universidade federal do recÔncavo da bahia …...mobilizado por mênon, sócrates apela a dois...

59
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA CENTRO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES LICENCIATURA EM FILOSOFIA AYRONNE SANTOS SOUZA UMA ANÁLISE DA “VIRTUDE EM SI” NO MENON DE PLATÃO AMARGOSA 2018

Upload: others

Post on 16-Oct-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

CENTRO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

LICENCIATURA EM FILOSOFIA

AYRONNE SANTOS SOUZA

UMA ANÁLISE DA “VIRTUDE EM SI” NO MENON DE PLATÃO

AMARGOSA

2018

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

CENTRO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

LICENCIATURA EM FILOSOFIA

AYRONNE SANTOS SOUZA

UMA ANÁLISE DA “VIRTUDE EM SI” NO MENON DE PLATÃO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso

Licenciatura em Filosofia do Centro de Formação de

Professores da Universidade Federal do Recôncavo da

Bahia como requisito parcial à obtenção do título de

licenciado em Filosofia

Orientador(a): Cícero Josinaldo da Silva Oliveira.

AMARGOSA-BA

2018

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

AYRONNE SANTOS SOUZA

UMA ANÁLISE DA “VIRTUDE EM SI” NO MENON DE PLATÃO.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso

Licenciatura em Filosofia do Centro de Formação de

Professores da Universidade Federal do Recôncavo da

Bahia como requisito parcial à obtenção do título de

licenciado em Filosofia.

Aprovado em____/____/________.

BANCA EXAMINADORA

Cícero Josinaldo da Silva Oliveira (orientador)

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB

Geovana da Paz Monteiro (examinadora)

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB

José João Neves Barbosa Vicente (examinador)

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB

Amargosa/BA

2018

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

Àqueles que, incondicionalmente, apoiaram-me.

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

“Deixa, pelo contrário, a virtude intacta e inteira, e dize-me apenas o que ela

é.”

(PLATÃO, Mênon, 77 a).

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

AGRADECIMENTOS

Ao professor Cícero Josinaldo da Silva Oliveira, por ter me dado

credibilidade e pela sua sinceridade ao me incentivar à construção deste trabalho.

À professora Giovana Carmo Temple que, pela sua sensibilidade, pôde

perceber o meu potencial acadêmico, alertando-me a não desprezá-lo.

Aos demais professores do curso, mormente à professora Geovana da Paz

Monteiro, pela confiança e pelo incentivo, atribuídos durante este semestre.

À minha esposa, Juliana Cerqueira de Andrade, pelo incentivo, carinho e

pela companhia durante os longos estudos.

Ao meu filho, Abraão Martins Souza, pelo respeito, carinho e por

compreender os meus momentos de dedicação acadêmica.

À Maria das Brotas Santos Souza, minha mãe, pela assistência e pela

confiança. Agradeço também às minhas irmãs, Mirela Conceição e Maria da

Paixão, por também terem me assistido nos momentos de precisão.

Ao Leandro Angelo da Silva, por ter me “socorrido” em meu trabalho nos

momentos que eu mais necessitei.

Aos amigos, Robevaldo Correia dos Santos (DuBem), Lucas Silva do

Nascimento, Angela Silva de Souza, Antonia Iracema Cerqueira, Josivane Maria

de Jesus, pelo incessante apoio a mim atribuído.

Por fim, agradeço à Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB),

por ter me concedido as condições necessárias à produção deste trabalho, bem

como à qualificação de minha formação acadêmica.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar o problema da virtude na obra Mênon

de Platão. Nesse contexto, podemos afirmar que esse problema tem sua gênese na

pergunta “O que é a virtude?” que, por seu turno, remete-nos à ideia de

conhecimento. Este, de acordo com o pensamento platônico, nada mais é que

reminiscência, cuja mesma, em linhas gerais, diz respeito a um processo de

apreensão das coisas por meio da rememoração. Esse exercício, fundamentado na

imortalidade da alma, é realizado, por exemplo, em uma investigação entre dois

ou mais interlocutores, mediante perguntas e respostas, voltada a determinada

coisa. Aquele que responde equivocadamente às perguntas, vai sendo refutado até

que, não havendo mais recursos, ele caia em aporia. A partir daí, esse interlocutor

adquire plena consciência de que nada sabe sobre a coisa questionada. Temos aqui

um método de fundamental importância, uma vez que a aporia possibilita a

continuidade dessa investigação e, por fim, a apreensão da opinião certa sobre

essa coisa. Nesse sentido, a mesma passa a ser suscetível de ensinabilidade.

Quanto à virtude no Mênon, resta saber se sua opinião certa lhe permite ser

também passível de ensinamento. Do contrário, isto é, caso a virtude não possa

ser apreendida ao conhecimento, a mesma não será algo ensinável, sendo portanto

atribuída aos homens em razão de uma concessão divina.

Palavras-chave: Aporia. Conhecimento. Opinião certa. Reminiscência. Virtude.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 10

2 CAPÍTULO I – A IMPORTÂNCIA DA APORIA À LUZ DOS

FRACASSADOS CONCEITOS DE VIRTUDE ELUCIDADOS POR

MÊMON ............................................................................................................. 13

2.1 Considerações iniciais ............................................................................... 13

2.2 Apresentando o problema: a natureza e a qualidade da virtude ............... 13

2.3 Primeira resposta de Mênon - A virtude em sua multiplicidade enquanto

capacidade de bem administrar as coisas ........................................................ 16

2.4 Segunda resposta de Mênon - A definição da virtude enquanto a capacidade

de comandar homens ....................................................................................... 18

2.5 Terceira resposta de Mênon - A definição do todo mediante sua parte: a

virtude esclarecida por meio da justiça enquanto querer coisas boas e poder

alcançá-las ....................................................................................................... 21

2.6 A total aporia de Mênon como implicação à continuidade da pesquisa ... 24

3 CAPÍTULO II – A VIRTUDE E A GARANTIA DO CONHECIMENTO:

IMORTALIDADE DA ALMA, CONTEMPLAÇÃO E REMINISCÊNCIA

............................................................................................................................. 27

3.1 Considerações iniciais ............................................................................... 27

3.2 O recurso às doutrinas mítica e dialética como prova de que é possível

procurar o que não se conhece ........................................................................ 27

3.2.1 O recurso à doutrina mítica ................................................................ 28

3.2.2 O recurso à doutrina dialética ............................................................ 31

3.3 A aporia como etapa no processo de rememoração .................................. 33

4 CAPÍTULO III – A VIRTUDE: CIÊNCIA OU OPINIÃO CERTA? ...... 37

4.1 Discussões transcorridas ........................................................................... 37

4.2 A investigação acerca da ensinabilidade da virtude por hipóteses ........... 38

4.3 A busca por professores de virtude entre os homens “bons e honestos” e os

sofistas: a virtude enquanto o administrar bem as suas casas e os Estados .... 42

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

4.4 É a virtude ciência ou uma opinião certa? ................................................ 46

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 53

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................... 57

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

10

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho é composto por uma análise das discussões a respeito da virtude em si no

Mênon de Platão. Além de averiguarmos os argumentos mobilizados para definição de virtude,

detivemos no exame do problema de se esse bem é passível ou não de ensinamento.

O Mênon nos proporciona um novo conceito de saber que, mediante recurso aos

exemplos matemáticos, tem como especificidade não ser suscetível de ensinamento exterior,

mas, ao contrário, demonstrar-nos que o conhecimento está – aquém e além – intrínseco na

alma humana.

De maneira resumida, apresentaremos agora o transcurso deste trabalho, cuja divisão se

dá em três capítulos, isto é: Capítulo I – A Importância da Aporia à Luz dos Fracassados

Conceitos de Virtude Elucidados por Mênon; Capítulo II – A Virtude e a Garantia do

Conhecimento: Imortalidade da Alma, Contemplação e Reminiscência; Capítulo III – A

Virtude: Ciência ou Opinião Certa?

O ponto de partida do primeiro capítulo encontra-se na apresentação da aporia no

pensamento de Platão. Trata-se de uma análise sobre a importância da mesma frente às

insolúveis situações elucidadas nos diálogos platônicos. Para tanto, será traçado o percurso

realizado por Mênon ao tentar responder à pergunta socrática. Aquele, antes de ser feita essa

pergunta, indaga a Sócrates se a virtude é passível ou não de ensinamento. Entretanto, Sócrates

o confronta, alegando que, antes de saber sobre a qualidade da virtude, será necessário,

primeiro, saber o que é a virtude. Desse modo, ele dirige a seguinte pergunta a Mênon: “O que

é a virtude?”

Para essa inquirição, Mênon se dispõe de três respostas, todas refutadas por Sócrates.

Após as duas primeiras respostas – fracassadas -, percebemos a insistência de Mênon em

admitir que sabe qual a natureza da virtude. No entanto, ao se deparar com a refutação socrática

após a sua terceira resposta sobre a virtude, Mênon, enfim, reconhece que, apesar de seus

inúmeros discursos feitos em relação à virtude, nada sabe sobre a mesma. Em outros termos,

ele se encontra em total aporia, e isso é de fundamental importância à continuidade da pesquisa,

visto que Mênon tem consciência de que nada sabe no que tange à natureza da virtude.

Esse cenário é o pano de fundo para o desenvolvimento de nosso segundo capítulo. É

que Mênon, embora reconheça desconhecer a natureza da virtude, ainda se encontra em dúvida

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

11

de como será possível procurá-la, posto que a mesma, por ser desconhecida, não seria

encontrada. E, se acaso a virtude fosse encontrada, Mênon indaga de que forma eles saberiam

que estavam diante dela, visto que é algo desconhecido. No combate ao argumento erístico

mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética.

Envolto ao primeiro recurso, o Mênon nos apresenta a doutrina em que fica

“comprovada” a imortalidade da alma. Em razão dessa imortalidade, a alma humana se encontra

enquanto conhecedora de todas as coisas, havendo, nessa vida atual, apenas uma rememoração

das mesmas, certamente contempladas em outra vida.

Com o objetivo em comprovar esse exercício de rememoração, Sócrates, somente por

meio de perguntas, demonstra-o, tendo como pano de fundo um subdiálogo que ocorrera entre

ele e o escravo de Mênon. Estamos agora, como podemos observar, diante do segundo recurso,

isto é, a doutrina dialética. Nesta, é-nos apresentado um problema matemático, cuja solução

será encontrada por um escravo inculto, sem que o mesmo tenha ensinamento algum. Diante da

solução, afinal, Sócrates convence Mênon de que é possível procurar e encontrar aquilo que

não se conhece, sendo esses recursos bem melhores que aquela doutrina erística, cujo

argumento afirma que não é possível procurar nem encontrar aquilo que é desconhecido.

Entretanto, apesar de estar convencido disso, Mênon retorna ao início do diálogo,

porquanto ele afirma que seu interesse é saber se a virtude, independente de ainda não terem

encontrado sua natureza, é passível ou não de ensinamento. Sendo assim, a procura pela

natureza da virtude fica, por um instante, em suspenso, uma vez que Sócrates cede à proposta

levantada por Mênon.

Nessa perspectiva, essa análise nos servirá de apoio ao desenvolvimento do terceiro

capítulo. Assim, a fim de saber se a virtude é suscetível de ensinamento, Sócrates propõe a

Mênon que isso seja feito semelhante aos geômetras, isto é, por meio de hipótese. Desse modo,

para saber sobre a possível ensinabilidade da virtude, são levantadas duas hipóteses, a saber: a

virtude será passível de ensinamento, se a mesma for ciência; se a virtude não for ciência, ela

não poderá ser ensinada. É que, de acordo com Platão, para que a virtude seja ensinada, ela

deverá ser considerada ciência, condição indispensável para adquirirmos conhecimento. Para

essa investigação, procura-se, com o intuito de provar que a virtude pode ser ensinada, a

existência de professores de virtude.

Afinal, lançadas as hipóteses e percorridas todas as possibilidades, se acaso a virtude

não for passível de ensinabilidade, o Mênon nos oferecerá outra possibilidade à natureza da

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

12

virtude. Não sendo a virtude conhecimento, resta saber se a sua natureza se restringe a uma

opinião verdadeira, cuja concessão ao homem é de responsabilidade divina.

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

13

2 CAPÍTULO I – A IMPORTÂNCIA DA APORIA À LUZ DOS

FRACASSADOS CONCEITOS DE VIRTUDE ELUCIDADOS POR

MÊMON

2.1 Considerações iniciais

O objetivo deste primeiro capítulo é apresentar, no Mênon, a importância da aporia para

o desenvolvimento do diálogo platônico. Para tanto, ser-se-á necessário traçar o percurso

desenvolvido por Mênon1 ao tentar esclarecer a natureza da virtude. É que, dentre algumas

indagações dirigidas a Sócrates, Mênon tem como inquirição principal saber se a virtude é

suscetível ou não de ensinamento. Todavia, Sócrates afirma que não sabe o que é a virtude e,

desse modo, jamais poderá saber se a virtude pode ou não ser ensinada. Antes de saber sobre

a qualidade de determinada coisa, é preciso, porém, que se tenha conhecimento sobre a natureza

(essência) dessa coisa. Não obstante isso, diante da pergunta “O que é a virtude?”, feita por

Sócrates, são desenvolvidas por Mênon - por três vezes e de maneiras diferentes - respostas

sobre esse problema. Tendo sido refutado por Sócrates e fracassado em todas as suas respostas

no que tange à natureza da virtude, Mênon, sem saída, por fim, cai em total aporia. Mediante

esse embaraço, ele admite racionalmente estar em dúvida em relação às suas próprias

ponderações. Devido à aporia, Mênon adquire ao cabo a plena consciência de que não sabe

nada sobre a virtude. Afinal, é somente por meio dessa aporia, na qual Mênon se encontra

envolvido, que será possível dar continuidade à pesquisa sobre a virtude.

2.2 Apresentando o problema: a natureza e a qualidade da virtude

Antes de irmos ao cerne da questão, é importante enfatizarmos, ainda que de grosso

modo, o problema que possivelmente levara Platão a investigar, esforçadamente, o em si e por

si das coisas. Como observamos, esse esforço em procurar conhecer “o ser das coisas” se dá

sobretudo através do logos, cuja dialética – que tem seu fundamento no diálogo - é o principal

método utilizado por Platão para esse exame.2

1 Personagem relativamente ao qual a obra aqui apreciada é homônima, como é comum no pensamento de Platão.

Em seu contexto histórico, Mênon – apesar de não sabermos o ano de seu nascimento -, nasceu na cidade de

Farsalo, na Tessália. Sua família, pertencente à nobreza da época, mantinha relações importantes com Atenas e

com a Persa. (PLATÃO, 2001, p. 14-15). 2 ROGUE, Compreender Platão, p. 41.

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

14

É sabido que Platão, em sua investigação, ao dizer que procura encontrar a virtude em

si, está se referindo à sua Ideia – embora o Mênon não deixe isso esclarecido. Desse modo, a

virtude - cuja natureza parece estar no campo ontológico - procurada por Platão nos remete a

pensar, no que tange ao problema do universal platônico, em hipóstase. Essa “entificação do

abstrato” no campo ontológico é justamente o que faz com que a ideia de virtude adquira uma

característica imutável, estável. Platão lança mão dessa característica imutável, visto que, se a

definição de virtude fosse passível de mudança, comprometeria a “verdadeira causa”, o que se

tornaria contraditório. Portanto, a realidade da virtude em Platão, longe de ser relativa ao

indivíduo, tem de estar nesse âmbito em que não há possibilidade de a mesma ser varrida ao

devir. Afinal, o caráter imperioso de virtude, bem como a objetividade da mesma têm de ser

demonstrado pelo em si e por si e pela imutabilidade dessa ideia de virtude.3

De início, entendemos que, para os gregos antigos, quer se trate de um objeto ou de um

ser animado, ambos possuem uma ou até várias funções. Estas, exercidas de forma perfeita, são

qualidades em que a definição é conhecida pela palavra “virtude”, cujo uso “parece ser

adequado para traduzir o termo da língua grega areté.” (PAVIANI, 2013, p. 36). Em outras

palavras, “A virtude é a excelência na função própria.” (BRISSON & PRADEAU, 2010, p. 72).

Tal definição é oriunda do conhecimento no que concerne à natureza de determinada coisa.

Será mediante o saber que se conhecerá a função ou funções dessa coisa. Em meados ao período

em que Sócrates viveu, porém, percebemos que a definição de virtude conota um sentido

igualmente voltado às questões sóciopolíticas, expressando, com isso, “qualidade ou excelência

de algo ou de alguém como, por exemplo, a capacidade de liderar pessoas” (PAVIANI, 2013,

p. 45).

Portanto, Sócrates reconhece na virtude um conceito eminentemente ético. Doravante,

não totalmente desmembrado do pensamento socrático, parece que Platão também desenvolve

no Mênon um diálogo voltado à virtude em seu aspecto antropológico. Afinal, ele pretende

saber mormente se a virtude humana é ou não suscetível ao ensinamento. Nessa obra,

observamos que o pensamento platônico, no que tange ao seu aspecto evolutivo-cronológico,

concebe um momento de transição cujo ponto de partida é do Platão ainda agarrado ao

pensamento socrático ao Platão que começa a expressar suas ideias de maneira mais original4.

3 REALE, Para uma nova interpretação de Platão, p. 130; 133; 136. 4 REALE, História da Filosofia Grega e Romana: Platão, p. 35-36.

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

15

Seguindo essa perspectiva, dentre os vários problemas que permeiam as inquietações

platônicas, percebemos que o filósofo de Atenas demonstra-se deveras preocupado com a

natureza da virtude e, com isso, ele nos apresenta um problema que implica, quiçá, dificuldade

de compreensão. Não é à toa que seu “procedimento dialético tem a vantagem de desenvolver

o ato de filosofar e não simplesmente de apresentar uma doutrina já pronta” (PAVIANI, 2013,

p. 40)

Mênon, ao iniciar a conversa, antes de qualquer exórdio, de maneira súbita e inesperada

– pelo menos ao leitor -, perpetra algumas indagações, a saber: se a virtude pode ou não ser

ensinada; se ela pode ser adquirida pelo exercício ou; se a virtude é incidida aos homens por

natureza ou por qualquer outro meio.5 Seu interesse maior é, todavia, voltado à primeira

pergunta – isto é, se a virtude é passível de ensinamento ou não.

No entanto, para Sócrates, nenhum de seus concidadãos sabe responder essa questão,

uma vez que as pessoas de Atenas sequer sabem o que é a virtude. Posicionando-se, pois,

enquanto partícipe da ignorância pertencente aos seus compatriotas, Sócrates censura-se a si

mesmo por também não saber nada sobre a virtude.6 Assim, aquele que não sabe o que

determinada coisa é, jamais poderá saber que tipo de coisa ela é. Não será possível a alguém,

por exemplo, não conhecendo absolutamente quem é Mênon, saber se Mênon é belo, rico, nobre

ou muito menos saber o contrário dessas coisas.7

Nesse contexto, “[...] Platão indaga pela possibilidade ou impossibilidade de conhecer

algo antes mesmo de saber o que algo é. Trata-se, é obvio, de uma questão de profunda

flexibilidade.” (PAVIANI, 2013, p. 114). É que, por meio dessa elegância, será necessário que

se tenha conhecimento sobre a natureza de determinada coisa, para serem expressadas

quaisquer qualidades sobre a mesma8. Percebemos, com isso, que Platão, por meio de seu

personagem Sócrates, desvia o problema inquirido por Mênon para a questão da essência. Esta

questão, como observa Paul Ricoeur (2014, p. 07), “nasce de uma pergunta formulada nos

seguintes termos: “O que é X?”, por exemplo, o que é a coragem? o que é a virtude?” Desse

5 Menon, 70 a. 6 Parece que estamos aqui diante da famosa ironia socrática. Ou será que de fato o Sócrates histórico não sabia

nada no que diz respeito à virtude? Compreendemos que, pelo menos o Sócrates, enquanto personagem desse

diálogo platônico, assumia não saber o que é a virtude. Quanto à ironia, esta diz respeito à habilidade em que

alguém – com o intuito em desencobrir a ignorância de algum interlocutor pretencioso – dissimula ser ignorante

sobre o conhecimento de determinada coisa. Para Reale, a ironia simboliza “um constitutivo essencial” aos escritos

platônicos. (REALE, História da filosofia grega e romana, vol. III: Platão, p. 33-34). 7 Menon, 71 a-b. 8 Benson vê enfatizada aqui o que ele chama de “Suposição Intelectualista”. (BENSON, Platão, p. 87-87. Ver o

que é isto.

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

16

modo, observamos aqui uma aproximação entre os verbos ser e ter. É Mediante essa relação

dialética, entre ambos os verbos, que as coisas têm parte na essência.9 Afinal, ainda segundo

Ricoeur, (p. 10) na discussão estabelecida no Mênon, “a essência é nas coisas, e inversamente,

as coisas têm a essência”.

Seguindo esse pressuposto, ser-se-á necessário, primeiro, saber o que é a virtude para,

posteriormente, poder afirmar se a virtude pode ou não ser ensinada. É por este motivo que

Sócrates, ao ser indagado por Mênon sobre o fato de não saber o que é a virtude, afirma que

não somente não sabe, como assevera também jamais ter encontrado alguém que soubesse o

que é a virtude.

Mênon, não obstante essa afirmação socrática, garante de forma contundente que

Górgias10, por exemplo, tem conhecimento da virtude. Dessa forma, é pedido àquele que

relembre então as coisas ditas por este no que concerne à virtude, ou falar por ele mesmo.

Afinal, o que é a virtude de acordo com Górgias? Com essa perquirição, Sócrates tem a

pretensão em provar que não está enganado ao dizer que jamais se deparou com alguém que

soubesse o que é a virtude.11

2.3 Primeira resposta de Mênon - A virtude em sua multiplicidade enquanto capacidade

de bem administrar as coisas

À guisa sofística, Mênon diz não encontrar dificuldade, em se tratando de sua

compreensão sobre o que é a virtude. Para ele, a virtude do homem, por exemplo, encontra-se

na capacidade de bem administrar as coisas da cidade, bem como proporcionar, ao exercitar a

gestão, o bem aos amigos e o mal aos inimigos, e, ademais, manter-se prevenido das más coisas.

No que respeita à virtude da mulher, Mênon a caracteriza enquanto o administrar bem a casa e

obedecer ao esposo. Além dessas virtudes, há também, de acordo com Mênon, a virtude da

criança, do ancião, do homem livre, do escravo etc. Por fim, nesta sua primeira resposta sobre

9 Observamos que se trata, aqui, da “Participação”. Esta, para Platão, é, grosso modo, “uma consequência natural

da hipótese da existência de formas inteligíveis, que desempenham, em relação às coisas sensíveis, que, portanto,

são de certa maneira suas imagens, o papel de causa e de ‘modelo’”. De relevância técnica, a participação em

Platão expressa a relação existente entre as coisas e a essência. Ela pode ter dois aspectos: as coisas sensíveis têm

participação nas formas inteligíveis e: há também participação nas formas inteligíveis, ou seja, estas participam

entre si. (BRISSON & PRADEAU, Vocabulário de Platão, p. 59-62). 10 Górgias era um sofista, cujo mestre era Empédocles. Nasceu em 487 a. C., em Leontium, na Sicília. Ao que se

consta, ele foi um dos primeiros a fundar a escola de retórica. (PLATÃO, 1966, p. 106). 11 Mênon, 71 c-d.

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

17

o que é a virtude, ele entende que a mesma relaciona-se a cada trabalho, e está de acordo com

cada ação e cada idade12.

Diante disso, uma vez que o que está sendo procurado é somente uma virtude, Mênon,

entretanto, permite que seja “pousado em si” um enxame de virtudes. Seu posicionamento

começará a ser refutado exatamente a partir do termo “abelha”. Será preciso, pois, que ele tenha

conhecimento sobre o que é o ser da abelha. É que, em meio às inúmeras variedades e formas

– tamanho, beleza etc. - de abelhas, estas - ao serem definidas enquanto abelha - não diferem

umas das outras. Observamos que tentar apreender uma coisa por meio de seus inúmeros e

relativos caracteres é permanecer nas inter-relações móveis do devir, visto que, agindo de

maneira acima explicitada, Mênon não será capaz de apreender o ser da virtude. O que é

perscrutado por Sócrates parece que está relacionado à necessidade em se “encontrar o caráter

substancial das coisas, seu ser próprio” (ROGUE, 2011, p. 79).

Com isso, notamos que aquilo que diz respeito às virtudes, tem semelhança com as

abelhas. Aquelas, apesar de existirem em muitas variedades, todas elas também têm um único

(mesmo) caráter. É exatamente devido a esse caráter essencial que essas qualidades são

chamadas de virtudes - o que possibilita encontrar a resposta da averiguação sobre o que vem

a ser virtude. Contudo, Mênon parece não apreender aquilo que é perguntado, visto que para

ele a virtude do homem, por exemplo, é diferente da virtude da mulher e da dos outros (criança,

ancião etc.), o que faz com que seja indagado se essa falta de apreensão acontece somente em

relação à virtude ou o mesmo acontece com as outras coisas. Interessa saber, com isso, se ele

pensa o mesmo, por exemplo, em relação às virtudes do corpo - ou seja, à saúde, à força etc. -,

se há uma saúde e uma força do homem e uma saúde e uma força da mulher, ou, se a saúde e a

força, tanto no homem quanto na mulher, referem-se ao mesmo caráter.

Mênon entende que, quanto a isso, parece se referir ao mesmo caráter, quer esteja no

homem, quer esteja na mulher. Afinal, no que concerne ao ser forte, a exemplo, tanto no homem

como na mulher, trata-se de uma mesma coisa - da própria força13. Nessa perspectiva, em se

tratando da questão da virtude, será que esta difere em alguma coisa, quer esteja na criança ou

num velho, quer numa mulher ou num homem? Mênon, porém, quanto ao ser virtude, ainda se

encontra em dúvida se se trata da mesma coisa ou não. Desse modo, Sócrates continua o seu

método até obter o acordo de Mênon de que não é possível administrar bem a cidade ou a casa

12 Mênon, 71 e-72 a 13 Mênon, 72 d-e.

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

18

se não for de forma prudente e justa. Logo, se ambas forem realmente administradas com

virtude, ser-se-ão administradas por meio da justiça e da prudência.14 Sócrates, enfim,

colocando Mênon em contradição, diz, que, tanto a mulher quanto o homem, para serem bons,

precisam da justiça e da prudência - precisam da mesma coisa, porquanto.15 Todos os seres

humanos só poderão se tornar bons pela mesma maneira, visto que “o fato de a justiça ou a

prudência, por exemplo, existirem num homem ou numa mulher também não supõe, portanto,

nenhuma diferença [...]” (JAEGER, 2013, p. 706).

Doravante, Mênon é parcialmente convencido de que é pela mesma virtude que os

homens se tornam bons. Destarte, Sócrates se volta ao objeto da questão, solicitando àquele que

expresse o que de fato Górgias dizia sobre o ser virtude. No curso das reflexões de Werner

Jaeger, queremos destacar este momento em que Mênon expressa sua primeira definição

equivocada sobre a virtude, seguido do que é proposto por Sócrates à significação da virtude,

como “uma regra dialética fundamental” (2013, p.715)16.

2.4 Segunda resposta de Mênon - A definição da virtude enquanto a capacidade de

comandar homens

Não obstante a “regra” proposta para a definição da virtude, Mênon insiste em

responder, ao seu modo, à indagação feita por Sócrates. Assim, encontrando-se em sua segunda

resposta, ele afirma que a virtude caracteriza-se enquanto capacidade de comandar os homens.

No entanto, Sócrates pergunta se essa capacidade é a mesma para a criança e para o escravo.

Isto é, estes são capazes de comandar o seu senhor? Certamente, não - pois, aquele que

comanda, não parece, de forma alguma, ser escravo. Dessa forma, percebemos que, a fim de

refutar mais uma vez o argumento de Mênon, Sócrates se apropria somente do termo

“comandar”. E, nesse contexto, já que para aquele a virtude é ser capaz de comandar, o mesmo

é indagado se não deverá ser acrescentado comandar “com justiça”, jamais de maneira injusta.

14 Parece começar aqui a intenção de Platão em mostrar que não será possível conceituar o todo por meio das

partes. 15 Mênon, 73 a-c. 16 Para a definição da virtude, observamos que Platão terá como regra principal a digressão matemática. Será por

meio desta ciência, que Platão - a fim de obter a natureza da virtude - estabelecerá os paradigmas que deverão ser

seguidos. O recurso às exemplificações matemáticas, no Mênon, “[...]serviu para pôr em destaque a fecundidade

educadora das aporias e para as apresentar como a primeira fase na senda do conhecimento positivo da verdade.”

(JAEGER, Paideia: a formação do homem grego, p. 715).

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

19

Mênon parece estar de acordo, mesmo porque para ele a justiça é virtude. No entanto, a justiça

é virtude ou uma virtude?17

Em vista dessa imprecisão, toma-se portanto como exemplo a redondez18, que é uma

figura – assim como demais outras figuras -, e não simplesmente que é figura. Parece que, aqui,

Platão recorre à matemática, mormente à geometria, como se isso fizesse parte de seu método

- visto que é como se ele fosse, mediante seus personagens, formando uma estrutura lógica,

afim de chegar àquilo que ele busca conhecer. Neste caso específico, isto é, no Mênon, Platão

almeja chegar à compreensão da virtude, estabelecendo como paradigma o termo “figura”.19

Nesse contexto, “[...] o problema da essência da virtude esclarece-se por meio da pergunta: o

que é uma figura? E o problema de se a justiça é a virtude ou uma virtude, por meio de pergunta

paralela: é o círculo a figura ou uma figura?” (JAEGER, 2013, p. 71. Grifos do autor).

Assim, de forma análoga a esse paradigma, Mênon afirma não haver somente a justiça

enquanto uma virtude, mas também outras virtudes. Como consequência, prometendo nomear

também outras figuras, Sócrates pede para que sejam nomeadas por Mênon as outras virtudes.

Este profere que a coragem parece ser uma virtude, assim como a prudência, a sabedoria, etc.

Embora essas qualidades sejam designadas enquanto uma virtude, notamos que não é este o

objeto da questão, uma vez que ao se procurar uma única coisa, agindo dessa forma, será

encontrada, ao contrário, uma multiplicidade de virtudes. 20 Mas o que se quer descobrir, afinal,

é a única virtude, a que perpassa todas as outras virtudes, em cuja relação as mesmas são

classificadas enquanto partes daquela. Mênon, porém, ainda não consegue apreender como

procurar uma virtude que é única em todas elas.21

Se alguém, por exemplo, perguntasse a Mênon o que é a figura - e este respondesse que

é a redondez -, esse alguém iria novamente indagar se a redondez é a figura ou uma figura. Sem

17 Mênon, 73 d-e. 18 Esta figura (redondez), apesar de ser assim traduzida, pode ser compreendida também por meio do termo

“círculo”. 19 Mênon, 73 e. 20 De acordo com os relatos platônicos, as discussões dialéticas - no que tange ao século IV a. C. – eram voltadas

mormente a “[...] ‘muitos’ em contraposição a ‘um’”. Desse modo, entendemos multiplicidade como aquilo “que

é múltiplo e variado.” Múltiplo, em Platão, tem uma conotação, não de “dispersão ilimitada”, mas de número. Este

encontra-se entre a multiplicidade ilimitada e a unidade absoluta. É por meio do número, portanto, que se

estabelece um limite para aquilo que é ilimitado. Como vemos, o número é, concomitantemente, um e muitos,

visto que pertence `a multiplicidade determinada. Afinal, de acordo com Platão, onde há número há inteligência.

É por isso que ele se preocupa em evitar que a sua análise sobre a virtude rume à multiplicidade ilimitada,

porquanto não se poderá, seguindo esta direção, determinar a natureza da virtude. Platão volta o seu pensamento,

ao contrário daquela direção capaz de fazer a sua pesquisa se debandar, à unidade das coisas. (ABBAGNANO,

Dicionário de Filosofia, p. 686, 718). 21 Mênon, 74 a-b.

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

20

dúvida, Mênon diria que é uma figura. Logo, e por esta razão, há ainda outras figuras. E se

perguntasse quais para nomear, certamente seriam nomeadas. O mesmo se passa em relação à

cor: se alguém perguntasse a Mênon o que é a cor - e ele respondesse que é o branco -, esse

alguém faria uma pergunta semelhante àquela sobre a figura, ou seja, perguntaria se o branco é

a cor ou uma cor. A resposta com certeza seria que o branco é uma cor, e não a cor - porquanto

há outras cores não menos cores que o branco22.

Não obstante às respostas sobre as variedades de figuras e de cores, não é de interesse

continuar com esse argumento pois, agindo dessa forma, chegar-se-á sempre à multiplicidade,

o que não parece ser esta a intenção de Platão. Essas muitas coisas são chamadas, antes, por um

nome só, ou seja, todas são figuras - por exemplo -, embora sejam umas diferentes das outras.

Todavia, é importante ressaltar que Brisson (2003 p. 161) afirma, em relação às virtudes

particulares apreendidas a partir das discussões do Mênon, que as mesmas “[...] não são

radicalmente distintas, porquanto elas têm todas por fundamento a epistéme que permite definir

a virtude geral.”

Comentários à parte, o posicionamento de Platão por meio de Sócrates, em se tratando

da compreensão de definição de figura, é o seguinte:

[...] Se, pois, como eu, ele prosseguisse o argumento e dissesse: “é sempre uma

multiplicidade que chegamos, mas não me venha com isso! Antes, já que chamas essas

muitas coisas por um nome só, e que afirmas que todas elas são figuras, e isso ainda

quando são contrárias umas das outras - que é isso que de modo algum compreende

menos o redondo do que o reto, isso precisamente que chamas figura, “de tal forma

que” afirmas em nada o redondo é mais figura que o reto? Ou não dizes assim?

(PLATÃO, 2001, p. 31).23

Por meio dessa citação percebemos que o filósofo ateniense se refere àquilo que é o

mesmo em todas essas coisas - à unidade das coisas. Em outras palavras, ele quer saber o que

é aquilo nas coisas chamadas figuras que, em todas elas, é o mesmo, que é figura. Portanto, o

que se procura é responder à indagação sobre o que é a figura, posicionando-se de maneira

delicada e dialética24. No entanto, a forma mais dialética, quiçá, não esteja voltada em responder

22 Sobre este trecho, Jaeger (2013, p.711) afirma que “[...] assim se esclarece logicamente o que Platão entende

por essência, pois a essência não admite um mais e um menos, e nenhuma figura o é em maior ou menor grau que

outra qualquer [...]”. 23 Mênon, 74 d-e. 24 A dialética é, por excelência, o método usado sobretudo por Sócrates. O processo desse método se dá por meio

da ironia e da maiêutica. A primeira, ocorre quando é indicado o erro do interlocutor. Quanto à segunda, grosso

modo, é aquele exercício em que o interlocutor se vê obrigado em arrancar de si mesmo a verdade daquilo que se

procura. (PLATÃO, Mênon 1966, p. 76).

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

21

somente a verdade. É preciso, antes, que transcorra o percurso por meio daquilo em que aquele

que é inquirido admite categoricamente saber.25

Assim, à maneira de conclusão sobre o que é figura, é preciso que Mênon tenha em

mente o conhecimento daquilo que é chamado de término, isto é, daquilo conhecido como

extremidade e limite. É que é possível observar nas figuras, por meio da geometria, aquelas

coisas que são conhecidas, uma, por superfície, a outra, por sólido. Desse modo, Platão afirma

que “onde o sólido termina, isso é uma figura. Aquilo que, precisamente, resumindo, diria: a

figura é o limite do sólido” (PLATÃO, 2001, p. 35).26

Como se vê, essa definição de figura elucidada por Platão é uma característica geral que

abrange todas as figuras particulares. É esse o paradigma por meio do qual Platão pretende

definir o caráter geral do termo virtude. Esse exercício serve como base para poder ser

alcançada uma resposta sobre a virtude. Observamos, mediante esse estalão, que a essência da

virtude no Mênon se caracteriza, também, devido ao “[...] contraste com o que Platão chama de

partes da virtude, como a justiça, a prudência, etc.”, e não somente “[...] contrapondo-a como

algo de unitário e absoluto às múltiplas relações da virtude com homens de tipo diverso [...]”

(JAEGER, 2013, p. 706).

2.5 Terceira resposta de Mênon - A definição do todo mediante sua parte: a virtude

esclarecida por meio da justiça enquanto querer coisas boas e poder alcançá-las

Em consonância com essa explanação concernente àquilo que se caracteriza enquanto

figura, entendemos que, de forma semelhante, deverá ser encontrado o caráter necessário ao

termo virtude - aquele caráter que conceitua a virtude como um todo, tendo em vista que Mênon,

ao contrário, acaba fazendo muitas coisas a partir daquilo que é um. Mas o que Platão pretende

é deixar a virtude “íntegra e sã”. É por isso que são citados os exemplos de caráter de abelha,

25 Como podemos notar, parece que as opiniões de Mênon sobre a natureza da virtude, bem como as primeiras

opiniões do escravo sobre o cálculo matemático – que veremos no segundo capítulo deste trabalho -, não expõem

a verdade em relação ao que está sendo averiguado. No entanto, isso pertence ao exercício dialético, cujo escopo

é, mediante exclusão das opiniões falsas, chegar à opinião verdadeira sobre as coisas, isto é, ao verdadeiro

conhecimento. 26 Mênon, 76 a.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

22

de cor, bem como o de figura. Os mesmos servirão como paradigma para Mênon responder o

que é a virtude geral. 27

Diante disso, porém, Mênon que ainda não reconhece sua ignorância sobre a essência

da virtude, tem outra definição do que é a mesma. Para ele virtude é regozijar-se com as coisas

belas e poder alcançá-las, ou seja, desejar coisas belas e ser capaz de consegui-las.28 Muito

embora a virtude para Mênon, aqui, seja querer as coisas boas29 e poder alcançá-las, Sócrates,

no entanto, faz objeção a esse argumento pois, no que diz respeito ao querer, este pertence a

todos. Portanto, ninguém, por meio do querer, é melhor que outro. Alguém é melhor que outro

somente em relação ao poder alcançar. E, além do mais, aqueles que ignoram as coisas

consideradas más - acreditando, porém, que essas coisas são boas -, desejam na verdade coisas

boas. Ninguém quer as coisas más, se realmente não quer ser assim, porque aquele que deseja

e obtém as coisas más é considerado, para Platão, um infeliz.30

Mas, Sócrates, a fim de refutar mais uma vez o argumento de Mênon, apega-se

provisoriamente a essa definição atinente à virtude, visto que, como é sabido:

[...] no variado jogo de simulações, Sócrates chegava mesmo a fingir que acolhia

ideias e métodos do adversário como se fossem dele e os levava ao extremo para

poder fazer emergir facilmente os pontos débeis de refutá-los, algumas vezes fazendo

uso da lógica própria àqueles métodos. (REALE, 2014, p. 34).

Nesse contexto, Sócrates acrescenta, a esse conseguir, justiça ou prudência ou piedade

ou qualquer outra parte da virtude31. Caso contrário, embora se consiga coisas boas, não será

virtude. O mesmo se dá ao não conseguir, ou seja, “não <procurar> conseguir ouro e prata

quando não for justo nem para si próprio nem para outrem [...]”, esse não conseguir também é

considerado virtude (PLATÃO, 2001, p. 43)32. Destarte, ao se alcançar determinado bem, esse

alcançar, não será considerado mais virtude que o não alcançar. Vetante isso, parece que será

considerado virtude, para Mênon, aquilo que for feito com justiça, e o que for feito de forma

contrária a isso, será considerado vício.33 Só que o que ficou acordado anteriormente, porém, é

27 Mênon, 77 a-b. 28 Mênon, 77 b. 29 Para Mênon, essas coisas belas, são: o ouro, a prata, as honras, os postos de comando na cidade, a riqueza, a

saúde etc. 30 Menon, 78 a-b. 31 Percebemos que isso se dá, porquanto Sócrates tem o intuito em, posteriormente, objetar Mênon ao este tentar

definir o todo por meio de sua parte (justiça), o que no Mênon é impossível. 32 Menon, 78 e. 33 Mênon, 78 e-79 a.

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

23

que cada uma dessas qualidades – a justiça, a prudência etc. -, é considerada uma parte da

virtude. Parece que Mênon, ao se posicionar dessa forma, entra novamente em desacordo, não

entendendo o que de fato se quer dizer em se tratando do caráter necessário ao termo figura.

Desse modo, indaga Socrates:

SO. Então, resulta, a partir do que admites, que fazer o que quer que se faça com uma

parte da virtude, é isso a virtude. Pois afirmas que a justiça é uma parte da virtude, e

também <o é> cada uma daquelas várias coisas <que mencionamos>. Ora, por que

então estou dizendo isso? Porque, tendo eu pedido que dissesses o que é a virtude

como um todo, estás, por um lado, longe de dizer o que ela é, e, por outro, afirmas que

é virtude toda ação desde que seja feita com uma parte da virtude, como se já tivesses

dito o que é a virtude como um todo, e <como se eu> devesse reconhecê-lo a partir

daí ainda que a partas em pedaços. Precisas então, de novo, do começo, segundo me

parece, amigo Mênon, <retomar> a mesma pergunta: o que é a virtude, uma vez que

virtude seria toda ação acompanhada de uma parte da virtude? Pois é isso que se quer

dizer quando se diz que toda ação acompanhada de justiça é virtude. Ou não te parece

que precisas <retomar>de novo a mesma questão, mas, sim, crês que alguém sabe o

que é uma parte da virtude mesmo não sabendo o que ela é?

MEN. Não, não me parece. (PLATÃO, 2001, P. 47).34

Observamos, com isso, que a virtude em si não pode ser fragmentada, é preciso que se

encontre a sua unidade. A resposta, pois, deverá ser respondida por Mênon conforme os

paradigmas elucidados anteriormente. Embora essa resposta tenha de ser dada conforme os

modelos mostrados, ele, no entanto, mais uma vez negligencia isso, afirmando que a virtude é

ser capaz de conseguir coisas boas com justiça. Isto é, Mênon havia afirmado antes que a justiça,

semelhante às demais qualidades, é uma parte da virtude.

Tendo em vista que a resposta de Mênon leva à conclusão de que a virtude seria toda

ação acompanhada de uma parte da virtude, ou seja, acompanhada da justiça, é perguntado

novamente o que é a virtude - pois é isso que se conclui, ao alguém partir do pressuposto de

que toda ação acompanhada de justiça é virtude. Para Platão, não se pode ter conhecimento de

uma parte da virtude sem antes saber o que é a virtude como um todo.35 Em campos semânticos,

parece que, aqui, Mênon tenta definir a virtude por uma relação metonímica, isto é, por

antonomásia. Em discursos outros, ele arrisca em esclarecer a essência da virtude mediante

aquilo (a justiça) que é parte da mesma. É como se estivesse pressupondo conhecer o que ainda

estaria por conhecer. Portanto, Mênon, por meio desse contexto, “comete o erro lógico de querer

34 Mênon, 79 b-c. 35 Mênon, 79 d-e.

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

24

explicar a essência da virtude mediante uma parte dela, que é a justiça” (JAEGER, 2013 p. 717).

Sócrates, ao se deparar com a explicação imprecisa de Mênon, objurga-o.

O fato de Mênon sempre errar, ao tentar definir a virtude, quiçá seja pelo motivo de ele

não compreender o que é exigido por Sócrates para tal definição. De acordo com Christophe

Rogue, é necessário que esteja junto à definição um imperativo de unicidade dessa definição.

Todas as partes da virtude – isto é, a sua totalidade – têm de estar compreendidas em um só

logos.36

2.6 A total aporia de Mênon como implicação à continuidade da pesquisa

Diante da persistência da incompreensão acerca da natureza da virtude, bem como do

aparente esgotamento dos recursos argumentativos, Mênon cai novamente em aporia e, dessa

vez, todavia, ele reconhece estar em dúvida sobre o que é a virtude. O mesmo, neste instante,

tem plena consciência de que de fato não sabe o que é a virtude - coisa que anteriormente

afirmava categoricamente saber. Agora, comparando Sócrates a uma raia elétrica, afirma

Mênon:

Sócrates, mesmo antes de estabelecer relações contigo, já ouvia dizer que nada fazes

senão caíres tu mesmo em aporia, e levares também outros a cair em aporia. E agora,

está-me parecendo, me enfeitiças e drogas, e me tens simplesmente sob completo

encanto, de tal modo que me encontro repleto de aporia. E, se também é permitida

uma pequena troça, tu me pareces, inteiramente, ser semelhante, a mais não poder,

tanto pelo aspecto como pelo mais, à raia elétrica, aquele peixe marinho achatado.

Pois tanto ela entorpece quem dela se aproxima e a toca, quanto tu pareces ter-me

feito agora algo desse tipo. Pois verdadeiramente eu, de minha parte, estou

entorpecido, da alma e na boca, e não sei o que te responder. (PLATÃO, 2001, p.

47)37

Mênon, entretanto, por diversas vezes discursou sobre a virtude às multidões e, quiçá

devido ao aspecto persuadido das pessoas, ele imaginasse que seriam belos os seus

pronunciamentos discursivos em relação à virtude. Agora, porém, entorpecido, Mênon sequer

sabe dizer o que absolutamente ela é. Percebemos, com isso, que o discípulo de Górgias se

deixou ser levado simplesmente pelo fato de ele saber falar. É que Mênon, “sabendo falar,

imagina, por consequência, que sabe. Mas não é este o caso. Saber falar não é suficiente; é

36 ROGUE, Compreender Platão, p. 46 (Grifos do autor). 37 Mênon, 70 e-80 a-b.

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

25

preciso bem falar e, sobretudo, saber malograr as aparências de verdade dos discursos daqueles

que apenas falarão bem” (ROGUE, 2011, p. 21).

Observamos que à medida que Sócrates refuta Mênon, este vai tomando consciência de

suas contradições, de seus embaraços. Assim, mediante a refutação, Mênon sai da “ilusão de

saber o que não se sabe”, indo em direção àquele nível, cuja designação é “saber que não se

sabe”. (ROGUE, 2011, p. 47). Estar em total aporia, isto é, ter pleno conhecimento de que nada

sabe é, desse modo, “[...] o começo da atitude verdadeiramente filosófica [...]” (2011, p. 47). A

aporia, afinal, longe de ser uma ocasião negativa, é, não obstante, “[...] esse tempo de suspensão

do diálogo entre refutação e pesquisa. Momento intermediário onde se passa da ignorância ao

saber, ela abre o caminho para a verdadeira pesquisa” (2011, p. 48). É a aporia, de acordo com

Jaeger (2013, p. 715), “[...] a fonte do conhecimento e da compreensão.” Ao decorrer desse

método, em que os interlocutores apresentam uma questão, exigindo, com isso, que se tenha

uma resposta, parece que Mênon, vencido pelas refutações socráticas, compreende que ele nada

sabe em relação à virtude.

É visível, na maioria dos diálogos platônicos, que, “Para o interlocutor, infelizmente, a

investigação sobre sua tese normalmente termina em dificuldades e o próprio interlocutor cai

em embaraço, irritação, acusação” (BENSON, 2011, p. 57). No instante em que se encontra em

suspensão em relação à sua compreensão sobre a virtude, não resta outra coisa a Mênon senão

a dúvida. Porém, essa análise sobre a natureza da virtude só será possível justamente por causa

de sua aporia, visto que “A dúvida impulsiona a investigação.” (PAVIANI, 2013, p. 45).

Em face dessa aporia Deparamo-nos ainda, quando Mênon compara Sócrates com a raia

elétrica, com um impasse efetivamente compartilhado.38 É que este afirma o seguinte:

[...] Quanto a mim, se a raia elétrica, ficando ela mesma entorpecida, é assim que faz

também os outros entorpecer-se, eu me assemelho a ela; se não, não. Pois não é sem

cair em aporia eu próprio que faço cair em aporia os outros. Mas, caindo em aporia eu

próprio mais que todos, é assim que faço também cair em aporia os outros. Também

agora, a propósito da virtude, eu não sei o que ela é; tu entretanto talvez anteriormente

soubesses, antes de me ter tocado; agora porém está parecido a quem não sabe.

Contudo, estou disposto a examinar contigo, e contigo procurar o que ela possa ser.

(PLATÃO, 2001, p. 49).39

38 Sobre esse impasse, Benson pensa que: “Se esses diálogos são concebidos como representações de Sócrates e

de seus modos de fazer filosofia, então esses impasses parecem essenciais a eles, precisamente porque é neste

ponto que suas discussões sempre terminavam. (BENSON, Platão, p. 56-57). 39 Mênon, 80 c-d.

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

26

Isto é, diante da aporia de Mênon, Sócrates também afirma que, embora ele seja

comparado à raia - cujo choque entorpece quem a toca -, também se encontra em situação

aporética, visto que nada sabe sobre a virtude. Desse modo, ele aceita a comparação, se a raia

também entorpecer-se a si mesma, porquanto ele, do mesmo modo que Mênon, encontra-se

entorpecido, tendo a certeza que nada sabe em relação à virtude.

Em suma, fica transparecido que o ponto decisivo no que respeita a essa primeira

discussão do Mênon seja, quiçá, o motivo “de Menon tentar explicar as espécies de virtude e a

única virtude [...], enfim, a virtude geral.” (PAVIANI, 2013, p. 45). Por meio dessas suas

fracassadas explicações, ele consegue “enxergar” que, apesar de seus “belos” e inúmeros

discursos às multidões, nada sabe sobre a natureza da virtude. Como esperado aos diálogos

platônicos, a dialética de Sócrates faz com que as três tentativas de Mênon em definir a virtude

sejam descartadas.

No entanto, há aqui no Mênon “[...] uma nova pitada: Sócrates insiste que o definiens

correto para a excelência deve evidenciar a unidade que faz com que todas as várias excelências

(justiça, temperança, etc.) sejam uma” (BENSON, 2011, p. 87. Grigo do autor).40 Em relação

a essa questão da virtude no Mênon, Jaeger (2013, p. 707) diz que esse problema da essência

da virtude equipara-se “[...] à suma e compêndio daquilo que se pode predicar não de uma ou

outras partes quaisquer da virtude mas sim da própria virtude em conjunto ou ‘na totalidade’

[...]”. Temos aqui, pela primeira vez, o estabelecimento – em se tratando do geral – de um novo

conceito lógico ao pensamento platônico41.

40 Para Benson - embora nada mais seja explanado em relação ao proposto para o definiens correto à excelência -,

trata-se de uma nova ênfase apresentada por Platão. 41 JAEGER, Paideia: a formação do homem grego, p. 707.

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

27

3 CAPÍTULO II – A VIRTUDE E A GARANTIA DO CONHECIMENTO:

IMORTALIDADE DA ALMA, CONTEMPLAÇÃO E REMINISCÊNCIA

3.1 Considerações iniciais

A pretensão deste Capítulo II é mostrar que, embora a virtude seja - para Sócrates e

Mênon - algo desconhecido, é possível, na contramão do argumento erístico, procurar aquilo

sobre o qual não se sabe absolutamente nada. Sendo assim, a fim de convencer Mênon a essa

busca, Sócrates lança mão de dois recursos, que são a “doutrina mítica” e a “dialética”. Ao

primeiro recurso, fica comprovada a imortalidade da alma. Já no recurso à dialética, Platão o

explana mediante um diálogo - em que ocorre a solução de um problema matemático - travado

entre Sócrates e um escravo de Mênon. Em suma, ambas as apelações servem para mostrar que

o conhecimento, longe de ser adquirido pelo ensinamento, se dá, para Platão, em virtude da

imortalidade da alma, a que o filósofo ateniense indexa às teorias da contemplação da

rememoração.

3.2 O recurso às doutrinas mítica e dialética como prova de que é possível procurar o que

não se conhece

Mênon - embora atribua razão a Sócrates, pelo motivo de este fazê-lo adquirir

consciência de que não sabe nada sobre a virtude - depara-se também com a incerteza de

Sócrates em relação ao assunto. A partir daí, apesar de recalcitrante, Mênon procura saber se a

proposta para encontrar a virtude poderá ser encontrada entre as coisas desconhecidas. É, que,

se ambos não sabem nada sobre a virtude, como poderão então procurá-la? Por outros discursos,

de que modo poderá ser procurado aquilo que não se sabe absolutamente o que é, visto que, se

fosse encontrada a virtude, de que forma se saberia que a encontrou, uma vez que a mesma é

algo desconhecido?42 Isso, porém, de acordo com Platão, é uma proposição erística. Para os

erísticos, seria impossível alguém adquirir o verdadeiro conhecimento, porquanto “[...] nem

procuraria aquilo precisamente que conhece – pois conhece, e não é de modo algum preciso

42 Esse problema levantado por Mênon ficou conhecido como o “paradoxo de Mênon”. (DANCY, R. M.

Definições platônicas e formas. In: BENSON, Platão, 2011, p. 87.)

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

28

para um tal homem a procura -, nem o que não conhece – pois nem sequer sabe o que deve

procurar.” (Platão, 2001, p. 49).43

Com o intuito de superar essa aporia apresentada, Platão se vê obrigado a traçar um

percurso que, como percebemos, é totalmente inusitado, a saber, que “[...] o conhecimento é

anamnese, isto é, uma forma de ‘recordação’, um vir à tona do que já existe sempre no interior

da nossa alma.” (REALE, 2014, p. 153-154). Tendo em vista, então, que conhecimento é

reconhecimento, Platão concebe Sócrates enquanto alguém que, por si só, conseguiu encontrar

respostas para as suas buscas e inquirições, tornando-se, portanto, sem efeito “[...] as

hipoteticidades pretensiosas que Mênon, por exemplo, aprendeu e presumiu com um Górgias,

e ainda mais nulo é um sofisma que tenha por fim dissuadir alguém, pela argumentação, de toda

e qualquer busca e indagação, como faz Mênon com cega astúcia.” (GADAMER, 2009, p. 53-

54).

Em suma, pelo que percebemos, essa doutrina da rememoração é apresentada no Mênon

de dois modos, isto é, Platão recorre ao mito sobre a imortalidade da alma e, consequentemente,

ao exercício dialético - este é explanado por meio de um “subdiálodo”, ocorrido entre Sócrates

e um escravo de Mênon. É necessário então que ambos os exemplos sejam aqui averiguados.

3.2.1 O recurso à doutrina mítica

Na perspectiva de provar que a doutrina erística importa-se somente em vencer a

discussão sem se preocupar com a verdade das coisas, Platão “[...] elabora no Mênon o profundo

conceito do saber, latente no seio da socrática, ao opor esta à concepção mecânica que os

sofistas têm do que é aprender.” (JAEGER, 2013, P. 716).

Nessa perspectiva, parece que, em Platão, o discurso filosófico mediante a razão tem

seu limite. Entretanto, em sua cartada, com o fito em transcender esse extremo, o filósofo de

Atenas, a fim de nos apresentar a primeira maneira de expor a doutrina da rememoração, recorre

intuitivamente ao mito44 que, por sua vez,

Dando uma perspectiva final e, portanto, moral à conversa na qual os interlocutores

se empenharam, o mito legitima em última instância uma filosofia que aparece como

o recurso para reaver certezas que ela própria contribuiu para destruir. [...] O mito

43 Menon, 80 e. 44 Para ROGUE (2011, p. 64), o fato de se recorrer ao mito em virtude de não conseguir convencer racionalmente,

é considerado uma “falha da filosofia”.

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

29

funciona, pois, como auxiliar da necessária conversão dos homens à filosofia,

finalizando uma busca que por si mesma não pode ter fim e prevenindo a volta aos

discursos de aparência de homens por demais escravos de seus interesses e de suas

paixões para poderem julgar como ele contém o valor absoluto. (ROGUE, 2011, p.

64-65).

Por meio deste recurso mítico, percebemos que os limites da razão são então superados.

Portanto, é à força do mito que o espírito é elevado “[...] a uma visão ou, ao menos, a uma

tensão transcendente.” (REALE, 2014, p. 41). Este recurso, no Mênon, é conhecido como teoria

da reminiscência ou da rememoração que, de forma contrária à concepção dos sofistas,

preocupa-se com a verdade. É também por meio dessa teoria, inspirada nas “doutrinas órfico-

pitagóricas” dos sacerdotes, que fica comprovada a imortalidade da alma.45 Segundo esta

doutrina a vida, como conhecemos agora, “[...] ora chega ao fim e eis aí o que se chama morrer,

e ora nasce de novo, mas que ela [a alma] não é jamais aniquilada. É preciso pois, por causa

disso, viver da maneira mais pia possível” (Platão, 2001, p. 51).46 A morte é, portanto, “[...] o

termo de uma das vidas da alma no corpo; o nascimento não é senão o recomeçar de uma nova

vida que vem somar-se à série das vidas precedentes.” (REALE, 2014, p. 151. Grifo de autor).

Mas por que Platão enfatiza que precisamos viver da maneira mais pia possível? Porque

é sabido que, além de Platão tentar associar a virtude a saber-fazer47, a mesma, em sua

dimensão, abrange também o contexto ético-social. O saber-fazer, logo, remete-nos ao conceito

de aprendizagem. Este, tendo em vista que o objeto em questão está direcionado à procura da

definição de virtude, tem de estar conectado à significação da alma, não somente “como um

princípio cognitivo”, mas antes também é necessária - para entendermos as relações existentes

entre a alma e a virtude - a compreensão da alma enquanto “um princípio ético”.48 De acordo

com Pradeau (2012, p. 38), é por meio desse princípio que a ética e a política platônicas serão

geridas. Desse modo, Platão relaciona o problema da virtude à alma pelo fato de a natureza do

45 É sabido que, frequentemente, muitos estudiosos atribuem à doutrina da rememoração (anamnese) as influências

órfico-pitagóricas exercidas sobre Platão. Contudo, observamos que a maiêutica socrática tivera também

fundamental importância à germinação dessa doutrina. (REALE, História da filosofia grega e romana, vol. III:

Platão, p. 156-157). 46 Menon, 81 b. 47 Parece que um dos interesses de Platão no Mênon, ao procurar a natureza da virtude, é tentar justificar a sua

prática através de um “conhecimento de causa”. Sendo assim, é possível pensar na possibilidade de haver

especialistas em virtude. Sobre isso, trataremos ao longo do terceiro capítulo. 48 Por meio desse entendimento, acreditamos que será permitido, por exemplo, saber se determinado homem é

bom ou mau.

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

30

Homem, para ele, ser expressa mormente pela psique, isto é, pela alma – por consequência, as

virtudes morais, em relação aos bens materiais, têm superioridade.49

Em vista disso, o que se entende em relação às hipóteses de Platão atinentes à

reminiscência é que as mesmas indicam haver uma existência precedente à nossa existência

atual. A alma, naquela existência anterior, contemplou as Puras Ideias50. Na existência atual, o

espírito, ao ser educado e instruído, simplesmente está se lembrando dessas ideias consideradas

puras, que foram contempladas, em algum tempo, nessa existência anterior. Há, portanto,

apenas uma recordação, um reconhecimento impreciso e sombrio daquilo que Platão chama de

perfeição ou de suprassensível. É em virtude dessa imortalidade que a alma já se encontra, na

vida atual, como conhecedora de tudo. Em síntese, a ideia da imortalidade da alma em Platão,

enquanto base essencial à designação da personalidade moral, quiçá seja o pano de fundo “[...]

à sua nova teoria de um saber de certo modo inato na alma do Homem.” (JAEGER, 2013, p.

714).

Sendo então a alma imortal e tendo nascido muitas vezes, e tendo visto tanto as coisas

<que estão> aqui quanto as <que estão> no Hades, enfim todas as coisas, não há o que

não tenha aprendido; de modo que não é nada de admirar, tanto com respeito à virtude

quanto ao demais, ser possível a ela rememorar aquelas coisas justamente que já

conhecia. Pois, sendo a natureza toda congênere e tendo a alma aprendido todas as

coisas, nada impede que, tendo <alguém> rememorado uma só coisa – fato esse

precisamente que os homens chamam aprendizado -, essa pessoa descubra todas as

outras coisas, se for corajosa e não se cansar de procurar. Pois, pelo visto, o procurar

e o aprender são, no total, uma rememoração. (PLATÃO, 2001, p. 51-52).51

Afinal, para Platão, não se adquire nesta vida presente um conhecimento das coisas, mas

antes um reconhecimento. Logo, no que concerne ao entendimento sobre a virtude (objeto do

diálogo aqui examinado), só há rememoração. Assim, tanto o procurar quanto o aprender são

uma rememoração. Desse modo, o argumento da rememoração faz com que os homens, de

acordo com o filósofo de Atenas, se tornem diligentes e inquiridores.52

Como é sabido, a filosofia, em sua pesquisa, inclina-se pura e simplesmente à busca da

verdade. É o pensamento filosófico, então, divergente da doutrina erística que, fazendo

49 PAVIANI, As origens da ética em Platão, p. 47. 50 Em Platão, podemos entender o termo “Ideia” enquanto “a espécie única e intuível numa multiplicidade.” Nesta,

a Ideia é visível como unidade. Assim, o caráter da Ideia, em relação à multiplicidade, tem uma posição de

privilégio, visto que, para Platão, a substância ou a essência daquilo que é numeroso é justamente a Ideia.

Entretanto, o conceito de Ideia, aqui, não será dignamente aprofundado. (ABBAGNANO, Dicionário de filosofia,

p. 524-525). 51 Mênon, 81 c-d. 52 Mênon, 81 d.

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

31

indiferença à verdade, cultua a mera persuasão. Esta, de acordo com Julia Annas (2012, p. 32),

é “[...] um empreendimento questionável tanto nas suas intenções quanto em seus métodos.”

Para ela, parece que foi em virtude disso que Platão “[...] enfatizou a necessidade de distinguir

claramente os métodos da filosofia dos métodos que granjeiam a concordância alheia por meios

persuasivos e não rigorosos.”

Enfim, Sócrates e Mênon entram em acordo de que a teoria da reminiscência prevalece

sobre a doutrina erística. Desse modo, sem serem explicitadas provas que validem tal

argumento, eles mantêm assim a hipótese e a confiança de que esse argumento (da

rememoração) é verdadeiro. Platão proporciona aos seus personagens, a disposição e o dialético

exercício em procurar o que é a virtude. Para Gadamer, (2009, p. 56), o recurso mítico “[...]

em que Sócrates coloca essa certeza sem solenidade irônica presta-se, no fundo, apenas para

ilustrar a autoexplicação da consciência indagadora”. (GADAMER, 2009, p. 56).

3.2.2 O recurso à doutrina dialética

Embora Platão não se expresse com clareza ao explanar que a resposta para se safar do

“paradoxo de Mênon” encontra-se na teoria da reminiscência, ele assume como corroboração

para esta teoria um subdiálogo ocorrido entre Sócrates e um escravo de Mênon.53 Neste

subdiálogo, toma-se como recurso, novamente, os exemplos matemáticos. Entendemos que,

para Platão, o conhecimento da matemática - em virtude da comunicação que há entre esta vida

e a vida anterior -, já existe enquanto potência na alma humana.54 Esse recurso, longe de ser

mero método, serve “[...] para ilustrar o tipo de saber que Sócrates se propõe como objetivo.”

(JAEGER, 2014, p. 712). Esse tipo de saber, “[...] embora partindo de vários fenômenos

concretos perceptíveis pelos sentidos e que representam o que se investiga, não está de per si

encravado dentro do campo do perceptível.” (2013, p. 712-713. Grifo nosso). Portanto, o

mesmo tem relação com as matemáticas, haja vista que somente “[...] o espírito pode captá-lo,

e o órgão que o capta é o lógos.” (p.713)

53 No que tange ao exercício pedagógico ocorrido aqui, Jaeger (2013, p. 713) entende ser o melhor momento do

Mênon. Para ele, “Platão deixa-nos contemplar aqui as reflexões que o levaram à aceitação da existência de uma

fonte puramente espiritual de certeza científica, diversa da experiência sensível.”

54 JAEGER, Paideia: a formação do homem grego, p. 713.

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

32

A possibilidade da teoria da reminiscência é elucidada, dessa vez, por meio de figuras

geométricas, desenhadas na areia, bem como através de perguntas dirigidas a esse escravo, que

não tem conhecimento algum sobre geometria.55 A princípio, a partir de um quadrado cujos

lados têm dois pés, o escravo de Mênon está convencido e afirma, categoricamente, saber qual

a medida da linha lateral que formará um quadrado de oito pés, que, para ele, é a superfície de

um quadrado de área dupla. O mesmo acredita que essa superfície será formada a partir da linha

que é o dobro da que Sócrates desenhou. No entanto, ele certamente não sabe. É exatamente

em virtude dessas perguntas que, para o discípulo de Sócrates, será possível a recordação.

Afinal, como analisamos, “É a doutrina da anámnesis que exprime o verdadeiro sentido da

indagação socrática.” (GADAMER, 2009, p. 54) A indagação é, por sua vez, “[...] buscar e

encontra-se, enquanto tal, sob a batuta do objeto da busca. Somente se pode buscar conhecendo

aquilo que se busca – somente então, somente à vista do objeto buscado, pode-se excluir, limitar

e reconhecer em geral.” (2009, p. 60).

Por meio das indagações, portanto, o escravo percebe que ele está equivocado ao dizer

que a linha lateral (superfície), que formará um quadrado de área dupla, equivale a oito. Ele

conclui, no entanto, em razão dessas indagações, que essa área mede nove pés. Há, aqui, para

Platão, através somente de perguntas, um imenso progresso, cuja rememoração é a responsável,

não havendo, de forma alguma, ensinamento.56 Em se tratando desse processo de reminiscência,

o fato de Sócrates recusar a palavra “ensinar”, quiçá seja em razão de a mesma nos passar a

sensação de “atafulhamento” - na alma – de saberes oriundos do exterior. Dessa forma, no que

tange à verdade existente na matemática, o escravo a descobre extraindo-a por meio do saber

presente em sua própria alma, e não por um ensinamento externo.57

Não obstante, segundo Benson (2011, p. 87), é Sócrates quem direciona o escravo à

resposta correta, isto é, à “diagonal do quadrado original”. Antes de sugerir a resposta ao

escravo, a mesma tem seu nascimento a partir do próprio Sócrates.58 Também sobre isso, afirma

Jayme Paviani:

[...] há um paralelismo entre a linguagem das expressões usadas por Sócrates e as

linhas que formam o quadrado. Há uma relação entre o raciocínio de Sócrates, as

figuras e os cálculos. Por isso o raciocínio socrático pode ser questionado e

55 As ilustrações não serão feitas, uma vez que o que interessa, para este trabalho, é a comprovação de que o

conhecimento é possível, para Platão, enquanto rememoração. Não há ensino de fora para dentro. Há, na verdade,

a reminiscência, que acontece de dentro para fora, sendo a recordação diferente de aprender. 56 Mênon, 82 e. 57 JAEGER, Paideia: a formação de homem grego, p. 716. 58 Platão não faz aqui nenhuma menção à teoria das formas, todavia, há inúmeras possibilidades de que essa teoria

não esteja tão distante. (BENSON, Platão, p. 87.)

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

33

reinterpretado. Além disso, o escravo limita-se a responder sim ou não, aparentemente

sem realizar operações racionais complexas. (2013, p. 116).

Por esse motivo, isto é, em virtude da explanação apresentada por Sócrates ao escravo,

é possível indagar sobre a teoria da reminiscência, podendo ser atribuídas à mesma duras

críticas, como, por exemplo, se Sócrates, por meio dos desenhos ilustrados, não estaria, de certa

maneira, ensinando ao escravo. Porém, essas críticas, em se tratando da compreensão dos

diálogos, certamente não nos esclarecerão nada. O fato é que o escravo, mediante esse método

dirigido por Sócrates, já não sabe mais dizer se é a partir da linha de três pés ou não que se

formará a superfície de oito pés. Em outras palavras, ele caiu em aporia, o que parece fazer

parte à caminhada da rememoração.

3.3 A aporia como etapa no processo de rememoração

Assim, no começo de sua conversa com Sócrates, o escravo acreditava saber qual seria

essa linha, e respondia de forma demasiado confiante. Agora, porém, ele se encontra em dúvida.

Nesse sentido, assim como ele não sabe, também não acredita que sabe. Acreditar que não sabe

é, para Platão, uma excelente posição, bem melhor que aquela em que o escravo não sabia e,

no entanto, acreditava saber (conhecer). O escravo, diante dos primeiros equívocos ocorridos

em suas tentativas em responder às perguntas de Sócrates sobre a solução do problema

matemático, não demonstra-se – ao contrário de Mênon – intimidado. Essa falta de intimidação

talvez possibilitasse ao escravo o entendimento que “[...] por meio de bastante repetição do

exercício, se estabilizaria como conhecimento matemático genuíno.” (GADAMER, 2009, p.

58).

Semelhante a quem toca à raia – mesmo caso de Mênon -, esse escravo encontra-se

entorpecido, o que não lhe causa prejuízo algum. Ao contrário, tendo ciência de que não sabe,

certamente ele sentirá maior prazer em, de fato, procurar. Contudo, antes, acreditava que sabia,

e que estava falando com propriedade sobre a superfície que é o dobro - que seria preciso que

ela tivesse a linha que é o dobro em comprimento. 59

59 Mênon, 84 a-c.

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

34

Naturalmente,

[...] sem o auxílio de Sócrates o escravo jamais teria dado os passos que o guiaram à

descoberta daquela complicada realidade matemática; e, antes de compreender a

verdadeira razão do problema, incorre em todos os erros em que forçosamente tem de

começar a cair toda inteligência simplista, sem outro horizonte senão o que lhe abre a

percepção material dos sentidos. Mas a certeza de que o jovem tem de que as coisas

são assim, e não de outro modo, brota por fim unicamente da fonte da sua visão

interior e, uma vez captada claramente a natureza das relações matemáticas que lhe

servem de base, essa visão irradia uma força de convicção absoluta, que não deixa

lugar à mais leve dúvida. Não é do ensino que recebeu, mas do próprio espírito e da

consciência da necessidade da coisa, que brota essa força de convicção do

conhecimento adquirido. (JAEGER, 2013, p. 712-713).

Diante disso, antes de ter caído em aporia, o escravo, embora não sabendo, não trataria

de procurar nem de aprender aquilo que acreditava saber; ele, enfim, jamais teria sentido anseio

algum por saber. Esse proveito é tirado justamente após o escravo ter-se entorpecido. A partir

da aporia, proporcionada mediante análise geométrica, o que será descoberto pelo escravo

acontecerá pura e simplesmente por meio de perguntas voltadas às suas opiniões, em momento

algum, de acordo com o Mênon, haverá ensinamento.60 Porém, como vemos, o escravo não

tenta resolver o problema sozinho. Ao contrário, Sócrates acompanha-o por todo o percurso, a

fim de orientá-lo à verdadeira solução. Para Gadamer (2009, p. 57), “Tal fato, todavia, não é o

mais importante, e sim que ele próprio a reconheça como o objeto da busca.” Afinal, o escravo

consegue rememorar que é a partir da diagonal que será formada a superfície que é o dobro. A

diagonal é, pois, a linha que constitui um lado de um quadrado cuja área é dupla.61

Sem ensinamento, Sócrates consegue provar que as opiniões verdadeiras já se

encontravam no escravo.62 Em síntese, “naquele que não sabe sobre as coisas que por ventura

não saiba, existem opiniões verdadeiras – sobre as coisas que não sabe”. (PLATÃO, 2001, p.

63).63 Observamos, com isso, que o escravo, durante esse processo que na tese platônica implica

rememoração, traça, no tempo, um percurso. Nesse trajeto, no que tange ao entendimento da

aprendizagem, parece que há, de acordo com Paviani (2013, p. 117) “[...] etapas no

desenvolvimento da reminiscência, isto é, da passagem da opinião ou da crença para a crença

verdadeira.” No início da investigação, esse escravo imagina ter a certeza de que sabe qual

60 Mênon, 84 c-d. 61 Mênon, 85 b. 62 Como observamos, Platão lida com a opinião verdadeira desde a discussão confrontada entre Sócrates e o

escravo. Essa questão será novamente enfatizada na parte final do Mênon. Em nosso trabalho, a mesma será

aprofundada e discutida no terceiro capítulo. 63 Cf. Mênon, 85 c.

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

35

linha lateral se formará, o que na verdade é mera opinião. No entanto, ao final do processo de

rememoração, ele retira de si mesmo, sem jamais ter estudado geometria, a opinião verdadeira

sobre essa linha. Esse conhecimento é o responsável por conduzi-lo ao conhecimento científico.

Nessa perspectiva,

[...] pondo entre parênteses a existência imortal ou não da alma, é possível deduzir

que a aprendizagem se efetiva a partir níveis. E eles podem ser resumidos da seguinte

maneira: a) da crença falsa para a crença verdadeira; b) da capacidade de entender e

de elaborar conceitos para a formulação de juízos ou enunciados; c) do conhecimento

preexistente para o conhecimento cotidiano. Obviamente, Platão não é tão explícito.

Mas é possível perceber no diálogo o núcleo de níveis e de graus no processo de

aprendizagem e, igualmente, descobrir a necessidade de condições ou ambientes para

poder aprender. (PAVIANI, 2013, p. 117).

Assim, por meio dessas ou quaisquer outras questões, sendo colocadas de forma

frequente e por diversas maneiras, o escravo possivelmente acabará, em conformidade com a

doutrina da rememoração, tendo ciência das mesmas, não sendo inferior a ninguém. Sem

ensinamento algum, mas sim por meio da interrogação oportuna e bem conduzida, haverá a

possibilidade em ele mesmo recuperar, de si próprio, a ciência adquirida provavelmente na vida

anterior à atual. Recuperar alguém a ciência, ele mesmo em si mesmo, para Platão, é

rememorar.64 Essa ciência, presente agora no escravo, ou ele a adquiriu em alguma existência

de sua alma, anterior a esta, ou ele sempre a teve e, [...] “se sempre teve, ele sempre foi alguém

que sabe; mas, se adquiriu em algum momento, não seria pelo menos na vida atual que adquiriu”

(PLATÃO, 2001, p. 65), uma vez que ninguém havia-lhe ensinado.65

Por meio desse método, Platão afirma que o escravo poderá fazer descobertas não

somente no que respeita à geometria, mas antes, sem exceção, a todos os demais conhecimentos.

Suas opiniões verdadeiras não foram adquiridas nesta existência atual - antes, adquiridas e

aprendidas em outro tempo. Platão atribui esse tempo ao momento em que ele não era ser

humano. Seja neste tempo, enquanto ser humano, seja “[...] durante o tempo em que o escravo

não for ser humano, certamente deve haver nele opiniões verdadeiras, que, sendo despertadas

pelo questionamento, se tornam ciências [...]” (PLATÃO, 2001, p. 65).66 Entretanto, para

Gadamer (2009, p.55), “[...] quando a conclusão é puxada para uma época pré-humana em que

a alma já conhecia, e com isso, para a imortalidade da alma, no final, isso acaba não sendo

64 Mênon, 85 c-d. 65 Mênon, 85 e. 66 Mênon, 86 a.

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

36

considerado uma prova válida.” Ao contrário, o argumento pretendido por Platão é deixado de

lado.

Muito embora Platão não afirme de forma convicta alguns pontos desse argumento, ele

acredita que as pessoas necessitam de procurar aquilo que não sabem. Agindo assim, elas

certamente se tornam melhores, menos preguiçosas e muito mais corajosas em relação àquelas

que pensam o contrário, isto é, àquelas pessoas que acham que não é preciso procurar e nem é

possível encontrar as coisas que elas (os erísticos) desconhecem. É por meio desse argumento,

pois, que Sócrates convence Mênon - após este cair em total aporia, reconhecendo, em sua

dúvida racional, que nada sabe sobre a virtude - a procurar aquilo que não se conhece, ou seja,

procurar o que é afinal a virtude, visto que “[...] justificada a anamnese, nessa altura do diálogo,

é possível retornar à questão da virtude, e examinar se ela pode ou não ser ensinada e

principalmente saber o que ela é ou, ainda, se a virtude é uma espécie de saber.” (PAVIANI,

2013, p. 116). Afinal,

Da existência da verdade na alma Platão deduz em seguida a imortalidade e

perenidade da mesma: se a alma possui como suas próprias, verdades que não

aprendeu antes na vida atual, que estão encobertas, mas podem ser desveladas à

consciência, quer dizer que ela já as possuiu como próprias desde sempre, antes do

nascimento do homem no qual agora se encontra: a alma é então imortal e, mais ainda,

em certo sentido permanece no ser, assim como a verdade. (REALE, 2014, p.155).

Sendo assim, é por todo o tempo que qualquer alma será uma alma que já havia

aprendido. Logo, “[...] se a verdade das coisas que são está sempre na alma das pessoas, a alma

deve ser imortal [...]” (PLATÃO, 2001, p. 67).67 Portanto, aquilo que a pessoa, no momento,

não sabe - pelo fato de ela não se lembrar -, deve haver necessidade em criar coragem de

procurar. Esta procura acontece exatamente pela rememoração. Como observamos, o que

aconteceu com Mênon - após sua aporia sobre a virtude -, bem como a digressão matemática

proporcionada, pelo recurso dialétic,o ao seu escravo, servem para ilustrar a força educadora

existente nas aporias, bem como para nos apresentá-las “[...] como a primeira fase na senda do

conhecimento positivo da verdade.” (JAEGER, 2013, p. 715).

67 Mênon, 86 b.

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

37

4 CAPÍTULO III – A VIRTUDE: CIÊNCIA OU OPINIÃO CERTA?

4.1 Discussões transcorridas

No capítulo inicial, abordamos a importância da aporia para o desenvolvimento do

Mênon. Ao tentar responder à pergunta de Sócrates sobre o que é a virtude, Mênon é refutado,

vindo a fracassar por três vezes ao longo de suas respostas. Entretanto, após sua última resposta,

o discípulo de Górgias cai em total aporia. Esta, enquanto dúvida racional, faz com que Mênon,

em sua consciência, reconheça que não tem conhecimento algum no que tange à natureza da

virtude. A aporia, afinal, serve como pano de fundo à continuidade da investigação sobre a

natureza da virtude, servindo de base, também, à confecção de nosso segundo capítulo.

Naquele, mencionamos a possibilidade de procurar aquilo que é desconhecido – no caso

do Mênon, a virtude. Essa possibilidade fica comprovada mediante o recurso que Platão faz à

doutrina mítica – em que é confirmada a imortalidade da alma - e à dialética – a partir da qual

é solucionado, pelo escravo de Mênon, sem ensinamento, um problema matemático. Em suma,

é em virtude da imortalidade da alma que o escravo pode rememorar a solução matemática. O

conhecimento, afinal, de acordo com Platão, é reminiscência.

Mas, já que o interesse de Mênon - desde o início da obra - está voltado à ensinabilidade

da virtude, cabe agora começar este terceiro capítulo a partir dessa discussão. Desse modo, o

empenho maior de Mênon é saber se a virtude – embora seja ainda uma coisa desconhecida - é

suscetível ou não de ensinamento. Assim, a pergunta sobre a natureza da virtude fica por um

instante em suspenso, a fim de, por meio de hipóteses, saber se a virtude é passível ou não de

ensinamento. As hipóteses utilizadas, são: se a virtude for uma ciência, a mesma poderá ser

ensinada; se for algo diferente da ciência, a virtude não poderá ser ensinada. É, que, para que

uma coisa seja ensinada, a mesma, de acordo com o Mênon, deve pertencer à ciência, cuja

qualidade é boa. Contudo, o que se tem como conclusão é que a virtude, pela qual os homens

administram com excelência suas casas e seus Estados, - embora também tenha essa qualidade

(boa) - é algo diferente da ciência. Logo, a mesma não é passível de ensinamento. Isso faz com

que a ciência fique fora da política, visto que a virtude ou virtude política para os gregos antigos

se resumia em bem-administrar os Estados.68 Dessarte, os homens bons e honestos fazem as

68 PLATÃO, Mênon, 1966, p. 99

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

38

coisas certas, mas não têm a ciência (o conhecimento). Enfim, apesar de Platão concluir o

diálogo sem especificar o que de fato é a virtude, esta, para o mesmo, parece ser uma concessão

divina.

4.2 A investigação acerca da ensinabilidade da virtude por hipóteses

Apesar de Mênon assumir que nada sabe sobre a virtude e, não sem esforço pregresso,

ter aceito que é possível procurar e encontrar aquilo que é desconhecido, ele insiste, porém, em

querer saber - antes de ser encontrado o caráter essencial de virtude - se a virtude pode ou não

ser ensinada. Em outros termos, Mênon - antes de saber o que determinada coisa é -,

erroneamente, pretende analisar que tipo de coisa é aquilo cuja natureza é desconhecida.69

Nesse sentido, Sócrates, semelhante aos geômetras, propõe, por meio de uma hipótese, a

procura para a descoberta dessa qualidade.70

Assim, antes de buscar a natureza da virtude, será através de uma hipótese que Sócrates

e Mênon tentarão concluir se a virtude pode ou não ser ensinada. A hipótese em Platão, num

contexto geral, tem sua gênese implicada no âmbito do irracional ou, (por que não?), envolvida

em um campo praticamente místico.71 Logo, a verdade dessa hipótese tem de ser “[...]

necessária e suficiente para a ensinabilidade da virtude, a saber, que a virtude é um tipo de

conhecimento, e então se põe a determinar a verdade desta hipótese.” (BENSON, 2011, p. 98).

Afinal, abandona-se, aqui, de acordo com Benson (2011), a “Suposição Intelectualista”

e, doravante, com respeito a este abandono, Platão “[...] traz consigo um método de lidar com

questões não definicionais como o de saber se a excelência pode ser ensinada, o ‘Método da

Hipótese’, do qual Sócrates fornece agora uma descrição sumária e bem obscura [...]”

(BENSON, 2011, p. 88). Desse modo, é proposta a investigação por meio das hipóteses dos

geômetras, estes, segundo Platão, expõem o seguinte:

Quando alguém lhes pergunta, por exemplo, sobre uma superfície, se é possível esta

superfície aqui ser inscrita como triângulo neste círculo aqui, um geômetra diria:

“Ainda não sei se isso é assim, mas creio ter para essa questão como que uma hipótese

útil, qual seja: se esta superfície for tal que, aplicando-a alguém sobre uma dada linha

69 Mênon, 86 c-d. 70 Há quem diga que Platão fez Sócrates propor esse método sucedâneo de hipóteses em virtude de Mênon se

recusar em procurar a natureza da virtude antes de saber se a virtude pode ou não ser ensinada. (BENSON, Platão,

p. 102-103). 71 RICOEUR, Ser Essência e Substância em Platão e Aristóteles, p. 29.

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

39

do círculo ela fique em falta de uma superfície tal como for aquela que foi aplicada,

parece-me resultar uma certa consequência, e, por outro lado, outra “consequência”,

se é impossível que “a superfície” seja passível disso. Fazendo então uma hipótese,

estou disposto a dizer-te o que resulta a propósito de sua inscrição no círculo: se é

impossível ou não. (2001, p. 69. Grifos no original).72

Em conformidade com o que destacamos, essas hipóteses fundamentam-se no método

analítico da geometria, utilizado pelos gregos. Esse método tem, em seu início, a apresentação

de determinada questão em que, já no princípio, sua resposta nos é apresentada como algo

desconhecido. No entanto, essa questão deve ser embasada em suposições oriundas de algo

conhecido, como, por exemplo, os “axiomas geométricos”.73 Nesse contexto, de forma análoga

aos geômetras, (já que Sócrates e Mênon não sabem nada sobre a virtude74; nem o que é,

tampouco, como ela é), a título de conclusões provisórias concernentes à ensinabilidade da

virtude, serão alvitradas duas hipóteses, a saber: se a virtude for uma ciência, evidentemente ela

poderá ser ensinada e; se a virtude for uma coisa distinta da ciência75, ela, logo, não poderá ser

ensinada.76 Nesse contexto, “[...] se a virtude é suscetível de ser ensinada, necessariamente tem

de consistir num saber” (JAEGER, 2013, p. 718), de modo que, para Platão, nada pode ser

ensinado ao homem, exceto a ciência.

Os interlocutores agora terão de examinar se a virtude é ciência ou algo diferente desta,

visto que - além de ambas as hipóteses - é sustentada também a presunção de que a virtude,

semelhante à ciência - ao conhecimento -, é um bem77. Em outros termos, Sócrates e Mênon

partem do pressuposto de que não há outra coisa considerada boa senão o conhecimento.78

Sendo assim, se houver, de um lado, alguma coisa que seja um bem e, que, no entanto, seja

distinta da ciência, certamente a virtude seja alguma coisa que não a ciência - e, sendo a virtude

algum bem diferente da ciência, aquela certamente não poderá ser ensinada. Todavia, se, por

72 Menon, 87 a-b. Este trecho, segundo estudiosos versados em interpretações filosóficas, caracteriza-se como

“difícil” e “obscuro”. (PLATÃO, Mênon, 1966, p. 94). Entretanto, o que importa é compreendermos quais as

hipóteses serão utilizadas, a fim de saber se a virtude é suscetível de ensinamento ou não. 73 DANCY, Definições e formas: o Mênon entre definições e formas. In.: BENSON, Platão, p. 88. 74 Será que Sócrates não sabia? 75 Quanto à ciência, esta, em Platão, longe de ser conceituada mediante discernimentos subjetivos, tem de ser

sempre definida mediante seu objeto. (RICOEUR, Ser, Essência e Substância em Platão e Aristóteles, p. 19). 76 Não podemos esquecer, aqui, que o ensinar e a reminiscência se referem à mesma coisa, porquanto, para Platão,

o conhecimento - como exemplificado no interrogatório feito ao escravo - nada mais é que recordação do espírito.

(Mênon, 81 c-d; 84 a; 85 c-d; 87 b-c). 77 O Bem, para Platão, é o responsável por conferir verdade às coisas cognoscíveis, permitindo ao ser humano

poder conhecê-las. Em linhas gerais, o Bem “[...] é a fonte de todo ser, no homem e fora do homem.”

(ABBAGNANO, 2007, p. 107). 78 Cf. A prática de Platão da dialética no Mênon, Fedon, e República. In.: BENSON, Platão, p. 98.

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

40

outro lado, não houver nenhum bem que não seja abrangido pela ciência, a virtude será de fato

uma ciência e, com isso, ela poderá ser ensinada.79

Na discussão do Mênon, Platão assevera que todas as coisas consideradas boas são

proveitosas. Quanto aos homens, estes são bons por causa da virtude e, sendo bons, eles, logo,

ser-se-ão proveitos. Então, a partir do que foi admitido, a virtude também é necessariamente

proveitosa. Assim, há aquelas coisas que proporcionam proveito ao homem e, dentre as quais,

são exemplos a saúde, a força, a beleza, bem como a riqueza.80 Contudo, essas mesmas coisas,

às vezes, ao invés de serem proveitosas aos homens, causam-lhes dano, porquanto é sabido que

“[...] nenhum dos bens tão desejados do mundo, e pelos quais a multidão entende coisas como

a saúde, a beleza, a riqueza e o poder, constitui para o Homem um verdadeiro bem, se não está

acompanhado do conhecimento da razão [...]” (JAEGER, 2013, p. 718), saber cuja

especificidade está voltada à compreensão de distinguir os bens verdadeiros dos falsos.

A razão, portanto, digamos que é um saber que tem por função nos “dizer” quais desses

bens devemos escolher. Saber esse, que “[...] assenta no conhecimento inabalável daquelas

ideias e arquétipos primitivos dos supremos valores que a alma descobre dentro de si própria,

quando medita sobre a essência do bom, do justo etc., e tem força bastante para determinar e

orientar a vontade.” (JAEGER, 2013, p. 718). Devemos, enfim, se quisermos encontrar a

resposta sobre o que é a virtude, seguir por esse viés.

Nessa perspectiva, para Platão, há - de maneira semelhante à saúde, à beleza, à riqueza,

ao poder etc. -, relacionadas com a alma, inúmeras qualidades. Podemos citar, como exemplo

para essas qualidades, a temperança, a justiça, a inteligência, a memória etc. Algumas delas,

pelo que notamos, parece que Platão as concebe como algo distinto da ciência.81 Logo, essas

qualidades, também, ora são úteis, ora, nocivas. Por exemplo, a coragem,

SO. [...] se não é uma compreensão, a coragem, mas uma espécie de ousadia cega;

não é o caso que, quando ousa usando a razão isso lhe traz proveito? – MEN. Sim –

SO. E não é assim também com a prudência, e com a facilidade de aprender:

acompanhada de razão, tanto as coisas que são aprendidas quanto as que são

exercitadas são coisas proveitosas, desacompanhadas de razão, nocivas? – MEN.

Absolutamente certo. (PLATÃO, 2001, p. 73)82

79 Mênon, 87 d. 80 Mênon, 87 e-88 a. 81 Mênon, 88 a-b. 82 Mênon, 88 b.

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

41

É, que, de acordo com Platão, qualquer coisa que concirna à alma, estando submetida à

razão, conduzirá o homem à felicidade83. Não obstante, estando a razão ausente, acontecerá o

contrário. Sócrates, a partir dessa demonstração, chega a cogitar, por um instante, que a virtude

– por ser uma qualidade da alma necessariamente útil – seja justamente a razão, uma vez que

as demais qualidades intrínsecas à alma, em si mesmas, não são nem lesivas nem úteis. Elas,

diferente da razão, para se tornarem úteis, têm de ser exercidas com juízo - sem este, as mesmas

tornar-se-ão danosas. Como se vê na obra, “[...] conforme êste raciocínio, a virtude, sendo em

si mesma útil, só pode ser uma espécie de juízo” (PLATÃO, 1966, p. 96).84 Assim, os demais

bens, como, por exemplo, a riqueza, a saúde etc. - de forma semelhante às qualidades

pertencentes à alma, que se tornam úteis quando são submetidas à razão -, tornar-se-ão úteis no

instante mesmo em que são submetidos ao uso correto e, ao serem usados de maneira errônea,

ser-se-ão prejudiciais. Afinal, para Platão, o uso correto é caracterizado por “racional” e, quanto

ao uso errado desses bens, é designado de “irracional”.85

Em linhas gerais, Platão afirma “[...] que no homem tudo depende da alma, e que a

própria alma depende da razão, condição indispensável para que ela seja boa” (PLATÃO, 1966,

P. 97).86 Consequentemente, o útil é justamente o racional. Por esse raciocínio, Platão

temporariamente conclui que, sendo a virtude útil, ela - seja em parte ou no todo - é a razão.

Por outros discursos, para Platão, “[...] dado que o conhecimento é benéfico e que a virtude é

benéfica, ‘virtude, então, como um todo ou em parte, é conhecimento’” (BENSON, 2011, p.

98).87

Mas, ao se admitir isso, tem-se por conclusão que os homens bons não poderão ser

caracterizados enquanto tais por natureza, de modo que, afirma Sócrates:

[...] se os bons se tornassem <bons> por natureza, teríamos, penso, pessoas que

reconheceriam, entre os jovens, aqueles que são bons por natureza, e, tendo<-os>,

essas pessoas, designado, nós os tomaríamos e, tendo-os selado mais bem que o ouro,

mantê-los-íamos sob guarda na acrópole, para que ninguém os corrompesse, mas sim,

ao contrário, <para que> assim que atinjam a idade, se tornem úteis à cidade.

(PLATÃO, 2001, p. 75).88

83 Mênon, 88 c. 84 Mênon, 88 e. 85 Mênon, 88 e. 86 Mênon, 88 e-89 a. Para esta passagem - quiçá em virtude de uma melhor compreensão -, utilizamos a obra da

Edições de Ouro, 1966. 87 Este trecho, no Mênon, é conhecido como “uma instância do método das hipóteses”. Como veremos, esse

método, já que a virtude não se encontra no campo da epistéme, é deixado de lado. 88 Mênon, 89 b.

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

42

Nesse sentido, uma vez que os homens bons infelizmente não o podem ser - assim

considerados - por natureza, eles certamente tornar-se-ão bons pelo ensinamento. Diante dessa

possível conclusão, Mênon, recordando-se da hipótese acordada entre eles, precipita-se,

alegando ser a virtude uma ciência e, portanto, que ela pode ser ensinada.89 É, que, ao ser dito

que a virtude é uma espécie de juízo, essa proposição pareceu ser verdadeira. Sobre esse ponto,

parece que Mênon tem certa razão, uma vez que “[...] se a virtude é natural e tendo em vista

que ‘não é pela natureza que os bons se tornam bons’, podemos indagar, então, se a virtude

advém do estudo, da educação” (PAVIANI, 2013, p. 46). Porém, não é o bastante parecer uma

ciência em somente um instante. Será necessário, de acordo com Platão, para que a virtude seja

uma ciência, que ela pareça sempre com essa ciência.90 Desse modo, se a virtude for de fato

uma ciência, não resta dúvida que ela poderá ser ensinada.

4.3 A busca por professores de virtude entre os homens “bons e honestos” e os sofistas: a

virtude enquanto o administrar bem as suas casas e os Estados

O problema dessa dúvida, sobre a virtude ser ou não uma ciência, encontra-se na questão

de saber se há ou não professores e alunos de virtude, porquanto para que qualquer ciência seja

ensinada, é necessária a existência de professores, bem como de alunos.91 Como podemos notar,

há, em uma mesma raiz, três coisas interligadas, a saber, o professor, o aluno e o conhecimento

que, de acordo com Ricoeur (2014, p. 31-32), são “[...] o ensinador, o ensinado e o ensinável

[...]”. Dessarte, se para determinada coisa não houver quem ensine nem quem aprenda, essa

coisa não será, portanto, ensinável. Assim, para que a virtude seja considerada uma ciência,

deverá haver professores da mesma.92 Conforme Benson (2011, p. 99), o que está sendo

proposto e discutido aqui é “[...] um método que consiste em dois processos distintos: o

processo de identificar hipóteses e obter suas consequências e o processo de verificar, confirmar

ou determinar de outro modo a verdade das hipóteses”. Observamos que o posicionamento de

89 Mênon, 89 c. 90 Mênon, 89 c. 91 Mênon, 89 d. 92 Esta situação é um pouco complicada, uma vez que Sócrates procurou, sobretudo entre os mais ilustres, alguém

que ensinasse a virtude e, no entanto, nunca o encontrou.

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

43

Sócrates, no Mênon - embora se ele dedique, de forma efêmera, ao primeiro processo -, está

voltado ao segundo processo.

Nesse panorama, surge a figura de Ânito, a cuja mesma Sócrates se dirige e recorre, a

fim de discutir e saber se há ou não professores de virtude. O diálogo, aqui, direciona-se à

questão da “educação certa” e, com o intuito em querer resolver o problema concernente à

virtude, Sócrates o expõe ao seu novo interlocutor.93 É que se Mênon quisesse ser médico,

sapateiro ou um flautista, por exemplo, o mesmo seria encaminhado àquele professor experiente

em uma dessas ciências. Contudo, o que se tem em vista é que Mênon “[...] deseja essa

sabedoria e virtude por meio da qual os homens administram bem suas casas e suas cidades,

bem como cuidam de seus pais, e sabem receber concidadãos e estrangeiros e deles despedir-

se de maneira digna de um homem de bem.” (PLATÃO, 2001, p. 81).94

Diante desse argumento, é importante enfatizarmos que, durante o período em que

Sócrates e Platão viveram, a virtude para os gregos se resumia, grosso modo, na capacidade que

o indivíduo possuía em bem administrar a casa e os Estados95. Esse indivíduo, de acordo com

Paviani (2013, p. 44), “[...] é um composto de alma e de corpo, porém nele se sobressai a alma,

pois ela é a sede da inteligência e operadora das ações e dos valores morais.” Quiçá seja daí a

importância dada pelos atenienses à inteligência voltada aos seus interesses políticos, sendo o

problema da virtude, no Mênon, investigado, a partir desse contexto, “[...] enquanto saber e

enquanto aprendizagem.” (2013, p. 44)

Voltando à obra, uma vez que Mênon tem interesse em possuir essa virtude, Sócrates

provoca Ânito, perguntando se eles não deverão encaminhá-lo àqueles que têm a pretensão em

ser professores de virtude, responsáveis por “instruir” os gregos à virtude e, para tanto, exigirem

um salário. Sócrates, querendo problematizar mais ainda a questão de se a virtude pode ou não

ser ensinada, está se referindo aos sofistas. Diante do aparecimento dessas figuras, é preciso

que tenhamos consciência da dimensão histórica e social abrangidas no Mênon. Nesse contexto,

temos de ter a noção que Platão se encontra em um período cujos sofistas se intitulam como

“mestres da virtude”. O problema grego acerca da virtude, isto é, sobre a possibilidade de seu

93 Contudo, como podemos observar, é a partir da primeira pergunta do Mênon, que esta obra tem, desde o seu

princípio, o objetivo voltado ao problema da educação certa, isto é, à maneira de como a virtude surge homem.

(JAEGER, Paideia: a formação do homem grego, p. 720). 94 Mênon, 91 a-b. 95 A boa administração da casa, nessa época, chamava-se economia. Quanto à boa administração dos estados, os

gregos a conceituavam de política, pretensão visada mormente pelo ensinamento sofista. (PLATÃO, Mênon, 1966,

p. 99).

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

44

ensinamento, surge, portanto, a partir desse contexto histórico e social, bem como em razão do

vínculo existente entre a mesma (a virtude), o saber e a opinião.96 Ciente disso, Parece que é

em razão dessa intitulação sofística que as perguntas pela natureza e pela transmissão da virtude

têm seu surgimento.

Ânito, fanático “político”, demonstra, porém, ter um imensurável ódio pelos sofistas

que, para ele, são considerados “agitadores de ideias.”97 Além do mais, os sofistas nada mais

fazem que enganar e encher mormente os jovens de desonra. Os mesmos, para Ânito, são

considerados uns loucos, sendo mais loucos ainda os responsáveis por enviar os jovens aos

sofistas, bem como os Estados, por permitirem a entrada dos sofistas em suas jurisdições – ao

contrário disso, Ânito afirma que os sofistas - sejam eles concidadãos ou estrangeiros -

deveriam ser expulsos dos Estados.98

Tendo Ânito possivelmente razão ao dizer que os sofistas não são, em hipótese alguma,

professores de virtude, resta afinal saber a quem Mênon deverá ser enviado, para que ele possa

aprender a virtude – bem cuja qualidade é responsável em fazer com que os homens

administrem com excelência tanto as casas quanto os Estados. Nesse sentido, segundo Ânito,

para que Mênon aprenda a virtude, basta que o mesmo encontre “[...] quem quer que seja dos

atenienses, entre os que são homens de bem – não há nenhum que não o fará melhor do que os

sofistas o fariam, contanto que ele esteja disposto a aceitar o que eles dizem.” (PLATÃO, 2001,

p. 85).99 Resta saber, porém, de que forma esses atenienses (homens de bem) se tornaram bons

e honestos. Por outros termos, esses que são considerados bons e honestos, são estimados

enquanto tais por si mesmos, sem terem aprendido por meio de ninguém e, embora eles tenham

se tornado bons e honestos por si mesmos, sem nenhum ensinamento, será que serão capazes,

no entanto, de ensinar aos outros a virtude, coisa que eles próprios não aprenderam?

Em vista disso, Sócrates até admite que esses homens são possuidores de virtude,

entretanto, “[...] se esta consistisse num saber, teria por força de ter manifestado como força

educadora” (JAERGER, 2013, p. 719), isto é, poderia ser transmitida por meio do ensino.

96 PAVIANI, As origens da ética em Platão, p. 44. 97 Apesar das controvérsias, Ânito também considerava Sócrates um sofista. Assim, aquele também possuía um

imenso ódio por este. Pelo que pode ser compreendido, Ânito foi um dos responsáveis pela calúnia que levou

Sócrates a ser julgado e condenado a tomar cicuta (substância venenosa utilizada na Grécia Antiga para executar

condenados à morte). (Cf. Nota sobre a composição dramática do diálogo. In.: PLATÃO, Mênon, 2001, p. 16;

PLATÃO, Mênon, 1966, p. 101). 98 Mênon, 92 a-b. 99 Menon, 92 e.

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

45

Todavia, Ânito acredita que esses homens tenham aprendido a virtude através de seus

precursores, os também considerados homens de bem - é que para ele houve homens bons em

Atenas. Mas o que interessa não é saber se há ou se houve homens bons em matéria de política,

o que interessa para a discussão exposta por Platão é saber se esses homens, além de serem

bons no que diz respeito à política - ou seja, à virtude -, são capazes de ensiná-la.100 Eles, sendo

uma vez virtuosos, será que também foram considerados excelentes mestres de virtude? Será

que a virtude é coisa que se ensina?

Afinal, Sócrates diz que o que está sendo examinado:

[...] não se aqui há ou não homens bons, nem se houve no passado, mas sim se a

virtude é coisa que se ensina <é o que> há muito examinamos. Ao examinarmos isso,

estamos examinando o seguinte: será que os homens bons, tanto entre os <homens>

de agora quanto entre os <seus> predecessores, souberam transmitir também a outrem

essa virtude na qual eram bons, ou isso não pode ser transmitido de um para outro

homem, nem recebido por um outro? (PLATÃO, 2001, p. 87).101

A partir dessa inquirição, são tomados como modelo alguns homens tidos como bons –

como, por exemplo, Temístocles, Péricles, Tucídides etc. – Estes, embora fossem homens

virtuosos, bem-sucedidos, não souberam transmitir a virtude aos seus filhos, aos seus

descendentes que, em se tratando de ciência - seja da arte da equitação, da música, da ginástica,

isto é, em tudo aquilo que esteja relacionado à arte -, sabiam por excelência. Não obstante todos

esses aprendizados, esses filhos dos homens bons, não souberam sequer ser melhores que o

comum dos outros homens. Logo, esses homens bem-sucedidos, uma vez que não foram

capazes de transmitir a virtude, “[...] não estão no plano da ciência, não foram capazes de formar

discípulos, não foram mestres, o que significa que não há ciência política.” (RICOEUR, 2014,

p. 31).

Destarte, assim como não convém enviar Mênon aos sofistas - a fim de que seja ensinada

para ele a virtude -, não convém, tampouco, enviá-lo a esses homens considerados honestos e

bons. Pois, se esses pudessem ser professores de virtude, obviamente que eles a ensinariam

primeiramente aos seus filhos.102 Ao contrário, “[...] Os filhos de grandes homens, que

certamente usufruíram toda a educação imaginável, não raro, são grandes decepções.”

100 Mênon, 93 b. 101 Mênon, 93 a-b. 102 Mênon, 93 c-94 a-e.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

46

(GADAMER, 2009, p. 52). Portanto, os homens bons e honestos, de acordo com Platão, não

são, e jamais foram, professores de virtude.

Em se tratando dos sofistas, parece que estes, de forma semelhante aos homens bons e

honestos, não são, de forma alguma, mestres de virtude. Quanto a Mênon, que no início do

diálogo afirmava categoricamente que os sofistas eram professores de virtude, agora, porém,

em aporia, afirma, semelhante aos políticos, não ter condições em responder com segurança

sobre a probabilidade de a virtude ser ensinada – encontrando-se também em contradição; ora

ele pensa que a virtude pode ser ensinada, ora, que não. Enfim, “[...] a experiência parece

demonstrar que não existem professores de virtude, e que até hoje nem os homens mais

importantes do passado e do presente de Atenas foram capazes de transmitir as suas virtudes e

seu caráter.” (JAEGER, 2013, p. 718).

Nesse contexto, já que nem os sofistas nem os homens que são bons por si mesmos

podem ser mestres de virtude, certamente, para Platão, não haverá outros que a ensinem.103

Com efeito, visto que não há mestres de virtude em lugar nenhum, não haverá, tampouco, seus

alunos. Portanto, “[...] a nova paideia não é suscetível de ‘ensino’, tal como os sofistas o

concebiam, e desse ponto de vista Sócrates tinha razão ao negar a possibilidade de educar os

homens pelo simples fato de instruí-los.” (JAEGER, 2013, p. 719).104 Ademais, o que ficou

acordado, de forma hipotética, foi que, se não houvesse nem professores nem alunos de virtude,

esta não seria coisa adstrita de ensinamento. Se eles analisaram esse assunto corretamente, será

que de fato há homens bons? E, se os há, de qual maneira eles são formados?

4.4 É a virtude ciência ou uma opinião certa?

Anteriormente, Platão havia afirmado em sua pesquisa que somente a ciência seria capaz

de formar homens bons. Entretanto, parece que não somente a ciência - no que diz respeito às

ações e aos discursos humanos - guia os homens bem e de forma correta. Esses são considerados

bons, e portanto proveitosos, à medida que são capazes de guiar corretamente os assuntos dos

103 Mênon, 96 b. 104 O termo paideia, correspondente à palavra “cultura”, diz respeito à formação da verdadeira natureza humana

no que tange, sobretudo, à sua melhoria, ao seu refinamento, enfim, ao seu aperfeiçoamento. O homem, para os

gregos, se realizaria enquanto tal somente em comunidade e mediante o “conhecimento de si mesmo e do mundo”.

Desse modo, o homem, para alcançar a sua forma genuína e perfeita, era educado através das “boas artes” (poesia,

eloquência, filosofia etc.). (ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia, p.225).

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

47

cidadãos. Sendo assim, Platão afirma que não é somente através da ciência que os homens se

tornam bons, é, entretanto, também por meio da opinião correta.

Através do personagem Sócrates, o que Platão quer nos passar, é:

SO. Se alguém que sabe o caminho para Larissa, ou para onde quer que queiras, para

lá partisse e guiasse outros, não os estaria guiando bem e corretamente?

MEN. Perfeitamente.

SO. Mas se alguém, tendo uma opinião correta sobre qual é o caminho, mas jamais

tendo percorrido nem tendo dele a ciência, <partisse e guiasse outros>, este também

não guiará corretamente?

MEN. Perfeitamente. (PLATÃO, 2001, p. 99).105

Por conseguinte, Platão pensa que esse homem, que guia somente por meio de

conjecturas, à medida que tiver a correta opinião sobre as coisas, embora não as

compreendendo, não será, em hipótese alguma, mais inferior que aquele outro, possuidor da

ciência, do conhecimento.106 Portanto, “[...] a opinião verdadeira, em relação à correção da

ação, não é em nada um guia inferior à compreensão.” (PLATÃO, 2001, p. 99).107

Diante desse contexto, antes de darmos continuidade a essa passagem do Mênon, é

necessário que abramos um parêntese, a fim de melhor compreendermos essa questão levantada

por Platão, isto é, o problema da opinião certa. Como vimos, Platão aborda, também nesta obra,

o tema da reminiscência que, em linhas gerais, tem como função “[...] elucidar de modo mítico

esse estado da alma que é visitada pelo pressentimento do verdadeiro”. (RICOEUR, 2014, p.

29. Grifo do autor). É esse estado entusiástico, ora existente na alma, o momento em que o

indivíduo se depara com o conhecimento verdadeiro, muito embora esse indivíduo ainda não

se disponibilize de meios que possam explicá-lo.

Enfim, em Platão, a opinião certa vai além do mero conceito moderno do termo

“hipótese”, cujo mesmo é passível de verificação. Reiterando, a hipótese platônica tem sua

concentração no âmbito do irracional e do místico. Desse modo, a questão sobre a opinião

verdadeira em Platão diz respeito “[...] ao começo do advento do verdadeiro numa alma, ao

problema do ‘crescimento’ da verdade, que começa e termina subjetivamente, embora em si

105 Mênon, 97 a-b. 106 Mênon, 97 b. 107 Mênon, 97 b. (o termo “compreensão” deve ser entendido como ciência, conhecimento).

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

48

mesma não comece nem cresça.” (RICOEUR, 2014, p. 29). Porquanto a reminiscência implica,

na alma, o aparecimento da verdade. Dessa forma, a opinião verdadeira vai além da mera

ambiguidade psicológica e intermediária do ser e do não-ser; ela é, de acordo com Ricoeur,

(2014, p. 30), “[...] o poder de reconhecer o verdadeiro antes de prová-lo.” Portanto, a opinião

verdadeira - elucidada, por exemplo, no diálogo ocorrido entre Sócrates e o escravo – tem de

estar necessariamente em conexão com um diálogo, ela tem como função participar do processo

de inquirição, cuja capacidade é responder a essas indagações. Mas, afinal, por que as pessoas

valorizam mais a ciência que a opinião certa? E qual é a diferença entre ambas?

Para essas indagações, Platão ilustra como exemplo as estátuas de Dédalo108. Estas nos

passam a impressão que, se acaso não estiverem encadeadas, acabam escapulindo e,

posteriormente, fugindo. Assim, não valerá muito possuir uma obra desse escultor sem ela estar

encadeada, visto que, semelhante a um escravo fugitivo, a mesma não permanecerá em seu

devido lugar. Ao contrário, estando acorrentada, essa obra terá muito valor, porquanto as obras

artísticas são mui belas. São citadas como exemplo as estátuas de Dédalo, afinal, pelo fato de

elas se assemelharem às opiniões certas, que se caracterizam enquanto “[...] o estado instável e

fugidio da alma, um Einfall, uma impressão fugitiva da verdade.” (RICOEUR, 2014, p. 32). As

mesmas, todavia, à medida que permanecem na alma, são consideradas belas, podendo produzir

quaisquer bens.109

De acordo com Reale (2014, p. 162. Grifos do autor), são duas as formas do

conhecimento, a saber, “[...] a mais baixa é a doxa [...], a mais alta é a epistéme [...] ou ciência:

a primeira tem por objeto o sensível, a segunda o suprassensível”. Ele, ademais, afirma haver,

em muitas das vezes certa deficiência no que tange à opinião verdadeira. É, que, embora

determinada opinião seja verdadeira, ela ainda assim permanece no devir da alma humana, uma

vez que é da natureza das opiniões verdadeiras não perdurarem. Elas, não se dispondo em ficar

por muito tempo, acabam fugindo dessa alma, já que não é atribuído às mesmas muito valor.

Porém, no instante que essas opiniões - por meio de um raciocínio de causa110 - são por alguém

encadeadas, elas se transformam em ciência e, desse modo, permanecem estabilizadas, estáveis.

108 De acordo com a mitologia grega, este personagem foi quem arquitetou e construiu as velas do navio, o nível,

bem como o Labirinto de Minos. Suas estátuas designam um novo período da escultura grega, livre dos cânones

das xaônas primitivas. Acredita-se que Sócrates faz menção a essas estátuas pelo fato de as mesmas denotarem

uma atitude marchante, diferente das estátuas primitivas. É por causa das estátuas de Dédalo, por parecerem

animadas, que as demais manifestações artísticas começam a expressar um sentimento de vida. (PLATÃO, Mênon,

1966, p. 108). 109 Mênon, 97 d-e-98 a. 110 Esse raciocínio de causa, ou raciocínio causal, está relacionado ao fato de a opinião verdadeira ser fixada “com

o conhecimento da causa (da Ideia).” (REALE, História da filosofia grega e romana, vol. III: Platão, p. 163).

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

49

No entanto, a opinião verdadeira, vista dessa forma, “deixaria de ser opinião e se tornaria

ciência ou episteme: haveria uma passagem do sensível ao suprassensível.” (Reale, 2014, p.

163)

Mas é isso que Platão designa reminiscência, posto que ficou acordado que essa base

racional é oferecida pela rememoração. Portanto, como quem conjectura, é afirmado que é pelo

fato de se associar às estátuas de Dédalo, que a opinião certa se difere da ciência e, sobre isso,

Platão diz categoricamente que não é conjectura alguma a afirmação de que a opinião correta é

algo que se difere da ciência.111 Em síntese, quando alguém toma a opinião certa como guia, a

mesma - análoga à ciência, e não menos inferior nem menos proveitosa - concretiza o trabalho

em vista de quaisquer ações humanas. Esse alguém também não será menos proveitoso ou

inferior àquele que possui o conhecimento.

Desse modo, sendo qualificado o homem enquanto bom, proveitoso à cidade, o mesmo

não o é somente em razão do conhecimento pois, se de fato há homens bons e proveitosos, estes

não o são apenas por meio da ciência, mas também devido à opinião correta - embora não sejam,

nem a ciência nem a opinião certa, pertencentes aos homens por natureza. Com isso, Não sendo

esses bens pertencentes ao homem por natureza, Platão investiga, pela derradeira vez, no

Mênon, se a virtude é coisa que se ensina. Nesse contexto, a virtude poderia ser ensinada, se ela

fosse uma espécie de ciência e, que, se acaso houvesse mestres de virtude, esta seria ensinável;

do contrário, não. O que se concluiu é que a virtude não é ciência, não podendo, pois, ser

transmitida.

Entretanto, Platão reconhece a virtude enquanto boa. Ele adota também a hipótese de

que aquilo que é útil, e bom, retamente governa os homens. Com efeito, somente essas duas

coisas – a ciência e a opinião certa - conduzem corretamente o homem e, aquilo que acontece

em consequência do acaso, não diz respeito algum ao ser humano. Porém, a virtude, uma vez

que não pode ser ensinada, logo, não é ciência. Gadamer (2009, p. 47-48), em relação à

ensinabilidade da virtude, afirma que isso “[...] deveria ser uma consequência obrigatória do

caráter cognitivo das aretai da mesma forma que são, incontestavelmente, uma consequência

obrigatória do conhecimento-tékhne. Todavia, ela realmente não segue esse caminho.”

Consequentemente, desses dois bons guias a ciência desaparece, ou seja, para Platão, a

ciência é eliminada da política. Sendo assim, Temístocles e todos os outros homens que

111 Mênon, 92 b.

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

50

governaram o Estado, não o administraram bem devido à ciência, tampouco por serem sábios.

Esses homens jamais conseguiram formar outros homens semelhantes a eles, de modo que os

mesmos se fizeram assim não graças à ciência. Portanto:

Se não é graças à ciência, então, resta que é graças a uma feliz opinião? Servindo-se

dela os políticos administram retamente as cidades, não sendo eles em nada diferentes,

em relação ao compreender, dos pronunciadores de oráculos e dos adivinhos

inspirados. Pois também estes, quando os deuses estão neles, falam com verdade, e

mesmo muitas coisas, mas não sabem nada das coisas que dizem. (PLATÃO, 2001,

p. 107).112

Reiterando, os políticos governam bem o Estado em razão de eles possuírem a opinião

certa que, assumindo o seu caráter pragmático, realiza, no campo da ética, sua função. Esta,

distante daquele que acaba por descobrir o conhecimento – como no caso de escravo de Mênon

que conseguiu tal êxito -, jamais poderia “[...] aparecer na análise da matemática, em que a

opinião reta se dilui na ciência pela própria progressão do saber, e sim no plano da moral e da

política, em que a opinião reta vai estabilizar-se, tornar-se um nível da alma ela própria.”

(RICOEUR, 2014, p. 31). Portanto, esses políticos, assim como os profetas e os adivinhos, na

maioria das vezes, dizem a verdade, sem o saber. Desprovidos do saber, esses homens, não

obstante, acabam por realizar excelentes coisas e pronunciam belos discursos, no que são

merecedores de serem chamados de divinos113. E é “com justiça” que os mesmos, para Platão,

embora desprovidos de inteligência, são assim chamados, porquanto executam - seja em ação

ou em discursos -, com êxito, as formidáveis coisas interessadas aos Estados. Semelhantes

àqueles que, com seus prognósticos, pronunciam os oráculos, bem como à inspiração dos

adivinhos etc., esses políticos têm os deuses dentro de si, visto “[...] que a virtude não pode ser

ensinada e, nesse sentido, [...] não é só o saber que nos leva às ações corretas, mas também a

opinião verdadeira.” (PAVIANI, 2013, p. 46).

Dessa maneira, inspirados, esses homens bons e honestos, não sabendo nada em relação

às coisas que eles realizam, fazem-na com demasiado êxito. Sobre esse ponto, afirma Jaeger:

[...] a experiência parece demonstrar que não existem professores de virtude, e que até

hoje nem os homens mais importantes do passado e do presente de Atenas foram

capazes de transmitir aos próprios filhos as suas virtudes e o seu caráter. Sócrates está

disposto a admitir que aqueles homens possuíam a areté, mas, se esta consistisse num

saber, teria por força de se ter manifestado como força educadora. É evidente,

112 Mênon, 99 b-c. 113 Este termo era muito utilizado na Grécia Antiga pelas mulheres e pelos lacedemônios, ao se referirem a alguém

considerado um homem bom e honesto. (Mênon, 99 d).

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

51

portanto, que só se baseava numa “opinião acertada”, comunicada ao Homem por

alguma moíra divina, mas que não o habilitava a explicar aos outros os seus atos por

lhe faltar o “conhecimento da razão” que os determinava. (2013, p. 718-719).

Enfim, Platão conclui que a virtude é atribuída ao homem por meio de uma concessão

divina, tendo em vista que a mesma não advém aos homens por natureza tampouco pelo

ensinamento. Todavia, ele faz uma ressalva, advertindo que, se porventura houvesse, em meio

aos políticos, aquele com capacidade em fazer com que outro homem se transforme em um

político, a virtude, porém, certamente seria passível de ensinamento, e:

[...] se o houvesse, quase que se poderia dizer ser ele entre os vivos tal como disse

Homero ser Tirésias entre os mortos, dizendo sobre ele que é como sábio entre os que

estão no Hades, os outros são como sombras que se agitam. Da mesma maneira,

também aqui, um tal homem, por assim dizer, seria como uma coisa verdadeira ao

lado de sombras, no que se refere à virtude (PLATÃO, 2001, p. 109. Grifos no

original).114

Essa ressalva feita por Sócrates, quase imperceptível, põe fim, de acordo com Jeager

(2013, p. 720), ao difícil problema, uma vez que a mesma “[..] contém na realidade a solução

do dilema, pois, segundo a paradoxal tese de Platão, é Sócrates o único verdadeiro estadista que

torna os homens melhores.” Mas, por ora, conforme o raciocínio estabelecido durante toda a

discussão, a virtude advém àqueles homens que a possuem por meio de uma concessão divina.

Contudo, a fim de querer saber se de fato é desse modo que a virtude é concedida aos homens

bons e honestos, será necessário, antes disso, isto é, antes de procurar saber qual é determinada

qualidade da virtude, que seja analisado primeiro o que é a “virtude em si e por si mesma.”115

Sobre isto, entendemos que Platão deva estar se referindo à “objetividade estável” da

virtude, isto é, à sua perseidade e imutabilidade. Em outras palavras, falar sobre o em si e por

si da virtude, é dizer que a mesma tem “[...] uma realidade que não é arrastada no devir e que

não é relativa ao sujeito, uma realidade que não é possuída pela perene mudança e não é

manipulável segundo o capricho do sujeito, mas implica estrutural firmeza e estabilidade”.

(REALE, 2004, p. 136. Grifos do autor). Percebemos que, se não fosse essa estabilidade, o

conhecimento humano, bem como as suas avaliações – sobretudo morais – não possuiriam

significado algum. Ademais, a linguagem e o juízo humanos, se não fosse a estabilidade das

coisas, não seriam suscetíveis de nenhum sentido. Afinal, de acordo com o que segue em Reale

114 Mênon, 100 a-b. 115 Mênon, 100 b.

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

52

(2004, p. 136. Grifos do autor), “[...] a imutabilidade e o em si e por si das Ideias exprimem a

sua objetividade e o seu caráter absoluto.”

Paviani (2013, p. 46) afirma que o Mênon, ao ser finalizado mediante essas questões, é

um tipo de diálogo cuja conclusão ainda nos proporciona dúvidas sobre o que é a virtude para

Platão. Afinal, como percebemos, o filósofo ateniense tem preferência em findar essa obra

baseando-se nas conclusões genuínas de seu mestre, ou seja, ele “[...] prefere acabar o diálogo

com uma aporia autenticamente socrática”. (JARGER, 2013, p. 718). Contudo, não podemos

nos esquecer do legado que o Mênon nos deixou. Por meio dele, Platão nos proporciona refletir

a respeito de um conceito que nunca nos fora apresentado antes. Esse “novo conceito de saber”,

tendo como principal recurso os exemplos matemáticos, proporciona-nos ao menos vislumbrar

um novo prisma em relação ao conhecimento, cuja especificidade é não ser passível de

ensinamento. Isto é, não é através de outra pessoa, que determinado indivíduo adquire

conhecimento, este, ao contrário, tem seu germe no cerne da alma humana. Sendo assim, a fim

de adquirir o verdadeiro conhecimento, basta que esse indivíduo perscrute-o norteando-se

corretamente pela sua consciência.116

116 JAEGER, Paideia: a formação do homem grego, p. 719.

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

53

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho empreendemos uma análise sobre a natureza da virtude no Mênon de

Platão. Para tanto, tivemos também de nos aprofundar em uma nova definição de conhecimento;

trata-se da teoria da reminiscência que, de acordo com o filósofo ateniense, é o fundamento do

conhecimento, que está presente - desde sempre - na alma humana. Ademais, tendo em vista

que nessa obra citada é levantado o problema da possível ensinabilidade da virtude, esse estudo

também nos propiciou uma investigação sobre essa putativa qualidade desse bem. Dessarte,

essas averiguações puderam ser compreendidas a partir de três momentos.

O primeiro, que diz respeito ao Capítulo I, enfatizou a importância da aporia para a

progressão do diálogo platônico, isto é, segundo Platão, somente mediante essa aporia, seria

possível a continuidade ao diálogo exposto no Mênon. Este, em seu início, tem, dentre outras

inquirições feitas por Mênon, também a indagação de saber se a virtude é passível ou não de

ensinamento. No entanto, Platão expôs, por meio do personagem Sócrates que, antes de saber

sobre a ensinabilidade da virtude, seria preciso saber qual a natureza da mesma. Sendo assim,

é-nos apresentada a pergunta “O que é a virtude?”, para, a partir de seu conhecimento, sabermos

sobre a sua possível ensinabilidade.

Mênon, diante dessa perquirição, acredita ter certo conhecimento quanto à natureza da

virtude. Então, por três vezes, ele nos mostra, em sua versatilidade, distintas respostas sobre

sua compreensão no que tange à definição de virtude. Entretanto, como é sabido, Sócrates o

refuta em todos esses momentos em que ele se atreve em responder à pergunta sobre a virtude.

Embora sejam dadas essas três respostas, somente a partir da terceira nos é mostrado o porquê

das refutações feitas por Sócrates. Este, em seu método, faz com que o discípulo de Górgias

assuma-se como vencido – o que não é o bastante. Além disso, Mênon acaba se encontrando

em plena aporia, convencendo-se que, apesar dos “belos” e inúmeros discursos sobre a virtude,

nada sabe sobre a natureza desse bem.

O diálogo platônico nos mostra que, diante do método utilizado, em que são envolvidas

perguntas e respostas, aquele que aparenta ser conhecedor de determinada coisa, afinal, será

racionalmente refutado. Parece que esse método, de forma intencional, tem um cunho

teleológico, cujo objetivo último é justamente fazer com que esse aparente conhecedor caia em

aporia. Esta, pelo que percebemos, é de fundamental importância, de modo que proporciona a

continuidade da investigação sobre a virtude.

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

54

Isso nos serviu exatamente como pressuposto para avançarmos ao segundo momento,

que se trata do Capítulo II, cujos principais assuntos abordados foram o recurso às doutrinas

mítica e dialética. Esta se refere à solução de um problema matemático, em que fica

comprovado - por meio das indagações feitas por Sócrates ao escravo de Mênon - que o

indivíduo traz em si o conhecimento que, existente na alma humana, é-nos apresentado

enquanto um exercício de rememoração, cujo recurso à doutrina mítica pode nos demonstrar.

Aqui, apreendemos que estávamos diante do limite da razão que, não podendo ultrapassar esse

extremo, toma como apelação o mito, para argumentar sobre aquilo que o raciocínio não é capaz

de explicar. Nesse mito, fica “comprovada” a imortalidade da alma, visto que é em razão dessa

imortalidade que a reminiscência do conhecimento é possível.

Embora tenha sido apresentada toda essa brilhante tese, não podemos esquecer que

Platão dá início ao seu diálogo através de algumas perguntas feitas por Mênon. Dentre essas

indagações, temos uma que praticamente transcorre toda a obra, trata-se da questão da

ensinabilidade da virtude. O Capítulo III, por seu turno, transcorreu sobretudo em meio a esse

problema. Por meio de hipóteses, foi investigada no Mênon a possibilidade de a virtude ser

ensinada. Todavia, ensinabilidade diz respeito a uma qualidade da virtude. Desse modo, o

terceiro capítulo tratou, também, da natureza da virtude.

Quanto à sua ensinabilidade ou não, as hipóteses apresentadas foram as seguintes: a

virtude poderia ser ensinada se ela fosse uma ciência e; se acaso a virtude fosse outra coisa

diferente da ciência, a mesma não poderia ser ensinada. Para Platão, tudo que é suscetível de

ensinamento pertence à ciência, que, por sua vez, é boa. A virtude, de acordo com o pensamento

platônico, também é boa. É em razão disso que chega a ser cogitada a possibilidade de a virtude

ser ciência. Não obstante isso, embora a virtude seja boa, ela não é ciência. Isso fica

comprovado ao Sócrates e Mênon acordarem que, para que a virtude seja conhecimento, deverá

haver professores da mesma.

Para a investigação sobre a possibilidade de existir professores de virtude, Sócrates trava

um diálogo com Ânito. Aquele fez uma provocação, perguntando a este se Mênon deveria ser

enviado aos sofistas, de modo que seu interesse é ser mestre de virtude. Ânito, todavia, alega

que basta Mênon ser enviado àqueles homens de bem - bons e honestos -, responsáveis pela

boa administração das casas, bem como dos Estados. Em suma, pudemos perceber que nem os

homens de bem nem os sofistas jamais foram professores de virtude. Os primeiros, embora

possuíssem a virtude, não haviam-na adquirido mediante ensinamento, bem como não tinham

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

55

o saber, o conhecimento. Quanto aos sofistas, como Ânito bem resume, nada mais fazem que

enganar as pessoas e, sobretudo, proporcionar a desonra aos jovens.

Já que não há professores de virtude, a mesma não pode pertencer ao campo da ciência.

Doravante isso, uma vez que a virtude não pode ser definida enquanto conhecimento, a mesma

nos é apresentada como “opinião certa”. Esta, pelo que compreendemos, em nada é inferior à

ciência, visto que a opinião verdadeira também conduz corretamente o homem. Há, entretanto,

uma diferença entre ambas e, para demonstrar essa diferença, Platão recorre às estátuas de

Dédalo. Essas estátuas nos passam a impressão de estarem em movimento, de modo que, se não

forem acorrentadas, as mesmas, assemelhando-se a um “escravo fujão”, escapolem e fogem.

As opiniões certas, de maneira análoga a essas estátuas, se diferem da ciência em virtude

disso. Como mostrado no diálogo entre Sócrates e o escravo, o que é adquirido por este pode

ser encadeado e, com isso, transformado em conhecimento. É em razão dessa apreensão, que o

cálculo, feito pelo escravo, pode ser elucidado nos conhecimentos matemáticos. Mas parece

que o mesmo não pode acontecer com a virtude. Esta, pelo que ficou demonstrado, parece

pertencer mais ao campo da moral que ao campo da epistéme. Isso faz com que muitos

interpretem que no Mênon contenha, em seu início e em seu fim, uma aporia sobre a definição

de virtude. Desse modo, parece que nos é passada aqui a ideia de que a opinião verdadeira não

perdura em um ponto fixo da alma humana e, semelhante ao escravo fujão, tende a transitar,

feito um fugitivo, no devir dessa alma.

Mas há aqui um paradoxo e, já que a definição virtude, enquanto opinião verdadeira,

transita nesse devir da alma humana, há quem diga, em suas controvérsias, que essa opinião,

embora pertencente ao campo da moral, uma vez transitando em algum ponto da alma, pode,

semelhante aos conhecimentos matemáticos, ser “capturada”, sendo, portanto, passível de

ensinamento, cujo título de mestre é atribuído a Sócrates.

Afinal, podendo a virtude em si e por si ser ensinada ou não, a análise da mesma nos

demonstrou que o conhecimento em si, de acordo com Platão, não é passível de ensinamento,

ou seja, não conhecemos as coisas mediante uma ação externa, mas antes as reconhecemos

porquanto o conhecimento já existe, desde sempre, em nossa alma. Não é somente uma nova

teoria do conhecimento, que o Mênon de Platão nos apresenta, mas também nos é apresentada,

como afirma Jaeger (2013, p. 722), “[...] a mais perfeita visão [...] do cosmos e das forças

humanas e diamônicas”, cuja ocupação do saber encontra-se em “[...] um lugar central, porque

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

56

o conhecimento do ‘sentido’ é a força criadora que tudo ordena. Ele é, para Platão, o dedo que

aponta para o mundo do divino.”

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

57

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PLATÃO. Mênon; texto estabelecido e anotado por Jhon Burnet. Trad. Maura Iglésias. Rio

de Janeiro, RJ: Editora PUC-Rio; Loyola, 2001.

________. Mênon, Banquete e Fedro. In.: Diálogos. Trad. Jorge Paleikat. Rio de Janeiro, RJ:

Edições de Ouro, 1966.

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Afredo Bossi, Ivone Castilho

Benedetti. 5. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2007.

ANNAS, Julia. Platão. Trad. Marcio de Paula S. Hack. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.

BENSON, Hugh, H. Platão. Trad. Marco Antonio de Ávila Zingano. Porto Alegre: Artmed,

2011.

BRISSON, Luc. Leituras de Platão. Trad. Sonia Maria Maciel. Porto Alegre, RS:

EDIPUCRS, 2003.

BRISSON, Luc; PRADEAU, Jean-François. Vocabulário de Platão. Trad. Claudia Berliner.

São Paulo, SP: Martins Fontes, 2010.

GADAMER, Hans-Georg. A Ideia do Bem Entre Platão e Aristóteles. Trad. Tito Lívio

Cruz Romão. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2009.

JEAGER, Werner. Paideia: A Formação do Homem Grego. Trad. Artur M. Parreira. 6. ed.

São Paulo, SP: Martins Fontes, 2013.

PAVIANI, Jayme. As Origens da Ética em Platão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

PRADEAU, Jean-François. História da Filosofia. Trad. James Bastos Arêas, Noéli Correia

de Melo Sobrinho. 2. ed. Petrópolis, RJ; Vozes; Rio de Janeiro, RJ: PUC-Rio, 2014.

REALE, Giovanni. História da filosofia grega e romana, vol. III: Platão. Trad. Henrique

Cláudio de Lima Vaz, Marcelo Perine. 2. ed. São Paulo, SP: Edições Loyola, 2014.

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

58

REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão: releitura da metafísica dos

grandes diálogos à luz das “Doutrinas não-escritas”. Trad. Marcelo Perine. 2. ed. São Paulo,

SP: Edições Loyola.

RICOEUR, Paul. Ser Essência e Substância em Platão e Aristóteles. Trad. Rosemary

Costhek Abilio. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2014.

ROGUE, Christophe. Compreender Platão. Trad. Jaime A. Clasen. 6. ed. Petrópolis, RJ:

Vozes, 2011.

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA …...mobilizado por Mênon, Sócrates apela a dois recursos, a saber, à doutrina mística e à dialética. Envolto ao primeiro recurso,

59