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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Iluminismo em Portugal : uma análise da obra de Verney Monografia Aluno: Eduardo Teixeira de Carvalho Jr Curso de História Orientador: Renato Lopes Leite Curitiba 2003

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

Iluminismo em Portugal : uma análise da obra de Verney

Monografia Aluno: Eduardo Teixeira de Carvalho Jr

Curso de História Orientador: Renato Lopes Leite

Curitiba 2003

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Autor: Eduardo Teixeira de Carvalho Jr. Título: Iluminismo em Portugal: uma análise da obra de Verney Departamento de História da Universidade Federal do Paraná Orientador: Renato Lopes Leite Curitiba 2003

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Iluminismo em Portugal: uma análise da obra de Verney

Introdução

Primeira parte: Sob influência das Luzes

CAPÍTULO - I : O PENSAMENTO MODERNO (9-14)

1) Iluminismo e historiografia

2) Iluminismo na Europa

CAPÍTULO - II : A CONSTRUÇÃO DO RACIONALISMO (15-22)

1) Fé e Razão

2) Razão como representação

Segunda Parte: O esclarecimento lusitano

CAPÍTULO - I : AS LUZES TAMBÉM BRILHAM EM PORTUGAL? (23-27)

1) Portugal e o Iluminismo

2) Verney: português ou cosmopolita?

CAPÍTULO - II : PARADOXO LUSO-ITALIANO (28-32)

1) A consciência italiana

2) Ambiente intelectual português

CAPÍTULO - III : SISTEMA VERNEYANO (33-43)

1) Verdadeiro Método de Estudar

2) Reflexões Apologéticas

Conclusão

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ABSTRACT:

A partir do século XV, inicia-se um processo de reformulação do pensamento em toda a Europa, culminando

com o movimento identificado como Iluminismo, no século XVIII, o qual levará a humanidade ao que os

historiadores chamam de modernidade. No entanto o recebimento destas idéias ocorreu de forma distinta de

acordo com a especificidade de cada região da Europa. Portugal e Espanha ficaram de certa forma à margem

deste debate em função de sua forte identidade com a Igreja Católica. Porém, pesquisas recentes sobre o

iluminismo italiano tem demostrado que não podemos associar o peso da Igreja com censura intelectual, pois

em Roma, seu centro de poder, houve uma forte penetração das idéias modernas, muito superior ao caso

Ibérico. Em Portugal, o período que antecede a reforma da Universidade de Coimbra em 1772, houve uma

série de debates, os quais acreditamos serem participantes de um Iluminismo lusitano. Tal movimento teve

como debatedores alguns teólogos e filósofos portugueses, destacando-se Luís António Verney e sua obra o

Verdadeiro Método de Estudar de 1746. Na obra de Verney, verifica-se influência de intelectuais de renome

como Descartes, Locke e Newton, autores que fazem parte da geração de pensadores modernos da Europa.

Verney será muito criticado, considerado até mesmo um traidor. Dentre seus críticos destaca-se o Padre José

de Araújo, cuja obra Reflexões Apologéticas, constatamos uma série de aspectos que constituíam o

preconceito lusitano em relação aos pensadores estrangeiros

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Introdução

A partir do século XV, inicia-se um processo de reformulação do pensamento em

toda a Europa, culminando com o movimento identificado como Iluminismo, no século

XVIII, o qual levará a humanidade ao que os historiadores chamam de modernidade.

Na Idade Média, a autoridade epistemológica era a palavra de Deus tutelada pela

Igreja. Toda a natureza era criação de Deus. Portanto, a lei divina, através das escrituras,

era capaz de restituir ao homem o verdadeiro conhecimento de si e sobre as coisas. Através

de um processo histórico complexo, houve uma mudança desta ênfase passando a ver Deus

como uma expressão da natureza.1 Esta transformação abriu caminho para um novo olhar

sobre a natureza, passando a fazer uso da observação e de instrumentos criados para este

fim. Isto permitiu conclusões inéditas, como o sistema heliocêntrico de Copérnico. No

entanto, estas idéias estavam em desacordo com os pressupostos de uma visão aristotélica

do mundo. Este novo posicionamento, se tornou uma ameaça constante à autoridade da

Igreja. Mesmo assim havia uma certa liberdade que possibilitou a proliferação e difusão

desta nova forma de conhecimento.

O novo movimento se consolidaria com o estabelecimento de determinados

procedimentos, que hoje são identificados como métodos. Além do uso de instrumentos

para a observação, se fazia necessário o uso da linguagem matemática para o

acompanhamento dos resultados. Muitos autores contribuíram para a consolidação desta

nova perspectiva, porém merecem destaque as obras de Descartes, Bacon, Locke e

principalmente Newton. Newton foi o responsável por uma síntese que se tornaria uma

matriz epistemológica, sendo só mais tarde superada com o relativismo de Einstein no

século XX.

A grande multiplicidade de temas ampliou o horizonte de idéias sobre o mundo, os

homens e suas relações. Embora aparentemente dispersiva, esta multiplicidade possui um

elemento comum: a razão.2 Apesar disso, nem todas sociedades assimilaram esta idéia de

forma homogênea, algumas ofereceram grande resistência em função de sua especificidade

1 HAWTHORN, Geofrey. Iluminismo e Desespero: uma história da Sociologia. Rio de Janeiro : Paz

e terra, 1982, p.35. 2CASSIRER, Ernst. Filosofia de la Ilustracion. México : Fondo de Cultura Economica, 1963, p.21.

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cultural e política. Portugal e Espanha pareciam estar isolados pelo muro dos Pirineus e

criaram um sentimento de aversão às idéias dos chamados modernos.

Em Portugal, a identidade cristã católica prevalece frente a recusa dos judeus,

mouros, protestantes e hereges. Português e católico, eram identidades inseparáveis. Os

sentimentos de fidelidade à Igreja Católica dificultaram a condução de uma “política

nacional”, pois, quando necessitava-se hostilizar os poderes do papa, ou estabelecer

alianças com os hereges – os holandeses, por exemplo – acabava criando uma dificuldade

aos reis católicos na articulação do poder.3 Na formação do Estado português, pelo ponto de

vista moral, prevalece a primazia da ética sobre a conveniência e a utilidade, compondo o

traço mais fundamental: um absolutismo providencialista.4

O corporativismo é um conceito utilizado para definir o perfil desta sociedade, que

reflete a forte reminiscência de alguns elementos medievais, como o estatuto jurídico dos

ofícios concebidos pela concepção patrimonial feudal, a qual era baseada nos princípios da

fidelidade e do benefício. Os novos paradigmas de governo promovidos pelo pensamento

individualista e contratualista, provindo do centro e do norte da Europa, só foram ter

influência em Portugal, no final do século XVIII e de uma forma indireta. A grande

problemática portuguesa era a oposição de uma ordem sócio-política natural, caracterizada

pelo corporativismo político e a idéia de uma ordem estabelecida pela fundamentação dos

vínculos sociais na vontade.

A influência da Igreja Católica impediu, em parte, o recebimento destas novas

idéias, em que pese a singularidade de cada Estado. Como explicar, porém, que na Itália,

centro do catolicismo europeu, o newtonianismo teria tido tanta repercussão? Talvez devido

a presença de Homens como o jesuíta italiano Boscovich, que pertencia a Companhia de

Jesus e a corte papal. Debateu a “hipothesis terrae motae”, onde a tese copernicana ainda

era negada, e a explicação correta das marés baseada na gravitação recíproca terra-lua.

Publicou “De Lumine” (1748) onde discorre sobre a natureza da luz. Seus escritos possuem

tal originalidade que já lhe foi sugerida a antecipação da teoria einsteiniana.5

3 SILVA, Ana Cristina Nogueira da; HESPANHA, António Manuel. A Identidade Portuguesa . In:

MATTOSO, José (dir). História de Portugal. vol 4. Rio de Janeiro : Editorial Estampa, 1998, p.21. 4XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. In: MATTOSO, José (dir). História de

Portugal. vol 4. Rio de Janeiro : Editorial Estampa, 1998, p.124. 5CASINI, Paolo. Newton e a Consciência Européia. São Paulo : Unespe, 1995, p.147-177.

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Ressalte-se que, para que houvesse penetração das idéias modernas se fazia

necessária uma mutação no campo das possibilidades do conhecimento, para isso, era

imprescindível a destruição da síntese Aristotélica.6No entanto, esta era a base de toda a

Filosofia Escolástica.

Em Portugal, no século XVIII, houve uma grande discussão acerca deste problema

cujo desenlace culminaria com a expulsão dos jesuítas e com a reforma pombalina em

1772. Os textos antecessores das grandes mudanças pombalinas revelam os elementos que

norteavam esta discussão, uma disputa entre a tradição escolástica e as idéias modernas que

levariam a uma reforma de pensamento e educação em Portugal. Destaca-se a obra de Luiz

António Verney, “O Verdadeiro Método de Estudar” (1746). A historiografia tem

salientado que suas idéias representam uma verdadeira ruptura com a educação jesuística-

escolástica:

O Verdadeiro Método foi, acima de tudo um despertador. Produziu o choque psicológico das massas

cultas, trazendo para a liça pública, em corpo inteiro, idéias e questões anteriormente confinadas ao

murmúrio dos cenáculos ou à meia voz dos livros. Desempenhou em Portugal o mesmo papel que ao

Discurso cartesiano coubera em França, abrindo hostilidades finais entre a cultura moderna e a

“grave filosofia monacal” de que falava António Vieira.7

As questões mais polêmicas do Verdadeiro Método de Estudar estão nas Cartas

VIII e IX, nas quais Verney ataca o sistema pedagógico e o domínio da Filosofia e das

ciências em Portugal. Sua obra não teve apenas adversários, teve alguns admiradores, no

entanto observa-se uma falta de espírito crítico por parte dos debatedores, vez que a

assimilavam inconteste ou a negavam com argumentações preconceituosas, com critério

mais inquisitorial. Muitos repudiavam Verney apenas por ser adepto das idéias dos

“estrangeiros” ou dos modernos. Os jesuítas tomaram a frente de ataque, destacando-se o

Padre José de Araújo, autor das Reflexões Apologéticas.8

6KOYRÉ, Alexandre. Estudos Históricos do Pensamento Científico. Brasília : Editora

Universidade de Brasília, 1982, p.55. 7 DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Européia . Coimbra Editora: Coimbra, 1952,

p.204. 8 ibid, p.205.

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Embora a historiografia tenha apontado que Portugal ficou à margem do debate Iluminista,

Verney parece ser uma voz dissonante a esta assertiva, e é na sua produção que se

concentra esta pesquisa.

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PRIMEIRA PARTE: SOB INFLUÊNCIA DAS LUZES

CAPÍTULO I: O PENSAMENTO MODERNO

1) Iluminismo e historiografia

Existe uma grande produção de pesquisas voltadas para o momento histórico

em que a civilização européia passa por mudanças profundas, ou seja, o século

XVIII. Particularmente no que se refere ao campo das idéias, existe um ponto

culminante que chamamos de Iluminismo.

A cronologia deste período é bastante variável, de acordo com critérios

muito diversos, com vários recortes. Seja pelo ponto de vista econômico, social ou

político - as três clivagens que norteiam a maioria das análises de estrutura social -

parece haver um consenso de que a partir de meados do século XVII até finais do

século XVIII, surge um modelo de sociedade a qual pertencemos até os dias de

hoje. Nesta sociedade reconhecemos seus valores através da razão, palavra tão

comum na cultura moderna, que estranhamos quando se pergunta o que é a razão?

Nos parece tão óbvio, que nem questionamos seu significado; que, no entanto, é a

base de todo entendimento entre os homens. As tentativas de identificar este período

como moderno são muito imprecisas, apesar disso, é muito útil utilizar este termo

como forma referencial.

História das idéias? História Intelectual? A mesma imprecisão9 em relação

ao termo "moderno", percebemos em relação ao campo de estudos que o toma por

objeto. Podemos perceber esta dificuldade na maioria dos prefácios destas obras -

cujo foco é o campo das idéias - quando procuram se representar em um campo

Cf. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1988.

P. 28-30. Sobre a imprecisão do termo História Intelectual, particularmente no que se refere às dificuldades em traduzi-la para uma outra língua e para outro contexto cultural. A história Intelectual opõe, portanto, uma dupla incerteza respeitante ao vocabulário que a designa: cada historiografia nacional possui a sua própria conceptualidade, e em cada uma delas, entram em competição diferentes nocões mal diferenciadas umas das outras. Chartier. Op. cit, pp. 28-30.

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disciplinar próprio. O que ocorre normalmente é uma interdisciplinaridade. Hoje já

se fala em trans-disciplinaridade.

Para François Dosse, a História Intelectual é uma interface entre a História

Cultural e a História das Idéias, onde o termo intelectual reflete a relação da pessoa

com seu tempo, envolvendo uma prática e uma ação.10Baumer também utiliza o

termo "História Intelectual", embora dando a impressão de ser restrita ao

pensamento de uma pequena elite, como acontece na História da Filosofia. Também

a considera em um ponto de vista mais vasto, incluindo também pessoas as que

popularizam as idéias, como os pensadores criativos. Para ele a História das idéias

concentra-se, sobretudo, nos "intelectuais", porque articulam melhor as idéias e as

crenças que circulam numa sociedade.11 Baumer observa a importância da História

das idéias, sua relevância: pois estão relacionadas à questões do presente, ou o que

ele chama de "questões perenes" - aquelas que envolvem a natureza e o destino do

homem: "O passado dá-nos respostas, subtis ou mesmo radicalmente diferentes dos

nossas próprias respostas12".

Tenho a impressão de que, a História das Idéias, trata de um campo

intermediário entre a História e a Filosofia. Neste sentido, é interessante observar as

diversas tentativas em estabelecer um termo específico para este tipo de estudos. A

Historiografia, de um modo geral, particularmente a partir de meados da década de

6013, tem promovido um grande debate, buscando solucionar este problema.

Procura-se chegar a um termo comum, de qualquer forma, as abordagens são

bastante diversas, prevalecendo um sentimento de incerteza14.

Ao mesmo tempo em que estes estudos ganhavam mais atenção dos

historiadores, surgia uma indefinição a cerca de uma referência metodológica

coesa. Isto pode ser percebido, por exemplo, na escola dos Annales a partir do fim

da geração de Braudel (2º geração). Burke, mostrando a dificuldade em definir o

10 Palestra proferida ao departamento de História da UFPR em 16/04/2001. 11 BAUMER, Franklin L. O pensamento Europeu Moderno. Volume I. Séculos XVII e XVIII. Rio

de Janeiro: Edições 70, 1977. Pp23. 12 Ibid, p.25. 13 Chartier. Op. Cit, p.43 14 CHARTIER, Roger. A História hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos, vol 7,

número 13, 1994, p. 97-113

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perfil da terceira geração em relação às duas anteriores, afirma que: "Ninguém

dominou o grupo neste período como o fizeram Febvre e Braudel".15 Ressalta-se

ainda que alguns comentadores chegaram mesmo a falar em uma fragmentação

(Dosse, 1987). Vale a pena ilustrar este momento de crise - o qual persiste até os

dias de hoje. Michel Foucault, por exemplo, ficou à margem do centro do

pensamento historiográfico francês, no entanto, tem grande influência na Filosofia,

na Sociologia e no Direito.

De qualquer forma, percebemos que os estudos deste período, que poderiam

ser definidos com o rótulo de História das Idéias, estão preocupados com a longa

duração e uma relativa despreocupação com os pensadores individualizados. De

forma imprecisa, estão relacionados com o termo História Cultural, que nasce de

uma oposição à História Política à História Econômica e à História Social.

Parafraseando Chartier: "A História Cultural, tal como a entendemos, tem por

principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma

determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler".16

A partir da década de 90, o enfoque sobre o indivíduo toma grande

relevância, vez que este surge como representante de um grupo coletivo, pertencente

à uma determinada rede social, imerso em uma determinada rede de distribuição de

obras através de livros.17 Esta tendência parte principalmente do conceito de

"representações", que será abordado mais adiante.

Creio que não podemos mais considerar uma dicotomia entre indivíduo e

sociedade, como já lembrava Elias, criticando a História que exaltava os grandes

homens como símbolos da liberdade individual, desprezando a "rede de

interdependências entre indivíduo e sociedade"18. É bastante ilustrativa a sua

afirmação de que " a interdependência dos valores restringe a possibilidade de que

um homem singular cresça sem que os juízos da sociedade venham a fazer parte de

15 BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia. São

Paulo : Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 79 16 Chartier. Op. cit, p. 17 17 Ibid, p.20. 18 ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristicracia

de corte. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed, 2001, p. 30

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seu próprio ser"19. Neste contexto, os homens que ultrapassaram os limites do que é

tolerável para esta sociedade, se não foram mortos, ficaram excluídos socialmente e

quase banidos pela historiografia, silenciados pela mentalidade20 da época. A

máxima, "homens à frente de seu tempo", atualmente talvez seja uma falta de

conhecimento deste "tempo". Os homens sempre pertenceram ao seu tempo.

2) Iluminismo na Europa: modernidade

Baumer tenta, através de um determinado número de pensadores da Europa,

captar o sentido de "moderno": "existe um fluxo essencial e contínuo na ordem das

coisas que está em oposição à visão antiga de um mundo de entidades estáticas ou

absolutas"21.

Enquanto abandonarmos a possibilidade de encontrar o princípio de uma

idéia, o nascer de uma idéia, uma descoberta, nos resta somente analisar o fluxo

destas idéias em meio a uma dispersão, a qual não possui limites de alcance.

Poderíamos chamar esta dispersão, uma consciência européia22.

Apesar de existir regiões onde o debate iluminista tenha sido mais intenso e

mais volumoso, como França, Inglaterra, Alemanha, não podemos lhe atribuir um

caráter nacional, pois incorreríamos em anacronismo. O que havia, era uma grande

troca de informações entre as cortes européias, que aumenta significativamente na

medida em que cresce o gosto pelas viagens23.

19 Op. Cit, p. 94 20 Fazemos referência ao conceito de "mentalidade", que abarcando longas durações, estudava

padrões de pensamento de determinada época, sendo criticada por se tornar uma verdadeira prisão do pensamento. Resumidamente trabalha com os limites do pensável. Esta tendência foi muito abalada a partir da Micro-história, cujo representante mais ilustre é o historiador italiano Carlo Ginsburg, autor da renomada obra: "O queijo e os vermes". Em nossa pesquisa, procuramos escapar do que Chartier aponta como uma História Social das Idéias - o que poderia ser uma espécie de derivação do conceito de mentalidade - deixando escapar o essencial: "O risco da História Social do Iluminismo, tal como a vemos hoje, sobretudo em França, é o de estudar as idéias quando já se tornaram estruturas mentais".Cf. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1988, p. 48.

21 Ibid, p.44 22 De acordo com Casini. A expressão "consciência européia" tem um significado deliberadamente

amplo, por um lado, e limitativo, por outro; limitativo em relação aos comentadores de determinadas obras específicas e amplo quando procura-se registrar as várias reações que determinada idéia ou obra impõe à reflexão e à imaginação, mesmo para além de suas implicações técnicas. Op.cit, p..9

23 Cf. HAZARD, Paul. La crisis de la Conciencia Europea (1680-1715). Madrid : Ediciones Pegaso, 1952, p. 7

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Havia um elo institucional através da Igreja Católica, ligando toda a Europa

em um princípio comum, que passa a se enfraquecer com o advento da Reforma. A

Igreja ainda lutava para impor uma universalização de idéias, para tanto teve que

utilizar instrumentos como a Inquisição. Esta forma de pensar, que se impunha

sobre os homens, foi perdendo espaço e importância até que o Estado criasse uma

independência em relação à Igreja, na manutenção do controle social. A destruição

deste laço do Estado com a Igreja ocorreu em quase todas as sociedades ocidentais.

Esta tendência se consolida quando a fé e a crença passam para o domínio

individual e privado, e onde existe liberdade de Religião. No mundo atual, o foco de

resistência a este processo são os países islâmicos.

O debate crítico iluminista, guiado pela razão universal, ocorreu de forma

particular em cada região da Europa. No caso dos países Ibéricos, houve um debate

bastante atípico pela grande fidelidade à Igreja. É curioso observar que a Itália tenha

sido representada como região de uma Ilustração mais crítica do que a Ibérica, vez

que era sede da capital da Igreja. A região que hoje é a Itália era um conjunto de

pequenos reinos, nem por isso podemos relacionar instituição católica com

autoridade e falta de esclarecimento, nem tampouco opor liberdade de pensamento e

autoridade, especialmente no caso da capital italiana (Roma).

Poderíamos arriscar dizer que o debate aconteceu em toda a Europa, porém,

os estudos históricos e filosóficos têm destacado centros que promoveram as obras

mais notáveis deste período, que predominaram por mais tempo. Apesar disso, a sua

permanência encobre longas discussões. Mais cedo, ou mais tarde, o uso público da

razão se espalharia para todos os cantos da Europa. Não acho que seja o caso de se

perguntar se houve um Iluminismo Ibérico, mas sim, como Portugal e Espanha se

emanciparam frente àquela crise de consciência que toda a Europa estava passando.

(A idéia de que Napoleão estava levando a Revolução para toda a Europa, já estava

sendo construída de uma forma específica.)

Uma abordagem interessante em relação à este tema, é a de Paul Hazard,

com a sua obra "La crisis de la consciência Europeia (1680-1715)". O ponto de

chegada é o que ele chama de uma crise, e não o início de algo novo, moderno,

como trata a maioria das obras sobre o tema. Focando o período de 1680 a 1715, ele

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isola este intervalo, o qual provém diretamente do Renascimento e que prepara para

a Revolução Francesa.24 Esta crise de consciência parece a triste constatação de que

não existe uma sabedoria além do alcance humano, somente penetrável

exclusivamente pela Revelação, mas apenas aquela alcançada através da limitada

"Razão".

É importante observar que a educação e a maioria das publicações oficiais da

época são monopólio dos colégios das Ordens25. Portanto, a idéia de razão não pode

ser separada do campo da religião, e por consequência, das instituições da Igreja. As

Ordens religiosas foram os núcleos de educação no século XVIII, portanto, as idéias

modernas surgem de dentro da Igreja, com mais força daqueles que eram mais

devotos.26 Paradoxalmente, é a sede angustiante de conhecer a sabedoria divina que

acaba afastando o homem desta possibilidade de sabedoria plena (suprema).

Percebemos, então, uma separação entre Filosofia e Religião. A Filosofia não repara

as brechas que faz, apesar de todas as curiosidades que se tomem, se é muito capaz

de destruir as afirmações recebidas, é incapaz de colocar outra coisa no lugar além

de interrogações.27 É a alma imortal? Existe um Deus soberanamente sábio? Então,

por que faz o homem culpado e o faz sofrer? Po que deixa perecer uma pessoa a

quem poderia salvar? Isso ofende a razão. Para Malenbranche, a Religião era a

verdadeira filosofia. Ele contra-argumenta então: "Deus atua mediante vontades

genéricas e não particulares. Tem que ceder aos interesses da sabedoria, posto que é

a sabedoria suprema"28. Assim procura defender a fé pela razão.

24 Op. cit, p. XII 25 Cf. ANDRADE, Maria Ivone de Ornellas de. José Agostinho de Macedo: um iluminista

paradoxal. v.1. Lisboa : Edições Colibri, 2001, p. 4 26 Veja, por exemplo, os argumentos da prova da existência de Deus no pensamento de Descartes e

Locke. 27 Op. cit, p. 102

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CAPÍTULO II: A CONSTRUÇÃO DO RACIONALISMO

1)Fé e razão

Ao falarmos de Fé e Razão, podemos iniciar a análise pela antiguidade

clássica, pois os gregos eram religiosos e possuíam uma grande diversidade de

cultos. Porém é com Santo Agostinho de Hipona (354-430) que Fé e Razão se

harmonizam. Segundo ele, a inteligência prepara para a fé, finalmente a fé,

iluminada pela inteligência, conduz ao amor29. Desta forma vai do entendimento

para a fé, e da fé para o entendimento, e de ambas para o amor. Há uma grande

tendência na historiografia, e na própria filosofia, em apresentar a história do

pensamento através de um salto entre a Antiguidade grega e o Renascimento.

Porém, o período medieval foi pouco explorado30, e as relações entre Teologia e

Filosofia tem sido negligenciadas31. Muitos pensadores medievais apresentaram

discussões interessantes para o problema da fé e da razão. A penetração das idéias

de Aristóteles nas Universidades no século XII32, proporcionou uma nova

perspectiva para a Filosofia e a Teologia.33Guilherme de Ockam (1285 - 1349),

28 Op.cit, p.121 29 BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia. São

Paulo : Fundação Editora da UNESP, 1997, p.41 30 Ibid, p. 11. Ver também. CHATELET, François. Uma história da razão: entrevistas com Émile

Noel. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1994, p.52 e 66. Sobre este salto da História da Filosofia, Chatelet refere-se à um projeto de fundo: trata-se de compreender como a racionalidade técnica apareceu, em torno de que idéias principais se constitui e por que razões se impos.

31Cf. GANDILLAC, Maurice de. Geneses da Modernidade. Rio de Janeiro: Ed 34, 1995. 32 Em 1263, Os papas Urbano IV e Gregório XI publicam decretos proibindo o ensino de Aristóteles

nas Universidades. A necessidade de proibir indica esta forte tendência. 33 Op.cit, Zilles. p. 97

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John Duns Escoto (1270 - 1308), Raimundo Lúllio (1232/33-1316) dentre outros,

são exemplos bastante ilustrativos34.

Escoto toma uma posição contrária a S.Tomás de Aquino, pois, segundo ele,

as verdades da fé não podem ser compreendidas e demonstradas pela razão. Por

isso, Escoto separa Teologia e Filosofia, devendo a Teologia apoiar-se totalmente na

revelação. Por consequência, a razão goza de autonomia em relação à Teologia.

Para Duns Escoto, a Teologia apenas estabelece as normas de conduta do fiel,

devendo a razão abandonar os mistérios de Deus, que são objetos da fé.

Para Guilherme de Ockam, a Teologia não é uma ciência racional e Deus

não tem interesse para a Filosofia. Ciência e Religião caminham paralelas e

independentes. Com a separação radical entre fé e a razão, entre a Filosofia e a

Teologia, Ockam também separa o poder espiritual e o poder temporal. Diante desta

conduta, foi-lhe negado o título de doutor pelas autoridades eclesiásticas35. Em

Rogério Bacon, considerado o precursor do empirismo, a Filosofia era serva da

Teologia. Esta oposição se traduz em dois movimentos distintos, os místicos (fé) e

os dialéticos (razão). Já na teologia monástica ou mística, elaborada pelos monges, a

sabedoria do Evangelho é irredutível à ciência, não havendo lugar para o Silogismo,

mas para a adoração cheia de luz.36. Os escolásticos, por sua vez, apoiaram-se na

razão para penetrar nas profundezas do mistério. A fé era a encarnação da verdade

divina em nosso espírito, a qual deveria ser compreendida.37

Na Idade Média, quando se fala em Teologia e Filosofia escolástica,

designa-se, antes de tudo, determinado método, não determinados conteúdos. Na

Teologia o método escolástico busca uma compreensão racional da fé. Na

escolástica, predomina a preocupação com as palavras. Apresenta-se, de modo

especial, como estudo da linguagem (de que trata o Trivium) para depois examinar a

realidade da coisa (o quadrivium).

Houve uma grande controvérsia em torno dos "universais" que estava

relacionada com a relação entre as palavras e as coisas. As coisas são concretas e

34 Ibid, p.11 35 ibid, p.62 36 ibid, p.59.Sobre a questão do silogismo ver pg X que será tratada mais adiante. 37 Ibid, p.60

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singulares, os conceitos abstratos e universais. Como se poderia dizer que o

conceito representava as coisas? O "nome da rosa" coloca o dilema: a rosa, símbolo

da perfeição, é também um nome que sobrevive à morte da própria flor. Para

Ockam, os universais - palavras que designam determinadas idéias - são apenas

palavras (em latim nomina, donde a expressão nominalismo). Os universais seriam

apenas signos que designam um conjunto de semelhanças e caracteres, abstraídos

das coisas individuais pelo intelecto humano38. Os universais para Ockam, são

apenas criações do espírito, da mente, são termos. Os termos são simples sinais das

coisas: subsistem, na mente, a multiplicidade das coisas reais. As coisas conhecem-

se mediante seus conceitos e esses são universais. Como meros sinais naturais, os

universais tornam-se símbolos das coisas. O conhecimento humano universal é

necessário, o conhecimento científico é meramente simbólico.

Esta divisão do conhecimento, entre universal e científico, será o ponto de

partida para a Ciência moderna. Nesta orientação, o homem pode renunciar a

conhecer as coisas e limitar-se a conhecer os símbolos das coisas. Desta forma

torna-se possível o conhecimento simbólico matemático e a física moderna - que

nasce das escolas nominalistas. A Física aristotélica e medieval, queria conhecer o

movimento, as coisas mesmas. A Física moderna contenta-se com os signos

matemáticos. Segundo Galileu, o livro da natureza está escrito com os signos

matemáticos, mas a preocupação central não é mais saber o que é o movimento em

si mesmo.

Nicolau de Cusa parte conscientemente do ponto de vista socrático de

que o sábio é aquele que "sabe que não sabe". Só poderíamos aproximar-nos da

verdade enquanto doutos em nossa ignorância. Para explicar suas idéias, recorre

tanto à imagens da geometria como metáforas relacionadas a ela:

O entendimento está para a verdade assim como o polígono está para o círculo:

quanto maior for o número de ângulos inscritos no polígono, tanto mais semelhante

38 Ibid, p.77.

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ele será ao círculo; nunca, porém, chegará a ser igual a ele, mesmo que se lhe

multiplicassem os ângulos ao infinito - a não ser que coincida com o círculo 39

Nicolau apresenta o princípio da idéia de um conhecimento ideal acima das

possibilidades do homem. Aponta a união do positivo com o negativo. Se com

efeito, sabemos não-saber de Deus, é porque também sabemos algo do infinito que é

Deus. Destaca dois pontos: a posse do conhecimento, e o saber de que este

conhecimento nos deixa distante daquilo que é realidade.

Retomamos algumas idéias de filósofos medievais não para provar uma

linearidade entre o medieval e o moderno, nem tampouco para provar que a idéia de

razão já estava sendo colocada40. Afinal, a questão já foi discutida entre os

historiadores da ciência, quando apontaram que os presupostos da ciência moderna,

já estavam sendo colocados nos séculos XIII e XIV41. Esta idéia colocava em

cheque o conceito de revolução científica que seria protagonizada por homens como

Galileu. Percebe-se que a polêmica ocorre devido à concepção de ciência de cada

pesquisador.

2)Razão como representação

A reflexão sobre um estatuto epstemológico para o campo da História é uma

preocupação constante da historiografia42. O conceito de representações tem sido

utilizado com muita frequência entre os historiadores, principalmente no que se

refere à escola francesa. No entanto, existe muita incerteza em relação a sua

aplicabilidade, especialmente no que concerne à metodologia das pesquisas. Neste

sentido, vale uma análise do conceito de representação à luz da epstemologia.

39 Apud. Zilles, Docta Ignorantia, I,3. Pg 140 40 Até então estamos discutindo a própria idéia de Razão, seu conceito ainda não está claro. Portanto

não podemos inseri-la em nenhum recorte cronológico sem ter uma idéia clara do seu significado. 41 A concepção da continuidade encontra em A.C. Grombie seu mais eloquente e mais absoluto

defensor através da obra sobre Robert Grosseteste. Para ele os cientistas-filósofos do século XIII descobriram e elaboraram as estruturas fundamentais do método experimental da ciência moderna. Por isso é criticado por Alexandre Koyré, que argumenta que as mudanças que caracterizam a ciência moderna é uma nova concepção de natureza, e não de graus de evolução metodológica. Cf. Koyré. Estudos de História do pensamento ciêntífico, p. 56 - 79

42 entendendo o termo historiografia como o estudo das obras de história.

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O debate sobre as possibilidades do conhecimento nos remete ao período

histórico denominado Iluminismo. Poderíamos ilustrar a discussão com a polêmica

entre racionalismo e empirismo; as duas grandes correntes epstemológicas, cujos

principais representantes são Descartes e Locke.

Quando Descartes passa a duvidar de tudo, chega à única certeza de estar

duvidando. Esta certeza garante um novo ponto de partida, um Eu que pensa, e

consequentemente ocupa um lugar específico de existência. O princípio de sua

crítica baseava-se em uma releitura dos livros. Sabia que havia grande diversidade

de costumes, opiniões e crenças no "grande livro do mundo", o que o levou "a

aprender a não crer demasiado firmemente em nada do que me fora dado pelo

exemplo e pelo costume; e , assim, pouco a pouco, livrei-me de muitos erros que

podem ofuscar a nossa luz natural e tornar menos capazes de ouvir a razão"43. Mas,

até que ponto esta razão teria correspondência com o mundo real? O que garantia

esta correspondência? Ressalta-se que seu argumento é baseado em uma Metafísica

complexa que relaciona Deus a uma certeza, fundada no Cogito; fundamento do

conhecimento racionalista.

Para o empirismo de Locke, nossos conhecimentos começam pelas

sensações, que se imprimem na mente - originalmente vazia - formando as

percepções, as idéias ou representações.

Kant, com uma solução conciliadora, sustenta que a questão correta a ser

colocada pela filosofia é a de buscar saber o que é razão e o que ela pode conhecer.

Não como chegar à "realidade em si mesma", que é inacessível, mas apenas como

representação construída, sintetizada pela razão sobre os dados da sensibilidade"44.

Com Kant, a pergunta filosófica - que com os antigos era "como é o mundo?", e

com Descartes, "o que é verdadeiro?" - passa a ser "o que podemos conhecer?". Ele

investiga as condições de possibilidade de um conhecimento objetivo e universal.

A análise de Pulino sobre a obra de Richard Rorty45 , mostra a crítica deste à

filosofia centrada na epstemologia como disciplina fundacional. Segundo Rorty:

43 DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo : Nova Cultural, 1991. Os Pensadores. p. 33 44 PULINO, Lúcia Helena Cavasin Zabotto. Ricard Rorty e a questão das representações em

Filosofia. (in) CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir (orgs). Representações : Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas, SP : Papirus, 2000, p. 105

45 Ibid, 105

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"conhecer é representar cuidadosamente o que é exterior à mente; portanto,

compreender a possibilidade e natureza do conhecimento é compreender o

modo como a mente se torna apta a construir tais representações. A

preocupação central da Filosofia é ser uma teoria geral da representação,

uma teoria que dividirá a cultura nas áreas que representam bem a

realidade, que a representam menos bem e as que não a representam

absolutamente.46

De acordo com a autora, a noção de "mente", como consciência, foi

introduzida na filosofia por Descartes. O que faz parte dessa intuição do mental é a

noção de conhecimento como representação - que, na verdade, não foi vista assim

desde sempre, sendo inaugurada por Descartes e Locke. Explica Rorty: "o modelo

de Aristóteles pode nos parecer mera bizarria, e o ceticismo cartesiano como

realmente fazendo parte do "pensar filosófico", que nos espantamos por Platão e

Aristóteles nunca se terem confrontado diretamente como ele". Se o mental é algo

forjado por um jogo de linguagem e não uma intuição natural, da mesma forma

como foi construído, pode ser desconstruído e abandonado, conclui Rorty".47

Na sua obra The linguistic turn (1967) ele pondera o que ocorre com a

filosofia, que se pode considerar como mudança e não como progresso. Para ele

Filosofia seria a atividade humana que busca o conhecimento e que tenta

constantemente se auto-definir, num movimento em direção a um "consenso

contemporâneo". Rorty enfatiza sobre as conseqüências advindas do movimento

denominado "linguistic turn"48. Na visão de Rorty, o conhecimento não é

representação exata, e sua justificação não é mais uma questão de relação especial

entre idéias ou palavras objetos, mas uma questão de conversação, de prática social.

Os jogos de linguagem resultam de interações com o mundo e ganham significado

46 Richard Rorty citado. In : Pulino. Richard Rorty e a questão das representações em Filosofia.

Op.cit., p.108 47Ibid, p.109. 48 Traduzida para o português como a virada linguistica, é a escola filosófica que sustentava que "os

problemas filosóficos podem ser resolvidos (ou dissolvidos) ou pela forma da linguagem, ou por uma melhor compreensão da linguagem que usamos atualmente. Ibid, p.113

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não de imagens mentais, mas de um conjunto de condições convencionais,

partilhados por uma comunidade linguística.49.

Para Pulino, trata-se de uma cultura pós-filosófica idealizada por Rorty, mas

que só pode ser admitida se acreditar que nunca se entra em contato com a

realidade, exceto por intermédio de uma descrição, e encarando-se o homem em sua

condição contingente50. A linguagem vista como contingencial, não tem

correspondência com a realidade, mas como mediação entre aquele que conhece e o

que é conhecido. Ela é instrumento, construído historicamente pelo homem. Uma

ferramenta para lidar com o mundo. Para ele, a maneira de uma pessoa interpretar

um livro é o resultado contingente da leitura de vários outros livros que lhe caíram

nas mãos por acaso51. Aqui, destaco uma conclusão da autora através de sua leitura

de Rorty, de que as mudanças científicas, éticas e estéticas são redescrições da

realidade: não há uma relação de superioridade entre as descrições atuais e as mais

antigas52. Na minha opinião, a importância da dimensão histórica de determinado

pensamento fica desta forma satisfatoriamente fundamentada.

As representações poderiam ser formas de ver o mundo que se adaptam a

determinados propósitos. Aqui, a razão não passa de um consenso entre

representações de uma época. Um consenso oriundo de um conflito. Este aspecto é

muito bem esclarecido por Chartier na seguinte afirmação:

Embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, as representações

do mundo social assim construídas, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que

os forjam, não são de forma alguma discursos neutros. Estão sempre imersos em um campo

de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de

dominação... Estes acabam por descrever a sociedade tal como pensam que ela é, ou como

gostariam que fosse. 53

49 Ibid, p. 118 50 Ibid, p.118 51 Ibid, p. 119 52 Mesmo pecando por ecletismo, não posso deixar de observar a relação de proximidade com o

conceito de Elias de figuração específica. 53 CHARTIER. Entre Práticas e representações. Livro, p. 17-19

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Rorty cria o conceito de intelectual ironista, "é o intelectual que desconstrói

o vocabulário final que herda, com todos os seus valores e crenças, e o redescreve,

agora com seus próprios valores. Desse modo, ele redescreve a cultura e a si

mesmo, tornando-se cada vez mais autônomo e tomando as rédeas de sua história".

Para Rorty, é Freud quem melhor define a história de um homem como uma rede de

contingências, pois para ele, é a contingência que dá conta da diversidade humana,

do fato de o indivíduo gostar desta ou daquela pessoa, cor cheiro, e não de outros;

do fato de que ser "infantil, sádico, ou paranóico", do fato de possuir características

pessoais que o diferenciam das outras pessoas.

A partir disso, a minha problemática aparece através deste questionamento.

Por quê a representação de Verney não fora conveniente e convincente a maior parte

da população letrada portuguesa do Século XVIII?

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SEGUNDA PARTE: O ESCLARECIMENTO LUSITANO

CAPÍTULO I: AS LUZES TAMBÉM BRILHAM EM PORTUGAL?

1)Portugal e o Iluminismo

A historiografia tem apontado que Portugal viveu um grande período de

ignorância e obscurantismo, no que se refere ao contexto europeu oitocentista. O

reino vivia uma decadência, enquanto pelo resto da Europa discutiam-se idéias

novas. Estadistas criavam processos novos de administração. Crescia o comércio

marítimo com o ultramar, enquanto em Portugal o definhamento econômico e

cultural fomentava o debilitamento da nacionalidade portuguesa.54 É preciso

salientar que o ouro e os diamantes do Brasil tiveram consequências muito

complexas não só para Portugal e o Brasil, bem como para todo o mundo ocidental.

Por que motivo a distância entre Portugal, que fora senhor do mundo, e a Europa

que vibrava ao calor de idéias novas? Por que motivo o alheamento do reino às

formas mais vivas do pensamento europeu? Por que motivo o desinteresse dos

portugueses pelas planificações políticas que se faziam no resto do continente, em

particular após a Paz de Vestefália(1648)? Por que motivo o distanciamento de

Portugal em relação a uma cultura que dera Descartes, Spinoza, Newton, Leibniz,

Grotius? Portugal era na verdade um Reino de Sombras e Supertições.55

Teixeira Soares critica a forma como foi conduzida a política portuguesa

diante das fortunas proporcionadas pelos descobrimentos : "O que houve foi uma

verdadeira transferência de valores de Portugal para o estrangeiro, onde

compradores holandeses e italianos ficaram senhores do mercado europeu, impondo

preços."56O autor se pergunta como foi possível conciliar as novidades observadas

em outros povos, terras, costumes, enquanto no reino era mantido um pensamento

54 TEIXEIRA SOARES, Álvaro. O Marquês de Pombal. Brasília : Editora Universidade de

Brasília, 1983. Coleção Temas Brasileiros, V36, p.8 55 Ibid, p.8 56 Ibid, p.16

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em nome de preceitos escolásticos, normas inquisitoriais, arcaicos princípios de

resguardo do Estado?57Diante disso alegou-se que à medida que os portugueses

dilatavam as conquistas africanas e asiáticas, imperativo se tornou o "sigílo político

e diplomático" para impedir que agentes estrangeiros tivessem noção exata do que

eles realizavam através do imenso mundo novo. Porém alega que uma coisa é o

sigilo político que cercava a expansão ultramarina; e outra é o comportamento que

a gente culta do Reino revelava quanto ao que se passava através da Europa58 No

tempo de Dom João III, cultura significara apenas "purificação religiosa". Era

preciso resguardar o Reino de qualquer idéias estrangeiras, erradamente havidas na

conta de heresias59.

Os últimos anos do reinado de Dom João V caracterizaram-se pelo espírito

de rotina em todos os ramos da administração. Duas figuras geriram os negócios do

Estado : o Cardeal da Mota e Frei Gaspar da Encarnação. Eram renomados

imbecis.60 Nos três últimos anos de 1747 a 1750 a desordem generalizou-se na

marcha dos papéis do Estado. Assumindo Dom José I, através de seu longo reinado

de 26 anos, ficou escondido por detrás de Pombal para poder dedicar-se a caçadas, a

um pouco de música sacra e a mulheres. A sua maior qualidade reside na inteira

confiança que depositou em seu primeiro -ministro (Pombal)61

A historiografia enfatiza que os traços modernos lusitanos se expressaram na

figura do Marques de Pombal. Sebastião José de Carvalho e Melo já havia sido

57 Ibid, p.19 58 Ibid, p.19 59 Ibid, p.19 60 Ibid, p.19 61 Pombal é uma figura bastante paradoxal na história portuguesa, descendente de lavradores teria

uma projeção quase inesplicável, sua ascendência a cargos de importância é carregada de mistérios. Aguns consideram-no como um mostro tirânico, outros que foi um dos maiores estadistas de Portugal e da Europa, outros dizem que sua obra renovadora caiu porque não tivera alicerces sólidos. Existe uma grande produção historiográfica nacional portuguesa que analisa tanto positivamente como negativamente Pombal. No Brasil temos uma corrente que procura exaltar a importância do pensamento pombalino para o Brasil, destacando a sua visão da importância do comércio ultramarino com o Brasil, que para muitos da época ainda era percebida como uma feitoria indiana. Existe também uma produção de brasianistas que procura analisar Pombal sobre a ótica do comércio internacional. A obra de Keneth Maxxwell interpreta Pombal sobre um perspectiva diferente, Pombal não administrou Portugal totalmente sozinho, mas refletia as preocupações de uma geração de funcionários públicos e diplomatas portugueses que haviam meditado muito sobre a organização imperial e os técnicos mercantilistas que acreditavam houvessem ocasionado o poder e a riqueza surpreendentes e crescentes da França e da Grã-Bretanha. Cf MAXWELLl, Kenneth. O Marquês de Pombal: paradoxo da iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p.10

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ministro em Londres (1738) e Viena (1745), tendo a participado dos círculos

intelectuais britânicos e da Alemanha.

Ao mesmo tempo em que se questiona o distanciamento da cultura

portuguesa em relação às idéias modernas, elogia-se o pensamento moderno

pombalino, comparando-o aos grandes déspotas esclarecidos como Pedro e Catarina

II. A percepção de Pombal da conjuntura econômica da época é representada através

de seu percurso como diplomata da corte portuguesa, particularmente como ministro

no reinado de D.José (1750)62. A historiografia destaca, que as práticas, as reformas

que englobam uma dinâmica comercial denominada "mercantilismo", constituem

elementos de razão. Associa modernidade com idéias econômicas racionais, isto

fica nítido na obra clássica de Falcon63. Num contexto mais amplo as medidas

pombalinas estavam relacionadas à uma emancipação do Estado português, no

sentido de uma secularização, e ao mesmo tempo um reforço de absolutismo.

Dentre suas intervenções mais importantes, no que se refere ao campo cultural,

podemos indicar a Reforma da Universidade e a secularização da Inquisição. De

qualquer, forma a historiografia carece de estudos sobre o Iluminismo Português -

se é que poderíamos aplicar este termo ao caso português. O prof. Cabral de

Moncada definiu o Iluminismo português como "essencialmente Reformismo e

Pedagogismo64. O seu espírito era, não revolucionário, nem anti-histórico, nem

irreligioso como o francês; mas essencialmente progressista, reformista, nacionalista

e humanista.

2)Verney, português ou cosmopolita?

De origem francesa, filho de Dionísio Verney e de Maria Arnaut, Luis

Antonio Verney nasceu em Lisboa, a 23 de julho de 1713. Estudou filosofia na

Congregação do Oratório de Lisboa, e tendo concluído o ensino fundamental,

62 Destacamos o apoio dado por Pombal à burguesia portuguesa em detrimento da aristocracia. Cf. Maxell,.

63FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo, 1982

64 Opcit, p.XXXIV

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deslocou-se para Évora. Graduou-se mestre em artes, depois de ter sustentado teses

públicas de filosofia. Decorridos poucos anos, concluiu o curso de Teologia na

Universidade de Évora. Em 1736, estabelece-se em Roma, fugindo do clima cultural

decadente português65onde nunca mais retornaria. Observe-se que nesta época, o

movimento intelectual francês repercutia na Itália66. Em Roma cursou as cadeiras de

Teologia dogmática e de jurisprudência. O pontífice Bento XIV conferiu-lhe a

sinecura de arcediago no arcebispado de Évora, em 1742.67

Em 1746, publicou o Verdadeiro Método de Estudar. Eram dezesseis cartas

em português, formando dois tomos, como oferta aos padres da Companhia de

Jesus. Seu objetivo, partindo de um idealismo patriótico68, era livrar Portugal do

atraso em relação às demais nações européias, e como escreveu: "formar homens

que sejam úteis para a república e religião"69. Provocou ódio dos jesuítas que o

acusavam de jansenita70 e inimigo do reino. O Verdadeiro Método de Estudar

apareceu assinado pelo pseudônimo de "padre Barbadinho". Ainda em 1754, oito

anos decorridos sobre a primeira edição, o próprio Verney negava a Francisco de

Pina e Melo que lhe pertencesse a autoria da obra.

Seu livro causou muita polêmica, sendo publicadas várias obras contra seu

método. Dentre eles, o mais voraz, foi um jesuíta anônimo que usava o codinome de

padre Arsénio da Piedade.

65 Domingos Barreira. Editor - Coleção Portugal - Coleção Joaquin Ferreira. Pp 11 66 A afirmação do prof. Cabral de Moncada citada na obra de Sérgio Buarque de Holanda comprova

alguns equívocos em relação ao Iluminismo italiano, quando associamos o peso da Igreja católica com volume de esclarecimento.Cf. opcit."Era o iluminismo italiano: um Iluminisamo essencialmente cristão e católico."HOLANDA, Sérgio Buarque de(dir). 2.Administração, Economia, Sociedade. (in) Tomo I.A Época Colonial. História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro : Editora Bertrand Brasil S.A, 1993. 7ª edição, p.81.

67 Arcediago: autoridade eclesiástica que exerce poderes sobre vigários. Arcebispo: prelado que tem bispos sujeitos à sua autoridade. Sinecura: cargo ou emprego rendoso e de pouco trabalho; emprego cujas funções não se exercem. Dicionário Barsa.

68 "Recordo-me, Exelência, que me haveis dito uma vez que, ocorrendo-me algum pensamento útil ao bem público, eu não deixasse de vo-lo dizer". p.15

69 Ibid, p.15 70 Doutrina de Cornélio Jansen, bispo de Ipres, sobre a graça e predestinação.Cornelius

Jansenius(1585-1638) radicalizou o pensamento de santo Agostinho no tocante à relação entre graça divina e a liberdade humana, o jansenismo fazia depender a salvação do homem do juízo prévio e insondável do Criador, e não das "boas obras" ou da vontade da criatura. Barsa. V9, p.417.

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Em 1760, Portugal, e a Santa Fé quebraram as relações diplomáticas71 e

Verney teve que abandonar Roma. Posteriormente escreveria cinco cartas ao padre

preposto da Congregação do Oratório datadas em Piza, até 1767. E a última de

1769, em Veneza. Mas acredita-se que tenha se estabelecido em Piza, pois de lá

datou algumas cartas entre 1765 a 1766. Mais tarde, Verney caiu no desgosto do

embaixador Francisco de Almada e Mendonça sofrendo retaliações e ingratidão, foi

desterrado pelo Papa (por meio de Pombal) para a Toscana, onde passou os dez anos

restantes de sua vida.72Dois anos após ser nomeado para a Mesa de Consciência e

Ordens (dignação meramente honorífica), Verney morre no dia 20 de março de

1792.

71 O Papa ficou indignado pela falta de diplomacia do Conde de Oeiras (futuro Marquês de Pombal)

que expulsou o núncio (embaixador do papa junto de um governo estrangeiro) Accioujuoli que não o havia convidado para o casamento do infante D.Pedro, irmão do rei, com a princesa D.Maria, sua sobrinha e herdeira do trono.Querendo Francisco de Almada e Mendonça, primo de Sebastião José de carvalho e Mello (futuro Marquês de Pombal) e embaixador de Portugal no Vaticano, entregar uma nota justificativa da atitude nada cortês para o pontífice na pessoa do núncio, Clemente XIII negou-se a recebê-lo. Em julho de 1760, na igreja portuguesa de Santo António, em Roma, colaram-se editais com o aviso da ruptura entre as duas potências, e ordem aos portugueses para abandonarem a capital pontifícia e os territórios anexos. E no dia 7 daquele mês partiu Mendônça, e também Verney.

72 O autor (comentador) acusa severamente o Marquês: "O verdugo do padre Malagrida, o incendiário da Trafaria, o estrangulador das consciências livres, que ensandeceu de susto o povo; o monstro que inventou, em todas as minúncias, o diabólico suplício dos Tavoras, não resistiu à perspectiva de assassinar pela fome o pensador verdadeiramente europeu que tivemos no século XVIII - o pedagogista e filósofo que lhe inspirou o melhor do seu reformismo".p.29

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CAPÍTULO II: PARADOXO LUSO-ITALIANO

1)A consciência italiana

O ambiente intelectual dos oitocentos italiano estava em diálogo com as

principais polemicas da Europa. Roma era uma corte internacional, um viveiro de

eruditos vindos de todas as partes da Europa. Assim como comenta Casini:

Os conteúdos e os momentos do ensinamento corrente na ordem dos Jesuítas aguardam ser

reconstituídos em detalhe, para além do peculiar "estilo" de duplicidade e de reserva

mental com o qual os cultos jesuítas tratavam os assuntos proibidos. Todavia, na espera de

pesquisas precisas sobre este ponto, podemos indicar brevemente os momentos principais

de uma atividade científica certamente modesta, comparativamente aos desenvolvimentos

contemporâneos da Académie des Sciences ou da Royal Society, mas muito atenta às

novidades vindas do outro lado dos Alpes."73

No entanto, não deixa de ser curioso refletirmos que aos pés do epicentro de

poder da Igreja, havia uma quantidade de publicações de obras muito superior ao

caso lusitano, provenientes inclusive de ambientes controlados pela Companhia.

Houve uma grande publicação de manuais, tanto em latin como em italiano, alguns

com caráter de divulgação científica.

Para Silva Dias o Iluminismo italiano é caracterizado por uma estrutura e

composição ideológica própria.74. Segundo ele, a Itália estava no início da luta pela

independência e pela unidade. De momento, a Espanha e a Cúria Romana eram os

inimigos, reais ou supostos deste duplo desígnio. A Escolástica, a Inquisição, a

Companhia de Jesus e o velho feudalismo social se mantinham à sombra da

dominação espanhola e curialista. Esta luta envolvia os interesses dos homens de

Estado, dos intelectuais e da classe média. Assim nasceram os três preconceitos

73 CASINI, Paolo. Newton e a Consciência européia. p. 148 74 DIAS, Silva. Portugal e a Cultura européia. p.192

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básicos do iluminismo italiano: oposição ao poderio eclesiástico, oposição à

estrutura feudalista inquisitorial da sociedade e da administração pública.75

O caso mais emblemático foi o do padre Boscovich, professor de matemática

do Colégio Romano, pedagogo que, através de artifícios e retórica, procurou

defender a síntese newtoniana, mesmo com as interdições da Igreja através do Index

librorum proibitorum. Menos por ter produzido um pensamento original através de

seus textos filosóficos, o importante é enfatizar que havia um intenso debate acerca

das polêmicas européias dentro dos círculos de poder da Igreja.76 Sua obra teve

repercussão em várias cidades italianas como Pádua, Bolonha, Piza, Nápoles,

Florença.

Investigando o percurso do pensamento newtoniano através dos principais

centros da Europa continental, percebe-se que a síntese newtoniana seria assimilada

através de um intenso debate e de forma desuniforme, com uma gama de matizes as

quais não poderiam ser redutíveis à fórmulas comuns. Na percepção destas idéias,

observa-se um traço comum entre os debatedores, um certo cosmopolitismo, como

no caso de Voltaire, o principal divulgador de Newton.77. Questiona-se se as idéias

de Newton foram um paradigma para o Iluminismo, Casini ressalta a consciência

individual, pois a persuasão do verdadeiro e do falso configura-se em termos

pessoais. O newtonianismo foi até mesmo uma moda para a época. Sobre este

aspecto, é inútil levar a sério "a grande multidão da Itália" - como escreveu

Genovesi - "que quer parecer newtoniana, embora não o seja"78.

Para haver uma assimilação das idéias de Newton era necessário uma

destruição de algumas hipóteses Cartesianas. A grosso modo, poderíamos dizer que

era necessário uma evolução epstemológica em uma determinada direção do

conhecimento, particularmente referente à determinadas noções do mundo físico.79

Hoje entendemos naturalmente o fato da gravitação universal, ninguém mais se

questiona a respeito das razões pelas quais os objetos caem atraídos pelo centro da

75 Ibid, p.192 76 Ibid, p.149 77 Ibid, p.84-103 78 Opcit., p.220. Citação tirada da carta de Antonio Genovesi a Antonio Conti de 1746. 79 Ibid, p.16. Newton se afirmou cartesiano no início. Durante dois anos (1664-1666) a sua bíblia foi

o comentário de Franz von Shooten sobre a Géometrie de Descartes, mais tarde assumiria uma postura crítica.

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terra. Aquele que acredita em forças ocultas e não nas leis de atração entre grandes

massas é no mínimo alguém que está afastado do nível de consciência normal das

sociedades ocidentais. Mesmo assim, devemos respeitar as "razões" pelas quais

alguns homens têm, em não compartilhar dos sistemas ocidentais, seja por crenças

particulares, seja por pertencer a culturas diferentes.

Diderot publicou em 1748, em anonimato, um romance chamado Bijoux

indiscrets , onde criticava os adeptos da hipótese cartesiana dos turbilhões em favor

da síntese newtoniana80.Na hipótese dos turbilhões a terra era alongada nos pólos,

semelhante à um melão. Esta questão só seria resolvida quando Maupertius mediu

as distâncias entre a terra, no golfo da Batria e Kitris. O meridiano ali medido era

500 faesas comparado ao meridiano compreendido entre Paris e Amiens, o que

provava que a terra era realmente achatada nos pólos. A questão do achatamento

nos pólos revelava uma aceitação prévia do princípio de atração universal. Naquela

situação, dentro da academia cartesiana, a medição de um meridiano próximo à um

dos pólos poderia ser o experimentum crucis da física da atração.

Antes do sistema newtoniano, havia a idéia de um mundo estático através da

visão aristotélica e ptolomaica. Sua superação era essencial para uma nova visão de

mundo, através disso era possível explicar, por exemplo, a Hipothesis terrae motae

(hipótese do movimento da terra) e o fenômeno das marés. Os trabalhos de Newton

referentes à natureza da luz explicavam outra série de fenômenos como o arco-íris e

a aurora boreal.

Casini procurou também demonstrar, como as idéias de Newton teriam

resistência entre os intelectuais franceses, partindo da premissa de que o

cartesianismo era um obstáculo.81 Se considerarmos esta premissa, como fica então

Portugal, o qual não se tem indícios de que nem mesmo o cartesianismo teve

penetração?82.

80 Havia uma certa rivalidade entre a Académie de Sciences francesa de ciências e a Royal Society

inglesa. A teoria cartesiana dos turbilhões partia da hipótese de que a terra era um elipsóide alongado na direção dos pólos. Neste sentido, era um "paradigma" dominante no interior de uma corporação de físicos e de astrônomos que se identificavam com a Académie de Sciences de Paris. Assim disse Voltaire:"Em Paris imaginam a terra como um melão; em Londres achatada nos dois pólos. Opcit., p.62. Casini.

81 Ibid, p.179.Fala-se de uma escolástica cartesiana. 82 Opcit, p.199. IVONE, DIAS p.199. Sobre as circunstâncias difíceis da divulgação e implantação

do cartesianismo e transição deste para o newtonianismo.

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O caso italiano é bastante específico, uma vez que dali surgiu Galileu e da

Vinci, que conseguiram escapar da cultura essencialmente retórica e humanista, e

por isso puderam produzir o que se conhece como a primeira revolução científica -

com Galileu83. Considerando então que a síntese newtoniana tenha representado não

apenas para os cientistas da época - palavra que seria anacrônica para denominar os

homens pertencentes ao universo que hoje denominamos científico - mas para os

homens cultos do século XVIII europeu, uma experiência intelectual decisiva,

devemos investigar como se deu para o caso português, assim como os estudos de

Casini para o caso italiano.84

2)O ambiente intelectual Português

A casa dos Ericeiros, em frente de S.José da Anunciada, foi o primeiro

cenáculo "esclarecido" português85. Nos últimos anos do século XVIII, funcionou

na casa dos Condes uma espécie de Academia, chamada dos "discretos". As pessoas

que freqüentavam esta casa eram na sua maioria estrangeiros, como o sábio francês

António de Jussieu, da Académie de Sciences de Paris, assim como Bluteau,

nascido em Londres de pais franceses. Bluteau fez seus estudos na França e na

Itália, a sua chegada à Lisboa remonta a 1656, e lá morreu em 1734. Assim foi o

caso de Verney, que teve contato com intelectuais de renome como António

Genovese e Luiz Muratori.86No entanto, embora sua simpatia pelos modernos e pelo

seu espírito científico, só se pode afirmar que seja provável que conhecesse o

Discurso do Método87.

Sendo assim, a renovação da cultura portuguesa deve-se quase

exclusivamente à influência dos estrangeiros e estrangeirados.88 Alguns estrangeiros

83 GARIN, Eugênio. Ciência e vida civil no Renascimento Italiano. São Paulo: Editora

Universidade Estadual Paulista, 1986. 84 Ibid, p.178. Casini. 85 DIAS, Silva de. Portugal e a cultura européia, p.105 86 Ibid, p.192. 87 Ibid, p.107-110. 88 Ibid, p.118. "A primeira metade do século XVIII foi teatro de uma luta intensa entre o elemento

cosmopolita e o elemento sedentário da nação. Ao mesmo tempo que a diplomacia facultava a muitos portugueses a descoberta de idéias, dos costumes e da política em vigor na Europa de além Pirineus; aportavam ao Tejo alguns forasteiros que traziam consigo os rudimentos do saber universal.

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tiveram a iniciativa de introduzir as idéias de Newton. Castro Sarmento, por

exemplo, enviou para Lisboa, com dedicatória ao Rei, o manuscrito de uma

Chronologia Newtoniana Epitomizada. A corte porém, recebeu estas obras sem

qualquer testemunho de interesse, pelo menos aparente, pois nunca foi publicada.89

Em 1744, publica-se a Lógica Racional Geométrica e Analítica de Azevedo Fortes.

É o primeiro livro de caráter didático e sistemático modelado pelo padrão europeu90.

Nele encontram-se fortes traços de Cartesianismo.91 Foi somente na Quarta década

do século XVIII que se declarou o magno conflito entre a cultura livre e a cultura

das escolas, que veio a terminar nas célebres reformas pombalinas. Com a

publicação do Verdadeiro Método de Estudar em 1746, a comunidade intelectual

portuguesa sofreu um choque com as novas idéias que traziam esta obra.

89 Ibid, p.125 90 Ibid, p.132 91 Ibid, p.134

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CAPÍTILO III: SISTEMA VERNEYANO

1)O Verdadeiro Método de Estudar

Verney critica com muitos argumentos, e através de assertivas os pontos

nevrálgicos do antigo método de estudar escolástico. Estudos de Medicina, Teologia

e ambos os Direitos partiam de uma orientação filosófica preparativa. Assim, como

não havia uma metodologia especializada para cada uma das ciências, partia-se de

uma metodologia única.

Um destes pontos se refere ao Silogismo, que poderia ser grosseiramente

definido como um método de explicação através de recursos bastante complexos de

retórica.92O Silogismo começou no Ocidente no século IX, e aumentou no XI; e

durou até o meio do século XVI. Verney não afirma que tal método seja totalmente

inútil, mas muito complexo para poucos resultados. À ele Verney opõem o estilo

"dialético", " o estilo de falar conciso e breve", sem aquelas figuras que constituem

o estilo retórico. Ele os associa aos sofistas. "O investigador, crítico, o homem de

ciência atêm-se às observações diretas e pessoais; o sofista raciocina por dados

especulativos, e o silogismo fornece-lhe um instrumento precioso para as suas

especulações infundadas.93"Poderão as palavras e modo com que se diz dar mais luz

às razões; mas palavras sem razões nada provam".94

A verdade e a razão é uma só. Todos podemos discorrer e entender o que nos dizem; e

quem fala em maneira que melhor o entendam, e prova melhor o que diz, esse é que se deve

seguir com preferência aos outros...Esta é a pedra de toque não só da lógica, mas de

qualquer outra faculdade: temos por princípio coisas tais, que os entendam todos os que

dão alguma atenção às ditas regras....Importa pouco o que disse este ou aquele da lógica;

o que importa é facilitar os meios para não se enganar e buscar para isto um método que a

92 O silogismo é um processo habilíssimo de argumentar ensinado por Aristóteles no Organon e

usado com fanático excesso pelos seus postiladores da Idade Média. Os escolásticos recorriam ao silogismo como um instrumento infalível nas especulações Teológicas e metafísicas. São assaz complexas as regras da silogística. O Silogismo poderia ser considerado de forma sintética como uma metáfora donde se retira determinadas conclusões. Por exemplo: Todo homem é animal, Pedro é homem, logo Pedro é animal. Ex. Cf.nota nº1 da edição de Joaquin Ferreira.

93 Edição de Joaquim Ferreira, p.162

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"boa razão" persuade ser útil, e os homens que tem voto na matéria reconhecem, com

razão e experiência, ser o único meio para conseguir aquele fim. Além disso, propô-lo de

um modo que qualquer pessoa de juízo se capacite da dita verdade95

Da mesma forma critica a física96 dos peripatéticos97, estes desprezavam a

experiência pelo que elas tinham de iconoclastas98. "Não devemos querer que a

natureza se componha segundo as nossas idéias; mas devemos acomodar as nossas

idéias aos efeitos que observamos na natureza."99

Verney opõe a este método o que ele chama de "boa filosofia" termo que

associa como sinônimo de ciência. Verney tinha consciência de que seus opositores

interpretavam as filosofias modernas como de Galilei, Descartes, Gasendo e

Newton como heréticas. Comenta sobre o impulso dado às ciências naturais com a

fundação das Academias, em 1662-63 a de Londres, 1666 a de Paris. Em vários

lugares da Europa já se ensinava publicamente a Filosofia Moderna, em Itália,

França, Alemanha e até mesmo em alguns colégios jesuítas na Itália100. Não se

justifica o preconceito aos modernos, uma vez que a filosofia moderna já está

introduzida entre Católicos doutos.101

1.1)Razão em Verney

Trechos do Verdadeiro Método de estudar compreendem idéias compiladas

de Locke, principalmente do seu "Ensaio sobre o entendimento Humano"102. Esta

influência é muito forte nas críticas ao Silogismo, a qual se ocupou bastante Locke.

Verney apesar de admirar Descartes, mantém um certo afastamento pois na sua

opinião é um sistema "mais engenhoso do que verdadeiro", pois foi o primeiro que,

94 Verdadeiro Método, p.54 95 Opcit, p.163.Verney.(in) Joaquim Ferreira. 96 Para Verney, a Física, sinônimo de Filosofia, é conhecer as coisas pelas suas causas, ou conhecer a

verdadeira causa das coisas. Verdadeiro Método.pg39. 97 Escola fundada por Aristóteles através do legado deixado por Platão. 98 Ibid, p.67..Joaquin. 99 Verdadeiro Método de Estudar, p.190.Joaquin Ferreira. Bayle.p67 100 Ibid, p.36 101 Ibid, p..36 102 Cf. pp54-97 (subordinação total à Locke), também ver pp198-203

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depois de Galileu e de Bacon indicou o método de fazer progressos na Física através

de um sistema ou hipótese para explicar todos os fenômenos naturais.103

Em última instância, a razão é a faculdade pela qual o homem é suposto

distinguir das bestas, e pela qual é evidente que ele as ultrapassa.(198). É também a

faculdade que descobre os meios, e corretamente os aplica, para descobrir a certeza

em um, e probabilidade no outro. Contém duas faculdades, a sagacidade e a ilação,

por uma ela descobre, pela outra, organiza as idéias intermediárias a fim de

descobrir que conexão há em cada elo da cadeia. (raciocinar: capacidade de fazer

conexão entre idéias). O Silogismo peca porque somente une os extremos de uma

preposição, e não a conexão do meio com os extremos. Não permite o

encadeamento de todos os elementos de evidência que constituem um conhecimento

a respeito de algo. A final de contas, antes de Aristóteles ninguém raciocinou bem?

Verney reinvidica a capacidade natural do homem de raciocinar: "a capacidade de

discernir evidências é tão natural quanto o ato de comer, não precisamos ter

consciência toda do processo "104.

Para Verney os Silogismos além de serem inúteis são prejudiciais. Verney

recomenda toda uma nova visão de mundo que era avessa aos intelectuais

portugueses. O que se estudava nas escolas não tinha utilidade fora delas, já não se

adequavam mais às necessidades de uma nação. Além de serem extremamente

complexos e prolixos, não explicam nada ao que deveria constituir uma Física105 O

meio para uma mudança era uma disputa pública (107) onde deveria haver um

critério comum da acepção de verdade. Portanto era essencial a superação do

Silogismo, que era a forma de argumentar da maior parte das disputas portuguesas.

103 Verney não diz que Descartes é desconhecido em Portugal e que ninguém chegou a ler sua obra.

Uns não compreendem, outros o combatem sem leitura, reclama por interlocutores.idem.pg16 104 "A razão disto é porque, sem tanta erudição, a máquina do nosso corpo está disposta em modo

que, metendo o comer na boca e querendo mastigar, tudo aquilo se faz sem estudo ou reflexão alguma. Da mesma sorte, a máquina espiritual da nossa alma (se me é lícito servir-me desta expressão) recebeu tal faculdade de Deus, que conhece todas as coisas evidentes, e especialmente a conexão de umas com outras, sem estudo ou artifício algum, ainda que nesse mesmo acto de conhecer pratique aquilo que superfluamente aprenderia de outro". VM.pg71

105 "são arengas que confundem o juízo e para coisa nenhuma serve...Para mostrar a V.P o merecimento destas questões, basta pedir-lhe queira refletir e examinar que utilidade delas se tira para ser bom Físico".V.M.pg152-153.

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A mesma linha crítica ele aplica aos conceitos escolásticos dos acidentes106,

dos predicamentos107, a causa Final e Exemplar108 e outros.

Verney se indigna com a separação da Metafísica da Física, sua separação

deve-se ao fato de uma reorganização dos textos antigos criados pelos Peripatéticos,

e que, sem explicação - talvez por tradição - vigoravam nos meios acadêmicos

portugueses.

Verney dirige críticas diretas a determinados autores renomados da época.

Como por exemplo Benito Jerónimo Feijóo y Montenegro (1676-1764); a obra deste

padre beneditino tem o mesmo caráter crítico do Verdadeiro Método de Estudar

para o caso espanhol.109Sua principal obra é o Theatro Crítico Universal ó

Discursos varios en todo o genero de materias para desengaño de errores comunes

(1726--39), combate as crenças populares e o obscurantismo na Espanha. Suas

idéias também causaram polêmica e houve muitos críticos debatedores. Verney não

se surpreende com as explicações de Feijóo. O pórtico da obra de Feijóo é uma

argumentação contra o provérbio popular Vox Populi, vox Dei (a voz do Povo é a

voz de Deus). Para Verney "qualquer bom Filósofo, e que tenha um juízo claro,

reconhece que não há conexão nenhuma entre a voz do Povo e a voz de Deus"(161).

Exemplifica com as beatas que são "canonizadas pelo Povo serem depois castigadas

publicamente pelo Santo Ofício"(162); "se vêem mil impostores que enganam por

muito tempo os Povos"(162)."A boa Lógica aplicada a estas matérias poupam todos

esses discursos". Verney critica Feijóo por ser Peripatético e por não saber

Matemática: "como é possível que discorra bem da Física"(164).

Verney tinha uma idéia própria para o que ele chamava de boa Filosofia.

Neste sentido deveria se levar em conta: "a principal parte da Filosofia que é a

106 "O acidente da cor não é uma entidade distinta da substância, fato que é comprovado à luz das

descobertas no campo da Física da Luz"V.M.pg128 107 Uma das dez classes a que Aristóteles reduziu todas as coisas (Dic. Barsa - 1384)

108 "tudo se funda em que há no mundo uma ação, cuja natureza é ser dependência do Fim e do Exemplar...o agente racional que obra alguma coisa tem seu Fim, pelo qual o faz; e muitos o faz para imitar alguma coisa, a que chamam Exemplar. E isto entende-se facilmente sem explicações; mas de nenhum modo conduz para entender o que é Física"V.Mpg154

109 Benito Jerónimo Feijóo y Montenegro (1676-1764); benedito do mosteiro de S.Julião de Samos, que procurou combater, com a maior projeção possível (por isso em forma muito acessível a toda a categoria de leitores), todos os erros e superstições, ao mesmo tempo que divulgava as aquisições científicas que ia respingando por publicações estrangeiras (Diários de Academias, Dicionários enciclopédicos recentes) ou por informações de pessoas autorizadas com quem se davaV.M citação do comentador.pg 158

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Física, visto que a Lógica parece ser somente uma disposição do entendimento da

natureza das coisas, o que se alcança por meio das suas propriedades e da redução

aos próprios princípios."(121). A Física "é a ciência que trata da natureza das coisas,

cuja pretende alcançar por meio das suas propriedades"(121).

Reclama uma determinada conduta em relação aos fenômenos naturais,

deve-se evitar "ser hipotético na explicação das causas (que é o mesmo que dizer

maus Filósofos)"(182). "Por isso, os Cartesianos e Gasendistas, ainda que se

chamem modernos porque se fundam nas experiências, contudo são filósofos

hipotéticos (que é o mesmo que dizer maus Filósofos), porque supõem muitas coisas

que não provam"(201). Então adverte que "nem tudo o que passa com o nome de

Filosofia Moderna se deve admitir"(252). E por isso Verney demonstra sua

preferência por Newton110 à Cartésio e Gasendo (201), pois defende a experiência

como fonte da verdade (203). Mesmo assim Verney recomenda que não joguemos

para fora a água junto com o bebê:

"quem lê por Newton, Musschenbroek, Gravesande, De Martino, Keill, e outros Filósofos

semelhantes, - este homem, ainda que se encontre com Fabri, ou Tosca, ou Saguens, ou

Cordemoi, ou Regis etc. e outros modernos hipotéticos, saberá neles deixar o que deve,

escolher o melhor, emendar algumas coisas, e finalmente separar o branco do negro".

Mas para empregar-se nestes estudos é necessário ter primeiro os requisitos

necessários: Geometria e Aritmética (205-206), "entre os homens doutos, querer ser

Físico sem Matemática é heresia"(217).

Verney lamente "que o jurar determinada doutrina é o primeiro impedimento

para toda a sorte de estudos"(178).

Verney ressalta a necessidade de se falar bem Francês e o Italiano para ficar

interado das principais obras que circulavam pela Europa. E "para ser bom Filósofo,

não é necessário saber latim, coisa que os Peripatéticos nunca entenderam". "No

presente podemos saber muito sem saber Latim. Quase tudo se encontra traduzido

para o vulgar"(230). No entanto"...em Portugal pratica-se o contrário com tanto

110 Entre as páginas 208-209, Verney expõem com clareza sua preferência por Newton, explicando os princípios que constituem a base da Física moderna (as leis de Newton).

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empenho, que quem defendesse umas conclusões de Filosofia em Português,

perderia o conceito"(230). O Latim era considerado uma língua universal, e base de

expressão para a Filosofia. Percebemos que costumava haver uma certa seleção de

obras a partir do idioma em que era escrita, havendo um certo preconceito em

relação àquelas escritas em "Vulgar"111. Esta tendência parecia ser muito forte em

Portugal, pois "tornando à Física, todas as Nações cultas têm-na escrita na sua

língua. Holandeses, Iudescos, Ingleses, todos escrevem em vulgar, mas quase tudo

isto acha-se traduzido em Francês".

Com relação à Política, percebemos concordância com o pensamento

lockeano do direito natural quando afirma que "não se passa virtudes ou vícios pelo

sangue"(276). Destaca-se o valor dado por Verney à Ética, que era constituída por

exemplos civis tirados da História. Considerava-a no mesmo plano da

Jurisprudência, do Direito, da Lei natural e a Lei das gentes. Ela daria conta de

todos estes termos utilizados na época que "ensina o modo de regular as ações dos

homens particulares enquanto são membros da sociedade civil"(292). Verney sugere

indiretamente a substituição da moral religiosa pela Ética, mais útil às necessidades

da sociedade civil.112 Neste ponto será muito censurado por seus críticos, que

desprezavam a necessidade da Ética, pois tudo que concerne a este termo se

encontrava na Religião. Na matéria da Ética, Verney faz advertências ao que ele

chama de autores pouco recomendáveis como Maquiavel, Hobbes e Espinoza: "

esse por tirar a liberdade do homem e confunde o Homem com Deus, e tudo isto

debaixo de belíssimas expressões que podem enganar qualquer"(297). A mais

estranha de todas é a inclusão de Locke no lista dos autores não recomendáveis

para o estudo da Ética, pois até aqui acreditamos que tenha sido a sua maior

influência, principalmente quando falamos do Locke pedagogista de Some Thoughts

concernig Education.113 Finalizando estes comentários sobre o Verdadeiro Método

de Estudar, segue o posicionamento de Verney em relação à sua fé, a qual

111 Termo utilizado por Verney. 112 Verney diz não haver um bom compêndio sobre a Ética no seu tempo, mas enquanto

permanecesse esta carência poderiam ser utilizados Grócio e Pufendorf com algumas ressalvas.(294) 113 Acredita-se que Verney tenha tido contato com as obras de Locke através das traduções de Pierre

Coste dos Thoughts em 1695 e a do Essay em 1700.

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consideramos de extrema atualidade e de bom senso, embora não pareça ser muito

apropriado para um padre daquela época:

São todos obrigados a reconhecer que existe uma cousa inteligente que não é

matéria, a qual produziu não só o mundo, mas a mesma matéria. Provado isto, fica

claro que há Deus; porque isto queremos significar por esta palavra Deus.(246)

2)Reflexões Apologéticas114

de um padre jesuíta115

O padre Arsenico da Piedade foi um dos maiores críticos de Verney. Com as

próprias palavras do editor da obra anônima Reflexões Apologéticas, podemos

perceber seu propósito:

Houve entre os sábios da nossa corte hum dos que veneramos com mayor respeito, que com

verdadeiro zelo quis desagravar o credito da Nação ingratamente offendida pela livre

mordacidade de hum Critico, que talvez, como monstro em si alimentou, mostrando com

subtilíssimas Reflexoens os muitos erros, e alguns perniciosos, que pretendia

simuladamente introduzir116

Para o autor o título da obra é mentiroso, pois não tem nada de verdadeiro no seu

ponto de vista. Fica indignado pela consideração dada por Verney à Duns Escoto:

entre os filhos de numerosa família Serafica houvesse hum, que se atrevesse a dizer mal de

Escoto?...a audacia com que contra um gigante da sabedoria se atreve hum pigmeo, sem

mais autoridade que a sua vaidade; e sem mais fundamento que o da sua idea, queira

lançar fora das aulas das Universidades a tão grande homem. La fahe com quatro livrinhos

Francezes, talvez, doze, para caberem no bolso, e mande Deos não sejão alguns nascidos

114 Apologética: 1.parte da Teologia destinada a defender a religião contra os ataques dos

adversários.2.defesa argumentativa sistemática ou discurso em defesa de alguma doutrina, teoria ou idéia. Dicionário Barsa.pp166

115 Merecem alguns comentários em relação a esta fonte. Primeiro em relação à dificuldade em encontrá-la, pois teve de ser solicitada à Biblioteca Nacional de Lisboa. Um primeiro aspecto a salientar se refere à grafia do texto, o qual seria mais legível a partir de um estudo paleográfico. Faz-se uso da ortografia oitocentista lusitano. O "s"e o "f" tem valores fonéticos idênticos, nas citações foram convertidos ao seu valor atual. Outro ponto fundamental é o próprio vocabulário da época, por vezes um pouco obscuro.

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em Holanda, ou Inglaterra, feitas criticas da moda...e o que direi da, fatuidade com que

critica a doutrina de Santo Thomaz 117

O que se observa é um forte preconceito às chamadas idéias modernas.118 Para

simplificar o caráter destas obras, Piedade os acusa de não possuírem firmeza na fé

e de "concordar muito com as invectivas dos hereges contra todos os Doutores

escolásticos, e como não podem com razões desfazer a doutrina, procuram desfazer

nos Autores"119. Ele valoriza muito a autoridade dos grandes clássicos, e acredita

que necessariamente só se torna um grande letrado através da erudição, e que não se

pode deixar-se atrair pelas "promessas de que com pouco trabalho, e em breve

tempo ficarão grandes letrados."120 Existe um forte apelo político em suas

argumentações. Critica os modernos como estrangeiros pertencentes à uma moda

vinda da Inglaterra, França, e Flandres121. Estes

fizerão os animaes viventes automatos, e insensiveis...tirarão a definição ao homem

duvidando, que se defina ANIMAL RACIONAL...O globo da terra, que até agora tínhamos

por redondo, apareceo ovado, e em continuo movimento na nova idea de Copernico,

ficando o sol parado, sem ser a rogar de Josué; ao ar derão-lhe um grande pezo, e pobre

da alma racional lá a prenderão na cabeça, sem consentirem, que visitasse as demais

partes do corpo humano.

Aqui podemos perceber que Piedade não admite a hipótese do movimento

da terra, muito menos a idéia de homem como um animal racional. Reclama da

teoria cartesiana dos turbilhões que afirmava que a terra era ovada. 122No entanto

não se aprofunda em suas críticas, mantendo sempre uma postura defensiva.

Compara Verney à um alfaiate que "se aparece alguma coisa má ou menos ajustada,

lá vai a tizourada...mas se a sciencia do mestre alfaiate é como a sua gaveta, onde se

116Palavras do editor Nuculao Francez Siorum no prefácio da Obra Reflexões Apologéticas.BN 117 Ibid, p.2 e 3. 118 Para Dias os dois aspectos que animam o Padre Araújo são: o primado da especulação e o culto

da autoridade.pp210 119 Ibid, 2 e 3 120 Ibid, 2 e 3 121 Ibid, p.7 122 Sobre este aspecto ver pag.22 desta monografia.

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não acha pesa inteira, tudo são retalhinhos de bayeta, feno, seda, e de várias

cores"123 .

Ao criticar os desígnios da obra apontados por Verney, ele sugere a criação

de métodos para controlar os sistema fluviais da cidade, construir métodos para

concentrar as ruas, evitar roubos e mortes. Esse deveria ser a matéria mais útil e

agradável para ambos os seus tomos, o autor sugere então o seguinte título para tal

obra, que seria de maior proveito para a sociedade portuguesa: "Verdadeiro método

de trabalhar"124 Infelizmente sabemos que para a criação de tais métodos se faria

necessário um novo entendimento dos fenômenos da natureza.

Na sua Reflexão VIII, Da lógica Aristotélica, Piedade usa uma forma de

argumentar bastante sentimental, e pouco racional, acusando Verney que "se

soubesse onde estão seus ossos, era capaz de os mandar à queima". Aristóteles errou

porque era filho de Adão - o primeiro pecador - e por isso está isento de seu engano

- suas idéias sobre o ar peso - pois "pelo pecado ficamos sujeitos ao engano"125. Para

Piedade as falhas, as dúvidas levantadas por Verney contra Aristóteles são

"embaraços" causados pela falta de habilidade em discursar, saber fazer uso das

chamadas "galanterias da Escola".126Para ele a formação dos silogismos não contém

erros, mas sim embaraços. Defende a Metafísica como o alicerce da boa doutrina,

afirma que debaixo do ente metafísico se pode tratar toda a filosofia.127

Conclui que os argumentos de Verney, "nem prova contra os estudos da

Metafysica, nem impugna os princípios Aristotélicos"128Critica o elogio de Verney

ao método experimental e reafirma que os instrumentos da mecânica não desfazem

o Sistema Aristotélico. Da mesma forma defende um contemporâneo seu, o padre

Francisco Duarte, talvez o segundo maior adversário de Verney. Este critica a

posição dos experimentalistas quando desprezam a causa dos efeitos, sendo estas de

123 Ibid, p.8 124 Ibid, p.9 125 Ibid, p.27 126 Ibid, p.27. Ver Dias pg.217." E quanto uns olhavam para as palavras e pensamentos rebuscados,

subtis, ou caprichosos, como o non plus ultra da inteligência polida, dirigia-se o outro para a expressão racional e espontânea, pedida pelo neo-classissismo. Equivale isso a dizer, relacionando a pedagogia com a filosofia, que a oposição entre eles exixtente era, afinal, de mentalidades e de visões de vida."

127 Ibid, p.29 128 Ibid, p.31

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maior importância.129 Neste sentido, Duarte defende o que se costumava chamar de

Física especulativa. Para Arsenico, o sistema de Cartesio já estava morto a muitos

séculos; e os Espanhóis "que tem o juízo em seu lugar, proibirão o livro dele, e os

mandarão sepultar na cova do desprezo", para ele melhor do que Cartesio foi Platão,

e que o Sistema de Aristóteles concordava mais com os dogmas da Religião130. Para

ele "é a teologia que mostra quais filósofos discorrerão bem, e quaes os que se

enganarão". 131

Piedade defende a fidalguia e nega que em quatro anos se possa aprender

Filosofia, Ética, Cronologia, Geografia, Astrologia. No seu ponto de vista não há

necessidade da experiência de viagens para outras partes do reino como requisito

para se exercer cargos públicos, "é suficiente as notícias que vem de lá....as notícias

e a boa capacidade são suficientes para os ministros e conselheiros"132

O padre Arsênio reivindica a precedência da Teologia perante as demais

filosofias, ela possuía um privilegio pelo fato de se preocupar com questões

essenciais ao homem douto133. As perguntas que a nova Ciência propunha,

relacionada à dinâmica dos corpos, à física, à matemática eram superficiais no seu

ponto de vista. Daí a idéia de Verney de que "na Theologia se não introduza a razão

natural, salvo se for necessária para explicar os dogmas"134 Para Arsênico a ciência

natural não deve ser tratada pela Teologia: pois "com que justiça são obrigados os

Teólogos a trazerem sempre prezo o seu entendimento, para discorrerem em cousas

que não são de fé?..São melhores as especulações da bomba; pezo do ar, e a sua

elasticidade?"135 Este tipo de inclinação é associado à heresia, pois: "Aqui é, que se

pode beber veneno".

Critica Verney pela sua condescendência com os argumentos dos judeos, que

conseguem proteger a sua "perfídia", por isso peca por deslealdade com a fé.

Também para com os comentários em relação às mulheres, onde propões a sua

129 Crítica retirada de sua obra Retrato. Opcit. Dias 213 130 Ibid, p.33 131 Ibid, p.36 132 Ibid, p.44 e 45. Esta crítica vai de encontro aos comentários de Verney para o perfil dos

Conselheiros Ultramarinos. 133 Ibid, p.52. 134 Ibid, p.52 135 Ibid, p.52

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inserção aos estudos. Para Arsênico a razão que para isso aponta não presta.136Na

opinião do crítico, as mulheres devem primeiro governar suas casas, e se lhe sobrar

tempo, podem estudar um pouco para se "governarem bem". Pois nada vale a

opinião de uma mulher que não queira primeiro governar sua casa.137 Para concluir

termina dizendo : "Deus guarde a V.Charidade, e o livre de semelhantes idéias".

136 Aqui a razão esta dirigida à questões de costume, neste caso, um consenso sobre a condição da

mulher nesta sociedade. 137 Ibid, p.54

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Conclusão:

As cartas de Verney sobre a Filosofia constituem um sistema próprio, um

sistema que procura conciliar o que havia de melhor na Filosofia até então, um

sistema verneyano. Sua obra representa uma consciência européia138, pois estava

interado da maior parte das discussões que englobavam o debate Iluminista. De

forma sensata, elenca uma série de referências que hoje são fundamentalmente a

base de toda a Filosofia Moderna. Através da análise de Casini constatamos que

Verney percorreu o mesmo percurso para se chegar ao newtonianismo. De outra

parte, no aspecto da filosofia política, verificamos uma forte influência de Locke.,

em alguns trechos do Verdadeiro Método de Estudar existem evidência clara de

transcrições de sua obra.

Concluímos que a forte identidade portuguesa à Igreja Católica chega a

superar a fidelidade dos membros da corte papal no que se refere aos campo

intelectual. Os Portugueses ficaram fortemente agarrados aos conceitos aristotélicos.

Paralelamente percebemos um forte preconceito às idéias provenientes do

estrangeiro, que contrasta com o espírito cosmopolita das outras nações. Deve-se

considerar que o cosmopolitismo era um traço fundamental do movimento

Iluminista, fato que podemos exemplificar com a trajetória de Verney.

Mais cedo ou mais tarde as idéias modernas acabariam sendo assimiladas

pelos jesuítas, pois mesmo antes da expulsão, já havia sinais desta penetração nas

obras de alguns padres da ordem.

Acredito que deve-se relativizar a ênfase na figura de Pombal como

representante do Iluminismo português, fato que a historiografia já tem demonstrado

com relação à algumas de suas reformas. Tanto Pombal como Verney não estavam

isolados dentro da sociedade portuguesa do século XVIII, havia uma série de

críticos e de colaboradores.

Por último, podemos afirmar que houve Iluminismo em Portugal, desde que

o consideremos como um debate de idéias.

138 Consideramos aqui o conceito defendido por Casini. (In) Newton e a consciência européia.

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Arsenio da Piedade.

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