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Universidade Federal do Rio de Janeiro
A MORFOLOGIA PROSÓDICA CIRCUNSCRITIVA APLICADA AO
TRUNCAMENTO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Ana Paula Victoriano Belchor
2014
A MORFOLOGIA PROSÓDICA CIRCUNSCRITIVA APLICADA AO
TRUNCAMENTO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Ana Paula Victoriano Belchor
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Orientador: Prof. Doutor Carlos Alexandre Victório Gonçalves.
Rio de Janeiro Fevereiro de 2014
A MORFOLOGIA PROSÓDICA CIRCUNSCRITIVA APLICADA AO
TRUNCAMENTO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Ana Paula Victoriano Belchor
Orientador: Carlos Alexandre Victório Gonçalves
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Letras Vernáculas (Língua Portuguesa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Examinada por: _________________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Alexandre Victório Gonçalves – UFRJ, Presidente _________________________________________________________ Prof. Dr. Marilia Lopes da Costa Facó Soares – Museu Nacional/UFRJ _________________________________________________________ Prof. Dr. João Antônio de Moraes – UFRJ _________________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Botelho Rondinini – UFRRJ _________________________________________________________ Prof. Dr. Carolina Ribeiro Serra – UFRJ _________________________________________________________ Prof. Dr. Mônica Maria Rio Nobre – UFRJ, Suplente _________________________________________________________ Prof. Dr. Andrew Nevins – UFRRJ, Suplente
BELCHOR, Ana Paula Victoriano. A Morfologia Prosódica Circunscritiva aplicada ao truncamento
no português brasileiro/ Ana Paula Victoriano Belchor. Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2014.
xiii, 204 f.: il.; 31cm. Orientador: Carlos Alexandre Victório Gonçalves. Tese (Doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2014. Referências Bibliográficas: f. 202-208. 1. Português brasileiro. 2. Truncamento. 3. Morfologia
Prosódica. I. GONÇALVES, Carlos Alexandre. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. III. A Morfologia Prosódica Circunscritiva aplicada ao truncamento no português brasileiro.
SINOPSE Esta tese propõe-se a descrever morfoprosodicamente o processo de truncamento no português brasileiro, com base em parâmetros de circunscrição e molde que possibilitam a sistematização do fenômeno.
DEDICATÓRIA
Certa vez, minha amiga Katia Emmerick, logo após defender sua tese, me disse:
“só a gente sabe o quanto custa chegar até aqui. Por que a gente faz isso, Aninha?”. Bem,
ainda não tenho uma resposta para a pergunta da Katia, mas, ao longo do meu curso,
quanto mais o tempo passava, mais eu me dava conta de que ela tinha absoluta razão.
São muitos os obstáculos e dificuldades (pessoais, acadêmicos e profissionais) com
que nos deparamos durante o caminho. Por isso, não posso deixar de lembrar, nestas
páginas de dedicatória, da pessoa sem cujo apoio talvez eu tivesse desistido antes de ver
esta tese pronta.
Ao meu marido, Marco, peço desculpas pelos momentos de ausência, de stress, de
irritação, ao mesmo tempo em que agradeço imensamente a compreensão, o amor, o apoio
e a paciência de sempre. Agradeço, sobretudo, por ter um companheiro que faz questão de
dividir comigo as tarefas e responsabilidades relacionadas à nossa filha, Sophia, para não
me sobrecarregar.
Quando eu soube, no final do primeiro ano do curso de Doutorado, que a família
iria aumentar, me questionei, pedindo licença ao nosso poeta Drummond, “E agora, Ana
Paula?”. O curso mal tinha começado, e eu não tinha certeza se conseguiria vivenciar uma
gestação, cuidar de um bebê e, ainda, escrever uma tese. Em meio a tantos
questionamentos e preocupações, ouvi Marco dizer “Calma, você vai conseguir”. Naquele
momento, eu não sabia, mas o ouviria dizer estas mesmas palavras inúmeras vezes, sempre
que eu precisava ouvi-las.
Como eu ia dizendo, novamente com a licença de Drummond, “no meio do
caminho tinha uma Sophia”. E o que posso dizer a respeito da chegada da minha pequena é
que seu nascimento mudou a minha vida de uma maneira muito especial, fazendo com que
se renovasse o meu conceito de maternidade. Sophia, inúmeras vezes me senti mal por
perder a paciência ou por torcer para você dormir mais cedo, para eu poder estudar e
escrever; mas, como todas as outras, não sou uma mãe perfeita. Estou apenas tentando
fazer o melhor que posso. Espero que, no futuro, você não se lembre desse período e tenha
a dizer apenas que sua mãe é doutora.
Saber que defendi a tese e, agora, posso me considerar Doutora em Letras
Vernáculas é motivo de imensa alegria para mim. Mais ainda, é motivo de orgulho ter
conseguido atingir esse objetivo por ter uma família tão maravilhosa – incluindo aqueles
que não estão citados aqui.
A você, Marco, quero dizer que cheguei até aqui, como você sempre acreditou que
eu chegaria. Mas não o teria conseguido sem o seu apoio e a sua enorme generosidade.
Não tenho palavras para dizer o quanto você é importante para mim, não somente pelo
companheirismo durante o Doutorado, mas por tudo o que já vivemos juntos. Acho que,
textualmente, pode-se dizer que o que nos une é amor. Sentimentalmente, sabemos que
esse amor passa constantemente por alguns problemas relacionados à rotina e ao dia-a-dia,
mas se mantém firme. Não sei o que seria de mim se não tivesse encontrado você.
Obrigada por tudo.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos Alexandre Gonçalves, agradeço imensamente
por ter me acolhido, ainda na graduação, dispondo-se a me orientar não apenas
academicamente, mas também profissionalmente, com toda a experiência que,
generosamente, sempre compartilhou comigo. Tenho também de agradecer muito a sua
compreensão nos momentos em que, após o nascimento da Sophia, a minha produção ficou
mais lenta. Se eu não tivesse o encontrado, minha trajetória acadêmica teria sido outra; não
sei se mais ou menos feliz, mas certamente seria diferente. A você, Carlos, deixo aqui
registrados os meus agradecimentos e a minha admiração.
Aos Professores Doutores Marilia Facó Soares, João Antonio de Moraes, Carolina
Ribeiro Serra e Roberto Botelho Rondinini, agradeço a leitura cuidadosa e as generosas
contribuições feitas durante a defesa. Ao Professor Doutor Roberto Botelho Rondinini,
agradeço, sobretudo, o carinho demonstrado, que é verdadeiramente recíproco.
A todos os amigos do NEMP, desde os mais antigos até os mais recentes. Não cito
aqui nomes porque a lista seria exaustiva, mas tenho certeza de que aqueles que são
queridos sabem que o são.
À CAPES, agradeço o financiamento de três anos, fundamental para a realização
desta pesquisa.
RESUMO
A MORFOLOGIA PROSÓDICA CIRCUNSCRITIVA APLICADA AO
TRUNCAMENTO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Ana Paula Victoriano Belchor
Orientador: Carlos Alexandre Victório Gonçalves
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Letras Vernáculas (Língua Portuguesa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
Na presente tese, realiza-se a análise do truncamento no português brasileiro, processo não-concatenativo de formação de palavras que consiste no encurtamento de uma base, tal como em ‘depressão’ > ‘deprê’ e ‘estrangeiro’ > ‘estrânja’, por exemplo. Uma vez que as sequências apagadas são muito diversificadas e não podem, desse modo, ser tomadas como afixos, a regularidade do processo torna-se evidente nas próprias formas truncadas, que se mostram morfoprosodicamente uniformes.
A Morfologia Prosódica Circunscritiva foi modelo teórico utilizado na descrição do fenômeno, em virtude de proporcionar a união entre expedientes morfológicos e prosódicos, necessária para justificar o formato dos truncamentos pertencentes ao corpus, que podem ser (a) constituídos das duas primeiras sílabas da palavra-matriz, como ‘refrí’ (‘refrigerante’) e ‘belê’ (‘beleza’); (b) do morfema integral que compõe a borda esquerda da base, tal como ‘odônto’ (‘odontologia’) e ‘nêuro’ (‘neurologista’); ou, ainda, (c) do radical (ou não) da palavra-matriz, acrescido da vogal (-a), como em ‘flágra’ (‘flagrante’) e ‘cáfa’ (‘cafajeste’).
Os dados que integram o corpus analisado distribuem-se em três padrões de formação distintos, acima representados em (a), (b) e (c), devido ao fato de cada grupo de dados apresentar características diferentes quanto aos parâmetros que regem o funcionamento da Morfologia Prosódica Circunscritiva, a saber: a circunscrição do input, que delimita a porção deste a ser aproveitada na forma truncada; e o formato do molde, responsável pela formação de um tipo específico de pé no output, que garante uma tonicidade típica a cada padrão.
Os três padrões estruturais pesquisados, na tese denominados ‘refri’, ‘odônto’ e ‘flágra’, são, portanto, descritos individualmente, de acordo com as especificações de circunscrição e molde que asseguram as marcas formais de cada padrão. Palavras-chave: Morfologia Prosódica Circunscritiva; Formação de Palavras; Processos Não-concatenativos; Truncamento.
Rio de Janeiro Fevereiro de 2014
ABSTRACT
A MORFOLOGIA PROSÓDICA CIRCUNSCRITIVA APLICADA AO
TRUNCAMENTO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Ana Paula Victoriano Belchor
Orientador: Carlos Alexandre Victório Gonçalves
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Letras Vernáculas (Língua Portuguesa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
In this PhD thesis, it is accomplished the truncation analysis in Brazilian portuguese, non-concatenative word formation process that consists on a shortening operated in a base form, such as in ‘depressão’ > ‘deprê’ e ‘estrangeiro’ > ‘estrânja’, for example. Since deleted sequences are very diversified and can not, therefore, be considered affixes, the process regularity becomes evident in the very truncated forms, that exhibit morphoprosodic uniformity.
Circumscriptive Prosodic Morphology was the theoretical model chosen for the phenomenon account, since it provides the union between morphological e prosodic expedients, required to justify the shape of truncations that belong to the corpus, which can (a) consist on the first two syllables of the base, as ‘refrí’ (‘refrigerante’) and ‘belê’ (‘beleza’); (b) on the full morpheme situated in the left edge of the base, such as ‘odônto’ (‘odontologia’) e ‘nêuro’ (‘neurologista’); or, yet, (c) on the basis radical (or not), affixed by the vowel (-a), as in ‘flágra’ (‘flagrante’) e ‘chína’ (‘chinês’).
The data included in analysed corpus are distributed in three distinct formation patterns, represented above in (a), (b) e (c), due to the fact that each group of data have different characteristics according to parameters of Cirncumcriptive Prosodic Morphology, namely: input circumpscription, that delimits the part of base which is going to be utilized in truncated form; and shape of template, responsible for the formation of a specific prosodic foot type in output, that ensures a typical tonicity for each standard.
The three researched structural standards, denominated in this thesis ‘refrí’, ‘odônto’ e ‘flágra’, are, thus, individually described, according to the circumscription and template parameters that holds each formation standard formal marks. Key-words: Circumscriptive Prosodic Morphology; Word Formation; Non-concatenative Processes; Truncation.
Rio de Janeiro Fevereiro de 2014
RÉSUMÉ
A MORFOLOGIA PROSÓDICA CIRCUNSCRITIVA APLICADA AO
TRUNCAMENTO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Ana Paula Victoriano Belchor
Orientador: Carlos Alexandre Victório Gonçalves
Résumé da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Letras Vernáculas (Língua Portuguesa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
Dans cette thèse, on analyse la troncature en portugais, qui est un processus non
concatenatif de formation de mots, caractérisé par le raccourcissement d'une base, comme dans le cas de ‘depressão’ > ‘deprê’ e ‘estrangeiro’ > ‘estrânja’, par exemple. Étant donné que les séquences supprimées sont très variés et ne peuvent donc pas être considérés comme des affixes, la régularité du processus devient évidente dans les formes tronquées, qui manifestent une morphoprosodique uniforme.
Le modèle théorique de la Morphologie Prosodique Circonscriptive a été choisi pour décrire ce phénomène parce qu’il founit l'union des facteurs morphologiques et prosodiques nécessaires pour justifier la forme de troncatures présentes dans le corpus, qui peuvent être (a) constitués des deux premières syllabes du mot-matrice, comme dans ‘refrí’ (‘refrigerante’) e ‘belê’ (‘beleza’) ; (b) du morphème complet qui constitue le bord gauche de la base, comme ‘odônto’ (‘odontologia’) e ‘nêuro’ (‘neurologista’) ; ou, encore, (c) du radical (ou pas) du mot-matrice, plus la voyelle (-a), comme dans ‘flágra’ (‘flagrante’) e ‘cáfa’ (‘cafajeste’).
Les données du corpus analysé sont répartis en trois patrons de formation distincts, décrits ci-dessus dans (a), (b) et (c), en raison du fait que chaque ensemble de données présente des caractéristiques différentes en fonction des paramètres régissant le fonctionnement de la Prosodique Morphologie Circonscriptive, à savoir: la circonspection de l'input, qui délimite la partie qui restera dans la forme tronquée, et le format du moule, responsable de la formation d'un type spécifique de pied dans le output, ce qui garantit une tonicité particulière pour chaque groupe.
Les trois patrons structurels de recherche, désignés ‘refrí’, ‘odônto’ et ‘flágra’ dans la thèse, sont, alors, décrits séparément, d’après les spécifications de circonspection et moule qui assurent les caractéristiques formelles de chaque patron.
Mots-clés: Prosodique Morphologie Circunscritive; Formation des Mots; Processus Non concatenatifs; Troncature.
Rio de Janeiro Fevereiro de 2014
SUMÁRIO
Capítulo 1 – Palavras iniciais............................................................................... 1
Capítulo 2 – O fenômeno de truncamento
2.1. O fenômeno .......................................................................................... 7
2.2. Das diferenças entre truncamento e outros processos de encurtamento 10
2.2.1. Truncamento e derivação regressiva ........................................ 11
2.2.2. Truncamento e hipocorização .................................................. 17
2.2.3. Truncamento e abreviação ....................................................... 22
Capítulo 3 – Revisão da literatura
3.1. A perspectiva da Gramática Tradicional.............................................. 28
3.2. A perspectiva dos manuais de morfologia ........................................... 30
3.3. A perspectiva da Teoria Morfológica .................................................. 34
3.4. Pesquisas recentes acerca do truncamento no português do Brasil ....... 40
3.5. Metodologia........................................................................................ 61
Capítulo 4 – Fundamentos da Morfologia Prosódica Circunscritiva
4.1. Contexto de surgimento ...................................................................... 67
4.2. Da Fonologia Autossegmental à Morfologia Autossegmental.............. 68
4.3. Da Fonologia Prosódica à Morfologia Prosódica................................. 74
4.3.1. A sílaba (δ).............................................................................. 77
4.3.2. O pé (Σ).................................................................................... 83
4.3.3. A palavra prosódica (ω)........................................................... 87
4.4. A Morfologia Prosódica ...................................................................... 89
4.5. A Morfologia Prosódica Circunscritiva ............................................... 92
Capítulo 5 – Análise via MP Circunscritiva
5.1. Padrão ‘refrí’..................................................................................... 103
5.2. Padrão ‘odônto’ ................................................................................ 112
5.3. Padrão ‘flágra’ .................................................................................. 120
5.4. Problemas ......................................................................................... 148
Capítulo 6 – O truncamento na morfologia contemporânea
6.1. Proposta com base em fatores prosódicos.......................................... 164
6.2. Proposta com base em splinters......................................................... 175
Capítulo 7 – Palavras finais ............................................................................. 188
Anexo I – Corpus ............................................................................................ 194
Referências bibliográficas................................................................................ 198
1
Capítulo 1 – Palavras iniciais
Na presente tese, objetiva-se apresentar uma análise do processo de truncamento no
português do Brasil segundo os princípios da Morfologia Prosódica Circunscritiva
(McCARTHY & PRINCE, 1990) – desdobramento da Morfologia Prosódica
(McCARTHY, 1981) que visa a lidar com fenômenos morfológicos cuja formação não
pode ser analisada exclusivamente com base no mapeamento de morfemas.
O truncamento é um processo não-concatenativo de formação de palavras que
consiste no encurtamento de uma base; ou seja, ao contrário do que ocorre na prefixação e
na sufixação, é um processo que não se estrutura a partir da adjunção de afixos, mas da
supressão de segmentos da palavra-matriz. Porém, trata-se de um encurtamento que requer
o acesso da morfologia a informações fonológicas, como sílaba, pé e palavra prosódica,
segundo Gonçalves (2004). Para fim de exemplificação, podem-se citar as formas
truncadas ‘bijú’3 (‘bijuteria’), ‘motô’ (‘motorista’) e ‘prejú’ (‘prejuízo’), nas quais é
possível observar que as porções apagadas não se baseiam na relação base/afixo. Assim, a
regularidade verificada entre os dados do corpus está ligada ao formato morfoprosódico da
própria forma truncada (limitação quanto ao número de sílabas e tipo de pé formado no
output, por exemplo).
Em linhas gerais, pode-se dizer que, na morfologia não-concatenativa, não há
condições ideais para o isolamento de elementos morfológicos, que não aparecem
estritamente encadeados. Trata-se, portanto, de casos em que pode haver supressão de
segmentos (no caso do truncamento), cópia total ou parcial da base (na reduplicação) ou 3 Os acentos gráficos presentes nas formas resultantes de processos não-concatenativos citadas como exemplos nesta tese são utilizados com o intuito de indicar as sílabas tônicas. Em outras palavras, a acentuação constitui apenas uma estratégia para a identificação da tonicidade dos dados. Portanto, não há, em quaisquer exemplos, compromisso com as regras acentuais vigentes no português brasileiro.
2
sobreposição de bases (nos cruzamentos vocabulares) – o que não se verifica na
morfologia concatenativa, típica das línguas predominantemente aglutinantes e baseada
nos fenômenos mais prototípicos de afixação ou composição, nos quais os elementos
morfológicos sucedem-se em uma linha temporal e podem ser, dessa forma, isolados
(GONÇALVES, 2004). Deve-se ressaltar que a morfologia do português é, de fato,
predominantemente aglutinativa – o que não impede, contudo, a ocorrência de processos
de formação de palavras tais como o truncamento (‘belê’ < ‘beleza’; ‘batéra’ < ‘bateria’), a
hipocorização (‘Alê’ < ‘Alessandra’; ‘Lípe’ < ‘Felipe’) e a reduplicação (‘papáto’ <
‘sapato’; ‘bate-bate’).
Os processos supracitados, ainda que inegavelmente produtivos nas línguas
naturais, receberam, tal como destaca McCarthy (1981), pouca atenção no Estruturalismo,
por não poderem ser descritos em termos de elementos recorrentes dispostos na margem
direita ou esquerda da base.
Análises estruturalistas centradas no modelo Item-e-arranjo (IA), por exemplo, não
se mostravam eficientes na descrição de processos não-concatenativos por serem baseadas
em “uma análise estrutural em que os morfemas sejam identificados e isolados [...] por
meio da técnica de comutação” (BELCHOR & ANDRADE, 2011). O modelo Item-e-
processo (IP), por sua vez, admite que a fonologia pode ser responsável pela expressão de
algumas categorias morfológicas, tais como a alternância vocálica que marca a informação
de pessoa em alguns verbos do português (t[i]ve1ª pessoa x t[e]ve3ª pessoa). Assim, as análises
via IP não lidam com a noção de morfema enquanto elemento “corporificado”, mas com
operações (processos ou regras) que atuam em formas subjacentes, ou seja, em um nível
mais abstrato que o enunciado, e as transformam nas formas de superfície.
Como se pode observar, os modelos IA e IP não respondem satisfatoriamente a
questões relacionadas à estrutura de outputs de processos não-concatenativos. Quanto ao
3
truncamento, por exemplo, o primeiro de tais modelos (IA) encontra como barreira o fato
de o fenômeno não envolver o apagamento de sequências que possam ser consideradas
morfemas. Da mesma forma, análises pelo modelo IP não são capazes de descrever
satisfatoriamente o truncamento, desta feita porque a operação de apagamento se dá na
forma de superfície, e não em uma forma subjacente: ‘prejuízo’ > ‘prejú’. Mais
precisamente, os inputs do processo de truncamento, sobre os quais efetua-se o
apagamento, são outputs de fala – o que pode ser constatado na formação de ‘razú’
(‘razoável’), por exemplo, em que se observa o alteamento da vogal posterior média alta
[o] para posterior alta [u], assim como verificado na fala: [xazu'avew]4.
Também no âmbito da Gramática Tradicional, e mesmo dos manuais de
morfologia, o truncamento carece de descrição formal, pois, em geral, os autores atribuem
ao processo o rótulo de “imprevisível” (cf. BASILIO, 1987) ou “não-suscetível de
formalização” (cf. LAROCA, 1994) e limitam-se a fornecer listas de exemplos que
constituem meras enumerações, uma vez que não consistem em qualquer tentativa de
formalização. Vale ressaltar que, sem a incorporação de fatores prosódicos à análise, a
formação do truncamento parece arbitrária, tal como propõe Basilio (1987), que cita, por
exemplo, a forma truncada ‘deléga’ (< ‘delegado’), mas afirma que a parte suprimida é
imprevisível e assistemática. Como já foi mencionado acima, a porção apagada não pode
ser tradicionalmente definida como um morfema – daí a aparente arbitrariedade.
O objetivo mais geral da presente tese é fornecer novas alternativas para a análise
do truncamento, de modo que o fenômeno seja considerado regular, ainda que a referida
regularidade não seja garantida apenas por fatores relacionados à morfologia. A proposta
central consiste na ideia de que a Morfologia Prosódica Circunscritiva é um modelo capaz
de descrever o truncamento com grande eficiência, uma vez que opera com parâmetros de
4 Mais detalhes sobre a natureza do input serão apresentados no capítulo 5, destinado à análise dos dados.
4
molde e circunscrição, tal como será explicitado no capítulo 4. Em outras palavras, está
aqui lançada a hipótese de que a Morfologia Prosódica Circunscritiva proporciona
condições ideais para a análise de formas truncadas, visto que, em linhas gerais, se trata de
um modelo cuja etapa de circunscrição (ou mapeamento) promove a supressão de uma
parte da base e a consequente delimitação de um material que deve, em seguida, se ajustar
ao formato de um molde prosodicamente definido, para, então, tornar-se output do
processo.
Na Morfologia Prosódica Circunscritiva, portanto, os parâmetros de molde e
circunscrição (centrais no modelo) são capazes de promover regularidade nas formas
truncadas, que se mostram morfoprosodicamente mais uniformes. Dito de outra forma, a
circunscrição e a satisfação a um molde tornam regulares os outputs, e não as porções
apagadas – daí a descrição satisfatória do processo de truncamento, que não consiste,
necessariamente, na supressão de sequências afixais.
Os dados que compõem o corpus utilizado na pesquisa apresentam-se divididos em
três padrões de formação distintos, de acordo com a estrutura das formas truncadas. A
referida divisão entre os dados faz-se necessária porque, conforme dito anteriormente, a
Morfologia Prosódica Circunscritiva lida com moldes cujos formatos são definidos
prosodicamente – o que implica a existência de um tipo de molde para cada grupo de
afinidade estrutural, dadas as diferentes marcas formais observadas entre os outputs do
processo.
Para exemplificar brevemente, o padrão de truncamento denominado ‘flágra’ nesta
tese reúne formas que resultam do encurtamento de uma palavra-matriz, acrescido da
afixação da vogal (-a): ‘neurose’ > neur- + -a > ‘nêura’. De acordo com os procedimentos
da Morfologia Prosódica Circunscritiva, a circunscrição da base delimita as porções
apagada (-ose) e remanescente (neur-) – esta última enviada para o nível do molde,
5
definido para a formação de um troqueu moraico e a afixação de (-a). Na etapa do molde,
portanto, está definida a estrutura dos outputs do padrão ‘flágra’: formas que contenham
um pé troqueu moraico terminado na vogal (-a). O mesmo raciocínio aplica-se aos demais
padrões de truncamento analisados na presente tese, aqui denominados ‘refrí’ e ‘odônto’,
os quais se diferem do padrão ‘flágra’ por apresentarem diferentes especificações de
circunscrição e molde, tal como está explicitado no capítulo 5.
Pelas razões expostas até então, a Morfologia Prosódica Circunscritiva mostra-se
adequada à análise do truncamento, uma vez que o processo não permite a descrição por
meio de regras que determinem o apagamento de sequências delimitadas apenas
morfologicamente. Assim, a incorporação de fatores prosódicos, possibilitada pelas
descrições com base no referido modelo, apresenta-se como alternativa ideal para a análise
de formas truncadas, cujo processo de formação envolve o apagamento de porções que
variam entre os dados, devido, conforme dito anteriormente, à existência de um formato de
molde para cada padrão.
Em suma, com base nos fundamentos da Morfologia Prosódica Circunscritiva, a
presente tese objetiva analisar o fenômeno de truncamento no português do Brasil e
verificar de que modo tal modelo teórico é capaz de expressar generalizações acerca do
processo. Mais especificamente, pretende-se descrever os três padrões de formas truncadas
que integram o corpus à luz de um único modelo teórico na linha morfoprosódica – o que
pode ser considerado uma inovação, pois, até o presente momento, os padrões estruturais
foram descritos pela Morfologia Prosódica Circunscritiva e pela Teoria da Otimalidade,
mas nenhum dos estudos realizados (GONÇALVES & VAZQUEZ, 2005; GONÇALVES,
2004; 2011a; e BELCHOR, 2005; 2006; 2009) abordou os três grupos em conjunto.
A tese estrutura-se da seguinte forma: o capítulo 2, imediatamente posterior a este que se
apresenta, é dedicado à caracterização geral do fenômeno de truncamento e à sua
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diferenciação em relação a outros processos de encurtamento. O capítulo 3, por sua vez,
destina-se à revisão da literatura acerca do processo e à metodologia adotada na pesquisa.
O capítulo 4 dedica-se à apresentação dos procedimentos que subjazem à análise baseada
na Morfologia Prosódica Circunscritiva, para, no capítulo 5, serem analisadas, de acordo
com os instrumentos do modelo, as formas truncadas pertencentes ao corpus. Ainda neste
último capítulo, após as descrições dos dados, enumeram-se os problemas encontrados
quando da análise. O capítulo 6 destina-se a promover uma discussão a respeito do status
do truncamento na morfologia contemporânea, e, no capítulo 7, sumarizam-se as
conclusões da pesquisa.
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Capítulo 2 – O fenômeno de truncamento
O presente capítulo tem como intuito apresentar as características gerais do
truncamento, que justificam o seu status de processo não-concatenativo de formação de
palavras no português brasileiro. Além disso, os três padrões de truncamentos analisados
na tese são brevemente apresentados, com o objetivo de explicitar as razões que levam à
distribuição do corpus em três grupos de dados. Por fim, o truncamento é diferenciado de
outros processos de encurtamento em relação a uma base, para mostrar que há mais pontos
de afastamento do que de aproximação entre truncamento, derivação regressiva,
hipocorização e abreviação.
2.1. O fenômeno
Tal como apontado no capítulo anterior, o truncamento é um processo pouco
estudado no âmbito da Gramática Tradicional e dos manuais de morfologia, nos quais o
fenômeno é brevemente mencionado nas seções denominadas “outros tipos de formação de
palavras” ou “tipos especiais de formação de palavras”, sob o nome de “abreviação” (cf.
BECHARA, 2001; BASILIO, 1987; e SANDMANN, 1990) ou “braquissemia” (cf.
MONTEIRO, 1987), por exemplo.
Sob o ponto de vista dos autores supracitados, o truncamento é, pois, descrito de
maneira breve e considerado assistemático, uma vez que as análises estritamente formais
dos processos de formação de palavras, baseadas em princípios ou regras que atuam de
maneira absoluta, não proporcionam uma descrição satisfatória do fenômeno, que não é,
necessariamente, resultado da supressão de afixos.
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De acordo com Gonçalves (2004: 10-11), “o português é uma língua que se ajusta
bem a uma descrição que isola entidades morfológicas, uma vez que a grande maioria das
operações é, de fato, aglutinativa [...], de modo que há condições ótimas para a
isolabilidade de morfemas”. No entanto, há, segundo o autor, processos que são
considerados marginais, por diferirem dos mais prototípicos (composição e derivação),
visto que não envolvem a simples adjunção de afixos a bases.
A presente tese propõe, destarte, uma análise mais sistemática do fenômeno de
truncamento, tomando-se como base expedientes morfoprosódicos, que não são levados
em conta nos modelos de análise considerados lineares. Nas palavras de Spencer (1991), o
truncamento é um dos processos que requerem acesso a informações prosódicas e resultam
da união entre primitivos morfológicos (radical, afixo) e primitivos prosódicos (mora, pé).
Outros processos dessa natureza são a reduplicação (‘puxa-puxa’, ‘bate-bate’), a
hipocorização (‘Fátima’ > ‘Fafá’, ‘Raquel’ > ‘Quél’), o cruzamento vocabular (‘carnaval’
+ ‘Natal’ > ‘carnatal’, ‘macarrão’ + ‘maionese’ > ‘macarronese’) e a siglagem (‘Partido
dos Trabalhadores’ > ‘PT’).
Em termos prosódicos, o truncamento é um processo de encurtamento que se
estrutura a partir do mapeamento melódico de uma forma de base, em que uma sequência
da palavra-matriz é copiada e passa a funcionar como unidade lexical autônoma. Contudo,
o fenômeno não apresenta função lexical, nos termos de Gonçalves (2011a), visto que não
é empregado com o objetivo de nomear uma nova entidade. Ao contrário, é utilizado, em
geral, como forma de expressão do pejorativo (‘português’ > ‘portúga’, ‘analfabeto’ >
‘análfa’), de um registro mais informal (‘beleza’ > ‘belê’, ‘prejuízo’ > ‘prejú’) ou, ainda,
como marca de um grupo jovem. Entretanto, uma vez que o objetivo desta tese é promover
uma análise estrutural do fenômeno, os aspectos ligados às funções discursivas não serão
contemplados na descrição ora empreendida.
9
As formas truncadas analisadas na pesquisa encontram-se reunidas no anexo I e,
conforme citado nas palavras iniciais, apresentam-se divididas em três grupos de formação
distintos. Vale destacar que Gonçalves (2004; 2011a), Gonçalves & Vazquez (2005) e
Belchor (2009) analisaram o fenômeno de truncamento sob a perspectiva da Morfologia
Prosódica Circunscritiva (GONÇALVES, 2004; 2011a) e da Teoria da Otimalidade (nos
demais estudos citados). Porém, Gonçalves (2004; 2011a) e Gonçalves & Vazquez (2005)
descreveram apenas o padrão nesta tese denominado ‘flágra’, ao passo que Belchor (2009)
deteve-se nos padrões aqui denominados ‘refrí’ e ‘odônto’.
Quanto às características formais do grupo ‘flágra’, os truncamentos podem manter,
ou não, o radical da palavra-matriz e recebem uma vogal específica de truncamento (-a),
nem sempre presente na base: ‘japonês’ > ‘jápa’; ‘neurose’ > ‘nêura’; ‘sargento’ > ‘sárja’;
‘português’ > ‘portúga’.
O padrão aqui denominado ‘refrí’ abrange os dados cujo encurtamento é realizado
de modo que sejam preservados todos os segmentos que compõem a margem esquerda da
base, até o segundo núcleo silábico, dispensando-se a afixação de uma vogal
preestabelecida de truncamento (‘prejuízo’ > ‘prejú’; ‘refrigerante’ > ‘refrí’; ‘visual’ >
‘visú’).
O padrão denominado ‘odônto’, por sua vez, agrupa os truncamentos que se
formam por meio da preservação integral do morfema situado mais à esquerda das suas
palavras-matrizes (‘fonoaudiologia’ > ‘fôno’; ‘quilograma’ > ‘quílo’; ‘hematologista’ >
‘hemáto’).
No que tange aos padrões de afinidade estrutural acima citados, a presente tese visa
a promover a descrição do processo de truncamento com base em um único modelo
teórico; no caso, a Morfologia Prosódica Circunscritiva, aplicado aos três grupos.
Conforme já mencionado no capítulo 1, dedicado às palavras iniciais, a Morfologia
10
Prosódica Circunscritiva é um modelo fundamentado nas noções de molde e circunscrição
(cf. capítulo 4). Por isso, a distribuição em padrões estruturais distintos deve ser levada em
conta, uma vez que a circunscrição mapeará domínios diferentes em cada padrão (duas
sílabas ou um morfema integral, por exemplo). No entanto, vale ressaltar, a Morfologia
Prosódica Circunscritiva mostra-se altamente eficiente no que tange à descrição do
processo, restando muito poucas exceções, conforme será explicitado no capítulo 5,
destinado à análise de dados.
Vistas as características gerais do truncamento, bem como as marcas formais de
cada padrão estrutural que compõe o corpus, a próxima seção objetiva diferenciar o
fenômeno de outros processos que também se caracterizam pela redução vocabular.
Vejamos, a seguir, quais são os processos que se aproximam do truncamento por eliminar
segmentos da base, mas, por outro lado, afastam-se do mesmo por apresentar diferentes
especificações formais.
2.2. Das diferenças entre truncamento e outros processos de encurtamento
Por ser o truncamento um processo de formação de palavras que consiste na
supressão de segmentos em relação à palavra-matriz, faz-se necessário, neste capítulo,
diferenciá-lo de outros processos que também envolvem a perda de material fônico da base
para o produto, a saber: derivação regressiva, hipocorização e abreviação. Logo, as
subseções seguintes dedicam-se à delimitação de fronteiras entre tais fenômenos e o
truncamento, com o objetivo de evidenciar as particularidades de cada processo e evitar os
frequentes problemas encontrados na identificação dos mesmos.
Em princípio, pode-se dizer que os processos supracitados ora se aproximam do
truncamento, devido à eliminação de segmentos da base, ora se distanciam deste último
11
por motivos diversos. Ao final de cada subseção, será apresentado um quadro resumitivo
com a retomada dos fatores utilizados na distinção entre os processos, objetivando ressaltar
a razão pela qual o truncamento é, nesta tese, considerado um fenômeno distinto da
derivação regressiva, da hipocorização e da abreviação.
2.2.1. Truncamento e derivação regressiva
A derivação regressiva é um processo de formação de palavras que, assim como o
truncamento, envolve a perda de segmentos da base. Contudo, os referidos processos
diferem em relação a diversos aspectos, tal como será explicitado a seguir.
Constituem casos de derivação regressiva os nomes em que a sequência apagada é
interpretada como afixo e retirada com o intuito de formar uma nova palavra, constituída
apenas da (suposta) base e de uma vogal temática nominal. Esse é o caso da palavra-
origem ‘sarampão’, por exemplo, a partir da qual se formou ‘sarampo’, devido à análise da
sequência -ão como sufixo aumentativo. Observe-se que a supressão do elemento tomado
como sufixo envolve também a mudança de significado: ‘sarampo’ tornou-se o nome com
que é conhecida a doença infantil, enquanto ‘sarampão’ passou a designar um “intenso
ataque de sarampo”. Dessa forma, a derivação regressiva nominal deve ser diferenciada do
processo inverso de derivação sufixal, pois envolve a supressão de uma sequência que não
é um afixo, mas reanalisada como tal, e permite a formação de novas palavras.
Vale ressaltar que Cunha (1996) indica a entrada de ‘sarampão’ na língua
portuguesa, no século XVI, anterior ao ingresso de ‘sarampo’, que teria se dado em 1844 –
fato que serve de evidência para a identificação da direção do processo (‘sarampão’ >
‘sarampo’), confirmando-se a derivação regressiva, uma vez que se trata da supressão da
12
sequência -ão, tomada como afixo, e não da adjunção do sufixo idêntico fonicamente, com
o objetivo de expressar o grau5.
O fato de o truncamento consistir em um processo de formação de palavras que
envolve fatores morfoprosódicos, e não a mera retirada de sufixos ou de segmentos
tomados como tal, apresenta-se como razão para que o processo seja considerado
imprevisível e assistemático em várias abordagens, de diferentes perspectivas teóricas. No
entanto, o fenômeno mostra-se bastante regular se levada em conta a ocorrência de um
mapeamento melódico baseado em expedientes morfoprosódicos que determinam a
natureza da forma truncada, conforme o será descrito mais adiante, com os instrumentos da
Morfologia Prosódica Circunscritiva.
Gonçalves (2011a) propõe a diferenciação entre truncamento e derivação regressiva
deverbal com base em quatro aspectos que, segundo o autor, são capazes de caracterizá-los
como processos diferentes. De acordo com o autor, faz-se necessário distinguir os referidos
processos, pois a semelhança entre eles se restringe à perda de segmentos fônicos da base,
seguida da afixação de uma vogal átona (apenas no caso dos truncamentos tipo ‘flágra’),
uma vez que há inúmeras razões para que os mesmos sejam considerados processos
distintos.
O primeiro fator que, de acordo com Gonçalves (op. cit.), pode ser utilizado para
diferenciar o truncamento da derivação regressiva é a ausência de função sintática
(BASILIO, 1987)6 verificada no primeiro, uma vez que formas truncadas apresentam a
mesma especificação sintática da base, ficando a opção do falante relacionada a um estilo
mais coloquial (“A cerveja servida na festa estava bem gelada”; “Nos dias quentes, só uma
5 A perspectiva diacrônica é de extrema relevância em casos como o que se apresenta, uma vez que há pouca chance de o falante identificar sincronicamente qual dos itens constitui a base do processo de formação. 6 Segundo a autora, a ausência ou presença de “função sintática” relaciona-se ao fato de os processos de formação de palavras serem capazes de promover (ou não) alterações nas funções sintáticas desempenhadas por base e produto. Utilizando o critério da autora, portanto, o truncamento se caracteriza por não alterar a função sintática do produto em relação à base – daí a expressão “ausência de função sintática”.
13
cérva bem gelada mata a sede”). Na derivação regressiva deverbal, ao contrário, pares
como ‘roubar’/‘roubo’ e ‘lutar’/‘luta’, por exemplo, evidenciam que se trata de um
processo caracterizado por alterar a especificação lexical da base (verbo � nome) – o que
impede o uso da palavra-matriz e do derivado nos mesmos contextos sintáticos.
Ainda segundo Gonçalves (2011a), o tipo de sequência fônica apagada também
distingue a derivação regressiva deverbal do truncamento, pois a primeira ocorre por meio
da supressão de uma sequência afixal, enquanto, no segundo, a porção suprimida não é,
necessariamente, um afixo. Ademais, o autor destaca que, na derivação regressiva, a parte
aproveitada no produto sempre equivale ao radical da base (‘trabalhar’ > trabalh-radical + -o
> ‘trabalho’) – o que pode, ou não, acontecer entre formas resultantes de truncamento
(‘português’ > portug-radical + -a > ‘portúga’, mas ‘vagabunda’ > (?) vagab- + -a >
‘vagába’).
No que tange à questão semântica, Gonçalves (op. cit.) considera que o
truncamento não envolve mudanças de significação primária, pois as formas truncadas são
intercambiáveis semanticamente com as palavras-matrizes. Nesse caso, têm-se produtos
que possuem o mesmo significado de suas bases, porém acrescido de fatores tais como
pejoratividade ou vínculo com o estilo mais coloquial, jovem ou informal:
(01)
‘Japonês’ > ‘jápa’
‘Analfabeto’ > ‘análfa’
‘Motorista’ > ‘motô’
‘Prejuízo’ > ‘prejú’
14
A terminação do produto é também um fator que, segundo Gonçalves (2011a),
distancia o truncamento da derivação regressiva, uma vez que, no primeiro, o padrão
‘flágra’ é marcado pela afixação apenas da vogal (-a). Os derivados regressivos de base
verbal, por sua vez, podem ser finalizados pelas vogais -a, -e, -o – inclusive nos verbos de
mesma classe paradigmática: ‘lutar’/‘luta’; ‘atacar’/‘ataque’; ‘roubar’/‘roubo’.
Pelas razões supracitadas, Gonçalves (2011a: 303) ressalta que a direcionalidade do
truncamento é “inequívoca (do nome maior para o menor), sendo a vogal final [nos casos
em que há afixação] sempre (-a)”. Entre os derivados regressivos deverbais, ao contrário, a
relativa imprevisibilidade das vogais afixadas levou autores tais como Basilio (1987) e
Gamarsky (1984) a reconsiderar a direcionalidade do processo (de nomes para verbos, e
não o inverso), tomando como base o fato de ser mais produtiva a formação de verbos de
primeira conjugação.
Por fim, baseado nas diferenças apresentadas, Gonçalves (op. cit.: 303) formula a
seguinte questão: “transa e flagra são truncamentos de ‘transação’ e ‘flagrante’, ou, na
verdade, constituem derivações regressivas de ‘transar’ e ‘flagrar’, nesta ordem?”. De
acordo com o autor, ‘transa’ não é um truncamento de ‘transação’, mas um derivado
regressivo do verbo ‘transar’, uma vez que ‘transação’ e ‘transa’ não são intercambiáveis
semanticamente, tal como se observa nos exemplos a seguir, fornecidos pelo autor: “A
transação (= negociação comercial) transcorreu dentro dos limites da normalidade”; “(?) A
transa (= relação sexual) transcorreu dentro dos limites da normalidade”. Ademais, como
ressalta Gonçalves (op. cit.), ‘transa’ mantém a subcategorização de ‘transar’, uma vez que
admite complementação nominal: “José transou com Maria”; “A transa de José com
Maria” (exemplos do autor).
Quanto ao par ‘flagrante’/‘flagra’, Gonçalves (2011a) afirma que se trata de
truncamento, em vez de derivação regressiva do verbo ‘flagrar’, pois, ao contrário do que
15
se observou anteriormente, com o item ‘transa’, é possível utilizar a forma mais curta ou a
mais longa, sem que haja prejuízo da significação primária: “José deu um maior flagrante
em Maria”; “José deu um maior flagra em Maria”.
As diferenças verificadas quando da formação de ‘transa’ e ‘flagra’ podem ser
representadas pelo esquema em (02), a seguir, proposto por Gonçalves (op. cit.), no qual se
pode observar que há “dois nomes deverbais formados a partir de ‘transar’ (o regressivo e
o derivado sufixal), enquanto, de ‘flagrar’, deriva-se um substantivo deverbal, que, por sua
vez, ao ser truncado por esse padrão, perde exatamente o sufixo nominalizador”
(GONÇALVES, op. cit.: 304):
(02)
Transar Transação Flagrar Flagrante
Transa Flagra
Em suma, de acordo com o autor, pode-se dizer que truncamento e derivação
regressiva deverbal são processos que operam sobre inputs diferentes, pois o primeiro atua
apenas sobre nomes, enquanto o segundo tem verbos como palavras-matrizes e nomes
como produtos, apresentando, por isso, relação com a função de adequação sintática dos
processos de formação de palavras (ROCHA, 1998). Há um tipo de derivação regressiva,
deve-se lembrar, que também atua sobre nomes – este é o caso de ‘sarampão’ > ‘sarampo’,
já mencionado nesta subseção. Contudo, o referido tipo de derivação dificilmente pode ser
identificado sincronicamente e, além disso, tem como porção apagada uma sequência
tomada como afixo, diferenciando-se, assim, do truncamento – fenômeno em que não se
16
encontram obstáculos ao acesso à palavra-matriz e, além disso, é marcado pelo fato de a
parte suprimida não ser tomada como afixo, mas regida por fatores morfoprosódicos.
A seguir, o quadro resumitivo 1 destaca o grande número de fatores que podem ser
utilizados para assegurar a distinção entre truncamento e derivação regressiva:
Elenco de fatores Truncamento Derivação regressiva 1. Perda de segmentos Sim Sim 2. Sequência apagada tomada como afixo Não Sim (entre os nomes)7 3. Função sintática (BASILIO, 1987) Ausência Presença 4. Intercâmbio semântico Sim Não 5. Parte aproveitada no produto Radical ou não Radical 6. Vogal afixada -a (em um único padrão) -a, -e, -o Quadro resumitivo 1
Como se pode observar, o único fator responsável pela coincidência estrita entre
truncamento e derivação regressiva é a perda de segmentos. Em relação aos demais fatores,
os processos tocam-se apenas na especificação da parte aproveitada no produto e na vogal
afixada; porém, deve-se ressaltar, a derivação regressiva mantém sempre o radical da base,
enquanto o truncamento o mantém somente em parte dos dados. Quanto à vogal afixada,
observa-se que (-a) pode marcar os dois processos; contudo, no caso do truncamento, (-a) é
a única vogal a ser afixada em produtos e, ainda assim, apenas em um dentre os três grupos
de afinidade estrutural. Os derivados regressivos, por sua vez, ao lado de (-a), podem ser
marcados também pelas vogais (-e) e (-o). Em suma, com base nos fatores elencados,
pode-se defender a distinção entre truncamento e derivação regressiva, levando-se em
conta o fato de haver um maior número de fatores que apontam para o distanciamento
entre os processos em questão.
7 Entre os verbos, deve-se lembrar, a questão da interpretação da sequência apagada como afixo não se aplica, uma vez que se trata de um afixo de fato – uma desinência verbal, facilmente identificada pelo falante enquanto sequência presente nos verbos da língua.
17
Estabelecidas as diferenças existentes entre o truncamento e a derivação regressiva,
pode-se, a partir da próxima subseção, distingui-lo também dos processos de hipocorização
e abreviação, a começar pelo primeiro.
2.2.2. Truncamento e hipocorização
A hipocorização, assim como o truncamento, é um fenômeno que envolve
diminuição no corpo fônico da palavra-matriz. Entretanto, há diferenças entre os dois
processos que, segundo Gonçalves (2004), permitem defender a autonomia desses
fenômenos, embora autores como Colina (1996) e Piñeros (2000) considerem a
hipocorização um tipo de truncamento. Nesta subseção, portanto, adota-se a proposta de
Gonçalves (2004) e apontam-se as principais diferenças entre truncamento e
hipocorização, tomados como processos distintos.
A característica de bases e produtos pode ser utilizada como parâmetro para a
distinção entre truncamento e hipocorização, pois, no primeiro, têm-se bases e produtos da
categoria dos nomes próprios8 (‘Belo Horizonte’ > ‘Belô’) ou comuns (‘beleza’ > ‘belê’),
dentre os quais se encontram alguns que também podem exercer a função de adjetivos
(‘analfabeto’ > ‘análfa’; ‘pentacampeão’ > ‘pênta’). A hipocorização, por sua vez, atua
sobre antropônimos, que, após o encurtamento, mantêm a sua categoria. Em outras
palavras, pode ser considerada uma operação que tem como base e produto somente
antropônimos:
8 Nesse caso, topônimos, pois os antropônimos encontram-se sob o domínio da hipocorização, conforme será exposto a seguir.
18
(03)
‘Roberto’ > ‘Béto’
‘Alexandre’ > ‘Xânde’
‘Isabel’ > ‘Bél’
‘Fernando’ > ‘Nândo’
Quanto ao valor expressivo, tem-se nova diferença entre hipocorização e
truncamento, visto que a primeira apresenta relação com a afetividade ou com o grau de
intimidade existente entre o falante e a pessoa a que o antropônimo se refere.
Hipocorísticos são, em geral, construções restritas ao âmbito familiar ou ao círculo de
amizades do falante, nos quais se mostram tratamentos como ‘Malú’ (‘Maria Lúcia’) ou
‘Edú’ (‘Eduardo’).
Valor diferente possui o truncamento, cujo emprego se relaciona com a expressão
de pejoratividade (‘japonês’ > ‘jápa’) ou com outra marca do locutor sobre o enunciado
(‘refrigerante’ > ‘refrí’) – fatores ligados a contextos informais ou ao estilo adotado por
grupos de falantes jovens, independente dos laços de afetividade existentes na relação entre
falante e interlocutor.
Ainda em relação ao valor expressivo, cabe mencionar que os hipocorísticos,
segundo Thami da Silva (2013), apresentam maior carga de afetividade quando apresentam
estruturas menores, do tipo CV:
“[...] os hipocorísticos compostos por uma única sílaba CV, podendo esta ser passível de reduplicação, [...] são mais afetivos do que um encurtamento em que haja menor perda segmental, como no caso de dados como ‘Eduardo’ > ‘Edú’, que seria, então, menos afetivo; e ‘Dú’, considerado pelos informantes uma estrutura mais expressiva quanto à afetividade” (op. cit.: 108).
19
O truncamento, em contrapartida, não apresenta intensificação do valor expressivo
quando se comparam formas monossílabas (‘pós-graduação’ > ‘pós’), dissílabas
(‘bijuteria’ > ‘bijú’) e trissílabas (‘Maracanã’ > ‘Maráca’). Em outros termos, não parece
haver intensificação do grau de informalidade ou pejoratividade conforme a diminuição da
forma truncada. Tal afirmativa pode ser ratificada pela ocorrência de dois truncamentos
para a base ‘sapatão’ – ‘sápa’ e ‘sapáta’ – dentre as quais não se observa maior
expressividade no emprego da forma menor.
Truncamento e hipocorização distinguem-se também quanto à forma, pois, de
acordo com Gonçalves (2004), os hipocorísticos, por se assemelharem à linguagem
infantil, sujeitam-se a condições de boa-formação silábica, pois, nas referidas construções,
as estruturas silábicas de menor complexidade são privilegiadas. Dessa forma, a
hipocorização em português tende a apresentar, por exemplo, sílabas abertas (‘Augusto’ >
‘Gúto’) e onsets não complexos (‘Gertrudes’ > ‘Túde’), que se caracterizam por constituir
estruturas menos marcadas na língua. Além disso, a hipocorização forma palavras
mínimas, não ultrapassando, por isso, o limite de duas sílabas. Assim, hipocorísticos são
construções que possuem uma sílaba (‘Bél’, ‘Quél’) ou, no máximo, duas (‘Lípe’, ‘Lêne’).
Pelo que foi exposto até então, pode-se dizer que a hipocorização, além de formar
palavras mínimas na língua, está sujeita a condições de boa-formação que justificam
diferenças encontradas entre antropônimo e hipocorístico, tais como a simplificação de
onsets complexos (‘Euclides’ > ‘Kíde’) e a supressão de codas (‘Roberto’ > ‘Béto’), com o
objetivo de formar sílabas preferencialmente do tipo CV. Destarte, a hipocorização
consiste em um processo que privilegia a marcação sobre a fidelidade, uma vez que a
fidelidade à base pode ser sacrificada em favor de estruturas silábicas menos marcadas na
língua.
20
O truncamento, por sua vez, é um fenômeno em que a fidelidade à palavra-matriz
sobrepõe-se à marcação, pois, nesse caso, a margem esquerda da base é preservada na
forma truncada, mesmo que, para tanto, condições de boa-formação, como a não
complexidade no onset e a não-existência de codas, sejam desrespeitadas. Em outras
palavras, no processo de truncamento, estruturas silábicas consideradas complexas no
português são admitidas, não se observando bloqueios quanto ao preenchimento da posição
de coda (‘expô’, ‘gástro’) ou à complexidade no onset (‘refrí’, ‘rétro’), visto que a
fidelidade à margem esquerda da palavra-matriz mostra-se prioritária em relação a
estruturas menos marcadas.
Em relação à formação de palavras mínimas, o truncamento também apresenta
comportamento distinto da hipocorização, pois, enquanto esta última não ultrapassa o
limite de duas sílabas, o truncamento não forma necessariamente palavras mínimas. Os
dados a seguir mostram que truncamentos podem apresentar duas ou três sílabas:
(04)
‘Condí’ (‘condição’)
‘Belê’ (‘beleza’)
‘Carná’ (‘carnaval’)
‘Deprê’ (‘depressão’)
‘Bijú’ (‘bijuteria’)
‘Saláfra’ (‘salafrário’)
‘Madrúga’ (‘madrugada’)
‘Elétro’ (‘eletrocardiograma’)
‘Hemáto’ (‘hematologista’)
‘Pedágo’ (‘pedagogia’)
Existe, ainda, outra diferença entre hipocorização e truncamento, desta feita no
âmbito da afixação, uma vez que este último é um processo que pode se realizar por
meio da afixação da vogal (-a) após o encurtamento (‘português’ > ‘portúga’; ‘primeira’
> ‘príma’). Hipocorísticos, por sua vez, não são passíveis da afixação de qualquer vogal
21
depois de processado o encurtamento que gera palavras mínimas, muito embora possam
constituir bases para sufixações avaliativas (‘Dedeco’; ‘Cadinho’).
Tal como na subseção anterior, o quadro resumitivo 2, a seguir, apresenta os
fatores ora empregados na diferenciação entre truncamento e hipocorização, com vistas
a detectar os pontos em que os referidos processos se aproximam ou se afastam.
Elenco de fatores Truncamento Hipocorização
1. Perda de segmentos Sim Sim 2. Categoria da base Nomes comuns e topônimos Antropônimos 3. Valor expressivo Pejoratividade, informalidade Afetividade 4. Relação tamanho/valor expressivo Não Sim 5. Formação de palavras mínimas Não obrigatória Obrigatória 6. Marcação ou fidelidade à base Fidelidade Marcação 7. Afixação Sim (em um grupo de dados) Não Quadro resumitivo 2
Face aos aspectos discutidos nesta subseção e retomados no quadro acima, a
presente pesquisa toma hipocorização e truncamento como fenômenos distintos, pois o
grande número de diferenças encontradas mostra-se suficiente para a conclusão de que
se trata de dois processos que, embora envolvam o encurtamento da palavra-matriz,
possuem cada qual suas especificidades. Mais particularmente, os fenômenos
aproximam-se apenas na perda de segmentos da base, uma vez que se afastam em
relação aos demais fatores adotados. Quanto ao fator 5, deve-se comentar que, no
truncamento, pode haver a formação de palavras mínimas; porém, nesse caso, trata-se
de uma coincidência nos dados em que o material circunscrito (cf. capítulo 4) leva a
uma palavra mínima, a depender do número de segmentos da base que são apagados. Na
hipocorização, ao contrário, a formação de palavras mínimas é uma exigência do
processo de formação.
22
No que tange ao fator 7, pode-se dizer que a hipocorização se caracteriza pela
ausência de qualquer tipo de elemento afixado. O truncamento, em contrapartida, pode
envolver a afixação da vogal (-a), tal como se observa em ‘jápa’ (< ‘japonês’), bem
como pode ser processado sem afixação: ‘depilação’ > ‘depí’. No entanto, esse pequeno
ponto de aproximação é insuficiente para que seja apontada uma convergência entre os
processos em questão, uma vez que os pontos de distanciamento, além de mais
numerosos, são mais significativos.
Na próxima subseção, vejamos como podem ser diferenciados os processos de
truncamento e abreviação, de acordo com a perspectiva adotada na presente tese.
2.2.3. Truncamento e abreviação
Esta subseção visa a estabelecer diferenças entre os fenômenos de truncamento e
abreviação, pois, embora autores como Basilio (1987), Carone (2004) e Sandmann
(1990) considerem encurtamentos diversos como abreviações, na presente tese, para que
se trate de truncamento, é necessário atender a certas condições formais que não se
aplicam à abreviação. Por esse motivo, faz-se necessário delimitar os dois processos e
esclarecer de que modo a abreviação é entendida sob o ponto de vista adotado nesta
pesquisa.
O primeiro fator que pode ser utilizado para distinguir abreviação de
truncamento consiste em uma característica deste último que já foi apontada na
subseção 2.2.2: a preservação da margem esquerda da base. Formas truncadas mantêm-
se fiéis à margem esquerda de suas bases; isto é, no fenômeno de truncamento, a relação
de fidelidade entre forma truncada e palavra-matriz sobrepõe-se à necessidade de
23
submeter o produto a condições de boa-formação, uma vez que a fidelidade à porção
esquerda da base é priorizada sobre a emergência de estruturas não-marcadas na língua.
Nesse sentido, a abreviação distingue-se do truncamento por consistir em uma
operação que não apresenta compromisso com a preservação da margem esquerda da
palavra-origem, visto que, embora algumas formas a mantenham em parte (‘avenida’ >
‘av’; ‘senador’ > ‘sen’; ‘professor’ > ‘prof’), há um grande número de dados que
revelam a não-fidelidade à porção esquerda da base:
(05)
‘Praça’ > ‘pça’
‘Campo’ > ‘cpo’
‘General’ > ‘gal’
‘Excelentíssimo’ > ‘exmo’
‘Senhor’ > ‘sr’
‘Apartamento’ > ‘apto’
‘Loja’ > ‘lj’
‘Comandante’ > ‘comte’
‘Banco’ > ‘bco’
‘Coronel’ > ‘cel’
‘Santa’ > ‘sta’
‘Folha’ > ‘fl’
24
Dessa forma, o apagamento de segmentos que integram a margem esquerda da
palavra-matriz pode ser empregado como parâmetro para a diferenciação entre abreviação
e truncamento, uma vez que este último, por consistir em um fenômeno que privilegia a
fidelidade à base, tem como característica a preservação da porção esquerda, que é mantida
integralmente na forma truncada, mas não necessariamente em abreviações.
Outra diferença que pode ser apontada entre abreviação e truncamento é o fato de a
primeira formar, inúmeras vezes, sequências cuja ordenação de grafemas27 não
corresponde a estruturas silábicas aceitáveis em português. Dito de outra maneira, formas
abreviadas não raro são constituídas de sequências fônicas que não podem compor sílaba
em português, tais como ‘cpo’, ‘sr’, ‘pl’ e ‘bco’ – o que torna o processo de abreviação
restrito à escrita, por resultar em uma série de configurações que não podem ser tomadas
como palavras da língua28.
Truncamentos, em contrapartida, são sempre constituídos de sequências fônicas
que se conformam aos padrões silábicos do português – característica que lhes é conferida
pela preservação da margem esquerda da palavra-matriz. Assim, não há formas truncadas
consideradas mal-formadas por não corresponderem a construções entendidas pelo falante
como palavras do português. A partir de então, pode-se afirmar que o truncamento não se
apresenta como um fenômeno restrito à modalidade escrita, uma vez que as estruturas dos
outputs atendem aos padrões silábicos do português e podem, por essa razão, ser expressas
nas modalidades escrita e oral, o que não acontece com todas as abreviações.
27 Falamos em grafemas, nesse caso, porque acreditamos que a abreviação é um fenômeno típico da língua escrita. 28 Nesse caso, a forma abreviada ‘prof’ constitui exceção, uma vez que a epêntese vocálica na posição final tem como resultado ‘prófi’ ['pRçfi] – construção que se mostra adequada ao padrão silábico do português e, em consequência disso, pode ser pronunciada como uma palavra da língua, tal como se observa na fala espontânea. Contudo, na presente tese, não se considera ‘prófi’ um dado de truncamento, em virtude de o mesmo não se ajustar aos padrões identificados para a análise do fenômeno, pois, ao que parece, tem como origem uma forma abreviada na escrita.
25
O vínculo do truncamento à língua oral, enquanto abreviações se restringem à
escrita, suscita, além dos aspectos já discutidos anteriormente, uma questão que envolve o
tipo de input dos processos. Parece não haver dúvida quanto ao fato de a abreviação ter
como input uma forma escrita, considerando-se o enorme número de formas abreviadas
que não apresentam configuração silábica licenciada em português. O truncamento, por sua
vez, é um processo que tem como inputs dados de fala, ou seja, formas fonéticas, tal como
revelam, por exemplo, as formas ‘razú’ (< ‘razoável’) e ‘gúrja’ (< ‘gorjeta’), realizadas
com a vogal alta [u] em lugar da vogal média [o] na escrita. Essa característica do
truncamento, cumpre destacar, é responsável pelo uso na língua oral (modalidade em que
se encontram inputs e outputs), visto que estaria comprometida a finalidade do processo
caso um input de fala correspondesse a um output de escrita.
Em relação ao uso, também se estabelece, neste estudo, uma distinção entre
abreviação e truncamento, visto que este último pode ser empregado com o intuito de
expressar pejoratividade, imprimir a marca do falante sobre o enunciado ou indicar
informalidade (cf. 2.2.1). Desse modo, pode-se dizer que o falante, ao optar por formas
truncadas, visa, em geral, à expressão de um conteúdo não veiculado pela palavra-matriz.
A abreviação, por sua vez, não apresenta relação com os fatores supracitados, pois
a escolha do falante, nesse caso, parece estar condicionada à economia de tempo ou de
espaço na escrita, uma vez que grande número de formas abreviadas tem seu emprego
restrito a essa modalidade (‘pl’ e ‘bco’, por exemplo), embora algumas construções
possuam estrutura silábica compatível com os padrões do português, assim como ‘gal’ – o
que permite a análise e a pronúncia das mesmas como palavras da língua. Além disso, vale
lembrar o caso da abreviação ‘prof’, em que a epêntese vocálica adapta a forma ao padrão
26
silábico do português, segundo o qual a posição de travamento silábico não é licenciada às
consoantes fricativas labiais29.
Por fim, pode-se dizer que, ao valerem-se de abreviações, os falantes objetivam
encurtar formas de modo a promover a adaptação da palavra que se deseja utilizar a
condições de tempo e/ou espaço limitadas, visto que não se verifica a expressão de
conteúdos tais como pejoratividade, marca do falante sobre o enunciado e índice de
informalidade no uso de construções abreviadas, ao contrário do que se verifica no
truncamento – fenômeno em que tais aspectos se mostram relevantes.
Assim como nas subseções anteriores, o quadro resumitivo abaixo retoma as
semelhanças e diferenças entre truncamento e abreviação.
Elenco de fatores Truncamento Abreviação
1. Perda de segmentos Sim Sim 2. Fidelidade à margem esquerda Obrigatória Não obrigatória 3. Configuração silábica licenciada Obrigatória Não obrigatória 4. Tipo de input Fala Escrita 5. Valor expressivo Sim Não Quadro resumitivo 3
Como se pode observar, a aproximação entre o truncamento e a abreviação, tal
como verificado nas subseções destinadas à derivação regressiva e à hipocorização,
restringe-se à perda de segmentos, visto que os dois processos são caracterizados pelo
encurtamento da palavra-matriz. Deve-se lembrar que, embora haja formas abreviadas fiéis
à margem esquerda da base e/ou de estrutura silábica compatível com os padrões do
português, a abreviação é marcada pela não-obrigatoriedade em relação aos fatores 2 e 3,
ao passo que, no truncamento, é estritamente obrigatória a fidelidade à porção esquerda. 29 Vale lembrar que, de acordo com Camara Jr. (1970), há somente quatro consoantes pós-vocálicas, isto é, aquelas que podem ocupar a posição final de sílaba: o arquifonema /S/, o arquifornema /R/, /l/ e o arquifonema /N/. No dialeto carioca, têm-se como exemplos ‘mas’, ‘faz’, ‘flor’, ‘banda’ e ‘compra’. No referido dialeto, vale destacar, /l/ não ocupa a posição final de sílaba, uma vez que, nesse caso, tem-se o glide /w/.
27
Em suma, tomando-se como base os quadros resumitivos 1, 2 e 3, pode-se dizer
que o encurtamento de uma base é o único fator comum aos quatro processos listados nesta
seção: truncamento, derivação regressiva, hipocorização e abreviação. Contudo, os
referidos processos distinguem-se em relação a fatores de ordens diversas – o que nos
permite defender a separação entre eles, com base no maior número de fatores que levam
ao seu afastamento.
No próximo capítulo, apresenta-se a revisão da literatura acerca do processo de
truncamento, com o objetivo de verificar as diferenças encontradas em descrições feitas
com base nas perspectivas da Gramática Tradicional, dos manuais de morfologia e da
Teoria Morfológica. Em seguida, serão apresentadas algumas pesquisas recentes no
português brasileiro, que contribuíram para a sistematização do processo.
28
Capítulo 3 – Revisão da literatura
O presente capítulo destina-se a revisitar as descrições do fenômeno de
truncamento encontradas em gramáticas tradicionais, nos manuais de morfologia e em
trabalhos desenvolvidos sob a perspectiva da Teoria Morfológica. Em seguida,
apresentam-se algumas pesquisas recentes acerca do processo no português brasileiro.
Além disso, na última seção que compõe o capítulo, apresenta-se a metodologia adotada na
recolha dos dados e nos testes aplicados aos informantes. Comecemos, então, pela
descrição do truncamento segundo as abordagens tradicionalistas.
3.1. A perspectiva da Gramática Tradicional
Rocha Lima (2002), na seção denominada “outros tipos de formação de palavras”,
afirma que os processos de formação de palavras prototípicos em português são a
composição e a derivação. Contudo, o autor lista cinco fenômenos que denomina
“subsidiários” e reconhece como processos de formação de palavras, embora não os
descreva: onomatopeia (reprodução de ruídos, tal como em ‘tique-taque’), siglagem
(redução às letras iniciais de nomes longos como ‘Organização dos Estados Americanos’,
‘OEA’, por exemplo), hipocorização (encurtamento de antropônimos, assim como em
‘Fernanda’ > ‘Nanda’), braquissemia (próclise de prenome antes de nome de família (sic),
tal como se observa em ‘Fernão’ < ‘Fernando’) e, por fim, abreviação, que não é definida
pelo autor, somente exemplificada por ‘auto’ < ‘automóvel’ e ‘foto’ < ‘fotografia’, entre
outras formas.
29
Bechara (2001) atribui o nome de abreviação ao fenômeno de truncamento,
definido como “o emprego de uma parte da palavra pelo todo”. O autor cita, para fim de
exemplificação, as formas ‘extra’ (< ‘extraordinário’) e ‘foto’ (< ‘fotografia’), porém
mistura critérios ao considerar a siglagem “um caso especial de abreviação” (op. cit.: 371),
uma vez que não há parâmetro formal capaz de proporcionar uma análise comum à
formação de ‘extra’ e ‘ONU’, por exemplo, visto que a primeira copia, na íntegra, o
morfema situado na margem esquerda palavra-matriz (o prefixo latino ‘extra’), enquanto a
segunda constitui-se do primeiro segmento de cada palavra que compõe o nome da
instituição a que se refere: Organização das Nações Unidas.
Cunha & Cintra (2001), por sua vez, embora também atribuam ao truncamento o
nome de abreviação e a definam como “a redução de frases e palavras até limites que não
prejudiquem a compreensão” (op. cit.: 116), não incluem a siglagem no mesmo processo.
Como exemplos, os autores apontam formas tais como ‘pneu’ (< ‘pneumático’) e ‘quilo’
(< ‘quilograma’), a partir das quais afirmam que a palavra encurtada assume o sentido da
palavra-matriz.
Com base no exposto até então, pode-se dizer que a Gramática Tradicional (GT)
não descreve satisfatoriamente o fenômeno de truncamento, denominado abreviação por
todos os autores aqui citados. Outro problema encontrado na abordagem da GT é o fato de
Bechara (2001), por exemplo, conferir à siglagem o mesmo tratamento dispensado às
formas que denomina abreviadas – fato que acarreta uma contradição formal, uma vez que
siglagem e abreviação (nos termos do autor) apresentam características diferentes quando
da sua formação.
Como última observação, deve-se advertir que os autores mencionados adotam
como exemplos apenas dados relacionados ao padrão de truncamento denominado
‘odônto’ na presente tese; ou seja, todas as formas citadas pelos referidos autores são
30
constituídas pelos morfemas que compõem a borda esquerda da palavra-matriz (‘foto’;
‘extra’; ‘quilo’). Truncamentos pertencentes aos padrões ‘refrí’ e ‘flágra’, portanto, são
desconsiderados por esse tipo de abordagem.
Contudo, deve-se ressaltar que a descrição dos processos de formação de palavras,
segundo os autores aqui selecionados, aborda, ao lado dos processos mais tradicionais
(prefixação, sufixação, derivação regressiva), um fenômeno amplamente utilizado na
língua oral coloquial, que dá origem a formas truncadas como ‘êxtra’ e ‘gástro’, por
exemplo.
Na ausência de um aparato teórico, os autores representativos da GT denominam o
processo em questão de “abreviação”; porém, é importante notar que a identificação do
truncamento enquanto processo de formação de palavras pode ser considerado um marco
no estudo da morfologia do português, uma vez que abriu caminho para descrições mais
completas, realizadas por autores que se empenharam em detalhar formalmente o processo.
Vejamos, a partir de então, os pontos-de-vista de autores mais representativos da
morfologia.
3.2. A perspectiva dos manuais de morfologia
Quanto à perspectiva de morfólogos do português, Basilio (1987), por exemplo,
denomina “redução” ou “abreviação” a formação de novas palavras por meio da supressão
de segmentos da palavra-matriz. No entanto, a autora menciona dois tipos de estruturas que
resultam do processo: (a) ‘delega’ (< ‘delegado’), por exemplo, em que a parte suprimida é
considerada imprevisível e assistemática, e (b) ‘vídeo’ (< ‘videocassete’), na qual uma das
partes da composição é empregada pelo todo. Observe-se que Basilio (1987), embora
atribua ao processo o nome de abreviação, tal como os autores mais representativos da GT,
31
apresenta como exemplo a forma ‘delega’ – evidência de que reconhece a existência do
padrão de truncamento marcado pela circunscrição do radical da base, acrescido da vogal
(-a).
Carone (2004) também confere ao truncamento o nome de abreviação, definida
como “processo bastante limitado” (op. cit.: 42). Porém, a autora considera a atuação do
processo restrita a compostos formados a partir de radicais gregos ou latinos e toma como
exemplos, entre outras, as construções ‘auto’ (< ‘automóvel’) e ‘moto’ (< ‘motocicleta’).
Em Kehdi (2005), o truncamento, sob o nome de “abreviação”, é definido como a
redução de um vocábulo sem que ocorra a mudança de classe, tal como se observa em
‘extraordinário’ (adjetivo) > ‘extra’ (adjetivo) e ‘fotografia’ (substantivo) > ‘foto’
(substantivo). Ainda segundo o autor, a abreviação não é regida por critérios homogêneos,
pois, no caso de ‘extra’, reduz-se a base ao prefixo, enquanto, no caso de ‘foto’, é mantido
o primeiro radical da palavra-matriz composta.
Também Sandmann (1990) denomina “abreviação” o fenômeno que, de acordo
com o autor, consiste na omissão de parte da palavra-matriz. Quanto à tipologia, Sandmann
(op. cit.) propõe dois tipos de abreviações: (a) cérva e (b) máxi. O primeiro grupo, de
acordo com o autor, é marcado pelo fato de o falante, às vezes, realizar a abreviação com
base na suposta estrutura morfológica de uma palavra complexa. Como exemplo, o autor
cita a palavra-matriz ‘cerveja’, que, sincronicamente, não apresenta mais de um morfema –
daí o fato de serem consideradas arbitrárias as abreviações tipo ‘cérva’, uma vez que o
corte efetuado na base não corresponde ao limite entre constituintes de uma palavra
morfologicamente complexa. No referido grupo, deve-se destacar, Sandmann (1990) inclui
formas tais como ‘Lú’, ‘Crís’ e ‘Jô’, que, ainda segundo o autor, são empregadas em
contextos menos formais. Assim, pode-se dizer que o autor não faz distinção entre os
processos de truncamento e hipocorização.
32
Entre as abreviações tipo ‘máxi’, afirma Sandmann (1990), a estrutura da palavra
morfologicamente complexa é levada em consideração no encurtamento, bem como se
observa em ‘auto’ (< ‘automóvel’), ‘foto’ (< ‘fotografia’) e ‘micro’ (<
‘microcomputador’). Quanto à questão semântica, o autor propõe que, por se tratar de
encurtamentos processados respeitando-se os limites morfológicos da base, existe a
possibilidade de correspondência a mais de uma palavra-matriz, tal como se observa em
‘máxi’, que pode ser resultado da abreviação (nos termos do autor) de
‘maxidesvalorização’ ou de ‘maxissaia’, por exemplo. Nesses casos, porém, afirma que o
sentido pode ser recuperado no contexto.
Monteiro (1987), por sua vez, não atribui o nome de abreviação ao truncamento,
mas o denomina “braquissemia” – processo definido como o emprego de parte de uma
palavra pelo todo, em que o produto passa a valer semanticamente pelo vocábulo inteiro,
tal como se observa nos exemplos a seguir, listados pelo autor: ‘tri’ (< ‘tricampeonato’),
‘expô’ (< ‘exposição’) e ‘vice’ (< ‘vice-presidente’). Ainda segundo Monteiro (1987), o
truncamento (sob o nome de braquissemia), assemelha-se à siglagem, que denomina
acrossemia e define como o processo “que consiste na combinação de sílabas ou fonemas
extraídos dos elementos de um nome composto ou de uma expressão” (op. cit.: 175).
Observe-se que, tal como Bechara (2001), Monteiro (1987) aponta semelhança
entre a braquissemia (nos termos do autor) e a acrossemia (também chamada de siglagem),
embora, segundo Monteiro (1987), esta última seja caracterizada por uma “combinação de
sílabas ou fonemas” [grifo nosso] da base – o que não se aplica, necessariamente, à
braquissemia, marcada pela preservação da margem esquerda da palavra-matriz, sem
interrupção do processamento da cópia dos segmentos dispostos na periferia esquerda.
Monteiro (1987), Carone (2004) e Kehdi (2005) pouco acrescentam às descrições
encontradas nas GTs, uma vez que, embora reconheçam o truncamento como processo de
33
formação de palavras em português, o atribuem o nome de “abreviação” e limitam-se a
citar exemplos ligados somente a um dos padrões abordados nesta tese, aqui denominado
‘odônto’, composto por formas que mantém o morfema integral situado na borda esquerda
da palavra-matriz, tal como em ‘retroprojetor’ > ‘rétro’. Quanto a Kehdi (2005), deve-se
comentar que o autor não percebe a existência de um padrão comum na formação de
‘êxtra’ (< ‘extraordinário) e ‘fóto’ (< ‘fotografia’) – equívoco desfeito na presente tese, em
que o padrão ‘odônto’ é caracterizado pela preservação integral do morfema localizado na
margem esquerda da palavra-matriz, não importando se o morfema em questão é um
prefixo ou um radical.
Observe-se, com base nos autores pesquisados, que, mesmo entre os morfólogos do
português, não há consenso em relação à descrição do truncamento (denominado
abreviação ou braquissemia), uma vez que quase todos os autores o consideram um
processo assistemático e o descrevem em termos de listas de exemplos que não consistem
propriamente em uma tentativa de formalização. No entanto, deve-se reconhecer que
Basilio (1987) e Sandmann (1990) identificam os padrões de truncamento nesta tese
denominados ‘flágra’ e ‘odônto’, ao citar exemplos tais como ‘delega’, cérva’, ‘foto’ e
‘vídeo’.
Quanto a Basilio (1987), verifica-se um avanço na descrição do processo em
relação às abordagens pautadas na GT, visto que a autora, ao tomar a forma ‘delega’ como
exemplo, demonstra identificar um tipo de formação distinto daquele que consiste na
preservação de um prefixo/radical latino ou grego – o mais citado na literatura.
Em relação a Sandmann (1990), pode-se dizer que o autor apresenta uma tentativa
de sistematização do processo, com base em dois grupos por ele denominados ‘cérva’ e
‘máxi’. Neste último grupo, segundo o autor, o encurtamento respeita os limites das bases
morfologicamente complexas, tal como em ‘auto’ (< ‘automóvel’), ‘foto’ (< ‘fotografia’).
34
No outro grupo, encontram-se as formas do tipo ‘cérva’, em que o encurtamento é
realizado com base na suposição de que se trata de uma palavra morfologicamente
complexa. Neste último caso, o autor ressalta que (cerv-) não corresponde ao radical de
‘cerveja’ – daí a razão para que o referido grupo tenha sua formação considerada arbitrária,
visto que, sem o auxílio de fatores morfoprosódicos, o autor não dispunha de métodos para
a identificação do mapeamento da palavra-matriz, cuja cópia deve se ajustar a um molde e,
para tanto, pode perder alguns segmentos, tal como se propõe nesta tese (cf. capítulo 5).
Monteiro (1987), por sua vez, reconhece os padrões ‘refrí’ e ‘odônto’, visto que
apresenta, entre outras, as formas ‘expô’ e ‘vice’ como exemplos; porém, em uma postura
diferente daquela verificada em Sandmann (1990), não apresenta uma tentativa de
formalização, pois apenas cita os exemplos.
Em suma, embora a maior parte dos autores não descreva o processo de formação
dos exemplos por eles citados, pode-se dizer que as propostas de Basilio (1987), Monteiro
(1987) e Sandmann (1990), sobretudo deste último, representam um avanço em relação às
descrições pautadas na abordagem da GT, que se limitam a exemplificar o processo com
dados como ‘foto’ e ‘auto’30, frequentemente citados.
3.3. A perspectiva da Teoria Morfológica
A partir deste momento, será apresentado o ponto-de-vista de alguns autores
representativos da Teoria Morfológica, com o objetivo de verificar se são encontrados, à
30 Quanto ao encurtamento ‘auto’, deve-se advertir que se trata de um dado que não possui o mesmo status de ‘fóto’ e ‘trí’, por exemplo. A diferença consiste no fato de as últimas serem utilizadas como truncamentos de ‘fotografia’ e ‘tricampeão’, respectivamente, enquanto a forma ‘auto’ não se presta ao emprego de truncamento da base ‘automóvel’, uma vez que não ocorre como unidade lexical autônoma, tal como se observa nos exemplos a seguir: “Tenho apenas uma foto do meu avô paterno”; “A Itália era tri até a última Copa”; *“Troquei meu auto por um modelo mais recente”. Sob o ponto-de-vista adotado nesta tese, portanto, a forma encurtada ‘auto’ não é considerada um truncamento, mas um elemento que se junta a outras bases para a formação de vocábulos denominados recompostos, a exemplo de ‘autoescola’, ‘autocapa’ e ‘autopeças’ (cf. BELCHOR, 2011).
35
luz de suas propostas, avanços em relação às descrições até então retomadas para o
fenômeno de truncamento. Para tanto, faz-se necessário um breve retorno ao movimento
estruturalista – época em que ganhou força o estudo da estrutura interna da palavra.
No início do século XX, o Estruturalismo foi o enquadramento teórico que primeiro
se dedicou à morfologia, atribuindo ao morfema, não mais à palavra, o papel de unidade
mínima de significado. Em linhas gerais, pode-se dizer que a ideia de que as sentenças
podiam ser analisadas em unidades menores, denominadas constituintes imediatos,
também se aplicou à palavra. A partir de então, os critérios de identificação dos
morfemas, sua distribuição, interrelação e organização passaram a constituir o objeto de
estudo da morfologia, dando origem, sobretudo a partir de Bloomfield (1933), a uma área
da Linguística dedicada à morfologia, a que podemos chamar de Teoria Morfológica.
O meio de que os estruturalistas se utilizaram inicialmente para depreender os
morfemas foi a técnica de comutação, pressuposta no modelo de análise Item-e-Arranjo,
satisfatoriamente empregada no isolamento de afixos, mas insuficiente para descrever
casos de alomorfia, bem como processos de formação de palavras não-concatenativos,
assim como demonstrado no capítulo 1. Outro ponto controverso em relação ao modelo em
questão é o tratamento de “coisa” destinado aos morfemas, então considerados elementos
visíveis e isoláveis na estrutura da palavra.
Utilizando-nos de exemplos no português, casos de alomorfia no radical de verbos
para indicar pessoa (f/i/z1ª pessoa x f/e/z3ª pessoa) e, nos nomes, para reforçar a flexão de
número (gr/o/ssosingular x gr/ç/ssosplural) não podem ser descritos com base em combinações
lineares de morfemas, uma vez que pressupõem o acesso ao domínio fonológico. Casos
como o que se apresenta motivaram, portanto, o surgimento do modelo Item-e-Processo,
que admite a interferência da fonologia em determinados processos morfológicos e,
segundo o qual, palavras podem sofrer “processos” para alcançar a forma de superfície.
36
Dessa forma, abandona-se a concepção de morfema enquanto elemento “corporificado” e
postula-se a existência de operações (processos ou regras) que atuam em formas
subjacentes, transformando-as em formas de superfície31.
Devido ao fato de o objeto de estudo desta tese ser o truncamento (portanto, um
processo de encurtamento), vejamos quais os tipos de propostas que podem ser
encontradas na Teoria Morfológica acerca dos processos marcados pelo encurtamento de
uma palavra-matriz.
Bloomfield (1933) já propunha o traço (ou morfema) subtrativo, também
apresentado por Nida (1949), que determina a perda de fonemas para a expressão de uma
categoria gramatical específica – no caso citado, o gênero em francês: “tomando-se a
forma feminina como base, pode-se descrever a irregularidade pela simples assertiva de
que a forma masculina é derivada da feminina, por meio de um traço subtrativo [minus-
feature], a saber, a perda da consoante final ou do grupo [-kt]” (BLOOMFIELD, op. cit.:
217). Observe-se que, nesse caso, a noção de morfema já não consiste mais em uma
unidade “corporificada”, mas abstrata, que pode ser considerada uma operação de
apagamento de fonemas da base para a formação de um output encurtado.
Matthews (1998) também classifica como um processo de subtração a formação de
adjetivos franceses em que o gênero masculino deriva das formas femininas por meio da
supressão de segmentos finais. Observem-se os dados a seguir:
31 Também no modelo proposto por Chomsky & Halle (1968), processos fonológicos passaram a ser responsáveis pela relação entre as formas de superfície (output) e subjacente (input). No entanto, como o objetivo, neste momento, é fazer um breve retorno à vertente estruturalista para situar o surgimento da Teoria Morfológica, não detalharemos todo o percurso dos estudos morfológicos desde o Estruturalismo até os dias atuais.
37
(01)
Platte [plat] – fem. > Plat [pla] – masc. (plano)
Laide [lεd] – fem. > Laid [lε] – masc. (feio)
Longue [long] – fem. > Long [lon] – masc. (longo)
Distincte [distEnkt] – fem. > Distinct [distEn] – masc. (distinto)
O referido autor admite que há possibilidades de análise diversas para qualquer
fenômeno linguístico, e, por essa razão, a forma feminina poderia ser considerada como
derivada. Porém, caso a forma masculina seja tomada como base, da qual o feminino seria
constituído pela adição de morfemas, a consoante a ser afixada seria um problema à
sistematização do processo, uma vez que são inúmeras as possibilidades (de acordo com os
exemplos supracitados, ao menos três: [t], [d], [g]). Assim, a formação do masculino por
meio da subtração da consoante final de formas femininas torna-se uma descrição mais
passível de sistematização, pois, não havendo afixação, basta identificar que o processo
envolve o apagamento de consoantes finais das formas básicas para construir um
paradigma, em vez de prever a consoante que se afixaria à forma masculina. Observe-se
que, neste último caso, seria necessário estabelecerem-se mecanismos diversos para a
constituição do feminino, cada qual pressupondo a afixação de uma consoante específica.
Quanto à descrição da formação de adjetivos masculinos em francês, a partir da
forma básica de feminino, deve-se fazer a ressalva de que, embora seja incluída entre os
processos derivacionais por Matthews (1998), parece não haver dúvida de que a categoria
de gênero é flexional em português. Gonçalves (2005), por exemplo, propõe doze critérios
empíricos para a diferenciação entre flexão e derivação, dentre os quais apenas três nos
levam a considerar a categoria de gênero como derivacional: (1) meios de materialização,
38
uma vez que estratégias externas à morfologia podem ser responsáveis pela sua expressão,
tal como a heteronímia (homem – mulher); (2) efeitos expressivos, que podem ser
verificados em algumas formas de feminino, com forte carga pejorativa ou apelo sexual
(vagabundo – vagabunda); e (3) lexicalização de algumas formas de feminino, que se
distanciam das formas masculinas a elas associadas semanticamente (bruxa – borboleta
preta, não mais associada à forma masculina bruxo, que não sofreu lexicalização).
Sendo assim, para evitar ambiguidades, faz-se necessário destacar que, de acordo
com o objetivo desta tese, os casos em que o apagamento de segmentos da base leva a uma
nova palavra são mais interessantes, devido à semelhança com o comportamento do
truncamento.
Jensen (1990), por sua vez, ao tratar da formação de palavras por meio de
encurtamento, propõe a chamada back formation, que pode ser traduzida como derivação
regressiva e, segundo o autor, resulta na formação de novas palavras por meio da supressão
de segmentos presentes em vocábulos já existentes. Como exemplo, Jensen (1990)
menciona o par pease (‘ervilhas’) > pea (‘ervilha’), cujo segmento final do derivante, [z],
foi interpretado como morfema indicador de plural e, por conseguinte, eliminado para a
criação de uma suposta forma singular.
Quanto à percepção do falante em relação ao processo, Jensen (op. cit.) afirma que
a maioria não intui de que modo os produtos foram formados. Por isso, o autor considera a
back formation relevante apenas sincronicamente, visto que os falantes empregam as
palavras derivadas sem ter percepção do processo de formação das mesmas.
Observe-se que a concepção de Jensen (op. cit.) em relação à back formation
coincide com o processo denominado, em português, derivação regressiva, uma vez que
envolve a interpretação de segmentos finais como indicadores de categorias gramaticais –
ao contrário do que se verifica na proposta de Matthews (1998) para a expressão do gênero
39
masculino em adjetivos franceses, segundo a qual o processo derivacional envolve, de fato,
a supressão de um segmento indicativo de categoria gramatical.
Diferente proposta apresenta Spencer (1998), autor segundo o qual há análises
distintas para os fenômenos que denomina morfologia subtrativa e truncamento (em inglês,
subtractive morphology e clipping, respectivamente). A primeira, de acordo com o autor,
pode ser caracterizada pelo processo em que uma forma deriva de outra por meio do
apagamento de material segmental, enquanto, no segundo, as formas truncadas são
descritas em termos do ajuste da sequência fonológica que compõe a palavra-matriz a um
molde prosódico definido. Ainda segundo a proposta de Spencer (op. cit.), vale destacar
que, apesar de incluir o encurtamento de nomes próprios no fenômeno de clipping, não
diferenciando, portanto, hipocorização de truncamento, o autor relaciona este último
processo à morfologia avaliativa. Assim, Spencer (op. cit.) estende a descrição do clipping
para além das questões formais, ao incorporar aspectos relacionados ao uso das formas
truncadas.
A conclusão a que se chega, com base nas propostas aqui enumeradas, é de que,
desde Bloomfield (1933), os teóricos em morfologia se empenharam em explicitar os
mecanismos envolvidos na formação de novas palavras por meio do encurtamento das
respectivas bases. Porém, os autores citados aproximam-se mais da derivação regressiva,
por analisarem o fenômeno de encurtamento em relação a uma palavra-matriz ora como
necessário à expressão de categorias gramaticais, tal como na formação dos adjetivos
masculinos em francês, ora como processo vinculado à criação de novas palavras por meio
da reanálise de alguns morfemas (plural, por exemplo).
Observe-se que Spencer (1998) é o único autor que, assim como na perspectiva
adotada nesta tese, incorpora à sua proposta aspectos prosódicos e a existência de um
molde definido, embora trate hipocorização e truncamento como o mesmo fenômeno.
40
Uma vez revistas as descrições do fenômeno de truncamento encontradas no
âmbito da Gramática Tradicional, dos manuais de morfologia e da Teoria Morfológica,
deve-se ressaltar que o fenômeno, no português do Brasil, foi descrito de forma mais
sistemática em várias pesquisas recentes. A próxima seção, portanto, dedica-se à
apresentação das propostas de autores que se dispuseram a analisar o truncamento, com o
intuito de sistematizar o processo e refutar a ideia de que a formação do mesmo é irregular
e imprevisível.
3.4. Pesquisas recentes acerca do truncamento no português do Brasil
Santos (2002) realizou uma pesquisa morfopragmática acerca do truncamento no
português do Brasil, em que buscou diferenciar o fenômeno dos processos de formação de
palavras mais prototípicos – no caso, o autor estabeleceu o foco da discussão na derivação
regressiva, por ser esta também um processo em que parte da palavra-matriz é suprimida.
Além deste último processo, o autor traçou também as diferenças encontradas entre o
truncamento e outros processos não-concatenativos em que se verifica a cópia total ou
parcial da base, a saber: reduplicação de base verbal (‘corre-corre’), hipocorização
(‘André’ > ‘Dedé’), e siglagem (‘Serviço Nacional do Comércio’ > ‘SENAC’).
Quanto às funções linguísticas atuantes no truncamento, Santos (2002) propõe que
se trata de um processo de formação de palavras no qual não ocorre mudança em relação à
categoria da base, uma vez que o mesmo pode ser caracterizado por reproduzir um
sinônimo da palavra derivante. Assim, o termo truncado tem o mesmo valor semântico e a
mesma especificação morfossintática da palavra-matriz (‘motorista’ > ‘motô’; ‘condição’ >
‘condí’). Ainda segundo o autor, o truncamento também não apresenta função de
denominação ou rotulação, tomando como base o fato de que o falante não se utiliza de
41
formas truncadas com o objetivo de rotular ou denominar “um item conceitual ou material
existente no universo para o qual não haja denominação” (SANTOS, 2002: 49).
A pesquisa realizada por Santos (op. cit.) constata, portanto, que a função
expressiva de avaliação (função discursiva) é a que mais se relaciona com o truncamento,
pois “parece não haver dúvida de que o processo é movido por aspectos discursivo-
pragmáticos e pela subjetividade do falante” (SANTOS, 2002: 50), que se externa por
meio da pejoratividade (‘japonês’ > ‘jápa’; ‘militar’ > ‘milíco’) e da afetividade
(‘professor’ > ‘prófe’). Sob essa perspectiva, Santos (2002) propõe também que o
truncamento está relacionado à linguagem dos jovens e à de grupos que utilizam fala
menos formal – o que permite a associação do fenômeno a aspectos sócio-culturais do
falante32.
Quanto à expressão de afetividade, vale ressaltar que o autor aponta seis formas
truncadas que apresentam essa função, a saber: ‘Mengo’, ‘Nense’, ‘níver’, ‘profe’ e ‘mina’.
Contudo, os referidos dados não se incluem no corpus desta tese, pelas razões que se
seguem.
As três primeiras não apresentam uma característica muito marcante do
truncamento – a fidelidade à margem esquerda da base; assim, parece que se trata de
formações isoladas, pouco produtivas enquanto grupo sistemático. ‘Profe’, conforme já
explicitado neste capítulo, não recebe o tratamento de forma truncada porque, segundo nos
parece, tem como input uma forma escrita abreviada (‘prof.’) – ao contrário de
truncamentos legítimos, que têm como inputs dados de fala. ‘Mina’, por sua vez, é uma
forma não incluída no corpus devido à rara ocorrência no dialeto carioca, em que se baseia
a pesquisa, pois, ao que tudo indica, parece ser um encurtamento típico de dialetos de São
Paulo. Em relação a esta última forma, deve-se acrescentar, a descrição pela Morfologia 32 A possibilidade de construções morfológicas veicularem informações sócio-culturais do falante ou de grupos de falantes apresenta relação com a função indexical, proposta por Gonçalves (2003).
42
Prosódica Circunscritiva seria eficiente, tal como será demonstrado no capítulo 5 –
subseção 5.4.
Pelas razões acima expostas, o vínculo com a expressão de afetividade é atribuído,
na presente tese, à hipocorização, tal como explicitado no capítulo 2, subseção 2.2.2, visto
que não se encontram no corpus truncamentos cujo emprego esteja relacionado à interação
afetiva entre os falantes.
Em relação ao aspecto formal, a proposta de Santos (op. cit.) consiste em alocar os
96 dados recolhidos em três grupos fundamentais: (a) com base simples; (b) com base
simples derivada (sufixada); e (c) com base complexa (composta ou prefixada). De acordo
com o autor, no grupo (c), a redução se restringe ao primeiro elemento da base, que passa a
ser usado pelo todo, em um jogo metonímico, tal como se verifica em ‘poliomielite’ >
‘pólio’ e ‘heterossexual’ > ‘hétero’, por exemplo.
As bases simples derivadas (incluídas no grupo b), seja o sufixo verdadeiro ou não,
envolvem, de acordo com Santos (op. cit.), três etapas na formação do truncamento: (1)
cópia da primeira sílaba + o onset da segunda, ou cópia da primeira e segunda sílabas + o
onset da terceira; (2) eliminação de todos os segmentos fônicos posteriores ao material
copiado; e (3) frequente acréscimo da vogal (-a). Como exemplos, o autor cita, dentre
outros, ‘jápa’ (< ‘japonês’), ‘flágra’ (‘flagrante’) e ‘pratíca’ (< ‘praticante’).
Por fim, no grupo (a), que reúne as bases simples, a formação do truncamento
envolve a supressão de todo o material fônico após o onset da segunda ou da terceira
sílaba, bem como a adjunção da vogal (-a) na posição de rima da sílaba final, tal como em
‘sargento’ > ‘sarj +a’ > ‘sarja’ e ‘Maracanã’ > ‘Marac + a’ > ‘Maraca’. Observe-se que
Santos (op. cit.) propõe os grupos (a) e (b) apenas com base na caracterização das palavras-
matrizes, separando as simples daquelas que apresentam sufixo, uma vez que, segundo o
próprio autor, nas
43
“formas de apenas uma base, sufixadas ou não, [o truncamento] ocorre com a cópia da primeira sílaba e o onset da segunda ou a cópia das duas primeiras e do onset da terceira sílaba da forma-base mais a adjunção da vogal baixa /a/. Qualquer segmento fônico diferente da vogal adicionada após o onset da última sílaba da forma truncada é eliminado” (SANTOS, op. cit.: 67-68).
Por conseguinte, a análise de Santos (op. cit.) é realizada com base na formação de
três grupos de dados que podem ser reduzidos a dois, uma vez que as bases simples,
acrescidas ou não de sufixos, geram truncamentos de mesmas especificações formais.
Nesse caso, haveria dois grupos de dados: um que englobasse as bases simples, ainda que
sufixadas, e outro que reunisse as bases consideradas complexas pelo autor (compostas e
prefixadas). Outro aspecto digno de nota na pesquisa de Santos (op. cit.) é o fato de os
exemplos citados pelo autor, com raras exceções, conformarem-se aos padrões nesta tese
denominados ‘odônto’ e ‘flágra’, ficando o padrão ‘refrí’ descoberto pela análise.
Porém, deve-se ressaltar que a proposta de Santos (op. cit.), embora consista na
descrição de grupos de dados diferentes dos apresentados nesta tese, representa um avanço
na sistematização do truncamento, pois o autor objetiva refutar o rótulo de “assistemático”
que muitos morfólogos atribuem ao processo, valendo-se, para tanto, de uma proposta que
identifique regularidades na geração de formas truncadas.
Também Araújo (2002) realizou estudo sobre a formação do truncamento no
português do Brasil – processo que define como a redução de uma palavra, por meio da
perda de material segmental, em geral, silábico, no limite direito da palavra-matriz. Ainda
segundo o autor, trata-se de um fenômeno regular e previsível em que as bases devem
possuir, no mínimo, três sílabas, e as formas truncadas tendem a ser dissilábicas (‘cérva’ <
44
‘cerveja’, ‘refrí’ < ‘refrigerante’; ‘bijú’ < ‘bijuteria’), embora encontrem-se dados com três
sílabas, tais como ‘respônsa’ (< ‘responsável’), por exemplo.
Quanto ao significado, Araújo (op. cit.) afirma que não há perda de valor semântico
no processo de truncamento. Assim, de acordo com o autor, a forma truncada e a palavra-
matriz devem ser semântica e pragmaticamente intercambiáveis. A maior contribuição do
autor, no entanto, está relacionada à formalização do fenômeno em estudo, com base em
um corpus de 28 formas truncadas verificadas nos dialetos paulista, gaúcho e mineiro.
Antes de proceder à análise dos dados, contudo, Araújo (op. cit.) diferencia o
truncamento do processo que denomina pseudotruncamento. De acordo com o autor,
ocorre pseudotruncamento em três situações, a saber: (1) quando o truncamento é efetuado
na língua de origem, assim como em ‘metrô’, que, segundo o autor, não é derivado de
‘metropolitano’, mas entra no português brasileiro diretamente como empréstimo do
francês; (2) quando o falante é incapaz de rastrear a base, tal como se verifica na forma
truncada ‘deprê’, que pode corresponder a duas bases distintas (‘depressão’ e
‘deprimido’)33; e (3) quando um elemento de uma base complexa é identificado e usado
metonimicamente, como se observa em ‘eletrocardiograma’, ‘eletrodoméstico’ > ‘elétro’ e
‘gastrologia’, ‘gastrocentro’ > ‘gástro’. Neste último grupo, vale ressaltar, o autor afirma
que a palavra-matriz é recuperável contextualmente, uma vez que há mais de uma
possibilidade de associação.
Araújo (2002) afirma que truncamentos verdadeiros são formas unívocas,
rastreáveis e intercambiáveis com as respectivas bases, visto que não ocorre alteração de
valor semântico da palavra-matriz para o produto. Dessa forma, o autor distingue
truncamento de pseudotruncamento, pois defende que, neste último processo, os produtos
33 O autor defende que construções como ‘Maria está na maior deprê’ e ‘Maria está muito deprê’, em que as bases da forma ‘deprê’ são, respectivamente, ‘depressão’ e ‘deprimida’, impedem o falante de acessar a palavra-matriz, uma vez que há mais de uma possibilidade.
45
não são unívocos e rastreáveis. Contudo, o próprio autor reconhece que, nos casos
anteriormente citados em (3), a palavra-matriz é recuperada contextualmente – o que
parece uma contradição, se for levada em conta a afirmação de que, na forma ‘deprê’, a
correspondência a duas possíveis bases torna o falante incapaz de rastrear a verdadeira
palavra-matriz. Araújo (op. cit.), no entanto, não menciona a possibilidade de o falante
identificar contextualmente a base da forma ‘deprê’ – o que parece perfeitamente aceitável.
Quanto à formação do truncamento efetivamente, Araújo (op. cit.) aponta um
padrão geral, com base em dois tipos de truncamento. O primeiro tipo, segundo o autor, é
constituído de formas cujas palavras-matrizes possuem três sílabas e não apresentam
acento secundário. Quanto aos produtos, o autor aponta que se formam, invariavelmente,
truncamentos dissilábicos e acentuados na penúltima sílaba (‘cerveja’ > ‘cérva’, ‘neurose’
> ‘nêura’, ‘flagrante’ > ‘flágra’). O segundo tipo identificado por Araújo (op. cit.) é
caracterizado por dados em que as bases possuem três ou mais sílabas e dois acentos, ou
seja, trata-se de palavras-matrizes que portam acento secundário. O autor afirma que, no
segundo tipo de truncamento (‘professor’ > ‘prófi’, ‘bijuteria’ > ‘bijú’, ‘refrigerante’ >
‘refrí’), a previsibilidade do acento é mais complexa, porém não idiossincrática, e “como a
maioria das formas truncadas provêm de palavras com três ou mais sílabas, a relevância da
posição do acento secundário torna-se crucial” (ARAÚJO, op. cit.: 69).
Para evidenciar a relevância do acento secundário no processo de truncamento,
Araújo (op. cit.) afirma que a gramática da língua (no caso, o português brasileiro) utiliza-
se de tal acento, quando disponível, para fazer a distinção entre formas que se opõem
apenas pela posição do acento34. Como exemplos, o autor cita as formas truncadas a seguir,
colhidas em diferentes variedades dialetais35:
34 Deve-se acrescentar que, em ‘refrí’ x ‘réfri’, a oposição não repousa somente na posição do acento, pois vogais médias altas pretônicas passam a médias baixas, ou seja, abrem-se, quando se tornam tônicas. Assim,
46
(02)
Refrìgeránte > refrí (dialeto paulista)
Rèfrigeránte > réfri (dialeto paraense)
As formas ‘refrí’ e ‘réfri’, acima listadas, distinguem-se pela acentuação oxítona e
paroxítona, respectivamente – o que, segundo Araújo (2002), se deve à posição do acento
secundário na base, mantida na forma truncada como acento principal. Assim, o autor
justifica a importância do acento secundário no fenômeno de truncamento, uma vez que o
mesmo se mostra altamente relevante tanto na formação dos dados quanto na oposição
entre formas. Contudo, ressalta que a posição do acento secundário não é o único fator
atuante na formação do truncamento e aponta quatro condições que devem se aplicar ao
processo:
(03)
(i) a palavra-matriz deve ter três ou mais sílabas;
(ii) contando-se da esquerda para a direita, selecionam-se as duas primeiras
sílabas da base e eliminam-se as restantes: δ1 δ2 (δ3 δ4 δ5 δ6) � δ1 δ2;
(iii) as condições fonotáticas da língua devem ser respeitadas;
(iv) o acento deve ser atribuído à sílaba que guardava acento secundário na
palavra-matriz. Se não houver acento secundário, acentua-se a penúltima
sílaba.
a diferença entre as formas citadas consiste, na verdade, em dois aspectos – a posição do acento e a altura da vogal média: r[e]'fri x 'r[E]fri. 35 Repete-se aqui a notação utilizada pelo autor para indicar os acentos primário (diacrítico agudo) e secundário (diacrítico grave).
47
Para fim de exemplificação, o autor aplica as condições supracitadas à formação de
‘refrí’, tomando como base a forma encontrada no dialeto paulista, com acento secundário
na segunda sílaba: refrìgeránte. No caso da referida base, a condição (i) se aplica, uma vez
que se trata de palavra-matriz com mais de três sílabas. A condição (ii) também é
respeitada, pois conservam-se, a partir da borda esquerda, as duas primeiras sílabas da
base, eliminando-se todos os segmentos subsequentes. A condição (iii) também se aplica à
referida forma truncada, visto que os padrões fonotáticos do português brasileiro estão
preservados. A condição (iv), por fim, assegura a acentuação oxítona do truncamento, pois
a palavra-matriz porta acento secundário na sílaba -fri-, que recebe o acento principal na
forma truncada: ‘refrí’.
As formas truncadas trissilábicas, segundo Araújo (2002), compõem uma segunda
classe de truncamentos, uma vez que se trata de formas menos comuns que os
truncamentos dissilábicos. Ainda de acordo com o autor, os truncamentos compostos por
três sílabas são predominantemente paroxítonos e tendem a preservar a raiz da base, tal
como se observa em ‘português’ > ‘portúga’ e ‘traficante’ > ‘trafíca’. Nesses casos, afirma
Araújo (op. cit.), a condição (ii), segundo a qual devem ser selecionadas as duas primeiras
sílabas da base, descartando-se as seguintes, pode ser infringida por força da especificação
lexical. Em outras palavras, os dados citados revelam que deve haver, nesses casos, uma
condição que determine a fidelidade ao conteúdo lexical da base, quando a aplicação da
condição (ii) falhar. Nas palavras do autor:
“se a lexicalidade mesma da palavra é expressa por sua raiz, manter o máximo possível desse elemento idiossincrático é preferível, senão fundamental. Caso contrário a possibilidade de rastreamento lexical estaria comprometida. A manutenção da base fica evidenciada pela terminação uniforme desse tipo de truncamento, ou seja, a vogal final é sempre /a/. Nesse caso, a epêntese é a alternativa ao apagamento que poderia provocar a perda da lexicalidade e, ao mesmo tempo, impedir
48
codas proibidas como *saláfr, truncamento agramatical de salafrário” (ARAÚJO, op. cit.: 72).
Observe-se que Araújo (op. cit.) destaca a afixação da vogal (-a) somente na
segunda classe de truncamentos proposta, não detalhando os casos de formas dissilábicas
às quais a referida vogal também se adjunge, como ‘cérva’ (< ‘cerveja’), ‘chína’ (<
‘chinês) e ‘tráva’ (< ‘travesti’). Ademais, os truncamentos cuja formação envolve a
afixação de (-a) podem ser caracterizados pela preservação ou não da raiz da base, tal
como será explicitado no capítulo 5, destinado à análise de dados com os procedimentos da
Morfologia Prosódica Circunscritiva.
A proposta de Araújo (2002) consiste, no entanto, em um grande avanço na
tentativa de formalização do truncamento, embora o referido autor fundamente sua análise
em tipos de formas truncadas que diferem dos grupos de dados utilizados na descrição
realizada na presente tese. As condições (i) a (iv), estabelecidas pelo autor, aplicam-se aos
truncamentos do grupo aqui denominado ‘refrí’, que, de fato é marcado pela preservação
das duas sílabas iniciais. Quanto à acentuação, porém, os dados incluídos no referido
padrão apresentam proeminência sempre à direita (são todos oxítonos). As formas
truncadas pertencentes ao padrão denominado ‘flágra’ nesta tese estão alocadas, segundo
Araújo (op. cit.), na segunda classe de truncamentos, em que o autor afirma haver a
preservação da raiz da base – o que, segundo a proposta aqui adotada, nem sempre ocorre.
Os truncamentos que se ajustam ao padrão ‘odônto’, por sua vez, não fazem parte da
formalização proposta pelo autor, uma vez são considerados pseudotruncamentos. Em
suma, pode-se dizer que o referido autor identifica os três padrões de truncamento
analisados na presente tese, embora proponha uma descrição diferente para os padrões
‘refrí’ e ‘flágra’, e não inclua o padrão ‘odônto’ na análise.
49
Vilela, Godoy & Cristófaro Silva (2006) também empreenderam recente estudo
acerca das propriedades do fenômeno de truncamento, que, segundo as autoras, consiste
em um processo do português do Brasil contemporâneo caracterizado por alterar a
organização segmental de palavras preexistentes na língua, cuja atuação origina palavras
que passam a co-ocorrer com a palavra-matriz.
A pesquisa realizada pelas autoras retoma o ponto de vista da Gramática
Tradicional em relação ao truncamento, com o objetivo de identificar os problemas que
podem ser encontrados na descrição do processo, e discute as abordagens dos manuais de
morfologia, bem como as de Araújo (2002) e Gonçalves (1999), além de apresentar a
caracterização do fenômeno por autores diversos. A proposta central, deve-se ressaltar, não
consiste na aplicação de um modelo teórico ao processo, mas na testagem de critérios
utilizados por outros autores, tal como se destaca no início do artigo: “a partir da coleta e
organização de um corpus relativamente extenso (em torno de 150 vocábulos), testamos as
assertivas dos autores, listando as características do truncamento, as quais se configuraram
mais como tendências do que como regras categóricas” (VILELA, GODOY &
CRISTÓFARO SILVA, 2006: 150)
No referido estudo, é feita a distinção entre truncamento e os processos de (a)
abreviação, como ‘apê’, por exemplo, que consiste na representação ortográfica da
abreviação de ‘apartamento’; (b) siglagem, processo considerado pelas autoras muito
produtivo no português do Brasil e que pode ser exemplificado por ‘tevê’, leitura da sigla
TV; e (c) redução vocabular, que, sob a perspectiva das autoras, caracteriza-se por um
corte morfológico no limite da composição, tal como se observa em ‘fotografia’ > ‘foto’.
O método empregado na pesquisa baseou-se em apresentar alguns exemplos de
truncamentos a 59 alunos da Faculdade de Letras da UFMG, no ano de 2004, solicitando-
se que, em seguida, realizassem o encurtamento de uma lista de dados do português
50
brasileiro. O teste foi realizado por escrito, sob a orientação de que a sílaba tônica da forma
truncada fosse indicada por meio de acentuação gráfica aguda. As palavras selecionadas
para o experimento foram coletadas pelas autoras no uso cotidiano dos falantes de Belo
Horizonte, e reuniu-se, desse modo, um corpus de 152 dados de truncamento e redução
vocabular36.
Com base em critérios tomados de Araújo (2002), Vilela, Godoy & Cristófaro Silva
(2006) propõem uma nova análise para o fenômeno de truncamento, tal como se segue.
Quanto à vogal temática, os resultados mostraram que, dentre os 47 truncamentos
dissilábicos, há 24 terminados na vogal (-a), como ‘búrga’ < ‘burguês’ e ‘crúza’ <
‘cruzeiro’; e 23 terminados em outras vogais presentes na base (‘profí’ < ‘profissional’,
‘facú’ < ‘faculdade’), enquanto, para as formas truncadas trissilábicas, foi confirmada a
generalização feita por Araújo (op. cit.) quanto ao fato de a vogal final dos trissílabos ser
sempre (-a): ‘perífa’ < ‘periferia’, ‘vestíba’ < ‘vestibular’. Entre os dados dissilábicos, no
entanto, a produtividade das formas terminadas em (-a) e em outras vogais é, segundo as
autoras, bastante equilibrada.
Em relação ao local do corte, Vilela, Godoy & Cristófaro Silva (op. cit.) discutem a
afirmativa de Araújo (2002), segundo a qual o apagamento de segmentos ocorre no limite
direito da palavra. As autoras verificaram que, apesar de, na maior parte dos dados, o corte
ser efetuado pela borda direita, há formas truncadas presentes no corpus que sofrem o
encurtamento a partir da margem esquerda, tais como ‘paranoia’ > ‘nóia’ e ‘cachaça’ >
36 Conforme dito anteriormente, Vilela, Godoy & Cristófaro Silva (2006) diferenciam truncamento de redução vocabular, definindo o primeiro como um processo em que as bases não são, em geral, compostas, e o corte ocorre de acordo com fatores morfofonológicos, tal como se observa em ‘granfa’ (< ‘grã-fino’), ‘palha’ (< ‘palhaço’) e ‘mordô’ (< ‘mordomia’). A redução vocabular, por sua vez, consiste, segundo as autoras, no fenômeno morfológico em que o ponto de corte da base é um limite morfológico, gerando uma forma reduzida que corresponde, em geral, à base que se encontra à esquerda: ‘foto’ (< ‘fotografia’), ‘retro’ (< ‘retroprojetor’), ‘lipo’ (< ‘lipoaspiração’). Ademais, as referidas autoras consideram o truncamento um fenômeno marcado socialmente, enquanto a redução vocabular não apresenta vínculo com a marcação social, mas com a intimidade do falante em relação ao assunto.
51
‘cháça’37. Vale ressaltar que, sob a perspectiva da presente tese, o apagamento de
segmentos da margem esquerda justifica-se pelo fato de a eliminação de segmentos que
compõem a borda direita acarretar a coincidência com palavras já existentes na língua:
‘paranoia’ > ‘para’ (verbo); ‘cachaça’ > ‘cácha’ ['kaSå] (caixa).
As autoras pesquisaram também o número de sílabas das formas truncadas e
afirmam que, embora Araújo (2002) considere o truncamento um fenômeno que gera
formas predominantemente dissilábicas, há, no corpus, 42% de truncamentos trissilábicos
– percentual bastante expressivo, que parece contrariar a proposta do referido autor. Como
exemplo, Vilela, Godoy & Cristófaro Silva (2006) citam a palavra-matriz ‘satisfação’, cuja
forma truncada presente no corpus é ‘satísfa’ – produzida pela maioria dos informantes
que responderam aos testes, do modo como se segue:
(04)
Dissílabos oxítonos (‘satís’/‘satí’): 36,4%
Dissílabo paroxítono (‘sáti’): 5,5%
Trissílabo (‘satísfa’): 54,5%
Além dos dados compostos por duas ou três sílabas, há também formas
monossilábicas consideradas truncadas no corpus; contudo, as autoras atribuem tais formas
exclusivamente a nomes próprios (‘Lu’ < ‘Luciana’/‘Luísa’, ‘Cris’ < ‘Cristiane’/
‘Cristina’), o que, sob a perspectiva adotada nesta tese, não procede, uma vez que o
37 Ao que tudo indica, esse caso de truncamento é característico da fala mineira. No dialeto carioca, o truncamento de ‘cachaça’ é ‘cátia’, com a alteração da consoante fricativa palatal para africada palatal observada na forma popular [katSi'aså]. O uso dessa forma generalizou-se com uma música composta e interpretada pelo cantor Latino.
52
encurtamento de antropônimos não constitui caso de truncamento, mas de hipocorização
(cf. GONÇALVES, 2004; THAMI DA SILVA, 2008; e LIMA, 2008).
Quanto ao rastreamento, deve-se lembrar que Araújo (2002) vincula a legitimidade
do truncamento ao fato de a palavra-matriz ser sempre rastreável. Nesse sentido, o autor
não reconhece a forma ‘deprê’ como um truncamento legítimo, por ser possível a sua
correspondência a duas bases: ‘depressão’ e ‘deprimido(a)’. Vilela, Godoy & Cristófaro
Silva (2006: 163), entretanto, refutam a proposta do autor e afirmam que “um truncamento
que corresponde a mais de uma base será facilmente rastreável no contexto semântico-
pragmático em que é proferido”. Logo, as autoras afirmam não haver razões para que
‘deprê’ não seja considerada uma forma truncada, assim como ‘presí’ (< ‘presidente’ ou
‘presidiário’?) e ‘socí’ (< ‘social’ ou ‘sociedade’?).
Em relação ao acréscimo semântico, último fator pesquisado por Vilela, Godoy &
Cristófaro Silva (op. cit.), as autoras defendem que formas truncadas externam o ponto de
vista ou avaliação do falante, tal como propõe Gonçalves (1999), porém não apenas com
carga pejorativa, mas também jocosa, de zombaria, afetiva e familiar.
Scher (2011) desenvolveu estudo acerca de formas truncadas no português
brasileiro e no espanhol peninsular, com o objetivo de suscitar um debate que contribua
para a sistematicidade do fenômeno. Segundo a autora, o truncamento “não precisa ser
descrito como um processo não-concatenativo de formação de palavras” (op. cit.: 62) em
trabalhos posteriores, dada a sistematicidade que pode ser detectada em sua formação.
Sem o intuito de investigar as motivações para a ocorrência de formas truncadas e
as questões relacionadas ao uso das mesmas, Scher (2011) afirma que o objetivo do
trabalho é, na verdade, descrever alguns aspectos formais do truncamento nas duas línguas
pesquisadas. Ainda segundo a autora, os dados serão descritos, posteriormente, em um
estudo norteado pela Morfologia Distribuída – modelo teórico que não atribui papel à
53
prosódia e, portanto, não leva em conta aspectos que são considerados, nesta tese,
altamente relevantes na descrição do truncamento.
De acordo com algumas propriedades morfofonológicas das formas truncadas,
Scher (op. cit.) propõe a distribuição dos dados em padrões de formação, levando-se em
conta seis questões, a saber: (1) o material realizado no truncamento posiciona-se à
esquerda ou à direita da base? (2) A palavra-matriz é formada por composição ou
derivação? (3) O último segmento da raiz da base é consonântico ou vocálico? (4) Se
consonântico, haverá inserção de material fonológico? (5) Caso haja inserção de vogal, a
sequência final do truncamento será (V)C ou (V)CV? (6) Quais as vogais inseridas?
Sendo assim, Scher (2011) propõe a distribuição das formas truncadas em sete
padrões distintos, a seguir enumerados em (05):
(05)
Padrão I: a forma truncada corresponde a uma forma composta ou derivacional, da
qual realiza apenas a parte final, tal como em ‘noia’ (< ‘paranoia’) e ‘chaça’ (<
‘cachaça’).
Padrão II: a forma truncada corresponde a um composto, de que realiza apenas o
morfema inicial, assim como em ‘oftalmo’ (< ‘oftalmologista’) e ‘hidro’ (<
‘hidromassagem’).
Padrão III: a forma truncada corresponde a uma palavra bimorfêmica, de que
realiza uma parte da raiz, mantendo a vogal presente em sua estrutura prosódica,
como nos exemplos ‘deprê’ (< ‘depressão’) e ‘cafa’ (< ‘cafajeste’).
Padrão IV (mais frequente): a forma truncada corresponde a uma palavra
bimorfêmica, ou interpretada como tal pelo falante, de que realiza a raiz, acrescida
da vogal /-a/, tal como em ‘delega’ (< ‘delegado’) e ‘proleta’ (< ‘proletário’).
54
Padrão V: a forma truncada corresponde a uma palavra bimorfêmica, ou
interpretada como tal pelo falante, de que realiza a raiz, acrescida das sequências -
as, -is, -uca, -ata e -aca. Dentre os exemplos fornecidos pela autora, estão ‘brincs’
(< ‘brincadeira’), ‘mamis’ (< ‘mamãe’) e ‘feijuca’ (< ‘feijão’).
Padrão VI: a forma truncada preserva a consoante final da raiz, podendo ocorrer
epêntese ou não, tal como se observa em ‘bob(i)’ (< ‘bobeira’), ‘trab(i)’ (<
‘trabalho’) / ‘mongol’ (< ‘mongoloide’), ‘Fortal’ (< ‘Fortaleza’).
Padrão VII: a forma truncada corresponde a uma forma derivada e exibe uma
vogal, assim como em ‘escape’ (< ‘escapamento’) e ‘fabrico’ (< ‘fabricação’).
Quanto aos padrões de formação propostos por Scher (2011), faz-se necessário
comentar brevemente as diferenças encontradas em relação à distribuição dos dados na
presente tese, a começar pelo padrão I.
Como já foi apontado neste mesmo capítulo, quando retomado o trabalho de Vilela,
Godoy & Cristófaro Silva (2006), os dados ‘noia’ e ‘chaça’ são isolados e não formam um
padrão, pois cremos que o apagamento se processa na margem esquerda, contrariando a
tendência do processo, para evitar a coincidência com palavras já existentes na língua. Para
constatar que se trata de formações isoladas, vide o grande número de truncamentos que
preservam a borda esquerda (a maioria quase absoluta) – daí o fato de a manutenção dos
segmentos à esquerda ser considerada uma tendência geral do processo.
Os padrões II, III e IV propostos por Scher (2011) coincidem com os analisados
nesta tese, respectivamente denominados ‘odônto’, ‘refrí’ e ‘flágra’. Quanto aos dois
últimos padrões, deve-se fazer apenas duas observações relacionadas à descrição feita por
Scher (op. cit.). No padrão II, a autora lista, ao lado de ‘deprê’ e ‘preju’, por exemplo, a
forma ‘cafa’ (< ‘cafajeste’), que, sob o ponto-de-vista aqui adotado, aloca-se no padrão
55
‘flágra’ (ou IV, de SCHER, 2011), por ser constituída de um pé troqueu moraico, enquanto
os demais exemplos são formados por pés iâmbicos e, portanto, criam oxítonos. Quanto a
essa questão, deve-se advertir que, na presente tese, a distribuição dos dados em padrões é
feita não apenas com base na porção apagada e na possível afixação de segmentos, mas
também na estrutura prosódica dos outputs, que se mostra altamente regular.
Em relação aos dados pertencentes ao padrão IV, a análise pela Morfologia
Prosódica Circunscritiva permite-nos verificar que a parte da base selecionada para compor
o truncamento é sempre o radical, que, no entanto, nem sempre se apresenta integralmente
no output porque pode ter segmentos eliminados para se ajustar a um molde, conforme será
explicitado no capítulo 5 – destinado à análise de dados. Logo, sob a perspectiva aqui
adotada, os casos em que o radical da palavra-matriz não se mantém no truncamento não se
devem ao fato de o falante interpretar determinada sequência como o radical da base, mas à
necessidade de satisfazer o formato do molde que marca o padrão.
Quanto ao padrão V, deve-se ressaltar o fato de que truncamentos como ‘brincs’ (<
‘brincadeira’) e ‘mamis’ (< ‘mamãe’) não estão presentes no corpus desta tese porque não
foram encontradas suas ocorrências quando da recolha de dados. Parecem-nos frequentes
em dialetos de São Paulo, e, nesse caso, deve ser levada em consideração a possibilidade
de, em alguns grupos de falantes, o encurtamento da palavra-matriz ser sucedido pela
afixação não apenas da vogal (-a). Como última observação, cabe mencionar que, de
acordo com Scher (2011), o padrão V é marcado pela afixação das sequências -as, -is, -uca,
-ata ou -aca. Porém, os exemplos listados pela autora apresentam apenas os sequências
finais -s, -is e -uca (‘brincs’, ‘fofis’ e ‘feijuca’) – possivelmente devido à escassez de
dados, que mais parecem formações isoladas do que sistematizadas em um padrão
específico.
56
O padrão VI proposto por Scher (op. cit.) reúne formas que não integram o corpus
da presente tese, uma vez que não se ajustam às especificidades dos três padrões descritos,
bem como não se apresentam em número suficiente para formar um padrão exclusivo. Os
dados que sofrem epêntese, como ‘bob(i)’ (< ‘bobeira’) e ‘trab(i)’ (< ‘trabalho’), ajustam-
se ao encurtamento característico do padrão denominado ‘flágra’ nesta tese; porém sem a
afixação da vogal (-a). Observe-se que ‘bob(i)’ é formado por um troqueu moraico e
conserva o radical da base (bob-), mas, em vez da afixação da vogal (-a), os falantes optam
pela epêntese de (-i), talvez pelo fato de b/ç/ba ser uma forma cuja relação com a base se
torna mais custosa38.
Quanto a ‘trab(i)’, tem-se uma situação semelhante, com a ressalva de que o radical
da base (trabalh-) não se apresenta integralmente na forma truncada, devido à condição de
que o truncamento não pode ter o mesmo tamanho da base (cf. capítulo 5). Assim, ocorre a
eliminação de segmentos até que seja encontrada uma consoante passível de receber o
afixo, que não é a vogal (-a), pois os falantes, novamente, optam pela epêntese. Nesse caso,
talvez possamos considerar que ‘traba’, apesar de ser mais semelhante à base em termos de
sequência fonológica, seja menos marcado social e coloquialmente.
No caso de ‘mongol’, tem-se uma base bimorfêmica (mongol-oide), da qual o
primeiro elemento se realiza na forma truncada, sem afixação ou epêntese, já que o último
elemento é licenciado a ocupar a posição de coda silábica no português. O fato de a última
sílaba ser pesada atrai o acento, tornando-se o truncamento oxítono – o que promove
também a abertura da segunda vogal média: mong[o]loide � mong[ç]l. Como última
observação, deve-se acrescentar que ‘mongol’, embora oxítono, não se ajusta ao padrão
aqui denominado ‘refrí’ por não preservar somente as duas primeiras sílabas integrais, uma
38 Lembremos que as vogais médias altas pretônicas, ao se tornarem tônicas para formação do troqueu moraico, sofrem o abaixamento em um grau e tornam-se médias baixas. Assim, caso os falantes optassem pela afixação da vogal (-a), em vez da epêntese, o truncamento resultate seria ‘b[ç]ba’, e não ‘b[o]ba’.
57
vez que incorpora o onset da terceira sílaba da base. Na ausência de afixação, a referida
forma truncada também não pode ser descrita segundo os parâmetros do grupo ‘flágra’,
embora a ausência da vogal tenha respaldo em dois aspectos distintos: (1) a consoante final
pode ocupar a posição de travamento silábico; e (2) o acréscimo de (-a) resultaria na forma
‘mongola’, que parece tornar mais difícil o acesso à base. As características apontadas
revelam, portanto, que ‘mongol’ pode ser considerado um dado de formação isolada, não
se incluindo em um padrão sistemático.
‘Fortal’, por sua vez, pode ser considerado um truncamento em que o falante
associe, de fato, a sequência ‘Fortal’ a uma unidade mórfica, acrescida do sufixo -eza,
realizando a operação de encurtamento de modo que o primeiro elemento seja mantido.
Pelas mesmas razões acima citadas, o output torna-se oxítono e mantém o segmento /l/ na
posição de travamento silábico. Da mesma forma que ‘mongol’, o truncamento ‘Fortal’
não se ajusta às especificações do padrão ‘refrí’, embora seja oxítono, e, além disso, a falta
da afixação impede que seja analisado como uma forma do tipo ‘flágra’ – daí as razões
para que o consideremos uma formação isolada.
Por fim, deve-se comentar brevemente que o padrão VII proposto por Scher (2011),
o qual reúne dados como ‘encaixe’ (< ‘encaixamento’) e ‘fabrico’ (< ‘fabricação’), talvez
mereça um olhar mais detido, em virtude da semelhança com a derivação regressiva.
Segundo a autora, não há, nesses dados, alteração categorial em relação à base, e, além
disso, a forma truncada é sinônima da sua forma correspondente – o que as distinguiria dos
derivados regressivos. Contudo, há duas questões a ser levantadas no que tange ao grupo
VII proposto por Scher (op. cit.): em primeiro lugar, é preciso explicitar melhor o tipo de
vogal afixada, que, nesse caso, não será apenas (-a), mas também -e ou -o. Em segundo
lugar, deve-se verificar se, aos dados incluídos no referido grupo, é possível atribuir a
função expressiva de avaliação, ou seja, o vínculo com variantes mais coloquiais ou usadas
58
por grupos de falantes jovens – o que, em princípio, não nos parece ocorrer. Pelas razões
expostas, ainda que as formas integrantes do padrão VII sejam consideradas truncamentos
de fato, não nos parece o caso de considerá-las responsáveis por um tipo sistemático de
formação, dadas as várias possibilidades de vogais que podem ser afixadas.
Apesar das divergências encontradas entre a proposta de Scher (2011) e a adotada
nesta tese, deve-se reconhecer a importante tentativa de sistematização do processo de
truncamento realizada pela autora, pois, em vez de focar a descrição na parte suprimida,
obtendo resultados muitas vezes improdutivos e irregulares, a mesma detecta sete padrões
de formação, de acordo com a porção da base que se mantém no truncamento. Por
conseguinte, pode-se dizer que a proposta adotada nesta tese aproxima-se, de certa forma,
daquela utilizada por Scher (op. cit.), uma vez que ambas buscam regularidade na parte
que se aproveita da palavra-matriz, bem como no próprio truncamento.
Quanto à perspectiva da Morfologia Prosódica Circunscritiva, modelo teórico
adotado na presente tese, o fenômeno de truncamento foi descrito por Gonçalves (2004),
abrindo caminho para o tratamento sistemático do fenômeno, levando em conta fatores de
ordem prosódica que proporcionam a constatação de regularidade na formação dos outputs.
Porém, o referido autor analisou exclusivamente o padrão aqui denominado ‘flágra’,
utilizando-se, para tanto, de parâmetros de circunscrição e molde diferentes daqueles
adotados na presente tese. No capítulo 5, destinado à análise de dados com os instrumentos
fornecidos pelo modelo, o estudo de Gonçalves (2004) será detalhado, com o intuito de
mostrar em que aspectos diverge da proposta ora lançada.
Em Gonçalves & Vazquez (2005) e Gonçalves (2011a), o padrão de truncamento
‘flágra’ foi descrito com base na Teoria da Otimalidade, cuja aplicação permitiu aos
autores identificar, nos dois estudos, a atuação de sete restrições no processo de formação
dos dados analisados. Os rankings de restritores utilizados nos dois estudos são bastante
59
semelhantes, comportando restrições ligadas à fidelidade em relação à base, ao tamanho da
forma truncada e à marcação. Evidentemente, por ser o truncamento um fenômeno em que
podem ser apontados como tendências gerais (1) a preservação da borda esquerda e (2) o
limite de três sílabas no output, as restrições de fidelidade e tamanho precedem as de
marcação no ranking, uma vez que se mostram prioritárias.
Contudo, as restrições de marcação, apesar de não serem prioritárias, visto que o
truncamento é um processo que privilegia a fidelidade sobre a marcação (cf. capítulo 2),
devem estar presentes no ranking, devido ao fato de a preferência por estruturas não-
marcadas ser uma tendência verificada entre as línguas naturais.
Belchor (2009) também realizou pesquisa acerca do fenômeno de truncamento no
português brasileiro com base nos fundamentos da Teoria da Otimalidade. Porém,
diferente de Gonçalves & Vazquez (2005) e Gonçalves (2011a), a autora propõe a
descrição dos padrões aqui denominados ‘refrí’ e ‘odônto’, utilizando-se, para tanto, de
rankings compostos, respectivamente, por 6 e 3 restritores. Quanto ao padrão de dados tipo
‘refrí’, a autora propõe, da mesma forma que Gonçalves & Vazquez (2005) e Gonçalves
(2011a), um ranking de restrições com propriedades de fidelidade, tamanho e marcação,
que asseguram, respectivamente, a preservação da borda esquerda da base, o limite
máximo de três sílabas no output e o bloqueio de formas com fortes restrições de
marcação. O ranking proposto por Belchor (2009) para a análise do grupo ‘refrí’ apresenta,
deve-se acrescentar, uma diferença em relação àqueles utilizados por Gonçalves &
Vazquez (2005) e Gonçalves (2011a), desta feita com o objetivo de impedir a emergência
de formas truncadas cuja sequência fonológica coincida com de palavras já existentes na
língua. A restrição adotada bloqueia, portanto, possíveis truncamentos como ‘refrigéra’ (<
‘refrigerante’) e ‘falsifíca’ (< ‘falsificado’) – ambos coincidentes com vocábulos
preexistentes na língua.
60
O grupo denominado ‘odônto’, marcado pela preservação do morfema integral
situado na periferia esquerda da palavra-matriz, é analisado por Belchor (2009) com base
em um ranking composto por três restrições: duas ligadas à fidelidade, tal como no padrão
anteriormente retomado, e uma terceira, cuja demanda prioritária exige a coincidência
entre a forma truncada e um único morfema da língua.
Por fim, deve-se destacar que Gonçalves & Vazquez (2005) e Gonçalves (2011a)
descreveram, à luz da Teoria da Otimalidade, apenas o padrão ‘flágra’ de truncamento, e
Belchor (2009) analisou, isoladamente, os padrões ‘refrí’ e ‘odônto’, utilizando-se de
rankings de restrições distintos. A Morfologia Prosódica Circunscritiva, modelo teórico
adotado na presente tese, foi utilizado também por Gonçalves (2004); porém, novamente, o
autor deteve-se no padrão ora denominado ‘flágra’.
Logo, a proposta desta tese distingue-se daquelas lançadas por Gonçalves &
Vazquez (2005), Belchor (2009) e Gonçalves (2011a), uma vez que se fundamenta na
descrição dos padrões ‘refrí’, ‘odônto’ e ‘flágra’ sob a perspectiva de um único modelo
teórico, a Morfologia Prosódica Circunscritiva. A proposta inicial fundamenta-se na ideia
de que a união de fatores morfológicos e prosódicos proporcionada pelo modelo será
responsável por uma descrição altamente satisfatória do fenômeno de truncamento, após
detectados os parâmetros de circunscrição e molde que justificam as diferenças observadas
entre os padrões analisados.
A tese que se apresenta constitui, destarte, uma proposta inovadora em relação ao
truncamento, visto que a Morfologia Prosódica Circunscritiva será utilizada na descrição
formal do processo, com o objetivo de proporcionar uma análise eficiente e econômica na
descrição do corpus.
61
Na próxima seção, a metodologia adotada na pesquisa será explicitada, com o
objetivo de fornecer informações acerca da recolha do corpus, bem como descrever a
aplicação e o resultado dos testes aplicados aos informantes.
3.5. Metodologia
O corpus utilizado na tese foi, em grande parte, coletado por Gonçalves & Vazquez
(2005) e conta, hoje, com 109 formações, dentre as quais algumas foram acrescentadas por
Belchor (2009), e outras no período inicial do curso que resultou nesta tese. As fontes que
serviram de base para a recolha de dados foram jornais de grande circulação nacional,
como O Globo e Jornal do Brasil, sobretudo nas seções esportivas ou destinadas ao
público jovem, que tendem a utilizar uma variante menos formal da língua; dicionários
eletrônicos, como o “Aurélio”; o dicionário informal (www.dicionarioinformal.com.br);
além de dados produzidos em diversas situações de interação entre falantes.
Quanto aos informantes que se dispuseram a responder os questionários, foram
selecionados os cariocas, que fossem também filhos de cariocas e domiciliados na cidade
do Rio de Janeiro. Tal escolha mostrou-se necessária porque, uma vez que o objetivo da
tese é descrever formalmente o truncamento, tendo em vista a sua ocorrência na capital do
Rio de Janeiro, eventuais influências de outras variantes dialetais regionais precisavam ser
descartadas. No que tange à distribuição geográfica dos informantes, os mesmos residiam
em bairros das zonas oeste, sul e norte (Barra da Tijuca, Copacabana, Botafogo, Méier,
Engenho Novo, Andaraí e Tijuca).
O aspecto social também foi levado em consideração, podendo os informantes ser
alocados na classe socioeconômica média. Nesse caso, deve-se ressaltar que foi
selecionado um grupo socioeconômico apenas por opção metodológica, pois não há
62
evidências de que haja diferentes truncamentos em uso para a mesma base, ainda que
sejam considerados diferentes grupos sociais. Ao contrário, falantes de grupos
socioeconômicos distintos costumam se utilizar das mesmas formas truncadas, ficando as
diferenças dialetais restritas à regionalidade, tal como já observara Araújo (2002), ao
apontar a oposição entre as formas ‘refrí’ e ‘réfri’, vinculando a primeira ao dialeto
paulista; e a segunda, ao dialeto paraense.
O método empregado por Belchor (2009) na organização do corpus consistiu em
distribuir os dados nos três grupos de afinidade estrutural já detectados por Gonçalves &
Vazquez (2005), a seguir retomados: (a) formas que tendem a preservar o radical da base e
recebem a vogal (-a), tal como ‘flágra’ (< ‘flagrante’) e ‘jápa’ (< ‘japonês’); (b) formas que
preservam as duas primeiras sílabas integrais da base, assim como ‘depí’ (< ‘depilação’) e
‘falsí’ (< ‘falsificado’); e (c) formas que preservam integralmente o morfema situado na
margem esquerda da base, tal como em ‘últra’ (< ‘ultrassonografia’) e ‘lípo’ (<
‘lipoaspiração).
Após a distribuição dos dados em três grupos, procedeu-se à elaboração de testes
que validassem os resultados da pesquisa. Esses testes abarcaram apenas os padrões
anteriormente citados em (b) e (c), uma vez que o grupo citado em (a) não foi analisado
pela autora, e foram divididos em três etapas: na primeira, apresentou-se uma lista de
palavras truncadas para que o informante respondesse qual a base delas, com o objetivo de
observar se conseguiam recuperar a forma plena. Na segunda etapa, foram indicados
vocábulos passíveis de truncamento, para que o informante procedesse ao encurtamento,
com o intuito de determinar a estratégia utilizada pelos falantes ao encurtar bases. Na
terceira e última etapa, foram apresentados uma forma de base e diversos truncamentos
possíveis, com o objetivo de constatar se a palavra truncada presente no corpus era
realmente a mais empregada pelos falantes.
63
Em todos os testes, foram utilizadas também formas encurtadas aparentemente
inexistentes (‘ventí’ e ‘térmo’, por exemplo) e bases para as quais não foi encontrado
truncamento conhecido, como ‘particular’ e ‘hermografia’. O objetivo era, nessas
situações, verificar se os informantes associariam as formas truncadas fornecidas a uma
palavra-matriz possível, bem como detectar a estratégia empregada ao encurtar as bases
que não possuem truncamento conhecido. Tal procedimento foi adotado com o propósito
de reafirmar as estratégias utilizadas no encurtamento, sem que o informante optasse por
uma forma já conhecida, não aplicando, assim, as táticas que respondem pela formação dos
truncamentos.
Os 20 informantes que responderam o questionário foram distribuídos em quatro
faixas etárias – 8 a 13 anos, 14 a 19 anos, 20 a 35 anos e mais de 35 anos – e enquadravam-
se nos níveis de escolaridade 3º e 4º anos (primeiro segmento do ensino fundamental), 5º
ao 9º anos (segundo segmento do ensino fundamental), ensino médio e universitários.
Quanto ao sexo, foram selecionados, para cada faixa etária, dois ou três informantes de
cada sexo. Abaixo, segue uma lista que apresenta a distribuição dos informantes entre as
faixas etárias e níveis de escolaridade39:
• Faixa de 8 a 13 anos: dois informantes do sexo feminino e dois do sexo
masculino – três deles alunos do 1º segmento do ensino fundamental; e um (do
sexo masculino), aluno do 2º segmento do ensino fundamental.
• Faixa de 14 a 19 anos: três informantes do sexo feminino e três do sexo
masculino – três deles (dois do sexo feminino e um do sexo masculino) alunos
39 Deve-se advertir que Belchor (2009) descartou os informantes universitários, pautando-se na hipótese de haver disparidade em relação aos resultados obtidos nos questionários respondidos por estudantes mais jovens, entre 8 e 13 anos. Com a intenção de verificar se a hipótese citada tem fundamento, foram recuperados os questionários respondidos por universitários e recalculados os resultados dos testes, que, em termos percentuais, não tiveram alterações.
64
do 2º segmento do ensino fundamental; e três (um do sexo feminino e dois do
sexo masculino), já universitários.
• Faixa de 20 a 35 anos: três informantes do sexo feminino e três do sexo
masculino – quatro (dois do sexo feminino e dois do sexo masculino), com
nível médio concluído; e os demais, (um de cada sexo) universitários.
• Faixa de mais de 35 anos: dois informantes do sexo feminino e dois do sexo
masculino – um deles, do sexo feminino, universitário; e os demais; de nível
médio de escolaridade.
Os resultados do teste 1 revelaram que os informantes, em geral, conseguiram
associar os truncamentos fornecidos a bases do português40. Dentre as formas truncadas
que compõem o corpus da pesquisa, o percentual encontrado para a identificação das bases
pelo informante varia de 60 a 90 %, observando-se as maiores divergências nos casos em
que o informante associa o truncamento não à forma esperada, mas a outra que lhe seja
mais familiar. Esse é o caso dos truncamentos propostos ‘elétro’ e ‘vídeo’, cujas palavras-
matrizes correspondem, no corpus, a ‘eletrocardiograma’ e ‘videocassete’, mas foram
vinculados pelos informantes mais jovens, da faixa de 8 a 13 anos, às bases
‘eletrodoméstico’ e ‘videogame’, respectivamente, o que mostra a real possibilidade de o
truncamento acessar mais de uma palavra-matriz. Em relação às formas truncadas criadas
para integrar o teste 1, pode-se dizer que os informantes não tiveram dificuldade em
associá-las a palavras do português.
40 Com exceção da forma truncada ‘expô’, cuja base, ‘exposição’, não foi rastreada por três informantes mais jovens (faixas de 8 a 13 e 14 a 19 anos). Os referidos informantes atribuíram a forma truncada à suposta base ‘éxpo’ ['ES.po] – o que sinaliza a possibilidade de os falantes mais jovens não a interpretarem como encurtamento de ‘exposição’, mas como base para composições do tipo ‘expo-noivas’, ‘expo-bebês’ e ‘expo-gestantes’, por exemplo. Vale observar, no entanto, que há diferença acentual entre a forma truncada pertencente ao corpus, ‘expô’, e a suposta base para composição ‘éxpo’, uma vez que o encurtamento de ‘exposição’ produz uma forma que, isolada, é oxítona, porém tem sua tonicidade deslocada para a primeira sílaba, em que se verifica a abertura da vogal alta [i] > [E], ao ser considerada uma nova base pelos falantes.
65
Quanto ao teste 2, o percentual de encurtamentos produzidos pelos informantes que
resultaram nas formas presentes no corpus variou entre 20 e 90%, e a maioria dos casos em
que a forma atestada não corresponde à encontrada no corpus deve-se à não identificação
das fronteiras entre morfemas nas amostras do padrão ‘odônto’. Destarte, há, entre os
resultados, formas como ‘néoli’ por ‘néo’ (< ‘neoliberal’) e ‘hêma’ por ‘hemáto’ (<
‘hematologista’), sobretudo no que tange aos informantes mais jovens, das faixas de 8 a
13, e de 14 a 19 anos. Por fim, deve-se comentar que os informantes dispensaram
tratamento semelhante às bases presentes no corpus e àquelas que não possuem
truncamento conhecido, utilizando-se, portanto, das mesmas estratégias ao encurtar as
palavras-matrizes.
O teste 3, por sua vez, revelou que, entre as alternativas apresentadas aos
informantes, a taxa de opção pela forma truncada pertencente ao corpus varia de 40 a 70%.
Nesse caso, também a maior parte das situações em que o informante não optou pelo
truncamento presente no corpus pode ser justificada com base no fato de não serem
identificadas as fronteiras de morfemas, uma vez que foram atestadas formas tais como
‘retroprô’ por ‘rétro’ (< ‘retroprojetor’) e ‘ófta’ por ‘oftálmo’ (< ‘oftalmologista’), no que
se refere ao padrão ‘odônto’. Neste teste, assim como nos anteriores, os informantes das
duas faixas etárias mais jovens responderam pelas taxas mais baixas de opção pelo
truncamento pertencente ao corpus.
De modo geral, os três testes revelaram que os falantes mais jovens apresentaram
mais dificuldade em associar truncamentos às respectivas bases, assim como em encurtar
algumas palavras-matrizes fornecidas. Os informantes das demais faixas etárias (20 a 35 e
mais de 35 anos) foram mais bem sucedidos nas tarefas solicitadas, quer tivessem nível de
escolaridade médio, quer fossem universitários.
66
Quanto ao desempenho dos informantes em relação aos dois padrões testados,
verificou-se que as formas do tipo ‘refrí’ tiveram suas bases identificadas pela maior parte
dos informantes, bem como foram, na maioria dos casos, encurtadas da maneira esperada.
O padrão ‘odônto’, por sua vez, foi responsável pelas maiores porcentagens de não-
identificação das bases, bem como de encurtamentos não esperados. Dessa forma, pode-se
dizer que o mapeamento das duas sílabas iniciais da base é processado com mais facilidade
pelo falante do que o mapeamento de um morfema na mesma posição da palavra-matriz.
Em outras palavras, os limites entre sílabas foram identificados pelos informantes com
mais sucesso do que as fronteiras de morfemas.
Descrita a metodologia adotada por Belchor (2009) ao reunir o corpus que constitui
parte dos dados contemplados na presente tese, pode-se proceder à análise. Antes, porém,
os fundamentos da Morfologia Prosódica Circunscritiva serão apresentados, mostrando-se
todo o percurso que deu origem ao modelo, desde o início das propostas não-lineares para
o tratamento de processos fonológicos. Em sequência, no capítulo 5, serão analisadas
formas truncadas pertencentes aos três padrões, à luz da Morfologia Prosódica
Circunscritiva. Ao fim deste último capítulo, apresentam-se os problemas encontrados
quando da análise, ou seja, dados que não se ajustam à descrição pelo modelo, em virtude
de contrariarem as tendências gerais verificadas no processo de truncamento. A intenção,
nesses casos, é buscar razões para que os falantes deixem de aplicar o padrão geral às
bases.
67
Capítulo 4 – Fundamentos da Morfologia Prosódica Circunscritiva
O presente capítulo dedica-se à apresentação do aporte teórico que sustenta a
análise do fenômeno de truncamento realizada nesta tese: a Morfologia Prosódica
Circunscritiva, doravante MP Circunscritiva. Conforme já mencionado no capítulo
destinado às palavras iniciais, a proposta desta tese é promover a descrição das formas
truncadas que integram o corpus, de modo que os três padrões estruturais em que se
distribuem os dados sejam analisados com base em um único modelo teórico de orientação
morfoprosódica – o que, até o presente momento, não foi realizado (cf. capítulo 3).
A organização do capítulo cumpre as seguintes etapas: em primeiro lugar, será
traçado o contexto que levou ao surgimento da Morfologia Prosódica (MP); a seguir, será
brevemente apresentada a ideia central da Fonologia Autossegmental, que deu origem à
Morfologia Autossegmental. Em seguida, a Fonologia Prosódica terá seus componentes
mais relevantes e sua hierarquia apresentados, para, na sequência, os princípios que regem
a MP serem descritos. Logo a seguir, serão apresentadas as ideias incorporadas à MP, que
foi refinada e culminou na denominada MP Circunscritiva.
4.1. Contexto de surgimento
Fenômenos morfológicos como a reduplicação e a infixação, comuns nas línguas
semíticas, levaram McCarthy (1981) a argumentar que reduplicantes e infixos não podem
ser definidos segmentalmente, tal como propunham Chomsky & Halle (1968), uma vez
que a atuação desses elementos requer, segundo o autor, acesso a informações prosódicas.
Vale destacar que, nesse caso, trata-se de uma reação à fonologia dita linear, a qual
68
pressupõe o arranjo linear dos segmentos, tomados como conjuntos de traços ordenados,
capazes de estabelecer relações de distinção na língua. Assim, sob a perspectiva de
McCarthy (1981), faz-se necessário recorrer à fonologia não-linear, mais particularmente,
à Fonologia Autossegmental, para descrever, por exemplo, o fenômeno de afixação
descontínua, verificada em um grande número de línguas semíticas. Surge, dessa forma, o
modelo denominado Morfologia Autossegmental.
Ainda segundo McCarthy (1981), a morfologia não-concatenativa recebeu pouca
atenção no âmbito do Estruturalismo, por não ser passível de descrição com base em
métodos que buscam partes recorrentes dispostas na margem direita ou esquerda da base.
No entanto, os autores afirmam que há um grande número de línguas naturais em que
processos tais como a reduplicação constituem as operações morfológicas principais ou
únicas.
A razão apontada acima levou McCarthy (1981) a desenvolver, portanto, um
modelo prosódico capaz de descrever processos não-concatenativos, utilizando-se de
“dispositivos da Fonologia Autossegmental, que são muito familiares entre os estudos do
tom e de outros traços prosódicos” (op. cit., 373-74). Vejamos, então, quais os princípios
da Fonologia Autossegmental em que o autor se baseou para construir a Morfologia
Autossegmental.
4.2. Da Fonologia Autossegmental à Morfologia Autossegmental
Desde Chomsky & Halle (1968), que instituíram o tratamento linear dos sons da
fala, a teoria fonológica sofreu vários refinamentos, sobretudo no que tange à estrutura
interna da sílaba e ao acento, uma vez que, na fonologia linear, a primeira não foi
reconhecida como uma unidade descritiva, e o segundo “foi considerado como
69
representando um traço segmental [...] uma propriedade inerente de vogais” (WETZELS,
1995: 4) – o que levou a várias inconsistências teóricas.
Assim, o surgimento da chamada fonologia não-linear pode ser considerado uma
reação ao tratamento linear dos sons da fala, segundo o qual os segmentos eram
especificados, positiva ou negativamente, em relação a todos os seus traços, que não eram
tomados independentemente, mas integrados a matrizes especificadas. Para as referidas
matrizes, na operação de regras fonológicas, havia três possibilidades de análise: (1) eram
substituídas por matrizes diferentes; (2) apagadas; ou (3) introduzidas em domínios nos
quais não figuravam. Dessa forma, “a teoria é incapaz de expressar, guiada por princípios,
o fato de que traços podem se estender por sobre domínios maiores do que o segmento. Ela
também não pode explicar por que alguns traços assumem juntos uma mesma disposição
em processos fonológicos, enquanto outros traços nunca o fazem” (WETZELS, 1995: 5).
A Fonologia Autossegmental (GOLDSMITH, 1976), que interessa diretamente ao
percurso compreendido entre a Morfologia Autossegmental e a Morfologia Prosódica
Circunscritiva, é um sub-ramo da fonologia não-linear que permite a segmentação dos sons
da língua, comprovando que não existe uma relação de um-para-um entre o segmento e o
conjunto de traços (ou matriz) que reúne as suas especificações. Em outras palavras,
entende-se que há uma relativa autonomia entre as camadas segmental e autossegmental,
no sentido de que determinado traço pode se manter no domínio fonológico, ainda que o
segmento a que se ligava tenha desaparecido. Assim, retirado o tom do interior de uma
matriz, o traço mantido após o apagamento de uma unidade segmental pode se ligar a uma
outra unidade – o que explica, por exemplo, casos de assimilação do traço de nasalidade
por vogais, em casos de queda do segmento que porta o referido traço (‘lana’ > ‘lãa’ >
‘lã’).
70
Os princípios em que se baseia a Fonologia Autossegmental são: (a) os traços
podem estender-se para além de um segmento e (b) o apagamento de um segmento não
implica, necessariamente, o desaparecimento de todos os traços que o compõem, pois, tal
como afirma Matzenauer (2005: 45), “em muitas línguas tonais, [...] o apagamento de um
segmento não implica o desaparecimento do tom que recai sobre ele, mas [...] esse tom
pode espraiar-se para outra unidade fonológica”.
A proposta da Fonologia Autossegmental consiste, ainda, na defesa de que os
traços que compõem determinado segmento da língua apresentam uma estrutura interna
hierarquizada. Ao reconhecer a hierarquia entre os traços, Goldsmith (1976) passou, então,
a analisar os segmentos em camadas (tiers), tornando possível a divisão dos mesmos em
partes independentes. Por essa razão, de acordo com Matzenauer (2005: 45-46), “[...] uma
regra pode operar somente no tier [nasal], ou no tier [contínuo] ou no tier [aberto], por
exemplo”. Logo, o grande avanço da Fonologia Autossegmental em relação à fonologia
linear consiste na ideia de que os traços podem atuar isoladamente ou em conjunto.
A divisão em camadas, proposta pela Fonologia Autossegmental para a atuação de
traços fonológicos de maneira independente, permite a descrição mais satisfatória de casos
em que a expressão de categorias gramaticais se manifesta por meio de alternância
vocálica, por exemplo. No sistema verbal do português brasileiro, a categoria gramatical
número-pessoa, no pretérito perfeito do indicativo, pode ser expressa por meio da abertura
da vogal tônica, tal como se observa nos dados a seguir:
71
(01)
P[u]de (1ª pessoa) > P[o]de (3ª pessoa)
Est[i]ve (1ª pessoa) > Est[e]ve (3ª pessoa)
F[i]z (1ª pessoa) > F[e]z (3ª pessoa)
Os verbos listados em (01) não têm indicação de primeira e terceira pessoas por
meio de um afixo; assim, a oposição entre as duas formas é marcada pela alternância
vocálica ocorrida no interior do radical do verbo, nos seguintes termos: a vogal tônica
passa de alta [i, u], na primeira pessoa, para média [o, e], na terceira pessoa. Por essa
razão, de acordo com Gonçalves & Vivas (2011), há, no presente e no pretérito perfeito do
indicativo, um padrão geral, segundo o qual a primeira pessoa é marcada pela presença de
uma vogal alta, enquanto a terceira pessoa é indicada por uma vogal média.
Vale observar que a alternância vocálica não é um fato excepcional no sistema
verbal do português, uma vez que, além de ser a única marca da flexão em número-pessoa
de alguns verbos, conforme visto nos exemplos em (01), pode também prestar-se a reforçar
a expressão da mesma categoria nos verbos em que o afixo (-o) tem a função de indicar a
primeira pessoa do presente do indicativo, como em ‘v[i]sto’ / ‘v[E]ste’; ‘s[i]go’ /
‘s[E]gue’. Nestes últimos casos, segundo Vivas (2010),
“na 1ª pessoa, há apenas o reforço de número-pessoa pela alternância vocálica, já que existe um formativo, -o, cuja função é indicar essa noção, assim como em acudo, divirto, sigo, visto, subo. Já na 3ª pessoa, a alternância de vogal é a responsável pela indicação número-pessoal” (op. cit.: 38).
72
A categoria número-pessoa em verbos do português não pode, portanto, ser descrita
somente com base na afixação, pois envolve, em alguns casos, a abertura da vogal tônica,
que é, muitas vezes, a única responsável pela sua expressão. Destarte, a Fonologia
Autossegmental é um modelo que descreve satisfatoriamente não apenas processos de
formação de palavras não-concatenativos tais como o truncamento, objeto desta tese, mas
também se mostra eficiente na descrição dos verbos em português, visto que a afixação
linear de formativos, tomada isoladamente, não é capaz de justificar todas as modificações
ocorridas nas formas verbais. Como se pode observar, o acesso a informações fonológicas
não é uma peculiaridade dos processos de formação de palavras não-concatenativos, uma
vez que se mostra necessário também em alguns aspectos da flexão verbal em português.
McCarthy (1981), utilizando-se dos princípios que regem a Fonologia
Autossegmental, propõe o mapeamento de elementos melódicos (unidades do tier
autossegmental) para elementos que os representem no tier segmental. Em outras palavras,
o autor defende a associação entre elementos da camada segmental e elementos de uma
camada melódica autossegmental. Assim, a Morfologia Autossegmental surge como
recurso para a descrição de processos que exigem interação fonologia-morfologia.
A ideia central da Morfologia Autossegmental envolve a noção de ‘molde’
(template), que McCarthy (1981) aplicou à descrição de línguas semíticas tais como o
árabe, cuja formação de palavras está associada a um molde (morfema) esqueletal
especificado apenas pelas posições de consoantes (C) e vogais (V). Para fim de
exemplificação, a raiz descontínua triconsonantal (CCC) que, em árabe, está ligada ao
significado de “escrever” é representada pelo morfema esqueletal ktb, que é intercalado por
vogais para que informações como o tempo e a pessoa dos verbos, por exemplo, sejam
expressas. Para fim de exemplificação, pode-se citar a forma katib (‘escrevendo’), na qual
73
a categoria gramatical gerúndio é manifestada por meio da infixação das vogais [a] e [i] na
segunda e quarta posições, respectivamente.
De acordo com McCarthy (1981), por conseguinte, morfemas não são
representados, necessariamente, em camadas segmentais, mas em diferentes níveis (tiers)
ligados ao molde esqueletal. No caso do exemplo anteriormente citado, o molde esqueletal
consiste na sequência CVCVC, ligada a dois tiers: um consonantal e outro vocálico. O tier
consonantal fornece os segmentos da raiz [k, t, b], enquanto o tier vocálico está a serviço
da infixação de [a] e [i]. Assim, a posição em que consoantes e vogais são dispostas no
árabe acarreta mudanças de significado lexical, tal como se observa nas formas kutib (‘é
escrito’) e kitab (‘livro’).
Portanto, pode-se dizer que, em linhas gerais, a Morfologia Autossegmental é um
modelo que defende a interação da morfologia com a fonologia, visto que propõe o
mapeamento melódico de elementos que compõem a camada autossegmental para
elementos da camada segmental, que devem ser dispostos conforme a exigência de um
molde definido para a expressão da categoria gramatical pretendida. Até McCarthy (1981),
porém, o molde esqueletal é especificado pelas posições de consoantes e vogais – proposta
que foi refutada em McCarthy & Prince (1986), cuja ideia central consiste na evidência de
que de moldes são especificados com base no formato de componentes prosódicos.
Vejamos, na próxima seção, de que maneira a Fonologia Prosódica contribuiu para o
desenvolvimento do modelo que McCarthy & Prince (1986) denominaram Morfologia
Prosódica, cujo refinamento, mais tarde, culminou na Morfologia Prosódica Circunscritiva.
74
4.3. Da Fonologia Prosódica à Morfologia Prosódica
A Fonologia Autossegmental, conforme explicitado na seção 4.2, lida com a
hierarquia entre os traços fonológicos que compõem os segmentos da língua, analisando-os
em camadas independentes – o que permitiu a interpretação de que operações morfológicas
podem envolver o acesso ao conjunto de traços que compõem determinado segmento, bem
como a um único traço tomado isoladamente. A Fonologia Prosódica, por sua vez, também
defende a hierarquia entre categorias prosódicas; no entanto, segundo Nespor & Vogel
(1986), trata-se de “uma teoria de organização do enunciado em unidades fonológicas
estruturadas hierarquicamente” (op. cit.: 29), de forma que cada componente da hierarquia
é considerado um domínio para a aplicação de regras fonológicas.
No âmbito da Fonologia Prosódica, a hierarquia proposta fundamenta-se na Strict
Layer Hypothesis, segundo a qual os constituintes prosódicos são formados por um ou
mais elementos da categoria imediatamente inferior. Por conseguinte, a ideia de que os
membros da hierarquia prosódica se agrupam para formar um constituinte de nível superior
permite o desdobramento da Strict Layer Hypothesis em quatro subprincípios, a seguir
listados:
i. uma unidade não terminal da estrutura hierárquica, XP, compõe-se de uma ou
mais unidades da categoria imediatamente inferior, XP-1;
ii. uma unidade pertencente a um nível da hierarquia, XP, deve estar
exaustivamente incluída em uma unidade superior, XP+1, da qual faça parte;
iii. os constituintes são estruturas X-árias;
75
iv. a relação de proeminência relativa, que se estabelece entre nós irmãos, é tal que
a um só nó se atribui o valor forte (s, strong) e a todos os demais, o valor fraco
(w, weak).
O subprincípio apresentado em (i) garante que os constituintes intermediários da
hierarquia agrupem-se para formar um componente de nível mais alto, ao qual estejam
integrados, até que seja atingido o último nível da hierarquia: o enunciado. Em (ii),
apresenta-se o subprincípio que diz respeito à exaustividade, segundo o qual, toda unidade
da hierarquia deve estar maximamente incluída na categoria imediatamente superior (no
caso, um ou mais constituintes devem compor o nível mais alto).
O subprincípio em (iii) assegura a não-binariedade, no sentido de que os
constituintes do nível imediatamente inferior a X devem ser todos do mesmo tipo, ou seja,
apenas elementos idênticos devem agrupar-se, em cada nível, para formar um constituinte
de nível superior. Por fim, o subprincípio apresentado em (iv) relaciona-se ao domínio do
acento em cada nível da hierarquia, nos seguintes termos: “na sílaba, o forte é o membro de
maior sonoridade, a rima, e o fraco é o ataque; no pé, apenas uma sílaba é forte; na palavra,
o forte é a sílaba com acento projetado pelo pé métrico e o fraco são as sílabas não
acentuadas” (GONÇALVES, 2009a: 62).
A partir dos subprincípios listados de (i) a (iv), pode-se estabelecer a regra segundo
a qual os membros da hierarquia prosódica se formam: “incorpore em Xp todos os Xp-1
incluídos em uma cadeia delimitada pelo domínio de Xp” (NESPOR & VOGEL, 1986: 43).
Dito de outra forma, cada constituinte prosódico apresenta, em sua estrutura, elementos de
todas as categorias de nível mais baixo na hierarquia.
Vistos os subprincípios e a regra responsáveis pela formação dos constituintes
prosódicos, apresenta-se, a seguir, a hierarquia, tal como proposta por Selkirk (1982):
76
(02)
U Enunciado Fonológico
I (I) Frase Entoacional
φ (φ) Sintagma Fonológico
C (C) Grupo Clítico
ω (ω) Palavra Prosódica
Σ (Σ) Pé Métrico
δ (δ) Sílaba
Na cadeia proposta, a categoria de nível mais baixo é a sílaba (δ) – formada por um
núcleo (posição preenchida pelo elemento de maior sonoridade), ao qual podem se juntar
dois ou mais segmentos. A seguir, a união entre sílabas gera pés métricos (Σ), que, por sua
vez, formam a palavra prosódica (ω). Em seguida, esta última, acrescida de um clítico,
gera o grupo clítico (C), e assim sucessivamente, até que esteja formado o componente
máximo, o enunciado fonológico (U).
Vale destacar que o grupo clítico (C) é um constituinte proposto por Selkirk (1982),
com base na evidência da sua relevância em línguas como o latim clássico, por exemplo,
nas quais o acréscimo do clítico pode promover o deslocamento do acento, tal como se
observa em lĕgis ['lE.gis]; lĕgis nĕ [le.'gis.ne]. Assim, pode-se dizer que, entre a palavra
prosódica e o sintagma fonológico, existe o nível denominado grupo clítico, em que atua a
relação de dominância acentual forte/fraco, promovendo, em alguns casos, uma
modificação na tonicidade da palavra prosódica, antes que se chegue ao sintagma
fonológico.
77
As categorias prosódicas relevantes para a análise do fenômeno de truncamento
desenvolvida nesta tese são as de nível mais baixo: sílaba, pé métrico e palavra prosódica.
Por essa razão, as subseções que se seguem destinam-se a definir as referidas categorias,
com o objetivo de fornecer as informações necessárias à compreensão da estrutura de
moldes e outputs a ser apresentados no capítulo 5 – dedicado à análise com os
instrumentos da MP Circunscritiva.
4.3.1. A sílaba (δ)
A sílaba, constituinte mais baixo da hierarquia prosódica, tem sua estrutura
centrada em um núcleo (geralmente uma vogal), em torno do qual há posições que podem
ser preenchidas por segmentos consonantais ou semivocálicos.
À esquerda do núcleo, na posição inicial da sílaba, localiza-se o onset (ou ataque),
constituinte que deve ser preenchido por segmentos de menor sonoridade em relação ao
núcleo41. Quanto à margem direita, a sílaba pode apresentar, nesta posição, um segmento
consonantal ou semivocálico, ocupando a posição do constituinte denominado coda. Este
último deve ter sonoridade menor que a do núcleo, porém maior que a do onset. A seguir,
em (03), tem-se uma representação em árvore da estrutura da sílaba:
41 A sonoridade aqui referida relaciona-se à escala que se segue (cf. SELKIRK, 1984), baseada na abertura progressiva do tubo vocal em direção às vogais centrais – as mais sonoras:
Obstruintes (oclusivas; africadas; fricativas) < Nasais < Líquidas ([Ȏ]; [l]) < Glides ([y]; [w]) < Vogais (altas; médias; baixas)
Em português, apenas os segmentos com maior grau de sonoridade (glides e vogais) são licenciados a ocupar a posição de núcleo da sílaba, enquanto a posição de coda pode ser preenchida por segmentos de sonoridade relativamente mais baixa que a do núcleo (glides, [l], nasais e fricativas). O onset, por sua vez, é um constituinte que pode ser representado pelos segmentos de sonoridade mais baixa (oclusivas, africadas, fricativas), além das nasais e líquidas.
78
(03)
Sílaba
Onset Rima
Núcleo Coda
A leitura da árvore, de baixo para cima, indica o núcleo (constituinte obrigatório) e
a coda, que, por ser um constituinte cuja presença na sílaba é opcional, apresenta-se
ramificada por uma linha tracejada. Observe-se que a ramificação do núcleo é feita por
uma linha preenchida, uma vez que se trata do componente indispensável à formação da
sílaba.
Núcleo e coda formam, juntos, o constituinte denominado rima, que engloba os
segmentos de maior sonoridade. Ao lado desta, encontra-se o onset – constituinte opcional
e, por isso, ramificado por uma linha tracejada. Este último, que ocupa a posição inicial,
deve ser o menos sonoro da sílaba.
Para fim de exemplificação, a palavra ‘aperto’ terá suas três sílabas representadas a
seguir, com o objetivo de mostrar a presença (não)obrigatória dos componentes onset,
núcleo e coda.
79
(04)
a. Sílaba
Onset Rima
–
Núcleo Coda
a –
b. Sílaba
Onset Rima
p
Núcleo Coda
e r
c. Sílaba
Onset Rima
t
Núcleo Coda
o –
80
Em (04a), o núcleo, preenchido pela vogal [a], é o responsável pela projeção da
rima e, por conseguinte, da sílaba, visto que se trata de um segmento licenciado a
desempenhar tal função. Nesse caso, a sílaba, formada por um único segmento, não
apresenta aclive e declive de sonoridade – diferente do que se observa nas sílabas
representadas em (04b) e (04c).
A sílaba (-per-), representada em (04b), apresenta as três posições preenchidas – o
que equivale a dizer que se tem, no caso, uma sílaba completa. O segmento [p] (menos
sonoro por ser oclusivo) ocupa a posição de onset; a vogal média [e] forma o núcleo da
sílaba, uma vez que se trata do elemento mais sonoro; e, por fim, a fricativa [x] encontra-se
na posição de coda, travando a sílaba. Esta última apresenta sonoridade menor que a do
núcleo, porém maior que a do onset. Assim, há um aclive de sonoridade do onset para o
núcleo e, em seguida, um declive deste último para a coda.
A última sílaba do exemplo dado, (-to), possui as posições de onset e núcleo
preenchidas, respectivamente, pelos segmentos [t] e [U]. Nesse caso, a ausência do
constituinte coda implica apenas um aclive de sonoridade da oclusiva [t] em direção à
vogal alta [U].
Os aclives e declives de sonoridade exemplificados com base nas sílabas
anteriormente representadas estão relacionados ao Princípio de Sequenciação de
Sonoridade, segundo o qual onsets crescem em sonoridade até o núcleo (pico), e codas
decrescem em sonoridade em relação ao núcleo.
Há, ainda, um princípio de fundamental importância à formação da sílaba, que
prevê a ligação de segmentos consonantais, primeiramente, à posição de onset e, somente
na impossibilidade de atuar como onsets, à posição de coda. Trata-se do Princípio de
Maximização do Ataque.
81
Também relevante na estrutura da sílaba é o fato de esta ser constituída de moras
(unidades de peso), fundamentais na distribuição de sílabas em pesadas e leves, além de
serem utilizadas na formação de pés, que são altamente relevantes na sistematização dos
truncamentos descritos nesta tese. Portanto, antes que se proceda à descrição do
constituinte pé, imediatamente superior à sílaba na hierarquia prosódica e amplamente
utilizado quando da formação do truncamento com os procedimentos da MP
Circunscritiva, a mora (µ) será definida.
De acordo com Hyman (1985), as sílabas são constituídas de unidades de peso
denominadas moras (µ), cuja importância se relaciona à distribuição das sílabas em leves
ou pesadas.
Para efeito de peso silábico, os onsets não contribuem para a contagem de moras;
apenas a rima possui tal atribuição, nos seguintes termos: uma sílaba é leve quando a rima
apresenta somente uma mora (nesse caso, deve haver apenas uma vogal no núcleo42, sem a
presença de segmentos em posição de coda); a sílaba pesada, por sua vez, apresenta mais
de uma mora na rima, correspondentes, por exemplo, a uma vogal longa ou geminada no
núcleo, bem como a um segmento em coda, nas sílabas em que o núcleo já contribui com
uma mora.
No truncamento ‘falsí’ (< ‘falsificado’), por exemplo, a primeira sílaba é pesada
porque possui rima bimoraica, na qual o núcleo [a] contribui com uma mora; e a coda [w],
com a segunda mora. A sílaba final, por sua vez, é leve porque apresenta rima
monomoraica, visto que, na ausência de coda, há apenas uma mora correspondente ao peso
da vogal alta [i].
42 Em português, a presença de apenas uma vogal no núcleo corresponde sempre uma única mora – o que não se verifica nas línguas em que vogais se distinguem pela duração. Nestas últimas línguas, vogais longas em posição de núcleo correspondem a duas moras, enquanto as vogais breves contribuem com somente uma mora.
82
Vale ressaltar que o /S/ em posição final de vocábulo apresenta, para alguns
autores, status polêmico no que tange ao peso silábico. Bisol (1989), por exemplo, ao
descrever os ditongos nasais em português, defende que o /S/ indicador de plural é
adjungido a uma palavra inteira:
“[...] no português, o marcador de classe (MC) de nomes com terminação nasal tem de ser associado ao ‘tier’ da rima, antes da regra de atribuição do pé, porque o acento do português é sensível ao peso da rima, seja ela VV ou VC. Em todos os outros casos, o MC aparece no nível da palavra inteira, antes da adjunção do S-plural” (op. cit.: 202).
De acordo com a autora, portanto, à exceção dos nomes terminados em segmentos
nasais, nos quais o marcador de classe é associado à rima, os nomes do português em geral
têm o referido marcador e o /S/ indicador de plural adjungidos à palavra inteira. A proposta
de Bisol (1989) envolve a divisão da estrutura interna da sílaba em camadas (tiers),
hierarquizados da seguinte forma: tier melódico > tier prosódico > tier da rima > tier da
sílaba. O /S/ que marca a flexão em número está associado, para a autora, ao tier prosódico
e, por isso, independe da formação da rima, realizada em outro tier.
Assim, pode-se dizer que, sob a perspectiva de Bisol (1989), o /S/ final, quando
marca a flexão em número, não é considerado um segmento moraico, visto que não está
ligado ao tier da rima – constituinte que reúne os segmentos que contribuem com moras
(µ) para o peso silábico. A referida proposta, deve-se advertir, não é partilhada pelos
autores que negam a existência da estrutura interna da sílaba (cf. CLEMENTS &
KEYSER, 1983; NESPOR & VOGEL, 1986), para os quais a relação entre onset, núcleo e
coda é igual. Por essa razão, tais autores defendem que apenas a sílaba como um todo pode
ser o domínio para regras fonológicas – o que permite a ligação do /S/ indicador de plural
83
somente à posição de coda, uma vez que não há, nesse caso, tiers hierarquizados, de modo
que o /S/ possa estar desvinculado da rima.
As noções de sílaba e mora serão retomadas na próxima subseção, destinada à
apresentação do pé – constituinte altamente relevante na descrição morfoprosódica do
truncamento.
4.3.2. O pé (Σ)
O pé métrico, que sucede a sílaba na hierarquia prosódica, é um constituinte
fundamentado no estudo do acento e do ritmo – sub-ramo da fonologia não-linear
conhecido como Fonologia Métrica, que tem, entre seus principais autores, Hayes (1995).
Trata-se de um elemento que, segundo Gonçalves (2009a: 65), “é o constituinte rítmico de
nível mais baixo e sua denominação advém da métrica latina: pé troqueu e pé iambo”.
A proposta de Hayes (1995) consiste na existência de três tipos de pés binários (ou
vinculados; bounded), denominados troqueu silábico, troqueu moraico e iambo. Com o
inventário dos três tipos de pés citados, o autor desconsidera o pé ternário (ou não-
vinculado; unbounded), proposto por Selkirk (1980), substituindo-o pela noção de
extrametricidade, nos seguintes termos: “o antigo pé ternário é reinterpretado como um pé
binário que compreende a segunda e a terceira sílabas de uma palavra (contando a partir da
margem da palavra), sendo que a primeira sílaba é considerada como extramétrica”
(WETZELS, 1995: 20), ou seja, invisível às regras de atribuição do acento.
Ainda segundo Hayes (op. cit.), a construção dos pés envolve parâmetros que
respondem por um conjunto de estruturas métricas básicas, uma vez que “o cruzamento das
possibilidades de escolhas de valor dos vários parâmetros que regem o ritmo das línguas
produz um inventário finito de pés, que dá conta da descrição do ritmo de todas as línguas
84
do mundo” (MASSINI-CAGLIARI, 1999: 82). Os referidos parâmetros representam,
portanto, escolhas que devem ser feitas para que a língua obtenha seu pé básico e são
regidos pelas seguintes determinações: o lado dominante do pé (esquerdo ou direito); a
sensibilidade (ou não) ao peso silábico; a direção da construção do pé (da esquerda para a
direita ou vice-versa); e iteratividade. Adiante, os parâmetros aqui citados serão
correlacionados, de modo a obter-se o pé básico do português brasileiro. Antes, porém,
vejamos quais são as estruturas dos três pés binários propostos por Hayes (1995).
O pé troqueu silábico apresenta proeminência à esquerda e independe do peso
silábico, constituindo-se de duas sílabas quaisquer, tal como se pode observar na
representação em grade43 a seguir, em (05). Logo abaixo, cada elemento do pé é associado
a uma sílaba, indicada por δ:
(05) (* .)
| |
δ δ
O pé troqueu moraico, apesar de apresentar proeminência à esquerda, tal como o
troqueu silábico, é sensível ao peso da sílaba. Por isso, uma vez que pés devem ser sempre
binários, trata-se de um tipo de pé que pode ser formado por duas sílabas leves (δ˘) ou por
uma sílaba pesada (δ¯) – ambas as estruturas compostas por duas moras:
43 A representação é feita com base na Fonologia Métrica, proposta por Liberman & Prince (1977), conhecida como modelo de grade. Nesse caso, o asterisco indica a cabeça do pé (elemento dominante), e o ponto representa o membro fraco do pé.
85
(06) (* .) (*)
δ˘ δ˘ δ¯
| |
µ µ µ µ
Por fim, no pé iambo, a proeminência encontra-se à direita, e as formações
possíveis para o referido tipo de pé são as que se seguem:
(07) (. *) (. *)
δ˘ δ˘ δ˘ δ¯
| | |
µ µ µ µ µ
De acordo com Hayes (1995), o fato de o pé iambo apresentar, em alguns casos,
três moras pode ser explicado pela necessidade de sílabas serem analisadas em pés,
associada à propriedade que sílabas pesadas possuem de atrair o acento. Em outras
palavras, havendo uma sequência de duas sílabas em que a primeira é leve, a segunda,
ainda que seja pesada, é incorporada para a formação do pé, que deve ser necessariamente
binário. Nesse caso, a mora excedente é admitida para que as duas sílabas sejam integradas
a um pé, localizando-se o acento sobre a sílaba final (pesada), em respeito à tendência de
atração do mesmo.
Vistas as características dos três tipos de pés, pode-se apresentar o conjunto de
escolhas paramétricas que, segundo Wetzels (1995), descreve a formação de pés e,
consequentemente, a atribuição de acento no português do Brasil:
86
a. pé vinculado (o acento secundário existe, mas não é sensível à quantidade);
b. pé não-iterativo (somente um é construído);
c. dominância à esquerda (usualmente a sílaba pré-final porta o acento primário se
a última sílaba é leve);
d. sensível à quantidade (uma sílaba final pesada normalmente porta o acento
principal, uma sílaba pesada pré-final não pode ser saltada);
e. direcionamento direita-esquerda (o acento é localizado na margem direita da
palavra);
f. possibilidade de serem extramétricas sílabas (acento excepcional na
antepenúltima sílaba) e moras (acento pré-final na palavra com sílaba pesada
final).
Como se pode observar, o pé básico do português brasileiro, de acordo com
Wetzels (1995), é o troqueu moraico, em consonância com Bisol (1992), que propõe uma
abordagem segundo a qual leva-se em conta a sensibilidade ao peso silábico e formam-se
pés binários da direita para a esquerda. Também Massini-Cagliari (1995; 1999) propõe o
pé trocaico como básico no português do Brasil, levando em conta o peso silábico.
É importante ressaltar que Lee (1995; 1999), por exemplo, discorda do
posicionamento dos autores acima citados e defende que os pés métricos do português
brasileiro são iâmbicos. Contudo, adotamos, na presente tese, a linha de Bisol (1992),
Wetzels (1995) e Massini-Cagliari (1995; 1999), e consideramos o troqueu moraico como
o pé básico da língua.
Vistos os tipos de pés binários defendidos por Hayes (1995) e retomadas as
propostas que asseguram a escolha do troqueu moraico como pé básico do português
87
brasileiro, pode-se descrever, brevemente, a categoria imediatamente superior ao pé na
hierarquia: a palavra prosódica, cujas características serão descritas na subseção a seguir.
4.3.3. A palavra prosódica (ω)
A palavra prosódica, terceiro constituinte da hierarquia prosódica proposta por
Selkirk (1982) e representada em (02), caracteriza-se pela presença de um único acento
primário. Além disso, tal como se pode observar em (02), trata-se de um constituinte
formado por pés e sílabas – os componentes imediatamente inferiores na hierarquia.
Uma vez que cada componente da hierarquia é considerado um domínio para a
aplicação de regras fonológicas, a palavra prosódica serve de domínio, por exemplo, para a
regra de neutralização das vogais pretônicas: ‘costume’ > ‘c[U]stume’; ‘escola’ > ‘[i]scola’.
Observe-se que ‘costume’ e ‘escola’ apresentam somente um acento primário, nas sílabas
['tu] e ['kç], respectivamente44. Assim, têm-se dois exemplos de palavras prosódicas, aos
quais é possível aplicar a regra fonológica de neutralização das vogais pretônicas, tal como
prevê a hierarquia entre os constituintes prosódicos.
Um segundo aspecto digno de nota é o fato de a palavra prosódica ser o primeiro
constituinte da hierarquia a estabelecer relações com a morfologia, no sentido de que se
trata de formas portadoras da categoria gênero e passíveis de flexão em número. No caso
dos exemplos citados acima (‘costume’ e ‘escola’), ambos apresentam gênero – masculino
e feminino, respectivamente –, ainda que não expresso por flexão. Camara Jr. (1970) os
44 Na proposta de Camara Jr. (1970), a palavra prosódica, denominada “vocábulo fonológico” pelo autor, apresenta um acento (de grau 2 ou 3) e dois possíveis graus de atonicidade, antes e depois do acento (graus 1 e 0, respectivamente). Assim, de acordo com o autor, as palavras prosódicas aqui exemplificadas apresentam a seguinte distribuição em grau: (a) c[U]s.tu.me e (b) [i]s.co.la. 1 3 0 1 3 0
88
classifica como vocábulos de gênero único, nos quais a referida categoria se manifesta
apenas nos determinantes. Quanto à categoria número, ambos são passíveis de flexão por
meio do acréscimo de [s]. Portanto, pode-se dizer que se trata de palavras prosódicas que
também exibem propriedades morfológicas.
Quanto à interação da palavra prosódica com o plano morfológico, há, ainda, um
fator a ser observado, desta feita em relação à (não)coincidência entre palavra prosódica e
palavra morfológica. Em ‘costume’ e ‘escola’, aqui utilizados como exemplos, há uma
palavra prosódica e também uma palavra morfológica, de acordo com os critérios
anteriormente citados.
No caso de vocábulos (a) formados por prefixos acentuados + base e (b)
compostos, porém, não há coincidência entre as palavras prosódica e morfológica, uma vez
que se trata de itens que respondem, em conjunto, pela expressão das categorias de gênero
e número: ‘pré-estreia’ > ‘a(s) pré-estreia(s)’; ‘porta-guardanapo’ > ‘o(s) porta-
guardanapo(s)’. Assim, tem-se apenas uma palavra morfológica em ambos os casos.
Contudo, o número de palavras prosódicas nestes últimos exemplos não coincide com o
número de palavras morfológicas, uma vez que se trata de grupos de força (cf. CAMARA
JR., 1970), em que cada membro da construção apresenta acento principal (indicado em
negrito): ‘pré-es.tre.ia’ e ‘por.ta-guar.da.na.po’.
Quanto ao truncamento, processo não-concatenativo que constitui o objeto de
estudo desta tese, pode-se dizer que os outputs formados são palavras prosódicas, uma vez
que apresentam somente acento principal, como se observa em ‘motô’ < ‘motorista’;
‘rétro’ < ‘retroprojetor’; ‘saláfra’ < ‘salafrário’, projetado pelo pé métrico iambo (no
primeiro exemplo) ou troqueu (nos dois últimos). Vale ressaltar que o molde das formas
truncadas é sempre um pé iambo ou troqueu moraico, ainda que, nos trissílabos, permaneça
uma sílaba não integrada, à esquerda.
89
As formas truncadas resultantes do encurtamento são também palavras
morfológicas, pois apresentam gênero, copiado da base (‘gastroenterologista’masc/fem >
‘gástro’masc/fem; ‘bijuteria’fem > ‘bijú’fem), e são também passíveis de flexão em número
(‘gástro’sing > ‘gástros’pl; ‘bijú’sing > ‘bijús’pl). Logo, no processo de truncamento, há
coincidência entre palavra prosódica e palavra morfológica, visto que a primeira apresenta
apenas um acento nos dados presentes no corpus.
De acordo com as características expostas, pode-se dizer que a palavra prosódica
(a) apresenta apenas um acento principal, pois, na referida categoria, tal como prevê a
relação de dominância entre forte/fraco, “o forte é a sílaba com acento projetado pelo pé
métrico e o fraco são as sílabas não acentuadas” (GONÇALVES, 2009a: 62); (b) serve de
domínio para a atuação de regras fonológicas; mas (c) nem sempre coincide em número
com a palavra morfológica, apesar de ser o primeiro constituinte da hierarquia a apresentar
relações com a morfologia.
A partir de então, uma vez descritas as categorias prosódicas envolvidas na
formação do truncamento, pode-se proceder à apresentação do modelo teórico que
fundamenta a análise ora realizada. Na subseção a seguir, as bases da MP (McCARTHY &
PRINCE, 1986) serão expostas, para, na sequência, a MP Circunscritiva (McCARTHY &
PRINCE, 1990), sobre que se apoia efetivamente a análise, ser apresentada.
4.4. A Morfologia Prosódica
De acordo com a apresentação feita na seção 4.2, observa-se que a Morfologia
Autossegmental é um modelo não-linear cuja proposta se baseia na existência de um molde
esqueletal para o qual segmentos da camada autossegmental são mapeados. Na referida
90
proposta, contudo, os moldes são definidos em termos de posições consonantais e
vocálicas, segundo McCarthy (1981).
Em McCarthy & Prince (1986), a MP, modelo não-linear para o tratamento de
fenômenos que se encontram na interface fonologia-morfologia, surge com a proposta de
que moldes não podem ser definidos segmentalmente, uma vez que, de acordo com os
autores, “nenhum processo ocorrido nas línguas naturais [...] é conhecido por depender do
número de segmentos de uma forma” (op. cit.: 240).
Logo, McCarthy & Prince (1986) valem-se da ideia de que moldes levam em conta
elementos, visto que “é comum na fonologia que regras levem em conta moras (µ), sílabas
(δ), ou pés (F), mas nunca segmentos” (op. cit.: 239). Assim, os autores propõem que a
morfologia não-concatenativa somente pode ser descrita com base em fatores prosódicos,
adotando-se a hierarquia proposta por Selkirk (1982) – retomada na seção 4.3 desta tese.
Aplicando-se tal perspectiva aos processos não-concatenativos de formação de
palavras no português, verifica-se, por exemplo, que os truncamentos do grupo
denominado ‘refrí’ apresentam como molde um pé iâmbico, enquanto aqueles que
compõem o grupo ‘flágra’ têm um troqueu moraico contido na forma de molde. Os demais
processos considerados não-concatenativos podem ser descritos com os mesmos
instrumentos, bem como a hipocorização, cujo molde consiste sempre em uma palavra
mínima na língua (um troqueu moraico) – devendo-se observar que, em português,
palavras mínimas nunca extrapolam o limite de duas sílabas.
Como se pode observar, a maior parte dos processos não-concatenativos baseia-se
em categorias prosódicas, e não em números de segmentos, pois, de acordo com McCarthy
& Prince (1986: 241), “a prosódia diverge notavelmente do segmentalismo. Se dizemos
que o molde é [δ], então todas as sequências segmentais que consistem em uma sílaba
91
lícita na língua equivalem-se em categoria: {V, CV, CVC, CCVC}, por exemplo, é um
conjunto de realizações possíveis”.
Destarte, os referidos autores consideram contraditório o fato de as teorias recentes
que envolvem o conceito de molde serem essencialmente segmentais, deixando as
informações prosódicas como alternativa a ser lançada nos casos em que o segmentalismo
não se ajusta à análise do fenômeno estudado.
Para exemplificar a vantagem da incorporação de fatores prosódicos à morfologia
não-concatenativa, McCarthy & Prince (1986) utilizam-se das seguintes formas
reduplicadas hipotéticas:
a. Badupi – BAD badupi
b. Bladupi – BLA bladupi
c. Adupi – ADU adupi
Segundo os autores, a interpretação dos reduplicantes acima como sequências
XXX, definidas segmentalmente, mostra-se inadequada à descrição das formas
reduplicadas, uma vez que é cega à diferença prosódica verificada entre o reduplicante
monomoraico BLA e os reduplicantes bimoraicos BAD e ADU. Nesse caso, o diferente
número de moras dos reduplicantes pode ser explicado por algum fator morfoprosódico
que acarrete moldes diferenciados para o hipotético sistema de reduplicação.
Mais tarde, em McCarthy & Prince (1990), além de o formato do molde estar
relacionado a expedientes prosódicos, a noção de circunscrição é incorporada ao modelo,
dando origem à denominada MP Circunscritiva. Por ser este último o modelo escolhido
para descrever o processo de truncamento na presente tese, a seção seguinte dedica-se a
92
apresentar detalhadamente os parâmetros de circunscrição e molde envolvidos na análise
com base no mesmo.
4.5. A Morfologia Prosódica Circunscritiva
A MP Circunscritiva é um modelo não-linear empregado na descrição de
fenômenos situados na interface da morfologia com a fonologia. Trata-se de um modelo
que opera com um formato de molde, além de adotar a circunscrição prosódica,
incorporada à MP em McCarthy & Prince (1990).
São três os princípios em que se fundamenta a MP Circunscritiva, a saber:
(08)
i. Hipótese básica: moldes são definidos em termos de autênticas unidades da
prosódia; no caso, as de nível mais baixo – mora (µ), sílaba (δ), pé (Σ) e
palavra prosódica (ω).
ii. Condição de satisfação ao molde: processos morfológicos satisfazem um
molde, cujo formato pode ser determinado por princípios prosódicos
universais ou por princípios de boa-formação atuantes nas línguas individuais.
iii. Circunscrição prosódica: o domínio sobre o qual determinadas operações
morfológicas se aplicam pode ser mapeado por expedientes prosódicos, assim
como, na morfologia concatenativa, “afixos se circunscrevem a domínios
morfológicos como raiz, tema e palavra” (GONÇALVES, 2009a: 71).
93
O primeiro princípio em (08) estabelece que, na MP Circunscritiva, tal como
previsto no modelo anterior (McCARTHY & PRINCE, 1986), moldes são definidos de
acordo com unidades prosódicas, e não em termos de sequências CV. Valendo-se da
proposta de Selkirk (1982), McCarthy & Prince (1990) adotam a hierarquia segundo a qual
se organizam os constituintes prosódicos, com o intuito de atribuir à prosódia o fato de
algumas operações morfológicas envolverem não apenas o encadeamento de elementos
morfológicos.
Sabe-se que, na hierarquia prosódica, as unidades são definidas em relação à
categoria anterior, uma vez que se agrupam para formar constituintes de nível superior. Por
serem os constituintes mais baixos aqueles mais relevantes para a MP Circunscritiva, além
do conceito de palavra mínima, McCarthy & Prince (1998: 285) afirmam que
“[...] da hierarquia prosódica e da binariedade do pé, em conjunto, deriva-se o conceito de palavra mínima. De acordo com a hierarquia prosódica, qualquer elemento da categoria palavra prosódica deve conter pelo menos dois pés. Pela binariedade do pé, todo pé deve ser bimoraico ou dissilábico. Por conseguinte, a palavra prosódica deve conter pelo menos duas moras ou duas sílabas.”
A palavra mínima tem um importante papel na MP Circunscritiva, visto que
processos não-concatenativos de formação de palavras são, muitas vezes, caracterizados
pelo encurtamento de uma base. Assim, é fundamental haver um tamanho mínimo que
outputs devem apresentar para serem formas livres. De acordo com Cabré (1994), as
línguas requerem condições de minimalidade na constituição de seu vocabulário. Tais
condições podem ser verificadas em processos morfológicos de encurtamento, assim como
a hipocorização, que forma as menores derivações da língua portuguesa. Segundo
Gonçalves (2009b), uma vez que o pé básico do português é o troqueu moraico (cf.
MASSINI-CAGLIARI, 1995; GONÇALVES, 2004), condições de palavra mínima são
94
impostas à hipocorização, cujo molde consiste em um trocaico moraico, que impede a
formação de outputs maiores que duas sílabas e que não contenham ao menos um pé
trocaico. O truncamento, por sua vez, é um processo que não forma, necessariamente,
palavras mínimas, visto que há, no corpus desta pesquisa, dados dissilábicos (‘belê’ <
‘beleza’; ‘chína’ < ‘chinês’), bem como trissilábicos (‘estéto’ < ‘estetoscópio’; ‘deléga’ <
‘delegado’).
Na MP Circunscritiva, é fundamental, portanto, a hierarquia entre os constituintes
prosódicos, uma vez que moldes podem ser constituídos, por exemplo, de um pé – formado
por duas sílabas (independentemente do peso) ou duas moras, como prevê a organização
hierárquica. Para fim de exemplificação, podem-se citar os truncamentos do grupo ‘refrí’,
cujo molde é composto por um pé iâmbico. Observe-se que o molde de formato prosódico
permite a generalização do processo, pois qualquer sequência que forme um pé (iambo ou
troqueu, de acordo com o padrão em que se inclua) pode ser considerada um truncamento
em potencial, independentemente dos segmentos envolvidos. Assim, as formas da coluna
direita em (09), embora não tenham sido atestadas como truncamentos, não encontrariam
obstáculos prosódicos à sua formação, visto que apresentam o mesmo formato (um pé
iambo) das formas truncadas da coluna esquerda, todas presentes no corpus desta pesquisa:
(09)
‘refrí’ (< ‘refrigerante’)
‘motô’ (< ‘motorista’)
‘prejú’ (< ‘prejuízo’)
* ‘camí’ (< ‘camisa’)
* ‘d[i]sô’ (< ‘desodorante’)
* ‘grafí’ (< ‘grafite’)
95
Mais uma vez, deve-se observar que moldes segmentais são incapazes de expressar
as generalizações ora apontadas, pois os truncamentos acima, reais e hipotéticos,
apresentam sequências diferenciadas: CVCCV, CVCV, CCVCV.
Quanto ao segundo princípio em (08), as operações morfológicas devem satisfazer
moldes definidos prosodicamente, cujo formato pode ser determinado por fatores
prosódicos universais (tal como na formação do truncamento, que envolve a geração de um
pé) ou por condições de boa-formação das línguas individuais (assim como na
reduplicação no baby-talk51). Neste último caso, segundo Gonçalves (2009a), o molde deve
atender as seguintes condições: (a) sílabas têm ataque, (b) ataques são simples e (c) codas
são finais. Tais condições de boa-formação silábica do português devem ser respeitadas e
funcionam como filtros para ajustar a porção que compõe o molde, como no exemplo a
seguir.
O input ‘chapéu’ tem como reduplicação a forma ‘pepéu’, em que o reduplicante é
‘pe’ (e não ‘peu’), porque, nesse tipo de reduplicação, admite-se a presença de coda apenas
na sílaba final. Com as condições sobre o ataque respeitadas, basta eliminar a coda para
que o reduplicante atenda a exigência do molde: peu. Assim, tem-se um reduplicante com
ataque, sendo este simples, e sem coda, para não formar um produto com coda medial (*
‘peupéu’; ‘pepéu’).
Em suma, os princípios (i) e (ii), expostos em (08), dizem respeito ao molde e,
juntos, determinam que este é definido por fatores prosódicos, além de ser uma forma a
que as operações morfológicas devem se ajustar. O modo com que se dá a satisfação ao
molde está diretamente relacionado à circunscrição prosódica – procedimento que limita o
51 O baby-talk, segundo Vialli (2008) é um “vocabulário altamente específico utilizado, sobretudo, em um discurso em que um adulto se comunica com uma criança, esta estando em fase de aquisição da linguagem” (op. cit.: 29). Dados como ‘pepêta’ (< ‘chupeta’), ‘memédio’ (< ‘remédio’) e ‘papáto’ (< ‘sapato’), portanto, são considerados reduplicações em baby-talk por serem utilizados por adultos, em discursos endereçados a crianças em fase de aquisição.
96
domínio da base sobre que se dará o processo morfológico. Vejamos, a partir de então,
como atua a circunscrição na MP Circunscritiva.
O princípio (iii), em (08), é de fundamental importância na MP Circunscritiva, uma
vez que se trata do parâmetro que a difere do modelo anterior (McCARTHY & PRINCE,
1986). Sabe-se que os processos morfológicos têm como foco determinado domínio da
base. Na morfologia concatenativa, por exemplo, a derivação sufixal apresenta diferentes
formas de realização, uma vez que sufixos podem de adjungir a adjetivos flexionados em
gênero (‘rapidamente’, ‘estupidamente’), a temas (‘comunicação’, ‘falsificação’) ou a
raízes (‘timeco’, ‘livreco’). Nesse caso, o domínio da base selecionado para a atuação do
processo morfológico apresenta motivação puramente morfológica.
A morfologia não-concatenativa, entretanto, é caracterizada pelo fato de as
informações morfológicas não se sucederem linearmente – daí a inviabilidade de analisar
um processo de redução tal como o truncamento de forma que se busque, na sequência
apagada, um elemento de especificação estritamente morfológica, assim como um afixo.
Por essa razão, o fenômeno deve ser analisado de modo que o foco seja estabelecido na
porção que efetivamente constituirá o truncamento, uma vez que esta se mostra altamente
regular. Para tanto, o papel da circunscrição prosódica é fundamental, porque tem a
instrução de delimitar, na base, a sequência de sílabas ou morfema (conforme o padrão de
formação) que comporá o molde.
A circunscrição prosódica demanda que as operações morfológicas podem ser
circunscritas por critérios tanto prosódicos quanto morfológicos. Em relação ao
procedimento da circunscrição, McCarthy & Prince (1990) propõem que esta pode ser
positiva ou negativa, como será explicitado a seguir.
De acordo com Gonçalves (2009b: 200), “central para a circunscrição prosódica é a
função de parseamento (F), que localiza um domínio prosodicamente delimitado para
97
aplicação de uma regra morfológica menor que a base”. Tal função pode ser representada
pela fórmula O/F (C, M)+/-, na qual O indica a operação morfológica menor que a base; F
indica a função de parseamento; C representa o constituinte parseado; e M indica a
margem em que se dá o parseamento. Os sinais + e – são utilizados para indicar se a
circunscrição é positiva ou negativa.
Para fim de exemplificação, os truncamentos do grupo ‘refrí’, conforme será
discutido no próximo capítulo, constituem-se das duas primeiras sílabas integrais da
palavra-matriz e são oxítonos (‘bijú’ < ‘bijuteria’; ‘visú’ < ‘visual’; ‘deprê’ < ‘depressão’).
Em termos de parseamento, a fórmula que representa a formação dos referidos
truncamentos é T/F (δδ, E)+, em que a operação morfológica menor que a base é o
truncamento (T), cujo parseamento (F) mapeia duas sílabas (δδ) na margem esquerda (E)
da palavra-matriz. O sinal +, ao final da fórmula, indica que a circunscrição é positiva – na
qual o constituinte parseado (no caso, as duas primeiras sílabas) é enviado para o molde e,
consequentemente, faz-se presente no output. Por fim, é necessário observar que a
acentuação oxítona das referidas formas truncadas deve-se ao formato do molde (um pé
iâmbico).
Na circunscrição negativa, ao contrário, o constituinte mapeado é dissociado, ou
seja, não passará ao nível do molde e, por conseguinte estará ausente no output. Dessa
forma, o conteúdo segmental não atingido pelo parseamento será efetivamente aproveitado
pela operação morfológica. Como exemplo de circunscrição negativa, pode-se citar o
processo de reduplicação no baby-talk (‘lelé’ < ‘picolé’; ‘bebêlo’ < ‘cabelo’; ‘nenéca’ <
‘boneca’)52, cujo parseamento pode ser representado pela fórmula R/F (δ[+ac], E)-, lida tal
como se segue: a função de parseamento (F) da reduplicação (R) rastreia uma sílaba (δ),
até a sílaba tônica [+ac], na margem esquerda (E), apagando todo o material segmental
52 Dados extraídos de Vialli (2008).
98
anterior a esse constituinte (cf. GONÇALVES, 2009a). Em linhas gerais, a referida
circunscrição mapeia, na base ‘chupeta’, por exemplo, os segmentos que compõem a
margem esquerda, até encontrar a sílaba tônica, e, por ser a circunscrição negativa, a
porção rastreada é descartada: ‘chupeta’. O molde é formado, então, pelas sílabas tônica e
postônica ['pe.ta], e o reduplicante caracteriza-se pela cópia da primeira sequência CV:
[pe.'pe.ta].
Após as considerações feitas sobre os três princípios em que se fundamenta a MP
Circunscritiva, pode-se dizer que, em suma, o modelo opera com uma forma de molde,
gerado pela circunscrição positiva ou negativa do input, sobre o qual atuam algumas
condições de boa-formação. Em outras palavras, o molde, além de apresentar formato
morfoprosódico definido (um pé, por exemplo), passa pelo crivo de filtros que regulam a
boa-formação daqueles que serão os outputs do processo, tal como prevê o princípio (ii),
em (08).
De acordo com Gonçalves (2009a: 74), “diferenças entre o conteúdo escaneado e o
que efetivamente aparece nas formas de superfície podem ser entendidas como resultantes
do papel desempenhado por condições de boa-formação sobre a porção da palavra-matriz
que se projeta para o molde”. Assim, na MP Circunscritiva, as condições que atuam sobre
o molde sacrificam a identidade input-output, mas não atuam sobre este último, uma vez
que operam apenas sobre o material delimitado pela circunscrição. Gonçalves (2009a)
propõe que o funcionamento da MP Circunscritiva pode ser representado pelo esquema a
seguir, adaptado de Benua (1995):
99
(10)
INPUT Circunscrição Prosódica
(Condições de Minimalidade)
Condições de Boa-Formação Molde
OUTPUT
Como se observa no esquema em (10), a MP Circunscritiva pode ser considerada
um modelo transderivacional, pois a relação entre input e output não é direta, mas mediada
pelo nível do molde. Tal como afirma Gonçalves (2009a: 74): “por força da circunscrição
prosódica, condições de minimalidade atuam no input, gerando um output (molde), que,
por sua vez, passa a ser o input sobre o qual podem atuar determinadas condições de boa-
formação (sobretudo silábicas e fonotáticas)”. Satisfeitas as referidas condições de boa-
formação, o output real está formado. Por fim, vale destacar que as condições de
minimalidade a que se refere o autor estão relacionadas à instrução da circunscrição. Visto
que o domínio de atuação das operações morfológicas menores que a base deve ser
definido em termos de categorias prosódicas, a instrução prevê a delimitação de, no
máximo, dois constituintes prosódicos de mesma ordem.
Vistos os princípios estabelecidos para o funcionamento da MP Circunscritiva,
pode-se proceder, no capítulo a seguir, à análise dos dados pertencentes ao corpus
constituído para esta pesquisa, tomando-se, como já mencionado anteriormente, os três
grupos estruturais individualmente.
100
Capítulo 5 – Análise via MP Circunscritiva
Este capítulo destina-se à analise de formas truncadas pertencentes ao corpus com
base nos pressupostos da MP Circunscritiva. No entanto, deve-se lembrar que as análises
dos padrões contemplados serão realizadas em seções distintas, uma vez que exigem
parâmetros de circunscrição e molde diferenciados, assim como já foi mencionado diversas
vezes nos capítulos anteriores. A partir de então, seguem-se as análises, para que seja
detalhada a aplicação dos procedimentos da MP Circunscritiva a cada padrão
individualmente, salientando-se as razões que levam às diferenças observadas entre os
dados.
O primeiro grupo a ser analisado, aqui denominado ‘refrí’, comporta os dados em
que o truncamento se constitui das duas primeiras sílabas da palavra-matriz, formando-se,
como prevê o molde, um pé iâmbico no produto. Como outputs, portanto, têm-se dados
dissilábicos e oxítonos, que não apresentam compromisso com a preservação de
constituintes morfológicos. Dessa forma, pode-se dizer que os dados do tipo ‘refrí’
compõem um padrão cuja formação deve ser considerada estritamente prosódica, visto que
se trata de outputs marcados pela coincidência com as duas primeiras sílabas da base, ainda
que estas não sejam responsáveis pela expressão de informações morfológicas. Há, ainda,
outra observação relevante acerca do referido padrão, desta feita quanto ao tipo de pé
formado no molde (iâmbico), o que torna os truncamentos pertencentes ao grupo
marcados, tomando-se o pé troqueu como básico no português brasileiro (cf. capítulo 4).
Em seguida, o grupo de dados nesta tese denominado ‘odônto’ será analisado.
Nesse caso, diferente do que foi observado no padrão ‘refrí’, os truncamentos serão
constituídos do morfema situado mais à esquerda da base complexa, independente do
101
número de sílabas. Logo, o comportamento do presente grupo pode ser caracterizado pela
valorização da informação morfológica em detrimento de fatores fonológicos, estes
últimos relevantes na formação de uma palavra prosódica na forma truncada, mas não
atuantes durante o mapeamento da palavra-matriz. Contudo, é importante destacar que os
produtos respeitam o limite de três sílabas, que pode ser considerado uma tendência geral
do processo, à exceção de ‘otorrino’53. Além disso, após a circunscrição do morfema que
constituirá o output, a porção mapeada passará ao nível do molde, que apresenta formato
melódico definido, uma vez que a formação de um pé trocaico nas formas truncadas está
prevista no molde.
O terceiro grupo, denominado ‘flágra’, será o último aqui analisado por opção
metodológica, pois sua formação apresenta condições não observadas nos padrões
anteriores, mas que, no presente caso, mostram-se fundamentais, pelas razões que se
seguem. Conforme já mencionado nos capítulos anteriores, as formas do tipo ‘flágra’ são
marcadas pela afixação da vogal (-a) após o encurtamento, diferente dos outros padrões,
em que não há acréscimo de elementos dessa natureza. Por essa razão, o material
circunscrito deve consistir em uma sequência passível de receber a vogal (-a), ou seja, deve
terminar em consoante, uma vez que não há, no corpus, dados terminados em ditongos. As
condições atuantes sobre o material circunscrito e enviado para o molde garantem,
portanto, a adaptação deste material à futura afixação, eliminando alguns segmentos, caso
não termine em consoante.
53 Em ‘otorríno’, têm-se dois radicais de origem grega: oûs, otós (ouvido, orelha) e rhís, rhīnós (nariz). Nesse caso, segundo Belchor (2009), a opacidade em relação à base pode ser a razão para o licenciamento de ‘otorríno’, uma vez que ‘oto’, isolado, tornaria a relação com a base mais difícil. Assim, embora ‘otorríno’ seja constituído de mais de um morfema, é o output encontrado no corpus, provavelmente porque os falantes tendem a optar por formas menos opacas e que tornem, por isso, menos custoso o rastreamento da base – daí a preservação também do segundo radical que compõe a palavra-matriz. Além disso, conforme já mencionado no capítulo 3, a formação de um pé trocaico em ‘oto’ promoveria a abertura da primeira vogal média, que passaria a tônica, distanciando ainda mais o truncamento da respectiva base, uma vez que o output seria, nesse caso, ['ç.tU].
102
Há, ainda, outras condições atuantes no padrão, com vistas a assegurar que sejam
respeitadas as tendências gerais do fenômeno de truncamento, quais sejam: o limite
máximo de três sílabas e o menor número de sílabas em relação à base. Porém, optamos
por detalhar as três condições ora mencionadas no momento da análise dos dados, para
fazer com que a sua relevância seja observada no processo de formação dos outputs.
Além dos aspectos já mencionados, vale ressaltar que se trata de um padrão misto,
no sentido de que o acesso a componentes morfológicos e prosódicos, em conjunto,
responde pela formação dos outputs. Estes últimos têm o radical da base mapeado pela
circunscrição, porém nem sempre mantido integralmente na forma truncada, diferente do
que se observa no padrão ‘odônto’, anteriormente citado. Quanto ao tipo de pé, o molde
apresenta o formato de um troqueu moraico – daí a alta regularidade observada entre os
outputs, categoricamente paroxítonos.
Vistas brevemente as características gerais dos três grupos de dados, seguem-se as
análises nas próximas três seções, cada qual destinada a um padrão de truncamento, visto
que, de acordo com as informações aqui mencionadas, os grupos de dados exigem
diferentes descrições com base nos pressupostos da MP Circunscritiva, pois o material
circunscrito pode ser um morfema integral da base ou parte dele, bem como as duas sílabas
iniciais da palavra-matriz. Quanto ao molde, há também diferenças entre os padrões, uma
vez que este pode determinar a formação de um pé trocaico ou iâmbico.
De acordo com as informações contidas no capítulo 4, destinado à fundamentação
teórica, os parâmetros de circunscrição e molde subjazem à análise via MP Circunscritiva,
cada qual apresentando um papel que justifica o formato do output. A seguir, a análise do
fenômeno de truncamento, objeto desta tese, revelará as características de circunscrição e
molde relacionadas a cada padrão individualmente.
103
5.1. Padrão ‘refrí’
As formas truncadas do padrão ‘refrí’, analisadas nesta seção, apresentam formato
morfoprosódico definido tal como se segue: estrutura composta por duas sílabas (as duas
primeiras da base) e acentuação oxítona (assegurada pela formação de pé iâmbico). Nos
termos da MP Circunscritiva, trata-se de dados cuja circunscrição mapeia as duas primeiras
sílabas da palavra-matriz e envia essa informação para o molde, formatado para o
posicionamento da cabeça do pé à direita – o que garante a formação de pés iâmbicos e,
por conseguinte, de outputs oxítonos. Observe-se que, conforme citado anteriormente,
trata-se de um padrão em que as informações relevantes na formação do output são de
natureza prosódica. Além disso, pode-se destacar também que o presente grupo reúne
formas truncadas marcadas, levando-se em consideração que o pé básico do português é
trocaico (cf. capítulo 4).
Há, no corpus da pesquisa, 22 dados cuja formação se ajusta à estrutura do padrão
ora analisado. Trata-se de bases que possuem o mínimo de três (‘beleza’) e o máximo de
cinco sílabas54 (‘falsificado’), cuja tonicidade se distribui em duas possibilidades: oito
oxítonas (a exemplo de ‘visual’, ‘condição’) e quatorze paroxítonas (como ‘motorista’,
‘prejuízo’). Os produtos, no entanto, apresentam o formato morfoprosódico regular acima
citado, em virtude dos parâmetros que serão discutidos a partir de então: circunscrição e
molde.
De modo geral, a MP Circunscritiva, tal como exposto no capítulo 4, baseia-se no
mapeamento de um domínio (uma porção) da palavra-matriz, que se ajustará a um molde
54 A palavra-matriz ‘Belo Horizonte’, que apresentaria seis sílabas, é aqui interpretada como um input de cinco sílabas, conforme se observa na fala, tomando-se como base o dialeto carioca: [bE.lo.Ri.'zo).tSi]. Como já mencionado no capítulo 3, quando da diferenciação entre truncamento e abreviação, há dados que evidenciam o fato de inputs para o truncamento serem dados de fala – daí a análise de [bE.lo.Ri.'zo).tSi] como input.
104
prosodicamente definido, com vistas a gerar outputs regulares. A circunscrição pode ser
positiva, caso a porção mapeada seja enviada para o molde, ou negativa, no caso de a parte
circunscrita não ser aproveitada para o processo de formação.
Há, ainda, dois fatores a ser observados em relação à circunscrição: direção e
instrução. A primeira diz respeito à direção do mapeamento – se da esquerda para a direita,
constituindo-se a parte circunscrita da porção inicial da base, ou da direita para a esquerda,
nos casos em que o mapeamento se dá a partir do final da palavra-matriz. A instrução, por
sua vez, consiste na orientação quanto ao tipo de sequência que deve ser mapeada (as duas
primeiras sílabas ou toda a margem esquerda até a sílaba tônica, por exemplo). O molde
atua de modo a regular os outputs, uma vez que ajusta diferentes sequências mapeadas para
um único formato morfoprosódico, garantindo que os produtos apresentem as mesmas
especificações.
Entre os dados do padrão ‘refrí’, a circunscrição é positiva (CP), pois a informação
mapeada é enviada para o molde e constitui, logo, parte do processo de formação dos
truncamentos. Quanto à direção, tem-se um mapeamento da esquerda para a direita, a partir
do início da palavra-matriz (nas representações, a direção é indicada pelos símbolos # E �
D).
A instrução, por sua vez, consiste na definição quanto à sequência que será
mapeada. No caso do padrão ‘refrí’, ora analisado, a instrução determina que sejam
circunscritas as duas primeiras sílabas integrais da base. Portanto, a porção enviada para o
molde é constituída pelas duas sílabas iniciais das palavras-matrizes, circunscritas a partir
da margem esquerda até o núcleo da segunda sílaba. Consideramos que a circunscrição
atua até esse constituinte porque a segunda sílaba de todos os dados do grupo é aberta, do
tipo CCV (‘deprê’) ou CV (‘belê’). Caso houvesse o constituinte coda em um ou mais
dados, deve-se advertir que uma condição de boa-formação sobre o molde seria necessária
105
para dissociar tal elemento e garantir que todos os truncamentos formados tivessem a
segunda sílaba leve55.
Quanto ao formato do molde, pode-se dizer que é o responsável pelas
características relacionadas ao padrão ‘refrí’: estrutura dissilábica e acentuação oxítona.
Assim, o molde apresenta estrutura morfoprosódica para o ajuste a sequências que
possuam duas sílabas e apresentem a cabeça do pé à direita. Tem-se, então, a formação de
um pé iâmbico.
A seguir, uma representação genérica para a análise do padrão ‘refrí’ explicita a
atuação dos fatores que subjazem à análise com os instrumentos da MP Circunscritiva:
circunscrição, instrução e molde.
55 Como já citado neste capítulo, pode haver condições atuantes sobre o material enviado para o molde, com o objetivo de eliminar segmentos que foram mapeados, mas, por alguma razão, não se mostram no output.
CP # E � D δ δ Input { δ δ δ ( ... ) } Dissociação [δ . δ] ( . *) Molde
[δ .'δ] Output
106
No canto superior esquerdo, são indicadas as especificações da circunscrição,
primeiro fator a atuar na análise via MP Circunscritiva. Quanto à importância desta etapa
do processo de formação dos truncamentos, pode-se dizer que se trata de um momento
altamente relevante, pois nos permite verificar que há uma uniformidade em relação à
sequência da palavra-matriz aproveitada na forma truncada. Assim, evitam-se as frequentes
discussões acerca da natureza da parte suprimida, que levaram tantos autores a considerar o
fenômeno como assistemático.
Conforme já mencionado nesta seção, a sigla CP é aqui utilizada para representar a
circunscrição positiva, que se aproveita da porção mapeada e a envia para o molde. A
sequência # E � D representa a direção da circunscrição: a partir do início da palavra-
matriz (#), da esquerda (E) para a direita (D). Abaixo da seta que aponta a direção da
circunscrição ( ), tem-se a instrução, a qual pode ser parafraseada da seguinte forma:
“mapeie as duas primeiras sílabas da base na íntegra”. Vale lembrar que o símbolo (δ) é
utilizado para representar a sílaba na cadeia prosódica; logo, a instrução orienta a
circunscrição de duas sílabas, indicadas por (δ δ). Com base nessas informações, segue-se
a leitura da forma como se dá o mapeamento: “circunscrição positiva, da esquerda para a
direita, a partir do início da palavra-matriz, em que sejam mapeadas as duas primeiras
sílabas integrais da base”.
Ao centro da representação, na parte superior, tem-se o input, entre chaves, que
indicam fronteiras de morfemas, e dividido em sílabas, visto que estas últimas são
altamente relevantes no processo de formação dos truncamentos do tipo ‘refrí’, pois, deve-
se lembrar que o referido padrão apresenta correspondência estrita entre outputs e as duas
sílabas iniciais da palavra-matriz.
As chaves em que o input está inserido assinalam as fronteiras entre morfemas. Por
conseguinte, ao fechamento de cada chave, tem-se um novo morfema. Além disso, deve-se
107
observar que input, molde e output são transcritos foneticamente em todas as
representações utilizadas nesta tese, com base no dialeto carioca – o que se justifica pelo
fato de o processo de truncamento ter dados de fala como inputs, tal como já mencionado
em momentos anteriores.
Na representação genérica, são indicadas três sílabas, mas, como as bases podem
ter até cinco sílabas, os parênteses são utilizados para evidenciar que pode haver mais
sílabas, de acordo com a palavra-matriz analisada. Deve-se observar também que a
sequência formada pela terceira e demais sílabas, se houver, aparece sobretachada { δ ( ...
) } – estratégia aqui utilizada para sinalizar que tal porção da base não será aproveitada
para a formação do molde, ou seja, trata-se de uma sequência que será dissociada. Ao
molde, destarte, será enviada a informação anterior à parte sobretachada: as duas primeiras
sílabas, tal como determina a instrução da circunscrição (a seta horizontal abaixo do input
indica a parte que constituirá efetivamente o molde). A seguir, a seta vertical assinala o
envio do material circunscrito para o nível do molde.
O molde, portanto, nível intermediário entre o input e o output, recebe o conteúdo
circunscrito, aqui representado por [δ . δ] – uma sequência de duas sílabas. Em seguida, a
formatação (indicada logo abaixo do conteúdo que compõe o molde) atua sobre o mesmo e
ajusta a sequência mapeada à tonicidade típica do padrão ‘refrí’: a segunda sílaba deve ser
tônica, ou, em termos de hierarquia prosódica, o pé formado deve ser iâmbico, isto é, ter
cabeça à direita ( . *)56.
Cumprida a determinação prosódica, a seta vertical abaixo do molde indica o
output do processo – uma forma truncada dissilábica e oxítona, [δ .'δ]. Em termos
morfoprosódicos, o output consiste em um pé, visto que é composto por duas sílabas e,
56 A representação, tal como explicitado no capítulo 4 (subseção 4.3.3), baseia-se no modelo de grade.
108
assim, possui pelo menos duas moras (uma correspondente a cada núcleo silábico). Mais
especificamente, trata-se de um iambo, um pé com cabeça à direita57.
O material circunscrito enviado para o molde é, portanto, ajustado para a formação
de um pé iâmbico, de modo que sejam preservadas as características do padrão de
truncamento ‘refrí’ – daí a relevância da etapa de formatação ao molde, que permite a
identificação das mesmas especificações morfoprosódicas nos produtos, o que representa
um avanço da MP Circunscritiva em relação a outras abordagens serialistas, que não
permitem uma análise adequada do fenômeno porque buscam regularidade nas porções
apagadas, tal como se fossem afixos. A MP Circunscritiva, por sua vez, permite que seja
detectada regularidade nos outputs, por meio da união entre fatores morfológicos e
prosódicos, que, juntos, caracterizam não somente o padrão de truncamento ‘refrí’, mas
também os demais, tal como será discutido nas próximas seções deste capítulo.
Como última observação, é necessário acrescentar que, no padrão ora descrito, a
informação envolvida no processo de formação dos truncamentos é unicamente de ordem
prosódica, visto que a manutenção das duas primeiras sílabas da base é prioritária em
relação a informações de natureza morfológica. Entretanto, a MP Circunscritiva
proporciona a descrição apropriada do truncamento por meio da união entre fatores
morfológicos e prosódicos, que se tornará mais evidente na análise dos padrões ‘odônto’ e
‘flágra’, nas seções 5.2 e 5.3.
Vista a representação genérica que permite a análise dos dados incluídos no padrão
‘refrí’ de truncamento, segue-se, a partir do presente momento, a descrição de duas formas
truncadas pertencentes ao corpus, para que sejam ratificados os parâmetros de análise já
57 Como vimos no capítulo 4, o próprio Hayes (1995) admite a possibilidade de iambos apresentarem três moras, o que pode ser explicado pela necessidade de sílabas serem analisadas em pés, a exemplo do que ocorre com ‘falsí’, cuja primeira sílaba é travada e, por isso mesmo, pesada, apresentando o produto três moras.
109
discutidos nesta seção. Os dados selecionados para representar o referido padrão são:
‘refrí’ (< ‘refrigerante’), que dá nome ao grupo, e ‘razú’ (‘razoável’).
O primeiro truncamento a ser analisado, ‘refrí’, tem sua formação representada a
seguir.
Inicialmente, deve-se retomar que a circunscrição atuante no padrão é positiva
(CP); logo, a sequência mapeada será enviada para o molde. O mapeamento, por sua vez,
caracteriza-se por iniciar na margem esquerda da base (‘refrigerante’) e estender-se até o
núcleo da segunda sílaba – o que define a direção da circunscrição: da esquerda para a
direita, a partir do início da palavra-matriz (# E �D). Por fim, a instrução determina que
sejam circunscritas as duas primeiras sílabas integrais da base (δ δ) .
A porção mapeada é, portanto, ‘refri’: sequência constituída das duas sílabas mais à
esquerda da palavra-matriz – tal como asseguram os critérios de direção e instrução. Ainda
CP # E � D δ δ Input {{{xe.fRi.Ze.'R}åɶ.}tSi} Dissociação
[xe.fRi]
( . *) Molde [xe.'fRi] Output
110
sem formatação melódica, o material circunscrito é enviado para o molde, que o ajustará ao
padrão ora analisado. Assim, a sequência resultante do mapeamento, formada por duas
sílabas abertas, recebe acentuação na segunda sílaba, já que o molde constitui um pé
iâmbico ( . *). Tem-se, destarte, um pé com cabeça à direita, constituído das duas
primeiras sílabas da base. Assim, está concluído o processo de formação do dado [xe.'fRi].
A seguir, a forma truncada ‘razú’ será analisada nos termos da MP Circunscritiva.
Vale, antes de proceder-se à análise, lembrar que o referido truncamento serve de
evidência quanto ao fato de o input do processo ser, na verdade, um output (forma de
superfície). Em outras palavras, o input para a formação do truncamento é um dado de fala
(uma realização fonética) – daí a ocorrência de ‘razú’ [xa.'zu], e não ‘razô’, tal como seria
esperado no caso de o input ser motivado por um dado de escrita ou mesmo uma forma
fonológica (representação subjacente). A partir de então, segue-se a análise.
CP # E � D
δ δ Input {{{xa.z}u.}'a.vew} Dissociação [xa.zu]
( . *) Molde [xa.'zu] Output
111
Da mesma forma que na análise de ‘refrí’, a circunscrição do input [xa.zu.'a.vew] é
positiva, uma vez que o material rastreado é enviado para o nível do molde. A direção do
mapeamento é da esquerda para a direita, a partir da margem esquerda da base até o núcleo
da segunda sílaba. Por fim, a instrução é também a mesma: mapear duas sílabas plenas do
input.
Ao nível do molde, portanto, é enviada a sequência [xa.zu], que, para atender à
demanda do padrão, ajusta-se ao formato do molde e recebe proeminência na segunda
sílaba, formando-se, destarte, um pé iâmbico. A partir de então, pode-se dizer que está
formado o output ‘razú’, encerrando-se a análise.
Os parâmetros de circunscrição e molde definidos nesta seção para a análise do
padrão de truncamento ‘refrí’ acolhem 100% dos dados pertencentes ao corpus da pesquisa
– 22 ao todo:
(01)
Bijú (bijuteria)
Refrí (refrigerante)
Condí (condição)
Visú (visual)
Expô (exposição)
Belê (beleza)
Cafú (cafuné)
Guarú (Guarujá)
Falsí (falsificado)
Quití (quitinete)
Colé (colégio)
Carná (carnaval)
Proví (morro da Providência)
Belô (Belo Horizonte)
Razú (razoável)
Pará (paraíba)
Depí (depilação)
Motô (motorista)
Deprê (depressão)
Bicí (bicicleta)
Prejú (prejuízo)
Mocré (mocreia)
112
Em suma, pode-se afirmar que a MP Circunscritiva proporciona uma descrição
plenamente satisfatória do grupo ‘refrí’, captando, com êxito, os parâmetros responsáveis
pela regularidade observada entre os dados do corpus, podendo, assim, ser aplicada sem
restrições ao referido padrão. A seguir, serão analisados os padrões ‘odônto’ e ‘flágra’,
com o objetivo de verificar a eficiência do modelo em relação à análise das formas
truncadas contidas no corpus.
5.2. Padrão ‘odônto’
Os truncamentos do tipo ‘odônto’ caracterizam-se pela preservação integral do
morfema situado mais à esquerda da palavra-matriz. Porém, diferente do que foi observado
nos dados do grupo ‘refrí’, o formato prosódico do molde consiste em um pé trocaico (com
cabeça à esquerda). Por essa razão, a circunscrição mapeia o primeiro morfema a partir da
margem esquerda da base e envia essa informação para o molde, configurado
melodicamente como um troqueu moraico do tipo (* .), no caso dos dados que possuem
duas ou mais sílabas (‘últra’; ‘elétro’), ou do tipo ( * ), no caso dos monossílabos (‘êx’;
‘pós’).
O corpus da pesquisa é constituído de 37 dados cuja formação se ajusta à estrutura
anteriormente citada. Quanto às bases, pode-se dizer que a maioria é de compostos
formados por dois ou mais radicais de origem grega ou latina (‘fonoñaudioñlogñia’,
‘eletroñcardioñgrama’) ou de um radical adjungido a uma palavra (‘heterossexual’,
microcomputador’). Porém, há também dados que se caracterizam pela presença de um
prefixo (‘pré-vestibular’, ‘ex-namorado’). O número de sílabas varia entre quatro
(‘quilograma’) e dez (‘otorrinolaringologista’). A tonicidade, por sua vez, pode ser oxítona,
113
em 12 dados, tal como em ‘retroprojetor’, ou paroxítona, em 25 outras bases, a exemplo
de ‘oftalmologista’.
Os produtos, tal como já foi mencionado nesta seção, apresentam regularidade
quanto ao fato de serem constituídos pelo morfema localizado na borda esquerda da base.
Em relação à tonicidade, trata-se de formas, na maioria dos casos, paroxítonas (‘pênta’), ou
monossílabas tônicas (‘trí’). Excetuando-se estas últimas, há 31 dados no corpus, dentre os
quais 29 são paroxítonos, um oxítono e um proparoxítono. Por essa razão, ficou
estabelecido que o molde apresenta o formato de um pé troqueu moraico (com cabeça à
esquerda), visto que a maioria quase absoluta das formas contidas no corpus é paroxítona.
A forma oxítona citada é ‘retrô’ (< ‘retrospectiva’) – constituída pelo morfema
{retro-}, que aparece duas vezes no corpus, como truncamento também da base
‘retroprojetor’. Há, porém, uma diferenciação na tonicidade: para ‘retrospectiva’, o
truncamento é ‘retrô’, enquanto, para ‘retroprojetor’, tem-se ‘rétro’. Tal diferença deve-se
ao fato de a vogal média da primeira sílaba ser aberta em um dado e fechada no outro, pois,
em ‘rétro’ ['xE.tRU], o acento promove a abertura da vogal – o que não se verifica em ‘retrô’
[xe.'tRo]. Além disso, pode-se dizer que a diferença na acentuação evita a homonímia,
opondo as duas formas também pela abertura da vogal média anterior.
Quanto ao output proparoxítono encontrado no corpus, trata-se de ‘hétero’ (<
‘heterosexual’), que não se enquadra no formato do molde em relação à formação do pé
troqueu. É possível que, por se tratar de um radical posicionado à esquerda de uma forma
livre, ‘sexual’, os falantes realizem o encurtamento de modo que a acentuação do radical
seja mantida na vogal média aberta [E], uma vez que a fronteira entre ‘hetero’ e ‘sexual’
pode ser facilmente identificada. Assim, tem-se como produto uma forma que não se ajusta
ao formato de um troqueu moraico, altamente regular no padrão ora analisado, mas que
114
porta a marca fundamental do grupo – a preservação da informação morfológica (o
primeiro morfema integral da base), que parece se sobrepor à necessidade de formação do
troqueu.
A seguir, uma representação genérica ilustra o processo de formação dos
truncamentos do padrão ‘odônto’, de acordo com os pressupostos da MP Circunscritiva.
Antes de passarmos à formalização, porém, deve-se advertir que o grafema grego µ,
anteriormente utilizado para representar a mora, indica, nas formalizações a seguir, o
morfema. Tal escolha se justifica pelo fato de o referido grafema ser frequentemente
utilizado, na Teoria Morfológica, para representar morfemas, os quais, nas representações
a seguir, não se confundem com moras, uma vez que o formato do molde é indicado por
meio do modelo de grade, que dispensa a representação destes últimos primitivos.
CP # E � D
µ Input {{{{ µ } µ } µ } (...) } Dissociação [ µ ] (* . ) / ( * ) Molde [ µ ] Output
115
Uma vez que o padrão ora analisado se caracteriza pela preservação do morfema
situado mais à esquerda da base, a circunscrição, primeiro parâmetro a ser observado, é
positiva (CP) e processada da esquerda para a direita (# E �D). Assim, a sequência
morfêmica mapeada, na margem esquerda, é enviada para o molde. Ao contrário do padrão
‘refrí’, os truncamentos do grupo ora analisado têm como prioridade a informação
morfológica – daí a preservação integral de morfemas, compromisso que não se verifica
entre os dados do padrão anterior. A instrução, por sua vez, estabelece o mapeamento de
um único morfema, representado pelo grafema grego µ, a partir do início da base.
O input apresenta-se entre chaves, utilizadas para delimitar morfemas – o que,
sobretudo no padrão ora analisado, se mostra necessário, uma vez que se trata de um grupo
de dados marcados pela preservação de um único morfema da palavra-matriz – aquele
situado na borda esquerda. Observe-se também que input, molde e output serão transcritos
foneticamente na análise dos dados, com vistas a uniformizar as representações dos
diferentes padrões, pois, conforme dito anteriormente, os inputs para o processo de
truncamento são formas fonéticas, ou seja, dados de fala. Por essa razão, a transcrição
mostra-se extremamente relevante, ainda que, no padrão ‘odônto’, a circunscrição busque
uma sequência morfológica.
Assim como no padrão ‘refrí’, anteriormente descrito, os morfemas dissociados são
sobretachados, com o objetivo de indicar a porção da base que não será aproveitada na
formação do output. Por fim, deve-se lembrar que os parênteses assinalam a possibilidade
de haver mais de três morfemas na estrutura do input.
O molde recebe a sequência delimitada pelos parâmetros de circunscrição
supracitados e, portanto, é constituído por um único morfema (µ) da palavra-matriz. Visto
que, no padrão ‘odônto’, a informação morfológica é priorizada, a configuração do molde
prevê apenas o ajuste à formação de um troqueu moraico, independente do número de
116
sílabas, embora os truncamentos do grupo respeitem o limite de, no mínimo, uma e, no
máximo, três sílabas (excetuando-se a forma truncada ‘otorríno’, cuja ocorrência já foi
justificada neste capítulo). Em suma, no padrão de truncamento ora analisado, a porção da
palavra-matriz circunscrita constitui efetivamente o molde e, após ser formatada
prosodicamente, passa ao nível do output, tornando-se o produto do processo de formação.
Nesta seção, dois dados pertencentes ao padrão ‘odônto’ serão descritos, a saber:
‘odônto’ (< ‘odontologia’) e ‘ex’ (‘ex-namorado’). Seguem-se, então, as análises – a
começar pelo primeiro.
Para a base ‘odontologia’, a circunscrição positiva e processada da esquerda para a
direita mapeia a porção ‘odônto’, morfema integral situado na margem esquerda, tal como
CP # E � D
µ Input {{{o.do).to.} lo.'Z} i.å} Dissociação [o.do).to]
(* . ) Molde [o.'do).tU] Output
117
prevê a instrução. Os demais morfemas que compõem a palavra-matriz, {-log(o)-} e {-ia},
são dissociados, pois não estarão presentes no output.
Deve-se ressaltar que, na presente tese, adota-se a proposta de forma combinatória
(WARREN, 1990), segundo a qual se trata de um elemento cujo comportamento se
assemelha ao de afixo, uma vez que é empregado em uma posição específica da palavra,
mas, pela contribuição em termos de significado, corresponde a um radical. Por essa razão,
{-logia} pode ser considerada uma forma combinatória final dos morfemas {-logo-} e {-
ia}, amplamente utilizada em português para designar ciências ou áreas de estudo para as
quais existam agentes, embora haja outras possíveis análises para a referida sequência58.
A porção ‘odonto’ compõe, portanto, o molde, cuja configuração melódica consiste
na formação de um pé troqueu. Destarte, [o.do).to] recebe acentuação na penúltima sílaba,
pois um troqueu moraico é formado no nível do molde, assegurando a tonicidade típica do
padrão. Após a formatação prosódica, ‘odônto’ passa ao nível do output e, por se tratar de
dado de fala, a transcrição fonética indica a neutralização e consequente alteamento do
último [o], que passa a ser postônico. Dessa forma, está encerrada a análise, tendo-se
‘odônto’ como forma de saída. Como, em português, os pés são formados da direita para a
esquerda, a sílaba inicial, desgarrada, é associada diretamente à palavra prosódica.
A seguir, a forma truncada ‘êx’ será descrita com base nos pressupostos da MP
Circunscritiva.
58 Cunha & Cintra (2001), por exemplo, tratam {-logia} como um único radical grego que funciona, “preferentemente, como segundo elemento da composição” (op. cit.: 112). Outros autores, mais voltados para a perspectiva etimológica, propõem que se trata de dois elementos distintos. Machado (1967) afirma que {-log-} é uma raiz presente em inúmeros vocábulos eruditos, enquanto {-o-} é uma vogal temática. Proposta semelhante tem Góes (1937), que defende o afixo {-logo}, ao qual se agrega {-ia}. Observe-se que, para este último autor, {-logo} é um afixo, não um radical que integra composições – o que justifica a discussão quanto ao fato de os vocábulos com {-logo} e {-grafo}, por exemplo, serem formados por derivação no português contemporâneo (para maiores detalhes, vide RONDININI & GONÇALVES, 2006 e RONDININI, 2009).
118
O input ‘ex-namorado’, assim como visto anteriormente, no caso de ‘odontologia’,
tem circunscrição positiva e processada da esquerda para a direita a partir do início da
base. Conjugando-se as demandas de circunscrição e instrução, a sequência mapeada é ‘ex’
– primeiro morfema encontrado a partir da margem esquerda.
[eiZ] é, então, o conteúdo segmental que compõe o molde, nível em que se forma
um troqueu moraico do tipo ( * ), pelo fato de a sibilante ser moraica por não se associar à
flexão de número. Destarte, está encerrada a análise, com a formação de um elemento
acentuado, que atua como forma livre na língua59. Quanto ao output, observe-se que a
fricativa alveopalatal vozeada [Z], presente no input por anteceder um segmento nasal,
torna-se desvozeada [S] quando em final de palavra.
59 Belchor (2009) propõe que o padrão de truncamento aqui denominado ‘odônto’ tem a propriedade de conferir status de forma livre a radicais e prefixos, que atuariam somente como formas presas na língua. Por essa razão, pode-se dizer que tais elementos, uma vez empregados no discurso como truncamentos das respectivas bases, devem receber tratamento de palavras prosódicas.
CP # E � D
µ Input {{{eiZ.}na.mo.'R}a.dU} Dissociação [eiZ]
( * ) Molde ['eiS] Output
119
As formas truncadas ‘odônto’ e ‘êx’ foram escolhidas para exemplificar o processo
de formação do grupo. Entretanto, os demais dados que compõem o corpus podem ser
analisados segundo os mesmos parâmetros e se encontram reunidos em (02), a seguir:
(02)
Gástro (gastroenterologista)
Éco (ecocardiograma)
Pólio (poliomielite)
Êx (ex-namorado)
Elétro (eletrocardiograma)
Fôno (fonoaudiologia)
Cárdio (cardiologista)
Odônto (odontologia)
Ginéco (ginecologista)
Oftálmo (oftalmologista)
Pós (pós-graduação)
Últra (ultrassonografia)
Pré (pré-vestibular)
Pedágo (pedagogia)
Bíblio (biblioteconomia)
Páleo (paleontologia)
Psíco (psicologia)
Bí (bissexual)
Trí (tricampeão)
Pênta (pentacampeão)
Êxtra (extraordinário)
Hétero (heterossexual)
Hômo (homossexual)
Mícro (microcomputador)
Néo (neoliberal)
Hemáto (hematologista)
Quílo (quilograma)
Tétra (tetracampeão)
Vídeo (videocassete)
Pró (pró-resgate)
Rétro (retroprojetor)
Retrô (retrospectiva)
Nêuro (neurologista)
Estéto (estetoscópio)
Otorríno (otorrinolaringologista)
Více (vice-presidente)
Lípo (lipoaspiração)
120
Os critérios de circunscrição e molde utilizados na análise dos truncamentos tipo
‘odônto’ acolhem 35 formas pertencentes ao corpus da pesquisa. Visto que o número total
de dados é 37, a descrição aplica-se a 94,6 % dos truncamentos – resultado altamente
satisfatório. As duas formas truncadas a que a descrição não se aplica são, conforme já
mencionado em momento oportuno, ‘otorríno’ (devido ao número de morfemas) e ‘hétero’
(devido à acentuação proparoxítona), muito embora, neste último caso, a principal marca
formal do padrão seja atendida, em virtude da preservação do morfema localizado na borda
esquerda da base.
Na próxima seção, o padrão ‘flágra’ será analisado de acordo com critérios bastante
semelhantes aos empregados nos dois grupos até aqui descritos. O objetivo, para finalizar
este capítulo, é verificar se os pressupostos da MP Circunscritiva conseguirão dar conta do
corpus de forma tão satisfatória quanto a verificada nos demais padrões.
5.3. Padrão ‘flágra’
O padrão de truncamento ‘flágra’ apresenta uma semelhança e uma diferença em
relação aos padrões anteriormente analisados. Como semelhança, pode-se destacar o fato
de, neste padrão, haver dados não-morfêmicos, em que não há preservação de material
morfológico (aproximando-se do padrão ‘refrí’), bem como formas em que o radical da
base é mantido (do mesmo modo que no padrão ‘odônto’). Estas últimas, casos
morfêmicos, podem ser exemplificadas por ‘flágra’ (< ‘flagrante’), ‘madrúga’ (<
‘madrugada’) e ‘profíssa’ (< ‘profissional’). Quanto aos casos não-morfêmicos, podem-se
citar como exemplos ‘cérva’ (< ‘cerveja’), ‘chúrra’ (< ‘churrasco’) e ‘vagába’ (<
‘vagabunda’).
121
Há, no entanto, uma diferença fundamental entre o padrão ‘flágra’ e os demais,
pois, enquanto estes últimos se caracterizam pelo encurtamento que gera formas truncadas
compostas pelas duas primeiras sílabas ou pelo primeiro morfema situado na margem
esquerda das respectivas bases, o padrão ‘flágra’ apresenta a peculiaridade de sofrer o
encurtamento, e, em seguida, a afixação da vogal (-a), aqui considerada um marcador do
padrão de truncamentos ‘flágra’, da mesma forma que em Gonçalves (2004; 2011a). Nesse
sentido, a formação do referido padrão pode ser considerada um processo de perda de
segmentos, ao mesmo tempo em que se anexa um novo elemento à sequência encurtada
terminada em consoante, tal como se pode verificar no conjunto de dados abaixo:
(03)
Base Encurtamento Afixação Output
Bateria Bateria Bater- + -a Batéra
Português Português Portug- + -a Portúga
Neurose Neurose Neur- + -a Nêura
Vestibular Vestibular Vestib- + -a Vestíba
Muito se tem discutido acerca do status da vogal final de nomes em português,
focalizando-se, sobretudo a desvinculação entre a expressão de gênero e a distribuição em
classes temáticas. Segundo Camara Jr. (2001: 86), “não é costume das nossas gramáticas
estabelecer a mesma distinção [entre radical e tema] para os nomes. Mas a conveniência de
fazê-lo me parece inegável”. Assim, o autor propõe três classes temáticas para os nomes:
aqueles terminados em -a (poeta, planeta); terminados em -o ou /u/ átono final (livro,
tribo); e terminados em -e ou /i/ átono final (dente, ponte). Ainda segundo o autor, tal
122
distribuição em classes desfaz o equívoco muitas vezes causado pela confusão entre a
desinência de gênero (-a), que aparece especificamente na oposição de gênero entre os
nomes de tema em -o (lobo x loba), e a vogal temática -a, que não é marca de gênero (cf.
poeta, artista).
Além das classes temáticas citadas, deve-se lembrar que Camara Jr. (op. cit.)
também afirma haver formas atemáticas, sem a presença de vogal temática, que se
manifestam nos oxítonos; bem como nomes que, terminados em consoante posvocálica no
singular, apresentam uma forma teórica em -e ou /i/ átono final, deduzido do plural (mar >
mares; *mare).
Villalva (2000) propõe a classe dos sufixos temáticos, que podem ser definidos
como “especificadores morfológicos que tornam visível a pertença de um radical a uma
dada classe temática. Há dois tipos de sufixos temáticos: a vogal temática se se trata de um
sufixo temático verbal, e os índices temáticos se se trata de sufixos temáticos nominais, ou
seja, associados a bases adjetivais ou nominais” (op. cit., 127). Como se pode observar, a
autora defende a existência de “especificadores morfológicos” que servem de índice para a
alocação de verbos e nomes em classes. Porém, diferente do que propunha Camara Jr. (op.
cit.), restringe a existência de vogais temáticas em verbos, com a função de indicar a
conjugação, enquanto, nos nomes, as vogais finais são chamadas de “índices temáticos”
(predominantemente -a, -o, -e, Ø), que explicitam a classe temática.
A questão da vogal final em nomes é altamente relevante na descrição do padrão de
truncamento denominado ‘flágra’ porque, uma vez que o encurtamento é seguido da
afixação de uma vogal, faz-se necessário estabelecer o seu papel na formação dos
truncamentos. Por essa razão, a exemplo de Gonçalves (2004; 2011a) e Katamba (1993),
consideraremos a referida vogal como um marcador de palavra, estabelecendo que a
mesma é um marcador formal do processo de truncamento e, por isso, tem papel distinto
123
das vogais temáticas. Para tanto, nos basearemos na proposta de Moreno (1997), a seguir
retomada.
Moreno (1997), guiando-se pelas ideias de Harris (1985), defende que “o vocábulo
é um radical seguido de um marcador de palavra, se houver” (op. cit.: 40). Segundo o
autor, há um elemento vocálico posicionado logo após o radical do verbo, que contrasta em
função com os marcadores de palavras, nos seguintes termos: enquanto as vogais temáticas
podem permanecer no radical, mesmo após o processo de derivação deverbal, “os
marcadores nunca aparecem no radical quando os sufixos a eles se ligam” (MORENO,
1997: 40).
Para respaldar a afirmativa acima, Moreno (op. cit.) se utiliza, entre outros, dos
exemplos amar > amante e vender > vendedora, nos quais as vogais temáticas -a e -e são
mantidas nos vocábulos derivados. Truncamentos não costumam servir de base para
derivações sufixais, mas há, no corpus, evidências de que, segundo a proposta de Moreno
(1997), a vogal final das formas truncadas seja, de fato, um marcador de palavra – ao
menos quanto ao fato de desaparecer em derivados, tal como se observa em ‘jápa’ >
‘japinha’ e ‘cérva’ > ‘cérvinha’.
De acordo com Moreno (1997), os marcadores de palavra não podem ser seguidos
por nenhuma espécie de afixo, flexional ou derivacional, à exceção do /-S/ de plural, da
mesma forma que já propunha Harris (1991). De fato, a vogal final das formas truncadas
pertencentes ao grupo ‘flágra’ tende a não se realizar quando seguidas de um sufixo,
conforme exemplificado anteriormente, mas admitem flexão de número por meio do
acréscimo de /-S/: ‘nêura’ > ‘nêuras’; ‘deléga’ > ‘delégas’. Além disso, parece não haver
dúvidas quanto ao fato de a referida vogal não servir de índice para a expressão de gênero
feminino, uma vez que, nas formas de dois gêneros, a oposição é marcada pelo
determinante: o ‘estrânja’ x a ‘estrânja’.
124
Também Pereira (1999) adota o formato RADICAL + MARCADOR DE CLASSE
+ NÚMERO para os nomes em português, ressaltando que os marcadores são constituintes
controversos na literatura, por não serem claramente definidos. Assim, a autora enumera
quatro características fundamentais do marcador, a seguir citadas: (i) ocupa a posição
periférica mais à direita da palavra, podendo apenas ser seguido do morfema de plural /-S/;
(ii) é sempre preenchido por vogais átonas; (iii) não tem significado, apesar da sua
correlação parcial com o gênero; e (iv) desaparece no processo de derivação.
Conforme exposto anteriormente, truncamentos do tipo ‘flágra’ têm a vogal (-a)
afixada na borda direita do material circunscrito; no caso, o radical – exceto nas formas em
que segmentos precisam ser eliminados para atender as tendências gerais do fenômeno.
Além disso, a vogal afixada é sempre átona, uma vez que, em nenhum dado, tem-se a
formação de um pé iâmbico (com cabeça à direita), e desaparece no processo de formação,
tal como já mostrado nesta seção. A ausência de significado também pode ser considerada
uma característica do elemento em questão, pois a função avaliativa, a coloquialidade ou o
estilo parecem estar vinculados ao encurtamento da base em si, ainda que não se proceda à
afixação – daí a expressão desses conteúdos também nos padrões ‘refrí’ e ‘odônto’, nos
quais não ocorre a sufixação.
Com base no exposto, segue-se, na presente tese, a proposta de Gonçalves (2004;
2011a), atribuindo ao elemento (-a), afixado às formas truncadas alocadas no padrão
denominado ‘flágra’, à categoria de marcador de palavra, no sentido de que se trata de uma
marca formal do processo, passível de sistematização, cujas propriedades a distingue das
vogais temáticas.
De acordo com as características citadas até o momento, nota-se que o grupo de
dados ‘flágra’ é heterogêneo – o que, evidentemente, torna a análise via MP Circunscritiva
mais custosa, porém, ainda assim, viável, tal como será demonstrado mais adiante. O
125
referido padrão, diferente dos anteriores, pode ser considerado misto, pois, nesse caso, há
equilíbrio entre a relevância de fatores prosódicos e morfológicos, pelas razões a seguir.
Da mesma forma que no padrão ‘odônto’, anteriormente analisado, a informação
morfológica é priorizada na circunscrição dos dados tipo ‘flágra’, em que o mapeamento
da base delimita o radical; porém, neste último padrão, o material circunscrito deve atender
a condições prosódicas para ser aproveitado no output. Como se pode observar, é no
padrão ora denominado ‘flágra’, considerado default (GONÇALVES, 2004) por ser o mais
produtivo, que a interação entre fatores morfológicos e prosódicos, proporcionada pela MP
Circunscritiva, apresenta-se com maior potencialidade.
O corpus pesquisado conta com 49 dados pertencentes ao padrão de formação
‘flágra’, número que evidencia a maior produtividade do grupo em relação aos anteriores34.
No que tange às bases, o número de sílabas varia de duas (‘chinês’) a sete
(‘responsabilidade’), com a ressalva de que ‘chinês’ e ‘playboy’ são os únicos inputs
dissilábicos, uma vez que a maioria parte do número de três sílabas. Quanto à tonicidade,
as palavras-matrizes dividem-se em 34 paroxítonas e 14 oxítonas.
Observe-se que, apesar de haver oxítonos, a maior parte das bases é paroxítona,
seguindo a tendência verificada no padrão ‘odônto’. Outro fato digno de nota é a contagem
de paroxítonos e oxítonos, que soma 48, pois há um input correspondente a dois
truncamentos: ‘sapatão’ > ‘sapáta’; ‘sápa’. Destarte, têm-se 49 truncamentos, mas 48
inputs no corpus.
34 Na realidade, há 50 dados presentes no corpus, como se pode constatar no anexo I. Contudo, uma das formas truncadas, ‘Bárça’ (< ‘Barcelona’ – tradicional clube espanhol), embora esteja listada entre os dados, uma vez que foi coletada quando da constituição do corpus, não foi incluída na análise porque entendemos que se trata de um truncamento tomado de empréstimo ao espanhol. Em outras palavras, o output ‘Bárça’, já amplamente utilizado no espanhol para fazer referência ao clube ‘Barcelona’, não se formou no português, mas foi incorporado após o encurtamento, efetuado na língua de origem. Por essa razão, o truncamento da base em questão não segue, necessariamente, as mesmas tendências verificadas entre os demais dados do corpus, conforme será discutido mais adiante.
126
Em relação aos outputs, suas estruturas também confirmam a tendência observada
no padrão ‘odônto’ quanto ao número de sílabas e à tonicidade. Entre os dados do corpus,
as formas truncadas dividem-se em dissilábicas (‘jápa’) e trissilábicas (‘Maráca’). De
modo geral, a formação dos produtos segue a tendência abaixo:
Bases trissilábicas (‘primeira’) > truncamentos dissilábicos (‘príma’)
Bases polissilábicas (‘estrangeiro’) > truncamentos trissilábicos (‘estranja’)
Assim, o número de sílabas dos truncamentos varia entre dois e três devido à
regularidade no tamanho das formas truncadas, que respeitam o mínimo de duas e o
máximo de três sílabas – este último limite verificado, inclusive, no padrão ‘odônto’, de
acordo com as observações feitas na seção anterior.
A tonicidade dos outputs, bem como no grupo ‘odônto’, é paroxítona (‘cafajeste’ >
‘cáfa’; ‘aspirante’ > ‘aspíra’; ‘travesti’ > ‘tráva’). Contudo, no presente padrão, não há
exceções, pois os 48 truncamentos reunidos no corpus analisado são paroxítonos. Nos
termos da hierarquia prosódica, utilizada na análise pela MP Circunscritiva, os outputs
sempre apresentam pés trocaicos em sua borda direita. Novamente, pode-se constatar que,
ao contrário do que alguns autores defendem (cf. BASILIO, 2004; LAROCA, 1994;
CARONE, 2004), a formação do truncamento envolve tendências gerais que exibem
poucas exceções – daí a necessidade de um novo olhar sobre o fenômeno.
Como última observação, vale destacar que, embora haja casos de preservação de
morfema (radical à esquerda) entre os dados do padrão ‘flágra’, não há possibilidade de os
referidos truncamentos serem analisados em conjunto com a amostra do padrão ‘odônto’,
pelas razões que se seguem.
127
Em primeiro lugar, as formas truncadas tipo ‘odônto’ são compostas por radicais e
prefixos gregos ou latinos terminados em vogal, que podem, assim, ganhar autonomia de
forma livre. As únicas formas não terminadas em vogal são ‘êx’ e ‘pós’, que, entretanto,
apresentam, em contexto final, um segmento licenciado à posição de coda silábica no
português – no dialeto carioca, [S] –, não se tornando, por isso, um obstáculo à atuação de
‘êx’ e ‘pós’ como formas livres.
Os dados morfêmicos do padrão ‘flágra’, por sua vez, são formados por radicais
terminados em consoante, dentre as quais a maior parte não pode ocupar a posição final de
vocábulo, como [t], [g] e [R], por exemplo. Além disso, a afixação da vogal (-a) após o
encurtamento diferencia os truncamentos tipo ‘flágra’ do padrão ‘odônto’, visto que, neste
último, não ocorre afixação de elemento algum.
Quanto à afixação, deve-se destacar a probabilidade de a mesma não ocorrer no
padrão ‘odônto’ pelo fato de as formas truncadas já terminarem em vogal ou em [S]. Entre
os dados do padrão ‘flágra’, contudo, a maioria dos segmentos finais trava a sílaba,
dependendo, por isso, de uma vogal que, afixada na borda direita, licencie o emprego do
truncamento como forma livre.
Vistas as características gerais do padrão ‘flágra’, foco desta seção, passemos à
definição dos parâmetros de circunscrição e molde, que subjazem à análise pela MP
Circunscritiva e devem, por essa razão, ser estabelecidos antes que se procedam às
descrições dos dados selecionados para tanto.
Antes, porém, vale destacar que Gonçalves (2004) analisou o tipo de truncamento
‘flágra’, com uma circunscrição diferente da adotada na presente tese. Para o autor, a
circunscrição que atua no padrão é negativa (CN) e parte da direita para a esquerda (E D
#). Assim, a sequência mapeada (no final da base) é dissociada, ao contrário do que ocorre
128
na circunscrição positiva, e a parte não circunscrita compõe o molde, conforme se pode
observar na representação simplificada a seguir:
Flagrante >> Flagrante >> Flagr- + -a >> Flágra
Circunscrição negativa
E <-- D #
A instrução, segundo Gonçalves (2004), consiste no mapeamento de um pé trocaico
a partir da borda direita da base, uma vez que a maior parte do corpus apresentava, na
posição final, uma sequência que se assemelhava a um sufixo ou era, na realidade, um
sufixo prototípico (composto por duas sílabas e iniciado por vogal, bem como -ista ou
-eiro, por exemplo). Dessa forma, o sufixo (ou sequência semelhante) dissociava-se, e
restava o material a que se afixava a vogal (-a).
Nesta tese, contudo, os parâmetros de circunscrição adotados são diferentes
daqueles traçados por Gonçalves (2004), pois nem todos os dados do corpus apresentam
segmentos finais com característica de sufixo e, além disso, houve a opção de utilizar um
tipo de circunscrição que pudesse ser aplicada aos três padrões de truncamento analisados
– o que inviabiliza a CN, bem como o mapeamento de um troqueu moraico em todos os
casos, visto que, no padrão ‘refrí’, os outputs são formados por pés iâmbicos. Deve-se
lembrar, ainda, que, no padrão ‘odônto’, por exemplo, a sequência dissociada pode conter
um ou mais elementos integrais (radicais e/ou afixos), tornando-se um obstáculo à previsão
da CN quanto ao formato da parte apagada, tal como se pode observar nos seguintes casos:
(eco)(cardio)(grama) > ‘éco’; (fono)(audio)(log)(ista) > ‘fôno’.
O tipo de circunscrição e a instrução seguidos por Gonçalves (2004), portanto, não
seriam capazes de descrever satisfatoriamente todo o corpus utilizado na presente tese,
assim como não permitiria que as generalizações aqui apontadas quanto à formação do
129
truncamento fossem constatadas. Vejamos, então, quais as especificações da circunscrição
ora adotada para o padrão ‘flágra’.
A direção da circunscrição permanece inalterada em relação aos padrões
anteriormente analisados – da esquerda para a direita, a partir do início da base –, uma vez
que todos os dados do corpus se caracterizam pela preservação da borda esquerda do input,
independente do padrão de formação. O fato de o mapeamento ser processado na direção
supracitada, aliado à característica de preservar a margem esquerda, comum a todo o
corpus, indica que a circunscrição é, também no padrão ‘flágra’, positiva. Assim, a
sequência mapeada é enviada para o molde, enquanto a parte não atingida pela
circunscrição é dissociada.
No que tange à instrução, os truncamentos que compõem o grupo ‘flágra’
assemelham-se àqueles incluídos no padrão ‘odônto’, pois a circunscrição mapeia um
único morfema (µ) do input – no caso, o radical35. Entretanto, como também há dados não-
morfêmicos, nos quais o radical não é integralmente aproveitado no output, devem ser
observadas algumas condições que atuam sobre o material resultante da circunscrição e
justificam a diferença aqui apontada.
A primeira condição diz respeito ao fato de o presente padrão ser marcado pela
afixação que sucede o encurtamento. A referida condição, portanto, exige que o molde seja
terminado em uma consoante, que possa servir de onset para a vogal (-a), posteriormente
afixada. Lembremos que nem todos os radicais de vocábulos em português terminam em
consoante – daí a relevância da presente condição, que prevê o apagamento de segmentos
finais não consonânticos. Como exemplo, pode-se apontar a palavra-matriz ‘confiança’,
cujo radical termina na vogal (-i), mas que tem como truncamento correspondente a forma
35 Exceto nos casos de inputs compostos, em que a circunscrição busca um segundo morfema, com vistas a não formar um truncamento como ‘São’ para ‘São Paulo’ e ‘São Gonçalo’, por exemplo. Assim, tem-se uma condição sobre a circunscrição, segundo a qual deve-se mapear um único morfema, desde que não seja monossilábico.
130
‘cônfa’, mostrando que alguma condição sobre o molde é responsável pela supressão da
vogal final do radical. Por fim, acrescenta-se que essa condição será referenciada nas
representações da análise sob a formalização C]MWd, a qual, em termos estritos, determina
que toda palavra morfológica (MWd) deve ser finalizada em consoante: C].
A segunda condição garante o respeito ao limite de três sílabas no output e, por
isso, não está relacionada a uma característica exclusiva do padrão ora analisado. Dessa
forma, tem-se uma condição que, assim como a anterior, não é infringida por nenhum dado
do corpus, mas que não apresenta equivalência em termos de relevância com C]MWd, visto
que esta última, ao determinar o término do molde em consoante, assegura a adjunção do
marcador com êxito, sendo responsável, portanto, por assegurar a marca distintiva do
padrão ‘flágra’ em relação aos anteriores – a saber: a afixação do marcador (-a). Quanto à
formalização, a referida condição é representada pelos símbolos *T > δδδ – “é proibido
truncamento (T) maior que três sílabas (δδδ)”36.
Finalmente, a terceira e última condição atuante sobre o material circunscrito e
enviado para o molde também apresenta relação com o tamanho do output; contudo, no
presente caso, o foco da condição é a relação existente entre o tamanho do truncamento e o
da respectiva base. Mais especificamente, por se tratar de um processo de encurtamento, os
truncamentos não podem ser maiores nem iguais às palavras-matrizes no que concerne ao
número de sílabas, ou seja, a parte da base enviada para o molde deve ser uma sequência
que, acrescida do marcador (-a), não se torne igual nem maior que a base. Como última
observação, deve-se notar que o posicionamento desta condição abaixo das anteriormente
citadas é devido ao fato de esta se apresentar, na análise do corpus, como uma condição
desejável, mas desrespeitada por algumas formas truncadas, tal como será exposto adiante,
na seção 5.4. Assim, pode-se dizer que se trata de uma condição de caráter mais vulnerável
36 O asterisco, na formalização aqui adotada, assinala uma proibição.
131
que C]MWd e *T > δδδ, uma vez que pode deixar de ser atendida por alguns outputs. Quanto
à representação que será utilizada para as análises, a referida condição será indicada por *T
≥ B – “é proibido truncamento (T) maior ou igual à base (B)”.
Vistas as condições que, além da circunscrição, são responsáveis pelo formato do
molde no padrão ‘flágra’, dois dados do corpus serão utilizados para esclarecer de que
forma tais condições podem ser detectadas no processo de formação dos truncamentos.
Para a palavra-matriz ‘vagabunda’, por exemplo, o mapeamento do primeiro
morfema (µ) enviaria para o molde o radical {vagabund-}, que constitui um único
morfema, tal como prevê a instrução. Contudo, se o referido morfema compusesse o
molde, a que se afixaria a vogal (-a), o truncamento seria: {vagabund} + (-a) >>
‘vagabunda’ – forma que, além de idêntica à base, apresenta uma sílaba a mais que o
permitido no processo de modo geral. Por essa razão, é preciso que uma condição atue
sobre o referido material e elimine alguns segmentos que não interessam ao processo.
Nesse caso, a condição atuante será *T > δδδ, tal como se segue: a última consoante do
radical é eliminada, bem como toda a rima da terceira sílaba (núcleo e coda), para que a
vogal (-a) seja afixada nesta última posição. Dessa forma, a sequência que receberá o
marcador é vagab-, que, após a afixação, resulta no output ‘vagába’. Portanto, a
justificativa para *T > δδδ é a ocorrência de bases cujo radical, acrescido da vogal (-a),
gere um truncamento que exceda o limite máximo de três sílabas no output.
A formação de ‘vagába’, portanto, segue as etapas descritas acima, ajustando-se
perfeitamente às características do padrão ‘flágra’, pois se trata de uma base que possui
quatro sílabas e gera um truncamento trissilábico paroxítono. Além disso, apresenta, no
molde, uma sequência terminada em consoante (vagab-), em condições ideais para receber
o marcador (-a), tal como nos demais dados do padrão.
132
Outro dado selecionado para justificar as condições sobre o material resultante da
circunscrição é ‘cerveja’, em que o mapeamento do primeiro µ encontrado da esquerda
para a direita, tal como prevê a instrução, delimita o radical da base: {cervej-}. Observe-se
que, por ser o padrão ‘flágra’ marcado pela afixação da vogal (-a) na posição final da
sequência circunscrita, a referida vogal, uma vez afixada ao radical {cervej-} tornaria o
truncamento exatamente igual à base, não somente em número de sílabas: {cervej-} + (-a)
>> ‘cerveja’. Dessa forma, é preciso haver uma condição sobre o material presente no
molde, com vistas a eliminar segmentos que precisam ser descartados, de modo a ajustar a
sequência circunscrita para a posterior afixação. Assim, atendidas as determinações de
C]MWd e *T ≥ B, uma vez que {cervej-} termina em consoante e, ao mesmo tempo, não
formaria truncamento com mais de três sílabas após a afixação do marcador, *T ≥ B é
responsável pelo descarte do segmento que ocupava a última posição [Z], bem como do
núcleo da segunda sílaba [e], para que a vogal (-a) seja afixada nesta última posição e
forme, com o onset [v], uma nova sílaba final. Portanto, o output passa a ser ‘cérva’, que
não preserva o radical, mas é diferente da base, inclusive porque a formação do pé trocaico
promove a abertura do [e] presente na base, que passa a [E] ao receber o acento. Está, dessa
forma, ratificada a eficácia da condição *T ≥ B.
No momento em que forem feitas as descrições dos dados, mais adiante, ficarão
mais claras as ideias aqui lançadas quanto à atuação de condições sobre o material
resultante da circunscrição, visto que as representações auxiliam a visualização do
processo etapa a etapa. Passemos, então, à descrição do molde.
Recapitulando: concluído o mapeamento do input, de acordo com os parâmetros
estabelecidos para o padrão ‘flágra’, uma sequência composta pelo radical da base é
enviada para o nível do molde, em que passa pelo crivo das condições anteriormente
133
definidas, que podem, ou não, determinar alterações no material circunscrito. Além disso, é
também nessa etapa do processo que ocorre a afixação do marcador (-a), prevista no
formato do molde, visto que se trata de uma marca formal do padrão. Por fim, é também no
molde que atua a formatação a um tipo de pé – no caso, formam-se pés trocaicos na borda
direita do molde, garantindo a acentuação paroxítona do output.
Como a sequência decorrente da circunscrição, após ser avaliada pelas três
condições atuantes no padrão, termina em consoante e apresenta as características
necessárias para, após a afixação, não exceder o limite de três sílabas, nem se tornar igual à
base em tamanho, o output está formado com a vogal (-a) afixada e com a formação de um
troqueu moraico na margem direita. Assim, está encerrada a análise.
Vistos os detalhes que marcam a formação dos truncamentos incluídos no padrão
‘flágra’, uma representação genérica será utilizada para tornar mais claro o modo com que
os parâmetros definidos atuam sobre os dados. Segue-se, então, a representação.
134
A representação genérica é bastante semelhante às anteriores, utilizadas nas
análises dos padrões ‘refrí’ e ‘odônto’. No canto superior esquerdo, localizam-se as
indicações de circunscrição positiva (CP) e processada da esquerda para a direita, a partir
do início da base (# E �D).
Abaixo da seta horizontal, a instrução quanto ao mapeamento de um morfema é
indicada por µ – grafema grego que, como vimos, representa um morfema. Logo após a
instrução quanto à busca de apenas um constituinte morfológico (no caso, o radical da
base), aparece a condição segundo a qual o µ circunscrito não pode ser monossilábico, ou
seja, deve possuir mais de uma sílaba (µ > δ). Tal condição sobre a circunscrição,
conforme já mencionado nesta seção, evidencia-se nos casos em que nomes compostos
CP # E � D
µ; µ > δ Input {{{ µ } µ } (...) } Dissociação C]MWd *T > δδδ [X] + (-a) *T ≥ B ( * . ) Molde [Xa] Output
135
como ‘São Gonçalo’, por exemplo, têm truncamentos formados não apenas por ‘São’, mas
também pelo radical do segundo termo: São + {Gonçal-} + (-a) > São Gônça. Adiante,
ainda nesta seção, a formação de ‘São Gônça’ será formalizada, com vistas a justificar,
com base nas condições sobre o material circunscrito, a perda de segmentos do radical
{Gonçal-}.
Ao centro da representação, está o input – dividido morfema a morfema e inserido
entre chaves, que assinalam as fronteiras morfológicas. A seta horizontal abaixo do input
indica o material circunscrito: um µ.
No nível do molde, a sequência mapeada é representada por [X], uma vez que pode
não coincidir com o radical da base, nos casos não-morfêmicos. Sobre o material indicado
por [X], atuam as condições C]MWd, *T > δδδ e *T ≥ B, nessa ordem – o que garante que
[X] será uma sequência terminada em consoante, cujo formato, após a afixação do
marcador (-a) não dará origem a um truncamento com mais de três sílabas, nem igual à
base. Assim, após atender às determinações das três condições citadas, o material
resultante da circunscrição está pronto para receber o marcador: [X] + (-a). Por fim, deve-
se informar que as chaves, na representação da análise, indica a atuação das condições
citadas sobre o material [X], advindo da etapa de circunscrição – daí a utilização das
chaves à esquerda no nível do molde, uma vez que se trata de condições aplicadas apenas a
[X], e não ao marcador, também indicado no mesmo nível de formação.
A formatação quanto a um tipo de pé também atua no molde, tal como se segue:
são possíveis sequências dissilábicas (com acento na primeira sílaba) ou trissilábicas (com
acento na penúltima sílaba). Em termos de hierarquia prosódica, o material circunscrito,
que recebe a vogal (-a), deve formar um pé trocaico ( * . ), formado a partir da margem
direita do molde, seguindo a tendência verificada no português (cf. capítulo 4).
136
Dessa forma, está encerrada a análise, com a formação de um output paroxítono,
que contenha um pé com cabeça à esquerda e apresente duas ou três sílabas após a afixação
do marcador.
A partir do presente momento, cinco dados serão analisados, com vistas a ilustrar a
formação dos truncamentos pertencentes ao padrão ora descrito: ‘flágra’ (< ‘flagrante’),
‘madrúga’ (< ‘madrugada’), ‘gúrja’ (< ‘gorjeta’), ‘cônfa’ (< ‘confiança’) e ‘São Gônça’ (<
‘São Gonçalo’). Comecemos pelo primeiro deles, representado a seguir.
Para o input ‘flagrante’ – transcrito foneticamente, mantendo-se a mesma estratégia
utilizada nos padrões anteriores –, o mapeamento segue as especificações já descritas nesta
CP # E � D
µ; µ > δ Input {{{fla.'gR}åɶ.}tSi} Dissociação C]MWd *T > δδδ [fla.gR] + (-a)
*T ≥ B ( * . ) Molde ['fla.gRå] Output
137
seção: circunscrição positiva, processada a partir da borda esquerda e com instrução de
rastrear um morfema (µ), desde que este não seja monossilábico (µ > δ). A referida
orientação promove, por conseguinte, o mapeamento do morfema {flagr-} – radical da
palavra-matriz, que apresenta uma sílaba inicial completa, seguida de um onset complexo a
ser preenchido pelo marcador. A porção do input que não será aproveitada na formação do
truncamento aparece, tal como nas representações dos padrões anteriores, sobretachada.
O morfema {flagr-}, enviado para o molde, é, nesse nível, avaliado pelas condições
C]MWd, *T > δδδ e *T ≥ B. Nesse caso, a primeira condição é atendida, uma vez que se
trata de radical terminado em consoante. A segunda, *T > δδδ, também é respeitada pelo
material circunscrito, que não dará origem a truncamento com mais de três sílabas, após a
afixação do marcador. Por fim, a terceira condição, *T ≥ B, reafirma que o material
resultante da circunscrição está pronto para receber o marcador, já que não se tornará
maior que a base. Dessa forma, o radical {flagr-}, circunscrito a partir do input, recebe a
afixação do marcador de palavra (-a) e, além disso, tem seu formato prosódico ajustado
para a formação de um troqueu moraico. Em outras palavras, após a afixação, a primeira
sílaba recebe o acento, dando origem ao output ['fla.gRå].
A partir deste momento, está encerrada a análise, com a formação do output
‘flágra’ – truncamento paroxítono e dissilábico, constituído do radical da palavra-matriz,
ao qual se afixa a vogal (-a). Nesse caso, tem-se um dado morfêmico, visto que o radical da
base é preservado na forma truncada.
O próximo input a ser aqui analisado é ‘madrúga’, cujo truncamento, assim como
‘flágra’, pode ser considerado morfêmico, uma vez que também se caracteriza pela
preservação de material morfológico, vejamos a representação.
138
Por ser a formação de ‘madrúga’ muito semelhante à de ‘flágra’, já descrita
anteriormente, o detalhamento da representação será resumido, tal como se segue. A
circunscrição positiva, da esquerda para a direita, mapeia o radical (µ) do input,
descartando a parte remanescente (-ada), sobretachada na formalização. Observe-se que
{madrug-} é um morfema que apresenta duas sílabas iniciais plenas, seguidas de um onset
passível de ser afixado pelo marcador (-a), em conformidade com a condição µ > δ,
segundo a qual o morfema circunscrito não pode ser monossilábico.
O nível do molde recebe, portanto, o morfema {madrug-}, que respeita as três
condições impostas sobre o material resultante da circunscrição, uma vez que é terminado
em consoante, bem como não será responsável pela formação de um truncamento com
CP # E � D
µ; µ > δ Input {{{ma.'dRu.g}adå} Dissociação C]MWd *T > δδδ [madRug] + (-a)
*T ≥ B ( * . ) Molde [ma'dRugå] Output
139
mais de três sílabas e maior que o input. Destarte, o morfema integral {madrug-} receberá,
na periferia direita, o marcador (-a) e, com a formação de um pé troqueu moraico a partir
também da direita, está formado o output ‘madrúga’ com a sílaba inicial desgarrada
vinculada diretamente à palavra prosódica resultante.
A partir deste momento, os dados ‘gúrja’, ‘cônfa’ e ‘São Gônça’ terão seus
processos de formação descritos, com o intuito de mostrar a interação das condições
envolvidas no padrão ora analisado, uma vez que as formas truncadas até então descritas,
por serem casos morfêmicos, não têm suas estruturas formatadas por exigência das
condições em questão. Vejamos como se dá a formação de ‘gúrja’, a seguir representada.
CP # E � D
µ; µ > δ Input {{{gudz.'Ze.t}å} Dissociação C]MWd *T > δδδ [gudzZet] + (-a)
*T ≥ B ( * . ) Molde ['gudzZå] Output
140
A circunscrição positiva, da esquerda para a direita, mapeia o radical do input:
{guƒ.'Ze.t} – transcrito foneticamente com alteamento do [o] para [u] em virtude de o input
do processo ser um dado de fala, como já mencionado na tese. Quanto aos segmentos
dissociados, a parte não abrangida pela circunscrição é duplamente tachada, da mesma
forma que o fora em todas as análises anteriores a esta: {{guƒ.'Ze.t}å}. No entanto, se
tomarmos, de antemão, o fato de a forma truncada correspondente à base em questão ser
‘gúrja’, torna-se evidente que dois segmentos do material circunscrito não são aproveitados
no output. Vejamos por quê.
O molde recebe o material delimitado pela circunscrição, {guƒ.Ze.t}, sobre o qual
atuarão as três condições já definidas nesta seção. A primeira delas, C]MWd, é repeitada por
{guƒ.Ze.t}, uma vez que o último segmento é consonantal. Quanto à segunda condição, *T
> δδδ, o veredicto não é diferente, devido ao fato de o material circunscrito não formar,
mesmo após a afixação do marcador, um truncamento com mais de três sílabas. Portanto,
cabe à terceira condição *T ≥ B, o papel de ajustar o material decorrente da circunscrição.
No caso, para que não seja formado um output igual ao input, a última consoante do
radical, [t], é eliminada, bem como a vogal [e], núcleo da segunda sílaba, para que a vogal
(-a) seja afixada nesta última posição. Os dois segmentos apagados são sobretachados na
representação.
Por fim, é também no nível do molde que atua a formatação a um tipo de pé; logo,
a primeira sílaba do material circunscrito, já acrescido da vogal (-a), recebe acento,
originando um troqueu moraico (pé com cabeça à esquerda): ['guƒ.Zå].
Destarte, está formado o output ‘gúrja’ – forma truncada paroxítona e dissilábica,
que atende às especificações do padrão. Deve-se lembrar que todos os truncamentos do
141
grupo são paroxítonos, e, quanto ao tamanho, bases trissilábicas tendem a gerar formas
truncadas dissilábicas – o que se verifica em ‘g[u]rjeta’ � ‘g[u]rja’.
Encerrada a análise da formação do output ‘gúrja’, outra base cuja forma truncada
pode ser considerada não-morfêmica será utilizada para ilustrar o processo de formação
pela MP Circunscritiva. A palavra-matriz selecionada para tanto é ‘confiança’, que serve
de input para o truncamento ‘cônfa’, formado de acordo com a representação a seguir.
A circunscrição do input [kõfi' åɶså] segue as mesmas especificações vistas nos
demais dados pertencentes ao padrão ora analisado: da esquerda para a direita,
circunscrever positivamente um morfema do input, desde que este não seja monossilábico.
CP # E � D
µ; µ > δ Input {{kõ.fi.}' åɶ.så} Dissociação C]MWd
*T > δδδ [kõ.fi] + (-a) *T ≥ B ( * . ) Molde ['kõ.få] Output
142
Assim, a sequência mapeada é o radical da base, {confi-}, que é dissilábico. Mais uma vez,
a porção que não interessa à circunscrição é sobretachada.
Seguindo o processo de formação, o material resultante da circunscrição é enviado
para o molde, nível em que atuam as três condições que visam a ajustar o referido material.
Nesse caso, diferente do que se observou na descrição de ‘gúrja’, a primeira condição não
é respeitada, visto que a circunscrição mapeia um morfema terminado em vogal. Por essa
razão, C]MWd, a condição mais relevante sobre o molde, é responsável pela supressão da
vogal alta em posição final [i], sobretachada na representação, configurando o material
circunscrito para o término em consoante e para a afixação do marcador (-a). Tem-se,
destarte, o output ‘cônfa’, uma vez que as demais condições estão atendidas, pelo fato de,
após o apagamento da vogal [i], o material presente no molde não formar truncamento com
mais de três sílabas nem maior que a base.
Observe-se que o output ‘cônfa’ contraria a tendência geral verificada no padrão,
segundo a qual bases polissilábicas dão origem a truncamentos trissilábicos. Contudo, para
ser formado um output de três sílabas, seria necessário afixar o marcador à vogal alta final
[i] – o que levaria à homonímia com a forma verbal de terceira pessoa ‘confia’, além de
resultar em uma forma truncada com a segunda sílaba do tipo CVV, enquanto, nos demais
48 dados analisados, a sílaba final apresenta estrutura (C)CV, em que o onset pode ser
complexo ou não, e a posição de núcleo é preenchida pelo marcador.
Dessa forma, parece-nos que o único output possível, nesse caso, é ‘cônfa’, que
está em conformidade com uma importante marca formal do padrão, representada pela
condição C]MWd: o término do material circunscrito em consoante, para a afixação do
marcador, formando uma sílaba CV.
Os truncamentos ‘pínda1’ (< ‘pindaíba’) e ‘cóca’ (< ‘cocaína’) encontram-se em
uma situação semelhante à de ‘cônfa’, acima descrita. Porém, desta feita, a existência de
143
truncamentos dissilábicos correspondentes a inputs polissilábicos, contrariando a tendência
geral do padrão, é devida à estrutura da terceira sílaba em ambos os dados37. Na base
‘pindaíba’, a circunscrição delimita o radical {pindaíb-} e o envia para o molde,
dissociando a vogal do tema. Porém, se o marcador de palavra (-a) fosse afixado ao radical
circunscrito, ainda que este respeite a condição C]MWd por terminar em consoante, as
condições *T > δδδ e *T ≥ B seriam violadas, pois a forma truncada resultante seria
polissilábica e, além disso, idêntica ao output. Estas últimas condições, portanto são
responsáveis pelo apagamento da consoante final [b], bem como da vogal [i], que não
poderia servir de onset para receber o marcador (*‘pin.da.ia’), e da vogal [a], núcleo da
segunda sílaba. Dessa forma, a sequência ajustada para a afixação consiste em {pind-}, que
dá origem a um truncamento dissilábico e constituído de um único pé: o troqueu moraico,
‘pínda1’.
Em ‘cóca’ (< ‘cocaína’), a situação é semelhante à acima descrita. A circunscrição
mapeia o suposto radical {cocaín-} e dissocia a também suposta vogal do tema, enviando
para o molde o material circunscrito, o qual deve se ajustar às três condições que lhe são
impostas. Quanto a C]MWd não há problema, visto que se trata de uma sequência terminada
em consoante. Entretanto, caso o marcador fosse afixado a {cocaín-}, o output seria
polissilábico e idêntico à base, infringindo as condições *T > δδδ e *T ≥ B. Por isso, no
nível do molde, o segmento consonantal final [n] é apagado, e, devido à impossibilidade de
a vogal [i] presente na terceira sílaba servir de onset para a afixação do marcador
(*‘co.ca.ia’), esta também é deletada, juntamente com o núcleo da segunda sílaba. Assim,
37 A rigor, existe uma diferença entre as estruturas dos inputs ‘pindaíba’ e ‘cocaína’, pois o primeiro é uma palavra primitiva de origem tupi (cf. FERREIRA, 2001), enquanto o segundo é formado pela palavra ‘coca’, acrescida do sufixo -ina, que, ainda segundo Ferreira (2001), é amplamente utilizado na formação de nomes de substâncias químicas, tais como ‘anilina’, ‘anfetamina’ e ‘sacarina’, por exemplo. Porém, adotamos, nesta tese, a proposta de que o falante não percebe a existência do sufixo em ‘cocaína’ (cf. ‘cocainizar’, ‘cocainismo’, ‘cocainomania’) e efetua o encurtamento utilizando-se da mesma estratégia verificada em ‘pindaíba’, conferindo a ambas as bases o tratamento de palavras primitivas.
144
após os devidos apagamentos, a sequência {coc-} pode receber o marcador (-a), resultando
no output ‘cóca’ – um pé com cabeça à esquerda. Novamente aqui, a vogal tônica se
manifesta como aberta, confirmando a tendência que o português apresenta de abrir vogais
médias quando estas passam a receber acento.
A conclusão a que se chega após a análise dos dados ‘cônfa’, ‘pínda1’ e ‘cóca’
aponta para o fato de que a correspondência entre base polissilábica e truncamento
trissilábico é uma tendência verificada no padrão ‘flágra’, que, embora seguida pela maior
parte dos dados, não pode ser considerada uma obrigatoriedade. Ao contrário, a referida
tendência parece ser sobreposta pela necessidade de atender às condições C]MWd, *T > δδδ
e *T ≥ B.
Concluídas a descrição de ‘cônfa’ e as reflexões acerca da formação de ‘pínda’ e
‘cóca’, o output ‘São Gônça’ (< ‘São Gonçalo’) será analisado, com vistas a mostrar que os
itens não-morfêmicos e compostos presentes no corpus recebem, com os instrumentos da
MP Circunscritiva, o mesmo tratamento dispensado aos dados morfêmicos. Passemos,
pois, à representação, que exemplifica a formação de truncamentos a partir de nomes
compostos.
145
O input composto ‘São Gonçalo’, circunscrito positivamente, da esquerda para a
direita, tem, em princípio, a palavra monomorfêmica [så)W] mapeada. Porém, o referido
morfema não possui mais de uma sílaba, assim como prevê a condição µ > δ. Por essa
razão, o mapeamento avança (como indica a seta pontilhada), em busca de um outro
morfema, com vistas a formar a sequência que será enviada para o molde. Assim, o
material resultante da circunscrição é [så)Wgõsal], que, no nível do molde, passará pelo
crivo das condições C]MWd, *T > δδδ e *T ≥ B, tornando-se a sua estrutura adequada para
receber o marcador. No input, deve-se lembrar, o material não abrangido pela
circunscrição é a vogal postônica final [U], que aparece sobretachada na representação.
CP # E � D
µ; µ > δ Input {{{så)W.}go).'sa.l}U} Dissociação C]MWd *T > δδδ [så)Wgõsal] + (-a)
*T ≥ B ( * . ) Molde [så)W'gõså] Output
146
A sequência enviada para o molde é, portanto, [så)W.go).sa.l], que será avaliada pelas
três condições impostas ao material circunscrito. Sendo assim, verifica-se que C]MWd é
respeitada, visto que se trata de uma sequência terminada em consoante38. No entanto, a
condição *T > δδδ não é atendida pelo referido material, uma vez que, após a afixação, o
output formado seria polissilábico. *T > δδδ é responsável, então, pelo apagamento da
consoante final [l], bem como do núcleo da terceira sílaba (ambos sobretachados na
representação), para que o marcador seja afixado nesta última posição: [så)W.go).s] + (-a) >
[så)Wgo)sǠ]. Quanto à terceira condição, *T ≥ B, pode-se dizer que o apagamento realizado
para satisfazer *T > δδδ também a favorece, pois, nesse caso, o output resultante não
apresentará mais de três sílabas e, além disso, será menor que a base.
Ainda no nível do molde, ocorre a formatação ao tipo de pé troqueu moraico, dando
origem à forma truncada ‘São Gônça’ – paroxítona e trissilábica, em conformidade com a
limitação de três sílabas existente no processo de truncamento, independente do padrão em
que se aloca o dado.
Dessa forma, pode-se dizer que o referido truncamento, assim como os demais
oriundos de nomes compostos (exceto ‘playboy’ – caso que será abordado na próxima
seção, destinada aos problemas da análise), recebe, pela abordagem da MP Circunscritiva,
tratamento semelhante ao destinado às palavras-matrizes simples encontradas no corpus. A
diferença verificada entre as análises de bases simples e compostas é o fato de, no caso das
primeiras, a circunscrição delimitar apenas o primeiro morfema do input – no caso, o
radical; enquanto, nas últimas, o mapeamento precisa avançar para anexar um outro
morfema, com o objetivo de enviar para o molde uma sequência minimamente dissilábica.
Vejamos mais três dados, a seguir:
38 Nesse caso, não considera-se a vocalização de [l] em contexto final de palavra porque se trata de material atrelado ao nível do molde, que não ocorre na fala antes da afixação do marcador.
147
(04) ‘São Paulo’ [sǠɶW). 'pau. lU]circunsc. > [sǠɶW.pau.l]molde > [sǠɶW). p] + (-a) > ['sǠɶpǠ]
‘Grã-fino’ [gRǠɶ.'fi.nU]circunsc. > [gRǠɶ.fi.n]molde > [gRǠɶ.f] + (-a) > ['gRǠɶfǠ]
‘Free-lancer’ [fRi.'lǠɶ.sex]circunsc. > [fRi.lǠɶ.s]molde > [fRi.l] + (-a) > ['fRilǠ]
Em suma, os dados incluídos no padrão ‘flágra’ – morfêmicos ou não-morfêmicos;
sejam os inputs simples ou compostos – podem ser descritos com os mesmos parâmetros e
condições, garantindo a uniformidade da análise. Contudo, há algumas formas truncadas
cuja estrutura não está de acordo com as especificações do padrão, sobretudo no que tange
ao tamanho em relação às bases.
Conforme já mencionado nesta seção, o corpus analisado conta, ao todo, com 49
truncamentos do padrão ‘flágra’. A análise ora proposta contempla a maior parte do
referido corpus, excetuando-se sete dados, cuja formação não segue os parâmetros
estabelecidos. Dessa forma, em termos percentuais, a análise pode ser aplicada com
sucesso a 85,72% dos dados – rendimento inferior ao alcançado nos padrões ‘refrí’ e
‘odônto’, que pode ser explicado pela heterogeneidade verificada entre os dados do corpus.
Entretanto, o percentual de dados com formação acolhida pela MP Circunscritiva é muito
expressivo, de modo que se pode considerar a análise baseada no modelo um grande
avanço em direção à sistematização do processo de truncamento.
Na próxima seção, os entraves encontrados na análise serão enumerados, com o
objetivo de fazer a contagem dos dados que não se ajustam aos parâmetros
morfoprosódicos fixados na presente tese para a descrição do padrão ‘flágra’. Em seguida,
serão retomados os dados não contemplados nos outros padrões, nos casos em que houver,
148
para que se tenha um panorama geral da aplicação da MP Circunscritiva ao processo de
truncamento no português brasileiro.
5.4. Problemas
Há sete truncamentos cuja formação não pode ser analisada com os parâmetros
fixados para o molde do padrão ‘flágra’. No caso, trata-se de formas truncadas que
apresentam o mesmo número de sílabas da base, contrariando a condição *T ≥ B, segundo
a qual o truncamento deve ser menor que a palavra-matriz, visto que se trata de um
processo de formação de palavras caracterizado pelo encurtamento. A seguir, listam-se os
dados:
(05) ‘Portúga’ (< ‘português’)
‘Capíta’ (< ‘capitão’)
‘Sacrísta’ (< ‘sacristão’)
‘Sapáta’ (< ‘sapatão’)
‘Condíça’ (< ‘condição’)
‘Chína’ (< ‘chinês’)
‘Playba’ (< ‘playboy’)
Os truncamentos relacionados em (05) têm o mesmo tamanho da palavra-matriz,
pois os segmentos dissociados, na borda direita, são (a) o sufixo -ês, em ‘português’ e
‘chinês’; (b) o sufixo -ão em ‘capitão’, ‘sacristão’ e ‘sapatão’; e (c) os ditongos -ão e [çJ]
de ‘condição’ e ‘playboy’, esta última uma base composta de origem inglesa, cujos
segmentos finais também se assemelham a um afixo. No caso, após a dissociação das
149
partículas enumeradas e da afixação da vogal (-a), o truncamento mantém o número de
sílabas da base.
A característica comum às sete formas truncadas supracitadas é a terminação numa
sequência fônica que lembra um sufixo iniciado por vogais, como -ão e -ês. Assim, pode-
se levantar a hipótese de que os sufixos (inclusive os dois pretensos sufixos) se dissociam,
restando o radical circunscrito – ao qual se afixa a vogal (-a). Dessa forma, os radicais dos
cinco dados em questão e os pseudoradicais playb- e condiç-), acrescidos da vogal afixada,
dão origem a truncamentos que possuem o mesmo número de sílabas da base.
Vale ressaltar, contudo, que os referidos truncamentos não passam ilesos ao
processo de formação com base na MP Circunscritiva. Comparando-se as bases e formas
truncadas listadas em (05), é possível constatar que as primeiras são oxítonas e terminam
em sílabas pesadas, enquanto as últimas são paroxítonas e terminadas em sílabas leves, tal
como na exemplificação a seguir, baseada no dialeto carioca:
(06)
Figura 1: estrutura silábica da base. Figura 2: estrutura silábica do truncamento.
Português
Sílaba
Onset Rima
[ g ]
Núcleo Coda [ eJ ] [ S ]
Portúga
Sílaba
Onset Rima
[ g ]
Núcleo Coda
[ Ǡ ] _
150
Logo, pode-se dizer que, embora as sete formas truncadas em (05) igualem-se às
bases em número de sílabas e, portanto, sejam consideradas problemas na análise por não
respeitarem a condição *T ≥ B, a formação dos referidos truncamentos está vinculada à
simplificação da estrutura silábica (sílaba final pesada � leve), em conformidade com a
tendência de as sílabas postônicas (‘condíça’) serem menores do que as tônicas finais
(‘condição’). Ainda em relação à boa-formação silábica, a observação do corpus sinaliza
que todos os truncamentos incluídos no padrão ‘flágra’ (não somente as sete formas aqui
discutidas) têm a última sílaba leve, constituída pelo onset final do material circunscrito,
acrescido da afixação do marcador (-a).
Os sete truncamentos citados são, portanto, paroxítonos, menos marcados que as
bases, por estarem em conformidade com a configuração do pé básico em português, e,
ademais, respeitam o limite máximo de três sílabas. O único entrave encontrado na análise
é o fato de haver coincidência entre o número de sílabas da base e do output – o que
representa uma infração à condição imposta sobre o material circunscrito *T ≥ B, a menos
que essa condição passe a contabilizar segmentos e não sílabas. Ao que parece, em tais
formas truncadas, a preservação de material morfológico (no caso, o radical ou suposto
radical) é fundamental, ainda que se mantenha o número de sílabas do input. Por isso, na
seção anterior, *T ≥ B foi caracterizada como a condição mais vulnerável dentre as três
que atuam no nível do molde, pois é a única que pode ser infringida, sem que o output seja
considerado mal-formado (no caso dos dados listados em (05)).
Observe-se que, sem a preservação de material morfológico, a relação entre os
truncamentos e as referidas palavras-matrizes torna-se menos evidente, sobretudo porque
alguns outputs coincidiriam com palavras preexistentes: ‘português’ > ‘pórta’; ‘capitão’ >
151
‘cápa’; ‘sacristão’ > ‘sácra’; ‘chinês’ > ‘chá’39. Sob essa perspectiva, o truncamento
correspondente a ‘chinês’ seria, inclusive, monossílabo, contrariando os limites do
fenômeno, uma vez que, no padrão ‘flágra’, o tamanho dos outputs varia entre duas e três
sílabas. Para este último dado, portanto, existe também a hipótese de o radical ser
preservado para que a estrutura dissilábica seja mantida.
Em suma, no caso dos sete truncamentos discutidos, parece que o respeito a *T ≥ B
é sacrificado, para que o conteúdo morfológico real ou suposto seja preservado. Contudo,
por ser a MP Circunscritiva um modelo transderivacional, que prevê a formação de
palavras com base em diferentes níveis de análise, o fato de os outputs apresentarem o
mesmo número de sílabas da base faz com que os mesmos não sejam passíveis de
descrição, independente da razão que os leva a não serem menores em termos de número
de sílabas. Em outras palavras, a infração a uma condição atuante no molde sobre o
material circunscrito é suficiente para que os dados em questão (a) sejam tratados como
resíduos da aplicação da MP Circunscritiva ao fenômeno de truncamento no português
brasileiro ou (b) sejam interpretados com a condição *T ≥ B contabilizando segmentos
(não mais sílabas), o que nos parece uma solução bastante razoável, tendo em vista a
simplificação ilustrada em (06).
Vale comentar que as formas ‘portúga’, ‘capíta’, ‘sacrísta’, ‘sapáta’ e ‘chína’
poderiam ser descritas com circunscrição negativa, tal como na proposta de Gonçalves
(2004), uma vez que os referidos dados apresentam, na parte dissociada, um sufixo. Porém,
conforme já mencionado, a opção metodológica adotada na presente tese foi utilizar
parâmetros de circunscrição e molde comuns aos três padrões. Assim, os truncamentos em
questão constituem resíduos à análise, caso a condição *T ≥ B não seja revista. Se, por
39 Na realidade, o truncamento ‘sápa’ (< ‘sapatão’) é também encontrado no corpus, apesar de ser menos transparente e coincidir com uma palavra já existente na língua. Mais adiante, a coexistência entre ‘sapáta’ e ‘sápa’ será discutida.
152
outro lado, entendermos que, apesar de terem o mesmo número de sílabas que as bases, tais
truncamentos não deixam de ser menores que as respectivas palavras-matrizes, o
percentual de formas cobertas pela análise aqui proposta subiria para 100%.
A segunda questão que deve ser colocada, embora não-quantificável, é a existência
de dois truncamentos para a base ‘sapatão’, pois, na coleta de dados, foram encontradas as
formas ‘sapáta’ e ‘sápa’. A primeira delas, já apontada nesta seção, não estaria coberta pela
análise se adotarmos como parâmetro para condição *T ≥ B o número de sílabas, embora
conserve o radical da base. A segunda, por sua vez, não preserva o radical da base, mas é
menor que esta última e possui menos de três sílabas. Logo, ‘sápa’, embora coincida com
uma palavra já existente na língua, é, de acordo com os instrumentos da MP Circunscritiva,
um output real.
Resta-nos, então, a seguinte questão: se ‘sápa’ é um output real, que atende a todas
as condições estabelecidas para o padrão, por que a coexistência com ‘sapáta’?
Novamente, há evidências de que existe uma tensão entre a preservação de material
morfológico (no caso de ‘sapáta’) e o melhor atendimento à condição *T ≥ B (no caso de
‘sápa’).
Ao que tudo indica, tomando-se como base o uso, ‘sapáta’ é a forma mais utilizada,
na comparação com ‘sápa’40. Por essa razão, pode-se ratificar a hipótese de que, conforme
se verificou entre os truncamentos listados em (05), o tamanho da forma truncada em
relação à base, regulado pela condição *T ≥ B, seja sacrificado em favor da preservação do
radical – o que parece justificar a preferência dos falantes pela forma truncada mais
40 Afirmação baseada no número de ocorrências encontradas com auxílio da ferramenta de busca eletrônica Bing (http://br.bing.com): aproximadamente 20.300 para ‘sápa’ e 40.200 para ‘sapáta’. A busca foi realizada por meio de referências cruzadas com o vocábulo gay, para evitar o excesso de resultados exibidos, devido à coincidência com outras palavras existentes na língua. Vale lembrar que ‘sapa’ é um termo utilizado também para designar a fêmea do sapo; e que ‘sapata’ também se refere à “parte inferior do alicerce, [...] colocada sobre o pilar que suporta o peso da construção” (Wikipedia). No dicionário informal, por sua vez, ambas as formas são reconhecidas como termos relacionados à sexualidade, reafirmando o vínculo do truncamento com a informalidade: “Sapa designa uma SAPAta, ou seja, homossexual feminina, lésbica”; “sapata: mulher homossexual. Lésbica”.
153
transparente por preservar a informação morfológica. Assim, embora ‘sapáta’ tenha o
mesmo número de sílabas da base, torna-se mais usado que ‘sápa’, confirmando a
tendência à manutenção do radical integral no caso das bases terminadas em -ão.
Vista a questão da coexistência entre os truncamentos supracitados, passemos a
outra questão não-quantificável que despertou interesse na análise do padrão ‘flágra’ via
MP Circunscritiva. Trata-se dos casos em que as bases possuem mais de três sílabas,
porém dão origem a truncamentos dissilábicos – contrariando a tendência de que bases
polissilábicas servem de inputs para truncamentos trissilábicos. A seguir, em (07), listam-
se três dados em que se verificou o desvio da tendência em questão41:
(07) ‘Cáfa’ (< ‘cafajeste’)
‘Cópa’ (< ‘Copacabana’)
‘Pínda’2 (< ‘Pindamonhangaba’)
Como se pode observar, o tamanho das bases em (07) varia entre quatro e seis
sílabas, mas as formas truncadas são todas dissilábicas – diferente do que seria esperado,
de acordo com a tendência verificada na maior parte do corpus. Entretanto, os referidos
truncamentos são, com base nas condições estabelecidas para a análise do padrão ‘flágra’,
outputs reais, pelas razões que se seguem.
As três formas truncadas em questão (‘cáfa’, ‘Cópa’ e ‘Pínda’2) atendem às
condições impostas sobre material resultante da circunscrição, uma vez que (1) o marcador
(-a) é afixado em uma sequência terminada em consoante; (2) os outputs possuem menos
41 Na verdade, há, ainda, a forma ‘Bárça’, cuja base (‘Barcelona’) apresenta quatro sílabas. Porém, conforme explicitado quando da descrição do corpus, o referido truncamento não se inclui entre os dados analisados por ser considerado um empréstimo do espanhol. Assim, não é classificado como um entrave à análise baseada na MP Circunscritiva, uma vez que não segue, necessariamente, os padrões de truncamento fixados para o português brasileiro.
154
de três sílabas; e (3) são menores que as bases, além de serem todos constituídos de um
único pé troqueu moraico. Da mesma forma, se os outputs fossem trissilábicos (‘cafája’,
‘Copáca’ e ‘Pindâma’), seguindo a tendência constatada no restante do corpus, as mesmas
condições seriam respeitadas, pois os truncamentos formados também teriam o marcador
(-a) afixado a uma sequência terminada em segmento consonantal, seriam menores que as
bases e estariam em conformidade com o limite de três sílabas. Ademais, parece não haver
obstáculos quanto à formação de pés trocaicos nesses últimos casos – o que lhes garantiria
a acentuação paroxítona.
Ao que parece, portanto, a MP Circunscritiva é um modelo que prevê as duas
possibilidades, ou seja, permite que as bases ‘cafajeste’, ‘Copacabana’ e
‘Pindamonhangaba’ estejam associadas a truncamentos dissilábicos ou trissilábicos. Nesse
sentido, pode-se dizer que há uma supergeração de formas, pois existem dois truncamentos
perfeitamente aceitáveis para cada base.
O fato de os dissílabos ‘cáfa’, ‘Cópa’ e ‘Pínda’2 estarem presentes no corpus,
enquanto os possíveis trissílabos ‘cafája’, ‘Copáca’ e ‘Pindâma’ não foram encontrados,
pode ser uma evidência de que a relação de identidade entre o truncamento e a base subjaz
à opção do falante pelas formas dissílabas. Em outras palavras, as formas ‘cáfa’, ‘Cópa’ e
‘Pínda’2, embora sejam menores em relação aos inputs, parecem mais transparentes do que
o seriam os equivalentes trissílabos não-atestados, pois são metricamente mais fiéis às
formas de base. Nesse caso, os outputs são constituídos do pé trocaico localizado na
margem esquerda da base, formado pela primeira sílaba, que porta o acento secundário,
mais a segunda, cujo núcleo (-a) é idêntico ao marcador do tipo de truncamento ora
analisado. Em suma, o troqueu moraico mais à esquerda do input é mantido nas formas
truncadas dissilábicas – o que assegura a maior fidelidade destas em relação às bases
correspondentes, uma vez que os truncamentos trissilábicos têm o troqueu moraico à
155
esquerda da palavra-matriz desfeito, para que o acento recaia sobre a segunda sílaba e,
dessa forma, o output seja paroxítono, conforme o formato do molde estabelecido para o
padrão. As formas trissilábicas não-atestadas teriam, ainda, o agravante de deixar a sílaba
inicial desgarrada, já que um troqueu moraico seria formado na borda direita dos possíveis
truncamentos.
Assim, não havendo impedimento de ordem morfoprosódica à formação dos
truncamentos dissilábicos, bem como dos trissilábicos, fatores relacionados à fidelidade
métrica parecem justificar o uso dos primeiros, ainda que os últimos tenham exatamente a
mesma chance de ocorrer enquanto outputs.
Como última observação, tal como ressaltado, na seção anterior, a respeito da
formação de ‘cônfa’, ‘pínda1’ e ‘cóca’, o fato de bases polissilábicas servirem de inputs
para truncamentos trissilábicos constitui uma tendência verificada no padrão ‘flágra’, e não
uma obrigatoriedade. Por essa razão, a referida tendência pode ser desrespeitada em
função de algum fator que se mostre mais relevante no caso analisado. Em ‘cônfa’,
‘pínda1’ e ‘cóca’, lembremos que, devido à configuração da terceira sílaba, não há
possibilidade de, nesta, ser encontrado um onset que forme sílaba CV com o marcador (-a)
– o que licencia os outputs dissilábicos. No caso de ‘cáfa’, ‘Cópa’ e ‘Pínda2’, a fidelidade
métrica em relação à base parece justificar o desvio da tendência ora referida.
Em suma, a análise dos dados pertencentes ao padrão ‘flágra’ fundamentada nos
parâmetros adotados nesta tese é capaz de descrever morfoprosodicamente o truncamento
‘sápa’ (coexistente com ‘sapáta’), bem como o grupo formado por ‘cáfa’, ‘Cópa’, ‘Pínda2’
– que contrariam a tendência segundo a qual bases polissilábicas são responsáveis pela
formação de truncamentos trissilábicos, mas, por outro lado, são metricamente fiéis às
palavras-matrizes. Mais uma vez, vale enfatizar que todas as formas citadas atendem às
156
condições *T > δδδ e *T ≥ B, além de serem constituídas de um único pé troqueu moraico,
conforme previsto no molde do padrão, e respeitarem o limite mínimo de duas sílabas.
Vejamos, então, como a MP Circunscritiva responde à análise do corpus, desta
feita retomando os padrões ‘refrí’ e ‘odônto’. Em termos numéricos, há duas formas não
acolhidas pela descrição do grupo ‘odônto’: ‘otorríno’ (composto por mais de um
morfema) e ‘hétero’ (devido à acentuação proparoxítona). No padrão ‘flágra’, os critérios
utilizados se aplicam a todas as palavras do corpus, caso a condição *T ≥ B contabilize
segmentos. Quanto ao padrão ‘refrí’, todos os truncamentos são contemplados pela análise,
não havendo, portanto, resíduos entre os dados.
Destarte, contam-se, ao todo, dois dados presentes no corpus que não podem ser
descritos de acordo com os parâmetros de circunscrição e molde estabelecidos. Em termos
percentuais, visto que 108 formas truncadas foram analisadas, levando-se em conta todo o
corpus, pode-se dizer que a análise com base na MP Circunscritiva empreendida nesta tese
aplica-se a 98,15 % dos dados – resultado altamente satisfatório.
Deve-se destacar que a coexistência entre ‘sapáta’ e ‘sápa’, assim como a
supergeração de formas, embora não sejam casos quantificáveis, são também consideradas
barreiras encontradas ao longo da análise dos dados. Na ocorrência de ‘sapáta’ x ‘sápa’, a
opção pelos truncamentos menos opacos pode justificar a maior ocorrência de ‘sapáta’, em
detrimento de ‘sápa’. Quanto à supergeração de formas, a descrição do padrão ‘flágra’ com
base nos parâmetros adotados apresenta um ponto falho ao prever dois possíveis
truncamentos para as bases ‘cafajeste’, ‘Copacabana’ e ‘Pindamonhangaba’. No caso, a
falha consiste em não barrar as formas trissílabas que não se realizam.
157
A seguir, em (08), são listadas algumas formas truncadas descritas por diferentes
autores42, que não foram coletadas para a constituição do corpus utilizado na presente tese.
O intuito é verificar se a MP Circunscritiva proporcionaria uma análise satisfatória dos
dados em questão, ratificando-se, assim, a eficácia do modelo.
(08) ‘Profí’ (< ‘profissional’)
‘Facú’ (< ‘faculdade’)
‘Mordô’ (< ‘mordomia’)
‘Crúza’ (< ‘cruzeiro’)
‘Mânga’ (< ‘Mangueira’)
‘Búrga’ (< ‘burguês’)
‘Mânta’ (< ‘manteiga’)
‘Pálha’ (< ‘palhaço’)
‘Pratíca’ (< ‘praticante’)
‘Trafíca’ (< ‘traficante’)
‘Satísfa’ (< ‘satisfação’)
‘Proléta’ (< ‘proletário’)
‘Perífa’ (< ‘periferia’)
‘Mórta’ (< ‘mortadela’)
‘Mína’ (< ‘menina’)
Entre os dados citados, os três primeiros, ‘profí’, ‘facú’ e ‘mordô’, podem ser
descritos com os mesmos parâmetros utilizados na análise do padrão ‘refrí’, uma vez que
se trata de formas constituídas das duas primeiras sílabas do input e que, além disso, são
42 Santos (2002); Araújo (2002); Vilela, Godoy & Cristófaro Silva (2006); e Scher (2011).
158
formadas por um pé iâmbico. Nesse caso, deve-se lembrar que os inputs do processo de
truncamento são fonéticos, em virtude de serem dados de fala. Por isso, a forma ‘facú’ é
tratada como resultado da circunscrição positiva, da esquerda para a direita, do input
[fa.ku.'da.ȴi] – daí o mapeamento das duas primeiras sílabas integrais [fa.ku],
desconsiderando-se a presença do ditongo formado pela vocalização da lateral alveolar.
As demais formas listadas em (08) podem ser associadas ao padrão ‘flágra’, já
apontado nesta tese como o mais produtivo dentre os três analisados – o que justifica o
maior número de dados relacionados em diferentes estudos. Quanto a ‘crúza’ e ‘mânga’,
verifica-se que suas formações envolvem a circunscrição do radical (µ) dos inputs
‘cruzeiro’ e ‘Mangueira’, respectivamente, aproveitando-se, no output, todo o morfema
circunscrito. Nos dois casos, o material resultante da circunscrição – {cruz-} e {mang-} –
não tem segmentos eliminados no nível do molde porque respeita as condições C]MWd, *T
> δδδ e *T ≥ B, uma vez que termina em consoante, não forma truncamento com mais de
três sílabas e nem maior que a base, após a afixação do marcador.
‘Búrga’, por sua vez, estaria alocado no grupo de dados em que a condição *T ≥ B
teria de ser flexibilizada. Observe-se que input e output apresentam o mesmo número de
sílabas, assim como os dados listados em (05). Contudo, pode-se aplicar a ‘búrga’ um
tratamento semelhante ao atribuído a ‘chína’, no sentido de que a condição mais vulnerável
dentre as três impostas ao material circunscrito, *T ≥ B, seria relativizada com o intuito de
preservar a informação morfológica, visto que a eliminação do segmento consonantal [g],
que trava o radical, distanciaria muito o output do input, dificultando o rastreamento da
base. Além disso, deve-se lembrar que não há truncamentos monossilábicos no grupo de
dados ‘flágra’ – o que constitui um obstáculo ao encurtamento de bases dissilábicas tais
como ‘burguês’ e ‘chinês’.
159
Quanto às condições C]MWd e *T > δδδ, observe-se que as duas são respeitadas pelo
material circunscrito, no caso, o morfema {burg-} – radical do input, que termina em
consoante e não forma truncamento com mais de três sílabas após a adjunção do marcador
(-a). Sendo assim, o truncamento ‘búrga’ pode ser descrito com base nos parâmetros
fixados na presente tese, caso *T ≥ B compute segmentos (e não sílabas).
‘Mânta’ é uma forma truncada em que, ao contrário do que ocorre em ‘búrga’,
acima citado, a informação morfológica não é priorizada. Desta feita, o material decorrente
da circunscrição perde segmentos no nível do molde, com vistas a atender a condição *T ≥
B, visto que, sendo o input trissilábico, é possível eliminar segmentos no molde,
respeitando-se o limite mínimo de duas sílabas para os truncamentos do grupo ‘flágra’.
Observe-se que o radical (µ) do input é {mǠɶ.'te.g-}, que, apesar de satisfazer às
demandas de C]MWd e *T > δδδ, por terminar em consoante e não levar à formação de
truncamento com mais de três sílabas após a afixação do marcador, infringe *T ≥ B, pois,
caso o marcador (-a) fosse afixado ao material circunscrito, a forma truncada resultante
seria idêntica ao input. Assim, a consoante [g] que trava o radical é apagada, bem como a
vogal [e], núcleo da segunda sílaba, para que o marcador (-a) forme uma nova sílaba com o
onset [t]: [mǠɶ.tǠ]. Após a formatação do pé troqueu moraico, também previsto no molde,
o output é ‘mânta’ – uma forma truncada dissilábica e paroxítona. Portanto, trata-se de um
dado que tem formação prevista pelos parâmetros da MP Circunscritiva adotados nesta tese
para a análise do padrão ‘flágra’, alocando-se entre as formas truncadas não-morfêmicas.
Da mesma forma, o truncamento ‘pálha’ pode ser analisado como um dado não-
morfêmico do padrão ‘flágra’. Nesse caso, o radical (µ) da base, {palhaç-}, é circunscrito
segundo os parâmetros adotados para a descrição do referido grupo, mas não está presente
no output pelas razões a seguir. O material resultante da circunscrição, {palhaç-},
160
desrespeita a condição *T ≥ B, uma vez que, após a afixação do marcador (-a), formaria
um output igual à base (*‘palhaça’), ainda que a referida condição fosse flexibilizada e
contabilizasse segmentos, em vez de sílabas. Além disso, o output formado coincidiria com
a forma que se opõe a ‘palhaço’ por flexão de gênero.
Por isso, o material enviado para o molde perde segmentos, de modo que o output
formado seja menor que a base: [pa.¥a.s-]. Os segmentos [s] e [a], onset da terceira sílaba
da base e núcleo da segunda, respectivamente, são eliminados, para que o marcador (-a)
seja afixado à sequência [pa.¥], com cujo último elemento formará uma sílaba CV, dando
origem à forma truncada ‘pálha’ – menor que o input e formada por um pé troqueu
moraico, tal como garante o formato do molde.
Em relação às formas ‘pratíca’, ‘trafíca’, ‘satísfa’, ‘proléta’ e ‘perífa’, pode-se dizer
que suas descrições também se ajustam aos parâmetros fixados para a análise do padrão
‘flágra’. Porém, diferente do que de observou acima, na formação de ‘mânta’, há
preservação da informação morfológica nos cinco dados aqui citados – o que permitiria a
sua inclusão entre as formas truncadas morfêmicas pertencentes ao padrão. Em todos os
dados, o material circunscrito positivamente, da esquerda para a direita, é o radical (µ) do
input – no caso, respectivamente, {pratic-}, {trafic-}, {satisf-}, {prolet-} e {perifer-}.
Devido ao fato de todas as sequências citadas respeitarem as condições C]MWd, *T > δδδ e
*T ≥ B, por terminarem em consoante, não formarem truncamentos com mais de três
sílabas nem maiores ou iguais às respectivas bases, o material circunscrito é, em todos os
casos, aproveitado no output, restando apenas afixar do marcador (-a) e formar o troqueu
moraico, a partir da borda direita, recaindo a sílaba tônica sobre a segunda sílaba da forma
truncada: ‘pratíca’, ‘trafíca’, ‘satísfa’, ‘proléta’ e ‘perífa’.
161
O caso de ‘mórta’ (< ‘mortadela’) é igual ao de ‘cáfa’ (< ‘cafajeste’), ‘Cópa’ (<
‘Copacabana’) e ‘Pínda2’ (< ‘Pindamonhangaba’), já citados nesta seção como outputs cuja
formação envolve a supergeração de formas. Também em ‘mortadela’, a circunscrição do
input delimita o radical {mortadel-}, que passa ao nível do molde, em que perde
segmentos, para não formar truncamento com mais de três sílabas após a adjunção do
marcador (-a). Como o material decorrente da circunscrição termina em consoante,
conforme a exigência da condição C]MWd, é *T > δδδ a responsável pelo apagamento da
lateral [l], que trava o radical, bem como de toda a terceira sílaba [dǫ] e do núcleo da
segunda [a], para que o marcador forme sílaba com a oclusiva [t], resultando no output
‘mórta’, dissilábico e paroxítono, que exibe a abertura da vogal média presente na primeira
sílaba, ocasionada pela formação do pé troqueu moraico e consequente acento sobre a
referida vogal.
A supergeração de formas envolvida na formação do truncamento da palavra-
matriz ‘mortadela’ ocorre porque, além do output ‘mórta’, acima citado, o modelo justifica
também a emergência da forma truncada ‘mortáda’, não encontrada na fala. Este último
dado tem processo de formação bastante semelhante ao de ‘mórta’, diferindo-se apenas
quanto ao número de segmentos apagados no molde; no caso, a terceira sílaba não é
totalmente eliminada, mas tem seu onset preservado, para receber o marcador (-a), tal
como se segue: {mor.ta.de.l-} > [mor.ta.d-] + (-a) > ‘mortáda’. Vale observar que
‘mortáda’ é também uma forma truncada que respeita o limite máximo de três sílabas e
apresenta menor número de sílabas em relação à base.
Dessa forma, como já exposto nesta seção, o modelo apresenta uma falha ao prever
dois truncamentos possíveis para o input ‘mortadela’, ainda que um deles não se realize.
Como justificativa para a opção do falante pela forma dissilábica (‘mórta’), pode-se
162
considerar que esta preserva o troqueu moraico localizado na borda esquerda da base,
[mor.ta]['de.la], enquanto o possível output trissilábico promoveria a dissociação do
referido troqueu, para que o acento da forma truncada recaísse sobre a sílaba /ta/:
mor.['ta.da]. No caso, da mesma forma que se verifica em ‘cáfa’, ‘Cópa’ e ‘Pínda2’, a
fidelidade métrica estaria se sobrepondo à tendência de formar um truncamento
trissilábico, uma vez que a palavra-matriz é polissilábica.
Há, ainda, a forma truncada ‘mína’, que, conforme exposto no capítulo 3, não
integra o corpus analisado nesta tese por ser, aparentemente, um dado verificado em
dialetos de São Paulo. Tomando-se como base a descrição do padrão ‘flágra’, observa-se
que o dado em questão apresenta estrutura compatível com os truncamentos do grupo, tal
como se segue. A circunscrição mapeia o radical do input fonético [mĩ.'nĩ.nǠɶ] e, devido ao
fato de, nesse caso, o output tornar-se idêntico à base após a afixação do marcador (-a), a
última consoante nasal do radical é eliminada, assim como o núcleo da segunda sílaba,
restando a sequência [mĩ.n] - a que o marcador (-a) é afixado. Dessa forma, tem-se o
output ‘mína’, que não está presente no corpus da tese, mas, ainda assim, pode ser descrito
com os parâmetros da MP Circunscritiva aqui estabelecidos.
Para finalizar o presente capítulo, é importante destacar que a MP Circunscritiva,
tal como demonstrado nesta última seção, não é capaz de descrever com eficiência apenas
os dados integrantes do corpus utilizado na tese. Ao contrário, conforme se observou com
a retomada de dados descritos por outros autores, o modelo permitiria uma análise segura
dos mesmos. Por isso mesmo, vale ressaltar que o fato de a MP Circunscritiva dar conta da
formação de dados não presentes no corpus reafirma a eficiência do modelo no que tange à
descrição do processo de truncamento no português brasileiro, uma vez que pode ser
estendido a um número de dados maior que o reunido na presente tese.
163
Como grande vantagem do modelo, em oposição a propostas centradas somente na
relação entre constituintes morfológicos (base-afixo), pode-se ressaltar a interação de
fatores de ordem morfológica e prosódica, pois, embora os aspectos prosódicos possam se
sobrepor aos morfológicos (ou vice-versa) em alguns casos, há um grande diferencial na
MP Circunscritiva que permite, por exemplo, a circunscrição de material morfológico do
input, que deve, no entanto, conformar-se a um tipo específico de pé, definido no molde.
No próximo capítulo, serão revisitadas as propostas de Plag (2003) e Fandrych
(2008), que também podem ser consideradas inovadoras em relação ao processo de
truncamento. O objetivo do capítulo é destacar que, na morfologia contemporânea, existe
uma tendência em acolher o truncamento como processo regular de formação de palavras,
que deve, portanto, deixar de ser considerado assistemático ou imprevisível, tal como
propõe a presente tese.
164
Capítulo 6 – O truncamento na morfologia contemporânea
Este capítulo tem o intuito de mostrar que o estudo do truncamento, assim como
dos demais processos não-concatenativos de formação de palavras, vem ganhando
destaque na morfologia contemporânea. Conforme será discutido nas duas seções que
compõem o capítulo, as formas truncadas, embora ainda sejam consideradas irregulares e
assistemáticas por alguns autores (cf. capítulo 2), são também descritas como regulares e
previsíveis de acordo com abordagens que não se apoiam exclusivamente no conceito de
morfema.
Como veremos, a relevância dos constituintes prosódicos e a noção de splinter têm
desempenhado importante papel nas descrições que visam a encontrar generalizações
envolvidas na formação do truncamento. Logo, pode-se dizer que a presente tese, apoiada
em fatores de ordem prosódica, está inserida na perspectiva atual de análise do fenômeno.
A seguir, apresentam-se, resumidamente, as publicações de Plag (2003) e Fandrych (2008),
com o objetivo de retomar estudos morfológicos que abordem o truncamento enquanto
processo sistemático de formação de palavras, proporcionando um diálogo com as análises
realizadas nesta tese, também considerada inivadora no que tange à sistematização do
processo.
6.1. Proposta com base em fatores prosódicos
Em capítulo exclusivamente dedicado à derivação sem afixação, Plag (2003)
investiga casos de nomes truncados (correspondentes à hipocorização), diminutivos em -y,
165
clippings43, cruzamentos vocabulares, abreviações e acrônimos em inglês. Segundo o
autor, os fenômenos citados são pesquisados em termos sobretudo prosódicos – o que
representa, de modo geral, um avanço no estudo dos processos não-concatenativos de
formação de palavras e permite vislumbrar a aproximação entre a perspectiva adotada
nesta tese e aquelas que vêm se desenvolvendo na morfologia contemporânea acerca da
descrição do truncamento em particular.
Conforme será explicitado na presente seção, Plag (2003) lida com a estrutura
silábica e o acento (primário e secundário) na investigação dos processos que se propõe a
descrever; assim, embora não fundamente sua pesquisa nos princípios da Morfologia
Prosódica, o autor incorpora à sua descrição elementos relevantes em uma análise com
base no referido modelo, tal como a empreendida na presente tese. Dessa forma, pode-se
dizer, de antemão, que Plag (op. cit.) abre espaço para a discussão quanto à interface
fonologia-morfologia, evidenciada sobretudo nos processos de formação de palavras que
não se caracterizam pela afixação.
Contudo, antes de proceder à descrição dos processos não-concatenativos, Plag
(2003) destaca que a interação da morfologia com a fonologia se manifesta mesmo em
alguns casos de sufixação, nos quais o acréscimo do sufixo é responsável por um padrão
acentual que permeia todos os vocábulos derivados. Para fim de exemplificação, o autor
menciona que, em inglês, os nomes portadores do sufixo -ity são sempre proparoxítonos,
os adjetivos terminados em -ic são todos paroxítonos, e todos os nomes acrescidos de -ee
são oxítonos.
43 Os clippings, nos termos do autor, correspondem às formações nesta tese denominadas “truncadas”. Tal divergência de nomenclaturas ocorre porque Plag (2003) considera “truncamentos” (truncated names) apenas os antropônimos, enquanto as formas encurtadas que têm nomes comuns como base recebem, de acordo com o autor, o nome de clippings. Observe-se que apenas estas últimas formações coincidem com aquelas analisadas na presente tese, uma vez que os truncated names alocam-se no fenômeno de hipocorização.
166
Quanto aos processos não-concatenativos de formação de palavras, o truncamento
é, segundo Plag (2003: 146), um processo em que “a relação entre a palavra derivada e sua
base é expressa por meio da perda de material fonético na palavra derivada”. Assim, o
autor propõe que o processo geral de truncamento (correspondente à redução vocabular de
modo geral) engloba os casos de nomes truncados, diminutivos em -y e clippings – todos
caracterizados pela perda de material fonético, tal como será explicitado a seguir.
Nomes truncados, segundo Plag (op. cit.), consistem em encurtamentos de
antropônimos, usados com o intuito de expressar familiaridade. Porém, embora aborde a
questão do uso de tais formas, atribuindo-o à familiaridade, o autor centraliza sua descrição
nas propriedades prosódicas dos nomes truncados, levando em conta não apenas sua
própria estrutura, mas também sua relação com as respectivas bases.
Primeiramente, Plag (op. cit.) afirma que, observando-se a estrutura dos nomes
truncados em inglês, pode-se dizer que todos são monossilábicos, não importando quão
longa seja a base: Abigail > Gail; Augustus > Guss; Bartholomew > Bart. Essa
característica, deve-se lembrar, é também apontada por Gonçalves (2004) em relação aos
hipocorísticos em português, os quais, de acordo com o autor, embora não sejam
exclusivamente monossilábicos, apresentam o número máximo de duas sílabas, uma vez
que o processo tende a formar palavras mínimas na língua (cf. capítulo 4).
Ademais, Plag (2003) observa que nomes truncados têm uma grande tendência a
começar e terminar em consoantes, ainda que as bases comecem ou terminem em vogais,
como se vê nos exemplos Alexandra > Xan e Amelia > Mel. Quanto a esta última
propriedade, o autor afirma que, ocasionalmente, pode haver nomes truncados terminados
em vogais, tais como Lou (< Louis) e Ray (< Raymond); entretanto, os referidos casos são
marcados por uma vogal longa (Lou) ou por um ditongo (Ray) em posição final.
167
Após as considerações feitas acerca da estrutura dos nomes truncados, Plag (op.
cit.) identifica estruturas prosódicas fixas, isto é, moldes, a que as referidas construções
tendem a se conformar. A seguir, listam-se os três moldes apresentados pelo autor, nos
quais as consoantes são representadas por C; e as vogais, por V44:
(01)
a. CcVvCc – Dolph (< Adolphus)
b. CcVv – Sue (< Suzanne)
c. VvCc – Alf (< Alfred)
Os moldes encontrados por Plag (2003) são definidos com base na constatação do
formato dos nomes truncados presentes no corpus reunido para a pesquisa. Não há
coincidência, portanto, entre os moldes ora mencionados e aqueles definidos em termos de
mapeamento de elementos da camada melódica para a camada segmental, assim como
proposto por McCarthy (1981). Porém, o fato de Plag (op. cit.) identificar regularidade no
processo, valendo-se, para tanto, de fatores prosódicos, pode ser considerado um grande
passo em direção à análise dos processos de formação de palavras não-concatenativos de
forma sistemática.
Além das possíveis estruturas dos nomes truncados, representadas pelos moldes
anteriormente listados, Plag (2003) investiga também a relação formal existente entre o
nome truncado e sua palavra-matriz, uma vez que, segundo o autor, apenas partes da base
são aproveitadas no nome truncado – partes estas de que os falantes devem ter
conhecimento.
44 As consoantes e vogais minúsculas assinalam a possibilidade de encontrarem-se grupos consonantais (Cc) e vogais longas ou ditongos (Vv) nos moldes. Contudo, deve-se ressaltar, a presença dos referidos elementos não é obrigatória.
168
Plag (op. cit.) propõe que as partes da base mantidas no nome truncado são
variáveis, mas previsíveis. Assim, o autor identifica três grupos de dados, de acordo com o
aproveitamento de material que formará o molde do nome truncado: (a) aqueles cujos
moldes são compostos pelas primeiras sílabas da base (e, algumas vezes, segmentos
subsequentes), tal como em Alonzo > Al; (b) outros em que a sílaba portadora do acento
primário fornece o material para o molde, como se observa em Adolphus > Dolph; e (c)
formas em que a sílaba sobre a qual recai o acento secundário é mantida no nome truncado,
assim como em Abigail > Gail.
A estrutura segmental dos nomes truncados é também um fator pesquisado por Plag
(op. cit.), pois, segundo o autor, verificam-se mudanças nos traços de alguns segmentos
quando da formação do nome truncado. Para fim de exemplificação, o autor seleciona
casos que envolvem as consoantes /r/ e /T/, retomados a seguir.
Quando ocorre na posição de onset do nome truncado (Rob < Robert) ou na
primeira posição de uma coda complexa (Bert < Adelbert), /r/ é mantido. Porém, o referido
segmento é substituído por /l/ nos nomes truncados em que ocorre como único segmento
em posição de coda, tal como em Sal (< Sarah).
A investigação da presença do segmento /T/ em bases de nomes truncados, por sua
vez, levou Plag (2003) a identificar a seguinte generalização: a referida consoante é evitada
e substituída por /t/, assim como revelam os dados Art (< Arthur), Cat (< Catherine) e Ted
(< Theodore), por exemplo.
Após a discussão acerca da estrutura dos nomes truncados e de sua relação com as
bases, o autor afirma que a formação desses nomes “é altamente sistemática e sujeita a
fortes restrições prosódicas”, da mesma forma que o têm demonstrado, por exemplo,
Gonçalves (2004), Lima (2008) e Thami da Silva (2008; 2013) para o português do Brasil,
169
ainda que sejam distintos os instrumentos empregados nas análises45. Portanto, deve-se
ressaltar, mais uma vez, a proposta de Plag (2003) pode ser considerada um importante
passo em direção à sistematização de processos não-concatenativos de formação de
palavras, comumente marginalizados em estudos que desconsideram a relevância de
aspectos prosódicos na sua formação.
Outro processo considerado não-concatenativo e investigado por Plag (op. cit.) é a
formação de diminutivos por meio da sufixação de -y. Vale lembrar que, embora o referido
processo seja marcado pela afixação de -y, o autor o considera misto, uma vez que a base à
qual -y se adjunge é uma forma encurtada, tal como se verifica em Andrew > *And > Andy.
Por essa razão, destaca o autor, o processo não foi descrito no capítulo por ele destinado à
sufixação.
A princípio, duas observações de cunho geral são feitas por Plag (2003) em relação
aos diminutivos supracitados. A primeira delas consiste no fato de haver duas variantes
ortográficas para o sufixo formador do diminutivo: -y e -ie, que, no entanto, são
pronunciadas de forma idêntica. A segunda observação diz respeito à categoria das bases
envolvidas no processo, pois, de acordo com o autor, há predomínio de nomes próprios
(Bertie < Albert) e comuns (Beddie < Bedcama), embora se encontrem também adjetivos
(Comfy < Comfortable) entre os dados. Quanto às características comuns aos diminutivos
terminados em -y, além da presença do mesmo sufixo, o autor afirma que, assim como
verificado entre os nomes truncados, a estrutura prosódica dos derivados e a sua relação
com as respectivas bases são fatores que permitem a identificação de regularidades no
processo.
45 Gonçalves (2004) descreve a hipocorização com base nos fundamentos da Morfologia Prosódica, enquanto Lima (2008) e Thami da Silva (2008; 2013) empregam os pressupostos da Teoria da Otimalidade na análise do mesmo fenômeno.
170
Segundo Plag (2003), a maioria quase absoluta dos diminutivos formados pelo
acréscimo de -y é dissilábica e acentuada na primeira sílaba. Além disso, a segunda sílaba
nunca apresenta onset complexo, ainda que a palavra-matriz o apresente – daí a formação
de Andy a partir de Andrew, e não *Andry. Com base nas duas propriedades ora citadas, o
autor define o molde para a formação dos referidos diminutivos nos seguintes termos: um
troqueu silábico, em que a segunda sílaba consiste em uma consoante simples, acrescida do
sufixo.
Além de definir o formato do molde, Plag (op. cit.) destaca que o corpus analisado
evidencia a manutenção da primeira sílaba da base no diminutivo, seja esta acentuada ou
não. Porém, o autor aponta que, ocasionalmente, a sílaba portadora do acento primário
pode também ser utilizada na ancoragem, tal como se observa em umbrellaguarda-chuva >
Brollie.
No nível segmental, Plag (op. cit.) afirma que, entre os diminutivos formados pelo
acréscimo de -y, ocorrem mudanças nos traços de algumas consoantes, da mesma forma
que se constatou na descrição dos nomes truncados (Martha > Marty, por exemplo). Por
essa razão, o autor considera que formas encurtadas (nomes truncados ou clippings)
servem de base para a formação dos diminutivos em -y – daí a inclusão dessas construções
entre os processos de formação de palavras não-concatenativos.
Para finalizar a discussão do fenômeno geral de encurtamento, Plag (op. cit.)
apresenta as construções que denomina clippings, embora reconheça que essa expressão
equivale a “truncamentos” (truncations, nos termos do autor) – estas últimas
frequentemente empregadas para designar as formações encurtadas cujas bases são nomes
comuns. Quanto à caracterização geral do clipping, o autor o considera um processo
formador de palavras que consiste na redução de uma base, com a qual o produto apresenta
alguma relação de sentido, acrescida da expressão de familiaridade com o referente. Como
171
exemplo da familiaridade citada, o autor afirma que, frequentemente, pessoas que
trabalham em laboratórios (laboratories, em inglês) usam a forma encurtada lab para fazer
referência ao local de trabalho.
Em relação à estrutura, Plag (op. cit.) considera que a formação dos clippings é
menos coerente do que aquelas de nomes truncados e diminutivos em -y. Contudo, o autor
aponta que, ainda assim, algumas tendências podem ser verificadas nos clippings, uma vez
que a maior parte dessas formações é monossilábica (ad < advertisementpropaganda) ou
dissilábica (condo < condominium; demo < demonstration) e, além disso, caracteriza-se
pela manutenção da parte inicial da base ou, menos frequentemente, ancoram-se à sílaba
que porta o acento primário (phone < telephone).
Como se pode observar, o processo que Plag (2003) denomina clipping é marcado
pela formação de estruturas monossilábicas ou dissilábicas, que, em sua maioria,
preservam a margem esquerda das respectivas bases. Assim, pode-se dizer que o autor,
embora não lide com os instrumentos disponibilizados pela Morfologia Prosódica,
identifica, nos outputs pesquisados, marcas formais bastante compatíveis com algumas
atribuídas às formas truncadas analisadas na presente tese com base no referido modelo
teórico: outputs que possuem, no máximo, três sílabas e mantêm a porção esquerda da
palavra-matriz.
A porção da base que será preservada no truncamento não é definida pelo autor, ou
seja, não há informações relacionadas ao fato de a forma truncada preservar as duas
primeiras sílabas ou o radical da base, por exemplo. Entretanto, a proposta de Plag (op.
cit.), ao levar em conta fatores de ordem prosódica tais como estrutura silábica e acento
primário (este último apenas em alguns casos), difere-se das descrições comumente
encontradas em manuais de morfologia (cf. capítulo 3). Portanto, o tratamento conferido
pelo autor ao processo que, nesta tese, é denominado truncamento consiste em uma
172
inovação no que tange à descrição do fenômeno, abrindo caminho para análises baseadas
na atuação de constituintes prosódicos, tal como esta que se apresenta.
Além dos processos de encurtamento, já detalhados nesta seção, Plag (op. cit.)
descreve também os cruzamentos vocabulares, de acordo com suas estruturas prosódicas e
sua relação com as respectivas bases. Segundo o autor, embora a formação dos
cruzamentos vocabulares seja frequentemente descrita como irregular, a incorporação de
expedientes prosódicos à análise permite a constatação de um alto grau de regularidade.
Por definição, trata-se de um processo em que duas palavras se combinam para formar uma
nova palavra, por meio do apagamento de material de uma ou ambas as bases. Dentre os
exemplos citados pelo autor, podem-se citar boat + hotel � boatel46 e breakfast + lunch �
brunch47.
Quanto à categoria sintática das palavras-matrizes, Plag (2003) afirma que estas
sempre pertencem à mesma classe – na maioria das vezes, nomes. Os produtos, por sua
vez, compartilham propriedades relacionadas aos referentes das duas bases, tal como se
observa nos exemplos acima citados boatel e brunch. Por essa razão, o autor ressalta que
as bases cuja combinação resulta em um cruzamento vocabular devem apresentar alguma
relação semântica, para que o referido compartilhamento de propriedades seja viável.
A formação dos cruzamentos vocabulares, de acordo com Plag (op. cit.), pode ser
generalizada da seguinte forma: a parte inicial do primeiro elemento combina-se com a
segunda parte do segundo elemento, consoante a fórmula A B + C D � A D, na qual os
elementos A, B, C e D representam partes das bases envolvidas no processo. A fórmula
citada, afirma Plag (op. cit.), pode ter os elementos B ou C nulos, ou seja, uma das bases
46 Barco (boat) que funciona também como hotel. 47 Refeição matutina reforçada, que serve de café da manhã (breakfast) e substitui o almoço (lunch).
173
pode integrar a formação de um cruzamento vocabular sem sofrer perda de segmentos,
assim como em guesstimate48 (guessadivinhação + estimateestimativa; A + CD � AD).
Plag (2003), com base em um conjunto de 16 dados, depreende que há dois fatores
prosódicos determinantes no processo de formação dos cruzamentos vocabulares: a
estrutura silábica e o tamanho. Em relação ao primeiro, o autor afirma que apenas
constituintes silábicos são apagados, de forma que, entre os monossílabos, por exemplo,
ocorre a combinação do onset do primeiro elemento com a rima do segundo (smokefumaça +
fognévoa � smogpoluição) ou do onset + núcleo do primeiro elemento com a rima do segundo
(boombarulho + hoistguincho � boostincentivo).
Para os cruzamentos polissilábicos, o autor afirma que a formação destes segue a
mesma tendência explicitada acima. Porém, pelo fato de o número de sílabas ser maior,
existe um conjunto de possibilidades para a combinação entre os diversos constituintes das
duas bases.
Quanto ao tamanho das palavras-matrizes e dos cruzamentos vocabulares, Plag (op.
cit.) destaca que, em grande parte dos outputs, as duas bases combinadas apresentam o
mesmo tamanho, medido em número de sílabas – casos em que os cruzamentos apresentam
o mesmo número de sílabas de suas respectivas bases. Nas formações em que as bases
envolvidas não coincidem em número de sílabas, o autor afirma que há um padrão geral
segundo o qual o cruzamento vocabular possui o tamanho da segunda base.
De acordo com as questões discutidas e aqui retomadas, Plag (2003) conclui que
cruzamentos vocabulares têm sua formação ajustada a fatores não apenas prosódicos, mas
também semânticos e sintáticos, que são capazes de expressar grande regularidade no
processo – razão suficiente para, segundo o autor, os cruzamentos não serem excluídos do
âmbito da formação de palavras em inglês. Como se pode observar, mais uma vez, Plag
48 Estimativa aleatória, não sustentada por evidências palpáveis.
174
(op. cit.) toma por regular um processo frequentemente considerado aleatório, baseando-se,
para tanto, em um padrão geral definido por fatores sobretudo prosódicos.
Para finalizar a discussão acerca dos processos não-concatenativos de formação de
palavras, Plag (2003) aborda os casos de abreviações (abbreviations) e acrônimos
(acronyms), embora, de acordo com o autor, a prosódia não desempenhe um papel
determinante nos referidos processos, pois, diferente do que ocorre nos fenômenos
anteriormente descritos, a ortografia apresenta, desta feita, um importante papel. Por serem
os casos de abreviações (USA; DC49) e acrônimos (NATO50) distantes do truncamento em
termos de formação e estrutura, optamos por não detalhar a descrição dos mesmos nesta
seção. Apenas para diferenciar os processos, deve-se acrescentar que Plag (op. cit.)
considera abreviações as sequências que não podem ser pronunciadas como palavras da
língua, por serem constituídas de uma ordenação de fonemas não aceitável. Nos
acrônimos, a situação é inversa, pois as sequências podem ser pronunciadas de acordo com
os padrões fonológicos da língua em questão.
Em suma, com base nos fatores prosódicos retomados nesta seção, Plag (2003)
descreve nomes truncados (hipocorísticos), diminutivos em -y, clippings (truncamentos),
cruzamentos vocabulares, abreviações e acrônimos em inglês, considerando-os processos
não-concatenativos de formação de palavras. Embora, segundo o autor, a prosódia não
desempenhe função determinante na abreviação e na acronímia, ambas são incluídas entre
os processos de formação de palavras por, inegavelmente, darem origem a novas unidades
lexicais.
Assim, pode-se dizer que o autor não considera marginais os processos
supracitados; ao contrário, busca evidências de que aspectos prosódicos são fundamentais
na análise dos mesmos, que não se caracterizam pela afixação. Mais uma vez, portanto, 49 United States of America; District of Columbia. 50 North Atlantic Treaty Organization.
175
nota-se que o truncamento, bem como os demais processos não-concatenativos de
formação de palavras, vem, desde Plag (2003), ganhando status de processo regular na
morfologia contemporânea – o que justifica o tratamento prosódico destinado ao fenômeno
nesta tese.
Na próxima seção, o papel de elementos submorfêmicos denominados splinters
será considerado essencial na formação de truncamentos, cruzamentos vocabulares e
siglas, de acordo com a pesquisa de Fandrych (2008). Desta feita, a prosódia não se mostra
determinante na formação do truncamento, objeto de estudo desta tese, uma vez que a
autora busca, na própria morfologia, evidências de que se trata de um processo regular e
previsível. A seguir, vejamos, resumidamente, a proposta da autora.
6.2. Proposta com base em splinters
Fandrych (2008) propõe que processos como o truncamento, o cruzamento
vocabular e a siglagem sejam analisados com base em elementos submorfêmicos, uma vez
que se trata de fenômenos cuja formação não pode ser descrita com base na adição ou
supressão de morfemas. A ideia central da pesquisa é, segundo a autora, analisar “o papel
de elementos abaixo do nível do morfema na produção desses processos de formação de
palavras não-morfêmicos que vêm se tornando particularmente produtivos no inglês desde
a segunda metade do século XX” (FANDRYCH, 2008: 105). Para tanto, a referida autora
vale-se das noções de iniciais (no caso da siglagem), splinters (no caso do cruzamento
vocabular) e free splinters51 (no caso do truncamento).
De acordo com Bauer (2005), splinters são, em linhas gerais, elementos não-
morfêmicos resultantes de operações morfológicas não-concatenativas de encurtamento,
51 Nesta tese denominados splinters livres.
176
como o truncamento e o cruzamento vocabular, que são utilizados com alguma recorrência
na formação de novas unidades lexicais. Como exemplo em português, pode-se citar o caso
da forma -trocínio, um splinter que tem origem na base ‘patrocínio’, cuja sequência inicial
(‘pa’), por semelhança fonética ao vocábulo ‘pai’, destacou-se da forma de base e tornou a
sequência não-morfêmica -trocínio passível de ocorrer em novas formas linguísticas, tais
como ‘paitrocínio’, ‘mãetrocínio’ e ‘avôtrocínio’, por exemplo (GONÇALVES, 2011b).
Observe-se que o splinter em questão é um elemento empregado em posição específica (no
caso, à direita) e combina-se com uma palavra.
Segundo Gonçalves (2011b), o splinter é uma partícula que se fixa em uma
“determinada posição na estrutura das palavras, adquirindo, com isso, estatuto de
morfema” (op. cit.: 3). Quanto à posição ocupada pelo splinter na estrutura da palavra, o
autor propõe que pode ser inicial, como em ‘info-peças’, ou final, tal como em
‘chocotone’. Além disso, outro aspecto a ser considerado é o fato de o splinter se combinar
com uma palavra ou com partes de uma palavra, como se pode verificar, respectivamente,
nos exemplos acima citados – ‘info-peças’ e ‘chocotone’.
Em português, deve-se ressaltar, a atuação de splinters na formação de novas
unidades lexicais é analisada por Gonçalves & Andrade (2012), que defendem a alocação
desses elementos em dois grupos: os splinters iniciais, que copiam a porção esquerda da
base, assim como caipi- (‘caipirinha’); e splinters finais, os quais, diferente dos primeiros,
copiam a parte final da palavra-matriz, como -trocínio, anteriormente citado, e -lândia
(‘Disneylândia’). A partir dos splinters caipi- e -lândia, forma-se um conjunto de novas
palavras, tal como se observa nos dados a seguir: ‘caipivodka’, ‘caipisaquê’ (bebidas tipo
caipirinha, porém feitas com vodka e saquê, respectivamente), ‘caipifruta’ (caipirinha feita
com outras frutas, em vez de limão), ‘frangolândia’, ‘chocolândia’ (locais de
177
comercialização de frango e chocolate, respectivamente) e ‘empregolândia’ (twiter em que
se oferecem empregos).
Como última observação, vale destacar que, conforme apontam Gonçalves &
Andrade (op. cit.), os splinters caipi- e -lândia contribuem para as novas formações com os
significados de ‘bebida alcoólica tipicamente brasileira’ e ‘localidade’, respectivamente.
Além disso, os referidos elementos podem ser combinados com palavras (‘caipifruta’) ou
com apenas partes de palavras (‘chocolândia’); porém sempre na mesma posição.
A distinção feita por Fandrych (2008) entre splinter e splinter livre consiste na
integração (ou não) a novas palavras. Ambos são elementos não-morfêmicos, tal como
definido por Bauer (2005), mas, de acordo com a autora, o splinter forma cruzamentos
vocabulares, assim como -trocínio, que se combina com uma palavra, ao passo que o
splinter livre torna-se uma unidade lexical autônoma, formando novas palavras sem a
necessidade de combinação com outras bases. Como exemplo deste último, pode-se citar a
forma truncada ‘carná’ (< ‘carnaval’) – porção não-morfêmica que atua como forma livre.
Fandrych (2008) define processos de formação de palavras não-morfêmicos como
aqueles em que não há uma estrutura do tipo modificador/cabeça, tal como na composição
e na afixação – processos que podem ser analisados em termos da relação
modificador/cabeça, na qual A + B > AB, e AB = (um tipo de) B. Nesses casos, vale
ressaltar, a autora defende que os falantes são capazes de identificar os significados das
novas construções a partir do significado dos seus constituintes – o que nem sempre se
verifica entre os processos não-morfêmicos.
Quanto à categorização dos processos não-morfêmicos (ou não-concatenativos),
Fandrych (op. cit.) destaca que há um grande debate em relação ao fato de considerarem-se
ou não tais processos como formadores de palavras. Segundo a autora, Štekauer (1998)
exclui as construções não-morfêmicas do âmbito da formação de palavras, assim como
178
Haspelmath (2002), que define a morfologia como “o estudo da combinação de
morfemas [grifo nosso] para formar palavras” (op. cit.: 3). Steinmetz & Kipfer (2006), por
sua vez, discutem a siglagem, o cruzamento vocabular e o truncamento antes da
composição e da derivação, porém os autores descrevem tais processos de modo que o
foco seja estabelecido apenas em aspectos como economia, humor e crescente
popularidade no século XX.
Fandrych (2008) conclui, portanto, que a polêmica em torno da categorização de
processos de formação de palavras não-morfêmicos está ligada ao fato de, não raro,
morfemas serem definidos como as menores unidades linguísticas dotadas de significado,
tal como os define, por exemplo, Haspelmath (2002): “os menores constituintes
significativos das palavras que podem ser identificados” (op. cit.: 3). Observe-se que a
definição de morfema vinculada à existência de um par forma/significado atende às
expectativas de uma morfologia centrada na “combinação de morfemas”, tal como definida
anteriormente, mas não permite que processos não-morfêmicos, em geral, sejam
considerados formadores de palavras.
No caso do truncamento, por exemplo, grande parte dos outputs consiste em
sequências menores que uma unidade morfológica (no caso, o radical) e, por isso, não
deveriam ser dotadas de significado, mas o são, porque assumem o significado da base a
que pertencem. A forma truncada ‘pará’, por exemplo, não corresponde ao radical da
palavra-matriz ‘paraíba’; entretanto, incorpora o significado lexical desta última, inclusive
a pejoratividade: “pessoa oriunda das regiões norte/nordeste”. A parte suprimida (-íba)
também não corresponde a um elemento morfológico que apresente um significado. Como
se pode notar, o truncamento envolve porções a que o tradicional conceito de morfema
nem sempre se aplica – fato que pode se tornar um obstáculo ao estudo do processo, uma
vez que este não se baseia, necessariamente, no mapeamento de morfemas.
179
Há, contudo, autores que, segundo Fandrych (2008), discordam do conceito de
morfema enquanto “unidade mínima significativa”. Aronoff (1981), por exemplo, define-o
como uma “sequência fonética que pode ser vinculada a uma entidade linguística fora
dessa sequência. O que importa não é o significado, mas a sua arbitrariedade” (op. cit.: 15).
Sob a perspectiva do autor, nem todos os morfemas portam significado, uma vez que há
palavras que podem ser consideradas “minimamente significativas” (cf. op. cit.: 15) e não
podem ser, por isso, desmembradas em constituintes imediatos que apresentem significado.
O autor conclui, portanto, que não abandona o conceito de morfema, porém entende que,
nem sempre, se trata de um signo, no sentido de apresentar forma fonética associada
obrigatoriamente a um significado.
Quanto à proposta de Fandrych (2008), propriamente, o intuito não é discutir a
definição de morfema, tomado pela autora no sentido mais comum de mínima unidade
linguística dotada de significado, mas analisar a contribuição de elementos menores que o
morfema para os processos de formação de palavras não-morfêmicos. O objetivo da autora
é, portanto, discutir o papel de iniciais, splinters e splinters livres nos processos não-
morfêmicos, que podem ser definidos da forma como se segue:
“[...] qualquer processo de formação de palavras que não é baseado em morfemas [...], isto é, que se utiliza de pelo menos um elemento que não é um morfema; esse elemento pode ser um splinter, um fonestema, parte de uma sílaba, uma letra inicial, um número ou uma letra usados como um símbolo” (FANDRYCH, 2004: 18; ênfase no original)52.
No inglês, de acordo com a autora, os principais processos formadores de palavras
não-morfêmicos são a siglagem, o cruzamento vocabular, o truncamento e a onomatopeia.
52 “[...] any word-formation process that is not morpheme-based ..., that is, which uses at least one element
which is not a morpheme; this element can be a splinter, a phonæstheme, part of a syllable, an initial letter, a number or a letter used as a symbol” (FANDRYCH, 2004: 18).
180
Porém, afirma a autora, este último processo não é discutido na pesquisa, uma vez que,
embora seja não-morfêmico, inclui casos de criações ex nihilo, assim como miaow, ou de
formações que se utilizam de palavras inteiras, como se observa em wishy-washy.
Em português, os processos de formação de palavras não-morfêmicos, ou não-
concatenativos, são, conforme citado nos capítulos anteriores, o truncamento, o
cruzamento vocabular, a siglagem, a hipocorização e a reduplicação. A proposta de
Fandrych (2008) é fornecer meios para a análise dos três primeiros; porém, como o objeto
de estudo desta tese é o truncamento, esta seção retomará, a partir de então, as ideias
lançadas pela autora em relação à formação de truncamentos, abordando um aspecto que
pode ser considerado inovador na descrição das referidas construções: a atuação de
splinters livres.
Para definir o truncamento (em inglês, clipping), Fandrych (op. cit.) retoma
propostas de dois autores. O primeiro deles é Marchand (1969: 441), segundo o qual o
truncamento consiste na “redução de uma palavra a uma de suas partes. [...] A parte
suprimida não é um morfema no sistema linguístico (nem o resultado do truncamento, a
propósito), mas uma parte arbitrária da palavra”. Bauer (1988: 33), por sua vez, além de
conceituar o fenômeno como não-morfêmico, contesta o seu status nos estudos
morfológicos: “uma vez que as partes deletadas no truncamento não são claramente
morfemas em qualquer sentido, não é o caso de, necessariamente, considerá-lo parte da
morfologia, embora seja um meio de formar novos lexemas”.
Fandrych (2008) discorda da definição anteriormente citada, em que Bauer (1988)
questiona a inclusão do truncamento entre os processos morfológicos, pois, de acordo com
a autora, trata-se, seguramente, de um processo de formação de palavras. Como
justificativa para o tratamento do fenômeno enquanto processo de formar palavras,
Fandrych (op. cit.) aponta dois aspectos: a dissociação semântica, observada, por exemplo,
181
no uso de exam (“teste de conhecimento”53), comparado ao da palavra-matriz examination
(“exame médico”54); e a mudança de registro ou estilo verificada nas formas truncadas em
relação às suas bases, tal como em prof < professor, visto que o truncamento em questão é
utilizado em situações informais, enquanto a palavra-matriz tem seu uso requerido em
contextos acadêmicos55. Além dos fatores mencionados, a autora afirma que truncamentos
podem se tornar constituintes de novas e múltiplas formações, tais como blogging – verbo
cuja base é uma forma truncada: weblog > blog.
Quanto ao truncamento em português, não se verificam mudanças de significado da
forma truncada em relação à palavra-matriz, pois ambas remetem a um mesmo referente.
Logo, pode-se dizer que o fenômeno não envolve dissociação semântica, assim como no
inglês. Contudo, a mudança de registro ou estilo observada por Fandrych (op. cit.) é
também um fator atuante em português, visto que formas truncadas tendem a ser utilizadas
em contextos menos formais e, além disso, a maioria é empregada por jovens – o que
implica o uso da palavra-matriz em situações mais formais.
Em relação ao fato de truncamentos serem passíveis de originar novas formações,
pode-se dizer que, em português, embora não em muitos casos, verificam-se novas
construções a partir de formas truncadas, tal como ‘refrigerante’ > ‘refrí’splinter livre + -inho >
‘refrizinho’. Observe-se que esta última pode estar relacionada a um refrigerante ruim
(pejorativa) ou bebido na companhia de amigos, por exemplo, sinalizando para o prazer do
enunciado em relação à entidade referida.
Quanto ao aspecto formal, Fandrych (op. cit.) afirma que, em geral, palavras que
servem de base para a operação de truncamento são relativamente longas, apresentando ao
menos duas ou três sílabas. Ainda segundo a autora, o truncamento a partir do início da
53 “Test of knowledge”. 54 “Doctor’s examination”. 55 Deve-se lembrar que professor é o termo que, em inglês, se refere a professores universitários, em geral Doutores, enquanto teacher é a forma utilizada para designar professores secundários.
182
base56 é o tipo mais comum (photog < photographer, por exemplo), seguido do
truncamento a partir do final da mesma57 (graph < paragraph) e do truncamento no início
e no final da base58, simultaneamente (flu < influenza). Sob a perspectiva da autora,
truncamentos efetuados no meio da palavra-matriz59 (Jo’burg ou Jo’bg < Johannesburg)
são raros, e formas truncadas escritas são restritas ao domínio da modalidade escrita, pois,
quando empregadas na oralidade, são substituídas pela forma de base, assim como no caso
de abbr, que é pronunciada sempre como abbreviation.
O tamanho das bases para o fenômeno de truncamento apontado por Fandrych (op.
cit.) coincide com as características do corpus reunido para esta tese, uma vez que as
palavras-matrizes, em geral, partem do número de três sílabas, encontrando-se também
duas bases dissilábicas (‘chinês’ e ‘playboy’) entre os dados, tal como explicitado no
capítulo 4. A porção da palavra-matriz mantida na forma truncada, entretanto, diverge
bastante, comparando-se inglês e português, pois, no primeiro, Fandrych (op. cit.) afirma
que o processo aproveita-se das partes inicial, final ou medial da base, ao passo que, em
português, os dados presentes no corpus ora analisado revelam que os truncamentos
tendem a preservar a margem esquerda da palavra-matriz.
Existe, ainda, uma categoria de truncamento proposta por Fandrych (2008)
denominada truncamento composto60, definido pela autora como o encurtamento de longas
combinações, em que um constituinte da forma de base permanece inalterado, como se
observa em lad mag < lad magazine (“revista para rapazes”). Casos como esse, no entanto,
não foram contemplados na presente tese, que tem como objetivo analisar formas
truncadas cuja base é uma palavra. Dito de outra forma, dados como lad mag não se
56 Fore-clipping. 57 Back-clipping. 58 Back- and fore-clipping. 59 Mid-clipping. 60 Clipped compounds.
183
encontram no corpus da pesquisa, pois entendemos que os mesmos têm como origem um
sintagma nominal, e não uma palavra-matriz.
Além do ponto em que o encurtamento se processa, fator anteriormente explicitado,
Fandrych (op. cit.) afirma que a manutenção do plural (specifications > specs) e casos de
deslocamento da sílaba tônica (Aus'tralian > 'Aussie) são também marcas formais do
processo de truncamento. Em português, deve-se lembrar, truncamentos não respondem
pela informação de gênero (copiada da base) e, tal como no inglês, são também passíveis
de flexão em número – cf. capítulo 4. Quanto ao deslocamento da sílaba tônica, pode-se
dizer que, embora não seja marca formal do processo em português, é possível constatar
alguns casos, assim como pri.'mei.ra > 'pri.ma, por exemplo61.
Em suma, pode-se dizer que, de acordo com Fandrych (op. cit.), o truncamento
consiste em um processo de formação de palavras que apresenta elevado grau de
arbitrariedade, uma vez que não se baseia na supressão de morfemas, assim como não leva
em conta as fronteiras silábicas e a acentuação da base. Destarte, a autora argumenta que
os produtos do fenômeno são splinters livres, ou seja, “elementos independentes que
restam após o processo de encurtamento de um radical” (op. cit. : 116).
Por ser um processo de encurtamento não acompanhado de expansão vocabular,
segundo Fandrych (op. cit.: 116-117), o truncamento torna os splinters livres, uma vez que
estes últimos são “[...] partes irregulares das palavras de que se originaram, [que] passam
por um processo de desassociação semântica e estilística [...] que pode resultar na sua
completa emancipação [...]”62. Assim, a autora considera que formas truncadas podem
61 O deslocamento da sílaba tônica não se mostrou um fator relevante na análise do corpus pesquisado porque, na maioria dos dados, a sílaba que porta o acento primário da base é eliminada ao longo do apagamento que resulta na forma truncada. Assim, a tonicidade em uma das sílabas remanescentes torna-se obrigatória, e não uma marca formal do processo. 62 “as irregular parts of words from which they originated, they undergo a process of semantic and stylistic disassociation (often accompanied by phonetic and/or graphemic changes) which can result in their complete emancipation [...]” (FANDRYCH, 2008: 116-117).
184
romper o vínculo com os lexemas que lhes serviram de base, tal como se observa no
exemplo do inglês pub (< public house), que passou a designar, em geral, estabelecimentos
de entretenimento em que se podem consumir bebidas alcoólicas, enquanto a palavra-
matriz apresentava o significado de “casa de vinhos” – local de degustação e apreciação da
referida bebida. Como se pode verificar, é provável que mesmo falantes do inglês tenham
dificuldade em identificar a base da forma encurtada pub.
Em português, conforme já mencionado nesta seção, o truncamento não envolve
desassociações semânticas; contudo, pode-se dizer que ocorre uma desassociação estilística
em relação à base, uma vez que a forma truncada é, em geral, utilizada por falantes mais
jovens em contextos menos formais e de maior grau de intimidade entre os interactantes.
Quanto ao fato de a formação do truncamento gerar splinters livres, deve-se
ressaltar que a proposta de Fandrych (2008) aplica-se, com êxito, ao inglês. Porém, em
português, a observação do corpus reunido para esta pesquisa demonstra que há formação
de splinters livres apenas em um dos padrões de truncamento, pelas razões que se seguem.
De acordo com a autora, splinter livre é um elemento não-morfêmico que resulta do
encurtamento de uma base e atua como forma livre, podendo sofrer, conforme citado
acima, perda do vínculo semântico com a palavra-matriz. Sendo assim, os truncamentos
alocados no padrão ‘odônto’ não poderiam ser analisados sob a perspectiva de Fandrych
(op. cit.), uma vez que se trata de formas truncadas morfêmicas, que consistem em um
morfema de fato.
O padrão ‘flágra’, por sua vez, também não pode ser descrito com base na noção de
splinter livre, pois Fandrych (op. cit.) considera o truncamento um “processo de
encurtamento não acompanhado de expansão vocabular [grifo nosso]” (cf.
FANDRYCH, op. cit.: 116). Assim, os dados do padrão ‘flágra’, que sofrem expansão
devido à afixação da vogal (-a) após o encurtamento, não podem ser formados por splinters
185
livres, visto que estes são elementos não-morfêmicos resultantes de um encurtamento, sem
que haja posterior anexação de qualquer material morfológico ou fonológico. Esse padrão,
na verdade, assemelha-se aos diminutivos ingleses terminados em -y, descritos na seção
6.1, por envolver perda segmental e acréscimo de um formativo.
Logo, apenas o padrão ‘refrí’ tende a ser satisfatoriamente analisado de acordo com
a proposta de Fandrych (2008), uma vez que, desta feita, as formas truncadas consistem em
porções não-morfêmicas, isto é, que não coincidem com o radical da palavra-matriz. Além
disso, não ocorre, no referido padrão, a afixação da vogal (-a), que marca o padrão ‘flágra’.
Dessa forma, tem-se, entre os dados do padrão ‘refrí’, a formação de truncamentos com
base em splinters livres, uma vez que os outputs são, de fato, partes não-morfêmicas que
atuam como formas livres e apresentam desassociação pragmática em relação às bases.
Quanto ao fato de splinters serem empregados com alguma recorrência na formação de
novas palavras, retoma-se, aqui, o exemplo ‘refrizinho’, já mencionado nesta seção, uma
vez que não há muitos casos observados.
Face ao exposto, a análise do fenômeno de truncamento com base em splinters
livres, proposta por Fandrych (2008), aplica-se, em larga escala, ao inglês. No português,
por sua vez, as ideias da autora contemplam apenas os truncamentos do tipo ‘refrí’ – o que
inviabiliza a adoção da proposta para a descrição de todo o corpus reunido na presente
tese. No entanto, deve-se ressaltar que o fato de a autora propor a incorporação de splinters
livres à descrição do truncamento consiste em uma grande inovação no que tange ao
tratamento do fenômeno entre os estudos de formação de palavras, sobretudo porque não
incorpora fatores prosódicos à análise, mas visa a encontrar meios para descrever o
fenômeno com base em expedientes morfológicos – daí o valor da proposta.
Como mérito da proposta de Fandrych (2008), pode-se citar também a emancipação
que a autora atribui ao splinter livre, no sentido de que este, uma vez empregado como
186
forma livre, é marcado pela desassociação semântica e estilística em relação à base. No
português brasileiro, a desassociação estilística, sem dúvida alguma, é observada no
processo de truncamento; porém, não ocorre a desassociação semântica, visto que a
entidade referente é a mesma para base e forma truncada. Entretanto, voltamos a afirmar, a
proposta de Fandrych (2008) representa um grande avanço no estudo do truncamento, uma
vez que se baseia no fato de o encurtamento criar uma forma livre (splinter livre, nos
termos da autora), que pode ser empregada isoladamente ou, inclusive, servir de base para
novas formações.
Gonçalves (2011b) defende, assim como Fandrych (op. cit.), que a morfologia deve
incluir os processos não-concatenativos de formação de palavras, entre os quais se aloca o
truncamento, objeto de estudo desta tese, e, utilizando-de da expressão forma combinatória
(KASTOVSKY, 2009), termo utilizado para definir elementos morfológicos de natureza
variada, conceitua “porções fonológicas oriundas de truncamento (clipping), aqui
entendido como processo de redução (morfologia subtrativa) em que uma parte não-
morfêmica passa a valer pelo todo” (GONÇALVES, 2011b: 6-7) e integra novas
formações. Assim, o autor aponta duas situações possíveis: uma, em que duas formas
combinatórias são concatenadas (‘macarronese’; ‘pagonejo’); e outra, na qual uma forma
combinatória se vincula a uma palavra (‘brinquedoteca’; ‘caipifruta’).
Como se pode observar, além dos casos analisados nesta tese, em que o
truncamento de bases leva a uma forma livre (‘bijú’; ‘gástro’), há, de acordo com
Gonçalves (2011b), situações em que ocorre a formação de partículas não-morfêmicas que
representam o todo e dão origem a novas palavras, tal como exposto a seguir: ‘caipirinha’
> ‘caipi’ >> ‘caipisaquê’ (caipirinha feita à base de saquê). Dessa forma, torna-se evidente
a razão por que se defende, aqui, a não-exclusão do truncamento do âmbito da morfologia,
187
por se tratar de um processo que tem se mostrado altamente produtivo na formação de
novas palavras do português brasileiro.
Retomando as propostas de Plag (2003) e Fandrych (2008), pode-se dizer que
ambas defendem o estudo dos processos não-concatenativos, mostrando que o truncamento
é um fenômeno passível de sistematização, levando-se em conta fatores prosódicos e
morfológicos, respectivamente. No grupo das propostas que se baseiam na interface
fonologia-morfologia (GONÇALVES, 2004; 2011a e BELCHOR, 2009 – por exemplo),
pode-se incluir a presente tese, visto que os procedimentos da Morfologia Prosódica
Circunscritiva aqui empregados são capazes de proporcionar uma descrição altamente
eficiente do fenômeno. Logo, o objetivo da tese é fornecer uma nova possibilidade de
análise para o truncamento, em que os três padrões estruturais sejam analisados à luz de
um mesmo modelo teórico, de forma a contribuir para a sistematização do fenômeno e
permitir que o mesmo deixe de ser tratado como um processo marginal de formação de
palavras.
A seguir, no capítulo 7, os aspectos mais relevantes abordados na tese serão
retomados, com o objetivo de sumarizar as principais conclusões tiradas a partir da análise
do corpus.
188
Capítulo 7 – Palavras finais
Ao longo desta tese, buscamos descrever o processo de truncamento no português
brasileiro, por meio dos instrumentos de análise fornecidos pela MP Circunscritiva. Para
tanto, os dados analisados foram distribuídos nos três grupos estruturais já identificados
por Gonçalves & Vazquez (2005), aos quais foram acrescentadas novas formas em Belchor
(2009) e no período inicial do curso que resultou na presente tese.
Um dos referidos padrões, denominado ‘refrí’, é marcado por especificações
estritamente prosódicas e caracteriza-se pela preservação das duas sílabas iniciais da base
(‘bijuteria’ > ‘bijú’), desvinculando-se, portanto, do compromisso com informações de
natureza morfológica. Dessa forma, pode-se apontar como marca do grupo a formação de
um pé iâmbico, como prevê o molde, composto por duas sílabas da base.
Diferentes especificações apresenta o padrão cujos outputs mantêm o morfema
situado na borda esquerda da palavra-matriz (‘hemáto’ > ‘hematologista’). Nesse caso,
embora as formas truncadas contenham um pé troqueu moraico em suas estruturas, a
relevância da informação morfológica se sobrepõe à da prosódica, uma vez que o
truncamento sempre coincide com um morfema presente na base, cuja manutenção é a
principal marca do padrão.
O terceiro dos referidos padrões, aqui denominado ‘flágra’, pode ser considerado
misto, uma vez que requer o acesso a informações prosódicas e morfológicas na formação
dos truncamentos. Nesse grupo, incluem-se dados formados pelo radical da base, acrescido
da vogal (-a), assim como em ‘aspirante’ > ‘aspíra’, bem como formas em que o radical da
base não se mostra integralmente na forma truncada (‘vagabunda’ > ‘vagába’), em
decorrência dos limites prosódicos do fenômeno (máximo de três sílabas). É importante
destacar que, no presente grupo, ocorre a afixação da vogal (-a) – o que não se observa nos
189
padrões acima citados. Além disso, quanto à natureza prosódica dos outputs, deve-se
ressaltar que são todos caracterizados pela presença um pé troqueu moraico em suas
estruturas prosódicas.
A proposta central consiste em descrever, com base na MP Circunscritiva, todo o
corpus – o que se apresenta como uma inovação, visto que, até o presente momento, o
padrão aqui denominado ‘flágra’ havia sido descrito por Gonçalves & Vazquez (2005) e
Gonçalves (2011a) com os pressupostos da Teoria da Otimalidade; e, por Gonçalves
(2004), com base na MP Circunscritiva. Os padrões ‘refrí’ e ‘odônto’ foram, em Belchor
(2009), descritos por rankings de restrições fundamentados na Teoria da Otimalidade.
Assim, a análise dos três padrões de truncamento, em conjunto, por um único modelo
teórico que opera com fatores morfoprosódicos constitui uma novidade no português
brasileiro.
Como se verificou nas análises dos três padrões contemplados, há parâmetros de
circunscrição e molde que garantem, em cada grupo de dados, uma grande regularidade no
formato morfoprosódico dos outputs. No grupo ‘refrí’, a circunscrição positiva, processada
da esquerda para a direita, mapeia as duas sílabas iniciais do input – sequência da base que,
no nível do molde, ajusta-se ao formato de um pé iâmbico, dando origem a formas
truncadas oxítonas e dissilábicas (‘deprê’; ‘visú’). Quanto à efetividade da descrição, deve-
se destacar que os parâmetros estabelecidos aplicam-se a 100% dos dados alocados no
padrão.
O padrão ‘odônto’, por sua vez, apresenta uma circunscrição diferente daquela vista
no padrão ‘refrí’, em termos de instrução – daí o fato de ser este um grupo considerado
morfêmico, em que o processo de formação dos outputs privilegia a informação
morfológica. A direção do mapeamento é a mesma (da esquerda para a direita), bem como
o fato de ser positiva (aproveitando-se o material circunscrito no output); porém, a
190
instrução é diferente: circunscrever, integralmente, o morfema que compõe a margem
esquerda da base. No molde, o morfema circunscrito ajusta-se ao formato de um pé
troqueu moraico, previsto para os dados do padrão, e, como outputs, têm-se formas
truncadas compostas por um único morfema do input e que apresentam um pé troqueu
moraico na sua borda direita, seguindo a tendência na formação de pés verificada no
português brasileiro.
No padrão ‘odônto’, conforme ressaltado no capítulo dedicado à análise dos dados,
há apenas duas formas truncadas que não podem ser descritas com base nos parâmetros da
MP Circunscritiva utilizados na tese: ‘otorríno’ e ‘hétero’ – o primeiro, por apresentar, na
sua estrutura, mais de um morfema; e o segundo, por ser proparoxítono. Contudo, a
descrição ora empreendida aplica-se com êxito a 94,6% dos truncamentos pertencentes ao
padrão, comprovando a alta eficiência dos parâmetros adotados para a descrição do grupo.
Quanto ao padrão ‘flágra’, trata-se de um conjunto de dados misto por ser
constituído de formas que mantêm (ou não) o radical da base no output, a depender de
condições prosódicas que atuam no nível do molde e podem ser responsáveis pela
eliminação de segmentos circunscritos que, após a afixação do marcador (-a),
contribuiriam para a obtenção de um output mal-formado.
Entre os dados do grupo ‘flágra’, portanto, além de haver a afixação do marcador
de palavra (-a), ausente nos outros padrões analisados, verifica-se a atuação de três
condições sobre o material circunscrito, que, juntas, garantem a formação de outputs (1)
menores que as respectivas bases e (2) maximamente trissilábicos, além de assegurar que o
(3) último segmento do referido material seja consonantal. Ainda no molde, está prevista a
formação de um pé troqueu moraico na estrutura prosódica do material circunscrito. Esta
última característica, deve-se lembrar, está relacionada ao fato de o molde, no referido
padrão, apresentar o formato de um troqueu moraico, que, formado da direita para a
191
esquerda, dá origem a formas truncadas paroxítonas (com ou sem uma sílaba desgarrada à
esquerda).
A descrição realizada para o padrão ‘flágra’ aplica-se, em princípio, a 85,72% dos
dados, uma vez que devem ser excluídas as sete formas listadas no capítulo 5 (seção 5.4),
que possuem o mesmo tamanho da base e, por essa razão, podem ser consideradas mal-
formadas por infringirem a condição *T ≥ B (é proibido truncamento maior ou igual à
base), segundo a qual as formas truncadas devem ser menores que as bases, em virtude de
se tratar de um fenômeno de encurtamento. Contudo, a proposta flexibilização da condição
citada, que passaria a contabilizar segmentos, em vez de sílabas, proporcionaria a extensão
dos parâmetros de análise a 100% dos dados presentes no corpus, visto que os sete
truncamentos antes considerados iguais às respectivas bases apresentam equivalente
número de sílabas, mas, por outro lado, têm um segmento a menos em suas estruturas
silábicas, simplificadas em relação aos inputs.
A flexibilização de *T ≥ B, portanto, leva à descrição de todos os dados reunidos
no corpus sob as condições de formação do padrão ‘flágra’. Sendo assim, retomando-se os
resultados obtidos com as análises dos padrões ‘refrí’ e ‘odônto’, restam, em todo o
corpus, apenas dois dados (‘otorríno’ e ‘hétero’) pertencentes a este último padrão que não
têm sua formação descrita com base nos parâmetros de circunscrição e molde adotados
para a análise do grupo.
Mais uma vez, deve-se enfatizar que a MP Circunscritiva é capaz de proporcionar
uma descrição altamente eficiente do processo de truncamento no português brasileiro,
tomando-se como base o corpus reunido na presente tese. A descrição parte da
identificação do tipo de circunscrição (positiva ou negativa), bem como da sua direção (da
esquerda para a direita ou vice-versa), com o objetivo de explicitar as razões que levam
cada padrão de truncamento a apresentar uma porção diferente da base na forma truncada.
192
Assim, o rastreamento do input é o ponto-de-partida da análise via MP Circunscritiva,
visto que o material circunscrito positivamente será aproveitado na formação do
truncamento.
O estabelecimento do formato do molde também é de extrema relevância na
descrição dos dados, pois justifica a regularidade verificada na estrutura prosódica das
formas truncadas, que podem ser constituídas de um pé iâmbico (‘belê’; ‘motô’) ou
troqueu moraico (‘lípo’; ‘jápa’), além de poderem apresentar um troqueu moraico contido
em um output trissilábico, permanecendo uma sílaba desgarrada à esquerda (‘saláfra’;
‘elétro’). Logo, os moldes envolvidos na formação dos truncamentos analisados
determinam o ajuste do material circunscrito a um pé iâmbico ou troqueu moraico,
formados sempre a partir da margem direita do output, de acordo com a tendência
verificada no português brasileiro (cf. capítulo 4).
O nível do molde pode, ainda, apresentar condições que visem a promover arranjos
no material decorrente da circunscrição, com vistas a impedir a presença de alguns
segmentos nas formas de superfície. No caso do padrão ‘flágra’, como vimos no capítulo 5,
há três condições sobre o material circunscrito, que determinam (1) o término em segmento
consonantal, (2) a proibição de truncamentos com mais de três sílabas e (3) a proibição de
truncamentos maiores que as bases. As condições citadas fazem-se necessárias na análise
dos dados tipo ‘flágra’ porque o referido padrão é marcado pela afixação do marcador de
palavra (-a), que expande o material circunscrito e pode, assim, acarretar a formação de
truncamentos maiores que as bases ou que não respeitem o limite de três sílabas. Além
disso, deve-se lembrar que a condição mais relevante (C]MWd) determina que o segmento
final deve ser consonantal, de modo que o marcador (-a) seja afixado a uma consoante e,
com ela, forme uma sílaba final do tipo CV.
193
Como se observou ao longo da tese, o nível do molde é de extrema relevância nas
descrições centradas na MP Circunscritiva, pois os casos não-morfêmicos devem ser
analisados de modo que o formato do molde determine a perda de alguns segmentos cuja
presença tornaria o output mal-formado – daí a vantagem de um modelo teórico
transderivacional, em que um nível intermediário entre input e output (no caso, o molde) é
responsável por um formato morfoprosódico que permite a sistematização dos
truncamentos analisados na tese em três padrões estruturais.
Conforme exposto anteriormente, a descrição realizada na presente tese comprova a
alta eficiência da MP Circunscritiva em relação ao estudo do truncamento no português
brasileiro, uma vez que o percentual de dados cuja formação é passível de sistematização
com base no modelo atinge quase a totalidade do corpus analisado. Dessa forma, pode-se
dizer que esta tese consiste em uma pesquisa inovadora no que tange à descrição do
truncamento no português brasileiro, por se apoiar em um modelo teórico de orientação
morfoprosódica, aplicado aos três padrões de formação detectados.
Por fim, deve-se ressaltar que a presente pesquisa aloca-se entre as propostas
recentes para a descrição do truncamento, que têm, de modo geral, visado a refutar o rótulo
de “assistemático”, frequentemente atribuído ao processo. No caso, os instrumentos da MP
Circunscritiva permitiram uma análise altamente eficiente do corpus reunido para a tese,
comprovando que o fenômeno pode ser sistematizado, de acordo com fatores
morfoprosódicos ligados ao mapeamento do input, bem como ao formato do molde – daí a
contribuição da pesquisa, uma vez que poucos autores se dispuseram a aplicar um modelo
da mesma linha à análise de formas truncadas de estruturas diferenciadas e, aparentemente,
arbitrárias, se desconsiderada a existência de um molde prosódico comum a todo um grupo
de dados.
194
Anexo I – Corpus
Padrão ‘refrí’
1. Bijú (bijuteria)
2. Refrí (refrigerante)
3. Condí (condição)
4. Visú (visual)
5. Expô (exposição)
6. Belê (beleza)
7. Motô (motorista)
8. Deprê (depressão)
9. Bicí (bicicleta)
10. Prejú (prejuízo)
11. Mocré (mocreia)
12. Cafú (cafuné)
13. Guarú (Guarujá)
14. Falsí (falsificado)
15. Quití (quitinete)
16. Colé (colégio)
17. Carná (carnaval)
18. Proví (morro da Providência)
19. Belô (Belo Horizonte)
20. Razú (razoável)
21. Pará (paraíba)
22. Depí (depilação)
Padrão ‘odônto’
1. Gástro (gastroenterologista)
2. Éco (ecocardiograma)
3. Pólio (poliomielite)
195
4. Êx (ex-namorado)
5. Elétro (eletrocardiograma)
6. Fôno (fonoaudiologia)
7. Cárdio (cardiologista)
8. Odônto (odontologia)
9. Ginéco (ginecologista)
10. Oftálmo (oftalmologista)
11. Pós (pós-graduação)
12. Últra (ultrassonografia)
13. Pré (pré-vestibular)
14. Pedágo (pedagogia)
15. Bíblio (biblioteconomia)
16. Páleo (paleontologia)
17. Psíco (psicologia)
18. Bí (bissexual)
19. Trí (tricampeão)
20. Pênta (pentacampeão)
21. Êxtra (extraordinário)
22. Hétero (heterossexual)
23. Hômo (homossexual)
24. Mícro (microcomputador)
25. Néo (neoliberal)
26. Hemáto (hematologista)
27. Quílo (quilograma)
28. Tétra (tetracampeão)
29. Vídeo (videocassete)
30. Pró (pró-resgate)
31. Rétro (retroprojetor)
32. Retrô (retrospectiva)
33. Nêuro (neurologista)
34. Estéto (estetoscópio)
35. Otorríno (otorrinolaringologista)
36. Více (vice-presidente)
196
37. Lípo (lipoaspiração)
Padrão ‘flágra’
1. Jústa (justiça)
2. Jápa (japonês)
3. Nêura (neurose)
4. Chína (chinês)
5. Flágra (flagrante)
6. Príma (primeira)
7. Saláfra (salafrário)
8. Respônsa (responsabilidade)
9. Estrânja (estrangeiro)
10. Portúga (português)
11. Intíma (intimação)
12. Compúta (computador)
13. Madrúga (madrugada)
14. Deléga (delegado)
15. Comúna (comunista)
16. Batéra (bateria)
17. Capíta (capitão)
18. Aspíra (aspirante)
19. Sacrísta (sacristão)
20. Profíssa (profissional)
21. Sapáta (sapatão)
22. Condíça (condição)
23. Cérva (cerveja)
24. Gúrja (gorjeta)
25. Tráva (travesti)
26. Sâmpa (São Paulo)
27. Sárja (sargento)
28. Gíga (gigante)
197
29. Grânfa (grã-fino)
30. Chúrra (churrasco)
31. Playba (playboy)
32. Análfa (analfabeto)
33. Maráca (Maracanã)
34. Vagába (vagabunda)
35. Catéga (categoria)
36. Ibíra (Ibirapuera)
37. Bonsúça (Bonsucesso)
38. São Gônça (São Gonçalo)
39. Adrêna (adrenalina)
40. Vestíba (vestibular)
41. Sápa (sapatão)
42. Cóca (cocaína)
43. Pínda1 (pindaíba)
44. Cúnha (cunhada)
45. Cópa (Copacabana)
46. Cáfa (cafajeste)
47. Cônfa (confiança)
48. Pínda2 (Pindamonhangaba)
49. Freela (free-lancer)
50. Bárça (Barcelona)
198
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