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2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CARINA FERREIRA LESSA GRACILIANO RAMOS: O DESARRANJO INTERIOR E A ESTÉTICA DA MEMÓRIA RIO DE JANEIRO 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CARINA FERREIRA LESSA

GRACILIANO RAMOS:

O DESARRANJO INTERIOR E A ESTÉTICA DA MEMÓRIA

RIO DE JANEIRO

2016

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CARINA FERREIRA LESSA

GRACILIANO RAMOS: O DESARRANJO INTERIOR E A ESTÉTICA DA

MEMÓRIA

Tese de Doutorado apresentado ao Programa de Pós-graduação em

Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como

quesito para a obtenção do título de Doutora em Letras Vernáculas

(Literatura Brasileira)

Orientador: Professor Doutor Alcmeno Bastos

RIO DE JANEIRO

2016

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GRACILIANO RAMOS:

O DESARRANJO INTERIOR E A ESTÉTICA DA MEMÓRIA

Carina Ferreira Lessa

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas,

Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Doutora em Literatura Brasileira.

Orientador: Professor Doutor Alcmeno Bastos

Examinada por:

Presidente, Professor Doutor Alcmeno Bastos

Professor Doutor Godofredo de Oliveira Neto

Professora Doutora Anélia Montechiari Pietrani

Professor Doutor Jorge Luiz Marques de Moraes

Professora Doutora Stefania Chiarelli Techima

Marcos Estevão Gomes Pasche (Suplente)

Ronaldes de Melo e Souza (Suplente)

RIO DE JANEIRO

FEVEREIRO DE 2016

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Lessa, Carina Ferreira.

Gracialiano Ramos: O desarranjo interior e a estética da memória/ Carina Ferreira

Lessa. - Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2016.

xi, 192 f; 18mm.

Orientador: Alcmeno Bastos

Tese (Doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em

Letras Vernáculas, Área: Literatura Brasileira, 2016.

Referências Bibliográficas: f. 172-180

1- Desarranjo interior e a estética da memória 2 – Graciliano Ramos: sobre a

literatura e o caráter de ficção 3 - Um caeté, sem dúvida 4 – A memória

involuntária e o aparecimento do efeito coruja 5 - A memória voluntária e o futuro

do pretérito 6 - O caso Vidas Secas I. Bastos, Alcmeno. II. Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas, Área: Literatura Brasileira. III. Título.

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Graciliano Ramos: o Desarranjo Interior e a Estética da Memória

Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras

Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Literatura Brasileira.

LESSA, Carina Ferreira. Graciliano Ramos: o desarranjo interior e a estética da memória. Rio de

Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Letras, Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

O presente trabalho estuda a narrativa pelo filtro da memória em Graciliano Ramos.

Aqui, a memória é entendida sob dois ângulos: uma involuntária – que move os narradores-

personagens à escrita –, e outra voluntária – que pauta-se pela necessidade de rememoração.

Com isso, a memória involuntária vem como tema: a enfermidade de Adrião, a morte de

Madalena, a obsessão por Marina, a vida seca, o trauma de infância e os resquícios de prisão.

A voluntária representa o estado psicológico dos personagens por meio da estrutura narrativa.

Subdividi a voluntária em duas partes: a memória binocular e a memória esfumaçada. Ambos

os termos foram retirados de romances do autor e demonstram o ato de tecer uma linguagem

que reflita os pensamentos e desarranjos dos personagens-narradores.

Espera-se trazer um autor que não só tinha preocupações sociais e políticas, mas

também com a estética da literatura e com a vida miserável da alma. Mostrar, ainda, como o

processo de rememoração parece ser o foco principal de sua obra completa, refletindo a ideia

de que Graciliano Ramos é um romancista da solidão, voltado para dentro de si com a

realidade profunda da alma, como afirmou José Lins do Rego.

Pretende-se comprovar que o autor não estabeleceu limites entre ficção e não ficção.

Entre reminiscências de Graciliano, Luis da Silva, Fabiano, Paulo Honório ou João Valério se

vale sempre das mesmas técnicas e expressões que desequilibram a verdade. Todos são

romances. Todos os personagens estão marcados por um “desarranjo interior” e uma

despreocupação com a realidade cronológica.

Palavras-chave: Graciliano Ramos; Literatura Brasileira; Memória; Desarranjo Interior

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Graciliano Ramos: el Desorden Interno y la Estética de la Memoria

Resumen de la Tesis Doctoral presentada al Programa de Posgrado en lenguas vernáculas,

Faculdade de Letras, de Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte de los requisitos

para obtener el título de Doctora en Literatura Brasileña.

LESSA, Carina Ferreira. Graciliano Ramos: El Desorden Interno y La Estética de La Memoria. Rio

de Janeiro, 2016. Tesis (Doctorado en Literatura Brasileña) – Faculdade de Letras, Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

Este trabajo estudia la narración por el filtro de la memoria Graciliano Ramos. En este

caso, la memoria está vista desde dos ángulos: una involuntaria – la cual mueve los

personajes-narradores a la escritura - y otro voluntario – lo cual es guiado por la necesidad de

recordar. Así, la memoria involuntaria tiene como tema: la enfermedad de Adrião, la muerte

de Madalena, la obsesión por Marina, la vida en seco, trauma de la infancia y los restos de la

prisión. La memoria voluntaria es el estado psicológico de los personajes por medio de la

estructura narrativa. Compartí la memoria voluntaria en dos partes: la memoria binocular y la

memoria llena de humo. Ambos términos provienen de las novelas de la autora y demuestran

el acto de tejer un lenguaje que refleja los pensamientos y los trastornos de los personajes-

narradores.

Se espera que traiga un autor que no sólo tenía preocupaciones sociales y políticos,

sino también la estética de la literatura y la vida miserable del alma. Se quiere mostrar también

cómo el proceso de la memoria parece ser el foco principal de sus obras completas, lo que

refleja la idea de que Graciliano Ramos es un novelista de la soledad, mirando hacia el interior

de la realidad profunda del alma, como se ha dicho José Lins do Rego .

Se quiere demostrar que el autor no ha establecido límites entre ficción y no ficción.

Entre reminiscencias de Graciliano, Luis da Silva, Fabiano, Paulo Honório ou João Valério se

vale seimpre de las mismas técnicas y expresiones que desequilibran la verdad. Todos son

novelas. Todos los personajes están marcados por un "desorden interno" y la indiferencia a la

realidad cronológica.

Palabras clave: Graciliano Ramos; Literatura Brasileña; Memoria; Desorden Interior.

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Graciliano Ramos: il malassere interiore e l'estetica della memoria

Riassunto della tesi di dottorato presentata nell'ambito del programma di specializzazione in

Lettere Moderne, Facoltà di Lettere dell'Università Federale di Rio de Janeiro, come parte dei

requisiti necessari all'ottenimento del titolo di Dottoressa in Letteratura Brasiliana.

LESSA, Carina Ferrerira. Graciliano Ramos: il malessere interiore e l'estetica della memoria. Rio

de Janeiro, 2016. Tesi (Dottorato in Letteratura Brasiliana) – Facoltà di Lettere, Università

Federale di Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

Il presente lavoro studia la narrativa attraverso il filtro della memoria in Graciliano Ramos.

Qui la memoria è intesa sotto due angoli: una involontaria – che muove i narratori-personaggi

verso la scrittura - e l'altra volontaria – che è orientata da una necessità di rimemorazione. Con

ciò, la memoria involontaria si presenta come tema: l'infermità di Adrião, la morte di

Madalena, l'ossessione per Marina, la vita arida, il trauma dell'infanzia e le vestigia della

prigione. La volontaria rappresenta lo stato psicologico dei personaggi per mezzo della

struttura narrativa. Ho suddiviso la volontaria in due parti: la memoria binocolare e la memoria

sfumata. Entrambi i termini sono stati presi daí romanzi dell'autore e dimostrano l'atto di

tessere un linguaggio che rifletta i pensieri e i malesseri dei personaggi-narratori.

Si cercherà di portare alla luce un autore che non aveva solo preoccupazioni sociali e

politiche, ma anche riguardo l'estetica della letteratura e la vita miserabile dell'anima. Si

mostrerà, inoltre, come il processo di rimemorazione sembri essere il fulcro della sua opera

completa, riflettendo l'idea che Graciliano Ramos è un romanziere della solitudine, voltato

verso se stesso con la realtà profonda dell'anima, come affermò José Lins do Rego.

Si vuole provare che l'autore non stabilì limiti tra finzione e non finzione. Tra

reminiscenze di Graciliano, Luis da Silva, Fabiano, Paulo Honório o João Valério si avvale

sempre delle stesse tecniche ed espressioni che squilibrano la verità. Tutti sono romanzi. Tutti i

personaggi sono segnati da un 'malessere interiore' e una mancanza di preoccupazione per

quanto riguarda la realtà cronologica.

Parole-chiave: Graciliano Ramos, Letteratura Brasiliana, Memoria, Malessere Interiore

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DEDICATÓRIAS

Às pessoas que tornaram o trabalho possível, me

incentivando e participando, moral e intelectualmente,

de meu crescimento como ser humano:

A meu pai, pelo incentivo constante aos estudos e pelo

exemplo de determinação e honestidade.

A minha mãe, por ser uma grande incentivadora do meu

amor pela arte.

A minha filha, que tem a idade da minha vida

acadêmica, pelo carinho cotidiano, por cuidar da minha

saúde e por conversar comigo enquanto eu escrevia.

A meu filho, que foi gerado e nascido juntamente com

esta tese, me oferecendo amor e belos sorrisos mesmo

quando tinha que dormir nas salas do terceiro andar da

Faculdade de Letras.

A Rodrigo, meu marido, por ser companheiro

infinitamente, superando todos os limites que a

sociedade machista impõe aos homens: compartilhando

as atividades em casa e cuidando também de nossos

filhos. Por me amar indefinidamente: cuidando de

minha saúde e me fazendo acreditar na cura

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AGRADECIMENTOS:

A Alcmeno Bastos, meu orientador, por acreditar em meu trabalho e me apoiar desde a defesa da

dissertação. Pela compreensão e carinho no percurso de escrita.

A Godofredo de Oliveira Neto, por ser um professor e amigo que motiva infinitamente a

independência intelectual.

A Antonio Carlos Secchin, pelos acréscimos da Oficina de Escrita.

Aos membros da banca que aceitaram gentilmente ser interlocutores deste trabalho tão difícil.

A Capes, por financiar a jornada deste trabalho.

A Deus, por me dar força incondicional em todos os aspectos da vida.

À Literatura e a Graciliano Ramos, por me enriquecerem como ser humano e me proporcionarem o

encontro com pensamentos e pessoas tão especiais.

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SINOPSE

Leitura dos seis romances de Graciliano

Ramos, tendo em vista o desarranjo interior

dos narradores-personagens como elemento

que os motiva à escritura. Estudo da memória

involuntária e da memória voluntária como

processos fundamentais para se entender a

estética literária produzida pelo autor.

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“Admitamos que artistas mais hábeis não pudessem apresentar

direito essas personagens, que, estacionando em degraus vários da

sociedade, têm de comum o sofrimento. Neste caso aqui me reduzo

à condição de aparelho registrador – e nisto não há mérito. Acertei?

Se acertei, todo o constrangimento desaparecerá. Associo-me aos

senhores numa demonstração de solidariedade a todos os infelizes,

que povoam a terra.” – Graciliano Ramos, em discurso a propósito

do seu cinquentenário e do Prêmio pelo conjunto da obra.

“Graciliano Ramos é o romancista da solidão. É o romancista que está

só na profundidade de seu poço, na companhia de todos os seus eus,

de todos os seus monólogos. Alguns de seus personagens falam

sozinhos – falam para dentro, mantém diálogos com sombras. A

realidade profunda, a verdade única está no fundo da alma. É o

primeiro caso na literatura brasileira de um homem que não ama a

natureza que o cerca.” – José Lins do Rego.

“O movimento evolutivo da vida seria simples e não tardaríamos a

determinar a sua direção, se a vida descrevesse uma trajetória única,

à semelhança da bomba disparada por um canhão. Mas o que temos

aqui pela frente é uma granada que logo rebentou em fragmentos, os

quais, sendo a seu turno uma espécie de granada, rebentaram por

sua vez em fragmentos também destinados a rebentar, e assim

sucessivamente durante muito tempo. Somente distinguimos aquilo

que se encontra mais perto de nós, os movimentos dispersos dos

estilhaços pulverizados. É com base nestes que teremos de remontar,

de grau em grau, até o movimento originário.” – Henri Bergson.

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Sumário

Introdução ..........................................................................................................14

1. O desarranjo interior e a estética da memória ....................................................21

2. Graciliano Ramos: sobre a literatura e o caráter de ficção..................................38

3. Um caeté, sem dúvida..........................................................................................62

4. A memória involuntária e o aparecimento do efeito coruja..............................102

5. A memória voluntária e o futuro do pretérito ...................................................123

6. O caso Vidas Secas ...........................................................................................162

7. Considerações Finais ........................................................................................171

8. Referências Bibliográficas ................................................................................173

9. Anexo I – Perguntas a Silviano Santiago .........................................................182

10. Anexo II – Uma história de Raimundo: o entrelugar e o insólito em A terra dos

meninos pelados ...............................................................................................186

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Introdução

“Desarranjo interior” é uma expressão recorrente na obra de Graciliano Ramos e

que se tornou fundamental para a análise e descrição dos seus personagens – na medida

em que, diante do estatuto de narradores, revela uma incapacidade de lidar com os

desníveis de suas próprias almas. E não é esse o grande mote da Literatura? O que lhe

confere o caráter de universalidade?

Muito se discutiu sobre o fato de o autor estar morto, em função de uma

incomunicabilidade entre autor e leitor. O jogo narrativo que se lançou

fundamentalmente a partir do início do século XX (se retirarmos de cena, por exemplo,

o nosso Machado de Assis) desestruturou o caráter ditador da voz onisciente e vivemos

um mundo repleto de vozes que ecoam avulsas e convulsas.

O fluxo de consciência, com suas devidas nuances, denotou uma literatura nova

e assustadora, em que toda sorte de experimentalismos estéticos parece ter esgotado a

capacidade de inovação e renovação daquela imponente Literatura que parecia se

metamorfosear a cada instante. No entanto, devemos saber que o autofluxo1 de cada

indivíduo da humanidade muda o tempo todo, se conectando com a sempre aclamada

História das Mentalidades2 – dessa forma a invenção estética do fluxo de consciência

(do discurso indireto livre, da refletorização, do monólogo narrado, da equivalência das

janelas e etc.3) servirá de sangue novo, quem sabe, injetado numa regressão ao passado

artístico.

Estamos aqui refletindo sobre isso porque a literatura é indiscutivelmente

marcada pelos processos mentais de cada autor, assim se faz a sua originalidade –

apenas atribuímos e concretizamos o invento por meio de outros personagens, aqueles

que insistem em viver e sair de nós com caracteres diferentes, apesar de continuarem

1 Para usar um termo de Augusto Cury, em suas ideias acerca da Inteligência Multifocal. 2 A história das mentalidades ligadas à psicologia coletiva, de George Duby. 3 Diferentes termos, cunhados por teóricos e escritores, que estruturam estilisticamente o fluxo de

consciência.

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cantando em uníssono, tal qual a poética de Fernando Pessoa e de Virgínia Woolf4. A

questão da realidade x ficção não se resolve, simplesmente por refletirem a verdade de

uma multiplicidade de vozes que cantam em um único som: a do autor que se põe a

narrar. Graciliano Ramos como grande mestre (apesar de querer-se pequeno) nasceu

fadado à escritura de personagens que causavam insônia, que não nasceram: foram

quase abortados, se pensarmos no que o próprio autor fala na crônica “Alguns tipos sem

importância”. Ainda nesta crônica, Graciliano deixa claro o desconforto em relação à

incomunicabilidade entre escritor e leitor:

Um amigo me pede que diga como nasceram as personagens

principais de alguns romances meus ultimamente publicados. Eu desejaria não tratar dessa gente que, arrumada em volumes, se

distanciou de mim. Na fase da produção era natural que me

interessasse por ela, presumisse que lhe dava um pouco de vida; agora tudo esfriou, os caracteres se deformaram – os leitores veem o que não

tive intenção de criar, aumentam ou reduzem as minhas figuras, e isto

prova que nunca realizei o que pretendi. Referindo-me, portanto, a

essa cambada, não penso no que ela hoje é multiforme, incongruente, modificada pelo público, mas nos tipos que imaginei e tentei compor

inutilmente. Falharam todos. Esta declaração é necessária: talvez não

anule, mas pelo menos atenuará uns toques de vaidade que por acaso apareçam nas linhas que seguem. (RAMOS, 2005, p. 278)

A literatura como ciência procura refletir a identidade estética empregada para

dar voz aos anseios do autor enquanto ser humano, se não, não haveria a representação

dessa arte. Lacan disse certa vez que somos individualizados pela forma como nos

colocamos em linguagem, seja ela de qualquer ordem. Sendo assim, o escritor de

Literatura tem a capacidade inventiva de manusear a linguagem escrita atribuindo-lhe

forma e beleza – de acordo com o que se quer narrar. No entanto, a partir do século XX,

na medida em que o autor passou a tomar cada vez mais conhecimento dos processos

mentais, buscando estruturá-los por meio de seus personagens, nós, exegetas, passamos

por um difícil processo de busca para dar nome ao inominável até então. Dessa forma,

abandonar o tradicional narrador-observador, fecundo no século XIX, fez com que

4 A autora leva o experimento às últimas consequências no seu romance As Ondas, em que seis personagens são constituídos de seis vozes constantes e ordenadas, encadeadas por puro fluxo de consciência.

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déssemos vários passos à frente, ao passo que desequilibramos o olhar sobre a obra

analisada.

Sendo assim, a princípio, essas obras nascidas com o modernismo foram

analisadas sob a ótica social, associada à análise psicológica dos personagens, numa

visão crítica marcada pelo método tradicional de se ler uma obra literária – em que se

projetava a visão de outras ciências para se extrair a riqueza da Literatura. Não à toa,

tendo em vista o fato de o modernismo ter promovido uma abertura para a produção

literária nordestina, antes centrada no eixo Rio - São Paulo, a obra de Graciliano foi

recebida e lida pelos aspectos que refletiam a realidade política e de seca no sertão.

Questão de extrema importância, porque viciou a leitura que se tem, até os dias de hoje,

da obra completa do escritor alagoano.

É interessante pensar como a secura virou mote na obra de Graciliano,

caracterizando o seu modo de narrar em todas as obras. Uma marca que, como veremos,

se restringe a Vidas Secas, uma marca que não pode ser evidenciada nos outros

romances – seja em termos estéticos ou temáticos. A secura que Antonio Candido

sustentou e que fez com que, o mesmo, encontrasse em Angústia partes que ele chamou

de “corruptíveis e gordurosas”, apesar de servirem perfeitamente para compor a

personalidade doentia de Luis da Silva.

Desde a Grécia Antiga, como sabemos, a preocupação com a alma humana e

com o corpo físico são motes de grande perturbação intelectual que até os dias de hoje

não se conseguiu resolver. Epicuro, em busca da felicidade plena, almejava encontrar

um estado completo em que não haveria dor física, menos ainda dor na alma – um

estado ideal de imperturbabilidade do espírito e da matéria. O filósofo, dessa forma,

chega a se aproximar das teorias de Demócrito para dizer que toda a natureza seria

composta por átomos, inclusive a própria alma. Uma alma que teria uma inclinação

própria, uma grande descoberta que trouxe ao homem helenista a visão de que seriam

responsáveis por suas escolhas, portanto, entre a liberdade e a restrição, deveriam estar

conscientes de terem autodomínio – não eram movidos por escolhas e determinações

divinas.

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A problematização perdurou por séculos a fio e, ainda hoje, com todas as

descobertas científicas sobre o cérebro, como a existência do neurônio, por exemplo,

não se foi capaz de retirar o grande mistério da existência humana: a mente (ou

inconsciente, se quisermos usar um terno psicanalítico). No que diz respeito à história

das mentalidades e sua relação com o mundo artístico, foco de nosso interesse,

recebemos apenas o impacto do questionamento de acordo com a evolução do

pensamento. Seja nas artes plásticas ou nos projetos narrativos e poéticos, cada artista

irá pincelar de modo particular o seu sentimento de vida, o que também implica dizer

que necessariamente ele se relacionará com as questões sociais do seu cotidiano, bem

como poderá preceder o percurso do mundo.

Partindo disso, poderíamos citar uma infinidade de gênios da literatura que

souberam bem captar e sentir as principais questões de sua época. Voltaire traçou, com

belas narrativas sarcásticas, uma estrutura que emanava um tom mordaz sobre os ideais

de Leibniz – em que o mundo físico e o mental caminhariam juntos, harmoniosamente,

sem que nada fosse capaz de perturbar a perfeição, “tudo vai melhor no melhor dos

mundos possíveis”, como diria Pangloss.5 Em Zadig ou o destino, o autor percorreu o

caminho oposto e complementar, em que o ser humano estaria predestinado a seguir

uma trilha incontrolável, uma história que desafiava as religiões e os pressupostos

filosóficos da época. Zadig carrega o pessimismo e o sentimento de derrota, nem sequer

vê a possibilidade de cultivar o jardim, parafraseando o enigmático final de Candido ou

o otimismo. Um personagem fadado a uma pré-escolha metafísica que não lhe dava o

direito do livre arbítrio, de crescer como ser humano e criar novos caminhos. Seguindo

também uma tendência da época, Zadig possui esse nome por representar um filósofo da

antiga Babilônia – o Oriente era frequentado desde fins do século XVII.

Vários teóricos da Literatura Brasileira reconhecem a influência que Voltaire

exerceu em Machado de Assis, apesar de a ironia se apresentar em Machado velada e

ludibriadora e, em Voltaire, se aproximar muito mais da sátira. Pensando em Machado e

no seu Alienista poderíamos voltar ao filósofo Demócrito, já citado, e refletir sobre a

influência que a percepção de mundo exerce sobre o ser ou o evento observado. Um

5 Personagem de Candido ou o Otimismo, de Voltaire, que bem serve aos preceitos teóricos de Leibniz.

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Demócrito, segundo Hipócrates, marcado pelo riso frouxo em relação às mazelas dos

seres humanos – visto pelos concidadãos como próprio do estado de loucura:

Ganância, desejos exagerados, inimizades, emboscadas, traições,

invejas, expondo-se sempre em infinitas dificuldades maléficas, pois

não há pior ignorância que duas mentes insensatas conspirando danos

mútuos. A virtude para esses homens é algo inferior, posto que obram como amantes da mentira, dos prazeres superficiais, antepondo-se aos

costumes. Meu riso condena a falta de discernimento desses homens.

(Carta 17, de Hipócrates a Damageto, 2013, p. 13)

Um riso exacerbado que incomodava e desequilibrava as estruturas de uma

sociedade hipócrita e que não reconhecia as mazelas da alma humana. E não foi

exatamente a grande questão para Simão Bacamarte6? Em que consistiria os níveis da

loucura? Demócrito queria em suas pesquisas alcançar a preciosa paz interior, um

estado de perfeição que até hoje o ser humano tenta abraçar. Entre o filósofo grego e o

personagem machadiano não há muita diferença, talvez apenas algumas centenas de

anos e o molde delineado pela sociedade de sua época. Ambos são realidades e ficções

de uma mesma moeda. Aquela moeda de dois lados, que perturba e causa de forma

intensa um “desarranjo interior”.

Graciliano Ramos fez de sua escritura uma problematização do homem como ser

humano, a estrutura estética de seus romances desenvolve-se pelo ato de tecer uma

linguagem que reflita os pensamentos e desarranjos dos seus personagens-narradores.

Diante disso, não só Paulo Honório ou Luis da Silva pensam sobre seus atos,

confessando que fariam tudo novamente, o personagem Graciliano, em Memórias do

Cárcere, também reconhece sua covardia, quando não tentou defender um amigo,

chegando à conclusão de que procederia da mesma forma, se uma nova oportunidade

lhe surgisse. Um Graciliano perturbado e que se autoflagela pelos próprios equívocos e

ao qual temos acesso diante de um complexo fluxo de pensamentos – estruturados por

uma linguagem muitas vezes esquizofrênica, para utilizar um termo de Godofredo de

Oliveira Neto, a propósito de São Bernardo, no capítulo XIX.

6 Médico, personagem principal de O Alienista, de Machado de Assis.

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Em carta a Antonio Candido, Graciliano deixa claro não concordar com algumas

das leituras que o teórico fez de sua obra. Em contraposição, convida-o para escrever

um texto que viria a introduzir sua obra relançada, o reconhecido “Ficção e Confissão” -

em que o autor faz uma sensível leitura do escritor em questão. Diante deste fato, é

interessante pensar que Graciliano Ramos viu no crítico suas qualidades como

pesquisador, sendo humilde para ir além de suas expectativas individuais como escritor.

Enxergou ainda o ser humano, além do político, na medida em que ambos faziam parte

de partidos políticos diferentes e, o reconhecimento social das qualidades de Antonio

Candido7 implicaria, inevitavelmente, em um festival de críticas partidárias a

Graciliano. Uma escolha que, por si só, apesar de argumento biográfico, desvela um

Graciliano Ramos que, além de igualitário, respeitava a força inevitável da voz

individual.

Até agora, todos os estudiosos da obra graciliânica parecem ter seguido a divisão

proposta por Antonio Candido, em que as narrativas se dividiriam em três aspectos:

Em primeiro lugar a série de romances escritos na primeira pessoa –

Caetés, São Bernardo, Angústia (...). Em segundo lugar, as narrativas feitas na terceira pessoa, Vidas Secas, os contos de Insônia (...). Em

terceiro lugar encontramos as obras autobiográficas – Infância,

Memórias do Cárcere (...). (CANDIDO, 2006, p. 101-102)

No entanto, esta tese, partindo da ideia de que todos os romances são movidos

por um “desarranjo interior” que motiva o processo de rememoração, pretende mostrar

como o autor criou uma estética literária que pode ser encontrada com igual vigor em

todas narrativas. Ao partir do princípio de que a arte da literatura se faz pela forma

como o autor deixa a sua marca, mostrar como Graciliano deixou clara a

indiscernibilidade entre ficção e não ficção, de modo a inviabilizar o estatuto puramente

autobiográfico de Infância e Memórias do Cárcere, e o estatuto puramente ficcional dos

outros romances. Paralelamente, apesar de Vidas Secas carregar todas as características

7 Antonio Candido, a propósito da comemoração dos 75 anos de Angústia, diz ter ficado lisonjeado e impressionado, na medida em que a esquerda também brigava entre si e o gesto representava um respeito admirável à sua figura.

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do estilo narrativo do autor, mostrar como a ‘linguagem seca” se restringe unicamente a

este romance. Para tanto, a divisão do trabalho almeja unificar em termos teóricos e

estilísticos a obra do autor, ressaltando, obviamente, as particulares inerentes a cada

narrativa.

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1. O desarranjo interior e a estética da memória

Graciliano Ramos é um artesão. Uma das sentenças mais frequentes sobre o

autor, reflexo de sua autodeclaração no que diz respeito ao ato de escritura. “Artesão” é

uma palavra que bem serve à simplicidade do autor e de suas palavras. Uma palavra

calejada pelo trabalho árduo do artista que trabalha com mão de obra pesada, que tem

um suspiro de inspiração para litros de transpiração.

Um artesão, movido por sua arte e sabedoria, sabe dosar as massas e equilibrar

os ingredientes: não falha. Ou falha? Estamos pensando falhar no sentido de deixar uma

lacuna, ou irregularidade. Uma lacuna ou irregularidade que, paradoxalmente, pode

estar a favor do reto, da tentativa de dar forma a um vaso de barro, por exemplo, que

seja deslocado de sua forma padrão, mas que mantenha o equilíbrio – sem deixar que a

força da gravidade o derrube.

Moacyr Scliar, também senhor das palavras, escritor marcado pelo

conhecimento da medicina, certa vez escreveu uma crônica intitulada “Os mistérios da

memória” na qual fez as seguintes afirmações:

Há uma outra, e perturbadora, diferença entre memória humana e

memória de computador. É que a primeira é colorida, e distorcida, pelas emoções, e a segunda, não. Nascem daí as falsas memórias,

coisa que há alguns anos provocou muita controvérsia. (...) Agora:

como surgem essas “memórias”? (...) Essas coisas são possíveis, porque memória não é só lembrar, memória é reconstruir – e a

reconstrução pode ser feita com equívocos. Uma situação curiosa, e

correlata, é o déjà vu – francês para “já visto”. A expressão foi

introduzida pelo francês Émile Boirac para designar a familiaridade que a gente subitamente sente numa situação que deveria ser estranha

para nós. É uma coisa muito comum, relatada por cerca de 70% das

pessoas. Há quem atribua isto a um ato de “precognição”, mas parece ser mesmo um distúrbio da memória, às vezes causado por razões

neurológicas. (SCLIAR, 2006, p. 137)

Tais assertivas são muito interessantes para se pensar a profundidade

psicológica dos personagens de Graciliano, movidos por um desarranjo interior que os

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unificam enquanto criaturas de um mesmo autor. O processo de construção estilística de

Graciliano é pautado justamente por distorções emocionais de personagens presos ao

passado malogrado. O autor faz questão de marcar as disfunções da memória, de deixar

lacunas ou, até mesmo, de preenchê-las com a prolixidade de adjetivos. Todos os seus

autores ficcionais vivem o aprisionamento do déjà vu, marcados pelo som de corujas

piando ou sapos coachando. Seria um distúrbio da memória que os fazem reviver o

passado traumatizado? Paulo Honório e Luis da Silva chegam a questionar se de fato

estariam ouvindo a coruja ou sapo, respectivamente. O fato é que o som traz arrepios e

repetições de cenas já vistas. O mesmo pio que também foi capaz de atordoar João

Valério.

Segundo Rita Carter, pesquisadora e jornalista na área de medicina, a memória

traumática “é uma condição na qual a pessoa tem vívidas memórias em flashback de

uma experiência traumática. Tais memórias são capazes de assaltar uma pessoa de

repente – o som de um carro brecando pode lançar um soldado de volta ao campo de

batalha, junto com as emoções que experimentou na época.” (CARTER, 2012, p. 162).

Estudos comprovam que modificações físicas acontecem quando sofremos um evento

traumático. Movidos por uma ansiedade severa, os autores ficcionais da obra de

Graciliano – com exceção de Vidas Secas, que como veremos se desenvolve por meio

da técnica do discurso indireto livre, dando voz a personagens flagelados pela vida

escassa e traumatizada em todos os sentidos – têm flashbacks ou pesadelos que

provocam medo intenso, uma espécie de torpor emocional, desmotivação diante da vida

e, fundamentalmente, problemas de memória.

Os distúrbios de memória desestabilizam todos os personagens de Graciliano, e

aqui estamos falando também dos romances ditos não ficcionais8, junto com eles o

formato de sua escrita alimenta a estética literária de modo a configurar o estatuto de

ficcionalidade dos livros do autor. Todos são memorialistas e, em função disso, fundem

realidades ficcionais e não ficcionais. Todos possuem sua medida de extração histórica9,

8 O termo foi utilizado a partir das reflexões de Alcmeno Bastos no texto “O contrário de ficção não é realidade; é não ficção”, como veremos no próximo capítulo. 9 Segundo Alcmeno Bastos, “É claro que no caso específico da ficção histórica se colocam questões distintas, dado que ela sempre será recebida em relação à expectativa do leitor razoavelmente familiarizado com os fatos históricos aludidos. Assim, essa expectativa poderá ser confirmada,

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para usar um termo de Alcmeno Bastos, ou biográfica, se não, que importância teria os

exaustivos trabalhos que se debruçam sobre a obra do autor relacionando São Bernardo,

por exemplo, às vivências de Graciliano enquanto comunista, que se indigna com a

crueldade da concentração de renda e de poder capitalista? Certa vez, em carta enviada

aos tradutores argentinos (1935), em resposta a um pedido de dados biográficos,

Graciliano é firme: “Por uma razão muito simples não vão os dados biográficos que me

pede: não tenho biografia. Se isto lhe for indispensável, contar-lhe-ei depois umas

histórias.” (2008, p. 24) Um dentre tantos reconhecimentos de que a memória impera e

é falha, produz histórias que não necessariamente darão conta da vida escrita como ela

foi.

Sabemos que o termo “memória” é amplo e se refere a um vasto funcionamento

do cérebro, além de acoplar o sentido social de recuperação e armazenamento de

estudos sobre determinado período histórico ou sobre determinada figura que tenha se

destacado em seu campo de saber. Dessa forma, deve-se dizer que aqui falamos da

memória psicológica dos personagens, de como Graciliano fez da sua obra grande e

universal ao transpor de maneira única e inviolável a linguagem transtornada de mentes

flageladas pela dor da perda ou do inalcançável. O modo particular como o autor criou

uma estética literária que dê conta dos desníveis da consciência e do relacionamento

mental que os seres humanos estabelecem com o mundo – rever um Graciliano Ramos

efetivamente universal, conhecedor da alma humana como poucos souberam ser na

História da Literatura Brasileira.

Proust, ao escrever Em busca do tempo perdido, teve em seu projeto estético

questões relativas ao tempo e a memória. O tempo arrasta sentimentos, transfigura física

e psiquicamente os personagens, muda seus gostos e pensamentos. Dessa forma, a

memória surge como elemento constante de jogo narrativo, não num esforço de restituir

um passado já perdido, mas despertada por um fato cotidiano que faz surgir ao

consciente o que Proust chamou de memória involuntária. Neste sentido, comer um

biscoitinho de madeleine molhado no chá significa recuperar a alegria da infância em

desmentida, parodiada, revisada, confundida, mas sempre restará uma lembrança de referencialidade, assegurada, em primeiro lugar, pelas marcas registradas, isto é, pelos nomes próprios de pessoas, lugares, instituições, eventos etc. E não apenas por elas, pois ao ficcionista é dado o direito de produzir um efeito de historicidade simulando marcas com forte similaridade com as do registro historiográfico; em outros termos, verossímeis”. – texto inédito.

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Combray, remonta-se uma cena vivida naquele tempo apagado, mas que jazia no

interior de seu inconsciente. Estudos muito recentes, de fins do século XX ao início do

século XXI, comprovaram que o olfato é o sentido mais ligado às emoções e à memória.

Isto porque o olfato está ligado à área responsável pela emoção dentro do que os

médicos chamam de “sistema límbico”. Esta descoberta científica fez com que Proust

fosse homenageado por sua brilhante percepção – o nome desta relação entre memória e

olfato se chama “Efeito Madeleine”.

Diante da inquietação com o tempo e a memória perdida, o autor ficcional

precisa lembrar, trazer a tona reminiscências do passado para motivar a escrita. Assim,

Combray, Guermantes ou qualquer outra cidade tornam-se metáforas das vivências e

cenas da época vivida, validam semanticamente o universo imaginário proustiano. O

nome vira também uma espécie de metáfora da estética produzida no romance.

Ao ler o poema “Graciliano Ramos:”, de João Cabral, publicado em 1961, logo

de início é inevitável atentar para os dois pontos no título. Estes produzem o que Abel

Barros Baptista chamou de “indiscernibilidade de vozes” na obra do autor. O poema dá

voz a Graciliano Ramos, ao passo que é endereçado a Graciliano. Mais do que uma

unidade poética, parece-me que Cabral procura identificar-se com os propósitos

estéticos do prosador. O Nordeste/região, com suas características da seca, da paisagem,

do sol que limpa a “crosta viscosa” “do que não é faca”, do vinagre que “cresta o

simplesmente folhagem, / folha prolixa, folharada”, torna-se metáfora da estética de

ambos os autores.

João Cabral diz, segundo Secchin, que a maior analogia que se pode fazer com

ele não é na poesia, mas sim na prosa, em Vidas secas. A poesia do menos,

caracterizada por Secchin, em função de “uma espécie de lirismo de subtração: ao invés

de inflar o poema de confessionalismo ou de subjetividade, ele deseja que o poema

mostre um real externo. (...) ele simula essa ausência do poeta para que as coisas

possam ter voz e não sejam apenas mediadas pela voz subjetiva do próprio poeta”

(SECCHIN, 2009). Neste sentido, a análise que o poeta faz do prosador – no poema em

homenagem – é perfeita. A mesma imagem fixada também por Antonio Candido em

seu “Ficção e confissão”:

A vocação para a brevidade e o essencial aparece aqui na busca do

efeito máximo por meio dos recursos mínimos, (...) a sua prosa áspera,

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já possui sem dúvida a parcimônia de vocábulos, a brevidade dos

períodos, devidos à busca do necessário, ao desencanto seco e ao

humor algo cortante, que se reúnem para definir o perfil literário do autor (2006, p. 21).

Está claro que Graciliano está sempre “alerta às armadilhas das palavras”, como

afirma Secchin sobre João Cabral, ele jamais se daria à gratuidade de um amador. Por

isso mesmo, devemos saber que o escritor das palavras exatas permanece na produção

de toda a sua obra, mesmo que para isso tenha que ceder aos excessos em personagens

como Luis da Silva. Se ele soube da necessidade de ser comedido em Vidas Secas,

também sabe o quão prolixo há de ser um personagem extremamente obsessivo e

angustiante. Um ponto importante para ser visto mais adiante, em relação à afirmativa

sobre “o perfil literário do autor”.

Um “perfil” de grande relevância para se compreender a obra graciliânica é o

fato de os personagens padecerem de uma dor social, universal: a dor de tudo aquilo que

poderia ter sido, que não foi e nem nunca será, efetivado em todos os romances pela

recorrência do verbo no futuro do pretérito. Observemos, respectivamente, os

fragmentos abaixo de Vidas secas e Memórias do cárcere:

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E

lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se

espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos,

enormes. (RAMOS, 2008, p. 91).

Quando me soltassem, aguentar-me-ia na cidade grande, readaptar-

me-ia, mudaria de ofício no fim da vida. Afirmava isto a mim mesmo

sem muita convicção. (2008, p. 97).

Mas por que colocar em cena essas questões?

Porque são fundamentais para a compreensão da memória como estilo na obra

de Graciliano Ramos e aqui, mais especificamente, nos romances. Logo de início é

preciso ressaltar que o trabalho, ora proposto, desvincula-se de grande parte da crítica –

debruçada sobre a obra de Graciliano Ramos – que insere os romances do autor numa

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tradição literária memorialista, no que diz respeito ao campo político e histórico e à

visão partidária do autor Graciliano.

Em Matéria e Memória, Bergson faz uma distinção muito interessante entre

lembrar e recordar: lembrar como um ato involuntário, por derivar de um fato ou

questão que se impõe e que não está sob controle, enquanto que recordar remete ao

esforço voluntário de rememorar fragmentos do passado. Se para Proust reviver ou re-

experimentar uma visão ou sabor faz despertar uma memória há tempos apagada, em

Graciliano, tal qual Bergson ponderou, a memória vem sim como um ato involuntário,

no entanto de forma obsessiva. Retorna como uma sombra de um passado que não se

pode reconstituir por completo. Inquieta, provoca insônia. Mais ainda, um passado

torturante marcado pelo verbo no futuro do pretérito, fadado a tudo aquilo que poderia

ter sido e que não foi. A impressão que o leitor recebe é a de que o personagem central

está em constante mise en abîme. A memória obsessiva impõe-se como título e estrutura

do romance.

Junto com essa lembrança perturbadora o personagem de Graciliano também

passa pelo ato de recordar ou rememorar. Para construir uma verdade que dê conta da

memória involuntária que o persegue, é preciso escrever. E para isso, um dos recursos

estéticos mais recorrentes na obra do autor é o que convencionei chamar de memória

binocular. A expressão partiu da leitura de um fragmento de texto, logo no início de

Memórias do cárcere: “Omitirei acontecimentos essenciais ou mencioná-los-ei de

relance, como se os enxergasse pelos vidros pequenos de um binóculo; ampliarei

insignificâncias, repeti-las-ei até cansar, se isto me parecer conveniente”. (2008, p. 14).

Aliás, não muito diferente do que Paulo Honório diz no início de São Bernardo:

“Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e

dispensáveis. Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie

suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes”. (2008,

p. 11). Aqui a memória seletiva é consciente e reveladora. Os personagens parecem

assumir as fissuras invioláveis da lembrança, sempre manipuladas pelo discurso e pela

ficção que se pretende comunicar.

Outra técnica narrativa que o autor utiliza remete a uma espécie de memória

esfumaçada, como se fossem flashes de memória que se fragmentam em função de

uma imagem que perde a nitidez em nossa lembrança. Podemos observar esse aspecto

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ainda em Memórias do Cárcere, em vários momentos, como exemplo: “Suponho haver-

nos retardado ali, de pé, meio indiferentes, avançando um passo, outro passo, como

bichos miúdos a caminhar para uma goela de cobra; mas isto é reminiscência quase a

apagar-se, neblina de sonho”. (2008, p. 420).

É interessante pensar que Graciliano assume as falhas da memória, ao passo que

por vezes nos dá riqueza de detalhes, desde o cenário às expressões mais febris da alma

humana. Devemos desconfiar dessa reminiscência que se retarda, em contrapartida aos

nomes dos companheiros de cela, exaustivamente citados em grande número, com a

distinção de caracteres bem apanhados e desvendados, pessoas com as quais nunca mais

teve contato. Pura manipulação do material não ficcional. Podemos citar o mesmo

recurso em Angústia:

Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas

insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As minhas

ações surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra pessoa. Penso nelas com indiferença. Certos atos aparecem

inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por onde

transitei perdem a nitidez. (2008, p. 130).

Apesar de estar presente em grande parte dos romances, em nenhum deles a

memória esfumaçada é tão utilizada quanto em Infância. Este recurso possui a perfeição

da realidade psicológica do personagem. Para dar conta dessa realidade é necessário

“ampliar insignificâncias” e, por vezes, omitir “acontecimentos essenciais”. Aqui parece

compor a forma mais precisa para revelar as reminiscências da infância, desde a mais

tenra idade. Os rostos não são reconstituídos, a descrição é muito escassa, no que toca a

necessidade do real, mas extremamente rica no que toca às primeiras impressões de

memória e à estética empregada:

A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça

vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde

o vi, quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do

vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a

ter comunicado a pessoas que a confirmaram. (RAMOS, 2008, p. 9).

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Ou ainda:

De repente me senti longe, num fundo de casa, mas ignoro de que

jeito me levaram para lá, quem me levou. Dois ou três vultos

desceram ao quintal, de terra vermelha molhada, alguém escorregou, abriu no chão um risco profundo. Mandaram-me descer também.

Resisti: o degrau que me separava do terreiro era alto demais para as

minhas pernas. Transportaram-me – e adormeci, não cheguei a pisar no barro vermelho. (idem , p.11).

Antes dessa última cena, o narrador-personagem narra lembranças de uma sala

de aula. Ele diz que a recordação da escola primária é bem nítida, mais nítida que o vaso

do primeiro fragmento citado. De repente, de um flash a outro, a imagem vem à tona

bem mais escondida pela fumaça do tempo. Se na cena anterior o leitor recebia

informações mais precisas como “Um velho de barbas longas dominava uma negra

mesa” (ibidem, p. 10), agora as pessoas são vultos. Reparemos na indeterminação do

sujeito em: “Mandaram-me”; “Transportaram-me”.

Os eventos negligenciados pela memória parecem corroborar com a infância

traumatizada e, assim, como em todos os romances de Graciliano, o tema transforma-se

em forma. O mesmo processo ocorre em Angústia. O escritor nesse romance fez

prosperar o personagem que Antonio Candido, no ensaio “Ficção e confissão”, chamou

de “mais dramático da moderna ficção brasileira – Luís da Silva”, ao que o crítico

indica: “Raras vezes encontraremos na nossa literatura estudo tão completo de

frustração” (2006, p. 47). E não nos esqueçamos da palavra “frustração” que, muito bem

empregada, parece comandar os narradores graciliânicos.

O crítico chega a afirmar que é um “romance excessivo, contrasta com a

discrição, o despojamento dos outros, e talvez por isso mesmo seja mais apreciado,

apesar das partes gordurosas e corruptíveis (...) que o tornam facilmente transitório”

(idem, p. 47). Aqui, Candido retorna ao ponto, já mencionado, de um dos equívocos

mais cometidos sobre a obra do autor de Vidas Secas. Cito este romance porque,

justamente pelo vigor e pela marca única (só deixada por João Cabral, na poesia),

Graciliano ficou identificado pela secura e aspereza da linguagem. Sempre sóbria, com

vocação ao essencial em pouco espaço.

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Está claro que o autor de Vidas Secas pode ser analisado sob esse ângulo, talvez

o autor de Caetés, mas o autor de Angústia, Memórias do cárcere, Infância e São

Bernardo não. As partes “gordurosas” se fazem necessárias diante de um narrador

fracassado e impossibilitado de agir, torturado pela mente invejosa e obsessiva e com

características externas, inclusive físicas que demonstram a sua mediocridade. Luís da

Silva é curvado, só enxerga os pés, passa o romance inteiro com a mente convulsa

diante de tudo que poderia ter feito e que não fez, sua única atitude o deixa febril e

doente por dias. Matar Julião Tavares foi uma ação equivocada se pensarmos a

estagnação do narrador-personagem. São frases e, por vezes, fragmentos inteiros

repetidos como a reafirmarem a obsessão eloquente, o tema da angústia revela-se como

pura estética do romance.

Ronaldes de Melo e Souza, em “A ficção dramática de Graciliano Ramos”, a

propósito de uma citação da crítica de Graciliano a Newton de Freitas, faz a seguinte

advertência:

De fato e de direito, a ficção narrativa é o único discurso em que o

narrador tem acesso à interioridade dos personagens. (...) a narrativa representa o efeito passional dos acontecimentos nos personagens, e

não os acontecimentos em si mesmos. (SOUZA, 2010, p. 188).

Tal assertiva é imprescindível para se entender a obra graciliânica. Se em Vidas

Secas os personagens vivenciam a seca, seja ela pela fome ou pela impossibilidade de

fala, a interioridade manifestar-se-á nesse plano de significados. Assim, para acessar as

almas agrestes, utiliza-se o discurso indireto livre, com frases curtas, quase sem

adjetivos, cortantes e desprovidas de passionalidade. Fabiano, diante do travessão que

enuncia a sua fala, geme apenas um “An!”. Em contraponto, se Luis da Silva é

abocanhado por um ódio lancinante, e por uma obsessão verborrágica, a narrativa vem

vazada de repetições anunciando que algo está sem controle. Para reafirmar a questão,

podemos citar o seguinte trecho:

Não tenho consciência dos movimentos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo fico assim. Provavelmente um segundo, mas um segundo que

parece eternidade. Está claro que todo o desarranjo é interior. Por fora

devo ser um cidadão como os outros, um diminuto cidadão que vai

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para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer. Mexo-me,

atravesso a rua a grandes pernadas”. (2008, p. 25-26).

Diante da angústia dramática, Luis (em Angustia) é invadido pela lembrança

involuntária e asfixiante de Marina. É impossível retomar o trabalho, tudo lhe provoca

um ódio lancinante. A mulher é esfacelada pelos anagramas formados com as letras do

nome de Marina. O personagem revela-se sádico, e ao observar Marina, a linguagem

construída por Graciliano mostra um campo de observação no qual o próprio modo de

narrar faz com que a mulher seja novamente retalhada e devorada por Luís.

Junto com o ato involuntário dessa lembrança vem o processo de rememoração.

Este, inevitavelmente, vem marcado pelo caráter pessimista do narrador. Logo no início

do romance, o bonde servirá como metáfora da recordação, da volta ao passado. Assim,

como nos exemplos citados, a memória binocular servirá de artifício para privilegiar ou

deixar para trás determinadas cenas:

Rua do comércio. Lá estão os grupos que me desgostam. Conto as

pessoas conhecidas: quase sempre até os Martírios encontro umas

vinte. Distraio-me, esqueço Marina, que algumas ruas apenas separam de mim. Afasto-me outra vez da realidade, mas agora não vejo os

navios, a recordação da cidade grande desapareceu completamente. O

bonde roda para oeste, dirige-se ao interior. Tenho a impressão de que ele me vai levar ao meu município sertanejo. (RAMOS, 2008, p. 12).

Aqui, ampliar insignificâncias faz com que o personagem se livre do presente

malogrado. O passado é revivido e expurga as dores sofridas na cidade. O interior do

narrador ainda é permeado pelas vivências do sertão. O sertão vive no interior do

narrador-personagem. “Quanto mais me aproximo de Bebedouro mais remoço. Marina,

Julião Tavares, as apoquentações que tenho experimentado estes últimos tempos, nunca

existiram” (idem, p. 12). A rememoração funciona como forma de esquecimento da

vida miserável com Marina. Nessa busca incessante, Luis da Silva tenta se salvar da

memória involuntária que retorna sem parar, uma angústia sem fim.

Já no início do romance o narrador revela duas faces importantes para se

compreender Angústia:

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Também me inclinava a admitir que fossem sapos. Mas os sapos do

açude da Penha cantavam de outra forma. Não podiam ser sapos. A

verdade é que muitas vezes perguntei a mim mesmo se realmente ouvia aquele barulho grande, diferente dos outros barulhos. Perguntei

naquele tempo ou perguntei depois? Não sei. Tenho-me esforçado por

tornar-me criança – e em consequência misturo coisas atuais a coisas

antigas. (2008, p. 20).

Em alguma medida, ele consegue alcançar o objetivo. Retorna à fase da infância

e revive o passado desejado. Nessa tentativa (logo fracassada) as micronarrativas são

invadidas pelo tema principal. Com a fusão indiscernível entre passado e presente,

assim como em São Bernardo, ouve um constante barulho que parece de sapos

coaxando. Barulho obsessivo e indiscernível, bem como o pio da coruja. O coaxar que

aparece na morte do pai e no momento do assassinato de Julião Tavares. Da mesma

forma que Paulo Honório, Luis da Silva parece querer entender o passado, os

personagens de Graciliano são incapazes de superar o passado malogrado. Há sempre

uma voz que retorna e se confunde com o presente, porque o passado é o presente e será

o futuro deles, o passado é o resquício de prisão relatado em Memórias do cárcere. A

vida miserável e a incompreensão dos fatos motivam a memória por meio de um

“desarranjo interior” (2008, p. 26) que os motiva à escrita.

Pensemos agora em São Bernardo. O ato involuntário da lembrança vem com o

assombro a partir da morte de Madalena. Cada vez que houve o pio da coruja, Paulo

Honório estremece e pensa em Madalena, mais do que isso, a ameaça será a motivação

constante para a escrita, como indica Godofredo de Oliveira Neto. No capítulo XIX –

considerado por Antonio Candido “um dos mais belos trechos da nossa prosa” (2006, p.

46) – na tentativa de rememorar algo das palavras de Madalena, Paulo Honório confessa

o seu fracasso, há algo que ele não pode exprimir:

Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de

uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida

agreste, que me deu uma alma agreste.

E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa?

Para nada, mas sou forçado a escrever. (RAMOS, 2008, p. 117).

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A força que o motiva a escrever é a incompreensão do suicídio de Madalena.

Esta rompe com o sentimento de propriedade do dono da fazenda São Bernardo. O

desconhecimento da carta de suicídio, que ele acreditava ser de um amante, faz de

Madalena um fantasma inquietante. Na tentativa frustrada de ler essa mulher, a partir

das reminiscências do passado, o delírio auditivo provoca uma confusão espaço-

temporal própria da esquizofrenia: “Estamos na fronteira: o outrora é o agora”, segundo

Godofredo. (1990, p. 80). Paulo Honório se pergunta: “Terá realmente piado a coruja?

Será a mesma que piava há dois anos?” (RAMOS, 2008, p. 119). Não há discernimento

entre passado e presente, mesmo em relação aos sentimentos:

Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação

antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranquila. Mas estou assim. Irritado contra

quem? Contra mestre Caetano. Não obstante ele ter morrido, acho

bom que vá trabalhar. Mandrão! (idem, p.119).

A tensão entre passado e presente, principalmente no capítulo em análise,

evidencia a incapacidade da “alma agreste” de rememorar ou reconstituir Madalena. Se

a coruja provoca o ato involuntário da lembrança da mulher, Paulo Honório, diferente

dos outros autores ficcionais de Graciliano, está inapto a reconstituir os fatos, tudo é

escuridão. A incapacidade de esquecer faz com que os sentimentos retornem e o pio,

assim como o coaxar dos sapos em Angústia, construa uma ligação indiscernível: os

personagens estão condenados a viverem no/o passado. Partindo desse argumento, é

interessante verificar o constante uso do futuro do pretérito nos romances de Graciliano.

São verbos que aproximam o passado do presente e fazem com que eles se misturem.

Um passado que mistura o acontecido distante e o próximo, um ano a um segundo.

A estrutura psicológica e estética do romance produz um embate entre esse

Paulo Honório – que sofre o que Candido chamou de “fissuras de sensibilidade” – e o

Paulo Honório homem de propriedade, com a secura dos atos e com a paisagem interior

ríspida, agreste, tal qual o Nordeste como metáfora, criado por João Cabral de Melo

Neto. É interessante pensar a dualidade do eu deste narrador-personagem a partir do

próprio desejo de iniciar uma “história de rudimentos de agricultura e pecuária”,

construída pela divisão do trabalho e que, fadada ao fracasso, põe dois capítulos de lado.

Mais do que isso, faz com que o dono da São Bernardo, ao ouvir o pio da coruja,

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escreva sem se indagar se o ato lhe trará qualquer vantagem. Ambos brigam por narrar-

se. O Paulo Honório de outrora e o de agora.

Os dois planos de tempo psicológico, e os dois planos de tempo cronológico, ao

se misturarem, revelam a incapacidade desse homem de rememorar. Se nos outros

romances citados a memória binocular ou a memória esfumaçada acompanham ou

formam estruturas narrativas partindo da psicologia dos personagens, aqui não será

diferente.

Apesar de os críticos terem encontrado em São Bernardo a perfeição do ato

criativo de Graciliano Ramos, Caetés (romance de estreia) já germinava características

que viriam a se efetivar nos romances posteriores. João Valério, narrador-personagem é

um escritor fracassado que, tal qual Paulo Honório, não consegue passar dos dois

primeiros capítulos do romance. Caetés, que viria a ser o título do romance sobre a tribo

antropofágica e a execução do Bispo Sardinha, torna-se metáfora da sociedade na qual o

personagem está inserido. A narrativa possui um discurso obsessivo e lembra, muitas

vezes, Luis da Silva. João Valério chega a pensar em suicídio, mas sente-se fraco

demais para tal feito, assim como o personagem de Angústia. Há um constante fluxo de

consciência que revela a imagem da culpa e do autoflagelamento excessivo, muitas

vezes demonstrado pela utilização do verbo no futuro do pretérito. O personagem não se

move, está paralisado pela autoacusação e pelos mistérios que envolvem Luísa – alvo de

seu amor obsessivo, bem como as outras mulheres dos romances posteriores. Uma

coruja também passa anunciando o mau agouro.

Tendo em vista as características ficcionais apresentadas, pretende-se vincular

este trabalho aos estudos de narrativa da literatura brasileira, priorizando os diferentes

modos de narrar e a estrutura da linguagem na obra de Graciliano Ramos. Mais

especificamente, mostrar a importância do projeto estético relacionado à memória.

Estudos recentes, bem como os produzidos desde a publicação do primeiro

romance do autor, em 1933, costumam privilegiar os aspectos sociais como ponto de

enfrentamento diante da concepção literária de Graciliano. Publicado em 2008,

Graciliano Ramos: um escritor personagem, de Maria Izabel Brunacci, amarra a

literatura ao processo cultural e social do país e ao posicionamento do escritor diante da

sociedade. O ensaio produz o que Ana Laura dos Reis chamou de “chão histórico da

nação no sistema de capital mundializado”. (In.: BRUNACCI, 2008).

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O discurso memorialista, marca constante da literatura brasileira, também é um

dos temas mais recorrentes em todo o percurso literário do escritor. O discurso

autobiográfico parece ter um trajeto de grande inquietação teórica, principalmente na

literatura produzida a partir do modernismo. Como exemplo, a tese de doutorado de

Wander de Melo Miranda, publicada em 1992, com o título Corpos escritos. Neste o

autor faz uma análise comparativa entre a obra de Graciliano Ramos e Silviano

Santiago, dando maior destaque ao Memórias do Cárcere e ao Em Liberdade.

Wander propõe uma leitura na qual os mecanismos internos de organização

textual e o discurso autobiográfico se coadunam para dar uma voz particular a esse tipo

de gênero literário. Aqui vai um fragmento muito interessante no qual o autor da tese,

sob o capítulo “Graciliano Ramos ficção autobiográfica”, assume como uma

característica muito importante para o argumento aqui levantado em torno da memória

binocular: “torna-se evidente que seus personagens não são meros reflexos “fingidos”

mas que se apresentam com maior ou menor nitidez, dependendo do grau de

“fingimento”, a variada personalidade do autor” (1992, p. 44).

Apesar de tratar a questão partindo do caráter autobiográfico, ao verificar esse

processo de aproximação e afastamento revela, inevitavelmente, o formato narrativo

memorialista pela metáfora do binóculo, na qual o próprio Graciliano assume (vestido

da máscara ficcional) a ansiedade de privilegiar determinadas cenas ou características

psicológicas, em detrimento de outras.

Ainda que algumas questões corroborem a hipótese levantada nesta tese, Wander

não irá tratar especificamente sobre a forma que configura o processo mencionado,

Memórias do Cárcere permanece sendo estudado sob a ótica da autobiografia. O

presente trabalho tem como ponto de partida, para análise de Infância e Memórias do

Cárcere, considerá-los unicamente como romances memorialistas, respeitando as

mesmas estruturas empreendidas pelo autor nos outros livros. Muito além de em toda

obra de Graciliano se observar o caráter de embate entre ficção e não ficção, o romance

póstumo do escritor diz-nos com clareza a possibilidade dessa leitura onde as fronteiras

entre o ficcional e o não ficcional foram rompidas.

Como já se sabe o romance de reminiscências da cadeia não fora concluído.

Ricardo Ramos, ansioso por completar algum sentido, que remetesse à intencionalidade

do último capítulo, conta-nos sobre as conversas com o pai sobre a inconclusa escrita

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final. Ao que Graciliano responde, de acordo com a reprodução de Ricardo: “Sensações

da liberdade. A saída, uns restos de prisão a acompanhá-lo em ruas quase estranhas”

(2008, p. 678). Esse fator saltou aos olhos de Silviano Santiago que, brilhantemente,

ofereceu a sua dicção ficcional para dar voz a Graciliano nesse momento pós-cárcere.

Agora vai uma dúvida: Será mesmo que Graciliano pretendia preencher essa

suposta lacuna? Se em todos os romances do escritor temos o título, e por consequência

a narrativa por inteiro, organizando a forma e o tema, em que consistiria dar aos leitores

os primeiros resquícios de liberdade? No entanto, deixado o capítulo de lado, sempre

adiado pela frase: “é coisa de uma semana”, recebemos a cadeia pura. E, junto com ela,

também uma profusão de adjetivos nunca vista em romances anteriores do autor.

O primeiro capítulo de Memórias do Cárcere inicia-se pela intenção de se

justificar quanto à hesitação em narrar as lembranças da cadeia. Logo de início, vem as

inquietações quanto a falar de criaturas vivas e que pudessem se ver com possíveis

deformações psicológicas ou realizando atos esquecidos, produzindo palavras

obliteradas. Graciliano faz algumas objeções até chegar à última: não ter resguardado

alguns apontamentos obtidos naqueles meses. No entanto, acaba por reconhecer a

importância da perda, do distanciamento dos fatos. Ao que logo depois indica:

Nesta reconstituição de fatos velhos, neste esmiuçamento, exponho o

que notei o que julgo ter notado. Outros devem possuir lembranças

diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas:

conjugam-se completam-se e me dão hoje impressão de realidade. (2008, p. 15).

O autor faz antes disso uma série de indagações sobre a ficção e a não ficção. E

por fim, entre outras, nos oferece essa explicação. É interessante notar a necessidade de

distanciamentos dos fatos, que comprova a constante intencionalidade de rememorar e,

mais ainda, trazer para a realidade não ficcional a ciência de ficção. O principal, a saber,

é de que forma ambas as dicotomias são vistas de acordo com o ponto de vista. Dessa

forma, como afirma Fernando Cristóvão, em seu vigoroso trabalho Graciliano Ramos:

estrutura e valores de um modo de narrar, “as personagens são como que desligadas

dos acontecimentos e entregues a si mesmas, podem então dar-se a maiores reflexões

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sobre os seus estados de alma, libertas da obrigação de serem sujeito ou objeto dos

acontecimentos” (1986, p. 94).

Mais ainda, e nisto consiste um maior interesse na argumentação, o que bem

poderia ser uma apresentação – se lhe fosse dada a voz do escritor Graciliano Ramos – é

o primeiro capítulo do romance. Estamos sim diante de uma voz que é a do Graciliano,

mas a do Graciliano autor empírico ou ficcional.

Sendo assim, pretende-se preencher a lacuna deixada, na análise de Infância e

Memórias do Cárcere, no que diz respeito ao fato de serem sempre analisados como

autobiográficos. Mais ainda, mostrar a relevância do aspecto memorialista na obra do

prosador alagoano, a partir dos outros romances já citados: Caetés, São Bernardo,

Angústia e Vidas Secas. Teremos como ponto de partida a relação entre o processo de

narração memorialista, de acordo com o tema, e a estrutura psicológica de cada

personagem. Logo, distanciando-se da análise de cunho social e político.

A partir dos aspectos mencionados, o presente trabalho pretende estudar os

diferentes modos de narrar pelo filtro da memória em Graciliano Ramos. Aqui a

memória é entendida sob dois ângulos: uma involuntária – que move os narradores-

personagens à escrita –, e outra voluntária – que pauta-se pela necessidade e busca de

rememoração. Com isso, a memória involuntária vem como tema: a enfermidade de

Adrião, a morte de Madalena, a obsessão por Marina, a vida seca, o trauma de infância,

e os resquícios de prisão; enquanto que, a voluntária, carrega a estrutura psicológica

para a estrutura narrativa de modo a lhe notar as particularidades. Para tanto, subdividi a

voluntária em dois aspectos para melhor compreensão: a memória binocular e a

memória esfumaçada.

Espera-se por meio deste trabalho lançar luz sobre a obra de Graciliano, de

modo a trazer a tona um autor que não só tinha preocupações sociais e políticas, mas

também com a estética da literatura e com a vida miserável da alma. Neste sentido, uma

preocupação que coaduna o visionário nordestino e o artista preocupado com as mazelas

também da alma humana. A partir da inquietação teórica e do compromisso com o

romance, mostrar como o processo de rememoração parece ser o foco principal nos

diferentes modos de narrar.

A memória vem sempre estruturada pela psicologia dos personagens e pela

ansiedade de se comunicar uma verdade, mesmo em Vidas Secas. Se os personagens

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não são capazes de produzir palavras ou organizar sentimentos, Graciliano se vale do

discurso indireto livre – ou monólogo narrado, tal qual afirma Ronaldes de Melo e

Souza – para dar voz à memória flagelada daqueles retirantes.

Pretende-se comprovar que o autor, em suas narrativas, não estabeleceu limites

entre ficção e não ficção. Entre reminiscências de Graciliano, Luis da Silva, Paulo

Honório ou João Valério ele se vale sempre das mesmas técnicas e expressões que

desequilibram a verdade. Portanto, é de extrema relevância comprovar que, diante do

esquecimento necessário para que a narração se inicie, todos são romances. Todos os

personagens estão marcados por um “desarranjo interior” – expressão retirada de

Angústia e que compõe o título desta tese.

Tendo em vista, ainda, o fato de cada livro revelar uma intencionalidade é

preciso retirar o caráter de linguagem áspera e expressões curtas, quase sem adjetivos,

atribuído a Graciliano, na medida em que, se nos voltarmos para Caetés, São Bernardo,

Angústia, Infância, ou Memórias do cárcere, poderemos verificar outra estrutura, rica

em adjetivos e com expressões mais extensas.

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2. Graciliano Ramos: sobre a literatura e o caráter de ficção

O conceito de Literatura se modificou ao longo de centenas e centenas de anos e,

ainda hoje, gera muita confusão diante da necessidade de classificar aquilo que pertence

ou não a tal gênero artístico. Como fora dito, o presente trabalho constrói uma análise

de Caetés, São Bernardo, Angústia, Vidas Secas, Infância e Memórias do Cárcere

considerando-os romances movidos por uma mistura indiscernível de ficção e não

ficção. Tal consideração parte da leitura das próprias reflexões do autor Graciliano

Ramos, seja em metalinguagem, seja em crônicas produzidas em jornais. Sabemos que a

classificação, por si só, causa polêmica. Dessa forma, neste capítulo, pretende-se

mostrar as inquietações do romancista ao pôr-se em escritura em diálogo com algumas

das principais reflexões sobre o caráter de Literatura e do uso dos termos ficção e não

ficção10

.

Em 1935, Graciliano Ramos era autor de Caetés e São Bernardo quando publicou

uma crônica intitulada “O romance de Jorge Amado”, analisando o livro Suor11

. O

início da crônica é elogioso, porque o livro de Jorge Amado, segundo Graciliano, destoa

de boa parte da produção nacional que se ocupa de coisas agradáveis, mostrando um

Brasil no qual tudo vai às mil maravilhas. É inevitável reconhecer que o escritor de Suor

estava comprometido com a denúncia de uma realidade escondida por debaixo dos

panos, numa tentativa de desnudar para os leitores um Brasil diferente daquele

veiculado pela ponte Rio/São Paulo.

10

Em texto ainda inédito, intitulado “O contrário de ficção não é realidade; é não ficção”, Alcmeno Bastos propõe esta oposição em detrimento da constante oposição entre ficção e realidade: “por vezes parece que a procedência verdadeira da matéria narrada atesta sua maior valia em relação à procedência não verdadeira. Essa hierarquização representa a aceitação de uma inferioridade intrínseca da ficção em relação à realidade. Não é acertado, portanto, apartar a ficção da realidade, porque isso ainda corresponde à aceitação de uma clivagem no interior da narrativa de ficção. O que deve ser feito é dizer, de modo singelo, que numa narrativa ficcional tudo é ficção, não importando, para afirmação desse estatuto, a procedência da matéria narrada, e os exemplos são abundantes (...), ou se ele os construiu livremente, obedecendo ao império da imaginação (e também aqui cabe a ressalva de que, em última instância, tal liberdade de invenção é limitada a uma espécie de rearranjo de elementos encontráveis mesmo na realidade empírica), no final tudo isso pouco importa. Mas é oportuno dizer coisas tão simples para que não se perpetue uma dicotomia arbitrária e inconsistente. É necessário dizer que a oposição não é entre ficção e realidade, mas entre ficção e não ficção”. 11 Romance de Jorge Amado, publicado em 1934. Possui características narrativas muito semelhantes as de O cortiço, de Aluízio Azevedo. O autor tinha por intuito desnudar uma cruel realidade provocada pelo sistema capitalista – partindo desse argumento, em vez de um cortiço, temos um prédio que se torna a personificação do fracasso de uma sociedade que massacra os trabalhadores, explorando-os e deles retirando direitos primordiais.

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É interessante notar que, nessa crônica, Graciliano insere Jorge Amado num grupo

de escritores que, hoje, chamamos de romancistas regionalistas da década de 30:

Os escritores atuais foram estudar o subúrbio, a fábrica, o engenho, a

prisão da roça, o colégio do professor cambembe. Para isso

resignaram-se a abandonar o asfalto e o café, viram de perto muita porcaria, tiveram a coragem de falar errado, como toda a gente, sem

dicionário, sem gramática, sem manual de retórica. Ouviram gritos,

pragas, palavrões, e meteram tudo nos livros que escreveram. Podiam ter mudado os gritos em suspiros, as pragas em orações. Podiam, mas

acharam melhor pôr os pontos nos ii.

O senhor Jorge Amado é um desses escritores inimigos da convenção e da metáfora, desabusados, observadores atentos. Conheceu, há

alguns anos, um casarão de três andares na Ladeira do Pelourinho,

Bahia, e resolveu apresentar-nos os hóspedes que lá encontrou (...).

(RAMOS, 2005, p. 129)

Com isso, Jorge Amado já seria merecedor de aplausos, porque trazia à tona uma

realidade pouco denunciada. No entanto, apesar de algumas passagens consideradas

admiráveis, o escritor baiano excedeu-se:

O autor examinou de lápis na mão a casa de cômodos e muniu-se de

anotações, tantas que reproduziu, com todos os erros, uma carta em

que se agencia dinheiro para igreja, uma notícia de jornal, um recibo e

um desses escritos extravagantes que as pessoas supersticiosas copiam, com receio de que lhes chegue desastre, e remetem a dez

indivíduos das suas relações. Esse amor à verdade, às vezes

prejudicial a um romancista, pois pode fazer-nos crer que lhe falta imaginação, dá a certas páginas de Suor um ar de reportagem.

(RAMOS, 2005, p. 130)

O escritor de Literatura para Graciliano deve fundamentalmente sentir e mostrar

o desarranjo interior causado por aquilo que o cerca. Sendo assim, aos personagens

devem ser emprestados sentimentos que se coadunam com a empatia daquele que

observa. O simples relato objetiva tanto a realidade que, desprovido de sentimentos

autênticos, descaracteriza a arte da literatura. Apesar de inspirado pela realidade que o

rodeia, o escritor deve se libertar das amarras do retrato fiel que desumaniza os

personagens. Estamos aqui falando de uma crônica cronologicamente distante de

Memórias do Cárcere, mas que faz lembrar algo muito importante que o autor enuncia

no primeiro capítulo desse romance:

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40

Não resguardei os apontamentos obtidos em largos dias e meses de observação: num momento de aperto fui obrigado a atirá-los na água.

Certamente me irão fazer falta, mas terá sido uma perda irreparável?

Quase me inclino a supor que foi bom privar-me desse material. Se ele existisse, ver-me-ia propenso a consultá-lo a cada instante, mortificar-

me-ia por dizer com rigor a hora exata de uma partida, quantas

demoradas tristezas se aqueciam ao sol pálido, em manhã de bruma, a

cor das folhas que tombavam das árvores, num pátio branco, a forma dos montes verdes, tintos de luz, frases autênticas, gestos, gritos,

gemidos. Mas que significa isso? Essas coisas verdadeiras podem não

ser verossímeis. E se esmoreceram, deixá-las no esquecimento: valiam pouco. Outras, porém, conservaram-se, cresceram, associaram-se, e é

inevitável mencioná-las. Afirmarei que sejam absolutamente exatas?

Leviandade. Em conversa ouvida na rua, a ausência de algumas sílabas me levou a conclusão falsa – e involuntariamente criei um

boato. Estarei mentindo? Julgo que não. Enquanto não se

reconstituírem as sílabas perdidas, o meu boato, se não for absurdo,

permanece, e é possível que esses sons tenham sido eliminados por brigarem com o resto do discurso. Quem sabe se eles aí se encaixaram

com intuito de logro? Nesse caso havia conveniência em suprimi-los,

distinguir além deles uma verdade superior a outra verdade convencional e aparente, uma verdade expressa de relance nas

fisionomias. Um sentido recusou a percepção de outro, substituindo-a.

Onde estará o erro? (RAMOS, 2008, p. 14-15)

Quando lemos uma reportagem observamos uma redução dos seres envolvidos à

ação cometida por eles. Não à toa, o jornalista, diante do comprometimento com a

verdade, jamais deve se envolver e produzir senso crítico sobre aquilo que se põe a

narrar – deve ser objetivo e direto. Diante de um crime passional, por exemplo, o

assassino é reduzido pela crueldade do ato cometido. Nós, leitores do jornal, não

conhecemos e não sentimos as emoções que motivaram o crime. Se quisermos

experimentar tais sentimentos, devemos esperar que um escritor apreenda a verdade do

crime e reestabeleça com imaginação e sentimento aquilo que motivou o assassino. Está

justamente aí uma das diferenças que se estabelece entre um texto comprometido com a

verdade e um texto que se absteve dela. Nunca saberemos de fato o que o homem sentiu

para ser impulsionado ao ato. Quando lemos o jornal, achamos inacreditável que alguém

tenha matado um ser humano só porque não podia ter a mulher que desejava. Menos

ainda, saberemos o que o assassinato causou no assassino. Em muitos casos, no crime

passional, o assassino acaba se entregando.

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Luis da Silva, em Angústia, comete um crime passional. Lava as mãos

obsessivamente e enlouquece. Apesar de ele ser o narrador-personagem e nos angustiar

com o seu percurso de sofrimento antes e depois do assassinato, não compactuamos

com a sua atitude, entretanto, a narrativa se torna verossímil diante de nossos olhos.

Quando nos voltamos para os primeiros conceitos sobre a arte, verificamos que ela,

primordialmente, segundo Aristóteles, não se sustenta pela imitação do mundo exterior,

mas pelo critério da verossimilhança, na qual a representação de uma possibilidade,

ainda que prenhe de ficcionalidade, pode ser muito mais palpável do que a objetivação

da realidade externa. Segundo Aristóteles, em Arte Retórica, no capítulo intitulado “Da

conveniência do estilo”:

O estilo terá a conveniência desejada, se exprimir as paixões e os

caracteres e se estiver intimamente relacionado ao assunto. Esta relação existe quando não se tratam de modo rasteiro assuntos

importantes, nem enfaticamente assuntos vulgares, quando não se

enfeita de ornamentos uma palavra ordinária; do contrário, cai-se no

estilo cômico (...) O estilo exprime as paixões, se, quando houve ultraje, a expressão é a de um homem irado; se a ação é ímpia e

vergonhosa, se adota um tom de um homem cheio de indignação e de

reserva nas palavras. Se a matéria é elevada, falar-se-á com admiração. Se é digna de compaixão, usar-se-ão termos de humildade.

E o mesmo nos demais casos. O que contribui para persuadir é o estilo

próprio do assunto. Neste caso, o ânimo do ouvinte conclui falsamente que o orador exprime a verdade, porque em tais circunstâncias os

homens são animados de sentimentos do orador que fala de maneira

patética, mesmo que o discurso careça de fundamento.

(ARISTÓTELES, s. d., p. 187)

A maneira particular com que cada autor humaniza seus personagens revelará

um estilo próprio, dessa forma, as circunstâncias bem delineadas serão muito mais

verdadeiras do que o discurso jornalístico desprovido de pathos. Neste particular, ainda

que pouco aprofundada enquanto ciência, Aristóteles já caracteriza a autenticidade da

literatura. Se nos voltarmos para o fragmento de Memórias do Cárcere, veremos a

importância que Graciliano atribui à associação de ideias e imagens como uma maneira

possível de tornar crível aquilo que é narrado. Uma biografia é desprovida dos artifícios

patológicos, tem como função fundamental levar para frente de cena um apanhado de

fatos que demonstram um determinado percurso da vida de alguém que tenha se

destacado na sociedade. Ao transcrever uma trajetória, o autor abre mão dos desarranjos

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e motivações internas que acompanharam a jornada do biografado. Graciliano mesmo

diz não possuir biografia, apenas algumas histórias para contar.

A distância dos fatos que Graciliano Ramos se impôs para escrever o romance

trouxe justamente o desprendimento documental, bem como ele anuncia querer. Ele

poderia citar nomes e delimitar seus conhecidos de prisão a adjetivos estereotipados,

alguns deles com os quais quase não conviveu. No entanto, opta por humanizá-los e,

como apenas os observava, empresta-lhes sentimentos através do seu binóculo de

romancista e nisto consiste a forma peculiar da escrita do autor em análise: seus

romances procuram denotar a mistura indiscernível entre ficção e não ficção.

Ainda na crônica sobre o romance de Jorge Amado, Graciliano aponta em Suor

uma falha na apresentação dos personagens:

O autor falha, porém, nos pontos em que a revolta da sua gente deixa

de ser instintiva e adota as fórmulas inculcadas pelos agitadores. As

figuras de Álvaro Lima, do anarquista espanhol, do comunista judeu, não têm relevo, apesar de serem as mais trabalhadas. Quando elas

aparecem, o livro torna-se quase campanudo, por causa das

explicações, das definições, que dão aos três personagens um ar

pedagógico e contrafeito. (RAMOS, 2005, p. 131)

Uma revolta que deixa de ser instintiva é justamente aquela que não

corresponde aos efeitos de verossimilhança. O mecanicismo identificado no livro de

Jorge Amado parte da ausência de sentimentos, de uma motivação interior que

humanizaria tais personagens. No decorrer de sua obra, até mesmo em crônicas e

entrevistas, Graciliano Ramos faz questão de declarar a importância de se escrever a

partir do observado e sentido, que o autor, como centro da narrativa, deve observar tudo

que o cerca (material não ficcional) e escrever de acordo com o que sente (material

ficcional). Ao inserir toques pessoais ao observado produz suas próprias ficções.

Quando encerra a crônica mencionada, ele reivindica tal processo de maturação da obra:

O Sr. Jorge Amado embirra com os heróis. Acha, por isso, que, em

Suor o personagem principal é o prédio. História. Não é muito difícil

emprestar qualidades humanas a um gato, a uma cobra, a um rato. Já houve quem humanizasse até formigas. Com um imóvel a coisa é

diferente. Dizer que ele “vive da vida dos que nele habitam” é jogo de

palavras. Em Suor há um personagem de carne e osso muito mais

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importante que os outros; é Jorge Amado, que morou na ladeira do

Pelourinho, 68 e lá conheceu Maria Cabassu e todos aqueles seres

estragados que lhe forneceram material para um excelente romance. (RAMOS, 2005, p. 133)

Neste fragmento, é importante notar o lugar do autor dentro do romance, tal qual

a visão de Graciliano. O autor, além de observador, é também personagem. Graciliano

Ramos procura identificar a vida do autor com a sua obra. De acordo com a análise

empreendida, um personagem que tem por obrigação emprestar aos outros os seus

próprios desarranjos. Dentre tantas cenas produzidas em Memórias do Cárcere, há uma

muito interessante em que o narrador-personagem avista da janela Sebastião Hora e o

advogado Nunes Leite. Enquanto o primeiro ia muito preocupado, o segundo chorava.

Graciliano estava à distância, não obteve informações e não tinha proximidade com os

personagens descritos. Com isso, preenche a lacuna do observado a partir do que a cena

lhe causou e de toda a realidade que os cercava. Ao preencher a lacuna, no decorrer de

quatro páginas, ele vai além do relato puramente não ficcional e documental. Para que

haja verossimilhança e enriquecimento dos tipos humanos que o rodeavam, ao longo do

romance ele amplia insignificâncias ficcionalizando situações corriqueiras:

Eu nunca havia notado coisa assim, nem imaginava que alguém

chorasse daquela maneira. Para bem dizer não havia lágrimas: era um borbotão a rolar no rosto, a cair na roupa, como se torneiras íntimas se

houvessem relaxado, quisessem derramar todo o líquido do corpo. À

luz forte do sol, o jato brilhava. Nenhum pudor, nem o gesto maquinal

de pôr as mãos na cara, tentar esconder a imensa fraqueza. Um soluço, único soluço, uivo rouco; não subia nem descia; enquanto durou a

passagem ressoou monótono, invariável: parecia que o homem não

tomava fôlego. Essa imagem de completo desespero me causou sombrio mal-estar.

Desapareceu – e algum tempo o desgraçado queixume ainda me feriu

os ouvidos, e diante dos olhos me ficou a máscara luminosa, que

semelhava tênue camada de parafina. Não evitei uma sensação de repugnância e desprezo: difícil supor uma criatura humana a

acovardar-se de semelhante jeito. Em seguida modifiquei e venci a

reação molesta e acusei-me de precipitação: Nunes Leite devia estar doente, devia ser doente. Não era senão isso. O lençol de água a correr

como fonte e o brado lamentoso indicavam desequilíbrio, pois não

havia razão para tais excessos. (RAMOS, 2008, p. 79-80)

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44

Há neste trecho uma divagação ao redor de um evento observado em que o

narrador-personagem põe em evidência sua ficção interna sobre o acontecimento. Além

disso, ele enriquece Nunes Leite atribuindo-lhe sentimentos e caracteres, dessa forma, o

leitor coloca-se na janela como espectador do ocorrido e chega a sentir empatia pelo

personagem objeto de reflexão. Há uma poeticidade e um tom quase dramático na vida

ficcionalizada que se sobrepõe ao acontecimento. Temos, como leitores, acesso ao

impacto que a cena causou no narrador-observador Graciliano Ramos. Este continua,

nas próximas páginas, esforçando-se por recordar o cotidiano de Nunes Leite, tentando

recuperar pequenos gestos que decifrassem o inenarrável. Começa a questionar se de

fato o homem estaria doente e, por fim, resolve enxergar naquelas lágrimas uma dor

coletiva, que refletia a realidade de todos que habitavam a prisão:

Nunes se movera entre firmes pedregulhos, julgara-os eternos; esses

blocos não se haviam liquefeito: tinham-se evaporado – e ele se

achava num deserto. A estampilha, a fórmula, as razões, necessidades venerandas, sumiam-se. Isto o desvairava. Uma prepotência

desabusada surgira – e aluíam sagradas muralhas de papel. Como seria

possível viver se se agastavam da vida o embargo, a diligência, a

precatória? Como admitir o desrespeito a uma sentença? Quebra dos valores mais altos, cataclismo. Todos os caminhos fechados. E o

infeliz soluçava, no desabamento da sua profissão. Impossível

defender o direito de alguém. Propriamente já não havia direito. A lei fora transgredida, a lei velha e sonolenta, imóvel carrancismo exposto

em duros volumes redigidos em língua morta. Em substituição a isso,

impunha-se uma lei verbal e móvel, indiferente aos textos, caprichosa, sujeita a erros, interesses e paixões. E depois? Que viria depois? O

caos, provavelmente. Se os defensores da ordem a violaram, que

deveríamos esperar? Confusão e ruína. Desejando atacar a revolução,

na verdade trabalhavam por ela. Era por isso talvez que o bacharel Nunes Leite chorava. (RAMOS, 2008, p. 82)

Nunes Leite é lançado nesse capítulo como uma espécie de um dentre todos os

heróis que conhecemos em Memórias do Cárcere. A voz do narrador-observador

Graciliano serve para enaltecer um suposto grandioso ato de compadecimento diante da

realidade que o Brasil enfrentava. A partir desse capítulo XIII, é interessante lembrar o

final do primeiro capítulo, no qual ele promete esconder-se ao máximo: “(...) não desejo

ultrapassar o meu tamanho ordinário. Esgueirar-me-ei para os cantos obscuros, fugirei

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às discussões, esconder-me-ei prudente por detrás dos que merecem patentear-se.”

(RAMOS, 2008, p. 16)

Quando um discurso se propõe confessional, esperamos dele que se apresente

através dos atos do autor que se põe a narrar. Há um intuito de relato esboçado pelo

pronome pessoal “eu”, no qual o narrador procura em seu leitor um cúmplice da fala,

um interlocutor que se voluntarie a se comover com a vida malograda que vivera. Não

há em Memórias do Cárcere um desejo de comoção perante a vida daquele que narra,

mas um desejo de mostrar o sofrimento coletivo dos habitantes do lugar. Neste anseio,

em vez de datar e ordenar a própria vida, o autor ficcionaliza a vida dos outros lhes

emprestando os próprios resquícios de prisão. Com isso, julga apresentar-nos alguns

personagens que lá conheceu. É interessante notar, como veremos em outro capítulo, os

vários momentos em que o narrador fala no sentimento de despersonalização que o

cárcere evidencia. Quando Graciliano resgata elementos não ficcionais e os aprofunda

pela lente do binóculo, resgata personagens com nomes não ficcionais e os aprofunda

também pela lente do binóculo, ele os resgata desse processo de despersonalização – na

medida em que, agora, deixam de ser objetos puramente documentais e passam a ser

concretos e, portanto, verossímeis (ainda que, provavelmente, não correspondam a

memória de outros observadores).

“Os donos da literatura” (1937) e “Os sapateiros da literatura” (1939) são

crônicas produzidas a partir da distinção de dois tipos de escritores, segundo Graciliano

Ramos. Uma distinção muito relevante para se chegar mais uma vez ao caráter de

literatura para o autor aqui estudado. Como vimos, a crítica ao romance de Jorge Amado

pautava-se pelo fato de ele não ajustar as observações cotidianas de personagens, que

serviriam como material de escrita, aos sentimentos internos que aqueles o provocavam.

Sendo assim, padeciam de autenticidade e, desumanizados, caíam num discurso

artificialmente didático e, logo, inverossímil. Um escritor de literatura deve, portanto,

evitar que a natural observação da realidade que o cerca se enfraqueça pela ausência de

pathos em seus personagens: os sentimentos que ainda habitam a nossa alma caeté ou

selvagem. Essas crônicas revelam, justamente, a discrepância entre os textos de ambas

as faces do escritor de acordo com o intuito ao pôr-se em escritura – o que lançará sua

escrita ao status de literatura ou não.

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No primeiro, Graciliano diz ter encontrado um suposto poeta que se queixava de

certos donos da literatura: “(...) uns figurões que se tornaram, com habilidade,

proprietários da literatura nacional, como poderiam ser proprietários de

estabelecimentos comerciais, arranha-céus, usinas, charqueadas ou seringais.”

(RAMOS, 2005, p. 138). Segundo ele, existe uma literatura honorária, escrita por

figurões endinheirados, que é vazia e produzida para se obter certa glória social. Em

contrapartida, há uma literatura efetiva, “mal vestida e de segunda classe, mora no

interior ou vegeta aqui, no subúrbio, e viaja a bonde, às vezes de pingente”. (idem, p.

139). Utilizando artifícios literários, Graciliano Ramos nos oferece uma metáfora da

literatura que, como resultado do meio sociocultural, representa interesses pessoais e

sociais de acordo com a mão que a produz. Podemos então pensar que uma literatura

honorária, feita para impressionar, poderia ser escrita por qualquer um para brilhar nas

vitrines com o nome de quem a encomendou. Já a efetiva, ao contrário das “que falam

com perfeição línguas difíceis e sabem frequentar embaixadas” (idem, p. 139), é suada e

bem fraquinha diante da sociedade e, portanto, “só desembucha no papel”.

No segundo, Graciliano parte de uma ideia sustentada por Mário de Andrade que

obteve pouco destaque e, portanto, pouca problematização em torno dela. A ideia

circula em torno do fato de que para se dedicar à escrita é preciso saber escrever.

Partindo de tal premissa, tão simples e certa, Graciliano Ramos compara o ofício de

escritor à mão de obra do sapateiro, como fizera em outros momentos com outras

profissões menos abastadas:

Dificilmente podemos coser ideias e sentimentos, apresentá-los ao

público, se nos falta a habilidade indispensável à tarefa, da mesma forma que não podemos juntar pedaços de couro e razoavelmente

compor um par de sapatos, se os nossos dedos bisonhos não

conseguem manejar a faca, a sovela, o cordel e as ilhós. A comparação efetivamente é grosseira: cordel e ilhós diferem muito de

verbos e pronomes. E expostos à venda romance e calçado, muita

gente considera o primeiro um objeto nobre e encolhe os ombros

diante do segundo, coisa de somenos importância. Essa distinção é o preconceito. Se eu soubesse bater sola e grudar palmilha, estaria

colando, martelando. Como não me habituei a semelhante gênero de

trabalho, redijo umas linhas, que dentro de poucas horas serão pagas e irão transformar-se num par de sapatos bastante necessários. Para ser

franco, devo confessar que esta prosa não se faria se os sapatos não

fossem precisos. Por isso, desejo que o fabricante deles seja honesto,

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não tenha metido pedaços de papelão nos tacões. E espero também

que os meus fregueses fiquem satisfeitos com a mercadoria que lhes

ofereço, aceitem as minhas ideias ou pelo menos, em falta disto, alguns adjetivos que enfeitam o produto. (RAMOS, 2005, p. 268)

Mais uma vez, em contrapartida, ele coloca a literatura efetiva ao lado do

trabalho esforçado e menos favorecido, ao passo que faz referência a literatos que

existiriam por nomeação. Literatos que ocupam lugares de destaque na sociedade, que

são bem vestidos e comem direito. Graciliano quer apontar os desníveis existentes

dentro das classes – sejam elas quais forem. No ofício do escritor, não basta falar

bonito, num exímio português que categoriza os seres que nos cercam. É preciso muito

trabalho para “coser ideias e sentimentos”, não basta observar e adornar a linguagem a

partir de uma ideia, é preciso dotá-las de imaginação e sentimento. Se em torno da

escrita existe uma necessidade de troféu e de glória é porque ela não é uma literatura

efetiva, mas honorária. A literatura não pode ser barganhada, com intuito de logro da

vaidade, com pitadas documentais e heróis débeis e enfraquecidos. A literatura efetiva

deve ser delineada pelos desarranjos diante da vida, sem que nos importe saber se nos

trará algum lucro. Quando ela passa a ser uma necessidade de um vivente, como

subsídio da própria existência, estamos ao sabor da verossimilhança.

Os verdadeiros trabalhadores e sofredores da escrita, que produzem a literatura

efetiva, abandonam a vaidade e se desapegam da realidade dos fatos. Tais prerrogativas

ficam bem claras nos dois primeiros romances de Graciliano Ramos. Em Caetés e São

Bernardo os narradores-personagens abandonam os dois primeiros capítulos. Ambos

queriam, inicialmente, se destacar na pequena sociedade em que viviam. Tornarem-se

notórios por uma junção de boa língua a um tratado histórico sobre a nação caeté e

sobre a agropecuária, respectivamente. Não demoraram muito para se entregarem ao

fracasso, porque seus próprios desarranjos interiores (des)virtuaram o caminho da

escrita. Passam, então, da literatura honorária à literatura efetiva. Abandonam a

artificialidade documental para darem voz aos sentimentos mais escondidos. Para o

escritor da literatura efetiva, a escrita é uma necessidade e não uma conveniência.

Sartre em Que é a literatura? faz uma distinção entre prosa e poesia, como se a

primeira correspondesse a escrita pura e conveniente e a segunda pertencesse a arte da

literatura, sendo uma necessidade que se impõe. Ao distingui-las, portanto, pela forma

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como o escritor se põe diante da escrita temos uma perspectiva que bem se relaciona à

imagem criada por Graciliano Ramos. Segundo Sartre, não há temas que possam se

situar a priori fora da arte literária: “Os temas sugerem o estilo, mas não o comandam”

(SARTRE, 2015, p. 31). “Ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas,

mas por haver decidido dizê-las de determinado modo.” (idem, p. 30). João Valério e

Paulo Honório, apesar do intuito inicial, não demoram a perceber isso. Para escrever um

romance tiveram que jogar os dois capítulos no lixo, na medida em que, aos poucos, se

impunha uma necessidade interior em detrimento dos caprichos gloriosos.

Ambos os narradores abandonam a demanda social e moral em prol de um

desejo interior que se impõe com vigor. Um desejo que toma posse de suas mãos e os

leva por outros caminhos pouco explorados. A Paulo Honório se impõe o desejo de

desvendar Madalena, enquanto que a João Valério se impõe a descoberta da alma caeté

como fundamento de todos os seres humanos. Dessa forma, este passa a identificar no

próprio cotidiano uma sociedade pautada pelos mesmos instintos selvagens dos

antropófagos.

Barthes, em A preparação do romance, no capítulo sobre “O desejo de escrever”

diz:

Por que escrevo? – Poderia ser, entre outras coisas, por dever: por exemplo, para servir a uma Causa, uma finalidade social, moral,

instruir, edificar, militar ou distrair. Essas razões não são

negligenciáveis; mas eu as vivo um pouco como justificativas, álibis,

na medida em que elas fazem com que o Escrever dependa de uma demanda social, ou moral (exterior). Ora, tanto quanto me permite

minha lucidez, sei que escrevo para contentar um desejo (no sentido

forte): o Desejo é a origem – Não posso dizer que o Desejo é a origem do Escrever, pois não me é dado conhecer inteiramente o meu Desejo

e esgotar sua determinação: um Desejo sempre pode ser o substituto

de outro, e não compete a mim, sujeito cego, mergulhado no imaginário, explicar meu Desejo de escrever tem um ponto de partida,

que posso localizar. (BARTHES, 2005, p. 11)

O romancista alagoano está sempre incomodado com a escrita que se faz a partir

de uma causa ou finalidade. Sabemos que, por trás dos escritores, há sempre uma

vontade quando eles se põem a narrar, na maioria das vezes escondida pela própria

fabulação. No entanto, é importante ressaltar que Graciliano Ramos em sua obra

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procura deixar marcas da relação que ele enquanto personagem-autor estabelece com

sua produção. Tal efeito tem raízes naquele pensamento sobre o autor que não se

esconde e que não deve deixar de emprestar sentimentos aos personagens. Ou, ainda,

sobre o autor ter um comprometimento com o observado e sentido.

Um autor pode servir à realidade da seca, caracterizando o exterior que rodeia os

viventes do nordeste – correspondendo à finalidade social de denúncia. Mas estaríamos

diante de personagens didaticamente observados e analisados segundo uma mera visão

sociológica do acontecimento. O desejo como origem faz de um sujeito “mergulhado no

imaginário” um autor que realiza o interior dos viventes, olhando para dentro de si e

enxergando a maneira peculiar de a seca não ser somente a realidade social, mas

também a realidade psicológica daqueles que a vivem.

Não seria surpresa nenhuma se disséssemos que Graciliano Ramos escreve

partindo de conhecimentos e observações no decorrer da própria vida. Este é o ponto de

partida de todo escritor. Entretanto, é fundamental dizer que essa relação norteia o

conceito de romance para o escritor em análise – ele faz questão de deixar marcas nos

romances que dizem respeito a tal relação, antes somente subentendida pelo leitor.

Em Infância, sabemos que o narrador-personagem é Graciliano Ramos. Tendo

em vista tal aspecto, ele fora classificado como autobiográfico. Dentre outras

características narrativas, próprias do gênero romance e da estrutura ficcional, uma salta

aos olhos. Quando o narrador-personagem descreve Buíque, lugar no qual morou, faz

referência ao sítio de um tal de Paulo Honório: “Alguns becos rasgavam-se no tronco:

um ia ter à lagoa; outro fazia um cotovelo, dobrava para o Cavalo-Morto, areal mal

afamado que findava no sítio de seu Paulo Honório;” (RAMOS, 2008, p. 51).

Então Paulo Honório existiu? Há um paradoxo que não se resolve diante do

caso: a narrativa é não ficcional e, portanto, autentica a existência de Paulo Honório.

Ou, Graciliano resolveu dar toques de ficção no discurso arranjado sobre sua vida.

Independente ainda de tais aspectos, é impossível apagar o Paulo Honório que nós,

leitores, conhecemos. Seria então a história de São Bernardo verdadeira? Se quisermos

parafrasear o personagem-narrador de Memórias do Cárcere, poderíamos colocar uma

pedra dizendo que as memórias sobre Paulo Honório podem ser várias, de acordo com

ele mesmo ou com quem o observou, mas devemos respeitar as memórias de Graciliano

e a maneira como ele observou e sentiu a presença de tal personagem.

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Segundo Azeredo, num estudo sobre a construção dos sentidos do texto:

(...) a imaginação, a memória e os sentidos dialogam e se emprestam

valores e timbres, ecoam significados e refletem os efeitos de contiguidades eventualmente inusitadas. O que trazemos dentro de nós

por força dessa engenharia simbólica são na verdade textos possíveis

que, para usar a palavra do poeta, esperam ser escritos. E é aí que entra a palavra, não só a palavra que traduz e veicula um conteúdo de

consciência previamente definido – a palavra que nos familiariza com

o senso comum -, mas, principalmente, a palavra que abre caminhos, que escava a superfície da realidade imediata, que abala nossas

certezas e nos projeta em outros projetos de significação. (AZEREDO,

2007, p. 81)

A obra produzida por Graciliano reflete justamente essa relação com a palavra.

Há uma indiscernibilidade entre imaginação, memória e sentido que vai além do projeto

inicial de significação. O escritor nordestino faz questão de fazer notar ao leitor essa

inevitável trama da linguagem escrita. Tendo em vista a polêmica que se cria em torno

do caráter de literatura e, mais ainda, sobre o jogo entre ficção e não ficção, Luiz Costa

Lima escreveu História, Ficção, Literatura. Neste, o autor tem por objetivo primordial

a distinção entre a escrita da História e a da Literatura. De acordo com Costa Lima, a

História reflete a necessidade de fixar um conhecimento sobre o passado, enquanto que

a Literatura reflete uma verdade intermediada por um discurso híbrido.

Costa Lima faz um percurso sobre o problema teórico do tema desde Homero a

Os sertões e ao Memórias do Cárcere. Ao trazer para discussão o pensamento de Iser,

que substitui a dicotomia “realidade/ficção” pela tríade “real – fictício – imaginário”,

chega a seguinte conclusão:

O ficcional literário incorpora, ainda que de maneira velada ou

esotérica, parcelas da realidade. Não o define o grau em que o faz. Ao

caracterizá-lo por esse grau, confundimos a ficção com a fantasia e, a

seguir, ou a desprezamos – atitude do realista – ou a valorizamos – atitude do antirrealista -, seja porque ressaltamos a subjetividade dita

criadora, seja, ao contrário, porque julgamos que tal fantasia se

apropria do núcleo duro da realidade. O realismo então se torna o ponto de referência em torno do qual giram as opções ideológicas.

Ora, se todo juízo humano sofre o efeito do lugar físico e social em

que é concebido, converter o peso do lugar em pressão ideológica

significa abstrair-se de dizer qualquer coisa mais sobre o objeto de que se esteja tratando. E isso porque a interpretação que dele se ofereça

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seria aceita ou recusada em decorrência da anuência ou rejeição da

ideologia que a preside. Em suma, a qualificação de um texto como

realista enclausura intérprete e leitor em uma posição previamente demarcada. (COSTA LIMA, 2006, p. 282)

Há neste fragmento uma prévia aceitação de que, a literatura, sempre será

produzida a partir da realidade. Apontamento de fácil constatação na medida em que,

mesmo em textos que se propõem fantásticos, conectamo-nos com a objetividade da

língua, dos objetos e dos seres que estão a nossa volta cada vez que imaginamos ou

escrevemos. Apesar de a realidade ser incontestável, de maneira nenhuma ela pode,

como apontado, ser o centro do discurso. Até mesmo porque sempre haverá um eterno

desejo do irrealizável entre autor e leitor. Se continuássemos nos detendo a uma suposta

mensagem pré-concebida, seríamos frustrados por jamais alcançar o texto por completo.

O autor alagoano ao fazer-se notar pela mistura de discursos quer justamente nos

dizer que foge da realidade objetiva. Ao optar pelo discurso memorialístico em seus

romances revela que o narrado está intrinsecamente arraigado pela subjetividade do

narrador-personagem que fala. Mais ainda, ao misturar referências notórias da vida do

autor Graciliano Ramos, tece um jogo intrincado no qual as noções ficcionais se perdem

por completo. Não sabemos dividir e quantificar elementos ficcionais e não ficcionais.

Quando falamos em memórias, pressupomos um discurso subjetivo sobre a vida

daquele que se enuncia. No entanto, como já vimos, é recorrente na obra do autor ora

estudado o empréstimo de sentimentos para que outros se sirvam dele. Na história da

literatura passamos por alguns impasses, muito em função da originalidade de certos

escritores, no que diz respeito à interpretação e à necessidade enraizada de classificação.

Dessa forma, quando o autor de um romance constrói uma obra dialética e aberta,

sentimos a ansiedade de classificar e de procurar um sentido que se feche. Assim,

surgiram acusações sem fundamento contra Flaubert, Dostoievski, dentre outros.

É conhecida a polêmica em torno de Dom Casmurro. Segundo Costa Lima:

O crítico português Abel Barros Baptista assinala que a recepção brasileira do Dom Casmurro, depois do livro de Helen Caldwell, The

Brazilian Othello of Machado de Assis (1960), passou a destacar, em

oposição à leitura tradicional, que Capitu era vítima do processo armado contra ela pelo narrador. Impôs-se então a inversão, sem se

considerar que “a possibilidade da inocência [de Capitu] é inseparável

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da possibilidade de culpa” (Baptista. A. R.: 1998, 497). Por que esse

terceiro caminho teria sido bloqueado? O crítico português oferece

duas respostas: a) porque fazê-lo seria admitir a indecidibilidade do romance: “[...] A crítica machadiana sempre sentiu [a necessidade] de

se assegurar que Machado, embora recorrendo ao autor suposto, não

abandona as suas obras ao movimento imprevisível, aos riscos e

sobressaltos de uma destinação indeterminada” (id., 375); b) o que era inadimissível porque o nacionalismo literário punha em segundo plano

a própria reflexão sobre a literatura: “[...] Ignoramos na literatura

brasileira o que é do domínio da literatura” (Baptista, A. B.: 1991, 39)

Capitu está condicionada à visão de Bentinho, Bento Santiago e Dom Casmurro

– vive a partir do olhar das três faces subjetivas de um mesmo homem. De fato, a

questão não se resolve e não deve o ser, Capitu é vítima e ré ao mesmo tempo. A

literatura pensada como uma ciência, com formatos e modos de abordagens diferentes

das outras artes, trabalha essencialmente através da figuração da linguagem – que pode

se dar em diferentes níveis. Quando se falava na citada literatura nacionalista,

estávamos acostumados a figuras de linguagem que se impunham pela beleza, pelo

engrandecimento das paisagens que atravessavam a linguagem muito mais poética e

imagética. Machado de Assis destoou e, de certa forma, foi positivamente

contracorrente na medida em que trouxe novos ares para a literatura produzida no

Brasil. Destoou não só da corrente mais romântica, como daquela na qual estaria

inserido: a realista.

Apesar das descrições externas, que diziam respeito ao funcionamento da

sociedade do Rio de Janeiro, suas narrativas se impunham pela exacerbação do interior

dos personagens. Elas não são objetivas, expondo somente a realidade inflexível, mas

sim subjetivas. Humanizam tanto os personagens que suas complexidades psicológicas

desnorteiam o olhar dos leitores – ainda acostumados à inviolabilidade do discurso do

narrador-observador. Em suma, como hoje já sabemos, inaugura de forma peculiar, aqui

no Brasil, o dialogismo e a polifonia apontados por Bakhtin na obra de Dostoievski.

Há uma pluralidade de consciências que se misturam e se tornam indiscerníveis.

Vemos então na obra de Machado de Assis o mesmo sentido construtor de Dostoievski:

A personagem interessa a Dostoievski enquanto ponto de vista

específico sobre o mundo e sobre si mesma, enquanto posição racional

e valorativa do homem em relação a si mesmo e à realidade

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circundante. Para Dostoievski não importa o que a sua personagem é

no mundo mas, acima de tudo, o que o mundo é para a personagem e

o que ela é para si mesma. (BAKHTIN, 2008, p. 52)

O autor não reserva para si, isto é, não mantém em sua ótica pessoal

nenhuma definição essencial, nenhum indício, nenhum traço da

personagem: ele introduz tudo no campo de visão da própria personagem, lança-lhe tudo no cadinho da autoconsciência. Esta

autoconsciência pura é o que fica in totum no próprio campo de visão

do autor como objeto de visão e representação. (idem, p. 53)

Verifica-se em Dom Casmurro um discurso polifônico que coloca em evidência

três vozes diferentes do mesmo homem em épocas distintas – assim, temos três Capitus

que se modulam de acordo com a voz que se enuncia. Na segunda citação, há um

aspecto importante que reflete a narrativa de Machado de Assis e destoa da proposta de

Graciliano Ramos. Segundo Bakhtin, a forma narrativa do escritor russo não traduz

vínculo com a ótica pessoal do autor por trás da obra, o que na obra de Machado de

Assis também podemos apontar. Entretanto, em Graciliano Ramos, apesar de uma clara

mistura de vozes produzida pelo personagem central que narra, há um desejo contrário

de reivindicar ao autor o empréstimo de sentimentos aos personagens que deles se

nutrem. De acordo com Graciliano, é impossível escrever se não pelo viés do olhar e do

sentimento provocado no homem por trás do texto.

Paulo Honório e Luis da Silva foram construídos de forma muito autêntica sob a

polifonia, como veremos nos próximos capítulos. Porém, em vez de se fixarem somente

vozes intercaladas de ambos os personagens, de São Bernardo e Angústia,

respectivamente, os tempos verbais entram em conflito dentro da mesma frase – o que

revelará uma espécie de discurso esquizofrênico. Os leitores não sabem mais se quem

fala é o Paulo Honório de outrora ou de agora – o mesmo em relação ao Luis da Silva.

As mulheres desses romances também estão condicionadas à perspectiva de ambos os

narradores.

Já foi dito que Paulo Honório pertence a um lugar híbrido, entre a ficção e a não

ficção, porque Graciliano Ramos insiste em deixar marcas de autoria. Em Angústia, não

foi diferente. O narrador-personagem é um revisor de texto e se enoja com a estrutura

funcional do ambiente no qual trabalha, Graciliano também o foi e manifestou várias

vezes aversão ao ranço editorial e jornalístico. Luis da Silva mora do Rio de Janeiro e,

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na tentativa de esquecer os desastrosos acontecimentos de sua vida na cidade, tenta

recuperar a infância em Buíque – onde Graciliano morou, de acordo com Infância e a

biografia do autor. Diante do esforço de recuperar tais lembranças, Luis da Silva ouve

os sapos, também mencionados em Infância.

Angústia começa com o narrador-personagem olhando para as vitrines de uma

livraria:

Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-

me que eles cresceram muito, e, aproximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.

Certos lugares que davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de

uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que

se acham ali pessoas exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição. Um sujeito chega, atenta,

encolhendo os ombros ou estirando o beiço, naqueles desconhecidos

que se amontoam por detrás do vidro. Outro larga uma opinião à-toa. Basbaques escutam, saem. (RAMOS, 2008, p. 7)

Este fragmento faz lembrar a crítica produzida na crônica já mencionada “Os

donos da literatura”, em que o autor fala sobre um grupo de escritores que produz

apenas por glória e dinheiro, com o intuito de empreender um negócio – como se

fossem proprietários de estabelecimentos comerciais: “Um dia destes, à porta de certa

livraria, um poeta queixava-se amargamente dos donos da literatura.” (RAMOS, 2005,

p. 138). Há sempre uma relação íntima entre a autoria e a ficção.

Ainda sobre Memórias do Cárcere, em crônica intitulada “Porão”, Graciliano

Ramos faz uma crítica ao fato de Newton Freitas12

estar publicando em jornais. A

crítica negativa se pauta na estrutura de seus personagens e na maneira rasa com a qual

descreve as situações da prisão:

Newton Freitas conta uma história pavorosa em linguagem simples.

Alguns idiotas que admiram o palavreado ficarão surpreendidos, mas

a gente sensata lerá o livro com interesse, achará nele a expressão justa que produz emoção e convence.

Digamos que não se trata de literatura. Esta palavra no mundo inteiro

exprime qualquer coisa séria, mas aqui se acanalhou, desgraçadamente. (RAMOS, 2005, p. 135)

12 Também preso na colônia correcional de Dois Rios.

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Newton Freitas é acusado de não escrever literatura por relatar de forma muito

objetiva as vivências no cárcere. Não há trabalho com a linguagem e, apesar de

convencer, perde em verossimilhança porque o autor não constrói a subjetividade dos

personagens. Graciliano insiste em dizer que, para se produzir literatura, é preciso

observar e sentir, mostrar ao leitor a maneira como as vivências foram experimentadas

pelas mentes dos personagens. No último capítulo, veremos como essa fala se repete em

diálogo com os seus tradutores argentinos. Lembremos que, a crônica agora citada, está

a quase dez anos de distância do início da escritura de Memórias do Cárcere. Graciliano

já havia manifestado interesse em escrever sobre os tipos conhecidos na cadeia, mas

ainda não começara tal intento. No entanto, apesar de partir das próprias vivências,

como sempre o fez, desde o início nega o rigor quase jornalístico a favor da literatura e

do ficcional.

Graciliano Ramos faz referência à injustiça cometida ao se misturar Newton

Freitas, e alguns intelectuais da época, aos malandros e vagabundos. Mas apesar disso,

diz que a aproximação foi proveitosa e o autor de Porão deveria ter explorado melhor

tal convivência:

Foi excelente, e todos devem estar satisfeitos. Sem essa aproximação,

não conheceríamos nunca a verdadeira desgraça. Andamos muito tempo fora da realidade, copiando coisas de outras

terras. Felizmente nestes últimos anos começamos a abrir os olhos,

mas certos aspectos da vida ficariam ignorados se a polícia não nos

oferecesse inesperadamente o material mais precioso que poderíamos ambicionar.

Seria ótimo que todos os romancistas do Brasil tivessem passado uns

meses na colônia correcional de Dois Rios, houvessem conhecido as figuras admiráveis de Cubano e Gaúcho. Podem tomar isto como

perversidade. Não é. Eu acharia bom que os meus melhores amigos

demorassem um pouco naquele barracão medonho. É verdade que eles sofreriam bastante, mas talvez isto minorasse outras dores

complicadas que eles inventam. Existe ali uma razoável amostra do

inferno – e, em contato com ela, o ficcionista ganharia.

Newton Freitas não é ficcionista. Fazendo reportagem, procura ser rigorosamente escrupuloso – e se algum pecado comete, é por tornar-

se às vezes conciso demais. Isto leva-o a deixar na sombra coisas que,

na situação em que ele se achava, eram vulgares, mas que aqui fora causariam espanto.

O autor só nos mostra a parte externa dos indivíduos. As duas

personagens andam bem, falam, mexem-se. Notamos os seus

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movimentos e vemos onde elas pisam, mas não percebemos o interior

delas. Estão atordoadas, evidentemente, não podem pensar direito,

mas teria sido bom que os acontecimentos se apresentassem refletidos naqueles espíritos torturados. Seria preferível que, em vez de vermos

um soldado empurrando brutalmente os presos por uma escada com o

cano duma pistola, sentíssemos as reações que o soldado, a pistola e a

escada provocaram na mente dos prisioneiros. Tendo na multidão que nos descreve uma visão puramente objetiva. Newton esgotou o

assunto depressa e a narrativa saiu curta.

Talvez isto se explique por ele ter querido ser honesto demais. Como as suas personagens são reais, é possível que tenha receado enganar-se

olhando-as por dentro. (RAMOS, 2005, p. 135-137)

Neste fragmento, o futuro autor de Memórias do Cárcere sentencia Newton

Freitas por não ser ficcionista. Como escritor que se volta para dentro si, acusa o outro

ex-detento de não atribuir aos personagens observados os próprios desarranjos

interiores. Se na colônia correcional de Dois Rios o presidiário nunca chegou a sentar na

cadeira de réu, aqui ele é julgado e condenado pelo fato de construir uma narrativa

documental, arrolada pelo discurso jornalístico em detrimento da autenticidade dos

personagens. Graciliano Ramos vai ainda mais longe ao notar que Newton Freitas se

preocupou ostensivamente em ser honesto, ou seja, em falar a verdade.

Para ser ficcionista, é preciso olhar os personagens por dentro procurando

identificá-los a partir do impacto que causaram no observador. Sendo assim, devemos

nos entregar às artimanhas da memória e esquecer a “visão puramente objetiva”. Ser

objetivo, reproduzindo apenas o aspecto não ficcional, descaracteriza a literatura e

artificializa os personagens. Segundo Graciliano Ramos, como já fora mencionado, é

preferível aumentar insignificâncias e credenciar o lado humano dos personagens,

ficcionalizando-os, a deixá-los demasiadamente inverossímeis por falta de sentimentos.

Em função disso, Memórias do Cárcere nasceu romance e, apesar de partir de

elementos não ficcionais, é também ficcional por vocação.

Costa Lima, partindo de um fragmento de Schlegel, no qual este fala sobre a

matéria-prima do romance ser a subjetividade do autor, coloca a seguinte questão: “a

vida de cada ser humano seria um romance?” (COSTA LIMA, 2006, p. 324). De acordo

com o escritor alagoano, sabemos que não. Há, portanto, uma diferença que se impõe

pela forma como as situações são colocadas em cena. O teórico atenta para o fato de

ninguém questionar se a vida não seria um poema, justamente por este ser produzido

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por regras mais rígidas de composição que não o descaracteriza enquanto literatura. Em

suma, “O romance, ao contrário, por não ter regras previstas em alguma poética, seria

algo muito mais ‘liberal’. A dúvida que o fragmento 78 encerra concerne aos limites

dessa liberdade”. (idem, p. 324)

Uma coisa não se pode contestar: o formato imposto pela narrativa sempre nos

dirá sobre o caráter do texto que temos em mãos. Devemos então pensar, elaborando

com Graciliano Ramos, que a forma como o autor constrói a subjetividade dos

personagens, a partir de seus próprios desarranjos, eleva as noções de estilo. Com isso,

os personagens sofrem modificações ao sabor das figurações interiores, elevando-os a

uma mistura indiscernível de ficção e não ficção. Segundo Gadamer: “Ao modo de ser

da literatura compete toda a pesquisa seriamente pensada que esteja essencialmente

ligada à forma da linguagem” (1960, apud, COSTA LIMA, 2006, p. 326). Além disso, é

possível perceber em vários teóricos13

citados por Costa Lima um entendimento de que

a fabulação e as emoções, como efeitos da subjetividade, elevam a obra aos status de

literatura.

Em fins de investigação, o teórico, sob o título “As formas híbridas”, diz:

Gêneros e gêneros já atrás lembrados – um certo tipo de carta, um certo tipo de diário (os de Kafka ou de Musil, por exemplo), um certo

tipo de livro de máximas, um certo ensaio (para começar, os Essais,

de Montaigne), a autobiografia – podem ser considerados, de antemão ficcionais?! Sem que fosse meu propósito, ao não os diferenciar,

ajudava a endossar uma concepção de literatura – o discurso que,

centrado o presente da escrita, rompe as amarras com a referencialidade – que jamais aceitara. (idem, p. 348)

E não parte justamente daí a acusação de Graciliano Ramos a Jorge Amado e

Newton Freitas? Ao entregarem-se em demasia às referências utilizadas como suportes

narrativos, abandonaram o caráter intrínseco à literatura.

Ainda segundo Costa Lima:

(...) não se poderia desprezar a tentativa de acentuar na literatura a

expressividade da linguagem, sua reverberação. Encontrei, contudo, uma ajuda na afirmação de Aguiar e Silva da heterogeneidade

13 Schelegel, Staël, Chateaubriand, dentre outros.

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constitutiva da literatura: há livros “cuja capacidade de recriação

imaginária de acontecimentos e de almas confere às suas obras

históricas uma dimensão literária” (AGUIAR E SILVA, V.: 1979, 72). (COSTA LIMA, 2006, p. 348)

A forma híbrida para Costa Lima parte dessa motivação narrativa em que se trás

para a história uma dimensão literária por meio do trabalho com a linguagem. Sendo

assim, antes mesmo de Memórias do Cárcere, na história de nossa literatura, Os sertões

já seria um bom exemplo de discurso no qual, pela habilidade com a linguagem,

tornaria a literatura “sua segunda morada”. (idem, p. 350)

As crônicas de Graciliano Ramos já denotavam o seu intuito ao colocar-se em

escritura. Fica muito clara a visão do autor sobre os conceitos de literatura e ficção. Ao

expandirmos o crítico para o estilo dos romances produzidos por ele, verificamos uma

íntima relação de reciprocidade. Diante de Memórias do Cárcere, Costa Lima também o

percebe a partir de um caráter híbrido:

Sem que deixe de ser um documento precioso, o texto das Memórias

assume uma dupla inscrição. É um texto híbrido, documento e

literatura, não por algum artifício, mas por direito próprio. Atrevo-me a pensar: mesmo que Vidas Secas seja uma de suas obras mais

recomendadas, não tem a força expressiva dessa forma híbrida; a vida

miserável de seus personagens é sujeita à visão ainda estreita do

escritor, que julgava ter de empobrecê-los para ser fiel ao que eram. (subidem, p. 358)

Se nos voltarmos para os textos de Graciliano Ramos, principalmente na

abordagem bem clara que faz a respeito de Porão, veremos que o híbrido se impõe em

suas narrativas. No entanto, essa mistura não se revela somente pelo comprometimento

documental idealizado por uma linguagem literária, mas também pela mistura

indiscernível entre ficção e não ficção. O caráter documental de Memórias do Cárcere

fica somente por conta do inegável fato histórico que foi a prisão de potenciais

comunistas, sem acusação oficial. Neste sentido, antes mesmo de entrar em contato com

a obra, a informação nos é concedida – até mesmo porque não podemos negar a

existência real de um Graciliano Ramos, escritor e ex-presidiário. Apesar disso, quando

lemos o romance, algumas questões e estratégias narrativas se impõem, como já fora

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mencionado neste trabalho. A partir da ótica do crítico Graciliano Ramos e do

personagem Graciliano Ramos verifica-se uma nítida entrega à ficção, até mesmo em

detrimento da verdade objetiva dos fatos.

Uma forma notável de se questionar mais uma vez o caráter documental de

Memórias do Cárcere é compará-lo à proposta de Silviano Santiago, ao escrever o Em

Liberdade. Segundo alguns especialistas, poderíamos falar em documento e discurso

não ficcional porque, perante nomes de personalidades históricas, há uma relação íntima

com a realidade que se estabelece. De maneira nenhuma, poderíamos negar uma

identidade histórica embutida no romance de Graciliano, mas tomar como verdade

documental é uma declaração questionável.

Já dissemos que, para o autor estudado, mesmo narrativas construídas com o

intuito objetivo do real podem ser bem inverossímeis, pela forma como são

estruturadas. Ao passo que ele, mesmo reinventando histórias, poderia ampliar fatos de

modo a lhes conferir sensação mais verdadeira que a própria realidade. Não à toa, a

história de Silviano Santiago é perfeitamente acreditável. Graciliano Ramos poderia ter

escrito um diário pós-cárcere, ou até mesmo alguns de seus amigos (como José Lins do

Rego) poderiam ter escrito umas memórias a partir da observação do cotidiano do

Velho Graça, mas não o fizeram. Estamos falando aqui de uma escrita muito posterior à

morte do romancista e, mais ainda, distante do momento imediato que requer o gênero

diário.

Silviano Santiago poderia ter optado por construir um romance histórico, com

um narrador-observador, no qual Graciliano Ramos se portaria como simples

personagem, com falas eventuais. Entretanto, ousadamente, lançou-se à aventura de dar

voz a um narrador-personagem, tal qual o de Memórias do Cárcere. Seria o Graciliano

Ramos de Em Liberdade puramente ficcional? Estamos diante de um Graciliano Ramos

que fala tal qual Silviano Santiago o observou e sentiu, seria ele menos verossímil?

Em tese intitulada Retratos dispersos: artimanhas dos textos de Silviano

Santiago, Ana Crelia Penha Dias fez uma entrevista muito interessante com o autor de

Em Liberdade. Nela, a autora questiona sobre de onde vem o conceito de autoficção

utilizado por ele ao se referir à própria obra, ao que Silviano Santiago responde:

Desde criança, por razões de caráter extremamente pessoal e íntimo –

refiro-me à morte prematura de minha mãe − não conseguia articular

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com vistas ao outro o discurso da subjetividade plena, ou seja, o

discurso confessional. Não estou querendo dizer que minha

personalidade infantil, isto é, meus impulsos vitais e secretos eram-me desconhecidos. Pelo contrário, conhecia-os muito bem. Tão bem os

conhecia que sabia de seu alto poder de autodestruição e destruição.

Acreditei ter de esconder dos ouvidos alheios a personalidade de

menino-suicida e de menino-predador, escondê-la debaixo de discursos inventados (ficcionais, se me permitem), onde eram criadas

subjetividades similares à minha, passíveis de serem jogadas com

certa inocência e, principalmente, sem culpa no comércio dos homens. Criava falas autobiográficas que não eram confessionais, embora

partissem do cristal multifacetado que é o trágico acidente da perda

materna. Já eram falas ficcionais e, como tal, coexistiam aos montões.

Nenhuma das falas era plena e sinceramente confessional, embora retirassem o poder de fabulação da autobiografia. (...) Os fatos

autobiográficos fabulam, embora nunca queiram aceitar a cobertura da

fala confessional, visto que se deixavam apropriar pelo discurso que vim a conhecer no futuro como ficcional. O sujeito ressemantizava o

sujeito pelo discurso híbrido – o autoficcional. Não estou querendo

dizer que não vivia a angústia de não poder articular em público o dado da subjetividade plena, dita confessional. Vivia-o, só que não o

exercitava como fala nem o escrevia. Agarrar-me e subtrair-me a essa

angústia era o modo vital da sobrevivência do corpo e dos impulsos

vitais, era o modo como o discurso autobiográfico se distanciava do discurso confessional e já flertava, inconscientemente, com o discurso

ficcional. Onde mais forte se fazia o sentido da angústia e mais

necessária sua subtração era à mesa de jantar ou no confessionário. (SANTIAGO, in.: DIAS, 2008, p. 196-197)

A fala de Silviano Santiago muito se identifica com os conceitos de Graciliano

Ramos sobre os próprios romances. Quando este fala para os tradutores argentinos que

não possui biografia, mas algumas histórias para contar, ele diz justamente para indicar

que o discurso autobiográfico é frágil e que o sujeito narrado sempre será bipartido.

Arriscaria dizer que o escritor nordestino é extremamente moderno e já apresentava a

autoficção como uma de suas principais características14

.

Diana Klinger, em Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a

virada etnográfica, declara:

A autoficção é uma máquina produtora de mitos do escritor, que funciona tanto nas passagens em que se relatam vivências do narrador

quanto naqueles momentos da narrativa em que o autor introduz no

relato uma referência à própria escrita, ou seja, a pergunta pelo lugar

14

Sobre o assunto, seguem, em anexo, duas perguntas feitas a Silviano Santiago em torno do conceito de autoficção e do romance Em Liberdade.

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da fala (O que é ser escritor? Como é o processo da escrita? Quem diz

eu?). Reconhecer que a matéria da autoficção não é a biografia mesma

e sim o mito do escritor, me permite chegar próximo da definição que interessa para minha argumentação. Qual a relação do mito com a

autoficção? O mito diz Barthes, “não é uma mentira, nem uma

confissão: é uma inflexão”. “O mito é um valor, não tem a verdade

como sanção” (Barthes, 2003, p. 221). A autoficção participa da criação do mito do escritor, uma figura que

se situa no interstício entre a “mentira” e a “confissão”. A noção do

relato como criação da subjetividade, a partir de uma manifesta ambivalência a respeito de uma verdade prévia ao texto, permite

pensar, como veremos a seguir, a autoficção como uma performance

do autor. (KLINGER, 2012, p. 46)

Ao reivindicar nos romances o autor que está por trás do texto, Graciliano queria

mostrar que a subjetividade emprestada ao relato se coadunava à voz do escritor. Além

disso, mostrava que essa era uma realidade constante do escritor de literatura: fazer

notar os próprios sentimentos. Os personagens só nasciam vivos por alimentarem-se da

performance do autor. Sendo assim, partindo das reflexões acima, chegou-se à

conclusão de que os seis livros de Graciliano devem ser estudados como romances

híbridos, nos quais não se podem discernir relatos ficcionais de não ficcionais.

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3. Um caeté, sem dúvida

Um caeté é antropófago. E comer carne da mesma espécie é uma das imagens

mais abomináveis que o ser humano pode ter. Certo? Em função disso, na história da

civilização ocidental moderna, esse ato é impensável, a não ser que nos encontremos em

situação limite de sobrevivência – tal qual o famoso caso dos jogadores de Rugby, que

em 1972 sofreram um acidente de avião e ficaram por dois meses nas montanhas

nevadas dos Andes.

A nação caeté ficou conhecida por não ser nada pacífica desde o início do

processo de colonização brasileira. Enfim, nada muito diferente do que continua

acontecendo nos dias de hoje - cada vez que algum fazendeiro ou alguma empresa se

veem na “difícil” tarefa de desabrigar pessoas que não têm onde morar. Um pouco mais

polidos, é claro, já que agora não nos alimentamos com a carne do inimigo.

Ainda naquela época, no século XVI, Hans Standen ficou conhecido e popular

pelo tratado escrito sobre o Brasil, relatando a estada nas duas viagens que fizera e o

tempo em que ficou preso na tribo Tupinambá. Seus escritos foram responsáveis pelo

longo tempo em que o Brasil ficou conhecido pelo caráter de povo canibal e intratável.

A propósito dos quinhentos anos de descobrimento, Antonio Torres refaz o percurso

desses primeiros moradores balanceando suas necessidades e o modo agressivo como

também foram tratados no início da colonização. Um (des)equilíbrio no sentimento de

propriedade do ser humano que, em Meu Querido Canibal, irá desvelar as duas faces da

mesma moeda.

O sentimento nativista, como se sabe, foi vivenciado no Brasil por diversas

vertentes, desde a época colonial – sempre na tentativa de sobrepor os valores locais em

detrimento da cultura portuguesa, em consonância com outras culturas europeias que

chegaram ao Brasil. Este é um fator que, no âmbito antropológico, se chama nativismo:

uma atitude instintiva de reafirmar e ressaltar valores culturais e sociais em determinado

país, sempre em contraposição a culturas estrangeiras.

O índio encontrado, por exemplo, nas páginas de Meu Querido Canibal, de

Antonio Torres, já em fins do século XX, se assemelha muito ao “índio antes do

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indianismo” – segundo Alcmeno Bastos.15

Não estamos falando aqui do índio sob os

“olhares inaugurais”, mas do índio despido da ótica colonialista e europeia - um índio

também já despido da idealização exacerbada proposta pelo romantismo. Um índio que

para Graciliano possui a mesma alma selvagem que vive no íntimo de cada ser humano.

Seria ingenuidade supormos que Torres ou Ramos, dentre outros, dariam conta

de uma suposta intenção desbravadora, não devemos ainda perder de vista o fato de o

livro representar o estatuto ficcional em diálogo com o estatuto não ficcional – o que

significa dizer que duas verdades se entrelaçam de modo a confundir a cabeça do leitor.

O índio de Antonio Torres é inocente, cheio de atributos físicos, tal qual a imagem

criada por Alencar, mas também é canibal – nos mais variados sentidos da palavra – e

deve o ser. O branco deve ser comido, naturalmente, pelo sabor da carne e pelo descarte

daqueles que ameaçavam a sobrevivência do índio: sua raça, cultura e costumes. Já o

caeté, segundo Graciliano e/ou João Valério, só pode ser revisto e reinventado se

olharmos para dentro de nós ou para a nossa sociedade. Dessa forma, observaremos as

reminiscências que ainda atuam nos nossos instintos mais primitivos.

“Era uma vez um índio” (2000, p. 9) é a primeira frase, do primeiro capítulo, de

Meu querido Canibal. Uma escolha aparentemente casual e introdutória que diz muito

se pensarmos sobre a intenção discursiva do autor. O narrador irá contar a história de

Cunhambebe (personagem real e ficcionalizado): símbolo guerreiro e forte, que lutou

pela sua terra e história, que foi representante de uma raça degradada pelos brancos que

aqui chegaram e se estabeleceram. O índio que já havia quase desaparecido no século

XIX e que motivou a corrente indianista. Um antropófago deixado pela história.

Torres também não deixa passar a história de mais um antropófago - não

tupinambá, menos ainda caeté – aquele que possui uma estátua em Porto Seguro como

mártir do cristianismo nas Américas –, estamos falando do Bispo português Pero

Sardinha. Um antropófago metafórico, representante do massacre, em contrapartida,

sofrido pelos Tupinambás e pelos Caetés. Um representante da alma caeté que também

não escapou aos olhos de Graciliano Ramos, suposto motivo da narrativa (fracassada)

de João Valério: narrador-personagem de Caetés (1933).

15 BASTOS, Alcmeno. O índio antes do indianismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.

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Como apontou Antonio Candido, no ensaio intitulado “No aparecimento de

Caetés”, a capa original (feita por Santa Rosa) elucida bem o tema do romance – que

transita por três pontos relacionando-os:

João Valério escrevendo no canto inferior esquerdo, obsedado pela

representação dos índios caetés (seu tema literário) e de Luísa (seu

tema vital). Neste espaço, dividido em dois níveis, o artista registrou o movimento do romance, no qual o narrador João Valério luta em vão

para contar no nível da fantasia a história dos índios, enquanto sem

querer vai construindo, no nível da realidade, o relato do que era a sua

experiência de vida. O romance vivido engole o romance projetado; e os índios ficam apenas como símbolo que no final do livro revela,

quando o narrador sente, e nos faz sentir, que eles estão dentro de cada

um, porque são o limite selvagem de todos.” (Candido, 2006, p. 131)

Acrescentaria à sensível análise de Candido, ainda sobre a capa de Santa Rosa, o

jogo de cores entre preto, vermelho e um tom pastel que ilustra bem a alma humana no

sentido que Graciliano parece impingir no romance. Uma pintura de luz, sombra e

sangue que divide e entrelaça a dualidade do ser humano: sempre movido por duas

medidas. O caeté da imaginação de João Valério vem realçado pela metade vermelha,

sangue possivelmente símbolo de sua tendência antropofágica, e pela metade em tom

pastel, que dá a leveza de espírito e demonstra o fato de não ser só revestido pelo caráter

de comer o semelhante.

Enquanto isso, João Valério tem a face dividida entre uma sombra negra e o tom

pastel, fruto de sua alma bipartida entre bem e mal – no sentido da fusão de contrários já

relatada em Machado de Assis, desde a publicação de Ressurreição, duas vozes que

representam o drama de caracteres. O tronco de Valério também se divide entre o

vermelho e preto delineando sua metade caeté e selvagem.

Caetés é um romance dividido em trinta e um capítulos breves. O relato de

Valério vem escrito, exceto algumas expressões, em português – como Graciliano faz

questão de pontuar para os seus tradutores. Apesar dessa diferença, no que diz respeito à

linguagem, algumas marcas dos romances posteriores já se evidenciam – como veremos

mais adiante. Exemplos disso é o uso constante do monólogo interior e do verbo no

futuro do pretérito. A descrição dos personagens se dividiu entre falas que revelam os

seus caracteres e a visão, sob o efeito das obsessões, que Valério tem sobre eles.

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O romance vivido irá, de fato, engolir o romance projetado. No entanto, os

índios não ficam apenas como símbolo retomado no fim, como afirma Candido. O

último capítulo funciona como um resumo e/ou um reconhecimento de algo que vinha

sendo narrado no decorrer do livro. Caetés, como os romances subsequentes, carrega no

título o motivo constante de reflexão da obra de Graciliano. Dessa forma, temos vários

momentos em que a perspectiva caeté se dilui no discurso do narrador-personagem. O

caeté não é perspectivado sob um ótica nativista ou indianista, ele é fruto quase de um

desencanto, uma memória que habita o corpo de cada um e que se revela em situações-

limite ou em pequenos gestos cotidianos de sobrevivência – cada um ao seu modo

particular de se relacionar com o mundo. Aqui o desarranjo interior vem fadado por esse

impulso que, Paulo Honório chamaria, talvez, de alma agreste.

E agora, pensando em Paulo Honório, devemos dizer que João Valério também

abandona a escrita do livro no segundo capítulo e, antes disso, imaginava criar um

tratado que impressionasse certa plateia. Particularmente, aquela plateia que o cercava

no dia a dia, queria se destacar por um grande feito na pequena cidade em que vivia (e

não precisa ser muita gente, Luísa, Padre Atanásio, Isidoro e o Neves já lhe bastavam).

Com isso, imaginava, colocar umas pitadas de Tupi, um arranjo de história – a morte do

Sardinha – enfim, tudo que lhe desse graças de sabedoria:

O meu fito realmente era empregar uma palavra de grande efeito:

tibicoara. Se alguém me lesse, pensaria talvez que entendo de tupi, e isto me seria agradável.

Continuei. Suando, escrevi dez tiras salpicadas de maracás, igaçabas,

penas de araras, cestos, redes de caroá, jiraus, cabaças, arcos e tacapes. Dei pedaços de Adrião Teixeira ao pagé: o beiço caído, a

perna claudicante, os olhos embaçados; para completá-lo, emprestei-

lhe as orelhas de Padre Atanásio. Fiz do morubixaba um bicho feroz, pintei-lhe o corpo e enfeitei-o. Mas aqui surgiu uma dúvida: fiquei

sem saber se devia amarrar-lhe na cintura o enduape ou a canitar.

Vacilei alguns minutos e afinal me resolvi a pôr-lhe o enduape na cabeça e o canitar entre parênteses. (Ramos, 2002, p. 40)

Adrião Teixeira é o pagé. Uma eleição muito interessante, se pensarmos o lugar

que ele representa dentro da pequena sociedade em que vive João Valério. Adrião é a

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figura central da cidade, em termos de atividade cultural e política e, sem sombra de

dúvida, arrisco dizer, figura central do romance de Graciliano Ramos e, mais ainda,

motivo involuntário que moveu a tinta de Valério para outra direção. A primeira página

anuncia:

Adrião, arrastando a perna, tinha-se recolhido ao quarto, queixando-se de uma forte dor de cabeça. Fui colocar a xícara na bandeja. E

dispunha-me a sair, porque sentia acanhamento e não encontrava

assunto para conversar. (idem, p. 7)

Este trecho inicia o romance, dando destaque ao personagem que será

responsável pela condução da narrativa. Tudo gira em torno de Adrião, inclusive a

obsessão por Luísa – esposa do doente. Ao fragmento citado segue uma das primeiras

cenas que irão acontecer na casa dos Teixeira. Os encontros sociais, bem como quase

todas as cenas se dão na casa de Adrião. João Valério passa o romance inteiro esperando

a morte do homem que está muito doente – em fins da narrativa, quando Adrião tenta

suicídio e leva uma semana para morrer, a história de Caetés finaliza depois de três

breves capítulos de conclusão. São vinte e nove capítulos diante da enfermidade de

Adrião. Um homem fiel aos amigos, à amizade de João Valério e ao amor de Luísa.

A propósito desse crédito sem fim que o amigo Valério parece ter, é interessante

evidenciar o véu que este coloca no pagé Adrião. Como foi afirmado no fragmento já

citado, o narrador vacila entre colocar o enduape ou o canitar na cintura do pagé e acaba

optando por colocar o enduape na cabeça. Uma observação relevante, se destacarmos o

fato de que enduape é uma tanga de penas utilizada para encobrir as partes íntimas dos

índios. Seria uma metáfora velada para encobrir os olhos de Adrião, assim não veria os

encontros fugidios com Luísa? Entre parênteses, como ele afirma, a possibilidade de

colocar na cabeça o canitar (enfeite em forma de cuíca para enfeitar a cabeça) – uma

opção em aberto para lhe restituir a dignidade.

Não será surpresa para ninguém, atualmente, se dissermos que os seres humanos

são movidos pelo instinto quando se trata de sobreviver na selva de toda sociedade.

Instintos primitivos que carregamos e revelamos de modo inconsciente, um processo

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mental que se tenta domar a todo custo para nos tornarmos mais civilizados. De acordo

com alguns cientistas, o cérebro, de fato, guarda também todas as estruturas físicas das

quais evoluiu:

A mais antiga e primitiva delas é chamada de "Cérebro Reptiliano",

que controla o lado mais animal e instintivo do ser humano. Na

primeira camada temos o cérebro mamífero que está relacionado às

emoções, e por último está o Neocórtex que é a camada mais externa e genuinamente humana, onde opera o raciocínio. O Cérebro Reptiliano

se encarrega das funções mais básicas: Sobrevivência e Reprodução.

Possui os padrões de comportamento que caracterizam os Répteis. A sobrevivência se assemelha a um "sistema binário": Fugir ou Lutar.

Não aprende com seus erros, não tem capacidade de sentir nem de

pensar: sua função é a de atuar. Quando o Cérebro Reptiliano se ativa, tem total prioridade sobre os outros dois cérebros - Emocional e

Racional. Se comporta no homem como o legado neurótico de um

"super-EU" ancestral que lhe impede de se adaptar e/ou evoluir - Ele

é FRIO e RÍGIDO - Territorial e Agressivo - Hierárquico e

Escravizador - Obsessivo e Autoritário - Ritualista e Paranoico. 16

Apesar de essa teoria do cérebro trino, em que o cérebro se divide em três

unidades funcionais diferentes, correspondendo a fases da evolução humana, ter sido

fundada somente em 1970, é interessante pensar sobre o modo como Graciliano

problematizou seus personagens a partir dessa função subterrânea que insiste em

assombrar a existência humana. Sabemos que as ideias sobre inconsciente freudiano já

circulavam por aí, mas era uma teoria ainda muito recente e, talvez, ainda pouco

palpável para Graciliano. Obviamente não se quer ressaltar nenhuma teoria científica

em detrimento da Literatura, mas mostrar o pioneirismo de Graciliano ao trazer,

também esteticamente, ao universo narrativo os processos mentais de seus personagens.

Se Machado de Assis foi moderno e vanguardista ao reconhecer a dualidade do

eu e o drama de caracteres da alma humana, Graciliano Ramos foi moderno e

vanguardista ao problematizar a linguagem de acordo com os processos mentais de seus

personagens, dando por vezes, a medida de loucura – tal qual o capítulo XIX de São

Bernardo, como veremos mais à frente.

16 Grifos da autora. In.: http://www.cerebromente.org.br/n05/mente/limbic.htm

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Já agora, nos primeiros suspiros de seu intento, com o livro de João Valério e de

Graciliano Ramos em mãos, verificamos o reconhecimento da alma caeté (ou reptiliana)

em toda a narrativa deste romance. Uma forte presença que vai desde a situação macro,

no desejo de ocupar o lugar do chefe (Adrião), à situação micro, vivenciada na

linguagem e nas cenas propostas pelo autor. Na tentativa de dar vida ao romance sobre a

nação caeté, Valério narra a forma de seu processo de escritura:

Entrei no quarto, abri a janela que deita para a rua, tirei o manuscrito

da gaveta. A dificuldade era apanhar os portugueses que tinham

escapado ao naufrágio, amarrá-los, levá-los para a taba e preparar um

banquete de carne humana. Trabalhei danadamente, e o resultado foi medíocre. Sou incapaz de saber o que se passa na alma de um

antropófago. De indivíduos das minhas relações o que tem parecença

moral com antropófago é o Miranda, mas o Miranda é inteligente, não serve para caeté. Conheço também Pedro Antônio e Balbino, índios.

Moram aqui ao pé da cidade, na Cafurna, onde houve aldeia deles.

São dois pobres degenerados, bebem como raposas e não comem gente. O que me convinha eram canibais autênticos, e disso já não há.

Dos xucurus não resta vestígio; os da Lagoa espalharam-se,

misturaram-se.

Em falta de melhor, aproveitei os últimos remanescentes dos brutos da

Cafurna, tirei-lhes os farrapos com que se cobrem, embebedei-os,

besuntei-os à pressa, agucei-lhes os dentes incisivos. Matei alguns brancos, pendurei-os em galhos de árvores e esfolei-os com a ajuda do

Balbino. Depois entreguei-os às velhas, entre as quais meti a D.

Engrácia, nua e medonha, toda listrada de preto, os seios bambos, os cabelos em desordem, suja e de pés de pato. (RAMOS, 2002, p. 97-

98)

Os caetés recebem o caráter das pessoas com as quais João Valério convive, e

aos poucos os personagens se tornam indiscerníveis, uma mistura que desequilibra o

senso de ficção e não ficção em formato metalinguístico. Uma marca constante de

Graciliano, também revelada em crônicas, em que o autor reconhece ser intrínseca à arte

da escritura:

Todos os meus tipos foram constituídos por observações apanhadas

aqui e ali, durante muitos anos. É o que penso, mas talvez me engane.

É possível que eles não sejam se não pedaços de mim mesmo e que o

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vagabundo, o coronel assassino, o funcionário e a cadela não existam.

(RAMOS, 2005, p. 282)

Entre pedaços de si mesmo, Graciliano e seus narradores-personagens percorrem

o universo não ficcional para readaptarem o ficcional. Neste jogo de vai e vem

narrativo, a alma caeté, ou mais precisamente o desarranjo interior, irá aparecer como

um modo de dar forma ao desequilíbrio da alma humana – no sentido de por em guerra

as ansiedades mais recônditas e o senso de realidade.

Não é novidade sobre a pessoa de Graciano Ramos o fato de ele dar real

importância à "coisa observada e sentida", como diz em Memórias do Cárcere. Motivo

pelo qual José Lins do Rego sofrera repreensão do Velho Graça, por escrever

demasiadamente apegado aos costumes e aos retratos históricos. Ao abandonar a

terceira pessoa narrativa, Graciliano Ramos abre mão da "coisa observada" a favor do

impacto interior que a coisa lhe causou. Em função disso, amplia insignificâncias que os

personagens perpetuaram dentro de si, renovando-as a cada esforço de memória. O

próprio José Lins do Rego, amigo íntimo de Graciliano Ramos, reconhece nele a força

do “desarranjo interior” – como já fora mencionado em epígrafe. Ainda segundo o autor

de Menino de Engenho:

Tudo nele se concentra no que é homem, no que é a tragédia de ser

homem. Os seus romances, por esta maneira, ganharam em

profundidade, em análise sem piedade, em síntese desesperada. Ele criou uma galeria que é a mais dolorosa do nosso romance. Os

homens e as mulheres, até os bichos que ele cria, são criaturas que

carregam a vida como o maior castigo. Não há solução para aquelas almas. Mas tudo isto com uma força de quem se concentra, de quem

pode manobrar suas energias como um faquir. (...) É um mestre como

fora Sthendal, de palavras precisas, mas de paixões indomáveis.”

(REGO, 2010, p. 94-95).

Essa vida, sinônimo de castigo, vem manejada pelo fado de um selvagem que

ainda habita em nós. Em Caetés, o autor João Valério elabora os personagens indígenas

buscando inspiração em pessoas de seu cotidiano, junto com isto, quer nos dizer que a

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alma selvagem mora dentro de qualquer descendente da cadeia humana. Em A

Inconstância da Alma Selvagem o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro fala da

inconstância como um grande mistério sobre os índios brasileiros na época da

descoberta do Brasil, justamente por apresentarem resistência à cultura que os brancos

tentavam impor, ao passo que despertavam evidente interesse em conhecer o novo

apresentado. Partindo de Nóbrega, em seu relato de 1556, Castro coloca a seguinte

questão:

(...) os selvagens não creem em nada porque não adoram nada. E não adoram nada, no fim das contas, porque obedecem a ninguém. A

ausência de poder centralizado não dificultava apenas logisticamente a

conversão (não vigorando o cujus regio, os missionários precisavam trabalhar no varejo); ela a dificultava, acima de tudo logicamente. Os

brasis não podiam adorar e servir a um Deus soberano porque não

tinham soberanos nem serviam a alguém. Sua inconstância decorria,

portanto, da ausência de sujeição: "não há quem os obrigue pela força a obedecer...". Crer é obedecer, lembra-nos Veyne (1983: 44); é

curvar-se a verdade revelada, adorar o foco de onde emana, venerar

seus representantes. No modo de crer dos tupinambás não havia lugar para a entrega total à palavra alheia (...) não podiam ter religião e fé,

que exigem a disposição em morrer por alguma coisa. Modo de crer,

modo de ser. (CASTRO, 2013, p. 2017)

É interessante pensar como essa ausência de sujeição é uma marca dos

personagens graciliânicos em todos os romances. O "desarranjo interior" se configura a

partir do reconhecimento da incapacidade de sujeitar-se. Todos os narradores-

personagens reconhecem a inconstância da alma selvagem, que os fazem sujeitar-se aos

instintos de sobrevivência e, apesar da culpa, reconhecem que repetiriam os mesmos

atos se a situação-problema lhes fosse apresentada novamente.

Caetés parece promover uma prévia do que viriam a ser Luís da Silva e

Madalena. João Valério é covarde e invejoso, anseia a morte de Adrião desde o começo

do romance para obter a glória de ocupar o lugar dele ao lado de Luísa, uma mulher que

se compadece da miséria alheia:

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Luísa era boa, de uma bondade que se derramava sobre todos os

viventes. Sou apenas um inseto, mas, para inseto, recebi tratamento

exagerado. Luísa era pura. Imaginei que nunca um desejo ruim lhe havia

perturbado os sonhos.

Foi assim que pensei. Entretive-me durante um mês a orná-la com

abundância de virtudes raras. Além das que ela possui, e que são muitas, dei-lhe as outras. E lamentei que o meu espírito minguado não

pudesse conceber perfeições maiores para jogar sobre ela. (...)

Às vezes Luísa se revoltava. E era sempre em razão de uma desgraça que não podia suprimir. Atirava tumultuosamente expressões

confusas, que traduziam ideias justas, com certeza, e bons

sentimentos, porque eram dela. Falava do sapateiro que tem a mulher

tísica e uma ninhada de filhos: (...) - Os pés inchados, tão amarelos, as roupas imundas!

Adrião erguia os ombros com enfado:

- Que nos interessa isso, filha de Deus? O homem ganha a vida, é natural. Deixá-lo.

- Mas é que morre de fome. Vocês sabem lá o que é ter fome?

Manifestei-lhe um dia minha surpresa: - Não sabemos. Com efeito não sabemos. Mas a senhora também não

sabe. Deve padecer muito. Faz pena. Afinal não é o único.

Levou as mãos ao estômago, deitou-me uns olhos que me espantaram,

e julguei que até as dores físicas do desgraçado passavam para ela. (RAMOS, 2002, p. 56-57).

Temos nesse romance a presença imponente e dominadora de Adrião, o homem

que detém o poder sobre a cidade e é alvo da inveja de João Valério:

Afinal eu não tinha culpa. Tão linda, branca e forte, com as mãos de longos dedos bons para beijos, os olhos grandes e azuis... De Adrião

Teixeira, um velhote calvo, amarelo, reumático, encharcado de

tisanas. Outra injustiça da sorte. Para que servia homem tão combalido, a perna trôpega, cifras e combinações de xadrez na

cabeça? Eu, sim, estava a calhar para marido dela, que sou

desempenado, gozo saúde e arranho literatura. Nova e bonita, casada

com aquilo, que desgraça! (Idem, p. 13)

Em Angústia, Luís da Silva mata Julião Tavares, aqui, a morte pela doença já

era uma consequência esperada. João Valério não precisava e não tinha coragem de

sujar as próprias mãos. No início, Luísa nos é apresentada como uma mulher boa em

demasia, muito afeiçoada à dor do outro. No entanto, ao longo do romance, o narrador-

personagem vai despindo-a de tal roupagem.

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Os romances do autor são dominados pelas vozes, de certa forma, autoritárias de

homens corroídos pelas próprias fragilidades. É interessante observar que, em função

dessa voz interior que explana todos os processos mentais desses homens, as mulheres

são lidas e modificadas ao fervor dos sentimentos e das circunstâncias. Não acessamos

as vozes das mulheres, todas adoecem e são torturadas diante de nossos olhos e ficamos

de mãos atadas. Apesar disso, todas saem vitoriosas – cada uma com sua

particularidade.

De início, João Valério sentia um amor devoto, próprio dos homens românticos:

Toda a minha alma estava empregada em adorar Luísa. E Luísa havia subido tanto que muitas vezes me surpreendi a confundi-la com a

estrela amável que avultara em cima do morro, na antevéspera. Altair?

Aldebarã? Não conheço as estrelas. Nem conheço as mulheres. Que será Luísa? Que haverá nela? Não sei. (RAMOS, 2002, p. 107)

Observe o tom irônico com que o narrador se refere aos sentimentos por Luísa.

De onde viria tamanha intensidade? A mulher aqui, bem como em São Bernardo e

Angústia, é um objeto desejado pelo homem com sentimento de propriedade. Agradava

a João Valério a possibilidade de possuir a mulher de Adrião, ultrajar o homem por

quem tinha inveja – apesar de naquele momento não ter percebido o tamanho de sua

perfídia.

Enquanto não alcançava a verdade final, o narrador-personagem continuava

cada vez mais questionando as qualidades de Luísa: “Mas todas as belas qualidades com

que me entretive a enfeitar o meu ídolo seriam o que eu julgava?” (2002, p. 151).

Quando entramos em contato com uma narrativa, sabemos da importância de

reconhecer no narrador suas possíveis intenções e o modo como ele encara os fatos que

são narrados. Até que ponto ele deseja manipular os fatos ou foi tragado pelos próprios

sentimentos ao narrar? Graciliano Ramos valoriza as nuances da coisa vivida e sentida,

tal qual ela foi no fluxo dos acontecimentos. Sendo assim, os leitores recebem do

narrador os processos mentais que (des)organizaram a sua vida.

Fernando Cristóvão, ao analisar a experiência da escrita autobiográfica, diz que

o narrador em primeira pessoa busca estabelecer uma proximidade entre o destinador e

o destinatário. Mas nós, leitores, temos justamente que desconfiar desse discurso

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persuasivo do narrador-personagem. Não só por haver uma intencionalidade escondida,

mas fundamentalmente porque o discurso está envolvido em uma teia de elementos

sentimentais que perturbam a visão daquele que narra.

João Valério não é um homem essencialmente racional, é sempre domado pelo

seu instinto caeté. Não à toa, em conversa com Nazaré (um parceiro de jogos), o

narrador-personagem é domado por um pensamento súbito, obsessivo e inexplicável de

que Luísa haveria estado com o homem:

Senti um ódio violento a todos os miseráveis insetos que andam a

picar a dignidade alheia. Veio-me a impressão extravagante de que as

mãos do velho haviam tocado o corpo de Luísa. Desejei vingar-me, insultar Nazaré – canalha, pau d’água, ladrão;

lembrar-lhe o que deve aos Teixeira e não paga, o que furtou aos

órfãos e os quinhentos mil-réis que recebeu para abafar o processo.

(...) Patife! Luísa já não era a santa que imaginei. Tinha descido. Mas,

quando estava alguns dias sem a ver, eu descobria nela todas as

perfeições. (RAMOS, 2002, p. 153)

Passado o momento inicial de admiração construída em torno de Luísa, os

pensamentos involuntários que invadem João Valério vão deformando a mulher que

tanto queria. Graciliano Ramos já anuncia aqui a interferência do inconsciente que

deturpa a visão sobre tudo que nos cerca. A supervalorização do interior dos

personagens que narra reflete profundamente na forma como percebemos os outros –

que ficam na penumbra de um teatro onde os narradores são o centro do jogo. Devemos

desconfiar da acuidade visual desses personagens tão entregues aos próprios desarranjos

e condicionados a constantes autoacusações.

Foi dito, no capítulo anterior, que segundo Graciliano para ser ficcionista é

preciso doar aos personagens sentimentos daqueles que estão por detrás de toda a

escrita: os autores. Devemos, inclusive, ceder a tal impulso ainda que deixemos a

verdade de lado, se tal atitude contribuir para dar verossimilhança ao texto. Segundo o

escritor nordestino, não adianta olharmos para o exterior, relatar o que vimos, sem

acentuarmos os sentimentos dos personagens, sem lhes oferecermos vida. João Valério

jogou fora os dois primeiros capítulos. Jogou fora os capítulos que estavam aprisionados

pelo desejo de glória. Afinal, escrevia porque almejava impressionar um pequeno grupo

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da cidadezinha provinciana na qual vivia. Com isso, achou que bastaria um palavreado

culto, um pouco de história, entre outros. Ao optar pela narração da história sobre a

nação caeté, não demorou muito para sentir-se retraído, na medida em que, na ausência

de conhecimento aprofundado sobre o tema, teria de pesquisar mais e não sabia como

pensar e criar personagens verossímeis – já que estes estariam tão distantes de sua

realidade:

Deitei-me vestido, às escuras, diligenciei afastar aquela obsessão.

Inutilmente. Ergui-me, procurei pelo tato o comutador, sentei-me à

banca, tirei da gaveta o romance começado. Li a última tira. Prosa chata, imensamente chata, com erros. Fazia semanas que não metia ali

uma palavra. Quanta dificuldade! E eu supus concluir aquilo em seis

meses. Que estupidez capacitar-me de que a construção de um livro

era empreitada para mim! Iniciei a coisa depois que fiquei órfão, quando a Felícia me levou o dinheiro de herança, precisei vender a

casa, vender o gado, e Adrião me empregou no escritório como

guarda-livros. Folha hoje, folha amanhã, largos intervalos de embrutecimento e preguiça – um capítulo desde aquele tempo.

Também aventurar-me a fabricar um romance histórico sem conhecer

história! Os meus caetés realmente não têm verossimilhança, porque deles apenas sei que existiram, andavam nus e comiam gente. Li, na

escola primária, uns carapetões interessantes no Gonçalves Dias e no

Alencar, mas já esqueci quase tudo. Sorria-me, entretanto, a esperança

de poder transformar esse material arcaico numa brochura de cem a duzentas páginas, cheia de lorotas em bom estilo, editada no Ramalho.

(...)

Caciques. Que entendia eu de caciques? Melhor seria compor uma novela em que arrumasse Padre Atanásio, o Dr. Liberato, Nicolau

Varejão, o Pinheiro, D. Engrácia. Mas como achar enredo, dispor as

personagens, dar-lhes vida? Decididamente não tinha habilidade para

a empresa: por mais que me esforçasse, só conseguiria garatujar uma narrativa embaciada e amorfa. (Idem, p. 19-20)

Este fragmento, do terceiro capítulo do romance, elucida mais uma vez os

questionamentos do autor em torno da literatura. Observemos que a verossimilhança

aparece também como ausente pelo fato de o narrador-escritor não ter tido contato com

os personagens: como contar uma história a partir do não observado? Como atribuir-

lhes sentimentos se não era, em verdade, um caeté? Só podemos nos comover com algo

que experimentamos ou julgamos ter experimentado algum dia. A empatia só surge se

pudermos nos colocar no lugar do outro, mas como nos colocar no lugar de pessoas

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pertencentes a uma cultura e a uma sociedade, aparentemente, tão distantes das nossas?

Não seriam suas necessidades e interesses diferentes dos nossos?

Um romance histórico, com intuito documental, pauta-se pela ligação indelével

dos fatos. Com isso, o escritor, por vezes, entrega-se à prisão incorrendo no risco de

parecer superficial e abrangente demais. João Valério mostrava-se fracassado porque

não correspondia nem a fidelidade dos fatos, pois não os conhecia com a profundidade

devida ao pesquisador e, menos ainda, conseguia discorrer de acordo com a

identificação da realidade interior dos personagens. Para que o romance tivesse fôlego,

ele deveria enxergar como funcionava aquela sociedade e sua cultura, mais do que isso,

como os caetés reagiam mentalmente em determinadas situações.

O primeiro romance de Graciliano Ramos, mais do que narrar a história dos

sentimentos primitivos do narrador-personagem, condenado pela inveja que nutria por

Adrião, é um romance metalinguístico. Nele, o autor desvenda as ansiedades do escritor

ao colocar-se perante a folha em branco, com a ansiedade de construir um texto

verossímil e prenhe de autenticidade no que diz respeito à vida dos personagens. Em

suma, temos em mãos um romance que denota como característica intrínseca do ser

humano estar aprisionado ao instinto reptiliano que habita cada um de nós: somos

condicionados aos instintos caetés. Esta essência faz do escritor capaz de colocar-se no

lugar do outro, no entanto, para que alcancemos tal intento, é preciso observar e sentir.

Narrados sob a ótica documental, os personagens de João Valério estavam

condenados à morte, entretanto, quando passam a ser nutridos pelos caracteres dos

homens que cercavam o narrador-personagem, ganham vida e renascem. No decorrer de

Caetés, há uma expectativa infindável sobre a morte de Adrião. Quando este tenta se

matar, vários curiosos e entes queridos passam a viver na casa de Adrião. Inconscientes,

todos já velavam por uma alma que pairava entre a vida e a morte. Ali, João Valério

pode observar e sentir o limite da sobrevivência.

Por muito tempo, o narrador-personagem desejou a morte do rival, não tinha

coragem suficiente para matá-lo:

Seria uma felicidade para mim, decerto, a morte de Adrião.

Desgraçadamente aquela criatura tinha sete fôlegos. Hoje quase a

morrer, de olho duro, vela debaixo do travesseiro, a casa cheia, Padre

ao lado, os amigos escovando a roupa preta – e amanhã arrimado à bengala, perna aqui, perna acolá, manquejando.

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Decididamente o Dr. Liberato é um sujeito desastrado: deixa que se

vão os doentes que fazem falta e adia o fim dos inúteis. (...)

Vendo Adrião estirado, a gente perguntava: - Há perigo, Doutor?

E o Dr. Liberato falava no ventrículo, na aurícula, nas válvulas, e

opinava:

- Se não sobrevierem complicações, julgo que não há perigo. (Subidem, p. 163)

Incapacitado de cometer a ação desejada, ele se sente feliz quando finalmente a

morte vira uma possibilidade próxima. Depois de receber uma carta anônima sobre a

traição de Luísa e conversar com João Valério com o intuito de receber uma confissão,

no dia seguinte, este recebe a notícia de que o “amigo” estava banhado em sangue. É

interessante notar que não ficamos sabendo o porquê de Adrião ter cometido suicídio. O

acontecimento do dia anterior, em torno da carta, entra em conflito com o pedido de

desculpas que faz a João Valério antes de morrer:

- É uma despedida, meu filho. Preciso pedir-lhe desculpa. Separamo-

nos zangados. Aperte-me a mão, Valério. Já lha havia apertado.

- Já? Não senti, não sinto nada do cotovelo pra baixo.

Calou-se, julguei que ele estivesse morrendo, quis levantar-me para chamar o médico.

- Deixe lá, rapaz. Ainda não chegou a hora.

Tentei sossegá-lo com algumas trivialidades que me ocorreram.

- Isso não interessa, murmurou Adrião. E não tenho tempo para conversar muito. Ouça. A história da carta foi tolice. Exaltei-me, perdi

os estribos. Luísa está inocente, não é verdade?

- É verdade. - Acredito. E já agora, com um pé na cova, não devo ter ciúmes. Não

faça caso do que lhe disse ontem.

Diligenciei acomodá-lo, mas temi que ele se magoasse. - Isso passa logo, Valério. De qualquer forma estou bem. E não se

aflija com a minha morte. Esta vida é uma peste. Havia de acabar

assim. Adeus. Dê-me um abraço. Adeus... até o dia do juízo.

(Subidem, p. 193-194)

Há neste diálogo algo de nebuloso que não nos fornece a medida exata de

influência que a descoberta da traição teria sobre o ato de Adrião. O pedido de

desculpas constrói um discurso paradoxal se pensado sob a égide da frase final, na qual

o interlocutor de Valério dá indícios de, ainda sim, credenciar as mãos divinas a uma

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resolução para o problema entre os dois. A questão não se resolve e ecoa em forma de

marteladas na cabeça do narrador-personagem. Adrião leva oito dias para morrer e, no

decorrer deles, há um entre e sai na casa misturado a presenças permanentes. Todos

começaram a se apresentar de forma muito distinta convivendo ali, os instintos

primitivos se afloravam:

Depois daquela crise, na promiscuidade e na azáfama dos dias de

angústia, existia entre nós todos uma familiaridade estranhável. Dormíamos quase sempre juntos, homens e mulheres, sentados, como

selvagens. Muitas necessidades sociais tinham-se extinguido;

mostrávamos às vezes impaciência, irritação, aspereza de palavras; pela manhã as senhoras apareciam brancas, arrepiadas, de beiços

amarelentos; à noite procurávamos com egoísmo os melhores lugares

para repousar. Enfim numa semana havíamos dado um salto de alguns mil anos atrás. (Subidem, p. 196-197)

João Valério já havia abandonado o livro empreendido, cedendo espaço à

narrativa da sua relação com Adrião e Luísa. Quando se depara com essa situação,

começa a reparar na semelhança que o unia à realidade caeté. As necessidades selvagens

de subexistência que unia toda a raça humana, de todos os tempos. Os personagens, no

limite da sobrevivência, experimentam o processo de despersonalização ao qual

Graciliano Ramos fará menção constante em Memórias do Cárcere. Esse processo, para

o autor ora estudado, está ligado ao instinto essencial que nos descaracteriza não só

individual, mas também socialmente. Ali, unidos pela figura central de Adrião, bem

como faziam anteriormente nas festas, os membros da pequena cidade compartilhavam

comida, sono e cansaço. Brigavam por pequenas coisas e se afrontavam. A convivência

em sociedade e a educação transformaram, ao longo de centenas de anos, o nosso modo

de nos portar, mas não eliminaram o nosso instinto selvagem.

A escrita literária, com suas figuras de linguagem, assim como toda a arte

produzida pelos seres humanos, reflete uma necessidade de por para fora a

representação do instinto reprimido pela vida social. Além disso, revelam os desarranjos

caetés que, mal estruturados, fadigam a alma e desesperam. O ser humano, como já foi

dito, retomando o pensamento de Aristóteles, é movido pelo pathos. Se quisermos estar

perto dele e sentirmos suas fragilidades, perdas e ganhos, devemos ter acesso a esses

sentimentos. Apesar de não pertencer à nação caeté, João Valério percebe que há entre

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nós uma força maior que nos une. O narrador-personagem não escreve, então, sobre o

romance projetado, mas sim sobre o romance por ele vivido – como dissera Antonio

Candido. Adrião morreu e, com ele, o livro também definhou.

No último capítulo, com apenas três páginas, João Valério sentencia:

Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos

de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia

o que se passava na alma de um caeté! Provavelmente o que se passa na minha, com algumas diferenças. Um caeté de olhos azuis, que fala

português ruim, sabe escrituração mercantil, lê jornais, ouve missas. É

isto, um caeté. Estes desejos excessivos que desaparecem

bruscamente... Esta inconstância que me faz doidejar em torno de um soneto incompleto, um artigo que se esquiva, um romance que não

consigo acabar... (...)

Um caeté, sem dúvida. O pinheiro é um santo, e eu às vezes me rio

dele, dou razão a Nazaré, que é canalha. Guardo um ódio feroz ao

Neves, um ódio irracional, e dissimulo, falo com ele: a falsidade do índio. E um dia me vingarei, se puder. Passo horas escutando as

histórias de Nicolau Varejão, chego a convencer-me de que são

verdades, gosto de ouvi-las. Agradam-me os desregramentos da

imaginação. Um caeté. (...)

Que semelhança não haverá entre mim e eles! Por que procurei os

brutos de 1556 para personagens da novela que nunca pude acabar? Por que fui provocar o Dr. Castro sem motivo e fiz de um taco

ivirapema para rachar-lhe a cabeça? Um caeté. (...)

Diferentes, também, é claro. Outras raças, outros costumes,

quatrocentos anos. Mas no íntimo, um caeté. Um caeté descrente.

Descrente? Engano. Não há ninguém mais crédulo que eu. E esta

exaltação, quase veneração, com que ouço falar em artistas que não conheço, filósofos que não sei se existiram! (Subidem, p. 218-219).

Se o livro Caetés teve uma vida curta, resumida a dois capítulos breves, o livro

que recebemos, seja ele escrito por João Valério ou por Graciliano Ramos, teve uma

vida longa e muito verossímil. Ao abandonar o caráter documental, o narrador-escritor

trouxe autenticidade para a vida de si e de seus personagens. Recentemente, o ex-crítico

e ensaísta Jean-Claude Bernardet, a propósito de sua atuação como protagonista no

filme Fome, de Cristiano Burlan, declarou o seguinte ao Canal Curta:

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“Quando eu vi esse final, fiquei impressionado comigo mesmo... Mas

não fiquei impressionado porque ‘ah, que grande ator eu sou’, você

entende? Fiquei impressionado porque eu sou uma pessoa, assim, essencialmente solitária. E é como se eu tivesse conseguido

representar quase que a essência da minha solidão... E de repente eu vi

isso na tela, gigantesco e tudo e eu não aguentei. Depois do filme eu

surtei. Sai da sala, deixei todo mundo, deixei Burlan, deixei meu amigo, deixei todo mundo e fui andar. Porque certamente eu nunca

tinha feito algo em que eu mobilizei tanto de mim mesmo (...)”.

(BERNARDET, 2016)

O escritor, segundo Graciliano Ramos, possui a capacidade de representar a si

mesmo. Leva para os personagens a própria essência com intuito de logro. Alguns

escritores já declararam que acreditam alcançar qualidade em seus escritos quando, ao

relerem o texto, tem-se a impressão de que não foram eles que o fizeram. Segundo

Graciliano Ramos, quando se coloca em escrita, não consegue escrever senão a partir

dele mesmo, se fosse um retirante, com certeza o seria tal qual o Fabiano. Sendo assim,

poderíamos dizer que a literatura para ele é alcançada de acordo com a medida de

mobilização de si mesmo que o autor alcança, ainda que isto implique em deturpar os

fatos. João Valério, o primeiro narrador de romance representado por Graciliano Ramos,

carrega muitos dos questionamentos do autor por trás da obra. Assuntos que são

abarcados tanto pelos romances, quanto por entrevistas e crônicas – cada um, claro,

respeitando a estrutura peculiar de cada obra.

Quando se refere à coisa observada e sentida, o escritor alagoano quer apontar

que não basta ao escritor de literatura e ficcionista relatar de forma objetiva, na medida

em que a originalidade só se faz apreendida quando nos portamos de acordo com o

olhar daquele que observa e está por detrás de toda a exegese. João Valério não escreve

a narrativa pretendida, abandona o intuito do relato a favor dos próprios desarranjos.

Julgou o romance inteiro não ser capaz de falar sobre a cultura caeté e, talvez, de fato

não o pudesse. No entanto, percebeu que a alma caeté que nós habitamos é

inconfundível, sendo, portanto, uma marca de nascença que nos faz capazes de vestir

outras roupagens. Um escritor, movido pelos resquícios da memória selvagem, diante

da necessidade de sobrevivência (do corpo ou da alma) sempre saberá manifestar o

sentimento coletivo. Antes, então, é preciso se despersonalizar para encontrar no outro a

essência da alma humana.

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Paulo Honório deu um passo à frente. Jogou os capítulos de lado e prosseguiu

mesmo sabendo que os impulsos interiores, de sua alma de caeté (ou agreste, como ele

mesmo chamará), não lhe trariam nenhuma vantagem. Quando idealizou a escrita de um

livro, Paulo Honório pensava, também, tomar posse de certo prestígio da cidade em que

vivia. Imaginou que para realizá-lo precisaria dividir as tarefas entre profissionais

qualificados, assim como fizera a vida inteira na administração da fazenda São

Bernardo:

Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do

trabalho.

Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre

Silvestre fiaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira

aceitou a pontuação, a otografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a

composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria

o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária,

faria as despesas e poria o meu nome na capa. Estive uma semana bastante animado, em conferências com os

principais colaboradores, e já via os volumes expostos, um milheiro

vendido graças aos elogios que, agora com a morte do Costa Brito, eu

meteria na esfomeada Gazeta, mediante lambujem. Mas o

otimismo levou água na fervura, compreendi que não nos

entenderíamos. (RAMOS, 2008, p. 7-8)

Se João Valério não conseguia escrever o romance porque percebeu não ser

capaz de pôr conhecimento e sentimento sobre o assunto:

Abandonei definitivamente os caetés: um negociante não se deve

meter com coisas de arte. Às vezes desenterro-os da gaveta, revejo

pedaços da ocara, a matança dos portugueses, o morubixaba de enduape (ou canitar) na cabeça, os destroços do Galeão de D. Pero.

Vem-me de longe em longe o desejo de retomar aquilo, mas contenho-

me. E perco o hábito. Vou quase todas as noites à redação da Semana. Não para escrever, é

claro, julgo inconveniente escrever. Limito-me a dar, quando é

necessário, algum conselho ao Pinheiro. Há alguns verbos que ele

estraga, uns pronomes que atrapalha. Escorregaduras sem importância: na Semana de qualquer maneira que estejam estão bem.

(RAMOS, 2002, p. 214)

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Paulo Honório, ainda acostumado a tratar de negócios, considerou o livro como

um empreendimento no qual, naturalmente, era preciso certa organização em termos de

mão de obra. Ambos partiram do princípio de uma literatura honorária, como dissera

Graciliano Ramos em crônica, produzida como um objeto comercial. No último

capítulo, Valério declara a necessidade de se entregar à alma caeté que, no decorrer do

romance, ainda aparece de forma tímida – mesclada à projeção de personagens

propositalmente lineares. Em São Bernardo, depois de três tentativas fracassadas, Paulo

Honório enxerga as complicações de se negociar a arte e, ainda, a artificialidade da

língua produzida por Gondim. Uma percepção alimentada também pelo pio da coruja

que provoca os desarranjos mentais e a alma caeté (ou agreste):

- Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico,

está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma! Azevedo Gondim apagou o sorriso, engoliu em seco, apanhou os

cacos da sua pequenina vaidade e replicou amuado que um artista não

pode escrever como fala.

- Não pode? Perguntei com assombro. E por quê? Azevedo Gondim respondeu que não pode porque não pode.

- Foi assim que sempre se fez. A literatura é a literatura, seu Paulo. A

gente discute, briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa. Se eu fosse escrever como falo,

ninguém me lia. (...)

Na torre da igreja uma coruja piou. Estremeci, pensei em Madalena. (RAMOS, 2008, p. 9)

Os sentimentos mal arranjados, que o fizeram perder Madalena, retornam e

provocam a vontade de escrever. O movimento interior provoca a produção de uma

literatura efetiva, composta de pathos e “mal vestida”, “de segunda classe”, respeitando

a espontaneidade da vivência dos personagens. Além disso, é importante observar que

Paulo Honório reivindica uma literatura escrita em brasileiro, bem como Graciliano

Ramos. O desejo de entregar-se à autenticidade da língua e dos desarranjos selvagens

denota fortemente a voz do autor por trás do texto, uma experimentação estética muito

parecida com o conceito de autoficção apresentado por Diana Klinger. Se para

Graciliano Ramos era imprescindível que se abandonasse a literatura honorária, a favor

da efetiva, o efeito é produzido na voz de Paulo Honório – o senhor do sentimento de

posse.

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É claro que o escritor quando se põe a narrar coloca em cena os próprios anseios

e experimentações estéticas, no entanto, é interessante perceber a maneira peculiar que

Graciliano encontrou ainda na década de trinta, muito distante da escrita pós-moderna.

O autor parecia querer, constantemente, apresentar ao leitor uma voz implícita que não

era a do narrador-personagem, mas a do autor por detrás do texto. Parafraseando a fala

sobre Jorge Amado: há por trás dos personagens graciliânicos uma voz que a de

Graciliano Ramos, casado com Heloísa, nascido em Alagoas e observador daquelas

mazelas.

Se em Caétes a narrativa era mista, por assim dizer, em função da mistura de

personagens pouco explorados e caracterizados muito mais pelas falas e

comportamentos do que pelo interior, São Bernardo vem de dentro. Conhecemos os

personagens de acordo com a maneira particular que Paulo Honório os enxergou e nisto

consiste a alma caeté. Já no segundo capítulo Paulo Honório se vê incapacitado de

escrever:

O que é certo é que, a respeito de letras, sou versado em estatística,

pecuária, agricultura, escrituração mercantil, conhecimentos inúteis neste gênero. Recorrendo a eles, arrisco-me a usar expressões

técnicas, desconhecidas do público, e a ser tido como pedante. Saindo

daí, a minha ignorância é completa. E não vou, está claro, aos

cinquenta anos, munir-me de noções que não obtive na mocidade. Não obtive, porque elas não me tentavam e porque me orientei num

sentido diferente. O meu fito na vida foi apossar-me das terras de S.

Bernardo, construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador, introduzir nestas brenhas a

pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho bovino regular. (...)

Ocupado com esses empreendimentos, não alcancei a ciência de João Nogueira nem as tolices do Gondim. As pessoas que me lerem terão,

pois, a bondade de traduzir isto em linguagem literária, se quiserem.

Se não quiserem, pouco se perde. Não pretendo bancar o escritor. É

tarde para mudar de profissão. (RAMOS, 2008, p. 12-13)

O narrador-personagem de São Bernardo abre mão das exigências exteriores a

favor do próprio impulso, a necessidade de escrever se impõe de forma honesta, sem os

arranjos pretendidos inicialmente. João Valério recusou a escrita porque acreditava não

ter os conhecimentos documentais pertinentes ao trabalho desejado, demorou a perceber

que, partindo dos instintos selvagens, poderia alcançar a alma que todos temos em

comum. O narrador de Caetés buscava a verossimilhança no relato histórico e demorou

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a perceber que ela estava muito mais próxima da maneira como percebia e sentia os

personagens do que do simples relato objetivo. Demorou a entender que a literatura se

faz com subjetividade, ao passo que Paulo Honório abre mão do conhecimento absoluto

sobre pecuária e agricultura para dar margem aos próprios anseios, na tentativa de

compreender as atitudes que o levaram a perder Madalena.

O último capítulo de São Bernardo é permeado por reflexões muito similares as

de Caetés em torno da alma caeté. Paulo Honório retoma a ideia inicial em que

acreditava ser necessária a ajuda de pessoas mais entendidas para compor a história,

porque buscava efetivar uma aparência de vencedor, em torno das conquistas materiais.

Relata sobre a memória involuntária motivada pelo pio da coruja e, em função disso, o

desejo nascido de reestruturar os eventos da vida malograda. Só então assume a culpa:

O que estou é velho. Cinquenta anos pelo S. Pedro. Cinquenta anos

perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a

maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a

sensibilidade embotada.

Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a

vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo,

procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os

netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? (Idem, p. 216)

O desarranjo interior causado pelo suicídio de Madalena trouxe a Paulo Honório

o sentimento de culpa e a percepção dos atos cometidos não só contra os outros, mas

também contra si mesmo – vazio e sozinho. Ele desprende-se dos bens materiais,

desvaloriza-os e abandona o trabalho árduo. A fazenda e a casa vão sendo destituídas de

sentido e perdem vida de acordo com a nova visão de Paulo Honório sobre a realidade

que o cerca. Ele chega à conclusão de que poderia voltar a cuidar da fazenda e todo o

exterior se reconstituiria, tudo voltaria a funcionar novamente, mas não teria de volta

Madalena. Não só ele estaria perdido, mas todos os homens e mulheres que dela

dependiam para viver, para ter os cuidados com suas saúdes e educação.

O narrador-personagem reconhece que se voltasse no tempo não conseguiria

mudar o rumo das coisas, pois não é capaz de modificar-se. No entanto, apesar disso,

dessa alma caeté que o aprisiona e o torna fruto de um sistema enraizado, abandona os

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empreendimentos e se aflige com a mudança interior que gostaria de ter alcançado.

Apesar da ruína exterior, que reflete a ruína interior, há no homem um resquício de

instinto de superioridade, no qual ele reconhece atributos em sua narrativa, que são

muito maiores do que os de Gondim:

Coloquei-me acima da minha classe, creio que me elevei bastante. Como lhes disse, fui guia cego, vendedor de doce e trabalhador

alugado. Estou convencido de que nenhum desses ofícios me daria os

recursos intelectuais necessários para engendrar esta narrativa. Magra, de acordo, mas em momentos de otimismo suponho que há nela

pedaços melhores que a literatura de Gondim. Sou, pois, superior a

mestre Caetano e a outros semelhantes. Considerando, porém, que os

enfeites do meu espírito se reduzem a farrapos de conhecimento apanhados sem escolha e mal cosidos, devo confessar que a

superioridade que me envaidece é bem mesquinha.

Além disso estou certo de que a escrituração mercantil, os manuais de agricultura e pecuária, que forneceram a essência da minha instrução,

não me tornaram melhor que o que eu era quando arrastava a peroba.

Pelo menos naquele tempo não sonhava ser o explorador feroz em que me transformei. (Subidem, p. 218)

A superioridade narrativa de Paulo Honório é alcançada justamente pela

verossimilhança que os sentimentos trazem. Se a história tivesse saído ao modo

honorário, cheia de artificialismos, com uma língua ensebada, o relato se entregaria a

uma objetivação excessiva, na qual os personagens serviriam ao estereótipo

desumanizado. Por mais que a sublimação do espírito tenha nascido de sentimentos tão

pobres, a intensidade com que o narrador nos apresentou o desarranjo interior eleva-o a

um estatuto narrativo muito mais potente do que o de Gondim. Tal circunstância vale

para, já em fim do romance, reivindicar para a literatura a essência da alma caeté, aquela

que nos motiva à escritura e engrandece o texto em termos de verossimilhança.

Não foi diferente com Luís da Silva. Angústia é o terceiro romance de

Graciliano Ramos e foi escrito pouco antes da prisão. Muito se falou sobre aspectos de

revisão do texto, em função das próprias declarações do autor em Memórias do

Cárcere, no qual ele reclama infinitas vezes de não ter tido tempo de lançar um olhar

mais aguçado sobre aquele romance. Em carta a Antonio Candido, em 1945, Graciliano

declara:

Por que é que Angústia saiu ruim? Diversas pessoas procuraram

razões, que não me satisfizeram. Olívio Montenegro usou frases

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ingênuas e pedantes, misturando ética e estética. João Gaspar Simões

afirmou que o americano é incapaz de introspecção – e com esta

premissa arrasou-me. Veja só. Nada há mais falso que um silogismo. Álvaro Lins veio com aquele negócio de tempo metafísico. Mas isso

diz pouco, não é verdade? Se eu constituísse uma exceção à regra de

João Gaspar Simões e contentasse Olívio Montenegro e Álvaro Lins,

Angústia não deixaria de ser um mau livro, apesar de haver nele páginas legíveis.

Por que é mau? Devemos afastar a ideia de o terem prejudicado as

reminiscências pessoais, que não prejudicaram Infância, como V. afirma. Pego-me a esta razão, velha e clara: Angústia é um livro mal

escrito. Foi isto que o desgraçou. Ao reeditá-lo, fiz uma leitura atenta

e percebi os defeitos horríveis: muita repetição desnecessária, um

divagar maluco em torno de coisinhas bestas, desequilíbrio, excessiva gordura enfim, as partes corruptíveis tão bem examinadas no seu

terceiro artigo. É preciso dizermos isto e até exagerarmos as falhas: de

outro modo o nosso trabalho seria inútil. E aqui vem a informação a que me referi. Forjei o livro em tempos de

perturbações, mudanças, encrencas de todo gênero, abandonando-o

com ódio, retomando-o sem entusiasmo. Matei Julião Tavares em vinte e sete dias; o último capítulo, um delírio enorme, foi arranjado

numa noite. (RAMOS, In.: CANDIDO, 2006, p. 10-11)

Graciliano Ramos sempre fora conhecido pelo caráter de revisor excessivo,

preocupado com as palavras exatas, a profissão do autor já denotava tal particularidade.

Talvez, em função disso, tenha sido tão rigoroso ao olhar para o Angústia. A

extravagância linguística saltou aos olhos também de Antonio Candido, ainda

acostumado com sentenças curtas e diretas, pouco dadas a devaneios e repetições. O

fato é que, de maneira muito peculiar, a crítica que Graciliano sofrera a partir dessas

“violações” do estilo fez nascer o seu personagem mais obsessivo. Para corroborar o

fracasso psicológico do narrador-personagem, a linguagem doentia e repetitiva serviu de

bom grado à angústia do leitor – que se sente inundado e, quase violentado, pelas

lamúrias de Luís da Silva. Seria Angústia, portanto, um livro mal escrito?

Nesse romance algumas verdades sobre a obra do alagoano são levadas à última

potência: “O espaço, o tempo e a vida encontram-se nos seus romances circunscritos às

dimensões da sua experiência, rica, decerto, em profundidade, mas necessariamente,

aumenta de maneira considerável a sua projeção nelas”. (CRISTÓVÃO, 1986, p. 30).

Retomando o aspecto não ficcional, devemos dizer que o romance supracitado é

constituído de um narrador-personagem, revisor de texto, crítico voraz da literatura

honorária, mora no Rio de Janeiro e, na tentativa de libertar-se do presente malogrado,

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busca voltar à infância em Buíque. Logo de início, faz referência ao atraso do aluguel, a

artigos que não consegue escrever, aos negociantes que o constrangem e provocam

raiva, um discurso muito parecido com o construído em Memórias do Cárcere, ao se

referir ao contexto em que escrevera Angústia.

Como os personagens anteriores, também tem um romance na gaveta e passa os

dias a observar o sistema editorial no qual está inserido, notando a hipocrisia dos que o

cercam e, mais especificamente, de Julião Tavares, seu rival. O primeiro parágrafo do

romance já revela que algo de muito assombroso aconteceu ao personagem principal:

“Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci

completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas

sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios”.

(RAMOS, 2008, p. 7). Há um tom confessional, no qual o narrador-personagem parece

buscar, num possível interlocutor, ouvidos atentos ao seu sofrimento.

Luís da Silva é só, está totalmente entregue aos próprios anseios e ao fracasso

afetivo. A solidão também é logo comunicada aos leitores, na medida em que, diante da

experimentação do anagrama que reorganiza Marina, projetando diversas significações

para a mulher, ele revela olhar para o chão e, em consequência, para dentro de si o

tempo todo:

Tipos bestas. Ficam dias inteiros fuxicando nos cafés e preguiçando,

indecentes. Quando avisto essa cambada, encolho-me, colo-me às paredes como um rato assustado. Como um rato, exatamente. Fujo dos

negociantes que soltam gargalhadas enormes, discutem política e

putaria.

Não posso pagar o aluguel da casa. Dr. Gouveia aperta-me com bilhetes de cobrança. Bilhetes inúteis, mas dr. Gouveia aperta-me com

bilhetes de cobrança. Bilhetes inúteis, mas dr. Gouveia não

compreende isto. Há também o homem da luz, o Moisés das prestações, uma promissória de quinhentos mil-réis, já reformada, E

coisas piores, muito piores. (...)

Dr. Gouveia é um monstro. Compôs, no quinto ano, duas colunas que publicou por dinheiro na seção livre de um jornal ordinário. Meteu

esse trabalhinho num caixilho dourado e pregou-o na parede, por cima

do bureau. Está cheio de erros e pastéis. Mas dr. Gouveia não os sente.

O espírito dele não tem ambições. Dr. Gouveia só se ocupa com o temporal: a renda das propriedades e o cobre que o tesouro lhe pinga.

Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão sempre

desejos violentos de mortandade e outras destruições, as duas colunas mal impressas, caixilho, dr. Gouveia, Moisés, homem da luz,

negociantes, políticos, diretor e secretário, tudo se move na minha

cabeça, como um bando de vermes, em cima de uma coisa amarela,

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gorda e mole que é, reparando-se bem, a cara balofa de Julião Tavares

muito aumentada. (Op. Cit., p. 9-10)

Dois apontamentos fazem-se necessários a partir do trecho acima.

Primeiramente, é interessante notar, voltando ao Memórias do Cárcere, a relação da

incapacidade de escrita com os eventos burocráticos sobre os quais não consegue dar

conta – porque Graciliano Ramos irá dizer, justamente, ser este um dos motivos de não

conseguir terminar o romance Angústia, motivo pelo qual vê na prisão uma

possibilidade de sossego para tal engenho. Em segundo plano, mais uma vez,

verificamos uma aversão à literatura honorária, cheia de chavões e estereótipos,

distantes da verossimilhança. Ambas as referências transportam-nos para um material

não ficcional, muito presente na obra de Graciliano Ramos e um grande mote da

literatura produzida por ele – a presença do autor detrás do texto.

No final da passagem mencionada, voltamos para o romance que temos em

mãos. Luís da Silva é fraco demais para cometer um ato grande e de coragem, o que nos

faz lembrar de João Valério, em Caetés. Este amou Luísa e passou o livro inteiro

aguardando pela morte de Adrião, alvo de sua inveja. Luís da Silva deu um passo à

frente, matou Julião Tavares. Apesar disso, em função do ato praticado, sente-se

torturado e passa por momentos de verdadeira loucura. Graciliano Ramos nos oferece

um verdadeiro Macbeth brasileiro.

Mais uma vez, o personagem de Graciliano Ramos, ansioso por ocupar o posto

do “rei”, digamos assim, na medida em que ocupam um lugar de destaque na sociedade,

deseja ardentemente a morte do inimigo – alvo da inveja. No entanto, em Angústia, o

desejo de morte é projetado a partir das provocações de Marina: uma mulher ambiciosa

que o abandona para ficar com Julião Tavares. Luís da Silva não suporta o peso do

assassinato, lava as mãos compulsivamente, na tentativa de eliminar as marcas de

sangue deixadas pela atitude covarde. A alma caeté do narrador-personagem desse

terceiro romance de Graciliano Ramos é perceptível em função dos impulsos mais

primitivos que o levaram ao homicídio: uma disputa por território e ansiedade de poder

– sempre encaminhados pela obsessão por Marina.

As mãos são mencionadas já na segunda página: “Vivo agitado, cheio de

terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são

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mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram”. (Idem, p. 8). A

morte marca as mãos com tamanha intensidade, que fica impossível para ele esquecer o

ato cometido. Mais uma vez, o narrador-personagem está aprisionado pelas próprias

fraquezas e incapacidade de mudança.

Introspectivo, o narrador-personagem está sempre com pena de si mesmo, em

função da fraqueza emocional e da incapacidade de agir. Antes mesmo de matar Julião

Tavares, passa dias carregando a corda no bolso de um lado a outro, arrumando

coragem para cumprir tal feito. Como foi dito em epígrafe deste trabalho, segundo

Bergson, a vida é como uma granada e para esclarecê-la temos de tentar remontar os

estilhaços com o objetivo de tocar pelo menos de leve na origem. O desejo de retornar à

infância, perante o sofrimento atual incontornável, parece ser uma ansiedade de

encontrar a medida exata dos desarranjos – a origem daquilo que ele se tornou.

Sob a perspectiva de Bergson, em A evolução criadora:

O organismo complexo e quase descontínuo funciona assim, tal como uma massa viva contínua que tivesse simplesmente crescido.

Mas as causas verdadeiras e profundas da divisão eram as que a vida

continha em si própria. Porque a vida é tendência, e a essência de uma

tendência é desenvolver-se em forma de girândola, criando, pelo simples fato do seu crescimento direções divergentes entre as quais o

seu impulso partilhará. É o que observamos em nós próprios na

evolução dessa tendência especial à qual chamamos o nosso caráter. Cada um de nós, ao olhar retrospectivamente para a sua história,

verificará que sua personalidade de criança, embora indivisível, reunia

pessoas diversas que podiam permanecer fundidas, pois se achavam

em estado nascente: essa indecisão cheia de promessas é, aliás, um dos maiores encantos da infância. Mas essas personalidades que se

interpenetram tornam-se, com o crescimento, incompatíveis entre si e,

como cada um de nós vive uma única vida, necessário lhe é fazer uma escolha. (BERGSON, 2010, p. 116-117)

O desejo de retornar à infância não é somente uma fuga, mas também a vontade

de se reencontrar com a origem, com a reconstrução. Justamente porque a infância

remonta o lugar das possibilidades, das escolhas mais acertadas, já que para ele o

presente não tem mais salvação. Os personagens graciliânicos, por estarem aprisionados

ao passado, não projetam o futuro e nisto consiste o grande erro – a ansiedade de

entender as motivações das atitudes mal empreendidas. Nunca saberão onde está o erro

ou pelo menos nunca modificarão a realidade presente, em consequência, não

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reconstroem a partir do agora. A escolha já fora feita, os atos já foram cometidos, não

há retorno, apenas recomeço, dessa forma torturam-se pela alma caeté que os

impulsionou ao erro.

Luis da Silva andava de cabeça baixa pelas ruas, abaixava a cabeça quando

Julião Tavares impunha seu autoritarismo. Aos poucos, sente-se torturado e a ideia de

agressão começa a passar pela cabeça do narrador:

Julião Tavares fechou a cara:

- Todos nós temos as nossas obrigações, homem. Cada qual sabe onde o sapato lhe aperta.

Olhei os pés dele, e o meu ódio aumentou:

- Os seus não devem apertar muito.

- Acha? Baixei a cabeça, mordi os beiços para não gritar os desaforos que me

subiam à garganta e que eu engolia, pus-me a marchar na sala estreita,

batendo os calcanhares com força. De uma parede a outra quatro passos. A porta, que tinha ficado aberta, mostrava-me os

paralelepípedos, as sarjetas, as pernas dos transeuntes, só as pernas,

porque como já disse, eu tinha a cabeça baixa. A minha curiosidade se

concentrava nos sapatos dos transeuntes. Passaram os tamancos de um carregador, os chinelos de Antonia, umas botinas velhas que julguei

serem de Lobisomem. As crianças de d. Rosália corriam e gritavam,

mas estavam descalças. (RAMOS, 2008, p. 92-93)

Nesta passagem é interessante perceber como a perspectiva ótica do narrador

permite uma valoração daqueles que o cercam somente pelos sapatos. De acordo com

estes, classifica-os em nível social e em faixa etária. Enclausura-se perante a

humilhação e compara Julião Tavares com os outros, somente pelos calçados. Com isso,

o ódio engrandece com a constatação do lugar de poder que o homem ocupa. Relembra

da cobra que quase enforcara Trajano, a reminiscência da infância servirá para alimentar

o plano de morte do chefe autoritário:

Lembrei-me da fazenda do meu avô. As cobras se arrastavam no pátio. Eu juntava punhados de seixos miúdos que atirava nelas até

matá-las. Às vezes a brincadeira se prolongava, mas afinal as cobras

morriam, e perto dos cadáveres ficavam montes de pedras. Certo dia

uma cascavel se tinha enrolado no pescoço do velho Trajano, que dormia no banco do copiar. Eu olhava de longe aquele enfeite

esquisito. A cascavel chocalhava, Trajano dançava no chão de terra

batida e gritava: - “Tira, tira, tira.” As alpercatas de Amaro vaqueiro iam do curral dos bois ao chiqueiro das cabras. (Idem, p. 93)

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A humilhação atiça o instinto selvagem de Luis da Silva, a ansiedade produzida

pela ameaça faz com que pense em maneiras de se libertar. As cobras crescem cada vez

mais, aparecem depois rastejando entre os paralelepípedos, declarando uma forma de

combater a opressão. A construção narrativa revela-se novamente pelos desarranjos

dessa alma caeté. Os leitores percebem, por meio dos pensamentos do narrador-

personagem, o percurso interior que o direcionou a matar Julião Tavares enforcado. A

morte é anunciada desde o começo, criamos de imediato uma conexão entre a opressão

e a cobra que quase enforcara Trajano. Havia expresso ali um desejo imediato de

expurgar o sofrimento psicológico imposto pelo homem.

Olhar para o chão, curvado, reflete o interior humilhado do personagem. A

imagem irá se repetir em outros momentos:

Esses homens dominam-me sem mostrar o focinho: manifestam-se pelo arame, num pedaço de papel.

Pensam que vou ficar assim curvado, nesta posição que adquiri na

carteira suja de mestre Antônio Justino, no banco do jardim, no

tamborete da revisão, na mesa da redação? Pensam? Procuro ajeitar as vértebras, mas as vértebras parecem soltas, presas apenas por um fio,

como as que Dagoberto vinha jogar em cima da minha cama.

Resvalam pouco a pouco, e ao cabo de vinte minutos de exercício penoso o meu corpo toma a configuração de um arco. A cabeça pende,

como se procurasse dinheiro na calçada, e a camisa faz pafos no peito.

Inútil tentar abaixá-las e prendê-la na cintura. Sobe sempre e me

arrelia. (Idem, p. 146-147)

Existe nesta curvatura o peso da humilhação que o narrador não tolera mais, a

tirania como um dos reflexos da vida direciona os atos de Luís da Silva – para a morte

anunciada desde o começo. Como fora dito, ao modo de Macbeth, ele lava a mão

obsessivamente e enlouquece. O último capítulo revelará o seu maior enfrentamento

com a dor – partilhando os desarranjos, como veremos, numa mistura indiscernível

entre passado e presente, reflexo da perda parcial de contato com a realidade objetiva.

Angústia, talvez positivamente em função da má revisão, segundo Graciliano Ramos,

ganhou mais vigor no sentido de retratar as intempéries do ser humano. As imagens

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repetitivas serviram bem à obsessão do narrador-personagem e mergulharam os leitores

no universo daquela alma perdida e sem salvação.

Em Angústia já verificamos alguns traços de Infância, não só referências a

cenas, mas também a personagens. Apesar de separar Infância e Memórias do Cárcere

do resto da obra, por apresentarem Graciliano Ramos como narrador-personagem,

Antonio Candido já atentara para tal fator no seu Ficção e Confissão. Antonio Candido

reconhece que a tendência narrativa nasce por uma necessidade de

associação, às coisas vistas e à experiência cotidiana, para construir o

fluxo da vida interior. Cada acontecimento é estímulo para Luís da

Silva repassar teimosamente fatos e sentimentos da infância e da adolescência, que pesam na sua vida de adulto como sementeira

longínqua das ações e do modo de ser. (CANDIDO, 2006, p. 57)

Em contrapartida, em Infância e Memórias do Cárcere é evidente a tendência à

ficcionalização, como forma de combater o excesso de eu, fornecendo aos outros

personagens e às cenas verossimilhança, muito mais importante para ele do que o apego

à verdade objetiva. Reencontramos personagens conhecidos, apesar de modificados

parcialmente e de estarem inseridos em contextos diferentes: como Padre Inácio, que

aparece em Caetés e em Angústia. Os desarranjos que motivam Luís da Silva a voltar à

infância são os mesmos que nos são apresentados pelo narrador Graciliano no romance

seguinte:

um dos traços mais constantes é o sentimento de humilhação e de machucamento. Humilhação de menino fraco e tímido, maltratado

pelos pais e extremamente sensível aos maus-tratos sofridos e

presenciados. Por toda parte, recordações doídas de alguma injustiça, de alguma vitória descarada do forte sobre o fraco. Talvez porque ante

a sensibilidade do narrador as circunstâncias banais da vida

avolumassem como outras tantas brutalidades. Em casa, na rua, na escola, vê sempre um indefeso nas unhas de um opressor. (Idem, p.

71)

Em Infância a justificativa para a narrativa também se pauta pela opressão,

aquela que transportava Luís da Silva para a infância sofrida cada vez que se impunha a

máscara agressora de Julião Tavares - no qual o narrador-personagem parece depositar

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as dores da vida inteira. Durante algum tempo, perdurou-se um discurso em que cada

texto teria nele mesmo um sentido a ser explorado em toda a sua essência. Sabemos

que, quando falamos de literatura, é inevitável pensar no projeto de cada livro de

maneira independente, não devemos nos esquivar de tal aspecto. Na obra completa de

Graciliano Ramos está presente uma estrutura peculiar de cada narrativa, mas, é mister,

como se tem feito até aqui, afirmar que o autor por detrás do texto marca uma estética

coerente com o próprio modo de se relacionar com a língua e com a linguagem - uma

necessidade sempre revelada por Graciliano, seja em entrevistas e crônicas, seja em

metalinguagem. Diante disso, comportando a ansiedade do escritor, vimos até aqui

repetições estruturais que, por serem revistas infindáveis vezes nos romances a seguir,

lhes atribuem caráter de literatura e, ainda, de ficcionalidade.

Acredita-se que a literatura, como já discutido exaustivamente, no capítulo

anterior denominado "Graciliano Ramos: sobre a literatura e o caráter de ficção",

revela-se pelo modo peculiar que o autor imprime a estética em suas obras. A maneira

como figura a linguagem e estrutura o processo de ficção. Sendo assim, a partir de

agora, veremos em Infância e, posteriormente, em Memórias do Cárcere, o mesmo

projeto estético encontrado nos romances até aqui analisados.

O mundo interior também está sobreposto às ações exteriores, a narração se

baseia na forma como o exterior foi percebido por aquele que narra. Não à toa, se

houvesse uma necessidade de relatar a realidade objetiva, ele nos apresentaria em ordem

cronológica os acontecimentos, baseando-se em relatos de outros personagens mais

velhos - com a memória menos comprometida pelo esquecimento e pela idade. Isto não

ocorre. O leitor recebe as impressões tais quais as lembranças são recuperadas,

iniciando o romance, inclusive, pela indeterminação dos sujeitos envolvidos pela ação:

A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça

vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde

o vi, quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse

noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a

ter comunicado a pessoas que a confirmaram. (...) Inculcaram-me

nesse tempo a noção de pitombas - e as pitombas me serviram para designar todos os objetos esféricos. Depois me explicaram que a

generalização era um erro, e isto me perturbou. (RAMOS, 2008, p. 9)

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Como a narrativa trata da infância malograda, ela finaliza quando se chega à

adolescência - quando o narrador-personagem começa a elaborar as primeiras produções

literárias. O passado não procura ser solidificado pelo caráter documental, vai, de

acordo com a introdução supracitada, ao sabor das lembranças e das recordações.

Os três primeiros capítulos representam a primeira parte da infância de

Graciliano Ramos, digamos assim, porque com a mudança física, que acontecerá logo

depois, o sofrimento passará para frente de cena com a decadência financeira do pai -

que para ele seria uma das causas da tortura psicológica e física que passara a sofrer. O

terceiro capítulo, denominado "Verão", caracteriza a transição no interior das pessoas

e/ou personagens que o cercavam:

O meu verão é incompleto. O que me deixou foi a lembrança de

importantes modificações nas pessoas. De ordinário pachorrentas,

azucrinaram-se como tanajuras, zonzas. Findaram as longas conversas no alpendre, as visitas, os risos sonoros, os negócios lentos; surgiram

rostos sombrios e rumores abafados. Enorme calor, nuvens de poeira.

E no calor e na poeira homens indo e vindo sem descanso, molhados

de suor, aboiando monotonamente. (Op. Cit., p. 28)

Graciliano Ramos já estava acostumado com a figura autoritária do pai, no qual

a sensação de poder lançava-se por meio de todas as atitudes tomadas. No entanto, a

partir da crise motivada pela seca, fluíra do homem uma agressividade nunca antes

vivenciada pelo menino tímido e acuado. Apesar de, até então, ser muito novo para

notar que o pai exercia a função autoritária também por ser o dono da fazenda, o menino

atentara para as nuances de poder que também se impunha pelo caráter social:

Espanto, e enorme, senti ao enxergar meu pai abatido na sala, o gesto

lento. Habituara-me a vê-lo grave, silencioso, acumulando energia

para gritos medonhos. Os gritos vulgares perdiam-se; os dele

ocasionavam movimentos singulares: as pessoas atingidas baixavam a cabeça, humildes, ou corriam a executar ordens. Eu era ainda muito

novo para compreender que a fazenda lhe pertencia. Notava diferenças

entre os indivíduos que se sentavam nas redes e os que se acocoravam no alpendre. O gibão de meu pai tinha diversos enfeites; no de Amaro

havia numerosos buracos e remendos. (...)

Meu pai era terrivelmente poderoso, e essencialmente poderoso. Não me ocorria que o poder estivesse fora dele, de repente o abandonasse,

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deixando-o fraco e normal, um gibão roto sobre a camisa curta. (Op.

Cit., p. 30-31)

O autor nos oferece um percurso de vida no qual, desde pequeno, percebe as

relações negativas do poder. Este é apresentado como flexível, em função do caráter

fugaz e condicionado ao exterior. Para o pai, é necessário apresentar-se dominador de

tudo que o cerca, porém, com o escoamento financeiro, o menino se tornará depósito da

insatisfação e da sobreposição social. Parecia ser inerente à essência do pai apontar no

outro o lugar de inferioridade de acordo com o seu ponto de vista, uma necessidade

demonstrada pelo desleixo com a comida e com os objetos dos funcionários.

Certa vez, em 1948, Graciliano Ramos escreveu um autorretrato17

no qual uma

série de frases coordenadas revelam fragmentadamente um todo sobre si. Nele, o

escritor declara algo muito conveniente para a sua estética narrativa e para construção

psicológica dos seus personagens: "É-lhe indiferente estar preso ou solto". De acordo

com a análise apresentada neste trabalho, observamos o quando os personagens

graciliânicos estão aprisionados pelos próprios desarranjos. Em Infância a prisão

psicológica é vivida nos mínimos detalhes:

Quando me impunham os sapatos, era uma dificuldade: os pés

formavam bolos, recalcitravam, não queriam meter-se nas prisões

duras e estreitas. Arrumavam-se à força, e durante a resistência eu ouvia berros, suportava tabefes e chorava. Um par de borzequins

amarelos, um par de infernos, marcou-me para toda a vida. (Op. Cit.,

p. 40)

Neste menino, a prisão interior da infância, como lugar do sofrimento e da

sobreposição do adulto, o acompanha por toda a vida e por todos os ambientes. É

interessante notar que, quando chega em Memórias do Cárcere, o homem encontra na

prisão uma oportunidade de terminar Angústia - apesar de ter fracassado neste quesito.

A declaração de Graciliano Ramos parece querer nos dizer que um ser humano tomado

pelos desarranjos interiores já está condicionado à prisão, independente do espaço físico

no qual está inserido - todos os narradores-personagens graciliânicos são presidiários. A

17 Lido no site oficial do autor: http://graciliano.com.br/site/autorretrato/

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alma caeté subordina o homem, que se sente inibido e se autorrecrimina pelas

fragilidades selvagens.

O texto de Infância mantém o tom irônico de Graciliano Ramos. O quarto

capítulo, intitulado “Cinturão”, começa com uma sentença fundamental para a relação

do narrador com a autoridade. Além disso, representa uma ironia quando nos deparamos

com a verdade do relato:

As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e

deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito

representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava

de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.

(Op. Cit., p. 33)

A dor que participa o trauma de infância não procura encontrar no interlocutor

da narrativa um compadecimento sobre si, mas sobre a condição do ser humano18

. Na

medida em que a abordagem do tema apresenta a criança como um ser submentido

também a um sistema social. A ironia no fragmento é revelada aos poucos pelo caráter

impositivo com que a violência se impõe no universo infantil, porque as crianças, como

seres menores dentro da cadeia social, sofreriam como depósito de todas as tensões.

Assim como nos outros romances, a relação de poder é dimensionada como

negativa e provoca desordem psíquica nos seres que são vistos como objetos dentro

dessa relação. A criança aqui serve como depósito da degradação do ser humano quando

inserida num ambiente de autoritarismo. No capítulo citado, o pai do narrador busca por

um cinturão que acredita ter sido perdido pelo menino:

O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me

entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante

maneira.

Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz

emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas

18 Apesar do “pronomezinho insignificante”, como o narrador de Memórias do Cárcere

irá se referir a primeira pessoa do singular.

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cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com

pontas de ferro.

Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo. (Op. Cit., p. 35)

A pergunta irá ecoar algumas outras vezes, provocando as sensações físicas do

trauma. O menino apanha de chicote e a justiça lhe parece de um jeito torto, sentiu-se

miúdo e insignificante. É importante notar aqui uma espécie de verbalização do

sentimento provocado pelo efeito coruja, como veremos no próximo capítulo.

Justamente porque, quando submetido a circunstâncias parecidas com a do trauma, o

narrador experimenta os mesmos desarranjos interiores e sensações físicas. Diante de tal

situação, os seres humanos são impulsionados a atitudes instintivas, servem de modo

inconsciente aos atos selvagens da alma caeté que mora dentro de cada um.

Segundo Wander Melo Miranda, no seu Corpos Escritos, para conceituarmos

um texto como autobiográfico devemos ter em mente o contrato implícito ou explícito

entre os participantes do processo comunicativo, porque, de acordo com os efeitos

causados pela leitura, pode-se definir o gênero ao qual pertence. Considera então o

modo peculiar com que o escritor faz uma revisão da própria vida, focalizando a história

de sua personalidade. Em suma:

Todos os textos ficcionais que se aproximam dessa definição ou

permitem ao leitor suspeitar da identidade entre autor e protagonista,

embora o primeiro negue ou não afirme tal identidade, não são considerados como autobiografia stricto sensu, porque, para Lejeune,

esta não comporta grais – é tudo ou nada. Entretanto, mesmo em

sentido restrito, a autobiografia tende a assimilar técnicas e

procedimentos estilísticos próprios da ficção. Isso evidencia o paradoxo da autobiografia literária, a qual pretende ser

simultaneamente um discurso verídico e uma forma de arte situando-

se no centro da tensão entre a transparência referencial e a pesquisa estética e estabelecendo uma gradação entre textos que vão da

insipidez do curriculum vitae à complexa elaboração formal da pura

poesia. (MIRANDA, 2009, p. 30)

Como já vimos neste trabalho, a relação é complexa. Para definirmos um texto

devemos levar em conta uma série de elementos e, particularmente nos romances de

Graciliano Ramos, é importante notar que o autor busca sempre reivindicar suas

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ansiedades enquanto escritor da obra que temos em mãos. Isto significa dizer que, para

além do modo comunicativo estabelecido entre ambos os interlocutores, existe uma voz

que se faz ativa e projeta no discurso uma intencionalidade não de maneira nenhuma

desprezível.

A situação na obra do autor ora estudado é dicotômica porque, se por um lado

não podemos negar um narrador-personagem Graciliano Ramos, também devemos

considerar as distorções do conceito de verdade que o escritor faz questão de

particularizar. Já foi dito que, em função disso, optou-se por considerar a obra completa

do autor como narrativas compostas por uma mistura indiscernível de ficção e não

ficção e, somado a isso, a partir dos “procedimentos estilísticos”, todas as narrativas são

romances – na medida em que se apresentam em formato literário.

Sob a perspectiva de Wander Melo Miranda, poderíamos classificar todos como

romances autobiográficos, se fizéssemos a ressalva de que não estamos diante de

personalidades que existiram no mundo, digamos assim, real. Tal afirmação partiria da

premissa de que houve uma ansiedade em se tratar da jornada de vida dos personagens,

sempre focalizando a própria vida. Optamos então por destoar dessa visão, porque

Graciliano Ramos não tem apego à verdade, entregando-se à verossimilhança de modo

intenso, ainda que implique em abandonar o pacto com a verdade objetiva.

Perante a análise de Infância e de Memórias do Cárcere, verificamos o mesmo

projeto, não só estético como conceitual, dos outros romances. O desarranjo interior, a

realidade subjetiva se impõe como reflexo da existência e, com isso, deturpa os fatos de

acordo com o que se pretende particularizar. Para mostrar a desvalorização da realidade

objetiva, verificamos um constante intercâmbio de nomes, cidades e retratos sociais

entre todos os romances, o que desestabiliza indefinidamente o estatuto de

ficcionalidade.

Vimos nos romances analisados a opressão como tema central das ansiedades

dos narradores-personagens. Uma opressão que, em diferentes níveis, se dá pelas

relações sociais que são estabelecidas ao longo da vida. Em Infância, que acabamos de

analisar, a opressão vem em função da relação familiar e da idade. O indivíduo

submete-se pelo medo da punição e dos gritos repetidos ostensivamente,

correspondendo ao degrau que ainda ocupa na sociedade. Constrói uma relação com a

justiça muito peculiar, na qual em casa ou na escola é punido pela ineficiência em

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corresponder às expectativas dos que o cercam. Não menos importante, observa desde

pequeno a relação de poder imposta pelo dinheiro, a mesma que ocupa e motiva todos

os romances anteriores, apesar de a abordagem se dar em diferentes níveis de

argumentação e relação entre os personagens envolvidos.

A alma caeté nasce da perturbação selvagem que mora dentro do ser humano e

que renasce quando estabelece contato com o perigo ou com a ameaça. Um impulso

que, para os personagens graciliânicos, parece nascer do instinto de proteção quando

confrontados com a realidade das relações de poder, sempre fracassadas. Em Memórias

do Cárcere, a igualdade tão almejada e refletida nos romances anteriores aparece como

fruto de um dos laboratórios mais ricos, segundo Graciliano, pelo qual passou. Desde o

início do romance, a sensação de despersonalização será retomada para caracterizar o

status social que todos experimentavam na prisão, na qual ele, como igual, misturava-se

inclusive aos vagabundos, sobre os quais sempre alimentara grande ojeriza.

A despersonalização como igualdade nascia do fato de todos serem tratados

como iguais, da sensação de perder-se a individualidade:

No íntimo havia talvez o incerto desejo de provocar a nova justiça

inquisitorial, perturbar acusadores, exibir em tudo aquilo embustes e

patifarias. Essa vaidade tola devia basear-se na suposição de que enxergariam em mim um indivíduo, com certo número de direitos.

Logo ao chegar, notei que me despersonalizavam. O oficial de dia

recebera-me calado. E a sentinela estava ali encostada ao fuzil, em mecânica chateação, como se não visse ninguém. (RAMOS, 2008, p.

31)

A igualdade social na prisão comporta ares de injustiça, principalmente porque

Graciliano Ramos nunca ficou sabendo os motivos que o levaram até ali: “Não me

acusavam, suprimiam-me.” (Op. Cit., p. 31) Uma questão que se impõe do início ao fim

do romance e que permanece sem resposta. A despersonalização se opõe justamente à

necessidade imperativa do autor de marcar a presença do seu discurso, apesar de, em tal

situação, criar milhares de estratégias para camuflar a suposta culpa.

A sensação causada por esse processo de igualdade, em contrapartida, esmaga-

os como ratos diante de uma nova ordem. Se todos ali condicionados recebem o mesmo

tratamento, deve-se dizer, como já era esperado, que o tratamento não é em nada

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respeitoso. O narrador-personagem não tarda em perceber e sentir que, mesmo para o

vagabundos, há uma injustiça no ato de tentar apagá-los:

Essa ideia de nos poderem levar para um lado ou para outro, sem

explicações, é extremamente dolorosa, não conseguimos familiarizar-

nos com ela. Deve haver uma razão para que assim procedam, mas, ignorando-a, achamo-nos cercados de incongruências. Temos a

impressão de que apenas desejam esmagar-nos, pulverizar-nos,

suprimir o direito de nos sentarmos ou dormir se estamos cansados. Será necessária essa despersonalização? Depois de submeter-se a

semelhante regime, um indivíduo é absolvido e mandam-no embora.

Pouco lhe serve a absolvição: habituado a mover-se como se o puxassem por cordéis, dificilmente se libertará. Condenaram-no antes

do julgamento, e nada compensa o horrível dano. (Op. Cit., 42-43)

A despersonalização, como modo imperativo de delegar ao outro sua

inferioridade, será recorrente no discurso narrativo de Memórias do Cárcere. Neste

laboratório rico, conhecendo diversas personalidades, Graciliano Ramos experimentará

a complexidade embutida na igualdade. Todos ali, vindos de diferentes camadas sociais,

que tiveram educações tão distintas, igualam-se e, ao mesmo tempo, são massacrados

por outra realidade de opressão. Tornam-se indistintos no que diz respeito à profissão,

mas igualam-se diante do poderio militar. Observe ainda que, ao final da passagem

supracitada, a forma como relata o sentimento de perda da independência psicológica.

Anteriormente, falamos sobre Ricardo Ramos ter interpelado constantemente sobre o

término do romance, no qual seriam inseridas as vivências depois da prisão. Na verdade,

a partir do tema central do livro e da concepção acima, verificamos que os resquícios de

prisão jamais o deixaram – tornando-se tema central da narrativa em análise. O narrador

Graciliano estava oprimido, talvez pelo resto da vida não ficcional, a tal acontecimento.

A partir deste engenho social tão complexo, o narrador-personagem irá

conquistar amizades muito peculiares com pessoas tão distantes da sua perspectiva

psicológica e social, mas que se coadunaram com a sua dor. Capitão Lobo e Cubano, o

militar e o vagabundo, perante a miséria que assistiam, se compadecem e são empáticos

com a dor do ser humano por detrás de Graciliano Ramos. Há, como pano de fundo das

almas, um instinto de sobrevivência que a todos pertence. Se Cubano vira um amigo

com o qual compartilha as dificuldades da opressão diária, Capitão Lobo ganha o

respeito logo de início por assumir que não concorda com Graciliano Ramos em suas

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opiniões, mas respeita-as, oferecendo, inclusive, dinheiro – que salta aos olhos de

Graciliano Ramos como uma situação real e inverossímil:

Capitão Lobo, portanto, fugia ao preceito. De certo modo havia no

caso uma espécie de deserção. Impossível explicá-la. Se ele

condenava as minhas ideias, sem conhecê-las direito, por que me trazia aquele apoio incoerente? Insolência e brutalidade com certeza

me atiçariam ódio, mas seriam compreensíveis, e nada pior que nos

encontrarmos diante de uma situação inexplicável. Admitimos certo número de princípios, julgamo-los firmes, notamos de repente uma

falha neles – e as coisas não se passam como havíamos previsto:

passam-se de modo contrário. A exceção nos atrapalha, temos de reformar julgamentos. Qual seria a razão daquilo? Afinal aceitamos as

defecções. Conflitos internos, zangas, ressentimentos, levam muitas

vezes um indivíduo a combater os amigos da véspera. Difícil era

conceber que alguém se despojasse voluntariamente, em benefício de um adversário. Essa renúncia da propriedade me entontecia. (Op. Cit.,

p. 93)

Apesar de irreal, este foi um dos primeiros acontecimentos que fizeram

Graciliano Ramos encontrar a sua volta a complexidade injustificável do ser humano.

Voltamos facilmente ao primeiro romance, no qual já se reivindicará como principal

questão a alma caeté. Um elemento fundamental que faz com que compartilhemos a dor

do outro simplesmente pela condição intrínseca de ser humano. Em igual valor,

Memórias do Cárcere também aponta o limite da sobrevivência aflorando os piores

instintos dos personagens, bem como acontece no primeiro romance, quando esperam a

morte de Adrião. De início resiste, mas, por fim, diante do medo, começa a perceber a

perfídia nos próprios atos, porque a prisão lhe fornecia material de subexistência e, com

isso, cedia a tudo que aparentava feição ameaçadora:

Como as informações se multiplicassem, tentei saber em que se

baseavam. Nada de concreto: sugestões malévolas apenas. Indícios confusos encorpavam ali dentro, ganhavam relevo, mudavam-se em

provas. Fora do mundo, aqueles espíritos caíam em forte

impressionabilidade, gastavam as horas longas criando fantasmas ou admitindo, ingênuos, inventos alheios, as informações mais

disparatadas. Só mais tarde percebi como embustes grosseiros nos

enleiam no cárcere e esforcei-me com desespero por vencer o rebaixamento mental, a credulidade estúpida.

Ouvindo pela primeira vez semelhantes acusações, procurei reagir,

mas talvez já houvesse em mim um esboço de alma selvagem.

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Escorregava pouco a pouco, involuntariamente dava crédito aos

boatos. Seria injustiça? Faltavam-me elementos para julgar. (Op. Cit.,

p. 129)

O narrador-personagem Graciliano Ramos coloca em cena, mais uma vez, a

alma selvagem como elemento que aflora como instinto de sobrevivência ao qual todos

estão condicionados. Os personagens do alagoano estão sempre submetidos à crise

imposta pela alma caeté, responsável pelo desarranjo interior. Presos aos próprios

equívocos são relembrados e se torturam a todo instante por aquilo que jamais poderá

ser reestruturado. Em suma, a prisão interior sentencia-os a um eterno fluxo de

pensamentos obsessivos, dos quais dificilmente se libertaram.

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4. A memória involuntária e o aparecimento do efeito coruja

Os personagens de Graciliano Ramos carregam a vida como o maior castigo. No

capítulo anterior, vimos o quanto estão fadados por imagens invasivas que os domam e

os tornam fragilizados. Há sempre uma força inconsciente, um resquício da alma

selvagem que os invade desequilibrando suas forças. A vida do homem, da mulher ou

mesmo do animal está condicionada pelo impulso interior. A memória, seja ela a da raça

humana ou da vida particular de cada um, submete-os a ações inesperadas e a

pensamentos incontroláveis.

Em O verdadeiro, o belo e o bem: uma abordagem neuronal, Jean-Pierre

Changeux reconstrói a história da representação e do conhecimento desde a antiguidade.

Partindo deste intento, relata uma visão muito interessante de Aristóteles sobre a alma e

o corpo como dois elementos inseparáveis. Uma visão particular que corrobora a teoria

de João Valério em Caetés e que serviu de introdução para o resto da obra de Graciliano

Ramos – nela o homem seria constituído por três níveis de faculdades:

A alma vegetativa, que todos os seres vivos possuem e que assegura a

nutrição e a reprodução;

A alma sensitiva, que compreende a sensação, concebida como recepção da “forma” sem a “matéria” que a acompanha no objeto, e a

imaginação (phantasia), a imagem que persiste, depois que o objeto

desapareceu, na memória e nos sonhos; A alma intelectiva ou racional, que só o homem possui e que assegura

a formação dos conceitos, dos raciocínios. Aristóteles distingue nela

“o intelecto paciente” (pathetikos) e receptáculo das imagens, e “o

intelecto agente” (poietikos), de dignidade superior e que atualiza os inteligíveis. As clivagens hierárquicas que introduz na alma

correspondem, grosso modo, à sensação (pelos órgãos dos sentidos),

ao entendimento (formação dos conceitos) e à razão (desenvolvimento do pensamento). Enfim, com a lógica, Aristóteles introduz um

exercício intelectual que confere ao discurso um caráter e necessidade

na distinção do verdadeiro e do falso. Estabelecem-se as premissas de

um acesso rigoroso ao conhecimento objetivo. (CHANGEUX, 2013, p. 31)

A primeira alma é aquela que aflorou os instintos primitivos dos homens e

mulheres enquanto faziam a vigília na casa de Adrião. A segunda e a terceira são as de

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interesse particular neste capítulo. A alma sensitiva preserva a memória de um objeto

desaparecido, aflora uma memória quase sempre fantasiosa, na medida em que não se

tem mais o objeto de observação – apenas vislumbramos possibilidades. No entanto, o

homem possui a faculdade de elaborar conceitos para corresponder à realidade. Há uma

ansiedade constante de discernir o verdadeiro do falso, e nisto consiste o nosso interesse

no que diz respeito à natureza da literatura e da memória.

Ao optar por uma escrita memorialística, na qual narradores-personagens são

movidos por algo que guardam dentro de si mesmos, Graciliano Ramos evidencia o

caráter essencial da literatura: ser constituída pelos resquícios de memória. Ao atribuir o

mesmo discurso de indiscernibilidade entre ficcional e não ficcional em todos os

romances, quer nos dizer que a memória está a serviço da literatura, assim como a

literatura está a serviço do processo memorialístico. A memória tem por natureza a

reinvenção, estamos sempre preenchendo lacunas produzidas pelos nossos equívocos

sentimentais.

Os personagens são lançados ao desespero interior por uma voz inconsciente que

insiste em aparecer, ameaçadora e violenta. O castigo da vida para esses personagens é

justamente não discernir o falso do verdadeiro. Paulo Honório ouve o pio da coruja e

recupera sentimentos do passado, com isso deseja desvendar Madalena, o que jamais

será possível sem observar o material do tempo de outrora. Será esta tensão que o

moverá para a escritura: o desejo de recuperar o verdadeiro. Mas o que seria o

verdadeiro? Um homem com sentimento de propriedade jamais poderá desvendar uma

mulher com vocação para os seres menores (aos olhos de Paulo Honório).

O primeiro pio de coruja apareceu em Caetés. Ele soa como prenuncio de mau

agouro em cima da casa de Silvério (Adrião) logo no início do romance, uma morte

esperada por João Valério e por nós, leitores, que acompanhamos toda a jornada na

expectativa do devir:

No céu negro uma coruja passou alto, piando.

- Diabo! Exclamou Isidoro, supersticioso, estremecendo. Não gosto de

ouvir estes amaldiçoados gritos. Justamente por cima da casa do Silvério, que está de cama, esta peste voar, rasgando mortalha.

(RAMOS, 2002, p. 30)

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Em Caetés, além do pio da coruja, há uma estrela que acompanha os devaneios e

ansiedades de João Valério. Ela serve como uma espécie de interlocutora que motiva a

trajetória do personagem e que, aos poucos, perde o brilho juntamente com Luísa. Há na

estrela um projeto de esperança, no qual o autor arremessa reflexões e sentimentos

confusos de insegurança. Quando vê a estrela, se sente capaz e próximo de Luísa, mas,

na medida em que Luísa desce do pedestal, também com ela a estrela perde a majestade.

Com as turbulências interiores, João Valério olha para o céu em busca de

aprovação:

Afastei-me, tremendo na escuridão, receando que alguém me

encontrasse. À porta de casa retrocedi, com a ideia esquisita de procurar a minha estrela protetora sobre o monte negro. E sorri

interiormente. Fui à beira do açude, avistei-a. Tinha mudado de lugar

e estava menor. Contemplei-a, supersticioso, quase convencido de que ela me enviava

parabéns lá de cima. (Idem, p. 139)

O açude, nos outros romances, é sempre mencionado como o lugar da reflexão.

Quando se inquietam, os personagens graciliânicos aproximam-se da barragem e se

entregam aos processos de rememoração. Aqui, como visto no fragmento, apesar de não

produzir memórias, há no açude também uma projeção do interior do personagem. A

estrela aos poucos se distancia na medida em que Luísa perde o posto de idealização. O

descrédito reflete uma autoironia sobre os sentimentos românticos e marca ainda um

resquício estético do pós-naturalismo, como bem notou Antonio Candido:

A atmosfera geral do livro se liga também à lição pós-naturalista,

voltada para o registro dos aspectos mais banais e intencionalmente

anti-heróicos do cotidiano e com certo pudor de engatilhar os dramas convulsos de que tanto gostavam os fogosos naturalistas da primeira

geração. Imaginando torcer o pescoço ao que lhes parecia postiço e

convencional, os sucessores adotaram a convenção de que a arte deve reproduzir o que há na vida de mais corriqueiro; e chegaram assim a

um postiço avesso do que pretendiam liquidar, pressupondo na vida

um máximo de pasmaceira que ela não contém e, nos personagens uma estagnação espiritual incompatível com a dinâmica inerente à

mais rasteira das existências.

Caetés é rebento dessa concepção de romance, minuciosa e algo

estática. A intenção do autor parece ter sido horizontalizar ao máximo

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a vida dos personagens, as relações que mantêm uns com os outros.

Exceto o narrador, João Valério, os demais são delineados por meio

de aspectos exteriores, através dos quais vão se revelando progressivamente. (CANDIDO, 2006, p. 19-20)

Apesar de apresentar essa atmosfera, na qual os personagens são

horizontalizados, o efeito é produzido de forma irônica. Podemos perceber isso porque o

autor dá ao narrador-personagem rompantes psicológicos, como veremos no próximo

capítulo, além de mostrar nele uma constante autoavaliação. Ainda segundo Antonio

Candido, haveria uma dificuldade na leitura de Caetés por este apresentar uma relativa

frouxidão psicológica e uma língua simples e comedida. No entanto, a frouxidão

psicológica não é um item acessório ou estilístico. Ao contrário do que acreditou

Antonio Candido, a linearidade dos personagens, a partir da concepção deste trabalho,

não o torna rebento da concepção pós-naturalista. Antes, caracteriza-os dessa forma

para passar uma rasteira na visão excessivamente objetiva do romance19

. Por meio da

voz de João Valério, em metalinguagem, a autoironia era produzida pelo próprio

discurso do narrador ao questionar suas habilidades narrativas. O capítulo final, no qual

o autor ficcional reconhece no romancista a capacidade de aflorar os instintos primitivos

para compor personagens, atribuindo-lhes os próprios sentimentos, revela a inadequação

de personalidades estereotipadas, para as quais o autor não empresta os próprios

desarranjos que possuem seu alcance de universalidade.

Verificamos então uma negação justa dos aspectos exteriores a favor de uma

concepção adepta do interior. Em relação à “estagnação espiritual”, há algumas

referências muito relevantes. João Valério encontra-se bipartido. Como ele mesmo

afirma ao final do livro: “Ateu! Não é verdade. Tenho passado a vida a criar deuses que

morrem logo, ídolos que depois derrubo – uma estrela no céu, algumas mulheres na

Terra...” (RAMOS, 2002, p. 219). Temos aqui um paradoxo que não se resolve. Seria

19 Graciliano Ramos quer apontar para a necessidade de se trazer subjetividade para os personagens, não à toa, sempre opta por narradores-personagens. Isto nos redimensiona e nos faz questionar o ponto de vista, no qual aquele que narra possui privilégios sobre o acontecimento narrado. Não conhecemos os sentimentos dos outros personagens, simplesmente porque o narrador também não tinha acesso e narra de acordo com o que julgou ter observado. Silviano Santiago diz, na entrevista em anexo, o seguinte: “Acho que são vários os achados narrativos que enriquecem a retórica da ficção e nos aproximam muito mais da realidade que o mero relato realista-naturalista.”. Graciliano Ramos já dizia constantemente, como visto no capítulo anterior, que o romancista se aproxima muito mais da verossimilhança pela subjetividade do que pelo relato objetivo.

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descrente um homem que busca a imanência? No entanto, seria crente um homem que,

por não conseguir tocar o interior e a verdade, abandona os próprios deuses? Em Caetés

não temos a história de um personagem linear que compactua com a visão do pós-

naturalismo, mas sim um personagem que tenta a todo custo alcançar o interior de si e

dos outros, daí então vem a autoironia pelo objetivo aparentemente inalcançável.

O pio da coruja no primeiro romance só aparece no começo, anunciando a morte

de Adrião. Todas as inquietudes de João Valério giram ao redor da figura imponente do

chefe e amigo. O pio não retorna, mas o personagem demonstra constante desarranjo

pela insegurança que sente em relação à Luísa e à morte de Adrião sempre postergada.

Quando falamos em “Efeito Coruja”, queremos dar destaque a uma característica

da obra do autor em análise que relaciona o efeito sonoro à mudança de perspectiva da

narrativa - o mesmo acontecerá com o som do sapo. Se em Proust o paladar o transporta

para o passado, causando o chamado “Efeito Madelaine”, em Ramos a audição provoca

o mesmo retorno, no entanto, pelo efeito traumático.

Cada vez que um personagem de Graciliano Ramos escuta o som de um dos

bichos, passado e presente se confundem. Teria de fato ouvido o pio da coruja ou o

coachar dos sapos? Ainda que o som não apareça embaralhando o sentimento de real e

imaginário, o fenômeno auditivo sempre aparece em todos os romances como uma

memória que os leva a outros tempos, que os desperta para novos sentimentos de

mundo.

Em São Bernardo, o pio da coruja aparece na terceira página do romance: “Na

torre da igreja uma coruja piou. Estremeci, pensei em Madalena.” (RAMOS, 2008, p.

9). O efeito sonoro nos desperta para o ponto central da narrativa: a morte de Madalena.

Paulo Honório almejava escrever um livro para relatar a glória de sua vida, mas pela

divisão do trabalho – contratando pessoas de confiança para tratar de cada assunto:

Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao

Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária

convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do

Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o meu nome na capa.

(RAMOS, 2008, p. 7)

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Não durou muito o desejo empreendedor, porque o pio desarranjou o seu interior

despertando a necessidade de escrever:

Abandonei a empresa, mas um dia destes ouvi novo pio de coruja – e

iniciei a composição de repente, valendo-me dos meus próprios

recursos e sem indagar se isto me traz qualquer vantagem, direta ou indireta. (RAMOS, 2008, p. 11)

Com essa afirmação, Paulo Honório, diante da necessidade de compreender a

morte de Madalena, abandona a necessidade de sempre obter lucro. Os personagens de

Graciliano Ramos foram escritos e claramente pensados a partir da perspectiva da coisa

observada e sentida. Paulo Honório possui uma alma agreste, como ele mesmo declara,

e, além disso, como homem autoritário jamais compreenderá os motivos que levaram

Madalena ao suicídio. Sobre este aspecto, é interessante notar que grande parte da

crítica sobre a obra do autor se debruça sobre os elementos textuais buscando neles

aspectos objetivos, nos quais o autor comunista teria deixado na obra um legado de

perda para o capitalismo. Na verdade, o suicídio de Madalena se impõe como uma força

afirmativa, se pensarmos que o motivo da insônia e do sofrimento de Paulo Honório foi

justamente a sensação de que não se pode comprar tudo. Não se pode ter tudo.

Mesmo diante dessa alma empobrecida pela necessidade de poder, Graciliano

reafirma um discurso narrativo no qual a subjetividade vem em primeiro plano. O autor

não está preocupado com a objetividade das descrições, se olhássemos sob este ponto de

vista chegaríamos à conclusão de que o desejo de igualdade fracassou. No entanto, o

suicídio representa o fracasso daquele que oprime, além de perturbar a sua alma pelo

resto dos dias.

Diante da dificuldade de se apreender o real e da necessidade de exprimir

somente aquilo que teria vivido, em A ficção na realidade em São Bernardo, Godofredo

de Oliveira Neto afirma que:

A mensagem de cunho social de que São Bernardo é portador, que se

quer objetiva, se faz dentro dessa limitação.

Quer-nos parecer, pois, que duas preocupações vão guiar a elaboração de São Bernardo: conseguir conciliar a teoria da arte (São Bernardo é

ficção, por isso de difícil controle) com a teoria da vida e, como

consequência, conseguir alcançar a objetividade em todos os aspectos

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e dimensões. Ambas representam o conflito entre a ficção e o real, ou

o subjetivo e o objetivo. E é para percepção dessa dialética ficção/real

que, nas páginas que seguem, tentaremos trazer alguns subsídios. (OLIVEIRA NETO, 1990, p. 23-24)

De fato, para Graciliano, a objetividade seria uma limitação para a escritura, mas

esta limitação se coloca no âmbito daquilo que o escritor não pode observar e sentir. O

autor de São Bernardo, não busca em suas narrativas retratar o real no sentido da

riqueza de descrições dos elementos que o cercam. No entanto, procura alcançar êxito

mostrando a realidade exterior refletida naquele que se põe a narrar. A opção pelo

discurso memorialístico em todos os romances20

não parece gratuita. O romance

final, Memórias do Cárcere, deixa bem claro, logo no início, a liberdade que o escritor

deseja ao livrar-se das amarras desse real21

. O que importa é a memória guardada pelo

sentimento de quem narra, aquilo que de fato foi está perdido e tem menos importância

do que os resquícios deixados pelo trauma vivido. Graciliano Ramos valoriza

justamente o subjetivo em detrimento do objetivo (que já não importa).

Supostamente, poderíamos pensar que o pio da coruja estabeleceria o contato de

Paulo Honório com o real22

, mas não sabemos se o pio é escutado no presente ou se

estamos diante de um som produzido pela memória involuntária. Paulo Honório

confunde-se, não sabe se o pio é de outrora ou de agora. O capítulo XIX é exemplar

dessa supervalorização da subjetividade, do que mora no interior do personagem. Neste

capítulo, o efeito sonoro não aparece unicamente em função da coruja – os sapos e até

mesmo os grilos são motivadores da lembrança involuntária. Então Paulo Honório passa

da lembrança para a recordação:

Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as ideias não vêm, ou vêm muito

numerosas – e a folha permanece meio escrita, como estava na

véspera. (...)

Emoções indefiníveis me agitam – inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena como fazíamos todos os

20 Com exceção de Vidas Secas, que aparecerá um pouco diferente – como veremos -, mas que se utiliza do discurso indireto livre como uma excelente ferramenta para dar voz interior aos retirantes. 21 Questão que será mais bem explorada no capítulo “A memória voluntária e o futuro do pretérito”, deste trabalho. 22 Real em oposição à fantasia.

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dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um

peso enorme no coração.

Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as

dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las

melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até

ficarmos dois vultos indistintos na escuridão. Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar

tornavam-se massas negras. (RAMOS, 2008, p. 117-118).

O efeito sonoro leva-o para a necessidade de escrever, dessa forma, o autor

ficcional busca a memória voluntária. Para se chegar à completa subjetividade, Paulo

Honório apaga as luzes e, com isso, o mundo objetivo. Quando escutava o barulho era

transportado, no mundo subjetivo, para a época em que Madalena ainda vivia. Mesmo

assim, por mais que tentasse alcançar a mulher, seus desejos interiores e os motivos que

a levaram à morte, não conseguia. Fracassa porque somente ela reconheceria e

escolheria expor os seus próprios desarranjos interiores.

Ante a indiscernibilidade provocada pela ausência de luzes, Paulo Honório

também se perde, não sabe se vivencia o passado ou o presente. O autor ficcional está

completamente mergulhado no mundo subjetivo, mas dentro de si e na escritura que

temos em mãos há uma voz que sinaliza a mistura de tempos verbais e de sentimentos:

A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me

naturalmente que mande algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga, que

me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao mesmo

tempo zangada e tranquila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra mestre Caetano. Não obstante ele ter morrido, acho bom que

vá trabalhar. Mandrião!

A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos.

Rumor do vento, dos sapos, dos grilos. A porta do escritório abre-se

de manso, os passos de seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na

torre da igreja. Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava há dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo.

Agora seu Ribeiro está conversando com d. Glória no salão. Esqueço

que eles me deixaram e que esta casa está quase deserta. (...) Agitaram-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e

enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar. (RAMOS,

2008, p. 118-119)

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É interessante notar que Paulo Honório, apesar desta mistura, não está louco. Ele

mesmo reconhece a mistura de sentimentos e de cenas que lhe aparecem, no entanto, o

efeito da memória que retorna denota tal particularidade da loucura: a mistura de

tempos verbais e de sensações físicas. O autor ficcional reatualiza todos os sentimentos

perturbadores do passado e logo, movido pela dor da perda, modifica-os para o

enternecimento no presente. Uma estrutura linguística e sensitiva que muito se

aproxima da esquizofrenia, como afirmou Godofredo de Oliveira Neto em A ficção na

realidade em São Bernardo: “A esquizofrenia servirá para estampar de maneira cabal o

conflito entre o interior e o exterior; a realidade e a subjetividade. Para Paulo Honório, é

vital recuperar o seu tempo.” (1990, p. 25)

O efeito coruja apareceu despertando uma memória perdida, avisando a Paulo

Honório que algo estava desarranjado em seu interior, que ele está inevitavelmente

preso ao passado. Ainda segundo Oliveira Neto:

Os problemas de temporalização, entre outros, serão capitais. Os tempos perdem a sua clareza, a ordem cronológica é radicalmente

perturbada e é impossível reconstituir o fio cronológico dos

acontecimentos. Paulo Honório não se encontra todavia inteiramente

no espaço da loucura, porque busca regressar à clareza do imaginário e do domínio do ato, como também definir as cronologias, esclarecer

entre o que foi ontem, e o que é agora, ou o que virá a ser.

(OLIVEIRA NETO, 1990, p. 47)

Na verdade, todas as sensações físicas e psicológicas experimentadas por Paulo

Honório nada mais são do que o efeito que experimentados ao rememorar. Como

Godofredo afirma, não podemos dizer que de fato o autor ficcional está louco – na

medida em que existe um “domínio do ato”, um reconhecimento das perturbações

sofridas. Como vimos anteriormente, a coruja, os sapos ou os grilos, que ainda

produzem seus sons no presente, são conectores entre passado e presente. Reivindicam

uma memória traumatizada, assim como acontece quando uma pessoa, por exemplo,

que vivenciou um acidente de carro e que, ao escutar uma forte freada, recupera todas as

sensações físicas do acontecimento. A linguagem utilizada, em meio às trocas de

tempos verbais, reflete a reatualização do sofrimento. Graciliano não tem o intuito de se

ligar aos fatos, ao real ou objetivo, mas sim à memória – porque ela carrega o impacto

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dos fatos e o desarranjo que eles causaram. A memória será sempre ficcional porque

esta é a essência da subjetividade.

O apagar das luzes cria um mistério interessante, porque cria uma imagem de

desligamento no qual Paulo Honório se desvincula do presente e também da realidade

objetiva. Lembranças soltas retornam confusas e não sabemos se ele de fato está

acordado ou entre a vigília e o sono. Em Matéria e Memória, Bergson faz alguns

apontamentos sobre a relação entre sonho, loucura e memória muito relevantes para a

questão em análise:

(...) O sonho imita perfeitamente a alienação. Não apenas todos os sintomas psicológicos da loucura se encontram no sonho – a ponto de

a comparação desses dois estados ter se tornado banal -, como a

alienação parece igualmente originar-se de um esgotamento cerebral, o qual seria causado, a exemplo da fadiga normal, pela acumulação de

certos venenos específicos nos elementos do sistema nervoso.

(BERSON, 2011, p. 204)

A ideia de que o corpo conserva lembranças na forma de dispositivos

cerebrais, de que as perdas e as diminuições da memória consistem na

destruição mais ou menos completa desses mecanismos, enquanto exaltação da memória e a alucinação seriam ao contrário um exagero

de sua atividade, não é confirmada portanto nem pelo raciocínio nem

pelos fatos. Na verdade existe apenas um caso, um único, em que a observação pareceria inicialmente sugerir tal ideia: referimo-nos à

afasia ou, de maneira mais geral, aos distúrbios do reconhecimento

auditivo e visual. (BERGSON, 2011, p. 207)

Não sabemos se ao apagar as luzes, na tentativa de escrever e captar o passado,

Paulo Honório se perde no período de vigília, misturando a rememoração ao sonho.

Porém, há um vínculo entre o passado e o presente que se perpetua pelos distúrbios

auditivos que o narrador-personagem experimenta. A memória se perde dentro desse

espetáculo de vozes fundidas umas às outras. No final, como num despertar, seja da

loucura ou do sono, o narrador declara:

Há um grande silêncio. Estamos em julho. O nordeste não sopra e os

sapos dormem. Quanto às corujas, Marciano subiu ao forro da igreja e

acabou com elas a pau. E foram tapados os buracos de grilos. Repito que tudo isso continua a azucrinar-me.

O que não percebo é o tique taque do relógio. Que horas são? Não

posso ver o mostrador assim às escuras. Quando me sentei aqui,

ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria

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conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me.

(RAMOS, 2008, p. 120)

A conclusão de Paulo Honório no final do capítulo elucida muito bem o

aprisionamento ao passado, a incapacidade de reagir. Antes de entregar-se às

reminiscências, o relógio tocava, houve um desgaste emocional ao ouvir os sons que o

transportaram, o personagem reviveu o passado e não consegue retornar ao presente. O

relógio parou no tempo, bem como a sua própria existência. Estaria ele dormindo? Ou

estaria ele na transição entre a vigília e o sono, na qual experimentamos um leve contato

com a realidade objetiva, já desconfigurando as referências externas e os próprios

pensamentos?

Segundo Bergson, a lembrança desloca-se para o presente simplesmente pela lei

do mais forte. São aquelas que sobrevivem ao tempo, por algum motivo, e projetam-se

sobre o agora:

Mas existe bem mais, entre o passado e o presente, que uma diferença

de grau. Meu presente é aquilo que me interessa, o que vive para mim

e, para dizer tudo, o que me impele à ação, enquanto meu passado é essencialmente impotente. Detenhamo-nos nesse ponto. Opondo-o à

percepção presente, iremos compreender melhor a natureza daquilo

que chamamos de “lembrança pura”.

Seria inútil, com efeito, tentarmos caracterizar a lembrança de um

estado passado se não começássemos por definir a marca concreta,

aceita pela consciência, da realidade presente. O que é, para mim, o momento presente? (BERGSON, 2011, p. 160-161)

Todos os narradores-personagens de Graciliano Ramos, quando passam pela

memória involuntária, são impulsionados ao relato. Este relato é construído a partir da

necessidade de se reconstruir a chamada “lembrança pura” - uma tentativa sempre

fracassada que, para eles, seria uma libertação desse passado que os aprisiona. Ao ouvir

o sapo coachando, no caso de Luis da Silva, ou ouvir o pio da coruja, no caso de Paulo

Honório, os personagens flutuam entre passado e presente e perambulam no limiar,

entre um e outro. Logo no início de Angústia, Luis da Silva relata:

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Também me inclinava a admitir que fossem sapos. Mas os sapos do

açude da Penha cantavam de outra forma. Não podiam ser sapos. A

verdade é que muitas vezes perguntei a mim mesmo se realmente ouvia aquele barulho grande, diferente dos outros barulhos. Perguntei

naquele tempo ou perguntei depois? Não sei. Tenho-me esforçado por

tornar-me criança – e em consequência mistura coisas atuais a coisas

antigas. (RAMOS, 2008, p. 20)

O narrador-personagem se perde na linha divisória entre passado e presente e já

não reconhece as referências que o transportam. O mesmo recurso que já havia sido

utilizado em São Bernardo, no capítulo XIX. A cidade é manchada o tempo todo como

lugar do desassossego, do barulho e de costumes estúpidos. Além disso, representa as

vivências mais insuportáveis para a vida do personagem principal. Com isso, o leitor é

sobressaltado por pequenas narrativas, lembranças vívidas da infância do narrador,

resgatadas como forma de trazer paz de espírito. Há uma polifonia em torno do bonde,

que Luis da Silva pega todos os dias, vozes do passado retornam e ele julga retornar ao

ambiente familiar:

O bonde roda para oeste, dirige-se ao interior. Tenho a impressão de

que ele me vai levar ao meu município sertanejo. E nem percebo os casebres miseráveis que trepam o morro, à direita, os palacetes que

têm os pés na lama, junto ao mangue, à esquerda. Quanto mais me

aproximo de Bebedouro mais remoço. Marina, Julião Tavares, as apoquentações que tenho experimentado estes últimos tempos, nunca

existiram.

Volto a ser criança, revejo a figura de meu avô, Trajano Pereira de

Aquino Cavalcante e Silva, que alcancei velhíssimo. Os negócios na fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva,

ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios do

copiar, cortando palha de milho para cigarros, lendo o Carlos Magno, sonhando com a vitória do partido que padre Inácio chefiava.

(RAMOS, 2008, p. 12-13)

Diante do homicídio de Julião Tavares, Luís da Silva cria uma relação direta

com a infância. Ao rememorar, personagens da infância de Graciliano Ramos retornam,

os mesmos que aparecerão no romance seguinte: o pai, o avô, a avó, o padre, dentre

outros, nascem da necessidade de esconder-se e compreender os próprios atos. Constrói

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uma referência em torno da decadência financeira do avô que também será retomada em

Infância, novamente o autor trabalha com um material não ficcional, misturado ao sabor

ficcionista. Na obra do alagoano, as referências diretas à própria vida são constantes,

uma reivindicação de marcar o autor por trás do texto, uma necessidade intrínseca à arte

literária, já manifestada desde o início em crônica, como vimos no capítulo intitulado

“Graciliano Ramos: sobre a literatura e o caráter de ficção”.

Apesar do esforço constante em tornar-se criança, as coisas atuais continuam a

invadir a memória de Luís da Silva, de forma involuntária. Além da incidência do

presente, quando revive o passado, lembra-se de alguns acontecimentos pouco

agradáveis ao ouvir o coachar dos sapos. Os leitores experimentam pela primeira vez o

contato com a morte do pai:

Penso na morte de meu pai. Quando voltei da escola, ele estava

estirado num marquesão, coberto com um lençol branco que lhe

escondia o corpo todo até a cabeça. Só ficava exposto os pés, que iam além de uma das pontas do marquesão, pequeno para o defunto

enorme. Muitas pessoas se tinham tornado donas da casa: Rosenda

lavadeira, padre Inácio, cabo José da Luz, o velho Acrísio.

Fui sentar-me numa prensa de farinha que havia no fundo do nosso quintal. Tentei chorar, mas não tinha vontade de chorar. Estava

espantado, imaginando a vida que ia suportar, sozinho neste mundo.

Sentia frio e pena de mim mesmo. A casa era dos outros, o defunto era dos outros. Eu estava ali como um bichinho abandonado, encolhido na

prensa que apodrecia. (Idem, p. 20-21)

Imagens invadem e tomam conta de Luís da Silva, o romance é circular, porque

investe nas perturbações psicológicas do narrador e cria um vínculo permanente com

certos objetos e animais, como: cobras, cordas e poços, além dos pés, olhos e parafusos.

Estes parecem refletir uma metáfora para as idas e vidas do passado, na medida em que,

a todo custo, giravam em torno do mesmo eixo insistentemente – recusando o exterior e

adentrando as memórias à força e a todo custo, num eterno retorno:

Lá estava novamente entrando no passado, torcendo-me como

parafuso. – “Rei meu senhor mandou dizer que fossem ao cemitério e trouxessem um osso de defunto.” Quem tinha coragem? Os mais

atrevidos chegavam até o muro do seu Honório, no fim da rua. (Idem,

p. 143)

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Novamente, temos uma referência ao Honório, dono da fazenda. Em Angústia, a

partir das informações que receberemos em Infância, encontram-se uma infinidade de

elementos que nos indicam uma mistura de ficção e não ficção, de experiências

interligadas. É importante ressaltar esse aspecto porque as micronarrativas que invadem

o presente de Luis da Silva são reminiscências também de Graciliano Ramos no

romance que virá a seguir. O coachar dos sapos é o mesmo que será escutado em

Infância e, agora, já transporta o personagem de Angústia para o mesmo cenário não

ficcional.

O coachar dos sapos, que possui o mesmo efeito da coruja, por provocar a

memória involuntária do trauma, aparece logo no início do livro ligado à morte do pai

do narrador-personagem. Ainda menino, sozinho e perturbado com o falecimento,

adormece encostado no muro de casa pensando nos pés descobertos de Camilo Pereira

da Silva, seu pai:

E, enquanto dormia, ouvia a cantiga dos sapos no açude da Penha, o

burburinho dos intrusos que se acavalavam no corredor, o barulho do descaroçador de algodão no Cavalo-Morto. Vozes chegavam-me,

confusas, e eu não conseguia apreender os sentidos delas. Visões

também. Via a casa da fazenda, arruinada, os bichos definhando na

morrinha, o chiqueiro bodejando, relâmpagos cortando o céu. A chuva caía, eu andava pelo pátio, nu, montando num cabo de vassoura.

(Idem, p. 22)

O som dos bichos também é percebido e sentido a partir do mau agouro, da má

notícia. É interessante como, em função disso, o mesmo som irá reivindicar no presente

um retorno à morte. Cria-se uma perturbação simbólica do sapo também em relação à

morte do Julião Tavares, ligada ao passado que se recria a todo instante. O coachar que

houve no presente, em mistura com as memórias do passado, traduz a perturbação

psicológica do narrador, que encontrou inconscientemente no passado da infância uma

solução para a morte do rival:

Ponho-me a vagabundear em pensamento pela vila distante, entro na

igreja, escuto os sermões e os desaforos que padre Inácio pregava aos matutos: - “Arreda, povo, raça de cachorro com porco.” Sento-me no

paredão do açude, ouço a cantilena dos sapos. Vejo a figura sinistra de

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seu Evaristo enforcado e os homens que iam para a cadeia amarrados

de cordas. Lembro-me de um fato, de outro fato anterior ou posterior

ao primeiro, mas os dois vêm juntos. E os tipos que evoco não têm relevo. Tudo empastado, confuso. Em seguida os dois acontecimentos

se distanciam e entre eles nascem outros acontecimentos que vão

crescendo até me darem sofrível noção de realidade. As feições

ganham nitidez. De toda aquela vida havia no meu espírito vagos indícios. Saíram do entorpecimento recordações que a imaginação

completou. (Idem, p. 18-19)

Na passagem acima, com a memória recuperada do passado, percebemos a

estrutura mencionada por Bergson no que diz respeito à memória pura, nunca

alcançável. O discurso memorialístico mostra-se pela lacuna. Percebe-se ainda a ponte

entre as reminiscências do passado na infância e a sugestão do ato cometido no passado

recente. Seriam essas feições, que ganham nitidez, as de Julião Tavares? Tudo é

sugestionado, sem uma menção direta. A “cantilena dos sapos” é a mesma que ele

ouvirá no presente, uma memória involuntária que, por meio de estilhaços perdidos,

conectam ambos os enforcamentos – estruturados pelo esforço de rememoração.

A impossibilidade de reconhecer o passado objetivamente não vem pelo simples

distanciamento temporal, mas também de uma falha de caráter, em função dos maus

tratos sofridos no presente. Ainda que ele retornasse ao interior e quisesse se esconder

de tudo estaria para sempre marcado pelas cicatrizes de atitudes erradas e de traumas

sofridos. Estamos diante de um Luís da Silva perdido e desorientado, que quase não

encontra mais chão, nem físico e nem metafórico. Ele tenta, mas sabe que o fracasso é

inevitável:

Não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranquilidade, falta-me

inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou. Fumo. Assisto a uma discussão do barbeiro André Laerte com o

negociante Filipe Benigno. As palavras chegam quase apagadas,

destituídas de senso. É provável que não digam nada. (...) Estarei à

porta de casa ou já terei chegado à repartição? Em que ponto do trajeto me acho? Não tenho consciência dos movimentos, sinto-me

leve. Ignoro quanto tempo fico assim. Provavelmente um segundo,

mas um segundo que parece uma eternidade. Está claro que todo o desarranjo é interior. Por fora devo ser um cidadão como os outros,

um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da

Silva qualquer. (Idem, p. 24-25-26)

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Tudo na obra é sedimentado e compartilha símbolos dos desarranjos do

narrador. Nesse fragmento, portanto, a desorientação em termos espaciais, fruto da

extensa entrega do subjetivo em contraposição à realidade objetiva, é refletida na face

do interlocutor – que fica à deriva sem saber para que lado ir. Em suma, o desequilíbrio

interno consome da mesma forma aqueles que assistem a jornada e/ou paralisação do

narrador-personagem.

Em Infância, a memória involuntária, como vimos, também está relacionada ao

trauma e opressão. Os gritos do pai reivindicando o cinturão, sobre o qual nada sabia,

perdurou ao longo da vida despertando sentimentos apagados. É interessante, inclusive,

a forma como o autor insere dentro da fala do narrador a noção de repetição de um som

que desperta para desarranjos inconscientes, com os quais o personagem revive a

experiência negativa.

Os sapos, vistos antes em São Bernardo e em Angústia, são os mesmos do

açude da Penha, em Buíque. Nesse romance, não aparecem como suporte da memória

involuntária, apesar de haver algumas referências a ele. No entanto, a descrição de sua

cantiga é muito peculiar: “Os cururus do açude choravam com frio, de muitos modos,

gritando, soluçando, exigentes ou resignados. Eu também tinha frio e gostava de ouvir

os sapos”. (RAMOS, 2008, p. 63) A reflexão entra em diálogo com a cantiga do Sapo

cururu e, a partir da intertextualidade, o menino se identifica com o sofrimento dos

bichos que também são resignados. Os sapos coachando seriam a lembrança de termos

que nos resignar à condição de seres humanos? Às condições impostas pela vida? Um

símbolo importante e, me parece, muito coerente com o resto da obra.

O menino também se aproxima do açude constantemente, como lugar da

reflexão. Este açude no qual ouve os sapos e que será recorrente desde a publicação do

primeiro romance. Segundo Agamben, em “O autor como gesto”, o ter lugar no texto:

Está no gesto no qual autor e leitor se põem em jogo no texto e, ao

mesmo tempo, infinitamente fogem disso. O autor não é mais que a testemunha, o fiador da própria falta na obra em que foi jogado; e o

leitor não pode deixar de soletrar o testemunho, não pode por sua vez,

deixar de transformar-se em fiador do próprio inexausto ato de não se ser suficiente. (AGAMBEN, 2007, p. 63)

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Pode parecer um pouco deslocado no tempo, mas a intenção é exatamente esta.

Graciliano Ramos, apesar de, digamos assim, estar inserido no conceito modernista, já

questionava com frequência o seu lugar na escrita. Incomodava-o a ausência do próprio

discurso dentro do texto, na medida em que o leitor editava ao seu modo aquilo que ele

pretendeu comunicar. Não à toa, reivindicou, por exemplo, a marca do autor no

romance de Jorge Amado. Quando reivindicou a presença, fez menção não às

referências externas, como as que seguem expostas logo acima, mas às referências

internas que nos motivam à escritura.

A linguagem do desarranjo, o voltar-se para dentro de si em detrimento da

realidade objetiva que o cerca, é justamente testemunho marcado como borda, com o

qual leitores preenchem as lacunas. Dessa forma, é interessante lembrar como,

independente das referências externas, tão vivas na obra completa do alagoano, as

sensações se repetem por meio de estruturas linguísticas similares. A forma como o

efeito sonoro, independente do adjetivo, constrói a personalidade e a psicologia de cada

narrador-personagem. Além disso, como se verá no próximo capítulo, a maneira como

Graciliano Ramos, por meio de lacunas no discurso, encontra no leitor um fiador dos

próprios sentimentos.

Talvez por tratar da infância, uma época tão remota, este romance será o mais

prenhe de lacunas e imagens distorcidas. Ainda assim, cada capítulo representa um

estágio da vida do narrador-personagem, uma espécie de percurso de construção do

caráter que vai ao sabor do sofrimento e da observação daqueles que o rodeiam. Tal

investimento estético esbarra, inclusive, na própria linguagem e na concepção de

literatura. O desentendimento com o pai, por exemplo, demonstra-se desde o sentimento

de opressão que retorna pelos sons altos a pequenos gestos cotidianos:

Meu pai, transformado em comerciante, estabeleceu-se no largo da

Feira. Aí, num socavão triste, de que mais tarde me lembrei ao ver

subterrâneos em folhetins, passou dias abrindo caixas e fardos,

empilhando mercadorias, examinando faturas, calculando, a lápis, em pedaços de papel de embrulho. Esperei debalde vê-lo concluir esse

exercício, voltar ao banco do alpendre e à vazante. Aproximava-me

dele muitas vezes, com recados. E no caminho largo a princípio me retardava, contemplando as roseiras do jardim, as paredes brilhantes

de azulejos, o sobradinho onde havia homens fardados. (RAMOS,

2008, p. 59-60)

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Uma relação com a vida que se dá pelo constante enfrentamento, no qual até

mesmo o exterior, quando aparece, revela o interior dos personagens. A opressão do

materialismo capitalista destoa da imagem poética, da beleza que o narrador enxerga à

sua volta. Há uma eterna incomunicabilidade entre a opressão e a liberdade de

pensamento. No capítulo denominado “Leitura”, as sensações físicas e mentais se

repetem quando o pai, suspeitamente, lhe chega apresentando de forma amável a leitura:

Foi assim que se exprimiu o Tentador, humanizado, naquela manhã

funesta. A consulta me surpreendeu. Em geral não indagavam se

qualquer coisa era do meu agrado: havia obrigações, e tinha de submeter-me. A liberdade que me ofereciam de repente, o direito de

optar, insinuou-me vaga desconfiança. Que estaria para acontecer?

Mas a pergunta risonha levou-me a adotar procedimento oposto à

minha tendência. Receei mostrar-me descortês e obtuso, recair na sujeição habitual. Deixei-me persuadir, sem nenhum entusiasmo,

esperando que os garranchos do papel me dessem as qualidades

necessárias para livrar-me de pequenos deveres e pequenos castigos. Decidi-me. (Op. Cit., 110)

Até mesmo a suposta opção se impunha como necessidade, porque estava

sempre condicionado às desventuras da opressão, acostumado a obedecer e fugir, ao

mesmo tempo, de todas as agressões físicas e/ou verbais. Não tardou para que o tom se

modificasse. Antes mesmo, os desarranjos já se manifestavam e perpassavam todo o

corpo, na medida em que o tom da voz se alterava:

Sozinho não me embaraçava, mas na presença de meu pai emudecia. Ele endureceu algumas semanas, antes de concluir que não valia a

pena tentar esclarecer-me. Uma vez por dia o grito severo me

chamava à lição. Levantava-me, com um baque por dentro, dirigia-me

à sala, gelado. (...) Impossível contentá-lo. E o côvado me batia nas mãos. Ao avizinhar-me dos pontos perigosos, tinha o coração

desarranjado num desmaio, a garganta seca, a vista escura, e no

burburinho que me enchia os ouvidos a reclamação áspera avultava. (Op. Cit., 112)

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Nesta passagem verificamos a maneira com que a proximidade com o pai

despertava-lhe uma série de incômodos mentais, resquícios de traumas sofridos desde

muito pequeno. Qualquer movimentação ou elevação de voz lhe afligia, uma marca

insuperável do poder imposto pelo pai.

Quando fora preso, Graciliano Ramos estava enfiado em dívidas e problemas, o

que dificultava o término de Angústia, sempre deixado para depois. Ao receber o aviso

de um amigo sobre o perigo eminente, não quis fugir, antes se preparou

psicologicamente e organizou numa pequena mala itens essenciais para a futura estadia:

Ótimo. Num instante decidi-me. Não me arredaria, esperaria tranquilo que me viessem buscar. Se quisesse andar alguns metros chegaria à

praia, esconder-me-ia por detrás de uma duna, lá ficaria em segurança.

Se me resolvesse a tomar o bonde, iria até o fim da linha saltaria em Bebedouro, passaria o resto do dia a percorrer aqueles lugares que

examinei para escrever o antepenúltimo capítulo do romance. Não

valia a pena. Expliquei em voz alta que não valia a pena. (RAMOS, 2008, p. 23)

O escritor investe no projeto de prisão como algo positivo para o momento de

crise pessoal e financeira. Observe, neste fragmento, um diálogo com Angústia, em que

o narrador ora apresentado também se utiliza do bonde como uma metáfora do retorno à

infância. Com o intuito talvez de convencer a si mesmo de que a prisão seria um bom

negócio, começa a listar os motivos e os benefícios que o aceite lhe traria:

Propriamente não era monólogo: minha mulher replicava com

estridência. Escapava-me a significação da réplica, mas a voz aguda

me endoidecia, furava-me os ouvidos. Não conheço pior tortura que ouvir gritos. Devia existir uma razão econômica para esse

desconchavo: as minhas finanças equilibravam-se com dificuldade,

evitávamos reuniões, festas, passeios. De fato as privações não me inquietavam. Minha mulher, porém, sentia-se lesada, o que me fazia

perder os estribos. De repente um ciúme insensato. A incongruência

me arrancava a palavra dura: - Que estupidez!

Naquele momento a ideia da prisão dava-me quase prazer: via ali um

princípio de liberdade. Eximira-me do parecer, do ofício, da

estampilha, dos horríveis cumprimentos ao deputado e ao senador; iria escapar a outras maçadas, gotas espessas, amargas, corrosivas. Na

verdade suponho que me revelei covarde e egoísta. (Op. Cit., p. 24)

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A ideia de prisão recebeu tons de liberdade e quanto mais se convencia de tal

benefício, projetava os ganhos que teria com tal estadia. No trecho acima, vemos o grito

da mulher como uma forte agressão que o oprime, provocando sentimentos

inconscientes, já relatados em Infância. Como veremos no próximo capítulo, a memória

voluntária possui uma estrutura específica, arranjada em função do que se pretende

narrar. Dessa forma, o narrador reúne argumentos que traduzam os motivos para se

optar pela prisão, para torná-la o inverso da própria natureza, um lugar quase acolhedor,

com o projeto de benefícios que lhes traria. Graciliano Ramos amplia insignificâncias e

eleva o estatuto do cárcere, na medida em que o exterior, com aparência de liberdade,

oprimia-o por todos os lados. Tal artifício, paradoxalmente, pode conter nele implícito o

desejo de recolher-se dos problemas – porque o desarranjo psicológico é uma prisão

maior -, ou, ainda, o desejo de trazer tranquilidade de espírito para enfrentar a situação

de forma quase heroica.

Logo em seguida, ele irá afirmar, com tons de ironia típicos do escritor

alagoano:

Deixar-me-iam ficar até concluir a tarefa? Afinal a minha pretensão

não era tão absurda como parece. Indivíduos tímidos, preguiçosos,

inquietos, de vontade fraca habituam-se ao cárcere. Eu, que não gosto de andar, nunca vejo a paisagem, passo horas fabricando miudezas,

embrenhando-me em caraminholas, por que não haveria de

acostumar-me também? Não seria mau que achassem nos meus atos algum, involuntário, digno de pena. É desagradável representarmos o

papel de vítima. (Op. Cit., p. 25)

Desprender-se da realidade exterior, com reclamações e contar a pagar, impunha

cada vez mais a prisão como lugar tranquilo e de bom proveito – uma estádia de graça

que lhe traria benefícios, como ele mesmo afirma. Está claro que estamos diante de um

discurso bem articulado e ficcional – promovido com determinado intuito que

procuramos definir de acordo com a recepção do discurso. Mas é interessante dizer aqui

que, a escrita de Angústia, apesar de abandonada por diversas circunstâncias, martelava

na cabeça do narrador-personagem como uma conexão com a realidade objetiva –

invadia a sua mente não só pelo prazer, mas pela possibilidade financeira que ele

promoveria. Ao longo da narrativa, ele menciona diversas vezes a troca de cartas com a

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esposa e com os tradutores argentinos sobre assuntos pertinentes à produção literária.

Olhar para o livro inacabado causava um desarranjo e o punha em contato com o

exterior, com isso, desvencilhava-se da terrível sensação de despersonalização que

tomava conta de si indelevelmente.

Junto da necessidade de escrever Angústia, Graciliano Ramos, agora, distante

dez anos dos fatos narrados, há uma memória involuntária que ecoa por Memórias do

Cárcere: a incompreensão sobre os motivos que o levaram à cadeia. O grande mote do

romance que temos em mãos parece ser a ansiedade causada por tal incompreensão e

pelos resquícios de prisão jamais apagados. A justiça, novamente, se revelava por um

contrassenso:

Isso constituiria um libelo mesquinho, que testemunhas falsas

ampliariam. Tinha o direito de insurgir-me contra os depoimentos venenosos? De forma nenhuma. Não há nada mais precário que a

justiça. E se quisessem transformar em obras os meus pensamentos,

descobririam com facilidade matéria para condenação. Não me

repugnava a ideia de fuzilar um proprietário por ser proprietário. Era razoável que a propriedade me castigasse as intenções. (Op. Cit., p.

25)

A opressão do poder se revelava mais uma vez por um conceito diferente de

justiça, como se viu em Infância – ao dedicar um capítulo ao primeiro momento em que

sofrera condenação sem antes ocupar o lugar de réu, com o benefício da dúvida. A

motivação da escritura de Memórias do Cárcere, enquanto discurso literário, gira ao

redor da dúvida constante sobre os motivos da prisão, em função disso, será o romance

em que mais aparecerá o futuro do pretérito, na medida em que o narrador-personagem

projeta ansiosamente os motivos que o teriam levado até ali – passando por sofrimentos

mentais inimagináveis e marcando-o em carne viva como um boi de fazendeiro.

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5. A memória voluntária e o futuro do pretérito

A memória não é como uma bomba disparada por um canhão. Ela é uma granada,

que se arrebenta em fragmentos, sucessivamente, em movimentos dispersos. Dessa

forma, para chegarmos à origem da memória é preciso remontá-la. A epígrafe de

Bergson, que abre este trabalho, utiliza a granada como metáfora do movimento

evolutivo da vida. Aqui, aprofunda-se a metáfora dizendo que esse movimento da vida

só se dá por meio dos reflexos estruturados pela memória. Se o nosso cérebro não fosse

autossuficiente, nossa memória seria como a bala de canhão passando rapidamente por

todos os tempos. A autossuficiência, que varre para debaixo do tapete tudo que é lixo,

esconde elementos importantes de reconstituição. Seria certo pegar a poeira e colocá-la

de volta no seu antigo lugar? A maioria responderia que não. Portanto, diante do vazio

deixado é preciso colar os estilhaços deixados pela granada, mas a cola preencherá o

vazio sem reconstituir a peça por completo. A memória voluntária, diante da frustração

do que fora perdido, faz justamente isso: passa a cola buscando a ordem original e –

num eterno movimento circular – frustra-se por aquilo que nunca irá alcançar. Este é o

fado dos personagens graciliânicos.

O esforço de rememorar projeta-se em palavras marcadas pela ausência. Se para

Graciliano devemos escrever a partir do vivido e sentido, a escritura vem pautada pelo

reflexo da vida mental do personagem. Quando estruturamos em linguagem aquilo que

nossa memória experimenta, buscamos sempre preencher o vazio deixado – produzindo

mentiras ou falsas verdades. A memória esfumaçada deixa um espaço em branco, cabe

ao leitor preencher ou deixar o vazio. Em contrapartida, quando Graciliano Ramos

assume uma voz que deseja ampliar insignificâncias ou diminuir cenas importantes, por

meio da memória binocular, verificamos uma vontade de mostrar ao leitor que todos

estamos fadados a ouvir histórias manipuladas pelo desejo íntimo do locutor. Assim,

vive-se e sente-se o processo de rememoração: entre a lacuna da fumaça e a sedução

binocular que manipula o real.

As lacunas que envolvem os personagens graciliânicos representam o passado

esquecido ou anuviado. Mas, ao mesmo tempo, o binóculo é responsável pelo manuseio

da ficção e da não ficção. É possível aumentar histórias não ficcionais conferindo-lhes

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ficcionalidade, em função disso, fazer da ficção puro instinto de sobrevivência da

memória malograda. Como se sabe, o futuro do pretérito representa aquilo que poderia

ter sido e que não foi, representa o sentimento de frustração e desilusão. Não há tempo

verbal melhor para definir a obra de Graciliano Ramos, pois todos os seus personagens

têm como principal traço a frustração. Todos, João Valério, Paulo Honório, Luis da

Silva, Fabiano e Graciliano Ramos, não vivem o presente. Há uma prisão ao passado

que não os projeta ao futuro do presente. A reflexão sobre as possibilidades é tudo lhes

resta. A vida é um castigo para esses personagens, como dissera José Lins do Rego.

Como os personagens estão presos à necessidade de recordar, inicialmente, nos

dão a impressão de que a narrativa acontecerá em ordem cronológica – puro engano. Tal

intento é logo jogado de lado pela memória involuntária que insiste em tomar as rédeas

da situação. Há uma força maior incompatível com o desejo do narrador, que logo cede

ao impulso. Catherine Lépront, no seu Entre o silêncio e a obra: uma reflexão sobre o

fazer artístico, fala sobre três tipos de dificuldades encontradas quando se deseja

escrever uma história condicionada a um contexto histórico ou a personalidades que de

fato existiram:

A primeira dificuldade decorre de que, num sentido, o tempo calendário da História – suas datas, as durações mensuráveis e,

portanto, quantificáveis dos acontecimentos – impõe repentinamente à

narrativa de ficção uma restrição da qual, por definição, ela está emancipada. No sentido inverso, o tempo da narrativa de ficção –

percebido, sentido, qualitativo não mensurável – com seus hiatos,

pausas e dilatação, e também com suas formidáveis intuições da incomensurável eternidade, introduz no tempo histórico do relógio um

princípio de relativização que incorre no risco de afetar o próprio

valor dos fatos, conforme sejam eles relatados, brevemente evocados

ou silenciados, porque teriam mergulhado no abismo temporal dos saltos quantitativos, às vezes imensos, que se permite o romance.

(LÉPRONT, 2014, p. 35-36)

Quando falamos aqui do narrador, nele também se inclui o próprio Graciliano

Ramos em Infância e em Memórias do Cárcere, como dissemos anteriormente.

Sabemos que em Infância estamos lidando com personagens “pequenos”, no sentido de

constituírem uma personalidade restrita à vida cotidiana de Graciliano menino. Já em

Memórias do Cárcere, há personagens “maiores”, no sentido de abarcarem um número

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muito maior de expectadores de suas vidas. Nomes conhecidos pela sociedade brasileira

aparecem no romance do autor. Tendo em vista isso, diferente do anterior, houve uma

preocupação do narrador-personagem em justificar sua escrita. Elemento este que, para

alguns, nos levaria automaticamente para a inegável afirmação de que estamos diante de

um livro autobiográfico. Fernando Cristóvão chega a criar uma separação entre ambos

os romances: Infância se aproximaria mais do gênero memórias, enquanto que

Memórias do Cárcere, por certos acontecimentos históricos e suas repercussões, se

aproximaria mais do diário confessional.

Segundo Cristóvão, “Infância não ostenta nenhuma nota introdutória ou passo

do texto em que o autor dê a palavra ao narrador ou justifique perante os leitores o livro

que tem nas mãos.” (CRISTÓVÃO, 1986, p. 20). O discurso memorialístico é uma

característica inegável em todos os romances de Graciliano Ramos, exceto em Vidas

Secas. Ao partirmos desta afirmação, verificamos que todos estão condicionados pelo

trajeto fragmentado e aleatório que a memória nos impõe. Não há uma preocupação em

se datar cronologicamente os fatos, não há uma preocupação em se retratar com

precisão os ambientes – elementos que já nos põem longe dos gêneros autobiografia e

diário confessional. Os personagens-narradores estão entregues à especulação interior e

ao impacto da coisa vivida e/ou sentida em suas almas.

De fato, não podemos abandonar os nomes reais mencionados, assim como o

nome do próprio escritor, que nos dão o toque de argumentos extraficcionais. Primeiro,

devemos lembrar que também não existe uma nota introdutória em Memórias do

Cárcere. Há sim um primeiro capítulo, com a voz do narrador Graciliano e não do

escritor Graciliano, em que se discute o fazer ficcional e não ficcional. Uma estrutura

muito relevante porque o discurso já se põe descaracterizado da roupagem séria não

ficcional. Quando se inicia o romance nós, leitores, devemos desconfiar. Não à toa, logo

no começo, o narrador utiliza como argumento para sua escrita o mesmo argumento que

Paulo Honório utilizara em São Bernardo.23

Em segundo plano, voltemos ao fragmento citado de Catherine Lépront, no qual

a autora diz que o primeiro impasse, na escritura de um romance em que se pretende

partir de argumentos não ficcionais, seria a questão do calendário. Sobre Infância,

sabemos que o narrador conta a sua vida de forma dissolvida, nos ambientamos não por

23 Ver os dois últimos parágrafos da página vinte e seis desta tese.

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datas ou idades, mas pela imagem criada, pela noção de espaço ou pelo lugar em que

está inserido – como exemplo, o momento no qual o professor ensina as primeiras

sílabas e os seus sons ao menino Graciliano. Já sobre Memórias do Cárcere, não

sabemos, mas pressupomos um período se nos detivermos ao argumento extratextual –

que seria o período de retensão de Graciliano que vai de março de 1936 a janeiro de

1937. No romance, o narrador não se preocupa com o calendário e justifica-se, como

vimos anteriormente.24

A ordem cronológica e a exatidão das descrições não importam para o narrador

Graciliano Ramos, o desarranjo interior que o acontecimento causou é muito mais

importante do que o fato em si. Mais do que isso, a maneira como o acontecimento

reflete no presente e irá repercutir no futuro promove a estrutura e seu modo de narrar.

Dessa forma, o que se firmou e se rearranjou é o que vale, neste caso, os resquícios de

prisão que ainda o aprisionam no presente são o grande impasse para se projetar o

futuro. Não se trata somente do sofrimento do narrador, mas também da forma como

este sentiu e percebeu a dor do outro, daqueles que estão à sua volta.

Ao desvalorizar o ponteiro do relógio e valorizar o sentido produzido pela nova

fisionomia, os personagens-narradores de Graciliano Ramos abandonam o esforço da

memória “bala de canhão” (datada) e trazem para frente de cena a memória “granada”

(estilhaçada) que, apesar de não ser reconstituída, revela um sentido novo. Um sentido

que recusou o outro por necessidade de se expressar. Ao tomar essa atitude, estamos

diante de uma memória que, mesmo com nomes reconhecíveis (reais), possui mais

vocação para ficção do que para não ficção. Temos, portanto, um “abismo temporal dos

saltos quantitativos, às vezes imensos, que se permite o romance.”, como disse Lépront.

Um abismo também refletido pelo processo de recordação ao qual todos estão

submetidos.

A obra de Graciliano Ramos não possui orientação autobiográfica. Os narradores

estão entregues aos reflexos produzidos pelo aspecto interior. No fragmento citado,

mais uma vez, observamos o descaso do autor com o excesso de apreensão do que é

exterior. Ele não quer estar aprisionado pela descrição física da natureza e daquilo que o

cerca, quando a natureza aparece, principalmente em Vidas Secas, ela vem como forma

24 Ver página quarenta desta tese.

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127

de refletir o interior dos personagens. Vejamos o fragmento abaixo do capítulo “Baleia”

desse romance:

Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das

pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e

a coisa perigosa tinham-se sumido. Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com

certeza o sol desaparecera.

Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do

chiqueiro espalhou-se pela vizinhança. Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A

obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as

ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles. (RAMOS, 2008, p. 90)

No capítulo citado, Baleia está doente e à beira da morte. Observe que, antes de

desfalecer, o exterior reflete o mal-estar do personagem. A escuridão vista por Baleia no

exterior, nada mais é do que a representação de sua visão deturpada pela morte

eminente, junto com isso vem o delírio – no qual ela julga ser noite e estranha a

presença dos animais.

Há ainda uma descrição do exterior de acordo com a mistura entre passado e

presente, como se verificou nos capítulos anteriores. A partir da confusão espaço-

temporal motivada pelo delírio de Paulo Honório, por exemplo, o exterior reflete a

descrição de sua fazenda numa mistura de lembranças de outrora e de agora.

O exterior sempre se mostra pelo sentido, nunca pela objetividade dos

elementos. Está justamente aí a grande crítica sofrida por José Lins do Rego. Graciliano

não acreditava numa escrita verossímil se não houvesse a percepção interior dos

personagens. Sendo assim, os romances do autor vêm estruturados pelo processo de

construção da memória. Como vimos, há uma lembrança definida como involuntária,

que insiste em conduzir o narrador, e uma recordação voluntária, que é a forma como

essa lembrança será estruturada:

No que diz respeito à memória o papel do corpo não é armazenar as lembranças, mas simplesmente escolher, para trazê-la à consciência

distinta graças à eficácia real que lhe confere, a lembrança útil, aquela

que completará e esclarecerá a situação presente em vista da ação

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final. É verdade que esta segunda seleção é bem menos rigorosa que a

primeira, porque nossa experiência passada é uma experiência

individual e não mais comum, porque temos sempre muitas lembranças diferentes capazes de se ajustarem igualmente a uma

mesma situação atual, e também porque a natureza não pode ter aqui,

como no caso da percepção, uma regra inflexível para delimitar nossas

representações. Uma certa margem é portanto necessariamente deixada desta vez à fantasia; e, se os animais não se aproveitam muito

dela, cativos que são da necessidade material, parece que o espírito

humano, ao contrário, lança-se a todo instante com a totalidade de sua memória de encontro à porta que o corpo lhe irá entreabrir: daí os

jogos da fantasia e o trabalho da imaginação – liberdades que o

espírito toma com a natureza. (BERGSON, 2011, p. 209-210)

Vejamos agora de que forma Graciliano Ramos traduz, para a estética da

memória, a situação presente de seus personagens, ajustando as lembranças ao jogo da

fantasia – numa tentativa infinita de tentar entender o passado fracassado. Assim como

nos diz Bergson, a memória dos narradores passa pela representação dos fatos. Se

tivéssemos as vozes dos outros personagens, eles nos apresentariam versões novas,

lembranças diferentes, mas todas nos conduziriam por um viés em comum. Cada um se

daria ao discurso de acordo com o sentimento produzido pelas situações vividas, no

entanto, como há sempre uma voz privilegiada, o narrador-personagem se entrega às

“liberdades que o espírito toma com a natureza”.

Em Caetés, João Valério mostra sempre debilidade em suas atitudes e condena-

se por isso, começa então a projetar consequências para os próprios erros. Depois de

beijar Luísa, inesperadamente, já no segundo parágrafo do romance, Valério troca

algumas palavras de desculpa e despede-se. Inicia-se então um monólogo interior, no

qual verificamos uma profusão de verbos no futuro do pretérito:

Retirei-me aniquilado. Na rua considerei com assombro a grandeza do meu atrevimento. Como fiz aquilo? Deus do céu! Lançar em tamanha

perturbação uma criaturinha delicada e sensível! Tive raiva de mim.

Animal estúpido e lúbrico. E que escândalo! Naturalmente ela avisaria o marido. Adrião Teixeira

com certeza ia dizer-me: “Você, meu filho, não presta.” E mandaria

balancear a casa Teixeira & Irmão, onde eu era guarda-livros e

interessado, para afastar-me da sociedade. (...) Vitorino Teixeira, acavalando os óculos de ouro no grosso nariz vermelho, abriria o

cofre, contaria o meu saldo com lentidão e, pondo o dinheiro sobre a

carteira, deixaria cair, naquela voz morosa e nasal, que dá arrepios, este epílogo arrasador: “Tome lá, João Valério, veja se confere. Nós

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julgamos que o Valério fosse homem direito. Enganamo-nos: é um

traste.” E eu sairia escorraçado, morto de vergonha. (...)

Dona Engrácia teceria mexericos; o Neves forjaria uma calúnia; Nicolau Varejão narraria mentiras espantosas. Assim pensando, eu

experimentava grande mal-estar, menos pelos dissabores que as

chocalhices me trariam que por antever misturado a elas o nome de

Luísa. (RAMOS, 2002, p. 7-8)

Os personagens graciliânicos estão presos pela recordação de suas atitudes.

Observe que o futuro do pretérito se liga a uma narrativa ficcional projetada pela

insegurança, pela ansiedade de prever o futuro e se armar contra ele. A lembrança do

ato impulsivo causa uma verdadeira desestabilidade interior no personagem, que nos

revela todo o fluxo de pensamento promovido pelo desassossego. Recebemos acusações

que se pautam pela visão particular que o narrador-personagem tem de cada pessoa da

cidade em que vive. O medo é elevado a uma estatura que condena impiedosamente os

outros personagens. Segundo Fernando Cristóvão:

A adoção do ponto de vista nesta situação centra a narrativa no

narrador, mas não se limita a analisar-lhe ideias e sentimentos em detrimento da análise e descrição do mundo exterior; por isso, embora

facilmente possa tornar-se suspeita de egocentrismo e estreiteza, não

corresponde à aparência. (...) Para ele, tomar o ponto de vista da primeira pessoa e centrar-se sobre

o protagonista principal é resultado duma exigência de objetividade e

releva duma concepção de verdade romanesca que não difere muito da

concepção de verdade histórica nos escritos biográficos. Por outro lado, essa visão não é estreitada pelos limites duma

experiência pessoal a servir de conteúdo à experiência do protagonista

principal, porque é o homem universal que se procura analisar com precisão, e não a experiência limitada de pessoas limitadas.

Essa precisão tem um preço - o de restringir o campo do observador,

mas sem que nele se inclua a limitação do universalismo pretendido.

No âmbito da experiência da personagem principal há toda uma problemática universalista, que nada fica a dever a experiências

múltiplas traduzidas pelo uso doutros pontos de vista que

significariam dispersão ou inautenticidade para um romancista como Graciliano. (CRISTÓVÃO, 1986, p. 17-18)

No capítulo desta tese, intitulado “Um caeté, sem dúvida”, verificamos

justamente essa ansiedade na obra de Graciliano Ramos de atentar para a universalidade

do ser humano, para a alma selvagem também presente nos seres racionais. Movidos

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por uma pulsão interior, todos são capazes de cometer erros e são passíveis de

autodestruição. O discurso em primeira pessoa na obra do autor, apesar de

individualizar a voz narrativa, aprofunda os sentimentos bem conhecidos por toda a raça

humana e, logo, ganha em universalidade. Já em Caetés, o autor procura localizar-nos

dizendo que, mesmo não conhecendo a nação caeté a partir do olhar histórico, é possível

comover-se e entender seus sentimentos, na medida em que todos somos da mesma

espécie. Experimentamos, ao longo de centenas de anos, os mesmos instintos de

sobrevivência – apenas nos diferenciamos pelo polimento que nos foi impresso.

Quando o escritor de literatura busca a linearidade dos personagens, com a voz

em terceira pessoa, eles são colocados em pé de igualdade, no entanto, perdem em

dimensão e em verossimilhança. Graciliano Ramos poderia escrever Vidas Secas como

uma forma de denunciar a realidade do nordeste, restringindo a narrativa à pura

descrição exterior da paisagem. Com isso, ganharia em detalhes e os condicionaria à

triste realidade. Poderia impor uma hierarquia social, mostrar que a família de Fabiano

não tinha salvação, porque estavam submetidos à lógica capitalista – dessa forma

teríamos um Graciliano Ramos comunista e militante. Entretanto, passeando em linha

paralela à chamada geração de trinta, caminhou na mesma direção, pegando um

caminho mais tortuoso: mostrou o modo particular de a seca atingir cada um dos

viventes, mostrou a singularidade de cada um dentro da situação miserável.

Os escritores da geração de trinta trouxeram grandiosidade de acordo com os

próprios anseios ficcionais, trouxeram uma realidade do Brasil ainda pouco conhecida.

Graciliano deu um passo à frente, usou o discurso indireto livre para, além da denúncia,

mostrar a alma caeté de cada um. Dessa forma, seus leitores puderam ver naqueles

viventes sentimentos muito similares aos que também experimentam. A seca era vivida

por cada um, na mesma família, de um modo particular. Já no primeiro capítulo, Sinhá

Vitória sonha com festas de casamento, vaquejadas e novenas; Baleia não deixa de ter

esperança antes da morte; Fabiano sente vontade de abandonar o próprio filho, com o

intuito de diminuir-lhe o sofrimento, não conseguiu, num sentimento quase egoísta,

porque teve medo de sofrer de remorso. Os personagens falam pouco, mas revelam, por

meio dos desarranjos, uma farta problematização interior.

Ainda em Caetés, depois de um diálogo com Luísa, João Valério segue caminho

envolvido pelas reminiscências do que acontecera. Buscava recordar a cena anterior em

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função da vontade de entender a movimentação interior, não compreendia. Os

sentimentos enclausuravam a lembrança, para provocar este efeito, Graciliano Ramos

construiu uma oposição muito interessante entre a objetividade da paisagem e a

subjetividade de João Valério:

Espantei-me de encontrar em redor tudo em ordem. A Lua andava brincando com as nuvens, como se aquele extraordinário

acontecimento não alterasse a harmonia do universo. Moviam-se

lentamente os tinhorões. A fachada do armazém fronteiro não se tinha desmoronado. (...)

Na rua, apesar da aparência calma do mundo exterior, pareceu-me que

havia em qualquer parte um cataclismo. É possível que naquele

momento alguma operação se realizasse no meu cérebro. Não tive disto nenhuma consciência, apenas sei que duas ou três frases me

feriam os ouvidos com obstinação. (RAMOS, 2002, p. 60)

A perturbação interior desequilibrou a memória, que para ele se confundia e se

reorganizava por meio de frases que ecoavam soltas em seus ouvidos. Nesse romance é

interessante notar, como uma marca já enunciada de Graciliano Ramos, que o rompante

amoroso por Luísa nasceu pela aparente inveja que sentia por Adrião, bem como se foi

embora naturalmente depois que este morreu. E, com isso, o romance também acaba.

Em 1934, com um olhar sobre a obra inaugural do autor alagoano, Agripino Grieco já

observara um caráter que irá se desdobrar em toda a obra produzida posteriormente:

A preferência do autor corre manifestamente para os sujeitos

carregados de tiques, consumidos por uma ideia fixa, presos a qualquer singularidade maníaca. Gosta mais dos falhados homens sem

amanhã, pobres rolhas inúteis bailando no vagão da vida (...).

(GRIECO, In.: COUTINHO, 1977, p. 150)

Há em João Valério uma ideia fixa em torno da figura imponente de Adrião que

se manifesta por meio de Luísa. O amor por ela esvanece junto com a vida do patrão e

amigo. O fragmento supracitado é um exemplo, dentre outros, em que o narrador-

personagem perde-se em devaneios e se desestabiliza pela falta de autoconhecimento e

excesso de autocensura. Este primeiro romance foi o que mais se debruçou sobre o

recurso do diálogo. Talvez, muito em função do experimentalismo estético que

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propunha o processo de rememoração como ferramenta, como modo de alcançar a

introspecção dos personagens, mas que ainda tinha por objetivo ironizar a linearidade

dos personagens realistas-naturalistas. Temos, assim, um jogo paralelo entre objetivação

dos personagens secundários e a encenação do drama interior de Valério. O futuro do

pretérito permanece até o final, encenando a projeção do futuro, numa imagem

obsessiva que o persegue:

Dominava-me aquela ideia absurda. Pareceu-me que Adrião iria

morrer continuadamente. D. Josefa me chamaria sempre para despertar Luísa, Clementina e Marta, e eu chegaria à varanda todas as

manhãs para ver o sol nascer, e sentiria eternamente aquele horrível

cheiro de incenso que me estava preso nas narinas.

Recuei vendo o Miranda, encostei-me à balaustrada do açude, temi que ele me viesse comunicar pela segunda vez a morte de Adrião.

(RAMOS, 2002, p. 205)

Adrião permanece como um fantasma assombroso e vivo nas reminiscências de

João Valério. Uma memória viva que reflete nos dias subsequentes do narrador-

personagem. Há uma circularidade no romance: depois da morte de Adrião retomam-se

os hábitos corriqueiros dos habitantes da cidade. Para libertar-se do padecimento mental

que a morte contínua lhe causara, muito em função do sentimento de culpa, Valério

lança mão de um recurso muito parecido com a chamada “Equivalência das Janelas”, de

Brás Cubas, no romance de Machado de Assis. Se antes Dr. Liberato tinha o discurso

recriminado por melhorar a vida de Adrião, concedendo-lhe tratamento, agora o

discurso é aplaudido pois, ao dizer que Adrião teria morrido de nevrose, oferece uma

desculpa plausível para o amigo ingrato e infiel.

Nos romances de Graciliano Ramos não importa a ordem cronológica e a

autenticidade dos fatos, apenas a forma como os acontecimentos refletiram na situação

mental dos personagens. Sendo assim, nada acontece em função da ação, mas sim a

partir dos desarranjos que se rearrumam de acordo com a memória. Antonio Candido,

em “Ficção e Confissão”, percebeu em Caetés a força do interior em detrimento da

objetivação narrativa:

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Em cenas admiráveis (como o referido jantar, o jogo de pôquer, o jogo

de xadrez), soldam-se a descrição dos incidentes e a caracterização

dos personagens, formando unidades coesas, na medida em que são atravessadas pelo solilóquio, isto é, pela obsessão do narrador. À

técnica, praticada segundo molde queirosiano, junta-se algo próprio a

Graciliano: a preocupação ininterrupta com o caso individual, com o

ângulo do indivíduo singular, que é - e será – o seu modo de encarar a realidade. No âmago do acontecimento está sempre o coração do

personagem central, dominante, impondo na visão das coisas a sua

posição específica. O estudo de qualquer das cenas mencionadas revela claramente a estreita correlação entre técnica e atitude em face

a vida, mostrando que o interesse pelos fatos decorre dum interesse

prévio pela situação do homem frente a eles. (CANDIDO, 2006, p.

23)

Na tentativa de decifrar Madalena, Paulo Honório, em São Bernardo, abandonou

a vontade de documentar o próprio trajeto de vida, engrandecendo-se pelas conquistas

comerciais, e entregou-se às ideias e sofrimentos íntimos. A questão, para ele, é deixada

em prol dos desarranjos e das possibilidades para o suicídio de Madalena. A narrativa

nos é entregue: “De resto isto vai arranjado sem nenhuma ordem, como se vê. Não

importa. Na opinião dos caboclos que me servem, todo o caminho dá na venda”.

(RAMOS, 2008, p. 11-12)

Ao decidir jogar de lado os dois primeiros capítulos, há uma tentativa de

escrever cronologicamente, mas logo fracassa:

Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e

nove quilos e completei cinquenta anos pelo S. Pedro. A idade, o peso,

as sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo têm-me rendido muita consideração. Quando me faltavam estas

qualidades, a consideração era menos. (Idem, p. 15)

No decorrer de cinco capítulos (do terceiro ao sétimo), Paulo Honório resume

seu trajeto biográfico desde o nascimento até a estabilidade financeira como homem de

propriedade. A partir daí começa a se entregar à demanda psicológica em torno de

Madalena, que se tornava um fantasma cada vez mais inquietante. A coruja piava aos

poucos e, finalmente, ele começou a ceder, porque havia uma necessidade de se libertar

do passado inquietante. Era preciso lançar-se ao futuro, mas o narrador-personagem

estava fadado à prisão da alma agreste, não conseguia rearrumar a bagunça que aquela

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mulher lhe causara. Madalena também está submetida ao olhar dessa voz que se

enuncia. Em suma, assim como Paulo Honório não a conhecemos por inteiro, temos em

mãos um romance muito similar ao Dom Casmurro, de Machado de Assis, se

pensarmos na restrição do ponto de vista e no filho de ambos que sofre o

questionamento sobre os traços físicos.

Madalena também é uma incógnita para o leitor, porque a mulher era pouco

observada e sentida por Paulo Honório. O narrador-personagem, num esforço voluntário

de rememoração, recupera as conversas nas quais divergia da esposa. Não entendia a

vocação desta para se compadecer da dor alheia. Para o leitor, a morte é a informação

principal no embate entre ambos. A morte representa para o narrador o sentimento de

não possuir tudo que deseja, se ela continuasse viva jamais desestruturaria a alma

agreste daquele homem, que acreditava ser capaz de controlar tudo.

A visão de mundo do narrador-personagem é tencionada pelo capitalismo. Não

há uma avaliação entre o bem e o mal, mas uma avaliação sobre o resultado das atitudes

tomadas, se se chegou aonde gostaria, a tarefa estava cumprida com êxito:

Ninguém imaginará que, topando os obstáculos mencionados, eu haja

procedido invariavelmente com segurança e percorrido, sem me deter,

caminhos certos. Não senhor, não procedi nem percorri. Tive abatimentos, desejo de recuar; contornei dificuldades: muitas curvas.

Acham que andei mal? A verdade é que nunca soube quais foram os

meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que me deram lucro. E como

sempre tive a intenção de possuir as terras de S. Bernardo, considerei

legítimas as ações que me levaram a obtê-las. (Subidem, p. 48)

Não há no discurso de Paulo Honório arrependimento. O narrador reconhece a

própria falha, mas, ao avaliar as condições em que as cometeu, encontra bom proveito

da situação e os benefícios obtidos – o olhar dele é reduzido ao puro materialismo. O

sentimento de dominador será a grande agonia que motiva a escrita de Paulo Honório.

Graciliano Ramos nos faz ver o sofrimento como algo inerente à condição humana, na

medida em que, a partir da relação com o mundo, cada um constrói os próprios

fantasmas.

Madalena foi perdida e, além disso, a solidão veio como resultado do sentimento

de propriedade – Paulo Honório fracassou, não se pode ter e/ou comprar tudo. No amor

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não se pode construir uma relação de perdas e ganhos, não deveria ter casado por amor.

De acordo com Candido:

Para adaptar-se, teria sido necessária a Paulo Honório uma reeducação

afetiva impossível à sua mentalidade, formada e deformada. O

sentimento de propriedade, acarretando o de segregação para com os homens, separa, porque dá nascimento ao medo de perdê-la e às

relações de concorrência. O amor, pelo contrário, unifica e totaliza.

Madalena, a mulher – humanitária, mãos abertas -, não concebe a vida como relação de possuidor a coisa possuída. Daí o horror com que

Paulo Honório vai percebendo a sua fraternidade, o sentimento

incompreensível de participar da vida dos desvalidos, para ele simples autômatos, peças da engrenagem rural. Quando casa, aos quarenta e

cinco anos, já o ofício criou nele as paixões correspondentes, que o

modelaram na inteireza do egoísmo. (CANDIDO, 2006, p. 36)

O materialista julga amar por meio da relação de perdas e ganhos. Nisto há uma

relação também inconsciente de autoavaliação negativa, na qual o personagem mede a

si mesmo em função da quantidade de elementos que pode oferecer, sem se questionar

sobre a qualidade dos próprios atos. Paulo Honório julgou possuir sem o alicerce do

amor, julgou oferecer tudo que podia e constrangeu os sentimentos de Madalena. Cada

vez que ouvia o pio da coruja transportava-se, lembrava-se da mulher, era condicionado

a rememorar o amor que negligenciou e nisto consistia a sua dor. Escrever, como forma

de expurgar os sentimentos de propriedade, foi o primeiro ato sem intenções financeiras.

Paulo Honório abandonou o intuito autobiográfico, no qual teríamos uma trajetória

cronológica do sucesso profissional do autor. Ao colocar os sentimentos em cena, abriu

mão de fatos que não eram importantes para a nova narrativa.

Em São Bernardo, verificamos constantemente o desejo de fazer aparecer o

escritor por detrás do texto, com isso, mostrar a evidente manipulação que o escritor faz

do não ficcional a favor do ficcional. A memória voluntária, a recuperação dos dados

biográficos, é relatada por meio do binóculo, aumentando ou diminuindo

insignificâncias de acordo com o efeito pretendido pelo escritor. Recurso, aliás, como já

fora dito, também declarado pelo narrador Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere.

Depois da reprodução de um diálogo que tivera com D. Glória, Paulo Honório declara:

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Essa conversa, é claro, não saiu de cabo a rabo como está no papel.

Houve suspensões, repetições, mal-entendidos, incongruências,

naturais quando a gente fala sem pensar que aquilo vai ser lido. Reproduzo o que julgo interessante. Suprimi diversas passagens,

modifiquei outras. O discurso que atirei ao mocinho do rubi, por

exemplo, foi mais enérgico e mais extenso que as linhas chochas que

aqui estão. A parte referente à enxaqueca de d. Glória (e a enxaqueca ocupou, sem exagero, metade da viagem) virou fumaça. Cortei

igualmente, na cópia, numerosas tolices ditas por mim e por d. Glória.

Ficaram muitas, as que as minhas luzes não alcançaram e as que me pareceram úteis. É o processo que adoto: extraio dos acontecimentos

algumas parcelas; o resto é bagaço. Ora vejam. Quando arrastei Costa

Brito para o relógio oficial, apliquei-lhe uns quatro ou cinco palavrões

obscenos. Esses palavrões, desnecessários porque não aumentaram nem diminuíram o valor das chicotadas, sumiram-se, conforme notará

quem reler a cena da agressão, cena que, expurgada dessas

indecências, está descrita com bastante sobriedade. Uma coisa que omiti e produziria bom efeito foi a paisagem. Andei

mal. Efetivamente a minha narrativa dá ideia de uma palestra

realizada fora da terra. (...) Hoje isso forma para mim um todo confuso, e se eu tentasse uma

descrição, arriscava-me a misturar os coqueiros da lagoa, que

apareceram às três e quinze, com as mangueiras e os cajueiros, que

vieram depois, Essas descrição, porém, seria aqui embutida por motivos de ordem técnica. E não tenho o intuito de escrever em

conformidade com as regras. (RAMOS, p. 88-89)

No primeiro parágrafo do fragmento, podemos observar que, além de a memória

ser condicionada, de não reproduzir fielmente a situação vivida, também é manipulada

pelo desejo do autor em introduzir no leitor determinada impressão. Isto não é novidade,

o interessante é verificar tal fenômeno expresso em metalinguagem num romance da

década de trinta. O cuidado com a intencionalidade do autor é uma marca recorrente da

obra de Graciliano Ramos, além da ironia apresentada sobre os costumes narrativos de

outros romances. Paulo Honório e/ou Graciliano falam da descrição do espaço exterior

como algo omitido, a princípio como algo bom que, ao ser retirado, faz com que os

leitores não tenham a noção do espaço físico. Depois, como algo que se restringe a uma

simples regra a ser seguida. Mais uma vez, o autor denota a necessidade de abandonar o

exterior a favor nas nuances interiores dos personagens, nas quais a aparente “palestra”

traduz a ansiedade de verbalizar os próprios sentimentos, desfavorecendo a paisagem

tão comum nos romances regionalistas, típicos da chamada geração de trinta.

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137

Ao abandonar as regras, tão elevadas na “literatura honorária”, Paulo Honório

lança-se a novos horizontes, muito em função da perda de Madalena. Uma morte que,

com o desarranjo, trouxe ao Paulo Honório tons de sensibilidade:

Conforme declarei, Madalena possuía um excelente coração. Descobri

nela manifestações de ternura que me sensibilizaram. E, como sabem,

não sou homem de sensibilidades. É certo que tenho experimentado mudanças nestes dois últimos anos. Mas isto passa. (Idem, p. 121)

Paulo Honório não tomou posse de Madalena, pois não soube amar e se

compadecer perante a dor alheia. Não percebeu a dor da mulher e se desvencilhou do

amor que ela oferecia a si e aos outros. Quando Madalena comete suicídio, o sentimento

de propriedade esmorece e, com isso, há um fracasso também do capitalismo – ao

contrário do que muitos estudiosos dizem. Ao reconstruir as memórias em torno de

Madalena, ele percebe as tolices e grosserias que depositara na mulher, num jogo entre

os sentimentos passados e os de agora:

Está visto que Madalena não tinha nada com o descaroçador e a serraria, mas naquele momento não refleti nisso: misturei tudo e a

minha cólera aumentou. Uma cólera despropositada. Esqueci os

presentes que, há alguns anos, a Rosa me comeu (pó-de-arroz, voltas de conta) e as despesas que fiz com Margarida, até automóvel ao

sertão, até clichês para o jornal do Gondim. O que me pareceu foi que

Madalena estava gastando à toa. (Subidem, p. 141)

Aos poucos, ele se aproxima dos motivos de Madalena, ainda que de forma

inconsciente. Além de avaliar os atos da mulher e recriminá-la pelo excesso de

compadecimento em relação aos empregados, Paulo Honório sente ciúmes e

insegurança em função do estudo que adornava a mulher com tons de intelectual, não

gostava de ela ter conhecimento e, menos ainda, quando se dava ao diálogo com

companheiros mais estudados do que ele. O conhecimento em contraposição à sua

escolaridade sombreava, também, o relacionamento de ambos:

Eu narrava o sertão, Madalena contava fatos da escola normal. (...)

Não gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e são

horríveis. (...)

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Madalena, propriamente, não era uma intelectual. Mas descuidava-se

da religião, lia os telegramas estrangeiros.

E eu me retraía, murchava. Requebrando-se para o Nogueira, ao pé da janela, sorrindo! Sorrindo

exatamente como as outras, as que fazem conferências. Perigo. Quem

se remexer para João Nogueira estrepa-se. Bom advogado, negócios

direitos, sim sim, não não; mas no gênero mulher é uma rede, não deita água a pinto. E aquela conversa teria sido a primeira? Antes da

minha bruta cabeçada, eles se entendiam. Talvez namorassem.

Quando em casa do dr. Magalhães, eu tinha encontrado Madalena, João Nogueira estava lá. (Subidem, p. 158-159)

Neste fragmento, verificamos que o futuro do pretérito denuncia mais uma vez

os processos mentais do personagem, destacando o caráter obsessivo e desconfiado

sobre a mulher. Uma tentativa, projetada pela insegurança, de obter informações do

passado a partir do olhar nebuloso – enclausurado pelas próprias ansiedades. Madalena

é condicionada pela memória de Paulo Honório no esforço de decifrá-la. Questiona-se

sobre a fidelidade da mulher, bem como o fez Bento Santiago em relação à Capitu. As

desconfianças do narrador-personagem também se projetam no filho, pelo qual recusava

o afeto:

Eu tinha razão para confiar em semelhante mulher? Mulher intelectual.

E a minha cara devia ser terrível, porque Madalena empalidecia e dava

para tremer.

Se eu soubesse... Soubesse o quê! Há lá marido que saiba nada? (...) Afastava-me, lento, ia ver o pequeno, que engatinhava pelos quartos,

às quedas, abandonado. Acocorava-me e examinava-o. Era magro.

Tinha os cabelos louros, como os da mãe. Olhos agateados. Os meus são escuros. Nariz chato. De ordinário as crianças têm o nariz chato.

Interrompia o exame, indeciso: não havia sinais meus; também não

havia os de outro homem. (Subidem, p. 160)

Paulo Honório mantinha distância do filho, assim como Madalena que, segundo

ele, ignorava seus choros e desesperos. O narrador-personagem projetava na mulher,

inconscientemente, sentimentos de insegurança. Via-se deformado e, com isso,

enxergava atributos maiores em possíveis concorrentes:

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Um dia, de passagem pela fazenda, o dr. Magalhães almoçou comigo.

Espreitando-o, notei que as amabilidades dele para Madalena foram

excessivas. Efetivamente nas palavras que disseram não descobri mau sentido; a intenção estava era nos modos, nos olhares, nos sorrisos.

Houve, segundo me pareceu, cochichos e movimentos equívocos.

À noite não consegui dormir. Passei horas sentado, odiando Madalena,

que se enroscava num canto da cama, as pernas encolhidas apertando o estômago.

Com o dr. Magalhães, homem idoso! Considerei que também eu era

um homem idoso, esfreguei a barba, triste. Em parte, a culpa era minha: não me tratava. Ocupado com o diabo da lavoura, ficava três,

quatro dias sem raspar a cara. E quando voltava do serviço, trazia

lama até nos olhos: deem por visto um porco. Metia-me em água

quente, mas não havia esfregação que tirasse aquilo tudo. Que mãos enormes! As palmas eram enormes, gretadas, calosas, duras

como casco de cavalo. E os dedos eram também enormes, curtos e

grossos. Acariciar uma fêmea com semelhantes mãos! As do dr. Magalhães, homem de pena, eram macias como pelica, e as

unhas, bem aparadas, certamente não arranhavam. Se ele só pegava

em autos! (Op. Cit. p. 164)

Ao esforçar-se por rememorar o cotidiano ao lado de Madalena, é interessante

notar que Paulo Honório apenas nos fornece informações sobre as nuances psicológicas

de si mesmo. Enquanto a mulher era viva, ele não a olhava, não enxergava nada ao

redor que não fosse perspectivado pela mente doentia – pautada pelas próprias

inseguranças. Dessa forma, os leitores recebem as impressões de Paulo Honório que o

acusam indiretamente como culpado da morte planejada. Antes, pelo menos, estava tão

ocupado com suas ansiedades que não notara em Madalena um desarranjo.

Um homem materialista não pensa nos atributos espirituais, naquilo que a

essência da alma humana pode oferecer. Não enxergava, portanto, características

afetivas que pudesse atrair Madalena para junto de si. A visão materialista não é

analisada somente sob a perspectiva financeira, mas também sobre o corpo físico. Não

olhando para o interior, Paulo Honório busca no exterior, na matéria do corpo, motivos

para fazer a manutenção do amor de Madalena - não os encontra. Antes, verifica a

decadência das formas, desprovidas de atrativos, na medida em que se abatia pela

velhice e pelo trabalho. Há então, novamente, uma deformação psicológica, muito ao

sabor do capítulo XIX, no qual o discurso do narrador-personagem assemelha-se ao da

esquizofrenia.

A memória voluntária, então, vem vazada pelo modo como o narrador enxergou

os acontecimentos, pela lembrança das motivações interiores. Os personagens

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graciliânicos jamais encontram a realidade objetiva, digamos assim, e nisto consiste os

seus fracassos e o eterno desejo do irrealizável – estão perdidos e enclausurados pelos

destemperos da mente. As dúvidas de Paulo Honório nasciam das dúvidas de si mesmo,

do olhar que se pautava pela fragilidade da matéria. Com isso, a “certeza indubitável”,

como ele irá afirmar, serve de suporte para um paradoxo no qual Madalena é

condicionada à situação de vítima e de criminosa. Se por um lado ele nos oferece cenas

e desconfianças sobre a conduta da mulher, por outro, o modo como ele enxerga nela e

em Dona Glória, a tia, atitudes suspeitas – em função das cabeças baixas e do silêncio -,

também nos faz pensar sobre a insatisfação que estaria sentindo em relação aos

desmandos de Paulo Honório.

O narrador-personagem inicia o capítulo XXIX da seguinte forma:

Quando as dúvidas se tornavam insuportáveis, vinha-me a necessidade

de afirmar. Madalena tinha manha encoberta, indubitavelmente. –

Indubitavelmente, indubitavelmente, compreendem?Indubitavelmente. As repetições continuadas traziam-me uma espécie de certeza.

Esfregava as mãos. Indubitavelmente. Antes isso que oscilar de um

lado para outro.

Via-se muito bem que d. Glória era alcoviteira. Passadas mansinhas, olhos baixos, voz sumida – estava mesmo a preceito para alcoviteira.

Antigamente devia ter dado com os burros na água. Alcoviteira,

desencaminhara a sobrinha. Sempre de acordo, aquelas duas éguas. (Op. Cit., p. 177)

As dúvidas de Paulo Honório, baseadas na fragilidade emocional, colocam-no

no limite entre sanidade e loucura, real e imaginário. A exploração dos fatos é

metamorfoseada pelo olhar doentio e, com isso, não consegue mais discernir o que é

real ou imaginário – os leitores também passeiam pelos desarranjos sem fincar pé em

nenhuma parte. Verificamos um projeto de entorpecimento em torno do discurso do

narrador, que desequilibra as noções de realidade objetiva. Há um discurso puramente

subjetivo, sempre marcado pelo momento do sono, que é o lugar da nebulosidade, da

memória esfumaçada, na medida em que a ponte entre a vigília e o sono é região pouco

explorada e dá margem à interceptação pela loucura, porque antes no sonho já

pertencemos ao delírio pré-sono profundo. Caímos, junto com Paulo Honório, de um

precipício sem fim e, quando nos assustamos, não sabemos se de fato tudo era real ou

fruto do imaginário.

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No capítulo XXX, Paulo Honório julga ter ouvido um barulho de assovio e de

passos no jardim. Madalena e ele estavam deitados, ele se levanta e acende o candeeiro.

Madalena assusta-se com um tiro saltado do silêncio:

- Que foi? Gemia Madalena aterrada.

- São os seus parceiros que andam rondando a casa. Mas não tem

dúvidas: qualquer dia fica um diabo aí estirado. Madalena abraçava-se aos travesseiros, soluçando.

Um assobio, longe. Algum sinal convencionado.

- É assobio ou não é? Marcou entrevista aqui no quarto, em cima de

mim? É só o que falta. Quer que eu saia? Se quer que eu saia, é dizer. Não se acanhe.

Madalena chorava como uma fonte.

Entristecia-me. Grosseiro, monstruosamente grosseiro. E se as passadas de assobio não fossem por causa dela? Ah! Sendo

assim, eu picado para linguiça não pagava o que devia. E se as

passadas e o assobio não existissem? Lembrava-me de uma noite em que me aperreei de verdade e puxei a lambedeira, com medo de um

rato. Há neste mundo cada engano! E decidi corrigir-me:

- Vamos deixar de choradeira. Lá por assobiarem no pomar e

passearem no jardim não é preciso a senhora se desmanchar em água. É melhor acabar com essa cavilação.

Madalena chorava, chorava, até que por fim, cansada de chorar,

pegava no sono. Encolhia-me à beira da cama, para evitar o contacto dela. Quando ia adormecendo, percebia o ranger da chave em

fechadura e o rumor de telhas arrastadas. Despertava num sobressalto

e continha a respiração. Quem estaria futucando portas? Quem estaria

destelhando a casa? Aproximava-me de Madalena, observava-lhe o rosto. Teria ouvido?

Ou estaria a fingir que dormia? (...)

Um pesadelo. Era possível que o assobio fosse grito de coruja. (Op. Cit., p. 180-181)

A partir do fragmento acima, observamos a coruja – a mesma que motiva a

memória involuntária – como um elemento do passado que perturbava o equilíbrio de

Paulo Honório. Obsecado pela possível traição, o homem acredita ser o pio da coruja

um assovio escondido do concorrente, com isso, recrimina Madalena e a assusta. Todas

as atitudes da mulher são motivos para desconfiança e o sofrimento interior é

avassalador. Apesar de ser dominado pela loucura ensurdecedora do ciúme, Paulo

Honório questiona-se, novamente, se de fato teria ouvido o pio da coruja, questiona-se

se de fato o pio seria para Madalena. Tenta constantemente manter contato com a

realidade objetiva que se perde em meio aos devaneios interiores, está totalmente

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consumido. O narrador-personagem vai com Marciano procurar as corujas, julga

exterminá-las e acabar com a lamúria, mas elas parecem se reproduzir infinitamente,

como os vários sons e vozes que o dominam toda noite.

Uma questão importante que se impõe no discurso de Paulo Honório é a

flexibilidade do próprio discurso, sempre construído pela teia da dúvida, com mais de

uma possibilidade de interpretação. A escrita do narrador-personagem reflete nela

mesma o dialogismo do discurso e os diferentes pontos de vista. Ele faz mister deixar

clara a manipulação da fala de acordo com o que se pretende narrar, como já fora dito.

Constrói a memória binocular ampliando insignificâncias e aumentando pequenos fatos

como modo de distorcer e por em dúvida a própria fala. No capítulo XXXII, depois da

morte de Madalena, ele relata a experiência de ansiedade por a mulher nunca o

abandonar, estava massacrado pela lembrança imperiosa. Uma memória que ele não

podia dominar. É interessante como, diante da inquietação, nesse capítulo ele demonstra

uma espécie de insight, de autoconhecimento sobre o seu modo de se relacionar com o

mundo:

Vivia agora a passear na sala, as mãos nos bolsos, o cachimbo

apagado na boca. Ia ao escritório, olhava os livros com tédio, saía,

atravessava os corredores, percorria os quartos, voltava às caminhadas na sala.

Certo dia, na horta, espiava um formigão que se exercitava em

marchas e contramarchas inconsequentes. Inconsequentes para mim, está visto, que ignorava as intenções dele. (Op. Cit., p. 198)

Apesar de aparentemente o personagem voltar-se para fora de si, na verdade,

mais uma vez ele denota a característica central do ser humano: projetar no exterior e no

outro os próprios sentimentos. Um fragmento pequeno, que parece a princípio banal e

corriqueiro, traz uma profundidade incrível para a narrativa e para a visão que devemos

ter sobre os atos e argumentos de Paulo Honório. Ele declara que, desconhecendo as

intenções do personagem observado, não pode deter total conhecimento sobre a

subjetividade e real intenção do observado – apenas imprime a forma como os sentiu.

Inevitavelmente, projetamos tal reflexão para Madalena – alvo das impressões do

narrador.

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No capítulo XXXVI, último do romance, preso ao passado malogrado, Paulo

Honório manifesta o desejo de modificação. Imagina uma série de possibilidades que

teriam evitado o insucesso pessoal e amoroso. Junto com o futuro do pretérito, que

marca tudo aquilo que poderia ter sido, que nunca foi e nem nunca será, temos o

pretérito imperfeito – aprisionando o narrador-personagem ao passado, que continua o

seu eterno curso:

Está visto que, cessando esta crise, a propriedade se poderia

reconstituir e voltar a ser o que era. A gente do eito se esfalfaria de sol a sol, alimentada com farinha de mandioca e barbatanas de bacalhau;

caminhões rodariam novamente, conduzindo mercadorias para a

estrada de ferro; a fazenda se encheria outra vez de movimento e

rumor. Mas pra quê? Para quê? Não me dirão? Nesse movimento e nesse

rumor haveria muito choro e haveria muita praga. As criancinhas, nos

casebres úmidos e frios, inchariam roídas pela verminose. E Madalena não estaria aqui para mandar-lhes remédio e leite. Os homens e as

mulheres seriam animais tristes. (Op. Cit., p. 217)

Se eu povoasse os currais, teria boas safras, depositaria dinheiro nos bancos, compraria mais terra e construiria novos currais. Para quê?

Nada disso me traria satisfação. (Idem, p. 218)

É interessante verificar o reconhecimento que Paulo Honório faz dos bons

sentimentos de Madalena, irrecuperáveis. A fazenda, sua propriedade, definhou e

poderia ser reconstituída, ao passo que a delicadeza e compaixão da mulher jamais

poderiam ser recuperadas. Com isso, o homem não encontra satisfação no que antes

tinha como impulso de vida, tudo foi ao chão junto com a alma de Madalena. Esta foi

um negócio mal feito, já que ele casou-se inicialmente achando ter um bom enfeite para

sua vaidade. Dessa forma, imagina outras possibilidades de empreendimento que teriam

dado mais certo e não desequilibrariam a perspectiva de mundo materialista:

Se houvesse continuado a arear o tacho de cobre da velha Margarida,

eu e ela teríamos uma existência quieta. Falaríamos pouco,

pensaríamos pouco, e à noite, na esteira, depois do café com rapadura, rezaríamos rezas africanas, na graça de Deus.

Se não tivesse ferido o João Fagundes, se tivesse casado com a

Germana, possuiria meia dúzia de cavalos, um pequeno cercado de

capim, encerados, cangalhas, seria um bom almocreve. Teria crédito para comprar cem mil-réis de fazenda nas lojas da cidade pelas quatro

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festas do ano a mulher e os meninos vestiriam roupa nova. Os meus

desejos percorreriam uma órbita acanhada. Não me atormentariam

preocupações excessivas, não ofenderia ninguém. (Op. Cit., p. 218-219)

Paulo Honório é movido por um autoengano na busca por superar o desarranjo

que Madalena lhe causou. Procura, a todo custo, preencher o vazio e desvencilhar-se

dos próprios equívocos. A mesma estrutura também será revista em Angústia, diante do

fracasso de Luis da Silva. Em entrevista a Homero Senna, em 1948, Graciliano Ramos

faz uma declaração muito interessante, em torno de São Bernardo e Angústia, sobre

capítulos fundamentais dos romances, nos quais encontramos a linguagem

esquizofrênica, desnorteando as noções de passado e presente:

Com a revolução, quis demitir-me, mas não pude. E lá fiquei até dezembro de 31. Não suportando os interventores militares que por lá

andaram, larguei o cargo e voltei para Palmeiras dos Índios, onde,

numa sacristia, fiz S. Bernardo. Estava no capítulo XIX, capítulo que escrevi já com febre, quando adoeci gravemente com uma psoíte e tive

de ir para o hospital. Do hospital ficaram-me impressões que tentei

fixar em dois contos – “Paulo” e “O relógio do hospital” – e no último

capítulo de Angústia. No delírio, julgava-me dois, ou um corpo com duas partes: uma boa outra ruim. E queria que salvassem a primeira e

mandassem a segunda para o necrotério. (RAMOS, In.:

LEBENSZTAYN & SALLA, 2014, p. 195)

Em “O relógio do hospital”, o narrador-personagem está internado, com febre e

com dores intensas. Percebemos no conto uma estrutura propositalmente mal definida

que demonstra um tempo decorrido ao longo de alguns dias. O contato com a realidade

externa, do pondo de vista do narrador, se faz a partir do relógio. Um relógio de

barulho, por vezes, ensurdecedor, mas que também se cala de forma assustadora para o

narrador. O relógio, ao contrário do esperado, não informa o tempo decorrido, mas

denota a vida que ainda está em curso.

O relógio perturba, mas o conecta com a sensação de ainda estar vivo, apesar das

dores e do pouco contato com a realidade, na medida em que passa boa parte do tempo

delirando:

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Durmo uns minutos, acordo, adormeço novamente. Neste sono cheio

de ruídos espaçados – rolar de automóveis, um canto de bêbado,

lamentações de outros doentes – avultam as pancadas fanhosas do relógio. Som arrastado, encatarroado e descontente, gorgolejo de

sufocação. Nunca houve relógio que tocasse de semelhante maneira.

Deve ser um mecanismo estragado, velho, friorento, com rodas gastas

e desdentadas. Meu avô me repreendia numa fala assim lenta e aborrecida quando me ensinava na cartilha a soletração. Voz

autoritária e nasal, costumada a arengar aos pretos da fazenda, em

ordens ásperas que um pigarro interrompia. O relógio tem aquele pigarro de tabagista velho, parece que a corda se desconchavou e a

máquina decrépita vai descansar. (RAMOS, 2010, p. 35-36)

Toque-toque. Não é o sangue, é qualquer coisa que vem de fora,

provavelmente do corredor. Duas pancadas próximas, uma

distanciada, andadura irregular de bicho que salta em três pés. Ainda há pouco estava tudo calmo. De repente o relógio velho começou a

mexer e a viver. (Idem, p. 41)

É interessante notar que o relógio adoece, nele são impressas as perturbações

psicológicas do narrador, movido pelo entorpecimento da febre. O discurso texto é

permeado pela disfunção da realidade objetiva, correspondendo à estética literária do

autor – que se entrega aos desarranjos subjetivos do personagem. Quando o relógio toca

de forma ameaçadora, funciona como o pio da coruja, desconcerta ainda mais as noções

de sanidade mental do personagem, que se entrega à loucura do delírio auditivo e visual.

Uma experiência pessoal que, como o próprio autor disse, foi transportada para

São Bernardo e Angústia. Mais uma vez, além da relação indiscernível entre ficção e

não ficção, observamos uma estrutura estilística que se repete na obra do autor. Esse

conto também possui uma mistura de tempos verbais e, na impossibilidade de entrar em

contato com a realidade objetiva, o futuro do pretérito servirá de projeção de um futuro

que o narrador acredita estar fracassado – em função da crença de a morte ser uma

visitante inevitável. Com isso, o narrador projeta a própria morte com o futuro do

presente e, logo, questiona-se se já não a teria encontrado:

Impossível saber se é esta a primeira noite que passo aqui. Desejo

pedir os meus chinelos, mas tenho preguiça, a voz sai-me flácida, incompreensível. E esqueci o nome dos chinelos. Apesar de saber que

eles são inúteis, desgosta-me não coseguir pedi-los. Se estivessem ao

pé da cama, sentir-me-ia próximo da realidade, as pessoas que me cercam não seriam espectrais e absurdas. Enfadam-me, quero que me

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deixem. Acontecendo isto, porém, julgar-me-ei abandonado, rebolar-

me-ei com raiva, pensarei na enfermeira dos indigentes, no homem

que tinha uma grade de esparadrapos na cara. Silêncio. Por que será que esta gente não fala e o relógio se aquietou?

Uma ideia acabrunha-me. Se o relógio parou, com certeza o homem

dos esparadrapos morreu. Isto é insuportável. Por que fui abrir meus

olhos diante da amaldiçoada porta? (Idem, p. 36-37)

Como na obra de Graciliano Ramos a realidade subjetiva é posta em primeiro

plano, de acordo com o que temos visto até agora, nos contos verificamos a mesma

estrutura narrativa. Dessa forma, em “O relógio do hospital”, recebemos do narrador

somente suas impressões desajustadas, com uma profusão de referências perdidas, nas

quais percebemos uma movimentação de pessoas pelo quarto sem entendermos

exatamente quais imagens representam ou o que disseram. O relógio, único ponto de

contato com a realidade objetiva, uma imagem privilegiada porque se mantém em todas

as cenas embaralhadas, ainda assim reflete as sensações físicas e psicológicas do

narrador.

A ideia de morte aparente nos é apresentada sob a perspectiva do relógio parado.

Teria ele parado ou o personagem entregou-se com mais afinco ao delírio e/ou ao sono?

O mesmo processo, como Graciliano Ramos menciona, ocorrido no capítulo XIX de

São Bernardo. Anteriormente, falamos sobre Paulo Honório ver o ponteiro do relógio

paralisado e questionamos se isto não representaria a sua estagnação no passado que

reinventava ou, ainda, se não estaria delirando. O que, claramente, acontece nesse

fragmento do conto supracitado.

Está claro, a partir da declaração de Graciliano Ramos, que há uma relação de

sentido entre o conto e ambos os romances, São Bernardo e Angústia. No entanto, faz-

se imprescindível mostrar que o delírio, ou estágio entre a vigília e o sono, são

compostos pela mesma estrutura estética e literária25

. Além disso, os personagens

passam por uma espécie de despersonalização, na qual produzem discursos

25 Ver a análise, em anexo, de A terra dos meninos pelados, na qual verificamos os mesmos aspectos narrativos mencionados aqui, bem como um efeito similar ao da coruja, que provoca uma memória involuntária. O desarranjo interior também aparece como produto central da psicologia do personagem, que leva os leitores para a sua terra interior – perspectivada pelo universo lúdico infantil. A análise foi produzida e apresentada no evento anual da UERJ denominado SEPEL.

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ambivalentes e desdobrados, representando assim a sensação de dualidade do eu: que se

subtrai de si mesmo e encontra outro fora de si.

Em Angústia, temos o mesmo processo de despersonalização, no qual se

misturam os processos mentais de um Luís da Silva recente com as memórias de um

Luís da Silva de outrora. Tal fenômeno é sempre representado nos narradores de

Graciliano Ramos justamente como formatação da memória voluntária. Os personagens,

diante da necessidade de compreender o passado recente malogrado, esforçam-se por

buscar a origem dos próprios sentimentos e erros. A partir dessa vontade, Angústia é

articulado da seguinte maneira, de acordo com Silviano Santiago:

Em Angústia, o traçado entre a grande narrativa e as micronarrativas

tem a originalidade acentuada pela forma inusitada como ocorrem os encaixes. A cada momento as intervenções subversivas da memória

rural do personagem fazem a linearidade impulsiva da memória

urbana explodir, redirecionando-a para o passado remoto. Em outras palavras: a lembrança dos acontecimentos recentes na capital é

alicerçada e, ao mesmo tempo, quebrada e explicada pela lembrança

de acontecimentos e de figuras humanas do antigo mundo sertanejo, dominado pelos coronéis. Angústia teria sido um romance catastrófico

– composto de longas passagens obscuras do passado recente e

estilhaços esclarecedores do passado remoto -, não fosse a maestria

incomparável do ficcionista. (SANTIAGO, In.: RAMOS, 2008, p. 290)

Em relação aos outros romances, Angústia tem a particularidade de não só

apresentar os desarranjos do personagem em relação ao passado recente, mas também

de buscar na infância um refúgio, ao passo que ela, mais do que isso, acaba fornecendo

ao leitor raízes implícitas para o assassinato cometido por Luís da Silva – ainda que

inconscientemente. Como vimos no capítulo anterior deste trabalho, a cobra, por

exemplo, aparece como imagem obsessiva do passado no momento em que Luís da

Silva alimenta o ódio por Julião Tavares, a cobra que quase enforca o avô se

transformará em corda no passado recente, como instrumento de assassinato.

Já foi dito que, a partir dessa estrutura, houve uma abundância de repetições e

adjetivos que bem serviram à narrativa obsessiva de Angústia. Ainda assim, Graciliano

Ramos sofreu repressões imediatamente à publicação do livro, inclusive de Antonio

Candido, que caracterizou tal aspecto como “gorduras corruptíveis”, expressão com a

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qual, de acordo com o fragmento já mencionado, o autor alagoano parece concordar –

não se sabe se por cortesia ou pelo olhar do revisor ostensivo.

Embora haja tanta polêmica, o escritor e crítico Silviano Santiago parece

corroborar a impressão aqui defendida de que, na verdade:

O romance é excepcional porque recebeu a composição justa. A superabundância dos detalhes foi alimentada pela imaginação

enraivecida do apaixonado. A compulsão à repetição foi impulsionada

pela escrita do paranoico obsessivo. Marina e o assassinato de Julião, o crime e autopunição – eis os pontos fulcrais da experiência de vida

de Luís da Silva em Maceió, narrada por ele próprio. Composto de

outra forma, Angústia não teria sido tão exitoso. (Idem, p. 292)

Ao construir a defesa a partir desse pressuposto, percebe-se que o fluxo do

desarranjo interior, ao buscar incessantemente rearrumar a memória, produz um

discurso cheio de lacunas. O autor por detrás do texto quer-nos oferecer a perturbação

da origem, porque a memória jamais será como a bala do canhão, ela atua como

granada, dispersa fragmentos, deixa buracos, e apresenta ao leitor uma memória

esfumaçada – que pode ser preenchida ou não. Este fenômeno pode ser percebido pela

sequência de frases justapostas que, como percebeu Silviano Santiago, utilizando o

termo técnico gramatical “parataxe”, pouco sentido carrega da frase anterior,

sucessivamente. O que proporciona ao leitor a sensação de vazio ou de uma borra que

pode ser interpretada como bem o quiser.

A conexão entre as imagens da infância com as divagações do presente se dão

em diferentes níveis. Marina é torturada por Luís da Silva algumas vezes no seu

imaginário. Logo no começo, o nome da mulher já serve de suporte ao construir

diversas palavras com as letras do nome dela:

Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando

letras deste nome, arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes. Quando não consigo formar combinações

novas, traço rabiscos que representam uma espada, uma lira, uma

cabeça de mulher e outros disparates. (RAMOS, 2008, p. 8)

O artigo que me pediram afasta-se do papel. É verdade que tenho o

cigarro e tenho o álcool, mas quando bebo demais, a minha tristeza

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cresce. Tristeza e raiva. Ar, mar, ria, arma, ira. Passatempo estúpido.

(Idem, p. 9)

No trecho acima, já se verifica uma fragmentação de Marina, na qual ela é

significada por diferentes substantivos - que bem podem representar as diferentes

sensações provocadas nos sentidos de Luís da Silva. Em outro momento a mulher

também será dilacerada de acordo com o campo visual do narrador, que a observa de

longe no quintal.

Aos poucos, conforme o amor vai se transformando em obsessão, a tortura no

universo imaginário de Luís da Silva se torna cada vez mais explícita. Ao lembrar da

experiência que tinha com o pai, quando este tentava ensiná-lo a nadar, imagina como

seria bom torturá-la física e psicologicamente da mesma forma que sofria com a

opressão do pai:

Quando eu ainda não sabia nadar, meu pai me levava para ali,

segurava-me um braço e atirava-me num lugar fundo. Puxava-me para cima e deixava-me respirar um instante. em seguida repetia a tortura .

Com o correr do tempo aprendi natação com os bichos e livrei-me

disso. Mais tarde, na escola de mestre Antônio Justino, li a história de um pintor e de um cachorro que morria afogado. Pois para mim era no

poço da Pedra que se dava o desastre. Sempre imaginei o pintor com a

cara de Camilo Pereira da Silva, e o cachorro parecia-se comigo.

Se eu pudesse fazer o mesmo com Marina, afogá-la devagar, trazendo-a para a superfície quando ela estivesse perdendo o fôlego, prolongar

o suplício o dia inteiro... (Idem, p. 18)

A memória da infância dialoga com o presente contribuindo para os

pensamentos doentios do narrador-personagem. O mesmo se repete ao longo do

romance como método indireto de nos apresentar os processos mentais de Luís da Silva,

que constituem toda a trama narrativa. O romance de quase trezentas páginas está no

drama encenado pelo desarranjo do narrador, a única ação será o assassinato de Julião

Tavares unido ao ato ostensivo em se lavar as mãos, de resto, a fabulação estará sempre

em primeiro plano.

Ao lembrar de uma cena passada, o narrador fantasie e recria os fatos. Imprime,

como vimos, no rosto do enforcado de outrora o enforcado de agora. Modifica e

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reconstrói como bem quiser. A memória é enganosa, quando produzimos o esforço

voluntário de recuperá-la temos duas opções: preenchemos as lacunas e, com isso,

incorremos no erro de modificar a história, entregando-nos à mistura de ficção e não

ficção, ou optamos por deixar as lacunas, cabendo ao receptor preenchê-las como achar

melhor. Graciliano, como temos visto, opta por uma ou por outra em função daquilo que

se deseja narrar. A reflexão sobre a atitude do ficcionista está sempre impressa em seus

romances, na medida em que os seus narradores estão sempre refletindo sobre a atitude

de se pôr em escrita ou em narração:

Está aí uma história que narro com satisfação a Moisés. Ouve-me desatento. O que lhe interessa na minha terra é o sofrimento da

multidão, a tragédia periódica das secas. Procuro recordar-me dos

verões sertanejos, que duram anos. A lembrança chega misturada com episódios agarrados aqui e ali, em romances. Dificilmente poderia

distinguir a realidade da ficção. De resto a dor dos flagelados naquele

tempo não me fazia mossa. (...) Tento lembrar-me de uma dor humana. As leituras auxiliam-me, atiçam-me o sentimento. Mas a

verdade é que o pessoal da nossa casa sofria pouco. (Idem, p. 33-34)

A passagem mencionada faz-se importante porque, além de tratar das questões

em torno da ficção, também traz para frente de cena a mesma problemática em torno da

coisa observada e sentida. O narrador-personagem declara que, ao observar, está muito

mais preocupado com a dor humana por detrás dos personagens observados do que com

a realidade exterior e, com isso, em função do pouco contato que teve com o sofrimento,

não se sente capaz de relatar com verossimilhança aquilo que não vivenciou. Luís da

Silva passa, em sequência, para a análise dos caracteres de familiares próximos e, por

fim, finaliza sentenciando: "Dores só as minhas, mas estas vieram depois". (Op. Cit., p.

34)

Depois do relato, fica uma suspensão do acontecimento relatado sobre o seu

interior. Cabe ao leitor colher os estilhaços de memória e tentar colá-los, de forma que

um sentido coerente seja produzido numa relação de causa e efeito para os

acontecimentos em torno do narrador. Este parece procurar em tudo uma justificativa

para os próprios erros e perturbações, encontra em Julião Tavares diversos empecilhos

para a existência. Tudo nele, o rival, recebe os contornos disformes do corpo, tudo é

volumoso e expande-se inadequadamente, o que se torna um argumento cada vez mais

efetivo para o desejo de morte eminente:

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A voz oleosa de Julião Tavares continuava a perseguir-me. Era como se eu estivesse diante de um aparelho de rádio, ouvindo língua

estranha. Distanciava-me. As palavras gordas iam comigo. Umas

chegavam completas, outras alternavam-se - ruídos confusos e vogais indistintas. Necessário dar cabo daquela voz. Se o homem se casse, as

minhas apoquentações diminuiriam. (...) O que ficava era aquela

gordura que se derramava pelas paredes. Às vezes eu estava certo de

que Julião Tavares se tinha calado, mas a voz não deixava de perseguir-me. Mexia-me, tossia. E olhava com insistência o cano que

se estirava ao pé da parede como uma corda. (Op. Cit., p. 116)

Ao longo da narrativa, a obsessão revela-se pelo constante argumento

emocional, no qual o narrador procura convencer os interlocutores de que todo o

exterior planejava a morte de Julião Tavares, uma vítima inevitável. Como vimos, as

memórias se conectam de acordo com o preenchimento do leitor na tentativa de

colaborar com o narrador na construção de seu ato ficcional. Luís da Silva reconhece os

hiatos do próprio discurso, representados estilisticamente pelas frases justapostas:

Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas

insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As minhas

ações surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra pessoa. Penso nelas com indiferença. Certos atos aparecem

inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por onde

transitei perdem a nitidez. Tudo aquilo era uma confusão, em que

avultava a ideia de reaver Marina. (Op. Cit., p. 130-131)

No meio da aparente desordem da memória esfumaçada, o futuro do pretérito

mais uma vez reaparece como forma de projetar tudo aquilo que poderia ter sido, que

não foi e nem nunca será. O trecho abaixo é exemplar do desejo reprimido por Luís da

Silva:

Mão de esposo, união conjugal, intenções puras - Marina gosta disto.

Provavelmente iria recortar e guardar com cuidado a notícia que o jornal publicaria na sétima página, junto aos versos. Em pé, diante do

livro aberto, o juiz me perguntaria: - "O senhor Luís da Silva quer

casar com d. Marina Ramalho?" Eu, encabulado, mastigaria uma sílaba, esfregando as mãos. Marina, de roupa branca e flores de

laranjeira, afirmaria com a cabeça, pálida e comovida. O diretor me

diria: - "Entrou no rol dos homens sérios, seu Luís." D. Adélia

choraria abraçada à filha, como é de costume. Os sapatos me

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apertariam os calos, e o telegrama seria pouco mais ou menos assim:

"Felicitações ao prezado amigo." Automóveis da casa para a igreja e

da igreja para a casa. Haveria na minha sala alguns troços novos e inúteis. À noite, quando eu fosse procurar em minha mulher as últimas

novidades, ela me falaria com entusiasmo naquela glória toda. (Op.

Cit., p. 84)

O narrador-personagem de Angústia, assim como os outros, anseia e projeta

possibilidades. Presos ao passado fracassado, jamais conseguem viver a partir do

presente, estão sempre imaginando possibilidades que pudessem substituir os próprios

equívocos. A perspectiva é sempre do futuro em relação ao passado, o presente não

existe em função da eterna ansiedade. Com isso, o presente não se modifica e o futuro é

uma infindável consequência do fracasso, os personagens paralisam em função desses

desarranjos interiores. Luís da Silva não tinha vocação para assassino, imediatamente

depois do enforcamento de Julião Tavares tenta prever as consequências do passado

recente, entra em crise:

Os amigos de Julião Tavares iriam julgar-me. Pimentel e Moisés não eram jurados. Que diriam os jornais? De seu Evaristo não tinham dito

nada, dos homens que apareciam mortos nos caminhos não diziam

nada. Mas agora falariam muito. Quem foi? Por que foi? Pimentel escreveria artigos horríveis. Pus-me a discutir com Pimentel,

gesticulei, uma das mãos batei no corpo de Julião Tavares. Encolhi-

me, o suor aumentou na friagem da noite. José Baía, velho e manso, dormia na esteira de piriri, por baixo das

cortinas de pucumã. Seu Evaristo balançava, pendurado num galho de

carrapateira. (...) Cirilo de Engrácia, morto, em pé, amarrado a uma

árvore, parecia vivo. Os cabelos compridos, caídos para a frente, escureciam-lhe o rosto feroz. (Op. Cit., p. 240)

Já no final, quando chegamos enfim na morte já anunciada, o discurso do

narrador transita entre o passado recente e o passado remoto sem aviso-prévio. Em

função disso, misturam-se os tempos verbais e as noções de espaço. Se antes havia um

vazio entre uma cena e outra, entre a memória voluntária da infância e a memória da

cidade, já na fase adulta, que nos permitia a transição gradativa, agora os tempos se

misturam e apenas os personagens nos conectam com a realidade objetiva de seus

discursos. Como a mistura acontece a partir da confusão mental do narrador-

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personagem, ele toma posse da rememoração de tal forma que chega a trazer para a ação

física a ação que antes era apenas reflexo da ficcionalização psicológica. Observe que,

imaginando a ação de Pimentel, o narrador encoleriza-se tão fortemente que não se dá

conta de a realidade ser ficcional e emocional, gesticula para Pimentel e encontra o

corpo morto de Julião.

Angústia não possui divisão em capítulos, apenas divisões em fragmentos que

corroboram os hiatos. As divisões são feitas por uma pausa em reticências e o texto

segue imediatamente depois. Sendo assim, a última parte representada por essa

suspensão poderia ser o último capítulo ao qual Graciliano se refere - aquele construído

a partir da mistura de tempos verbais e que revela um discurso perturbado pelo delírio

e/ou pela transição entre a vigília e o sono.

Luís da Silva entrega-se mais intensamente à ansiedade, lavar as mãos de forma

compulsiva não apaga o sangue derramado, vive seu papel de Macbeth e desfigura a

realidade objetiva, está totalmente voltado para dentro de si. Sente-se criança,

acalentado pela mãe e, no momento seguinte, sente medo da presença ameaçadora de

Pimentel:

O som de uma vitrola coava-se nos meus ouvidos, acariciavam-me, e eu diminuía, embalado nos lençóis, que se transformavam numa rede.

Minha mãe me embalava cantando aquela cantiga sem palavras. A

cantiga morria e se avivava. Uma criancinha dormindo um sono curto, cheio de estremecimentos. Em alguns minutos a criança crescia,

ganhava cabelos brancos e rugas. Não era minha mãe a cantar: era

uma vitrola distante, tão distante que eu tinha a ilusão de que sobre o disco passeavam pernas de aranha. Um disco a rodar sem interrupção

a noite inteira. Não Estávamos na segunda parede, e eu subia a parede,

acompanhava a réstia como uma lagartixa. Marasmo de muitas horas,

solução de continuidade que se ia repetir. Cairia da parede, como uma lagartixa desprecatada, ficaria no chão, moído da queda. Quem teria

entrado no quarto durante a inconsciência prolongada? Moisés e

Pimentel teriam vindo? Seu Ivo teria vindo? (Op. Cit., p. 273)

Logo no início da passagem supracitada, podemos observar que o narrador

desloca-se de si mesmo narrando-se em terceira pessoa. Há um desdobramento da

própria imagem, na qual o personagem vivencia a sensação física e emocional bipartida,

Luís da Silva possui duas faces e se sente dois ao mesmo tempo, como dissera

Graciliano em entrevista. Estaria ele misturando a realidade objetiva à realidade

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subjetiva de acordo com a sensação pré-sono, estaria ele delirando, estaria ele

enlouquecendo?

Em Infância, o narrador-personagem se utiliza dos mesmos recursos ficcionais.

A memória binocular e a memória esfumaçada são constantes como técnicas narrativas

que denotam para o leitor as fragilidades do discurso memorialístico e, mais ainda,

documental. Se para Graciliano Ramos é fundamental partilhar com o leitor as nuances

psicológicas, esse romance será o maior reflexo das lacunas da memória. Juntamente

com isso, devemos lembrar que tudo faz parte de um arranjo narrativo, no qual falsear,

por vezes, o aparente esquecimento engrandece o fato e dá tons, por exemplo, de fatos

que merecem ser calados – na medida em que aumentam o impacto no receptor do

discurso.

As memórias dão saltos de um momento a outro, marcando um vazio existente

na lembrança. Em vez de produzir o efeito de completude, ao qual somos afeiçoados,

porque estamos sempre falseando a verdade como forma de produzir um sentido

unívoco para o nosso receptor, há uma tentativa de reproduzir o processo de

rememoração tal qual ele é em nossa mente:

De repente me senti longe, num fundo de casa, mas ignoro de que jeito me levaram para lá, quem me levou. Dois ou três vultos

desceram ao quintal, de terra vermelha molhada, alguém escorregou,

abriu no chão um risco profundo. Mandaram-me descer também. Resisti: o degrau que me separava do terreiro era alto demais para as

minhas pernas. Transportaram-me – e adormeci, não cheguei a pisar

no barro vermelho. (RAMOS, 2008, p. 11)

O sujeito indeterminado permanece, as pessoas reduzem-se a vultos e as

lembranças sobre a locomoção é totalmente apagada. Temos uma espécie de fumaça,

que inebria as referências, na medida em que também são dispensáveis para a narrativa

ora exposta. Por vezes, o tamanho do local também é inexato, em função do olhar da

criança sobre o espaço e sobre as pessoas:

O pátio, que se desdobrava diante do copiar, era imenso, julgo que não

me atreveria a percorrê-lo. O fim dele tocava o céu. Um dia,

entretanto, achei-me além do pátio, além do céu. Como cheguei ali não sei. Homens cavavam o chão, um buraco se abria, medonho,

precipício que me encolhia apavorado entre montanhas erguidas nas

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bordas. Para que estariam fazendo aquela toca profunda? Para que

estariam construindo aqueles montes que um pó envolvia como

fumaça? (Op. Cit., p. 14)

Mais uma vez ele deixa entrever um espaço no que diz respeito à transição de

um espaço a outro. A perspectiva da narrativa é pautada pelo campo de visão do menino

ainda pequeno e, diante da ansiedade, o futuro do pretérito aparece como forma de

prever as motivações daqueles que o menino observava. Em contraposição, em

momentos diversos, abre mão do recurso da fumaça para ampliar caracteres que lhes

convém de acordo com o objeto narrativo:

Meu pai dormia na rede armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores

longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo

com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele

consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e

isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha

mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai

encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras. (Op. Cit., p. 34)

O narrador parte da nebulosidade para a ampliação de aspectos que ressaltam o

tom autoritário e grosseiro do pai – uma característica que, sendo verdade ou não, cabe

bem àquele que foi adjetivado. Se não foi exatamente assim, é perfeitamente verossímil

de acordo com as noções sobre o pai que conhecemos desde o início do romance. Ao

fim da passagem, o futuro do pretérito aparece como jogo narrativo, no qual o narrador

tenta projetar uma maneira de se esquivar da realidade que o ameaçava.

Segundo Fernando Cristóvão, essa necessidade de comunicar o autor por detrás

do texto vem do fato de Graciliano preocupar-se com as noções de verossimilhança,

porque fornece um código entre autor e leitor que garante que a mensagem chegue

intacta em seu destinatário. No entanto, antes, parece-nos uma forma de reivindicar a

autoria e mostrar a fragilidade do discurso, da memória e, por fim, da verdade. No que

diz respeito a um romance baseado nas próprias vivências, questionar de forma incisiva

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o estatuto de ficcionalidade do texto, bem como já nos referimos extensamente em

outros momentos.

Verificamos, ainda, um esforço voluntário em se resgatar as mazelas da infância

sob vários aspectos e, juntamente, Graciliano Ramos concentra – e faz questão de

confessar – elementos que corroborem a imagem negativa do pai. Um pai que também

era materialista, tal qual o Paulo Honório. Dessa forma, media as qualidades de uma

pessoa ou situação em função daquilo que poderiam oferecer:

E meu pai, livre de leituras, livre de sentimentos belicosos, viu no

ministro uma glória incomparável. Esqueceu-o depois completamente,

deixou de aludir a qualquer espécie de bravura. Tinha imaginação fraca e era bastante incrédulo. Aborrecia os ateus, mas só acreditava

no contas-correntes e nas faturas. Desconfiava dos livros, que papel

aguenta muita lorota, e negou obstinadamente os aeroplanos. (Op.

Cit., p. 55)

A ojeriza à pequenez das relações capitalistas não é uma surpresa na obra de

Graciliano Ramos. As relações de desigualdade social em geral sempre o incomodaram

de forma ostensiva e será na prisão que reconhecerá o sentimento mais profícuo da

condição do ser humano, um laboratório perfeito para as noções de igualdade.

Ao escrever Memórias do Cárcere, apesar de trabalhar também com elementos

não ficcionais, Graciliano Ramos procurou desvencilhar-se do "pronomezinho irritante"

eu, trazendo para frente de cena personagens que tivera a oportunidade de conhecer,

concedendo-lhes um pouco do próprio sofrimento, sempre compartilhado na prisão:

Fiz o possível por entender aqueles homens, penetrar-lhes na alma,

sentir as suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos a sombra dos meus defeitos. Foram apenas bons

propósitos: devo ter-me revelado com frequência egoísta e mesquinho.

E esse desabrochar de sentimentos maus era a pior tortura que nos podiam infligir naquele ano terrível. (RAMOS, 2008, p. 15)

Apesar de o narrador-personagem identificar-se com o escritor, a perspectiva

sobre o objeto narrado se coloca de maneira similar aos outros romances. A estrutura

narrativa serve não só aos desarranjos do narrador, mas também oferece aos

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personagens observados os próprios sentimentos aos terem seus sofrimentos

observados. Graciliano Ramos perfaz o mesmo encaminhamento, no qual se coaduna

com a dor das almas que povoam a terra.

Enxergou no outro suas fragilidades e elegeu algumas para nos contar, não

desejando ultrapassar o seu "tamanho ordinário", declara: "Esgueirar-me-ei para os

cantos obscuros, fugirei às discussões, esconder-me-ei prudente por detrás dos que

merecem patentear-se." (Op. Cit., p. 16). E não é exatamente este o procedimento

tomado em todos os romances? Aquele que mistura ficção e não ficção?

No capítulo "Graciliano Ramos: sobre a literatura e o caráter de ficção", vimos

que o narrador amplia pequenas cenas e projeta os próprios pensamentos e sentimentos

em quem observa - constituindo então exemplos do que chamamos de memória

binocular. Se ele, por vezes, amplia cenas, também irá deixar lacunas quando considerar

conveniente. Ao longo do romance há um número infindável de espaços vazios ou de

memória esfumaçada, na qual o autor faz questão de denunciar as falhas da memória. O

discurso está sempre pondo em dúvida a autenticidade da fala, se de fato o

acontecimento teria sido como o narrado: "Interiormente achava-me tranquilo. Ou antes,

achava-me indiferente. Sumia-se até a curiosidade inicial. Que peça iriam pregar no dia

seguinte? Julgo que não perguntei isso". (Op. Cit., p. 33). Há uma mistura entre passado

e presente.

Diante de tantos desarranjos, a lacuna se desenvolve a partir do trauma. O

narrador não consegue precisar datas e acontecimentos:

Aquela viagem era uma dádiva imprevista. Estivera a desejá-la intensamente, considerando-a difícil, quase irrealizável, e alcançava-a

de repente. Sucedera-me um desastre, haviam pretendido causar-me

grande mal - o mal e o desastre ofereciam-me um princípio de

libertação. Os dois choques seguidos, desemprego e cadeia, e também os telegramas ofensivos eram úteis; perturbavam-me, embrulhavam

casos enfadonhos, obrigavam-me a um salto arriscado, e nessa

deslocação datas e fisionomias se toldavam de espessa névoa. (Op. Cit., p. 36)

Se a narrativa se detivesse a aspectos puramente autobiográficos, poderia saltar

aspectos pouco elementares como fisionomias dos personagens envolvidos ou, ainda,

simplesmente deixar de mencionar eventos não documentados. No entanto, ao se

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entregar aos devaneios ficcionais, o narrador diminui eventos e personagens pouco

importantes e aumenta o que lhe convém. Não existe uma relação direta de

comprometimento com a verdade, mas com a verossimilhança que, ao sabor dos

processos mentais, organiza a memória de acordo com as circunstâncias. Se a memória

flui com lacunas, o narrador verbaliza o fluxo em função da estrutura que se impõe.

Tudo na linguagem denota as vivências memorialísticas, envolta num véu que,

por vezes, é transparente e, em outras, é totalmente nebuloso. Está claro que, como

fazemos cotidianamente, o narrador poderia completar os espaços entre os estilhaços de

memória, no entanto, faz questão de notar a estética da memória:

Não sei onde lavei as mãos e o rosto, esqueci pormenores, ignoro se

havia água encanada ou lavatório com jarro. Uma mesinha, duas cadeiras, só.

Deitei-me, fiquei a virar-me e a revirar-me no lençol dobrado,

tentando em vão chamar o sono. Realmente não posso dizer se dormia ou velava: feriam-me os sentidos uma faixa alvacenta que me banhava

os travesseiros, o vulto indeciso do capitão, a mesinha, as cadeiras, a

sentinela encostada ao fuzil, no alpendre, nova sentinela a amofinar-se no serviço cacete; mas às vezes tudo se embrulhava, entre as visões

concretas esboçavam-se fantasmagorias - e era-me impossível saber

onde me achava, porque me estirava no colchão alheio, depois de

solavancos infinitos em estrado de ferro. (Op. Cit., 47-48)

No trecho acima verificamos uma oposição entre elementos muito delineados

em contraposição a outros que escoem de acordo com a visão e estado psicológico do

personagem, não só em função da distância dos fatos, mas também em função do campo

de visão no momento do acontecimento e, ainda, a partir do grau de consciência do

observador. Este parece estar justamente com a consciência comprometida em função

do estágio entre a vigília e o sono, como vimos nos romances já analisados. Poderíamos

citar uma infinidades de fragmentos nos quais a estética da memória se impõe pela

fumaça, seja por conta das lacunas do distanciamento seja em função do grau de

envolvimento consciente com o fato observado.

Diante desse esforço de rememoração, na busca dos resquícios de prisão

acumulados pela experiência até hoje inexplicável, o futuro do pretérito mais uma vez

aparecerá estruturando a projeção dos acontecimentos. Como Graciliano Ramos narra as

vivências na cadeia, na qual a memória involuntária é provocada pelo desejo de

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entender os motivos que o levaram até ali, o futuro do pretérito servirá de suporte como

tentativa de projetar atitudes diante de situações inesperadas - era preciso estar pronto

para tudo, em função do instinto de proteção. Sendo assim, a ansiedade toma conta dos

processos mentais do narrador-personagem, que passa os dias a arquitetar respostas para

as ações sutis que observava. Além disso, ficara doente, acreditou que o fim estaria

perto e lança-se em devaneios sem fim:

A alma fugia-me, na verdade, e inquietava-me adivinhar que a

resistência física ia abandonar-me também, de um momento para outro: jogar-me-ia sobre as tábuas sujas, acabar-me-ia aos poucos,

respirando amoníaco, envolto em pestilências. Algumas horas depois

atirar-me-iam na água o cadáver. (Op. Cit., p. 105)

O narrador-personagem começa a experimentar a sensação de

despersonalização, já mencionada, de forma cada vez mais intensa. Distante de si

mesmo, começa a, no limite da sobrevivência, não identificar nos próprios atos aquele

que fora um dia:

Uma dualidade, talvez efeito da cadeia, principiava a assustar-me: a voz e os gestos a divergir de sentimentos e ideias. Cá dentro, uma

confusão, borbulhar de água a ferver. Por fora, um sossego

involuntário, frieza, quase indiferença. A fala estranha me saía da garganta seca. (Op. Cit., p. 107)

Há neste tom narrativo algo muito similar ao experimentado por Paulo Honório

e Luís da Silva nos capítulos nos quais estão desorientados. Não sabemos se porque

estão entre a vigília e o sono ou se porque, com certa medida de loucura, estão

delirando. A expressão "desarranjo" também é frequente nesse romance, retoma sempre

o mesmo sentido de Angústia, que corrobora o emprego nesta tese:

Não me recordo. Também não sei como nos forneciam água. Lembro-

me de que ela se achava à entrada perto do camarote do padeiro, mas esqueci completamente se estava em balde ou ancoreta, se vinha de

encanamento. Afasto a última suposição, estou quase certo de que não

existia nenhuma torneira. Esta lacuna me revela o desarranjo interno,

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pois a sede era grande, estávamos sempre a beber. Findo o rumor das

colheres nas vasilhas de lata, arrastados os caixões, reingressei na vida

escura da furna, um espinho na consciência. (Op. Cit., p. 131)

Sobre o desarranjo, é interessante comentar que, logo em seguida, Graciliano

Ramos narra o processo de escritura, que vai ao sabor dos sentimentos na cadeia. Ao

fazer isso, reproduz um discurso muito parecido com o de Angústia, relata como se

sentia fora da prisão, ao passo que, logo em seguida, deixa entrever as ansiedades em

torno da escrita do romance de Luís da Silva. Uma mistura que, novamente, rompe os

limites entre ficção e não ficção:

A repartição, o despacho, o bonde, o horário, conversas bestas com

indivíduos que se mexiam como se fossem puxados a cordões. Ali me exibiam aspectos inéditos da sociedade. Avizinhei-me dos meus

troços, afastei a calça e o paletó, dobrados, cuidadosamente, abri a

valise, retirei o bloco de papel e um lápis, arrumei tudo de novo, sentei-me num caixão, pus-me a escrever à luz que vinha da escotilha.

Provavelmente fiquei horas a trabalhar, desordenadamente. Queria

atordoar-me, sem dúvida. As letras se acavalavam, miúdas, para

economizar espaço, e as entrelinhas eram tão exíguas que as emendas se tornavam difíceis. Realmente nem me lembrava de corrigir a prosa

capenga. Faltavam-me a certeza de poder um dia aproveitá-la. Os

guardas viam-me entregue a ela; quando mal me precatasse, viriam examiná-la, destruí-la; ou talvez eu mesmo a inutilizasse. À hora do

jantar não me foi preciso levantar-me, vencer a náusea a olhar as

ondas: continuei sentado, jogando na folha os desarranjos que me fervilhavam no espírito. (Op. Cit., p. 132)

Graciliano Ramos, aqui, entregue ao ato de escritura, relata a experiência com o

texto e a maneira com que empresta ao personagem o próprio desarranjo. É interessante

perceber a intencionalidade por trás do relato, no qual o autor faz questão de denotar a

relação da coisa observada e sentida com a construção do personagem.

A relação estabelecida entre a recuperação da memória e o projeto estético é

intensa. Sempre pautada por uma mistura indiscernível entre ficção e não ficção, cabe,

portanto, ao leitor arguto permitir-se envolver e observar de modo a alcançar uma parte

da teia de sentidos produzida por Graciliano nos (des)caminhos de sua obra completa.

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5. O caso Vidas Secas

Vidas Secas é o quarto romance de Graciliano Ramos, publicado em 1938. Um

romance constituído por contos esparsos, por vidas separadas pela ordem cronológica

de publicação e que se uniram em livro para contar a história da seca e da desigualdade

social no nordeste. Os capítulos são independentes e não se ligam pela ordem

cronológica, o romance é conhecido – representando a obra do autor como um todo -

pela quase ausência de adjetivos. Esta suposta ausência representaria a aridez do

ambiente e seus efeitos nos personagens.

É interessante observar o processo de escritura por meio das cartas que o autor

enviava aos seus tradutores argentinos. As cartas, apesar de algumas lacunas de tempo,

foram remetidas de 1935 a 1947 - um fator interessante, porque observamos o percurso

de escrita e reflexão de Graciliano Ramos sobre boa parte de sua obra. Vejamos,

portanto, de que forma o "interior desses animais" (2008, p. 59)26

foi se estruturando

individualmente, antes de conhecermos a versão final.

Quando Graciliano começa a enviar os contos que constituirão Vidas Secas,

Garay (um dos tradutores argentinos) já negociava com Raquel de Queiroz e Jorge

Amado a tradução de seus romances regionalistas. Além disso, já havia transformado

São Bernardo em Feudo Bárbaro, na publicação argentina. Vidas Secas, de acordo com

as cartas, parece ter nascido por encomenda. Em carta de 22 de abril de 1937, o autor

alagoano encontra-se numa situação difícil, acabara de ser liberto da prisão e precisava

arranjar meios de sobrevivência e sustento da família. Com isso, não consegue escrever

o que fora solicitado por Garay:

(...) Como não possuo bondes nem casas, lembrei-me de explorar um

hospital, um médico, enfermeiros e a doença que me ia matando anos

atrás. La Prensa quererá publicar isso, Garay? Não é precisamente o que

você pediu, coisa regional e pitoresca: é delírio, complicação interior.

As violências agradáveis a El Hogar e Mundo Argentino são difíceis,

não consigo fazê-las. Desgraçadamente, não sei matar ninguém direito, mesmo no papel, e isto é uma vergonha para um sujeito mais

ou menos perigoso. (2008, p. 45)

26

Expressão utilizada por Graciliano Ramos, ao se referir aos personagens de Vidas Secas, em carta de 8 de novembro de 1937 a Garay.

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Graciliano Ramos se refere ao conto "O relógio do Hospital", sobre o qual

falamos no capítulo anterior. O importante agora é guardar sobre Vidas Secas, o típico

romance da geração de 30, o fato de ter nascido sob encomenda. Um romance que não

traiu a estética literária do autor, muito pelo contrário, mas que nasceu nordestino mais

por indicação do que por vocação.27

Além disso, mais uma vez, verificamos a força da

coisa vivida e sentida na obra do autor aqui analisado. O primeiro conto escrito sob a

égide do regionalismo é um tanto curioso. De acordo com a reivindicação de Benjamín

de Garay, era preciso ser pitoresco e descritivo, compondo um cenário tipicamente

nordestino. Era preciso mostrar a realidade coletiva dos retirantes, a realidade social.

Para tal intento, de forma peculiar, começou-se por "Baleia":

Rio de Janeiro, 11 de maio de 1937.

(...) remeto-lhe outra história, um negócio de bicho, de alma de bicho.

Será que bicho tem alma? Deve ter qualquer coisa parecida com isso, qualquer coisa que dê para a gente receber um cheque. Tenha a

bondade de examinar essa questão psicológica e financeira, meu caro

Garay. Veja se a alma da minha cachorra vale alguns pesos aí numa

redação ou em sociedade protetora de animais (...). (2008, p. 49)

Rio de Janeiro, 13 de maio de 1937.

(...) Não sei se já lhe terá chegado um conto que mandei para El Hogar ou Mundo Argentino, uma história de cachorro. Seria

magnífico se você pudesse meter isso em La Prensa, mas

provavelmente esses senhores não gostam de bichos. A minha cachorra é um animal ordinário e cheio de peladuras. (...) (2008, 54)

Rio de Janeiro, 8 de novembro de 1937.

(...) Fiz como lhe prometi, umas histórias do Nordeste, com bichos e matutos: tentei mostrar o que se passa no interior desses animais. Caso

você ache conveniente, mandar-lhe-ei alguns, que, se não estiverem

muito ruins, poderemos introduzir no mercado, pouco a pouco, a fim de não espantarmos o consumidor. A propósito: julgo que você não

gostou da minha "Baleia". É pena, pois não tenho nada melhor que

essa cachorra. Quer ver os parentes dela? Se não quer, está acabado, não falemos mais nisso. (...) (2008, p. 59)

27 Sabemos que, antes de Vidas Secas, Caetés e São Bernardo já apresentavam hábitos provincianos e semifeudais, respectivamente, que caracterizavam a estrutura social nordestina. No entanto, Vidas Secas foi o romance responsável pela notoriedade do autor em relação aos problemas socioambientais do lugar. A partir disso, a seca tornou-se referência da obra do autor – não só como tema, mas também como elemento estrutural. Isto é exatamente o que motiva a discussão ora exposta.

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Para criar, o artista, inevitavelmente, busca a verossimilhança em experiências

vividas e compatíveis com a realidade. Mesmo num conto fantástico, é preciso utilizar

artifícios palpáveis para o leitor. Nenhum escritor irá negar isto. No entanto, é

interessante observar a importância que Graciliano atribui - ao se referir à própria obra e

a dos outros – ao fato de a escrita ter a necessidade de se valer de casos vividos,

observados e sentidos. Em 1944, oito anos antes de sua morte, Graciliano Ramos é

entrevistado por Ernesto Luiz Maia, para a Revista Renovação. O entrevistador quer

saber se o entrevistado acredita na existência de escritores populares no Brasil,

Graciliano é firme:

- Não acredito, não. Acho que as massas, as camadas populares, não

foram atingidas e que nossos escritores só alcançaram o pequeno burguês. (...) E do mesmo modo que não puderam penetrar no povo,

não podem dizer o motivo pelo qual não conseguiram isso. Somente

um inquérito entre o próprio povo poderia dizer dos motivos, e eis aí ótimo tema para a investigação. Talvez seja isso mesmo: talvez

porque um escritor não sente os problemas como o povo, este não o

deixe penetrar nele. - E o que diria o senhor sobre a questão de tema e tratamento? Eu me

explico: será o assunto que afasta o escritor da massa ou o êxito

depende muito mais do modo como foi escrito?

- Acho que não é o tema que tem a maior importância. A miséria, por exemplo, pode não dar a quem a trata a mesma impressão que naquele

que sofre.

- Nesse caso porque não foi tratada objetivamente... - Até pelo contrário. Objetivamente ela pode ter sido. O objeto, a

coisa, não está ali dentro do livro? Justamente o que desafinou foi a

parte subjetiva. E sem ela não pode haver obra alguma, porque qualquer um só pode escrever o que sente e não o que os outros estão

sentindo ou poderiam sentir. (RAMOS & MAIA, 2014, p. 140).

Ser popular significaria escrever sob o ponto de vista do povo. Sendo assim, o

autor reconhece que, mesmo colocando-se no lugar do outro, seria impossível

reproduzir aquilo que aflige e sente o outro. Objetivamente, o autor pode alcançar e

delinear aspectos gerais da realidade vivida, mas nunca alcançará a subjetividade dessa

gente. Apenas trará, como escritor, a sua própria comoção interior. Em artigo

denominado “Graciliano Ramos e a ‘coisa sentida e vivida’”, Alcmeno Bastos atenta

para tal sentimento de mundo, o autor de Memórias do Cárcere declara, sobre o

Moleque Ricardo, de José Lins do Rego:

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Que entenderia ele de meninos nascidos e criados na lama e na

miséria, ele filho de proprietários? Contudo, a narração tinha

verossimilhança. Eu seria incapaz de semelhante proeza: só me abalanço a expor a coisa observada e sentida. (RAMOS, apud, 2003,

p. 11).

Graciliano Ramos não reconhece a verossimilhança na simples objetividade de

descrições. Como vimos, o próprio Lins do Rego reconhece no amigo o primeiro caso,

da literatura brasileira, de um autor que não olha para fora de si. Se na obra do autor de

Moleque Ricardo verificamos uma riqueza de detalhes que nos transporta para o sertão

nordestino, em Vidas Secas apenas temos o impacto do sertão na subjetividade daqueles

personagens. A seca desvela-se pelos efeitos que a fome e a sede causam no corpo dos

personagens. Eles praticamente não falam, o leitor apenas recebe aquilo que Graciliano

pode sentir e observar. Não podendo emprestar vividas lembranças aos personagens

deste romance, o escritor procura impactar o leitor pelas sensações físicas de enjoo e

tontura, bem como pelo sentimento de empatia com a dor do outro que nos é imposta.

Quase não sabemos o que eles pensam e sentem, mas, no intuito de alcançar certa

intimidade com os flagelados, Graciliano se vale do discurso indireto livre. Dessa

forma, torna-se indiscernível a voz do narrador e o pensamento dos personagens28

.

Baleia, Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos se encontram no limite da

sobrevivência, o que também nos faz pensar sobre esse silêncio como uma forma de

demonstrar que, diante da vida que os castiga pela fome, não haja espaço para devaneios

e questionamentos da existência. Eles simplesmente sobrevivem. Graciliano Ramos não

sente a fome como o povo, mas se coaduna com a sua dor. Há, portanto, um perfeito

equilíbrio entre o observado e sentido pelo narrador, só é possível conceber a dor do

outro se sofremos juntamente, se nos foi provocado um desarranjo interior.

Ao contrário das longas descrições das paisagens em José Lins do Rego, todo o

sertão de Vidas Secas é modificado pelo interior dos personagens. Temos poucas

referências ao exterior e, quando aparece, será pautado pelas sensações físicas dos

28

Quando, por exemplo, identificamos em Sinhá Vitória pensamentos e sonhos em torno de festas de casamento e de vaquejada.

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viventes. A estreia de “Baleia” traz com vigor tal característica. “Baleia” reviveu a

partir das reminiscências de Graciliano Ramos:

Escrevi a história de um cachorro de meu avô. (...) os episódios foram-

se amontoando. O livro foi crescendo. E assim arrumei Vidas Secas, que pensei em chamar O mundo coberto de penas, título de um dos

capítulos do livro.” (RAMOS, Apud CRISTÓVÃO, 1986, p. XI)

De acordo com o dicionário Aurélio, a palavra “seco”, dentre outras, possui as

seguintes acepções:

Adj.: 1. Desprovido de umidade, ou de líquido, enxuto; (...) 2. Sem vegetação, árido; (...) Fig.: 10. De poucas palavras; sério; austero;

severo; (...) 11. Fig. Ríspido, rude; áspero. (...) 14. Fig. Sem rodeios;

direto; objetivo; (...) (HOLANDA, 1999, p. 1826)

Tais acepções da palavra fizeram-se necessárias para que repensemos a literatura

produzida por Graciliano, para pensarmos de que maneira a definição de secura se

adequaria aos seus romances. É indiscutível que nessa narrativa a aridez prevaleça

inclusive no vocabulário, mas, ao mesmo tempo, é interessante pensar sobre a grande

ocorrência de adjetivos, locuções adjetivas e predicativos do sujeito que elencam

características dos personagens e do ambiente que os cerca. A seca nos é apresentada

justamente por uma sequência de adjetivos que denotam a maneira como o ambiente

perpassa todas as células daquelas vidas perdidas pela fome.

Não se pretende aqui fazer uma análise aprofundada, no sentido de contabilizar

tais ocorrências porque não é o foco deste trabalho, apenas mostrar como – ao contrário

do que se firmou – os adjetivos são muito presentes e estão a serviço do que se pretende

narrar29

. Nenhum adjetivo é gratuito, como nada é gratuito na obra de Graciliano

Ramos. No entanto, busca trazer para frente de cena a subjetividade dos personagens,

uma subjetividade construída pelo exterior que a secura revela em seus corpos

desnutridos. Vejamos:

29 Regina Celia Pereira Werneck de Freitas, em tese intitulada A enunciação narrativa e a construção do Ethos de Paulo Honório, fez um estudo muito importante sobre a presença e a funcionalidade dos adjetivos na obra de Graciliano Ramos.

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- Primeira página: avermelhada, verdes, cansados, famintos, seco, pelados, rala, de

folha, sombrio, cambaio, de pederneira, velho, condenado.

- Segunda página: de ponta, acuado, indeciso, brancas, negro, altos, moribundos, grosso,

necessário, miúdo, de espinho, do rio, seca, rachada, atribulado, ruiva, suja, irresoluto,

guturais, frio.

- Terceira página: do mato, moles, finos, gutural, lenta, arrastada, grande, arqueada,

viventes, do rio, de comida, brilhantes, familiares, de folha, pequena, de rês, ossudos,

antigos, de casamento, áspero, furioso, apalhetados, ridícula.

Está claro sobre Vidas Secas o seu caráter de aspereza, não poderia ser diferente

perante a intencionalidade desta narrativa. Mas, ainda assim, é interessante observar que

a secura vem justamente marcada por uma série de adjetivos que coadunam o ambiente

com as modificações físicas e psíquicas dos personagens. Também não há uma

economia vocabular, o que bem podemos averiguar com o trabalho de José Carlos

Azeredo.30

Em que consistiria a objetividade se até mesmo a cachorra Baleia, no limiar

da morte, experimenta sensações emocionais e físicas as quais temos acesso?

Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia

não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem

percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros

de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas

afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do

caritó onde sinhá Vitória guardava o cachimbo. (...) Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a

língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O

estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.

Provavelmente estava na cozinha, entre pedras que serviam de trempe.

Antes de se deitar, sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava

um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas,

a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e

saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha. (RAMOS, 2008, p. 90-91)

30 Ver o trabalho extenso produzido por José Carlos Azeredo, no qual o autor faz um apanhado do léxico regionalista em Vidas Secas. O léxico regional em Vidas Secas: subsídios para um dicionário da ficção de Graciliano Ramos. Dissertação defendida na UERJ.

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Graciliano diz que não consegue escrever sem sair de si mesmo. Sendo assim,

apesar de não utilizar o discurso memorialista em Vidas Secas, porque não viveu, não

consegue entrar na cabeça dos personagens, sugere os sentimentos a partir do

observado. Não utiliza narrador-personagem, mas ainda assim utiliza o discurso indireto

livre como forma evidenciar os processos mentais dos personagens.

O discurso indireto livre tem como característica primordial misturar os

acontecimentos narrados com a fala direta dos personagens. Com isso, não conseguimos

discernir quem é o narrador e quem é o personagem. Aparentemente, temos um discurso

produzido em terceira pessoa narrativa, mas, na verdade, estamos diante de um

monólogo interior, no qual o narrador cede espaço para os sentimentos e pensamentos

dos personagens. Na época em que Graciliano Ramos utilizou tal recurso, ele ainda não

era muito explorado pelos escritores brasileiros, recurso estilístico muito mais utilizado

pelos escritores atuais.

Édouard Dujardin, escritor francês que lançou a técnica ainda em 1887, afirma

sobre o monólogo interior:

(...) o monólogo interior, como qualquer monólogo, é um discurso da

personagem posta em cena e tem como objetivos introduzir-nos

diretamente na vida interior dessa personagem sem que o autor intervenha com explicações ou comentários, e, como qualquer

monólogo, é um discurso sem auditor e um discurso não pronunciado;

mas diferencia-se do monólogo tradicional pelo seguinte: quanto a sua matéria, é uma expressão do pensamento mais íntimo, mais próximo

do inconsciente; (...) (In.: AGUIAR E SILVA, 1976, p. 63)

O fragmento citado do capítulo “Baleia” encena o monólogo interior da

cachorra. Um exemplo extremo do processo de rememoração, no qual Graciliano como

escritor fornece a um animal, antes de morrer, um fluxo de pensamentos sobre o seu

cotidiano. A cachorra fantasia, pelos seus olhos, passa uma série de imagens com as

quais já estava acostumada a lidar no dia a dia com aquela família de retirantes. Esse,

com certeza, será o primeiro caso de monólogo interior de um animal. Com isso,

Graciliano empresta elementos de si mesmo à Baleia, na medida em que jamais

saberíamos como se estruturam as sensações de uma cachorra antes de morrer – apesar

disso, o fluxo partiu da coisa observada e sentida em suas próprias memórias da

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cachorra do avô. Há um abandono da realidade objetiva, até mesmo da realidade da

seca, a favor das sensações provocadas naqueles que a sofrem.

Ainda antes de morrer, a cachorra baleia se entrega aos delírios de tudo aquilo

que poderia ter sido e que não foi, sonha com preás, num mundo em que tudo podia

seria diferente:

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E

lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num

chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos,

enormes. (RAMOS, 2008, p. 91)

O futuro do pretérito aparece também aqui como forma de elucidar a ansiedade

da cachorra por um mundo diferente, no qual, mesmo antes da morte, a esperança é

imperiosa. De cá, imaginamos uma morte triste, mas sem sofrimento, na medida em que

a cachorro é sobressaltada por sonhos graciosos.

A análise de toda a obra graciliânica é produzida pela perspectiva regionalista de

Vidas Secas. Uma característica, na verdade, que podemos identificar neste romance

muito mais por ambientação, se pensarmos que a grande temática está no desarranjo

interior dos personagens, na maneira como a seca se deposita dentro deles e reflete em

seus sentimentos. Podemos, então, assumir que, por a seca invadir os personagens até

mesmo por adjetivos constantes, que o romance corresponde aos conceitos dos

romances da geração de trinta, no entanto, pudemos observar que tais características se

restringem a este romance.

Em Infância, por ser ambientado nas terras nordestinas por onde o escritor

alagoano passou, também verificamos um exterior pouco descrito, mas que nos remete a

ideia de regionalismo. Apesar disso, devemos ter em mente que a infância malograda

está totalmente voltada para o caráter opressor que a criança ocupa, em diferentes

níveis. Uma infância na qual a coação, até mesmo pela época em que fora produzida,

poderia muito bem ser identificada em outras regiões do país.

Não esperamos a partir deste último esboço de leitura defender a inautenticidade

do regionalismo em Graciliano Ramos, mas apontar, partindo de toda a análise exposta

neste trabalho, para um ranço teórico que, em muito, reduz a obra do escritor em

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análise. Quando, na verdade, a opressão sofrida pelo ser humano é fundamento muito

maior para seus questionamentos existenciais e estéticos e, ainda, engrandece a obra

completa atribuindo-lhe o estatuto de universalidade.

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6. Considerações Finais

Graciliano Ramos não ama a natureza que o cerca, seus personagens estão

sozinhos e voltados para dentro de si. Se quisermos conhecer o escritor Graciliano

Ramos devemos olhar para os vários eus que ele criou e ver o modo particular que cada

um encontrou de problematizar a vida. O autor alagoano, em função de uma leva de

escritores surgidos na década de 1930, ficou conhecido pelo aspecto regionalista – na

medida em que a linguagem produzida nos romances caracteriza o vocabulário do

sertão. Além disso, podemos concordar, em parte, com Antonio Candido sobre os

nordestinos terem sido “beneficiários da libertação operada pelos modernistas, que

acarretava a depuração antioratória da linguagem, com a busca de uma simplificação

crescente e dos torneios coloquiais que rompem o tipo anterior de artificialismo.”.

(CANDIDO, 2003, p. 186)

Devemos concordar em parte porque, além de Graciliano Ramos não ter assistido

e participado da Semana de 1922, o autor diferenciava-se dos outros escritores da

Geração de trinta justamente por não se voltar para a natureza. Em sua obra completa, o

nordeste é retratado pelos reflexos que causa nos personagens. O único romance que

ainda toca um pouco mais no exterior é o Caetés, se observamos a leitura dos costumes

provincianos relatados por João Valério. No entanto, ainda assim, todos os costumes são

reconfigurados quando o autor ficcional opta por relacionar os hábitos dos personagens

às necessidades primitivas do Homem.

Ao escrever suas narrativas, Graciliano Ramos queria mostrar a infelicidade do

ser humano. Com isso, atribuía a cada um deles o desarranjo interior que lhes cabia –

sempre, de acordo com suas declarações, emprestando-lhes os próprios desconfortos da

alma. A memória involuntária acontece em função desse desconforto, causado por um

passado mal resolvido que insiste em invadir o presente. Uma lembrança obsessiva que

perpetua a dor daqueles que a vivenciam. É interessante observarmos que a lembrança

perturbadora na obra de Graciliano acontece a partir de um som, seja ela do sapo ou da

coruja. Se em Proust o sabor desperta boas lembranças do passado, em Ramos o som

desperta más lembranças – que insistem em ser reinventadas. Situações

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reexperimentadas também condicionam os personagens a verdadeiras torturas físicas,

porque o inconsciente retoma toda a sensação negativa anterior.

Com isso, a memória voluntária acontece diante da necessidade de recuperar a

lembrança perdida, uma forma de tentar entender o passado malogrado e que, jamais

será recuperado por completo. Observamos ainda que, estruturalmente, Graciliano

Ramos criou um modo peculiar de entregar ao leitor as sensações mentais dos

narradores-personagens, as quais convencionamos chamar de memória esfumaçada e

binocular. Estas reproduzem as lacunas deixadas pelo processo de rememoração, além

de denotar o manuseio do discurso produzido pelo autor do texto.

A obra de Graciliano Ramos é constituída por uma mistura indiscernível entre

ficção e não ficção, justamente por a questão da verossimilhança ser um dos aspectos

mais relevantes para o autor na produção da literatura. A abordagem em torno do

conceito aristotélico acontece pelos sentimentos e não pelos acontecimentos. O escritor

alagoano busca fornecer ao máximo os próprios anseios aos personagens a partir da

coisa observada e sentida, criando em seus interiores sentimentos que os alimentem e os

autentiquem como seres humanos.

Apesar de a conclusão ser sempre difícil, porque estamos sempre fadados às

próprias lacunas, deixadas ao longo do nosso discurso, esperamos ter contribuído de

alguma maneira com a bibliografia sobre a obra do autor, entendendo que essas lacunas

são inevitáveis, porém sempre necessárias para que outras abordagens e ficcionalizações

se iniciem.

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181

9. Anexo I

Perguntas a Silviano Santiago

O conceito de Literatura se modificou ao longo de centenas e centenas de anos e,

ainda hoje, gera muita confusão diante da necessidade de classificar aquilo que pertence

ou não a tal gênero artístico. A minha tese se chama “Graciliano Ramos: o desarranjo

interior e a estética da memória” e constrói uma análise de Caetés, São Bernardo,

Angústia, Vidas Secas, Infância e Memórias do Cárcere considerando-os romances

movidos por uma mistura indiscernível de ficção e não ficção. Tal consideração parte da

leitura das próprias reflexões do autor Graciliano Ramos, seja em metalinguagem, seja

em crônicas produzidas em jornais, nas quais ele procura colocar os processos mentais e

de rememoração como características essenciais da Literatura. “Desarranjo interior” é

uma expressão retirada de Angústia e que representa bem, a meu ver, o projeto literário

de Graciliano Ramos. O escritor alagoano disse aos tradutores argentinos que não

possuía biografia, mas se quisessem poderia contar umas histórias; condenou o romance

Suor, de Jorge Amado, por se aproximar da reportagem e por possuir personagens muito

didáticos e pouco verossímeis; reclamou exaustivamente do romance Porão, de Newton

Freitas, porque se entregou à reportagem e esqueceu-se de mostrar os personagens por

dentro – talvez por ser honesto demais -, logo não é ficcionista; disse, ainda, que Zé

Lins do Rego não escrevia a partir da “coisa observada e sentida”. Diante desta

perspectiva, vejo Em Liberdade (seu segundo romance) uma continuação de Memórias

do Cárcere não só pelo tema, mas também pelo questionamento teórico ali implícito. O

que seria um marco inicial em seu projeto autoficcional. Há ali embutido um

questionamento próprio do falso mentiroso: o senhor poderia ter optado por construir

um romance histórico, com um narrador-observador, no qual Graciliano Ramos se

portaria como simples personagem, com falas eventuais. Entretanto, ousadamente,

lançou-se à aventura de dar voz a um narrador-personagem, tal qual o de Memórias do

Cárcere. Seria o Graciliano Ramos de Em Liberdade puramente ficcional? Estamos

diante de um Graciliano Ramos que fala tal qual Silviano Santiago o observou e sentiu.

Seria ele menos verossímil?

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182

O senhor acha que poderíamos pensar em Graciliano Ramos como o

primeiro escritor brasileiro a elaborar um romance a partir da sua perspectiva de

autoficção?

O adjetivo “sua” que antecede perspectiva fala bem da ambiguidade que você

está trabalhando. O adjetivo se refere à perpectiva dele, Graciliano, ou à minha,

Silviano, ou ainda à da figura híbrida que a que Nelson Motta deu o nome de

Gracilviano? Veja você que um dos problemas que Em liberdade coloca é o da posse da

vida. Quem tem a posse da vida de um escritor? Seria ele próprio? Seria só ele

próprio? Ou seria ele e mais o seu leitor? Ou seria, ainda, ele mais o seu leitor e mais

quem – num gesto ousado – ousa usar a primeira pessoa dele, ousa valer-se da escrita

e do estilo dele, ou seja, do outro Graciliano (evito agora, de propósito, a ambiguidade

do adjetivo possessivo). Faço as perguntas não com a intenção de conduzir você,

Carina, a desprezar isto a que se chama de biografia para levá-la a um

comprometimento com a ficção como forma absoluta de posse da vida própria e alheia.

Faço as perguntas com o interesse de prolongar a discussão que você levanta nas

palavras que introduzem a pergunta que me faz. Acabei de ler, com outro propósito, a

fala de Sartre sobre o projeto L’idiot de la famille em que retraça a grafia-de-vida

(criei o neologismo propositdamente, claro) de Gustave Flaubert. Diz ele que – a

citação é um tanto longa, mas vale a pena : “Un écrivain est toujours un homme qui a

plus ou moins choisi l’imaginaire: il lui faut une certaine dose de fiction. Pour ma part,

je la trouve dans mon travail sur Flaubert, qu’on peut d’ailleurs considérer comme un

roman. Je souhaite même que les gens disent que c’est un vrai roman. J’essaie, dans ce

livre, d’atteindre un certain niveau de compréhension de Flaubert au moyen

d’hypothèses”. Repare que tanto Graciliano quanto eu somos escritores e optamos pelo

imaginário. Nos é necessária certa dose de ficção. Sartre a encontrou no seu trabalho

sobre Flaubert, eu a encontrei no meu trabalho sobre Graciliano, onde tento alcançar

certo nível de compreensão do alagoano através de hipóteses. A posse de uma vida

pelas hipóteses formuladas por outro pode não dar um romance verdadeiro, mas é

certamente um verdadeiro romance. O jogo com o lugar ocupado pelo adjetivo

verdadeiro é perfeito no raciocínio de Sartre, e acredito no propósito que me levou a

escrever Em liberdade, Viagem ao México e tanto outros. São verdadeiros romances e

não romances verdadeiros.

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183

O senhor já disse que o projeto autoficcional veio em função de uma infância

malograda e sofrida pela perda da mãe. Criava então personagens de si mesmo como

forma de enaltecer o que era ou o que tentava ser. São imagens que se conectam a partir

da memória e da maneira como se enxerga em determinado momento da vida. Em Mil

Rosas Roubadas nós, leitores, nos aproximamos de Zeca e nos sentimos íntimos.

Sentimento produzido pelo discurso memorialista, no qual o biógrafo serve também aos

próprios desejos ficcionais. E, parafraseando Graciliano Ramos em Memórias do

Cárcere, se algumas memórias valem pouco, outras crescem, associam-se e é inevitável

mencioná-las. Não são memórias exatas, mas estariam mentindo?

Acredito que, para o senhor, também seja fundamental escrever a partir da

“coisa observada e sentida”. Estou enganada? Viria daí o esforço em apresentar

em Heranças, por exemplo, cinco versões para o mesmo acontecimento?

Não sei se é fundamental (retomo a palavra sua) escrever a partir da coisa

observada e sentida. O relato da coisa observada e sentida faz parte da prosa do

imaginário, do jogo ficcional, assim como as hipóteses sobre a coisa observada e

sentida. É uma das vozes, por assim dizer, numa polifonia. A questão que você coloca

tem certa trajetória na história da retórica da ficção. Evidentemente, nossa atitude,

hoje, é posterior à estética realista-naturalista e possivelmente tenha originado no

momento em que Henry James chama a atenção, nos prefácios dos seus romances, para

a questão do ponto de vista. Repare que até então só se falava do narrador, ou seja, da

primeira e da terceira pessoa. Narrador objetivo ou narrador subjetivo. De repente, é o

modo como alguém assume um ponto de vista para narrar/descrever uma situação

dramática que é fundamental. O ponto de vista entra em choque – ao nível da própria

narrativa e não no conflito entre narrador e personagem – com outros pontos de vistas.

De imediato, a visão (narativa/descrição) da realidade dramatizada na ficção não é

una; pode e deve ser plurívoca. Os desencontros entre um ponto de vista e outro estão

no cerne e representam a grande originalidade, na prosa norte-americana, dos

romances de William Faulkner (por exemplo, The sound of fury), e no cinema

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universal, do filme Rashomon, de Akira Kurosawa. Estou falando, obviamente, da

história da questão que você coloca. Atualizá-la nos leva a considerar, por exemplo, o

novo romance de Alain Robbe-Grillet, La Jalousie, onde a cena da centopeia que é

esmagada na parede é repetida obsessivamente, ou ainda o romance meu a que você se

refere, Heranças. Acho que são vários os achados narrativos que enriquecem a retórica

da ficção e nos aproximam muito mais da realidade que o mero relato realista-

naturalista. Mas isso, claro, é matéria explosiva. E se eu a expresso com certa candura

é porque tenho minha própria perspectiva do que seja a criação ficcional.

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10. Anexo II

Uma história de Raimundo: o entrelugar e o insólito em A terra dos

meninos pelados

Movidos pela tinta pesada e habituados ao exercício estético denso presente na

obra de Graciliano Ramos, muitos críticos têm deixado à margem A terra dos meninos

pelados por, de acordo com suas visões, se tratar de uma obra menor - fadada ao

conceito de Literatura Infanto-juvenil. Uma narrativa menor somente no tamanho, se

pensarmos na sua estrutura novelesca. De forma ampla, podemos dizer que o livro conta

a história de Raimundo: um menino que sofre preconceito em sua cidade por ter um

olho preto e outro azul e, ainda, por possuir a cabeça pelada. Triste, resolve desbravar

outras terras nas quais poderia ser aceito - caminhos imaginários ou reais?

Já que estamos falando de alteridade, insólito e literatura, esta comunicação

pretende trazer à cena um livro individualizado por estar fora - digamos assim - da

coletividade impecável que é a obra de Graciliano. Mostrar como os traços estético-

narrativos, que marcaram os romances do autor, se fundem a problematização da

alteridade e do insólito, presentes em toda gênese do gênero narrativo. Tendo em vista o

fato de que a presença do outro sempre constituirá a diferença, pensar, ainda, o

entrelugar como uma opção quase imperativa daqueles que se tornam personagens de

ambos os lados - como Raimundo, nessa sensível história de todos e de ninguém.

Um nome comum que parece servir de metáfora para o mundo inteiro. A

primeira página já anuncia:

Havia um menino diferente dos outros meninos. Tinha o olho direito

preto, o esquerdo azul e a cabeça pelada. Os vizinhos mangavam dele

e gritavam:

- Ó pelado!

Tanto gritaram que ele se acostumou, achou o apelido certo, deu para assinar a carvão, nas paredes: Dr. Raimundo Pelado. Era de bom gênio

e não se zangava; mas os garotos dos arredores fugiam ao vê-lo,

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escondiam-se por detrás das árvores da rua, mudavam a voz e

perguntavam que fim tinhas levado os cabelos dele. Raimundo

entristecia e fechava o olho direito. Quando o aperreavam demais, aborrecia-se, fechava o olho esquerdo. E a cara ficava toda escura.

Não tendo com quem entender-se, Raimundo Pelado falava só, e os

outros pensavam que ele estava malucando.

Estava nada! Conversava sozinho e desenhava na calçada coisas

maravilhosas do país de Tatipirun, onde não há cabelos e as pessoas têm um olho preto e outro azul. (RAMOS, 2002, p. 7-8)

É interessante observar a relação que o autor estabelece entre os olhos e o estado

de espírito de Raimundo. Ele entristecia e fechava o olho preto e quando o aperreavam

mais ainda, acabava fechando o azul e escurecendo de vez. O ato de se fechar para o

mundo exterior transporta o menino para o mundo de Tatipirun – seria este um mundo

particular, que só existe em seu interior, ou uma agradável fantasia que se tornaria

realidade?

O personagem está no limite entre a vigília e o sonho. O ato de fechar ou abrir os

olhos o colocará sutilmente entre dois mundos – que, no que diz respeito à

informação narrativa, não podemos afirmar se são reais ou imaginários. Segundo

Alcmeno Bastos, em ensaio denominado “Os realismos irrealistas na literatura

brasileira contemporânea”:

A defesa de que existe uma verossimilhança interna disfarça, atenua o

imperialismo da verossimilhança externa. Mas é inaceitável a ideia de

um mundo inteiramente regido por leis irreconhecíveis pela

experiência compartilhada dos homens de carne e osso; esse mundo é impossível. Na verdade, essas leis nos são familiares. Ainda que nos

pareçam invertidas, deslocadas, etc. (...) O que fazemos, no intuito

generoso de supostamente “desobrigar” a narrativa ficcional de construir mundos regidos pelas mesmas leis do nosso, é atribuir-lhe

um direito que já é seu, inerente à sua natureza de ficção, isto é, de

fingimento, invenção. (BASTOS, p. 2131

)

31 Texto inédito.

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A reflexão de Bastos salta-nos aos olhos sob dois pontos de vista.

Primeiramente, reconhecendo a velha história da metamorfose de Kafka, em que Gregor

se transforma em uma barata e recebemos todas as suas reflexões e sensações sobre a

atual condição. Para ser uma barata de verdade o personagem não deveria falar na

língua do inseto? Mas aí teríamos um impasse: a comunicação com o mundo exterior

não aconteceria.

Num segundo momento, reconhecendo o caráter inerente à literatura, ser

ficcional. Sabemos que, apesar de raro, existem casos em que a alternância de cores dos

olhos acontece. Assim como muitas outras condições físicas, psicológicas e patológicas

se destacam dentro de uma lógica centrada e correta aos olhos daqueles que ocupam a

ordem natural das coisas: no que diz respeito ao padrão estético e social ao qual estamos

acostumados. Graciliano Ramos parece querer tocar justamente neste ponto-gatilho

sobre o qual o ser humano sente um verdadeiro prazer mórbido de catucar.

Sendo assim, a infância dá o tom certo, na medida em que, nessa fase, estamos

mais atentos à desordem e menos afeiçoados a compreensão daquilo que se opõe.

Estamos, poderíamos dizer, mais próximos do selvagem caeté que ainda vive em nós –

para usar a reflexão do autor, no último capítulo de seu primeiro romance.

Diante do impacto da diferença, Raimundo procura outro mundo onde talvez

encontre seus semelhantes. Ao desbravar novos caminhos, ele abrirá uma nova porta,

não só para si mesmo, mas também para o leitor. Somos lançados num país em que ser

igual ao menino, fisicamente, é o comum e, por um breve instante, nós somos

diferentes. Apesar disso, o pacto entre narrador e leitor se mantém, e transitamos entre o

real e o imaginário – pura ficção.

A terra dos meninos pelados representa não só a narrativa ficcional de

Graciliano Ramos, temos também em mãos uma terra de Raimundo, na qual a ponte

indiscernível entre real e imaginário (ou insólito) acontece cada vez que os olhos do

menino se fecham32

:

32

Quando fecha os olhos participamos de sua realidade subjetiva, pautada pelo desarranjo interior do menino, que o move para um mundo de aceitação – aquele que ele alcança no interior de si mesmo.

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Encolheu-se e fechou o olho direito. Em seguida, foi fechando o olho

esquerdo, não enxergou mais a rua. As vozes dos moleques

desapareceram, só se ouvia a cantiga das cigarras. Afinal as cigarras se calaram. (Idem, p. 10)

Este fragmento, logo no segundo capítulo, nos indica, mais uma vez, o caminho

de Raimundo para a terra maravilhosa. Não muito diferente da parte que já havia

mencionado. Recurso muito recorrente na obra de Graciliano e do qual ele não abre mão

para perspectivar as atitudes corporais do menino. Frequentemente, os personagens da

obra do autor tem sua psicologia revelada por meio dos gestos ou falas, uma das

grandes facetas de Graciliano. Nesse trecho podemos ainda, por meio da estrutura

narrativa, acompanhar a movimentação do personagem que se distancia do local onde

estava. Um movimento real ou imaginário que revela uma estrutura estilística chamada

por Ronaldes de Melo e Souza de refletorização – nós, leitores, recebemos a mesma

perspectiva dos sentidos de Raimundo (neste caso, a audição). Um recurso interessante,

porque numa atitude ficcional somos envolvidos pela história a ser narrada, seja ela

insólita ou não.

Seguindo a lógica de Victor Bravo, fundamentalmente, estamos diante de uma

narrativa que subverte uma ordem lógica e que encena outra realidade, com a qual não

estamos acostumados fora do mundo ficcional. Segundo o crítico, há condições em que

o medo parece brotar da condição mais frágil do ser humano. Parafraseando Bravo33

, no

seu “O medo e a Literatura”, o medo se encontra na raiz da condição humana porque é o

primeiro reconhecimento da consciência de desamparo e da morte – e podemos pensar

nesta morte não só como física, mas também emocional no que diz respeito à relação

com o mundo. Dessa forma, o homem não consegue viver sem uma segundo ordem, que

lhes dê sossego e novos horizontes. Partindo disso, podemos chegar à conclusão de que

a Literatura ou, mais precisamente, a ficção estabelece uma nova perspectiva também

com o mundo exterior.

Raimundo segue o caminho para o país de Tatipirun:

33 In: El miedo y la literatura. file:///D:/Downloads/23006-23025-1-PB.PDF

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Sentiu uma grande surpresa ao notar que Tatipirun ficava ali perto de

casa. Foi andando na ladeira, mas não precisava subir: enquanto

caminhava, o monte ia baixando, baixando, aplanava-se como uma folha de papel. E o caminho, cheio de curvas, estirava-se como uma

linha. Depois que ele passava, a ladeira tornava a empinar-se e a

estrada se enchia de voltas novamente. (p. 11)

Uma terra que desde o início queria se adequar às necessidades de Raimundo.

Sempre flexível e receptiva. Nem mesmo a laranjeira tinha espinhos, porque não se quer

machucar ninguém. O menino fez uma longa caminhada até encontrar o rio das Sete

Cabeças, onde finalmente encontrou uma população idêntica a ele. Todos os meninos

tinham cabeça pelada e um olho preto e outro azul. Ficou com medo e experimentou

aquela ansiedade que bem conhecia, a de ser aceito. Até que fez amizade, cantou

cantigas de roda, brincou. Um país que acomodava toda sorte de imprevistos e acolhia

todas as diferenças e nisto era literal. O intuito transfigura-se em realidade, passeia pelo

mundo da fantasia:

Raimundo levantou-se trombudo e saiu às pressas, tão encabulado que

não se enxergou o rio. Ia caindo dentro dele, mas as duas margens se

aproximaram, a água desapareceu, e o menino com um passo chegou

ao outro lado, onde se escondeu por detrás dum tronco. A terra se abriu de novo, a correnteza tornou a aparecer, fazendo um barulho

grande. (p. 20)

Se deixarmos de lado a natureza intrínseca da literatura de ser ficcional, como já

mencionado e, portanto, por si só representar um mundo outro, veremos que, além

disso, está a importância da fala do texto de Todorov sobre a Literatura Fantástica, isto

porque a figura do leitor deve ser considerada fundamentalmente para se refletir os

meandros da estética empreendida. Caso contrário, teríamos de fato que concordar com

uma língua de barata em A metamorfose – a obra ficaria perfeita e valeria nela mesma.

A figura do leitor não está somente centrada aí, mas também naquele pacto

estabelecido entre escritor e receptor, que bem conhecemos desde a estética da recepção

– estudo importantíssimo que trouxe uma nova dimensão para os estudos do discurso

literário e destacou a incomunicabilidade entre intenção do autor e recepção do leitor.

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Mas por que falar disso? Porque aceitamos muito bem rios flexíveis na terra de

Tatipirun, ao passo que nos causaria estranhamento Paulo Honório sendo, por exemplo,

cuspido, literalmente, das suas terras de São Bernardo.

Partindo disso, devemos pensar o sentido de incomum dentro da própria

narrativa, no impacto causado sobre o leitor. Quantas vezes não nos deparamos no dia a

dia com situações potencialmente insólitas e inacreditáveis? Então num desenho

animado o carro passa por cima do animal, ele é massacrado e sai andando sem

arranhões? Não foi exatamente o que aconteceu com uma senhora, relato que ocupou a

imprensa pelo seu caráter de maravilhoso?34

E se o carro tivesse se tornado flexível para

não machucar a senhora, tal qual aconteceu com o Raimundo de A terra dos meninos

pelados?

Raimundo começa a perceber que na terra de Tatipirun nada muda e o dia não

termina. O sol permanece o mesmo, nem manhã, nem tarde, nem noite. Sempre “uma

temperatura amena, invariável.” (p. 40). Ele começa a questionar a ordem daquele lugar.

Está cansado e deseja voltar, lembra também que precisa terminar as tarefas de

geografia. “Aqui nós nunca voltamos” – responde um menino. Raimundo começa a

ficar cheio de perguntas, estava confuso:

Talima encolheu os ombros:

- Ele veio de Cambacará cheio de ideias extravagantes.

- Perguntas insuportáveis, acrescentou Sira.

Raimundo observou os quatro cantos, não viu nenhuma construção.

- Está bem, não teimamos. Vocês dormem no mato, como

bichos. (...) Raimundo abriu a boca e deu uma pancada na testa:

- Que lugar! Não faz calor nem frio, não há noite, não chove, os paus

conversam. Isto é um fim do mundo.

Enfim, o senso da natureza e dos costumes de sua terra fez com que, aos poucos,

fosse desprezando a terra antes ideal. O menino já não se sentia tão à vontade. Foi

34

No decorrer da obra completa de Graciliano Ramos, ele menciona constantemente a flexibilidade da verossimilhança, dependendo da forma estilística produzida pelo escritor por detrás do texto.

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descobrindo que os meninos pelados também tinham diferenças, havia um com sardas,

por exemplo, que tinha como projeto fazer com que todos tivessem sardas – porque se

sentia feio. E não era o mesmo projeto de Raimundo? O menino sardento diz que seria

mais certo serem todos iguais. “Raimundo parou sob um disco de eletrola, recordou os

garotos que mangavam dele”. (p. 45)

A todo instante a lembrança de que devia fazer o trabalho de geografia lhe

surgia, como o pio da coruja em São Bernardo. Um pensamento obsessivo que ao

mesmo tempo estabelecia a conexão com a realidade ou com o lugar de onde veio.

Raimundo não conseguia voltar e, menos ainda, se identificar com a vida em Tatipirun.

É interessante pensar sobre o fato de o trabalho ser de geografia, que remete à sensação

de origem. A origem o chama por instinto e sentimento, talvez, de proteção. Mas o

menino já carrega consigo Tatipirun.

Um sentimento de entrelugar que nós, leitores, bem podemos experimentar ou

identificar facilmente em relação aos códigos sociais e psicológicos da realidade

objetiva. Uma expressão muito utilizada nos estudos culturais e na literatura

contemporânea. Uma ideia muito ligada ao desejo de descentramento cultural, o inverso

da idealização de unificar – desejo inicial de Raimundo, que parecia ser uma boa ideia

no começo da novela, e que acabou fadada ao fracasso.

Surge então uma necessidade de acabar com as noções deterministas e

aproximar as diferenças, ao invés de desfazê-las. Ele decide retornar a casa:

Direi aos outros meninos que em Tatipurun as cobras não mordem e

servem para enfeitar os braços das princesas. Vão pensar que é mentira, zombarão dos meus olhos e da minha cabeça pelada. Eu

então ensinarei a todos o caminho de Tatipirun, direi que aqui as

ladeiras se abaixam e os rios se fecham para a gente passar. (p. 73)

O menino triste ganhou força e voltou mais tranquilo. Deixou de se retrair e viu

que o problema não estava na diferença, mas na intolerância. Sentiu-se forte para contar

os valores da terra dos meninos pelados e, assim, adequou-se à realidade sabendo que

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não poderia se esconder. Voltou de uma terra incomum ou insólita, real ou imaginária35

e com a certeza de ser só um Raimundo com uma história para contar – uma história de

todos e de ninguém.

Referências Bibliográficas:

BASTOS, Alcmeno. Os realismos irrealistas na literatura brasileira contemporânea

(Inédito).

BRAVO. Victor. El miedo y la literatura. file:///D:/Downloads/23006-23025-1-PB.PDF

RAMOS, Graciliano. A terra dos meninos pelados. – 28ª Ed. – Rio de Janeiro: Record,

2002.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Trad. Maria Clara Correa

Castello. São Paulo: Perspectiva, 2008.

35 Cidade que comporta o seu desarranjo interior.