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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
ROBERTA COMISSANHA DE CARVALHO
O DISCURSO PEDAGÓGICO DE PROFESSORES E A QUALIDADE DO ENSINO DAS
CIÊNCIAS NO NÍVEL MÉDIO
RIO DE JANEIRO
2011
Roberta Comissanha de Carvalho
O DISCURSO PEDAGÓGICO DE PROFESSORES E A QUALIDADE DO ENSINO DAS
CIÊNCIAS NO NÍVEL MÉDIO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ensino de Ciências e Saúde
Orientadora: Profª Drª Flavia Rezende Valle dos Santos
Rio de Janeiro
2011
Carvalho, Roberta Comissanha de. O discurso pedagógico de professores e a qualidade de ensino das ciências no nível médio / Roberta Comissanha de Carvalho.– Rio de Janeiro: Nutes, 2011. 158 f. ; 31 cm. Orientador: Flávia Rezende Valle dos Santos. Dissertação (mestrado) -- UFRJ, Nutes, Programa de Pós- graduação em Educação em Ciências e Saúde, 2011. Referências bibliográficas: f. 151-154.
1. Ciências – Estudo e ensino. 2. Discurso pedagógico. 3. Ciências (Nível médio). 4. Planejamento educacional. 5. Educação em Ciências e Saúde - Tese. I. Santos, Flávia Rezende Valle dos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Nutes, Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Saúde. III. Título.
Roberta Comissanha de Carvalho
O DISCURSO PEDAGÓGICO DE PROFESSORES E A QUALIDADE DO ENSINO DAS CIÊNCIAS NO NÍVEL MÉDIO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Educação em Ciências e Saúde.
Aprovado em __________________________________
______________________________________________________
Profa. Dra. Flavia Rezende Valle dos Santos – UFRJ
______________________________________________________
Profa. Dra. Marcia Serra Ferreira – UFRJ
______________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Augusto Coimbra de Rezende Filho – UFRJ
Ao meu marido, Leonardo, por ter acreditado em mim e
vibrado com as minhas conquistas
À minha mãe, Cristina, pelas muitas lições de vida, pela admiração,
respeito e apoio às minhas escolhas.
À minha irmã, Karina, com quem compartilho muitos dos meus sonhos,
pelas “verdades” que só ela sabe me dizer.
Ao meu pai, Roberto, que, com certeza, está muito feliz e
orgulhoso por esse momento.
Agradeço...
À professora Flavia Rezende, por quem tenho enorme admiração e em quem encontro uma
referência. Obrigada por ter me acolhido como orientanda, pela inesgotável competência,
atenção e carinho com que orientou a construção deste trabalho e pelo importante papel que
teve na minha formação, ao dividir comigo o esforço em acreditar que é possível contribuir
para uma escola pública de qualidade.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Saúde da UFRJ, por
terem contribuído para o meu amadurecimento acadêmico e para o enriquecimento de minhas
reflexões educacionais.
À professora Marcia Serra e ao professor Luiz Rezende, pelas sugestões apresentadas no
exame de qualificação.
Aos colegas do Grupo de Pesquisa Observatório da Educação, pelas contribuições que nossas
enriquecedoras discussões tiveram para o meu aprofundamento teórico e metodológico no
campo da educação.
Aos colegas Sandra Machado, Márcia Duarte, Luziane Schwartz, Gleice Ferraz e Aroaldo
Veneu, do Laboratório de Tecnologias Cognitivas, pelas proveitosas reuniões que tivemos ao
longo desses dois anos.
Às queridas Cristiana, Isadora e Josiane, minhas colegas de Mestrado, o convívio e estímulo
ao longo do curso foram essenciais para a minha trajetória na pesquisa em educação e ensino
de Ciências.
Ao meu amor, Leonardo, que me ensina sempre a seguir em frente e não desistir, por fazer
parte da minha vida e especialmente por todo o incentivo durante os dois anos do curso de
Mestrado.
À minha mãe Cristina e à minha irmã Karina, pelo amor com que me acompanham sempre e
pela paciência e compreensão que dedicaram a mim em especial ao longo desses dois anos.
Ao meu pai, Roberto, pelo cuidado e dedicação dispensados na infância e pela convivência
que estamos aprendendo a construir juntos.
A toda a minha família, pelo apoio que me deram nessa etapa em que estive tão ausente.
À minha querida amiga Lúcia, que, assim como eu, escolheu aventurar-se na profissão
docente, com quem sempre aprendo e me divirto muito.
À minha afilhada Ana Beatriz, a quem tanto amo, por trazer sorrisos e alegrias nos momentos
mais difíceis da construção deste trabalho.
À minha querida amiga Alessandra, por estar sempre presente ao longo de tantos anos.
Às duas escolas onde desenvolvi minha pesquisa e aos professores que aceitaram participar
das entrevistas, sem os quais este trabalho não poderia ter se concretizado. Obrigada pela
acolhida, pelo interesse e pela disponibilidade.
Aos meus queridos alunos, que sempre demonstraram interesse e admiração por minha
pesquisa.
A todos que me incentivaram em diversos momentos desse percurso e que se alegram com
esta conquista pessoal e profissional.
RESUMO
Este trabalho é parte de um projeto de pesquisa maior que investiga a qualidade do ensino de
Ciências no nível médio considerando-se a diversidade de contextos educacionais, na
perspectiva dos docentes, tomando como referência a avaliação oficial medida por
indicadores como o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Pretendeu-se avançar em
relação a resultados já obtidos no âmbito desse projeto, a partir da análise de entrevistas com
professores de Física, Química e Biologia de duas escolas da rede pública estadual do Rio de
Janeiro, uma com alto e outra com baixo índice no ENEM. O discurso dos professores sobre a
prática, o currículo, as políticas curriculares, as finalidades educacionais e a qualidade do
ensino de Ciências foi analisado com base no quadro teórico proposto por Bernstein (1996), a
partir de sua aproximação ao conceito de discurso pedagógico e assumindo-o como
recontextualização de outros discursos (oficiais, disciplinares, curriculares, acadêmico).
Percebemos que há mais diferença no processo de recontextualização das políticas
curriculares entre os diferentes ambientes escolares do que entre diferentes comunidades
disciplinares, provavelmente em função da interação social que os professores têm entre si em
cada escola e do contorno social que abraça irremediavelmente o fenômeno educativo. Assim,
a contextualização dos conteúdos científicos, estratégia de ensino recomendada pelos
PCNEM, pode tanto ter a função de enriquecer a prática dos professores quanto, em outra
realidade, viabilizar, mas empobrecer a prática pedagógica. A formação dos estudantes para o
mercado de trabalho, concepção oficial que valoriza o caráter instrumental e utilitarista da
educação, parece ter sido absorvida pelos professores de ambas as escolas, que passam a dar à
educação um sentido pragmático e economicista. O sentido de qualidade dos professores
corresponde, assim, à medida da qualidade oficial. Entretanto, também notamos diferenças no
processo de recontextualização desse discurso, conformadas pela realidade sociocultural de
cada escola. Embora haja muitos obstáculos a superar, que possam estar ligados a mudanças
curriculares, à melhoria da infra-estrutura das escolas, a metodologias inovadoras e outras
questões pedagógicas no sentido de transformar o ensino de ciências da escola pública,
concluímos que, por sua natureza eminentemente social, sua qualidade não pode prescindir da
transformação da sociedade.
Palavras-chave: Ensino de Ciências; Discurso Pedagógico; Recontextualização; Qualidade.
ABSTRACT
This work is part of a larger research project that investigates the quality of high school
science teaching considering the diversity of educational contexts, from the perspective of
teachers, with reference to the official assessment measured the National Secondary
Education Examination (ENEM). We intended to move forward with respect to results
obtained in this project, analysing interviews with physics, chemistry and biology teachers
from two public schools in the state of Rio de Janeiro, one with a high score and other with
low score in ENEM. The teachers' discourse about the practice, the curriculum, the curricular
policies, educational goals and quality of science teaching was analyzed based on the concept
of pedagogical discourse by Bernstein and that it is constructed by the recontextualization of
other discourses (official, disciplinary, curricular, academic). We found that the difference in
the contextualization process of curriculum policies are more significant between the schools
than between different scientific disciplines, probably because of the social interaction
between teachers and the social contour that embraces educational phenomenon. Thus, the
contextualization of scientific content, strategy recommended by PCNEM, can both have the
function of enriching the practice of teachers and, in another reality, impoverish educational
practice. The training of students for the labor market, official view that emphasizes the
instrumental and utilitarian character of education seems to have been absorbed by the
teachers from both schools. The sense attributed to quality by the teachers thus corresponds to
the official measure of performance. However, we also noticed differences in the process of
recontextualization of that discourse, shaped by socio-cultural reality of each school.
Although there are many obstacles to overcome, which may be related to curricular changes,
improving of the infrastructure of schools, and other innovative methodologies pedagogical
issues in order to transform science teaching public school, we conclude that, because of its
social nature, its quality can not prescind of the transformation of society.
Keywords: Science Teaching; Pedagogic Discourse; Recontextualization; Quality.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 10
2 REVISÃO DA LITERATURA 17
2.1 CURRÍCULO: CAMPO E CONCEITUAÇÃO 18
2.2 A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO 22
2.3 AS POLÍTICAS CURRICULARES NA ÁREA DE CIÊNCIAS DA NATUREZA E
MATEMÁTICA 30
2.3.1 O discurso oficial 30
2.3.2 O discurso acadêmico 44
2.4 CURRÍCULO, ENSINO DE CIÊNCIAS E QUALIDADE 56
3 QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO 68
3.1 QUADRO TEÓRICO 68
3.1.1 Teoria do discurso pedagógico: uma introdução 68
3.1.2 A gramática do discurso pedagógico 72
3.1.3 Os princípios de classificação e isolamento 75
3.1.4 O processo de recontextualização 77
3.2 OBJETIVOS E QUESTÕES DE ESTUDO 79
3.3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 79
3.3.1 Descrição dos sujeitos e contexto da pesquisa 82
3.3.2 Elaboração do roteiro de entrevistas 83
3.3.3 Procedimentos de análise 87
4 ANÁLISE DOS DADOS 89
4.1 SENTIDOS DE QUALIDADE DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS NA VOZ DOS
PROFESSORES 89
4.1.1 Discurso da professora de Física da escola A 89
4.1.2 Discurso da professora de Química da escola A 96
4.1.3 Discurso da professora de Biologia da escola A 105
4.1.4 Discurso do professor de Física da escola B 114
4.1.5 Discurso do professor de Química da escola B 121
4.1.6 Discurso da professora de Biologia da escola B 130
5 RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS 140
5.1 QUALIDADE DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS EM DIFERENTES COMUNIDADES
DISCIPLINARES 140
5.1.1 O discurso pedagógico dos professores da escola A 140
5.1.2 O discurso pedagógico dos professores da escola B 142
5.1.3 Em busca de diferenças entre as comunidades disciplinares de cada escola 143
5.2 QUALIDADE DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS DE DUAS UNIDADES ESCOLARES:
RELAÇÕES POSSÍVEIS COM A QUALIDADE OFICIAL 144
5.2.1 Os sentidos de qualidade para os professores da escola A 144
5.2.2 Os sentidos de qualidade para os professores da escola B 145
5.2.3 Em busca dos sentidos de qualidade nas diferentes escolas 145
5.3 DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS 146
REFERÊNCIAS 151
ANEXOS 155
10
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho é parte de um projeto1 de pesquisa maior que pretende avançar na
compreensão da qualidade do ensino de Ciências (Química, Física, Biologia e Matemática) no
nível médio considerando-se a diversidade regional e cultural de contextos educacionais, na
perspectiva dos docentes, tomando como referência a avaliação oficial medida por
indicadores como o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Pretende-se, neste projeto,
compreender como professores de Ciências e Matemática de diferentes escolas e regiões
constroem discursos sobre ciência, currículo, políticas curriculares, objetivos educacionais,
metodologias de ensino e uso de tecnologias, educação e educação em Ciências de qualidade,
e de que forma os mesmos conformam o processo educativo e têm impacto na qualidade do
ensino de Ciências.
Dentro deste projeto, o presente estudo focaliza os sentidos de qualidade do ensino de
Ciências no discurso de professores das disciplinas de Ciências Naturais do Ensino Médio de
duas escolas da rede pública estadual do Rio de Janeiro, tomando o currículo como elemento
fundamental do empreendimento educacional (JALLADE apud LOPES, 2004a) para
refletirmos sobre a relação entre educação e qualidade.
Poderíamos nos aproximar dessa discussão apenas de forma teórica, examinando artigos
acadêmicos ou documentos oficiais, no entanto, optamos por recorrer aos professores, por
considerarmos imprescindível trazer para o debate os reais protagonistas do cenário
educacional, visando inventariar as diferentes perspectivas encontradas. Para compreender as
relações entre currículo e qualidade do ensino de Ciências estabelecidas por estes professores,
aproximaremos seus discursos sobre sua prática do conceito de discurso pedagógico proposto
por Basil Bernstein.
No contexto da Sociologia crítica da educação que se desenvolveu na Inglaterra a partir
dos anos 70, a obra de Bernstein ocupa uma posição singular. Segundo Silva (2000), sua
teoria é, ao menos em parte, uma teoria sociológica do currículo, já que não está preocupado
com o conteúdo propriamente dito do currículo, mas quer saber como o currículo está
estruturalmente organizado, como se dão as relações estruturais entre os diferentes tipos de
conhecimento que o constituem.
1 Projeto em rede financiado pelo Edital Observatório da Educação - Capes, iniciado em 2009.
11
Ao realizar uma análise crítica do currículo e do processo de escolarização, Bernstein
colocou em questão o papel da educação na reprodução cultural das relações de classe,
tornando evidente que a pedagogia, o currículo e a avaliação são formas de controle social
(MAINARDES e STREMEL, 2010). Para tal, constrói uma teoria com base, principalmente,
nos conceitos de código, dispositivo pedagógico e discurso pedagógico, nos princípios de
classificação e enquadramento e no processo de recontextualização, os quais serão
brevemente detalhados nessa introdução e aprofundados no capítulo 3.
A teoria do dispositivo pedagógico, explicitada por Bernstein no Capítulo 5 do livro ‘A
estruturação do discurso pedagógico: classe, código e controle’ (BERNSTEIN, 19962) e no
Capítulo 2 de ‘Pedagogía, control simbólico e identidad’, volume V (BERNSTEIN, 1998), foi
elaborada como um modelo para examinar o processo pelo qual uma disciplina ou um campo
específico de conhecimento é transformado ou ‘pedagogizado’ para compor o conhecimento
escolar, o currículo, os conteúdos e as relações a serem transmitidas (MAINARDES e
STREMEL, 2010). Segundo estes autores, diversas pesquisas no campo das políticas e
reformas educacionais e curriculares têm explorado conceitos da teoria de Bernstein.
De acordo com Bernstein (1996), um código é regulado de acordo com a classe social e
representa um dispositivo de posicionamento3 culturalmente determinado responsável por
colocar os sujeitos em posições dominantes e dominadas de comunicação. Nas palavras do
autor, o conceito de código diz respeito a “um princípio regulativo, tacitamente adquirido, que
seleciona e integra significados relevantes, formas de realização e contextos evocadores”
(p.143).
Os princípios de classificação e enquadramento estão na base da teoria do discurso e da
prática pedagógica desenvolvida por Bernstein. O princípio de classificação não está voltado
ao que é classificado, como usualmente acontece, mas é utilizado para analisar as relações
entre categorias, representadas, por exemplo, pelas diversas áreas de conhecimento que
compõem o currículo. Também podem ser aplicadas a gênero, gênero, idade etc. Decorrentes
desse princípio surgem os isolamentos, que constituem a especificidade das vozes das
categorias e, por isso, instituem suas particularidades.
O princípio de enquadramento é responsável por regular as práticas comunicativas das
relações entre transmissores e adquirentes, isto é, este princípio trata de controlar o processo
2 Esta edição brasileira corresponde ao volume IV da edição inglesa publicada em 1990, que por sua vez sistematiza as bases do pensamento de Bernstein, publicado no volume III da mesma obra em 1975. 3 O termo ‘posicionamento’ é usado por Bernstein (1996) para designar o estabelecimento de uma relação específica com outros sujeitos e a criação de relações específicas no interior dos sujeitos. Nesse (e através desse) processo de posicionamento, o autor aponta que é constituída a ideologia.
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ensino e aprendizagem, o que é transmitido, o que é recebido e o que pode ou não ser
transmitido na relação pedagógica.
O dispositivo pedagógico de Bernstein (1996) diz respeito a um conjunto de regras
discursivas hierarquicamente relacionadas denominadas distributivas, recontextualizadoras e
avaliativas, sujeitas à ideologia já que participam necessariamente da disseminação ou
restrição de diversas formas de consciência. Essas regras compõem a gramática intrínseca do
discurso pedagógico e estão relacionadas a três diferentes campos4, o campo de produção do
discurso, o campo recontextualizador e o campo de reprodução do discurso.
As regras distributivas têm a função de regular as relações entre poder, grupos sociais,
formas de consciência e de prática e, dessa maneira, regulam o tipo de conhecimento que os
diferentes grupos sociais terão acesso. Relacionam-se ao contexto primário, que dá origem ao
campo de produção do discurso, onde as idéias são construídas. Visto que tratam
especificamente do campo de produção, que engloba a universidade, a produção do
conhecimento acadêmico assim como revistas especializadas, as regras distributivas não serão
relevantes no presente estudo.
As regras recontextualizadoras, subordinadas às distributivas, caracterizam o discurso
pedagógico e relacionam-se ao processo de recontextualização. Este processo consiste no
movimento de um discurso de seu contexto original de produção para um outro contexto onde
é modificado e relacionado a outros discursos e, depois, é reposicionado (BERNSTEIN,
1996). É importante ressaltar que essa movimentação produz uma mudança no discurso por
conta da influência da ideologia, sujeita a diferentes visões de mundo e aos interesses
especializados e/ ou políticos dos agentes recontextualizadores, cujos conflitos estruturam o
campo recontextualizador, intermediário entre o campo de produção e o campo de reprodução
do discurso, as escolas. É possível notar a presença de dois campos recontextualizadores, o
campo recontextualizador oficial, formado pelo Estado e suas agências, e o campo
recontextualizador pedagógico, constituído pelo campo acadêmico, suas universidades e
pesquisadores, eventos e periódicos especializados.
Visto que estamos interessados em ter indícios do discurso pedagógico através do
discurso dos professores e entender a qualidade atribuída por eles ao processo educativo por
meio dessa aproximação, as regras recontextualizadoras, que tratam do discurso pedagógico
em si, serão especialmente observadas por nós no decorrer desta investigação, mostrando-se
4 Assim como Bernstein (1996), utilizaremos o conceito de campo de Bourdieu (apud BERNSTEIN, 1996), que se refere ao conjunto de relações de força entre agentes e/ ou instituições em luta por diferentes formas de poder, seja ele econômico, político ou cultural, que funciona simultaneamente como instância de inculcação e mercado onde as diferentes competências tomam preço.
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adequadas à tarefa de identificar as ideologias desses professores assim como a forma como
tais ideologias são comunicadas e transmitidas no contexto em que estes sujeitos estão
inseridos, o ambiente escolar5. Assim, essas regras apresentam-se como fundamentais para a
identificação do processo de recontextualização dos diferentes discursos circulantes no campo
educacional, do campo de produção ao campo de reprodução, as escolas.
Por fim, as outras regras estruturantes do dispositivo pedagógico são as regras
avaliativas, subordinadas às regras recontextualizadoras e responsáveis por regular a
transformação do discurso em prática pedagógica. Estão relacionadas ao contexto secundário,
que origina o campo da reprodução do discurso, e se refere exclusivamente à prática
pedagógica em sala de aula. Dada a aproximação entre o discurso dos professores sobre sua
prática e o discurso pedagógico proposta, as regras avaliativas também serão observadas
durante nossos procedimentos de análise.
Os campos de produção, recontextualização e reprodução do discurso, assim como as
regras discursivas relativas a cada um deles, também estão hierarquicamente relacionados de
forma que a recontextualização do conhecimento não pode acontecer sem a sua produção e a
reprodução não pode ocorrer sem a sua recontextualização (MAINARDES e STREMEL,
2010).
O termo ‘discurso’, nesta pesquisa, segue a conceituação de Basil Bernstein,
considerada ao estabelecer “princípios de ordenamento intrínsecos à produção, reprodução e
mudança do discurso pedagógico” (BERNSTEIN, 1996). Para ele, o discurso não é visto
apenas como texto ou fenômeno linguístico, mas articulado às práticas e identidades dos
sujeitos bem como submetido a mudanças e constituído enquanto repertório que conforma as
relações sociais. Segundo Bernstein (1996), um discurso é um conjunto de normas que regula
a produção, reprodução, distribuição, transmissão, aquisição, avaliação e inter-relação dos
textos. No âmbito educacional, um texto é qualquer representação pedagógica expressa pela
fala, pela escrita, visualmente, espacialmente, nas posturas assumidas, na maneira de vestir, as
quais expressam materialmente as relações sociais (BERNSTEIN, 1996).
Atentos ao fato de que as regras recontextualizadoras conformam o discurso pedagógico
em si, é possível afirmar que o discurso pedagógico é um princípio que tira um discurso de
sua prática e contexto de origem, realocando-o de acordo com seu próprio princípio de
5 Assumimos como ambiente escolar aquele denominado por Bernstein (1996) como contexto secundário. Este contexto, segundo o autor, com seus vários níveis, suas várias agências, posições e práticas, refere-se à reprodução seletiva do discurso educacional. Em função do nosso objeto de estudo, nos voltamos especialmente à influência dos discursos oficial e acadêmico sobre os discursos gerados no ambiente escolar, embora saibamos que outros discursos, como os discursos políticos, econômicos, da igreja, da família ou da mídia, podem permear o ambiente educacional.
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focalização e reordenamentos seletivos. Nesse processo, o discurso original passa por uma
transformação, criando um discurso recontextualizado, que já não é mais o mesmo porque as
ideias propostas de início são introduzidas em outros contextos que permitem releituras dos
significados originais.
De acordo com Bernstein (1996), o discurso pedagógico não pode se identificar com os
discursos que transmite, com um conteúdo ou o conhecimento das matérias. Para ele, o
discurso pedagógico é um princípio de recontextualização ou, em outras palavras, é um
discurso que dá origem a discursos especializados mediante processos de descontextualização
e refocalização.
O discurso pedagógico se configura pela ligação de dois discursos: o discurso
instrucional (DI) e o discurso regulativo (DR). O discurso instrucional se refere aos
conhecimentos mais específicos (o que e como transmiti-los) enquanto o discurso regulativo
tem um cunho ideológico (discurso moral e de transmissão de valores e identidades), é
regulador do discurso instrucional e determinante na ordem social. Estes dois discursos são
definidos pela relação DI/DR, onde o traço significa que o discurso instrucional está sempre
embutido no discurso regulativo que, por sua vez, pode assumir um caráter de discurso
dominante.
É necessário esclarecer que existe uma polissemia latente em torno dos sentidos de
‘currículo’, ‘políticas’ e ‘qualidade’. Para nós, tal polissemia não constitui um aspecto
negativo, mas, ao contrário, contribui para que possamos identificar as distinções entre as
diferentes perspectivas de currículo, políticas e qualidade e, consequentemente, as diferentes
recontextualizações presentes no discurso dos professores. Não pretendemos abrir mão de tais
distinções, mas sim problematizar a polissemia a fim de caracterizar a diversidade de sentidos
resultante do processo de recontextualização.
Tomamos como hipótese do presente trabalho que os diversos sentidos de qualidade são
construídos pelos professores a partir da recontextualização de discursos dos documentos
oficiais e da pesquisa na área de ensino de Ciências, bem como a partir das trocas
estabelecidas entre os sujeitos no ambiente escolar, conformado pelas características
socioculturais deste ambiente. Nosso objeto de análise é o discurso dos professores de Física,
Química e Biologia do Ensino Médio de duas escolas públicas estaduais da cidade do Rio de
Janeiro. Especificamente, nos concentramos no discurso dos professores sobre sua prática
procurando aproximá-lo do conceito de discurso pedagógico.
Com base no referencial teórico brevemente exposto até agora e que iremos desenvolver
mais adiante, desenhamos os objetivos específicos desta pesquisa: (i) buscar sinais de
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recontextualização nos discursos construídos pelos professores, focalizando, especialmente,
os sentidos de qualidade que compõem tais discursos; (ii) captar diferenças entre os discursos
dos professores de diferentes disciplinas científicas; (iii) captar diferenças nos processos de
recontextualização estabelecidos por professores de escolas distintas, confrontando-as com as
diferenças nos índices de avaliação oficial dessas escolas.
Ainda que não nos detenhamos em analisar o contexto de produção dos documentos
oficiais, julgamos ser impossível descartar as relações existentes entre este e o contexto da
prática, visto que acreditamos que o primeiro influencia sobremaneira as decisões tomadas no
interior das escolas e por cada uma das disciplinas e seus professores.
A revisão de literatura, apresentada no capítulo 2, servirá como parâmetro para a análise
dos processos de recontextualização dos discursos dos professores, trazendo alguns discursos6
que supomos como possivelmente recontextualizáveis por eles. Na primeira seção, nos
voltamos aos estudos sobre currículo, traçando um breve histórico do surgimento desse
campo e da conceituação do termo ‘currículo’ ao longo da história. Na segunda seção,
focalizamos o tema da qualidade, recorrendo, para isso, a perspectivas mais amplas do que a
da área específica de ensino de Ciências trazidas por autores do campo da educação. Na
terceira seção, apresentamos o discurso oficial sobre a qualidade do ensino de Ciências, que
identificamos nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) da área
de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, e abordamos o discurso acadêmico
sobre as políticas curriculares recorrendo, para isso, a alguns autores da área da pesquisa em
educação assim como a autores da área de pesquisa em educação em Ciências. Destacamos
que os autores destes dois campos não apresentam sempre os mesmos discursos, sendo
agregados a este trabalho justamente para formar um panorama da variedade de sentidos de
currículo, políticas e qualidade da educação, recontextualizáveis pelos atores do cenário
educacional. Por último, na quarta seção, procuramos identificar sentidos de currículo e de
qualidade no discurso de autores da área de pesquisa em educação em Ciências.
No terceiro capítulo, apresentamos o quadro teórico e metodológico que orienta nossa
análise. A primeira seção consiste numa breve apresentação da teoria de Basil Bernstein sobre
a construção do discurso pedagógico. Na segunda seção, tornamos explícitos os objetivos
deste estudo e as questões que o norteiam, relacionando-os ao quadro teórico mencionado. A
terceira e última seção trata dos procedimentos metodológicos. Nesta seção, apresentamos os
sujeitos e o contexto da presente pesquisa, a construção do instrumento de coleta de dados e
6 Consideramos como ‘discursos’ visto que buscamos olhar além do texto, assumindo, tal qual Bernstein (1996) que o discurso não é possível fora das relações sociais.
16
os princípios que sustentam a análise do discurso dos professores, argumentando em prol da
adequação dos conceitos propostos por Bernstein (1996) à nossa pesquisa.
No quarto capítulo, a partir das transcrições das entrevistas dos professores e com base
nos procedimentos de análise já descritos, apresentamos a análise dos dados, que nos
permitirá identificar os processos de recontextualização presentes. Neste momento,
pretendemos levar a cabo a análise do discurso dos professores à luz dos conceitos de Basil
Bernstein, apresentados no quadro teórico metodológico. Apresentamos os sentidos de
qualidade da educação em Ciências recontextualizados por cada um dos professores,
buscando compreender os diálogos que vêm estabelecendo com os documentos oficiais, com
o discurso acadêmico e com outros discursos que transitam pelo ambiente escolar e compõem
os processos de recontextualização que estabelecem.
No último capítulo, retomando nossas questões de estudo, apresentamos, nas duas
primeiras seções, os resultados desta pesquisa. Na primeira, apontamos semelhanças e
diferenças nos processos de recontextualização realizados por professores das diferentes
disciplinas científicas de uma mesma unidade escolar. Na segunda, confrontamos os discursos
dos professores de ambas as escolas a fim de relacionar os sentidos de qualidade da educação
construídos por eles à qualidade oficial da educação. Na terceira seção, nos voltamos à
discussão de alguns aspectos que consideramos relevantes e apresentamos nossas
considerações finais em função das seções anteriores. Buscamos retomar a problemática
abordada, ressaltando os elementos que nos ajudaram a refletir sobre nossas questões de
estudo, apontando as principais contribuições dessa pesquisa para a pesquisa em educação em
Ciências e algumas possibilidades para estudos futuros.
17
2 REVISÃO DA LITERATURA
Neste capítulo, apresentamos a revisão da literatura que servirá de referência para a
interpretação dos resultados a serem obtidos com esta pesquisa. Na primeira seção, nos
voltamos aos estudos sobre currículo, já que este elemento será privilegiado para o
entendimento da qualidade da educação. Na seção seguinte apresentamos os diferentes
discursos sobre a qualidade da educação recorrendo, para isso, a perspectivas vindas do
campo da educação. Estas duas primeiras seções, mais conceituais, servirão de base para
iluminar nossas reflexões sobre currículo e qualidade do ensino de Ciências assim como as
relações estabelecidas entre eles. A terceira identifica a perspectiva da qualidade oficial da
educação presente nas políticas curriculares, representadas, neste trabalho, pelos PCNEM da
área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, e explora o debate acadêmico
acerca dessas políticas por meio tanto dos discursos advindos da área da pesquisa em
educação quanto daqueles oriundos da pesquisa em educação em Ciências. Por último,
abordamos o ensino de Ciências a partir dos autores da área da pesquisa em ensino de
Ciências, buscando compreendê-lo e refletir sobre os diferentes sentidos de currículo e de
qualidade envolvidos em seus discursos. Ainda que todos os discursos levantados tenham sido
considerados por nós potencialmente importantes e possivelmente recontextualizáveis pelos
professores, é importante esclarecer que os autores revisados vêm de campos de estudo
diferentes e, por isso, abordam perspectivas distintas, o que acaba por caracterizar essa
revisão da literatura como um diversificado conjunto de concepções.
Embora conscientes de que essa diversidade dificulta a articulação entre os autores no
sentido de chegar a um pensamento comum, apresentamos, ao final de cada uma das seções
deste capítulo uma seção de síntese. Além de pontuar a diversidade já mencionada,
pretendemos arriscar algumas relações entre as perspectivas identificadas, mesmo
reconhecendo a possibilidade de estarmos incorrerendo em relações inapropriadas entre os
autores.
Nas duas últimas seções, mesmo que não tenhamos a intenção de fazer uma análise
exaustiva dos documentos das políticas ou dos textos dos autores mobilizados segundo
padrões canônicos de análise do discurso, assuminos sem dúvida uma dimensão
interpretativa. Nessa análise, tentamos ao menos identificar diferentes concepções de
currículo, de qualidade da educação e da educação em Ciências que estivessem envolvidas.
Buscamos identificar tais concepções em um autor ou em grupos de autores que
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compartilhassem da mesma perspectiva ou trazendo as vozes de autores que já se dispuseram
a analisar o currículo de Ciências, as políticas curriculares e a qualidade da educação em
Ciências.
2.1 CURRÍCULO: CAMPO E CONCEITUAÇÃO
Sendo considerado nesta pesquisa elemento fundamental da qualidade da educação
(JALLADE apud LOPES, 2004a), julgamos importante estabelecermos uma discussão a
respeito do currículo, tanto no que se refere ao surgimento desse campo quanto no que tange a
sua conceituação ao longo da história.
O currículo sempre foi o centro das atenções de todos os que buscavam melhor
entendimento e maior organização do processo educativo escolar (MOREIRA e SILVA,
1995). No entanto, apareceu pela primeira vez como objeto de estudo específico nos anos 20,
nos Estados Unidos, quando um número considerável de educadores passou a tratar de
maneira mais sistemática dos problemas e questões curriculares, o que gerou diversos estudos
e iniciativas que, em pouco tempo, configuraram o surgimento de um novo campo
(MOREIRA e SILVA, 1995; SILVA, 2000).
Nessa época, segundo Silva (2000), houve um processo de massificação da
escolarização, aparecendo o currículo como instrumento para racionalizar os resultados
educacionais – especificando-os e medindo-os cuidadosamente – e os estudantes, como
produtos a serem processados. Este conceito de currículo, muito divulgado naquele período
pelos superintendentes dos sistemas escolares americanos bem como por teóricos precursores
do novo campo, apresenta como propósito mais amplo o planejamento ‘científico’ das
atividades pedagógicas e seu controle, a fim de evitar que o comportamento e o pensamento
dos alunos se desviassem de metas e padrões pré-definidos (SILVA, 2000).
Começava a ser aceita uma nova concepção de sociedade, calcada em novas práticas e
valores advindos do mundo industrial e, de acordo com Moreira e Silva (1995), cabia, então, à
escola o papel de promover a adaptação das novas gerações às transformações que ocorriam
nas esferas econômica, social e cultural, inculcando os valores, as condutas e os hábitos
‘adequados’ – bom exemplo disso foi a notada preocupação com a educação vocacional que
tornou evidente a necessidade de ajustar a escola à economia. Por consequência, o currículo,
no âmbito escolar, passou a ser considerado o grande instrumento desse controle social que se
pretendia atingir tornando-se indispensável, para tal propósito, sua organização no sentido de
conferir-lhe características de ordem, racionalidade e eficiência (MOREIRA e SILVA, 1995).
19
Chegando ao final dos anos 50, ainda nos Estados Unidos, a partir da derrota na corrida
espacial, instaurou-se um processo de culpabilização dos educadores que levantou questões
acerca da qualidade ‘perdida’ da escola (MOREIRA e SILVA, 1995). Houve reformas nos
currículos de Ciências, Matemática, Estudos Sociais, entre outros, bem como foram
elaborados e implementados novos programas, materiais, estratégias e propostas de
treinamento de professores com o intuito de redirecionar o campo do currículo (idem).
Já no final da década de 70, novas tendências ajudavam a recontextualizar este campo, o
que favoreceu a análise e a compreensão de outras questões – não mais eram supervalorizados
o planejamento, a implementação e o controle de currículos, deixaram de ser enfatizados os
objetivos comportamentais e a adoção de procedimentos ‘científicos’ de avaliação e, além
disso, a pesquisa educacional quantitativa deixou de ser considerada o melhor caminho para a
produção de conhecimento (MOREIRA e SILVA, 1995). Em outras palavras, os focos e as
preocupações relacionadas ao currículo foram deslocados e renovados.
No Brasil, as primeiras preocupações com o currículo também surgiram nos anos 20 e,
até a década de 80, os estudos caracterizaram-se pela ‘transferência instrumental’ de teorias
americanas (LOPES e MACEDO, 2002). A partir da década de 80, no entanto, a hegemonia
das referências norte-americanas foi abalada graças ao início da redemocratização brasileira e
ao enfraquecimento da Guerra Fria (idem). O currículo deixou de ser, então, apenas uma área
exclusivamente técnica, voltada para questões relacionadas aos procedimentos e métodos,
para assumir uma tradição crítica, orientada por questões de cunho sociológico, político e
epistemológico (MOREIRA e SILVA, 1995). Para estes autores, ainda que o ‘como’ do
currículo permaneça importante, só tem sentido se vinculado a uma perspectiva que o
considere relacionado a questões que perguntem pelo ‘por quê’ das formas como o
conhecimento escolar é organizado.
Segundo Silva (2000), ainda que haja variações em diversos aspectos, saber qual
conhecimento deve ser ensinado é o ponto comum entre as diversas ‘teorias’. Assim como as
teorias educacionais mais amplas, as teorias do currículo estão repletas de afirmações de
como as coisas deveriam ser. Silva (2000) aponta ainda que as escolhas por estes ou aqueles
saberes baseiam-se nos ‘tipos’ de sujeitos considerados ideais para uma dada sociedade, já
que a cada tipo de sociedade há um ‘modelo’ de ser humano desejável e, portanto, a cada um
desses ‘modelos’ corresponderá, consequentemente, um tipo de currículo.
O currículo, para Silva (2000), é sempre o resultado de uma seleção: de um universo
mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se apenas aqueles que irão constituir,
especificamente, o currículo. Cabe, então, às teorias do currículo, justificar porque ‘esses
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conhecimentos’ e ‘não aqueles’ devem ser escolhidos. Um currículo pretende precisamente
modificar as pessoas que vão ‘segui-lo’. As teorias do currículo deduzem o tipo de
conhecimento assumido como relevante exatamente a partir de definições sobre o tipo de
sujeito que consideram ideal (SILVA, 2000).
Sob esta ótica, mais que uma questão de conhecimento, o currículo é também uma
questão de identidade, na qual, segundo Silva (2000), as teorias de currículo se apoiarão. O
currículo torna-se, assim, uma forma de legitimar conteúdos – considerados importantes
campos de saber para a sociedade – e ‘formatar’ indivíduos para um determinado tipo de
sociedade. Silva (2000) também destaca a questão do poder, afirmando que escolher estes ou
aqueles saberes, privilegiar uns em detrimento de outros, destacar, entre tantas, uma
identidade desejável, são operações de poder. A expressão máxima de poder do currículo está
no fato de que os conteúdos são reproduzidos pelos indivíduos de forma que estes sejam
preparados para desempenhar seus papéis na sociedade, sem questioná-la (idem).
Identificando, então, a dicotomia entre teorias tradicionais e teorias críticas/ pós-críticas
de currículo, Silva (2000) afirma que enquanto as teorias tradicionais visam ser ‘apenas
teorias’, imparciais e desinteressadas, as teorias críticas e pós-críticas de currículo julgam ser
esse um posicionamento impossível; enquanto as teorias tradicionais envolvem-se com
questões técnicas e de organização, as outras estão preocupadas com a ligação entre saber,
identidade e poder. Dessa maneira, ao enfatizar os conceitos de identidade e poder, em
detrimento, por exemplo, dos conceitos pedagógicos e do processo ensino-aprendizagem em
si, as teorias críticas/ pós-críticas efetuam uma completa inversão dos fundamentos das teorias
tradicionais e nos permitem notar a educação sob uma nova perspectiva (SILVA, 2000).
Ao tomar o status quo como referência desejável, as teorias tradicionais, segundo Silva
(2000) preocupam-se em ‘como’ fazer o currículo enquanto, em contraste, as teorias críticas e
pós-críticas desconfiam desse status quo, responsabilizando-o pelas desigualdades e injustiças
sociais. Em outras palavras, Silva (2000) associa as teorias tradicionais à aceitação, ajuste e
adaptação e as teorias críticas/ pós-críticas à desconfiança, questionamento e transformação
radical.
Moreira e Silva (1995) apontam que, na tradição crítica, os estudos sobre currículo
voltam-se para conceitos como ideologia, cultura e poder e para questões de cunho
sociológico, político e epistemológico, deixando de ser, assim, uma área exclusivamente
técnica, relacionada a questões acerca de procedimentos e métodos. O importante para as
teorias críticas/ pós-críticas não é desenvolver técnicas de ‘como’ fazer o currículo, mas
desenvolver conceitos que nos permitam entender o que o currículo faz.
21
Segundo Moreira e Silva (1995), o currículo “é colocado na moldura mais ampla de suas
determinações sociais, de sua história, de sua produção contextual” (p. 7). Para os autores, o
currículo não é um elemento inofensivo e neutro de transmissão desinteressada do
conhecimento social; implica em relações de poder, transmite visões sociais particulares e
cheias de interesse, gera identidades individuais e sociais particulares; não é um elemento
transcendente e atemporal, possui historicidade, vinculada a formas específicas e contingentes
de organização da sociedade e da educação.
Goodson (2007) alerta para o fato de que o currículo foi inventado basicamente como
um conceito para dirigir e controlar o credenciamento dos professores e sua potencial
liberdade nas salas de aula. A visão de currículo como prescrição, trazida pelo autor, se
desenvolve “a partir da crença de que podemos imparcialmente definir os principais
ingredientes do desenvolvimento do estudo, e então ensinar os vários segmentos e sequências
de uma forma sistemática” (p. 242). Ao longo dos anos, segundo ele, a aliança entre
prescrição e poder foi cuidadosamente estimulada a fim de que o currículo se tornasse um
mecanismo de reprodução das relações de poder presentes na sociedade. Ainda que não seja
esta a única visão existente, o autor acredita que este tipo de currículo é, sem dúvida, a
principal perspectiva presente nos dias de hoje. Em linhas gerais, segundo Goodson (2007),
crianças cujos pais são poderosos e ricos se beneficiam da inclusão pelo currículo, e os menos favorecidos sofrem a exclusão pelo currículo. Como argumentou Bourdieu, dessa maneira o ‘capital cultural’ dos pais efetivamente compra o sucesso para seus filhos estudantes. (p. 243)
O currículo como prescrição sustenta a ideia de que a especialização e o controle são
inerentes ao Estado, às burocracias educacionais e à comunidade universitária e, desde que
ninguém desvele essa mística, a ‘prescrição retórica’ e a ‘escolarização como prática’ podem
coexistir (GOODSON, 2007). Segundo este autor, as agências do currículo como prescrição
são vistas como estando no ‘controle’ e as escolas, como ‘distribuidoras’ que, aceitando bem
as regras, podem conquistar até um bom grau de autonomia.
Goodson (2007) alerta que paga-se um preço pela aceitação de um currículo como
prescrição que envolve, sobretudo e sob vários aspectos, a aceitação de modelos estabelecidos
de relações de poder. Talvez o mais relevante, para ele, seja que os mais intimamente ligados
à construção social cotidiana do currículo, os professores, sejam efetivamente alijados do
‘discurso da escolarização’, mantendo seu poder cotidiano em silêncio e sem registros para
que continuem a existir. No entanto, ele aponta que as prescrições curriculares determinam
alguns parâmetros, mas algumas transgressões ocasionais são permitidas, desde que a retórica
e o gerenciamento das prescrições não sejam desafiados.
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A teorização sobre currículo nos permite analisar discursos focalizando diferentes
finalidades da educação traduzidas pelo currículo, como, por exemplo, ajustar os estudantes à
sociedade tal como ela se apresenta ou prepará-los para transformá-la. Julgamos importante
observar as possíveis relações entre o currículo e as exigências sociais, notando os conteúdos
e práticas privilegiadas por ele com vistas a inculcar visões de mundo consistentes com as
relações estabelecidas. Quanto ao papel do professor nesse processo entendemos como
fundamental que ele defenda sua atuação enquanto intelectual crítico, capaz de refletir sobre
as diferentes propostas curriculares com o objetivo de identificar essas relações e
responsabilizando-se por propor alternativas aos modelos vigentes.
Sintetizando
Na época em que surgiu como campo específico de estudo, o currículo era identificado
como um instrumento para racionalizar e medir os resultados educacionais e, por
consequência, para garantir a eficácia do processo de ensino e aprendizagem. O currículo
esteve voltado, então, a questões exclusivamente técnicas, relacionadas a procedimentos e
métodos. Ainda hoje, no entanto, podemos notar a presença dessa concepção de currículo, que
tem suas finalidades atreladas aos objetivos ditados pelo mercado de trabalho e visa, mais
especificamente, a aprovação em exames oficiais de avaliação.
A perspectiva crítica está atenta aos aspectos sociológicos, políticos e epistemológicos
do currículo, buscando entender o que ele ‘faz’ e as formas como é organizado. Nesta
vertente, o currículo é visto como uma ferramenta para legitimar conteúdos importantes para
uma dada sociedade. Em outras palavras, com base nos saberes presentes no currículo são
formados sujeitos adequados à estrutura social vigente.
Além de ter o papel de formar identidades particulares, seria um conceito para dirigir e
controlar a liberdade dos professores nas salas de aula. Nesse caso, a prescrição do currículo,
especialização e seu controle são responsabilidades do Estado, das burocracias educacionais e
da comunidade universitária, ficando a cargo das escolas a distribuição do que foi
estabelecido por estas agências.
2.2 A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO
Estando a qualidade no centro da discussão que se pretende estabelecer neste trabalho,
apresentamos nesta seção os diferentes sentidos de qualidade advindos da área da pesquisa em
educação. Recorremos a autores como Saviani (1991), Enguita (2001), Gentili (2001),
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Moreira e Kramer (2007) e Moreira (2008), assumindo suas perspectivas como fundamentais
para iluminar nossa análise dos processos de recontextualização no discurso dos professores.
Moreira (2008) destaca o caráter polissêmico da palavra ‘qualidade’, atribuindo a isso
seu uso indiscriminado e confuso. No entanto, apesar da polissemia, se existe hoje uma
palavra altamente mencionada no campo educacional, essa palavra é, certamente, ‘qualidade’.
Parece que todos estão de acordo em aceitar a qualidade da educação como o objetivo
principal ou como um dos pouquíssimos que merecem ser considerados. Traçar um panorama
histórico das questões que têm sido tratadas acerca desse tema na pesquisa em educação
iluminará nossas reflexões e por onde devemos ir para alcançar a tão almejada qualidade da
educação.
Saviani (1991), discutindo o termo qualidade de ensino perante um contexto que
costumava considerá-la como um dado neutro, científico, já nos chamava a atenção para o
fato de não podermos considerar a qualidade como invariável de uma época para outra e
criticava tal consideração uma vez que refletia uma atitude conservadora que entendia a
educação atrelada a critérios permanentes de qualidade. Para ele, se a sociedade se modificou,
é inadequado manter os mesmos padrões que um dia foram considerados como de qualidade.
Além disso, podemos afirmar que, ainda numa mesma época, notamos distintas concepções
de qualidade.
Enguita (2001) e Gentili (2001) destacam que ‘qualidade’ nem sempre teve o mesmo
significado nem seu controle referenciou aos mesmos processos, porém, segundo os autores, é
preciso reconhecer que a preocupação com a qualidade vem de muito tempo no mundo da
educação, assim como no mundo dos negócios, embora, nunca como agora, tenha alcançado
tanto prestígio e tamanho grau de centralidade.
A qualidade se converte, então, numa meta compartilhada que todos dizem buscar,
numa palavra mobilizadora, num grito de guerra em torno do qual todos os esforços devem
ser recrutados (ENGUITA, 2001); de um simples termo ou expressão, se transforma no eixo
de um discurso fora do qual não é possível dialogar uma vez que os interlocutores não se
reconhecem como tais a não ser através dessa linguagem comum.
Na América Latina, o discurso da qualidade da educação começou a se desenvolver,
segundo Gentili (2001), no final dos anos 80, como resposta ao discurso da democratização, o
que, em parte, foi possível graças à qualidade educacional ter assumido o mesmo caráter que
possuía no campo produtivo. Quando ‘eliminado’ o problema da democratização, pôde
instalar-se o discurso hegemônico da qualidade, implícito em sua concepção mercantil, que
não encontrou resistências já que se deparou com um cenário arrasado por altos índices de
24
miséria e marginalidade (GENTILI, 2001). Nesse sentido, o autor afirma que o discurso da
qualidade se impôs de maneira rápida como senso comum nas burocracias, entre os
intelectuais e, mais dramaticamente, entre os que mais sofreram e sofrem as consequências do
êxito destas políticas conservadoras: os professores, os pais e os alunos.
De acordo com Enguita (2001), identificada com diferentes realidades em diferentes
setores da sociedade, a qualidade era, inicialmente, mensurada de acordo com o custo ou com
recursos materiais ou humanos por cidadão, tal qual nos serviços públicos; depois, a atenção
voltou-se para a eficácia do processo – chegar ao máximo resultado com o mínimo custo, o
que já não é a lógica do serviço público, mas sim da empresa privada – e, atualmente, a
qualidade considera os resultados obtidos pelos escolares, independente da forma como são
medidos – agora sim, de acordo com a lógica da competição no mercado.
A concepção de qualidade que tem como objetivo principal os resultados dos estudantes
está muito presente na educação brasileira e é visível dada a ênfase na preparação para os
exames nacionais de avaliação, como o vestibular ou o ENEM. Em outras palavras, a
qualidade da educação é atrelada ao modelo econômico vigente e, mais que isso, detém um
único sentido, fixo e indiscutível, um sentido que valoriza a melhoria quantitativa e, não,
qualitativa, com mudanças verdadeiramente profundas na educação da sociedade.
Para Gentili (2001), o que não podemos perder de vista é que o discurso da qualidade da
educação está intimamente relacionado a algumas escolhas e práticas políticas claramente
conservadoras que têm o objetivo de inserir a todos em um ensino que não havia sido pensado
para toda a sociedade, mas apenas para uma pequena parcela. O que está embutido nesse
discurso é a dicotomia oferta de educação para todos versus qualidade para poucos. A seguir,
contemplaremos os motivos e agentes desse processo.
O movimento em prol da melhoria da educação começou nos EUA no início deste
século (ENGUITA, 2001). O autor afirma que o taylorismo, em implantação no mundo do
trabalho, foi traduzido para a linguagem escolar, entendendo que a escola devia servir à
sociedade tal qual uma empresa, que os alunos deviam ser formatados pela escola de acordo
com o que era determinado pelas empresas e que o trabalho dos professores podia ser
organizado e normatizado. A tudo isso, soma-se o processo de avaliação das escolas através
da análise custo-benefício, baseada em diferentes índices semelhantes aos utilizados no meio
empresarial (idem).
Enguita (2001) relata que, no final da década de 50, invocou-se a defesa da democracia,
embora sempre se chamando a atenção para o fato de que não se ensinava suficiente
Matemática, Linguagem etc, e que era necessário reforçar as matérias exigidas pelo mundo
25
empresarial. Apesar da presença da economia nesse processo de busca pela qualidade, o autor
aponta que o mal-estar social que se apresentava fez com que a qualidade se voltasse aos
aspectos sociais, tais como igualdade de oportunidades, educação como investimento e
relacionada ao desenvolvimento. Nos anos 60 e 70, a escola viu-se convertida em uma
instituição supostamente responsável por garantir igualdade de oportunidades de vida (idem).
Nessas circunstâncias, de acordo com Enguita (2001), uma boa educação poderia assegurar
uma carreira bem-sucedida no mercado de trabalho e nos meios públicos e privados; através
da educação, a sociedade prometia igualdade sem alterar a economia das instituições. Além
disso, o autor refere que, como durante muito tempo foi reivindicado pela população e pela
esquerda um maior, melhor e mais igualitário acesso à educação formal, era previsível um
amplo aceite das políticas escolares expansivas, mais tarde, chamadas de ‘democratização’ ou
‘massificação’ do ensino.
Chegando aos anos 80, Enguita (2001) menciona que houve uma ofensiva intensa contra
as políticas igualitárias, supostamente responsáveis pela ‘queda geral do nível’, do
nivelamento de todos por baixo, da crise de valores da juventude etc. Para este autor, a
qualidade esteve voltada para a ‘excelência’, que seria o principal norte para a política
educacional vigente na época.
Enguita (2001) esclarece que o ponto comum de todas as situações anteriormente
descritas era a convicção dos EUA acerca de que sua superioridade no mundo estaria sendo
ameaçada por algum competidor externo como, por exemplo, a Alemanha, na época da
Primeira Guerra Mundial, a União Soviética, no início dos anos 60, com o desenvolvimento
industrial crescente e o socialismo, e o Japão, na década de 80, com sua crescente participação
no mundo industrial. O autor destaca que, embora houvesse diversas outras razões para a
rápida ascenção dessas potências e consequente decaimento norte-americano, a educação foi a
única culpada por não garantir aos EUA o primeiro lugar no pódio; enfatizando as reformas
educacionais como meio para continuar ou melhorar na competição internacional, afirma-se
que se o país não vai melhor é por culpa de seu sistema educacional. Numa época de escasso
ou nenhum crescimento líquido e desemprego em massa, Enguita (2001) indica que o
discurso oficial responsabiliza a educação por ambos os problemas e culpabiliza os indivíduos
pelas altas taxas de desemprego, já que não souberam adquirir a educação adequada, ou os
poderes públicos, incapazes de oferecê-la, mas nunca as empresas, ainda que sejam essas que
decidem sobre investimentos e emprego e organizam os processos de trabalho.
Gentili (2001) se refere ao discurso da qualidade como algo diretamente relacionado ao
plano das práticas materiais nas quais tal discurso deve (e precisa) ser lido, ou seja, a
26
substituição do discurso da democratização pelo da qualidade no campo educacional
representa certas escolhas políticas de caráter claramente conservador e de sentido reagente
que hegemonizam o cenário latino-americano atual.
Para Enguita (2001), pode-se comparar a atitude diante da educação formal à adotada
perante outras tantas necessidades que a sociedade, ou pelo menos sua parte privilegiada, foi
satisfazendo. Dessa forma, houve a ampliação da escolarização universal e algumas reformas
de maior ou menor alcance com o intuito de satisfazer o acesso à escola e a igualdade em
relação aos que já o possuíam – o que assegurou o acesso da maioria da população a níveis de
ensino até então reservados a uma minoria e abriu potencialmente as portas para o acesso a
níveis superiores (idem). No entanto, este autor chama a atenção para o fato de que nesse
processo não houve muito tempo para pensar se o que estava sendo oferecido era adequado ou
devia ser revisto, e menos ainda se deveria ser ajustado a cada realidade; em outras palavras, o
processo consistiu em incorporar todos a um ensino que não tinha sido configurado pensando
a sociedade como um todo, mas apenas uma reduzida parte da mesma.
De acordo com Gentili (2001), em questão de uma década, ‘democratizar a educação’
deixou de ser o eixo norteador das políticas públicas do setor para se tornar um tema ausente,
esquecido ou, mais precisamente, silenciado, na América Latina. O mesmo autor é categórico
ao afirmar que a democratização com qualidade foi a questão menos abordada e a mais
rapidamente abandonada e o debate foi desviado para o campo da eficiência e produtividade,
instalando-se, assim, o novo discurso do senso comum.
Como fatores que podem explicar a adesão à nova retórica conservadora de qualidade,
Gentili (2001) menciona a pretensão de democratizar a sociedade de ‘cima para baixo’, o
crescente processo de cooptação para impedir a formação de possíveis grupos de oposição e
enfraquecer os já existentes, assim como para incorporar ao próprio programa dominante
orientações e iniciativas apontadas pela oposição emergente, deixando-lhe, assim, sem apoio,
e a progressiva falta de recursos financeiros bem como o consequente sucateamento da
universidade como local de produção científica crítica, que levou ao distanciamento cada vez
maior dos intelectuais da vida universitária. Para o autor, é óbvia a articulação entre esses três
fatores (ainda que seja complicado estabelecer uma sequência linear entre eles) e a
importância dos mesmos no repentino abandono das ideias democratizadoras que deviam
conduzir as políticas educacionais e os processos pedagógicos na década de 80.
No Brasil, nos anos 90, um programa denominado Escola de Qualidade Total tornou
evidente a tentativa mais influente e sistemática de aplicar os princípios de controle de
qualidade do campo dos negócios na educação (GENTILI, 2001). Segundo este autor, foram
27
transferidas para a escola diversas estratégias do mundo empresarial, complementadas por
alguns princípios educacionais específicos. Gentili (2001) aponta que a ideia central do
projeto era que, com as estratégias propostas, a instituição escolar se modificasse e suas
práticas dominantes também fossem transformadas.
Além disso, neste programa, de acordo com Gentili (2001), foi desconsiderada e
ignorada qualquer influência do contexto político, sendo tudo resumido à boa vontade dos
‘atores’ (alunos, professores, diretores etc.) para instalar, criar e reproduzir as condições
institucionais de qualidade em suas próprias escolas, visando a melhoria global do sistema
educativo nacional por uma espécie de ‘contágio’.
É importante destacar que, para Enguita (2001), desde o início das reformas, a reação de
alarme da direita política foi visível ante a suposta ameaça de degradação do sistema
educacional em geral e da massificação dos ensinos seletivos, sempre sob a bandeira de evitar
prejuízos aos melhores alunos, sob a bandeira da qualidade. Para Gentili (2001), o abandono
dos discursos acerca da democratização da educação e a lógica mercantilista que foi ocupando
o espaço não se reduzem a um simplório mecanismo de substituição simbólico-discursivo,
mas sim a um processo cuja explicação deve ser buscada nas práticas políticas e sociais
concretas.
Recorrendo à linguagem do mercado, onde tanto se espelha o discurso da educação,
Enguita (2001) revela que a expressão ‘qualidade’ conota algo que distingue um bem ou
serviço dos outros que o mercado oferece a fim de satisfazer as mesmas ou semelhantes
necessidades. No mundo do ensino, de acordo com o autor, quando se busca ajustar qualidade
à igualdade, entende-se que melhorias quantitativas sejam transformadas em qualitativas, no
entanto, qualidade também adquire um outro sentido: “não o melhor para todos, mas para uns
poucos e igual ou pior para os demais” (p. 107). Enguita (2001) salienta o quão importante é
observar como as mudanças terminológicas refletem precisamente mudanças ideológicas.
Gentili (2001) defende que não existe qualidade com diferença social, com
discriminação, com maiorias submetidas à miséria e condenadas a viver à margem da
sociedade. Para ele, qualidade para poucos não é qualidade, é privilégio, qualidade reduzida a
um simples elemento de negociação, assume o caráter de qualquer produto e, em uma
sociedade democrática e moderna, a qualidade da educação é um direito inalienável a todos,
sem distinção. Como nosso maior desafio, o autor aponta para a necessidade da construção de
uma sociedade onde os marginalizados tenham espaço, possam ser ouvidos e usufruir uma
educação radicalmente democrática.
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Ao estabelecerem uma comparação entre os sentidos do termo ‘qualidade’ no campo
educacional e no campo empresarial, Enguita (2001) e Gentili (2001) apontam semelhanças
entre os dois campos e mostram como a qualidade da educação tem se refletido no modelo
econômico. A qualidade oferecida somente para alguns, segundo esses autores, assume o
caráter de um bem ou um produto qualquer, de um privilégio oferecido para poucos, enquanto
o que se espera é a garantia de uma educação de qualidade para todos enquanto cidadãos.
É possível perceber que no discurso de Enguita (2001) e Gentili (2001) o significado de
qualidade bem como os instrumentos apropriados para sua avaliação são espaços de poder e
conflito e que ambos lutam por um novo sentido que conduza a qualidade da educação ao
status de direito inalienável relacionado à cidadania, sem qualquer tipo de restrição ou
segmentação.
Goulart (apud MOREIRA e KRAMER, 2007) ressalta outros aspectos relacionados à
qualidade da educação e considera que esta abarca fatores internos e externos à instituição
escolar. Enquanto os primeiros compreendem “as condições de trabalho pedagógico, a gestão
escolar, o currículo, a formação docente, assim como a análise de sistemas e unidades
escolares com base em resultados de avaliações externas”, as dimensões extra-escolares estão
voltadas “às determinações e às possibilidades de superação das condições de vida de grupos
sociais desfavorecidos” (idem, p. 1045).
Para Moreira e Kramer (2007), o conceito de qualidade é historicamente construído e
não pode, por isso, ser pensado de forma absoluta; pressupõe uma análise processual, uma
dinâmica. Estes autores trazem a perspectiva de Avalos sobre qualidade e relevância em
educação centrada na realidade do Terceiro Mundo, que vê o conhecimento escolar
apropriado como aquele que possibilita ao estudante tanto um bom desempenho no mundo
imediato quanto a análise e a transcendência de seu universo cultural. Para a autora,
relevância diz respeito “ao potencial que certos conhecimentos e processos pedagógicos
apresentam de tornar as pessoas aptas a definir o papel que devem ter na mudança de seus
ambientes e no desenvolvimento da sociedade” (MOREIRA e KRAMER, 2007, p. 1045).
Estes autores ressentem-se do fato de que algumas visões sobre uma educação de
qualidade mostram-se restritas:
[...] as que priorizam desempenho satisfatório em exames nacionais; domínio de conhecimentos, habilidades e competências que se estabelecem previamente; emprego de tecnologias avançadas; supervalorização da competitividade e da produtividade; novos métodos de gerenciamento de sistemas e instituições educacionais; procedimentos integrados e flexíveis no trabalho pedagógico. (p. 1044)
29
Moreira e Kramer (2007) ressaltam que alguns desses elementos até podem fazer parte
de uma concepção crítica, no entanto, não é possível superar o nível instrumental se a noção
de qualidade está sustentada apenas por pressupostos técnicos, distante dos juízos de valor, do
compromisso com a justiça social e das ações e interesses dos sujeitos que realmente definem
e adotam tal noção.
Para estes autores, muito mais do que o simples estabelecimento de normas, a promoção
de uma educação de qualidade depende de alterações profundas na sociedade como um todo,
nos sistemas educacionais e nas escolas. Eles destacam que uma nova concepção de qualidade
reúne a crença tanto em uma escola reformulada e ampliada quanto em uma ordem social
menos desigual e excludente.
Aos professores e gestores, atores do processo educativo, Moreira e Kramer (2007)
atribuem responsabilidade e responsividade: responsabilidade para assumirem, enquanto
intelectuais, papel ativo na compreensão dos processos educacionais e escolares assim como
dos fenômenos sociais atuais e responsividade para darem respostas, mesmo que provisórias,
e delinearem ou proporem discursos e caminhos alternativos para uma educação de qualidade.
Do mesmo modo, para Kramer (apud MOREIRA e KRAMER, 2007), em diversos
momentos, como na formação inicial e continuada e na formação cultural e política dos
professores, é essencial fortalecer a compreensão da realidade e da prática pedagógica, assim
como dar mais valor à narrativa tanto para aprimorar a ação profissional quanto para
proporcionar o desenvolvimento individual, a solidariedade e a cooperação.
Notamos que Moreira e Kramer (2007) apostam que apenas normas e regras
estabelecidas pelo Estado não serão capazes de dar conta de uma educação de qualidade.
Estes autores defendem mudanças no ambiente social como um todo e, atentos aos atores do
cenário educacional, atribuem peso considerável à participação de estudantes e pais,
professores e gestores nesse processo.
Sintetizando
Recorrendo ao discurso acadêmico da área da pesquisa em educação identificamos uma
crítica à concepção que relaciona a qualidade educacional à qualidade empresarial. Nessa
concepção, a qualidade se volta a aspectos quantitativos, valorizando sobremaneira os
resultados dos estudantes para garantir a eficácia do processo de ensino e aprendizagem.
Através de uma perspectiva histórica, segundo a crítica apresentada, a educação é
culpabilizada por problemas econômicos e de desenvolvimento e, por isso, cabe a ela e, mais
precisamente, ao currículo, desempenhar um papel consistente com o mundo do trabalho e das
30
empresas. Nessa concepção, a educação é valorizada enquanto um bem ou produto no plano
das práticas materiais e a qualidade é identificada, portanto, como privilégio de poucos.
Os autores pesquisados defendem a qualidade da educação como um direito de todos. O
atingimento dessa qualidade está submetido à promoção de alterações profundas na sociedade
e nas escolas, em busca de uma ordem social menos desigual e da revisão e ampliação do
sistema educacional. Como fatores da qualidade relacionados à escola (interna ou
externamente), essa concepção ressalta as condições do trabalho pedagógico, o currículo, a
formação docente e a possibilidade de superação das condições de vida de grupos sociais
desfavorecidos. O que se espera, em outras palavras, é que melhorias quantitativas sejam
transformadas em melhorias qualitativas.
Os autores que defendem essa proposta de educação de qualidade julgam ser imperativo
a participação de todos, estudantes, pais, professores e gestores, no alcance da qualidade e nos
alertam contra uma visão restrita, presente ainda hoje, que prioriza aspectos como o
desempenho satisfatório em exames nacionais, o domínio de habilidades e competências
estabelecidas previamente, o emprego de tecnologias avançadas e a supervalorização da
competitividade e da produtividade. Tais aspectos podem até ser importantes, mas, segundo
os autores, não devem ser tomados de forma isolada no processo educacional.
Com base no debate acadêmico da educação, identificamos duas concepções de
qualidade posicionadas dicotomicamente. De um lado, a qualidade é tida como necessária ao
melhor atingimento dos objetivos das empresas e da nação e, de outro, aparece atrelada a
mudanças qualitativas na educação e na sociedade, com vistas a garantir maior igualdade
entre os cidadãos.
2.3 AS POLÍTICAS CURRICULARES NA ÁREA DE CIÊNCIAS DA NATUREZA E
MATEMÁTICA
2.3.1 O discurso oficial
Nesta seção, aspiramos identificar sentidos de qualidade da educação e da educação em
Ciências presentes no discurso oficial que poderão estar presentes nas escolas e na voz dos
sujeitos a serem pesquisados.
Acreditamos que, de modo geral, as políticas curriculares são consideradas pelos atores
do processo ensino-aprendizagem, tais como direção, coordenação e professores, como uma
referência para aferir um ensino de qualidade. Assim, podemos crer que as propostas oficiais
31
acabam por influenciar, de alguma forma, as práticas pedagógicas nas escolas, caracterizando
tais orientações como sinônimo de educação de excelência.
Consideramos os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) da
área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias (BRASIL, 1999) como o
documento que representa o conjunto dessas políticas. Os PCNEM foram implementados no
ano de 2000, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, e constituem um projeto
governamental de reforma curricular aprovado pelo Conselho Nacional de Educação. O
documento cumpre um duplo papel de difundir os princípios da reforma pretendida e orientar
os professores na busca de novas abordagens e metodologias, tendo sido formulado não como
um receituário ou como uma lista completa e exaustiva de conteúdos ou tópicos a serem
abordados, mas visando uma mudança de ênfase, visando à vida individual, social e
profissional, atual e futura, dos estudantes.
Elaborados a partir dos princípios da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN) 9.394/96, os PCNEM orientam a construção de um novo delineamento para o
currículo do nível médio, ligado às exigências contemporâneas e adotando como referencial a
contextualização do conhecimento, sendo as disciplinas agrupadas em áreas de acordo com
suas semelhanças (BRASIL, 1999).
Apoiado em habilidades e competências básicas, os PCNEM têm como objetivo
preparar o jovem estudante para a chegada à vida adulta e para o exercício pleno da cidadania.
Surgem com a proposta de direcionar e organizar o aprendizado no Ensino Médio, a fim de
gerar um conhecimento real, com significado próprio, não apenas voltado para o acúmulo de
informações (BRASIL, 1999).
Segundo os PCNEM, as habilidades representam os valores e atitudes que se pretende
desenvolver e as competências, os objetivos a alcançar. Na medida em que se desenvolvem
com referência ao mundo vivencial, as habilidades permitem articular diversos conhecimentos
e as competências vêm, então, para promover o reconhecimento do significado deste ou
daquele conceito em outros contextos, não restringindo, portanto, a atenção em um único
objeto de estudo. Ambas devem ser desenvolvidas por meio de ações concretas, objetos,
assuntos, experiências que envolvem determinado olhar acerca da realidade, ao qual
chamamos de Física, Química, Biologia ou Matemática. Nesse sentido, as habilidades e
competências podem ser abordadas em tópicos diferentes, com formas distintas em cada caso,
sendo mais ou menos apropriadas dependendo do contexto em que estão sendo trabalhadas
(BRASIL, 1999).
32
Com um olhar mais atento, porém, é possível perceber como concepção dominante dos
PCNEM que a formação voltada às habilidades e competências é entendida como capaz de
proporcionar a inserção dos estudantes numa dinâmica social que se modifica de forma
contínua, permanecendo presente um discurso que atrela a educação ao processo formativo
responsável por inserir os sujeitos na estrutura social vigente e em seus processos produtivos
(LOPES, 2004a).
Como sua preocupação central, os PCNEM preconizam a promoção da autonomia na
aprendizagem, visto que a escolha de uma profissão ainda pode estar sendo gerada e, por isso,
algumas competências seriam indispensáveis para possibilitar independência de ação e
aprendizagem futura (BRASIL, 1999).
Os objetivos do Ensino Médio em cada área de conhecimento, conforme orientam os
PCNEM, devem abarcar, de maneira associada, o desenvolvimento de conhecimentos práticos
e contextualizados que deem conta das necessidades da vida atual e o desenvolvimento de
conhecimentos mais amplos e abstratos, que correspondam a uma cultura geral e a uma visão
de mundo. Tais propostas são válidas na área de Ciências da Natureza, Matemática e suas
Tecnologias já que a valorização crescente do conhecimento bem como da capacidade de
inovar requer cidadãos capazes de aprender continuamente, para o que é fundamental uma
formação geral e não somente um treinamento exclusivo (BRASIL, 1999).
Os PCNEM da área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias assumem
como princípios a interdisciplinaridade e a contextualização e apontam como objetivos
educacionais do nível médio de ensino diversas competências humanas relacionadas a
conhecimentos matemáticos e científico-tecnológicos e, de certa forma, também propõem
organizar o aprendizado de suas disciplinas (BRASIL, 1999). As orientações avalizam uma
visão ampla do Ensino Médio a fim de que os aspectos e conteúdos tecnológicos associados
ao aprendizado científico e matemático sejam parte essencial da formação do cidadão como
um todo, de maneira universal, e não somente voltados ao mercado e à formação
profissionalizante.
Os PCNEM de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias prescrevem
competências e habilidades relacionadas à representação e comunicação, que buscam
desenvolver a capacidade de comunicação; à investigação e compreensão, voltadas ao
desenvolvimento da capacidade de questionar processos naturais e tecnológicos, identificando
regularidades, apresentando interpretações e prevendo soluções e ao desenvolvimento do
raciocínio e da capacidade de aprender; e à contextualização sociocultural, que enfatiza a
33
compreensão e utilização da ciência como elemento de interpretação e intervenção, e a
tecnologia como conhecimento sistemático de sentido prático (BRASIL, 1999).
Nas seções seguintes serão resumidamente descritas as propostas curriculares oficiais
(PCNEM e PCN+7 do Ensino Médio) para o ensino de Física, de Química, de Biologia e de
Matemática. Procuramos, sempre que possível, identificar diálogos entre as políticas e outros
discursos e concepções, que expressam visões críticas, do ponto de vista pedagógico,
epistemológico ou das finalidades sociais.
O ensino de Física segundo os PCNEM
A partir das diretrizes apresentadas nos PCNEM, a presença do conhecimento de Física
no Ensino Médio ganharia um novo significado. Com base no documento, trata-se de levar a
uma visão da Física que se volte à formação de um cidadão, contemporâneo, atuante e
solidário, com instrumentos para entender, intervir e participar na realidade que o cerca.
Nesse sentido, ainda que, após a conclusão do nível médio, os jovens não tenham mais
contato escolar com o conhecimento de Física, em outros setores, quer profissional, quer no
Ensino Superior, terão alcançado a formação adequada à compreensão e participação no
mundo em que vivem (BRASIL, 1999).
Segundo Ferraz et al. (2010), o documento pretende se afastar do ensino propedêutico
que deixaria a compreensão “para outros níveis de ensino ou para um futuro inexistente” (p.
23). Entretanto, de acordo com os autores, algumas vezes o texto trata do currículo de forma
já contextualizada e outras vezes o apresenta sem alterações em relação ao ensino
propedêutico, apesar de criticá-lo.
Os PCNEM declaram que os conhecimentos de Física, incorporados à cultura e
integrados como instrumento tecnológico, se tornaram indispensáveis à formação da
cidadania contemporânea. Espera que o ensino de Física na escola média contribua para a
formação de uma cultura científica eficaz, que permita ao sujeito a interpretação dos fatos,
fenômenos e processos naturais, situando e dimensionando a interação do ser humano com a
natureza como parte da própria natureza em transformação (BRASIL, 1999). Para isso, o
documento aponta como essencial que o conhecimento físico seja explicitado como um
processo histórico, objeto de contínua transformação e associado a outras formas de expressão
e produção humanas e, além disso, que essa cultura em Física inclua a compreensão do
7 Os PCN+ (BRASIL, 2002), consistem num documento que contém orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Apresentam as características de cada conteúdo, as competências a serem alcançadas, os temas estruturadores, a organização do trabalho escolar e as estratégias para a ação em cada uma das disciplinas no nível médio de ensino.
34
conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano doméstico,
social e profissional.
De acordo com os PCNEM, o ensino de Física tem sido realizado mediante a
apresentação de conceitos, leis e fórmulas, distante do mundo vivenciado pelos alunos e
professores e, embora não apenas, mas também por isso, vazio de significado. Segundo o
documento, o conhecimento vem sendo apresentado como um produto acabado, fruto da
genialidade de mentes como Galileu, Newton e Einstein, o que leva os alunos a concluirem
que não resta mais nenhum problema significativo a ser resolvido. No entanto, o documento
aponta que tal quadro não decorre única e exclusivamente do despreparo dos professores nem
de limitações imputadas pelas imperfeitas e escassas condições escolares, mas sim, exprime
uma deformação estrutural, gradualmente introjetada pelos atores do sistema escolar, que
passou a ser tomada como algo natural.
Propõe, então, que a questão a ser enfrentada pelos educadores de cada escola, de cada
realidade social, seja eleger a Física que se deveria ensinar para promover uma melhor
compreensão de mundo e uma formação para a cidadania mais adequada. Para isso, o
documento prevê que o ponto de partida, mas também o de chegada, seja considerar a
realidade do aluno, quer próxima quer distante, os objetos e fenômenos com que lida em seu
cotidiano, ou as questões que estimulam sua curiosidade. Mais do que uma simples
reformulação de conteúdos ou tópicos, pretende-se promover com o ensino de Física uma
mudança de enfoque no aprendizado dos conhecimentos físicos, contextualizados e
integrados, visando a individualidade, mas também a coletividade e a vida profissional do
estudante do Ensino Médio (BRASIL, 1999).
Entendida como o processo de relacionar os conceitos físicos com o mundo vivido pelos
estudantes e professores, quer próximo quer distante, a contextualização é muito enfatizada no
documento. Ferraz et al. (2010) apontam, assim, como a novidade pedagógica trazida pelos
PCNEM de Física, a contextualização do mundo natural ampliada ao mundo tecnológico, na
medida em que a compreensão deste seria importante para atender ao mundo produtivo, o que
faz com que o documento, assim como os de Química e Matemática esteja submetido ao
mundo do trabalho.
O final do documento apresenta a preocupação de ligar a ciência, tecnologia e
sociedade. Entretanto, Ferraz et al. (2010) perceberam uma separação entre o cerne do
documento e esta parte final. Estes autores alertam para o fato de que o documento restringe-
se ao ‘modismo’ do chamado ensino da Física do cotidiano, que se limita a nomear
35
cientificamente os processos físicos envolvidos, por exemplo, no funcionamento dos
aparelhos eletro-eletrônicos.
Os PCN+ buscaram aprofundar a discussão tanto sobre as habilidades quanto sobre as
competências em Física, concretizando-as melhor como conhecimentos, atitudes e valores que
a escola deveria ter por objetivo promover no nível médio de ensino (BRASIL, 2002). Os
critérios que orientam a ação pedagógica deixam, segundo este documento, de tomar como
referência principal ‘o quê ensinar de Física’, passando a preocupar-se com ‘para que ensinar
Física’, o que torna explícita a preocupação em dar ao conhecimento um sentido no momento
de seu aprendizado. De acordo com os PCN+, esse conhecimento mais amplo requer, acima
de tudo, que os estudantes adquiram competências para lidar com as situações que vivem ou
venham a vivenciar no futuro, muitas delas novas ou inéditas, o que exprime continuidade ao
que designavam os PCNEM (BRASIL, 1999).
O conhecimento de Física ‘em si mesmo’, de acordo com os PCNEM, não é suficiente
como objetivo, mas deve ser percebido acima de tudo como um meio, um instrumento para
compreender o mundo, podendo ser prático, mas admitindo transpor o interesse imediato. No
Ensino Médio, os temas da Física devem se tornar mais abrangentes, mas, ao mesmo tempo,
devem ganhar uma certa especificidade disciplinar, já que, para desenvolver habilidades e
competências em Física é preciso ocupar-se com os objetos da Física (BRASIL, 1999).
Lopes (2004b) ressalta que não há nenhuma menção direta à interdisciplinaridade no
documento, havendo apenas uma rápida referência acerca da importância das relações entre a
Física e a cultura humana mais ampla. Assim, para a autora, o documento disciplinar de Física
revela mais agudamente uma rejeição à interdisciplinaridade que, de formas diversas, se
expressa nos textos das políticas.
O ensino de Química segundo os PCNEM
Os PCNEM de Química propõem-se a nortear os educadores químicos na transição da
reforma educacional, propondo caminhos possíveis à sua prática docente. Para Nunes e Nunes
(2007), no entanto, na contramão de uma proposta que pretende apenas trazer orientações,
sem caráter normativo, coerente com a própria LDBEN, este documento apresenta um
discurso de imposição, não deixando espaço para o ‘Pluralismo de ideias e de concepções
pedagógicas’ que a LDBEN de 1996 anuncia.
No ensino de Química, os PCNEM propõem que as competências e habilidades
capacitem os estudantes a decidir de maneira autônoma em situações problemáticas,
cooperando para o desenvolvimento do educando como ser humano e como cidadão. Para tal,
36
é proposta no documento a reorganização dos conteúdos químicos ensinados atualmente
assim como a metodologia utilizada.
Assim como no documento da Física, Lopes (2004b) destaca que no PCNEM de
Química, as habilidades e competências estruturam a proposta disciplinar, aparecendo ao
longo de todo o texto. Nunes e Nunes (2007) ressaltam que a importância dada às
competências e habilidades mostra um direcionamento no sentido de alterar o foco do ensino,
antes baseado apenas nos conhecimentos conceituais, e acreditam ser este um posicionamento
extremamente positivo e relevante para a finalidade do Ensino Médio, que é formar um
cidadão.
Os PCN+ afirmam que a Química pode ser instrumento de formação humana,
ampliando os horizontes culturais e a autonomia no exercício da cidadania, se o conhecimento
químico for promovido como uma das formas de interpretar o mundo e agir sobre a realidade,
se for apresentado como ciência, com seus conceitos, métodos e linguagens próprios, e como
construção histórica, atrelada ao desenvolvimento tecnológico e aos muitos aspectos da vida
social.
O conhecimento químico, conforme os PCNEM, tem sido restrito à simples transmissão
de informações, definições e leis isoladas, fórmulas matemáticas e aplicação de ‘regrinhas’,
desligadas da vida do estudante, o que exige deste, quase sempre, apenas a memorização
limitada a ínfimos níveis cognitivos. Sabe-se que, dada a imensa quantidade de conteúdos a
serem tratados, muitas vezes com grau de especificidade extremo, a participação do educando
enquanto mediador do conhecimento é desconsiderada, alegando-se falta de tempo e
necessidade de acelerar a matéria (BRASIL, 1999).
A proposta para o ensino de Química apresentada pelos PCNEM se apresenta contrária à
velha ênfase na memorização de nomes, fórmulas e conhecimentos como fragmentos
apartados da realidade dos estudantes. Ao contrário disso, o documento afirma como
necessário um ensino de Química que, além de promover a participação do aluno no processo
ensino-aprendizagem e o diálogo entre suas experiências cotidianas e a escola, contribua para
que o aluno reconheça e entenda, de forma integrada e significativa, as transformações
químicas que se passam nos processos naturais e tecnológicos em diversos contextos.
Segundo os PCNEM de Química, dessa forma será possível promover uma visão mais
ampla do conhecimento, que permita melhor entendimento do mundo físico, e a construção da
cidadania, levando para a sala de aula conhecimentos relevantes socialmente, que tenham
significado e possam ser integrados à vida do aluno.
37
Lopes (2004b) relata que a contextualização na Química é muito enfatizada, sendo
concebida não apenas como o estabelecimento de relações com a vivência dos estudantes e
fatos cotidianos, como também com a tradição cultural, a mídia, a vida escolar e com temas
que permitam um olhar sobre o mundo com as ‘lentes da Química’.
Nunes e Nunes (2007) apresentam, então, outro problema dos PCNEM de Química que,
ao tentar simplificar conceitos teóricos complexos, sintetizando-os, o faz de maneira
aparentemente caótica, sem a preocupação de apresentar tais conceitos, sua aplicabilidade e
limitações.
Também é possível notar a ênfase na interdisciplinaridade quando o documento
propõe, em um primeiro momento, que a vivência dos alunos e os fatos do dia-a-dia, a
tradição cultural, a mídia e a vida escolar sejam utilizados para refazer as leituras de
mundo a partir da reconstrução dos conhecimentos químicos, agora, com
fundamentação também na ciência. O conteúdo a ser abordado, nessa fase, deve
proporcionar um entendimento amplo da Química. Ao mesmo tempo, são desenvolvidas
‘ferramentas químicas’ mais apropriadas para estabelecer ligações com outros campos
do conhecimento. Numa segunda fase, o documento sugere um aprofundamento da
interdisciplinaridade através da abordagem de temas mais complexos. O entendimento
desses novos conteúdos requer não só o conhecimento específico, mas principalmente a
compreensão dos resultados das interações entre os conhecimentos químicos e os
conhecimentos físicos, biológicos e geológicos.
Nunes e Nunes (2007) consideram a busca pela interdisciplinariedade e transversalidade
como um aspecto positivo do documento, já que a sociedade do conhecimento exige seres
humanos mais versáteis e que possuam conhecimentos, ainda que primários, em diversas
áreas, em função da necessidade crescente de desenvolver temas complexos, para os quais
parece que uma única ciência não seria capaz de propor soluções acertadas.
Por outro lado, os mesmos autores denunciam a falta de profundidade no tratamento da
teoria e das metodologias sobre as quais versa os PCNEM como um ponto preocupante em
função de ser este um texto oficial e com pretensões de orientar professores de diversas
formações e com os conhecidos problemas formativos.
Embora não haja referência frequente à tecnologia no documento de Química, isso não
significa que é dada pouca ênfase ao tema. Nesse sentido, Lopes (2004b) chama a atenção
para o fato de que, dentre os quatro documentos disciplinares da área, o de Química é o único
38
em que há menção explícita à relação entre o conhecimento científico e tecnológico e o
desenvolvimento político-econômico e social.
O ensino de Biologia segundo os PCNEM
Para o ensino de Biologia, frente a questões sobre o quê e como ensinar, os PCNEM não
estabelecem uma lista de conteúdos em detrimento de outra, mas pretendem promover os
objetivos educacionais estabelecidos pelo Conselho Nacional de Educação para a área de
Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. Nesse caso, há aspectos da Biologia
que têm a ver com a construção de uma visão de mundo, outros, práticos e instrumentais para
a ação e, ainda outros, que permitem a formação de conceitos, a avaliação e a tomada de
posição cidadã (BRASIL, 1999).
Com relação aos conteúdos curriculares, Borges e Rezende (2010) chamam a atenção
para o fato de que o documento estabelece uma relação com a visão racionalista
contemporânea da ciência, mas esta postura não se mantém ao longo de todo o texto. Ao final
do documento, segundo as autoras, quando são listados conteúdos específicos, fica explícita a
ideia de conhecimentos prontos e acabados, mais compatível com a visão empirista, o que
também pode comprometer o posicionamento pedagógico construtivista defendido em outros
momentos.
O documento de Biologia entende como essencial desenvolver posturas e valores
pertinentes às relações entre os seres humanos, entre eles e o meio, entre o ser humano e o
saber, a fim de contribuir para uma educação capaz de formar “indivíduos sensíveis e
solidários, cidadãos conscientes dos processos e regularidades do mundo e da vida, capazes
assim de realizar ações práticas, de fazer julgamentos e tomar decisões” (BRASIL, 1999).
Essas relações, apesar de mencionadas no texto do documento, parecem vir apartadas do fazer
ciência, referindo-se apenas à compreensão pelo aluno, de uma ciência pronta e acabada que
se relaciona com estas outras entidades (BORGES e REZENDE, 2010).
Para os PCNEM de Biologia, visando a promoção de um aprendizado ativo, que exceda
a memorização de nomes de organismos, sistemas ou processos, é importante que os
conteúdos se mostrem como problemas a serem solucionados pelos estudantes. De acordo
com o documento, não é possível abarcar, no Ensino Médio, todo o conhecimento biológico
ou todo o conhecimento tecnológico associado a ele, no entanto, mais importante é lidar com
esses saberes de maneira contextualizada, revelando como, por que e quando foram gerados,
significando a história da Biologia como um processo não linear e muitas vezes contraditório.
39
Lopes (2004b) denuncia, no entanto, que a contextualização quase não é diretamente
mencionada no documento de Biologia. Para ela, é como se o enfoque que valoriza o trabalho
interdisciplinar com o meio ambiente garantisse a contextualização, sem que fosse
considerado necessário discutir o que se entende por contextualizar. Em contrapartida, Lopes
(2004b) destaca que o foco na interdisciplinaridade é maior, havendo a mescla de duas
vertentes, uma delas relacionada ao meio ambiente e a outra com bases na própria Biologia, já
que alguns de seus conceitos permitem a aplicação de conceitos de outras disciplinas.
Mais do que apenas fornecer dados e informações, os PCNEM propõem que o ensino de
Biologia volte-se ao desenvolvimento de competências e habilidades que possibilitem ao
estudante lidar com o que lhe foi transmitido, compreendendo, elaborando e, caso seja
necessário, questionando com o intuito de entender o mundo em que vive e nele agir de forma
autônoma, utilizando os conhecimentos adquiridos da Biologia e da tecnologia.
Conforme Lopes (2004b), no documento de Biologia, o foco é maior nos conteúdos
biológicos e na valorização de que esses sejam atualizados, segundo um enfoque evolutivo-
ecológico. No texto, apenas na última página as competências são mencionadas, diretamente
relacionadas aos conteúdos e envolvendo fazer uso dos conhecimentos de Biologia e
tecnologia.
Do ponto de vista pedagógico, a crítica ao modelo de educação tradicional trazendo
propostas pedagógicas em sintonia com o construtivismo, a ênfase à contextualização do
conhecimento biológico no meio ambiente e a preocupação com os aspectos filosóficos,
culturais, éticos, religiosos, políticos, econômicos e tecnológicos do conteúdo parecem
coerentes com uma visão contemporânea de Ciência (BORGES e REZENDE, 2010).
Entretanto, as autoras alertam para o fato de que, em alguns trechos, o conteúdo é enunciado
lançando-se mão de um discurso de autoridade que tem como consequência estabelecê-lo
como verdade absoluta, como um conhecimento pronto e acabado, apagando a ideia da
ciência enquanto construção humana de um melhor entendimento da realidade. Isto porém,
segundo as autoras, não se mantém ao longo de todo o texto, visto que são identificados
trechos como ‘a ciência não tem respostas definitivas para tudo’ e o uso de verbos como
‘supor’, aspectos que levam a uma visão de ciência como tentativa e não como verdade
absoluta. Em síntese, as autoras consideram que os PCNEM de Biologia transmitem uma
visão epistemológica e pedagógica ambígua, o que pode levar o professor que se orienta por
este documento a assumir uma posição epistemológica igualmente ambígua ou a permanecer
com concepções empiristas. Esta postura epistemológica pode, por sua vez, levá-lo a uma
prática pedagógica tradicional e a um posicionamento estreito em relação à ciência ensinada.
40
O ensino de Matemática segundo os PCNEM
Segundo os PCNEM, a Matemática não tem apenas caráter formativo ou instrumental e
deve ser vista também como uma ciência com características estruturais próprias. Para o
documento, é importante que o estudante entenda que as definições, demonstrações e
encadeamentos conceituais e lógicos funcionam construindo novos conceitos e estruturas a
partir de outros e que são úteis à validação de intuições e à atribuição de sentido às técnicas
aplicadas. Segundo Bittencourt (2004), a Matemática, agrupada com as Ciências da Natureza,
é tida como conhecimento de natureza dupla: um instrumento para uso de outras ciências,
através de seus elementos de linguagem, e um conjunto específico de saberes. Para a autora,
este duplo aspecto é nomeado como ‘caráter formativo’ e o ‘caráter instrumental’ da
Matemática.
Os PCNEM destacam que a Matemática no Ensino Médio tem valor formativo,
auxiliando a estruturação do pensamento e do raciocínio dedutivo bem como desempenhando
papel instrumental, já que constitui ferramenta útil à vida cotidiana e a muitas tarefas
específicas em quase todas as atividades humanas.
Ressaltando o caráter histórico e múltiplo do saber matemático, o documento sugere a
possibilidade de integração interáreas, quer a partir dos conceitos da própria Matemática, quer
a partir das representações que este conhecimento comporta (BITTENCOURT, 2004).
No ensino de Matemática, os PCNEM destacam como valores e atitudes relevantes ao
aluno a iniciativa em buscar informações, a demonstração de responsabilidade, a confiança
nas próprias formas de pensar e a fundamentação de ideias e argumentações como essenciais
para que seja capaz de aprender, se comunicar, perceber o valor da Matemática como bem
cultural de leitura e interpretação da realidade e estar melhor preparado para a inserção no
mundo do conhecimento e do trabalho.
Bittencourt (2004) alerta para o fato de que o argumento constitutivo de toda a proposta
curricular de Matemática volta-se à vinculação da educação a um modelo de sociedade em
que é fundamental a inserção de todos no processo produtivo.
Os PCNEM afirmam que aprender Matemática no Ensino Médio, etapa final da
escolaridade básica, deve ser mais do que memorizar resultados dessa ciência e que a
aquisição do conhecimento matemático deve estar comprometida com o domínio de um saber
fazer Matemática e de um saber pensar matemático. Segundo os PCN+, a Matemática no
Ensino Médio deve ser entendida como uma parte do conhecimento humano fundamental
para a formação de todos os jovens, que proporciona a construção de uma visão de mundo,
41
para ler e interpretar a realidade e para desenvolver capacidades que deles serão exigidas ao
longo da vida social e profissional.
A respeito da contextualização, Lopes (2004b) enfatiza que “contextualizar na
Matemática implica a aplicação dos conhecimentos matemáticos a situações diversas, seja na
ciência, na tecnologia ou no cotidiano” (p. 66). A autora aproxima da contextualização a
noção de aprendizagem situada de Stein, que significa “colocar o pensamento e a ação em um
lugar específico de significado, envolver os aprendizes, o ambiente e as atividades para
produzir significado” (p. 66).
Aprender Matemática, de forma contextualizada, integrada e relacionada a outros
conhecimentos, segundo os PCN+, traz em si o desenvolvimento de competências e
habilidades. Estas se apresentam como essencialmente formadoras ao ponto que
instrumentalizam e organizam o pensamento do estudante, tornando-o capaz de entender e
interpretar situações, para apropriar-se de linguagens específicas, argumentar, analisar e
avaliar, ter suas próprias conclusões e decisões, generalizar e para muitas outras ações
necessárias à sua formação (BRASIL, 2002).
As competências e habilidades, tal qual no documento da Física e da Química, são
mencionadas durante todo o texto estruturando a proposta contida nos PCNEM de
Matemática (LOPES, 2004b).
Curiosamente, embora possamos perceber no documento da Matemática bastante ênfase
na integração curricular, também é visível uma organização sempre disciplinar dos conteúdos.
Segundo Bittencourt (2004), a inovação diz respeito mais às indicações metodológicas e à
valorização de situações cotidianas no ensino do que propriamente a uma reorganização
curricular, a qual seria garantida por meio das competências e habilidades.
A questão da interdisciplinaridade em Matemática é, para Bittencourt (2004), bastante
pertinente, já que os currículos de Matemática têm se configurado como modelos curriculares
fechados, cujos conteúdos são definidos internamente pela própria Matemática,
impossibilitando interfaces com outras áreas de conhecimento ou mesmo com problemas da
realidade cotidiana que apresentam natureza interdisciplinar.
Lopes (2004b) entende que todo conhecimento é construído de forma situada, em um
contexto específico, de maneira a ser deslocado para situações semelhantes. Para ela, então,
contextualização e interdisciplinaridade se aproximam no documento de Matemática, pois a
aplicação em diferentes contextos requer relacionar conhecimentos de diferentes disciplinas.
A autora acrecenta que, nesse caso, a interdisciplinaridade é garantida na medida em que
42
alguns de seus conceitos podem ser utilizados em outras áreas de conhecimento ou no
cotidiano.
Sintetizando
A leitura dos documentos oficiais nos auxilia a pensar a reforma educacional, mesmo
admitindo que as políticas não a constituam em sua totalidade, a identificar as orientações
desses documentos para a educação brasileira e as relações estabelecidas entre estas
orientações e uma educação de qualidade.
Considerando as exigências atuais da sociedade assim como a vida individual, social e
profissional dos estudantes, é evidente nos PCNEM de Ciências da Natureza e Matemática
que uma educação de qualidade passa pela ênfase dada à preparação para a chegada à vida
adulta e ao exercício da cidadania. Através de conceitos como habilidades, competências,
contextualização e interdisciplinaridade, que norteiam a proposta oficial e são enfatizados ao
longo de todo o texto, o documento visa proporcionar aos estudantes uma maior cultura geral
e uma visão de mundo ampliada, valorizando para isso a utilização das tecnologias associadas
ao processo de ensino e aprendizagem.
Debruçando-nos especialmente sobre cada um dos documentos disciplinares de Física,
Química, Biologia e Matemática, notamos que há aproximações, mas também diferenças
entre eles.
O documento de Física valoriza o desenvolvimento de uma cultura científica eficaz que,
através de conhecimentos contextualizados, forme cidadãos atuantes e participativos na vida
social e preparados para a vida profissional.
O documento de Química valoriza as habilidades e competências para desenvolver a
autonomia nos estudantes e para formá-los enquanto seres humanos e cidadãos através da
compreensão do conhecimento químico. A participação dos jovens no processo de ensino e
aprendizagem, a utilização de conhecimentos contextualizados e os processos tecnológicos
também são valorizados nos PCNEM de Química.
Na Biologia, é possível identificar que a proposta de qualidade passa por aspectos
relacionados à construção de uma visão de mundo, de uma posição autônoma e cidadã, enfim,
pela importância do conhecimento biológico na vida humana. Os conceitos de habilidades,
competências e contextualização, assim como as tecnologias, também são valorizados no
documento de Biologia.
Por último, nos PCNEM de Matemática, são destacados os aspectos formativo e
instrumental da disciplina, visando ao desenvolvimento de capacidades para a vida social e
43
profissional dos estudantes. Os conceitos norteadores da proposta dos PCNEM também são
valorizados no documento da Matemática, embora no caso da interdisciplinaridade, ainda que
haja menção a ela, também é preconizada a organização disciplinar dos conteúdos.
Alguns autores voltados à análise das propostas oficiais nos auxiliaram a pensar
criticamente estes contornos observados nos Parâmetros da área de Ciências da Natureza e
Matemática.
No caso da Física, embora esteja presente uma abordagem contextualizada, os autores
notaram que, ao longo do texto, o documento não consegue romper com o criticado ensino
propedêutico. A contextualização é ampliada ao mundo tecnológico visando à compreensão
do mundo produtivo e a interdisciplinaridade é rejeitada no documento.
No documento de Química, ainda que a proposta oficial pretenda apenas nortear a
prática em sala de aula, o discurso acadêmico chama a atenção para a presença de um discurso
de imposição, que nega o discurso anunciado pela LDBEN de 1996. Também são
denunciados a falta de profundidade no tratamento da teoria e das metodologias e o descaso
com a apresentação e síntese de conceitos complexos, sua aplicabilidade e limitações. Os
autores apontam como pontos positivos da proposta disciplinar de Química a valorização das
habilidades e competências, que pretendem deslocar o ensino baseado apenas em
conhecimentos conceituais para a formação de um cidadão, e a busca pela
interdisciplinaridade e transversalidade. Outro aspecto positivo destacado por eles se refere
ao fato de que este documento é o único da área de Ciências da Natureza e Matemática que
menciona explicitamente a relação entre o conhecimento científico e tecnológico e o
desenvolvimento político-econômico e social.
No documento de Biologia, o discurso acadêmico nota a presença da uma visão
empirista do conhecimento em dissonância com o posicionamento construtivista defendido
em outros momentos. O conceito de contextualização, nesse caso, pouco mencionado e
vinculado à interdisciplinaridade, como se a contextualização fosse contemplada por meio de
trabalhos que abordassem o meio ambiente, também é alvo de crítica pelos autores.
Voltando-se ao documento da Matemática, a presença da interdisciplinaridade é um
ponto positivo da proposta oficial destacado pelo discurso acadêmico, ainda que este e o
conceito de contextualização, por vezes, ao longo do texto, se aproximem. Os autores alertam
para o fato de que o argumento presente em toda a proposta vincula a educação a um modelo
de sociedade que prioriza o processo produtivo. O documento de Matemática, comparado aos
documentos de Física, Química e Biologia, é o que expressa mais claramente uma vinculação
entre a formação por competências e a formação para o mundo produtivo, defendendo que,
44
através da Matemática, é possível formar o aluno para aprender a aprender, competência
necessária à formação para a empregabilidade.
2.3.2 O discurso acadêmico
Nesta seção, apresentamos alguns trabalhos que realizam uma análise crítica das
propostas curriculares oficiais. Identificamos os trabalhos de Arroyo (1988) e Lopes (2002,
2004a e 2004b) como perspectivas vindas do campo da educação, e os trabalhos de Krasilchik
(2000), Ricardo (2003), Rezende e Ostermann (2005) e Ricardo e Zylbersztajn (2008) como a
contribuição da área de educação em Ciências.
Sintetizando um breve histórico, Krasilchik (2000) observa que diversos movimentos
retrataram diferentes finalidades da educação, alteradas de acordo com as transformações
políticas, econômicas, sociais e culturais, tanto nacional quanto internacionalmente, pelas
quais passaram a sociedade. Além disso, a autora afirma que, a cada nova gestão, há um surto
reformista que atinge especialmente os níveis fundamental e médio de ensino.
Segundo Krasilchik (2000), a primeira grande mudança na política brasileira que refletiu
na concepção do papel da escola pode ser ilustrada pela LDBEN 4.024/61. Essa lei fez com
que a escola se tornasse a principal responsável pela formação de toda a sociedade – e não
mais apenas de um grupo de privilegiados – assim como ampliou consideravelmente a
participação das Ciências no currículo escolar, passando a constituí-lo desde o 1º ano do curso
ginasial e, no curso colegial, aumentando consideravelmente a carga horária das disciplinas de
Física, Química e Biologia (KRASILCHIK, 2000). De acordo com a autora, essas disciplinas
passaram a ser o meio de ampliar o espírito crítico dos alunos, preparando-os para pensar de
forma lógica e crítica sendo capazes de decidir baseado em informações e dados ‘científicos’.
Referindo-se ao período da ditadura militar, Krasilchik (2000) chama a atenção para a
modificação do papel da escola, que deixa de enfatizar a formação do cidadão para buscar a
formação do trabalhador, considerado então peça fundamental para o desenvolvimento da
economia do país. Nesta época, com a LDBEN 5.692/71, são vistas com clareza modificações
na educação como um todo e, em consequência disso, outras reformas são propostas também
para o ensino de Ciências, fazendo com que as disciplinas científicas passassem a ter caráter
profissionalizante, o que descaracterizou a função que desempenhavam anteriormente no
currículo, voltada à ênfase na cidadania, para buscar a formação do trabalhador, considerado
fundamental para o desenvolvimento econômico do país (idem).
Segundo Arroyo (1988), as reformas de 1968 e 1971 tentaram unir as duas maiores
funções da escola – capacitar os jovens ao mercado de trabalho bem como prepará-los para a
45
cidadania – no próprio sistema educacional, transferindo a dicotomia existente para o interior
do processo ensino-aprendizagem e separando as disciplinas específicas à formação geral do
cidadão daquelas responsáveis por formar o trabalhador. De acordo com Arroyo (1988), estas
duas reformas incidiram diretamente sobre as disciplinas científicas, que deviam preparar os
estudantes para pensar de forma lógica e crítica bem como enfatizar o caráter
profissionalizante da educação científica.
No final da década de 60 e início da década de 70 foi feita uma enorme crítica ao saber
tradicional transmitido pelo sistema educacional brasileiro, propondo-se um saber moderno,
técnico-científico, útil, prático, capaz de dar conta da formação de profissionais e
trabalhadores eficientes para uma sociedade produtiva (ARROYO, 1988). O autor denuncia
que o discurso da época tentava mascarar qualquer variável voltada aos fenômenos sociais,
políticos e culturais como responsável por um saber acientífico, vulgar e útil apenas para o
divertimento de profissionais pouco sérios. Conforme Arroyo (1988), tentava-se passar para a
sociedade brasileira uma interpretação tecnicista e despolitizada no momento em que a união
entre ciência, técnica, cultura e política se fortalecia como nunca antes na história do país.
No percurso histórico traçado por Krasilchik (2000), o ensino de Ciências em todos os
níveis vai se tornando mais importante na medida em que a ciência e a tecnologia são
reconhecidas como fundamentais para o desenvolvimento econômico, cultural e social, sendo
objeto de incontáveis movimentos de transformação do ensino e servindo também como
estampa de tentativas e efeitos das reformas educacionais. A autora esclarece que, no Brasil, a
ânsia por preparar alunos mais aptos era justificada pela demanda de investigadores
necessários para alavancar o progresso da ciência e da tecnologia nacionais das quais
dependia o país em crescimento industrial. Segundo ela, o objetivo da sociedade brasileira
era, através de uma ciência própria, superar a dependência e se tornar auto-suficiente.
Em 1996, foi aprovada a nova LDBEN, nº 9.394/96, estabelecendo que a educação
escolar deveria ligar-se ao mundo do trabalho e à prática social (KRASILCHIK, 2000). Esta
autora aponta para o fato de que, no Ensino Fundamental, a escola deveria atuar de modo que
o cidadão tivesse “pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo, a compreensão do
ambiente material e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que
se fundamenta a sociedade” (p. 87) e, no Ensino Médio, à escola cabia a função de consolidar
os conhecimentos do indivíduo e prepará-lo para o trabalho e para a cidadania a fim de que
continuasse a aprender.
Krasilchik (2000) destaca que, a partir de então, houve tentativas de colocar em prática
as orientações legais a fim de nortear as práticas educacionais em todo o país através de
46
políticas centralizadas no MEC, delineadas e apontadas em documentos oficiais, fartamente
distribuídos com o nome de ‘parâmetros’ e ‘diretrizes curriculares’. As disciplinas passaram a
ser organizadas em áreas de conhecimento – Linguagens, Códigos e suas Tecnologias,
Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias
– com especificidades acerca de objetivos, conteúdos, avaliações e orientações didáticas em
geral e, para que pudessem ser articulados, os objetivos e conteúdos das diferentes áreas têm
muito em comum. A especificidade de cada área bem como as particularidades do currículo
de cada estado passaram a ser consideradas através dos eixos temáticos, oriundos dos temas
transversais.
Um olhar crítico sobre o discurso desses dois autores acerca das políticas curriculares
aponta que Arroyo (1988) já expunha perspectivas mais amplas sobre as políticas curriculares,
assumindo-as como circunstanciais e atreladas às relações de poder estabelecidas na
sociedade. Por outro lado, Krasilchik (2000) parece assumi-las como um discurso de
autoridade e, ainda que as entenda como reflexo das mudanças sofridas pela sociedade, não
problematiza a relação entre estas mudanças, as propostas oficiais e o que é colocado em
prática, nas escolas, deixando subentendida a ação direta de uma sobre a outra. Percebemos
também que, para Krasilchik, as políticas curriculares surgem como uma iniciativa do Estado,
com caráter estritamente prescritivo, para definir objetivos e tornar evidentes alguns critérios,
estabelecidos como desejáveis. Em outras palavras, segundo esta autora, as políticas nada
mais são que mecanismos de controle, ‘vindos de cima’ com a intenção de determinar a forma
como a qualidade deve ser alcançada. Nesse sentido, também o currículo é concebido como
prescrição, como um elemento fixo e inquestionável, sobre o qual não cabem mudanças.
Adotando uma perspectiva mais abrangente do que as anteriores, Lopes (2004a) admite
que a investigação das políticas curriculares atuais passa pela compreensão das mudanças
político-sociais, econômicas e culturais da sociedade, mas, mais que isso, passa pela
possibilidade de responder a tais mudanças e construir novas interpretações sobre as questões
atuais.
De acordo com esta autora, é possível identificar duas interpretações comuns sobre as
políticas curriculares: ou elas se manifestam de ‘cima para baixo’, muitas vezes impostas de
forma autoritária pelo Estado, ou ‘de baixo para cima’ e sofrem influências diversas durante
sua produção na esfera oficial e também em sua implementação no contexto escolar. Tal
análise foi concebida considerando-se a imensa diversidade teórica e ideológica assumida em
pesquisas sobre políticas de currículo que, segundo Lopes (2004b) podem ser de duas
vertentes distintas: as que tendem a focalizar exclusivamente a esfera social, analisando os
47
determinantes das ações do governo e suas orientações político-ideológicas e as que tendem a
confrontar as políticas sociais com os processos de implementação nos sistemas educacionais,
analisando as discrepâncias entre o proposto e o realizado nas escolas. Estes últimos não
estariam bem encaminhados por considerarem apenas o caráter prescritivo. Para a autora,
seria necessário considerar sempre as possibilidades de reinterpretação das propostas oficiais
no dia a dia dos professores.
Lopes (2004a) traz para o debate a perspectiva de Jallade, para quem o currículo é o
coração de um empreendimento educacional e, por isso, nenhuma política ou reforma
educacional será bem sucedida se não colocá-lo em seu centro. Para Lopes (2004a), embora
as reformas educacionais constituam-se de diversas ações, dentre elas, alterações nas leis, nas
formas de financiamento, na relação entre as diversas instâncias do poder oficial, na gestão
das escolas, nos dispositivos de controle de formação docente e na instituição de processos de
avaliação centrados nos resultados, as mudanças nas políticas de currículo são as que têm
maior destaque e, por isso, acabam por ser analisadas como se representassem a reforma
educacional como um todo.
Lopes (2004a) analisa a reforma educacional brasileira apoiando-se no conceito de
recontextualização de Bernstein ampliado com as considerações de Ball sobre a
recontextualização por hibridismo. Para Ball (apud LOPES, 2004a), as políticas curriculares
são processos de negociação complexos nos quais momentos como a produção dos textos
oficiais, dos documentos curriculares e a prática dos professores devem ser entendidos como
associados. Assim, os textos elaborados nesses momentos não são fechados nem têm sentidos
fixos e claros assim como as políticas educacionais não se encerram nas ações centralizadas
do governo, mas se desenvolvem em todo o corpo social da educação (nas escolas, nos
diferentes níveis da esfera social e nos diferentes contextos pelos quais circulam seus textos)
sendo produzidas e (re)produzidas continuamente por diversas outras ações (secretarias de
estado e municípios, escolas etc.).
Com base nessas ideias, Lopes (2004a) aposta que toda política curricular é também
uma política cultural. De acordo com a autora, o currículo deve ser, então, concebido como
resultado de uma seleção de cultura e espaço de conflitos dessa produção, de batalhas entre
sujeitos, concepções de conhecimento, formas de entender e construir o mundo.
Tomando como exemplo o diálogo entre as políticas curriculares e o currículo posto em
prática pelos professores, Lopes (2004a) prevê ressignificações dos documentos e resistência
aos mesmos durante a prática pedagógica, mas, mesmo admitindo que alguns professores
lêem o texto dos parâmetros com desinteresse ou descrédito, considera ser impossível pensar
48
no cotidiano escolar construído à parte das orientações oficiais. Percebemos que a autora
diferencia a obediência pelos professores ao que é prescrito da influência da legislação sobre
sua prática. Considerar a prática apenas como influenciada pela lei aumenta o grau de
liberdade dos professores.
Traçando um breve panorama da elaboração dos PCNEM, Lopes (2004b) aponta que,
paralelamente à sua construção, foi criado pelo Conselho Nacional de Educação, o documento
das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), como proposta
curricular oficial surgida a partir de interlocuções entre o MEC e o Conselho. A autora
complementa que a proposta de resolução que determinou a organização curricular e a base
nacional comum para o Ensino Médio e que, posteriormente, foi desenvolvida nas DCNEM e
nos PCNEM, apresentou como concepção dominante a de que o mundo do trabalho e a
prática social estão mais exigentes quanto à educação atual, esperando do homem de hoje
flexibilidade, capacidade de adaptação e raciocínio lógico, assim como habilidades de análise
e síntese e agilidade na tomada de decisões.
Lopes (2004b) defende que os textos elaborados pelos membros das equipes
disciplinares das áreas de Ciências da Natureza e Matemática são, obrigatoriamente, resultado
de uma recontextualização dos discursos curriculares primariamente gerados na esfera social.
Além disso, segundo ela, cada um dos documentos expressa recontextualizações diversas das
concepções curriculares oficiais previstas para o Ensino Médio. Todo esse processo, para a
autora, aumenta ou reduz possibilidades de muitas e variadas leituras por parte dos
professores e das escolas.
Lopes (2004b) acredita que, se por um lado a atuação direta de acadêmicos na
elaboração de políticas curriculares junto ao poder central proporciona que estes introduzam
suas teorias e princípios nos cursos de formação de professores, em congressos e publicações
da área, originando políticas também a partir destes espaços, por outro, caso tais acadêmicos
atuem com discursos avessos aos princípios das políticas, podem contribuir para que tais
políticas apresentem outros sentidos. Além disso, para a autora, o fato de os grupos
disciplinares que elaboraram os PCNEM não questionarem os princípios das diretrizes é um
facilitador da aceitação e circulação destes documentos fazendo com que tais grupos tenham
seu status elevado, já que se posicionam distante de propostas alternativas e se aproximam do
discurso pedagógico oficial capaz de influenciar, inclusive, as escolas.
Discursos que enfatizam as competências, o currículo integrado, a gestão escolar
descentralizada, a avaliação como garantia de qualidade podem ser vistos, de acordo com
Lopes (2004a), em diversas políticas em todo o mundo. Para a autora, tais discursos
49
pretendem garantir a veiculação de ideias e/ ou possíveis soluções aos problemas da
educação.
Lopes (2004b) ressalta a possibilidade de existência de diferentes visões dos
elaboradores dos documentos acerca do que representam as competências, destacando que o
currículo por competências é concebido como relacionado às tendências construtivistas, tendo
em vista a superação do currículo conteudista e em busca de uma educação mais ativa,
interdisciplinar e contextualizada, e, em contrapartida, esse mesmo currículo aparece
vinculado a atividades fragmentadas (habilidades) para que seja capaz de ‘servir de medida às
atividades individuais’ além de ser mantida a ideia de que é possível o controle sobre as
atividades de professores e alunos para que a eficiência educacional seja garantida por meio
do controle de metas e resultados.
De acordo com Lopes (2004b), permanece vivo nos PCNEM um discurso que relaciona
a educação ao processo formativo responsável por inserir as pessoas na estrutura social
vigente e em seus processos produtivos. Assim, as competências foram pensadas como
parâmetros necessários à avaliação do Ensino Médio em nível nacional, identificados em
quatro alicerces definidos para a educação do século XXI: aprender a conhecer, aprender a
fazer, aprender a viver e aprender a ser. Nessa perspectiva, segundo Lopes (2004b), a
dimensão cultural dos conteúdos é esvaziada em nome do que Ball (apud LOPES, 2004b)
denominou performatividade, um dos principais elementos do novo paradigma das políticas
educacionais atuais, onde o desempenho é a medida da produtividade, do resultado.
No currículo baseado em competências, conforme Lopes (2004b), os conteúdos não
devem representar o eixo central que o organiza, mas sim devem ser vistos como habilidades
a serem expressas em um saber-fazer. A estrutura curricular calcada nos conceitos de inter e
transdisciplinaridade, também presente no discurso do documento visa uma maior articulação
entre as áreas (Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, Ciências Humanas e suas
Tecnologias e Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias) sem, contudo, segundo
Lopes (2004b), eliminar as disciplinas em si, mas “superando a organização por disciplinas
estanques e revigorando a integração e a articulação dos conhecimentos, num processo
permanente de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade” (BRASIL apud LOPES, 2004b).
Lopes (2004b), no entanto, chama atenção para o fato de que o discurso que regula os
PCNEM aponta para um processo que visa integrar muito mais apoiado pelas competências
do que pela interdisciplinaridade. Para a autora, a linha tênue que separa a disciplinaridade da
interdisciplinaridade marca o discurso dos Parâmetros, dando ao texto a ambiguidade de um
discurso que valoriza tanto a integração quanto as disciplinas isoladas. A autora destaca que
50
no documento há, inclusive, um conflito sobre o que é disciplina, que acirra ainda mais a
tensão entre disciplinaridade e interdisciplinaridade. Para Lopes (2004b), aparece claro no
texto do documento que a interdisciplinaridade não busca ser superior às disciplinas, tendo
como objetivo empregar de maneira útil os conhecimentos das diversas disciplinas a fim de
solucionar um problema concreto ou entender certo fenômeno segundo variadas perspectivas.
Associada à interdisciplinaridade, Lopes (2002) enfatiza que a contextualização é
colocada nos PCNEM como uma bandeira, um de seus conceitos centrais, desenvolvido pelo
MEC através da apropriação de diversos discursos curriculares, nacionais e internacionais,
vindos de contextos acadêmicos, oficiais e das agências multilaterais, sinônimo de progresso e
revolução do ensino.
De acordo com Lopes (2002), a contextualização nos Parâmetros, baseada em
conhecimentos teóricos de Vigotsky e Piaget, se dá a partir da valorização dos saberes prévios
dos alunos. No entanto, a autora alerta para o fato de que, embora na época de sua criação este
conceito não tenha sido dado como eixo do currículo, tal como mais tarde torna-se evidente
nos PCNEM, a contextualização surge como possibilidade de garantir uma educação baseada
em princípios científicos e tecnológicos, onde conceito, aplicação e solução de problemas
concretos são atrelados aos componentes socioculturais.
Lopes (2002) observa que o documento oficial apresenta o conceito de contextualização
explicitamente fundamentado na ideia de aprendizagem situada de David Stein, baseada na
vivência de situações do dia a dia segundo os interesses dos próprios educandos e no
desenvolvimento de atividades desvinculadas da pura transmissão de conceitos, sempre com a
preocupação de retirá-los da condição de espectador. Stein (apud LOPES, 2002) aponta que a
contextualização aproxima-se também da interdisciplinaridade, já que a aplicação em variados
contextos requer relacionar conhecimentos de diferentes disciplinas.
Segundo Lopes (2002), nos PCNEM afirma-se também que a aprendizagem situada
originou-se em programas de preparação profissional. Conforme Lopes (2002), o eficientismo
social dos PCNEM, de uma forma geral, expressa-se em uma relação estreita entre o mundo
produtivo e a educação e “pelas listagens de competências e habilidades, claramente filiadas a
essa tradição do pensamento curricular” (p. 393). Para a autora, ainda permanece viva a ideia
de que a educação deve servir de ferramenta de inserção social, vinculando-se ao mundo
produtivo, sem se preocupar com os questionamentos de como se constituiu e/ou se constitui
este mundo. Na contramão de tudo isso, Lopes (2002) ressalta que o ensino contextualizado
vem sendo bem aceito na comunidade educacional, como mostram trabalhos apresentados em
congressos da área.
51
Lopes (2002) chama a atenção, ainda, para o fato de que o conceito de cotidiano e
valorização dos saberes populares está sendo substituído, de forma muito rápida, pelo
conceito de contextualização, havendo, muitas vezes, a suposição de que se trata do mesmo
enfoque educacional. Segundo ela, tais concepções de ensino contextualizado, relacionadas à
valorização dos saberes prévios dos alunos e dos saberes do senso comum, assim como
relacionadas ao caráter produtivo do conhecimento escolar, contribuem para legitimar os
PCNEM junto à comunidade educacional – ainda que, segundo a autora, tais concepções
estejam imensamente hibridizadas pelos princípios do eficientismo social. Nesse sentido, a
autora considera importante questionar os PCNEM
[...] não apenas pelo fato de ser uma proposta curricular que se insere nas políticas de conhecimento oficial, que visam à homogeneidade cultural e o controle acentuado da educação, com base em princípios de mercado, estabelecidas na atualidade em países que assumem políticas neoliberais. Mas também porque, em seus princípios de organização curricular tão divulgados como representação do novo e do revolucionário no ensino, permanece uma orientação que desconsidera o entendimento do currículo como política cultural e ainda reduz seus princípios à inserção social e ao atendimento às demandas do mercado de trabalho. (LOPES, 2002, p. 396)
A autora pretende demonstrar que, através do conceito de contextualização, os PCNEM
associam a educação para a vida a princípios eficientistas, ou seja, a vida assume um caráter
especialmente produtivo do ponto de vista econômico ao invés de manter sua dimensão
cultural mais ampla.
Lopes (2004a) ressente-se do fato de que, ainda hoje, exista a tendência em se tratar a
educação como atividade econômica, submissa aos interesses do mercado, e não como
formação cultural. Para ela, a educação não deve ser submetida aos critérios ditados por
fatores sócio-econômicos de mercado. A autora acredita que é preciso acabar com o conceito
de que a educação é útil apenas como meio para gerar benefícios econômicos e que, com um
projeto político-pedagógico realmente modificado, o processo educacional deve ser entendido
a partir do seu valor de uso, ‘como produção cultural de pessoas concretas, singularidades
humanas capazes de se constituírem em sujeitos globais e locais em luta contra desigualdades
e exclusões sociais’.
Ainda que a autora confira a toda política curricular um caráter também cultural,
entendendo o currículo como resultado de uma seleção da cultura, denuncia que o vínculo
entre educação e formação para o trabalho ainda é vigente nos PCNEM, o que mantém viva a
tendência em tratar a educação como meio de alcançar os interesses impostos pelo mercado e
não como formação cultural. Nesse sentido, a performatividade (BALL apud LOPES, 2004b),
52
um dos principais elementos das políticas educacionais atuais, voltada para a produtividade e
o resultado, atua no sentido contrário à dimensão cultural dos conteúdos.
O enfoque de Lopes concebe a recontextualização como um fenômeno presente na
produção e implementação da reforma curricular do Ensino Médio, enfatizando que a leitura
dos documentos pode variar de acordo com a escola, com a área ou com a região em que
serão adotados. Tal processo prevê o surgimento de novos sentidos aos documentos oficiais
não necessariamente previstos inicialmente, o que é reforçado pelo fato de que os textos
oficiais são resultado da recontextualização de discursos curriculares gerados paralelamente
na sociedade e, por isso, produções coletivas.
Ao descreverem o processo de elaboração dos PCNEM da área de Ciências, Ricardo e
Zylbersztajn (2008) não utilizam conceitos como o de recontextualização. No entanto, os
autores destacam, tal qual Lopes (2004b), a influência mútua entre as equipes disciplinares
que elaboraram os PCNEM e certa ruptura entre os documentos. A partir de entrevistas com
os autores dos documentos, Ricardo e Zylbersztajn (2008) apresentam o processo de
construção das DCNEM e dos PCNEM e referem que houve influência mútua entre as
equipes que os elaboraram. Por outro lado, também afirmam que houve certa ruptura entre
ambos os documentos, o que pode ser evidenciado, por exemplo, pelo papel que cada um
deles atribui ao mundo do trabalho. Apoiando-se em argumentos da teoria crítica do currículo,
Ricardo e Zylbersztajn (2008) destacam o quanto o discurso das DCNEM submete a formação
a ser dada pela escola às necessidades do mundo produtivo.
Para Ricardo e Zylbersztajn (2008), a noção que parece ter orientado a elaboração dos
documentos foi a de que o Ensino Médio é mais que uma transferência de informações
visando a preparação para o vestibular. Através da linguagem das competências, os autores
revelam o quanto os PCNEM enfatizam a importância do conhecimento para a vida do
indivíduo, também para além do ambiente escolar.
Segundo Ricardo e Zylbersztajn (2008), a introdução do conceito de competências nos
documentos oficiais foi proposta pelo MEC e não iniciativa dos autores dos documentos,
ainda que alguns deles tenham afirmado explicitamente que esse conceito estava
perfeitamente de acordo com o que pensavam. Ao adotarem um currículo orientado por
competências, de acordo com Ricardo e Zylbersztajn (2008), os PCNEM e as DCNEM são
alvos de diversas críticas que afirmam um esvaziamento do conteúdo. Todavia, para os
autores, fica claro que os autores dos documentos não concordam com tal crítica e acreditam
ser possível aliar o conteúdo à noção de competências uma vez que estas não excluem os
conteúdos específicos de cada disciplina e, mais do que receber e acumular informações, é
53
preciso saber o que fazer com elas, ou seja, operar com as informações de cada disciplina
também passa a ser um conteúdo escolar.
Ricardo e Zylbersztajn (2008) também destacam o quanto as finalidades educacionais
contempladas pelo discurso oficial aparecem associadas ao mundo do trabalho e atribuem ao
currículo por competências o esvaziamento do conteúdo e a ênfase à dimensão
profissionalizante.
Ricardo e Zylbersztajn (2008) defendem que a diferença entre os conceitos de
competências e habilidades, na forma como aparecem nos documentos oficiais, é confusa.
Ressaltam inclusive, que os autores dos documentos demonstram ter dificuldades em
estabelecer essa diferença.
Já quanto à interdisciplinaridade, Ricardo e Zylbersztajn (2008) afirmam que os autores
dos documentos esclarecem que o conceito não foi utilizado de acordo com nenhum dos
significados mais comumente aceitos na pesquisa educacional (de oposição às disciplinas,
abordagem temática ou trabalho com projetos) e o sentido que pretendiam era o de diferentes
disciplinas trabalhando juntas tendo por objetivo as mesmas competências e habilidades. Para
Ricardo e Zylbersztajn (2008), a motivação para a adoção da interdisciplinaridade seria a
intenção de contextualização, princípio que sugere que situações reais são de natureza
complexa e, portanto, o esforço de contextualizar o conhecimento levaria necessariamente a
um trabalho interdisciplinar.
Sobre o conceito de contextualização, Ricardo e Zylbersztajn (2008) afirmam que não se
pretendia que este fosse limitado à aplicação do que foi aprendido em situações concretas.
Mais que isso, os autores esclarecem que a intenção era dar sentido ao que fosse ensinado,
embora a necessidade de uma visão mais ampla da contextualização não apareça de maneira
explícita nos documentos – dando lugar a uma visão mais restrita, que frequentemente chega
às salas de aula. Acrescenta-se a isso o risco da contextualização ser reduzida à busca da
aplicação imediata e à formatação para o mundo do trabalho, dando ao Ensino Médio uma
ênfase profissionalizante, como parece ser a tendência do texto da LDBEN (RICARDO e
ZYLBERSZTAJN, 2008). Tal perspectiva, segundo estes autores, foi superada nos PCN+, a
partir de um entendimento menos obscuro da contextualização, em que a dimensão social
deste conceito não é reduzida ao cotidiano próximo ao estudante.
Ricardo e Zylbersztajn (2008), aproximando-se de Lopes (2002), alertam para o risco de
o conceito de contextualização significar a formação do sujeito para o mundo do trabalho,
conferindo ao nível médio de ensino um cunho profissionalizante.
54
Abordando a problemática da contextualização do conteúdo de Física, Rezende e
Ostermann (2005) mostram o quanto esta questão é nitidamente influenciada pela reforma
curricular oficial e que, em trabalhos acadêmicos da área de ensino de Ciências, muitas vezes
o conceito de contextualização é a principal referência teórica. As autoras concluem que, de
maneira geral, há uma aceitação acrítica dos Parâmetros, seja por parte dos professores seja
por parte dos pesquisadores, e uma falta de reflexão teórica acerca do significado e do papel
da contextualização no processo ensino-aprendizagem de Física.
Ricardo (2003) alertava para a distância entre o que está proposto nos documentos
oficiais e a prática escolar. O autor acredita que superar esta limitação tem se mostrado
bastante difícil devido a diversos fatores, tais como problemas na formação inicial e
continuada dos professores, pouca disponibilidade de material didático-pedagógico, estrutura
verticalizada dos sistemas de ensino e incompreensão por parte dos docentes acerca dos
fundamentos da lei, das Diretrizes e dos Parâmetros.
A fim de tentar superar a estrutura atual da escola e sua hierarquia verticalizada bem
como transpôr as dificuldades de entendimento, Ricardo (2003) considera como imperativo
que os docentes leiam, reflitam, discutam e avaliem as propostas oficiais para que sejam
promovidas mudanças efetivas na prática pedagógica. Dessa maneira, segundo o autor, o
professor minimiza as chances de ser ‘enganado’ por tais documentos, a partir de discussões
isoladas e fragmentadas, e posiciona-se como ator principal da reforma, deixando de ser mero
executor de programas impostos. Ainda que sejam fundamentais, para Ricardo (2003), no
entanto, tais atitudes não são suficientes, já que as propostas por si só não são capazes de
modificar as práticas em sala de aula. Para o autor, cabe ao professor refletir e avaliar tais
propostas a fim de promover reorientações e mudanças significativas.
Ao atribuir a dificuldade de implementação das propostas em sala de aula à dificuldade
dos professores em compreender os principais conceitos norteadores dos Parâmetros, tais
como competências, interdisciplinaridade e contextualização, podemos notar que, para
Ricardo (2003), fica implícito o caráter prescritivo da legislação, o que implica uma
conceituação de currículo como listagem de conteúdos previamente estabelecidos a serem
seguidos pelas escolas.
Sintetizando
Para que possamos entender como têm sido tratadas questões sobre as finalidades da
educação e, consequentemente, compreender a qualidade da educação e, mais
especificamente, do ensino de Ciências, também recorremos ao discurso acadêmico sobre as
55
reformas curriculares no Brasil. Baseados neste debate procuramos estabelecer algumas
relações possíveis entre currículo, PCNEM e qualidade.
Quanto aos princípios norteadores da proposta oficial, o discurso acadêmico ressalta que
se por um lado os PCNEM propõem ir além da formação conteudista ressaltando a
importância do conhecimento para fora da escola, em contrapartida, o conceito de
contextualização, tão enaltecido no documento, desconsidera a dimensão cultural mais ampla
do processo educativo escolar e estabelece uma relação entre a educação e o mundo produtivo
juntamente com o conceito de competências.
Notamos que uma das concepções evidenciadas se refere às políticas curriculares como
discurso de autoridade, com caráter prescritivo que determina a forma como uma educação de
qualidade deve ser atingida. O currículo, nesse caso, se apresenta como uma lista de
conteúdos (ou habilidades e competências) a ser seguida nas escolas, estabelecida por
documentos oficiais, que limita, portanto, a liberdade dos professores e destacada dificuldade
de compreensão dos principais princípios norteadores dos PCNEM por parte dos professores.
Relacionamos essa concepção de política curricular à qualidade técnica voltada aos
aspectos ditados por fatores econômicos do mundo produtivo, que privilegia uma pequena
parte da sociedade e valoriza o alcance de resultados quantitativos, visando à adequação e
fortalecimento do mundo produtivo.
Outra concepção identificada aborda as políticas curriculares como atreladas às
circunstâncias sociais e às relações de poder presentes na sociedade, guardando a ideia de que
a sociedade assim como o sistema educacional, as escolas e todos os seus agentes influenciam
a construção e disseminação dessas propostas.
Essa concepção de política curricular pode ser vinculada à qualidade como direito de
todos, atingida através de alterações profundas tanto no âmbito social quanto no âmbito
educacional, visando não apenas a melhoria de aspectos internamente relacionados à escola,
mas também a melhoria das condições de vida de grupos socialmente desfavorecidos.
Tornou-se evidente que a relação entre o que é proposto pelos documentos oficiais e o
que se pratica em sala de aula poderá ser estabelecida a partir de embates entre concepções
políticas e econômicas diferenciadas, que permeiam a sociedade, não sendo a qualidade
determinação exclusiva da classe dominante. Esta percepção está de acordo com a ideia de
que a legislação é sempre reinterpretada pelos professores, com vistas à elaboração de
propostas adequadas a cada realidade. Nesse caso, as políticas curriculares não se resumem
apenas aos documentos escritos circulantes no campo da educação, mas são produções para
além das instâncias governamentais. Isso não significa, contudo, desconsiderar o poder
56
privilegiado que o Estado possui na produção dos sentidos das políticas curriculares, mas
considerar que as práticas e propostas desenvolvidas nas escolas também são produtoras de
sentidos para tais políticas.
2.4 CURRÍCULO, ENSINO DE CIÊNCIAS E QUALIDADE
Nesta seção, nos voltamos especialmente a autores representativos da pesquisa na área
de ensino de Ciências para refletir sobre o currículo, buscando, de início, identificar as
principais finalidades abarcadas por ele, as possibilidades de mudanças e suas consequências
para a sociedade dos dias de hoje. Num segundo momento, apontamos os diferentes sentidos
de qualidade apresentados pelo discurso acadêmico, tentando estabelecer relações possíveis
entre currículo, políticas curriculares e qualidade do ensino de Ciências.
Segundo Lemke (2005), o currículo de Ciências tradicionalmente praticado nos dias de
hoje tem se comprometido essencialmente com a formação de trabalho técnica e
cientificamente preparada, enfatizando sobremaneira a aquisição de princípios gerais e
abstratos, o que leva a um esvaziamento da educação científica visto que desconsidera as
preocupações cotidianas de estudantes de todas as idades, além de voltar as costas para a
sociedade.
Análises das políticas curriculares brasileiras confirmam que a educação e a formação
de um cidadão crítico e autônomo têm sido impulsionadas por interesses políticos e
submetidas ao mundo do trabalho (LOPES, 2001, 2002, 2004a, 2004b). Na educação
científica especificamente, esta orientação tem, segundo Lemke (2005), excluído parte da
população ao enfatizar excessivamente a aquisição de princípios gerais e abstratos, bem como
vem contribuindo para o isolamento da educação científica das preocupações diárias de
estudantes de todas as idades, interesses e culturas.
Pode-se afirmar que a produção na área de ensino de Ciências já dispõe de um
conhecimento considerável no sentido de apontar caminhos para a qualidade da prática
docente e da aprendizagem. No entanto, a pesquisa parece dedicar-se pouco à reflexão sobre o
currículo e sobre as políticas educacionais como caminho para se atingir a qualidade, o que
pode ser visto como preocupante e um tanto quanto contraditório visto que, de um modo
geral, as políticas educacionais influenciam os objetivos da educação. Os poucos estudos
sobre currículo têm enfatizado, segundo Lopes (2004b), aspectos metodológicos e
epistemológicos, desconsiderando a educação como campo de produção cultural e, portanto,
intrinsecamente político e social. São desconsideradas, também, as especificidades do
57
conhecimento escolar, determinando, desse modo, que as finalidades sociais da escolarização
sigam a lógica do conhecimento científico de referência.
Um levantamento recente realizado na Revista Brasileira de Pesquisa em Ensino de
Ciências mostrou que menos de 16% dos trabalhos publicados no período de 2004 a 2008
abordavam essa temática (CARVALHO et al., 2009). Considerando que esta publicação tem
importância reconhecida na área de pesquisa em educação em Ciências e que a discussão
sobre currículo está pouco presente, interpretamos este resultado como um indício de sua
pouca representatividade nessa área. Foram encontrados estudos sobre a abordagem Ciência-
Tecnologia-Sociedade (CTS), um trabalho sobre as concepções epistemológicas presentes nos
Parâmetros Curriculares Nacionais e sobre interdisciplinaridade. Outros trabalhos destacaram
questões relacionadas à natureza e/ou à história das Ciências, o papel do livro didático no
processo de inovação curricular e a questão da formação para a cidadania. Estes últimos não
seriam categorizados como trabalhos sobre currículo caso fosse utilizada uma conceituação
mais estreita, como, por exemplo, currículo entendido como teoria ou como programa de
ensino prescritivo, o que diminuiria ainda mais a porcentagem de trabalhos sobre o tema.
Percebemos que, a exemplo do conjunto analisado, o tema currículo tem recebido pouca
atenção nas publicações em periódicos da área de ensino de Ciências. Nos eventos da área,
também notamos vestígios que apontam a temática ‘políticas educacionais’ como a que, em
geral, recebe menos trabalhos, o que é ainda mais preocupante dada a influência que tais
políticas exercem na regulação e controle do currículo. É possível dizer que a abordagem
Ciência-Tecnologia-Sociedade, considerada como ‘ênfase curricular’, é o tema que mais
diretamente tangencia o currículo como objeto de estudo na área de educação em Ciências
(CARVALHO et al., 2009).
Estudos sobre esta abordagem defendem um currículo que explore a relação entre
Ciência, Tecnologia e Sociedade e apontam como principal proposta preparar os estudantes
para o exercício da cidadania (SANTOS e MORTIMER, 2002). Por outro lado, estes autores
chamam a atenção para o fato de que uma reforma curricular com ênfase em CTS requer
mudanças de concepções do papel da educação e da educação em Ciências ou estaremos
incidindo no erro de apenas maquiar os currículos atuais com algumas aplicações de temas
sociais do cotidiano.
Há, no entanto, outros estudos que tangenciam a área do currículo, abordando a reflexão
sobre as finalidades da educação em Ciências, tendo em vista os problemas enfrentados pela
sociedade no século XXI, tais como a crise ambiental, a injustiça social e a opressão e
injustiça invisíveis para os mais jovens. No Brasil, um estudo sobre o discurso dos professores
58
das Ciências de nível médio de diversas regiões do país sobre os objetivos da educação
mostrou várias perspectivas, sendo a dominante aquela que associa os objetivos do ensino de
Ciências apenas à realidade natural ou apenas ao indivíduo. O individualismo percebido em
um significativo número de objetivos e propostas pode ser identificado como uma
característica marcante da sociedade capitalista (REZENDE et al., 2008). Os resultados
mostram a emergência em envidar todos os esforços necessários no sentido de ampliar a
relação entre o ensino de Ciências e as questões da sociedade atual, tanto para promover
inovações curriculares quanto para garantir a formação continuada do professor de Ciências.
Banet (2007), num estudo realizado com professores do ensino secundário espanhol,
pesquisou as prioridades do ensino de Ciências no que se refere aos conteúdos abordados. O
autor apontou a ênfase dada ao ensino propedêutico, conteudista, que visa apenas a
preparação para um ensino mais completo, como um resultado preocupante. Também no
estudo de Furió et al. (2001) já se notava a preocupação em refletir sobre novos rumos para o
ensino de Ciências. Numa investigação acerca das concepções dos professores sobre os
objetivos da educação, os autores pretendiam, além de elaborar um novo currículo, contribuir
para a reflexão e a construção de conhecimentos didáticos inovadores. Segundo Furió et al.
(2001), as conclusões apontaram para uma formação, recebida pelos estudantes durante o
ensino secundário, centrada na elaboração de conceitos, princípios e leis específicas das
disciplinas que não considera os anseios da sociedade atual e que ignora outros aspectos
importantes da formação dos estudantes, tais como os percursos que retratam sua atividade
científica. Dessa maneira, não há uma educação em Ciências adequada nem tampouco são
atendidas as necessidades formativas dos cidadãos consideradas satisfatórias para os dias de
hoje.
Para Lemke (2005), a educação deve contribuir para a melhoria da vida social. O autor
enfatiza que os objetivos do ensino de Ciências não podem ser meramente técnicos, mas
devem estar atrelados aos objetivos da educação em geral e do que seja necessário para uma
sociedade melhor e uma vida mais satisfatória para as pessoas. O autor defende que o ensino
de Ciências deve voltar-se às questões e problemas sociais que serão enfrentados por todos
nós no século XXI e acredita que é preciso tomar atitudes políticas e morais ou seremos
julgados, quer pelos estudantes quer pela história, como socialmente descomprometidos e
irresponsáveis.
Na década de 80, Arroyo (1988) já propunha a revisão do ensino de Ciências e de cada
um dos componentes do processo ensino-aprendizagem – os professores, os alunos, os
conteúdos, os livros didáticos, os processos de transmissão e avaliação e os contextos de sala
59
de aula e laboratórios – chamando a atenção para o fato de que tais componentes são
inseparáveis dos fenômenos sociais e políticos da produção, reprodução e uso da Ciência e
das técnicas, tanto nos processos gerais como nas especificidades da formação social do
sujeito. Em outras palavras, o que o autor apontava é que não se pode refletir sobre o ensino
de Ciências apenas como se ele fosse um processo estritamente pedagógico, epistemológico
ou cognitivo, nem mesmo como uma busca de diálogo respeitoso entre saber científico
acumulado pelo estudante e saber científico historicamente acumulado e sistematizado.
Arroyo (1988) também chamou a atenção para o fato de que os estudantes são os
maiores prejudicados por um ensino de Ciências voltado estritamente a promover formas de
pensar meramente técnicas, empobrecidas e formais. Segundo o autor, na fase em que o
jovem está construindo suas concepções básicas acerca do social, do trabalho e das relações
entre homem e natureza, acaba por ser privado de uma formação mais global que o permita
compreender e, mais que isso, que o permita tornar-se parte das complexas relações sociais,
históricas, políticas e culturais.
Ainda hoje, porém, tanto a valorização da formação conteudista quanto o predomínio de
uma ideologia que concebe a aprendizagem abstrata como mais ‘nobre’ que a aprendizagem
prática (WALKERDINE apud LEMKE, 2005) têm contribuído para um currículo de Ciências
que ressalta a ênfase na aquisição de conceitos e seu afastamento de questões relativas à
realidade social. Para reverter essa situação, seria necessário, para Lemke (2005), que
algumas questões amplas a respeito dos objetivos do ensino estejam na base de toda e
qualquer discussão séria sobre como promover efetivamente uma mudança no ensino de
Ciências do século XXI. Nesse sentido, repensar a educação científica requer
fundamentalmente, reflexões sobre o currículo, sobre as finalidades do ensino de Ciências,
dadas em geral pelas políticas curriculares, bem como sobre o significado da educação em
Ciências e da Ciência nos dias atuais.
Estes autores nos ajudam a identificar, por trás das políticas curriculares e do currículo
de Ciências efetivamente seguido nas escolas, o quanto estes instrumentos estão atrelados ao
objetivo de garantir a formação técnica e científica dos estudantes para o mercado de trabalho,
desconsiderando, ou considerando em menor grau do que deveriam, outros aspectos sociais
que a educação científica pode (e deve) discutir. Uma das hipóteses levantada por eles é a de
que tais políticas são elaboradas tomando como base interesses políticos e econômicos,
valorizando sobremaneira o mercado de trabalho na formação dos estudantes e, em
decorrência disso, ignorando a importância da educação científica para o sujeito enquanto
cidadão.
60
Ao priorizar os aspectos metodológicos e epistemológicos para garantir a eficiência dos
processos de ensino-aprendizagem e, por conseguinte, sua suposta qualidade, a pesquisa em
educação em Ciências assume a qualidade enquanto qualidade da aprendizagem sem ver
como necessária a reflexão sobre seus objetivos, assumindo-os como evidentes ou como a
formação de quadros técnicos necessários ao desenvolvimento científico e tecnológico e ao
mercado (REZENDE et al., 2010). Para os autores, esta falta de questionamento dos objetivos
do ensino de Ciências parece desconsiderar a educação como campo intrinsecamente político
e social o que, por conseguinte, deixa a discussão sobre qualidade passar ao largo desses
aspectos. Este sentido, segundo eles, relaciona a educação de qualidade a pressupostos
técnicos do processo ensino-aprendizagem, como a quantidade dos conteúdos e a forma como
são ensinados, estabelecendo um compromisso apenas com a aprendizagem individual.
É possível observar essa tendência na área de Física, por ter sido esta, entre as Ciências
Naturais, a precursora no desenvolvimento de pesquisas em ensino. De acordo com o
mapeamento recentemente realizado por Rezende et al. (2009), o estado da arte da produção
nacional sobre o ensino de Física concentra-se na temática ensino-aprendizagem, apoiando-se
sobre um tripé: propostas de metodologias e estratégias de ensino, desenvolvimento de
experimentos para o laboratório didático e elaboração de recursos didáticos para a sala de
aula. As autoras interpretam essa configuração da área como “a expressão de uma visão
instrumentalista da pesquisa em ensino e muitas vezes tecnicista do processo educativo, que
visa basicamente ao fornecimento de subsídios ao professor para melhorar o desempenho do
aluno” (p. 5).
Levando em conta que, assim como a Física, as áreas de Biologia, Química e
Matemática tenham priorizado o desenvolvimento e a pesquisa das dimensões metodológica e
epistemológica do ensino, é possível vislumbrar que a produção já alcançou um nível de
conhecimento importante no sentido de indicar direcionamentos para a qualidade da prática
docente e da aprendizagem como, entre outros, a necessidade de considerar o conhecimento
prévio do aluno, a necessidade de mudar a crença epistemológica empirista impressa no
ensino de Ciências, a necessidade de fomentar interações dialógicas e caminhos para
incorporação das tecnologias da informação e comunicação no ensino.
Entretanto, esta área dá sinais de que pouco tem considerado as políticas educacionais
como implicadas no atingimento da qualidade. Ainda que pesquisadores tenham se envolvido
com a elaboração dos PCNEM no final da década de 90 e que haja alguns trabalhos sobre a
legislação, parece haver pouca reflexão sobre as políticas curriculares na área da pesquisa em
ensino de Ciências, conforme indícios presentes nos estudos de Rezende et al. (2010). Talvez
61
justamente a falta de reflexão tenha como consequência o fato de que em muitas pesquisas da
área, diretrizes destes documentos são citadas para validar ou justificar o trabalho e que,
assim, a produção acadêmica se volta para o atendimento e divulgação das propostas
curriculares oficiais (REZENDE e OSTERMANN, 2005), assumindo-as como padrão de
qualidade.
Tentando encontrar outros sentidos, ainda que implícitos, na discussão sobre qualidade,
recorremos a Fourez (2003), que aborda os problemas enfrentados pelo ensino de Ciências
nos dias de hoje e aponta a qualidade da educação a partir de sua falta de qualidade,
apresentando como principais atores da ‘crise do ensino de Ciências no mundo
industrializado’, os alunos, os professores de Ciências, os dirigentes do país, os pais, enfim, os
cidadãos de modo geral.
Este autor alerta sobre a necessidade de um ensino de Ciências que ajudasse os
estudantes a entender o mundo deles e, não, aquele que os obrigasse a perceber o mundo tal
qual os cientistas. Para Fourez (2003), os jovens desejam um ensino de Ciências que não
esteja centrado nos interesses de outros (quaisquer que sejam estes outros, os cientistas ou o
mundo industrial, por exemplo), mas voltado para seus próprios interesses. Em contrapartida,
o autor chama a atenção para uma questão importante: os professores são capazes de
promover uma educação científica nesse sentido?
De início, Fourez (2003) identifica alguns obstáculos que atingem os professores e os
impedem de cumprir seu papel na direção de uma educação científica adequada aos dias de
hoje. Um deles se refere à crise pela qual vem passando a escola bem como à perda de poder e
de consideração da profissão docente – tais problemas, infelizmente, não dizem respeito
apenas aos professores de Ciências, mas a todos os demais professores. Além disso, outro
desafio, segundo o autor, próprio dos professores de Ciências, se trata de mostrar aos
estudantes o sentido que efetivamente pode haver em, hoje em dia, um jovem estudar
Ciências. Para Fourez (2003), este desafio é, sem dúvida, difícil de ser transposto visto que a
formação do professor passa ao largo deste ponto bem como há uma defasagem entre esta
formação e as exigências da situação posta.
Fourez (2003) afirma que os dirigentes políticos lamentam a redução do número de
estudantes que ingressam em carreiras com intensa base científica, visto que essa queda
reflete diretamente na produção de riquezas em quantidades que satisfaçam as necessidades
da sociedade. Sem uma análise mais apurada da situação, o autor posiciona os pais dos
estudantes frente à crise do ensino de Ciências e relata que, receosos com o futuro dos filhos,
eles acabam por concordar com o ponto de vista do mundo econômico. Nesse sentido, alerta
62
para o fato de que têm sido minimizadas as causas culturais do desinteresse observado e que,
considerando o conjunto de cidadãos, o que realmente importa é o desenvolvimento das
técnicas médicas, da informática ou a conquista do espaço.
Como pano de fundo da crise em que se encontra a educação científica, Fourez (2003)
aponta diferentes controvérsias quanto às finalidades e métodos do ensino de Ciências e
apresenta de maneira polarizada as tensões relativas a este debate (tais como a quantidade de
matéria versus a qualidade da formação e uma alfabetização científica e tecnológica voltada
para os interesses individuais ou outra voltada para a coletividade) a fim de estruturar os
discursos de justificação de boa parte das práticas de ensino-aprendizagem.
Ao refletir sobre todos esses aspectos e apontando a qualidade pela ausência da mesma,
Fourez (2003) admite que a qualidade dos conteúdos pode ter consequências importantes
sobre a qualidade do ensino de Ciências. A ‘qualidade dos conteúdos’ se volta à seleção de
algumas questões particulares do ensino de Ciências para compôr o programa, com vistas à
aprendizagem do método científico pelos estudantes e, consequentemente, com o objetivo de
permitir que compreendam o mundo que os cerca.
O discurso de Fourez (2003) parece avançar em relação ao sentido técnico de qualidade
atribuído à qualidade do processo ensino e à aprendizagem e em relação aos conteúdos
relevantes para os jovens de hoje.
Na busca por trabalhos que discutissem currículo e qualidade da educação em Ciências,
ainda que sem mencionar estas palavras, encontramos os estudos sobre as abordagens
curriculares com ênfase na relação Ciência-Tecnologia-Sociedade como uma das
aproximações possíveis e que mais diretamente tangencia o currículo como objeto de estudo.
Essa abordagem parece estabelecer um cruzamento entre currículo de Ciências e uma
determinada concepção de qualidade, considerando como sua finalidade a formação e a
alfabetização cientifica dos estudantes com o olhar na direção da coletividade. Havendo, no
entanto, diferentes formas de concebê-la, nos detivemos em contemplar as concepções que
identificamos como as mais representativas na área.
Auler e Bazzo (2001) trouxeram para a discussão a influência dos meios de
comunicação sobre as relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Segundo os autores,
muitas mensagens veiculadas pela mídia apontam o desenvolvimento científico-tecnológico
como algo irreversível, o que exclui a possibilidade de alterar o ritmo dos acontecimentos e,
consequentemente, afasta a sociedade de qualquer participação mais expressiva nas decisões
que envolvem seu destino. Recorrendo a Fourez, os autores apontam um aspecto ignorado
63
neste processo, o qual destaca que, ao adotar uma determinada tecnologia, adota-se também
um determinado modelo de sociedade.
Em consequência da ausência de um projeto de nação brasileira, tanto no modelo agro-
exportador quanto no de industrialização, bem como de um Estado predominantemente
autoritário, que inviabiliza a participação mais efetiva do povo brasileiro em grande parte das
decisões, Auler e Bazzo (2001) ressentem-se do fato de não haver, no Brasil, uma articulação
dinâmica entre ciência, tecnologia e sociedade. Nesse sentido, apontando o que deve ser
considerado no contexto educacional brasileiro, esses autores alertam para o fato de estarmos
educando para uma falsa cidadania se considerarmos que, nos contextos em que surge o
movimento CTS, há mecanismos de consulta popular para avaliar e influenciar as decisões
relativas à ciência e tecnologia, inexistentes no contexto brasileiro.
Entendendo que o modelo de sociedade adotado influencia diretamente o sistema
educacional, Auler e Bazzo (2001) defendem que, para que os objetivos do movimento CTS
sejam assumidos de forma crítica, é imprescindível, além de conhecimentos e informações,
algo que ainda não se vê no contexto brasileiro, a permissão e estímulo a uma cultura de
participação da sociedade sobre as decisões científicas e tecnológicas.
Angotti e Auth (2001) associaram a crescente evolução e utilização de novas
tecnologias, as quais colocam os indivíduos frente a novos desafios que, para eles, a maioria
da população não está preparada para enfrentar, ao desenvolvimento de atividades
pedagógicas educacionais voltadas para uma alfabetização científica e tecnológica, sempre
atenta às concepções, valores e atitudes dos indivíduos nas suas ações em sociedade.
Sob esse ponto de vista, os autores apontam que, com os currículos, as metodologias e
os processos político-pedagógicos atualmente priorizados no espaço escolar formal, o
entendimento de problemas como os ambientais, por exemplo, limita-se a uma visão
naturalista. Angotti e Auth (2001) lamentam que dimensões importantes da vida, tal como a
educação para um presente e futuro de melhor qualidade de vida para todos, sejam ainda
incipientes no âmbito escolar e defendem um ensino de Ciências voltado para uma
alfabetização mais crítica em ciência e tecnologia, comprometida e de relevância social,
visando ampliar as condições para o exercício da cidadania e possibilitar o enfrentamento de
problemas que nos desafiam ou nos são impostos no dia a dia, seja nas aulas de Ciências, seja
nas relações pessoais, familiares, profissionais etc.
Angotti e Auth (2001) sustentam seus argumentos em prol do desenvolvimento de
atividades pedagógicas voltadas à alfabetização científica e tecnológica, sem, no entanto,
perder de vista os valores e atitudes dos sujeitos e suas ações na sociedade. Essa abordagem
64
permitiria aos estudantes uma visão mais crítica da ciência e das tecnologias, comprometida
com a coletividade e de relevância social, bem como ampliaria as condições para exercerem
sua cidadania e enfrentarem os problemas aos quais são submetidos diariamente.
Para Santos e Mortimer (2001), um currículo tem ênfase em CTS quando trata das
interrelações entre explicação científica, planejamento tecnológico e solução de problemas e
tomada de decisão sobre temas práticos de relevância social. Entendendo que não existe a
neutralidade científica bem como é inconcebível a ideia de uma ciência que desconsidere seus
efeitos e aplicações, Santos e Mortimer (2002) apontam a atenção que estudos sobre ciência,
tecnologia e sociedade têm recebido e, por consequência, a influência desta discussão sobre os
currículos das disciplinas científicas de todo o mundo. Apoiados nas ideias de Santos e
Schnetzler, os autores apresentam como principal proposta dos currículos com ênfase em CTS
alfabetizar os cidadãos em ciência e tecnologia como uma exigência do mundo
contemporâneo, não apenas apresentando-lhes as maravilhas da ciência, mas disponibilizando
representações que lhes permitam agir, tomar decisões e entender o que está em jogo no
discurso dos especialistas.
Santos e Mortimer (2002) destacam que, no currículo CTS, uma visão crítica de ciência,
cada vez mais multidisciplinar e reflexiva, busca dissipar a tradição de um cientificismo que
ideologicamente auxiliou a consolidação da submissão da ciência aos interesses do mercado
em busca do lucro. Além disso, segundo eles, nessa proposta, a tecnologia pode ser entendida
como o conhecimento que nos permite exercer controle e transformar o mundo enquanto a
sociedade constitui o local onde surgem os temas científicos ou tecnológicos problemáticos
do ponto de vista social.
De acordo com Santos (2007a), o movimento CTS se refere a uma reflexão crítica
acerca das relações entre ciência, tecnologia e sociedade8. Para o autor, a ascenção deste
movimento9, na década de 1970 se deve ao aumento dos problemas ambientais e das
discussões sobre a natureza do conhecimento científico e seu papel na sociedade.
Além destes fatores, Waks (apud SANTOS e MORTIMER, 2002) traz para o cenário
alguns outros que, segundo ele, promoveram as condições necessárias ao surgimento de
propostas de ensino CTS: a conscientização de muitos intelectuais acerca das questões éticas, 8 Considerando que esta proposta incorpora uma perspectiva de reflexão sobre consequências ambientais, mais tarde, ela passou a se chamar Ciência-Tecnologia-Sociedade-Ambiente (CTSA) (Santos, 2007a). Porém, o fato de não necessariamente serem consideradas ou priorizadas questões ambientais nas discussões sobre CTS, fez com que este autor optasse por utilizar esta denominação, mais usual na literatura da área, recorrendo à denominação CTSA apenas quando desejasse enfatizar a perspectiva de educação ambiental. 9 Propostas de cursos de Ciências com ênfase em CTS propriamente dito, segundo Santos (2007a), só começaram a surgir no Brasil a partir da década de 1990, com o desenvolvimento de dissertações de mestrado e teses de doutorado e a publicação de artigos e livros sobre o assunto.
65
a qualidade de vida da sociedade industrializada, a emergência de participação popular nas
decisões públicas, estas cada vez mais controladas por uma elite que retém o conhecimento
científico, e, acima de tudo, o medo e a frustração advindos dos excessos tecnológicos. Para
Santos e Mortimer (2002), estudos voltados para a epistemologia da ciência, que incoporaram
questões relacionadas aos aspectos econômicos e políticos da ciência, também contribuíram
para o aparecimento dessa ênfase.
Santos (2007a) relata que cursos com ênfase em CTS têm sido propostos para o ensino
de Ciências tanto na educação básica quanto na educação superior e até em cursos de pós-
graduação. Santos e Mortimer (2002) já defendiam uma abordagem curricular com ênfase em
CTS para o contexto atual, tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio. Conforme
os autores, os currículos CTS apresentam como principal proposta preparar os estudantes para
exercer a cidadania e, por isso, caracterizam-se por abordar os conteúdos científicos inseridos
no contexto social, contribuindo consideravelmente para a alfabetização e letramento
científico e tecnológico, o que, para Chassot (apud SANTOS, 2007b), significa dominar os
conhecimentos científicos e tecnológicos necessários ao desenvolvimento do cidadão em sua
vida diária. Numa concepção que estabelece a linguagem científica como ferramenta cultural
para o entendimento da cultura moderna, Santos (2007b) indica como maior desafio para a
renovação da educação científica torná-la uma cultura científica, que busca desenvolver
valores e popularizar o conhecimento científico pelo seu uso social.
Voltando-se para a educação básica, Santos (2007a) também destaca que o objetivo do
currículo com ênfase CTS é a promoção da educação científica e tecnológica dos cidadãos, no
sentido de auxiliar o estudante a construir conhecimentos, habilidades e valores necessários à
tomada de decisões responsáveis acerca de questões de ciência e tecnologia na sociedade bem
como sua atuação na solução destas questões10.
Para Santos (2007a), inserir temas CTS no ensino de Ciências com uma perspectiva
crítica significa tornar amplo o olhar sobre o papel da ciência e da tecnologia na sociedade e
levar para a sala de aula discussões sobre questões econômicas, políticas, sociais, culturais,
éticas e ambientais, as quais envolvem valores e atitudes, mas devem estar atreladas ao
entendimento conceitual dos temas relativos a esses aspectos sociocientíficos, visto que a
tomada de decisão requer a compreensão de conceitos científicos relativos à discussão.
Trazendo a perspectiva de Paulo Freire para a discussão, Santos (2007a) defende que uma
10 Santos (2007a) afirma que o objetivo central do movimento CTSA acrescenta aos propósitos de CTS a ênfase em questões ambientais no sentido de promover a educação ambiental.
66
visão crítica de CTS deve corresponder a uma educação problematizadora e que faça o
estudante refletir, tornando-o comprometido com a realidade social em que se insere.
No entanto, Santos (2007a) alerta para o fato de que o ensino de Ciências em grande
parte das escolas brasileiras vem sendo trabalhado de forma dogmática, descontextualizado da
sociedade, o que, segundo ele, torna os estudantes incapazes de identificar a relação entre o
que estudam em ciência e o que vivenciam no dia a dia. Para o autor, não se procura uma
ligação superficial entre conhecimento científico e cotidiano, mas, ao contrário, a partir de
situações problemáticas do dia a dia, se deseja alcançar o conhecimento necessário para
entendê-las e, mais que isso, solucioná-las.
Em relação à prática em sala de aula, Santos (2007a) sustenta que um importante passo
em direção a mudança de postura dos professores que se deseja requer compreender o papel
da abordagem CTS no currículo de Ciências em uma perspectiva crítica e reconhecer a
importância de inserir no currículo os aspectos sociocientíficos. Segundo ele, não se trata de
tornar os currículos mais simples ou reduzir conteúdos, mas sim de ressignificá-los
socialmente, de modo que possam ser agentes da transformação da sociedade por meio de
uma educação problematizadora e crítica do modelo de desenvolvimento científico e
tecnológico que recupere o papel da formação da cidadania.
Trazendo a perspectiva de Santos e Schnetzler, Santos (2007a) aponta os valores
relacionados às necessidades humanas, os quais estão vinculados aos interesses coletivos
(como os de solidariedade, de fraternidade, de consciência do compromisso social, de
reciprocidade, de respeito ao próximo e de generosidade), como incorporados aos objetivos
propostos por um currículo de Ciências com ênfase em CTS ou CTSA.
Todavia, Santos (2007a) chama a atenção para o fato de que muitos cursos têm sido
chamados CTS quando, verdadeiramente, o que fazem é apenas mencionar relações CTS de
forma pontual no currículo sem, no entanto, aprofundarem-se ou desenvolverem de maneira
mais sistemática os objetivos citados anteriormente. Nesse sentido, Santos e Mortimer (2002)
já alertavam que uma reforma curricular com ênfase CTS implica mudanças de concepções do
papel da educação e do ensino de Ciências ou, caso contrário, sem transformações
significativas na prática e nas concepções pedagógicas, podemos incidir no erro de
simplesmente maquiar os currículos atuais com pequenas aplicações de temas sociais do
cotidiano. Os autores também enfatizam o quão fundamental é contextualizar a situação do
sistema educacional brasileiro e as condições de trabalho e formação do professor a fim de
que possamos contextualizar os conteúdos científicos na perspectiva de formação da
cidadania.
67
Sintetizando
Consideramos que a abordagem curricular com ênfase em CTS representa um avanço
em relação à qualidade técnica já que os aspectos sociais e políticos da educação são
considerados como imbricados no ensino de Ciências. No que se refere à concepção de
currículo implícita nesse enfoque, identificamos que se coaduna com a prescrição, apontando
o que ‘deve’ ser feito na prática em sala de aula, quais ‘devem’ ser os conteúdos abordados e
‘como’ os professores e os estudantes devem se portar frente às questões abordadas.
Uma possível aproximação entre Fourez (2003) e os autores que defendem um currículo
de Ciências com ênfase em CTS, poderia se dar pela apresentação pelos últimos de um
‘modelo’ de currículo que representa um ideal de qualidade ao qual a realidade atual do
ensino de Ciências, descrita pelo primeiro, ainda não corresponde. Os olhares de Fourez
(2003) se voltam para uma ‘crise’ instalada, que os defensores da abordagem CTS, por meio
deste ‘modelo’, veriam a possibilidade de dar resposta a ela e alcançar uma educação de
qualidade.
A pesquisa em ensino de Ciências aponta como preocupante o fato de termos nos dias
de hoje a predominância de estudos tradicionalmente voltados a questões de natureza técnica,
de procedimentos e de métodos e, que, por consequência, desconsideram aspectos sociais
importantes, quer individuais quer coletivos. Em análises das políticas curriculares oficiais
brasileiras relativas ao ensino de Ciências, os autores notaram a ênfase dada aos interesses
políticos, submetendo as finalidades do ensino de Ciências ao conhecimento científico de
referência e ao mundo do trabalho. Nessa tendência, é denunciado o prejuízo sofrido pelos
estudantes que, no decorrer de seu desenvolvimento, são submetidos a um ensino de Ciências
que estimula formas de pensar empobrecidas e formais.
A abordagem CTS é identificada pela pesquisa em ensino de Ciências como uma
proposta de outra natureza que, ainda que seja prescritiva, estabelece a possibilidade de um
currículo de qualidade valorizando questões e problemas sociais a serem enfrentados no
século XXI, visando à formação para a cidadania. No que se refere aos estudantes, valorizam
uma formação em Ciências que os ajude a incorporar os conceitos científicos em sua leitura
do mundo.
68
3 QUADRO TEÓRICO METODOLÓGICO
Neste capítulo, apresentamos o quadro teórico-metodológico que orienta nossa pesquisa.
Na primeira seção, apresentamos constructos básicos da teoria de Basil Bernstein. Na seção
seguinte, apresentamos os objetivos e as questões do estudo elaborados com base no quadro
teórico anteriormente sintetizado. A última seção se dedica aos procedimentos metodológicos,
apresentando os sujeitos e o contexto da pesquisa, a elaboração do instrumento de coleta de
dados e os conceitos do quadro teórico que sustentam a análise do discurso dos professores.
3.1 QUADRO TEÓRICO
Subdividimos esta seção em cinco partes. Na primeira, apresentamos uma visão geral da
teoria do discurso pedagógico e dos principais conceitos que dão suporte à sua construção. Na
segunda parte, apresentamos a gramática do discurso pedagógico, conformado através das
regras distributivas, recontextualizadoras e avaliativas bem como a relação que estas regras
estabelecem com os três principais contextos dos sistemas educacionais. Já na terceira parte,
apresentamos os princípios de classificação e enquadramento, centrais na teorização de
Bernstein. E, por último, a quarta parte se dedica a expor o processo de recontextualização,
assumido como a base para a construção teórica desta pesquisa.
Ressaltamos que a teoria de Bernstein está escrita numa linguagem densa e, portanto,
resumi-la se torna uma tarefa difícil. Em decorrência disso, pretendemos, nesta seção,
apresentar alguns dos mais destacados aspectos de seus estudos, correndo o risco de estarmos
simplificando a complexidade de seu pensamento.
3.1.1 Teoria do discurso pedagógico: uma introdução
Basil Bernstein foi um sociolinguista inglês que, desde a década de 60 até 2000, quando
faleceu, se dedicou de forma sistemática ao desenvolvimento de uma teoria sociológica do
currículo e da transmissão educacional.
Sua teoria expressa princípios analíticos que subjazem a divisão do trabalho, a
distribuição de identidades, a construção de mensagens e significados, a distribuição de poder
e ao exercício do controle social. Dada sua complexidade e amplitude, apresentaremos
somente os aspectos indispensáveis à nossa investigação.
69
O livro ‘A estruturação do discurso pedagógico: classe, códigos e controle’
(BERNSTEIN, 1996), volume IV de uma série que este autor publicou desde 1971, base para
a construção do quadro teórico desta pesquisa, é talvez sua referência mais importante visto
que representa uma espécie de síntese de todo o trabalho anteriormente desenvolvido. Neste
volume, o autor enfatiza a importância da educação para a construção de uma sociedade
democrática e lança-se ao desafio de produzir uma teoria que explique o funcionamento da
escola, analisando como, internamente, pela própria forma como é constituída, ela acaba por
reproduzir desigualdades sociais. Sua teoria do discurso pedagógico se volta especificamente
para o papel do poder e do controle social na estruturação da comunicação pedagógica.
Do ponto de vista teórico e analítico, Bernstein (1996) afirma que poder e controle são
elementos distintos, ainda que estejam mutuamente interrelacionados. Por meio das relações
de poder, segundo sua perspectiva, são estabelecidas, legitimadas e reproduzidas as fronteiras
entre diferentes categorias de agentes e de discursos. Assim, o poder está, para Bernstein
(1996), relacionado à delimitação de fronteiras, as quais colocam pessoas, discursos e objetos
em diferentes posições.
Por sua vez, o controle, de acordo com o autor, estabelece formas de comunicação
apropriadas para as diferentes categorias, isto é, estabelece a comunicação legítima para cada
grupo, de acordo com as fronteiras instituídas pelas relações de poder, buscando socializar as
pessoas no interior destas relações. Nesse sentido, para Bernstein (1996), o poder constrói
relações entre e o controle constrói relações dentro de dadas formas de interação.
Através destes dois elementos, poder e controle, Bernstein (1996) construiu dois
princípios centrais de sua teoria e necessários à compreensão do processo de controle
simbólico: os princípios de classificação e de enquadramento. O autor utiliza o princípio de
classificação para analisar as relações entre categorias, sejam elas sujeitos, discursos ou
práticas e o princípio de enquadramento para analisar o controle nas interações comunicativas
e as comunicações que são legitimadas na prática pedagógica. Estes princípios serão
abordados na seção 3.1.3.
A partir de um enfoque que explora essencialmente a questão da distribuição do poder
nas práticas pedagógicas, Bernstein (1996) reconhece a educação como uma atividade
intrinsecamente moral que expressa as ideologias dominantes dos grupos dominantes, na qual
as práticas pedagógicas são transportadores culturais da distribuição de poder. A partir dessa
visão de educação, ele percebe, então, dois tipos de transmissão educacional, uma destinada à
oferta do conhecimento em si e outra cuja relevância está voltada para o mercado de trabalho.
70
Segundo Bernstein (1996), a pedagogia como transmissor cultural, que viabiliza a
aquisição de conhecimento, possibilita a obtenção de posições de classe pelo adquirente
através de meios simbólicos e se justifica pela utilidade e valor intrínseco do conhecimento
que veicula e pela disciplina que exige. Já a pedagogia orientada pelo mercado, promove
habilidades e atitudes específicas, proporcionando uma reprodução quase perfeita da
hierarquia econômica no interior da escola, quer através de uma hierarquização dos currículos
(por exemplo, currículo gerencial, administrativo, empresarial) quer através do treinamento
para as diferentes especializações tecnológicas, para o trabalho burocrático de escritório ou
ainda da aprendizagem imaginária de ofícios profissionalizantes para a classe operária e para
os grupos marginalizados.
É possível afirmar, então, que, tanto a pedagogia voltada para a aquisição do
conhecimento em si quanto a pedagogia voltada para o mercado, são condutoras de
estratificação do conhecimento e de desigualdades sociais e que o discurso pedagógico
recontextualiza e, dessa forma, reposiciona, no interior de sua própria ideologia,
características desses dois discursos (BERNSTEIN, 1996).
Além de compreender as características inerentes às desigualdades dos sistemas
educacionais, sua teoria procura mostrar como os diferentes grupos sociais estariam mais ou
menos incluídos nos diversos segmentos gerados por este sistema. Nesse caso, seu objetivo é
explicar como, no aparelho escolar, as desigualdades se inscrevem por meio de mecanismos
intrínsecos à sua própria constituição. Para tal, Bernstein (1996) elabora sua teoria
esforçando-se por definir distintos códigos de fala transmitidos, adquiridos, mantidos e
modificados pelas relações sociais e dando centralidade ao que se passa nas escolas e às
questões relativas à comunicação pedagógica que, segundo ele, consiste no mais importante
meio de controle simbólico11.
Segundo Bernstein (1996), existem diferenças nos códigos de comunicação devido à
classe social, diferenças que refletem nas relações de classe12 entre grupos sociais. Para o
autor, as relações de classe geram, distribuem, reproduzem e legitimam formas distintas de
comunicação, as quais transmitem códigos dominantes e dominados que posicionam
diferentemente os sujeitos durante o processo de adquirir tais códigos. Desse ponto de vista, o 11 Importante destacar aqui o que Bernstein (1996) chama de controle simbólico. O controle simbólico é o meio pelo qual a consciência recebe uma forma especializada e é difundida por meio de formas de comunicação, as quais estão impregnadas de relações de poder e categorias culturais dominantes. O campo de controle simbólico é formado por um conjunto de agências e agentes que controlam os meios, contextos e possibilidades dos recursos discursivos nas agências do campo do controle simbólico. Alguns exemplos de agências são a família, o sistema escolar, as universidades, os centros de pesquisa e o governo. 12 O termo ‘relação de classes’ é utilizado pelo autor para designar desigualdades na distribuição de poder e nos princípios de controle entre grupos sociais.
71
autor define os códigos como dispositivos de posicionamento culturalmente determinados.
Mais especificamente, os códigos regulados de acordo com a classe social, posicionam os
sujeitos relativamente às formas dominantes e dominadas de comunicação e às relações entre
elas.
Bernstein (1996) tece uma crítica à perspectiva de Bourdieu e Passeron, ao considerar
que, apesar de trazer contribuições importantes que formalizaram o papel da comunicação
pedagógica na reprodução da relação de classes no ambiente escolar, não explorou através de
análise sistemática os princípios pelos quais um discurso específico é constituído e
transmitido. Para Bernstein (1996), o que está ausente das teorias de reprodução é uma teoria
sobre a estrutura do discurso, a lógica do discurso que fornece os meios pelos quais as
relações externas de poder possam ser transportadas por ele.
É nesta lacuna observada nos estudos da Sociologia da Educação, no espaço das
relações ocorridas no interior da comunicação pedagógica, que Bernstein (1996) elabora sua
teoria do dispositivo pedagógico. O autor está interessado, sobretudo, na relação da estrutura
de classe com as desigualdades sociais e a linguagem da educação e, por meio de uma análise
da estruturação social do discurso pedagógico e das formas de sua transmissão e aquisição,
desenvolve sua teoria. Para isso, Bernstein (1996) estabelece uma distinção preliminar entre o
‘condutor’ e ‘aquilo que é conduzido’. O primeiro consiste nas regras relativamente estáveis e
o segundo se refere ao que é transmitido, ou seja, à mensagem, às regras que variam segundo
o contexto e, nem um nem outro são neutros do ponto de vista ideológico.
A teoria do dispositivo pedagógico foi elaborada como um modelo para analisar o
processo pelo qual uma disciplina ou um campo específico de conhecimento é transformado
ou ‘pedagogizado’ para constituir o conhecimento escolar, o currículo, os conteúdos ou as
relações a serem transmitidas (MAINARDES e STREMEL, 2010). Bernstein (1996) propõe,
de início, um dispositivo linguístico e um dispositivo pedagógico. O primeiro consiste num
sistema de regras formais que regem as diferentes combinações que fazemos durante a fala e a
escrita. Já o dispositivo pedagógico possui um sistema de regras internas que regulam a
comunicação pedagógica que o mesmo torna possível.
Instituindo uma analogia com o dispositivo linguístico, Bernstein (1996) propõe o
dispositivo pedagógico, cujas regras internas regulam a comunicação pedagógica. Dessa
forma, a comunicação pedagógica atua seletivamente em relação aos significados potenciais,
os quais são identificados, pelo autor, como os discursos potencialmente disponíveis para
serem pedagogizados.
72
O dispositivo pedagógico é composto pelas regras distributivas, recontextualizadoras e
avaliativas, regras discursivas hierarquicamente relacionadas, de modo que as distributivas
regulam as recontextualizadoras que, por sua vez, regulam as avaliativas. Estas regras, que
serão mais bem detalhadas na seção 3.1.2, regulam a produção, distribuição e reprodução para
o processo de especialização de formas de consciência.
Através das regras discursivas, o dispositivo pedagógico fornece a gramática intrínseca
do discurso pedagógico que, para o autor, é muito mais que o conteúdo a ser ensinado, o
conhecimento das matérias ou uma seleção de enunciados. Segundo ele, o discurso
pedagógico seria um princípio de recontextualização de outros discursos que serão
seletivamente transmitidos e adquiridos. Assim, é considerado um discurso sem discurso já
que não se identifica com os discursos que transmite.
3.1.2 A gramática do discurso pedagógico
Para desenvolver a gramática do dispositivo pedagógico, Bernstein (1996) tece,
inicialmente, uma consideração acerca dos meios através dos quais se estabelece uma relação
entre poder, grupos sociais e formas de consciência. Para ele, se desejamos conhecer a
produção, reprodução e transformação de formas de consciência e de prática, “precisamos
compreender a base social de uma dada distribuição de poder e os princípios de controle que,
de forma diferencial, posicionam, reposicionam e oposicionam formas de consciência e de
prática” (p. 255). Em decorrência disso, o dispositivo pedagógico, juntamente com suas
regras, responsável pelo processo de especialização de formas de consciência, está sempre
entre o poder e o conhecimento e entre o conhecimento e formas de consciência.
O dispositivo pedagógico fornece a gramática intrínseca do discurso pedagógico por
meio das regras distributivas, recontextualizadoras e avaliativas. Em linhas gerais, Bernstein
(1996) define estas regras da seguinte forma:
As regras distributivas regulam a relação fundamental entre poder, grupos sociais, formas de consciência e prática e suas reproduções e produções. As regras recontextualizadoras regulam a constituição do discurso pedagógico específico. As regras de avaliação são constituídas na prática pedagógica. (p. 254)
Nesta seção, apresentaremos as regras discursivas assim como a relação que
estabelecem com os três contextos fundamentais dos sistemas educacionais, que são o
contexto primário (ou de produção do discurso), o contexto secundário (ou de reprodução do
discurso) e o contexto recontextualizador. Ao apresentar esta relação Bernstein (1996) afirma
que “as regras distributivas estão relacionadas com o contexto primário, as regras
73
recontextualizadoras com o contexto recontextualizador e as regras avaliativas estão
relacionadas, neste caso, com o contexto secundário” (p. 271).
O contexto primário13, ou contexto de produção do discurso (especializado), cria o
‘campo intelectual’ do sistema educacional. As regras distributivas, relacionadas a este
contexto, são responsáveis por regular a especialização diferenciada da consciência para os
diferentes grupos ou, em outras palavras, por estabelecer quem pode transmitir o quê a quem e
sob quais condições. O autor afirma que, por conta disso, tais regras acabam por determinar
os limites externos e internos ao discurso legítimo. Neste contexto acontece o que ele
denomina de contextualização primária de um texto, ou seja, quando um texto é, de início,
desenvolvido e posicionado. Assim, no contexto primário, as regras distributivas estabelecem
o ‘pensável’ e o ‘impensável’ e suas consequências práticas para os diferentes grupos, por
meio da mediação de práticas pedagógicas diferentemente especializadas.
O contexto secundário, que estrutura o campo de reprodução do discurso, é onde se dá a
reprodução seletiva do discurso pedagógico. Este contexto é o contexto da prática pedagógica,
ao qual estão relacionadas as regras de avaliação, observadas durante a prática pedagógica em
si que, segundo o autor, nem sempre reproduz o discurso pedagógico14.
O terceiro contexto abordado por Bernstein (1996) é o contexto recontextualizador, que
estrutura o campo recontextualizador, onde se dá a relocação do discurso por meio das regras
recontextualizadoras. A função desse contexto é a de regular a circulação de textos entre os
contextos primário e secundário. Destacamos que as regras recontextualizadoras são parte do
processo de recontextualização, o qual será mais profundamente abordado na seção 3.1.4.
Nesse ponto de sua argumentação, Bernstein (1996) define o discurso pedagógico como
um princípio recontextualizador que, por meio de regras recontextualizadoras, trata de
embutir e relacionar dois outros discursos: o discurso instrucional num discurso regulativo. O
discurso instrucional se refere a um discurso especializado das disciplinas de referência, um
discurso de competências, a ser disseminado nas escolas. O discurso regulativo diz respeito a
um discurso de ordem social, que se refere aos valores e princípios pedagógicos, criando
13 O contexto primário, segundo o autor, abrange a universidade e os departamentos de educação de escolas técnicas voltadas à tecnologia e ciências aplicadas, inclui as faculdades de educação, juntamente com suas pesquisas, bem como as fundações privadas. Inclui também publicações especializadas de educação, como periódicos e revistas, juntamente com seus avaliadores e consultores. Este contexto pode-se estender ainda para campos não especializados do discurso educacional (político, econômico, familiar, religioso) e suas práticas, mas que são capazes de exercer influência tanto sobre o Estado quanto sobre seus vários arranjos e/ ou sobre locais, agentes e práticas especiais no interior educação. 14 No decorrer do processo de recontextualização, ao ser deslocado do contexto primário para o contexto secundário, o discurso é necessariamente transformado em algo diferente do que era inicialmente, criando um espaço para a atuação da ideologia.
74
identidades especializadas e sendo, por isso, responsável pela ordem no discurso instrucional
e sempre dominante no processo. O autor afirma que o discurso pedagógico surge na medida
em que o discurso instrucional é transferido de seu contexto próprio e recolocado no ambiente
escolar.
Nesse sentido, o discurso pedagógico é “um princípio para apropriar outros discursos e
colocá-los numa relação mútua especial, com vistas à sua transmissão e aquisição seletivas”
(BERNSTEIN, 1996, p. 259). É, pois, “um princípio que tira (desloca) um discurso de sua
prática e contexto substantivos e reloca aquele discurso de acordo com seu próprio princípio
de focalização e reordenamento seletivos” (p.259), por meio das regras recontextualizadoras.
A respeito da predominância do discurso regulativo sobre o discurso instrucional, Bernstein
(1996) aponta que, na medida em que o discurso pedagógico é um princípio
recontextualizador, então, qualquer discurso recontextualizado torna-se um significante para
uma outra coisa, distinta dele mesmo e que varia de acordo com os princípios dominantes de
uma determinada sociedade. Nesse sentido, segundo ele, o discurso regulativo é, ele mesmo,
pré-requisito para qualquer discurso pedagógico.
Com vistas a tornar mais clara a relação estabelecida entre o discurso regulativo e o
discurso instrucional, Bernstein (1996) toma como exemplo o ensino da Física no Ensino
Médio. Segundo ele, a Física é um discurso recontextualizado, resultado de princípios
recontextualizadores que selecionaram e deslocaram do contexto primário, onde é produzido
o discurso, aquilo que conta como Física, relocando-o e refocalizando-o no contexto
secundário, onde se dá a reprodução do discurso. Bernstein (1996) acrescenta que, nesse
processo, a Física sofre uma transformação complexa, de um discurso original para um
discurso recontextualizado e a intensidade dos princípios de classificação e de enquadramento
(detalhados mais adiante) dessa Física recontextualizada é, no final, uma característica do
discurso regulativo.
De acordo com Bernstein (1996), são as regras discursivas que constituem um texto15 e
o tornam tal qual ele é, com características distintivas, relações distintivas, modos de
transmissão e contextualização próprios. Em outras palavras, a partir das regras distributivas,
recontextualizadoras e avaliativas acontece a transformação do conhecimento (teórico,
15 Percebemos, ao longo de seu trabalho, que o autor utiliza a palavra texto, muitas vezes, com o mesmo sentido de discurso. Entretanto, um texto pedagógico é diferente de texto e de discurso pedagógico: “é um texto produzido/ reproduzido e avaliado nas – ou através das (e sempre para as) – relações sociais de transmissão/ aquisição. Um texto pedagógico é uma realização distintiva do discurso pedagógico, constituindo uma seleção, integração e contextualização específicas de ‘pedagogemas’” (BERNSTEIN, 1996, p. 272), que se referem à menor unidade distintiva de prática ou disposição que pode estar sujeita à avaliação.
75
prático, expressivo, oficial ou local) em comunicação pedagógica, isto é, o processo de
recontextualização, que será abordado na seção 3.1.4.
3.1.3 Os princípios de classificação e enquadramento
Bernstein (1996) assume os princípios de classificação e enquadramento como
fundamentalmente importantes para compreender como as relações de poder e de controle
originam, sustentam e modificam o discurso pedagógico, sendo assim parte do processo de
recontextualização.
O princípio de classificação estabelece relações entre categorias, sejam elas relativas aos
agentes (sistema educacional, escolas, professores, alunos) ou aos discursos (disciplinas,
classes sociais). Através dos isolamentos que estabelece, o princípio de classificação define o
grau de especificidade das vozes das categorias, determinando suas particularidades.
As relações de poder criam a especificidade das vozes das diferentes categorias ao
classificarem-nas, isolando-as umas das outras, o que, por conseguinte, constitui tanto a
identidade de cada uma como a diferença entre elas. A voz de uma categoria social, tal como
um discurso acadêmico ou o discurso de um professor, é construída pelo grau de
especialização das regras discursivas que regulam e legitimam a forma de comunicação.
Os isolamentos correspondem ao grau de separação entre categorias e são necessários ao
processo visto que é a intensidade dos isolamentos que cria um espaço no qual uma categoria
pode se tornar específica. Segundo o autor, quanto mais forte o isolamento entre as categorias,
mais forte será a fronteira existente entre uma e outra e mais definido será o espaço que
qualquer categoria ocupa em relação ao que ela é especializada.
Segundo Bernstein (1996), uma categoria é especializada quando tem, necessariamente,
sua própria identidade específica e suas próprias fronteiras específicas. Categorias
especializadas trazem também vozes especializadas e, por isso, o grau de isolamento é
concebido como o regulador mais importante das relações entre categorias e da especificidade
das vozes trazidas por elas (BERNSTEIN, 1996).
O princípio de classificação, por meio dos isolamentos, é responsável pela identidade
das categorias e por indicadores de suas especialidades. Tais indicadores, denominados por
Bernstein (1996) de regras de reconhecimento, são responsáveis por regular que significados
podem ser legitimamente reunidos, que relações referenciais são privilegiadas/ privilegiantes.
Bernstein (1996) estabelece que qualquer mudança no princípio de classificação exige
uma mudança no grau de isolamento: se existe um isolamento forte entre categorias há um
princípio de classificação forte e, ao contrário, se há um fraco isolamento entre categorias,
76
isso dá origem a um princípio de classificação fraca. Exemplificando, numa escola onde há
um princípio de classificação forte dos discursos, as áreas de conhecimento estão separadas
por limites fortes e numa escola onde há um princípio de classificação fraco, há uma reduzida
separação entre conteúdos e entre áreas de conhecimento.
O enquadramento refere-se ao princípio que regula as práticas comunicativas das
relações entre transmissores e adquirentes. Segundo Bernstein (1996), o princípio de
enquadramento diz respeito ao grau de controle do que é transmitido, do que é recebido e do
que pode ou não ser transmitido na relação pedagógica.
Assim como o princípio de classificação, o enquadramento também pode ser forte ou
fraco. Um enquadramento forte indica que o transmissor regula explicitamente o conteúdo,
sequenciamento, forma, compassamento e o discurso que constituem o contexto de
aprendizagem. Se o enquadramento é fraco, o transmissor tem aparentemente um controle
menor sobre os elementos da prática pedagógica.
Enquanto o princípio de classificação dá origem às regras de reconhecimento, o
princípio de enquadramento estabelece as regras de realização. De acordo com o autor,
embora as regras de realização estabeleçam o que conta como um texto considerado legítimo
pela escola, tais regras pressupõem as regras de reconhecimento (e são limitadas por elas) e o
princípio de classificação implicado por estas regras, o que determina os limites do potencial
legítimo de comunicação.
As regras de reconhecimento e as regras de realização, segundo Bernstein (1996),
estabelecem o contexto comunicativo. O princípio de classificação regula a relação entre
contextos, enquanto o princípio de enquadramento regula as formas de realização de
comunicação no interior de um contexto. Podemos dizer, assim, que a realização das regras
discursivas é função dos princípios de classificação e de enquadramento, produzidos pelas
relações de poder e de controle, e que toda prática pedagógica pressupõe regras (de
reconhecimento) que regulam as relações de seu contexto com os demais contextos (princípio
de classificação) e regras (de realização) que regulam as relações que lhe são próprias ao seu
contexto (princípio de enquadramento). Mais especificamente ao nível do sujeito, Bernstein
(1996) aponta que diferenças nas regras de reconhecimento e realização podem ocasionar
diferenças nos códigos.
Em linhas gerais, para Bernstein (1996):
Mudanças ou variações no princípio classificatório produzem mudanças ou variações nas ‘vozes’ das categorias; mudanças ou variações no enquadramento produzem variações ou mudanças nas práticas pedagógicas, as quais, por sua vez, produzem mudanças ou variações no contexto comunicativo. (p. 59)
77
Sintetizando, é possível afirmar que a seleção, criação, produção e transformação de
discursos, operadas a partir dos princípios de classificação e de enquadramento, constituem os
meios pelos quais o posicionamento dos sujeitos é revelado, reproduzido e transformado.
3.1.4 O processo de recontextualização
Para Bernstein (1996), o processo de recontextualização se dá sempre a partir do
deslocamento de textos de um contexto para outro – textos transferidos da academia para o
contexto oficial de um Estado ou do contexto oficial para as escolas podem ser bons exemplos
de recontextualização. Cada um desses contextos é interpretado como um campo
recontextualizador.
De início, o autor identifica dois campos recontextualizadores: o campo de
recontextualização oficial (CRO) e o campo de recontextualização pedagógica (CRP). O
CRO, criado, composto e gerenciado pelo Estado, dependente dos discursos ideológicos e
políticos dominantes, tem relações estreitas com o campo internacional, constituído
prioritariamente por agências financiadoras internacionais e por outros Estados nacionais,
com o campo de produção, relacionado à esfera econômica, e com o campo de controle
simbólico, ligado à esfera cultural. O CRP, também chamado não-oficial, relativamente
autônomo, é entendido como o campo de produção de teorias educacionais que orientam a
prática pedagógica, sendo formado por pesquisadores em educação de forma geral, pela
universidade e por congressos e revistas especializadas. A recontextualização do discurso
pedagógico ocorre por meio da relação entre estes dois campos.
As principais atividades dos campos recontextualizadores são as de “criar, manter,
mudar e legitimar o discurso, a transmissão e as práticas organizacionais que regulam os
ordenamentos internos do discurso pedagógico” (BERNSTEIN, 1996, p. 271). Em outras
palavras, a principal atividade desses dois campos é a de constituir o ‘que’ e o ‘como’ do
discurso pedagógico, onde o ‘que’ diz respeito às categorias, conteúdos e relações a serem
transmitidas, ou seja, à sua classificação, e o ‘como’ refere-se ao modo de sua transmissão em
termos do controle exercido sobre a relação pedagógica, isto é, ao enquadramento.
Na medida em que se permite que o CRP exista e afete a prática pedagógica oficial,
Bernstein (1996) define uma certa autonomia do discurso pedagógico.
Os exames públicos feitos nos níveis secundários da educação, com frequência direta ou indiretamente ligados à universidade, têm uma influência crucial sobre as práticas dos campos recontextualizadores pedagógicos, com referência à determinação de livros didáticos e rotinas de ensino. Ao mesmo tempo, as práticas do campo recontextualizador podem influenciar a forma e o contexto dos exames públicos. Não é incomum que membros desses comitês sejam extraídos do campo
78
recontextualizador pedagógico, onde atuam como agentes de funções diferentes. (BERNSTEIN, 1996, p. 277)
Ambos os campos recontextualizadores, o oficial e o pedagógico, “são afetados pelos
campos da produção e do controle simbólico” (BERNSTEIN, 1996, p. 278). As teorias,
práticas e relações sociais nesses campos também exercerão influência sobre o discurso a ser
transmitido (o ‘que’ do discurso pedagógico), e sobre como eles são transmitidos (o ‘como’
do discurso pedagógico).
No processo de recontextualização, um texto passa, inicialmente, por uma
transformação mediante processos de descontextualização, reposicionamento e refocalização.
Os textos, advindos ou não da esfera oficial, são fracionados, algumas de suas partes são mais
valorizadas em detrimento de outras e estas são associadas a outras partes de textos capazes
de ressignificá-las e reposicioná-las. Todas essas operações transformam o conhecimento
(teórico, prático, expressivo, oficial ou local) em comunicação pedagógica.
Na medida em que o texto é deslocado e relocado, ele sofre alterações: (i) mudança em
relação a outros textos, práticas e situações, (ii) processos de seleção, simplificação,
condensação e elaboração e (iii) reposicionamento e refocalização do texto.
Todo esse processo se dá em meio a conflitos de diferentes interesses que estruturam os
campos recontextualizadores. Além disso, o processo de transformação de um texto em outro,
expressa movimentos ideológicos e é, justamente, o princípio recontextualizador que regula o
novo posicionamento ideológico do texto em seu processo de relocação no campo de
reprodução do discurso, ou contexto secundário. Uma vez naquele campo, o texto sofre uma
transformação ou um reposicionamento adicional, na medida em que se torna ativo no
processo pedagógico.
Para Bernstein (1996), quando os campos recontextualizadores oficial e não-oficial se
associam, mais facilmente se exerce o controle sobre o que acontece nas escolas. No entanto,
se houver uma autonomia relativa entre esses dois campos, origina-se uma arena de luta, que
facilita a criação de espaços para as escolas trabalharem em uma direção questionadora dos
padrões estabelecidos. Por isso, Bernstein (1996) afirma que todo discurso pedagógico é uma
arena de conflito e, potencialmente, de mudança.
Através de processos de recontextualização, os campos recontextualizadores oficial e
pedagógico produzem o discurso pedagógico. Por isso é que este é definido não como um
discurso propriamente dito, mas como um princípio recontextualizador, um princípio de
apropriação de outros discursos e das relações sociais que o geraram a partir de posições
dominantes no interior dos campos de produção e de controle simbólico.
79
Uma vez que todo discurso pedagógico é um discurso recontextualizado, todo discurso e
seus subsequentes textos são, para Bernstein (1996), ideologicamente reposicionados no
processo de sua transformação do campo original de sua produção para o campo de sua
reprodução. Neste processo, se dão complexas relações entre o poder, o discurso pedagógico
da reprodução e a distribuição de formas de consciência, por meio dos efeitos desse discurso
sobre a consciência e sobre o posicionamento específico do adquirente.
3.2 OBJETIVOS E QUESTÕES DE ESTUDO
Este trabalho tem como objetivo investigar o discurso pedagógico de professores das
disciplinas de Ciências da Natureza do Ensino Médio de duas escolas da rede pública estadual
do Rio de Janeiro, uma com alto e outra com baixo índice no ENEM16, e sua relação com a
qualidade do ensino de Ciências, construída por processos de recontextualização de diferentes
discursos (oficiais, disciplinares, curriculares, acadêmico).
Para tal, o estudo se orienta pelas seguintes questões: Como o discurso dos professores
expressa a recontextualização de outros discursos? Como os professores recontextualizam
discursos com vistas a relacionar seu discurso pedagógico com a qualidade e a atingir seus
objetivos educacionais? No processo de recontextualização, é possível observar diferenças
entre os discursos dos professores das diferentes disciplinas ou outras diferenças? É possível
observar diferenças entre as escolas que poderiam ser associadas às diferenças no índice da
avaliação oficial?
3.3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Nossa pesquisa é de natureza qualitativa e, também por isso, os resultados não são as
únicas preocupações consideradas, mas cabe a preocupação com o processo de produção
desses resultados. Também é relevante destacar que tal processo não envolve medição, mas
interpretação da realidade social a partir de uma dada perspectiva teórica.
Mainardes e Stremel (2010), ao traçarem um panorama da teoria de Basil Bernstein,
apontam que seus estudos tornaram evidente o quanto os sociólogos da educação precisam
considerar a tarefa empírica de observar o que se passa no interior das escolas e analisar tais
dados em relação aos fatores institucionais, sociais e históricos mais amplos. De acordo com
16 Foram usados os resultados do ENEM de 2008.
80
Santos (2003), a teoria de Bernstein não apresenta uma proposta de mudança ou alternativas
para a transformação da educação, mas busca desvelar elementos intrínsecos à escola, que
condicionam a produção e recepção diferenciada de discursos, permitindo o entendimento
mais profundo de como as desigualdades educacionais são produzidas e justificadas.
Pretendemos observar como os professores fazem suas escolhas para transmitir este ou
aquele discurso nos diferentes contextos em que estão inseridos. É justamente neste ponto que
nos deteremos em compreender o processo de recontextualização: por meio dos discursos
trazidos pelos professores de Física, Química e Biologia, buscamos identificar quais outros
discursos estariam presentes, sofrendo mudanças, num processo de transformação em
discurso pedagógico.
Optamos por não incluir os professores de Matemática neste estudo em virtude do
caráter diferenciado de seu discurso pedagógico em relação ao dos professores das demais
disciplinas científicas. Consideramos que a Matemática apresenta algumas peculiaridades
como fazer parte do currículo do Ensino Fundamental, não sendo por isso característica do
nível médio de ensino, como as demais Ciências da Natureza. Além disso, a Matemática está
mais diretamente ligada à área de educação Matemática, que congrega seus próprios eventos e
revistas especializadas, não consultadas sistematicamente neste trabalho.
Destacamos que o discurso dos professores não será analisado durante sua prática em
sala de aula. Aproximamos o discurso dos entrevistados sobre sua prática pedagógica do
discurso pedagógico estudado por Bernstein (1996).
Para Bernstein (1996), processos de recontextualização configuram diferenças
institucionais e disciplinares que fazem de cada escola uma unidade singular e de cada
disciplina uma comunidade própria. Investigamos os discursos dos professores oriundos de
contextos educacionais diferenciados bem como de disciplinas distintas, assumindo que tais
discursos nos aproximam de suas práticas em sala de aula e, portanto, de seus discursos
pedagógicos.
Tomamos como referência as regras recontextualizadoras e os princípios de
classificação e enquadramento para compreender como estes professores, por meio de
processos de recontextualização, constroem seus discursos, especialmente aqueles sobre
currículo e qualidade do ensino de Ciências, tentando perceber ainda as semelhanças e
diferenças entre as escolas e entre as disciplinas.
Os princípios de classificação e enquadramento, assim como enfatiza Santos (2003), são
importantes ferramentas para entendermos o campo do currículo, as disputas em torno das
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disciplinas bem como as diversas formas de construção da prática pedagógica, em função e
como resultado dos diferentes interesses das classes sociais.
Um importante ponto da discussão sobre o tema ‘qualidade da educação’ é levantado
por Moreira (2008), que chama a atenção para o caráter polissêmico da palavra qualidade, o
que acaba por permitir que seja utilizada de modo indiscriminado e, muitas vezes, incerto ou
obscuro. Apesar desse alerta, não pretendemos, no presente trabalho, conter essa polissemia
para chegar a uma definição única de qualidade do ensino de Ciências, mas sim identificar os
sentidos de qualidade construídos pelos professores, através de processos de
recontextualização.
Assumir que há processos de recontextualização implica assumirmos que existe uma
separação entre os discursos oficiais gerados no contexto primário e os não-oficiais, oriundos
do contexto secundário. Isto não significa, porém, que apenas o contexto primário, de
produção do discurso, seja responsável por influenciar os processos de recontextualização,
mas que tanto um quanto outro servirão como referência para a melhor compreensão destes
processos.
Em sua construção teórica, Bernstein (1996) reconhece dois tipos de transmissão
educacional, uma delas destinada à oferta do conhecimento em si e a outra disposta a atender
às exigências do mercado de trabalho. Em nossa análise, ao nos depararmos com os discursos
dos professores, estes dois aspectos, os quais julgamos como extremamente importantes na
discussão da escola dos dias de hoje, serão atentamente observados.
Serão consideradas como CRO as políticas curriculares, representadas pelo documento
dos PCNEM da área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, assim como os
instrumentos de avaliação oficial, como o vestibular e o ENEM. O currículo oficial de cada
escola, mencionado pelos professores, será considerado como contexto secundário.
A partir das contribuições de Ball (1998 apud LOPES, 2005), Lopes (2005) admite a
possibilidade de associar os conceitos de recontextualização e hibridismo, marcando assim a
articulação entre cultura e política na incessante negociação que dá origem às políticas
curriculares.
Na medida em que aprofunda sua teoria, Ball (1992; 1994 apud LOPES, 2005) se
distancia do pensamento estruturalista de Bernstein, incorporando à análise da
recontextualização o conceito de hibridismo. Ao apropriar-se das discussões culturais pós-
estruturalistas e pós-coloniais, o autor passa a defender que, no mundo globalizado, os
processos de recontextualização são, acima de tudo, produtores de discursos híbridos.
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Para Lopes (2005), a incorporação do hibridismo à recontextualização implica entender
as políticas de currículo não apenas como políticas de seleção, produção, distribuição e
reprodução do conhecimento, mas como políticas culturais, que têm como objetivo orientar
determinados desenvolvimentos simbólicos, obter consenso para uma dada ordem e/ ou
alcançar uma transformação social almejada.
Embora considerando a recontextualização por hibridismo um interessante avanço
teórico, especialmente para os estudos sobre as políticas curriculares, optamos, no presente
estudo, por nos mantermos fiéis aos conceitos do quadro teórico de Bernstein, previamente
expostos na seção 3.1. Mesmo que, teoricamente, seja possível pensar em modelos híbridos,
preferimos seguir Bernstein por acreditarmos, como o autor, que a realidade educacional atual
ainda se apresenta estruturada, quer no que se refere às políticas curriculares específicas para
cada disciplina, a realidades sociais e educacionais distintas, à formação dos professores em
carreiras específicas ou às disciplinas isoladas nas escolas.
3.3.1 Descrição dos sujeitos e contexto da pesquisa
Entrevistamos seis professores: um professor de Física, um de Química e um de
Biologia da escola de ENEM alto (escola A) e um professor de Física, um de Química e um
de Biologia da escola de ENEM baixo (escola B). O primeiro contato com os entrevistados
aconteceu por intermédio de um contato com as escolas. As entrevistas foram gravadas após
manifestação de sua autorização através de assinatura do termo de consentimento esclarecido
(ANEXO B).
Consideramos, na análise do discurso dos professores, a situação atual em que tais
discursos foram gerados (participação em uma entrevista frente a uma pesquisadora) e a
relação entre o discurso e a prática profissional de cada entrevistado (tempo de magistério,
formação continuada, envolvimento em projetos), que nos deu pistas sobre as diversas vozes
recontextualizadas em cada entrevista.
A professora de Física da escola A concluiu a Licenciatura Plena em Física na
Universidade federal do Rio de Janeiro no ano de 1976. Em 1998, dando continuidade à sua
formação, concluiu na mesma universidade um curso de Especialização em Ensino de
Ciências. Tem 15 anos de magistério e, atualmente, leciona Física na escola A e Matemática
em outra escola pública estadual, na modalidade Educação para Jovens e Adultos.
A professora de Química da escola A concluiu o curso de Licenciatura Plena em
Química em 1992, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Especializou-se em Docência
do Ensino Superior na Universidade federal do Rio de Janeiro e, hoje, com 12 anos de
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magistério, leciona Química em duas escolas públicas da rede estadual, sendo uma delas, a
escola A.
A professora de Biologia da escola A formou-se em 1974 em Licenciatura Plena em
Biologia, na Universidade Souza Marques. Recentemente, concluiu um curso de Atualização
em Anatomia, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora aposentada da rede
pública municipal, atualmente, leciona Biologia apenas na escola A.
O professor de Física da escola B concluiu a Licenciatura Plena em Física em 1988, na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e não deu continuidade à sua formação. Com 25
anos de magistério, ele leciona Física em oito escolas, sendo duas da rede pública estadual,
uma delas a escola B, e as demais da rede particular de ensino.
O professor de Química da escola B tornou-se bacharel em Química pela Fundação
Técnico-Educacional Souza Marques, em 1998, e especialista em Engenharia Sanitária e
Ambiental pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Atualmente, com 5 anos de
magistério, leciona Química apenas na escola B.
A professora de Biologia da escola B tem 21 anos de magistério, tendo concluído os
cursos de Licenciatura e Bacharelado em Ciências Biológicas na Universidade Souza
Marques, em 1993. Especializou-se em Arteterapia em Educação e Saúde, Metodologia em
ensino de Ciências e Biologia e também em Ciências Ambientais. Atuou em dois projetos, um
deles voltado à educação sexual e o outro relacionado ao uso abusivo de drogas. Hoje, leciona
Química em duas escolas públicas municipais e Biologia na escola B.
Para a compreensão do discurso dos professores, também assumimos como relevantes
as possíveis diferenças entre as realidades socioculturais em que estavam inseridos. Ambas as
escolas se localizam em bairros de classe média-baixa do subúrbio do Rio de Janeiro, sendo
que a escola B, de ensino noturno regular, está próxima a comunidades carentes. Além disso,
julgamos importante o fato de que a escola A não recebe matrículas como as demais escolas
estaduais, já que seus alunos vêm da rede municipal de ensino a partir de uma seleção que
acompanha seu desenvolvimento durante todo o segundo segmento do Ensino Fundamental, e
ainda dispõe de um convênio com uma instituição federal de ensino tecnológico, o que lhe
confere certa particularidade bem como um ambiente educacional diferenciado em relação às
outras escolas da rede pública estadual.
3.3.2 Elaboração do roteiro de entrevistas
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O roteiro de entrevistas foi elaborado a partir dos resultados obtidos com um grupo
focal17 com 9 professores de Ciências (Física, Química, Biologia e Matemática), de escolas da
rede pública estadual e federal e da rede privada do Rio de Janeiro, que promoveu a discussão
sobre a qualidade do ensino de Ciências. As principais perspectivas e tensões presentes no
discurso desses professores, publicados anteriormente (Rezende et al., 2011) serviram de base
para a construção do roteiro, com vistas a aprofundar esses resultados.
A dinâmica ocorreu em uma sala de uma universidade do Rio de Janeiro, com a
participação de uma mediadora, de pesquisadores responsáveis pela gravação em vídeo e dois
relatores e teve duração de aproximadamente duas horas. De início, cada professor se
apresentou ao grupo, descrevendo um breve currículo e seu local de trabalho. A mediadora
convidou-os, então, a exporem o que pensavam sobre o ensino de Ciências, a escola, as
questões de aprendizagem, o currículo, a avaliação. Por fim, a mediadora questionou os
professores sobre o que acreditavam ser um ensino de Ciências da Natureza e Matemática de
qualidade, o que os fez debater mais explicitamente sobre o tema de nosso interesse.
A partir da transcrição da gravação em vídeo, analisamos o discurso de todos os
professores após o momento da apresentação. Esta análise pretendeu identificar os sentidos de
qualidade do ensino de Ciências nos enunciados dos professores, considerados como sua fala
ou turno, ou seja, cada vez que os professores se dirigiam à mediadora ou ao grupo. Como a
mediadora sugeriu inicialmente um tema amplo e em seguida o debate sobre a qualidade, uma
palavra de caráter polissêmico, os professores acabaram elegendo temas diversos em ambos
os momentos da atividade.
A primeira etapa da análise foi identificar os temas que compunham o conteúdo
semântico referencial dos enunciados dos professores. Após esta etapa, partimos para a
análise da relação do falante com seu enunciado, a identificação das vozes dos professores,
considerando-as como perspectivas referenciais (WERTSCH, 1993) sobre aquele(s) tema(s).
Para identificá-las, inferimos qual era o ponto de vista do falante, como e por que o tema foi
relacionado à qualidade. Ainda que não aparecesse a palavra ‘qualidade’ nas falas dos
professores, buscamos identificar a posição valorativa dos participantes frente àquele subtema
relacionado ao ensino de Ciências da Natureza e Matemática bem como à educação stricto
sensu.
17 Os grupos focais compreendem uma técnica de pesquisa que coleta dados através de interações grupais a partir da discussão de um tópico sugerido pelo pesquisador (MORGAN apud GONDIM, 2002). Podem caracterizar-se também como recurso para a compreensão do processo de construção das percepções, atitudes e representações sociais de grupos humanos (VEIGA & GONDIM apud GONDIM, 2002).
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Por meio dessa análise, notamos que diferentes realidades educacionais moldariam as
concepções dos professores sobre o curículo, as finalidades da educação, as políticas
curriculares, a sociedade. Ainda que haja consensos entre as perspectivas, essa diferença se
desdobra, em geral, em tensões entre elas. Visto que interessam-nos os enunciados voltados
para o currículo e as políticas curriculares, identificamos especialmente as perspectivas e
tensões necessárias de serem aprofundadas por meio das entrevistas.
Para a maioria dos professores, a qualidade está ligada ao anacronismo do currículo e da
escola de uma maneira geral frente ao dia a dia dos alunos, sendo que o fator que mais o
evidencia é a presença avassaladora da tecnologia no ambiente social. Nesse momento, foi
possível perceber a tensão entre os professores que acreditavam que tecnologizar o ensino de
Ciências o salvaria deste anacronismo e outros que afirmaram que apenas isso não é o
bastante.
Observamos que o discurso acerca da questão curricular apresentou tensões entre os
aspectos voltados para seguir o currículo visando à seleção para o vestibular ou moldar o
currículo para o alcance de outros objetivos, como a socialização dos estudantes. A tensão foi
polêmica entre os professores, uma vez que viria a configurar duas escolas socialmente
determinadas.
Um dos professores, ao assumir que sempre se questiona e que não possui uma fórmula
para ensinar, mostra-se comprometido com um ensino de Ciências de qualidade que se afasta
do cumprimento de um mesmo currículo ou metodologia de ensino para todos os alunos,
independentemente do contexto. Outro professor do grupo também afirma que não segue
sempre um mesmo currículo, no entanto, isso se deve ao fato de que, para ele, os alunos da
escola pública não conseguem ou não podem aspirar ao Ensino Superior, visto que a
qualidade do ensino que recebem não lhes permite tal acesso e que a meta final desses alunos
é o mercado de trabalho.
No que se refere ao trabalho docente, notamos outra tensão entre a prática que colabora
com a ausência de qualidade, caracterizada pela falta de mobilização e comprometimento, e
outra que se coloca como militante pela qualidade, apesar da escola, do salário, das condições
de trabalho. Diante da situação de sucateamento do sistema educacional, relatada por diversos
professores do grupo, dá-se um debate em torno da impotência para resolver os problemas que
se apresentam e a atitude que assumem para si quanto à necessidade de mudança. Estes
últimos acreditam que o nível de seu comprometimento com a aprendizagem dos estudantes,
ao refletirem sobre sua prática docente e fazendo uso de novas metodologias, pode garantir a
qualidade do ensino. Essa concepção atribui ao indivíduo o alcance da qualidade sem
86
considerar que um real interesse do poder público em investir na qualificação e remuneração
dos profissionais da educação possibilitaria o comprometimento de um número expressivo de
professores.
Para os dois professores com mais tempo de magistério, um de Matemática e o outro de
Biologia, o sucesso seria atingido pelo interesse do aluno, estimulado pelo ensino anterior à
lei 5692/71. Ao dialogarem com o discurso oficial daquela época, em que grande parte dos
estudantes pertencia à classe média e, por conta disso, trazia capital cultural18 diferente dos
alunos de hoje, esses professores não reconhecem a seletividade que estava embutida no
sistema educacional vigente e, por isso, são capazes de valorizá-lo. Esses mesmos professores
denunciam o recrutamento de estudantes de todos os níveis e interesses como a causa da falta
de qualidade do ensino atual, sem notarem que o sistema deveria oferecer as condições para
lidar com este público diversificado e muito maior. A inclusão de estudantes, antes excluídos,
também foi culpabilizada pela queda da qualidade do ensino, ignorando-se, nesse processo, o
avanço da qualidade da educação no que diz respeito à democratização das oportunidades de
acesso à escola e de possível ascenção social.
Ainda que os professores não tenham mencionado explicitamente os PCNEM,
percebemos que os conceitos fundamentais que alicerçam o ensino de Ciências no documento
(contextualização, interdisciplinaridade e competências) foram recontextualizados por alguns.
Relacionar os conteúdos com o cotidiano dos estudantes, a tecnologia ou a atualidade passou
a ser um objetivo relevante para o professor de Ciências.
As tensões levantadas a partir do grupo focal foram a base para a construção do roteiro
de entrevistas (ANEXO A), pois pretendíamos aprofundar esses resultados. Este instrumento
foi validado a partir de sua aplicação a uma respondente com perfil semelhante ao dos sujeitos
que fornecerão os dados da pesquisa, o que nos permitiu avaliar se as perguntas foram
compreendidas pela professora entrevistada bem como se favoreceram suas reflexões e
elaborações.
A partir da tensão existente entre seguir o currículo visando a preparação para o
vestibular ou alterá-lo para alcançar outros objetivos, elaboramos as questões de 1 a 5. A
tensão entre a prática docente que colabora com a falta de qualidade e outra que se mostra
18 Segundo Bourdieu (2005), o capital cultural influencia de modo decisivo o destino escolar dos indivíduos. A abordagem boudieusiana inova ao diminuir o “peso do fator econômico, comparativamente ao cultural, na explicação das desigualdades escolares” (NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2004, p. 60). Para Bourdieu (2005), o capital cultural é formado principalmente por títulos de escolaridade e seria capaz de facilitar a aprendizagem dos conteúdos e dos códigos veiculados pela escola, favorecendo o desempenho escolar daqueles cujo meio familiar compartilha dos mesmos valores.
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empenhada em alcançá-la serviu de base para as questões 5, 6, 7 e 11. A tensão entre uma
educação voltada para todos e uma educação de qualidade oferecida para poucos auxiliou na
elaboração das questões 2, 6, 8, 12, 13 e 14. As questões 9 e 10 nasceram a partir da tensão
existente entre uma visão de ciência caricaturada versus as questões de poder no ensino de
Ciências. Já a tensão entre a qualidade política e social e a lógica do conhecimento científico
serviu de base para as questões 7, 8 e 14. Durante a entrevista, as tensões também foram
utilizadas para desdobrar as perguntas, ainda que não tenham sido explicitamente
apresentadas aos professores entrevistados, fazendo com que eles se posicionassem sobre os
temas abordados.
3.3.3 Procedimentos de análise
Recorremos aos conceitos do quadro teórico para compreender como os professores de
Física, Química e Biologia constroem seus discursos a partir de outros discursos que circulam
no meio educacional e como tal processo se entrelaça à qualidade da educação.
Como já esclarecemos, iremos analisar o discurso do professor sobre sua prática
assumindo que este discurso pode ser aproximado do discurso pedagógico que recontextualiza
outros discursos e práticas.
Procuramos nos dedicar essencialmente à observação das regras recontextualizadoras,
assumidas por nós como as principais e mais importantes das três regras discursivas, por
representarem o discurso pedagógico em si e por estarem diretamente relacionadas à questão
curricular, à qualidade, às diferenças entre disciplinas e às escolas. As regras avaliativas,
relacionadas ao contexto de reprodução do discurso e, por isso, restritas à prática pedagógica
no contexto de sala de aula, serão observadas a partir do discurso sobre a prática. As regras
distributivas, responsáveis pela distribuição de ideologias, não serão aqui observadas visto
que estão relacionadas ao contexto de produção, que não será nosso objeto de estudo.
Ressaltamos que as categorias, no sentido atribuído por Bernstein (1996), serão
devidamente identificadas no decorrer da análise do discurso dos professores visto que
emergirão exatamente de sua construção discursiva.
O conceito de classificação nos servirá para que possamos conhecer as relações entre
categorias e, consequentemente, para que possamos revelar as relações de poder que se
estabelecem entre elas. Sendo assim, tal conceito parece ser adequado para perceber possíveis
diferenças nos processos de recontextualização de professores de diferentes unidades
escolares e suas possíveis relações com os índices oficiais de avaliação dessas escolas.
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Prestaremos atenção também aos isolamentos estabelecidos pelo princípio de
classificação visto que pretendemos definir as ‘vozes’ das categorias, estabelecendo as
particularidades de cada uma delas e identificando as diferenças entre uma e outra.
Consideramos que, ao isolar uma categoria, o professor classifica-a em relação às outras e,
mais do que isso, tem a intenção de transmitir uma certa ideologia, produzindo um
determinado sentido de qualidade.
O conceito de enquadramento, que aparece atrelado à prática pedagógica, nos parece
importante para nossa discussão acerca de possíveis diferenças entre as práticas no que diz
respeito, por exemplo, ao controle do professor e o controle do estudante sobre a comunicação
pedagógica durante a relação estabelecida em sala de aula e sobre como o professor relaciona
estas possibilidades de enquadramento à qualidade.
As percepções sobre o currículo e as finalidades educacionais nele contidas, as políticas
curriculares, a qualidade da educação e da educação em Ciências serão conteúdos
especialmente observados durante a análise da construção discursiva dos entrevistados.
Voltando-nos mais atentamente para o discurso oficial sobre as políticas curriculares assim
como para o discurso acadêmico, apresentados no capítulo 2, buscamos compreender como,
ao serem realocados de um contexto para outro, por meio de processos de recontextualização,
estes discursos dão origem aos discursos dos nossos sujeitos e como diferentes sentidos de
qualidade são mobilizados através deste processo.
Analisar a recontextualização das políticas curriculares e de outros discursos, como o
discurso acadêmico, nas diferentes escolas (supostamente de diferentes qualidades oficiais) é
investigar como essa produção e reprodução de políticas curriculares se desenvolve, qual
conhecimento escolar é produzido e legitimado, quais sentidos de qualidade são favorecidos
ou limitados e como estes sentidos se relacionam ou não com as diferentes disciplinas da área
de Ciências da Natureza e Matemática e com os índices oficiais de avaliação.
89
4 ANÁLISE DOS DADOS
Neste capítulo, apresentamos a análise dos dados com base nos procedimentos analíticos
previamente descritos. A partir do referencial teórico-metodológico adotado e entendendo o
discurso dos professores como discurso pedagógico, a análise dos dados nos permitirá
identificar processos de recontextualização de discursos que permeiam a realidade escolar
para produzir sentidos e estabelecer relações de poder para elaborar relações entre ensino de
Ciências e qualidade.
4.1 SENTIDOS DE QUALIDADE DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS NA VOZ DOS
PROFESSORES
Nesta seção, a partir da transcrição das falas dos professores, apresentamos os sentidos
de qualidade da educação e do ensino de Ciências construídos pelos professores de Física,
Química e Biologia das escolas A e B.
4.1.1 Discurso da professora de Física da escola A
Ao relatar os objetivos que pretende alcançar por meio do ensino de Física, a professora
da escola A estabelece duas categorias, a ênfase no vestibular e a preparação do estudante
para a vida.
Aí tem duas coisinhas diferentes que eu sempre fico me batendo. Uma é se eu vou prepará-los para o vestibular ou se vou prepará-los para a vida, né, então, eu fico sempre me batendo nisso, eu procuro o meio termo, né, eu vou alertando pras questões de vestibular, aquelas coisinhas, aquelas pegadinhas e vou mostrar, procuro mostrar por meio das minhas aulas, as coisas que acontecem em volta da gente, no dia a dia deles.
No trecho acima, ela deixa claro o isolamento que institui entre formar para o vestibular
ou para a vida, mostrando que escolher entre estas categorias é um processo tenso e que,
talvez por isso, opta pelo caminho do meio sem julgar uma categoria como mais importante
que outra. Em seu discurso, a formação de um sujeito crítico em relação ao mundo que o
cerca e a preparação para o vestibular, visando portanto à formação para o trabalho, seriam
igualmente atingíveis.
Para essa professora, formar um sujeito crítico é uma finalidade que passa por
desenvolver o senso crítico nos estudantes, fazendo-os “perceberem as coisas”. Para oferecer
esse tipo de formação, segundo ela, prioriza “a própria crítica em sala de aula”.
90
Para atender à formação para vida, a professora altera o currículo, incluindo outros
conteúdos que podem ser trazidos pelos alunos, demonstrando que o recontextualiza em
função dos interesses apresentados por eles:
[...] mas tudo que a gente fala eles têm sempre liberdade de falar comigo como eu com eles, então, a gente discute muita coisa, até que não tenha a ver com a Física, com o conteúdo de Física.
Deste enunciado podemos depreender que o enquadramento, em sua prática pedagógica,
não parece rígido. Ela parece buscar o equilíbrio entre seu controle e o controle dos estudantes
sobre a comunicação pedagógica em sala de aula, o que também pode ser ilustrado quando
descreve, na citação anterior, suas tentativas de levar em conta os interesses dos estudantes.
Esta professora acredita que a Química, a Biologia e a Matemática são tão capazes de
atuar na formação de um sujeito crítico quanto a Física. Nesse momento, ela categoriza cada
uma das disciplinas científicas na escola A bem com seus professores, equiparando-os entre
si, sem criar hierarquias.
No que se refere aos conteúdos de Física, esta professora estabelece como categorias, tal
qual instituiu nos objetivos, os conteúdos voltados à preparação para o vestibular e os
conteúdos voltados aos interesses dos estudantes. Ao procurar um “meio termo” entre ambos,
ela acaba por priorizar a abordagem dos conteúdos ditados pelo vestibular e deixa explícito
por meio de seu discurso pedagógico que, em sua prática, o currículo oficial passa por um
processo de recontextualização. A professora recontextualiza o currículo em função da
reduzida carga horária, selecionando alguns conteúdos que “caem” no vestibular.
Ao relatar uma de suas práticas, ela deixa claro o quanto essa redução de carga horária
caracteriza o empobrecimento do ensino de Física, restringindo-o apenas ao conteúdo
específico:
Antigamente eu trabalhava, eu já trabalhei aqui o dia inteiro, quando eu saía tarde, seis horas, a gente saía olhando as estrelas, eu mostrando porque, eu falava de gravitação e entrava estrela, um pouquinho de astronomia, hoje já não dá, não, é aquilo ali mesmo, entendeu.
No enunciado acima, é evidente o isolamento instituído pela professora entre duas
categorias, o presente e o passado, atribuindo superioridade ao passado em termos do tempo
que podia ser utilizado para práticas interessantes para os estudantes. Ao afirmar que “é aquilo
ali mesmo” ela se refere ao conteúdo formal, sem contextualização. Entretanto, em outro
trecho, quando diz “eu priorizo a parte de vestibular. E nessa parte de priorizar o vestibular ou
o que cai em vestibular, aí eu vou falando das nossas coisas, do dia a dia deles”, seu discurso
pedagógico parece dar lugar aos interesses dos alunos. Notamos que a professora realiza um
91
processo de dupla recontextualização, ressignificando o currículo tanto devido à falta de
tempo como para atender aos interesses dos estudantes.
Ao comentar sobre as metodologias que adota hoje, a professora declara não usar o
laboratório e afirma que se baseia no livro didático e em exercícios complementares relativos
a cada bimestre letivo, relatando uma prática extremamente tradicional. Orienta os alunos na
resolução desses exercícios e se dedica a esclarecer dúvidas apenas na aula que antecede à
avaliação, retirando desta seleção de exercícios alguns para compor sua prova:
Eu entrego a eles aquilo ali e vai passando o bimestre e no último dia de aula antes da prova eles me trazem as dúvidas, que aquilo ali eles vão fazendo eles entre eles, aí eles me trazem as dúvidas. Eu tiro as dúvidas com eles, aí essas questões, dessas questões, eu tiro umas questões e ponho na prova.
Voltando-nos ao enunciado acima e baseados nas regras avaliativas instituídas pela
professora, nos aproximamos de sua prática pedagógica. Seu discurso pedagógico nos dá
pistas de que ela não se utiliza de um processo de avaliação tão rigoroso, pelo fato de que ela
extrai as questões da prova da lista de exercícios, o que sugere um enquadramento fraco, que
poderia ser associado a toda prática dessa professora.
Estabelecendo uma relação entre o ensino de Física de sua escola e o seu ensino, ela
equipara o ensino da escola ao seu, categoria na qual também inclui todo o corpo docente de
Física, afirmando que “escola e professores caminham juntos”.
No tocante aos PCNEM de Física, embora admita que sequer se lembra do documento,
esta professora confere a ele um caráter autoritário, distante da realidade e de difícil
compreensão por parte dos professores:
[...] aquilo ali tem coisas que você consegue usar e coisas que você não consegue usar. O que me pareceu é que foi feito por um pessoal que tava mais assim na cúpula e não na realidade. [...] Eu acho que ele foi muito imposto, acho que tem coisa demais ali e acho que tá fora da realidade. Acho que ficou uma coisa que você lê, lê, lê, lê e ficou meio perdido ali.
Com esse enunciado, a professora denuncia aspectos semelhantes aos criticados pelo
discurso acadêmico da educação e da educação em Ciências, tais como o autoritarismo da
proposta e a dificuldade de entendimento por parte dos professores. Os PCNEM são tão
distantes dessa professora que ela não os utiliza para nada, sendo sua recontextualização o
silêncio, em função da distância entre a lei e sua prática docente.
Na confecção do planejamento anual, a professora refere a consulta à proposta
curricular enviada pela Secretaria Estadual de Educação (SEEDUC) às escolas, o qual
determina os objetivos a serem atingidos e os conteúdos obrigatórios e opcionais que devem
ser abordados em cada disciplina e em cada ano de ensino. Ela admite, no entanto, que esse
92
documento não é rigorosamente seguido já que os professores utilizam-no apenas como base
para a confecção do plano de curso, procurando abrangê-lo tanto quanto possível.
Avaliando o ensino de Ciências da escola pública dos dias de hoje, esta professora
compara a realidade da escola A à de outra escola onde trabalha, no turno da noite. Nesse
ponto, ela estabelece duas categorias, as escolas estaduais de ensino noturno para jovens e
adultos e as escolas estaduais de ensino diurno regular. No noturno, a professora lamenta sua
dificuldade em abordar os conteúdos de Física, admitindo que não os aprofunda dada a
dificuldade da clientela, atribuída, segundo ela, ao fato de serem “pessoas que não estudaram,
quer dizer, vieram, ou pararam há muito tempo entendeu, e que trabalham e aí é difícil”.
Nesse trecho de seu discurso, fica claro que, visando atingir o nível de seus alunos da escola
de ensino noturno, esta professora promove a recontextualização do currículo oficial, optando
por não aprofundar os conhecimentos físicos. Também é visível o isolamento que estabelece
entre os cursos noturno e diurno, classificando-os e atribuindo ao último qualidade superior,
além de atribuir exclusivamente à clientela essas diferenças, eximindo-se, nesse caso, de sua
responsabilidade no atingimento da qualidade.
Embora relate a queda do nível e do interesse dos alunos da escola A, a professora
enfatiza que “é um colégio muito bom de se trabalhar, de se viver, porque os alunos são
ótimos, ótimas pessoas”. Nesse trecho de sua fala, também é possível perceber que ela atribui
a qualidade à clientela. No entanto, ao comparar a realidade do colégio há dez anos atrás,
quando iniciou, aos dias de hoje, a professora afirma:
No início do colégio, até uns seis anos atrás, você tinha que ter muito cuidado com o que você pedia pro aluno porque você pedia isso aqui assim [pouco] e ele fazia isso [muito], ele se virava, ele saía, ele procurava não sei aonde, se dedicava, era uma coisa, entendeu? Hoje não. Hoje tá restrito aquilo ali, você pediu, ele faz aquilo. A comparação que eu faço é essa.
Por meio desse discurso, ela categoriza e isola a prática pedagógica do passado e a do
presente. A qualidade também é categorizada como qualidade de antigamente e qualidade
atual e isolada de acordo com a época, tendo sido atribuído maior valor à qualidade de
antigamente.
Ao mesmo tempo, a professora relaciona a queda do nível e do interesse dos alunos ao
fato de ingressarem no Ensino Médio “com uma postura de escola do município”:
Olha só, vou falar uma coisa até, bom, eu acho o município muito, né, assim, vai passando, tem aluno que é semi-analfabeto, mas vai passando, entendeu, e isso vem refletindo. No primeiro ano eles chegam aqui com uma postura de escola do município, tudo eles podem, eles chegam assim. Já no primeiro mês eles já percebem que não é bem assim, que tem regras, que tem uma cobrança e aí eles vão se acomodando dentro daquilo até, entendeu?
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No enunciado acima, ela estabelece duas categorias, a da prática pedagógica das escolas
do município e a da escola A. Ressalta a singularidade da sua escola no que diz respeito às
suas exigências, exaltando-a e isolando-a da rede municipal de ensino. Além disso, ela atribui
às regras e à cobrança imposta pelo sistema escolar o mérito de mudar a postura dos alunos
vindos do município.
Ao ser perguntada sobre a representação do professor de Ciências como alguém muito
inteligente ou maluco, esta professora de Física diz que, ainda hoje, os alunos a veem como
“meio maluquinha”. Ela equipara este estereótipo ao estereótipo de inteligente ao ilustrar o
interesse que a disciplina tem despertado em alguns estudantes, destacando que há alguns que
saem da escola A e ingressam no nível superior cursando Física.
Relacionando a dificuldade que seus alunos apresentam nos conhecimentos físicos à
defasagem que têm nos conhecimentos matemáticos, a professora afirma:
Física é uma aula pesada, é o que eu falo pra eles, então, entra outros conhecimentos e a Matemática é o pior deles [risos], e a gente precisa de Matemática pra Física, infelizmente, aí, o que que acontece, se você não der uma aula assim, tranquila, brincando mesmo, não vai pra frente, não vai, porque aquilo é muito chato, então as minhas aulas são assim.
Ela isola a Física e a Matemática das outras disciplinas por serem pesadas e “piores” que
as outras. Parece que ela vê o (bom) relacionamento com os alunos como a forma de
compensar a dureza de disciplinas dessa categoria. Seu discurso pedagógico demonstra que,
por meio do seu trabalho, ela procura reduzir o pavor com que, de início, os estudantes se
relacionam com a Física, por meio do bom relacionamento que mantém com eles.
Segundo esta professora, embora muitos estudantes não entrem em contato com a Física
já no Ensino Fundamental e, por isso, sua relação com a disciplina seja prejudicada, tal fato é
revertido por ela, pela relação que estabelece com eles:
E aí eu converso com eles que não é bicho de sete cabeças, nada disso, quem tiver dificuldade, fala e tal, e vou caminhando e eles vão indo. E depois, ‘ai, adoro Física!’, ou então continua ‘ai, detesto Física, mas eu gosto da sua aula’.
A professora declara que o desempenho que os alunos apresentam nas avaliações e o
índice de aprovação ao final do ano letivo são bons. Aqui, seu discurso pedagógico difere do
que geralmente se observa nas escolas públicas estaduais bem como se contrapõe ao que foi
dito por ela anteriormente, quando destaca a queda do nível e do interesse dos alunos. Fica
evidente, mais uma vez, o isolamento da escola A em termos de desempenho dentre as escolas
públicas estaduais bem como sua classificação num patamar superior.
Ainda com respeito à avaliação, a entrevistada acredita que tem como principal
responsabilidade fazer com que seus alunos entendam e não apenas tenham bom desempenho
94
nas provas. Esquecendo-se da ênfase que, na prática, confere à preparação para o vestibular,
declara o que considera como a qualidade do ensino de Física que gostaria de oferecer aos
seus alunos:
Eu procuro fazer com que eles entendam a Física e não assim, tipo decorei, passei na prova e acabou. Eu procuro fazer isso, entendeu, que eles entendam, que eles sintam mesmo aquilo.
Ao enunciar este objetivo, a professora distancia a aprendizagem mecânica de uma
aprendizagem conceitual, estabelecendo estas duas concepções como categorias e
considerando a segunda superior. Neste trecho, seu discurso pedagógico nos aproxima
sobremaneira de sua prática docente e nos dá pistas de que, no que se refere ao controle sobre
a comunicação pedagógica em sala de aula, há um enquadramento fraco, que pode ser
observado pela importância que essa professora confere ao aluno (seu entendimento e até
“sentimento”).
Quanto à responsabilidade dos estudantes, acredita que o esforço que eles imprimem é o
que há de mais importante no processo de ensino e aprendizagem, destacando, ainda, o fato de
que a escola A estimula e exige uma postura de interesse por parte dos alunos. Nesse ponto de
seu discurso, a professora mais uma vez isola a escola estadual A das demais escolas
estaduais, classificando-a num nível superior de qualidade, comparada às demais escolas
públicas estaduais.
Ao referir-se à responsabilidade da escola A na direção de um ensino de Ciências
adequado aos dias de hoje, a professora queixa-se da falta de infra-estrutura necessária para
isso. Diz que gostaria de dispor, mais do que de um laboratório, de uma estrutura que a
permitisse utilizá-lo, visto que a preparação dos experimentos demanda tempo de que,
sozinha, não dispõe. Nesse ponto, a professora destaca, novamente, a reduzida quantidade de
tempos semanais para as aulas de Física como um aspecto negativo. Apenas dois tempos,
segundo ela, são insuficientes para abordar todos os conteúdos previstos, o que implica na
recontextualização do currículo oficial (pressupomos que o currículo oficial seja o
estabelecido pela SEEDUC) pela falta de tempo e de infra-estrutura que se confunde com a
redução do conteúdo e a eliminação de práticas alternativas que ela valoriza, como o uso de
experimentos.
Outra queixa se refere ao desejo de levar os alunos para atividades extra-classe fora da
escola, o que, para a professora, torna-se impossível dada à dificuldade de verbas para o
aluguel da condução adequada e, mais uma vez, à escassez de tempo. Ela deixa claro que
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concebe como qualidade, o ensino de Ciências que inclui práticas de laboratório e atividades
extra-classe.
Perguntada sobre o que deveria mudar no ensino de Ciências, em uma perspectiva mais
ampla, a professora aponta uma saída radical:
Tinha que parar de ter vestibular. Não sei como isso. Porque você quer colocar, eu gostaria muito mais de estar falando assim, de um celular, de um cartão magnético, de um CD, de um DVD. Isso é o que eu me bato, entendeu? Não tem como, você fica naquela, fica ali Newton mesmo e não pode abrir mais.
Nessa fala, ela deixa claro que vê o exame oficial (e, portanto, o currículo oficial que
serve de preparação para o mesmo) como um empecilho à abordagem de temas que
relacionassem a Física ao cotidiano dos alunos. Mais uma vez, é evidente a tensão presente no
início do discurso pedagógico desta professora assim como o isolamento que estabelece entre
formar para o vestibular e formar para a vida. Segundo ela, gostaria de oferecer aos seus
alunos um ensino útil a eles e não um ensino propedêutico, que enfatiza apenas os conteúdos
científicos descolados da realidade dos estudantes. Na prática, ela prepara seus alunos para o
vestibular, mas sua convicção é outra. A recontextualização do currículo idealizada pela
professora permitiria formar para a vida.
Em relação à realidade da escola A, esta professora acredita que nada tem que mudar e
confere a ela a qualidade que julga ter uma escola particular: “Essa realidade aqui da escola é
a melhor que eu tenho. [...] Essa escola aqui você pode dizer que ela funciona como um
colégio particular”. Neste ponto, ela institui como categorias as escolas públicas e as escolas
particulares, valorizando sua escola tal qual uma escola particular, representação característica
do ensino de qualidade dos dias de hoje. Ao mesmo tempo, fica claro o isolamento criado por
esta professora entre a categoria das escolas públicas, da qual excluiu sua escola, e das escolas
privadas. Justificando a superioridade atribuída por ela à escola A, ela atribui a qualidade da
sua escola novamente à clientela, afirmando:
Eles competem dentro de todas as Olimpíadas que têm, sendo públicas ou não, em todas as Olimpíadas eles entram, tudo o que aparece eles estão [...] De início, foi [iniciativa] da escola porque não tomavam nem conhecimento, mas agora eles já, eles já sabem a época que tem a Olimpíada de Matemática, de Física.
Nesse enunciado, notamos que o fato de os alunos se inscreverem e apresentarem bons
resultados em Olimpíadas de Matemática e Física é, para ela, um critério de valor da
qualidade do ensino da sua escola. Nesse ponto, o discurso pedagógico dessa professora nos
permite identificar como sua concepção de qualidade, aquela voltada a aspectos quantitativos,
expressos pelos resultados dos estudantes e pela eficácia do processo de ensino e
96
aprendizagem, o que pode indicar uma contradição se levado em conta seu enunciado que
atribui ao sistema meritocrático do vestibular o problema central do ensino de Ciências.
4.1.2 Discurso da professora de Química da escola A
Ao ser questionada sobre os objetivos que pretende alcançar com a sua disciplina, a
professora de Química da escola A diz que todos os professores dessa matéria se envolvem no
tratamento desses objetivos de maneira conjunta, sempre preocupados em “cumprir realmente
o programa”. Nesse ponto de seu discurso pedagógico, ela nos dá pistas de que os professores
percebem o currículo oficial como uma sequência de conteúdos a ser seguida, voltando-se tão
somente à transmissão do que foi estabelecido.
A professora exalta a particularidade da sua escola atribuindo-a ao fato de ter “um
convênio com uma instituição pública federal de ensino profissionalizante”, o que deixa
evidente o forte isolamento da categoria da escola A, posicionada num patamar superior às
outras escolas, e a valorização da formação voltada para o mercado de trabalho. Tal como nos
PCNEM, o discurso dessa professora estabelece uma relação entre a educação e o mundo
produtivo, o que denota uma concepção que relaciona a qualidade educacional à qualidade
empresarial.
Retomando a reflexão sobre seus objetivos, a professora aproxima-os dos objetivos de
seus alunos, que se voltariam ao alcance de resultados quantitativos para garantir o ingresso
na escola técnica: “eles também têm uma preocupação com nota, com o rendimento, porque
eles querem ter direito à escolha e quem tiver nota mais alta vai escolher primeiro”.
Ao ser diretamente perguntada sobre a relação entre os objetivos que pretende alcançar
através da Química e o ingresso dos alunos na instituição de ensino técnico, a professora é
enfática ao afirmar que não tem essa preocupação. Na continuidade de seu discurso, porém,
ela se contradiz admitindo que seu objetivo é “dar a base” aos estudantes em termos dos
conteúdos exigidos pela escola técnica, ainda que tal postura não se torne explícita para os
alunos. Nesse ponto, não conseguimos identificar processos de recontextualização do
currículo oficial por parte dessa professora. Ela parece acreditar que o seguindo exatamente
como se apresenta será capaz de fazer com que seus alunos atinjam seus objetivos.
Ao ser questionada sobre a abordagem dos conhecimentos químicos, ela deixa implícita
alguma influência das políticas curriculares em sua prática, mencionando inclusive um dos
conceitos centrais da proposta, o conceito de contextualização:
Olha, é sempre contextualizado, sem dúvida. A gente sempre fala muito na questão de como é que ele tem que se portar nos lugares. Tem até uns professores que fazem uns trabalhos interessantes, de como é que se porta num estágio, pega, em
97
alguns momentos e faz um outro tipo de trabalho em sala. [...] é mais o conteúdo mesmo, pelo menos na minha disciplina.
Percebemos que a professora utiliza o conceito de contextualização atrelando-o à
preparação para o mercado de trabalho. Quando perguntada sobre a relação entre a Química e
o dia a dia dos alunos, ela confirma seu compromisso com a transmissão do conteúdo: “na
minha maneira de ver é mais o conteúdo mesmo, pelo menos é a minha visão, na minha
disciplina”.
A professora declara que tem como objetivo a formação de sujeitos críticos. Entretanto,
percebemos que ao desdobrar sua declaração, entende essa formação como preparação para o
mercado: “a gente tá sempre chamando a atenção deles pra essa oportunidade que eles tão
tendo, de ter uma profissão”. Ela se ressente das dificuldades dos alunos da escola A para
atingir essa formação, equiparando-os aos alunos das outras escolas públicas, inclusive as
municipais, no que se refere aos problemas sociais dessa clientela. Nesse sentido, segundo ela,
as dificuldades econômicas são as mais evidentes, o que ressalta o quanto estes aspectos estão
imbricados no ambiente educacional da rede pública de ensino.
Quando solicitada a descrever como procurava formar um sujeito crítico e como tem
exercido sua prática para atingir esse objetivo, a professora afirma:
Eu acho que a gente tenta questionar as coisas. Eu tento colocar a Química num contexto histórico. Quando, por exemplo, a gente vai falar de estrutura atômica, eu vou lá na Grécia, [...] eu faço essa contextualização porque eles têm que entender que esse raciocínio é construído, que não surgiu do nada. As coisas que a gente usa hoje não vieram assim, no estalo. Isso é trabalho árduo de gente como a gente, que se dedicou, que pesquisou, que fez um esforço para construir aquilo.
Neste enunciado percebemos como a professora re-significa mais uma vez a expressão
“formação de um sujeito crítico”, atribuindo-lhe como significado a ênfase em aspectos
epistemológicos e históricos em suas abordagens da Química.
Ainda que a formação para o mercado de trabalho seja uma das finalidades
preconizadas pelos PCNEM, não é a única. Percebemos que, quando aborda os PCNEM, a
professora recontextualiza a proposta oficial, atribuindo alto valor àquele objetivo e
parecendo, às vezes, até desconsiderar outras finalidades do ensino de Ciências sugeridas pelo
documento, como a promoção de uma maior cultura geral e de uma visão de mundo ampliada.
Mesmo tendo valorizado os alunos da escola A, na continuidade de seu discurso a
professora identifica neles uma defasagem em relação a conteúdos anteriores. Esse déficit
pode ter sido adquirido, segundo ela, no decorrer do próprio Ensino Médio, e pode estar
agregado também a outros fatores:
Isso acontece, e eu acho que isso também não é incomum. Vai depender de como é feito o trabalho, vai depender do aluno, do interesse do aluno em fazer exercícios,
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porque às vezes a gente passa bastante exercício e eles não fazem, eles querem só copiar um do outro, sabe. [...] Eu tô aqui pra ajudar mas eu vou ajudar mais quem tem mais interesse. [...] Mesmo aqui a gente ainda encontra essa resistência.
Nesse enunciado, notamos que a professora institui novamente a categoria da escola A e
a das demais escolas, mas, com a intenção de justificar a defasagem dos seus alunos, agora,
não exalta sua escola, mas equipara-a às demais. Ela também estabelece a categoria dos
alunos interessados e a dos alunos desinteressados, valorizando sobremaneira a primeira e
destacando que a postura que exerce frente a estes dois grupos é distinta.
Tentando estabelecer alguma relação entre os objetivos que pretende alcançar através da
Química e os objetivos da Física, da Biologia e da Matemática, a professora é direta ao
afirmar que acredita que todas as disciplinas bem como todos os professores podem ter as
mesmas finalidades que ela. Nesse momento, ainda que estabeleça enquanto categorias cada
uma das disciplinas científicas na escola A, assim como seus professores, ela os coloca num
patamar de igualdade.
Relatando os conteúdos que aborda no nível médio, a professora categoriza dois
momentos do ensino de Química que pratica: um deles voltado ao conhecimento de conceitos
químicos básicos e o outro voltado ao treinamento desses conceitos em exercícios. Mais uma
vez, ela preconiza uma abordagem que enfatiza a fixação de conceitos visando aspectos
quantitativos da aprendizagem.
Ao instituir a categoria Química Orgânica e a categoria Físico-Química, atribuindo à
segunda maior dificuldade, a professora acusa os conceitos físicos e matemáticos de serem
empecilhos ao melhor desempenho dos alunos. Mais especificamente, ela isola a Matemática
das demais disciplinas científicas, relacionando a dificuldade que os estudantes têm na
aprendizagem da Físico-Química à defasagem que apresentam nos conhecimentos
matemáticos.
Enfatizando, novamente, que a preparação para o vestibular é importante para os alunos
da escola A, ela justifica que “a grande maioria fala que quer fazer vestibular. Há alguns
indecisos, que ainda não resolveram. Mas a grande maioria diz que vai fazer. Nem que seja
pra tentar”. Na sequência de seu discurso, a professora acrescenta que o convênio entre a sua
escola e a instituição de ensino técnico profissionalizante também se constitui em um
“problema”, deixando clara sua preocupação com o fato de que os estudantes ficam
sobrecarregados a ponto de não se dedicarem devidamente à preparação para o vestibular:
Porque eles ainda têm que dar conta do curso técnico, esse é um problema. [...] quando eles terminam aqui, eles ainda têm mais um ano de curso técnico. Então, eles não estão livres pra ir para uma faculdade. E depois do terceiro ano do curso
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técnico eles ainda têm estágio pra fazer. Então eles ainda tão muito comprometidos com o curso técnico. Mas tem muita gente que faz e passa bem, passa bem.
A professora admite que, quando não consegue tratar de todos os conteúdos previstos
no planejamento no decorrer do ano letivo, esforça-se para resgatar o que não foi dado
anteriormente, no ano seguinte. Os processos de recontextualização do currículo da escola A
acontecem para proporcionar esse tipo de ajuste, no sentido de cumprir o currículo
estabelecido.
A professora se diz satisfeita com o nível de aprendizagem de seus alunos, mas,
retomando o discurso acerca da defasagem apresentada por eles, denuncia a “cultura do
município”:
A maioria alcança. A maioria alcança. Mesmo com dificuldade, muitos chegam aqui, a gente teve problema com, como qualquer outra escola, com a cultura do município, achando que tem que ser só um trabalhinho e eles levam um impacto, eles têm um impacto, assim, enorme no primeiro ano. Porque não é assim aqui.
Com esse enunciado, ela novamente valoriza sua escola em relação às outras devido às
exigências que impõe aos estudantes, embora, em contrapartida, equipare-a às demais escolas
para justificar o problema da defasagem dos alunos oriundos da rede pública municipal e da
cultura de avaliação pouco exigente. Nesse ponto, com base nas regras avaliativas impostas
pela professora em seu discurso pedagógico, temos indícios de que a avaliação praticada por
ela tem um nível de exigência superior ao que é exigido pelas escolas públicas do município.
A professora afirma que seus alunos “já são diferentes” e atribui tal consideração ao fato
de serem selecionados automaticamente pelo município (“só conceito O”). Instituindo-os
como categoria, fica claro que lhes confere mais valor do que à clientela das demais escolas.
No entanto, em contrapartida, ela enuncia uma série de limitações desses estudantes: “eles
chegam com dificuldades básicas! De escrita, de Matemática, de conteúdo lógico. É difícil!”
A professora refere que não utiliza o livro didático porque ele é “péssimo”, ainda que
tenham sido os próprios professores que o escolheram. Ela justifica dizendo que “não lhes
eram dadas muitas alternativas, [...] escolhemos o menos pior naquele momento e é muito
ruim!” Como considera o livro selecionado aquém do nível do conteúdo que pretende abordar
em sua prática, a professora se detém apenas em alguns de seus exercícios deixando evidente
o processo de recontextualização que estabelece: “a gente quase não usa o livro [...] [usa] pra
exercício, mais exercício”. Ela descreve sua prática pedagógica, alternativa ao uso do livro,
que pode ser considerada um exemplo de ensino tradicional:
[...] eu faço sempre um resumo do conteúdo daquele dia, um resumo normalmente curto, escrevo no quadro e eles copiam. Eles têm caderno [...] eles sabem que precisam daquilo. Então eles têm um caderno todo organizado com um resumo do conteúdo. E o restante é exercício, ou exercício do livro ou da lista de exercício,
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que eu trago, de outros livros, ou, quando o conteúdo é muito extenso, que eu vejo que é importante que eles tenham, que o livro não aborda de uma maneira legal e tal, eu trago a cópia do capítulo de outro livro, e eles tiram cópia e guardam lá no caderno pra não copiar tudo, não copiar muita coisa, isso acontece também.
Ela admite não ter introduzido as tecnologias em suas aulas, acreditando ser essa uma
dificuldade do professor dado o pouco tempo de que dispõem para tal. Julga que o uso das
tecnologias em sala de aula é “válido” para complementar a prática docente, mas não para
resolver os problemas da educação dos dias de hoje: “eu acho que não é a tecnologia que
resolve, eu não sou desse grupo. Eu acho que não é! A tecnologia complementa, mas ela não
resolve, ela não vai dar conta”. Ela institui duas categorias: a dos professores que defendem a
tecnologia como forma de livrar a educação de suas limitações e a dos professores que
acreditam que apenas o uso desses recursos não será capaz de resolvê-las. Ao incluir-se no
segundo grupo, a professora classifica-o como superior ao outro, atribuindo-lhe maior valor
pelo fato de crer que a educação necessita de mais do que a tecnologia para atingir a
qualidade.
Com esse discurso, ela esbarra numa discussão presente entre os professores de Ciências
investigados por Rezende et al. (2011), que se posicionam entre a tecnologização do ensino de
Ciências para salvá-lo de seu anacronismo e a concepção de que apenas isso não basta.
Parece-nos que essa professora estaria no segundo grupo.
Ela também relaciona as tecnologias à outra questão que, para ela, é muito importante
para o atingimento da qualidade, a melhor remuneração da profissão docente:
Já é uma cobrança, já tem que ter um ritmo de trabalho. Porque eu tenho que me preparar primeiro, eu tenho que saber usar o aparelho, eu tenho que saber os programas e ter um tempo no laboratório de informática, mas esse tempo tem que ser remunerado! Esse tempo não é do meu tempo livre! Não pode ser dessa maneira! [...] primeiro, o Estado tinha que dar capacitação, no horário de trabalho! Porque isso sim ía estimular o professor. Você tem que ir lá no teu horário de almoço? Pra ver os programas que tem? Não tem graça isso.
Ao estabelecer uma comparação entre o seu ensino de Química e o ensino de Química
da escola A, a professora afirma que não percebe diferença entre ambos, conferindo-os a
mesma qualidade. Ao fazer uma comparação entre o seu ensino e o ensino de Química de
outros professores, ela atribui as diferenças ao fato de serem pessoas diferentes trabalhando
um mesmo planejamento, sem no entanto classificá-los ou criar hierarquias.
Comparando o currículo oficial enviado pela SEEDUC ao currículo da escola A, a
professora exalta este último equiparando-o ao primeiro, embora admita que sua escola
guarde particularidades que a fazem posicioná-la num patamar superior às demais. Para ela, as
outras escolas não têm um currículo em consonância com o que a qualidade oficial estabelece,
101
diferentemente da sua: “nosso planejamento aqui tava ótimo! Tava muito dentro do que eles
propunham, totalmente dentro”. Em outro enunciado, voltando-se às necessidades do ensino
de Química dos dias de hoje, a professora esclarece que essa equiparação entre o currículo
oficial e o currículo da escola A não vale para qualquer escola pública:
Eu acho que nós atendemos às necessidades do ensino de Química! Nós, aqui, entendeu? O documento é irreal. O documento não atende às necessidades do ensino de Química fora daqui. Não atende. Porque ninguém consegue dar Química como a gente consegue, eu não dou, eu já trabalhei em outras escolas da rede (estadual) que eu não consigo ensinar Química como aqui. A reorientação que o Estado mandou no início do ano pras escolas não atende, não bate com a realidade do Estado, está totalmente fora.
Nesse trecho de seu discurso pedagógico, ela isola fortemente o currículo da sua escola,
valorizando-o sobremaneira e desqualifica as demais escolas na tarefa de cumprir a proposta
curricular do Estado que, para ela, também parece estar aquém das finalidades que estabelece
como fundamentais ao ensino de Química hoje.
A respeito da infra-estrutura da escola A, a professora se queixa da falta de um
laboratório mencionando que há apenas uma sala chamada de laboratório, mas inadequada às
práticas da Química:
Eu não tenho coragem de levar [os alunos]. Eu não acho seguro. É perigoso, com certeza. São carteiras de sala de aula, não tem bancada. Não tem nada pra você realmente usar aquilo, como um laboratório, rotineiramente. Então não tem.
No que se refere aos PCNEM de Química, a professora julga-o como uma iniciativa
interessante, porém distante da realidade de sala de aula:
Eu acho bom, um bom documento. Eu acho que todas essas coisas são boas, são boas iniciativas. Agora, vir pra realidade aí isso é outra história. É tudo muito complexo na realidade, então assim não dá nem pra cobrar com o rigor que eles dizem que vão cobrar, ‘não, mas tem que ser assim, tem que contextualizar’, só contextualizar? Então, a minha visão e é mais ou menos a visão da equipe de Química, nós somos meio conteudistas, [...] então às vezes, entra um pouco em conflito, mas eu acho que a gente não foge não. [...] Aquilo ali também não é imposto. A equipe avalia o melhor pro grupo.
Ela parece contraditória ao considerar que por um lado os PCNEM são um bom
documento e por outro, que estão fora da realidade e enfatizam a contextualização, aspecto
que ela julga insuficiente. Embora admita o documento como uma tentativa válida de
organização, essa professora é novamente ambígua ao referir-se a ele como algo imposto sem
diálogo com os professores:
Aquilo é uma das tentativas de organização. E precisa realmente organizar. Só que é tudo muito torto. Eles começam lá de cima e jogam um negócio e não treina ninguém, não tem curso, não tem uma reunião [...] com alguém que entenda com mais profundidade [...] somos nós que vamos no caminho.
102
Ao relembrar que utilizou os PCNEM para definir a sequência dos conteúdos durante a
elaboração do planejamento da escola A, a professora demonstra valorizá-los por conta da
“linha de raciocínio” seguida para sequenciar os conteúdos que preconizam. Nesse trecho de
seu discurso pedagógico, não conseguimos identificar o processo de recontextualização do
discurso das políticas oficiais por parte dessa professora.
Com um olhar mais amplo, a professora denuncia que o ensino de Ciências na escola
pública de hoje é péssimo: “não atinge em nada os objetivos [...] os objetivos do ensino de
Ciências mesmo, que é esse, formar um cidadão crítico, pra ele observar melhor a natureza,
para entender melhor”. Nessa resposta, a professora deixa claro mais um significado que
atribui à expressão “cidadão crítico”. Desta vez, ela relaciona a capacidade de crítica à
observação da natureza, deixando de lado qualquer relação entre cidadania e sociedade.
Ao retratar a realidade atual do ensino de Ciências na escola pública, a professora se dá
conta de que não é apenas ele que está desqualificado, mas também o de outras disciplinas.
Refletindo sobre o problema da falta de qualidade, ela lamenta:
Não é falta de planejamento, não é falta de qualificação em si do professor, eu acho que não é isso! Eu acho que o problema é muito mais complexo! Eu acho que é um problema, assim, de falta de valores, falta de valorização da escola. Eu acho que o jovem não tá valorizando a escola, não tá vendo a escola como algo importante pro futuro dele, sabe, porque ele ta atraído por outras coisas.
Identificamos que, no enunciado acima, a professora se queixa da desvalorização da
escola por parte dos jovens, o que novamente nos remete a discursos de professores
observados por Rezende et al. (2011), no estudo sobre a qualidade do ensino de Ciências.
Chamamos atenção para o fato de que, tal como neste trabalho, essa consideração não é
explorada, permanecendo obscura sem que ela se esforçasse em elaborar por que tal
fenômeno se dá.
Estabelecendo a categoria do ensino noturno para jovens e adultos e a categoria do
ensino diurno, a professora isola fortemente a primeira devido à postura apresentada pelos
jovens, a qual identifica como algo “desesperador”. Em contrapartida, ela equipara as duas
categorias, denunciando a facilidade na promoção entre as séries como uma das justificativas
para o descaso dos estudantes da escola pública de hoje:
E a questão é que existe um arraste tão grande no ensino público, eu acho que eu posso botar dessa maneira, de facilidade para ter a promoção de série, que, no fim das contas, eles fazem aquilo porque eles sabem que vão passar. Você não pode reprovar a turma toda! Isso é fato! E isso pode ser interpretado como uma incapacidade do professor! Embora não seja essa a realidade, pode ser interpretado dessa maneira!
103
Tratando da representação das Ciências Naturais e da Matemática como conhecimentos
muito difíceis bem como do professor de Ciências como alguém muito inteligente ou maluco,
essa professora categoriza o ambiente escolar e o ambiente extra-escolar. Ela percebe que
dentro da escola tais representações são quase inexistentes, embora chame a atenção para a
presença do estereótipo de gênio entre os alunos da escola A, ao mencionar o seguinte
comentário: “porque que você estudou isso, professora? Porque que você não foi fazer outra
coisa? Isso é muito difícil!” Voltando-se para fora do ambiente escolar, ela admite que a
representação das disciplinas científicas como conhecimentos para poucos e dos professores
de Ciências como gênios ainda estão presentes.
Sobre seu relacionamento com os estudantes, ela afirma que “em geral, eles não gostam
de Química, mas gostam da professora”. Segundo ela, dão importância às aulas, o que percebe
graças ao “esforço pra entender” que identifica nos alunos. Essa professora nos dá pistas de
que, na avaliação, como outros professores, “força a barra, empurra daqui, empurra dali e a
maioria vai”, o que nos permite afirmar que ela tenta ajudar os alunos a melhorarem.
Aproximando-nos de sua prática docente por meio das regras avaliativas que institui,
percebemos o quanto ela valoriza a avaliação formal, considerando relevantes aspectos
quantitativos desse processo: “não é assim ‘ah, aquele aluno é esforçado’, não, não, não, sem
chance! É rendimento”. Mais uma vez, é evidente sua abordagem conteudista, atrelada a uma
concepção de qualidade ditada pelos índices quantitativos de avaliação. Ao admitir que adota
uma avaliação rigorosa, essa professora nos dá pistas de que exerce um forte enquadramento,
que poderia ser associado a toda sua prática.
Como professora de Química do Ensino Médio, diz sentir-se “um pouco confortável
frente a esse caos” em que se encontra a rede pública de ensino, parecendo até desvalorizar
sua disciplina: “aquilo não é o mais importante, eu sei, eu como pessoa, sei disso. Língua
Portuguesa e Matemática. Eu acho que falta demais isso! [...] eles não sabem essas outras
coisas, então é mais grave”. Estabelecendo a categoria dos professores de Química e a dos
professores de Português e Matemática, a professora valoriza tais disciplinas por
referenciarem conhecimentos relevantes que, para ela, a Química não é capaz de abordar.
Voltando suas atenções especificamente à sua disciplina, em outro trecho de seu discurso
pedagógico ela defende:
Eu acho que a minha principal responsabilidade é mostrar isso, o quanto é importante o ensino de Química e a Física, porque há um questionamento geral ‘pra que que a gente aprende isso?’ Logo nas primeiras aulas eu converso muito sobre isso com eles. [...] eles não concordam. Eles continuam resistindo. E eu acho que ao longo do tempo, ao longo do ano, eles vão vencendo as dificuldades, e aquilo vai
104
meio que sendo apagado da mente. Eles não, não lembram da importância, mas eles reclamam muito.
No enunciado acima, a professora parece se contradizer, se levarmos em consideração
que ela afirmou anteriormente que não considerava a Química importante.
A professora também se queixa da falta de comprometimento dos estudantes em
contribuir para um ensino de Ciências melhor. A falta de esforço dos alunos é justificada, por
ela, pelo fato de eles não perceberem a utilidade daqueles conhecimentos para a vida. Ainda
que admita que esse esforço seria importante, a professora reconhece o quanto o perfil do
jovem atual interfere nesse aspecto. Mais uma vez, ela institui como categorias os jovens da
escola A e os das demais escolas, públicas ou particulares, equiparando-os, mas atribuindo à
falta de cobrança da família o descompromisso dos jovens da escola pública de hoje.
É difícil você cobrar o que você não enxerga como valor, você sabe. A maioria do povo, desse grupo que, nem os pais tiveram acesso, então, os pais também não sabem o que têm que cobrar. Eles acham que a escola tá boa. Eu via isso na outra escola, ‘os pais gostam da escola porque a escola tem merenda, a escola dá livro, tem riocard, tem uniforme e ainda fica com o jovem lá naquele período, o jovem não tá na rua fazendo outras coisas’. Eu ouvi isso várias vezes na escola. Não é o conteúdo, não é se ele vai conseguir fazer o concurso, um ou outro reclama de falta de professor, da matéria que não é dada, mas a grande maioria, é isso que é legal, é bom. Então, o que que você vai fazer?
Hoje em dia, o valor atribuído pelos pais à escola é, para a professora, fruto de uma
cultura que entende o sistema escolar como uma espécie de programa assistencialista, capaz
de proporcionar aos jovens benefícios sociais que se equiparam ou até se sobrepõem aos
valores que a escola é capaz de transmitir. Este aspecto também foi levantado por Rezende et
al. (2011).
Ao abordar a educação e o ensino de Ciências de forma mais ampla, ela trata de fatores
diretamente ligados ao Estado e dispara que não acredita que haja hoje propostas de mudança
em direção à qualidade. A respeito dos PCNEM, ela novamente denuncia que
Fica tudo na teoria. As pessoas que fazem essas coisas elas não sabem da realidade de sala de aula. Elas não conhecem o perfil do aluno, o perfil do professor, o quanto o professor tá cansado, o quanto ele tem que enfrentar no dia a dia dele. Quantas vezes ele tem que pedir pro jovem ficar quieto pra ele poder falar, o que que ele tem que negociar, pra conseguir dar a aula dele tem que negociar em sala.
Dentre os aspectos relacionados à qualidade que deveriam ser, para a professora,
garantidos pelo Estado, ela enumera os que julga mais importantes:
Treinamento, pode ser essa questão dos recursos, equipar melhor a escola. Eu acho que laboratório não resolve, ajuda. Laboratório de Química é muito caro. [...] Agora eu acho que básico realmente é você dar a oportunidade e o tempo pr’aquele professor fazer planejamento adequado, rever. Por que não tem, isso não tem. Eles querem que nos quatro tempos que a gente tem, a gente faça mágica. Corrija prova, faça a média [...] você tá fazendo teu trabalho, teu trabalho tem que ser remunerado devidamente. Eles têm que cobrar realmente que você faça um bom trabalho, mas
105
eles têm que te dar condições que você faça, e é condição econômica, é condição de espaço, é condição de ambiente bom, porque aqui, você vê que os professores ficam bem, mas você vai em escolas aí que o professor tá revoltado com o Estado porque o salário tá muito baixo, entendeu, tem outros climas. Isso tudo não favorece o teu trabalho.
A remuneração do professor e a infra-estrutura da escola são novamente abordados e
destacados por ela como condições relevantes para o alcance da qualidade da escola pública.
Referindo-se mais especificamente à escola A, a professora, de início, parece não querer
comprometer-se, mas, depois, enumera alguns fatores que julga importantes, tais como salas
devidamente equipadas com ar condicionado e lousa, recentemente adquiridos.
Tratando especialmente da Química, ela nos remete a outro discurso já levantado por
Rezende et al. (2011), que denunciava a falta de base dos alunos:
Química mesmo, porque a questão é que falta muito o básico. Então, na verdade, você tinha que ensinar Ciências. Teria que continuar no Ensino Médio ou deveria ter feito lá no Fundamental o ensino de Ciências real. Pra você chegar no Ensino Médio e desmembrar. Mas não é feito. Então, fica muito difícil você trabalhar os conteúdos, aprofundar os conteúdos de Química. Muito difícil mesmo. Eu não sei! Onde que vai ter esse ponto de corte pra um ensino de Ciências melhor. Que é uma construção.
Esse trecho nos permite refletir sobre as possibilidades de “construção” de um ensino de
Ciências melhor e sobre como poderá ser a participação de cada um de nós nesse processo.
Chamada a rever os aspectos que julga que deveriam ser modificados no ensino de Ciências
de hoje rumo à qualidade, a professora reforça pontos negativos e positivos já enunciados por
ela:
O aluno não vai cobrar porque eles não sabem a importância. Eu acho que as políticas ficam muito na teoria, não têm contribuído. E os professores ficam numa situação ali no meio, né, presos ao currículo porque, na verdade, nós ficamos presos. E, meio despreparados também pra algumas coisas, pra muitas dessas mudanças. Trazer, fazer o diferente ali. Acho que são iniciativas particulares e que eu não sei também se são adequadas. É difícil de saber.
Como no decorrer de todo o seu discurso pedagógico, ela finaliza atribuindo valor
superior à escola A em comparação às demais escolas: “nosso programa aqui tá ótimo (risos).
Mas não é real. Esse programa tava bom. Entendeu, a proposta teórica”, garantindo que na sua
escola há um ensino de Ciências de qualidade, mesmo com todas as dificuldades identificadas
por ela.
4.1.3 Discurso da professora de Biologia da escola A
Tratando dos objetivos que pretende alcançar através da Biologia, essa professora
recontextualiza o currículo oficial, que é o planejamento enviado pela SEEDUC às escolas,
quando o considera como uma lista de conteúdos ampliada pelos professores:
106
O objetivo não é muito ampliado, não. Ele é bem básico, bem direcionado pra cumprir aquele programa que é dado da melhor forma possível. A gente amplia o planejamento que é passado pra gente do Estado, [...] e tenta enxertar alguns conhecimentos [...] para que eles tenham esse conhecimento e aqueles que quiserem ir adiante conseguir pegar um livro com esse básico e ir adiante. [...] Hoje, o objetivo mudou muito porque reduziu o número de aulas.
Nesse trecho de seu discurso pedagógico, a professora relaciona os objetivos que
pretende cumprir, atrelado ao cumprimento do currículo oficial, ao tempo destinado às suas
aulas, para ela, muito reduzido dada a grande quantidade de conteúdos específicos a serem
abordados. Notamos que, ao final de sua fala, a professora categoriza o ensino atual,
desqualificando-o em relação ao ensino de antigamente em função da redução de carga
horária.
Embora chame a atenção dos estudantes para o fato de que os conteúdos da Biologia
têm relação com seu próprio corpo, o que poderia ser considerado como um ensino de
Ciências mais direcionado à vida cotidiana dos alunos, em função da falta de tempo, sua
recontextualização visa a preparação para os exames oficiais:
Quando eu tô apresentando um conteúdo, eu tô visando, assim, dando um foco maior no que pode cair num concurso pra eles, ENEM, vestibular, mas eu tento sempre chamar a atenção pra ele, e até pra mim também, que aquilo tem uma relação com o corpo dele. E aí quando eu saio do foco do vestibular e do ENEM caio no foco do corpo. A aula fica um inferno, né?
Nesse enunciado, é evidente a tensão entre os dois principais objetivos desta professora,
categorizados como preparação dos alunos para o vestibular ou ENEM e promoção de uma
aprendizagem para a vida. Ela deixa claro o isolamento que institui entre uma e outra
categoria, mostrando que é um caminho difícil e, na continuidade de seu discurso, sugere que
tende a valorizar mais a preparação para o vestibular. Tal posicionamento denuncia que sua
concepção de qualidade da educação mantém relação com a concepção de qualidade do
campo produtivo, valorizando, para isso, a eficácia do processo de ensino e aprendizagem.
Também podemos depreender algo sobre o enquadramento, que nos parece rígido já que há
momentos em que é notável o controle exercido por essa professora sobre a comunicação
pedagógica em sala de aula, quando a prioridade é o vestibular: “tem dias que eu falo assim
‘olha, gente, hoje não tem conversa. Hoje é só conteúdo’!”
Ao ser perguntada sobre que tipo de sujeitos pretende formar com seu ensino de
Biologia, ela acredita que contribui para a formação de sujeitos críticos.
Olha, crítico. Olha, ele tem que ter opinião, as opiniões às vezes não são muito éticas, mas é a opinião deles e a gente vai ajudar, tenta até trabalhar essa opinião quando ela não é muito ética. [...] A Biologia tem que dar essa formação crítica, poder criticar, ele poder se expor, ele ter opinião, tentar que essa opinião seja ética, isso é muito importante. A gente discutir isso, tentar mudar um pouquinho essa
107
condição. [...] Não é que eles não tenham noção de ética, eles têm! É fazer ele se colocar de forma ética, ele ampliar raciocínio.
No enunciado anterior, notamos que a expressão “sujeito crítico” é re-significada pela
professora, entendendo-a como preparação dos estudantes para serem éticos e preocupados
com o meio ambiente. Quando se volta para esse aspecto da formação, ela prioriza as
discussões em classe, deixando evidente o fraco enquadramento que insere, algumas vezes, na
comunicação pedagógica:
Falam o que a gente gosta e o que a gente não gosta. Falam, falam, criticam. No final do ano, a gente faz uma avaliação, não é uma avaliação dele, é uma avaliação do ano de Biologia, que assunto eles gostaram mais, por que, que assunto eles não gostaram, por que, como poderia ser melhorado.
Nesse trecho de seu discurso pedagógico, a professora admite que pode vir a alterar o
currículo a partir da avaliação dos alunos. Ela reconhece que nem todos participam
igualmente dessa avaliação e atribui isso ao fato de os alunos adotarem posturas distintas em
sala de aula. Entretanto, a professora se esforça para fazer com que os mais tímidos se
expressem.
Relacionando o objetivo que pretende alcançar com a Biologia aos objetivos da Física,
da Química e da Matemática, essa professora estabelece como categorias cada uma das
disciplinas científicas, equiparando-as sem hierarquizá-las.
Com base nas regras avaliativas que enuncia, nos aproximamos de sua prática através
do seguinte trecho de seu discurso pedagógico:
Eu apresentei uma questão que eu considerava, sobre DNA, e eu considero uma questão muito difícil! Eu considero de um nível bem elevado, tanto que é uma questão que não é colocada em prova, que é uma questão de discussão.
Ao indicar que não usaria a questão em prova dada sua dificuldade, seu enunciado
sugere que ela não adota um processo de avaliação tão rigoroso, dando indícios de um fraco
enquadramento da comunicação pedagógica.
Categorizando a escola A separada das demais e classificando-a num nível mais elevado
que as outras, a professora exalta sua escola atribuindo seu sucesso ao envolvimento e
dedicação de todos os professores no processo de ensino e aprendizagem.
No tratamento dos conteúdos da Biologia do primeiro ano do Ensino Médio, ela institui
como categorias: os mais complicados, outros mais simples, os que são exigidos no vestibular
e outros que promovem discussão. Ao abordar a primeira categoria (o exemplo dado é a
Citologia), a professora se queixa da falta de um laboratório adequado, embora admita que a
aquisição de um microscópio potente demandaria um grande investimento. Como forma de
compensar essa ausência, ela aborda os conteúdos mais complexos de forma prazerosa,
108
através de atividades lúdicas, com massa, papelão, cartolina, com vistas a manter o interesse
dos alunos. Seu discurso pedagógico demonstra que, por meio desse trabalho, procura atenuar
a dificuldade que os estudantes identificam em alguns conteúdos da Biologia.
Com os conteúdos mais simples, (o exemplo dado é Ecologia), ela acredita ser capaz de
compensar o trauma vivenciado pelos estudantes com a complexidade dos conteúdos
anteriores. Quando trata dos conteúdos do segundo ano, a professora recontextualiza o
currículo oficial, valorizando sobremaneira a preparação para o vestibular ou para o ENEM.
Sobre os conteúdos que geram maior discussão, como o de Evolução, ela chama atenção para
a dificuldade em lidar com as diferentes concepções existentes entre os alunos, mas qualifica
a discussão como produtiva.
Ao relatar o planejamento curricular anual em conjunto com outros professores de
Biologia, a professora afirma:
Nós mantemos a programação que é dada [pelo Estado] justamente por que se um aluno for transferido de um colégio para outro ele não sair de um conteúdo e cair num outro colégio com outro aqui. Eu acho até que a gente podia modificar, [...] por que o nosso aluno não pede transferência daqui. [...] mas a gente não altera por enquanto, a gente não altera, o que a gente faz é enxertar. A gente enxerta muito, pega o básico que eles mandam e enxerta bastante, enxerta o que dá!
Seu discurso pedagógico evidencia a recontextualização da proposta oficial, que evita a
alteração para menos, no sentido de garantir a equiparação dos alunos aos das demais escolas
estaduais e lança mão do “enxerto”. Entretanto, admite que, na prática, não é possível cumprir
o currículo:
Não dá pra dar o conteúdo todo, só dá pra dar uma pincelada em alguns assuntos e atingir 100% dos alunos, não. Não consegue atingir 100% com o conteúdo. A gente luta, a gente faz reforço, a gente faz grupo de estudo, faz monitoria, faz aula de reforço, tudo o que a gente pode fazer.
Nesse enunciado, a professora ilustra outros dois processos de recontextualização
impostos por ela ao currículo oficial, um deles em função da pequena carga horária destinada
às aulas de Biologia e outro devido às limitações apresentadas pelos alunos.
Sobre as metodologias que adota, a professora admite:
Ih, minha metodologia é tão sem parâmetros (risos). [...] Sem embasamento, quando eu penso naquelas teorias da faculdade eu penso ‘meu Deus como eu me afastei disso, como eu fugi, esse povo deve tá muito revoltado comigo’ (risos). Então algumas pessoas que se dedicaram tanto a isso (risos). Eu fico pensando ‘meu Deus do céu, eles devem ter um ódio mortal de mim’. Eu não tenho uma metodologia assim, eu até tentei.
Ela institui como categorias a sua metodologia e a metodologia ensinada na faculdade,
valorizando esta última ainda que tenha se afastado dela. Narrando uma de suas práticas, a
professora torna evidente que, mesmo que priorize, na prática, o conteúdo e a preparação para
109
o vestibular, procura diversificar a metodologia tradicional com o uso de meios alternativos à
exposição oral:
Eu apresento o conteúdo pra ele, eu mostro pra ele, eu falo de sites pra eles visitarem, eu falo de sites com conteúdo complementar, se tem uma animação, geralmente meiose, mitose, que é complicado, eu trago imagens, eu trago coisas, mas a gente vai trabalhar o site pra ver a animação, pra ver a filmagem.
Admitindo que não leva os alunos para o laboratório de informática, ela se justifica
novamente em função do pouco tempo de que dispõe para tratar dos conteúdos exigidos pelo
vestibular. Seu discurso pedagógico também indica uma prática tradicional, quando se baseia
no livro didático:
É um livro bom! Então, tem bastante exercício, tem um conteúdo dosado, não é o melhor, mas é o melhor pra gente. Tem um conteúdo dosado e tem bastante exercício pra que eles possam também aplicar o conhecimento deles e treinar bastante o raciocínio deles.
Com base nas regras avaliativas instituídas pela professora em seu discurso pedagógico,
percebemos que valoriza a avaliação contínua: “eu não acredito em recuperação com uma
prova depois daquela prova que eles tiraram uma nota horrorosa, a recuperação é essa, é ele ir
pra casa com uma atividade”.
Ao estabelecer relação entre o seu ensino de Biologia e o ensino de Biologia da escola
A, ela equipara ambos assim como também iguala o seu ensino ao de toda a equipe disciplinar
de Biologia, o que nos indica que escola e professores preconizam o mesmo ensino.
Sobre os PCNEM de Biologia, a professora afirma que não apenas os conhece como
também os utilizou: “a gente achou aquilo muito bom, muito bom, o conteúdo, os conteúdos
ali, ali pedidos nos PCN a gente, tava muito bom, que fechava bem com o que a gente
queria”. No enunciado anterior, a professora se referia à outra escola, também da rede pública
estadual, mas lamenta o fato de ter tido dificuldade para trabalhar com a proposta oficial na
escola A.
Narrando a elaboração do planejamento anual, com base no documento curricular do
Estado em anos anteriores, refere que este também toma por base as diretrizes dos PCNEM:
“[...] aí nós recebemos, e aí o que a gente viu: que aquilo [...] pra ser adotado na escola, em
todas as escolas estaduais, era a base, era o PCN. Ainda era o conteúdo, então não mudou
nada”. Em relação ao ano letivo corrente, seu comentário sobre o documento recebido do
Estado transparece uma nova recontextualização do documento anterior:
Esse ano o que a gente tem [...] era a reestruturação curricular, a gente teve esse ano, recebemos esse ano uma orientação de currículo. [...] Tá bastante resumida, bastante, bastante, bastante resumida que a gente continua enxertando. Então, a gente nunca fugiu aos padrões dos PCNs, ao conteúdo dos PCNs. Em Biologia, a gente nunca fugiu.
110
Seu discurso pedagógico demonstra entender os PCNEM como um discurso de
autoridade, com caráter prescritivo que determina como a educação de qualidade deve ser
alcançada. A professora toma para si a concepção de qualidade presente na proposta: “eu acho
importante não fugir dele porque ele foi muito bem elaborado. [...] Ainda não conseguiram
fazer alguma coisa que substituísse”, o que evidencia o desejo de recontextualizá-lo por meio
de sua implementação integral. Apesar de afirmar que as bases da proposta curricular do
Estado são os PCNEM, admite recontextualizá-la enxertando conteúdos, por ser uma proposta
resumida do documento: “se a gente seguir só o que vem do Estado [...] é muito pouco e a
gente tem que pensar que essas crianças têm aspirações, tem que dar condições pra eles, um
pouquinho, pra eles poderem depois caminhar”.
A professora se queixa novamente da carga horária reduzida e da falta de infra-estrutura
para promover aulas práticas:
Não. Não tem mais condição, não. Você diz assim ‘ah, podia fazer aula prática’, mas aula prática não é você pegar um grupo de alunos, colocar numa sala e fazer uma aula prática. Ela tem que trazer material preparado, tem que ter local preparado, não pode ser uma turma inteira ali pegando em bisturi. Deus me livre! Não pode.
Ela lamenta que o ensino de Ciências da escola pública de hoje esteja “muito ruim,
muito ruim mesmo”, atribuindo a falta de qualidade a fatores como a desmotivação do
professor para promover atividades que poderiam, segundo a professora, levar a essa
qualidade, como a feira de Ciências:
O ensino de Ciências tá muito ruim, muito ruim mesmo. A gente não tem, eu acho que a gente não tem mais aquela estimulação, eu acho que aí também entra o professor, que a gente perdeu um pouco daquela vontade de trabalhar, de fazer feira de Ciências. A gente já fez aqui [...] mas demanda tanta coisa fazer uma feira de Ciências e aí a gente acaba priorizando outros projetos. Não que a gente não possa fazer [...] só que esbarra em muitas outras atividades.
Nesse trecho de seu discurso pedagógico, ela categoriza e isola o passado e o presente, e
consequentemente, a qualidade de ontem e a de hoje, posicionando a primeira num patamar
superior devido à maior disposição do professor e ao maior valor que era dado às Ciências.
Admitindo o próprio cansaço, essa professora deixa evidente o quanto ele interfere em sua
motivação e em sua prática pedagógica.
Mas eu não tô responsável por nenhum projeto. Eu tô geralmente, mas eu tô muito cansada. Carregar, organizar projeto, então, eu também acho o seguinte, qualquer dia eu tô deixando, alguém tem que assumir. Alguém tem que assumir e o pessoal novo tem que começar a trabalhar.
111
Ainda assim, no entanto, ela valoriza sua prática docente, principalmente em relação à
avaliação, comparada a de outros professores, por julgar que as exigências que impõe aos
alunos são capazes de garantir a qualidade do ensino de Biologia que preconiza.
E alguns professores também acham que não vão impor determinadas condições, eles acham que eu sou muito rigorosa em sala de aula. [...] Não posso deixar colar em prova, não posso deixar me ludibriar no trabalho. Não posso! São valores, acho que não terminam, não que não vão terminar, pelo menos, não deveriam.
Ao categorizar a Biologia e o Português e a Matemática, a professora classifica-as num
mesmo patamar por valorizar sua disciplina tanto quanto julga importantes o Português e a
Matemática. Justifica essa equiparação mencionando que a Biologia também requer
interpretação de textos e conhecimentos matemáticos em alguns de seus conteúdos.
[...] eu adoro essa matéria, eu acho que ela abre a cabeça da gente, abre o raciocínio, ela ajuda no raciocínio, então eu gosto muito dessa matéria, mas tá sendo desmerecida. Meu Deus do céu, tão, tão renegada, tão excluída. Eu sei que Português e Matemática é importante, é muito importante, mas Biologia também ajuda, também lê texto, também faz cálculo em genética, então também trabalha com gráfico, eu faço questão de trabalhar bastante com gráfico, então com esquemas pra ajudar um pouquinho, dar um pouquinho mais de condição de ver o que não pode fazer em sala de aula.
Também denuncia a falta de valores da sociedade atual e a desvalorização da profissão
docente por parte das famílias, e consequentemente dos estudantes, como responsáveis pela
falta de qualidade da educação dos dias de hoje.
Eu acho que há uma desvalorização dos valores da família, não valoriza mais. O professor era uma figura importante na vida do filho dessas famílias, o professor era importante na vida deles.
Ao ser perguntada sobre a representação das Ciências como algo muito difícil e dos
professores como super gênios ou malucos, esta professora diz que não percebe a presença
destes estereótipos nem na sociedade nem no ambiente escolar.
A entrevistada afirma que seus alunos gostam dela porque têm liberdade de falar e, de
modo geral, também gostam das aulas. Admite que há alguns que “aceitam mais a Biologia
[...], mas sempre tem um aluno ou outro que não gosta”, embora a percebam como uma
disciplina importante: “eles acham que eles precisam muito desse conteúdo e o que a gente
passa pra eles aqui na escola é isso, é diferencial isso”. Aqui, mais uma vez ela exalta a
qualidade da escola A em função da abordagem dos conteúdos específicos.
Na continuidade de seu discurso pedagógico, a professora categoriza cada uma das
disciplinas do Ensino Médio, equiparando-as num mesmo nível dada a importância de cada
uma delas nos exames oficiais de avaliação, seja como matéria específica à carreira a qual o
aluno concorre, seja como não específica, importante como diferencial de desempenho
daquele aluno.
112
De modo geral, segundo ela, os alunos da escola A têm bons resultados nas avaliações.
Nos deparamos com um enquadramento forte já que ela afirma suas exigências no que diz
respeito às avaliações e ao aprofundamento dos conteúdos da disciplina.
[...] eu puxo bastante, eu dou umas avaliações, uns trabalhos, eu dificilmente dou trabalho pra eles levarem pra casa. [...] geralmente eu dou trabalho em sala de aula, eu fico com eles, eles apresentam na sala. Eu fico presente o tempo todo e eu pego assim, bem pesado mesmo.
Nesse ponto, ela volta a valorizar sua escola a partir das exigências quantitativas que
impõe aos alunos: “mesmo que ele tenha 50% de aproveitamento, eu tô satisfeita porque eu
sei que [com este desempenho] ele tem condição de lá fora, ele vai ter 70%, 80%”.
Tratando da sua responsabilidade como professora de Biologia da rede pública estadual,
a professora menciona uma série de fatores relativos à formação ética, distanciando-se da
preparação para o vestibular que, na prática, tanto valoriza:
É não perder os valores, não pode perder os valores, não pode, não pode deixar, seja os valores da escola, da educação, da Biologia. Pode ser o gênio da escola, mas tem que ser ético, pode ser o excelente em todas as matérias, mas tem que ter ética. E nenhum conhecimento pode ser maior do que a ética, a solidariedade, o respeito com as pessoas, por que não pode ser um profissional só de conhecimento. Ele tem que aplicar bem esse conhecimento, ele tem que ser um profissional consciente, e se a gente tivesse essa consciência a gente teria o ensino melhor, a gente teria pais educando melhor, a gente teria professores mais conscientes, com certeza, a gente teria tudo mais. Eu vou falar como político, não sei se você vai gostar disso, mas a gente teria uma sociedade trabalhando melhor e quem ia ganhar? Essa garotada ia ganhar, todo mundo ia ganhar com certeza.
Notamos que a professora exalta a ética, a solidariedade e o respeito, compatibilizando
estes valores com o mundo do trabalho, quando considera que o trabalho seria melhor
balizado por eles. Sua concepção de qualidade parece estar, assim, em consonância com a
qualidade do mundo produtivo, que ela considera como compatível com esses valores,
embora não deixe claro o que gostaria de melhorar e o que todos iriam ganhar com essa
combinação.
A professora valoriza sua escola a partir da responsabilidade que impõe aos estudantes:
“a gente não abre mão que eles sejam responsáveis e quando eles não são eles têm uma
punição. A punição tá ali dentro da parte que a gente faz a avaliação formativa”. Esse trecho
de seu discurso pedagógico nos aproxima da avaliação praticada por ela e nos permite
identificar um forte enquadramento, evidente pelo controle que exerce sobre seus alunos
através da avaliação, mesmo que não seja a avaliação da aprendizagem: “não é só uma
avaliação de conteúdo, é uma avaliação de postura, de responsabilidade, tem que ter por que
quem vai trabalhar depois, tem que ter responsabilidade”. Aqui, fica claro, mais uma vez, o
113
quanto a professora se preocupa em formar seus alunos para ingressarem no mercado de
trabalho, mesmo quando essa formação não diz respeito ao conteúdo.
Ao refletir sobre a responsabilidade da escola na direção de um ensino de Ciências de
qualidade para os dias de hoje, a professora menciona novamente a questão da carga horária
reduzida. Em seguida, qualifica especificamente a escola A em função de aspectos como o
apoio dado aos professores e o ambiente favorável ao exercício da profissão docente, os quais,
para ela, favorecem o alcance da qualidade.
Sua principal queixa em relação à escola pública é a carga horária reduzida de Biologia
que não permite que ela realize práticas que considera importantes:
Pra começar eu queria mais tempo, carga horária maior, pra começar isso, com isso a gente poderia voltar a fazer algumas práticas que iriam me ajudar, com essa carga horária maior eu poderia trazer material, né, usar já o datashow, usar projeções, usar isso que eu tenho que cortar pra poder dá o conteúdo deles.
Julga ser indispensável que os órgãos oficiais se aproximem das escolas e dos
professores para ouvi-los e atendê-los em suas principais necessidades visando à melhoria de
rendimento dos alunos, sem, no entanto, desconsiderar a necessidade de exercerem sua função
reguladora.
Ao valorizar a responsabilidade de todos no atingimento da qualidade, a professora
afirma:
É um conjunto de responsabilidade. A gente jogar essa responsabilidade só pro aluno, jogar só pra sociedade, a gente também faz parte dessa sociedade, a gente tem filho, então a gente sabe que a responsabilidade não é de um só, é um conjunto, e todo mundo tá deixando pra lá, todo mundo tá jogando pro outro. Se cada um assumisse uma parte, eu acho, não sei, que podia tá tão ruim quanto tá, mas também poderia não tá.
Seu discurso pedagógico novamente desqualifica a educação pública dos dias de hoje,
mas vislumbra que a qualidade pode ser possível se todos os atores desse processo estiverem
envolvidos e verdadeiramente posicionados como responsáveis.
Agora o governo precisa me dar e eu não tô falando de dinheiro não! Eu tô falando em me dar mais tempo, por favor, eu tô pedindo isso há mais de vinte anos quando eu entrei pro estado, entrei no município, não, eu tinha quatro tempos de ciências, mas no primeiro ano que eu entrei pro estado eu tinha seis tempos de biologia. Então tinha um laboratório maravilhoso com tudo que se possa imaginar de um laboratório.
A professora acredita que o aumento salarial não é o mais importante, o que destoa de
uma das principais queixas dos professores investigados por Rezende et al. (2011), que
denunciam a desvalorização da profissão docente. Ela é contundente ao afirmar que o
aumento salarial não garante a promoção da qualidade do ensino de Biologia que pretende,
mas sim o aumento da carga horária e a infra-estrutura adequada à sua prática pedagógica.
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Nesse enunciado, pela presença da expressão “por favor”, a professora parece considerar que
a pesquisadora seria um canal para comunicar sua voz ao Estado.
4.1.4 Discurso do professor de Física da escola B
O professor de Física da escola B declara que tem como objetivo “mostrar para o aluno
que a Física é uma observação do cotidiano” e na medida do possível “levar o que ele observa
pra o lado matemático, porque são as fórmulas da Física que tentam traduzir o que ocorre no
dia a dia”.
Quando perguntado sobre objetivos mais amplos, o professor institui a categoria das
Ciências Exatas ao diferenciá-la das Ciências Humanas e diz não vislumbrar a importância de
uma ciência material como a Física na formação de um cidadão, eximindo-a desse papel, que
atribui exclusivamente às Ciências Humanas. Acaba admitindo que a Física contribui com a
formação cultural dos estudantes entendendo esta formação como “necessidade de querer
descobrir alguma coisa no dia a dia”, que parece estar ligada exclusivamente aos fenômenos
naturais.
Ela contribui com cultura, com necessidade que o aluno tem de querer descobrir alguma coisa no dia a dia, mas eu acho que a coisa fica mais por conta das humanas mesmo. Eu não consigo ver esse lado...
O professor acredita que “uma base interdisciplinar aí, no mínimo, né, com a História,
Geografia, Sociologia, Filosofia” poderia garantir à Física proporcionar o alcance de objetivos
mais amplos relacionados, por exemplo, à cidadania.
Abordando seu papel de professor da escola pública de hoje e, mais especificamente, da
escola B, este professor se vê mais como um “psicólogo”, orientando as atitudes dos alunos
em sala de aula, do que como “um mero transmissor de conhecimento”, admitindo que há
outros meios de aquisição de conhecimento, como “umas wikipédias da vida e uns googles da
vida e uns youtubes da vida”, aos quais o aluno tem acesso e que dariam conta de fornecê-lo
todas as informações de que precise. Por outro lado, ele lamenta que seu lado educador tenha
sido deixado de lado e que, hoje, atue como “auleiro”, isto é, como transmissor de conteúdos,
sem saber nem mesmo o nome dos alunos. Assim, contribui com seus conhecimentos “só
pra’quele que vai fazer a área tecnológica (...) pra que ele cresça e seja um grande engenheiro,
um grande químico, um grande físico, um grande matemático”, ou como “psicólogo”, aos que
precisam de orientação. Notamos que ele estabelece como categorias, o professor que atua
como psicólogo, o que é educador e o que é “auleiro”.
115
Nesse ponto de seu discurso, fica claro que ele isola os papéis que pode desempenhar
enquanto professor, “auleiro” ou psicólogo, ressentindo-se de ser só “auleiro” ao restringir-se
apenas à transmissão de conteúdo. Parece-nos que ele não considera nenhum dos dois papéis
como educação de qualidade: se na escola particular consegue formar engenheiros, não
consegue ser educador; na escola pública, ao não conseguir desempenhar nenhum dos dois
papéis, resta-lhe o papel de psicólogo ou de orientador:
Na medida do possível eu faço o quê, eu mostro pro aluno que não é por ali que ele tem que fazer aquilo, ele toma uma atitude ruim dentro de sala e errada dentro de sala, errônea, e eu mostro pra ele que não é daquela maneira, eu tô agindo mais como psicólogo, mas pegar a minha Física, levar pra ele e fazer com que ele entenda que a Física vai transformar ele, sei lá, num cidadão. Eu acho que eu contribuo só pr’aquele que vai fazer a área tecnológica.
Quanto a desenvolver a cidadania nos seus alunos, o professor deixa claro que esta
responsabilidade é, em primeiro lugar, da família, eximindo-se do papel de preparar os
estudantes para a chegada à vida adulta e para o exercício da cidadania.
Ao declarar que seu lado educador “adormeceu”, aponta para uma mudança entre sua
prática pedagógica do passado e a do seu momento atual, instituindo duas categorias bem
como um isolamento entre estes dois tempos e de uma maior valorização do passado. Esse
adormecimento, segundo ele, se deve ao cansaço e às exigências às quais um professor é
submetido, “acordar cedo, dormir tarde, trabalhar em três turnos”, o que nos permite
identificar uma categoria relacionada à profissão docente e outra que diz respeito às demais
profissões com um isolamento entre ambas e um sacrifício maior do professor em relação a
outras profissões.
Estabelecendo uma comparação entre um educador e “um mero transmissor de
ensinamento”, o professor atribui maior valor ao primeiro visto que um educador considera o
aspecto humano dos estudantes e o outro, não. Justifica o desgaste e o esquecimento do papel
de educador com a perda do poder aquisitivo dos professores, o que os obriga a trabalhar cada
vez mais e, consequentemente, a deixar de lado aspectos importantes pelos quais seriam
responsáveis no decorrer do processo educativo e formativo dos estudantes dos dias de hoje.
Nesse ponto, estabelecemos relação entre seu discurso pedagógico e os discursos dos
professores participantes do grupo focal e notamos que a desvalorização da profissão docente
é uma queixa recorrente entre eles, ainda que haja professores que, mesmo assim, se
mantenham comprometidos com o alcance da qualidade.
Este professor valoriza a educação para “ser alguém na vida”, mas com a abordagem
dos conteúdos tal qual realiza, visando à aprovação em exames oficiais. Segundo esta prática,
ele admite que, na escola pública de ensino noturno, acaba priorizando alguns alunos em
116
detrimento de outros, o que caracteriza a qualidade voltada para poucos, ilustrada pela
seguinte declaração:
[...] eu tenho já os exercícios, por exemplo, de aprendizado, que são os mais fáceis, aqueles dali eles no mínimo tem que aprender. Então eu passo para outros mais sofisticados que aí já vai atingir um outro público, daqueles que vão seguir pra uma carreira. [...] Quando eu faço uma coisa simples eu atinjo os dois grupos, mas quando eu faço a coisa mais complicada, alguns acabam ficando pra trás.
Nessa fala, as regras avaliativas estabelecidas pelo professor nos permitem uma maior
aproximação com sua prática. Percebemos que ele estabelece enquanto categorias dois grupos
distintos de estudantes, os que aprendem somente o conteúdo mínimo e aqueles que são
capazes de aprender conteúdos mais complexos, que provavelmente vão seguir uma carreira
científica. Seu discurso pedagógico evidencia que ele assume a diferença de qualidade como
algo inerente ao processo educativo.
Ao tentar estabelecer a relação entre os objetivos que pretende atingir por meio das aulas
de Física e os objetivos da Química, da Biologia e da Matemática, este professor é claro ao
afirmar que tais objetivos serão os mesmos se os professores que as lecionem apresentarem a
mesma concepção que ele, “colocar o aluno na faculdade”. Aqui, o professor institui a
categoria dos professores “auleiros” e a dos professores não “auleiros” assim como relativiza
a diferença entre a Física e as demais disciplinas científicas na medida em que podem ter os
mesmos objetivos.
Em diferentes trechos do seu discurso, este professor isola a clientela da escola pública
da escola privada e, mais especificamente, isola seus alunos da escola B dos demais alunos da
escola pública diurna, considerando que os seus pertencem a realidades particulares no que
tange às suas condições de aprendizagem:
Olha só, eu dou aula pra um público que não sabe nem escrever, eles não sabem nem escrever, escrevem o nome com letra minúscula, eles abreviam o último nome, os alunos vêem uma prova, eles vêem a, b, c, d e não sabem que é pra marcar. Fica difícil, às vezes, até pra mim responder, mas é utópica a coisa. E o que eu faço na escola pública, infelizmente, é tentar passar de tudo que eu sei, 10%, para que 10%, olha só eu vou passar 10% para que 10% consiga absorver e esses 10% que absorveram consiga guardar 10% do que ele absorveu para que no futuro ele possa aplicar 10% do que ele absorveu, do que eu passei, ah, muito complicado. A parcela é muito pequena, é mínima, quem aprende ali.
Ao nos depararmos com este enunciado, mais uma vez nos aproximamos da prática
docente do professor de Física da escola B. Notamos que em seu discurso pedagógico ele
admite abordar os conteúdos minimamente necessários visando alguma fixação dos mesmos
por parte dos alunos, o que torna evidente a recontextualização do currículo oficial devido à
falta de condições de aprendizagem.
117
Se eu for levar ali, [...] o que tem que fazer mesmo, ninguém passa, ninguém passa. E como é que você vai reprovar esse mundo de gente? Por que você vai atrasar a vida desse cara? Não sou eu que vou atrasar a vida desse cara, se o objetivo dele é aquele, de melhorar em meio salário mínimo, o rendimento dele, não sou eu que vou travar. Esse é o mínimo necessário, o objetivo meu é esse, tentar passar o mínimo necessário pra que ele consiga... Quantos vão fazer faculdade aqui? Quantos?
É possível perceber no enunciado acima que este professor estabelece duas categorias de
qualidade, uma para aqueles que vão melhorar “minimamente” de padrão de vida e outra para
os que vão ingressar na universidade, classificando-as e isolando-as fortemente entre si,
valorizando sobremaneira a segunda concepção de qualidade. Ao questionar-se sobre “atrasar
a vida” do estudante, ele evidencia, novamente, o quanto a educação está imbricada na
realidade social desses alunos.
Reafirmando sua não pretensão em preparar os alunos da escola B para o vestibular, este
professor refere a consulta à proposta curricular enviada às escolas pela SEEDUC, dentro da
qual seleciona os conteúdos que julga relevantes para que obtenham o mínimo de
conhecimentos de Física relacionados ao dia a dia, o que evidencia o processo de
recontextualização do currículo.
A gente tem um programa a ser cumprido e desse programa a ser cumprido eu seleciono coisas que, voltadas pro nosso dia a dia, o aluno ver uma temperatura, entender na televisão quando passa um carro de fórmula 1 que a velocidade dele deu aquela, saber uma ligação elétrica, o mínimo necessário que seja voltado para o dia a dia, é só isso mesmo que eu faço, quando dá.
Nesse trecho de seu discurso pedagógico, notamos que o professor equipara os
conteúdos voltados para o dia a dia dos estudantes aos conhecimentos mínimos que precisam
ter, equivalentes a uma qualidade mínima. Ainda assim, quando percebe que a maioria dos
alunos não é capaz de acompanhá-lo, opta por interromper a abordagem deste ou daquele
conteúdo, culpabilizando os estudantes por esta dificuldade e relacionando-a à dificuldade que
apresentam no entendimento de conteúdos matemáticos. Nesse ponto, embora lamente, este
professor categoriza e isola a Matemática, colocando-a como um empecilho para a
aprendizagem de Física.
Quanto às metodologias que adota, refere o uso da lousa para exposição dos conteúdos,
a aplicação de exercícios para fixação e o livro didático. Novamente, ele culpabiliza os alunos
por não serem capazes de entender os conteúdos ainda que, segundo ele, sejam abordados sem
grande aprofundamento.
Não atingem o que tá escrito no livro [...] vem exercícios assim bem difíceis, sabe? Até pros próprios alunos de escola particular, imagina pra eles, imagina pro pessoal da noite? A gente adota, mas na maioria das vezes, adotamos por que foi imposição do Estado, uma imposição do governo, senão eu não adotaria [..] Agora, os
118
exercícios dali eu sou obrigado a fugir porque eles não atingem, não conseguem atingir.
Neste trecho do seu discurso pedagógico, o professor estabelece enquanto categorias
seus alunos da escola B (de ensino noturno), os alunos das escolas estaduais diurnas e os das
escolas privadas. Fica claro o forte isolamento e a hierarquia que estabelece entre essas três
categorias, posicionando, em primeiro lugar, a clientela da escola particular, seguida pelo
público das escolas estaduais do turno da tarde e, por último, pelos que frequentam as escolas
estaduais à noite. Também notamos o processo de recontextualização que o professor
promove na utilização do livro didático: em função da falta de condições de aprendizagem
dos estudantes, ele recontextualiza os conteúdos do livro com a intenção de nivelá-lo de
acordo com o nível dos alunos da escola B.
Ao tentar qualificar o ensino de Física da escola B em relação ao seu, baseia-se em sua
própria prática e julga que ambos são deficientes. Para (des)qualificar o ensino, utiliza termos
que amplificam sua imperfeição: “É bem deficiente. Muito aquém, anos luz aquém”. Para
justificar essa situação, o professor apresenta um discurso pedagógico voltado a uma visão
determinista do processo de ensino e aprendizagem na qual a realidade socioeconômica dos
estudantes define a realidade escolar assim como interfere de maneira decisiva na qualidade
da educação:
[...] eles ficaram uns 10 anos sem estudar, esse distanciamento em termos de tempo dá uma enrolada também, e eles não comeram na época que tinha que comer, eles não brincaram na época que tinham que brincar, eles não se alimentaram, eles não fizeram a coisa regrada como nós. Não tem como aprender, porque tem gente que não aprende.
O professor relata que tenta fazer com que esses alunos aprendam, ilustrando sua
tentativa com a descrição de uma de sua práticas em sala de aula, e sua frustração ao não
conseguir:
Eu coloco quatro exemplos exatamente iguais só trocando os números, a mesma equação, o mesmo questionamento, o mesmo objetivo em todas as questões, eu só troco de 50 pra 40, de 40 pra 30, de 30 pra 10, quando eu coloco 60 eles não acertam. O que que eu vou fazer? Eu me sinto inútil, eu me sinto incompetente! Mas eu vejo que não é culpa minha por que se eu faço em outros lugares que não sejam escola pública ou durante o dia eles atingem.
Percebemos que o professor não avança para conhecimentos mais complexos por julgar
que seus alunos não serão capazes de acompanhá-los, o que torna evidente que o processo de
recontextualização que realiza no currículo oficial se deve à falta de base dos estudantes e no
sentido de levá-lo ao encontro do nível da clientela da escola B. Notamos também que o
professor institui como categorias as escolas públicas estaduais, classificando os turnos diurno
e noturno, isolando-os um do outro e atribuindo qualidade superior ao primeiro. Além disso,
119
enfatiza, mais uma vez, a deficiência dos estudantes como principal responsável pela
deficiência do ensino de Física, já que, usando um argumento lógico, se ele faz o mesmo nas
diferentes escolas e obtém sucesso, o fracasso só pode ser atribuído aos alunos. Sua
argumentação nos leva a pensar que o público do noturno precisaria de práticas pedagógicas
alternativas e até de currículos específicos que pudessem de fato atender às necessidades
conceituais desses alunos.
Contrapondo-se ao Estado e tornando ainda mais explícito seu não envolvimento com o
processo de atingimento da qualidade, menciona o “sistema” (educacional) como um todo
como outro responsável pela falta de qualidade: “o ensino público ele tá já deficiente há um
bom tempo e agora tá começando a chegar nas raias do impossível”.
Ao ser perguntado sobre os PCNEM de Física, este professor diz que já foi apresentado
ao documento, mas julga-o utópico, questionando quanto à vivência da sala de aula dos
elaboradores da proposta e atribuindo a isso o fato de ser tão distante da realidade. Apesar de
considerá-los utópicos, lamenta o fato de recorrer aos PCNEM apenas para preparar o
planejamento de curso e nada mais, evidenciando como os Parâmetros são recontextualizados
por ele. Quanto à obrigatoriedade ou não da proposta, se mostra confuso entre deparar-se com
um documento imposto, ao qual deve seguir, e a ausência de uma diretriz como essa para
nortear o seu trabalho, o que evidencia a forma como o documento é recontextualizado por
este professor:
Eles impõem e a gente tem que seguir na medida do possível, mas é uma imposição, é uma imposição. Mas também, né, mas também a gente tem que fazer aquilo também, né, tem que fazer aquilo.
Ao ser questionado sobre sua visão geral sobre a atual situação do ensino de Ciências
nas escolas públicas, o professor se refere ao turno da noite, considerando-o inadequado, por
oferecer apenas o mínimo, dada a falta de tempo para ministrar o conteúdo e a presença de
questões sociais imbricadas na realidade educacional, aspectos já mencionados por ele no
decorrer do seu discurso.
[...] um aluno de terceiro ano do ensino público ele não faz as provas de vestibular. Faz? Ele não faz de jeito nenhum! Então, o que que você pensa a respeito disso? Tá muito aquém. Eu faço a minha parte, talvez se eu tivesse quatro tempos, aí seria já outro, agora são só duas aulas. E, às vezes, você vai o tráfico e fecha a escola ou então tem uma paralização do ensino ou então tem uma eleição do Brasil pras Olimpíadas. Não é o que acontece na escola particular, de jeito nenhum.
Nesse momento, mais uma vez, o professor isola o ensino público do ensino privado e
considera o vestibular como a única medida da qualidade para ambos.
Sobre a representação do professor de Ciências como alguém inteligentíssimo ou
maluco, afirma que a Física demanda muita dedicação e concentração, mas não se vê como
120
superior em conhecimento a pessoas de outras carreiras. Ao referir-se aos alunos, no entanto,
acredita que eles ainda o percebem como um gênio. Nesse sentido, também é notável em seu
discurso o estereótipo atribuído à Física ao mencionar que “o bicho papão mesmo é Física”.
Este professor afirma que, hoje, agrada mais do que desagrada e não tem atritos com
seus alunos. De modo geral, mesmo lidando com o básico, eles percebem a Física como um
conhecimento bastante difícil ainda que, segundo ele, gostem das aulas. Seu discurso
pedagógico sobre o desempenho dos alunos nas avaliações deixa claro que tudo depende da
maneira como ele cobra o conteúdo, admitindo que, embora de acordo com o programa dado,
ele exige mais nas provas e por isso os alunos têm um desempenho regular.
Como professor de Física do Ensino Médio, diz sentir-se responsável apenas por
prepará-los para o vestibular ou para o mercado de trabalho e nada mais, mas como isso é
praticamente impossível dada a deficiência dos alunos na escola B, ele recontextualiza o
programa elaborado pela Secretaria Estadual, selecionando conteúdos mínimos relacionados
ao cotidiano e aos exercícios mais simples do livro, novamente em função da falta de base dos
estudantes e com o objetivo de atingir aquela clientela. Aqui, novamente fica claro que o
discurso pedagógico desse professor dá à qualidade o sentido da qualidade oficial, medida
pelos testes oficiais, como o vestibular.
Ao mencionar a responsabilidade dos alunos no alcance de um ensino de Ciências de
qualidade, afirma que devem agir como os alunos tradicionais, dedicados ao propósito de
aprender. Nesse ponto, o professor parece desconsiderar todas as dificuldades sociais e
econômicas desses alunos mencionadas por ele no decorrer da entrevista e, ao mesmo tempo,
deixa implícito seu posicionamento quanto ao fato de que os alunos da escola B também
devem agir para alcançar a qualidade determinada oficialmente, o vestibular.
Já no que se refere à responsabilidade da escola para melhorar o ensino de Ciências, este
professor aponta o laboratório e o tempo para utilizá-lo bem como para preparar suas aulas.
Segundo ele, esse espaço poderia ser útil para “vislumbrar os fenômenos diários e tentar
interpretar o que tá no giz”:
O laboratório dá uma ajudinha, torna aquilo mais concreto, mais palpável. Mas aí depende de eu ter tempo, pra eu poder montar uma experiência, depende de tanta coisa, né? Não depende só deles irem. Não é só a escola oferecer. Tem que o aluno ter tempo, o professor ter tempo, tudo ter tempo pra poder preparar, é uma soma de muitos fatores.
Tendo mencionado inúmeros fatores necessários, segundo ele, ao atingimento da
qualidade da educação, tais como a postura e a dedicação tanto dos governantes quanto dos
professores e alunos, mais tempo para preparar as aulas, apresentar os conteúdos de forma
121
adequada e também para o aluno estudar, e o excesso de trabalho a que se submete devido à
queda do poder aquisitivo da classe docente, no trecho abaixo, o professor elabora o que seria
a qualidade do ensino de Ciências, congregando diversos aspectos relacionados ao governo,
às escolas, aos professores e alunos:
Tem que mudar tudo, postura de governo, postura do professor, postura do aluno, dedicação do aluno, mais dedicação do professor, isso pra começar a tornar a coisa viável. Depois, tempo, né, pro aluno estudar, tempo pro professor se preparar, mais... Mais o que? Acho tempo, tempo é o mínimo necessário. Tempo pra que a coisa possa transcorrer de uma maneira viável. Assim, por exemplo, o aluno estudar de manhã e de tarde, acho importante, horário integral na escola, [...] Laboratório... Uma remuneração melhor pro professor também, né, pra ele poder respirar. É um nó que não desata, eu não vejo uma perspectiva... Eu não vejo perspectiva de melhora. Não vejo, não vejo.
Ao enunciar fatores que, segundo ele, poderiam, de fato, levar à qualidade, esse
professor se mostra incoerente, furtando-se de relacionar os aspectos socioeconômicos,
isolados ao longo de todo o seu discurso enquanto categoria determinante da falta de
qualidade e tão imbricados no contexto educacional em que está inserido.
Supondo que um enquadramento fraco possa estar atrelado à consideração da voz e dos
interesses dos estudantes para o estabelecimento dos objetivos a serem alcançados com a
Física, pensamos que, no caso desse professor, existe um forte enquadramento já que, em
nenhum momento de seu discurso, ele nos deu pistas sobre o envolvimento dos alunos nesse
processo. Assim, julgamos que em sua prática a qualidade poderá ser garantida por meio do
controle que exerce na comunicação pedagógica estabelecida em sala de aula.
Ainda que sejam evidentes os processos de recontextualização pelos quais passam o
currículo e as políticas curriculares em sua prática docente, foi possível identificar que a
concepção de currículo que permeia as falas desse professor estabelece relação com um
currículo prescritivo, voltado ao alcance de metas previamente estabelecidas por exames
oficiais, tal como o vestibular. No que se refere aos PCNEM especificamente, ele os julga
como utópicos, mas interessantes. Ainda que considere fatores internos e externos ao
ambiente escolar no processo de atingimento da qualidade da educação, sua concepção
prioriza a qualidade oficial e a formação para atender ao mercado de trabalho. Adotando
como medida da qualidade apenas a aprovação no vestibular, este professor acaba por
desconsiderar a importância de mudanças qualitativas na educação e por nem vislumbrar
possibilidades de mudança na sociedade atual.
4.1.5 Discurso do professor de Química da escola B
122
Ao ser perguntado sobre os objetivos que pretende alcançar através da Química, o
professor categoriza dois momentos de sua carreira e, consequentemente, seus próprios
objetivos. A primeira categoria trata do seu ingresso na escola B, quando desconhecia a
realidade social dos estudantes e, por isso, tinha como objetivo fazer com que eles “tivessem
todo o conhecimento de Química que o segundo grau permitisse”. A outra categoria diz
respeito aos dias de hoje, cinco anos depois, quando, em função da falta de base dos alunos,
pretende que eles “conheçam, pelo menos, os conceitos básicos da Química”.
O professor admite que sua concepção mudou ao se deparar com a realidade da clientela
da escola B e atribui essa mudança de foco, principalmente, à defasagem que os alunos trazem
do Ensino Fundamental, especialmente nos conhecimentos matemáticos, e que, segundo ele,
interfere muito na abordagem de alguns conceitos químicos.
Ele demonstra preocupação com o conteúdo, mas, ao deparar-se com um contexto que
não lhe permite priorizá-lo, mostra-se decepcionado e expõe as necessidades e limitações de
seus alunos como justificativa para a recontextualização do currículo oficial:
É [conteúdo], mas não me aprofundando praticamente em parte nenhuma da Química que eu precisaria me aprofundar porque vai além da capacidade de entendimento deles. Eu perderia muito tempo tentando colocar na cabeça deles alguns conceitos que eu não conseguiria porque eles não têm conceitos básicos lá de trás. Hoje, os conceitos básicos da Química já são satisfatórios.
Nesse trecho de seu discurso pedagógico, notamos que o professor valoriza o conteúdo
embora admita que não consegue aprofundar os conceitos necessários. O processo de
recontextualização que o professor promove visa adequar o currículo oficial à realidade e às
limitações dos estudantes da sua escola.
Devido à falta de condições de aprendizagem dos alunos, sua disciplina passa a visar
que os alunos “se tornem melhores pessoas porque aí vai mais enriquecê-los na cultura geral”.
Pretende garantir a eles que, ao se depararem com assuntos relativos à Química no dia a dia,
fora do ambiente escolar, sejam capazes de relacioná-los aos conceitos químicos aprendidos
na escola. Afirma também que, na realidade da escola B, seguir uma carreira científica está
fora das possibilidades dos alunos ou, pelo menos, da maioria deles. Assim, pretende que,
pelo menos, se tornem pessoas mais cultas.
Na continuidade de seu discurso pedagógico, o professor institui como categorias a
Química “dura, de decorar tudo” e o ensino de Química contextualizado, que ele procura
oferecer aos alunos:
O ensino da Química hoje no segundo grau é uma coisa que tem mudado um pouco, a gente tem procurado abordar temas mais do cotidiano, sem falar tanto sobre aquela Química dura, de decorar tudo, então, eles têm ganho mais cultura com isso, isso eles têm ganho. Eles conseguem entender no dia a dia deles alguns
123
fenômenos que a gente falou na sala de aula, então hoje eles conseguem entender melhor isso e conseguem relacionar algumas mudanças químicas com algumas consequências que eles têm, conseguem, às vezes, explicar pra outras pessoas, explicar em casa.
Percebemos que ele caracteriza o ensino de Química contextualizado de hoje como fruto
de uma mudança que não deixa claro, neste momento, a quem ou a quê seria atribuída.
Ao estabelecer como categorias o ensino de Química contextualizado e “as
nomenclaturas corretas” da Química, o professor valoriza a primeira para a sua clientela.
Ainda que acabe por deixar claro que dá maior peso à abordagem do conteúdo pelo conteúdo,
notamos o quanto esse professor tem se dedicado a recontextualizar o currículo para oferecer
aos estudantes algo que eles possam aprender. Com esse enfoque, ele aposta que não prioriza
alguns em detrimento de outros:
Com esse procedimento aí você não prioriza ninguém, você consegue mostrar pra todos os alunos, o que acontece é que alguns conseguem compreender todas as comparações e outros, simplesmente, não conseguem. Mas, eu me volto pra atingir a todos eles, todos eles. Se, na hora de fazer essa comparação se eu tenho que utilizar uma linguagem que atinja o melhor ou o menor, infelizmente, eu tenho que usar a que atinja o menor, mas a intenção é que todos entendam. Então, aquele que o entendimento é mais fácil, que ele pega logo de primeira, ele entende tudo aquilo ali, e têm aqueles que a gente tem que voltar, dar outros exemplos, explicar mais uma vez, buscar outros acontecimentos que eles conheçam pra que eles consigam entender o que a gente tá querendo falar.
O professor estabelece como categorias os alunos capazes de compreender os conceitos
químicos básicos com mais facilidade e os alunos que apresentam maior dificuldade. Ele nos
dá pistas de que sua concepção de qualidade visa garantir igualdade a todos ainda que nesse
processo acabe por nivelar o seu ensino a partir das limitações apresentadas pelos alunos mais
fracos.
Através do ensino de Química que oferece, ele acredita que os estudantes serão capazes,
não apenas de se inserir na sociedade, mas de contribuir pessoalmente para sua melhora. Mais
uma vez ele categoriza dois momentos, o ontem e o hoje, isolando o ensino contextualizado
do ensino do passado, tradicional, parecendo, até este ponto, se pautar por uma tendência
pedagógica pró-contextualização, que não especifica de onde traz, mas que parece defender:
Quando você dá Química hoje em dia, não é tão rígido mais e como a gente tem buscado temas muito atuais, como, por exemplo, vários temas ambientais, então eu acho que com isso eles vão conseguir se inserir muito mais, porque hoje em dia, por exemplo, você fala de chuva ácida com todo mundo, todos eles já leram no jornal, já escutaram no Jornal Nacional, a maior parte mesmo não sabia sequer o que era, hoje eles já sabem, hoje eles já sabem a origem, o por que, eles já sabem como que poderiam mudar isso, quais são os comportamentos deles que eles poderiam priorizar pra mudar essa situação. Então, eu acho que hoje eles tariam mais preparados sim porque o ensino da Química hoje tá voltado muito pra esse lado.
124
Numa tentativa de relacionar os objetivos do ensino de Química aos da Física, da
Biologia e da Matemática, o professor estabelece como categorias a Matemática, juntamente
com a Língua Portuguesa, e as outras disciplinas científicas. Ao isolar a primeira categoria,
posiciona-a num patamar superior à outra, valorizando-a por crer que aquelas disciplinas são
suficientes para garantir muito boa formação ao estudante do Ensino Médio:
Eu acredito que na escola pública hoje, o ensino da Matemática e o ensino de Português talvez sejam os mais importantes, então eles ainda priorizam aquele ensino tradicional demais. Se o aluno sai daqui com uma boa formação em Matemática e falando bem o Português, aprendendo bem Português, ele sai muito bem formado. Então, essas disciplinas ainda não mudaram. Nas outras, Biologia, Física, até algumas outras, Geografia, mudou demais, isso acontece em todas elas, eu não consigo na Matemática.
Nesse trecho de seu discurso pedagógico, o professor parece não valorizar o ensino
contextualizado para a Matemática e a Língua Portuguesa, associando-as à abordagem
tradicional dos conteúdos. Em relação às outras disciplinas, acredita que são capazes de,
assim como a Química que ele ensina, agir na promoção de uma cultura geral.
Sobre os conteúdos que aborda e a forma como os organiza, o professor refere o uso de
uma “cartilha” enviada pela SEEDUC às escolas, que dita o conteúdo programático básico.
Mais uma vez, ele categoriza o passado e o presente ao sugerir que não havia nenhum
documento para normatizar o trabalho docente e, hoje, os professores são obrigados a seguir
algumas determinações superiores, enunciado que nos dá pistas de que o professor acredita
que sua prática foi limitada pela proposta oficial.
A gente hoje em dia tem regra pra tudo, né, então, a gente segue uma cartilha que foi passada pela Secretaria de Educação. [...] a base é aquela cartilha [...] Então, eu procuro usar aquilo como base e daqueles pontos ali, eu escolho aqueles que eu sei que eles vão conseguir compreender melhor pra me aprofundar um pouquinho de nada mais e aqueles que eu sei que eles não vão compreender por que envolve muita Matemática, porque envolve conhecimentos multidisciplinares, aí esses, só os conceitos básicos e bola pra frente.
Fica claro neste enunciado que o professor recontextualiza o currículo oficial
estabelecido pela SEEDUC, ao selecionar os conteúdos a partir das limitações dos seus
alunos. Ao instituir como categorias os conteúdos que eles são capazes de aprender e os que
não dão conta, deixa estes últimos de fora e admite apresentar apenas os conceitos químicos
básicos, sem aprofundamento. Novamente percebemos o isolamento da Matemática das
demais disciplinas assim como sua hierarquização como um rol de conhecimentos superiores
aos demais.
Ao se referir aos objetivos do Ensino Médio, deixa claro que estes visariam a preparação
dos jovens para o vestibular:
125
Veja bem, o Ensino Médio, se você pensar bem, ele tem que preparar pra um vestibular, se eu for tentar fazer isso aqui eu vou passar a minha vida inteira tentando sair de dois, três assuntos, entendeu? Então, eu seleciono, não aqueles que eu julgo importante porque pra mim importante seria preparar o aluno pro mercado, mas seleciono o que eu julgo que eles vão conseguir atingir.
Notamos que ele categoriza sua escola, classificando-a como inferior às demais devido
ao fato de seus alunos não terem êxito na preparação para o vestibular ou para o mercado de
trabalho. É evidente o maior valor que confere às escolas voltadas a estas finalidades e sua
frustração ao admitir que na escola B não será capaz disso, o que aproxima sua concepção de
qualidade a uma concepção que valoriza o conteúdo específico e o alcance de resultados
quantitativos.
No trecho em que comenta sobre as metodologias que utiliza, por meio das regras
avaliativas que enuncia, nos aproximamos de sua prática e percebemos que o professor se
queixa não apenas da falta de recursos, mas também da falta de tempo para uma melhor
abordagem dos conteúdos de Química. Frente a essa situação, admite que “é cuspe e giz e não
tem outra solução”.
Queixando-se da política de distribuição dos livros didáticos instituída pelo Estado, ele
admite que o livro que recebeu não foi o que escolheu. Assim, continua usando “seu livro”, o
qual aborda resumidamente os conteúdos da Química. Fica evidente que o professor usa esse
material devido ao (baixo) nível da clientela da escola B bem como recontextualizou o livro
dos alunos, distinto do seu e também dos que foram de início oferecidos pelo Estado,
utilizando-o apenas para exercícios.
Para qualificar o ensino de Química da sua escola toma por base sua própria prática,
enunciada até então, visto que é o único professor dessa disciplina: “priorizo aquilo que eles
vão entender, dentro daquele conteúdo que me pediram eu tento passar alguns conceitos
básicos, é o que a gente consegue fazer”. Nesse enunciado, parece-nos que ele admite o
currículo oficial enviado pelo Estado como uma proposta norteadora de sua prática, a qual é
recontextualizada, mas que não o toma como um discurso de autoridade.
O professor menciona que o documento enviado pela Secretaria Estadual de Educação
às escolas é baseado nos PCNEM, mas admite que nunca leu o documento do MEC.
Avaliando o ensino de Ciências da escola pública atual, o professor qualifica-o como
“muito fraco” e critica, por isso, o currículo do Ensino Médio noturno tal qual é organizado
hoje em dia.
É obrigatório você dar aula de tantas disciplinas que às vezes não preparam esse aluno pra o que ele vai enfrentar daqui pra frente. Eu não tiro a importância dessas disciplinas, mas pra que essas disciplinas fossem aplicadas eles teriam que ter muito mais tempo, e não têm, não têm. Então, você perde duas aulas de Química aqui pra
126
dar aula de Artes, pra dar aula de Educação Física, aqui, que é de noite, um curso noturno, às vezes senhores que não vão lá ficar correndo, mas são disciplinas obrigatórias. [...] Então, como a gente tem muito pouco tempo pro ensino de Ciências eu considero o ensino muito fraco.
Nesse trecho de seu discurso pedagógico, o professor classifica a Química como
superior às Artes e à Educação Física, valorizando-a como capaz de preparar “o aluno pra o
que ele vai enfrentar daqui pra frente”, enunciado em que parece estar se referindo,
novamente, ao mercado de trabalho, dando pistas de que sua concepção de qualidade se
relaciona à qualidade técnica voltada aos aspectos ditados pelo mundo produtivo. Ele ainda
categoriza o ensino noturno, desqualificando-o devido ao fato de atender a alunos mais velhos
e de ter a carga horária reduzida.
Ao ser perguntado sobre a representação do professor de Ciências como maluco ou
como um super gênio, este professor diz que não se considera um gênio e que “a imagem [do
professor de Ciências] mudou um pouco porque o ensino mudou um pouco”, embora perceba
que ainda há muitos alunos que veem o professor de Ciências como uma pessoa mais
inteligente que as outras.
Relacionando o estereótipo de gênio à abordagem dos conceitos químicos em
laboratório, “quando você faz uma prática você demonstra pra eles coisas que são
impressionantes”, percebemos que o professor se queixa da falta de um laboratório que o
permitisse aproximar os estudantes dos fenômenos químicos. Ele estabelece enquanto
categorias os ambientes extra e intra-escolar, referindo que as pessoas o veem apenas como “o
cara que entende de Química”, mas admitindo que na escola a representação do professor
como um gênio pode prejudicar a relação professor-aluno, contribuindo para afastá-los dele e
dificultando o controle que precisa manter sobre a turma:
Então eu mesmo procuro quebrar essa mística porque eu sei que isso afasta demais e, pelo menos é a minha forma de lidar, se eu me mantiver muito afastado deles eu não consigo chamá-los pro meu lado, e aí eu não consigo dominar ninguém, porque aqui você não consegue dominar na força. Escola como era antigamente não existe mais. Então você tem que deixar cair o mito, deixar que eles cheguem o máximo possível e isso eu tento fazer pra que eles cheguem mais pro meu lado.
O professor preocupa-se com sua imagem frente aos alunos visando conter a indisciplina
e a cativar os estudantes. Novamente ele categoriza o passado e o presente parecendo
valorizar mais o tempo passado em função da disciplina que era exigida dos estudantes. O
professor afirma que os alunos “gostam [dele] porque eu me aproximo ao máximo”,
parecendo perceber tal aproximação como uma forma de evitar quaisquer dificuldades de
relacionamento que possam aparecer.
Nas primeiras aulas todo ano eu perco tempo tentando mostrar que a gente vai se respeitar, que se a gente não se respeitar a gente não vai a lugar nenhum. Aqueles
127
que mesmo assim desrespeitam, porque tem aqueles que não conseguem entender isso, eu relevo porque tem muitas coisas envolvidas, você não vai ficar julgando a vida do camarada e também não vai ficar se indispondo porque teu tempo é curto, se não você atrapalha o outro, você se estressa mais do que deveria, você tem que se concentrar naquilo que você tá ali pra fazer e que é importante. Eu relevo e deixo passar. Normalmente, quando eles vêem que eu não ligo, ninguém mais se exalta, ninguém mais desrespeita, então.
Seu discurso pedagógico demonstra que ele pretende modificar o comportamento
desrespeitoso dos estudantes para viabilizar seu trabalho, atribuindo tal comportamento,
aparentemente, a diversas dificuldades sociais pelas quais passam.
Ele diz que embora gostem das aulas, seus alunos percebem o ensino de Química como
“muito, muito, muito complicado”, ainda que aborde os conteúdos de forma elementar.
Justificando a dificuldade dos alunos, esse professor afirma:
Principalmente aqueles que já têm uma certa idade. Que aí os conceitos de Matemática elementar tão lá na cabeça deles bem fixados, né, mas eles não conseguem absorver mais nada, a impressão que me dá é essa. Eles têm uma dificuldade enorme pra absorver o mínimo conteúdo que seja. Os mais novos são desinteressados, mas quando você consegue trazer eles pelo interesse, eles rapidamente aprendem aquilo ali. Mas, na média, no geral, eles ainda acham aquilo inatingível, uma coisa de maluco, ‘pra que que eu vou entender isso?’, raríssimas exceções adoram e dizem ‘ah, adoro, é uma carreira que eu gostaria de seguir’ e aí, infelizmente, não sei se vão ter essa chance.
Nesse enunciado, o professor categoriza os alunos mais velhos e os mais novos,
isolando-os e, ainda que de modo distinto, desqualificando-os. Para ele, os alunos mais velhos
não são capazes de absorver os conhecimentos mais básicos e os mais jovens, dado o
desinteresse que apresentam, também acabam por entender a Química como “inatingível”,
relacionando tal estereótipo ao estereótipo das Ciências como coisa para maluco e retomando
uma representação não abordada por ele até então.
Por meio das regras avaliativas que estabelece, o discurso pedagógico desse professor
nos indica que a avaliação praticada por ele segue as exigências da Secretaria de Educação,
que considera outras dimensões, além do conteúdo específico cobrado nas provas. Nesse caso,
não fomos capazes de perceber recontextualização do discurso oficial embora, ainda que,
mesmo assim, os alunos da escola B mantenham um desempenho mediano.
Ao refletir sobre sua responsabilidade enquanto professor de Química da rede pública
estadual, ele reafirma seu objetivo de tornar os alunos pessoas mais cultas e desqualifica o
ensino público ao denunciar que, “só com esse ensino daqui” não se sente capaz de “fazê-los
chegar ao nível de concorrer num vestibular”, referenciando, novamente, uma concepção de
qualidade atrelada ao conteúdo específico e a aspectos quantitativos do processo de ensino e
aprendizagem. Seu enunciado parece relegar à cultura geral o papel de prêmio de consolação,
entretanto, o professor consegue perceber como importantes as deficiências apresentadas
128
pelos alunos no que se refere a algumas noções de cidadania, de direitos e deveres: “eles não
têm, eles acham que eles só têm direitos, eles acham que eles só têm que ganhar, eles não têm
que conquistar”. Nesse trecho, aborda aspectos externos ao ambiente escolar que, segundo
ele, também devem ser responsabilidade da escola.
Com relação à responsabilidade dos alunos para um ensino de Ciências melhor, o
professor sugere que “todos se esforçarem mais é básico”, mas enfatiza que
A responsabilidade deles seria cobrar muito mais do sistema todo, da escola, do que vem de cima, que não adianta vir, dar o computador pra eles virem aqui entrar na internet se eles não preparam grande parte dos professores e tem pouquíssimos professores usuários de internet.
Com esse enunciado, podemos presumir que ele pode estar se referindo ao papel que os
alunos devem cumprir, como cidadãos, mencionado há pouco. Na sequência desse discurso, o
professor denuncia que tudo o que tem sido promovido pelo Estado na escola, supostamente
para alcançar um ensino de qualidade, “é fachada. É pra dizer que a escola pública tá com
uma qualidade muito superior e, na verdade, não tá”.
Ao referir-se especialmente à sua escola, ele se ressente da falta de um laboratório de
Química, isolando-o como um elemento responsável para o atingimento da qualidade.
Pensando sobre os elementos que deveriam compor o ensino de Ciências ideal das
escolas públicas de hoje, ele ressalta a falta de tempo. Ao explanar como estabelece suas
prioridades em função da reduzida carga horária, deixa-nos perceber como é tortuosa a
relação que estabelece entre os conteúdos (mínimos) e o cotidiano dos alunos:
Priorizar o conteúdo, superficial, sem aprofundar tanto, tentando pinçar algumas coisas do dia a dia. [...] Eu priorizo muito mais o conteúdo, só que ao invés de estar repetindo pra que aquele conceito lá, básico, entre na cabeça dele da forma como tem que entrar, eu tenho que buscar situações cotidianas pra que eles entendam alguns fenômenos, às vezes, sem entender o conceito básico lá que tá por trás disso.
Ao narrar sua rotina na escola B, nos aproxima de sua prática docente reafirmando a
falta de tempo como o principal empecilho ao atingimento da qualidade:
A rotina é: você entra na sala, coloca a matéria no quadro, enquanto isso, os que já estão, tão copiando, outros tão chegando, e aí quando vai dando o final você vai explicar e aí, ainda tem gente chegando, e aí você explica aquilo tudo, tira algumas dúvidas e o tempo acabou. O tempo acabou. E aí se você fosse buscar uma aula mais lúdica, todo aquele conteúdo que tá no papel, nos PCN, esquece aquilo, você ia perder todo o tempo tentando deixar a aula um pouco mais interessante, mais animada e o conteúdo ia ficar todo pra trás. [...] Tempo, pra mim é o tempo. É o principal.
Aqui, ele institui duas categorias de ensino: a rotina e o ensino lúdico, ao qual ele parece
atribuir mais valor. Curiosamente cita os PCNEM mesmo tendo admitindo não tê-los lido.
Retomando os objetivos que pretende atingir com as aulas de Química, ele institui como
categorias três grupos de estudantes da escola B: os que têm um bom potencial, os que veem a
129
escola apenas como uma obrigação e os alunos mais velhos. No que se refere à primeira
categoria, segundo o professor, a Química pode ajudar na ascensão a um cargo melhor. Ele
relaciona essa categoria inclusive a aspectos relativos ao ambiente externo à escola, como o
fato de estarem “mais bem vestidos, material mais bem cuidado, a mãe fica em cima, chegam
na hora, [...] têm uma família por trás, e eles respeitam muito isso”. A superioridade que ele
atribui ao ensino de Química voltado à formação para o trabalho o faz valorizar sobremaneira
esta categoria, posicionando-a num patamar superior às demais.
A segunda categoria é ocupada pelos alunos mais jovens que, segundo ele, buscam
somente agradar a família e encaram a escola como “um degrau que todo mundo passa”, sem
ter como objetivo sequer concluir o Ensino Médio. Esta categoria é desqualificada e isolada
pelo professor visto que, com esses alunos, não consegue alcançar quaisquer dos seus
objetivos.
A última categoria diz respeito aos alunos mais velhos, os que “querem é aprender. Não
só querem concluir o Ensino Médio, eles querem sair daqui mais inteligentes”. Notamos que
esta categoria é valorizada pelo professor em função do seu objetivo de fazer com que os
estudantes aprendam os conceitos básicos de Química (sendo este o único objetivo que
consegue atingir na escola B), sendo posicionada logo abaixo da primeira categoria.
Ao final do seu discurso, o professor desabafa:
A gente chega cheio de ideais, né, e, não sou o melhor de todos não, mas também não me considero o pior, eu acho que poderia fazer um trabalho muito melhor, pelo menos, mas, infelizmente, a gente se adapta e, olha, a coisa tende a piorar. [...] Eu acho que eles tão esquecendo de que a escola antigamente não tinha recursos tecnológicos e o que valia era o relacionamento entre o aluno e o professor e a coisa sempre funcionou assim. Você precisa adequar a escola à modernidade? Sim, obviamente. [...] mas eu acho que deveria respeitar um pouco mais o relacionamento do professor com o aluno que eu acho que a hora que eles fizerem isso, derem uma freiada nessa modernização, os professores vão render muito mais, mas muito mais e, consequentemente, o ensino vai melhorar um degrau, pelo menos. Depois de melhorar um degrau, busca-se uma alternativa pra melhorar o segundo, o terceiro, mas o primeiro passo teria que ser dado. E, hoje em dia não, eles tão colocando cada vez mais dificuldades fantasiadas de modernidade e, sem entender, tão colocando cada vez mais dificuldade, mais obstáculo nesse relacionamento professor com aluno, o relacionamento nosso daqui pra frente vai se resumir a vinte minutos, depois da chamada, e eu vou ter que me virar daqui pra frente (risos).
No trecho acima, percebemos que reforça a difícil relação estabelecida por ele entre a
modernização da escola e a qualidade da educação. Ao longo da entrevista, o professor já dera
pistas de que é contra a implantação dos artefatos tecnológicos no ambiente escolar ao
mencionar a instalação de um computador em cada sala de aula com o intuito de, segundo ele,
controlar a presença dos alunos e fiscalizar a prática pedagógica. Ao categorizar o ensino de
antigamente e o dos dias de hoje, atribui maior valor ao primeiro por acreditar que o
130
relacionamento entre professor e alunos fosse favorecido pela falta de recursos tecnológicos,
dos quais, atualmente, a escola dispõe. Apesar de mencionar a necessidade de modernização
da escola, seu discurso deixa claro que ele não relaciona a qualidade a essa modernidade,
acreditando que, na verdade, estas mudanças são superficiais e têm o papel de mascarar as
deficiências existentes no sistema educacional.
Voltando-nos a todo o discurso pedagógico trazido por esse professor, notamos que, em
sua prática docente, é possível supor que ele procura equilibrar o controle que detém sobre a
comunicação pedagógica ao controle que seus alunos detém, o que também pode ser
evidenciado por meio dos enunciados em que narra suas práticas nas quais acaba por adotar
como objetivo do ensino de Química, a aproximação entre os conceitos da disciplina e o
cotidiano dos alunos. No entanto, estivemos atentos ao fato de que, embora pareça não
exercer um enquadramento forte, ele é bastante hábil em fazer com que os alunos “se
comportem bem” viabilizando, com isso, sua prática pedagógica.
4.1.6 Discurso da professora de Biologia da escola B
Ao ser perguntada sobre os objetivos que pretende alcançar através da Biologia, a
professora da escola B categoriza o ensino de Ciências e o ensino de Biologia, equiparando-os
e adotando como objetivo principal “levar o conhecimento básico e científico ao aluno”, sem
deixar de lado a finalidade de “orientar o aluno [...] pra que ele possa buscar o conhecimento
em outro lugar”.
Para justificar a recontextualização do currículo pela seleção do conteúdo básico, ela
categoriza e classifica o ensino noturno, isolando-o como inferior ao diurno em função de sua
reduzida carga horária e de receber alunos sem um bom embasamento. A defasagem
adquirida no Ensino Fundamental e ampliada pela política de aprovação automática, o
afastamento dos estudos e o ingresso em cursos supletivos com conteúdos reduzidos são
fatores que podem contribuir, segundo essa professora, para a falta de base atribuída por ela
aos alunos da escola pública noturna.
A classificação dos alunos em diferentes categorias é apresentada como mais uma
justificativa para a prática que realiza: “a gente tem senhoras aqui que nem vão se inserir no
mercado de trabalho, já passaram dessa fase, é uma realização pessoal”. Com vistas a abarcar
conhecimentos biológicos úteis à vida desses estudantes, a professora amplia seus objetivos
para abordar temas relacionados à saúde e ao meio ambiente:
Ele não aprende só para o trabalho, ele aprende pra vida dele também. [...] esse conhecimento pra ele, pra ele aproveitar na vida dele, pra ele multiplicar pros familiares dele, pra multiplicar pras pessoas que ele se relaciona. [...] você não vem
131
aqui só pra aprender conteúdo porque você vai fazer uma prova, você também vai usar isso na sua vida cotidiana.
Nesse enunciado, ela institui como categorias o ensino voltado à preparação dos
estudantes para o trabalho e o ensino que visa formá-los para a vida, recontextualizando o
currículo de Biologia pela seleção de conteúdos relacionados à saúde e ao meio ambiente. A
professora deixa evidente a tensão entre os objetivos que pretende alcançar e parece valorizar
a formação para a vida até por estar ciente de que não tem uma clientela que alcance a
preparação para o mundo produtivo (ao menos, não em sua maioria).
Embora a professora assuma como finalidade da sua disciplina proporcionar aos alunos
o acesso a conhecimentos científicos úteis à sua realidade e até admita tal objetivo como
importante, o faz por não conseguir cumprir as exigências ditadas pelo mundo produtivo.
Ao enunciar também como objetivo a formação de um aluno crítico, percebemos que,
para ela, um aluno crítico é aquele que é capaz de assimilar os conhecimentos específicos
oferecidos na escola para, a partir de então, buscar novos conhecimentos, contestando-os se
necessário, e tornando-se autônomos no entendimento dos temas relacionados à Biologia.
Para ela, tal formação deve tornar o aluno capaz de expor suas opiniões, expressando-se
criticamente a respeito dos conteúdos biológicos específicos. A professora afirma que
“respeitar as coisas da natureza, que a gente tá inserido nela e também para a prevenção de
doenças, cuidado com o corpo, cuidado com o outro, respeito ao outro [...], outros seres e
outras pessoas” também são preocupações que fazem parte dessa formação crítica.
Suas regras avaliativas retratam a problemática do ensino público noturno. Nas provas
que aplica na escola B, ela admite que “tem que reduzir o que a gente vai cobrar” para,
segundo ela, “atender essas [pessoas] que não têm embasamento teórico anterior”. Por meio
das regras avaliativas de seu discurso pedagógico, nos aproximamos de sua prática e
identificamos que sua concepção de qualidade se relaciona à concepção de qualidade como
direito de todos na medida em que procura atender esses alunos. A professora demonstra
preocupação perante o fato de que os estudantes “não vão alcançar o mínimo de rendimento
que a gente exige”, o que pode levá-los à desistência e a não usufruir do convívio social
proporcionado pela escola.
Ao considerar outras categorias de alunos, a professora afirma que “tem que passar esse
conteúdo” parecendo assumir as políticas curriculares oficiais como um discurso de
autoridade. O currículo oficial adquire então um caráter prescritivo que dita a forma como a
qualidade para outros alunos deve ser alcançada.
132
Ela institui como categorias os alunos que querem tirar um certificado para melhorar no
trabalho e os que pretendem continuar os estudos, demonstrando valorizar a segunda ao
enfatizar que eles “querem fazer fisioterapia, radiologia e enfermagem”, por sua relação com
a Biologia. Sua concepção de qualidade equipara-se aqui à inserção no mundo do trabalho. A
profissão docente é desvalorizada quando ela menciona que “ninguém fala que quer ser
professor”.
Ela também categoriza os alunos da sua escola que têm mais facilidade e os que têm
dificuldade de aprendizagem. Estabelecendo relação entre essas categorias, a professora
lamenta que, geralmente, a primeira categoria, embora tenha facilidade, é desinteressada,
enquanto a outra tem dificuldade, mas tem interesse em aprender.
Ao questionar-se sobre a importância de um determinado conteúdo para a categoria dos
alunos idosos, a professora critica o currículo oficial: “você trabalhar divisão celular que a
gente nem se aprofunda nisso e eu não sei nem pra que vai servir pra eles”.
Ela volta a considerar a preparação para o mercado de trabalho como um objetivo
importante quando diz: “a gente também tem assim um olhar pra ver uma habilidade
específica de cada um, a gente percebe [...] a habilidade de cada um ‘poxa, você tem jeito pra
isso. Por que você não procura?” Essa fala nos mostrou o quanto essa professora se preocupa
com os alunos e os vê individualmente, percebendo as singularidades de cada um.
No sentido de nivelar o desempenho dos alunos que se mostram tão heterogêneos, ela se
utiliza da avaliação ditada pela SEEDUC para compensar as notas ruins daqueles que não têm
condições: “[...] os conteúdos você não nivela, o que você tenta nivelar é a avaliação
quantitativa”. Por meio desse trecho de seu discurso pedagógico, nos aproximamos da
avaliação que pratica, que se revela pouco rigorosa, segundo ela, em função da clientela da
escola B.
Também institui como categorias o passado e o presente ao referir-se à base que os
alunos tinham antes, posicionando o passado numa escala superior ao presente dada à
existência de uma “provinha pra entrar aqui no Estado”. A professora afirma que em função
daquela seleção “o aluno já vinha com outra bagagem [diferente da] que ele tem agora”, e
que, atualmente, “se você avançar muito o conteúdo [...] uma parcela fica e acompanha e a
outra parte fica meio boiando”. Esse trecho deixa clara a ênfase que dá aos conteúdos
biológicos específicos e sua frustração por não conseguir alcançar tal objetivo em função,
novamente, da defasagem apresentada pelos alunos.
Ao tentar estabelecer uma possível relação entre os objetivos que pretende atingir por
meio das aulas de Biologia e os objetivos da Física, da Química e da Matemática, ela refere
133
que há objetivos específicos de cada disciplina, mas o objetivo geral é o mesmo: “levar o
aluno a aprender o conhecimento básico [...] se tornar crítico, aprender a respeitar a opinião
do outro, [...] buscar conhecimento, trazer esse conhecimento pra vida dele [...] e pro trabalho
dele”. Percebemos novamente a tensão presente em seu discurso pedagógico, voltado ora à
formação para a cidadania ora à formação para o mercado.
Descrevendo os conteúdos que ensina, a professora menciona a existência de um “um
plano de curso de Ensino Médio [...] pra todo mundo”, referindo-se ao currículo oficial
enviado pela SEEDUC às escolas. Seu discurso pedagógico deixa claro que a
recontextualização que realiza se dá basicamente em função da carga horária insuficiente de
que dispõe: “a gente prioriza alguns conteúdos por que não dá pra gente trabalhar o conteúdo
todo em dois tempos”.
A professora enfatiza, na continuidade de seu discurso pedagógico, que o plano de curso
que toma por base foi elaborado pelos próprios professores da escola B, mas menciona
explicitamente a existência de um documento oficial e o processo de recontextualização que
estabelece: “na verdade, segue uma lógica. Por isso é que é igual pra todo mundo. Então tem
um documento oficial, né, o que não significa dizer que você não possa mudar”.
A professora narra que no primeiro ano do Ensino Médio, ao tratar da importância da
Biologia, explica aos estudantes que “a ciência resolve alguns problemas, mas não resolve
todos os problemas do mundo”. Ela lamenta que “nunca consegue trabalhar o conteúdo todo”
previsto para esse nível de ensino, mas para compensar essa falta, transfere para o aluno a
responsabilidade por buscar os conteúdos não abordados em sala de aula acreditando que “se
você trabalha o simples bem, ele busca o complexo na hora que quiser”.
Ela atribui à falta de tempo, mas também à dificuldade dos alunos, o fato de não
conseguir aprofundar os conteúdos específicos. Além desses aspectos, ela recontextualiza o
currículo por valorizar um ou outro conteúdo como mais importante para a clientela da escola
B, como é o caso da reprodução:
[...] mesmo que a reprodução esteja no último capítulo eu sempre transfiro ela pro primeiro [...] porque eu acho que ela é prioridade, até porque eu não vou deixar o garoto com o livro na mão, olhando, esperando chegar em dezembro pra ele estudar aquilo ali, entendeu.
Nesse trecho de seu discurso pedagógico, podemos depreender algo sobre o
enquadramento exercido por essa professora, que nos parece fraco por assumir como
finalidade do ensino de Biologia que pratica na escola B o atendimento às necessidades dos
estudantes.
134
Ainda que admita a falta de tempo para contemplar todos os conteúdos biológicos
relativos ao Ensino Médio, a professora afirma que, no segundo ano, os alunos “não são mais
leigos” pois já adquiriram, segundo ela, conhecimentos científicos básicos e, além disso, têm
seu vocabulário ampliado.
Reclamando sempre do pouco tempo que tem para cumprir o currículo, chama a atenção
para a redução ainda maior devido aos feriados. Ao tratar do aspecto social da educação
pública atual, a professora menciona que “é ruim [de trabalhar] quando você fica numa
comunidade complicada. [...] Deu nove e meia eles também não querem porque também têm
que subir”. Segundo ela os aspectos sociais e as complicações nas comunidades tornam o
trabalho difícil, dificultando o atingimento da qualidade da educação.
Admite que recontextualiza o livro didático (que todos os alunos possuem) selecionando
o que valoriza como conteúdo útil aos alunos e menciona a utilização de equipamentos como
datashow, retoprojetor e vídeos no tratamento dos temas da Biologia, evidenciando a inserção
de recursos alternativos em suas aulas. Ela não se queixa da falta de um laboratório na escola
B devido à preparação que este tipo de atividade requer.
Quando perguntada se conhecia os PCNEM de Biologia, a professora afirma que sim,
mas “que não é um documento que você fica o tempo todo ali na mesa”. Diz encará-los como
um guia comum a todos os professores, que contém os conteúdos mínimos a serem abordados
no Ensino Médio.
Os parâmetros são isso, um guia, como eu posso dizer, comum, a todos, entendeu, pros conteúdos mínimos pra todo mundo. [...] Eu acho que ele atende se você olha, essas coisas são românticas, né. Tem muito conteúdo, não é, como é que a gente pode dizer, objetivo, específico. É tudo muito, assim, muito romântico. Querem apreender o todo.
Com o adjetivo “romântico”, ela critica os PCNEM por julgá-los distantes da realidade
educacional da escola pública. Ao tratar especificamente da influência dos PCNEM na sua
prática, a professora admite que:
[...] a gente não fica o tempo todo em cima de teorias, né, porque depois que você vai adquirindo, você fica no início [...] calcado naquilo ali, depois que você vai adquirindo a prática com o seu trabalho, eu acho que naturalmente a gente já tá fazendo aquilo ali, só que você não tá mais lendo aquilo ali.
Nesse trecho de seu discurso pedagógico, ainda que reforce a ideia de que a proposta
oficial apresenta-se distante do contexto em que está inserida, ela nos dá pistas de que
incorpora essas orientações às suas práticas, sem, no entanto, recorrer a essas “teorias”, como
denomina os PCNEM, a cada momento.
Ao queixar-se da falta de tempo tanto em sala de aula quanto para preparar suas aulas, a
professora expõe sua dificuldade, ainda mais se tratando da Biologia, que conceitua como
135
“uma matéria que você tem que trabalhar com conteúdo científico básico porque lá você tem
que trabalhar os conteúdos básicos, mas você tem que relacionar com a vida, trabalho,
sociedade”. Na sequência, por todas essas dificuldades, ela reconhece a situação do ensino
público atual desqualificando-o, assim como à sua própria prática, como aquém do que
gostaria que fosse e do que deveria ser em função de como consegue trabalhar.
Pensando o ensino de Ciências da escola pública de hoje, a professora institui como
categorias os professores das Ciências e os demais professores, valorizando a primeira dado o
envolvimento que, segundo ela, esses professores têm.
[...] os professores de Ciências são os mais envolvidos, uns são muito envolvidos [...] com o trabalho dos alunos, tão sempre propondo coisas novas, que eles apresentem trabalhos, aí eles se envolvem com trabalhos, se envolvendo com as questões ambientais. [...] O professor de Ciências não se preocupa tanto com o conteúdo [...] devido ao fato de a gente ter esse envolvimento com essas questões outras que são essas de saúde, que são essas de meio ambiente, que são essas questões relacionadas até com os valores.
Nessa comparação, ela parece se referir mais especificamente aos professores de
Biologia, tanto pelo uso da expressão “a gente” quanto pelo que já colocou no início da
entrevista. Em outro trecho de seu discurso pedagógico, ela equipara essa descrição de
professor de Ciências ao estereótipo de educador, o que evidencia o forte isolamento que
estabelece entre esses professores e os das demais disciplinas.
Ao estabelecer como categorias os professores de Matemática e Língua Portuguesa e os
professores das Ciências, a professora tece uma crítica ao excesso de valorização conferido ao
ensino daquelas disciplinas em relação ao que pode ser feito em Ciências:
Porque o menino precisa aprender a escrever direito, o menino tem que aprender a fazer conta muito bem. Se ele não cuida bem da saúde dele, tudo bem, isso não tem problema, desde que ele saiba classificar todas as orações devidamente e botar todos os acentos direitinho e fazer os cálculos corretamente. Então, as questões, essas questões que ele, cuidar do corpo dele, da saúde dele, respeitar todos os seres, inclusive o outro que é o coleguinha do lado. [...] cuidar da saúde, do meio ambiente como eu já falei. [...] prevenir de doenças. Então a gente tem que trabalhar tudo isso, nós temos um horário de três tempos semanais e o outro cara que ensina a fazer cálculo, entendeu, aí eu até brinco com eles ‘gente, a matéria mais importante da escola é ciências por que você vai aprender sobre o seu corpo, sobre a sua saúde’.
Com esse enunciado, ela isola as duas categorias, posicionando os professores de
Ciências num patamar superior aos de Matemática e Língua Portuguesa por tratarem de
assuntos úteis à formação para a vida, como saúde e meio ambiente.
A professora categoriza a escola pública e a escola particular em função dos currículos
praticados nessas duas redes. Para ela, a escola pública valoriza aspectos mais amplos que
apenas os conteúdos específicos da Biologia, enquanto na rede particular de ensino os
professores conseguem tratar da abordagem dos conteúdos visando tanto ao rendimento
136
quanto ao trabalho com os conceitos básicos (para a vida). Nessa comparação, ela também
categoriza os alunos da escola B, isolando-os dos demais alunos devido ao fato de não terem o
embasamento necessário para o aprofundamento dos conteúdos tal como gostaria, o que é
apresentado como justificativa para a diferença:
A nossa clientela ela é um pouco diferente [...] como eles não têm embasamentos para que a gente consiga evoluir muito, aprofundar muito no conhecimento que, a gente também tem que respeitar esse, essa linha de conhecimento que ele traz, não significando dizer que a gente não tem alunos que conseguem ir muito além.
Com essa distinção, a professora parece admitir que a abordagem dos conteúdos tal qual
realizada na escola pública adquire quase a função de prêmio de consolação, por não
conseguir abarcar outros objetivos. Seu discurso pedagógico justifica a recontextualização
curricular da rede pública de ensino devido à falta de embasamento da sua clientela. Ela
parece assim eximir-se de sua responsabilidade no atingimento da qualidade da educação tal
como alcançada pela escola particular.
Comentando as regras avaliativas que enuncia para a escola pública, conhecemos a
concepção de avaliação desta professora:
Depois que essa escola que veio aí com a aprovação automática, acabou uma coisa importante do aluno. Porque o aluno ele precisa da prova, ele precisa ser cobrado! Se ele não é cobrado, ele não busca, a gente também não busca!
Seu discurso pedagógico denuncia a política de aprovação automática da rede municipal
de ensino, culpabilizando-a por facilitar a aprovação dos alunos e, em consequência disso,
gerar uma defasagem que os estudantes arrastam por todos os níveis de ensino subsequentes.
O posicionamento dessa professora sobre a política de aprovação automática expressa a
relação que identificou na associação entre a legislação oficial e a falta de qualidade do
ensino.
Ela resume os fatores que influenciam na recontextualização curricular dos professores
do ensino noturno e na falta de qualidade do ensino de Ciências:
[...] eu acho que o que fica aquém na escola pública é por que a gente tem esse horário reduzido, a gente faz uma cobrança menor nas questões de científica básica, priorizando essas questões relacionadas com valores, com prevenção, saúde, doença.
Em seguida, a professora descreve a sua proposta, que é explorar bem os conteúdos
básicos e deixar que o aluno vá além, buscando conhecimento em outros colegas.
Do ponto de vista do comprometimento dos professores, ela qualifica o ensino de
Ciências na escola pública como muito bom, embora lamente o currículo praticado por alguns
que não reconhecem as Ciências como ferramenta para a vida dos estudantes.
Ele tem que saber mais de Matemática e Português, eu falei ‘oh, depois de morto, você não precisa saber nada disso. Primeiro você tem que preservar sua vida. Então
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eu acho que o ensino que trabalha preservação da vida, e a vida e a estrutura do planeta, como é que ele funciona e a vida deles [...] deveria ser mais valorizado. Não que as outras disciplinas não têm valor [...] é que a disciplina de Ciências e Biologia é coisa básica, para a vida.
Neste trecho de seu discurso pedagógico, novamente, a professora estabelece a categoria
da Matemática e do Português e a categoria das Ciências, desqualificando a primeira por
julgar que não dá conta de preparar o aluno para cuidar de si e do meio ambiente à sua volta,
motivo pelo qual posiciona num patamar superior as disciplinas científicas e, em especial, a
Biologia, isolando-a, inclusive da Física, da Química e da Matemática.
Categorizando mais uma vez a escola B e as escolas particulares, a professora isola a
primeira, desqualificando-a por admitir que sua clientela é desfavorecida no que se refere a
fatores externos à escola, aos quais é submetida, em especial, no ambiente familiar. Segundo
ela, o aluno da escola pública é desprovido do que denomina de “educação paralela”:
O cara [aluno da escola particular] tem em casa a mãe dele que é professora de Biologia, o pai dele que é professor de Português, o pai dele que é engenheiro, o pai dele que tem condições de pagar a moça ali do lado pra dar aula pra ele, e o meu aluno não tem.
A professora chama a atenção para tudo o que compõe o capital cultural dos alunos da
escola particular em contraposição aos alunos da escola pública:
O aluno [da escola B] não tá inserido dentro de uma família onde ele recebe uma coisa chamada de educação paralela. É a mãe que senta à mesa de jantar, a família toda sabe falar muito bem, tem um vocabulário muito ampliado [...] e que tem conhecimentos pra passar, e corrige o menino. Meu menino da escola pública, que não são todos, a mãe saiu cinco horas da manhã, deixou o garoto lá na escola e, quando chegar de noite, ela vai preparar a janta e não tá ensinando o menino a fazer o dever de casa. Ela não tem nem o vocabulário pra entender e nem pra passar pra ele.
A professora denuncia as condições sociais imbricadas na realidade escolar dos alunos
da escola B, apontando-as, assim, como um agravante para o não atingimento da qualidade.
Em contrapartida, ela tende a equiparar o acesso à informação propiciada pelas tecnologias,
que hoje todos os alunos têm, valorizando os artefatos tecnológicos como um importante
elemento para a qualidade da educação.
Sobre a representação das disciplinas científicas como conhecimentos muito difíceis e
do professor de Ciências como um gênio, como alguém muito inteligente, a professora institui
como categoria o tempo em que começou a dar aula, admitindo que ela mesma se sentia
diferente das outras pessoas, como se fosse alguém de outro mundo, “aquele cara do filme que
tem duas orelhas assim”. Ao deparar-se com a realidade atual, no entanto, ela denuncia que os
professores não são formados para a prática docente de sala de aula embora acredite que,
138
ainda assim, os alunos ainda mantenham a representação do professor de Ciências como
alguém muito inteligente, equiparando-o inclusive ao médico.
A professora diz que seu relacionamento com os estudantes é bom porque eles gostam
dela. Embora haja alguns que não se identificam com a disciplina, ela acredita que consegue
compensar esse afastamento por meio do entusiasmo que mantém em suas aulas: “mesmo
quando eu não levo uma aula prática ou uso um recurso didático muito avançado, eu levo pelo
menos minha emoção junto”.
Seu discurso pedagógico expressa que os alunos ainda vêem a Biologia como um
conhecimento muito difícil, embora o considere muito importante para a vida. A professora
lamenta a queda do rendimento dos alunos, atribuindo esse problema a alguns fatores
enunciados no trecho seguinte:
A queda no rendimento deles é também [devido a falta de] conteúdos básicos que eles trazem do Ensino Fundamental, à defasagem que eles têm de tempo, que param de estudar e voltaram, à distância que eles têm entre a escola e o trabalho, [...] Então, eles já chegam aqui cansados e eles também têm muita dificuldade de entender textos.
É evidente que, para ela, o atingimento da qualidade passa não apenas por aspectos
relativos ao ambiente escolar, mas também por fatores externos à escola. Visando contribuir
especialmente com o ensino de Ciências, ela afirma que:
Como professora de Biologia minha responsabilidade é a preservação da vida, eles aprendem coisas que os ajudem, [...] cuidar deles e das pessoas que o cercam. Se ele cuidar bem das pessoas que o cercam, se cada um fizer isso, vai tá todo mundo cuidado. [...] Eu priorizo a preservação da vida e priorizo mostrar pra eles que eles podem buscar os conhecimentos todos que eles não conseguirem buscar aqui.
Por julgar-se capaz de fazer com que os alunos aprendam alguns conhecimentos
específicos, ela deixa claro que recontextualiza o currículo priorizando conteúdos
relacionados à preservação da vida e que procura contribuir para o processo de autonomia dos
estudantes, incentivando-os na busca pelo conhecimento.
Sobre a contribuição dos alunos, ela pensa que “o papel deles é se esforçarem o máximo
que eles puderem pra poder tentar alcançar aquilo que a gente tá propondo”. Na sequência do
seu discurso, a professora exime não apenas à si mesma da responsabilidade pela melhoria do
processo de ensino e aprendizagem como também à escola:
E se eles não buscam eles tem que culpar tem que buscar culpados mas que eles não culpem a escola eu falo pra eles [...] ‘se vocês não alcançarem porque não querem não coloquem, não transfiram a culpa pra mim e nem pra escola pública, porque eu estou aqui representando a escola pública e fazendo o meu papel. Se eu vim aqui dar a minha aula, se eu tô trazendo uma aula motivada, cheia de emoção’, eu me arrumo. Eles falam que eu sou a professora que vem arrumadinha pra escola aí eu falei ‘isso aqui faz parte do meu personagem’.
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Nesse trecho, a professora considera sua motivação e suas roupas como elementos úteis
à sua prática docente, concepção que pode ser interpretada segundo o que Bernstein preconiza
quando afirma que uma representação pedagógica expressa um determinado discurso não
apenas pela fala ou pela escrita, mas também através das posturas assumidas e da maneira de
vestir.
Ao tratar sobre a responsabilidade da escola B para a promoção de um ensino de
Ciências adequado aos dias de hoje, a professora diz: “não tenho tudo e quando tiver tudo tá
faltando alguma coisa”, sugerindo que o alcance da qualidade é um objetivo utópico.
Finalmente, ela tece uma enorme crítica à falta de qualidade da escola pública, sintetizando
alguns aspectos e apontando outros ainda não mencionados. Enfatiza o problema da carga
horária reduzida apesar de afirmar não ser este o fator mais importante:
O ensino de Ciências tem que ampliar a carga horária pra começar [...] porque se nós temos uma responsabilidade de trabalhar também a questão da prevenção, a valorização e a preservação da vida e também os conhecimentos científicos básicos, tá, a gente tinha que ter uma carga horária mais ampliada.
A professora reconhece as condições de trabalho e de formação do professor como outro
fator que corrói a qualidade:
[...] Um salário melhor porque você não pode ficar numa escola, trabalhando ali e tal, e esse negócio de você ficar arrumando [emprego] pra todo lado também você, vamos supor, você enfraquece um pouco a sua aula. [...] Você não ter um horário pra você preparar sua aula prática. [...] Deveria ter cursos de capacitação remunerados para o professor, porque o professor não vai deixar a turma pra poder ir fazer o curso de capacitação, então ele deveria ter um outro horário pra poder fazer o curso de capacitação. Remunerado, claro. [...] O que a escola precisa oferecer é isso, a educação geral é a valorização do profissional que na prefeitura a gente tem mais, [aqui] a gente tem menos.
Nesse enunciado, a professora desqualifica a educação pública dos dias de hoje, mas
aponta fatores possíveis que, segundo ela, garantiriam a qualidade da educação pública. Ela
deixa clara a parcela de responsabilidade que atribui ao Estado enquanto instância superior,
julgando que deve cuidar da valorização do professor desde a sua formação até uma melhor
remuneração passando por condições adequadas à sua prática. A professora estabelece como
categorias a rede municipal e a rede estadual de educação, classificando a primeira num
patamar superior à outra em função, exatamente, da valorização da profissão docente.
140
5 RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, apresentamos, nas duas primeiras seções, os resultados da pesquisa
retomando nossas questões de estudo. Na primeira, destacamos as semelhanças e diferenças
entre os discursos dos professores das diferentes disciplinas científicas de uma mesma escola,
buscando analisá-las para compreender como ocorre o processo de recontextualização. A
segunda se refere ao confronto entre os discursos dos professores de ambas as escolas com a
intenção de compreender como a qualidade oficial da educação estaria relacionada aos
sentidos de qualidade do ensino de Ciências construídos por eles. Na seção seguinte, nos
voltamos à discussão de alguns aspectos dos resultados que consideramos importantes
destacar. Ao final, apresentamos nossas considerações finais em função das seções anteriores.
Preliminarmente, conseguimos identificar a presença das regras recontextualizadoras e
avaliativas no discurso pedagógico dos professores, descrevendo os processos de
recontextualização estabelecidos por eles. Consideramos que um próximo estudo, calcado nos
resultados da presente pesquisa, poderia analisar o discurso pedagógico dos professores como
um todo, avançando para uma análise que abrangesse todas as regras discursivas propostas
por Basil Bernstein.
5.1 QUALIDADE DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS NO DISCURSO PEDAGÓGICO DE
PROFESSORES DAS DIFERENTES DISCIPLINAS
Com base nas análises realizadas, procuraremos entender como os diversos textos e
discursos que circulam na escola pública são recontextualizados pelos professores das
diferentes disciplinas científicas, em cada uma das escolas, visando responder à questão: é
possível observar diferenças entre os processos de recontextualização estabelecidos no
discurso pedagógico dos professores de Física, Química e Biologia?
5.1.1 O discurso pedagógico dos professores da escola A
a) O discurso pedagógico da professora de Física
Devido ao tempo reduzido de que dispõe para abordar todos os conteúdos específicos de
sua disciplina, a professora de Física da escola A acaba por recontextualizar a proposta
curricular da SEEDUC, selecionando e, por isso, reduzindo o conteúdo a ser abordado em
função do que é cobrado nos exames oficiais de avaliação.
141
Por outro lado, ela recontextualiza o currículo oficial, ampliando-o para contemplar
conhecimentos científicos úteis aos estudantes no dia a dia e que possam ter significado na
realidade em que estão inseridos.
A professora também recontextualiza o currículo oficial, empobrecendo, segundo suas
próprias palavras, sua prática pedagógica, ao excluir atividades de laboratório e extra-classe,
por exemplo, dada a falta de infra-estrutura da sua escola.
Ao admitir que não se baseia nos PCNEM, ela realiza um processo de
recontextualização que silencia o discurso oficial em sua prática docente. É significativo
apontar que essa professora considera, inclusive, que o vestibular deveria acabar, “desejo” que
deixa implícito um ideal de igualdade, sem um mecanismo que exclui.
b) O discurso pedagógico da professora de Química
Não conseguimos perceber processos de recontextualização do currículo oficial do
Estado pela professora de Química da escola A. Com isso, ela parece querer garantir aos seus
alunos o ingresso no mercado de trabalho ou no vestibular. Ela recontextualiza o livro
didático ao utilizá-lo apenas para os exercícios de Química, adotando metodologias
tradicionais.
Em seu discurso sobre os objetivos mais amplos do ensino de Ciências, essa professora
recontextualiza a expressão “sujeito crítico” re-significando-o como aquele que é capaz de se
inserir no mundo produtivo, o que deixa evidente que sua noção de sujeito crítico não inclui a
crítica às regras sociais e econômicas existentes.
Ainda que mencione a falta de tempo de que dispõe para tratar os conteúdos químicos
bem como a falta de base de alguns alunos da escola A, ela se mostra fiel às diretrizes
preconizadas pela proposta da SEEDUC. Ao admitir que tomou por base a sequência de
conteúdos apresentada nos PCNEM para a elaboração do planejamento anual da escola A, a
professora, mais uma vez, não nos permitiu identificar, em seu discurso, processos de
recontextualização das propostas oficiais.
c) O discurso pedagógico da professora de Biologia
Em sua prática, a professora de Biologia da escola A recontextualiza o currículo oficial
do Estado, ampliando-o com outros conteúdos que considera relevantes para o vestibular. Ela
desvaloriza a proposta por entendê-la como uma síntese dos PCNEM, mas admite que,
mesmo assim, não consegue dar conta do que o documento preconiza.
142
Em função da redução da carga horária destinada à Biologia, essa professora volta a
recontextualizar o currículo oficial, selecionando apenas os conteúdos exigidos pelo vestibular
ou pelo ENEM. Também recontextualiza o currículo oficial para nivelá-lo a um ou outro
estudante que apresente alguma dificuldade.
Refletindo sobre a relação entre a sua disciplina e a formação de um sujeito crítico, a
professora recontextualiza a expressão “sujeito crítico” como aquele que tem atitudes éticas e
se preocupa com o meio ambiente.
Ao contrário do que pensa sobre a proposta oficial do Estado, ela defende os PCNEM de
Biologia como a melhor proposta curricular existente para os dias de hoje, deixando evidente
que desejaria implementá-la. Com isso, nos parece que essa professora considera que é
possível e desejável que a proposta não sofra qualquer processo de recontextualização.
5.1.2 O discurso pedagógico dos professores da escola B
a) O discurso pedagógico do professor de Física
Embora se queixe da pequena carga horária para abordar os conteúdos da sua disciplina,
o professor de Física da escola B seleciona conteúdos da proposta curricular estadual,
principalmente pela falta do embasamento dos alunos, necessário para o Ensino Médio. Ele
seleciona, então, conteúdos mínimos e mais fáceis, contextualizando-os para que seus alunos
tenham algum conhecimento físico relacionado ao cotidiano.
Alegando novamente a falta de condições de aprendizagem dos estudantes, esse
professor recontextualiza o livro didático, nivelando seu conteúdo à clientela da escola B.
Por considerar os PCNEM de Física distantes da realidade de sala de aula, ele
recontextualiza o documento, tendo-o utilizado apenas na elaboração do planejamento anual,
e mostra-se ambíguo ao tratá-lo tanto como obrigatório, a ser seguido nas escolas, quanto
como uma proposta que vem nortear a prática dos professores.
b) O discurso pedagógico do professor de Química
Ainda que o professor de Química da escola B perceba a redução da carga horária como
um fator que vai de encontro ao alcance da qualidade, promove a recontextualização do
currículo oficial em função das necessidades e limitações dos estudantes. Nesse caso, ele
tende a adequar a proposta curricular estadual ao contexto da escola B, através da
contextualização de alguns conceitos químicos básicos, que julga que seus alunos serão
capazes de aprender. Essa recontextualização, no entanto, não acontece devido ao fato desse
professor valorizar a formação para a vida como a mais importante finalidade do ensino de
143
Química, mas por não conseguir, na escola B, aprofundar os conhecimentos e preparar os
estudantes para o mercado de trabalho e para o vestibular como gostaria.
No que diz respeito à avaliação, notamos que ele segue o que é exigido pela SEEDUC.
Nesse caso, não conseguimos perceber nenhum tipo de recontextualização do discurso oficial.
c) O discurso pedagógico da professora de Biologia
A professora de Biologia da escola B recontextualiza o currículo oficial em função da
reduzida carga horária da sua disciplina e também devido à falta de base apresentada por seus
alunos. Essa recontextualização se dá através da seleção de conteúdos básicos e tem como
função compensar a falta de tempo e atingir o nível de sua clientela.
Ao admitir como finalidade do ensino de Biologia a formação dos estudantes para a
vida, a professora estabelece outro processo de recontextualização, selecionando e
contextualizando conteúdos biológicos voltados ao entendimento de aspectos da saúde e do
meio ambiente. O livro didático também é recontextualizado por ela, que novamente
seleciona apenas os conhecimentos úteis à vida dos estudantes. No entanto, ao longo de seu
discurso, notamos que essa professora parece assumir tal objetivo por considerá-lo como o
único possível de ser alcançado na escola B.
Percebemos que ela gostaria de preparar os alunos para o vestibular ou para o mercado
de trabalho, mas, ciente de que não conseguirá atingir tal objetivo, adota como estratégia a
contextualização a fim de fazê-los conhecer e compreender alguns conceitos biológicos úteis
à sua vida.
5.1.3 Em busca de diferenças entre os discursos pedagógicos de professores das
diferentes disciplinas científicas de cada escola
As professoras da escola A têm em comum a queixa a respeito da redução da carga
horária destinada às disciplinas científicas, o que as faz selecionar os conteúdos disciplinares
específicos em função do que é exigido pelos exames oficiais de avaliação,
recontextualizando assim a proposta curricular da SEEDUC.
Os professores da escola B também mencionam a falta de tempo como fator que
contribui para a falta de qualidade do ensino de Ciências e o bom relacionamento que mantêm
com os estudantes como forma de viabilizar sua prática. Entretanto, recontextualizam a
proposta oficial do Estado principalmente em função das precárias condições de
aprendizagem dos estudantes, adotando a contextualização dos conteúdos como a melhor
forma de atendê-las.
144
As diferenças entre os processos de recontextualização das propostas curriculares
oficiais e de outros discursos no discurso pedagógico dos professores entrevistados nos levou
à percepção de que a diferença entre as realidades educacionais das escolas A e B é mais
esclarecedora do que as possíveis diferenças que pudessem ser atribuídas a características
intrínsecas ao conteúdo ou à cultura daquelas diferentes disciplinas. Os processos de
recontextualização são, assim, conformados pela realidade educacional de cada escola,
fazendo com que os discursos pedagógicos dos professores das diferentes disciplinas
científicas se assemelhem.
Nossa análise não conseguiu identificar no discurso pedagógico dos professores,
processos de recontextualização do discurso acadêmico levantado na revisão da literatura.
Seus discursos parecem estar fundamentalmente conformados pela realidade sociocultural de
cada escola.
5.2 QUALIDADE DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS DE DUAS UNIDADES ESCOLARES:
RELAÇÕES POSSÍVEIS COM A QUALIDADE OFICIAL
Nesta seção, os discursos dos professores das escolas A (ENEM alto) e B (ENEM
baixo) serão analisados para que seja possível compreender como recontextualizam discursos
relacionando seu discurso pedagógico com os sentidos de qualidade do ensino de Ciências e
como estes discursos estão atrelados, ou não, à qualidade oficial da educação. Com essa
análise, buscamos compreender como se dá a recontextualização dos discursos dos
professores oriundos de contextos educacionais distintos, a partir da observação de pontos de
aproximação e afastamento entre tais discursos.
A proposta curricular da SEEDUC, mencionada pelos professores, também foi assumida
por nós como discurso oficial.
5.2.1 Os sentidos de qualidade para os professores da escola A
Para as professoras da escola A, a qualidade é medida com base nos resultados obtidos
nos exames oficiais de avaliação. Percebemos que elas exaltam a qualidade da sua escola ao
denunciarem a existência de duas realidades, a da escola A e a das demais escolas públicas
estaduais. Segundo elas, é justamente às deficiências das outras escolas bem como a aspectos
sociais, que se deve a falta de qualidade do ensino de Ciências dos dias de hoje.
O presente e o passado são categorizados pelas professoras de Física e Biologia, que
conferem superioridade à qualidade educacional oficial de antigamente. As professoras de
145
Física e Química categorizam o Ensino Médio das escolas públicas em noturno e diurno,
posicionando a primeira categoria num patamar inferior à segunda em função da falta de
condições de aprendizagem e do comportamento dos estudantes do noturno.
5.2.2 Os sentidos de qualidade para os professores da escola B
Percebemos que a principal categoria estabelecida por todos os professores da escola B
se configura a partir da desqualificação da sua escola, tanto em relação às demais escolas
públicas quanto em relação à rede particular de ensino, em função da falta de condições de
aprendizagem da clientela, seja devido a aspectos próprios do ambiente escolar, seja por
fatores alheios à escola. A contextualização do conhecimento é adotada pelos três professores
como a única possibilidade de fazer com que os estudantes compreendam, ao menos, alguns
conteúdos científicos básicos.
Ao atrelarem seu sentido de qualidade à qualidade oficial dada pelo vestibular,
justificam a falta de qualidade da sua escola pelo determinismo socioeconômico que atinge
irremediavelmente os estudantes. Notamos, porém, que estes professores se furtam de
reivindicar mudanças sociais ao mencionarem fatores que, segundo eles, seriam capazes de
orientar a direção para uma educação de qualidade.
Todos os professores consideram a qualidade da educação pública do passado como
superior à do presente. O professor de Química se destaca dos demais por atribuir a falta de
qualidade educacional atual à existência de documentos normatizadores da prática docente, à
indisciplina dos alunos e à implantação de artefatos tecnológicos nas escolas públicas, que
denuncia como qualidade de “fachada”.
O Ensino Médio nas escolas públicas é categorizado pelos três professores em noturno e
diurno, classificando a primeira categoria num patamar inferior à outra, dada a reduzida carga
horária destinada às disciplinas científicas e a falta de base dos alunos.
5.2.3 Em busca dos sentidos de qualidade nas diferentes escolas
Tanto para as professoras da escola A quanto para os da escola B, qualidade é priorizar
o conteúdo curricular visando a preparação para o vestibular. Sendo assim, o sentido de
qualidade dos professores corresponde ao da qualidade oficial. No entanto, enquanto as
professoras da escola A atendem às exigências do vestibular e se aproximam da qualidade
oficial graças à capacidade de aprendizagem dos estudantes, os professores da escola B
indicam a qualidade oficial apenas como meta que gostariam de alcançar embora, dadas as
deficiências e a realidade social dos estudantes da sua escola, isso não seja viável.
146
Percebemos que a aceitação do discurso oficial é a bandeira que diferencia a qualidade
da escola A das outras escolas públicas estaduais, enquanto o discurso da contextualização
dos conhecimentos científicos e o discurso da formação para a vida são adotados, na escola B,
como justificativas para a redução do conteúdo oficial em virtude da falta de condições de
aprendizagem.
Dos seis professores entrevistados, cinco, que já atuaram ou atuam no Ensino Médio
noturno, conferem a essa modalidade qualidade inferior em relação às escolas diurnas. Essa
classificação dá indícios de que o ensino público noturno é deficiente e não apresenta
condições para atingir as metas da qualidade educacional oficial.
Através do discurso das professoras da escola A, pudemos depreender que o
enquadramento exercido por elas tende a ser forte visto que seguem o modelo de avaliação
ditado pela qualidade oficial. A professora de Física, ainda que tente equilibrar seu controle e
o controle dos estudantes sobre a comunicação em sala de aula, também acaba por cumprir
com as exigências ditadas pelo vestibular.
Na escola B, ainda que os professores de Física e Química se esforcem para exercer o
controle sobre a comunicação pedagógica em sala de aula, caracterizando um forte
enquadramento, na medida em que recontextualizam o currículo oficial e implementam
práticas de avaliação em função da falta de base dos estudantes, podemos inferir que o
enquadramento é, de fato, fraco. A professora de Biologia dá indícios de que exerce um fraco
enquadramento quer por considerar os interesses dos estudantes quer por não aplicar uma
avaliação rígida.
Os professores de ambas as escolas se referem à queda do nível e do interesse dos
estudantes que ingressam no primeiro ano do nível médio, oriundos do Ensino Fundamental.
Está embutida, nas falas desses professores, a denúncia à defasagem da qualidade oficial
oferecida no ensino público municipal do Rio de Janeiro. Segundo os professores, essa
defasagem pode ser reflexo da política de aprovação automática, o que sugere que os sentidos
de qualidade dos professores do Ensino Médio rechaçam essa política e incluem a melhoria da
qualidade das escolas do Município.
5.3 DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
De modo geral, as tensões e perspectivas levantadas no discurso dos docentes das
Ciências Naturais por Rezende et al. (2011) foram contempladas também no discurso dos
sujeitos do presente estudo. Consideramos que foi possível avançar em relação aos resultados
147
anteriores na medida em que conseguimos aprofundá-los, com base no quadro teórico
adotado.
As análises que realizamos nos permitiram compreender os processos de
recontextualização de discursos realizados por professores de Ciências Naturais do Ensino
Médio de duas escolas públicas do Rio de Janeiro, inseridas em diferentes realidades
socioculturais, através dos quais constroem seus discursos pedagógicos. Além disso, nos
permitiram compreender sentidos de qualidade presentes no ambiente escolar, construídos
pelos professores, bem como conhecer os caminhos que esses professores vêm trilhando para
atingir o que concebem como a qualidade possível.
Embora os professores não mencionem explicitamente os PCNEM e assumam como
discurso oficial a proposta curricular da SEEDUC, notamos que o conceito de
contextualização, um dos que alicerçam o documento referente ao ensino de Ciências
Naturais, está presente no discurso de todos, ainda que seja recontextualizado de diferentes
formas nas duas escolas.
Na escola A, os conhecimentos contextualizados podem representar um degrau para que
o entendimento dos conteúdos centrais de cada disciplina seja facilitado. Para as professoras
de Química e Biologia, a contextualização é entendida exclusivamente como saber fazer,
atrelado à formação para o trabalho.
Na escola B, o discurso da contextualização é recontextualizado como solução para a
falta de condições de aprendizagem da clientela, as quais não permitem o investimento na
preparação para o vestibular ou para o mercado de trabalho. Os professores se preocupam em
integrar os conteúdos científicos a questões da realidade concreta sem reconhecer este
processo como garantia da qualidade do ensino de Ciências. Ao contrário, a contextualização
passa a desempenhar o papel de prêmio de consolação.
Assim, a contextualização dos conteúdos científicos, estratégia de ensino recomendada
pelos PCNEM, pode tanto ter a função de enriquecer a prática dos professores quanto, em
outra realidade, viabilizar, mas empobrecer a prática pedagógica.
A formação dos estudantes para o mercado de trabalho, concepção oficial que valoriza o
caráter instrumental e utilitarista da educação, evidenciada principalmente após a lei 5692/71,
parece ter sido absorvida pelos professores de ambas as escolas, que passam a dar à educação
um sentido pragmático e economicista. O sentido de qualidade dos professores corresponde,
assim, ao da qualidade oficial.
Dessa forma, a educação e a educação científica mais ainda, são assumidas como
preparação da força de trabalho e não como práticas formativas para todas as dimensões da
148
vida. Nessa perspectiva, a qualidade do ensino passa a ser medida pelo quanto esse ensino
está atendendo às exigências econômicas. Entretanto, notamos diferenças no processo de
recontextualização desse discurso, conformadas pela realidade sociocultural de cada escola.
Notamos que a posição superior alcançada pela escola A no ENEM reflete uma prática de
avaliação mais rigorosa e em consonância com o que é cobrado pelos exames oficiais de
avaliação. Na escola B, apesar dos professores aceitarem como meta o padrão de avaliação
oficial, não conseguem pautar sua prática por este padrão.
Os discursos dos professores apontam para a ideia de que suas práticas nas escolas A e
B representam um reflexo de suas realidades específicas, o que nos leva a entender que são o
registro das vozes de suas escolas, bem como dependem do modo que a proposta curricular
oficial é recontextualizada. Concluímos que há mais diferença no processo de
recontextualização das propostas curriculares entre os discursos pedagógicos dos professores
dos diferentes ambientes escolares do que das diferentes disciplinas, provavelmente em
função da interação social que os professores têm entre si em cada escola e do contorno social
que abraça irremediavelmente o fenômeno educativo.
Os sentidos de qualidade no discurso pedagógico dos professores da escola A estão
atrelados à seleta clientela que recebe, “os melhores alunos do município”, e do convênio que
mantém com uma instituição pública federal de ensino profissionalizante. Percebemos como
recorrente o sentido de qualidade da educação pública e, em particular do ensino de Ciências,
atrelado ao sucesso dos alunos nos exames vestibulares, tal como se observa, em geral, nas
escolas particulares. Essa meta é viável e poderia ser explicada pela realidade particular da
escola A.
Na escola B, de ensino noturno, nos aproximamos de um público pouco investigado pela
área da pesquisa em ensino de Ciências e nos defrontamos com um ambiente escolar
permeado por problemas de naturezas diversas que retratam um contexto onde o que mais
falta é a qualidade. O sentido da falta de qualidade é enunciado pelos professores e atribuído,
principalmente, à clientela dos cursos noturnos, que é classificada por eles em três categorias:
a dos mais jovens, que têm maior facilidade na aprendizagem e têm como objetivo ingressar
ou evoluir no mercado de trabalho, a dos mais velhos, que embora apresentem dificuldade em
compreender os conceitos específicos, desejam se tornar pessoas melhores, e, por último, a
dos alunos desinteressados, geralmente jovens, que encaram a escola somente como uma
etapa pela qual todos passam.
O sentido de falta de qualidade do ensino de Ciências para os professores de ambas as
escolas está ligado a vários fatores. A reduzida carga horária destinada às disciplinas
149
científicas foi mencionada por todos, embora assegurem que apenas a resolução deste
problema não seria suficiente para superar os limites da educação em Ciências atual.
A falta de infra-estrutura das escolas também foi indicada por todos os professores como
um dos aspectos que impede o alcance da qualidade. Notamos que o ensino experimental de
Ciências é valorizado, mas não é praticado pela falta de condições (laboratório, pessoal e
tempo). No entanto, percebemos que, em comparação com os demais, não foi este o aspecto
que mais se destacou.
Ao mencionarem alguns problemas do Ensino Fundamental, os professores denunciam o
quanto um legado ruim naquele nível de ensino tem um papel importante na limitação das
possibilidades de ingresso, permanência e conclusão do nível médio. Ainda que não
queiramos creditar os problemas do Ensino Médio somente ao Ensino Fundamental,
empreender esforços para melhorar a aprendizagem neste nível de ensino talvez seja um passo
fundamental para elevar a qualidade da etapa seguinte.
Em função dos resultados obtidos, concluímos que muito mais atenção dos governantes
é necessária para atingir qualidade no Ensino Médio e neste sentido, aprendemos mais com a
realidade mais difícil, que é a da escola B. Para escolas como a escola B e particularmente
para o ensino noturno são necessárias algumas medidas imediatas, que devem visar a
alterações no ambiente escolar, mas que não podem ficar restritas a ele. Um sério dano às
atuais gerações de jovens precisa ser reparado. Trata-se de uma dívida não apenas dos
sistemas públicos de ensino, mas também de toda a sociedade.
De um modo geral, o público do noturno chega à escola após a jornada de trabalho.
Esses estudantes que, em sua maioria, apresentam dificuldades no processo de aprendizagem
precisam dedicar mais tempo aos estudos, inclusive em horários além da aula, na escola ou
fora dela. Como alternativa a essa problemática, julgamos ser imprescindível que os
estudantes recebam um apoio financeiro de modo que tenham uma carga horária de trabalho
reduzida sem comprometer sua condição econômica, já tão desfavorecida. Não podemos mais
continuar confundindo o atendimento das necessidades desses alunos com o nivelamento do
currículo por baixo, como constatamos com o discurso dos professores da escola B.
Entretanto, os resultados nos dão fundamentos para pensarmos que atender ao público
do Ensino Médio noturno não significaria somente visar à falta de condições de aprendizagem
dos estudantes, mas talvez, principalmente, atender à diversidade de interesses dessa clientela.
Assumir o discurso oficial como a única forma de atingir a qualidade inviabiliza o Ensino
Médio noturno justamente em virtude dessa diversidade. Estudos para compreender a
heterogeneidade desse público também podem ser considerados como um caminho para
150
atender às suas carências. Tal compreensão seria uma contribuição relevante para
fundamentar propostas curriculares diversificadas em busca do alcance de diferentes
qualidades.
Nossas questões de estudo, com base no quadro teórico e metodológico que adotamos,
nos permitiram observar a qualidade do ensino de Ciências por diversos ângulos, trazendo
contribuições para a compreensão da prática docente e da realidade das escolas públicas.
Ficou patente neste estudo, que diferentes realidades educacionais refletem diferentes
realidades sociais. Embora haja muitos obstáculos a superar, que possam estar ligados a
mudanças curriculares, à melhoria da infra-estrutura das escolas, a metodologias inovadoras e
outras questões pedagógicas no sentido de transformar o ensino de Ciências da escola pública,
este estudo permitiu concluir que, por sua natureza eminentemente social, sua qualidade não
pode prescindir da transformação da sociedade.
151
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ANEXO A - ROTEIRO DE ENTREVISTAS Público Alvo: Professores de Ciências Naturais e Matemática do Ensino Médio de duas escolas públicas estaduais da cidade do Rio de Janeiro. Início da entrevista: Breve apresentação, localizando o NUTES, o Mestrado em Educação em Ciências e Saúde, o objetivo desta pesquisa e o interesse pelos aspectos relacionados ao ensino de Ciências e Matemática. Coleta dos dados do professor entrevistado: Nome completo, idade, formação inicial (ano/ disciplina/ instituição), formação continuada (aperfeiçoamento/ especialização/ mestrado/ doutorado/ participação em projetos), escola(s) onde atua (especificar se é pública ou privada), discisplina(s) que ministra, tempo de magistério. 1. Fale um pouco sobre os objetivos que pretende alcançar em suas aulas.
� Tensão entre seguir o currículo visando a preparação para o trabalho e moldar o currículo para atingir outros objetivos (relacionados a todas as demais dimensões da vida dos estudantes).
2. Nas suas aulas, você acha que tem contribuído para a formação de que sujeito? O que
você tem feito em suas aulas para alcançar esse objetivo? � Tensão entre a preparação do sujeito para adequar-se à sociedade e do que pretende
transformar a sociedade na qual está inserido. � Tensão entre a preparação para o mercado de trabalho e alguma prática voltada para
outros aspectos que a EC pode abarcar. � Tensão entre uma educação e uma EC voltada para todos e aquela que prioriza uns em
detrimento de outros.
3. Você pode comparar os objetivos das demais disciplinas científicas com os da sua? 4. Fale um pouco sobre os conteúdos que trabalha em sua disciplina. Como eles são
organizados? � Tensão entre a ênfase nos conteúdos e a preocupação com a aprendizagem/ percepção
da realidade social do aluno.
5. Fale um pouco sobre as metodologias que utiliza em suas aulas. 6. Como é o ensino de Física/ Química/ Biologia/ Matemática em sua escola? (o professor
deve explicar como vê a diferença entre o ensino “dele” e o “da escola”) 7. Como a escola trabalha com os PCNEM? Você, em particular, conhece os PCNEM de
Física/Química/Biologia/Matemática? O que você acha do documento? Utiliza os PCNEM? O que você extrai deles? Em que medida você acha que as finalidades educacionais da sua disciplina são contempladas pelos PCNEM? Em suas aulas, que conteúdos prioriza e quais práticas utiliza por causa dos PCNEM? � PCNEM entendidos como lei ou como adaptável aos objetivos da escola/ professor.
8. Qual sua avaliação sobre o ensino de Ciências na escola pública de hoje?
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9. Há quem pense a as Ciências “como uma coisa à parte, para maluco ou coisa de gênio”. O que você pensa sobre isso? Para você, como seus alunos vêem a Ciência?
10. Como é o seu relacionamento com seus alunos? Eles gostam das suas aulas? Como eles
percebem o ensino de Física/ Química/ Biologia/ Matemática? Como é, em geral, o desempenho deles na sua disciplina?
11. Diante do sucateamento do sistema educacional, qual você considera ser sua maior
responsabilidade* como professor de Física/ Química/ Biologia/ Matemática, sob o ponto de vista de um ensino de Ciências EC adequado aos dias de hoje? � Com a escola, com o aluno, com o currículo, com o seu trabalho, etc.
12. E sobre a responsabilidade dos alunos? Qual o papel do esforço deles no processo ensino-aprendizagem e na educação científica adequada aos dias de hoje?
13. O que a escola deve oferecer para que seja possível ao professor promover um ensino de
Ciências adequado aos dias de hoje? 14. Acha que algo tem que mudar no ensino da Física/ Química/ Biologia/ Matemática dos
dias de hoje? O que deve mudar? Por que?
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ANEXO B - TERMO DE CONSENTIMENTO ESCLARECIDO
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Eu, __________________________________________________, após receber explicações por escrito da orientanda de mestrado, Roberta Comissanha de Carvalho, do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acerca do projeto de pesquisa “QUALIDADE DA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS NA PERSPECTIVA DE PROFESSORES DO ENSINO MÉDIO”, sob a coordenação da professora Flávia Rezende Valle dos Santos, estou ciente que:
Objetivo da pesquisa
Esta pesquisa tem como finalidades: (a) buscar sinais de recontextualização nos discursos construídos pelos professores, focalizando, especialmente, os sentidos de qualidade que compõem tais discursos; (b) captar diferenças entre os discursos dos professores de diferentes comunidades disciplinares; (c) captar diferenças nos processos de recontextualização estabelecidos por professores de escolas distintas, confrontando-as com as diferenças nos índices de avaliação oficial dessas escolas.
Procedimentos
Os dados coletados consistirão na situação de entrevista entre a mestranda pesquisadora e o docente, armazenadas em áudio. As observações manuscritas, gravações em áudio e cópias de outros materiais que darão suporte à posterior análise ficarão sob a guarda e responsabilidade dos pesquisadores com a garantia de total sigilo.
Riscos e desconforto
Esta pesquisa não traz nenhum risco nem desconforto aos seus participantes, na medida em que não há possibilidade de danos a qualquer dimensão do ser humano (item II.8 e II.9, da resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde), pois os procedimentos acima descritos asseguram a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem e a não estigmatização dos sujeitos de pesquisa, dando garantia a estes sujeitos de que sua identidade será mantida em total sigilo durante todo o processo, tendo somente sua condição de professor das disciplinas de Ciências Naturais do Ensino Médio mencionada nos textos que divulgarão os resultados da pesquisa.
Garantia de recusa
Caso eu não queira participar de qualquer parte da pesquisa comunicarei aos pesquisadores do meu desejo de não participar e este será respeitado.
Garantia de acesso aos resultados
Os resultados da pesquisa serão explicados a mim, quando por mim solicitado.
Garantia de acesso ao pesquisador
Sempre que considerar necessário tirar dúvidas, recorrerei a pesquisadora Flavia Rezende por meio do endereço eletrônico [email protected] ou pelo telefone: (21) 2562 6614. Sendo assim, consinto participar da pesquisa como está explicado neste documento.
_________________________ , ___ / ___ / ______
___________________________________ Participante
____________________________________
Coordenadora do Projeto