “animais”, encontrado na primeira reprodução do verbete, é

trocado por “mulheres”: “A pele de certas mulheres, dotada de pêlos finos, sedosos e

abundantes, preparada industrialmente para ser usada na fabricação de agasalhos, ou como

ornamento ou guarnição de certas peças do vestuário”. A associação do corpo feminino ao

ornato reaparece na violação do exemplo apresentado na décima entrada do verbete: “A

atriz usava sua pele de raro valor”. Também aqui o procedimento é o de substituir um

trecho do Aurélio: no exemplo dado pelo dicionário, troca-se o artigo indefinido “uma”

pelo pronome possessivo “sua”. Reforça-se, dessa forma, a reificação da pele feminina e,

por extensão, da mulher.

As novas subversões no verbete retomam um tema veiculado por uma das

fotografias na primeira página: o da exposição do corpo feminino e de sua constituição

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como adorno. A dobra da linguagem é, pois, não apenas da língua sobre si, mas

desdobramento de diferentes meios de expressão: as fotografias, na primeira folha,

anunciam os novos sentidos oriundos da violência da palavra que, no interior do encarte,

invade o texto do Aurélio para, de dentro, subvertê-lo. A relação de palavra e imagem como

de anúncio e retomada é novo índice, além disso, de que A flor da pele é um simulacro do

texto jornalístico: como as imagens nas capas de jornal freqüentemente se relacionam com

notícias no interior do periódico e não com as notas na primeira página, também as imagens

no trabalho de Armando Freitas Filho convidam o leitor a transitar pelos diferentes meios

de expressão, em um jogo de retorno e avanço que faz surgirem novos matizes a cada

releitura das diversas linguagens convocadas.

A comparação entre a fotografia da mulher na primeira página e a segunda

reprodução do verbete nos permite observar, ainda, a iteração de um procedimento presente

na foto e no texto: assim como o olhar dirigido à frente pela figura feminina inscreve, na

imagem, uma segunda pessoa a quem parece se dirigir a mulher, a inserção ambígua do

pronome possessivo “sua” faz surgir a segunda pessoa discursiva no texto escrito.

A presença de um outro a quem se dirige o eu aparece em novas definições do

verbete pervertido. Na décima segunda acepção, a presença da segunda pessoa constrói um

efeito de sentido oposto àquele presente na mesma posição no Aurélio: se a pele, no

dicionário, era metonímia da individualidade do sujeito – “a própria pessoa, o próprio

corpo” –, é, agora, figura de uma segunda pessoa cuja identidade é submetida aos desígnios

do eu violador: “sentir sua pele sob minha mão (q.v.); defender a pele”. Sob a mão do

agressor, a personagem atacada sente o que é lhe próprio submetido à violência alheia. A

relação entre as personagens caracteriza-se, portanto, pela tensão oriunda da brutalidade,

mais e mais, figurada.

Nas expressões que já tematizavam violência no texto do dicionário, os

deslocamentos adensam o efeito de brutalidade. Num jogo de produção do novo a partir do

já dado, o tema da violência é multiplicado, cortado por muitos outros efeitos de sentido.

Em “pele anserina”, conjugam-se os procedimentos de acréscimo e supressão: a pele não é

mais corrompida fisiologicamente, mas pelo desejo. Erotismo e agressão imbricam-se na

definição de “cair na pele de”: “zombar ou escarnecer de você; gozar!” A exclamação ao

lado do verbo faz com que, mais uma vez, subsistam os diferentes efeitos de sentido

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associados à palavra: “gozar” indica agora a ação envolvida no ápice do ato sexual; porém,

não há o apagamento total do sentido de escárnio convocado pelo Aurélio: ao contrário, é a

tensão entre esses significados díspares que faz com que não se possam separar erotismo e

violência. Transforma-se, assim, a sensualidade da pele, que aparece na maior parte das

acepções do dicionário, em sexualidade – a invasão torna-se invasão erótica, a dissolução

dos limites se dá por meio da violência sexual.

Em A flor da pele, o tema do erotismo se difunde e infiltra o mecanismo de

repetição e transgressão que faz a série avançar. A obra é erótica não apenas graças à

temática da violência sexual ali desenvolvida, mas principalmente devido aos

procedimentos poéticos adotados. Por meio da violência contra o verbete, o trabalho de

Armando Freitas Filho ameaça a estabilidade do texto reproduzido, sua constituição e sua

descontinuidade em relação às outras escritas de “pele”. A obra adota, assim, a

característica fundamental do erotismo de acordo com Georges Bataille. “O que está em

jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas” (Bataille, 2004, p. 31),

afirma o filósofo. Assim como o erotismo tende à destruição dos limites dos amantes –

nunca definitiva, mas renovada a cada novo gesto erótico –, a violência convoca o caráter

aberto do dicionário em A flor da pele, tornando a poesia órgão reprodutivo, flor.

A caracterização do espaço em que se move a personagem agressora também

contribui para a associação de erotismo e brutalidade. Enquanto, nas primeiras expressões

deslocadas, havia uma aproximação crescente que levava à introjeção do outro, à sua

assimilação pelo agressor, nas últimas definições, o violador invade o corpo que violenta:

“estar na pele de, e enfiar”. Erige-se, em detrimento do significado de comunhão presente

nessa definição do Aurélio, o efeito de sentido de usurpação: uma vez que a pele é

dissociável e dissociada, pode-se estar literalmente na pele de outrem, vesti-la e maltratá-la.

Não há diálogo possível, visto que a reificação do outro – segunda ou terceira pessoa – o

torna resto sem individualidade, despojos incapazes de assumir a palavra. A invasão é

usurpação do corpo alheio (corta-se, tira-se a pele) e, no limite, da vida: “Tirar a pele a.

Explorar, defraudar, violar; matar (alguém); tirar a pele de”. Goza-se na pele arrancada,

morta; a violação chega ao assassinato, mata-se (alguém).

O crescimento da violência é subitamente interrompido por meio do esquecimento

afirmado ao fim do verbete. “Tirar sua pele de você. Gozar na pele de. Cortar na pele de, e

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esquecer”. Reforça-se, desse modo, a inexorabilidade da violência, que avança em direção

ao apagamento de suas marcas.

Um rápido deslocamento do olhar faz ver, porém, que o esquecimento não se

confirma: uma nova reprodução do verbete na parte inferior da página mostra que as

marcas da linguagem podem sempre se expandir mais um pouco. No terceiro texto, o

deslocamento dos sentidos parte da reprodução anterior do Aurélio, e não mais do verbete

citado na primeira página do encarte. Desse modo, A flor da pele afasta-se cada vez mais do

texto do dicionário, subsistente na organização gráfica das definições e como o resto

violentado que permanecera das trapaças anteriores.

No texto, mais uma vez a repetição; novamente, a transgressão. Novos acréscimos

retomam, desde a primeira entrada do verbete, as temáticas da violência e do erotismo,

associadas apenas no final do texto anterior: “Membrana mais ou menos espessa que veste

exteriormente o corpo humano, na hora da tortura do amor, bem como o dos animais

vertebrados e o de muitos outros”. As alterações acrescentam, ainda, novos matizes ao tema

revisitado: o couro é não apenas arranhado, mas também arrebentado. Como no trabalho

anterior de trapaça contra o verbete reproduzido, o retorno ao texto esgarçado é sempre

modo de fazer surgir um novo sentido por meio de outra perversão.

Nas seis acepções seguintes, adensa-se a caracterização do espaço como o de um

cerco invasivo. O verbo “alcançar”, acrescido à segunda entrada do verbete, ajuda a

construir o deslocamento das personagens como avanço e fuga: “A camada mais externa da

pele foi alcançada”. A caracterização da pele como veste facilmente arrancada também se

confirma e se aprofunda: a pele, separada do corpo, é estendida no chão, pendurada,

mastigada, comida.

Naquelas definições em que a reprodução anterior fizera surgir a reificação da

mulher, amplia-se o efeito de sentido de emboscada de um outro que se domina

sexualmente. A pele feminina, na oitava acepção, é preparada industrialmente nos

matadouros, espaço simultâneo de carnificina e de produção de alimento. Cruzam-se,

assim, a figuração do feminino à encenação da digestão do corpo alheio pelo eu. Além

disso, a exposição do corpo da mulher é agora enfaticamente associada ao erotismo. Na

décima definição, o acréscimo da locução adverbial “na cama” torna claro o valor sexual da

pele feminina: “A atriz usava, na cama, sua pele de raro valor”.

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Retomam-se e adensam-se, dessa forma, as configurações temáticas e figurativas

encontradas no verbete anterior. Nas expressões com o substantivo “pele”, encontramos

novos efeitos de sentido, insuspeitos. Em “estar na pele de”, um acréscimo constrói um

tema até então inexistente: “Estar na pele de, e enfiar agulhas sob as unhas. Estar na

posição, situação, etc., ocupada (por alguém), e então avaliar todo esse sofrimento; estar no

lugar de”. Os gestos sádicos, que levavam à destruição do outro, mas não à perda do eu,

tendem agora ao masoquismo: é sob a pele usurpada, sob uma tortura sentida em si próprio,

que se pode compreender a barbárie. A violência contra as formas lingüísticas reproduzidas

é, assim, oportunidade de avaliação do sofrimento vivido então. Essa reflexão não se dá de

forma confortável, mas por meio da tensão e da identificação masoquista com o sofrimento

tematizado.

Tal identificação não pacifica, no entanto, as relações entre as personagens,

tampouco os procedimentos de violência contra a linguagem são amenizados. Novas

transgressões fazem avançar a caracterização do outro como fronteira a ser invadida, pelas

beiras. Fazem, ainda, com que seja determinado o espaço em que ocorrem as torturas. A

corrupção da pele, apontada desde o texto do Aurélio em “pele anserina”, é devida agora ao

desejo, ao choque elétrico e ao frio cimento de uma cela. “Enjaulada”, em “pele e osso”,

uma pessoa pode se “transformar num animal muito magro”.

Também o agressor tem seus traços mais e mais determinados. A tortura identifica-

se à violência policial e do exército brasileiros: “Cair na pele de. Cair na pele de, com o

cassetete em punho. Bras. Pop. Zombar ou escarnecer de você algemado; gozar!”. Os

temas do sadismo e da violência política se cruzam, dessa forma: goza-se de uma segunda

pessoa algemada, em uma referência dúbia às brincadeiras sexuais sadomasoquistas e ao

abuso de poder realizado no sistema carcerário brasileiro.

A recorrência dos temas observados nos textos e nas fotos faz com que retornemos à

fotografia, polissêmica, da boca na primeira página do encarte. Já que a associação de

palavra e imagem em A flor da pele leva ao confronto constante de linguagens visual e

verbal, a depreensão do tema da sexualidade associado à violência nos permite vislumbrar

um vínculo possível entre os diferentes efeitos de sentido suscitados por aquela foto e o

texto de Armando Freitas Filho. Após ler os verbetes na segunda página do tablóide,

reforçam-se as temáticas decorrentes da abertura máxima da boca como, simultaneamente,

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de convite à penetração e de expressão de dor, careta. Nos textos de Armando Freitas Filho,

também penetração e dor se cruzam: enfia-se, invade-se, penetra-se para torturar.

Nos verbetes pervertidos, surge, além disso, o agente do encarceramento dos

presidiários iconizados em uma das imagens na primeira página do tablóide. As grades

desenhadas na janela no canto direito da gravura abaixo do conjunto de imagens reforçam o

tema do aprisionamento surgido apenas no fim das alterações no verbete da parte inferior

da segunda página. Da mesma forma, a indefinição dos traços no rosto dos homens parece

confirmar o aspecto pouco específico daquele que se persegue, agride e aprisiona: segunda

ou terceira pessoa, essa personagem, devido a seus caracteres nem sempre explicitados,

pode ser assumida por diferentes atores, em uma perseguição sempre recomeçada.

O apagamento dos traços fisionômicos dos homens delineados na gravura na parte

inferior da primeira página ecoa, ainda, na imagem situada entre as duas reproduções dos

verbetes na segunda página do tablóide. Nesse espaço, a fotografia de uma mulher – sem

rosto, puro fragmento – a expor a região pubiana, aquela que mais facilmente abre as vias

de penetração do corpo, parece retomar as fotos da página anterior, fundindo o tema da

penetração, depreensível da imagem da boca, àquele da exposição do corpo feminino,

presente na foto da mulher com seus enfeites.

As imagens na primeira página do tablóide anunciam, portanto, temas

desenvolvidos apenas no interior do folheto. Embora reiterem temáticas presentes no

verbete, as fotografias apresentam um ator diferente daquele que, nos textos de Armando

Freitas Filho, encena os gestos de violência. Enquanto o verbete tem como protagonista um

sujeito sádico, que submete o torturado à brutalidade de seu gozo, as fotos se centram no

corpo penetrado, submetido à violência. As fotografias têm como recurso a metonímia: o

ânus vislumbrado na imagem da segunda página e a boca diretamente fotografada na

primeira parecem reforçar a porosidade de todo o corpo flagelado. Além disso, a

contigüidade dessas duas aberturas orgânicas aproxima o retrato do corpo em dor daquele

estado limite em que, como nos animais, a boca se coloca na mesma direção do ânus,

conforme propõe Bataille no verbete “bouche” da revista Documents9.

9 No verbete mencionado, Bataille afirma: « Et dans le grandes occasions la vie humaine se concentre encore bestialement das la bouche, la colère fait grincer les dents, la terreur et la souffrance atroce font de la bouche l’organe des cris déchirants. Il est facile d’observer à ce sujet que l’individu bouleversé relève la tête en tendant le cou frénetiquement, en sorte que sa bouche vient se placer, autant qu’il est possible, dans le

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As fotografias formam, assim, uma série que constitui o registro ou a cicatriz da

violência realizada nos corpos torturados. Em oposição à função mnemônica da série de

imagens, o esquecimento é afirmado ao fim de cada um dos verbetes. No fim do texto na

parte inferior da página, como naquele acima, lemos: “Tirar sua pele de você. Gozar na

pele de, impunemente. Cortar a pele de, e esquecer”.

Ainda uma outra reprodução, a última, mostra que o esquecimento não foi

confirmado. Nesse texto, há o adensamento de temas já presentes nos outros verbetes. A

violência expande-se: “na hora da tortura de amor (e de outras torturas)” se encena a

agressão, que tende à diluição da individualidade do outro, tornado ser “sem nome e sem

feitio”, nos diz o trecho somado à primeira acepção. O novo acréscimo leva a destruição

dos limites exteriores ao auge, associando esse tema ao da deformidade e ao do anonimato.

Novamente, nesse verbete, há a configuração da pele como dissociável e dissociada

do corpo: na sétima acepção, o homem é o animal que tem sua pele separada e, “em

sangue”, vestida por um “lobo uniformizado”, policial ou militar agressor. Reencontramos

também a associação de violência e sexualidade às figuras identificadoras dos agressores a

serviço do Estado à época da ditadura militar. A corrupção da pele é ainda oriunda da

carência e do mau trato enfrentado no frio cimento das celas, onde se dão, impunes, a

repressão e a tortura.

A expansão da violência é reiterada pela fotografia, no fim do último verbete

reproduzido, de uma presidiária sem boca. O apagamento desse órgão inverte o destaque

dado à boca escancarada na primeira página do encarte. A série das fotografias parece

narrar um percurso que vai do grito à destruição da linguagem do torturado, da voz

inarticulada à aniquilação da voz. Aproximamo-nos, desse modo, das conclusões de Elaine

Scarry em The body in pain, segundo as quais a tortura não só destrói a voz do torturado,

mas também objetiva o passo a passo do movimento de retorno ao longo do qual sua

linguagem é desfeita. Afirma a autora: “Physical pain does not simply resist language but

actively destroys it, bringing about an immediate reversion to a state anterior to language,

prolongement de la colonne vertébrale, c’est-à-dire dans la position qu’elle occupe normalement dans la constitution animale » (1968, p. 171-2). [E nas grandes ocasiões a vida humana se concentra ainda bestialmente na boca, a cólera faz rangerem os dentes, o terror e o sofrimento atroz fazem da boca o órgão de gritos dilacerantes. É fácil observar sobre esse assunto que o indivíduo perturbado eleva a testa esticando o pescoço freneticamente, de modo que a boca vem a se localizar, tanto quanto possível, no prolongamento da coluna vertebral, ou seja, na posição que ela ocupa normalmente na constituição animal.]

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to the sounds and cries a human being makes before language is learned”10 (SCARRY,

1985p. 14)

A ascensão do poder do torturador culmina, assim, com a perda da linguagem pelo

supliciado. Esse processo gradual de aniquilação, como nas reproduções anteriores,

redunda no esquecimento. Lemos: “e esquecer de tudo isso bem depressa, pois agora a

história é outra, as águas passadas não movem o moinho e o Brasil é feito por nós”. O

infinitivo pode ser analisado em seu valor imperativo, apontando a necessidade de se

olvidar o horror. Entendido nesse sentido, o verbo repetido remete ao apagamento das

ações empreendidas a serviço do regime, uma vez que as sessões de tortura foram

sistematicamente esquecidas por seus agentes11. A impunidade é favorecida pela

mobilidade decorrente da passagem do tempo e dos possíveis deslocamentos do agressor,

que, ao contrário da vítima, não está confinado: “Salvar, de qualquer maneira, a pele.

Bras. Esquivar-se da responsabilidade em mau ato (através de salvaguardas), porque o

Brasil é grande e se pode fugir para o estrangeiro”.

Na última página do tablóide, o poder do torturador, garantido por sua impunidade,

parece ser iconizado pela interrupção súbita da escrita dos verbetes. Nessa página,

encontramos apenas a entrada do dicionário e, abaixo, a data e o lugar em que o tablóide foi

redigido. Não à toa, a data se inscreve na obra, faz parte dela. Não por acaso, o texto se

constrói como simulacro de jornal: por meio da violência contra a linguagem do dicionário,

noticia-se a violência do cotidiano da ditadura militar, vigente no Brasil no ano de 1978.

É significativo que a data, que situa o horror à época das reivindicações por anistia –

que faria com que se perdoassem os crimes políticos também dos torturadores –, inscreva-

10 Dor física não simplesmente resiste à linguagem mas ativamente a destrói, trazendo uma imediata reversão ao estado anterior da linguagem, aos sons e gritos que um ser humano faz antes de a linguagem ser aprendida. 11 As narrativas das ações no sentido de apagar as provas do uso da tortura por funcionários do Estado multiplicam-se nos quatro volumes redigidos por Elio Gaspari sobre o período de 1964-1977 do regime militar. Basta a seleção de poucas dessas narrativas para que se evidencie que o esquecimento foi o resultado de ações deliberadas, imperativas: “Na galeria aberta em 1966 pelo sargento Manoel Raimundo Soares com suas mãos amarradas, Chael tornou-se mais uma daquelas vítimas do regime que morreram diversas vezes. Na primeira, quando o mataram. Nas demais, quando a toda iniciativa no sentido de elucidar o crime e levar os acusado a processo legal, correspondeu uma resposta do regime, calando-a” (GASPARI, 2002, p. 168). “A tese segundo a qual a tortura era produto da atividade de agentes desautorizados e passíveis de punição fora desmoralizada. Os presos da ilha das Flores, da penitenciária de Linhares e do presídio de Juiz de Fora haviam denunciado os suplícios por que passaram, sem que o governo procedesse a nenhum tipo de investigação” (id., ibid., p. 285). “Os militares enterraram Maria num cemitério de Xambioá, com o corpo embrulhado num pedaço de pára-quedas e a cabeça envolta em plástico. A ditadura fixara um padrão de conduta. Fazia prisioneiros, mas não entregava cadáveres. Jamais reconheceria que existissem” (id., ibid., p. 420).

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se nessa página quase em branco. Tendo em vista o imperativo do esquecimento, afirmado

ao fim de cada verbete, a brancura do papel pode ser analisada como um índice do

silenciamento, da interrupção daqueles textos que se constituíam como marca e divulgação

da violência no Rio de Janeiro, em setembro de 1978.

Não é difícil perceber agora de que ri a personagem, sádica, de primeira pessoa, no

verbo “rio”, subsistente no topônimo da última página do folheto: do confinamento da

personagem torturada e do mecanismo que poderia constituir a cicatriz da violência, mas

avança em direção a seu próprio aniquilamento. Não só a personagem está encarcerada.

Também o texto tem sua ação confinada pelo esquecimento.

A interrupção repentina da escrita dos verbetes se torna, assim, um modo de

ressaltar, na obra, a inocuidade do mecanismo de repetição e transgressão desenvolvido nos

textos. De fato, se, apesar da palavra transgressora, é possível esquecer, a violência da

escrita tem seus efeitos reduzidos. A obra parece revelar-se, ela mesma, um frívolo jogo

sádico, em que a máquina poética arrisca se tornar pura maquinação. Nesse sentido, a

possibilidade de coação do discurso pelas forças beneficiárias da tortura é dada pelo próprio

poema e não tanto pelo horizonte de sua recepção em 1978.

Não é tão simples, no entanto, definir os modos da inserção política do tablóide. É

possível mesmo analisar essa questão por um viés divergente em relação ao que vimos

desenvolvendo. Neste novo percurso interpretativo, chamamos atenção para que a série

constitui um noticiário complexo, que, ao mesmo tempo, reflete e refrata a situação

histórica representada.

Novamente as reflexões de Bakhtin em Marxismo e filosofia da linguagem podem

nos ajudar a compreender os vínculos complexos entre o texto e o acontecimento noticiado.

O pensador russo concebe a linguagem em sua dupla relação com as forças sociais. De um

lado, a palavra é vista como a matéria que reflete de maneira mais sensível as relações de

poder em uma sociedade. De outro, ela deforma as lutas ideológicas nela inscritas. É, ao

mesmo tempo, o que dá a ver e o que silencia:

Mas aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e dinâmico faz dele um instrumento de refração e de deformação do ser. A classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar e ocultar a luta dos índices sociais de

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valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente (BAKHTIN, op. cit., p. 47).

Bakhtin vê na “refração e deformação do ser” por meio da palavra um dos

instrumentos do poder das classes dominantes. Poderíamos estender suas reflexões e

observar um poder combativo no gesto de “refratar o ser” por meio dos textos daqueles que

se opõem às classes em posição de mando. Tal gesto é observado em A flor da pele.

A notícia não é inocente. A construção de um híbrido de dicionário e jornal não é

apenas um recurso a explicitar a importância de se considerar, na leitura do tablóide, o

cotidiano dos cárceres do Rio de Janeiro em 1978. A flor da pele ironicamente divulga o

que os jornais da cidade e do país não poderiam narrar. De um lado, explicita a tortura nos

cárceres, tema cuja divulgação a censura tentava impedir durante o regime militar. De

outro, noticia a violência sob a forma de uma confissão do torturador. Quem assume a

primeira pessoa não é a vítima, como em diversos testemunhos de torturados, mas o

agressor, cuja impunidade se confirmaria com a Lei da Anistia, no ano de 1979. A flor da

pele é, pois, um tablóide que logra trazer à luz em 1978 a notícia que os jornais ordinários

dificilmente poderiam divulgar nesse ano ou nos que se seguiram.

A refração da situação social convocada no poema é estabelecida não só pela

inversão da voz de quem divulga a violência, mas também por meio da deformação do

discurso daqueles que defendem a tortura tendo em vista seus fins. A notícia não aponta

qualquer funcionalidade para a violação do corpo dos presos, justificada tantas vezes

devido a seu êxito como instrumento para a obtenção de confissões. Ao fazê-lo, o tablóide

representa a tortura apenas como recurso do sádico, que objetiva gozar uma vez em posição

de mando. Como o desejo não é saciado, a agressão pode sempre reiniciar. A repetição dos

verbetes recompõe, dessa forma, o retorno indefinido das sessões de tortura12. A

12 Em A ditadura escancarada, Gaspari reflete sobre o ritmo incessante e indefinido da tortura, que vemos ecoar no retorno ao verbete a ser violado em A flor da pele: “Usada como instrumento de investigação, a tortura transforma-se para a vítima num tormento maior que a própria pena. Ela extrai a confissão através da aplicação do sofrimento ao preso, mas não é a dor pura e simples que o leva a falar. [...] No Brasil, um oficial do Exército experimentou o suplício: ‘É ruim, mas não é um horror. Dá para agüentar. Não é de se tirar de letra, mas não é o horror’. A tortura manobra a dor de forma diversa. O sofrimento começa ou pára, aumenta ou diminui, pela exclusiva vontade do torturador. Ele tanto pode suspender uma sessão para dar a impressão de que teve pena do preso, como pode avisar que vai iniciar a outra, sem motivo algum, para mostrar-lhe a extensão do seu poder. ‘Meu maior medo não era do pau, mas da possibilidade de tomar pau’, lembra Ariston Lucena, militante da VPR, preso do DOI paulista. ‘O meu pavor atingiu tal limite que só de ouvir um abrir de portas já começava a

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engrenagem de retorno e avanço dá a ver, assim, a manutenção da violência como método

nunca oficializado, nunca punido e, também por isso, propagado.

1.4 UMA OBRA ABERTA

Desenvolvemos uma primeira hipótese sobre a inscrição do tempo histórico em “A

flor da pele”. Nela, analisamos o texto tendo em vista a identificação daquilo que representa

à realidade dos porões da ditadura. Há, ainda, uma outra possibilidade de leitura, que talvez

não se oponha à primeira, mas seja um suplemento a ela. Já não ressaltamos o

confinamento do texto, mas sua abertura, suas possibilidades de deslocamentos. Chamamos

atenção para o caráter fragmentário da obra. No interior de cada verbete reproduzido, entre

cada acepção, no espaço entre cada número, o vazio se dá a ver. Também entre cada

verbete, o espaço em branco salta aos olhos. Não nos apressemos em preencher esses

vazios, na busca por um registro histórico dessa forma apaziguado. Leiamos esses espaços

de modo a observá-los em sua potência.

Lembramos que, um ano após a primeira edição, a nova publicação de A flor da pele

já não traz mais a data e o local a concorrer com a brancura do papel no fim do poema. Na

nova edição, a página é ocupada apenas pela entrada do verbete: “Pele. [Do lat. pelle.]

S.f.”. Não há uma simples folha vazia, mas a brancura segue à entrada que introduziria um

novo texto. O silenciamento súbito, inesperado, parece convidar a novos rasgos na

linguagem. A página quase em branco pode ser interpretada, assim, não apenas como

figuração do apagamento das marcas da violência realizada nos cárceres durante a ditadura.

A brancura é também um modo de propiciar a produção de novos verbetes, em diferentes

tempos e diferentes locais. É preciso fazer avançar a engrenagem poética.

Possível convite a novas intervenções, aquela folha quase em branco torna A flor da

pele um mecanismo sem freios, na iminência perpétua de se expandir tanto quantos forem

seus receptores dispostos a aceitar o jogo de dispersão da escrita. Work-in-progress, o

tremer, eu não pensava em mais nada’, depôs Manoel Henrique Ferreira, militante da VPR e prisioneiro da Força Aérea Brasileira. O poder absoluto que o torturador tem de infligir à sua vítima transforma-se em elemento de controle sobre seu corpo” (op. cit., p. 40).

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poema em prosa de Armando Freitas Filho nos leva a questionar a infinita dispersão da

linguagem nas “obras abertas”.

A expressão “obra aberta” coloca-nos, desde o princípio, ante um problema: se

separássemos um grupo de obras caracterizadas por sua “abertura”, concluir-se-ia que as

demais seriam “fechadas”. Às obras abertas ou interativas, opor-se-iam aquelas imunes à

participação criadora do público. Tais obras, uma vez concluídas, excluiriam o receptor,

incapaz de intervir em um produto acabado, perfeitamente conformado à disposição

singular dos significantes.

Desse modo, De corpo presente, livro publicado por Armando Freitas Filho três

anos antes da primeira edição de A flor da pele, imporia o exílio a seus leitores, impedidos

de penetrar a obra; A flor da pele, graças a seu procedimento serial, não. Naquele livro, o

princípio da construção formal permaneceria uma exclusividade do autor, o único capaz de

criar o texto. Ao leitor restaria a tentativa de decifrar uma linguagem que ele mesmo seria

incapaz de mobilizar criadoramente. Na série, ao contrário, o leitor assumiria uma função

criadora ao se responsabilizar pela escrita de novos verbetes.

Ao interpretar desse modo a série aberta frente aos demais poemas de Armando

Freitas Filho, confirmaríamos a impermeabilidade da obra-de-arte, uma das características

fundamentais de nossa apreensão estética segundo Agamben. Em L’homme sans contenu,

ele defende: “Dans l’horizon de notre appréhension esthétique, l’oeuvre d’art reste

assujettie à une sorte de loi de la dégradation de l’énergie, qui fait qu’elle est quelque chose

à quoi on ne peut jamais remonter à partir d’un état postérieur à sa création”13 (op. cit., p.

74-5).

O fechamento da arte frente a seu público é, no entanto, freqüentemente visto como

incômodo. Não raro, julga-se a análise de que há obras que excluem o espectador como um

modo estático e simplista de compreensão da linguagem. Na tentativa de superar a cisão

entre fechamento e abertura, Eco, em Obra aberta, insiste no papel de participação dos

leitores em toda obra: “a abertura, entendida como ambigüidade fundamental da mensagem

artística, é uma constante de qualquer obra em qualquer tempo” (ECO, 2005, p. 25). Assim,

13 No horizonte de nossa apreensão estética, a obra de arte permanece submetida a uma espécie de lei da degradação da energia, que faz com que ela seja alguma coisa a que não podemos jamais remontar a partir de um estágio posterior à sua criação.

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trabalhos como A flor da pele e De corpo presente se reencontram – as diferenças apagadas

sob a “abertura” comum.

Embora tal proposta cumpra o objetivo de contornar a oposição entre abertura e

fechamento na recepção dos textos, não logra, porém, responder à pergunta fundamental

levantada por obras como A flor da pele: o convite à intervenção do receptor inaugura um

modo particular de relação do público com a obra-de-arte?

Eco é peremptório em sua defesa da participação do receptor quando frui qualquer

obra. No entanto, observa que há aquelas cujo modo de construção visa à participação

máxima do público. Tais obras apresentam-se como objetos inacabados e, por isso mesmo,

sempre disponíveis para as múltiplas organizações engendradas pelos diversos receptores.

Devido à particularidade desses objetos artísticos, Eco propõe uma divisão no interior do

conjunto das obras, abertas. De um lado, haveria obras acabadas, organizadas segundo uma

completude estrutural, que não impede as múltiplas interpretações, mas apenas as coordena.

De outro, aquelas que podem assumir várias formas, nunca definitivas, visto que

inacabadas. Nessas, o receptor precisa propor um novo modo de organização das partes do

texto para que se conheça uma de suas realizações possíveis. Sobre esse grupo específico

de obras, Eco afirma que são não apenas abertas, mas estão “em movimento”. Em suas

palavras:

Do Livre de Mallarmé até certas composições musicais examinadas [pós-weberianas], notamos a tendência a fazer com que cada execução da obra nunca coincida com uma definição última dessa obra, cada execução a explica mas não a esgota, cada execução realiza a obra mas todas são complementares entre si, enfim, cada execução nos dá a obra de maneira completa e satisfatória mas ao mesmo tempo no-la dá incompleta, pois não nos oferece simultaneamente todos os demais resultados com que a obra poderia identificar-se (ECO, 2005, p. 57).

Uma vez considerada a interpretação dos leitores como parte fundamental da obra,

essencialmente aberta, poderíamos caracterizar qualquer texto de modo muito semelhante

ao tomado por Eco para discutir as “obras em movimento”: uma interpretação nos oferece

uma possibilidade da obra, mas não as infinitas outras leituras possíveis. Nesse sentido,

toda leitura “realiza a obra mas não a esgota”. A própria definição de “abertura” como a

disponibilidade da obra para a fruição do espectador parece, pois, apagar a diferença entre o

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work-in-progress e as demais obras. Interessa-nos, no pensamento exposto em tal trecho de

Umberto Eco, não tanto sua reflexão sobre as relações entre o público e as “obras em

movimento”, mas as possibilidades de analisarmos, a partir dessa citação, as relações entre

as “obras em movimento” e a negatividade.

Nesse tipo de obra, o movimento da linguagem é garantido justamente pela

suspensão, no limite entre o caráter acabado de uma execução do texto e o teor inacabado

da obra. Essa zona de tensão entre acabamento e inacabamento, apontada por Eco, parece

levar o movimento a uma infinitização: já que nenhuma das organizações propostas exaure

as possibilidades da obra, é levada adiante a engrenagem de produção de novos textos,

nunca definitivos.

Tal caracterização nos é especialmente cara quando pensamos naquela página quase

em branco em A flor da pele. Convite a novas reproduções, uma vez preenchida, pode nos

oferecer apenas uma entre as infinitas possibilidades de desenvolvimento da série. O

preenchimento não produz, pois, um esgotamento do vazio, mas o desloca como anúncio de

futuras novas intervenções.

A obra movimenta-se, dessa forma, em direção a um acabamento jamais atingido.

No limite, com a proliferação levada ao infinito, a própria integridade da obra é ameaçada

ante tamanha dispersão. Assim, se a obra é concebida como um objeto estruturado, como o

faz Umberto Eco14, o work-in-progress coloca o pesquisador frente à inquietante situação

de que esse tipo de texto aponta para sua própria destruição. Em A flor da pele, tal

desintegração é vislumbrada em um horizonte de acúmulo tal de transgressões do texto do

dicionário, que este, esgarçado, tornaria o trecho reproduzido irreconhecível – ou quase.

Na série de Armando Freitas Filho, a apropriação do verbete do dicionário como

mote do mecanismo poético intensifica ainda mais o risco a que é submetida a estrutura nas

“obras em movimento”. Aberto por excelência – a numeração das acepções podendo ser

expandida ao infinito –, o dicionário é apontado pelo próprio Eco como objeto sem a

“vitalidade estrutural” necessária a uma obra:

14 Assim Eco define “obra”: “Entendendo-se por ‘obra’ um objeto dotado de propriedades estruturais definidas, que permitam, mas coordenem, o revezamento das interpretações, o deslocar-se das perspectivas” (ibid., p. 22-23).

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O dicionário, que nos apresenta milhares de palavras com as quais livremente podemos compor poemas e tratados físicos, cartas anônimas ou listas de gêneros alimentícios, é muito ‘aberto’ a qualquer recomposição do material que exibe, mas não é ‘obra’. A ‘abertura’ e o dinamismo de uma obra, ao contrário, consistem em tornar-se disponível a várias integrações, complementos produtivos concretos, canalizando-os a priori para o jogo de uma vitalidade estrutural que a obra possui, embora inacabada, e que parece válida também em vista de resultados diversos e múltiplos (id., ibid., p. 63).

A “vitalidade estrutural” que Eco entende fundamental à constituição de uma obra é,

em A flor da pele, resultado da canalização deste texto “excessivamente aberto”, nos termos

do filósofo: o dicionário. A análise da abertura nessa série exige, portanto, que se sustente a

aporia instaurada pela relação das “obras em movimento” com sua dispersão infinita. Eco

evita manter o problema. Ao contrário, conduz seu pensamento de tal modo que desfaça a

aporia. Nesse sentido, ele escreve:

A obra em movimento, em suma, é possibilidade de uma multiplicidade de intervenções pessoais, mas não é convite amorfo à intervenção indiscriminada: é o convite não necessário nem unívoco à intervenção orientada, a nos inserirmos livremente num mundo que, contudo, é sempre aquele desejado pelo autor. O autor oferece, em suma, ao fruidor uma obra a acabar: não sabe exatamente de que maneira a obra poderá ser levada a termo, mas sabe que a obra levada a termo será, sempre e apesar de tudo, a sua obra, não outra, e que ao terminar o diálogo interpretativo ter-se-á concretizado uma forma que é a sua forma, ainda que organizada por outra de um modo que não poderia prever completamente: pois ele, substancialmente, havia proposto algumas possibilidades já racionalmente organizadas, orientadas e dotadas de exigências orgânicas de desenvolvimento (id., ibid., p. 61-62).

Na tentativa de contornar o problema dos textos que se desenvolvem na fronteira

entre obra e não-obra, Eco reafirma o fechamento que tentara negar ao definir ser toda obra

“aberta”. Mais ainda, torna o fechamento parte de toda e qualquer obra, mesmo daquelas,

como A flor da pele, que não constituem um todo orgânico. Se, de fato, a obra é aberta à

fruição do receptor, ou à sua participação nas “obras em movimento”, haveria, segundo o

pensamento de Eco, um elemento na obra irredutível ao público: o princípio criador,

proposto desde sempre pelo artista.

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Reencontramos, assim, a cisão entre artista e público, apontada por Agamben, em

L’homme sans contenu, como sintoma do crepúsculo da arte. Se, como quer Umberto Eco,

mesmo no work-in-progress, a obra tem como força impenetrável e inalterável as intenções

do autor, também as “obras em movimento”, após sua criação, continuam sendo

principalmente um objeto disponível para o gozo estético do público. Entendida a partir de

sua disponibilidade para o receptor, a “obra aberta” não representaria, portanto, uma

alteração substancial de nossa relação com a arte. Afirma Agamben:

C’est justement dans la mesure où elle est sur le mode de la disponibilité pour... et qu’elle joue plus ou moins consciemment sur le statut esthétique de l’oeuvre d’art comme pure disponibilité pour la jouissance esthétique, que l’oeuvre ouverte ne constitue pas un dépassement de l’esthétique, mais seulement une des forme de son accomplissement, et que c’est seulement négativement qu’elle peut faire signe au-delà de l’esthétique15 (ibidem, p. 107-108).

Diferentemente, quando não tentamos desfazer a aporia instaurada pelo movimento

do work-in-progress em direção àquilo que não é ainda, temos mais chance de pensar a

singularidade de textos como A flor da pele e também sua força política. Para tanto, é

preciso que compreendamos de que modo as “obras em movimento” estabelecem uma

relação particular com a negatividade. As reflexões de Deleuze em Lógica do sentido

(2000) podem nos ajudar nessa tarefa. Para o filósofo, toda estrutura é formada por, pelo

menos, duas séries heterogêneas, uma significante e outra significada. Essas séries nunca se

equilibram, pois, escreve ele,

[...] o que está em excesso na série significante é literalmente uma casa vazia, um lugar sem ocupante, que se desloca sempre; e o que está em falta na série significada é um dado supranumerário e não colocado, não conhecido, ocupante sem lugar e sempre deslocado. É a mesma coisa sob duas faces, nas duas faces ímpares pelas quais as séries se comunicam sem perder sua diferença (DELEUZE, 2000, p. 53).

Guiando-nos pelo pensamento deleuziano, podemos afirmar que a “obra aberta” dá

visibilidade à fratura presente em toda estrutura: a barreira insignificável que separa 15 É justamente na medida em que ela se dá sob o modo da disponibilidade para... e que ela joga mais ou menos conscientemente sobre o estatuto estético da obra de arte como pura disponibilidade para o gozo estético, que a obra aberta não constitui uma superação da estética, mas somente uma das formas de sua realização, e que é apenas negativamente que ela pode fazer sinal para além da estética.

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significante e significado. É possível avançar ainda mais um pouco e afirmar que esse tipo

de obra convoca para a superfície do texto o vazio existente em qualquer estrutura,

tornando-o agente da expansão da escrita e também o prenúncio de sua morte, sempre

adiada16. Com efeito, cada nova execução expande a dispersão da obra, levando-a rumo à

sua destruição, em uma zona de tensão entre o substancial e o negativo, a linguagem e o

silêncio.

Entendida a partir de sua relação com a negatividade, o work-in-progress parece

assumir o caráter de “disponibilidade para o nada”, apontado por Agamben como um modo

de perversão do estatuto da arte em nosso tempo. Vislumbramos a possibilidade de sair de

um horizonte niilista, em que a arte é pura potência de negação e dissolução, quando

refletimos sobre obras construídas no limiar entre ser e não-ser. Nestas, o ser não mais

aparece como nada, mas o nada é chamado à presença: “La disponibilité-pour-le-néant,

bien que n’étant pas encore oeuvre, est, en effet, en quelque sorte, une présence négative,

une ombre de l’être-en-oeuvre” (op. cit., p. 108)17.

Podemos propor, desse modo, que o work-in-progress instaura um novo modo de

relacionamento com o leitor, mas tão somente na medida em que a obra estabelece uma

relação singular com a negatividade: um modo de produção em que o dito interessa em

grande parte porque aponta o não-dito-ainda. Nesse vazio, sempre reaberto, é possível que

surjam novas formas, provisórias, de execução da obra.

Em A flor da pele, a folha quase em branco torna o vazio parte do mecanismo de

perversão do verbete reproduzido. No espaço ainda não redigido na página final, novos

textos podem ser escritos, infinitamente. A abertura da obra nos faz vislumbrar, assim, que

o limite dado a novas violências nunca é derradeiro, visto que cada gesto transgressor faz

mover o limite extremo em que ocorreria o silenciamento definitivo, a morte do sentido.

16 Essa formulação tem a vantagem de não restringir as “obras em movimento” àquelas que exigem a intervenção do público para se realizar. Numeral, analisado no terceiro ensaio desta dissertação, é um dos trabalhos que, embora sem exigir que o receptor “conclua” o texto, constitui um work-in-progress. Seu caráter processual se deve ao relacionamento da escrita com o que ainda não foi produzido, com a negatividade. Com efeito, essa série tem sua “abertura” determinada não tanto por uma relação particular do leitor com a obra, mas pelo processo de produção dos textos até um momento indefinível: o da morte do escritor. O leitor se insere também nesse jogo na medida em que sua própria morte pode fazê-lo interromper a leitura da série em um ponto qualquer da cadeia de números. 17 A disponibilidade para o nada, embora não seja ainda obra, é, com efeito, de algum modo, uma forma, uma presença, uma sombra do ser-na-obra.

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Estamos já distantes do confinamento da obra, supostamente figurado pela brancura

do papel. Quando observamos a potência da obra em sua abertura, a página quase em

branco se torna o centro de atração de cada alteração realizada na palavra do Aurélio: as

primeiras transgressões analisadas remetem a essa folha, promessa de novas subversões, ao

infinito. O silêncio deixa de ser, assim, um limite e se torna o motor de novas escritas.

Aproximamo-nos de um outro registro da história, que encontra sua força na incompletude,

no caráter processual. Talvez, mais do que tornar A flor da pele uma engrenagem inócua, a

abertura da obra torne a escrita da violência uma tarefa incontornável.

1.5 PARA ALÉM DE UMA DATA PRECISA, A VIOLÊNCIA INCONTORNÁVEL

A brancura do papel na última página de A flor da pele mostra que o poema não é

apenas construído por fragmentos. Ele mesmo é fragmentário, uma parte dos infinitos

verbetes ainda a serem escritos. A partir do inacabamento da obra, é possível repensar o

esquecimento tantas vezes reafirmado no poema. É possível, ainda, compreender as

relações entre a obra e a história a partir também daquilo que não é dado a ver.

Quando chamamos atenção para a abertura de A flor da pele, um novo valor

concorre com aquele, imperativo, observado no verbo “esquecer”. O verbo pode assumir

diferentes aspectos. Como na análise previamente desenvolvida, pode ser lido em seu valor

imperativo, como uma ordem para que sejam apagadas as marcas dos crimes do Estado. De

acordo com essa análise, o silenciamento na última página figura o fim da dispersão da

série, delimitada definitivamente às quatro páginas preenchidas. O não-redigido é, então,

um lugar situado na obra.

O infinitivo do verbo “esquecer” pode ser analisado, diferentemente, em seu valor

infinito, reforçado pela reedição da obra e pelo gesto de retirada do topônimo e da

indicação de tempo nas edições de 1979 e de 2003. Não à toa, após a aparição do verbo

“esquecer” ao fim do primeiro verbete adulterado, dois novos textos são reproduzidos e

violados. Uma vez se tenha manifestado a violência por meio da linguagem, é impossível

esquecer. É preciso revisitar a cena de violência.

Nessa segunda hipótese, o sujeito do infinitivo pessoal já não é mais o “eu” de um

torturador imune à agressão praticada, mas daquele que se identifica com o torturado, cuja

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dificuldade de articular a experiência da tortura é figurada pelo caráter fragmentário dos

verbetes e pelo retorno ao texto, à cena traumática. Do ponto de vista do torturado, o

infinitivo do verbo “esquecer” pode assumir tanto um valor imperativo – é preciso esquecer

para não sucumbir à memória traumática – quanto infinito – é impossível esquecer, visto

que o trauma, não completamente simbolizado, retorna obsessivamente.

A repetição dos verbetes a serem violentados parece indiciar, desse modo, o caráter

traumático da experiência violenta e tornar o próprio texto um mecanismo de retorno do

trauma. É a partir dessa escrita em dobras que podemos ampliar as possibilidades de

compreensão do horror, em um processo de avaliação que recomeça sempre, uma vez que

nunca podemos significar inteiramente a catástrofe:

Assim, gostaria de propor que a dimensão traumática da experiência humana, esta que escapa à representação, não tem suas fronteiras delimitadas de antemão. Nossa tarefa vital, como seres de linguagem, consiste em ampliar continuamente os limites do simbólico, mesmo sabendo que ele nunca recobrirá o real todo. De cada experiência, de cada objeto, de cada percepção, fica sempre um resto que não conseguimos simbolizar; o núcleo “duro” das coisas, que lhes confere independência em relação à linguagem e nos garante, de alguma forma, que o mundo não é uma invenção de nosso pensamento (KEHL, 2000, p. 138).

Justamente porque a catástrofe não tem limites definidos, é possível avançar sempre

no registro de um trauma nunca completamente representado. A cena traumática é, assim,

ilimitada porque nunca se pode noticiá-la toda. Não tem fronteiras definidas, além disso,

porque o horror engendra novas violências, sem fim: não se restringe à ditadura, mas a

partir dela, avança, em múltiplas direções, sem freio. O tema da passagem do tempo, no

terceiro texto, confirma essa expansão descontrolada: “pois as coisas mudam”, A flor da

pele reafirma sua potência de perversão a cada nova leitura. A violência não se restringe,

pois, ao mês de setembro de 1978. Ao contrário, incita a novas violações da linguagem e

aponta para a produção potencialmente infinita do sofrimento a ser tematizado por outras

escritas transgressoras.

O movimento de retorno e avanço, em espirais dirigidas a um passado de violência,

faz ver no presente a barbárie. O próprio presente do indicativo, por meio do qual se

encenam as ações brutais, reforça essa relação com a temporalidade, que já não é mais

aquela de um tempo homogêneo que transcorre linearmente. Na temporalidade que foge à

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narrativa do progresso, Benjamin vê surgir o poder de combate: “Articular historicamente o

passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma

reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN, 1994d, p.

224). O “momento de perigo” é aquele do presente de quem toma o papel e torna a violar,

em diferentes anos e em diferentes locais, o verbete apenas anunciado na última página em

A flor da pele.

O mecanismo de retomada de um texto a ser mais e mais violado é um modo de

registrar a violência para além da identificação dos personagens nele envolvidos e do

cenário de confinamento. O registro histórico está também na representação do corpo

encarcerado e confinado, mas não apenas. Na dobra da escrita sobre si mesma, indicia-se a

importância do não simbolizado ou do não simbolizável em A flor da pele. A própria

obsessão do retorno a uma notícia a ser ampliada confirma que nunca é plena a

identificação dos personagens, do cenário, do tempo da tortura.

A flor da pele nos permite pensar em uma representação feita não apenas no molde

da identificação de referentes (da “cópia”), mas também naquilo que fica fora do texto e

que é irrecuperável. Nesse poema, o real é registrado não só como o que se representa e se

expõe, mas também em sua fratura. O realismo talvez não esteja tanto na fidelidade, mas na

falha do que se quer registrar.

Reconhecer essa falha não implica reforçar o que o texto não fez, mas “poderia ter

feito”. Ao contrário, mostra a potência da obra na relação entre o que se representou e o que

não foi dado a ver. Talvez um dos mais graves riscos implicados na identificação exclusiva

do cenário de confinamento e das personagens envolvidas na tortura a um momento preciso

do passado do país esteja na imobilização da história, em concebê-la como fato concluído e

recuperável apenas como imagem do que já não nos diz respeito. Ao contrário, o poema, ao

articular-se como espiral que avança por meio do retorno à encenação da violência, aponta

um presente que guarda em si um passado recuperado em seu vigor, reconhecido. Entre o

confinamento a um momento do passado e seu deslocamento para um presente em que

ecoam seus horrores, A flor da pele alveja todos aqueles que possam reconhecer

ressonâncias de seu tempo brutalizado na violência de outrora.

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1.6 DE DENTRO DA FERIDA

A leitura de textos que tematizam a violência é freqüentemente agressora. O contato

com obras que violentam a linguagem é ainda mais cruel. A tentativa de apaziguar o abalo

produzido pode levar à proposição de soluções pacificadoras para aquilo que se lê. Não

raro, ignora-se a concorrência da materialidade escrita da linguagem para a perversão dos

sentidos instituídos. Muitas vezes, aprisiona-se a dramatização do horror à representação de

um acontecimento delimitado no tempo.

A flor da pele, de Armando Freitas Filho, é dessas obras que convidam ao

deslocamento constante. Narrativa da barbárie, poderia, em uma leitura excessivamente

simples, ser reduzida à confissão estanque da brutalidade de um evento do passado. Data e

localização, grafadas na última página do folheto, parecem confirmar o teor documental do

texto.

De fato, A flor da pele põe em cena a barbárie do ano de1978, no Rio. Porém,

quando se analisa um texto que faz se movimentarem os limites entre os modos instituídos

de escrita – híbrido de poema e prosa, dicionário e jornal –, somente por uma recusa da

estranheza podemos ignorar o caráter fragmentário da escrita da violência – de outrora?

Quando o leitor realiza uma análise que se desestabiliza pelos desvios e pelas transgressões

na linguagem, a circunstância de tempo e lugar – que não se deixa ignorar – não restringe

as leituras à revelação simples de acontecimentos do passado. A determinação do tempo e

do espaço, ao contrário, passam a ser compreendidas como índice da dramatização de um

acontecimento perverso, em um texto que se torna, ele próprio, um acontecimento cruel.

É significativo do caráter dificilmente delimitável de A flor da pele que data e lugar

da primeira publicação se inscrevam em uma página quase em branco, convite para novas

agressões. É significativo, ainda, que as determinações do ano e do local da produção

tenham sido apagados após a primeira versão da obra. Convoca-se, na ausência encontrada

neste papel, a tarefa sem fim de registrar o horror, reafirmada pela reedição do poema vinte

e cinco anos após a primeira publicação. A dramatização da violência não é, assim,

tentativa de tudo significar, mas modo de mover infinitamente novos abalos, sempre

incompletos.

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Se os verbetes redigidos não levam a um relato totalizador, tampouco a escrita pode

se mostrar completa. Ao inacabamento do texto, soma-se uma concepção de história como

processo, cujo impacto não permite uma narrativa inteiriça. Voltamo-nos, assim, para

aquilo que, na linguagem, recusa as formas fechadas e o sentido já dado. Buscamos

mobilizar a ferida.

Assim como a pele, após sucessivas agressões torna-se, inteira, cicatriz, também o

poema é vestígio incontornável da violência: lembrança envergonhada de um passado de

brutalidade, mas também marca de um porvir em que se produzem novas agressões –

barbárie que retorna sempre e deve, dia a dia, ser (re)noticiada.

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2 UMA BIOGRAFIA IMPOSSÍVEL? (3X4)

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Quem sou você que me responde do outro lado de mim? Quem é que passa invisível pelo espaço da sala e vai do meu corpo a este outro em emulsão ou emoção instantânea feito como eu mesmo de repente em noite antiga e não perde nessa viagem o tempo que perdi e, no entanto os dias que me fizeram estão ali correndo em suas veias? ...

Armando Freitas Filho, Mr. Interlúdio

À mão livre (1979)

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Como definir quem diz “eu”? Como garantir a identidade entre aquele que assume a

palavra e o texto por meio do qual se expressa? Essas questões são colocadas por todo

aquele que investiga as diversas formas a partir das quais os atores do discurso podem se

identificar ao enunciador. Tais interrogações são sintetizadas em uma fórmula simples: a

autobiografia é possível?

O problema visado é aquele da constituição do texto como um objeto que alija seu

autor. Essa cisão, comum às diferentes formas de escrita, torna-se ainda mais evidente nas

obras cujo tema é o enunciador. Na autobiografia, a escrita tem como objeto aquilo que por

definição ela exclui, já que quem grafa sua própria (auto-) vida (bios-) não se identifica

àquele grafado na obra. Há um abismo inscrito no prefixo “auto-”. Graças a essa distância,

é preciso encontrar uma fenda por meio da qual o autor possa se infiltrar em sua obra. Sem

isso, a autobiografia não se coloca sequer como horizonte. Essa abertura seria aquela

instaurada pelos pronomes de primeira pessoa? O autor diz “eu”, logo se inscreve no texto?

A questão não é tão simples. A fórmula básica de uma obra que se volta para seu

enunciador – “eu”, “aqui” e “agora” assumo como tema este presente em que me encontro

ou o passado que só se estabelece em função deste presente – é vazia. Ela pouco diz na

medida em que os pronomes por meio dos quais o autor tenta se inscrever como produtor e

tema de seu texto são os mesmos adotados por qualquer falante de uma língua. É preciso

dotar os pronomes de um conteúdo que permita identificar a singularidade daquele que

discursa sobre si. É preciso assinar a obra, datar o texto, localizar o espaço a partir do qual

o discurso é enunciado.

O que dizer de uma obra em que o registro do eu é feito a partir da concorrência de

diferentes assinaturas? Na capa de 3x4, de Armando Freitas Filho, o retrato do autor

anunciado pelo título se cinde em uma dupla rubrica: é obra de um outro, na imagem

assinada por Rubens Gerchman; autor e personagem se identificam no nome de Armando

Freitas Filho divulgado na capa. Outra assinatura surge no trecho firmado por Ana Cristina

Cesar e aposto antes da coletânea de poemas.

Como pensar a autobiografia em um livro cuja epígrafe ameaça o objetivo e o

horizonte utópico de toda escrita autobiográfica, ao destituir a identidade entre autor e

personagem? A passagem cinde fotógrafo e fotografado. De um lado, o fotógrafo é

onipotente; de outro, não se deixa ver: “Imagino a onipotência dos fotógrafos/ escrutinando

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por trás do visor, invisíveis/ como Deus”, lê-se no trecho de Ana Cristina Cesar (CESAR

apud FREITAS FILHO, 2003, p. 351). A fratura de autor e personagem parece pôr em risco

o auto-retrato, que se deseja vislumbrar como um modo da escrita autobiográfica. O verbo

“imaginar” dimensiona o problema: se, no auto-retrato, retratado e fotógrafo se

identificariam, em 3x4, a cisão do sujeito é tal que o retratado apenas pode se imaginar na

posição onipotente de fotógrafo. Invisível, o autor está ausente em sua obra.

A autobiografia é, assim, expulsa da escrita de 3x4? Talvez. Podemos, porém, levar

a questão adiante, pensar uma solução menos apaziguadora. Podemos propor as relações

entre a autobiografia e a escrita do poema para além da simples abdicação ao registro

autobiográfico. Há, certamente, a exclusão de um modo de grafia da própria vida: daquele,

canônico, que tem por fim a transformação da existência individual em uma seqüência de

fatos narráveis. É possível que subsista, no entanto, no espaço do poema, um outro modo de

registro biográfico que diga respeito à identidade entre o enunciador e suas marcas no

enunciado. Mais do que o alijamento de tal grafia, buscamos pensar seu resgate irônico em

3x4. Desejamos refletir sobre os modos como os poemas põem em questão o recurso que

torna realizável a escrita autobiográfica: a rubrica aposta na assinatura, na datação, na

toponímia.

Lemos em um dos poemas de 3x418: “[...] e sem assinar meu nome/ em nenhuma

parte/ eu passo/ e me assassino:/ sol assim.” (FREITAS FILHO, 2003, p. 360). E, ainda, em

texto analisado no quarto item deste capítulo:

Entre aqui é antes ou o que ficou até tarde na frente do espelho e não passou além: ficou no meio do instante, lá fora à toa, ao tempo, a esmo no mesmo lugar pisando as asas do tapete voador para não se perder, e acabou no ar adiado na véspera, durante, s./d. (id., p. 361)

18 Os poemas de 3x4 citados ao longo deste capítulo são aqueles revistos na edição da obra reunida em Máquina de escrever, de 2003.

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Sem data, sem assinatura. Simultaneamente convocando e recusando aqueles

elementos que poderiam estabilizar a fratura entre o enunciador e o texto, 3x4 põe em cena

a impossibilidade da escrita autobiográfica, sua precariedade. Os modos de perversão da

autobiografia no poema constituem o tema deste ensaio.

2.1 ASSINAR: REIVINDICAR

A interrogação primeira deste ensaio – Como definir quem diz “eu”? – não se

restringe à escrita autobiográfica. Tampouco se coloca somente em relação àqueles textos,

como 3x4, cujo registro autobiográfico se estabelece por meio da assunção da

impossibilidade da autobiografia. Benveniste, em Da subjetividade na linguagem, conduz a

questão para o âmbito da capacidade do homem de se constituir como sujeito. “É ‘ego’

quem diz ego”, propõe o lingüista (BENVENISTE, 1995, p. 286).

A complexidade do problema – e aí reside o interesse da questão para a análise da

autobiografia – se funda na particularidade dos elementos lingüísticos que denotam as

pessoas discursivas e que constituem a subjetividade na linguagem. Os pronomes pessoais

são formas vazias, nos diz Benveniste: “Ora, esses pronomes [pessoais] se distinguem de

todas as designações que a língua articula, no seguinte: não remetem nem a um conceito

nem a um indivíduo” (id., p. 288).

Uma palavra como “eu” não remete a um conceito, visto que não há significados

que englobem todos os usos individuais desse pronome (ao contrário do que acontece em

outros signos, como “árvore”, “casa”, etc.); tampouco remete a um ser específico: se “eu”

identificasse um indivíduo em sua particularidade, ele não poderia remeter a todo e

qualquer enunciador, como faz. Justamente porque pode ser assumido por todo aquele que

enuncia “eu”, o pronome pessoal lança um problema em relação à autobiografia: como

garantir que a personagem principal de um texto autobiográfico realmente se identifica com

o autor?

Essa questão se desdobra na medida em que Benveniste defende que a referência do

pronome não é um indivíduo, mas o discurso que profere:

A que, então, se refere o eu? A algo muito singular, que é exclusivamente lingüístico: eu se refere ao ato de discurso individual no qual é

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pronunciado, e lhe designa o locutor. É um termo que não pode ser identificado a não ser dentro do que, noutro passo, chamamos uma instância de discurso, e que só tem referência atual. A realidade à qual ele remete é a realidade do discurso. É na instância de discurso na qual eu designa o locutor que este se enuncia como “sujeito” (id., p. 288).

No registro oral da linguagem, a referência do pronome é facilmente observada

devido ao face-a-face dos interlocutores no momento em que se pronuncia “eu”. Graças à

presença física de quem enuncia, é possível definir a referência do pronome como o

indivíduo que fala19. No caso das escritas autobiográficas, a questão se torna mais

complexa, visto que o texto não é contemporâneo ao “ato de discurso individual no qual o

pronome é pronunciado”. Sem estar frente ao autor no momento em que produz o discurso

sobre si, o leitor de autobiografias – assim como o espectador de um auto-retrato ou de um

filme autobiográfico – convive com a incerteza própria da separação entre enunciação e

enunciado. Uma reflexão conseqüente sobre a autobiografia precisa levar em conta essa

fratura. É o que faz Philippe Lejeune em Le pacte autobiographique.

As reflexões de Lejeune buscam interrogar a precariedade da identidade entre autor,

narrador e personagem principal, fundamento da escrita autobiográfica. Uma vez que

aquela identidade se apóia nos elementos lingüísticos vazios que denotam as pessoas

discursivas, é preciso encontrar um termo textual que possa definir a referência dos

pronomes pessoais, em especial do “eu”, e dos demais dêiticos a ele relacionados. Em

outras palavras, é preciso desfazer o jogo da referência exofórica do “eu”, que, tal como

apontara Benveniste, torna a cisão entre enunciação e enunciado o lugar em que se dá o

problema da subjetividade na linguagem.

Lejeune encontra no nome próprio o termo que fixaria a identidade entre o autor e

suas marcas no discurso: o eu envia ao enunciador e este envia ao nome próprio. Os

pronomes de primeira pessoa, na autobiografia, não remeteriam à enunciação, mas ao

enunciado constituído pela assinatura divulgada na capa do livro. Eles já não remetem a um

fora, irrecuperável, do texto: têm uma função endofórica.

19 Mesmo no registro oral, a referência dos pronomes pessoais pode ser complexa. De fato, a cisão entre enunciação e enunciado tem marcas que não são sempre apagadas devido à presença física de que fala. Em um enunciado como “Eu insistia para que parasse de gritar: eu quero”, mesmo no discurso oral, a referência do “eu” na segunda ocorrência não se identifica àquele que, em presença dos interlocutores, enuncia a frase.

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O nome estampado na capa de um volume atuaria, assim, de modo a fechar o

sentido do pronome e aprisioná-lo na referência a um indivíduo cuja existência é

comprovada pelos documentos que atestam o caráter verídico de sua identidade. O nome

próprio, bem como a explicitação por editores de que o texto publicado é uma

autobiografia, garante, pois, um pacto20 que fará com que o leitor situe os termos de

primeira pessoa como formas cambiáveis pelo nome, e este como confirmação da

identidade entre uma “pessoa real” e os dêiticos usados. Dessa forma, de acordo com a

proposta de Philippe Lejeune, o nome próprio se torna o objeto central da autobiografia:

Auteur et personne : l’autobiographie est le genre littéraire qui, par son contenu même, marque le mieux la confusion de l’auteur et de la personne, confusion sur laquelle est fondée toute la pratique et la problématique de la littérature occidentale depuis la fin du XVIIIe siècle. D’où l’espèce de passion du nom propre, qui dépasse la simple « vanité d’auteur », puisque, à traver elle, c’est la personne elle-même qui revendique l’existence. Le sujet profond de l’autobiographie, c’est le nom propre21 (LEJEUNE, 1996, p. 33).

Tendo a assinatura como centro e como problema, a autobiografia constitui um

discurso apaixonado: seu páthos emerge do desejo de apagar o vazio a ameaçar qualquer

marca estável da subjetividade na linguagem22. Esse desejo é investido no nome próprio,

que, dotado de um conteúdo atestável (a existência garantida pela identidade civil), permite

ao autor reconhecer seu texto como emanação e fixação de sua fisionomia e de sua história. 20 O pacto autobiográfico, que dá título ao livro de Lejeune, relaciona as reflexões sobre a autobiografia a um contrato de leitura firmado pelo nome próprio e pelas informações estampadas à margem do texto central, no título, sub-título, prefácio etc. Nas palavras de Lejeune: « Le pacte autobiographique, c'est l'affirmation dans le texte de cette identité [auteur-narrateur-personnage], renvoyant en dernier ressort au nom de l'auteur sur la couverture » (LEJEUNE, 1996, p. 26). [O pacto autobiográfico é a afirmação no texto dessa identidade (autor-narrador-personagem) remetendo, em última instância, ao nome do autor sobre a capa] Ao analisar a autobiografia em termos de um contrato, Lejeune quer discutir as condições de confiança na identidade entre o autor e personagem, que fundamenta a possibilidade de um discurso autobiográfico. Embora 3x4 não se fundamente em um pacto a garantir a fidelidade do auto-retrato, o problema da assinatura, apontado por Lejeune, é um dos modos principais da assunção da impossibilidade da autobiografia em 3x4. 21 Autor e pessoa: a autobiografia é o gênero literário que, por seu conteúdo mesmo, mais bem marca a confusão entre o autor e a pessoa, confusão sobre a qual se funda toda a prática e a problemática da literatura ocidental desde o fim do século XVIII. Daí a espécie de paixão do nome próprio, que ultrapassa a simples “vaidade do autor”, pois, através dela, é a pessoa mesma que reivindica a existência. O objeto profundo da autobiografia é o nome próprio. 22 Assinatura e nome próprio não são conceitos idênticos. Este constitui um dos significados veiculados pela rubrica: a identidade civil, documentada e verificável. A esse conteúdo, soma-se a grafia particular do nome próprio, traço da singularidade do signatário no momento em que apõe seu nome. Neste item, dedicamo-nos à função do nome próprio, veiculado pela assinatura. No item seguinte, ampliaremos a discussão para os outros aspectos da rubrica.

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A vida grafada sendo certificada como sua e apenas sua devido ao conteúdo da assinatura, o

autor reivindica, por meio de sua obra, o direito à existência. Como recursos suplementares

ao nome, a datação e a toponímia podem reforçar o caráter figurativo do texto

autobiográfico: o personagem em que se constitui o autor já não fala a partir de um “agora”

vazio – tem uma idade; já não se movimenta em um “aqui” indefinido – habita um lugar

determinado.

Nome próprio, data e topônimo atuam no sentido de preencher a fratura aberta pelos

dêiticos. Rubricada, a autobiografia parece não estar mais sob perigo. O texto

autobiográfico se torna, então, o registro de uma paixão saciada.

A extinção do desejo de existência por meio da escrita é, no entanto, apenas mais

um dos ardis da autobiografia. A recusa à reivindicação de existência do autor por meio da

obra pode ser evidenciada quando retomamos a questão por meio da qual começamos a

interrogar as relações entre enunciador e enunciado. Temos uma resposta: definimos quem

diz “eu” em um texto escrito; por meio da rubrica, dotamos o dêitico de um conteúdo. A

interrogação, no entanto, é recolocada tão logo atingimos uma solução.

A assinatura não tem apenas uma função de significação, mas também uma função

dêitica. Ela aponta para um fora do texto ou, antes, para o espaço vazio aberto pelo autor23.

Situada na fronteira entre o enunciado e seu exterior, a assinatura recoloca o problema da

cisão entre o sujeito e a escrita que, aparentemente, ela ajudara a suturar24. De um lado, ela

está no interior do texto. Nesse sentido, ela não assinala mais o autor – é apenas um nome

entre outros. De outro, a assinatura está fora do texto. Nessa posição, ela emancipa o

enunciado da fonte a que deveria aprisioná-lo – o texto não depende dela para existir25.

23 Guio-me pela localização do autor na fratura entre o escritor e o locutor, proposta por Michel Foucault em O que é um autor ? O autor constitui, segundo ele, uma função discursiva cujo lugar é um vazio, para o qual – poderíamos acrescentar – a assinatura chama atenção ao indicar-lhe o nome. Nesse artigo, Foucault afirma: “Seria igualmente falso buscar o autor tanto do lado do escritor real quanto do lado do locutor fictício; a função autor é efetuada na própria cisão – nessa divisão e nessa distância” (FOUCAULT, 2006c, p. 279). A definição de autor apresentada por Foucault guiará também a distinção entre autor e escritor, desenvolvida no próximo item deste ensaio. 24 Devo, em grande medida, à leitura do ensaio Autobiography and the case of signature, de Jane Marie Todd, as considerações aqui feitas sobre o vazio em que se situa a assinatura. Muito embora o livro de Philippe Lejeune que vimos discutindo identifique o problema central da autobiografia, ele ignora em grande medida o status problemático da assinatura. De ora em diante, nos afastamos, portanto, das reflexões de Lejeune, que nos ajudaram a introduzir a questão da rubrica nos textos autobiográficos. 25 Penso na posição limítrofe da assinatura, apontada por Todd em sua leitura de Derrida em texto já mencionado. Citando Derrida, a autora assinala que a assinatura, quando situada no interior do texto, «ne signe plus, elle opère comme un effet à l’intérieur de l’objet, joue comme une pièce dans ce qu’elle prétend

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Se a assinatura é relegada ao status de palavra como as outras com as quais coexiste

em uma obra, ela não pode se identificar àquele que diz “eu”. Nesse sentido, ela está aquém

do autor. Uma vez promovida ao posto de fonte do enunciado, tampouco se identifica ao

pronome que dela provém. O “eu” se torna mais um dos elementos textuais de que ela se

aparta como o pai se separa do filho. Nesse caso, a rubrica está aquém – ou antes – do

texto. Insituável, a assinatura se torna o motor de uma reivindicação – a “reivindicação à

existência”, de que nos fala Lejeune – que apenas utopicamente pode ser atendida.

Investido em uma rubrica que não é capaz de extingui-lo, o páthos autobiográfico se

renova.

2.2 UMA BIOGRAFIA IMPOSSÍVEL

“[...] Tudo tão magro/ e feito a esquadro. / Entre álgebra e fábula/ o meu sangue

sabe mais/ do que este livro conta.” (FREITAS FILHO, 2003, p. 397). O trecho, de um dos

poemas de 3x4, poderia servir de súmula à relação entre o escritor e a escrita autobiográfica

– mesmo àquela, como a privilegiada por Lejeune, cujo modelo é a confissão, baseada em

uma promessa de verdade. Não é uma questão marginal à autobiografia que haja sempre

uma relação de excesso ou de falta do escritor em relação à obra em que gostaria de grafar

sua vida. O problema diz respeito à distância entre o autor, que participa da trama do texto,

e o escritor, cujo corpo é investido na produção apaixonada do texto autobiográfico.

Autor e escritor não são idênticos: o primeiro é uma função do discurso26; o

segundo, uma pessoa cujo corpo (em constante transformação) e cuja existência (em devir)

s’approprier ou reconduire à l’origine. La filiation se perd. Le seing se défalque » (DERRIDA apud TODD, 2004, p. 69). [não assina mais, ela opera como um efeito no interior do objeto, funciona como uma peça naquilo de que pretende se apropriar ou reconduzir à origem. A filiação se perde. A rubrica se desfalca.] Diferentemente, quando localizada no seu exterior, “[...] elle [la signature] emancipe aussi bien le produit qui se passe d’elle, du nom du père ou de la mère dont il n’a pas besoin pour fonctionner. La filiation se denonce encore, elle est toujours trahie par ce qui la remarque” (DERRIDA apud TODD, ibidem, p. 69). [a assinatura emancipa também o produto que não precisa dela, o nome do pai ou da mãe de que ele não tem necessidade para funcionar. A filiação se denuncia ainda, ela é sempre traída pelo que ela distingue] 26 Segundo Foucault, no ensaio O que é um autor?, já citado, o nome do autor não apenas indica e descreve alguém. Ele exerce um papel classificatório em relação ao discurso e também é modificado pelas mudanças em sua obra. Em suas palavras: “Ele manifesta a ocorrência de um certo conjunto de discurso, e refere-se ao status desse discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura. O nome do autor não está localizado no estado civil dos homens, não está localizado na ficcionalização da obra, mas na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e seu modo singular de ser” (FOUCAULT, op. cit., p. 274).

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escapam ao simbólico. Por meio de sua rubrica, o escritor transfigura-se em autor, torna-se

um outro em relação a si mesmo.

A partir da assinatura autoral, entra em jogo a passagem da vida do escritor (anterior

à linhagem e à linguagem dada a ele pelo nome próprio) ao mundo dos signos (apropriável

e público)27. Nesse sentido, graças ao nome próprio, ao efeito de identidade entre a

personagem e a função discursiva ocupada pelo autor, a autobiografia pode se tornar crível.

Seria preciso, no entanto, recuperar a voz do escritor, sua dicção única, para que a

autobiografia pudesse se tornar realizável. Uma outra biografia: não mais apenas aquela

com espaço reservado nas prateleiras, em que se encontra a esperada narrativa da vida do

autor e de suas vicissitudes. Uma escrita da vida: sangue infiltrado na obra como resíduo e

ritmo de um corpo.

Esse outro registro biográfico, que tenta recuperar o gesto por meio do qual, vivo,

um corpo se engajou na escrita, entretém uma relação com a assinatura distinta da que

vimos analisando. Não se trata daquela ditada pelo conteúdo do nome próprio (pela relação

com as instituições sociais que o atestam), mas por sua constituição como marca da

existência singular do escritor no momento em que firmou sua obra. A assinatura – puro

índice – assinalaria, assim, o caráter único de um registro que não pode ser recuperado

senão por meio da reprodução dos traços exatos em que foi realizado. Visada em sua

singularidade, a firma se uniria à fonte do texto e lhe garantiria a manutenção da forma

particular com que foi grafada. Essa assinatura outra, sem a qual a autobiografia talvez

apenas construa uma mitologia do nome próprio, não constitui um tipo especial de rubrica.

De acordo com Derrida, ela nomeia o enigma de toda assinatura. Lemos em Signature

évenement contexte:

Par définition, une signature écrite implique la non-présence actuelle ou empirique du signataire. Mais, dira-t-on, elle marque aussi et retient son avoir-été présent dans un maintenant passé, qui restera un maintenant futur, donc dans un maintenant en général, dans la forme transcendentale

27 Todd define com clareza o caráter público do nome próprio: “[...] no name is absolutely proper to the person it designates; it operates within a system, classifies the individual, grants him a place within language and within the state. Further, the proper name can always be used to refer to someone else, can be repeated, expropriated and reapropriated” (idem, p. 73). [nenhum nome é absolutamente próprio à pessoa que ele designa; ele opera em um sistema, classifica o indivíduo, concede-lhe um lugar na linguagem e no estado. Além disso, o nome próprio pode sempre ser usado para referir outra pessoa, pode ser repetido, expropriado e reapropriado]

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de la maintenance. Cette maintenance générale est en quelque sorte inscrite, épinglée dans la ponctualité présente, toujours évidente et toujours singulière, de la forme de signature. C’est là l’originalité énigmatique de tous le paraphes. Pour que le rattachement à la source se produise, il faut donc que soit retenue la singularité absolue d’un événement de signature et d’une forme de signature : la reproductibilité pure d’un événement pur28. (DERRIDA, 1972, p. 391)

A assinatura – nos diz Derrida – define-se como marca da singularidade absoluta do

gesto de firmar um texto. Com essa concepção da assinatura como índice da particularidade

de um gesto enunciativo, parecemos atingir o recurso que nos permitiria destituir o desnível

entre o escritor e sua obra – a particularidade da mão que escreveu o texto perenizando-se

por meio da rubrica. Trata-se, contudo, de mais um ardil da escrita autobiográfica, que

parece recolocar sua impossibilidade toda vez em que acreditamos vislumbrar um termo

que lhe torne factível.

“E existem assinaturas?”, pergunta-se Derrida. Há efeitos de assinatura – responde o

filósofo –, que encenam a reprodução da singularidade do ato de firmar, apontada como o

enigma e a originalidade das rubricas. A firma em sua pureza é impossível, pois, para que

possa ser lida, deve ser repetível, imitável, separar-se do gesto presente e singular de sua

produção29. Dependente do caráter puramente indicial da assinatura, o registro da vida do

escritor é, como a rubrica, um horizonte; ele escapa tão logo se pense tê-lo atingido.

Os efeitos de assinatura, impuros, restam como o espaço em que podemos ainda

pensar as tentativas de o escritor reproduzir a singularidade do gesto por meio do qual

enuncia. Efeitos: recursos discursivos que encenam uma recomposição utópica do passado

irrecuperável da enunciação.

Ao buscar repetir o gesto enunciativo singular de que se aparta, a arquitetura do

discurso poético constitui um desses efeitos. Ainda que sem notar as relações entre a dicção

poética e o problema da rubrica, Philippe Lejeune confirma que o ritmo na poesia é um

28 Por definição, uma assinatura escrita implica a não-presença atual ou empírica do signatário. Mas, dir-se-á, ela marca também e retém seu ter-sido presente em um agora passado, que permanecerá um agora futuro, portanto em um agora geral, na forma transcendental da manutenção. Essa manutenção geral é de algum modo inscrita, afixada à pontualidade presente, sempre evidente e sempre singular, da forma da assinatura. Aí está a originalidade enigmática de todas as rubricas. Para que a religação à fonte se produza, é preciso então que seja retida a singularidade absoluta de um acontecimento de assinatura e de uma forma de assinatura: a reprodutibilidade pura de um acontecimento puro. 29 Sobre a iteratilidade da rubrica, Derrida afirma: « C’est la mêmeté qui, altérant son identité et sa singularité, en divise le sceau » (idem, p. 392). [É a mesmice que, alterando sua identidade e sua singularidade, fratura o sinete]

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caminho em direção à reprodução da voz singular do poeta. Vinte e cinco anos após a

publicação do livro que o tornou célebre, escreve o ensaísta:

Je les [les récits autobiographiques écrits en vers] aime parce qu’ils cherchent un chemin original vers leur voix. Ce ne sont par des pensums versifiés, mais des essais de diction. C’est si difficile d’écrire sa vie, une vie particulière, dans la langage commune où l’on va se dissoudre. C’est ainsi intimidant, et prétentieux, de se présenter aux autres, de quel droit, si on ne leur offre rien, et si on ne peut s’appuyer sur quelque chose. Mon coeur bat, ma respiration va et vient, il faut que je trouve mon rythme. Ma voix, si étrange, ma voix que je n’aime pas entendre, il faut qu’elle ne soit plus ce bruit qui me trahit, mais une musique qui me porte. Et mon écriture, non pas un message qui se perd dans le silence et n’aboutit qu’à des yeux, mais une parole qui fasse vibrer une oreille, qui mette l’autre en demeure d’articuler, dans son propre gosier, ma vie. Ces livres rendent impossible la lecture silencieuse. Vos lèvres bougent. Vous devez mettre vos pas dans les pas du poète. Si vous perdez le rythme, vous perdez le sens. Vous avancez tenu par la main30. (LEJEUNE, 2005, p. 49).

Na “linguagem comum”, para recuperarmos a expressão utilizada por Lejeune, o

significante é apagado em prol do significado. Nesse apagamento, a voz se dissolve, uma

vez que é ignorada a trama enunciativa particular por meio da qual a singularidade do “eu”,

“aqui” e “agora” da enunciação poderia ser grafada. No texto poético, diferentemente, o

corpo poderia ser registrado, ainda que de forma indireta. Embora, de fato, o ar que arranha

a boca e as cordas vocais (no texto oral) e as mãos e os olhos do escritor (no texto escrito)

sejam excluídos da obra, o instante da enunciação se prolonga, tornando-se duração

(linguagem presente e atualizada nas diversas leituras que recompõem o texto)31. Dessa

30 Eu as amo porque elas, as narrativas autobiográficas escritas em verso, buscam um caminho original rumo à sua voz. Não se trata de enfadonhos exercícios [pensums] versificados, mas de ensaios de dicção. É tão difícil escrever sua vida, uma vida particular, na linguagem comum onde nos vamos dissolver. É por isso tão intimidante, pretensioso, se apresentar aos outros, de qualquer forma, se não lhes oferecemos nada, e se não podemos nos apoiar sobre alguma coisa. Meu coração bate, minha respiração vai e vem, é preciso que eu encontre meu ritmo. Minha voz, tão estranha, minha voz que eu não gosto de ouvir, é preciso que ela não seja mais esse barulho que me trai, mas uma música que me conduza. E minha escrita, não mais uma mensagem que se perde no silêncio e só chega aos olhos, mas uma palavra que faça vibrar uma orelha, que ponha o outro a ponto de articular, na sua própria garganta, minha vida. Seus [Vossos] lábios se movem. Você [vous] deve pôr seus passos no passo do poeta. Se perde o ritmo, perde o sentido. Você [vous] avança levado pela mão. OBSERVAÇÃO: O pronome pessoal “vous”, pronome de tratamento singular ou plural que denota formalidade em francês, deveria ser traduzido estritamente por “vós” em português, pronome que admite o mesmo sentido (singular e plural) em nossa língua. Adotamos aqui a tradução “você”, parcial, mas, de nosso ponto de vista, mais adequada. 31 Devemos a Tatit as considerações aqui feitas sobre a espessura enunciativa na linguagem poética. Em Musicando a semiótica, ele defende: “A apreensão estética depende dessa espessura enunciativa ocasionada pela extensão do sujeito artístico, e de seu presente, no significante da obra, pois que isso representa uma

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forma, a singularidade e a finitude do momento em que se enuncia parece se perenizar. A

linguagem se deixaria infiltrar, então, pela particularidade dessa voz que tenta tornar a

escrita um índice permanente de sua existência única.

Parecemos estar diante de um gesto correlato à função puramente indicial da

assinatura, proposta por Derrida. Nesse sentido, o texto poético constituiria uma rubrica a

assumir a própria impossibilidade da assinatura: a associação à fonte de que se separa. Tal

qual a rubrica, no entanto, a poesia também precisa ser expropriável para que possa ser lida.

Para manter a particularidade do gesto enunciativo, o texto poético precisa ser reiterável.

Tal qual a assinatura, ele deve ser repetido, transmitido, encaminhado para a

impessoalidade do espaço público – ou, antes, para o espaço de apropriação dos objetos

particulares pelo público.

Na poesia, cada som, cada morfema e cada interrupção das combinações sintáticas

devem ecoar e renascer em toda nova leitura. Atualizar, a cada vez que se lê um texto, a

particularidade desses jogos é fazer o eu, aqui e agora da enunciação tender ao sempre, em

todo lugar e por não importa quem, próprios da obra. Ao reverberar no corpo de cada leitor

que reproduz a arquitetura poética, o corpo grafado é um corpo morto32.

2.3 UM ÁLBUM FOTOGRÁFICO

Em 3x4, a grafia do corpo morto do escritor é atravessada pelo problema da

imagem. Por meio da apropriação do retrato fotográfico, convocado no título,

desenvolvem-se as marcas da precária identidade entre o autor e o texto em que se quer

representado. A fotografia assume, assim, funções contíguas àquelas que vimos analisando

como próprias da assinatura.

interrupção das trocas instantâneas que caracterizam nosso cotidiano intelectivo e pragmático e, simultaneamente, a criação de um tempo de convivência tanto com o objeto criado como com o ato criador (a enunciação que dura o tempo da obra)” (TATIT, 1997, p. 50). O pensamento do semioticista nos é caro na medida em que permite sustentarmos, tal como no primeiro capítulo deste trabalho, a oposição entre prosa e poesia em termos de diferenças na temporalidade dedicada aos diferentes tipos de texto. O apagamento do significante naquilo que Lejeune chama “linguagem comum” – desconsiderando, assim, a heterogeneidade dos usos da língua – é, pois, indissociável dos critérios sociais de eleições de textos descartáveis, a cuja trama enunciativa não se dedicam o mesmo tempo e atenção empregados na leitura dos textos artísticos ou poéticos. 32 Guio-me pelas considerações de Barthes em seu célebre ensaio A morte do autor e cuja tese pode ser bem sintetizada na seguinte passagem: “A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (BARTHES, 2004, p. 57).

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Como o nome próprio, a imagem fotográfica tem um conteúdo verificável. Com

efeito, ao reproduzir os traços daquele que retrata, ela permite que se reconheça o real

figurado. A fotografia parece adotar, desse modo, o papel apontado por Lejeune para o

nome próprio na autobiografia: a associação de personagem e autor a uma identidade civil a

que se deve recorrer como garantia da veracidade do auto-retrato. Ela pode se tornar, desse

modo, o recurso por meio do qual a existência do retratado é reivindicada.

No entanto, como o nome próprio, também a imagem fotográfica exerce sua função

de reivindicação à existência do retratado de forma equívoca. Se o conteúdo verificável da

fotografia decorre do máximo de iconicidade propiciado pelo aparato fotográfico, não

devemos esquecer que são complexos os jogos de semelhança entre a foto e seu objeto.

De fato, o olhar exterior do fotógrafo não garante a construção de um decalque do

sujeito: o retrato, ao contrário, pode ser entendido como “o cruzamento de diferentes

representações, muitas vezes contraditórias, de um indivíduo” (LAVELLE, 2003, p. 30).

Tampouco as imagens fotográficas são meras cópias do mundo que deixem de sofrer as

coerções de gênero, de linguagem e as mediações tecnológicas no processo de semiotização

do real: o enquadramento responde a uma práxis estabelecida; além disso, como aponta

Walter Benjamin por meio da noção de inconsciente ótico33, as lentes da máquina são um

meio simultaneamente de reiterar os traços fisionômicos observados a olho nu e de

construir novos traços dificilmente percebidos sem esse instrumento.

Ademais, a semelhança a uma identidade civil, como correlato do conteúdo do

nome próprio, pode ser colocada também em questão. Assim como a assinatura se situa em

uma posição tal que – no limite entre o exterior e o interior da obra – pode ser considerada

um nome como os demais quando da leitura do texto, também a semelhança a uma

identidade civil pode ser ignorada uma vez a fotografia tenha sido revelada34. Renegando o

33 Referimo-nos ao conceito definido no ensaio Pequena história da fotografia e cuja importância no pensamento benjaminiano pode ser medida por sua reconvocação, em termos similares, em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. No primeiro ensaio, lemos: “A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento, de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude, através dos seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional” (BENJAMIN, 1994a, p. 94). 34 Devo à leitura de A câmara clara, de Barthes, as considerações sobre a semelhança à identidade civil na imagem fotográfica. Nesse livro, Barthes afirma: “A semelhança é uma conformidade, mas a quê? a uma

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nome do pai, o texto pode ter existência completa sem a assinatura, expulsa para seus

limites. Renegando a identidade civil representada para além de suas margens, a fotografia

pode ser fruída independentemente de seus laços de semelhança a um objeto anterior à

imagem ali grafado.

Uma vez que o conteúdo icônico da fotografia não garante a estabilização do

problema do auto-retrato, é preciso buscar um outro registro em que a foto possa recolocar

a reivindicação à existência, que constitui o fundamento das escritas autobiográficas. Esse

outro registro é aquele que talvez nos permita observar a particularidade – ou o “noema”,

na expressão de Barthes (1984) – da fotografia. Com efeito, visar a imagem fotográfica

exclusivamente como ícone é talvez desconsiderar aquilo que pode separá-la de outros

meios de expressão – como o desenho ou a pintura – que também têm a iconização como

possibilidade, ainda que não estejam a ela obrigados.

A novidade da fotografia pode mesmo, segundo a reflexão de Walter Benjamin, ser

mais bem definida quando a imagem fotográfica não é visada como recurso subsidiário às

antigas técnicas de representação. Assim, em Pequena história da fotografia, a imagem

fotográfica não tem sua particularidade localizada em um suplemento ao caráter mimético

já presente, em menor grau, nas artes visuais. O crítico alemão insiste em que não há

impedimentos técnicos para a representação detalhada dos traços do retratado em uma

pintura. Nesse caso, o limite à iconização diz respeito à perícia do retratista – e, em

contextos artísticos mais complexos, também a suas filiações estéticas. A habilidade do

pintor tem tal importância que, uma vez a imagem se afaste – temporalmente ou

espacialmente – do retratado, o talento do autor do retrato se torna o único interesse da

pintura realizada. Nada no retrato pintado atesta que a fisionomia grafada corresponda a

uma pessoa que tenha, de fato, posado ante a tela. Na fotografia, diferentemente, surge algo

novo, que, nas palavras de Benjamin, “não quer ser silenciado, que reclama com insistência

o nome daquela que viveu ali, que também na foto é real, e que não quer extinguir-se na

‘arte’” (BENJAMIN, 1994a, p. 93).

De acordo com Benjamin, o retrato fotográfico reclama um nome. Reafirma-se,

assim, a proximidade de foto e assinatura. Além disso, no pensamento benjaminiano, essa

identidade. Ora, essa identidade é imprecisa, imaginária mesmo, a ponto de eu poder continuar a falar de ‘semelhança’, sem jamais ter visto o modelo” (BARTHES, 1984, p. 150).

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contigüidade é localizada no caráter referencial da imagem fotográfica: na foto e fora dela,

o vivente fotografado é real. Ele tem sua existência, portanto, atestada pelo retrato, que não

a extingue nos traços – ou na “arte” –, que deveriam revelar a fisionomia do retratado, mas

tendem a apagá-la em prol da obra quando pintada.

Como índice da realidade do retratado no momento em que a imagem foi captada, a

fotografia parece atingir o outro registro que permitiria atender à reivindicação à existência

nas escritas autobiográficas, de que o auto-retrato é uma das ocorrências. Nesse outro

registro, a imagem fotográfica já não é contígua àquela assinatura visada apenas por seu

conteúdo próprio para a identificação de uma identidade civil. Ela se aproxima da

assinatura em sua pureza, de que fala Derrida. Em outras palavras, ela é vizinha àquela

rubrica cujo valor indicial permitiria perenizar o momento único em que a assinatura foi

firmada. É significativa dessa proximidade que as categorias temporais com que Walter

Benjamin descreve o caráter referencial da imagem fotográfica sejam similares às utilizadas

por Derrida em Signature événement contexte. Benjamin escreve:

Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de planejado em seu comportamento, o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloqüência que podemos descobri-lo, olhando para trás (idem, p. 94).

Tal como a assinatura, a fotografia aponta para o “aqui” e o “agora” a partir dos

quais a imagem foi produzida. Além disso, ela permite a manutenção desse presente – já

passado quando da revelação da imagem – no futuro em que se aninha como um modo de

escrita – foto-grafia. A imagem fotográfica parece constituir, assim, uma forma de

assinatura pura, entendida como um recurso para perenizar o presente e o lugar –

particulares, apenas utopicamente reprodutíveis – da enunciação.

A fotografia acrescenta, ainda, uma novidade ao problema da assinatura: ela já não

pereniza apenas a singularidade do gesto enunciativo, mas constitui também uma marca da

existência do objeto fotografado. No caso de um auto-retrato fotográfico, cuja apropriação

atravessa os poemas de 3x4, a rubrica constituída pela imagem fotográfica parece garantir

uma dupla marca da infiltração da particularidade do escritor em sua obra. De um lado, ela

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atuaria como índice do gesto enunciativo único em que o escritor engajou seu corpo; de

outro, como registro e manutenção do presente, perenizado, em que seu corpo se deu a ver

como objeto do retrato.

A fotografia parece garantir, assim, a reprodução da particularidade que se quer

encontrar como objeto de uma outra escrita biográfica. Novamente, no entanto, a

reivindicação a uma escrita da vida escapa justo no momento em que parecia possível

capturá-la. O fundamento do descompasso reside no que há de planejado na atitude do

fotógrafo, como apontado no trecho de Benjamin citado, e, principalmente, na alteridade do

fotografado em relação a seu retrato. Diante da objetiva, nos diz Barthes, “fabrico-me

instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem. Essa

transformação é ativa: sinto que a Fotografia cria meu corpo ou o mortifica a seu bel-prazer

[...]” (BARTHES, 1984, p. 22).

O que é perenizado na imagem fotográfica é, portanto, o passado de um corpo

diferido, de um eu tornado outro em relação a si mesmo35. Em outras palavras: um corpo

mortificado. Fotografia e assinatura novamente se encontram. Uma e outra reproduzem

índices de um evento passado, perenizando-o. Para tanto, precisam, no entanto, expropriar a

vida daquilo que mantêm36.

Assim como a arquitetura poética fora apontada como um efeito de assinatura

apenas na medida em que registrava o corpo morto do escritor, também a fotografia tem a

morte do fotografado como condição para que possa referir sua existência, em um presente

35 Guio-me pela defesa, desenvolvida por Barthes em A câmara clara (1984, p. 132), de que a força constativa da Fotografia incide sobre o tempo e não sobre o objeto. Devo, ainda, a consideração do poder de alienação do eu na fotografia às reflexões de Eduardo Cadava em Words of light, em que lemos: “If there is no possible revelation of the self without some kind of loss, it is because, for a presentation or an appearance to occur, it is necessary, in the words of Lacoue-Labarthe, that what ‘must ‘present’ not present itself, not appear as itself’. Instead it must ‘differentiate itself, alienate itself, externalize itself, transport itself, give itself (to be ‘seen’ and thought, to be theorized), and, by giving itself, lose itself’” (1997, p. 110). [Se não há revelação possível do eu sem alguma forma de perda, é porque, para uma apresentação ou um aparecimento ocorrer, é necessário que, nas palavras de Lacoue-Labarthe, o que “precisa estar ‘presente’ não apresente a si mesmo, não apareça como si mesmo”. Em vez disso, deve “diferir-se, alienar-se, externalizar-se, transportar-se, dar-se (para ser ‘visto’ e ‘pensado’, para ser teorizado) e, dando a si mesmo, perder-se] 36 Novamente é Eduardo Cadava quem ilumina as considerações aqui desenvolvidas. Esse ensaísta, em uma de suas teses sobre a fotografia, aponta que fotografia e assinatura se aproximam uma vez que ambas acarretam o efeito de morte daqueles que registram: “[…] like the photograph that both reproduces and alters the photographed, the signature identifies not only the signatory but also the other in whose name it appears. That this alterity is inscribed within every signature means that every signature is always another name for death” (CADAVA, 1997, p. 117). [como a fotografia, que tanto reproduz quanto altera o fotografado, a assinatura não só identifica o signatário mas também o outro em cujo nome ela aparece. Que essa alteridade está inscrita em cada assinatura significa que cada assinatura é sempre um outro nome para a morte]

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já passado mas renovado por meio da imagem – o “ter sido” como um “é ainda”. Ao

aproximar poesia e registro fotográfico, 3x4 tem, pois, um recurso suplementar de

mortificação.

Registrado como morto na obra, o escritor não pode extinguir o desejo de grafar sua

vida. A manutenção da paixão decorrente do vazio entre o sujeito e o livro é fundamental

para a compreensão dos modos como 3x4 assume a precariedade da autobiografia, objeto

dos dois próximos itens deste ensaio.

2.4 AUTO-RETRATO: ANTI-RETRATO

Em 3x4, o retrato do autor não se constrói pela reprodução exata de seus traços. Ao

contrário, o auto-retrato poético desfaz constantemente as expectativas de revelação do

retratado. O livro de Armando Freitas Filho joga, assim, com o esvaziamento da fisionomia

do fotografado como um dos modos de registro do corpo morto do autor. Este item é

dedicado à análise desse registro e de suas relações de contraponto com os mecanismos de

iconização, freqüentemente apontados como a essência da fotografia, e também de outros

recursos de representação, como o espelho e o lago, superfícies especulares insistentemente

figurativizadas nos poemas.

Os recursos para embaçar a figura do autor não se restringem à escrita dos poemas.

A citação perversa ao 3x4 é desenvolvida também às margens dos textos de Armando

Freitas Filho. Na capa da edição de 1985, o título é retomado ironicamente por uma

aquarela de Rubens Gerchman. A imagem parece dissociar o retrato 3x4 da grade de leitura

que o submete às leis da semelhança com o retratado: a figura do rosto de Armando Freitas

Filho é embaçada, desenhada por manchas de tinta sobre o papel. Os contornos pouco

definidos da imagem desestabilizam a constituição do retrato 3x4 como ícone que permita o

reconhecimento do indivíduo. Além disso, o rosto de perfil chama atenção para o

ocultamento inerente ao caráter fragmentário da fotografia 3x4.

A aquarela de Gerchman sugere também que o retrato não reproduz apenas os traços

do homem representado. A imagem de Armando Freitas Filho transfigurada no trabalho de

Gerchman é parte da montagem da capa de longa vida, livro publicado pelo poeta três anos

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antes do lançamento de 3x437. É significativo que o livro retomado seja aquele cujo título

mais evidentemente promete uma escrita biográfica. Em longa vida, Sebastião Uchoa Leite

reconhece o momento em que a escrita da vida se acentua na obra de Armando Freitas

Filho:

Depois de ler longa vida, cujo título traz conotação irônica – a do nosso universo cotidiano urbano e ao mesmo tempo a da nossa úlcera interna a ser trata ‘até a última gota’ – a primeira idéia que ocorre é a de expansão. Assim como na teoria astrofísica o universo está em contínua expansão, a poesia de Armando Freitas Filho nos remete para um microcosmo – o da relação entre os dois signos (poesia/ vida) interligados – que nos parece em processo contínuo de irradiação para um universo mais amplo e diversificado (LEITE, 2003, orelhas).

A irradiação da escrita em direção à vida avança em 3x4, mas sem que repita as

formas dessa conjunção no livro anterior. Há um novo suporte e outra duração, já que não

estamos mais diante da longa extensão da vida, mas da pequena dimensão da foto 3x4. A

gravura na capa indica, assim, que, no livro de Armando Freitas Filho publicado em 1985,

o embaçamento do retrato avança para a construção de uma imagem também fugidia da

escrita do poeta.

Nos poemas, a tensão entre evidência e ocultamento se intensifica. Desde o primeiro

texto da coletânea, espécie de afirmação prévia da constituição problemática do auto-retrato

em 3x4, o sujeito – tornado imagem – apresenta-se de forma ambígua:

Em si mesmo como espelhos, lagos polaróides com revelações instantâneas feito um filme, fita 24 vezes p/ segundo 24 quadros na câmara escura sou 400 ASA voando cem soluções à vista (FREITAS FILHO, 2003, p. 355)

O poema situa o problema do auto-retrato nos limites entre a presença e a falta do

retratado. Cem soluções à vista, cem poemas, sem: a homofonia explorada no último verso 37 Imagens digitalizadas das capas de 3x4 e de longa vida, aqui brevemente analisadas, estão anexas.

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associa os temas da multiplicação e da ausência. O retrato se constrói, pois, por meio de

encruzilhadas: a multiplicação, pela apresentação de diversos prismas, ajuda a evidenciar o

eu; no limite, porém, ameaça as possibilidades de apreensão do sentido e tende a ocultar o

retratado. A dispersão das imagens do eu começa a se caracterizar, assim, como inseparável

de sua falta nos textos.

A instabilidade é aguçada pelo percurso temático da velocidade. As figuras que

veiculam esse tema – “polaróides”, “revelações instantâneas” – constroem um efeito de

sentido de um mínimo de mediação: instantâneo, o retrato polaróide é na hora H, sem

tempo para retoques, evidente. No entanto, tão logo se encontram figuras que parecem

favorecer a revelação do sujeito, o poema as converte em recursos para a construção do

registro da falta de uma imagem consistente do eu. Desse modo, também a rapidez associa-

se ao obscurecimento do retrato do autor. Com efeito, o verso “sou 400 ASA voando” une a

velocidade ao tema da fluidez, que intensifica o efeito de sentido de ocultamento do eu:

“voando”, o sujeito está em fuga. O gerúndio do verbo indica, além disso, que não se

registra uma esquiva concluída, mas a duração de um desaparecimento que não pára de

ocorrer.

A encenação desse apagamento tem como recurso transversal aos poemas a

contaminação da sintaxe pelo tema da velocidade. “Às pressas”, os versos, curtos e

truncados, ameaçam a apreensão do sentido. Os procedimentos de aceleração, ao tender a

um máximo de intensidade, solapam a fluência do discurso. Como a ecoar a gagueira do

poeta, o corte se torna o modo privilegiado da escrita dos poemas, construída por meio de

“silepse, lapso e síncope”, tal qual lemos em um dos textos de 3x4.

A velocidade, que trunca o verso e o poema, é talvez o modo enunciativo que mais

claramente aponte para o desenvolvimento do registro biográfico em 3x4 por um caminho

não idêntico ao delineado em longa vida, livro retomado na capa do volume de 1985. No

livro de 1982, como no de 1985, a ironia torna a revelação do sujeito uma promessa não

cumprida, ou um mistério sem solução, de acordo com a leitura de Ana Cristina Cesar no

prefácio de longa vida (cf. CESAR, 1982, p. 11-5). Em um e outro, a complexidade da

subjetivação na escrita torna a grafia plena do sujeito uma utopia, colocada constantemente

em questão. Diferentemente de longa vida, no entanto, o registro do sujeito não se

estabelece por meio do percurso labiríntico dos poemas longos. Tampouco sobressai o tom

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discursivo. Em 3x4, o sobressalto e a fratura sobrepõem-se à fluência. A velocidade cinde

os poemas, mínimos como o retrato 3x4.

O esvaziamento do conteúdo representativo do retrato se expande: não se restringe

ao corte sintático, mas avança para a matéria sonora dos versos. O jogo, a gag constituem

recursos freqüentes para a perversão das expectativas de transparência do sentido

transmitido, como lemos no verso “sol assim” (idem, p. 360), já citado na introdução deste

ensaio. O verso explora a paronomásia entre o verbo “sou” e o substantivo “sol” para

ironizar a revelação – anunciada para em seguida ser recusada – do sujeito.

A insistência no significante torna-se, dessa forma, um recurso a adensar os

obstáculos à visão clara e transparente do sujeito retratado. Os jogos de ecos, recorrentes

nos textos de 3x4, indiciam a intensificação das potencialidades expressivas da escrita e

constituem um mecanismo figural segundo o qual é explorada a sonoridade de modo a

esvaziar a forma do fonema, da sílaba, da palavra, para fazer significar o som como ruído,

barulho ou impedimento da matéria sonora. Os efeitos sonoros concorrem, portanto, para o

esvaziamento do conteúdo representativo dos poemas.

Na trama dos textos, o desaparecimento do sujeito é reiterado. Lagos, espelhos,

fotografias, meios de produção e reprodução de imagens que reaparecem insistentemente

nos poemas de 3x4, tornam-se recursos figurativos na perversão da autobiografia como

promessa de um retrato fiel do autor.

Central para a construção irônica do auto-retrato no livro de Armando Freitas Filho, a

imagem fotográfica é flagrada como recurso falho para a produção da imagem do eu.

Dependente da aparelhagem que a torna possível, a foto traz as marcas do instrumento

frágil interposto entre o sujeito e o real. Essa debilidade é posta em cena em um dos poemas

da parte final de 3x4:

Quando revelava entrou luz pela porta que corto como a tesoura uma peça de seda. Sem sangue. Sem provas. Vejo que vesti minha pose e alguns fantasmas aos poucos

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que ficaram sobrando e faltando ao mesmo tempo nos primeiros planos do rosto em branco. (idem, p. 401)

O poema convoca o recurso técnico da revelação fotográfica no momento em que

falha. Desse modo, ele reverte o efeito de sentido do verbo “revelar”, em que subsiste o

significado associado à técnica fotográfica e os demais sentidos de desvelamento

associados a esse verbo. Ironicamente, a revelação torna-se uma figura discursiva a

contribuir para o ocultamento do sujeito poético, cujo rosto, “em branco”, não tem os traços

definidos. Diluindo a fisionomia do “eu”, o retrato fotográfico tem sua capacidade icônica

debilitada.

A subversão das expectativas de evidência da imagem é ainda mais intensificada

quando se observa que a figura a esvaziar o rosto no retrato é justamente aquela, a luz, sem

a qual a imagem fotográfica não seria realizável. Em excesso, a luz desfaz os traços do

rosto que, no ato do retrato, tornara possível grafar. Flagra-se, pois, o momento em que se

supera a medida justa para a representação.

A desmedida se expande para além dos recursos técnicos do retrato. Também o

sujeito não encontra o limite em que poderia se identificar à própria imagem, como nos é

apontado pela coordenação do excesso e da falta nos versos “que ficaram sobrando e

faltando/ ao mesmo tempo”. A associação da desmedida do eu ao ato de vestir-se –

encontrada em outros poemas de 3x4 e belamente evidenciada nos versos “não sobra

espaço/ nem para que eu vista meu corpo/ que já não me cabe” (idem, p. 372) – é também

significativa da apropriação do registro fotográfico como modo de grafia da morte do autor.

A vestimenta, espécie de outro corpo a velar aquele que encobre, chama atenção para a

alteridade do corpo fabricado pela fotografia. Associado ao fantasma, além disso, o gesto

de vestir reforça o espaço mortuário aberto pela imagem fotográfica. “Sem sangue”, o

sujeito, alienado na imagem, transforma-se em um objeto em que não pode se reconhecer.

O poema ilumina, assim, o caráter fantasmático de toda fotografia, discutido com precisão

por Eduardo Cadava em Words of light: “Where everything is alike – for example, in the

aleatory, ghostly space of photography – nothing is ever itself. It is always the Vexierbild,

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the picture-puzzle of something-else, which is why it never resides in its own image”38

(CADAVA, 1997, p. 121).

As limitações do retrato fotográfico para apresentar uma imagem em que retrato e

retratado coincidam são recolocadas em outros textos. No seguinte poema, a fotografia já

não é limitada pelo uso equívoco de seus frágeis recursos, mas devido a restrições

estruturais:

Dentro não se fotografa. O que vem antes até o topo o espectro que nenhum espelho capta que pega a pista e larga mas não deixa impressão digital. O anti-retrato zero à esquerda longe do papel da estátua o pré-fantasma que a luz velou e perdeu a memória além do seu próprio negativo: não. (idem, p. 400-1)

“Dentro não se fotografa”: o presente do indicativo e a indeterminação do sujeito

apontam a generalidade das restrições do aparato fotográfico. A limitação decorre da

incapacidade da máquina para capturar a interioridade, seja ela compreendida como a

densidade física, velada pelo invólucro da superfície corporal, ou como a intimidade do

sujeito. Em oposição à densidade, que o retrato fotográfico não pode captar, o poema

convoca a figura do espectro, cuja transitoriedade não deixa marcas. Fluido, o espectro não

só contribui para a evocação da morte do sujeito, mas também para a construção do tema da

inconsistência e do caráter infigurável de seu corpo. Sem pouso e sem registro, a figura do

38 Onde tudo é semelhante – por exemplo, no espaço aleatório, fantasmático da fotografia – nada é nunca si mesmo. Está sempre Vexierbield, a imagem problemática de outrem, o que explica porque nada nunca reside em sua própria imagem. OBSERVAÇÃO: Cadava atribui valor adjetivo ao substantivo alemão “Vexierbield”. O termo é, em seguida, traduzido para a expressão inglesa correspondente “picture puzzle”. Esses vocábulos não têm tradução exata em língua portuguesa. Referem-se aos jogos de enigmas realizados a partir de distorções e sobreposições de figuras.

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enunciador que se constrói é rarefeita; trêmulas, suas palavras “erram no ar”, nos diz um

dos poemas da primeira parte do livro (idem, p. 356).

Em oposição ao sujeito fantasmático e móvel, que não se deixa grafar, o registro

fotográfico tematizado é de um corpo estatuário, imobilizado, morto. “No papel da estátua”,

alija-se a profundidade do eu e sua mobilidade. Novamente, 3x4 põe em cena os diversos

modos por meio dos quais o retrato fotográfico, infiltrado na escrita do poema, malogra as

expectativas de coincidência entre o retratado e sua imagem. É significativo que os termos

colocados no poema – a profundidade não fotografada, a mobilidade que não deixa marcas

– aproximem-se muito daqueles por meio dos quais Barthes discute a incongruência entre o

eu e seu retrato:

Eu queria, em suma, que minha imagem, móbil, sacudida entre mil fotos variáveis, ao sabor das situações, das idades, coincidisse sempre com meu “eu” (profundo, como é sabido); mas é o contrário que é preciso dizer: sou “eu” que não coincido jamais com minha imagem; pois é a imagem que é pesada, imóvil, obstinada (por isso a sociedade se apóia nela), e sou “eu” que sou leve, dividido, disperso e que, como um ludião, não fico no meu lugar, agitando-me em meu frasco [...] (BARTHES, 1984, p. 24).

Marmorizando um eu movente, a mortificação do sujeito na fotografia reincide no

poema. A constituição do retrato como registro vazio se diversifica. Como no texto de

Armando Freitas Filho citado nas páginas 74 e 75 deste ensaio, novamente a luz é uma

figura associada ao velamento do sujeito. Há, porém, uma novidade. O que se oculta já não

é a fisionomia, mas aquilo que, anterior ao espaço fantasmático do retrato, é expulso da

fotografia. Esse alijamento é ainda delineado pela inversão do efeito de sentido de

revelação associado ao retrato fotográfico. No poema, o negativo, recurso intermediário

imprescindível para a reprodução das imagens, recupera o valor de negação associado ao

adjetivo que lhe é homônimo: o sujeito está além do negativo que possibilitaria seu

registro; logo, tem sua existência negada na obra. Dessa forma, entre o espetáculo do

desaparecimento da imagem do sujeito e o velamento dos aspectos que não se restringem à

sua fisionomia, o auto-retrato anuncia-se como anti-retrato. A grafia realizada por meio da

fotografia é a do sujeito ausente, um retrato do espaço aberto pelo vazio de seu rosto.

A fotografia, ao permitir que a imagem se aparte do sujeito fotografado – que ele se

veja como objeto, coisa; morto, portanto –, torna-se o recurso central, mas não exclusivo,

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para a encenação do desaparecimento do sujeito em 3x4. Outros modos de produção de

imagem, como as superfícies refletoras, atuam no mesmo sentido na economia do livro.

Assim como a fotografia, o espelho, figura que nos interessa na medida em que

aborda o problema da auto-reflexividade, é frágil, falho. O caráter equívoco do reflexo no

espelho não decorre apenas da fragilidade da superfície especular – de que os espelhos

“esper[e]m/ mesmo quebrados” (idem, p; 397), como lemos em um dos poemas da última

parte do livro. A lacuna na imagem apresentada se torna ainda mais incisiva quando

conseqüência da oposição entre a densidade do sujeito e a superfície refletora – cuja

preeminência leva Flora Süssekind a pensar em 3x4 como o desenho de uma “paisagem-só-

linha” (SÜSSEKIND, 1985, p. 14). Essa oposição é delineada com clareza em um dos

poemas de “Durante”, segunda parte do livro:

O espelho é hoje (como um bicho) é um dia sem relógio na praia é uma janela que abre para dentro e só fixa o vazio: não guarda os crimes, as cenas que nele são mudas são quase às cegas. (idem, p. 371)

Caracterizado como janela, o espelho não é mais pura superfície – está no limite

entre a interioridade e a exterioridade. A abertura desse espelho transtornado não lhe

garante, no entanto, a superação do caráter limitado e equívoco do reflexo. O espelho é

ainda falho. Mais do que isso, ele é um dos modos de registro da falta, na medida em que se

associa aos temas do vazio, do silêncio e da cegueira.

A ausência da imagem no espelho – da fisionomia, mas também dos “crimes” e

“cenas”, como lemos no poema citado acima – diz respeito, ainda, à temporalidade própria

da superfície refletora. “O espelho é hoje”: é uma superfície cujas imagens são capturadas

em um presente contínuo. “É um dia sem relógio”: não comporta a passagem do tempo

crônico que permitiria a narrativa dos crimes e cenas alijados da imagem.

A falta no espelho é reafirmada em outros poemas de 3x4. A associação entre o

registro do vazio e a problemática do tempo também é reiterada. A questão se torna mais

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complexa. Em outros poemas, como no seguinte texto, o descompasso temporal já não diz

respeito à duração própria à superfície refletora, mas à velocidade daquele que se dirige ao

espelho:

A linha da vitória é a do horizonte. Com princípio e fim e o que conta não é a duração da pista da pegada: é a do desejo para acabar cruzando antes do tempo e com a corda toda um instante depois o espelho vazio de chegada. (idem, p. 396-7)

No texto, a dissintonia entre o espelho e aquele que se quer refletido decorre do

excesso de velocidade, temporalidade em que o real é mais freqüentemente apresentado em

sua relação com os mecanismos de produção de imagens em 3x4. Essa aceleração é

determinada pela intensidade do desejo, que solapa a possibilidade do reflexo. “Com a

corda toda”, a duração do desejo faz ultrapassar a boa medida da representação. Em

descompasso – “antes do tempo” ou “um instante depois” –, o espelho alcançado é vazio.

O poema associa, ainda, o tema do vazio à mobilidade própria do horizonte. Uma

vez que a vitória está em um limite inalcançável, o ato de retratar não pode ser um gesto

pontual. A representação é um percurso, cujo resultado está sempre adiado – é inatingível.

O reflexo no espelho delineia-se, assim, como um objetivo a mover uma trajetória que só

pode ser concluída como traição do desejo investido na construção de uma imagem em

fuga.

O descompasso entre a temporalidade do que se deve refletir e o tempo da

representação também é encenado naquele poema, citado na introdução deste ensaio, em

que a imagem do sujeito, expulsa do espelho, é caracterizada como sem data. Retomamos o

texto:

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Entre aqui é antes ou o que ficou até tarde na frente do espelho e não passou além: ficou no meio do instante, lá fora à toa, ao tempo, a esmo no mesmo lugar pisando as asas do tapete voador para não se perder, e acabou no ar adiado na véspera, durante, s./d. (id., p. 361)

Adiantado ou em atraso, o que se quer representar não se fixa na superfície

refletora. Está suspenso: “entre”. Está alijado da obra: “não passa além”, fica “lá fora”. O

real não se registra, pois não atinge a boa medida que lhe faria escapar à véspera ou ao

adiamento e tornar-se presente na representação. A grafia do sujeito volta a se constituir,

assim, como marca de seu desaparecimento.

Além disso, um outro registro temporal no poema contribui para o ocultamento do

eu. A afirmativa do caráter não datado da imagem – sequer delineada – do sujeito afasta o

retrato fotográfico do elemento que poderia aproximá-lo da autobiografia. Segundo

Barthes, o fundamento datado da imagem fotográfica – ainda quando não se explicitam, na

foto, dia e ano do retrato – tem como efeito o cálculo da vida, isto é, a inscrição do

retratado em uma narrativa de sua existência. “Sem data”, 3x4 rejeita, pois, aquilo que

poderia constituir, segundo o crítico francês, o mecanismo propulsor de um contágio da

escrita pela vida:

A data faz parte da foto: não porque ela denote um estilo (isso não me diz respeito), mas porque ela faz erguer a cabeça, oferece o cálculo a vida, a morte, a inexorável extinção das gerações: é possível que Ernest, jovem estudante fotografado em 1931 por Kertész, ainda viva hoje em dia (mas onde? como? Que romance!). Sou o ponto de referência de qualquer fotografia, e é nisso que ela me induz a me espantar, dirigindo-me a pergunta fundamental: por que será que vivo aqui e agora? (BARTHES, ibidem, p. 125).

A partir da data, negada no poema, a biografia poderia se expandir, disseminada

para o cálculo da vida do receptor da imagem. A encenação da recusa à autobiografia se

intensifica, ainda, na medida em que são negados aqueles elementos que poderiam

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constituir o auto-retrato, mais do que como cálculo da vida, como revelação do sujeito.

“Sem data”, “no mesmo lugar”, o poema não define os termos temporais e espaciais que

permitiriam a identificação de quando e onde a obra foi produzida. Ao não explicitar o

presente e o lugar da enunciação, o poema mantém vazios os conteúdos por meio dos quais

se tornaria possível delinear a singularidade do retratado.

Além disso, nesse como nos outros poemas aqui citados cujo tema central é a

imagem especular, a ausência do sujeito não é apenas afirmada por meio da associação da

figura do espelho ao tema do vazio. Os poemas não convocam a primeira pessoa discursiva,

retirando da malha textual o “eu” que poderia intermediar a identificação entre personagem

e autor. É expulso, assim, o elemento que garantiria a construção da imagem como auto-

retrato. A perversão do registro autobiográfico se intensifica, dessa forma: já não se trata

apenas de ironizar o auto-retrato por meio do tema do vazio da imagem. O poema não só

afirma a ausência do sujeito, mas torna a ausência do sujeito um procedimento para tornar o

texto impessoal. A perversão se expande, dispersando-se entre aqueles poemas em que o

“eu” aparece de modo a construir uma imagem em fuga e estes em que a primeira pessoa

sequer participa do poema.

É sintomático, ainda, da convocação irônica dos elementos que garantiriam a

possibilidade da autobiografia que 3x4 explicite data e topônimo justo em um de seus

poemas que tematizam o apagamento do eu no momento mesmo em que busca delinear sua

imagem:

1.X.82, sexta, meia- noite e meia, Rio, e tenho todo o tempo do mundo para escrever isto e ao mesmo tempo nenhum. Não há leitores à vista ninguém me pediu nada, não há prelo esperando as letras deste repórter de si mesmo – urgente, à toa, atropelado – que prepara uma edição extra para ser lida (?) em 1985 já que na posteridade só cabem os gritos i. e, os gregos. (id., ibid., p. 376)

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Duas datas concorrem no texto. A primeira situa o presente ficcional da

autobiografia como tema do poema. A segunda anuncia o ano previsto para a recepção,

também ficcionalizada no texto, de uma notícia sem leitores, sem prelo, apenas possível. O

tempo registrado é o do intervalo entre a escrita e a leitura – duvidosa – de uma

“reportagem de si mesmo” colocada como tema no texto, mas não realizada no poema. A

notícia de si é um anseio. Seu tempo não é aquele tão bem situado por local, ano, mês, dia e

hora, mas o de um futuro, próximo, urgente e incerto. Por ora, as datas registram somente a

premência de um relato autobiográfico não realizado.

A datação não constitui, além disso, uma rubrica a assinalar o presente enunciativo,

mas faz parte do texto, compondo sua malha interna. A ambientação construída desse modo

pouco situa, visto que aponta para um real retratado ao longo dos textos como móvel e, por

isso, dificilmente representável. A indicação de dia e lugar não constitui, portanto, um fator

a criar um cenário propício para a cena em que o autor se revelará, mas um elemento a

reforçar, ironicamente, a passagem do tempo como aquilo que não se pode imobilizar no

poema senão como um número que pouco significa.

Ficcionais e apostas em um texto que aborda a impossibilidade da autobiografia, as

datas explicitadas no poema têm sua função dêitica minimizada. Apontando menos para os

limites do texto do que para a ficcionalização do fracasso da “reportagem de si”, as datas já

não podem problematizar as fronteiras entre o interior e seu exterior – questão central da

autobiografia. Afastam-se, assim, daquela função que permitiria observar as datas como um

dos modos da rubrica segundo Derrida: « Dater, c´est signer. Et ‘dater de’, c’est aussi

indiquer le lieu de la signature. Cette page est en quelque sorte datée puisqu’elle dit

‘aujourd’hui’ [...] » (1984, p. 53)39.

É interessante notar também que o registro autobiográfico no poema é caracterizado

como notícia jornalística. Ela faz parte, portanto, do espaço público em que se poderiam

relacionar autor e leitores do relato. Entretanto, esse espaço está destruído. Em 3x4, não só

a narrativa das experiências do autor é barrada, mas também o compartilhamento de

qualquer experiência é visto como duvidável, já que o leitor falta ou não pode suplantar seu

próprio isolamento e o do enunciador. O relato anunciado – e frustrado – em 3x4 aproxima-

39 [Datar é assinar. E “datar em” é também indicar o lugar de uma assinatura. Essa página é de alguma modo datada pois ela diz “hoje”]

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se, assim, do fim da narrativa apontado por Walter Benjamin como um traço da

modernidade no ensaio “O narrador”. A questão nos interessa na medida em que diz

respeito ao declínio da capacidade de o narrador transmitir a própria vida uma vez tenha se

depauperado a comunidade entre aquele que narra e seus ouvintes. A cisão entre o eu e o

outro em 3x4 parece, assim, o reverso da narrativa – biográfica e pública, necessariamente

–, tal como discutida por Benjamin:

Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue da sua narração consumir completamente a mecha de sua vida (BENJAMIN, 1994c, p. 221).

Tendo como tema o não-saber de um escritor apartado de seus leitores, o poema

encena, como um novo elemento a somar ao cálculo do registro da impossibilidade da

autobiografia, a falência das relações comuns que fundamentam a narrativa. A perplexidade

diante de uma vida nunca narrada torna-se, então, o modo de adesão ao presente – e à

comunidade possível uma vez tendo a experiência se depauperado.

A associação entre o registro do sujeito e o não-saber reaparece, ainda, em mais um

dos poemas de 3x4 que convocam a rubrica como modo de registrar a perda do sujeito na

obra. No texto de “Antes”, última parte de 3x4, lemos:

Preposições: antes, até, após por quanto tempo este crime ficará perfeito fora de foco entre dois fogos depois dos disparos no espaço durante onde tiro no escuro retratos ou a vida do que num instante escapa do registro do desejo e queima o filme, a confissão no estúdio nu, still, então, vira vã estátua contra o fundo infinito

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sem assinatura? (FREITAS FILHO, op. cit., p. 402-3)

“Preposições”: o poema traz para seu seio aqueles elementos lingüísticos que

compõem os títulos das partes do livro de Armando Freitas Filho. Os subtítulos dos grupos

de vinte e cinco poemas – “Entre”, “Durante”, “Depois” e “Antes” –, como termos de

articulação do discurso, são aquelas expressões, na economia de 3x4, que poderiam garantir

um encadeamento de fatos de modo a constituir a autobiografia como revelação da

existência do autor. A disposição dos títulos, todavia, torna a articulação das partes do livro

mais complexa do que a de uma sucessão de fatos desde o presente até o passado, ou o

inverso. Também no poema, espécie de súmula dos modos em que o autor se registra como

ausente em 3x4, as preposições têm como efeito de sentido um encadeamento barrado. O

texto torna evidente, assim, a multiplicação – serial, não hierarquizada – das inscrições de

tempo e espaço como modo de adensar o vazio de um sujeito excluído do poema.

No texto, além disso, voltam a incidir aqueles elementos que vimos analisando

como recursos para a caracterização do auto-retrato como imagem do fenda aberta pelas

marcas da subjetividade. Novamente, “fora de foco”, os mecanismos de produção de

imagem são caracterizados como falhos. Mais uma vez, a vida, expulsa do retrato, opõe-se

à marmorização da imagem revelada – “vã estátua”. A rubrica aparece, assim, tal qual em

outros textos aqui citados, associada à mortificação que resulta do retrato.

No poema, há, porém, uma sutileza na convocação de uma assinatura aparentemente

recusada: “sem assinatura?” A interrogação põe em dúvida a ausência de um dos recursos

centrais para a infiltração do sujeito em sua obra. Grafa-se, pois, a duração de um

desaparecimento ainda não concluído. “Contra o fundo infinito”, nos diz o poema, o desejo

do registro da vida pode avançar mais um pouco. Movida pelo vazio entre o sujeito e o

livro, a paixão não se dissipa. Seu investimento em um outro registro – não icônico, indicial

– do eu é o que discutiremos a seguir.

2.5 AUTOBIOGRAFIA: ALOBIOGRAFIA

Discutimos até aqui de que modo 3x4 tematiza o desaparecimento do sujeito quando

de sua constituição como imagem textual. É preciso avançar ainda de modo a compreender

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o registro residual do sujeito como suplemento à figuração de sua ausência nos poemas.

Um outro registro: avançamos do desenho vazio da fisionomia para a análise daquilo que

resta à encenação do nada de retrato – ou do retrato do sujeito como nada.

É significativo da constituição temática do resíduo que, paralelamente ao tema do

vazio e da ausência, sejam postos em cena as figuras do limite, do mínimo, do negativo

(entendido como quantidade e não como nada). Um poema de “Entre” delineia com clareza

essa inscrição, nos poemas de 3x4, de um resto subsistente:

No último ato da fala no limite –

um pouco antes dos átomos do silêncio

anoto minúsculos momentos átonos e míopes estados d’alma somente a semente: um piscar de olhos um triz, uns fios, um tique o menos um.

Zéro de conduite? (idem, p. 360)

Em contraponto ao esvaziamento que vimos analisando, o poema registra a notação

de elementos limítrofes ao nada. A novidade se estabelece por sutis processos de

afastamento em relação ao núcleo temático do vazio delineado em outros textos: não mais o

silêncio, mas a atonia; não mais a cegueira, mas a miopia. O movimento de preenchimento

não completa, claro está, aquele vazio. Trata-se de uma constelação a tangenciar as

fronteiras do nada: “fios”, “triz”, “menos um” constituem as peças do quase zero como

núcleo – ou “semente” – da notação dos momentos e dos estados d’alma, anunciada no

texto.

“No último ato da fala”, o poema situa, além disso, a notação do mínimo no

momento limite para a extinção da linguagem. Já não se flagra o instante em que se supera

a justa medida para a representação, tema recorrente nos poemas analisados no item

anterior. Diferentemente, situa-se a iminência – “antes” – do silenciamento como o tempo

terminal em que é possível delinear uma grafia a se deslocar, mesmo que minimamente, do

registro do nada.

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Outros textos em 3x4 tematizam a subsistência daquilo que está nas fronteiras da

destruição. Também o momento imediatamente anterior à ruína reincide, como lemos a

seguir:

A tarde precipita sua cor cai, no começo

no princípio da noite e o que ainda aqui resiste meio fera, ao precipício ficou na beira da taça que não suporta mais sequer um riso pois todo cristal está sempre na iminência, um minuto antes

de partir. (idem, p. 356)

O dêitico “aqui”, marca da enunciação no enunciado, situa o espaço da escrita do

poema como o da fronteira entre a queda – figurada pelo “precipício” – e a explosão. A

polissemia do verbo “partir”, ademais, indica que o resto registrado no texto não é estável.

Entre a explosão e a perda daquilo que se retira do espaço do poema, a escrita do resíduo se

delineia como gesto de luta – ou “resistência” – no momento em que a aniquilação é

vislumbrada.

O registro do resto se torna, assim, um índice da adesão às situações extremas, na

borda, que tangenciam as fronteiras do não-sentido. De um lado, flagra-se o excesso

naqueles poemas que encenam a constituição do sujeito como vazio. De outro, capta-se a

manutenção das situações limítrofes no momento em que elas tendem à desmedida. Em

3x4, estamos, pois, diante de um sujeito situado sempre nos extremos, um sujeito para

quem a boa medida é justamente a duração limite, que expande as distâncias possíveis de

inteligibilidade. Pode-se, nesse sentido, expandir a afirmação de Tatit, que busca

“identificar o corpo no intervalo dos extremos, na luta inglória pela conservação da boa

medida, da boa distância e da duração da duração. Este nos parece ser o corpo que subjaz

ao texto durante toda a sua extensão” (TATIT, 1997, 1994).

O sujeito é identificável no intervalo dos extremos, “rente às margens” (FREITAS

FILHO, ibidem, p. 361), justamente porque os extremos são uma fronteira teórica e sempre

móvel já que a boa distância se constrói em ato e por meio de corpos específicos, nunca por

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meio de um corpus. O livro parece, assim, brincar não só com o aparecimento e o

desaparecimento da imagem do poeta, como defende, com precisão, Flora Süssekind40. Ele

encena também o momento em que a própria linguagem ameaça a falhar, pondo em risco

não só o auto-retrato, mas mesmo a notação das sensações, momentos e estados d’alma que

se alinhavam simultaneamente à constituição imagética do sujeito como nada.

A insistência nas figuras que constituem o texto como registro da catástrofe é talvez

o modo mais contundente com que 3x4 encena uma poética nos limites do silêncio.

Naufrágio, explosão, incêndio reincidem ao longo dos textos. A dispersão dos modos da

destruição – entre a profundidade, o estouro e o consumo – delineia um sujeito

caracterizado pelo não-saber e que deve, portanto, negociar com uma linguagem que lhe

escapa, como lemos a seguir:

Vou gota a gota aos poucos mas apesar de todo cálculo e de tanta cautela acabo não me poupando pois estou sempre na ponta do trampolim e o tempo aí já não cuida de segurar nada – não sabe – conter-se nem contar o que de fato aconteceu: se foi vôo, queda ou mergulho. (idem,p. 375-6)

Em perigo, o sujeito introduzido no poema caracteriza-se pela cautela: “aos

poucos”, “gota a gota”, ele parece se afastar das situações extremas que vimos

caracterizando como o lugar e o tempo da escrita em 3x4. No entanto, o cálculo é

convocado apenas para ser logo recusado. Frente a ele, reafirma-se a imagem da beira, do

limite. “Na ponta do trampolim”, o sujeito avança para o transbordamento, que o impede de

narrar-se: não sabe, pois o que transborda e sobra ameaça “empapar com o sangue” o lençol

do quarto e as páginas do livro (id., ibid., p. 375).

Se o excesso extremo faz falhar a narrativa, também a contenção ameaça a escrita,

pois tende no limite à paralisia, à fixidez. Favorece, portanto, a interrupção das gradações 40 Referimo-nos à seguinte afirmação feita pela ensaísta no prefácio a 3x4: “Uma espécie de fort-da com a própria imagem, onde, no entanto, o reaparecimento não é garantido” (SÜSSEKIND, 1985, p. 16).

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na relação do sujeito com o mundo, intensificando-lhe as compulsões. A compressão das

pulsões do sujeito é iluminada pela leitura de um poema da última parte de 3x4:

Sensações sem endereço. O que há entre cristais e entre uma batida e outra do coração. Escute: o que você lê nos meus olhos é o seu olhar, só. E a melhor carta é aquela que se rasga ou fica no rascunho. O que segue, passado a limpo vai sem vida dentro do mármore do envelope. (idem, p. 395)

O poema parece cindido. Os quatro primeiros versos introduzem imagens daquilo

que é ainda anterior às categorizações linguageiras. Demarca-se, assim, o espaçamento –

disperso, “sem endereço” – do corpo como uma forma de expandir a notação dos

“momentos d’alma”, anunciada no poema citado na página 85 deste ensaio. Reiterando o

caráter infigurável do corpo, os versos são constituídos por períodos interrompidos, em que

se suprimem os termos principais.

A introdução da segunda pessoa no poema interrompe subitamente a notação das

características do corpo. Em oposição à dispersão destas, o endereçamento exerce uma

força mineralizadora sobre a vida quando transposta para o poema. A essa contenção

própria da escrita dirigida ou “passada a limpo”, soma-se o não saber decorrente das

relações entre o “eu” e o outro. A segunda pessoa a quem se endereça o eu não pode

superar um jogo de reflexos que impede qualquer tentativa de conhecimento. Trata-se, mais

do que de contenção, de confinamento.

O tema do confinamento do “eu” em sua relação com o outro não implica a

consideração do sujeito como isolado e imune às múltiplas atrações e invasões da

alteridade. Em 3x4, o confinamento é tanto mais contundente quanto se estabelece sempre

em uma relação com o outro marcada pela fratura e pela falência da linguagem. É possível

mesmo afirmar que há um outro que atravessa a escrita de 3x4, em especial no que tange ao

registro residual do sujeito que buscamos situar no espaço instável entre o transbordamento

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e a contenção. A escrita como registro da catástrofe, nos limites do silêncio, é contaminada

pela morte de Ana Cristina Cesar, nos diz Eduardo Coelho:

Diante da experiência aterradora da morte do outro, um outro afetivo e vital na própria criação, Armando introjeta, em sua obra, a vivência da própria morte, de maneira ainda mais aterrorizante. A necessidade de escapar da finitude aumenta a velocidade de seu texto e radicaliza as sensações (o corpo em sobrecarga), processo que já tinha sido tomado em longa vida e levado para 3x4, primeira obra lançada depois do suicídio de Ana Cristina Cesar (COELHO, ibidem, p. 173).

Embora saibamos que os poemas de 3x4 foram redigidos antes da morte de Ana

Cristina Cesar41, as afirmativas de Eduardo Coelho mantêm sua validade na medida em que

iluminam a dispersão da mortualha pelo livro. O pensamento do crítico nos permite ver a

infiltração da vida do poeta na escrita se estabelecendo por meio da contaminação da poesia

pela morte – uma morte alheia, ainda apenas entrevista, e que se torna prenúncio da morte

própria. As tentativas, sempre provisórias, de esquiva da finitude, comentadas por Coelho,

só são, portanto, possíveis por meio da inscrição de um espaço mortuário na obra. Talvez o

índice máximo dessa inscrição seja a dispersão de firmas como a reforçar o poder

mortificante da escrita. A fenda aberta pelas marcas da subjetividade atrai, assim, uma

constelação formada pela coexistência de assinaturas: a firma – rasurada, questionada – do

sujeito poético, que não se pode identificar de forma simples ao nome de Armando Freitas

Filho, coabita o espaço mortificado por um outro nome. Na epígrafe do livro, na dedicatória

de um dos poemas da coletânea (FREITAS FILHO, ibidem, p. 173), nos versos a evocar –

“a teus pés” (idem, p. 371), “com tapa de luva de pelica” (idem, p. 372) – a escrita da amiga

morta, instala-se o nome de Ana Cristina Cesar em 3x4. Por meio do registro do nome

alheio, a autobiografia resvala, desse modo, para a biografia.

A difusão da vida para a escrita não se dá, pois, sem rupturas. Nos termos de

Eduardo Coelho, trata-se de uma “introjeção” em que o registro da vida aparece nos

procedimentos da escrita, mais veloz, mais marcada pelo sensório. Diríamos, de acordo

com as categorias utilizadas aqui para a análise da encenação de uma poética nos limites do

silêncio, que aquela infiltração é estabelecida por meio das estratégias enunciativas da

contenção e do transbordamento. De um lado, o verso, veloz e curto, pode ser

41 Agradecemos a Armando Freitas Filho a oportunidade de analisarmos os manuscritos, datados, de 3x4.

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compreendido como um recurso de contenção. A síntese seria, então, um fruto da “receita

de rigor” nos moldes de Valéry-Cabral, anunciada em um dos poemas de “Durante” como

um dos modos de controle – “de não perder a cabeça” – e de mortificação de um sujeito

apaixonado (Cf. FREITAS FILHO, ibidem, p. 387-8). De outro, a fratura no verso,

interrompendo o discurso, parece encaminhar-se para um efeito oposto: o do

transbordamento dos afetos, instáveis, para a escrita. Há um jogo de ecos entre o corte do

verso e a ferida no corpo, como aponta Eduardo Coelho42 ao ler o seguinte poema da

primeira parte de 3x4:

Abrir os pulsos as gavetas

e cortar as veias enquanto é tempo de salvar a vida e impedir que o poema caia

em si mesmo como os repuxos, os reflexos os anúncios luminosos que trabalham sempre com a mesma água sem o risco das hemorragias. (FREITAS FILHO, ibidem, p. 364)

O poema tematiza a oposição entre transbordamento e contenção que delineia um

espaço de instabilidade uma vez a escrita se tenha infiltrado pela vida. A contenção se

constitui como a repetição que tende à paralisia ou à podridão da água parada, da “mesma

água” figurada no texto. O transbordamento, como resistência à fixidez: possibilidade de

“salvar a vida”. Além disso, os verbos – “abrir”, “cortar” – guardam em si um valor

imperativo a concorrer com a impessoalidade do infinitivo. A hemorragia torna-se, assim,

uma tarefa – cujo sujeito não podemos definir –, estabelecida em oposição à morte

delineada no espaço paralisado dos “repuxos”, “reflexos” e “anúncios luminosos”. Trata-se,

pois, de uma poética em risco: é preciso salvar o poema da fixidez mortificante. Às marcas

42 A análise feita por Coelho (2006) está na página 170 de seu ensaio A peste de Hamlet, publicado na revista Poesia sempre de número 22, em que há um dossiê sobre Armando Freitas Filho. Também João Camillo Penna, lendo o mesmo poema, na sexta página do texto inédito “De como filosofar é aprender a morrer”: os números em Armando, aponta o corte como recurso a impedir a auto-reflexividade poética por meio do “risco das hemorragias”. A análise brevemente feita do texto pauta-se, em grande medida, pela leitura desses ensaios críticos.

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do perigo, vem se somar a urgência do corte – a expressão “enquanto é tempo” fazendo

reincidir o momento ápice como o tempo próprio de uma escrita que reafirma

constantemente a iminência de sua falência.

O texto permite-nos, ainda, iluminar a associação entre vida e escrita em 3x4, objeto

central deste ensaio. A hemorragia – convocada como objetivo urgente – é o cuidado

comum em relação à vida e à poesia, ambas em perigo. Salvar a vida já não se identifica à

reivindicação à existência por meio de uma narrativa em que se perpetua o nome próprio.

Tampouco implica narrar a trajetória vivencial do sujeito e a dos personagens que a

atravessaram. Salvar a vida e a poesia diz respeito à dispersão – hemorrágica – dos índices

de um sujeito em luta contra a paralisia da existência e da escrita, contra a fixidez devido à

iminência da morte, espelhada na perda do objeto de amor. No limite, encenando sua

própria precariedade, a escrita se constitui como o registro residual do sujeito: grafia de

“momentos átonos” e “míopes estados d’alma” em que, a contenção da vida estando ainda

incompleta, o desejo que move a escrita não está suprimido. Lemos: “[...] e só paro quando

meu sangue/ calar a boca de todo” (idem, p. 369).

2.6 BIOGRAFIA: TANATOGRAFIA

“[...] na linha d’água/ nenhuma falha, fala/ fisionomia – apenas algo” (idem, p. 355).

Apenas algo. Apenas o vazio? Esta foi a interrogação que atravessou a análise dos modos

de inscrição – irônica, instável – da autobiografia em 3x4. A primeira forma de subverter a

ficção da escrita autobiográfica, fundada na identidade impossível entre o escritor e o texto

de que está exilado, formulou-se por meio do esvaziamento da imagem do sujeito poético

no auto-retrato em que se poderia revelar.

Esperar-se-ia que o auto-retrato fosse verdadeiro, que retomasse os traços de seu

autor – em uma fórmula simples, que fosse semelhante. A semelhança entre o autor e a

imagem está, no entanto, constantemente em questão no livro de Armando Freitas Filho. O

retrato, em uma “guerra de reflexos” (idem, p. 399), implica a constituição do sujeito como

um outro quando de sua representação. Além disso, os mecanismos de reprodução, falhos,

desfazem os traços de um sujeito que se retrata no momento em que sua imagem é

destruída. A obra se constitui em torno desse vazio.

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Por meio da esquiva à constituição de uma imagem plena do sujeito, parecemos

atingir o outro extremo da extinção do páthos autobiográfico. Já não se trata de burlar o

desejo investido na fratura entre enunciação e enunciado por meio de uma rubrica a garantir

a existência do autor para além de seu texto. Haveria, por meio da constituição do auto-

retrato como reprodução de nada, o malogro da reivindicação à existência que fundamenta

a paixão por instituir-se como existente na obra.

Nesse sentido, a recusa ou desestabilização daqueles mecanismos que poderiam

suturar a cisão entre o sujeito e o livro parece estabelecer a escrita do poema como o

registro de um desejo suplantado pelo vazio que a ele se opõe. A negação da fixidez do

nome, da data e das marcas de lugar torna-se, assim, um recurso para a constituição de 3x4

como a mise-en-scène da duração do desaparecimento do sujeito.

A grafia do sujeito em fuga não ocorre, no entanto, sem deixar resíduos: “apenas

algo”. A paixão não está extinta, uma vez que a escrita se constitui como uma constelação a

se movimentar em torno do vazio aberto pelo sujeito. Tangenciando esse vazio – e o

silêncio iminente como limite máximo do esvaziamento do eu –, a obra se torna o exercício

– perigoso, nas beiras – de registro da mortificação do sujeito no texto.

A morte se estabelecendo como motor e resultado da escrita do poema, a produção

da obra pode ser caracterizada como resistência a uma morte definitiva, à paralisia.

Movimentar a morte: a do próprio corpo e aquela – alheia – que lhe intensifica a

mortificação em vida. A assunção da impossibilidade da escrita autobiográfica – do vazio

em que se funda – não é, pois, apenas uma afirmativa da falência da linguagem. É um modo

de instituir aquela precariedade como o objeto de um investimento passional em uma

escrita que, no limite, unindo tanatografia e biografia, recusa a fixação mortificante.

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3 O DESCOMPASSO BIOGRÁFICO (FIO TERRA, NUMERAL)

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Acrobata enredado em clausura de pele sem nenhuma ruptura para onde me leva sua estrutura? Doce máquina com engrenagem de músculo suspiro e rangido o espaço devora seu movimento (braços e pernas sem explosão). Engenho de febre sono e lembrança que arma e desarma minha morte em armadura de treva. Armando Freitas Filho, Corpo, Palavra (1964)

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Grafar a vida: registrar o processo por meio do qual o corpo, vivo, engaja-se na

escrita. A equação é aparentemente simples, espécie de promessa de uma identidade

desejada entre seus termos. A relação entre vida e obra ali apontada não pode, no entanto,

subtrair-se à fratura que lhe é indissociável – os dois pontos funcionando, simultaneamente,

como elo e corte. Está em jogo nessa cisão a distância entre a duração do processo da

escrita e o tempo por ela narrado. Entra em cena o descompasso entre a obra e o devir de

uma existência cujo fluxo não pode ser detido ou capturado em um texto definitivo.

Entendida como registro da duração de um corpo enquanto escreve, a biografia se

torna a busca incessante pela inscrição – nunca plena – da temporalidade própria ao

processo de enunciar. Trata-se, pois, de uma biografia impossível, precária, provisória. Sua

fragilidade não se restringe ao caráter problemático dos elementos lingüísticos que

poderiam garantir a identidade entre a vida narrada no texto e a de seu autor. Seu problema

não se concentra na revelação de acontecimentos determinados e de sentimentos do sujeito.

A precariedade da biografia que gostaríamos de analisar é aquela delineada pela questão:

como registrar a duração do próprio ato em que se escreve? Ou, ainda: como firmar um

processo que se expande – e, nesse sentido, escapa – uma vez a escrita avance?

Fio terra, coletânea de poemas publicada por Armando Freitas Filho em 2000, tem

essa questão como centro propulsor de sua engrenagem. Na primeira parte do livro, a

distância entre o tempo da escrita e o do poema estabelece uma fratura que torna dual a

estrutura do texto. À esquerda, divulgam-se datas e notações de momentos do dia (5 IV 98,

à tarde, 6 IV 98 ... 5 VII 98). À direita, publicam-se poemas, escandidos pelas datas. Entre

as séries, o espaço em branco indica que o diálogo está barrado. Embora atuem como

títulos para os textos que acompanham, as datas não anunciam o conteúdo dos versos.

Demarcando o tempo da enunciação, elas situam o momento da produção do texto e

convocam a finitude da vida por meio da narrativa da passagem do tempo. Complementar

aos poemas, mas situado à margem deles, o registro dos dias delineia a busca – utópica,

louca – por registrar a duração do processo enunciativo. Em outras palavras, por grafar no

texto aquilo que sempre está além ou aquém do enunciado.

Em Numeral, lançado em 2003 como espécie de anexo ou suplemento ao inédito

Nominal, a busca avança. Como no livro publicado em 2000, os poemas são datados. A

tentativa de firmar o processo de escrever já não se restringe, no entanto, aos três meses

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demarcados em Fio terra. As datas, na margem inferior direita de cada poema, associam-se

aos números-títulos de modo a contabilizar a finitude da vida e a expansão da linguagem:

uma vez que o corpo se manteve vivo ainda mais um dia, a série pôde ser acrescida de

outro numeral. Conduzida pela série infinita de números, a biografia se torna um registro

aberto. Delimitada pela datação, tem seu fim constantemente anunciado tendo em vista a

manutenção provisória do corpo em face da morte.

Assumindo o caráter incontornável de sua interrupção futura, o espaço poético

torna-se instável: “ainda” e “enquanto” são as expressões que, indissociáveis, desenham os

contornos sempre móveis da criação dos numerais. Ainda vivo, Armando Freitas Filho

publicou novos textos numerados como suplemento à coletânea Raro mar, de 2006. Por

enquanto, subsiste a interrogação lançada pela associação de números e datas: até quando

durará a existência do corpo que escreve e lê; até que ponto acompanharemos a série?

A partir desse desequilíbrio entre o caráter infinito dos números e a finitude da vida,

o corpo grafa-se em Numeral. A partir do desequilíbrio entre a duração do gesto

enunciativo e o tempo registrado nos poemas, a vida é convocada em Fio terra. Tendo em

vista o descompasso entre vida e obra, a enunciação e o enunciado se tornam

indissociáveis, mas nunca se identificam. Esse desajuste, que torna o registro biográfico

antes uma busca do que um resultado acabado, é o objeto deste capítulo.

3.1 ESCREVER O DIA

3 V 98 “Começa o dia e o caderno” (FREITAS FILHO, 2003, p. 567). O trecho,

extraído de um dos poemas datados de Fio terra43, explicita a adoção da escrita diária na

obra de Armando Freitas Filho. Inaugurada nesse livro com a coletânea de poemas datados

e expandida três anos depois com a publicação dos primeiros numerais, a construção de um

híbrido de poesia e diário nos leva a interrogar os modos como o curso dos dias pode ser

inscrito nos textos. Retomamos, assim, aquela questão – “como registrar o decurso da vida

no momento mesmo que ela transcorre?” – que nos faz definir como um registro biográfico

a grafia do processo em que o corpo se engaja na escrita.

43 Os poemas de Fio terra citados ao longo deste capítulo são aqueles revistos na edição da obra reunida em Máquina de escrever, de 2003.

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Inseparável do momento em que foi redigida, cada entrada em um diário aponta o

problema de tal registro. Nesse tipo de obra, as marcas dos dias assumem uma função

ambígua. De um lado, a inscrição do tempo por meio da data está à margem dos textos. O

diário parece, desse modo, ser constituído de trechos completos mesmo quando se ignora o

registro do dia, expulso para suas bordas. Quantos diários não terão sido lidos sem que se

levassem em conta as marcas do tempo crônico apostas sobre ou sob cada um dos textos?

Quantos não terão sido analisados considerando-se apenas a beleza ou a moral de cada um

dos trechos ali escritos?

A solução é talvez aceitável. De fato, muitos diários são legíveis ainda que o

procedimento de datação seja esquecido. Tal abordagem imprime, no entanto, séria

mutilação à obra ao desconsiderar o caráter instável da posição limítrofe ocupada pelas

datas nos diários. Exteriores aos textos redigidos dia-a-dia, as datas se situam, no entanto,

no interior da obra. Tal inserção tem tamanha importância que o intervalo de tempo grafado

por elas participa do nome da escrita diária.

Da posição marginal que ocupam, as datas são essenciais. Sua função, antes indicial

do que simbólica, é a de demarcar o tempo da enunciação. Ao fazê-lo, o procedimento de

datação fratura a escrita do diário. Nos fragmentos autenticados pelo registro dos dias, o

valor simbólico das palavras parece tornar os textos irredutíveis a uma temporalidade que

lhes é exterior. No entanto, dominada pelas datas que lhe servem de rubrica, também a

escrita dos trechos em um diário assume como tarefa uma referência impossível. O

calendário tem, pois, o poder de infiltrar aqueles textos regidos por suas marcas. Nos

termos de Barthes, ele faz com que se tente referir o real, atestando sua existência, por meio

de uma linguagem por natureza ficcional:

O infortúnio (mas também, talvez, a volúpia) da linguagem é não poder autenticar-se a si mesma. O noema da linguagem talvez seja essa impotência, ou, para falar positivamente: a linguagem é, por natureza, ficcional; para tentar tornar a linguagem inficcional é preciso um enorme dispositivo de medidas: convoca-se a lógica, ou, na sua falta, o juramento [...] (BARTHES, 1984, p. 128).

Aparentemente insignificantes, avessas à submissão à estrutura da escrita dos textos,

as datas constituem elementos de atração da linguagem para um espaço diferente daquele,

simbólico, que é próprio às palavras. Graças às datas, a escrita se enraíza no cotidiano.

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Assim, ainda quando seus textos pouco iluminam a duração dos dias ali demarcados, o

diário se constitui sob a ordem do tempo cronológico. Tal associação não diz respeito

apenas a limitações na seqüência em que os trechos são redigidos ou lidos. Ela define a

referência como o motor e o fantasma do diário44.

Produzida tendo em vista o presente indicado pelo procedimento de datação, a obra

tenta firmar o tempo ali grafado. Redigido sob a vigilância dos dias, o diário não apenas

deve acompanhar a passagem do tempo. Seus textos respondem a um objetivo e a uma

promessa: fazer os fragmentos escritos interagirem com as datas de modo a revelar a

duração dos dias por elas referidos. Em vão: em constante desajuste, o tempo narrado no

diário e a duração do dia não coincidem jamais.

O dia registrado ainda transcorre no momento em que se inscreve a data. Assim,

embora a exterioridade do decurso que se deseja grafar pareça ser elidida pelo metro do dia,

comum ao enunciado e à enunciação, a distância entre o tempo escrito e o engajado na

escrita não se deixa ignorar. A data está, pois, situada na fratura entre enunciação e

enunciado, associando-os tão somente na medida em que os cinde. Esse movimento

paradoxal é inerente à tensão entre o dia e seu adiamento na escrita.

Assim, buscando preservar o tempo, a obra logra apenas fixá-lo sob a forma

descontínua de que a fragmentação dos textos é talvez o sintoma mais claro. Ela registra o

presente, mas também o imobiliza em uma referência que não pode retomar a

complexidade do gesto enunciativo que constitui seu marco45. Parafraseando Godard,

citado na epígrafe do diário poético constituído por Fio terra, seria preciso uma eternidade

para narrar um dia46. A busca por recompor o tempo que se esvai redunda, portanto, em

impossibilidade.

44 Guio-me pela definição do diário como um discurso referencial, desenvolvida por Philippe Lejeune no ensaio “Composer un journal”. Nesse texto, ele afirma: « Le journal tire sa valeur d’être la trace d’un instant » (LEJEUNE, 2005c, p. 85). [O diário tira seu valor de ser o rastro de um instante] 45 Novamente, devo a Phillipe Lejeune as considerações aqui desenvolvidas sobre a exclusão da complexidade do tempo no diário justo quando a obra busca aderir ao presente: « Le journal, qui se présente souvent comme une lutte contre le temps (fixer le présent, etc. – préserver la mémoire), est de fait fondé sur une préalable abdication devant le temps (atomisé, éclaté, réduit à l’instant) » (idem, 2005b, p. 66). [O diário, que se apresenta freqüentemente como uma luta contra o tempo (fixar o presente, etc. – preservar a memória), é de fato fundado sobre uma prévia abdicação frente ao tempo (atomizado, fragmentado, reduzido ao instante)] 46 O trecho mencionado faz parte do texto de Godard reproduzido, em francês, por Armando Freitas Filho: « Il me faut une journée pour faire l’histoire d’une seconde/ il me faut une année pour faire l’histoire d’un minute/ il me faut une vie pour faire l’histoire d’une heure, il me/ faut une éternité pour faire l’histoire d’un

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A inserção das datas no diário não diz respeito, além disso, apenas à atração para

um modo referencial do discurso, estranho à linguagem verbal. O vazio, instaurado pelas

datas, expande-se por toda obra. Uma vez que a datação remete a um decurso que não pode

ser completamente representado, os textos datados se tornam necessariamente fragmentos

daquele texto, impossível, que lograria iluminar todas as nuanças do dia a que está

associado. A escrita do diário é, pois, alusiva, descontínua, lacunar. Ela constitui a obra –

nos diz Philippe Lejeune – como o signo de um outro texto irrecuperável por meio do

discurso publicado:

[Le journal est] allusif (l’écriture intime sert de signe mnémonique à celui qui écrit, ‘comme cela je souviendrait’ – mais d’autre chose que ce qui est écrit : toute page d’écriture tient en suspens, mais pour celui seul qui l’a écrit, toute une ‘référence’ à laquelle lui-même d’ailleurs n’a accès que par là, et qui est nulle pour toute autre lecteur47 [sic.] (LEJEUNE, 2005b, p. 66).

Sem recompor o dia que passa, o diário envolve também o leitor no vazio que lhe é

próprio. Diante de uma obra que remete para seu exterior sem inscrevê-lo de forma plena

em seu seio, quem lê um diário precisa buscar, através das fraturas no texto, aquilo que não

se publicou. O leitor se torna, então, uma espécie de detetive, à procura de pistas para saciar

sua visada própria de um voyeur. Tanto mais interessantes serão os diários quanto mais

reservados forem os acontecimentos ali flagrados. Pouco importa se, escritas sob a proteção

das lacunas inerentes ao diário, as alusões não poderão ser de todo esclarecidas. O interesse

decorre mesmo de que o texto seja repleto de referências como marca de um saber não

compartilhado entre o diarista e seus possíveis – e muitas vezes indesejados – leitores.

Em Fio terra e em Numeral, é grande a frustração da curiosidade do leitor em busca

de preencher o vazio instaurado pela adoção da escrita diária. Nas séries de poemas

datados, a cisão aberta pelas marcas da passagem dos dias interage com o tema, nos versos,

jour./ On peut tout faire excepté l’histoire de ce que l’on fait. » [Me é preciso um dia para fazer a história de um segundo/ me é preciso um ano para fazer a história de um minuto/ me é preciso uma vida para fazer a história de uma hora, me é/ preciso uma eternidade para fazer a história de um dia./ Pode-se fazer tudo, exceto a história daquilo que se faz.] 47 O diário é alusivo (a escrita íntima serve de signo mnemônico àquele que escreve, “como eu recordaria disso” – mas de outra coisa que aquela que é escrita: toda página de escrita tem em suspenso, mas apenas para aquele que a escreveu, toda uma “referência” à qual ele mesmo não tem acesso senão ali, e que é nula para qualquer outro leitor.

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da falha na representação. No poema registrado com a data 3 V 98, lemos: “Mas o que

consegue ser escrito/ na linha que a luz abre/ não é tudo nem bastante” (FREITAS FILHO,

ibidem, p. 567).

É significativo que a insuficiência da escrita diária seja afirmada justo naquele texto

a partir do qual iniciamos, neste item do ensaio, as reflexões sobre a associação do dia à

escrita. Como nos diários, a adesão ao calendário não se apresenta como uma introjeção

simples do tempo. Ao contrário, por meio de uma escrita que não diz “tudo nem o

bastante”, as séries assumem o caráter fragmentário da inscrição do dia na obra.

Como parte de um procedimento metonímico de escrita, os poemas-fragmento

poderiam ser compreendidos como simples substitutos daquele texto, irrealizável, que lhes

é contíguo: a narrativa do decurso do dia, cuja duração é indiciada pelas datas. Nesse

sentido, o resto não significado para que aponta o registro dos dias poderia ser facilmente

abandonado em prol dessa totalidade entrevista. Tal maneira de compreender a metonímia

falseia, no entanto, a complexidade do problema, nos diz Agamben em Estâncias. O termo

a que substitui o fragmento não pode ser completamente identificado ao trecho por meio do

qual é assinalado. Ele é vislumbrado como fantasma, não como positividade revelada.

Devido a esse caráter fantasmático, Agamben observa na metonímia um procedimento de

tipo fetichista, em que está em jogo a substituição de um corpo já em si fantasmagórico por

objetos que só parcialmente podem convocá-lo:

Precisamente por ser negação e sinal de uma ausência, o fetiche não é um unicum irrepetível, mas, pelo contrário, é algo substituível ao infinito, sem que nenhuma das suas sucessivas encarnações possa algum dia esgotar completamente o nada de que é a cifra. Por mais que o fetichista multiplique as provas da sua presença e acumule um harém de objetos, o fetiche lhe foge fatalmente entre as mãos e, em cada uma de suas aparições, celebra sempre e unicamente a própria mística fantasmagórica (AGAMBEN, 2007b, p. 62).

O texto fraturado dos diários poéticos não pode ser ignorado em nome da suposta

plenitude do dia que tentam recompor, visto que o procedimento metonímico mobiliza

duplamente o vazio. A primeira e mais evidente manifestação das cesuras na obra diz

respeito à encenação nos poemas do desajuste entre a escrita e o tempo em que ela é

produzida: “Difícil de abrir o dia [...]”, lemos no texto de 11 V 98. O vazio se expande,

além disso, para o objeto que se tenta representar por meio da escrita fragmentada da obra:

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tal como os textos dos diários poéticos, o dia é vazado. Assim, se o devir não pode ser

representado plenamente, tal impossibilidade não decorre do caráter rarefeito da linguagem

em oposição à plenitude do decurso em que o corpo se engaja na escrita. Também o dia tem

um corpo fantasmático. A associação dos textos às datas só pode redundar, então, em um

“processo de substituição infinita”, uma vez que cada novo poema faz ver apenas o nada

que o envolve e em direção a que se dirige48.

Talvez o sintoma mais marcante da inscrição desse vazio que envolve os textos

datados seja a incongruência entre os versos e o conteúdo referido pelas datas nos diários

poéticos. Essa incompatibilidade pode ser observada por meio da leitura do trecho inicial de

um outro poema de Fio terra, aquele introduzido pela data 14 V 98. O texto é iniciado com

o advérbio “hoje”: “Hoje começo você [...]” (FREITAS FILHO, 2003, p. 565). O dêitico

parece remeter ao mesmo gesto enunciativo cujo tempo é revelado pela data à esquerda dos

versos. “Hoje” teria, então, seu conteúdo especificado pelo dia 14 de maio do ano de 1998.

Lido em comparação com a data, o advérbio parece apenas indicar um presente que jamais

poderá ser recuperado. Em outros termos, ele aponta o tempo, já passado, em que se deu a

enunciação.

Uma associação tão ligeira entre o advérbio temporal no verso e a data ao lado do

texto incorre, porém, no grave equívoco de amesquinhar a complexidade do problema do

tempo na obra literária. Em se tratando de um poema, o texto deve ser retomado tal qual em

cada leitura. Por meio da reconstrução da arquitetura do discurso, o gesto enunciativo é

recomposto a cada vez que o texto é lido, declamado ou imaginado. Graças à iteratividade

da trama discursiva, pode-se postular o caráter irredutível do tempo da obra a uma origem

48 Um outro ensaio de Agamben pode nos ajudar a compreender a consideração do tempo como fantasmagórico. Em “Tiempo e historia: crítica del instante y del continuo”, publicado em Infancia e historia, o filósofo critica a concepção ocidental do tempo, fundada em um instante pontual em fuga que não se pode apreender: “La experiencia occidental del tiempo está escindida en eternidad y tiempo lineal continuo. El punto de división mediante el cual se comunican es el instante como punto inextenso e inasible. A esa concepción que condiciona al fracaso todo intento de conquistar el tiempo se le debe oponer aquella según la cual el propio del placer, como dimensión original del hombre, no es el tiempo puntual y continuo ni la eternidad, sino la historia” (AGAMBEN, 2004, p. 154). [A experiência ocidental do tempo está cindida em eternidade e tempo linear contínuo. O ponto de divisão mediante o qual se comunicam é o instante como ponto extenso e inapreensível. A essa concepção que condiciona ao fracasso toda tentativa de conquistar o tempo, deve-se opor aquela segundo a qual o próprio do prazer, como dimensão original do homem, não é o tempo pontual e contínuo nem a eternidade, mas a história] Como o instante, puro intervalo que se recompõe a cada vez que se tenta capturá-lo, o dia é apenas um intervalo ou uma medida. Nesse sentido, não se pode identificar a essa outra concepção de tempo – o tempo do prazer, pleno e descontínuo – que o filósofo apresenta como a possibilidade de o homem estabelecer uma experiência da história.

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temporal definida e recuperável. Renascendo indefinidamente em tantas leituras quantas

sejam possíveis, o poema, como defende Maurice Blanchot, volta-se para o infinito:

Do que é sem presente, do que nem mesmo se apresenta como tendo sido, o caráter irremediável, diz: isso jamais aconteceu, jamais houve uma primeira vez; e, não obstante, isso recomeça, de novo, e de novo, ad infinitum. É sem fim, sem começo. É um futuro (BLANCHOT, 1987, p. 21).

Situado no espaço problemático da obra literária, o advérbio “hoje” no poema

datado instaura o tempo de um recomeço ilimitado. Uma vez que o texto pode ser relido

infinitas vezes, o tempo indicado pelo dêitico se encaminha para um presente não situado e

que tende ao sempre, próprio da permanência da obra.

O enraizamento no cotidiano, decorrente da aproximação à escrita do diário, não se

inscreve, portanto, por meio da submissão dos versos ao tempo determinado pelo registro

dos dias. Os poemas datados em Fio terra e em Numeral realizam uma dupla operação: ao

mesmo tempo, enraízam-se no cotidiano e libertam-se das limitações próprias a esse

enraizamento no diário.

Vemos, assim, como nos diários poéticos de Armando Freitas Filho, a incompletude

da inscrição do dia é intensificada devido ao espaço fronteiriço – entre a produção cotidiana

do diário e a escrita literária do poema – em que se situam essas obras. Discutimos a seguir

como essa posição limítrofe importa para o registro biográfico que é objeto deste ensaio.

3.2 ESCREVER A VIDA

“Doente de mim/ desde que a escrita/ juntou-se à vida” (idem, p. 563) – lemos no

primeiro poema datado de Fio terra. Nessa série, a inscrição da vida na obra não se

restringe ao procedimento de datação e se expande, como tema, para os versos. Desse

modo, tal como nos diários íntimos, instaura-se a expectativa da revelação da existência

cotidiana, reforçada pela inscrição dos dias ao lado dos versos.

Também Numeral associa vida e escrita. “Numerando até a morte”, verso do poema

20 (idem, 2006, p. 44), resume o modo do registro biográfico na série de poemas

numerados e datados de Armando Freitas Filho. O procedimento de numeração aponta para

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a manutenção da escrita enquanto a existência durar. A união entre vida e escrita se

estabelecendo também por meio da numeração, Numeral torna-se um diário particular.

Como nos diários íntimos, a escrita acompanha a passagem dos dias. Como nos livros de

contas, computa-se o acréscimo dos poemas – ou, ao revés, a diminuição do tempo de

existência e de expansão da obra.

A associação da escrita à vida em Fio terra e em Numeral não pode ser idêntica, no

entanto, àquela realizada nos diários íntimos ordinários. Híbridos, os diários poéticos

guardam características da prática da escrita cotidiana e ao mesmo tempo dela se afastam.

O desvio primeiro exercido pelas séries datadas em relação à práxis do diário incide

sobre a promessa – freqüentemente frustrada – do relato do dia-a-dia. Nos diários íntimos,

as datas, como marcas do transcurso da vida do autor, regem a produção de uma obra que

tem como fim inalcançável a preservação da vida daquele que escreve. De acordo com

Blanchot, o relato sincero dos acontecimentos comuns torna-se, assim, o limite da grafia da

vida no diário:

Escrever um diário íntimo é colocar-se momentaneamente sob a proteção dos dias comuns, colocar a escrita sob essa proteção, e é também proteger-se da escrita, submetendo-a à regularidade feliz que nos comprometemos a não ameaçar. O que se escreve se enraíza então, quer se queira, quer não, no cotidiano e na perspectiva que o cotidiano delimita. Os pensamentos mais remotos, mais aberrantes, são mantidos no círculo da vida cotidiana e não devem faltar com a verdade. Disso decorre que a sinceridade representa, para o diário, a exigência que ele deve atingir, mas não deve ultrapassar (BLANCHOT, 2005, p. 270).

O objetivo de narrar os acontecimentos que poderiam preencher o decurso indicado

pelas datas atua no sentido de conter a dispersão da escrita. Subjugada à referência a um

exterior que deve iluminar, a obra não apenas é movida pelo desejo – insaciável – de

recompor o dia. Ela é limitada por essa paixão. Presa “ao círculo da vida cotidiana”, a

escrita se volta para o relato dos pensamentos, encontros, lembranças e tudo o mais que

possa ajudar a dar conta da variedade dos dias e também de sua monotonia. Desse modo, a

escrita do diário íntimo é restringida tendo em vista o fim, equívoco, de guardar a memória

sincera da vida de quem escreve.

A sinceridade, transparente e superficial, impede que se lance sobre os dias a

sombra própria da escrita. A ficção de um discurso verdadeiro e capaz de revelar a vida que

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passa resulta, então, no mascaramento da fratura entre enunciação e enunciado, que

caracteriza qualquer texto uma vez redigido. Para que seu objetivo e limite seja o relato

sincero do dia-a-dia do autor, o diário íntimo se fundamenta em uma falácia: a da

identidade entre o “eu” e aquele que escreve49. Desse modo, esse tipo de obra realiza um

duplo engano: de um lado, o autor tem a ilusão de escrever, quando se fecha aos perigos da

escrita – ou, mais precisamente, à cisão instaurada por ela –; de outro, ele acredita guardar a

memória sincera de si, quando, apartado da obra, inscreve apenas um reflexo pouco nítido

ou mesmo caricato de sua vida.

Em Fio terra e em Numeral, diferentemente, cada um dos poemas constitui um

fragmento a contabilizar o vazio aberto pela fenda entre o sujeito e o texto. A obra, poética,

não tenta se proteger da escrita como fazem os diários íntimos ordinários, segundo

Blanchot. Ao contrário, “da folha branca de ninguém”, como afirma o poema datado de 13

IV 98 (FREITAS FILHO, ibidem, p. 565), o híbrido de diário e poesia atrai o íntimo para a

região impessoal em que a identidade individual se destrói. Afirma-se, assim, uma

impessoalidade que frustra qualquer expectativa de que a vida seja grafada de forma direta

e transparente na escrita diária.

Já não se trata, pois, de diários íntimos, ao menos não como aqueles comentados por

Blanchot em texto já citado. Tampouco é preciso afirmar que as séries de Armando Freitas

Filho estejam, absolutamente, apartadas desse tipo de escrita. Em caminho inverso e talvez

mais produtivo, podemos pensar que os híbridos produzidos pelo poeta carioca fazem ver o

íntimo ser sempre fraturado e atravessado pelo que lhe é exterior. Intimidade e

exterioridade são, portanto, indissociáveis ainda naqueles diários que não explicitam a

fenda sobre a qual se constituem. Em termos lacanianos, essa fenda é aberta pela inscrição

de uma “exterioridade íntima” ou “extimidade” (LACAN, 1988, p. 173). Reencontramos,

dessa forma, a vizinhança etimológica de “intimidade”, “intimação” e “temor” que,

segundo Catelli (apud Arfuch, 2005, p. 239), ilumina o imperativo de a introdução no afeto

ou no ânimo de alguém ser indissociável da violência advinda desse fora a cindir a

interioridade.

49 Retomamos brevemente a discussão sobre a fratura entre o sujeito e o livro na medida em que essa questão importa para a compreensão do registro biográfico em Fio terra e em Numeral. O problema foi mais longamente abordado nos itens “Assinar: reivindicar” e “Uma biografia impossível”, do segundo capítulo desta dissertação.

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Abrindo-se para a exigência de a pessoa alienar-se na arte, os diários de Armando

Freitas Filho assumem o problema sobre o qual se funda a escrita e, em especial, a escrita

literária. Segundo Foucault, a literatura se torna possível quando é abandonada a artificial

certeza de um sujeito pleno e anterior à linguagem. Ou seja, quando a escrita assume o

vazio que lhe move. Diz o pensador francês: “O ‘sujeito’ da literatura (o que fala nela e

aquele sobre o qual ela fala) não seria tanto a linguagem em sua positividade quanto o vazio

em que ela encontra seu espaço quando se enuncia na nudez do ‘eu falo’” (FOUCAULT,

2006b, p. 221).

O autor é, portanto, uma ausência afirmada em favor da dispersão da palavra. Quem

diz “eu falo” já não é o indivíduo responsável pelo discurso que produz, mas a fratura

aberta por sua falta no enunciado. Esse vazio é o que permite os sucessivos desdobramentos

engendrados por sujeitos dispersos, tornados dobras gramaticais em um texto que só os

pode acolher como aquilo que está alijado.

Somente por meio da consideração do problema instaurado pelas marcas do sujeito

na escrita, é possível deslocar-se, como fazem Fio terra e Numeral, do registro biográfico

comumente realizado nos diários íntimos. Nos poemas de Armando Freitas Filho, a

primeira pessoa discursiva, cuja referência poderia garantir a revelação da intimidade do

autor, tem uma função complexa. Já no primeiro numeral, dois versos indicam que o “eu”

não pode ter seu significado atestado facilmente: “Pulo de dois pés juntos/ para dentro de

mim, de você” (FREITAS FILHO, 2003, p. 35). Além de não podermos garantir que a

primeira pessoa implícita no verbo “pular” se identifique com o poeta, a ambigüidade

sintática no segundo verso intensifica o problema lançado pelos pronomes pessoais. Com

efeito, “de você” pode ser compreendido como um termo que complementa a ação de pular,

em um salto para o interior do eu e também de seu interlocutor. Nessa leitura, subsiste a

complexidade da referência dos pronomes. Essa dificuldade se adensa ainda mais se

entendemos que “de mim” funciona como aposto a “de você”. Nesse caso, os pronomes

têm o mesmo referente e marcam a cisão do sujeito enunciativo. Não há, pois, uma

identidade subjetiva a garantir que a escrita registra a vida daquele que escreve.

A identidade entre “mim” e “você” inscreve, ainda, o leitor no espaço vazio aberto

pelas marcas da subjetividade na obra. Uma vez que o mergulho na interioridade do eu é

um salto na exterioridade alheia, o sujeito que poderia assumir a segunda pessoa também se

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dispersa. O poema é endereçado. Seu destinatário não tem, no entanto, sua identidade

facilmente definida. Tal como o autor, o leitor só pode se infiltrar na obra como aquele cuja

individualidade está dela excluída50.

Desse modo, em vez de reduzir o registro biográfico ao relato comezinho dos fatos

transcorridos ao longo dos dias, as séries poéticas abrem um espaço mortuário a atrair autor

e leitores. Nos diários de Armando Freitas Filho, a mortificação própria à escrita se

multiplica, expandindo-se por versos e datas. De um lado, os poemas tornam evidente a

fratura entre a enunciação e o enunciado, grafando autor e leitor como o vazio a partir de

que a obra pode surgir. De outro, as datas se situam no espaço aberto por essa cisão,

constituindo-se como marcas do corpo – temporal – que enuncia. Por meio do rastro do

calendário, autor e leitores vêem grafada sua finitude. Tal inscrição da vida tendo em vista

a morte decorre do cálculo do tempo que ainda nos resta, estimulado pelo registro dos dias.

Em Numeral, surge um terceiro recurso mortificante: os números que intitulam os

textos. Deslocadas para o fim de cada poema, as datas constituem um suplemento à

contagem (dos textos e do tempo) nessa obra51. A associação do registro dos dias aos

algarismos-título torna a escrita um mecanismo movido pelo caráter infinito dos números

naturais e também pelo acréscimo potencialmente sem fim de novos dias ao calendário.

Essa associação faz, além disso, com que a série esteja sob a constante ameaça de

interrupção devido à finitude do corpo de autor e leitores.

50 Guio-me pelas considerações sobre a impessoalidade do leitor desenvolvidas por Maurice Blanchot em O espaço literário. Segundo o crítico, o leitor não afirma seu nome e apaga todos os nomes. Assim como o autor, ele não pode, portanto, perpetuar sua vida na obra. Nas palavras de Blanchot: “[...] toda a leitura em que a consideração do escritor parece desempenhar um papel tão grande implica num ataque contra ele que o anula para entregar a obra a si mesma, à sua presença anônima, à afirmação violenta, impessoal, que ela é. O próprio leitor é sempre profundamente anônimo é, não importa que leitor, único mas transparente” (BLANCHOT, 1987, p. 193). 51 Expulsas para o fim do poema, as datas parecem constituir apenas um adendo com pouca função em Numeral. Essa hipótese parece confirmada uma vez que o registro dos dias retoma o lugar relegado ao procedimento de datação, ao fim de cada poema, antes adotado por Armando Freitas Filho em Cabeça de homem, publicado em 1991. Segundo João Camillo Penna, na conferência “De como filosofar é aprender a morrer: os números em Armando”, as datas nesse livro restringem-se a dotar os poemas de uma “certidão de nascimento”. Na terceira página do texto manuscrito, lemos: “A data remete aqui à função clássica da datação, de origem jurídica, que vem da expressão medieval littera data (‘letra dada’), indicando ‘a data em que um ato foi outorgado, consignado’, como registro de conclusão, emissão, inauguração de um ato, no caso, do poema”. Nessa mesma conferência, o crítico aponta a particularidade do registro dos dias na série numerada. Segundo Camillo Penna, há uma diferença fundamental entre o procedimento de datação em Cabeça de homem e em Numeral: naquela obra, as datas cedem espaço à palavra; nesta, são grafadas por meio de números, entre os quais removem-se os pontos de modo a reforçar o vazio entre cada algarismo. Desse modo, o registro dos dias constitui um sintoma da fratura que ameaça a obra: a morte.

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Produzida tendo em vista o evento imprevisível da morte, a série numerada é, ao

mesmo tempo, aberta e provisória. De fato, é impossível determinar quando ou como o

corpo esbarrará com o evento que o fará interromper sua produção. Porque é singular, o

corpo convive com sua condição finita (ainda não morto) sem que se possa definir sua

potência de antemão. Porque indeterminado, o corpo pode reverter suas múltiplas (e talvez

infinitas) potencialidades em novos atos (enquanto vivo, o corpo pode ampliar sempre mais

um pouco suas possibilidades).

A série apropria-se, desse modo, daquela que é talvez a fratura maior na escrita de

um diário: guiada pela sucessão temporal, a obra está constantemente ameaçada de ser

interrompida. Uma vez que a expansão dos dias é ilimitada, somente é possível deter a

redação do diário por meio da morte do escritor ou de sua decisão de interromper a série de

textos datados, em uma ruptura que pode ser entendida como morte da escrita. As datas dão

a ver, ainda, a ameaça à vida do leitor, visto que também ele tem os dias contados.

A expansão da obra – provisoriamente infinita – leva os poemas numerados a

dispersarem-se por diferentes livros de Armando Freitas Filho. Esse procedimento constitui

uma forma, suplementar à numeração, de registro da indefinição do corpo. Segundo

Lejeune, a continuidade da escrita diária em um mesmo caderno é um modo de dar à escrita

– e à vida – a regularidade que se conhece ilusória. É, portanto, uma forma de exorcizar a

morte: « Ces gestes, qui étendent au-delà du cahier le désir qui l’a fait choisir, disent

quelque chose d’essentiel : la peur de la mort. L’assurance-vie dont je parlais n’est pas

seulement gage d’unité, mais de durée. Il faudrait pouvoir écrire sur un cahier qui n’ait pas

de fin » 52 (LEJEUNE, 2005c, p. 75).

A restrição da escrita a um mesmo suporte, um dos recursos por meio dos quais os

diários buscam burlar o perigo do acontecimento que os encerrará, é significativamente

abandonada após Fio terra. No diário poético, o medo da morte não constitui o afeto que se

deve superar ou recalcar. Ao contrário, assume-se a morte como o centro de atração da

série numerada, expandida indefinidamente tendo em vista seu fim imprevisível. Por meio

da descontinuidade das brochuras em que se publicam os poemas, Numeral faz lembrar o

caráter provisório da vida em vez de falseá-lo, como o fazem, não raras vezes, os diários

52 Esses gestos, que se estendem para além do caderno o desejo que o fez escolher, dizem qualquer coisa de essencial: o medo da morte. A garantia-vida de que eu falava não é apenas promessa de unidade, mas de duração. Seria preciso poder escrever sobre um caderno que não tivesse fim.

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íntimos ordinários. A descontinuidade do suporte remete, portanto, a esse vazio, que coloca

a dispersão da obra sempre sob perigo: “até” este livro, o corpo esteve vivo e a obra pôde se

expandir mais um pouco.

A dispersão dos poemas de Numeral permite-nos, além disso, reler a série datada

em Fio terra. Em uma espécie de contágio, a posteriori, do poder mortificante da série

aberta, os poemas datados no livro de 2000 podem ser compreendidos como o primeiro

resultado da adoção da escrita como registro da permanência provisória da vida. Também

os poemas dessa obra participam, portanto, da dispersão das marcas do corpo em face da

morte.

O silenciamento futuro, que faz parte da redação de qualquer diário, torna-se, dessa

forma, o centro motor das séries. Os poemas datados de Armando Freitas Filho apropriam-

se, portanto, apenas daqueles aspectos da escrita diária que favorecem a multiplicação das

fraturas no registro da vida. Nessas séries, abandona-se a instrumentalização da escrita,

comum nos diários íntimos, cujo fim é a preservação da vida daquele que diz “eu”53. Essa

“empresa de salvação” é malograda uma vez que se desejam salvar os acontecimentos do

dia por meio de uma escrita que necessariamente os transformará. Em caminho divergente

ao da escrita íntima ordinária, Numeral e Fio terra deixam evidente a falência de qualquer

tentativa de manter intacta a vida narrada do sujeito, que já não pode ser entendido como

exterior e anterior à obra.

A recusa à instrumentalização da escrita não impede, no entanto, que a produção das

séries participe da intervenção da obra na vida de seu autor. Ao mesmo tempo em que as

séries grafam – obliquamente – a existência, a escrita poética se inscreve na vida.

Produzidos dia a dia, os poemas acompanham o poeta. Ao fazê-lo, eles participam de um

processo de subjetivação.

Nos diários poéticos de Armando Freitas Filho, constitui-se o “eu” como “outro”

por meio da afirmação do sujeito como a fratura a partir de que a obra se produz54. Ao fazê-

53 Tal instrumentalização tem sua importância enfatizada por Blanchot por meio repetição da preposição “para” naquele ensaio, já citado, em que o crítico discute o relato da vida nos diários íntimos: “ [...] escreve-se para salvar a escrita, para salvar seu pequeno eu (as desforras que se tiram contra os outros, as maldades que se destilam) ou para salvar seu grande eu, dando-lhe um pouco de ar, e então se escreve para não se perder na pobreza dos dias ou, como Virginia Woolf, como Delacroix, para não se perder naquela prova que é a arte, que é a exigência sem limite da arte” (2005, p. 274). 54 A escrita é, com efeito, inseparável da constituição de si pelo redator de notas diárias, segundo Michel Foucault. No ensaio “A escrita de si”, ele analisa a importância do exercício constante de redação para a

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lo, as séries datadas antes afastam o escritor de si mesmo do que contribuem para sua

constituição como um indivíduo autônomo e coerente. A atração da vida para a

impessoalidade da obra é ainda mais coerciva, uma vez que a expansão das séries se

estabelece não apenas por meio da consideração do vazio decorrente do “eu falo”, mas

também graças à impossibilidade da grafia acabada de um corpo móvel, em deriva.

Assumindo como fim avançar sempre mais um pouco em direção a esse registro

impossível, a escrita diária faz com que a vida se torne a busca incessante por identificar o

tempo grafado na obra e aquele em que está imerso o corpo que enuncia. A vida passa,

então, a ser movida pela tarefa irrealizável da grafia da duração do processo enunciativo.

Nos termos de Blanchot, a existência do escritor se torna determinada pela indeterminação

da arte:

Temos até aqui duas respostas. Os versos são experiências, ligadas a uma abordagem viva, a um movimento que se concretiza na seriedade e no trabalho da vida. Para escrever um único verso, é necessário ter esgotado a vida. Depois, a outra resposta: para escrever um só verso, é preciso ter esgotado a vida na busca da arte. Essas duas respostas possuem em comum a idéia de que a arte é experiência, porque é uma pesquisa, não indeterminada, mas determinada por sua indeterminação, e que passa pela totalidade da vida, mesmo que pareça ignorar a vida (BLANCHOT, 1987, p. 85).

A arte é experiência uma vez que não se funda na certeza de seus fins, mas na

distância entre o produto realizado pelo artista e a obra, irrealizável, que subsiste apenas

como um desejo. Essa distância mobiliza a vida do escritor, que deve esgotá-la tendo em

vista a escrita de um único verso que pudesse identificar a obra, desejada, e o livro,

disciplina do corpo e da alma na cultura greco-romana. Como apontado por João Camillo Penna na conferência “De como filosofar é aprender a morrer: os números em Armando”, a produção dos hupomnêmata, analisados pelo filósofo francês, assemelha-se, em alguns aspectos, à infiltração da escrita na vida do poeta que redige as séries datadas. Nos hupomnêmata, com o objetivo de calar suas paixões, o redator de notas diárias compilava pensamentos esparsos e alguns trechos lidos ou ouvidos ao longo do dia. Ao substituir o olhar vigilante dos companheiros, a escrita atua na vida do copista solitário. Seu efeito disciplinador não decorre da narrativa dos fatos ocorridos no dia ou da revelação dos conteúdos ocultos da alma. Ao contrário, nos diz Foucault: “O movimento que eles procuram realizar é o inverso daquele: trata-se não de buscar o indizível, não de revelar o oculto, não de dizer o não-dito, mas de captar, pelo contrário, o já dito; reunir o que se pôde ouvir ou ler, e isso com uma finalidade que nada mais é que a constituição de si” (FOUCAULT, 2006d, p. 149). O processo de expansão da escrita para a vida fazia, assim, com que a interioridade derivasse da exterioridade da palavra alheia ou do caráter estrangeiro dado ao próprio discurso, que, já passado e diferido pela redação, tornava-se também palavra de um outro.

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publicado. A arte e a vida se tornam, então, uma experiência cuja deriva é atravessada pelo

caráter fantasmático da obra.

A partir da publicação da série datada em Fio terra e da inclusão dos poemas em

um mecanismo aberto em Numeral, a vida de Armando Freitas Filho é atraída para o

abismo de uma tarefa que tem como horizonte a grafia da própria experiência em que o

escritor se engaja – infinita e indefinidamente – devido à indeterminação da arte.

Multiplica-se o caráter processual e incerto da escrita, desse modo. Também a vida do leitor

é incorporada a essa incerteza, uma vez que as datas – e os números, na obra publicada a

partir de 2003 – iluminam o inacabamento de uma atividade leitora que se torna uma busca

nunca concluída. O registro biográfico mobiliza, pois, uma paixão difundida a partir da

obra – vida e arte se expandindo devido ao descompasso que não podem superar. Os modos

como tal desproporção participa dos poemas datados em Fio terra e em Numeral serão

analisados a seguir.

3.3 “SOB A CARGA DO CORPO”

« On peut tout faire excepté l’histoire de ce que l’on fait. » O trecho de Godard,

parte da epígrafe de Fio terra, explicita o desajuste cuja superação, impossível, move a

escrita da série datada. À esquerda, as datas compõem a narrativa, fragmentada, “do que se

faz”. Desse modo, os dias, empenhados na experiência de produção da obra, passam a

acompanhar os versos: estão ao seu lado e também no tecido dos poemas. No entanto, uma

vez que sua duração é aquilo que não se pode recompor, o dia só pode ser flagrado “em

suspenso”, como lemos no poema datado de 14 VI 98 (FREITAS FILHO, 2003, p. 572). O

que se registra tem, assim, sua deriva interrompida. Está, pois, diferido.

Transtornando aquilo que deseja grafar, o diário poético convoca o dia como um

objeto ausente. Silenciado, excluído, o dia só pode participar dos versos como o fantasma

daquele tempo, não capturado, que datas e palavras não puderam representar. A inscrição

negativa do dia está iluminada no poema de 30 VI 98, em que o amanhecer faz parte do

texto, mas apenas como o que se afirma exterior a ele: “E o que ficou de fora/ desta

velocidade:/ o amanhecer ao longe [...]” (idem, p. 574).

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A grafia problemática do tempo exterior aos versos e às datas permite-nos expandir

a hipótese levantada por Eduardo Guerreiro Losso, para quem o diário poético constitui

uma ode ao processo da escrita, independentemente de seu resultado. Sobre a série datada

em Fio terra, ele afirma:

Nesse caso, o “diário” pode ser, para ensaiar aqui uma hipótese, uma longa ‘ode’ aos dias vividos na atividade da escritura, no processo de produção (independente de um resultado), ‘ode’ que parte das várias facetas significativas reunidas na palavra ‘dia’: unidade de medida do tempo vivido em seu cotidiano e em sua existência; tempo em que a claridade reina no céu; intervalo de tempo do movimento circular que a Terra faz sobre si mesma, proporcionando uma variedade de paisagens e suas transformações passo a passo. A partir daí, toda a alquimia da vivência do dia, com seus tempos interrelacionados, prolifera (LOSSO, 2002, p. 18).

De fato, o texto, paralelo aos versos, formado pelas datas atrai o processo de

produção dos poemas para o interior da obra. Com efeito, as datas remetem à vivência do

dia e a seus “tempos interrelacionados”. No entanto, a “alquimia” que move a escrita do

diário poético tem sua fragilidade reafirmada constantemente. A ode ali realizada se dirige,

pois, à impossibilidade de representar a experiência da escrita e aos dias empenhados nessa

tarefa insensata. Nesse sentido, importa o resultado do processo de produção, entendido

como o resíduo da enunciação na obra, de que as datas são talvez o sintoma mais evidente.

Entre uma e outra data, o espaço em branco indicia a incompletude da grafia –

nunca plena – da temporalidade própria à experiência de enunciar. As marcas desse

processo – versos e datas – estão sempre em falta ou em excesso em relação à enunciação.

Diante desse descompasso, a escrita se constitui como busca. No poema de 15 IV 98, essa

caracterização da atividade poética se constrói por meio da insistência nos termos que

remetem à finalidade:

15 IV 98

Vários horizontes. O mais perto é o desta linha, onde a vida do verso, com todos os elementos atravessa as estações, atrás do fio que virou cinza, atrás do vento que desmanchou o risco de carvão – o rastro sem deixar cheiro de pólvora

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nem sinal da fumaça do fogo que tentava atear-se à voz e ao gráfico da letra escrita. Nada ficou ardendo na cabeça que se esforça para riscar outro fósforo que volte a acender a pista estreita do rastilho a palma aberta da explosão. (FREITAS FILHO, 2003, p. 565-6)

“Vários horizontes”. A frase nominal, no primeiro verso, introduz o espaço poético

como o de uma busca indeterminada pela amplidão e intensificada pela multiplicação das

alternativas. Embora próximo, o verso – ou antes, sua vida, processo, devir – participa do

caráter inalcançável da linha móvel do horizonte. Sua vitalidade decorre mesmo dessa

busca: em atraso – “atrás” –, o verso se produz. Somente na medida em que o texto

constitui o registro desse descompasso, o processo da escrita pode penetrar a linha do verso

ou, como lemos no poema, “atravessar todas as estações”.

Além disso, o intervalo, cujo vazio é aberto pela imagem do horizonte, renova-se

tendo em vista elementos – residuais, mínimos – que se aproximam da destruição. “Atrás

do fio que virou cinza”, a vida do verso busca reativar a violência de uma combustão que já

não deixa rastros. “Atrás do vento que desmanchou o risco de carvão”, tenta reencontrar

aquilo que poderia deflagrar a coincidência entre a abertura da explosão e o gráfico da letra

escrita. Em contraponto ao furor já extinto, resta apenas o “nada” e o desejo de reacender o

dispositivo do estouro. A busca não se restringe, pois, à tentativa de encontrar um objeto

imediatamente identificável. Seu alvo é um processo violento, criador na proporção em

que aniquila. Destrutivo, o objeto do desejo que move a escrita não pode ser capturado

jamais. A vida do verso – sua explosão – pode se renovar, desse modo.

Caracterizada como desejo insaciável, a produção do poema é um processo que se

deve recomeçar dia a dia. Cada linha resultante dessa vida que atravessa o enunciado é,

pois, apenas um resultado provisório, rascunhado. Ademais, a busca em que está investida a

escrita faz com que ela seja contaminada pelas características daquilo que – corpóreo, sujo

– lhe escapa. No poema de 14 IV 98, essa conspurcação parte da cisão do sujeito

enunciativo:

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14 IV 98

Hoje começo você. Sinto mais do que sei, o seu início. A ameaça de ser licença a frágil voz fortíssima, que não é fala mas linguagem de pulsos enluvados buscando a saída a luz única em vermelho úmido. Forçando a mão, estremunhada com resto e reflexo de bicho sobrevivendo, espichando-se: desemaranhada voz, figura de garatuja, estudo ainda sujo que, de repente, arrebata. (FREITAS FILHO, 2003, p. 565)

O verso “Hoje começo você”, já citado quando da discussão das relações entre o

tempo nos versos e nas datas, faz surgirem novos matizes na análise do registro biográfico

em Fio terra. Cindido entre a primeira e a segunda pessoa, cujos limites pouco conhece, o

sujeito engaja-se em um processo, perigoso, que não pode dominar por completo: “sente

mais do que sabe”. A busca por uma saída para o confinamento da voz torna-se, então, uma

experiência sensorial travada nos limites entre o próprio e o alheio.

A marcha de tal alheamento é dominada pelo corpo, que constitui talvez o mais

forte motor da fratura subjetiva em Fio terra. Como parte de um sujeito cindido, também o

organismo é representado de forma fragmentada por meio de suas partes e secreções:

pulsos, mão, sangue. “Em vermelho úmido”, o corpo força a passagem de modo a superar

uma fala em que não se reconhece. Essa abertura é encenada como luta que resulta confusa,

misto da presença corpórea e de seu velamento pela linguagem: escrita realizada por

“pulsos enluvados”.

A busca pela grafia impossível do processo da escrita – da vida do verso – é

também a tentativa – frágil e forçosa – de inscrever na obra o corpo engajado na

enunciação. Essa procura não se satisfaz nos versos que dela resultam. Aí o corpo pode

subsistir como “resto” e como “reflexo”, nunca como inscrição plena. Uma vez que as

marcas do corpo de quem escreve – e, por extensão, de quem lê – são sempre provisórias,

elas apontam para o que nesse corpo se moveu sem que fosse registrado55. A continuidade

55 Tal defasagem da representação em relação ao corpo indica a importância de pensarmos as aporias da figurativização corpórea. Embora tal discussão não seja o centro de nossas reflexões, é cara ao nosso ponto de vista. Resumimos, então, dois importantes argumentos sobre essa questão, desenvolvidos por Marcelo Diniz

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da luta tem o poder, assim, de lhe dar sobrevida por meio de uma experiência que se sabe

infindável. A violência da força exercida pelo corpo na linguagem – fortíssimo ainda que

debilmente grafado – tem como resultado o prolongamento de sua existência.

Em contraponto ao registro precário do corpo que se engaja em uma luta de aspecto

durativo, os últimos versos do poema introduzem a possibilidade da grafia de uma voz

liberta, “desemaranhada”. O tempo dessa libertação é o pontual e súbito de um

arrebatamento. Uma vez que repentino, o abalo não pode ter sua irrupção prevista. Além

disso, embora sua temporalidade se contraponha ao decurso da luta entre a voz corpórea e a

fala que alija o corpo, o arrebatamento só pode surgir em decorrência da escrita precária,

suja e rascunhada por meio da qual o corpo procura infiltrar-se na obra. A renovação da

tentativa de fazer voz e linguagem coincidirem tem, portanto, como horizonte a grafia

súbita do corpo em um texto sujo por seus caracteres.

O corpo da escrita está, pois, engajado em uma busca cujo prêmio é uma licença

extática. Por um lado, essa procura lhe dá sobrevida, uma vez que, sem saber quando

ocorrerá o evento arrebatador, ele é atraído para o infinito jogo da linguagem. Por outro

lado, ele adoece graças a ela – ou, antes, sua doença é constituída por essa busca mesma.

Com efeito, a associação de escrita e vida, colocada em questão desde o primeiro poema da

série datada em Fio terra, é indissociável da patologia deflagrada pelo desajuste entre o

devir, do corpo e dos dias, e o tempo da escrita. Os primeiros versos da série, já citados,

anunciam o adoecimento decorrente do descompasso entre o verso e sua vida:

5 IV 98

Doente de mim desde que a escrita juntou-se à vida, com as linhas da mão misturadas às do papel sob o peso da batida do pulso pegajoso. (FREITAS FILHO, 2003, p. 565)

em Elogio da instabilidade. Esses argumentos acompanham nossas considerações sobre o registro biográfico entendido como força não representativa – ou não apenas. Diniz aponta a defasagem existente entre o acabamento que a figura do corpo parece prometer e o corpo, que transborda sempre os limites da representação. A precariedade de qualquer figura do corpo se deve ao inacabamento deste. Um primeiro aspecto envolvido em tal inacabamento diz respeito ao caráter temporal do corpo, que o torna sempre parcial em relação à sua duração total. Um outro aspecto diz respeito às relações entre o corpo individual e o corpo social: ao mesmo tempo em que a cultura individualiza o corpo individual, dá a consciência de que ele é parcial, pois é uma peça substituível e anônima na sociedade. A partir dessa dupla finitude, poder-se-ia pensar o drama do corpo como fundado exclusivamente na limitação. O autor propõe, ao invés, que pensemos para além da limitação de nossa condição e observemos o corpo como processo e como potência.

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O pulso, aquela parte que constitui o corpo como um organismo-para-a-escrita, tem

suas qualidades representadas como sintomas da moléstia decorrente da junção entre a vida

e o livro. Pesado, pegajoso, o corpo está em excesso. Além disso, a pressão exercida por

sua densidade sobre o papel é ambiguamente representada por um peso que não se resume à

força física, mas diz respeito também aos efeitos de sentido de incômodo e de ônus,

atualizados naquele substantivo. A carga desse corpo que adere ao papel como um fardo

reaparece ainda no poema datado de 5 IV 98, naquela parte intitulada pela notação de um

momento desse dia56:

à tarde

Sob a carga do corpo – vagão de sangue correndo sobre os trilhos dos ossos – roda dormente, circular, sempre dentro do mesmo túnel sem variar de linha, de furo nem trocar a vista de cima. Dentadura ainda sem falha mordendo igual em toda arcada. Identidade é assim: itinerário frio, destituído de surpresa solavanco e serpente. Rolimãs de chão reto – cego na travessia – no corredor encravado na parede que limita o fluxo, os riscos de desprendimento e de sentido da composição. Nada a fazer com essa fidelidade senão sofrê-la, pois o desvio é desastre, série de engavetamentos quebra da barra do destino da direção única. (idem, p. 563)

Avança a constituição do corpo como agente das patologias subjetivas. Embora o

sujeito não seja grafado em primeira pessoa, a ausência de marcas enunciativas não o exclui

do espaço do poema. Ele aí se inscreve por meio da elipse no primeiro verso e, ao longo do

texto, por meio dos efeitos do peso de um organismo que o sobrecarrega. “Sempre dentro

do mesmo túnel”, “sem variar de linha, de furo”, o corpo é identificado a uma carga cujo

56 Devemos, em grande medida, as considerações aqui brevemente desenvolvidas sobre o poema citado à análise do mesmo texto realizada por João Camillo Penna em “De como filosofar é aprender a morrer: os números em Armando”, conferência já citada neste ensaio.

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transporte aprisiona o sujeito em uma maquinação repetitiva, fechada. A circularidade do

sangue e o sustentáculo dos ossos constituem-no, assim, como uma máquina ferroviária que

já não conduz a lugar algum, mas compulsivamente anda no mesmo lugar. “Sem trocar a

vista de cima”, a perspectiva do sujeito que olha também está aprisionada a uma repetição

sem falhas. O poema traz para seu seio, desse modo, aquilo contra que se dirige a escrita do

diário, segundo Lejeune. Lidando com a monotonia dos dias, a obra busca um desvio

possível para a “loucura de repetição” que constitui a vida. Ela logra apenas, porém,

inscrevê-la de forma trágica:

Redondant et répétitif (ce serait l’exemple même du récit singulatif, poussé jusqu’à la folie, incapable de résumer, de subsumer l’identique sous un concept, etc., pris dans cette folie de répétition qu’est la vie elle-même) – (le fascinant du journal intime, c’est qu’il répète dans l’écriture ce dont justement l’écriture devrait nous sauver – il est par essence tragique)57 (LEJEUNE, 2005b, p. 66).

Visto que os poemas são produzidos sob a carga de um corpo imobilizado “como os

rolimãs de chão reto”, a expansão da série datada parece somente adensar a incapacidade de

a obra movimentar a vida. A impossibilidade de o diário poético salvar a existência de sua

contingência e da compulsão do avanço dos dias “destituídos de surpresa” é ainda mais

pungente visto que, no poema, a identidade do sujeito é também pesarosa. Traçando um

“itinerário frio”, ela constitui mais um aspecto da maquinação incômoda, cuja engrenagem

caminha sem a possibilidade de desvios ou solavancos. A identidade não constitui,

portanto, um recurso simples para a perpetuação da vida, como se poderia esperar naqueles

diários íntimos fundados na sinceridade de um relato que desconsidera a exclusão da

mobilidade da existência. Ela é assumida como novo traço do aprisionamento – da obra e

do sujeito –, como lemos no seguinte trecho: “Nada a fazer com essa fidelidade/ senão

sofrê-la”.

A carga do corpo e seu trilho único parecem, desse modo, constituir o registro

exclusivo de uma vida apresentada como retorno do mesmo. A possibilidade da falha no

trajeto está anunciada, contudo, nesse mesmo poema. O corpo atribui identidade a quem ele

57 Redundante e repetitivo (esse seria o exemplo mesmo da narrativa singular, impelida até a loucura, incapaz de resumir, de subsumir a identidade sob um conceito, etc., presa nessa loucura de repetição que é a vida mesma) – (o fascinante do diário íntimo é que ele repete na escrita justamente aquilo de que a escrita deveria nos salvar – ele é por essência trágico).

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conduz em sua rota dormente apenas na medida em que o torna alheio a si mesmo. Levado

por essa condução irrefreável, o sujeito conhece a possibilidade do fluxo e do

desprendimento, freados precariamente – o advérbio “ainda” remetendo à intrusão de um

futuro em que o círculo se rompe e é vencido pelo desastre.

Ao longo da série datada em Fio terra, a violência desse acontecimento súbito, que

fratura a direção única da vida e da escrita, é identificada à interrupção decorrente da morte.

Diante desse evento limite, o fluxo é apresentado sob um duplo prisma: de um lado, é

aquilo que se busca, pois constitui o modo único de o sujeito se deparar com a explosão ou

o arrebatamento encenados nos outros poemas aqui brevemente analisados; de outro, é

aquilo que se deve evitar, pois redunda em uma mortificação gradual cujo termo é a

paralisia definitiva. “Diminuindo dia a dia a chama/ que mais queima do que exalta.” –

lemos no poema de 11 V 98 (idem, p. 567-8) –, o fogo da morte contrapõe-se à explosão de

vida cuja centelha move a escrita do poema.

Iluminam-se, assim, dois efeitos de sentido subsumidos no título do livro. O fio ali

presente é frágil e sua ruptura, iminente. Além disso, a terra, lugar do ocultamento e da

decomposição dos cadáveres, define a direção para que se move o corpo patológico e em

excesso, que atravessa a série de poemas. No texto situado na noite de 24 V 98, esse

substantivo, repetido em um mesmo verso, representa o espaço de atração irresistível de um

organismo gradativamente extenuado: “[...] Cada vez mais mortal/ descendo o dia-a-dia/

anestesiado da escada/ até o terraço de terra [...]” (idem, p. 570).

O fio que conduz o sujeito e pelo qual ele desce até a terra em que se irá sepultar é o

da passagem dos dias. A ruptura a ser instaurada pelo evento da morte reverbera, pois, na

interrupção do acréscimo das datas, prenunciada pelo espaço em branco entre cada título

dos poemas. Como rastros de um corpo que enuncia, as datas somadas a cada texto têm

como reverso de seu acréscimo infinito a aproximação do momento da morte. O fio é

consumido, portanto, no trânsito em que está empenhado.

A obra parece, assim, constituir-se como o registro desesperado de uma paralisia

inevitável. Não podemos ignorar, todavia, que o título preserva o efeito de sentido de

movimento, propiciado pela condução de energia realizada pelo aparato elétrico convocado

naquela expressão. No “fio terra”, a escuridão do subterrâneo e a luminosidade da

superfície comunicam-se. Também o “terraço de terra”, para que se dirige o corpo

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mortificado, situa-se entre a abertura dos espaços descobertos nos edifícios e a interioridade

propiciada pelo volume oculto no solo.

No ar em que se mostra a vida e na terra em que ela se oculta, a vitalidade se revela

indissociável da mortificação, tantas vezes afirmada nos poemas. No texto rubricado com a

data 20 V 98, a oposição espacial entre baixo e alto, morte e vida, inverte-se. A máscara

mortuária da estátua é vestida agora por um espaço aberto cuja vida é apenas ilusão:

20 V 98

A estátua do céu acima simula algumas cenas: mas o que para ela é ilusão de ventania, música imaginária gesto parado no horizonte, ocorre nas árvores ao lado, nos chafarizes repuxados para fora, à tona da terra mostrando o esforço das fontes desde as raízes, ascendendo até as copas, molhadas de verde que se abrem sobre o azul, ao sol. (idem, p. 569)

O poema está cindido. Nos dois primeiros versos, apresenta-se a morte situada na

amplidão do horizonte, onde reside apenas a fixidez estatuária. Aí, o movimento das

pequenas coisas não se dá a ver: é “gesto parado”. À paralisia observada ao longe, opõe-se

a vivacidade notada apenas quando se aproxima o olhar. Sob a falsa animação do simulacro

das cenas “céu acima”, delineiam-se os contornos dos objetos e revela-se a agitação da vida

se realizando a partir daquele mesmo espaço – a terra e seu ventre – apresentado

constantemente como receptáculo do corpo que morre. O solo torna-se, então, o cenário “do

esforço das fontes” e aquilo que se dá a ver – árvores ou chafarizes –, o fruto de uma terra

em que morte e vida são contíguas.

Inverte-se, desse modo, a direção preferencial do trânsito realizado pelo “fio terra”.

O caminho já não se restringe àquele da vida animada pelo ar em direção à fixidez

cadavérica a ser oculta pela terra. Na vizinhança da destruição realizada pela morte, no

solo, também se produz uma vivacidade que avança para a abertura do céu. A reversão do

movimento nos faz ver a mobilização da vida por aquilo que a extingue – e vice-versa. O

abismo da morte já não é apenas o termo inapreensível da existência, mas a consumação

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que a atravessa – o acréscimo dos dias se tecendo sobre o dia inexorável da morte, como

quer Maurice Blanchot em A parte do fogo:

[...] a existência lhes [aos homens] dá medo, não em razão da morte, que poderia lhe pôr um termo, mas porque exclui a morte, porque sob a morte está ainda ali, presença no fundo da ausência, dia inexorável sobre o qual nascem e morrem todos os dias. E morrer, certamente, é nossa preocupação. Mas por quê? Porque nós, que morremos, deixamos justamente o mundo e a morte. Esse é o paradoxo da hora derradeira. (BLANCHOT, 1997, p. 323).

A preocupação com a morte não se identifica à tentativa de recalcar a presença

constante da escuridão ou ocultar sua presença sob a luz dos dias. Ao contrário, esse afeto

ilumina a presença do abismo no seio da existência. A manutenção da vida é entendida,

então, como o prolongamento da possibilidade de morrer, exclusiva daqueles que ainda não

encontraram seu termo. Na série datada em Fio terra, essa preocupação move a

engrenagem poética – vida e obra se tecendo como extensão do fio. Por isso,

significativamente, o último poema da série datada afirma o adiamento desse “limite

último”:

5 VII 98

Madrugada crua que fura o que nem o chumaço da manhã cobre. De passagem, na tarde, antes da noite durante a cidade, o dia incurável e único me cerca e delineia até o limite último e justo. (idem, p. 576)

O poema chama atenção para a escuridão presente sob a luz dos dias: madrugada

inexorável que a cobertura precária da luz da manhã não pode encobrir. Essa sombra

infiltrada participa do caráter passageiro do trajeto realizado pelo sujeito. “De passagem”,

“antes da noite”, “durante”, “até” são as expressões da transitoriedade afirmada no fim do

diário poético. A série parece se encerrar, assim, pela antevisão da falência da vida, como a

corroborar a precariedade do registro dos dias afirmada na epígrafe da obra. Há, porém,

uma outra possibilidade de leitura. Tal como a impossibilidade da grafia do decurso do dia

impulsiona a busca em que se engaja a escrita, o limite da morte torna-se o motor da vida e

da obra: “até” reenunciado a cada dia. Esse “dia incurável” se estenderá na série datada

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publicada por Armando Freitas Filho a partir de 2003. Seguimos, a seguir, a duração do

correr desse fio inacabado.

3.4 “NUMERANDO ATÉ A MORTE”

Desde a epígrafe, Numeral dá a conhecer o procedimento da escrita a partir da

finitude do corpo: “Enumero. A convidada enumera como num matadouro”. O trecho, de

Ana Cristina Cesar, funciona como espécie de anúncio da engrenagem serial, multiplicada

até que a morte chegue. Diante desse limite inapreensível – nunca se sabe qual número será

o último –, poder-se-ia esperar um texto confessional, à maneira dos tantos volumes de

memórias redigidos por aqueles que sentem a iminência da própria morte. Não é esse o tom

em Numeral, porém. A enumeração, como num matadouro, é gesto de violência. Menos

que forma de organizar e categorizar fatos exteriores à linguagem, os números são meios de

intensificar a indeterminação própria a uma escrita dirigida pela temporalidade do corpo – o

infinito é o limite utópico da numeração iniciada em 1999.

A epígrafe explicita, assim, a confusão entre a finitude de quem escreve e o

potencial infinito da escrita. A finitude anunciada é reafirmada ao longo dos poemas: não

só o corpo é finito como a própria escrita é flagrada na impossibilidade de retratar o sujeito.

Já no primeiro número, caracteriza-se a falência da representação: “O pensamento à mão/

mas não engrena”. A escrita é figurativizada como espécie de máquina falha. Paralisada,

lenta, grosseira, desistente, a escrita maquínica reaparece em muitos outros números. Em

sua incapacidade de dizer, esse mecanismo é captado no momento da busca do real, porém

sempre em defasagem em relação a este. O poema 26 é esclarecedor desse desejo abortado

pelo equívoco e pela finitude:

[...] O que faltou foi velocidade na datilografia, acurácia, para captar o que sub-reptício se afastava e mesmo se gritante, os dedos gagos não conseguiam, nas teclas, articular as palavras, o que se exprimia, próximo mas sempre além de todo mecanismo que embora igual aos outros, desistia. (id., 2003, p. 47)

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A máquina de escrever, gaga, falha em representar o que está sempre além de todo

mecanismo – o que, veloz, pode ser vislumbrado apenas em fuga. Tal mobilidade, do real e

do sujeito, aparece como tema em Numeral: tematiza-se a incompletude da figuração

possível – “não há espelho/ que me fixe por inteiro”, lemos no poema 34 – e a falta de

nitidez devido ao excesso de velocidade, como no numeral 13:

[...] O que esvoaça, talvez, não tem cor, mas lugar: está atrás. Camuflado pela intrínseca velocidade – feito por ela – não deixa que uma definição, mesmo que sumária, se estabeleça. [...] (idem, ibidem, p. 41)

A indefinição aparece não apenas como tema. Diante da mobilidade do real e do

sentido, o caráter processual da série torna a escrita uma engrenagem movida pela urgência

ante a transformação. A fluidez e a indeterminação se desdobram no próprio mecanismo de

numeração até a morte – os poemas acrescentados até um fim desconhecido atestando a

constante mudança do corpo. Se este é flagrado em processo – enquanto vivo –, a escrita,

contaminada pelas características corporais, dispersa-se na tentativa de lidar com a duração

própria ao movente.

Diferentemente do registro da vida em face da morte realizado nos poemas datados

em Fio terra, a grafia da duração do corpo engajado na enunciação assume o caráter

infinito de tal experiência. Por meio da constituição do registro biográfico como uma obra

em movimento, podemos observar a particularidade da associação de vida e obra na série

numerada. Esse desvio na grafia da vida na poesia de Armando Freitas Filho tem seu

movimento definido por João Camillo Penna no prefácio a Raro mar:

Se escrever passa a ser consubstancial a contar, e a forma rítmica, uma aritmética, então o poema enquanto forma do tempo torna-se o que sempre foi, apenas agora mais nitidamente: ritmo, uma nova poética a cada dia, escrever sendo tão-somente uma poética, isto é, a experiência mesma da vida como aliteração da vida. A partir de então nos depararíamos, quem sabe, não mais com dois signos, poesia e vida, como quer Sebastião Uchoa Leite, mas com um único signo, vida ou poema

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(vita sive poema, diríamos na língua de Espinosa), vazado dos dois lados em um mesmo signo numérico (PENNA, 2006, p. 9-10).

A novidade surgida com Numeral é indicada, no discurso do crítico, pela expressão

“não mais”. A partir do trecho, podemos traçar as linhas do trajeto, sinuoso, da junção de

vida e escrita na obra de Armando Freitas Filho. Lembramos que o texto de Sebastião

Uchoa Leite mencionado por João Camillo Penna situa o livro longa vida, de 1982, como o

ponto a partir de que os signos vida e poesia se interligam58. Encontramos talvez, assim, a

origem da doença iniciada “desde que a escrita/ juntou-se à vida”, como lemos no primeiro

poema de Fio terra. Essa fusão patológica estabelecia-se, até a inauguração da série

numerada, sob a forma de um descompasso da escrita em direção à vida que, fluida, não se

deixava representar. Desse modo, escrita e vida ficavam interligadas, mas ainda não unidas.

Em Numeral, a escrita é infiltrada pelas características do corpo – finito, ancorado no

tempo – e este pelas qualidades da escrita – infinita, em deriva. Vida e escrita se unem,

dessa forma.

Uma vez que a escrita se desdobra em íntima relação com a finitude do corpo,

poder-se-ia pensar em um vínculo entre vida e linguagem baseado exclusivamente na

limitação. A morte como termo inevitável da atividade do eu, escrever e numerar a duração

da vida seria uma forma de marcar a insuficiência de nossa condição. O término da

dispersão da linguagem, porém, se dará sempre no futuro: a escrita esbarrará com a finitude

do corpo. Esse fim anunciado, enquanto não chega, faz o corpo produzir, inscrever-se na

linguagem.

Desse modo, quando chamamos atenção para a abertura da série datada em

Numeral, a escrita já não é mais observada em sua impossibilidade (tema constante), mas

em seu poder. A falência é tematizada do ponto de vista do sujeito enunciativo: aquele que

escreve retrata sua sensação de que a linguagem não pode dar conta de representar seu

corpo e o real, ambos em constante transformação. Do ponto de vista da linguagem, não há,

porém, falência, há potência dispersiva e produtora – escrita construída à maneira dos

puxados acrescidos às casas expandidas59.

58 Uma passagem do texto de Uchoa Leite, esclarecedora do registro biográfico realizado a partir de longa vida, está citada no quarto item do ensaio “Uma biografia impossível? (3x4)”. 59 Blanchot, em O espaço literário, enfatiza o afeto do escritor diante do que escreve: apartado da obra, o autor sente o livro como vazio. Acreditando não ter realizado ainda a obra que deve redigir, o escritor

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O efeito de sentido de falha e falta, associado à temática constante da falência da

representação, é tensionado, assim, pelo procedimento de enumeração. A linguagem se

dispersa para além da limitação ou justamente devido à sua defasagem em relação à fluidez

do real que quer captar. O limite, reafirmado a cada novo número, não é, pois, apenas

limitação, mas forma de fazer avançar a série, seu corpo não delimitável, em face dessa

linha que se move mais um pouco a cada numeral – vida se inscrevendo na escrita a partir

desta fronteira inapreensível, a morte. A singularidade e a indeterminação do corpo deixam,

assim, marcas na linguagem, ao mesmo tempo adensando seu potencial infinito e

anunciando seu silenciamento.

A partir desse desequilíbrio entre o infinito da linguagem e a finitude da vida, o

corpo grafa-se. Em um exercício contínuo, a escrita se expande graças a essa desproporção,

como vemos em um trecho do poema 32:

[...] Vazar, sair da fila e entrar no perfil fugitivo e fluido do desequilíbrio, do exercício contínuo e fazer um puxado, a partir da planta da árvore insuportável, com o vento ausente (idem, 2006, p. 65).

Além disso, a própria caracterização do sujeito por meio do afeto da angústia ante a

incapacidade de dizer tem como revés o desejo de escrever, surgido talvez daquela

incapacidade. A limitação move, pois, sua própria transgressão – anseio, no entanto, nunca

saciado, visto que a superação do limite é apenas “possibilidade impossível”, como nos diz

o numeral 60:

[...] Coisa alguma. Nunca será possível dizer alguma coisa. Mas existe o ensaio o anseio de dizê-la, mesmo assim. Então se pode pensar como tirá-la da latência, para ser dita.

recomeça seu trabalho e escrever torna-se, dessa forma, o interminável (cada novo texto só fará renovar a certeza de que a obra não está terminada). Do ponto de vista da obra, ao invés, não há falência: seu poder reside em ser, em afirmar seu poder como linguagem. Nas palavras de Blanchot (1987, p. 12), “a obra – a obra de arte, a obra literária – não é acabada nem inacabada: ela é. O que ela nos diz é exclusivamente isso: que é – e nada mais”.

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Parada nesse impasse, indizível. Inarredável, o desejo de encontrar a possibilidade impossível permanece, em paradoxo, embora não se saiba o que se tem para dizer de tão palpitante: se não é um senão, se não é nada, se não é um nó. (id., ibid., p. 80)

Nessa tensão entre o tema da falência e o procedimento de dispersão, o percurso

temático do erro se imbrica ao percurso da expansão. Corrigir, emendar, errar. O erro é

tomado em suas duas acepções: ao mesmo tempo, engano e dispersão. Equívoca, a escrita

se torna uma máquina falha que deve continuar seu trabalho compulsivo, uma vez que o

sentido exato foge sempre. Mais profundamente, o sentido apenas se constrói quando

equívoco, cabendo à escrita adensar o erro, multiplicá-lo. A série se expande, dessa

maneira, como sucessão de erratas, tal qual desenhado no numeral 13:

[...] Admite, apenas, sucessivas erratas que superpondo-se assim, não chegam a corrigir, a acrescentar fôlego no comprimento e sentido das linhas e nada sopra o espaço entrelinhado não dando tempo e teto para que o vôo levante. (id., 2003, p. 41)

O tema do erro intensifica as temáticas da fluidez, da incompletude e da falta de

nitidez: uma vez que a escrita é uma sucessão de erros e de correções, nunca nos é dado a

ver um retrato nítido e completo do sujeito. Já que esse tema ecoa na dispersão da série, a

escrita errática de Numeral flagra o corpo em processo, inacabado – não representável. Que

a série não constrói uma figura acabada e orgânica do corpo é explicitado no poema 52:

[...] Esses filtros não dão cabo das mil fontes em que a imaginação se irriga – ri, se irrita da canhestra captação que não define de onde veio, por que veia a figura que ainda não se firmou aqui: flor, fagulha, cisne, clarim?

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(idem, 2006, p. 75)

Entendida como erro, a escrita problematiza a possibilidade de representação de um

corpo em transformação ininterrupta. Vemos, assim, o quão distante estamos da concepção

de biografia como a construção das sucessivas figuras do sujeito ao longo de sua história.

Vemos também como, mesmo que infigurável, o corpo se inscreve na escrita: seu

inacabamento homologa-se ao inacabamento da linguagem e o corpo se deixa impregnar

pela caracterização da escrita como errante60. O poema 37 é esclarecedor do cruzamento

das qualidades atribuídas à linguagem e ao corpo, ambos entendidos como rascunho a ser

alterado, em processo constante:

Dia adverso, desde o dado mais íntimo do corpo, que se corrige, e cada vez mais é rascunho, sob os riscos de tantas emendas até o que passa longínquo, público e impresso também sujeito a alterações, a erratas iguais a esses superpostos pensamentos. (idem, ibidem, p. 67)

Afirma-se, desse modo, a potencialidade indefinível do corpo por meio dos poemas

em série aberta. Não só a linguagem pode indefinidamente se expandir, como o corpo tem

seu poder de transformação enfatizado pela escrita. Se a escrita se impregna da finitude do

escritor (por meio do tema da incapacidade de representar um corpo ainda em processo),

este também se contagia pelo poder dispersivo da linguagem por meio do mecanismo serial

nos poemas numerados.

Há, assim, uma grafia do corpo em Numeral estabelecida a partir do contágio pela

escrita das características do corpo e vice-versa. A própria caracterização da escrita e do

corpo como gestos de correção e errata é um interessante modo de observarmos as marcas

60 No ensaio “Descrever a máquina”, Marcelo Diniz (2006) chama atenção para o poder do erro na escrita de Armando Freitas Filho: “Longe da eliminação do corpóreo, passar a limpo é sujar o inorgânico maquínico com o que o corpo secreta como uma espécie de emanação, fantasma, figura que é convocada menos pelo seu aspecto icônico que pelo indicial, contíguo, sudorese, mancha, corpo extensivo impresso na máquina e através dela” (p. 133). Ou: “Passar a limpo é transferir, imprimir o corpo, desdobramento de extensão. É sob essa perspectiva que se nos oferece a figura do corpo menos como fisiologia, organicidade definida pelas funções constitutivas, que como potência, experiência de seus extremos, monstro” (p. 114). Essas citações são preciosas ao situar a relação do corpo e da escrita no espaço de tensão entre a figura e o infigurável. Confirmam, assim, nossa hipótese de que podemos pensar o registro biográfico em Numeral menos pela construção de ícones do sujeito, mas principalmente pelos índices do seu corpo presente na série de poemas.

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deixadas pelo corpo na escrita. Entre o retorno próprio ao ato de corrigir e o avanço oriundo

da errata, estabelece-se uma oposição temática que reproduz o ritmo do corpo, movido pela

contenção e pela expansão quando respiramos.

Essa oposição de temas se desdobra em um procedimento de repetição e avanço que

também recoloca o ritmo respiratório como mecanismo de escrita em Numeral. De um

lado, o acréscimo de novos poemas leva à expansão e ao desenvolvimento do discurso. De

outro, a repetição, o retorno constante (freqüentemente tematizados nos poemas) fazem-no

concentrar-se sobre si mesmo:

Escrever o pensamento à mão. Reescrever passando a limpo passando o pente grosso, riscar rabiscar na entrelinha, copiar segurando a cabeça, pelos cabelos batendo à máquina, passando o pente fino furioso, corrigindo, suando e ouvindo o tempo da respiração. Depois, digitar sem dor, apagando absolutamente o erro, errar. (idem, 2003, p. 43)

O poema 19 evidencia tal homologia entre o ritmo da escrita e o ritmo respiratório.

Próxima ao tempo da respiração, a escrita é caracterizada como retorno, correção furiosa.

Tal qual no corpo, o movimento não se faz apenas de contenção – as sucessivas retomadas

fazendo surgir novas versões, em um movimento expansivo, errante. No poema, a própria

repetição de “passar o pente” ilumina as relações complexas entre o procedimento de conter

e o de expandir o discurso: o avanço se estabelece a partir do retorno e da sutil

transformação advinda dessa retomada, tal qual na respiração, em que o movimento

expansivo do corpo só se pode estabelecer a partir da retenção.

O contraponto entre a expansão e a contenção, encenada nos poemas, homologa-se

à oposição entre o tempo cronológico, cuja sucessão é delineada pelas datas, e o tempo

rítmico, baseado em identidades e retornos na disposição dos elementos expressivos dos

versos. Do equilíbrio entre essas temporalidades divergentes, decorrem as possibilidades de

construção e apreensão do sentido, segundo as propostas do semioticista Zilberberg

resumidas por Tatit:

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Se o tempo cronológico representa a sucessividade descontínua, o antes e o depois em progressão infinita, o tempo rítmico, que o acompanha pari passu representa a instauração da lei das identidades, das alternâncias, numa palavra, da continuidade que neutraliza, até certo ponto, as referências do progresso (TATIT, 1997, p. 21).

Em Numeral, o desdobramento da série acompanha a sucessão do tempo

cronológico, do dia-a-dia do corpo. A instauração de identidades, de repetições funciona,

por um lado, como espécie de luta do corpo para que não haja a dispersão total do sentido

em um contínuo sem freios. A repetição, por outro lado, ameaça lançar a escrita em um

espaço sem diferenças – sem sentido, portanto. Entre a expansão e a contenção, o corpo e a

escrita buscam um andamento em que o sobressalto permita ainda que se produza o sentido,

como lemos no poema 45:

[...] Não se escreve nada na máquina deste dia estatístico, indiferenciado que se produz em série embora o gráfico se sobressalte aqui e ali. (FREITAS FILHO, 2006, p. 71).

A extensão da escrita e a dobra da linguagem sobre si mesma configuram-se como

índices do contágio do corpo e da escrita. A partir das marcas deixadas pelo corpo por meio

do ritmo, o registro biográfico em Numeral pode ter seu movimento precisado. Anunciado

como tensão entre a finitude do corpo e a dispersão da escrita, a grafia da vida nessa série

se desenha como luta contra a contenção e a paralisia (retenção em um texto final que não

mais se corrige) por meio do poder expansivo da série:

Em vez de ver, vencer a paisagem articulando a mão com o esforço de torquês, para abrir os registros agarrados pela ferrugem, os nexos os canos que já perderam a luz para recuperar, além ou aquém da superfície, a circulação de todo o sistema de ramais esquecidos por medo, corrosão e amparado em imagem mais branda abrir, então, o leque, inteiro e devagar. (id., 2006, p. 73)

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O poema 48 estabelece uma interessante oposição entre paralisia e circulação. O

movimento do poema, de um máximo de contenção (paralisia caracterizada como escuridão

e ferrugem) até um máximo de circulação (todos os ramais livres), ajuda-nos a

compreender o sobrepujar da força dispersiva da série sobre o poder retentivo das

retomadas. Após a luta, nos diz o poema, a abertura branda do leque. A grafia da finitude

do corpo não se apresenta, portanto, como narrativa da perda, disforia. Ao contrário, contra

a finitude, dramatiza-se um confronto vitorioso que permite a expansão.

Uma vez que se enumera até a morte, a vitória dispersiva da série é sempre

provisória, no entanto. Por isso, o limite da morte faz o corpo e a escrita se empenharem em

um esforço constante:

[...] Agora, a corda encurta na mão de quem a segura, no pulso do corpo sem o calço do desejo expresso na contagem da estrofe inicial. Mas que continua, puro impulso cabo-de-guerra, vida e morte que vai puxar até partir, em cima do que pode ser mina ou fonte. (id., ibid., p. 81)

A enumeração, retroativa, parece indicar uma escrita pautada pela falta. De fato, a

primeira estrofe do trecho do poema 62 reproduzido acima enfatiza a ausência – “sem” o

calço do desejo, “a corda encurta”: há menos um dia de vida. Em oposição à falta antes

caracterizada, a conjunção adversativa na estrofe seguinte instaura um efeito de sentido

afirmativo. Ante a iminência da morte, o corpo se empenha violentamente (em “cabo-de-

guerra”) por perseverar. A dispersão das marcas do corpo pela série se caracteriza, assim,

como explosão, violência produtora. Enquanto não houver vencedores na disputa entre vida

e morte, o impulso da escrita continua a se fazer. A abertura da série explicita, dessa forma,

o caráter infinito e compulsivo que mobiliza, a partir do vazio que lhe é indissociável, toda

obra de linguagem, como defende Foucault no ensaio “A linguagem ao infinito”:

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[...] mas o limite da morte abre diante da linguagem, ou melhor, nela, um espaço infinito; diante da iminência da morte, ela prossegue em uma pressa extrema, mas também recomeça, narra para si mesma, descobre o relato do relato e essa articulação que poderia não terminar nunca. A linguagem, sobre a linha da morte, se reflete: ela encontra nela um espelho; e para deter essa morte que vai detê-la não há senão um poder: o de fazer nascer em si mesma sua própria imagem em um jogo de espelhos que não tem limites (FOUCAULT, 2006a, p. 48).

Fluxo contínuo, inacabados, escrita e corpo são flagrados no intervalo do confronto

entre a manutenção da vida (e da escrita) e a finitude do corpo (e da série). Como esse

intervalo não tem um termo definido, o por enquanto do corpo lança a escrita no esforço

infindável de manter a linguagem se produzindo. Dessa forma, a iminência da morte impõe

ao escritor um esforço que tende ao infinito:

Escrever é riscar o fósforo e sob seu pequeno clarão dar asas ao ar – distância, destino segurando a chama contra a desatenção do vento, mantendo a luz acesa, mesmo que o pensamento pisque, até que os dedos se queimem. (id., 2003, p. 45)

O procedimento da série explicita-se como tema no numeral 23. O método da

expansão reverte-se em figura: clarão que dá asas ao ar. Essa dispersão é observada sob o

prisma do desejo de prolongar a chama. Escrever tem como metáfora, assim, a manutenção

da distância e da duração sob o afeto do cuidado. Inacabada, a escrita sem um fim definível

tem como correlato um corpo que se grafa no limite e cuja duração se tenta também

prolongar por meio da escrita: “parar de escrever pode ser morrer”, afirma o poema 44.

Ganhar sobrevida identifica-se, pois, ao adiamento do fim do verso. É preciso

manter o vazio encontrado ao final de cada unidade rítmica, sem o qual o poema não pode

continuar a se fazer. Para utilizar a terminologia de Agamben em “O fim do poema”, é

preciso reinstaurar a possibilidade do enjambement ao término de cada texto. Nesse ensaio,

o enjambement não é apenas um problema concernente à sintaxe do verso. Ele é o anúncio

do retorno e da continuidade da escrita. O acréscimo potencial de infinitos números figura,

assim, a manutenção desse vazio, cujo esgotamento constitui o fim do poema e sua crise. A

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engrenagem torna-se um modo de retardar o advento de um silêncio que vem calar a obra e

a vida. A série contamina, então, a existência de poeta e leitores com o processo de

adiamento que constitui a essência da poesia, segundo Agamben:

E o poema é como o catéchon da epístola de Paulo aos Tessalonicenses (II, 2, 7-8): algo que freia e retarda o advento do Messias, portanto daquele que, cumprindo o tempo da poesia e unificando os dois eónes [som e sentido], destruiria a máquina poética precipitando-a no silêncio (AGAMBEN, 2002, p. 146).

Produzido tendo em vista a irrupção do silêncio em um tempo impreciso, o registro

biográfico constitui a escrita como o trabalho provisório e inacabado de manutenção da

vida. O registro da duração da existência até o momento de seu fim não é, portanto,

estável. Ao contrário do apaziguamento que se poderia esperar de um texto autobiográfico

que tentasse mascarar o inacabamento de quem escreve, Numeral deixa índices de um

corpo e de uma escrita em construção permanente. Flagrados em processo, corpo e escrita

não são plenamente representáveis. A problematização das representações do sujeito não

torna menor a grafia da vida em Numeral, tampouco a levam a ser caracterizada pela

melancolia. Para além da disforia subjacente à temática da falência da representação, vemos

como o desequilíbrio entre poesia e vida pode mover um mecanismo sem freios – corpo e

escrita resvalando para o infinito.

3.5 ENTRE A FINITUDE DA VIDA E O INFINITO DA LINGUAGEM

Quando grafar a vida implica o registro da duração do corpo ante a obra, os espaços

vazios se dispersam. A fratura primeira é aquela estabelecida pela impossibilidade de

inscrição do decurso dos dias. A associação da obra a um processo que lhe é anterior e que

lhe escapa é estabelecida, de forma alusiva e precária, às margens dos versos – a presença

mesma daquelas datas aparentemente insignificantes remetendo a um esforço enunciativo

não plenamente representado nos textos.

Ao vazio estabelecido pelas marcas do tempo da enunciação, soma-se a fenda aberta

pela subjetividade na escrita – o sujeito que fala (e também aquele que lê) alienando-se na

obra em que já não se pode reconhecer. Tampouco os rastros do calendário garantem a

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grafia da singularidade das vidas de autor e leitores. Como marcas de uma demarcação

temporal válida para todos, as datas pouco dizem respeito à particularidade da existência

individual. Ao contrário, elas atraem a vida para um espaço impessoal.

Em meio a tantas negativas, a grafia do corpo durante o processo em que escreve

parece se construir apenas como o registro da perda. Resta ainda, porém, espaço para o

êxito: “A única vitória é a própria vida/ com o corpo batendo ponto/ e o fogo fechado do

troféu, na mão.” – diz uma passagem do poema de 11 V 98 (idem, p. 567-8). O triunfo é a

manutenção das marcas corporais na linguagem. É também o avanço da escrita a partir da

consideração da parcialidade do retrato do corpo e de suas transformações. Em um

mecanismo iniciado em Fio terra e expandido em Numeral, a obra, produzida em relação

com a morte, deixa-se impregnar pelo caráter inacabado do corpo e se torna fluxo,

processo.

Registrar a passagem do tempo engajado na obra se torna, dessa maneira, uma

forma de transformar o limite da vida em possibilidade de produção. O registro biográfico

faz ver, assim, a impossibilidade de superar definitivamente o descompasso entre obra e

vida como o motor de novos poemas – vitória provisória e cujo prêmio se deve buscar a

cada dia.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS – como um galgo

Seguir os rastros do silêncio é guiar-se por múltiplos desvios. É impossível ignorar

esta desestabilização: a variedade de procedimentos de datação, a fratura entre palavras e

datas, a irredutível diferença entre tempo lingüístico e tempo crônico, tudo convida, desde o

início, o leitor a acostumar-se a transitar. É preciso aceitar o jogo. Porém, tanto mais se

dispersem os vestígios do vazio em uma obra, mais o ato de leitura afirma-se como risco,

iminência de dispersão, turvamento. Tentativa de seguir as diversas sinuosidades

instauradas pela infiltração do tempo crônico na escrita de Armando Freitas Filho, este

trabalho avançou tendo em vista o inacabamento de uma pesquisa movida pelo impacto das

fendas do dia na poesia.

A leitura se impregnou, assim, pelas qualidades da obra analisada, cuja tentativa de

“morder o mundo” é constantemente reavivada devido aos vários intervalos que a habitam.

Como um galgo, “à cata da lebre ilusória”, a obra se põe à caça (FREITAS FILHO, 2001, p

9). Nessa corrida, movida por uma distância superada apenas quando a marcha está

esgotada, o que interessa – afirma o poeta – “é o processo, visto como uma estratégia de

busca e apreensão” (ibidem, p. 9). Acompanhamos essa busca – ou parte dela –, visando o

desajuste entre a escrita e aquilo – história, sujeito, vida: enunciação – que não se pode

grafar de forma plena. Ler a partir de algumas datas fez ver, dessa forma, que tanto a escrita

como as “faces do mundo” ali registradas são indissociáveis das fendas, das fraturas, do

vazio.

História, sujeito, vida são, portanto, o silêncio? Não. Não chegaremos tão longe. Na

obra de Armando Freitas Filho, eles se inscrevem como narrativas, discursos, gestos

atravessados pelo silêncio. Tal como na corrida rumo àquela lebre mecânica caçada pelos

galgos, cuja atração contínua decorre do intervalo entre o mecanismo veloz e a pele que lhe

cobre, a grafia desses processos é indissociável de um espaço não preenchido, que torna a

tentativa, a caça, o percurso tão importantes quanto o resultado ou o tento. Esse intervalo é

desejável justamente na medida em que impele a busca sem a qual a obra não se pode

expandir, diz Armando Freitas Filho:

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A tentativa, aqui, vale tanto quanto o tento; talvez porque tenho o cálculo que os galgos não possuem: a de pensar e esperar que um dia a engrenagem que leva o cheiro da lebre imaginada pode quebrar e parar.

Se assim for, contudo, será isso desejável? (ibidem, p. 9).

Também este trabalho se constituiu como uma busca guiada pelos rastros do

calendário. Essas marcas nos fizeram ver o real registrado na poesia de Freitas Filho como

um horizonte, um objeto móvel, atravessado pelo vazio na medida em que está em devir.

Frente a essa mobilidade, a análise se estabeleceu como caça, nunca saciada, mas impelida

pelas fraturas que desejava iluminar – deseja ainda. Se o tempo lingüístico é vazio – um

“agora” situável apenas quando somos contemporâneos ao gesto enunciativo –, as datas que

lhes poderiam dotar de um conteúdo tampouco têm um significado pleno. Elas são índices,

que não preenchem a fratura aberta pela inscrição do tempo socializado do calendário na

obra. Esta dissertação, ao anunciar seu espaço próprio como o dos intervalos, cisões,

silêncios – “na fenda dos dias” –, deslocou-se pelos vãos entre o conteúdo mínimo que as

datas significam e o vazio a que apontam – que tangenciam?

Mais um pouco... Assim como as datas remetem a um decurso nunca

completamente representado, a leitura dos poemas a partir de sua relação com a

negatividade buscou visar a obra tendo em vista seu caráter inacessível. Menos que

reencontrar os textos em seus temas e figuras, buscamos indicar o ponto em que eles

resistem à análise e, justamente por isso, tornam-na uma atividade aberta, inacabada – a

leitura também capturada pela tarefa sem fim de seguir os rastros do silêncio constituídos

por aqueles resíduos do calendário.

Nessa tentativa de flagrar os textos no ponto em que resistem à apropriação,

guiamos nosso olhar pelas zonas limítrofes: entre o tempo crônico e o lingüístico, entre o

caráter datado dos textos e sua renovação potencialmente sem fim. Pensando esse espaço

fronteiriço inscrito na obra de Armando Freitas Filho, buscamos resguardá-lo.

Desse modo, visamos a construir um discurso crítico, apontado por Agamben em

Estâncias como aquele que assegura as condições de inacessibilidade de seu objeto:

O discurso que, nessa perspectiva, sabe que “manter firmemente o que está morto é o que exige a maior força” e não queria arrogar-se “o poder mágico que transforma o negativo em ser”, deve necessariamente garantir a inapreensibilidade de seu objeto (AGAMBEN, 2007, p. 14).

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Sem tornar positivo, ser, o que se quer negativo, esperamos ter iluminado a potência

decorrente das fendas em alguns textos datados de Armando Freitas Filho e ter feito

vislumbrar o negativo não como falência, mas como possibilidade infinita. O reverso da

falência torna-se, assim, potência sem fim, abertura: há infinitas possibilidades de

desdobramento.

A leitura, uma vez se deixe afetar por esse poder de desestabilização, faz-se

interrogativa, sabe-se incompleta. É possível ir mais além, pelas beiras, mais um pouco. Se

assim for, não será isso desejável?

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ANEXOS

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1 A FLOR DA PELE (1978)

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2 LONGA VIDA (1982), 3X4 (1985)

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