a cosmopoética da fragilidade: abderrahmane sissako, a sensibilidade cosmopolita e a...

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA objetos de discursos MAHOMED BAMBA ALESSANDRA MELHRO Org. SGLUCdor, EDUFBA, 2012

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A cosmopoética da fragilidade: Abderrahmane Sissako, a sensibilidade cosmopolita e a imaginação do comum. In: BAMBA, Mahomed; MELEIRO, Alessandra (orgs.). Filmes da África e da diáspora: objetos discursivos. Salvador: EDUFBA, 2012.Leia mais: http://www.incinerrante.com/filmes-da-africa-e-da-diaspora/

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  • FILMESDAFRICAE DADISPORAobjetos de discursos

    MAHOMED BAMBAALESSANDRA MELHROOrg.

    SGLUCdor, EDUFBA, 2012

  • 2012, AutoresDireitos para esta edio cedidos Edufba.Feito o Depsito Legal.

    Projeto grfico, capa e editorao eletrnicaAlana Gonalves de Carvalho Martins

    RevisoIsadora Cal Oliveira

    NormalizaoRodrigo Meirelles

    Sistema de Bibliotecas - UFBA

    Filmes dafrica edadispora :objetos dediscursos/ MahomedBamba,Alessandra Meleiro, organizadores. - Salvador : EDUFBA,2012.323 p. il.

    ISBN 978-85-232-0999-5

    1. Cinema africano. 2. Dispora. 3. Cinema africano - Aspectossociais. 4. Cinema africano - Aspectos polticos. 5.Antropologia. I.Bamba, Mahomed. H.Meleiro,Alessandra.

    CDD - 791.43

    Editora afiliada

    CBaLumvsnsrrmmsa: AMERICA _ ,LATINAYEL ::mas du Educm Univ-mudas Cmara Bahiana do Lrvm

    EdufbaRua Baro deJeremoabo, s/ n - Campus deOndina40170-115 - Salvador - BahiaTel.: +55 71 3283-6164 | Fax: +55 71 3283-6160wwwedufba.ufba.br l [email protected]

  • Sumrio

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    IntroduoFILMES DAFRICA EDA DISPORAimagens, narrativas,msicas e discursos

    Norrotiuos ps-guerra ciul Angolano eMoombiconoA EXPERINCIAANGOLANA DEGUERRA EPAZum olhar por meio da representao flmica de Luanda emNaCidade Vazia [2004), deMaria Joo Ganga, e emOHeri (2004),de Zez GamboaAntnio Mrcio do SiLuo

    RECONSTRUINDO OCORPO POLTICO DEANGOLAprojees globais e locais da identidade eprotesto emOHeriMorlrz Sobine

    RETRATOS DEMOAMBIQUE PS-GUERRACIVILafilmografia de Licnio AzevedoFernando Arenos

    A onipreseno dodmsico ofricono em"lmes deoutor oriconosA CAMINHO DEUM AMADURECIMENTO NAUTILIZAO DAMSICANO CINEMAAFRICANOSembene, Sissako e SenAbsaBeotrig>Leoi Riesco

    OFILMENHAFALAmusical guineense demltiplos trnsitosJusciele Conceio Almeida deOiiueiroMorio de Ftmo Moio Ribeiro

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    Fronteiras, margens,alteridade eexperincias diaspricasA COSMOPOTICADAFRAGILIDADEAbderrahmane Sissako.a sensibilidade cosmopolitaea imaginaodo comumMarcelo RodriguesSousaRibeiro

    FILMES DE REGRESSOo cinema africano eo desafio das fronteirasAmaranta Cesar

    ESQUIVASrepresentaes das margens no cinema beurCatarina Ama'im deOiiueiro Andrade

    ReaLismo sociaL, cineiia eexperimentaoUTOPIA, DISTOPIA EREALISMONOCINEMA DEFLORAGOMESDeniseCosta

    MOUSTAPHAALASANE, UMBRICOLEURNOCINEMA DONIGERCristina dos Santos Ferreira

    Imagensdo corpo damuiher eguras do "eu" femininoemquatro imesCONSTRUO DEUMANARRATIVA DEAPRENDIZAGEMEMlSE-EN-SCNEDOCORPO FEMININOEM HALFAOUINEEUNT LAGOULETTE (DEFRID BOUGHEDIR]Mohamed Bamba

    CERZIDEIRA DEMEMRIASnarrativas do dilaceramento emContos Cruis deGuerra,de IbeaAtondLiuia Maria Natalia deSouza

    DE CARTA CAMPONESA (1975) CARTA A SAFI FAYESdgoneLima Costa

    SOBRE OSAUTORES EORGANIZADORES

  • A COSMOPOTICA DA FRAGILIDADEAbderrahmane Sissako,

    asensibilidade cosmopolita ea imaginao do comum

    Marcelo RodriguesSougo Ribeiro

    INTRODUO

    A partir das experincias do exlio e do trnsito entre diferentespaisagens culturais, entrelaando aspaisagens damemria e os pa!noramas dahistria recente daglobalizao, umadas questes que ocinema deAbderrahmane Sissako articula aquesto docosmopoli!tismo. Sesua biografia constitui um recurso importante para enten!dermos suas concepes dessa questo eoferece possveis chaves deleitura para suas obras, suas escolhas temticas e suas buscas estti!cas configuramuma abordagempotica do que chamo de cosmopo!lticas da globalizao.

    Qualquer interrogao do cosmopolitismo passa hoje por umacompreenso da nao, como conceito e forma poltico-cultural, talcomo se reconfigura em meio aos fluxos da globalizao. Entre asprojees do mundo como sistema ou como totalidade e as formasdepertencimento que marcamasidentidadesmltiplas dequalquerser humano, o que se insinua a problemtica do comum. Como ocinema deAbderrahmane Sissako articula a questo do cosmopoli!

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  • tismo? Quais so as possibilidades e os limites da noo de cinemanacional para sua compreenso? Ou seria preciso, para dar contado que est emjogo em seus filmes, movimentar a noo de cinematransnacional? Entre o nacional e o transnacional, em que sentidosseprojeta - em seus motivos e temas, em suas caractersticas est!ticas, emsua abordagempotica das cosmopolticas daglobalizao- uma concepo ou, mais justamente, uma imaginao do comumno cinema de Sissako?

    Embora frequentemente associado a ideias de desapego em re!lao s paixes do pertencimento, o cosmopolitismo efetivamenteexistente ,como escreve BruceRobbins (1998,p. 3,traduo nossa),uma realidade de (re)apego, apego mltiplo, ou apego a distncia".1Em vez de descrever o pertencimento sem apego a uma comunida!dedahumanidade que permanece abstrata emseu universalismo, oconceito decosmopolitismo descreve, desde que pluralizado, formasdepertencimento mltiplo nas quais o comumsed como um efeitotransitrio e tradutrio, no qual possvel adivinhar osfundamen!tos contingentes (BUTLER, 1998) de um mundo por vir. na dire!o deumapluralizao radical da experincia cosmopoltica que seencaminha o cinema deAbderrahmane Sissako.

    ASINVENESDAHUMANIDADEProlongando eseentrelaando auma genealogia que seestende

    retrospectivamente da lanterna mgica pintura, entre outras for!mas culturais, o cinema produz desde o incio imagens do mundo,que repercutemnos sentidos da humanidade". Dachegada do trem estao que os irmos Lumiere registram com seu Cinematgrafos exticas paisagens geogrficas e humanas que, nas feiras e expo!sies internacionais e nos itinerrios deaventura e explorao dosviajantes, desfilam para o olhar ocidental, as imagens do cinema es!to relacionadas desde seus primeiros tempos a uma transformao

    1 a reality of (re]attachment,multiple attachment, or attachment at a distance".

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  • dos horizontes imaginativos (CRAPANZANO, 2004) e da conscinciaplanetria (PRATT, 1999) dahumanidade.Ocinema deSissako per!tence histria das invenes da humanidade - mas setrata de umpertencimento incompleto,parcial, tenso - e para compreender suascaractersticas importante rastrear, mesmo que provisoriamente,suas heranas, com base em uma Viso panormica da histria docinema.

    Quando as aventuras do olhar cinematogrfico se iniciam, no fi!nal do sculo XIX, sua inscrio na geopoltica do sistema mundialcolonial-moderno (MIGNOLO, 2003) marca seus itinerrios e suasformas de representao do mundo. Entre seus primeiros usos, o ci!nematgrafo colecionavistas de incontveispartes domundo, regis!trando figuras do extico - que podeser definido muito literalmentecomo o que transborda o enquadramento do olhar - sob a forma deatraes. (COSTA, 2005; GAUDREAULT, 2008) A sensibilidade queorienta aesttica do cinemade atraes (GUNNING,1990,2003) estassociada a uma tica do olhar na qual o cotidiano metropolitanoe a alteridade colonial se entrelaam na delimitao dos contornosde um imaginrio cosmopolita sobre a humanidade.Amplificando acondio demobilidade do olhar que, sob o signo do deslocamento,funda o olho varivel (AUMONT, 2004) namodernidade, o primeirocinema serevela inquieto emsua curiosidade, embora atrelado aumlugar de enunciao marcadamente ocidental em seu eurocentris!mo. (SI-IOHAT; STAM, 2006; CORONIL, 1996)A herana inquieta doolho varivel atravessa a histria do cinema, com sua sede de paisa!gens do mundo, e vai encontrar, na obra de Sissako, uma paragemque desloca ostermos do jogo, cuja histria envolve, no entanto, ou!tros momentos emovimentos.

    O desenvolvimento do cinema narrativo suplementa as primei!ras imagens do mundo e das diferenas culturais que atravessama humanidade, marcadas pelo regime da cinematografia-atrao(GAUDREAULT, 2008), com uma possibilidade - codificada e, por !tanto, relativamente controlvel dentro deum processo de institu!cionalizao da prtica cinematogrfica - de fechamento simblico

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  • e ideolgico por meio de formas dramticas herdadas do teatro bur!gus e da literatura oitocentista. A emergncia do cinema narrativo,em particular no contexto do paradigma clssico hollywoodiano, sedcomo atransio dapredominncia do regime esttico daatraoao regime esttico da distrao. [RIBEIRO, 2008; BENJAMIN, 1985)Nessa transio, a tica inquieta do olhar que marcava o regime daatrao se deixa domesticar por uma tica da satisfao moral. Aconstruo de um imaginrio cosmopolita se insere num projeto decinema cuja esttica realista enaturalista - baseada emgneros tra!dicionais como omelodrama eaaventura (XAVIER, 2005) esobre aconteno damobilidade do olhar por meio deregras demontagemem continuidade (AUMONT, 2004; BORDWELL, STAIGER; THOMP!SON, 1985; BORDWELL, 1985, 2006) - transforma a narrativa em"ato socialmente simblico (JAMESON, 1992) de resoluo de con!flitos de carter moral. Seo catlogo dos Lumire ou os fragmentosde exotismo no cinema de atraes podem sugerir uma inquietudediante da diferena cultural - que se neutraliza apenas na medidaemque seconverte emdiversidade para oolhar ocidental privilegia!do - um filme como Intolerncia (1916), de D.W.Griffith, promoveuma forma de inveno dahumanidade que, unificada no espao eno tempo pelos parmetros do melodrama, encerra um humanismoindividualista dasuperioridade moral.

    contra osdelrios individualistas eossonhos desuperioridademoral do cinema clssico hollywoodiano que aspropostas soviticas- associadas efervescncia artstica decertos modernismos, emes!pecial do construtivismo, e marcadas pelo contexto revolucionrioem seus momentos inaugurais mais promissores - procuram proje!ta r suas potncias, seus sonhos, seus fantasmas. Nos intervalos enoschoques entre asimagens,DzigaVertov eSergei Eisenstein,entre ou!tros, inscrevem ostraos deum humanismo coletivista, confrontan!do amatriz melodramtica e asconvenes do realismo naturalistade Hollywood com asvrias formas de realismo crtico que corres!pondemaos seus anseios revolucionrios.Emvez dedissimular suasprprias condies de produo e de procurar um efeito de trans!

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  • parncia na representao do mundo, o cinema sovitico interrogasua prpria construo, seja tomando oprprio cinema como tema !como faz Vertov em 0 homemcom a cmera (1929], que seapresentacomo o dirio de um cinegrafista - seja perturbando a continuidadee a transparncia da narrativa com enxertos de carter conceitual,como aconteceem mais de um filme de Eisenstein e,de forma teri!ca, emsuas reflexes sobre a "montagem intelectual" ou "montagemconceitual".

    Seo individualismo clssico e o coletivismo sovitico procuram(rejinventar a humanidade por meio do espelho cinematogrfico,propondo formas distintas e at mesmo contraditrias de realismo, a quebra e a fragmentao do espelho que interessa, de um modogeral, svanguardas dos anos 1920 e 1930. Seja buscando o surre!al e o inconsciente, seja investigando poeticamente a percepo e asensibilidade, asvanguardas interrogamo realismo embusca de suasuperao. Emergeuma forma dehumanismo rarefeita, embora con!tundente: em vez de reafirmar o homem como uma essncia atem!poral que preciso resguardar ou resgatar emmeio sintempriesda histria e do progresso (como tende a fazer o cinema clssico),ou de refazer o homem como um projeto em aberto que precisopreencher com o sopro revolucionrio (como tende a fazer o cine!ma soviticoj, asvanguardas fragmentam o homem emdesejos, empercepes, em formas. O que est em jogo nas vanguardas umanti-humanismo que desfaz o homemnamsica ritmada dasmqui!nas, interrogando osaparelhos e os dispositivos que transformam aexperincia humana na modernidade (sem necessariamente buscaruma essncia perdida ou promover um projeto em construo).

    No contexto dos chamados cinemas modernos, que emergemaps a Segunda Guerra Mundial, as diferentes propostas estticas,ticas epolticas para aprtica cinematogrfica esto relacionadas auma busca por alternativas ao paradigma narrativo clssico e, con!juntamente, por outras vises domundo, seja apartir daherana dasvanguardas e do cinema sovitico, seja a partir de um desejo de ino !vao que, reconhecendo o clssico comuma atitude cinfila, guarda

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  • uma inteno autoral por constituir uma assinatura inconfundvele procura inscrever no cinema a herana ambivalente da arte mo!derna. Sempretenderdiferenciar osvriosmovimentosemomentosque, do neorrealismo nouvelle vague, marcam oscinemas moder!nos, importante notar que constituem uma das formas deconstru!o de cinemas nacionais emoposio aHollywood. (HENNEBELLE,1978) Nesse sentido, trata-se de um cinema em que, a cada vez, opovo, um povo,algumpovo podesefazer visvel - eaudvel, sobretu!do a part i r do advento do som direto - para si mesmo, recuperandoou reconfigurando aconscincia nacional e,atravs dela, a conscin!cia desua humanidade.

    Oscinemas do chamado Terceiro Mundo, envolvidos de algumaforma com projetos estticos e polticos frequentemente naciona!listas e,emtodo caso, marcadamente nacionais, operam tanto umareescrita da histria colonial quanto um descentramento de pers!pectiva na viso do mundo contemporneo, em relao aos cinemaseuro-ocidentais. Oexemplo de Der leone have sept cabeas (1969),de Glauber Rocha, se destaca como um complexo jogo polifnico(GATTI, 1997] que ultrapassa reflexivamente a esfera circunscritado nacional e interroga,comum experimentalismo carnavalesco quetransforma osfundamentos docinema poltico,asrelaes entre eu!ropeus, africanos eamericanos, nas suas mltiplas identidadestni!cas eculturais. Seanao constitui umhorizonte desentido crucialpara as estticas de resistncia (SHOHAT; STAM, 2006) que mar!camoscinemas dos pases doTerceiro Mundo,sua situao serevelaambivalente, abrindo-separa ojogo duplo dos "cosmopolitismospe!rifricos" (PRYSTHON, 2002), em que elementos interiores nao(o locale o regional capturados no espao do nacional) se inscrevemem formas e programas exteriores a sua moldura (as outras naeseointer/transnacional como espaamento efluxo), numa dialticaque perturba a separao entre dentro e fora.

    Naparagem emque o cinema deAbderrahmane Sissako abrigao olho varivel, o entrelaamento de diferentes estticas cinema!togrficas que compe o pano de fundo para suas cosmopoticas.

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  • Longe do individualismo heroico da superioridade moral que mar!cao cinema hollywoodiano e do coletivismo exasperado do projetorevolucionrio que pe em movimento o cinema sovitico, Sissakoescolhe aherana das formas modernas2 de inscrever aspessoas co!muns nos filmes e desloca poeticamente ostermos do cinema polti!co das estticas de resistncia por meio deum passeio pelas frgeisexperincias cosmopolticas que sedesenrolam, cotidianamente, empaisagens transculturais. (LOPES, 2007)

    A VIDA POSSVEL

    Sea importncia do cinema para a construo e reconstruoda conscincia nacional tem sido reconhecida e enfatizada, em di!ferentes contextos, desde o incio do sculo XX, sua importnciainternacional e sua participao na construo e reconstruo daconscincia planetria da humanidade permanecem imprecisas. Osestudos do cinema emnvel internacional tendem a tomar a formade estudos comparados de cinematografias nacionais ou de direto!res de diferentes contextos, assim como de anlises econmicas epolticas relativas constituio de mercados nacionais sob (e emcontraposio a) influncias estrangeiras e elaborao depolticaspblicas decooperao combase emvnculos regionais, lingusticoseculturais diversos.A compreenso do lugar que o cinema ocupa naconscincia planetria da humanidade passa pelo reconhecimentode que, desde seus primeiros tempos, uma srie de espaamentostransnacionais, em que suas projees se deslocam como projteis,

    2 Perguntado sobre cineastas de referncia, Sissako [2003] menciona alguns nomes significati!vos dessa herana moderna,sugerindo um mapa provisrio de influncias: Antonioni, Visconti,Fassbinder,Bergman, Cassavettes. Numa outra ocasio, Sissako (2003a) nota sua distncia emrelao narrativa clssica e a relaciona a sua concepo pessoal do que um filme: Eu notento fazer uma narrao clssica ou fcil pois eu no creio que seja preciso convencer: umfilme chamar algum a ir em direo a mim, chamar a partilhar."(traduo do autor) Textooriginal: "Je n'essaye pas de faire unenarration classique ou facile car je ne crois pas qu'il failleconvaincre : un film, c'est appeler quelqu'un aller vers moi,appeler partager."

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  • constitui deforma irredutvel osespaos nacionais emque o cinematendeu, predominantemente, a permanecer contido como projeto.3

    Uma perspectiva mundial de estudo do cinema envolve neces!sariamente a compreenso das estticas cinematogrficas como li!nhas de fora no contexto deumapoltica da representao e deumadisputa pelo que Edward Said (1995) chama de poder de narrar.Como um dos elementos de uma poca em que a reprodutibilidadetcnica torna crucial o valor de exposio (BENJAMIN, 1985),o cine!ma pertence a um campo de disputa em torno das possibilidades deexposio de imagens enarrativas.

    Se os estudos comparativos de Cinematografias nacionais e osestudos de economia e poltica em torno de mercados e formas go!vernamentais so cruciais para entender os elementos histricos esociais que delimitam oscaminhos docinema nomundo, apenas umestudo textual e transtextual dos cinemas mundiais contemporne!os pode elucidar as formas pelas quais, aqum e alm das naes,por meio de imagens e narrativas as mais diversas, projetam-se oscontornos deuma conscincia planetria dahumanidade.nas ima!gens e com as imagens que se desenham os fantasmas do comume os contornos de uma comunidade da humanidade, definida nasintensidades daesfera da sensibilidade mais do que nas abstraesdaesfera poltico-jurdica das naes edoaparato internacional dosdireitos humanos. Os imaginrios cosmopolitas que o cinema arti!cula projetam formas sensveis de definio do humano. a revela!o das potncias cinematogrficas de inveno da humanidade e deimaginao do comum que est em jogo na leitura que proponho docinema deAbderrahmane Sissako, que constitui, nesse sentido, umexemplo de cinema transnacional, tanto por suas bases estruturais(recurso a diferentes fontes de financiamento, trabalho com tcni!cos, profissionais e atores de diferentes nacionalidades etc.) quantopelo contedo de suas narrativas e pelas formas de sua narrao.

    3 Para uma discusso das relaes entre as dimenses do cinema como projeo, como projetoe como projtil, ver minha anlise do filme LgrimasdoSol [2003), em que interrogo a proble!mtica da representao cinematogrfica da guerra e o investimento simblico do nome defrica" no cinema hollywoodiano contemporneo. (RIBEIRO,2008)

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  • A seguir, esboo algumas anlises e interpretaes de seus filmes,em sua ordem cronolgica de apario, buscando descrever seusprincipais motivos temticos e caractersticas estticas.4

    Nascido emKiffa, na Mauritnia, em 13 de outubro de 1961,Sis!sako passou sua infncia no Mali.5 Entre o pas de sua me e o pasdeseupai, Sissako tem uma desuas primeiras experincias transcul!turais. Vivendo emNouakchott com sua me depois de ir muito pe!queno para oMali com seu pai, Sissako perde suas coordenadas. Nosabe mais falar o idioma Bambara e no tem por perto nenhum deseus amigos de infncia. emNouakchott que Sissako frequenta umcentro cultural russo e,no incio dos anos 1980,depois desededicarao pingue-pongue e de conhecer a literatura russa por intermdiodo diretor do centro, recebe uma bolsa para estudar a lngua russapor um ano emMoscou. Em 1982, Sissako secandidata ao InstitutoEstatal de Cinematografia da Unio Sovitica (VGIK), onde estuda apartir de 1983.

    A GUERRA: LEjEU(1988/1991, 22')

    O primeiro filme dirigido por Sissako consiste na obra que eleapresenta no final deseus estudos, em 1988.FilmadonoTurcomenis!to - por setratar de "[...] uma locao similar paisagemdomeupaisepessoas prximas domeupovo para contar ahistria que euqueriacontar." (SISSAKO, 2003, traduo nossa)6 - a partir do roteiro apre!sentado por Sissako aoVGIK, Lejeu no foi bemavaliado no Instituto,embora tenha sido suficiente para sua aprovao. Estimulado por um

    4- Osite Africultures.com atribui aSissako a realizao detrs filmes que no foi possvel abordarnesse texto, uma vez que no foram assistidos. Trata-se do longametragem Molom, conte deMongolie (1994-) edos curtas Lechameau et Ies btonszottants (1995) eLepassam [1995].OInternetMovie Database no t em registro desses filmes e no encontrei maiores informaesa seu respeito nas pesquisas que puderealizar.

    5 l As informaes sobre a biografia de Sissako que apresento foram encontradas primordial!men te em entrevistas e depoimentos do diretor que se encontram em Sissako. (2003, 2003a,200313) '

    6 "[...] a location similar to the landscape of my country and people close to my people to tell thestory l wanted to tell"

    FILMES DAFRICA EDADISPORA I 165

  • amigo deBurkina Faso epor sua esposa, Sissako manda o filme parao Festival Pan-Africano deCinema deOuagadougou (FESPACO),masele no entra na programao.Mesmoassim,Sissakovai ao festival e,certa noite,Lejeu projetado por um amigo tunisiano numa reunioprivada.A part i r da, o filme termina no Festival deCannes, alm deganhar o prmio demelhor curta-metragemdaGiornate del CinemaAfricano de Pergia,na Itlia,tambm em 1991.

    EmLejeu, cujo ttulo poderia ser traduzido como A brincadeiraou, mais literalmente,Ojogo, Sissako constri uma narrativa que elemesmo descreve como "vaga", sem arco dramtico clssico". (SIS!SAKO, 2003) Por meio de um uso frequente da montagem paralelaou alternada, Lejeu traa um paralelo entre uma guerra e um jogo,uma brincadeira, que permanecem sem nomes, como projees de!liberadamente abertas para os investimentos alegricos dos espec!tadores. Enquanto um homem se despede de sua mulher e de seufilho Ahmed, umgrupo decrianas comarmas debrinquedomarchaat a casa para chamar o amigo para o jogo. Noparalelo traado pelofilme, Ahmed preso por soldados inimigos na encenao do jogo edeixado para trs pelos amigos, at que sua me o encontra e o levadevolta para casa, enquanto seu pai capturado por soldados inimi!gos na operao da guerra eacaba sendo executado.Antes damortedo'pai, Ahmed sonha com o reencontro. Nos planos finais do filme,uma frase dePaulValry (traduonossa) - "Aguerra ummassacredepessoas que no seconhecem,embenefcio depessoas que se co!nhecemmas no semassacram.7 - explicita a crtica da guerra queest inscrita no filme como um drama familiar emaberto.

    Embora apresente um uso da trilha sonora - falas, msica e ru!dos - mais prximo das formas clssicas, em que falas e rudos natu !ralistas so eventualmente acompanhados por msica extradiegti!cavoltada para efeitos dramticos,Lejeu inclui planos que parecem

    7 La guerre est un massacre de gens qui ne seconnaissent pas,au profit de gens qui se connais!s en t mais ne se massac ren tpas.

    166 I FILMES DAFRICAEDADISPORA

  • insinuar a forma potica8 que Sissako tem deabordar problemas ti!cos e polticos. Quando, por exemplo, na montagem paralela, acom!panhamos os passos do pai deAhmed pelo deserto, vemos com fre!quncia os efeitos de seus passos na areia, perturbando a superfciesem fissuras das dunas com rachaduras efmeras, mas marcantescomo fraturas, abrindo rugas na face da terra. Alm de traos emer!gentes deuma esttica que seprojeta emoutros sentidos emseus fil!mes posteriores, a cosmopotica singular deAbderrahmane Sissakocomea a se revelar, em Lejeu, sob a forma de uma articulao es!trutural e estilistica entre, deum lado, uma vontade dealegoria queinsinua uma interpretao forte do todo e,deoutro lado, retratos docotidiano que, como poeira nos olhos (perturbando a viso alegri!ca), abrem espao para a imaginao do comum que permanece, emsua fragilidade, irredutvel ao todo. Seavontade de alegoria tende ainsinuar um quadro geral feito dos fragmentos do cotidiano, como aimagemfinal deum quebra-cabeas, a imaginao do comum abrigano cinema de Sissako os abismos e as lacunas que fazem do mundoum mosaico sem conjuno, feito depeas incomensurveis.

    OAMOR: OCTOBRE (1993, 37') ESABRIYA (1997, 26')

    EmOctobre, Sissako seaproxima das incomensurabilidades doamor, retratando orelacionamento entre Idrissa e lra. Ele est pres!tes a deixar Moscou e ela est grvida. Em seu ltimo encontro, amsica do piano tocado por Idrissa e o silncio de lra sobre agravi!dez (que ela pensa, indecisa, em interromper) aparecem como ind!cios de uma impossibilidade. Emmeio narrativa - que inscreve asduas personagens numa Moscou fria, coberta pela neve que Idrissaa certa altura leva, com asmos, at o rosto - o que serevela so as

    8 Na entrevista de Sissako (2003) aAppiah, o cineasta diz: Eu acredito que sese quer denunciaralguma coisa, prefervel no bater nas pessoas com isso, no espanc-los. Alcana-se as pes!soas atravs da forma narrativa que potica ou criando uma atmosfera." [traduo do autor)Texto original: "I believe that if one wants to denounce something it is preferable no t to h i tpeople with i t , n o t to beat them up. One reaches people through a narrative form that ispoetici or by creating anatmosphere.

    FILMESDAFRICAEDADISPORA I 167

  • inconstncias da experincia do exlio, as razes rarefeitas e as teiasdepossibilidade que setecem e sedestecem, atravs das fronteiras.

    Na produo televisiva Africa Dreaming (1997), encontramosum episdio dirigido por Sissako, intituladoSabriya, que sepassa nosul daTunsia eaborda outra vez aspossibilidades do amor atravsdas fronteiras. Nobar que possuem,Youssef eSaid jogam xadrez emmeio s conversas dos frequentadores (todos homens) sobre mu !lheres imaginrias, para as quais dedicam seus pensamentos e seaventuram em poesias, ao som do rdio e regadas a vinho de palma.Quando a mestia Sarah chega terra de sua me, Youssef e Said seinteressampor ela. A amizade seperde diante do amor pela mesmamulher,numatrama conhecida das narrativas televisivas aoredor domundo, sobretudo devido a sua intensidade melodramtica. Sissakodesloca os elementos do melodrama, evitando o peso bvio do con!flito dramtico e buscando a leveza incerta da Vida em movimento.Sarah representa a diferena - cultural e de gnero - que deslocaos quadros de referncia da sociabilidade masculina tradicional doMagreb. Quando Youssef sonha em ir com Sarah para Gnova, ela olembra das dificuldades, dos documentos e papis necessrios. Nofinal indecidvel do filme, vemos Said se sentando ao lado de umamulher no trem, sem que seja possvel dizer com certeza que setratade Sarah.

    ORETORNO:ROSTOV-LUANDA (1997, 60')

    Em Rostov-Luanda, um movimento de retorno e de aberturaque constitui o documentrio, que narra a volta de Sissako fricae, em meio procura pelo amigo Afonso Bari Banga, angolano queconheceu na Unio Sovitica em 1980, a abertura de um caminhode renovao em meio s desiluses em relao s independnciaspolticas nacinais. Rostov-Luanda tem como base a narrao emprimeira pessoa de Sissako e como impulso a desiluso diante daspromessas da independncia deAngola (em 1975), que uma guerradequase duas dcadas parece t e r aniquilado.

    168 I FILMESDAFRICAEDADISPORA

  • Bari Banga, que lutou na guerra de independncia de Angola,aprendeu russo junto com Sissako em aulas com Natalia Luvovna,que e quem envia a Sissako a fotografia em que o amigo pode serreconhecido ao lado dele e dos outros alunos. Naprocura por Bari

    batalhas cuja memria abrigamedadestruio que ostentam, comoseenumerasse "les noms des amis disparus".9 Entrelaam-se osde!poimentos de portugueses que permaneceram emAngola, de cabo!-verdianos que adotaram o pas e deangolanos que nunca o deixa!ram,mesmo sepassaram por temporadas na Unio Sovitica ou emoutras partes do mundo.

    Depois deatravessar diferentes regies dopas, Sissako retornaaLuanda:

    Uma esperana tinha setornado familiar amim. Essa esperan!a que ns compartilhamos ento os dois, como muitos outrosdenossa gerao. AslembranasdeBari Bangaseborram.Noque eu o esquea, Ostraos deseu rosto desenham agora umanova figura, em direo qual a busca me conduz. Assim sedesenha o retrato deumamigo. (traduo nossa)1

    Por fim, Sissako descobre que Bari Banga est naAlemanha. Aoencontra-lo, descobre que embreve retornar para Angola. Napala!

    II

    10 Une esprancem

    FILMESDAFRICAEDADISPORA I 169

  • pela desiluso (enunciado de modo contundente por uma mulherque fala no incio eno final do filme), apotncia davida possvel.

    A INCOMUNICABILIDADE: LA VIESUR TERRE (1998,61')EHEREMAKONO (2002, 95')

    A autobiografia parece constituir um dos motores do cinemade Abderrahmane Sissako. Em sua trajetria pessoal, encontramoselementos que podem fornecer algumas chaves de leitura para per!sonagens, situaes dramticas e caractersticas formais de seu ci!nema. No entanto, trata-se de fazer da autobiografia uma aberturapara o outro. Em uma conversa por ocasio de uma aula que Sissakoministra no Ct Doc, a parte da programao do FESPACO dedicadaaos documentrios, o cineasta afirma: O cinema para mim pro!fundamente autobiogrfico,mesmo seseadapta um romance.Quan!do se chega a seassemelhar ao outro, no se existe mais." (SISSAKO,20032), traduo nossa)11 Paradoxalmente, a autobiografia aparececomo uma forma de apagamento de si na abertura para o outro.O que interessa o movimento de busca: "Cinema para mim no um espetculo, mas umabusca. Euprocuro pelo que tenho emmim.Algo escondido que descoberto com meus personagens. Seja umaqualidade ou um defeito, vou encontr-lo emmim,vou encontrar eumesmo. (SISSAKO, 2003, traduo nossa)12 Na abertura para o ou!t r o que constitui o segredo da autobiograa, revela-se a definio decinema de Sissako (2003a, traduo nossa): "Averdadeira definiodo cinema um convite liberdade do outro."13

    Por ocasio da passagem do milnio, o canal Arte da televisofrancesa realiza, em parceria com outras instituies e redes, o pro!jeto 2000 vu pan.: dez realizadores de pases diferentes compem

    11 Le Cinma est pourmo i profondmentautobiographique,mmesi onadapte un roman.Quandon arrive ressembler l'autre,on n'existe plus.

    12 Cinema for me is n o t a show,but a ques t I look for what I have in me. Somethinghidden thatgets uncoveredwith my characters.Whether it is a quality or a defect, I wil l find it in me, I wi l lfind myself.

    13 La vrai_edfinition du Cinma, c'est une invitation la libert de'l'autre."

    170 I FILMES DAFRICA EDADISPORA

  • um mosaico internacional, embora necessariamente parcial e in!completo, de narrativas sobre o ano 2000 e os significados da pas!sagem para um novo milnio. Representando o Mali e africa comLa vie sur terre, Sissako filma seu retorno a Sokolo, onde passou ainfncia corn seu pai, com a inteno de fazer um filme sobre ele.A autobiografia como abertura para o outro aparece como uma liodo pai - "Se voc quer falar de mim, preciso falar dos outros. Sevoc quer me alcanar."14 (SISSAKO, 2003a, traduo nossa) - e Sis!sako entra emcena para interpretar asi mesmo emmeio aos outros.Emprimeiro lugar,vemos Sissako naquele que talvez seja um dos ce!nrios paradigmticos da Europa desenvolvida: um supermercado,com prateleiras repletas deprodutos eassombrado pelo kitsch maisbanal de objetos de decorao. Emseguida, entre osgalhos labirinti!cos de uma rvore, comeamos a ver Sokolo.

    O olhar de Sissako ao mesmo tempo estrangeiro e familiar. Oolho varivel, marcado por um deslocamento transcultural, revelaelementos de um cotidiano em que se insinua uma alegoria da co!municao. Dordio que ressoa comnotcias davirada domilnio aoredor domundo e com amsica e asvozes deSokolo at o telefoneque se encontra na agncia de correio e funciona de forma intermi!tente, passando pelas cartas que afinal circulam sempre sob o riscode extravio, o desejo de comunicao o ponto de fuga onde conver!gem osvrios elementos deLavie sur terre. Nas palavras deSissako[1998,traduo nossa): Ainteno decomunicar mais importanteque a comunicao ela mesma. Quando a gente decidiu falar ao Ou!tro, o gesto de amor foi feito."15 no desejo de comunicao, sobre opano defundo ainda impreciso do tema daincomunicabilidade, queSissako encontra um universal possvel davida sobre a terra.A certaaltura do filme, o operador do telefone diz: "A comunicao uma

    14 Si tu veux parler demoi, il faut parler des autres. Si tu veux m'atteindre.15 "L'intention de communiquer est plus importante que Ia communication elle-mme. Quandon

    a decide de parler ?Auta-c,le gaste d'amour es t fait."

    FILMESDAFRICA EDADISPORA l 171

  • questo de acaso. Vrias vezes funciona, vrias vezes no funciona."(SISSAKO, 2003, traduo nossa)16

    Feito sem roteiro - novamente, o acaso: "Minha concepo do ci!nema que ele o acaso. (SISSAKO, 2003, traduo nossa)17 - Lavie sur terre tem uma importante ncora intertextual emduas obrasdeAim Csaire que tm trechos citados no decorrer do filme, pelavoz em ofde Sissako: Cahier d'un retour au pays natal (1939) eDis!cours sur Ie colonialisme (1955). Hum efeito disjuntivo na articula!o entre a serenidade dos planos de Sokolo como imagens do tem!po e as palavras de Csaire que ressoam por vezes intempestivas,como amemria do mundo, da violncia e da dor que o constituem.AVida no um espetculo."18, diz Sissako em La vie sur terre, comas palavras de Csaire, e em torno da busca de novas formas deapresentao da vida, na frica e no mundo, que seu cinema pro!jeta seus fantasmas Eu tento no fazer um espetculo. A frica foito frequentemente filmada demaneira espetacular. A dor do Outrono pode ser um espetculo." (SISSAKO, 1998, traduo nossa)19 Nadisjuno entre os planos e as palavras de Csaire, La vie sur terreparece se converter em um "filme manifesto (BARLET, 1998) emdefesa deuma filosofia devida voltada para apartilha: "Aajuda apartilha. Euposso ajudar porque algum, ontem, me ajudou. umacadeia departilha." (SlSSAKO, 1998,traduo nossa)20

    A questo da comunicao atravessa La vie sur terre sob a formademltiplasmetforas - ascartas, o rdio,o correio, otelefone - quepermanecem habitadas pelo acaso - "une question de chance", diz ooperador do telefone do correio. No entrelaamento das metforas,o desejo de comunicao projeta uma tica da partilha em meio incomunicabilidade. Em Heremakono, o tema da incomunicabili!

    16 "La communication,c'est une question de chance. Souvent amarche,souvent anemarche pas."

    17 "Ma conception du Cinma e s t que c'est le hasard"

    18 "La vie n'estpas un spectacle"

    19 "J'essaye de nepas faire un spectacle. L'Afrique asi souvent t filme de faon spectaculaire. Ladouleur de l'Autre ne peut tre un spectacle."

    20 "L'aide, c'estle partage. Ie peux aider car quelqu'un, hier,m'a aid. C'est une chaine departage."

    ,172 I FILMES'DAFRICA EDADISPORA

  • dade que se inscreve desde o incio, em torno do tropo da fronteira.A incomunicabilidade atravessa diferentes fios narrativos que, comose fossem parbolas incompletas, menores, projetam uma tica doencontro em tempos de globalizao. na incomunicabilidade que,talvez, podemser encontrados alguns dos rastros do comum.

    As primeiras sequncias de Heremakono cifram o tema da inco!municabilidade.Umhomementerra um aparelho de rdio atrs psde distncia deum arbusto no deserto,masmais tarde no consegueencontrar o lugar novamente e pede ajuda ao eletricista Maata e aogaroto Khatra. Enquanto Maata diz a ele que o rdio no est perdi!do, apenas enterrado, Khatra olha os arbustos levados pelo vento,flutuando desenraizados, rarefazendo seu pertencimento terra. essa condio de desenraizamento ede pertencimento rarefeito queo filme vai interrogar.A figurao do deserto como fronteira assumeum papel central nas narrativas que seentrelaamno espao liminardeuma pequena cidade entre o Sahel eo oceano Atlntico.

    Abdallah chega aNouadhibou, uma cidade depescadores na cos!ta daMauritnia, eso crianas que, como numa brincadeira, abremoporto da fronteira para apassagemdo carro cheio de passageiros.Um pouco como fez Sissako,21ele retorna casa de sua me depoisde uma longa ausncia, antes de partir para a Europa. Sua condiode incomunicabilidade sedeve ao fato de sequer saber falar o idio!ma Hassanya.Abdallah observa avida da pequena cidade atravs deuma claraboia prxima do cho do quarto em que est: v o movi!mento dos passos, o tempo das idas evindas entretecendo na paisa!gem omilagre de infindos caminhos. (RIBEIRO, 2009) Oque est emjogo na claraboia o que Sissako (2003b, traduo nossa) chama detrabalho de olhar, notando que osps so essa parte do corpo que

    21 Mais uma vez, a dimenso autobiogrfica do cinema de Sissako notvel. Em uma entrevistadada a Olivier Barlet sobre Heremakono, falando sobre essa dimenso de seu trabalho, Sissako(2003b) afirma: Eu tento me reencontrar atravs do cinema: eu sou um pouco todos os meuspersonagens que se colocam questes, que no sabem, que vagueiam, mas com uma convicoprofunda: a certeza de estar bem no fundo de si mesmo". (traduo do autor] Texto originalI'essaye de me retrouver travers le Cinma: je suis un peu tous me s personnages qui se po!sent des questions, qui ne savent pas, qui dambulent, mais avec une conviction profonde: lacertitude d'tre bien au fond de soi-mme.

    FILMES DAFRICA EDADISPORA l 173

  • nos leva, os cruzamentos que no se fazem. A claraboia o fato dever o encontro que no pde acontecer, a posio do espectador.22 tambm pela claraboia que Khatra ensina a Abdallah algumas pa!lavras, entre risadas,brincalho.

    Cornefeito, oensino eoaprendizado emmeio condio comumde incomunicabilidade - devido a fronteiras lingusticas, culturais,geopolticas etc. - so temas centrais no filme. Uma garota aprendea cantar, nabela participao da gri Nma Mint Choueikh ensinan!do Mamma Mint Lekbeid. Khatra aprende o ofcio de eletricista comMaata, acompanhando-o no cotidiano, inclusivenatentativa de levara luz eltrica para o quarto em que est Abdallah. Entre o canto easlmpadas, Heremakono desenrola o tecido esgarado de urna ale!goria da globalizao, composta pelos fluxos damdia transnacional[uma televiso em que Abdallah assiste aum programa de um canalfrancs), das mercadorias (Tchuumvendedor derelgios,brinque!dos equinquilharias dasia) edas pessoas [assim como Abdallah, amigrao ou foi uma opo para outros personagens, como Nana,que migrou no passado por amor, eMickal, que parte para uma via!gem fatal embusca desonhos imprecisos).

    As lmpadas ea luz eltrica configuram uma constelao de me!tforas em Heremakono: a luz da vida, a luz da modernidade, a luzdo (auto)conhecimento... No se trata de fixar seu sentido, mas denotar sua deriva: a luz remete Europa - Sissako (2003b, traduodo autor) diz: " uma maneira de dizer que ascidades evoluem emuma imitao sistemtica da Europa. A luz deve estar l, depois ateleviso eovdeo... disso que temos necessidade?"23 - eaomesmotempo aumanseio humanista por universalidade - Sissako (2003b,traduo do autor) continua: Mas ametfora tem tambmum outrosentido: Maata quer levar a luz s pessoas. Ele tem essa generosi!

    22 " [...] cette partie du corps qui nous amne, les croisements qui ne se font pas. La lucarne est lefait de vo i r la rencontre qui n'a pu avoir lieu, la position du spectateur.

    23 C'est une faon de dire que les villes voluent en une imitation systmatique de l'Europe. Lalumire doit tre l, puis la tl et la video... Est-ce cedont nous avons besoin ?

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  • dade de querer dar, de partilhar: a dignidade de uma sociedade,ohumanismo ainda existente

    Oaprendizado de Khatra o aprendizado da deriva da luz, at olimite de seu possvel esgotamento - amorte, tema sobre o qual con!versa com frequncia com Maata. Quando Maata morre, Khatra che!gaa tentar se livrar de uma lmpada atirando-a no mar. Mais tarde,o garoto atira com seu estilingue numa lmpada acesa de um poste,devolvendo noite sua escurido. Namontagem de Sissakozs, quan!do a pedra se choca com a lmpada e a escurido inunda o quadro,ouvimos o som avassalador do que se assemelha a uma exploso,mas se revela no instante seguinte como o barulho do t rem que che!ga a Nouadhibou. Atravessando toda a histria do cinema (desde achegada do trem estao La Ciotat registrada pelo Cinematgrafodos irmos Lumiere),o peso simblico dafigura do t r em suplementao jogo metafrico das lmpadas e da luz com a fora de seu movi!mento.

    Ot rem est associado emergncia do olho varivel na moder!nidade (AUMONT, 2004), abrigando amobilidade depontos devistaque marca a experincia Cinematogrfica, ao ponto de torn-la com!parvel viso das paisagens pela janela de um trem em movimen!to. Em Heremakono, fora do trem que o olho varivel se desloca,desenraizando seu passeio e proliferando seus giros com os ps nocho, Ospassos e a Vida que caminha sobre a terra. O t rem atravessao deserto, operando o milagre do caminho (RIBEIRO, 2009), assimcomo os passos que Abdallah observava da claraboia e as pegadasefmeras que, partindo para a Europa, ele deixa na areiaintermin!vel do deserto.A me deAbdallah colhe os gros dos ltimos passos

    24 "Mais la mtaphore a aussi un autre sens: Maata veut apporter la lumiere aux gens. Il a cettegnrosit de vouloir donner, de partager : c'est la dignit d'une socit, l'humanisme encoreexistant."

    25 No cuidado de Sissako com a esttica de seus filmes, que so em geral de uma leveza e de umadelicadeza singulares, a montagem ocupa um lugar central: A montagem para m im funda!mental, para tentar encontrar uma forma de justeza, de harmonia, que no faa da lentidoum estilo. (SISSAKO, 2003b, traduo do autor) Texto original Le montage est pour mo i fon!damental, pour essayer de trouver une forme de justesse, d'harmonie, qui ne fasse pas de lalenteur un style."

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  • descalos de seu filho, na porta da casa. Por fim, Khatra - que recolhea lmpada que tentara atirar ao mar como seguardasse ospassos deMaata - atravessa, ele tambm, a paisagem.

    Osatores de Heremakono so em sua maioria no profissionaise o prprio Sissako (2003b) que nota a importncia de trabalharcom tcnicos africanos. A esttica marcada por um trabalho cui!dadoso de enquadramento, por uma forma luminosa de fotografiae por um uso autoconsciente da montagem de imagem e de som.O cuidado esttico de Sissako singulariza seu pertencimento ge!rao de cineastas africanos que alcana sua maturidade longe daspromessas das independncias polticas formais esededica apensarafrica, em sua multiplicidade, a partir do desencanto ps-colonial(MBEMBE, 2000), embusca de novos encantos, novas promessas, deuma vida possvel sobre a terra. Heremakono desenrola os fios nar!rativos de uma alegoria que resta por tecer, compondo a cosmopo!tica singular deAbderrahmane Sissako. Otema do desenraizamentoencontra sua imagemna figura do deserto e nos planos dos arbustoslevados pelo vento: os pertencimentos se tornam frgeis e se abre,na incomunicabilidade, um tempo e um espao para a imaginaodo comum a partir do pertensimento (RIBEIRO, 2008), uma formatensa (mesmo que silenciosa como o s no lugar do c") e por issoinquieta depertencimento que seabre aooutro.

    OMUNDO: BAMAKO (2006, 118'], 0 SONHODE TIYA(2008, 11') EN'DIMAGOU-A DIGNIDADE [2008, 4']No cinema de Sissako, a busca pela vida possvel passa por dar

    uma outra imagemdafrica. Emvez de reiterar o horror que, entreoutras caractersticas, marca o que chamo de regime ocidentalistade escritura dafrica, no contexto da economia poltica do nome defrica [RIBEIRO, 2008), Sissako afirma e reafirma ahumanidade eadignidade. Dar uma outra imagemdafrica declaradamente um deseus objetivos. Oque torna possvela ddiva da imagem justamen!te asensibilidade cosmopolita que alimenta a imaginao do comum

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  • no cinema de Sissako. Em vez do cosmopolitismo forte de projetosglobais diversos - do capitalismo e do socialismo at asinstituiescontemporneas de cooperao internacional - o cinema de Sissakoprojeta um cosmopolitismo frgil eplural, atravessado pelas marcasdo cotidiano e do local.

    EmBamako, o cosmopolitismo frgil dacosmopotica deSissakoencontra o cosmopolitismo forte dos aparatos discursivos interna!cionais. A urgncia das cosmopoliticas se entrelaa com a potnciada cosmopotica cinematogrfica de Sissako. Renovando o chama!do cinema poltico com o frescor de um filme dialgico,26 Bamakodesdobra uma pluralidade defios narrativos: um julgamento emquea sociedade civil africana processa as instituies financeiras inter!nacionais, em especial o Fundo Monetrio Internacional e o BancoMundial; o casal formado por Mel e Chaka, cuja filha est doente ecuja relao passa por uma crise profunda; uma investigao poli!cial em torno do sumio ou do roubo de uma arma; os afazeres e osacontecimentos do cotidiano da cidade - mulheres tingindo tecidos,crianas brincando e chorando, a celebrao de um casamento etc.Natecelagem deBamako,tudo sepassa como seafrica fosse repre!sentada emreferncia auma variedade degneros cinematogrficosconsagrados por Hollywood: osfilmes de tribunal, osdramas romn!

    26 Em uma entrevista, Sissako afirma uma concepo dialgica e interrogativa de cinema ~ "Detoute faon, un film n'est pas une vrit, c'est un dialogue, une recherche, un questionnementi"/ "De toda maneira, um filme no uma verdade, um dilogo, uma pesquisa, um questio!namento." - e ao mesmo tempo fala sobre o processo de construo de Bamako - Dans unpremier temps, j'ai cherch des avocats professionnels, comme un casting. j'ai trouv les deuxavocats franais puis trois avocats africains [sngalais, malien et burkinab) puis j'ai choisiun vrai president de tribunal Bamako. Unmois avant le tournage, je suis parti la recherchede tmoins avec mon equipe, notamment aupres d'associations [...]. I'ai aussi invite ces gens assister au procs. Beaucoup de choses o n t t dites et les avocats on t t nourris de tou t aaussi. Vers la fin du film, ils o n t plaid encrivant leur plaidoirie eux-mmes [demme pour lesquestions). I'avaismis enplace undispositifqui permettait cela avec trois Cameras, plus une quise dplaait." / "Num primeiro tempo, eu procurei advogados profissionais, como um casting.Euencontrei os dois advogados franceses, depois trs advogados africanos [senegals,malianoe burquinabj, depois eu escolhi um verdadeiro presidente de tribunal em Bamako. Um msantes da filmagem, eu parti em busca de testemunhas com aminha equipe, notavelmente juntoa associaes [...]. Eu tambm convidei essas pessoas a assistir ao processo. Muitas coisas fo!ram ditas e os advogados foram informados de tudo isso tambm. Perto do fim do filme, elesfizeram sua argumentao escrevendo seus pleitos eles mesmos (assim como as questes). Eutinha posto em marcha um dispositivo que permitia isso com trs cmeras, mais uma que sedeslocava." (traduo nossa]

    FILMES DAFRICAEDADISPORA I 177

  • ticos, as investigaes policiais etc. Entrelaando essas diversas me!mrias de gnero, encontramos o dispositivo elaborado por Sissako(trs cmeras fixas e uma em movimento), animado por sopros deVida do cotidiano.

    No julgamento, a parte civil representada por uma equipe en!cabeada pela senegalesa Ai'ssata Tall Sall e pelo francs WilliamBourdon, enquanto a defesa fica por conta da equipe do burquinabMamadouSavadogo, do malianoMamadouKamoute do francs Ro!land Rappaport. So advogados eadvogadas profissionais que inter!pretama si mesmos como outros, assumindo posies na tecelagemda fico do processo. Observando a composio das partes, algumpoderia dizer que Sissako evita os riscos da racializao. No entanto,notvel que a questo da raa ressoe no questionamento, por partede uma mulher que assiste o julgamento, da participao de africa!nos na equipe de defesa: Olhe pra voc e olhe para ele! Voc nuncaser como eles! Evoc os defende?.27 (traduo do autor) A irrupodo questionamento sobre a raa - e sobre o olhar que pesa sobre ocorpo e a pele - perturba a formalidade sem corpo do processo. Oolho varivel do dispositivo elaborado por Sissako nos desloca dostermos do processo - o cosmopolitismo forte das instituies inter!nacionais eglobais - em direo tessitura sensvel do cotidiano - ocosmopolitismo frgil da cosmopotica deSissako.

    Osdepoimentos renem, entre outros, a argumentao da escri!tora Aminata Traor - que diz, por exemplo, que africa vtima desuas riquezas, e no da pobreza - e o relato de Madou Keita sobreuma experincia trgica da migrao atravs do deserto; a discus!so do professor Georges Keita em torno das economias nacionaisdos Estados africanos e de seu papel nos problemas que os pasesdo continente enfrentam e o silncio contundente de Samba Diakit,que recebe a palavra para ser ouvido pela corte mas, depois de di!zer seu nome e outras informaes, permanece calado sobre todo oresto; as denncias deAssa Badiallo Souko sobre aspolticas de pri !vatizao em meio ao neocolonialismo das multinacionais e o ines!

    27 Regarde-toi et regardede! Jamais tu ne sera comme eux! Et tu les defends?

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  • perado canto de Zegu Bamba, interrompendo asatividades entre opleito final da defesa e aquele daparte civil, numa lngua estrangeirapara amaioria dos presentes, assim como para o espectador, a quemSissako no oferece qualquer legenda.

    Estamos desde o incio no cerne de uma interrogao da pala!vra, de suas potncias e impotncias. Um campons, Zegu Bamba,sedirige corte sem que lhe tenha sido dada apalavra.A ddiva e odom dapalavra: eis a questo que abre Bamako esedissemina entresuas imagens.Em toda ddiva, em todo dom, encerra-se o segredo deuma relao social de poder e de dominao.28 Ao comear a narraro julgamento - que sepassa no quintal da casa do pai de Sissako emBamako - pela interdio da palavra a Zegu Bamba, Sissako pare!ce apontar para uma dimenso alegrica em que a figura de ZeguBamba vem representar as vozes dafrica na arena internacional.Contudo, toda alegoria que se pode projetar em Bamako permane!ce diferida, assim como no restante da obra de Sissako: enquanto aeconomia dapalavra setece emtorno doprocesso - distribuindo suaddiva e regrando acirculao desua potncia - avida semovimen!ta no quintal e na cidade, com seu barulho e seu silncio, com seurudo que perturba a transparncia comunicativa da palavra e fazirromper na imagem os imponderveis da vida real. A alegoria nosecompleta, seus fragmentos permanecem irremediavelmente inco!mensurveis. Oquadro da alegoria no cessa de sedeixar transbor!dar pela vida, criando uma zona de indeterminao em que o filmeabriga sopros da vida sob a forma de fico.

    Talvez anoitedaexibio televisiva do faroesteDeath in Timbuktuseja o momento de Bamako em que mais se exacerba a potncia dazona de indeterminao entre vida e fico. Reunidos diante da te!leviso, crianas, homens e mulheres assistem a um pequeno filmeemque atuam oprprio Sissako, o diretor palestino Elia Suleiman, o

    28 Entre o Ensaio sobre a ddiva de Marcel Mauss (2003) e o livro 0 enigma do dom, de MauriceGodelier (2001], passando por outros pensadores da Antropologia, da Filosofia e das huma!nidades em geral, uma das questes cruciais para a compreenso das dinmicas sociais quecircunscrevem o dom e a ddiva consiste no segredo dessa articulao que os constitui, entrevnculo social e reconhecimento dooutro, deum lado, edisputa agnica evontade depoder.

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  • ator estadunidense Danny Glover, o diretor congols Zeka Laplaineeo diretor francs Jean-Henri Roger. Segundo Sissako (2008, tradu!o nossa], Death in Timbuktu, foi uma maneira de mostrar que oscowboys no so todos brancos e que o Ocidente no o nico res!ponsvel dos males dafrica. Ns temos, ns tambm, nossa partederesponsabilidade."29 Noentanto, para almdas intenes autoraisdo diretor, o curta dentro do filme cifra de forma condensada e con!tundente o que est emjogo emBamako.A importncia do faroestenahistria do cinema emgeral notvel, assim como, emparticular,na formao de Sissako, que assistiu inmeros Spaghetti western deSergio Leonee outros diretores. Seamemria degnero do faroeste,inscrita ironicamente emDeath in Timbuktu, aponta para a questoda fronteira entre civilizao ebarbrie ou, em termos mais amplos,entre um eu e um outro, a narrativa do curta dentro do filme insi!nua uma interrogao da condio ps-colonial na frica. (MBEM!BE, 2000) A violncia gratuita dos cowboys, que assassinam um dosdois professores de um povoado (pois dois demais, como dizem),remete situao recorrente de privatizao do poder por figurasde autoridade que, em geral, se beneficiam de sua atuao polticanacionalistana luta pela independncia eseconvertem emditadoresque orientam seus governos para seus ganhos pessoais.

    sobre o pano de fundo da condio ps-colonial nafrica quetalvez possa se tornar legvel o sonho de Samba Diakit, contado aFod eaJean-Paul dooutro lado do muro do quintal, depois de cor!tado o somdo alto-falante que transmite o julgamento:

    Eu tenho toda noite um sonho que me perturba. [...] Eu estouna escurido... a luz... Em todo caso, no estou em casa. Nes!se sonho, estou sentado e, diante de mim, h um grande saco.Ele est cheio de cabeas de chefes de Estado.Cada vez que eumergulhominhamo l dentro, amesma cabea que eupego.E quando eu a coloco de volta, meu sonho acaba e eu acordo.

    29 c'tait u n e manire de mon t r e r que les cowboys ne son t pas tous blancs et que l'Occidentn'estpas seu ] responsabledes maux de l'Afrique.Nous avons, nous aussi, notre part derespon!sabilit."

    180 l FILMESDAFRICA EDADlSPORA

  • [...] Eu no sei se um negro ou um branco. Emtodo caso, amesma cabea. (traduo nossa)3

    Quando Samba Diakit narra seu sonho, a experincia do so!nho permanece irredutvel em sua singularidade e incomunicvelcomo se seu idioma restasse intraduzvel. Se, como escreve WalterBenjamin (1985, p. 190), o cinema introduz uma brecha na verda!de de Herclito segundo a qual o mundo dos homens acordados comum, o dos que dormem privado, projetando sonhos coletivos,o que est em jogo nas formas cinematogrficas de representaodo mundo, de mediao da experincia e de apresentao da vida justamente o comum emsua incomunicabilidade.

    precisamentedainterrogaodaincomunicabilidadedocomumque resulta parte do interesse da obra de Sissako, assim como de suacapacidade de abordar os temas do cosmopolitismo forte da agen!da internacional (migraes, direitos humanos etc.) atravs de umacosmopotica em que a fragilidade do cotidiano delimita as formassensveis deum cosmopolitismo pluralizado. Emseus dois filmes decurta metragemmais recentes, 0 sonho de Tiya e N'Dimagou - A dig!nidade, os valores e os objetivos das declaraes e das convenesinternacionais de direitos humanos so questionados emseu alcanceeemseus sentidos apartir de deslocamentos deperspectiva.

    0 sonho deTiya faz parte do longa-metragem8 (2008), uma pro!duo independente da sociedade francesa LDM Films em parceriacom organizaes no governamentais. (BARLET, 2010] Oito direto!res realizamoito curtas sobre o combate pobreza e temticas rela!cionadas da agenda internacional. Lembrando a assinatura dos Ob!jetivos do Milnio pela Organizao das NaesUnidas, em setembrode 2000 na cidade de Nova Iorque, Osonho de Tiya aborda a metade reduo da pobreza e da fome pela metade at o ano de 2015.Emcasa, Tiya Teffera trabalha com costura para ajudar seu pai, par!

    30 "[...] Jesuis dans l'obscurit... la lumire... En tou t cas, je ne suis pas chez moi. Dans ce rve, jesuis assis, et devant moi il y a un grand sac. ll est rempli de ttes de chefs d'tat. Chaque foisque j'y plonge la main, c'estla mme tte que j'attrape. Et quand je la remets enplace,m o n rves'arrete etje merveille. [...] Jene sais passi c'estun Noir ouun Blanc.Entout cas, c'est lammette. '

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  • tindo em seguida para a escola, onde chega atrasada para uma aulasobre osObjetivos do Milnio. Enquanto sedesenrolam os lances deum jogo de rgbi fora da sala de aula, os estudantes falam sobre oassunto da aula. Perguntada sobre o primeiro Objetivo do Milnio,Tiya responde com a voz baixa, porque, como diz ao professor, noacredita nisso: para erradicar apobreza ea fome, preciso distribuirriqueza e, portanto, compartilhar, mas segundo Tiya ningum quercompartilhar.

    EmN'Dimagou -A dignidade - que faz parte da coletnea de cur!tas Stories on Human Rights (2008), encomendada pelo Escritriodo Alto Comissrio das NaesUnidas para os Direitos Humanos - aquesto "Oque dignidade?" entretece uma pluralidade deVises docotidiano, sobretudo de atividades de trabalho, destinando o cine!ma ao retrato, assim como, a certa altura, ao autorretrato. Nenhumaresposta chega a ser enunciada em palavras. Em Vrios momentos,apergunta que sefaz fora decampo repetida pelapessoa retratada.As imagens disseminam a interrogao, sem que uma verdade sobrea dignidade possa ser revelada aofinal. Oque serevela so os rostosdas pessoas, em cujos retratos cinematogrficos se pode adivinharo esboo de uma resposta que permanece, contudo, irredutvel aoconceito e palavra, impermevel ao discurso.

    As questes cosmopolticas contemporneas - as migraestransnacionais, o combate pobreza como meta milenar global, adignidade humana como horizonte de sentido - encontram no cine!ma de Sissako um espelho que, entretanto, asdesloca, na medida emque as enquadra a partir da imaginao do comum. Elas so extra!idas do marco dos aparatos discursivos internacionais e da esferajurdico-poltica dos direitos humanos e inscritas na tesstura coti!diana de tempos imponderveis, de retratos de pessoas comuns, deespaos abertos para outros caminhos. No cinema transnacional deAbderrahmane Sissako, o olho varivel e seus movimentos inquietosrevelam omundo: aomesmo tempo descortinam eocultam suas su!perfcies, retirameretecemosvus que recobremsuas faces. Emvezde revelar a vida existente, expondo-a em seu horror ou sonhando-a

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  • emseu espetculo, a cosmopotica deSissako revela avida possvel,em toda a fora de sua fragilidade.

    REFERNCIAS8. Frana: LDMProductions;Ace and Company; Mediascreen; GreenSky Films,2008. 1 DVD (100min), color., legendado.Coletnea de 8curtas-metragens.AFRICA Dreaming,Produo: Jeremy Nathan.Moambique; Nambia;Senegal; Tunsia: EbanoMultimedia,Arte France, 1997. 1 DVD(156 min), color., legendado.Srie de 6 curtas-metragens.AUMONT, Jacques. 0 olho interminvel: cinema e pintura.So Paulo:Cosac Naify, 2004.BAMAKO. Direo:Abderrahmane Sissako. Interprtes:Ai'ssa Ma'iga;Ticoura Traor; MaimounaHlne Diarra; Balla Habib Dembl;DjnbaKon; HamadounKassogu;WilliamBourdon;MamadouKanout; GabrielMagmaKonate;Aminata Traor; DannyGlover; EliaSuleiman; Abderrahmane Sissako. Mauritnia.Frana; Estados Unidos:Archipel 33; Arte France Cinma; Chinguitty Films; Louverture Films,2002. 1 DVD (118min), color., legendado.BARLET,Olivier. Lavie sur terre d'Abderrahmane Sissako.Africultures,1998.Disponvelem: .Acesso em: 29 ago. 2012.BENJAMIN,Walter. Magia e tcnica, arte ecincia. So Paulo:Brasiliense, 1985.BORDWELL,David.Narraton in thefictionfilm.Madison: University ofWisconsin Press, 1985.BORDWELL, David. The Way HollywoodTells I t : Story and Style inModernMovies.Berkeley. LosAngeles; London: The University ofCalifornia Press,2006.BORDWELL,David; STAIGER,Janet; THOMPSON, Kristin. The ClassicalHollywoodCinema: Film Style andModeof Production to 1960. London:Routledge; KeganPaul; NewYork: Columbia University Press, 1985.BUTLER,Judith. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questodo ps-modernismo. CadernosPagu,n. 11, 1998,p. 11-42.

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