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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL Patricia Kauffmann Fidalgo Cardoso da Silveira “INDIGNO DE PROCEDIMENTO”: a ascensão de um homem de cor no Maranhão em fins do século XVIII São Luís 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

Patricia Kauffmann Fidalgo Cardoso da Silveira

“INDIGNO DE PROCEDIMENTO”:

a ascensão de um homem de cor no Maranhão em fins do século XVIII

São Luís

2015

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Patricia Kauffmann Fidalgo Cardoso da Silveira

“INDIGNO DE PROCEDIMENTO”:

a ascensão de um homem de cor no Maranhão em fins do século XVIII

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Maranhão como requisito para a obtenção do título de Mestre em História Social.

Orientador: Prof. Dr. Josenildo de Jesus Pereira

São Luís

2015

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Patricia Kauffmann Fidalgo Cardoso da Silveira

“INDIGNO DE PROCEDIMENTO”:

a ascensão de um homem de cor no Maranhão em fins do século XVIII

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Maranhão como requisito para a obtenção do título de Mestre em História Social.

_______________________________________

Prof. Dr. Josenildo de Jesus Pereira

(orientador)

_______________________________________

Prof. Dr. Alírio Cardozo

_______________________________________

São Luís

2015

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Silveira, Patricia Kauffmann Fidalgo Cardoso da Silveira

“Indigno de procedimento”: a ascensão de um homem de cor no

Maranhão em fins do século XVIII. Patricia Kauffmann Fidalgo

Cardoso da Silveira

92 f.

Orientador: Dr. Josenildo de Jesus Pereira

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Maranhão,

Programa de Pós-Graduação em História, 2015

1.História 2. Biografia 3. Sociedade 4. Maranhão 5. Século XVIII

I.Título

CDU (043.2)

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À minha mãe, Carla

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AGRADECIMENTOS

A minha família. Obrigada pelo apoio irrestrito e pela confiança.

Aos meus tios portugueses, Eduardo e Gabriela. Obrigada pela hospitalidade e

generosidade.

Ao meu orientador, Josenildo. Obrigada pela cumplicidade e paciência.

Aos meus amigos, muitos dos quais me ausentei durante longos períodos: Daniella,

Bárbara, Tarantini, Betty, Bianka, Weliandrei, Leylanne, Waldemir e Ricardo.

Obrigada pelo bom humor.

A Sol(ange), companheira de mestrado. Obrigada pelas conversas animadas e

apoio nas transcrições.

Aos amigos Felipe e Luís Eduardo, sócios na empreitada da Esc.Co. (As capivaras

que se cuidem!). Obrigada pela divertida incompatibilidade de gênios, mediada por

respeito, bom humor e cerveja.

A Walber, por todo o amor e futuro.

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“-- O senhor é um homem de cor!...

Infelizmente esta é a verdade...

(...) -- Mulato!

Esta só palavra explicava-lhe agora todos os

mesquinhos escrúpulos, que a sociedade do

Maranhão usara para com ele. Explicava tudo: a

frieza de certas famílias a quem visitara; a

conversa cortada no momento em que Raimundo

se aproximava; as reticências dos que lhe

falavam sobre os seus antepassados; a reserva

e a cautela dos que, em sua presença, discutiam

questões de raça e de sangue; a razão pela qual

D. Amância lhe oferecera um espelho e lhe

dissera: “Ora mire-se!” a razão pela qual, diante

dele, chamavam de meninos aos moleques da

rua. Aquela simples palavra dava-lhe tudo o que

ele até aí desejara negava-lhe tudo ao mesmo

tempo, aquela palavra maldita dissolvia as suas

dúvidas, justificava o seu passado; mas retirava-

lhe a esperança de ser feliz, arrancava-lhe a

pátria e a futura família; aquela palavra dizia-lhe

brutalmente: “Aqui, desgraçado, nesta miserável

terra em que nasceste, só poderás amar uma

negra da tua laia! Tua mãe, lembra-te bem, foi

escrava! E tu também o foste!”

(“O mulato”, Aluísio Azevedo, 1881)

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RESUMO

Este trabalho analisa episódios da trajetória de um homem que viveu no Maranhão

no final do século do século XVIII e primeiros anos do século seguinte, seu nome era

Vicente Ferreira Guedes. Vindo de Pernambuco, foi preso em Aldeias Altas por volta

de 1765 e enviado a São Luís para ser vendido como escravo. Anos mais tarde já

era advogado, capitão da milícia, membro de uma irmandade e vogal de justiça.

Opôs-se a governadores, juízes e ouvidores, razão pela qual foi preso e desterrado

várias vezes. No início do século XIX, já coronel, tornou-se cavaleiro.

Palavras-chave: biografia; sociedade; Maranhão; XVIII

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ABSTRACT

This paper analyses episodes of the story of a man who lived in Maranhao in the late

eighteenth and early nineteenth century. His name was Vicente Ferreira Guedes.

Originally from the state of Pernambuco, Vicente was arrested in Aldeias Altas

around 1765 and sent to Sao Luis to be sold in slavery. Later, Vicente was already a

provisioned lawyer, a captain in the militia, member of a brotherhood and a juror. He

objected to governors, judges and prosecutors, for that reason he was arrested and

exiled several times. In the early nineteenth century, however, Vicente became a

colonel and a knight.

Keywords: biography; society; Maranhao; 18th century

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Lista de Tabelas

Tabela 1: Estrutura militar do Brasil Colônia 40

Tabela 2: A carreira militar de Vicente Ferreira Guedes 45

Tabela 3: Os declarantes de Vicente Ferreira Guedes 52

Tabela 4: Testemunhas inquiridas na devassa do atentado a José da Silva 62

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Lista de Abreviaturas

AHU Arquivo Histórico Ultramarino

APEM Arquivo Público do Estado do Maranhão

ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo

TSO Tribunal do Santo Ofício

IL Inquisição de Lisboa

CCVC Correição Cível da Corte

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Sumário

INTRODUÇÃO....................................................................................................... 13

1. UM PESTÍFERO E PERNICIOSÍSSIMO CALUNIADOR: vogal e capitão de

pedestres (1776-1782).......................................................................................... 16

1.1 O desterro no Itapecuru................................................................................... 30

1.2 A organização militar na colônia...................................................................... 39

2. SOBERBA LUCIFERINA: mestre-de-campo do Terço Auxiliar dos homens

brancos da vila de Alcântara e degredado (1783-1787)........................................ 44

2.1 O atentado a José da Silva.............................................................................. 61

2.2 Santa Maria Madalena .................................................................................... 66

3. CIRCUNSTÂNCIAS ATENDÍVEIS: coronel de milícias e cavaleiro (1788-1802)

.................................................................................................................... 69

3.1 A decisão da Coroa .................................................................................... 75

3.2 A Irmandade de Nossa Senhora da Conceição dos Homens Pardos .......... 77

3.3 Das mercês ............................................................................................... 81

EPÍLOGO .......................................................................................................... 84

REFERÊNCIAS ............................................................................................... 90

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INTRODUÇÃO

A presente dissertação propõe-se a apresentar episódios da trajetória de

um homem que viveu no Maranhão entre as últimas três décadas do século XVIII e

primeiros anos do século seguinte, seu nome era Vicente Ferreira Guedes.

De sua vida pregressa pouco sabemos: Vicente era filho de um membro

de uma das famílias mais antigas de Pernambuco, os Guedes Alcoforado; sua mãe

é descrita por seus opositores como tendo sido escrava – o que não está explícito

na documentação. Era natural da cidade de Olinda e estimamos que lá tivesse

nascido na década de 1730.

Os motivos que trouxeram Vicente ao Maranhão são desconhecidos, há

menções de que seria escravo fugido da Bahia, ou criminoso fugido de Pernambuco.

Contudo, teria sido capturado em Aldeias Altas, acusado de ser escravo, motivo que

o teria trazido a São Luís: preso, para ser vendido. Tal episódio teria ocorrido por

volta de 1765. A última referência a Vicente data de 1802, ano em que foi agraciado

com o hábito da Ordem de Cristo.

Vicente esteve envolvido em contendas durante boa parte de sua vida no

Maranhão. Seus opositores detinham postos bastante privilegiados na hierarquia

social da época: governadores, ouvidores, juízes e outros funcionários régios. A

trajetória que empreendeu, tão acidentada, quanto bem sucedida, gerou um

conjunto documental bastante variado, oferecendo-nos um vislumbre acerca das

relações de poder entre os homens que aqui governavam, e as relações destes com

o domínio metropolitano. Tendo sido advogado, vogal da Junta de Justiça, lavrador,

militar e membro de uma irmandade, Vicente transitou pelas esferas de poder, ora

em posição de barganha, ora em detrimento de outrem.

Profundamente hierarquizado, o Maranhão experimentava seu primeiro

período de opulência e desenvolvimento no final do século XVIII: o tráfico de

escravos ocorria regularmente há pouco tempo, as exportações de arroz e algodão

cresciam ano a ano, e a população testemunhava o desenvolvimento das cidades e

vilas. Enquanto em lugares como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia a

aristocracia rural assistia o amadurecimento de uma classe mercantil, no Maranhão

tal elite ainda não havia se consolidado.

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Neste contexto, sabemos que Vicente Ferreira Guedes não era o único

homem livre de cor a viver no Maranhão no período em questão, mas são raríssimos

os registros de outros indivíduos nas mesmas circunstâncias. As representações a

seu respeito são, no geral, depreciativas, e parte agravante deste desprezo residia

justamente no fato de ele possuir cor, desqualificando-o por ser indigno de

procedimento. Ainda que não nos seja possível vaticinar quão exemplar ou

excepcional ele foi, sua trajetória é singular.

O primeiro capítulo, intitulado UM PESTÍFERO E PERNICIOSÍSSIMO

CALUNIADOR: vogal e capitão de auxiliares (1776-1782), trata da fase em que

Vicente Ferreira Guedes acumulou patrimônio, estendeu sua influência nas esferas

de poder no Maranhão e começou a colecionar inimigos. Embora contasse com a

simpatia e favorecimento do governador, indispôs-se com o ouvidor e o juiz de fora.

Foi nomeado capitão de auxiliares, arrematou um contrato de dízimos, mas também

foi preso, desterrado, e novamente preso.

O segundo, SOBERBA LUCIFERINA: mestre-de-campo do Terço

Auxiliar dos homens brancos da vila de Alcântara e degredado (1783-1787),

refere-se ao período mais conturbado da trajetória de Vicente. Foi desterrado, sua

fazenda foi incendiada e um de seus amigos sofreu um atentado. Constam do

capítulo, ainda, referências à sua chegada a São Luís, suspeito de ser escravo.

Teria Vicente Ferreira Guedes sido favorecido ao longo se sua ascensão

social por amigos influentes? Seria essa a razão – a despeito das inúmeras

acusações contra si – de suas conquistas? Esta é a pergunta que move o último

capítulo, CIRCUNSTÂNCIAS ATENDÍVEIS: coronel de milícias e cavaleiro (1788-

1802). Com o fim do degredo, Vicente experimentou uma fase relativamente estável,

mas nem por isso deixou de perseguir a tão almejada nobreza.

Este trabalho foi primordialmente construído a partir de manuscritos

provenientes do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Arquivo Nacional da Torre do

Tombo (ANTT) e Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). A grande maioria

dos documentos é composta de cartas, ofícios, representações, consultas e

requerimentos redigidos no Maranhão por governadores, vereadores das câmaras

de São Luís e Alcântara, ouvidores e juízes de fora. Parte deles tem como matéria

principal Vicente Ferreira Guedes. Este, por sua vez, é autor de cerca de trinta

documentos. Integram ainda o conjunto, duas cartas pessoais redigidas a Vicente

por Francisco Xavier Gomes Rebello, a denúncia e o sumário de um processo contra

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ele do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa e seu auto de justificação de

nobreza.

Por fim, a construção do texto se deu em diálogo com obras

historiográficas cujo recorte temporal abarca o período colonial brasileiro, com

ênfase nos seguintes temas: organização militar, formação e atuação das

irmandades de homens de cor, miscigenação e hierarquização de indivíduos

mestiços, nobilitação, burocracia e administração régia, práticas de leitura e a

atuação do Santo Ofício no Maranhão.

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1. UM PESTÍFERO E PERNICIOSÍSSIMO CALUNIADOR: vogal e capitão de

pedestres (1776-1782)

A primeira citação direta encontrada sobre Vicente Ferreira Guedes se dá

em julho de 1777; sua aparição está atrelada à criação da Junta de Justiça do

Maranhão, órgão que a partir de então, cuidaria das questões judiciais daquele

estado.

Até a criação da Junta, todos os trâmites judiciários provenientes do

Estado do Grão-Pará e Maranhão eram dependentes da casa de Suplicação de

Lisboa. Já os processos originados no Estado do Brasil eram remetidos à Relação

da Bahia, instituída em 1605 e, a partir de 1751, também à Relação do Rio de

Janeiro.1 A ausência de jurisdição para julgar no Maranhão gerava prejuízos tanto

aos interesses da Coroa quanto aos dos colonos, pois a tramitação levava anos em

razão da distância entre a metrópole e a colônia.

A partir de dados apresentados por César Marques podemos inferir quão

árdua era a travessia entre Lisboa e São Luís: ao descrever os feitos administrativos

dos governadores do Maranhão, Marques citou em três deles as datas de embarque

em Lisboa e desembarque em São Luís: D. Antonio Sales e Noronha precisou de 51

dias para chegar à colônia, José Teles da Silva, 49 dias, e Fernando Antonio de

Noronha, apenas 45. Na média, a viagem da metrópole ao Maranhão levava cerca

de 48 dias, mas não podemos deixar de notar que, entre a viagem de Sales e

Noronha realizada em 1779 e a do outro Noronha em 1792, houve uma redução de

6 dias. Já para ir de São Luís a Lisboa, a embarcação deveria seguir até Belém, e

de lá para a Europa, o que podia custar até 60 dias.2

A separação administrativa entre o Estado do Maranhão (criado em 1621)

e o Estado do Brasil respondia ao quadro de dificuldades impostas pelo

deslocamento entre as diversas áreas da colônia. Numa viagem entre a Bahia e o

Pará, por exemplo, as rotas terrestres eram repletas de perigos, sobretudo ataques

de índios, e as rotas marítimas eram embaraçadas pelos regimes de ventos e

1 AVELLAR, Hélio de Alcântara. História administrativa do Brasil. Administração Pombalina. Brasília: FUNCEP,

UnB, 1993. pp. 59-61; SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 287-290 2 MARQUES, César Augusto. Dicionário Histórico-Geográfico da Província do Maranhão. Rio de Janeiro: Cia

Editora Fon-fon e Seleta, 1970

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correntes marítimas. Ou seja, era mais fácil administrar o Maranhão a partir de

Lisboa do que a partir de Salvador.3 Para termos uma idéia, o deslocamento entre

São Luís e Pernambuco consumia dois meses e meio.4

Embora o antigo Estado do Maranhão tenha sido extinto em 1774, com a

divisão do mesmo em dois estados autônomos, Grão-Pará e Maranhão (fase que

marca a unificação governamental da colônia em um único estado, com a

transferência da capital da Bahia para o Rio de Janeiro), no tocante à rotina

administrativa nada mudou: a subordinação de todos os aspectos da vida política,

econômica e jurídica continuava atada a Lisboa e a relação com a capital do Estado

do Brasil era ínfima.5 Portanto, quando a Junta da Justiça foi criada no Maranhão ela

visava aprimorar e dar celeridade às questões judiciárias que interessavam a ambos

os lados.

As ordens para se instituir a Junta no Maranhão chegaram em fevereiro;

cinco meses depois escreveu o então governador, Joaquim de Melo e Póvoas a

Martinho de Melo e Castro, secretário de Estado da Marinha e Ultramar, confirmando

o recebimento da orientação régia e dando conta das medidas que havia tomado: o

ouvidor serviria na função de presidente e relator, auxiliado por dois adjuntos, que

deveriam ser ministros (se houvessem) ou bacharéis formados; na ausência deles,

“advogados de boa nota” deveriam ser convocados. Porém, como o a mesma Junta

teria jurisdição sobre processos envolvendo questões militares para as quais,

segundo ele, os mesmos letrados não possuíam instrução adequada das leis

Militares e Artigos de Guerra, decidiu chamar “quando se houverem de sentenciar

militares (...) um dos capitães, o mais aplicado, servido de Juiz Relator e mesmo

Ouvidor, vindo assim a ser os mesmos cinco vogais de devem sentenciar aos Réus

e Militares”.6

Os membros da Junta a rigor teriam direito sobre a vida dos réus, uma

vez que a pena de morte vigorou no Brasil até 1891. Naquele ano de 1777, havia 29

3 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. Séculos XVI e XVII. São

Paulo: Companhia das Letras, 2000 4 SANTOS, Fabiano Vilaça dos. O governo das conquistas do Norte. Trajetórias administrativas no estado do

Grão-Pará e Maranhão (1751-1780). São Paulo: Annablume, 2011, p. 164 5 Tanto nos códices pesquisados no Arquivo Público do Estado do Maranhão, quanto nos manuscritos

pertencentes ao Arquivo Ultramarino, o Rio de Janeiro só passa a figurar como referência administrativa a partir de estabelecimento da corte portuguesa na cidade em 1808. 6 AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 51, doc. 4953

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presos em São Luís com pena capital em curso, aguardando o dia de serem

conduzidos à forca.7

Vicente, que era capitão de pedestres em uma das companhias da cidade

de São Luís e também advogado provisionado8, foi escolhido por Melo e Póvoas;

porém sua nomeação imediatamente desagradou o então juiz de fora, Henrique

Guilhon, que ocupava o cargo desde 1772. Além de juiz de fora, Guilhon fora

também nomeado para a função de provedor da Fazenda Real da Capitania.9

A primeira queixa de Guilhon à escolha de Vicente não foi encontrada,

mas há referência explícita a ela numa requisição que este encaminhou a Melo e

Póvoas, datada de 23 de julho daquele ano, solicitando ao governador que as

queixas do juiz de fora contra si fossem levadas diretamente à rainha, D. Maria I,

para apreciação e julgamento.10

Através da sua carta temos uma idéia da denúncia feita por Guilhon:

Vicente relatou ter sido nomeado para Adjunto do Régio Tribunal da Junta da Justiça

e de ter sofrido oposição daquele juiz de fora por ter sido acusado numa devassa de

1772 de “portar espada fora da cinta”. Alegava, contudo, que tal acusação não

impedira o mesmo Guilhon de “nomeá-lo, provê-lo e admiti-lo” no ofício de repartidos

dos órfãos em 20 de julho de 1775, ou seja, exatos dois anos antes, nem de – na

qualidade de Vedor Geral – ordenar que se cumprisse sua carta patente ao posto de

capitão de pedestres, cargo que ocupava até aquela data.11

A natureza exata da acusação feita a Vicente não nos é clara. É

interessante notarmos que o crime consistiu em carregar a espada fora da cinta, e

não necessariamente em carregá-la. A dedução mais próxima seria uma

incriminação baseada no fato de que a arma fora desembainhada, sacada, talvez

numa situação ou local inadequados, mas só podemos especular. Quanto às

funções citadas, o cargo de repartidos dos órfãos não aparece em nenhum outro

manuscrito pesquisado, tampouco na bibliografia sobre o tema. Graça Salgado faz

referência ao cargo de juiz de órfãos, responsável por inventariar e administrar bens

7 AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 51, doc. 4953

8 Não é possível afirmar quando Guedes começou a advogar no Maranhão, mas há um pedido de renovação de

licença por três anos, feito por ele em 1778. A licença foi expedida em 1779. Referências: AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 52, doc. 5008 e Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM), Correspondência do Reino e do Governo do Maranhão, Livro 9, fls.174v-175 9 AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 46, doc. 4507

10 AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 51, doc. 4967

11 Idem

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e rendas destes desamparados até o casamento ou a idade de 25 anos.12 É

provável que o ofício de Vicente estivesse ligado a uma dessas funções.

O acúmulo de cargos importantes, diretamente ligados à Coroa acontecia

com freqüência. O fato de um único homem (no caso Guilhon) ser juiz de fora,

provedor da Fazenda Real, vedor geral e presidente do Senado da Câmara de São

Luís não era incomum na administração das colônias. Tal prática estava assentada

numa política centralizadora cada vez maior por parte do poder metropolitano,

acentuada, sobretudo, após a coroação de D. José I e ascensão de Pombal ao

poder em 1751.

O cargo de juiz de fora havia sido criado em 1696 e sua função era

comandar a administração da instância política local mais importante, a câmara

municipal, cabendo a ele, também por isso, o cargo de presidente dela. Além de

influenciar diretamente na escolha dos camaristas, o juiz de fora também instaurava

procedimento contra os crimes ocorridos na sua jurisdição, no caso, São Luís.13

Enquanto provedor da Fazenda Real, Guilhon era responsável por toda a

administração fazendária do Maranhão, sendo unicamente subordinado ao

Provedor-mor de Lisboa, autoridade central. Toda a contabilidade colonial, incluindo

arrecadação, receita e despesa estava sob sua responsabilidade, bem como

informar à Coroa sobre as medidas necessárias para fazer prosperar a colônia.14

Já como vedor geral [do Exército], Guilhon era responsável pelo controle

das finanças referentes aos soldos de oficiais e soldados, gastos com a tropa e

quaisquer outros dispêndios referentes à manutenção da defesa militar. Também

cabia a ele proceder com as cartas patentes.15

Apesar da firme oposição de Guilhon, o governador Melo e Póvoas

reafirmou a nomeação de Vicente por ser ele “letrado, sem dúvida o melhor desta

cidade e por isso, menos bem visto dos Ministros dela (...) homem pacífico que

nunca ofendeu pessoa alguma”. Sobre a acusação do juiz, escreveu: “É este crime

uma denúncia que deram na devassa (...) de 1774 de trazer espada debaixo do

12

SALGADO, Graça. Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pp.262-263 13

Idem, p. 59; pp. 261-262 14

Idem, p. 85 15

Idem, pp. 102-103

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capote 16sem que ocasião alguma fosse apanhado com ela, pelo que me persuado

não ser isto crime.”17

O governador relatou que após tomar conhecimento da oposição do juiz

de fora e do desejo de Vicente de continuar na Junta, mandou informar Veloso e

Gama que deferisse o seu requerimento, porém o ouvidor, valendo-se dos poderes

da sua função embargou a sentença, ou seja, a nomeação de Vicente.18

Eis aqui um exemplo notável da disputa de poder e jurisdição no âmbito

da colônia: embora governador-geral, Melo e Póvoas não possuía poder absoluto

sobre as decisões de ouvidores e juízes. Segundo Salgado, cabia à sua função a

fiscalização de todos os procedimentos da governança, devendo deliberar, como

última instância local, sobre as questões onde houvesse divergências entre os

demais funcionários da cúpula do governo (o ouvidor e o provedor). Conquanto

tivesse tais poderes, a liberdade de seus atos era limitada, devendo prestar contas

de tudo ao rei, através de seu Conselho Ultramarino.19

O ouvidor em questão era Miguel Marcelino Veloso e Gama que, assim

como Guilhon, havia sido nomeado em 1772, exercendo também a função de

intendente do Comércio, Agricultura e Manufaturas.20 Ao ouvidor cabia a fiscalização

e aplicação das leis no âmbito da colônia.21

O desacordo entre o governador e os ministros Guilhon e Veloso e Gama

ditava o tom de encerramento da carta de Melo e Póvoas, para quem “[aqueles]

ministros [queriam] unicamente as vias ordinárias em que [vexavam] os vassalos (...)

tanto com as delongas do tempo, como com as despesas que com os livramentos

ordinários [eram] indispensáveis”.22

Cerca de um ano mais tarde, outra disputa envolvendo Vicente, Guilhon e

Melo e Póvoas foi parar no Conselho Ultramarino pelas mãos do governador.

Guilhon, enquanto provedor da Fazenda, era encarregado de executar as

demarcações de sesmarias no estado e, durante uma de suas viagens, o escrivão

daquela Fazenda, Francisco de Azevedo Teixeira, faleceu. Para seu lugar, Melo e

16

CAPOTE: espécie de manto que cobre os homens do pescoço até o calcanhar. SILVA, Antonio de Morais. Diccionário da língua portugueza. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813 17

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 52, doc. 4981 18

Idem 19

SALGADO, op. cit., p.59 20

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 46, doc. 4506 21

SALGADO, op. cit., p.53 22

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 52, doc. 4981

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21

Póvoas nomeou Francisco de Paula de Graça Correia. Mas, quando o provedor

retornou das diligências, recusou-se a assinar alguns papéis que haviam sido

levados pelo novo escrivão alegando que o mesmo fora provido naquele ofício

indevidamente e sem seu consentimento. Segundo Melo e Póvoas, parecia que

Guilhon já havia prometido o cargo para Manoel Rodrigues [ilegível] que, na sua

opinião, era “um famoso intrigante e aleivoso, e que por isso próprio, [contava] com

a condescendência do ministro”.

Ao saber da recusa de Guilhon, o governador mandou suspendê-lo, ato

que não surtiu efeito algum, pois dois dias depois o mesmo ainda não havia

cumprido sua ordem. Guilhon, por outro lado, escreveu a Melo e Póvoas acusando-o

de, na sua ausência, haver deixado que os livros do Cartório da Real Fazenda

fossem levados à casa de Vicente Ferreira Guedes para a instrução de alguns

requerimentos referentes a um processo de interesse da Coroa contra Francisco

Xavier de Carvalho. A justificativa do governador foi incisiva:

Ainda não parou aqui o orgulho e desordenado procedimento do Provedor da Fazenda porque não satisfeito em incriminar aquele inocente Escrivão por levar os Livros à casa de seu Letrado, para efeito que fica dito, consta-me incriminou também ao dito Letrado Vicente Ferreira Guedes por ter em sua casa os sobreditos Livros, como se por lhes levarem a casa cometera nisso culpa, mas certo é que sendo este Letrado o melhor que há na terra, e que lhes descobre e desfaz as suas máquinas, por isso não gostam estes Ministros, e estimam e aproveitam toda e qualquer ocasião para destruí-lo como costumam fazer com todos os que não seguem os seus ditames.23

O trecho acima nos permite deduzir alguns pontos importantes a respeito

da trajetória de Vicente: o primeiro, claro, é o prestígio que ele possuía junto ao

governador e, provavelmente os benefícios, privilégios e proteção que lhe conferiam

tal relação; o segundo é o indício de que Vicente atuava não só na Junta de Justiça,

mas também na Fazenda, a ponto de ser responsável pela feitura de requerimentos

num processo de interesse direto da Coroa; por fim, o desagrado e oposição direta

que sofria dos ministros da colônia, Guilhon e Veloso e Gama.

A resposta de Guilhon junto à rainha D. Maria I não tardou. Em tom de

desabafo, o provedor fez um relato de sua atuação desde a nomeação seis anos

antes, criticando Melo e Póvoas por suas interferências. A nomeação de Francisco

23

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 53, doc. 5047

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de Paula da Graça Correia, notório por sua incapacidade, devia-se ao fato de o

mesmo ser afilhado de Melo e Póvoas. Segundo ele, o governador exercia seu

despotismo favorecendo “seus afeiçoados, que suposto [eram] poucos (...) entre os

quais (...) dois dos mais orgulhosos indivíduos que [vieram àquela] Capitania, e sem

dúvida nocivos ao Estado e ao sossego público”: Marçal Ignácio Monteiro, antigo

administrador da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão e

Vicente Ferreira Guedes,

um especial mulato (...) o qual sendo criminoso de morte no estado da Bahia, e escravo na mesma, e dele não fazer caso seu senhor pelo crime em que está incurso (...) faz quanto quer (...) para símbolo da desgraça deste povo, deixar-se governar o mesmo General (que tudo quer governar) pelas idéias de um tão vil indivíduo, igual aos mais que o cercam dentro do Palácio (...)24

No ano de 1778 o Maranhão passava por um momento de transição. Com

a morte de D. José I no ano anterior e coroação de sua filha, D. Maria I em seguida,

iniciou-se na metrópole e nas colônias uma espécie de desmonte da máquina

pombalina. A Companhia Geral, criada por Pombal em 1755, nunca esteve a salvo

de críticas, quer porque não atendesse às expectativas dos colonos em relação ao

volume e preço dos escravos comercializados, quer pela dificuldade e regulação das

exportações de arroz de São Luís para Lisboa ou, ainda, pelo crescente

endividamento de parte significativa da população em função dos financiamentos

para compra de escravos. Uma das primeiras medidas de D. Maria I, depois de

demitir Pombal, foi extinguir o regime de monopólio da Companhia. Entretanto, o rol

de endividados ainda era imenso. Nesse cenário, Marçal Ignácio Monteiro, um dos

antigos administradores25, não gozava da simpatia de grande parte dos habitantes

daquela colônia.26

O próprio Melo e Póvoas vinha enfrentando desordens desde a queda de

Pombal, seu parente distante, a quem chamava de tio. Seu principal opositor era

justamente o ouvidor Veloso e Gama. Segundo Vilaça dos Santos, os últimos dois

anos da administração de Melo e Póvoas (1777-1779) “foram praticamente

24

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 53, doc. 5066 25

Além de Marçal Ignácio Monteiro, administrava a Companhia Luís Antonio Ferreira de Araújo. AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 51, doc. 4937 e doc. 4961 26

SILVEIRA, Patricia Kauffmann Fidalgo Cardoso da Silveira. O tráfico de escravos para o Maranhão: súplicas, embaraços e distinções (1671-1802). UFMA, 2010

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23

dedicados a se defender das perturbações e acusações do ouvidor e seus

aliados”.27

Numa carta datada de julho de 1777, o governador relatou o que

aconteceu tão logo a notícia do falecimento do rei e conseqüente demissão de

Pombal chegou ao Maranhão. O ouvidor Veloso e Gama teria passado a insultá-lo,

promovendo palestras em sua casa com a presença de parentes e do juiz de fora

Guilhon, dizendo a todos os presentes que “até ali tinham as mãos atadas, porém

que [dali] em diante usaria de toda a sua jurisdição espalhando por toda [aquela]

terra sátiras feitas ao marquês de Pombal”. Além disso, Melo e Póvoas relatou que

chegavam aos seus ouvidos boatos vindos dos sertões, dando conta da sua

rendição e prisão, e quem governava era o ouvidor.28

Sendo Vicente Ferreira Guedes protegido de Melo e Póvoas, não é

estranho que os principais opositores do governador também lhe fizessem oposição.

Não está claro nos manuscritos dessa fase, entretanto, se a atuação de Vicente em

relação aos interesses do juiz de fora e do ouvidor seguia unicamente instruções de

Melo e Póvoas, ou se parte considerável das disputas derivava de seu

protagonismo. Ou ainda, se seria ele o fomentador das querelas.

A acusação feita por Guilhon, de que Melo e Póvoas governava segundo

as idéias de seu vil colaborador Vicente, não pôde ser respaldada por manuscritos

posteriores. Talvez se tratasse de um artifício retórico comum nos documentos da

época, o de atribuir a culpa resguardando o culpado – superior hierarquicamente,

transmutando-o em “vítima” da influência de um terceiro. Este recurso foi bastante

utilizado, por exemplo, para tecer críticas a Pombal poupando, assim, a autoridade e

responsabilidade de D. José I, como no trecho a seguir:

Não admira que Sebastião José de Carvalho e Melo estabelecesse companhias: um homem que não conhece outra religião, outras regras do justo nem do injusto, mais que o seu interesse próprio (...) São os bárbaros monopólios instituídos pelo homem mais ávido, mais insaciável, mais turbulento que se conhece no Ministério. Do Marquês de Pombal falo, daquele cuja cobiça, junta com a ignorância, abusando da candura do melhor dos reis, teve a audácia de o persuadir que os seus fiéis vassalos tirariam utilidades

27

SANTOS, op. cit., p.167 28

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 51, doc. 4958

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24

de um comércio que neste tempo já todas as nações conheciam como ruinoso.29

Quanto à acusação de que Vicente seria escravo na Bahia e lá teria

cometido crime também não há referências posteriores. O que há, e posteriormente

mostraremos, é uma variação dessa acusação, nos mesmos moldes do suposto

crime da espada e suas duas versões.

Ainda no ano de 1778, Vicente deu um passo significativo na hierarquia

social da colônia, arrematou o contrato de dízimos da freguesia de Aldeias Altas

(atual Caxias) por um período de dois anos, no valor de novecentos e vinte mil réis,

um dos mais altos do Maranhão.30 O arrendamento dos dízimos foi, por muito

tempo, o método mais utilizado pela coroa portuguesa para garantir o recebimento

de impostos. Como a arrecadação em si ensejava uma série de obstáculos –

sobretudos nas regiões interioranas das capitanias – os contratos eram divididos por

freguesias e arrendados a terceiros. Assim, a coroa fazia uma estimativa do valor

que determinava freguesia renderia, cobrava o preço previamente do contratador e

este, por fim, “assumia por si os riscos e as vantagens das cobranças diretas”.31

No fim daquele mesmo ano, Melo e Póvoas escreveu à rainha

recomendando Vicente ao cargo de procurador da Coroa e Fazenda do Maranhão;

afirmou que o atual ocupante estava no cargo há 28 anos, sem provisão do

Conselho Ultramarino. Conquanto não haja citações póstumas à solicitação, é certo

que Guedes não chegou a ocupar a função pretendida.32

Na mesma época, José Tomás da Silva Quintanilha, bacharel, recém

chegado da corte, assumiu a função de juiz de fora e, conseqüentemente, de

presidente do senado da câmara. Guilhon, que até então ocupava aqueles cargos,

continuou como provedor da Fazenda Real.33 Os motivos para a troca não estão

explícitos nos manuscritos que tratam da nomeação do novo juiz e os seus primeiros

tempos de atuação também são obscuros. Talvez se tratasse de uma mera

renovação dos quadros do funcionalismo régio, pois no ano seguinte o Maranhão já

teria, além do juiz, um novo governador e um novo ouvidor.

29

DIAS, Manuel Nunes. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. 1755-1778. Belém: Universidade Federal do Pará, 1970, pp.180-181. Grifo nosso. 30

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 55, doc. 5169 31

MATTOSO, José. História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 81 32

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 53, doc. 5072 33

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 53, doc. 5040

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25

Com o fim do governo de Melo e Póvoas em 06 de novembro de 1779,

tomou posse D. Antonio Sales e Noronha, dando início a um período bastante

turbulento na trajetória de Vicente. Exatamente um mês depois, ele foi preso a

mando de Veloso e Gama.34

O episódio da prisão de Vicente gerou muitos desdobramentos. O motivo

dela teria sido um requerimento do lavrador José da Silva Baldez entregue

diretamente ao ouvidor, no qual cobrava o recebimento de uma dívida que Guedes

tinha com ele já há muito tempo. No requerimento, Baldez alegava que Vicente se

ausentara “para fora da terra” sem efetuar pagamento do que lhe era cobrado. Já

preso, Vicente requeriu ao novo governador, Sales e Noronha, que fosse libertado

uma vez que não havia condenação nem motivo que justificasse sua prisão. Seu

encarceramento durou 9 dias.35

Tão logo saiu da prisão, Vicente Ferreira Guedes solicitou feitura pública

(geralmente cópias de declarações e outros documentos oficiais) de vários papéis,

atestando sua conduta e sua posição naquela sociedade, o que foi feito em janeiro,

já no ano de 1780.

O primeiro era cópia da carta patente do posto de capitão da Primeira

Companhia de Pedestres que então exercia. Emitida pela Coroa em 1776,

apresentava informações da sua vida pregressa na capitania de Pernambuco,

informando haver ele

(...) servido [o Real Serviço] com satisfação por mais de sete anos, em Praça de Soldado voluntário em uma das Companhias do Regimento de Infantaria paga da Praça do Recife de Pernambuco e no Posto de Ajudante da Ordenança de um dos Terços da mesma capitania (...)36

O segundo era uma declaração de Joaquim de Melo e Póvoas atestando

conhecer Vicente como

capitão de uma das Companhias soltas de Auxiliares dos Pedestres, por um oficial de honra do procedimento, [sendo] comedido e muito obediente aos seus superiores, mostrando-se assim não só em todo o tempo, mas principalmente nas funções militares em cujas sempre se portou com muita honra e sei que para o Serviço Régio fez

34

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 55, doc. 5169 35

Idem 36

Idem

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26

avultada despesa fardando-se com seu competente uniforme e pondo à sua custa um tambor fardado e armado com caixa na sua Companhia para o mesmo Real Serviço em que se acha empregado, e pela sua capacidade e honra o julgo ter mérito de qualquer mercê que Sua Majestade for servido conferir-lhe (...)37

O terceiro documento era uma solicitação ao escrivão da Ouvidoria do

traslado do assento de sua prisão, ou seja, um relatório dos procedimentos até o seu

encarceramento. Assim, obteve os nomes de José da Silva Baldez como requerente,

Miguel Marcelino Veloso e Gama como despachante, do meirinho Manoel José

Meireles como executor da ordem de prisão e de João Gonçalves como carcereiro

da cadeia.38 Este documento seria usado posteriormente por Guedes não só para

contestar a prisão, mas o maneira como ela havia sido feita.

O documento seguinte solicitava cópia de todos os papéis entregues por

Baldez junto com o requerimento de sua prisão. Na declaração emitida em 05 de

janeiro pelo escrivão da Ouvidoria, João Mendes da Silva, declarou não constar “que

contra o suplicante houvesse condenação alguma, nem fosse convencido em juízo,

e menos por parte do suplicado que requereu a prisão se tivesse provado coisa

alguma”.39

Por fim, o quinto atestava o seu arremate do contrato de dízimos de

Aldeias Altas.40

A atitude de Guedes ao solicitar a juntada de tantos documentos indica

que o mesmo não pretendia deixar que o episódio passasse sem esclarecimento.

Sua libertação não encerrava o caso. Assim que juntou todos os papéis de que

precisava, escreveu a Melo e Póvoas, já na Europa, enviando junto uma declaração

atestada em cartório contendo denúncias graves contra o provedor e o ouvidor do

Maranhão.

Em abril, o ex-governador escreveu à rainha defendendo seu protegido e

apresentando as acusações que Vicente tinha contra Veloso e Gama e Guilhon. A

carta, redigida em Paço do Lumiar, tecia elogios contundentes ao comportamento e

caráter de Vicente, afirmando ter ele o melhor senso de Direito de São Luís. Para

Melo e Póvoas, o crime imputado àquele homem era falso, usado como pretexto

apenas para impedir que o mesmo assumisse como adjunto da Junta de Justiça.

37

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 55, doc. 5169 38

Idem 39

Idem 40

Idem

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27

Assim como era injuriosa a prisão ocorrida meses antes, com o único propósito de

evitar que Vicente depusesse na residência que estava em curso sobre Henrique

Guilhon.41

Dava-se o nome de residência ao procedimento que ocorria sempre

que um funcionário régio de alto escalão entregava o cargo; nomeava-se geralmente

um bacharel para efetuar o processo investigativo a respeito de suas ações durante

o exercício do cargo. A residência consistia numa série de entrevistas com pessoas

de qualidade, acerca do comportamento e ações do investigado

Melo e Póvoas condenou a escolha do professor régio José Miguel de

Araújo como responsável pela residência de Guilhon, por ser ele sobrinho de João

Ignácio de Moraes Rego, partidário do ex-juiz de fora. Para o missivista, seria justo

que a rainha mandasse tirar nova residência, alertando, no entanto, que “nunca

Vossa Majestade [poderia] bem e verdadeiramente saber como [serviam] os

Ministros da América”.42

Como prova do favorecimento e das relações entre o ex-juiz de fora e o

ouvidor, Melo e Póvoas anexou a cópia de uma carta escrita por Guilhon a Veloso e

Gama que “havia lhe caído em mãos” em setembro do ano anterior enviada do

Itapecuru. A carta não deixava dúvidas quanto a amizade de ambos

Senhor e Doutor Miguel Marcelino Veloso e Gama. Meu querido amigo e senhor do meu coração, o gosto que recebo com o favor da sua carta é eficaz prova da sincera amizade com que sempre estimei a vossa mercê. Esta será eternizada estando como está, entranhado no meu coração o afeto que devo a tão estimável amigo como vossa mercê.43

Entre assuntos diversos, havia um parágrafo, todo escrito em francês,

com o seguinte fragmento: “Quero que vossa mercê me conte a respeito das folhas

em que devo colocar minha assinatura. É fato que deve ser feito o mais breve

possível (...)”. O trecho em questão sustentava uma das acusações feitas por

Vicente na carta encaminhada a Melo e Póvoas, a de que sua prisão havia se dado

a fim de impedir que o mesmo, ao participar da residência sobre Guilhon,

41

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 55, doc. 5188 42

Idem 43

Idem

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28

denunciasse a retirada de folhas de um livro pertencente à Provedoria e

Arrecadação da Fazenda Real.44

Segundo Vicente, as folhas arrancadas possuíam informações referentes

à arrecadação, e, no entanto, o livro havia sido desencadernado para que outras

folhas substituíssem as arrancadas, sendo estas novamente rubricadas, “com

cautela e escondidamente”.45

Além da denúncia sobre o livro da Provedoria, Vicente apresentou uma

queixa sobre os procedimentos adotados quando da sua prisão, uma vez que,

possuindo a patente de capitão de Auxiliares tivera “o desgosto de em desprezo do

seu dito privilégio, ser preso na cadeia publica, debaixo de chave, por um

meirinho”.46

Numa sociedade profundamente hierarquizada, cada indivíduo possuía –

de acordo com sua posição – direitos, privilégios, atribuições e deveres. Nas

sociedades do Antigo Regime, essa estrutura social podia ser facilmente distinguível

através de um meticuloso protocolo, se estendendo por meio das relações sociais –

concebidas à imagem e semelhança da esfera mais elevada, mais próxima,

portanto, do rei. As distinções com que determinado indivíduo era tratado,

demonstravam quão próximo ou distante estava ele do monarca. Todavia, essas

diferenças sociais não eram estamentais, porque eram medidas dentro de uma rede

hierárquica local, numa escala que se formava por meio de uma comparação entre

as posições ali existentes. O lócus social de um indivíduo dependia da posição dos

demais, imediatamente acima e abaixo dele.47

Sob tal ordenamento social, Vicente sentiu-se prejudicado, pois teve uma

de suas prerrogativas desprezada no momento de sua prisão. O capitão argumentou

que devido à sua patente, não poderia ter sido preso por um meirinho, mas somente

por um ministro, que possuísse conhecimento do caso motivador da prisão. Para

Vicente, tal procedimento provava que sua prisão ocorrera unicamente com o intuito

de desonrá-lo. E, para reforçar sua queixa, lembrou que era arrematador de um

contrato real de “crescida quantia” – o dos dízimos de Aldeias Altas.48

44

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 55, doc. 5188 45

Idem 46

Idem 47

LARA, Sílvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp.84-86 48

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 55, doc. 5188

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A posição que Vicente Ferreira Guedes ocupava naquela colônia devia

ser percebida explicitamente através da ostentação pública, sobretudo por meio das

distinções que lhe seriam devidas em função dos cargos que ele ocupava, do

cabedal que possuía e das pessoas com quem se relacionava. Sílvia Hunold Lara

enfatiza que “num mundo em que a maior parte das pessoas era analfabeta, ver era

experiência das mais importantes: o poder e o prestígio deviam saltar aos olhos.”49

Conquanto já possuísse uma rivalidade com dois dos mais importantes

cargos daquela colônia – com o provedor e ex-juiz de fora Guilhon e com o ouvidor

Veloso e Gama, não tardou muito para que Vicente passasse a constar da lista de

imparciais do governador.

Relatando os conflitos existentes na capitania, escreveu Sales e Noronha

a Martinho de Melo e Castro culpando quatro homens por discórdias que constatara

desde a posse de seu cargo. O primeiro era José da Silva, escrivão da Junta da

Administração e Arrecadação da Fazenda Real, “um tanto altivo e de gônis inquieta”;

o segundo era Thomas Tavares da Silva, “muito falador e pouco acautelado nas

suas práticas que dirige contra pessoas a que se deve decoro e respeito”; por fim, os

outros dois eram Vicente e o ex-administrador da extinta Companhia, Marçal Ignácio

Monteiro,

esses dois homens sem atenderem ao respeito e caráter de uma magistrado se propõem a murmurarem das ações e despachos do dito Ouvidor, e isto o fazem em qualquer casa ou lugar onde se achar: em algumas destas muitas casas que com sinceridade ou por condescendência admitam as referidas murmurações, tenho particularmente proibido a continuação delas, agora me consta que onde os sujeitos estão associados para a mesma murmuração, com as principais origens das perturbações do tempo do meu antecessor, Vicente Ferreira Guedes, que dizem ser Letrado e Marçal Ignácio Monteiro que foi Administrador da Companhia de que foi despedido com infâmia, estes dois homens que sempre olharam para os Ministros com o maior desagrado, inimigos do sossego público, tanto que ainda hoje este Povo clama, que eles ambos foram a causa de se terem queixado a S. Majestade do meu antecessor, pois que sendo certo que este muito os atendia, e que lhes admitia as suas práticas se capacitaram que os mesmos com suas maliciosas indústrias o persuadiam àqueles fins, que deram causa às mesmas queixas.50

49

LARA, op. cit., p. 86 50

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 56, doc. 5264

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30

No fragmento acima, notamos o cuidado de Sales e Noronha em não

atacar diretamente o seu antecessor, Melo e Póvoas, atribuindo a culpa pela

perturbação do sossego público ao poder de persuasão e malícia de Vicente e

Monteiro – recurso retórico já demonstrado anteriormente.

Sobre José da Silva o governador já havia se queixado dias antes, em

outra carta, onde relatava o estabelecimento da Junta da Administração e

Arrecadação da Real Fazenda. Na epístola, elogiava o novo ouvidor, Julião

Francisco Xavier da Silva Sequeira Monclaro e o juiz de fora Quintanilha, dizendo

que estava satisfeito com ambos. Mas tecia considerações a respeito do escrivão

Silva, dizendo que o mesmo já se encontrava “metido em perturbações semelhantes

às que [teriam ocorrido] no tempo em que este era contador no Pará”.51

Quando o governador redigiu ambas as cartas, não citou que Vicente

havia sido desterrado no dia 03 de janeiro, por ordem do ouvidor que ele elogiara.

Coincidência ou não, o início do desterro deu-se exatamente no dia em que a sua

denúncia da substituição de folhas do livro da Fazenda completou um ano.

1.1 O desterro no Itapecuru

A denúncia que Vicente Ferreira Guedes dirigiu à rainha em 25 de

fevereiro relatando seu banimento da cidade de São Luís é um dos manuscritos

mais interessantes dentre os pesquisados. A retórica empregada é bastante comum

no período: antes de expor suas queixas, Vicente descreve seu patrimônio e suas

atividades, asseverando a utilidade de seus empreendimentos para os interesses da

Coroa.

Para mais livremente poder representar à Vossa Majestade e com individuação assistência àquilo que vou expor, é preciso asseverar que eu sou casado nesta Capitania e que nela tenho não só uma numerosa família, mas também um pequeno estabelecimento, porque possuo várias propriedades entre as quais há uma Fábrica de beneficiar arroz a qual não só a faço laborar com quarenta e dois escravos meus, mas também com um grande Engenho que move dezesseis pilões com bois e com cavalos, sendo por esse respeito a mais grossa e a que devia maior expedição nesta Capitania, a não serem os acontecimentos que adiante vou relatar, cuja propriedade

51

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 56, doc. 5259

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31

erigi com uma avultada despesa e grande trabalho o que foi tanto para utilidade minha, como para o do público, para maior expedição que será aos arrozes, para poder girar o Comércio sendo certo que é a única desta qualidade que há vizinha à Cidade porque as mais todas beneficiam arrozes a braços de escravos. Além disso, tenho contas com a Fazenda de Vossa Majestade nesta Capitania em razão de ter arrematado o contrato dos Dízimos da Freguesia do Sertão das Aldeias Altas os anos de 1778 e 1779, obrigado a satisfazerem quartéis dos quais tenho já pago o primeiro na forma da minha arrematação e condição do dito contrato. Isto se oposto, sendo livre aos Lavradores e aos Comerciantes o mandarem descarar e beneficiar os seus arrozes nas Fábricas que lhe parecem, e aonde tem maior cômodo, outra coisa é o qual praticou no tempo presente tão somente a fim de se me danificar porque impedindo-se por ordem superior o destino que cada um dava aos seus arrozes se mandavam estes por força e contra vontade dos seus donos para umas tantas Fábricas destinadas e desviando-se contudo que de nenhum modo fosse para a minha, de modo que sendo eu devedor à Companhia Geral de Comércio deste Estado extinta e requerendo à Administração que eu lhe beneficiasse uma partida de arroz por conta do que lhe devo foi necessário fazer a Súplica da qual se manifestassem da opressão em que se me pôs.52

Em seguida, Vicente relatou que vendo os obstáculos impostos aos que

queriam utilizar sua fábrica, redigira duas requisições ao governador, suplicando

“que não se impedissem aos que por sua vontade ou conveniência quisessem

mandar arrozes para na [sua] fábrica se beneficiarem, para não [privá-lo] dos meios

(...) de subsistir e pagar o que [devia] à Real Fazenda”. Sales e Noronha, por sua

vez, não autorizou o uso da fábrica, nem permitiu que as requisições do suplicante

fossem registradas no cartório, negando-se também a devolvê-las.53

Apesar das dificuldades impostas, Vicente alardeou aos comerciantes e

lavradores que faria o serviço com rebate, ou seja, com desconto sobre os preços

usualmente cobrados. Desta feita, recebeu porções de arroz de José Gomes,

contratador de dízimos reais, de Leonel Fernandes e João Carlos da Serra, da

Companhia Geral de Comércio, do capitão Alexandre Pereira [ilegível], e de José

Gonçalves da Silva.

Então, no dia 02 de janeiro, Vicente foi notificado pelo ouvidor de que teria

apenas 24 horas para deixar a cidade e manter-se pelo menos a 02 léguas (cerca de

9 quilômetros) de distância dela. O desterro o obrigou a fechar a fábrica, os

armazéns dela e a sair com mulher e filhos.

52

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 56, doc. 5272 53

Idem

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32

É somente a partir deste ponto da carta que Vicente acusa seus

opositores de maneira direta:

E desta sorte, sem se precederem as circunstâncias de direito, se praticou comigo o degredo em que me acho, um procedimento em conseqüência do tal se derrotou a minha casa e os meus bens, impedindo se me por estes modos os meios que tinha de pagar o que devo à Fazenda de Vossa Majestade, pois proibido de não poder sair deste lugar em que estou a nenhuma parte, com pena de se proceder contra mim bem se vê que é violência sobre violência, e opressão sobre opressão, o que tudo pratica o sobredito Ministro de acordo com o Governador e Capitão General existente, tão somente para desagravar ao dito Bacharel Miguel Marcelino Veloso e Gama do qual ambos são íntimos amigos verificando-se que em prêmio de denunciar à Vossa Majestade os danos que em prejuízo da Sua Real Fazenda se praticaram nesta Capitania, tive as extorsões que tenho relatado, e vim a ter por inimigos um Governador e um Ministro, que amando mais aos seus particulares amigos, que ao Serviço de Vossa Majestade se diferenciaram nesta parte do Juiz de Fora atual desta Cidade que seguiu o contrário parecer.54

E encerra com uma súplica à rainha

Nestes sentimentos em que o menos que periga é a minha vida, e à vista de outros lastimosos sucessos que a modéstia faz calar, suplico à Vossa Majestade com a mais profunda humildade, e a mais obsequiosa [ilegível] que pelo amor de Deus se sirva conceder-me licença para que me possa eu mudar e transportar com toda a minha família desta para qualquer outra Capitania das de Vossa Majestade servindo-se mandar que tirando-se dos meus bens os que bastarem para a satisfação do que devo à Vossa Majestade, para que também à Companhia Geral de Comércio extinta, constando que nem tenho crimes, nem devo mais à pessoa alguma, só me não impeça a mudar-me com a minha família para outra terra, ainda que pobremente fique, e vá; pois tudo é pouco e nada é mais, que a minha tranqüilidade e conservação da minha honra que é impossível conseguir presentemente pois com os indizíveis e escandalosos sucessos que por ele passam depois que teve a infelicidade de perder a um homem, ou a um Governador, que com as suas virtudes e probidade, sustentou no decurso de dezoito anos, pouco mais, ou menos, debaixo da rédea dura os desordenados vícios que hoje desenfreados fazem [ilegível] a triste situação em que se vêem os [ilegível] da família do Maranhão.55

É impossível sabermos se Vicente de fato intencionava partir, ou se

carregava nas tintas a fim de provar sua humildade enquanto fiel vassalo e a

54

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 56, doc. 5272 55

Idem

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33

gravidade da opressão que sofria. Até onde sabemos, o Maranhão já era a sua

mudança, posto que era oriundo da capitania de Pernambuco. Sua licença para

advogar só poderia ser exercida nos auditórios de São Luís; seu patrimônio já era

considerável, pois além da fábrica, dos armazéns, animais e escravos, possuía

também a propriedade do Itapecuru – para onde se refugiara. O fato de ter

amealhado um dos contratos de dízimos mais caros do estado indicava um vultoso

cabedal, mas indicava também que a soma que ele teria que recolher dos colonos

levaria tempo. Outro indício que possuímos é uma lista56 dos devedores da

Companhia, elaborada por Sales e Noronha no início de 1781 onde havia 178

indivíduos arbitrados, dos quais apenas 11 (6,2%) possuíam dívida maior que três

mil contos de réis, dentre eles Vicente.

Vicente continuou escrevendo à rainha para denunciar o episódio dos

livros da Real Fazenda num tom cada vez mais incisivo, incluindo agora nas suas

acusações as ações do atual ouvidor, Monclaro.57

Tudo teria começado com uma irregularidade envolvendo um ex-

almoxarife da Real Fazenda (Francisco Xavier de Carvalho) que, justamente pelo

cargo que ocupava, estava proibido por lei de arrematar contratos reais. Isso não o

teria impedido de arrematar dois, com o conhecimento e consentimento do então

provedor da mesma Fazenda, Henrique Guilhon. Quando Guilhon encerrou suas

atividades e se viu às vésperas de sua residência, apelou para o amigo ouvidor,

Miguel Marcelino Veloso e Gama, que o auxiliou de duas formas: nomeou um

partidário seu para conduzir a residência e, ao mesmo tempo, providenciou para que

as páginas dos livros que continham – dentre outras informações – os dados dos

dois contratos do ex-almoxarife, fossem cuidadosamente substituídas. Vicente teria

percebido as alterações na época em que teve contato com os livros para preparar

requerimentos num processo de interesse da Coroa, tendo apontado a fraude

imediatamente – o que desencadeou as perseguições que ele relatava sofrer desde

então. Depois que a denúncia chegou à corte, a Coroa ordenou ao governador Sales

e Noronha que averiguasse os fatos e, para a tarefa, ele nomeou o recém chegado

ouvidor, Julião Francisco Xavier da Silva Siqueira Monclaro.

56

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 57, doc. 5288 57

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 57, doc. 5299 e doc. 5319

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Vicente acusou Monclaro de ter efetuado a sindicância em segredo e com

cautela, protegendo a reputação de Guilhon e de Veloso e Gama e, ao mesmo

tempo, intimidando aqueles que quisessem apresentar queixas em relação aos dois.

Para tanto, nomeou como escrivão um cúmplice do governador, chamado José

Marcelino, que exercia o cargo de oficial da secretaria do governo, para auxiliá-lo na

diligência que aconteceria em seguida. Quando a inquirição das testemunhas

começou, Monclaro selecionou as que deveriam depor, fazendo as assinar três vias

em branco.

Essa nova leva de denúncias de Vicente gerou uma reação violenta

orquestrada pelo governador e pelo ouvidor Monclaro. O episódio narrado por sua

esposa, Maria Rosa da Silva, ocorreu na noite de 31 de agosto, quando o casal

estava em casa. A habitação foi cercada por uma tropa e Vicente conduzido à

prisão, sendo mantido com sentinela à vista, proibido de se comunicar e passar

instruções à mulher para que ela tocasse os negócios.58

Tudo indica que a casa em que se encontravam era sua habitação usual

em São Luís, pois Maria Rosa relatou que havia “pouco tempo que se achavam

descansando do degredo”.59 O exílio no Itapecuru durou pouco mais de quatro

meses.60

Além de denunciar a prisão, Maria Rosa agravou a natureza da

ocorrência ao relatar que sofria assédio do governador através de seu “indigno

confidente” Vitório Gonçalves Rua, capitão de navios. Dizia ela que em nome do

desempenho da sua fé conjugal resistia aos “seus libidinosos desejos e contínuos

ataques”. E, concluindo a narrativa, dizia-se “rodeada de seus pobres filhinhos (...) já

como órfãos”.61

Apesar dos vários requerimentos de Vicente e Maria Rosa, e dos

despachos favoráveis emitidos em Lisboa para que ele fosse libertado, Guedes

permaneceu na prisão, incomunicável, pelo menos até o fim daquele ano.

Numa carta de Maria Rosa, datada de 1º de setembro, havia uma

anotação lateral no canto esquerdo e copiada nos livros de ordens, sem data,

aconselhando deferimento:

58

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 57, doc. 5323 59

Idem 60

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 61, doc. 5560 61

Em documentos posteriores, Vicente registraria só ter tido um filho com Maria Rosa, João Ferreira Guedes Alcoforado. AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 57, doc. 5323; caixa 105, doc. 8414

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Concordo em que se mande recolher do desterro o marido da suplicante e que se mandar soltar da apertada prisão e ser restituído à liberdade de se poder comunicar com a suplicante sua mulher. Que o Ouvidor diga a culpa que ele cometeu e venha com brevidade a informação dos delitos a este Tribunal, sem delongas (...) A não haver culpa formada, seja deixado solto porque é suficiente a demora que tem havido em o consternar, e perder (...) [assinatura ilegível]62

No mesmo maço da carta havia um despacho, sem data ou assinatura, de

caligrafia diferente do anterior:

Senhora, eu já tinha dito que o marido da suplicante devia ser mandado recolher do desterro em que se achava e agora se deve mandar soltar da apertada prisão em que sua mulher diz me se acha agora; entendo pois se deve mandar o Ouvidor, que entendo o fez prender que dê logo conta do motivo porque o fez, e sendo por algum fato notório e público dê conta dele, e o mande por em prisão aberta, e de sorte em que possa falar à sua mulher e governar a sua casa; não havendo porém crime judicial e legitimamente formado o ponha na sua liberdade. Entendo se deve pedir ao Governador a conta que se lhe pediu no despacho de 8 de Julho do ano passado, e como me parece se necessita de se averiguar bem a verdade dos fatos que se tem referido nesta conta me faz alguma suspeita no Governador; me parece se devia encarregar o exame a algum Ministro que passe para o Pará dando-se lhe alguma ordem para fazer os exames com cuidado e vigilância que é necessária e na Ordem que se passar ao Governador pedindo-se lhe a dita informação se lhe deve logo encarregar que não proceda contra pessoa alguma por este motivo e quando o tenha feito o mande logo soltar se estiver preso e restituí-lo ao estado antigo.63

Anexada a um requerimento de Vicente enviado também em setembro,

havia um despacho real endereçado ao governador Sales e Noronha, datado de 07

de novembro, e expedido pelo Conselho Ultramarino somente 08 de janeiro do ano

seguinte:

Sou servida declarar-vos que não havendo culpa formada contra o Suplicante, o não deveis prender, nem ter contra ele o procedimento de que se queixa, e ordeneis mandar logo soltar e permitir-lhe as ações que queira intentar para haver a sua indenização; quando porém houver alguma queixa em matéria grave, nunca o deveis prender, sem logo lhe declarar, e dar Livramento. E assim o praticareis agora, admitindo ao Suplicante a livrar-se dando conta

62

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 57, doc. 5323 63

Idem

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36

logo do motivo porque procedestes contra ele, e porque procedestes por esse modo.64

Não há quaisquer menções à soltura de Vicente, mas sabendo que o

deslocamento de Lisboa a São Luís levava cerca de 50 dias na época, e imaginando

que a ordem real tenha levado outros tantos dias para cumprir as vias burocráticas

reinóis e ser remetida à colônia, é provável que Vicente tenha continuado preso até

pelo menos março de 1782.

O caso da prisão de Vicente ilustra com clareza a dinâmica das relações

de poder no âmbito da colônia; mostra que apesar de todo o poder emanar do rei e

em nome dele ser exercido, os funcionários coloniais possuíam meios de retardar as

ordens metropolitanas, ou até, de postergá-las de acordo com seus interesses

particulares. A distância que separava o Maranhão de Portugal, bem como a própria

burocracia reinol, colaboravam para as manobras nesse sentido.

Em junho Vicente retomou os procedimentos contra o caso dos livros da

Fazenda solicitando à rainha medidas contra os que haviam falsificado aqueles

volumes. Anexou uma declaração de José da Silva, escrivão da Fazenda, em que o

mesmo dava conta das folhas arrancadas e das matérias a que se referiam. Seriam

elas: páginas 79 a 86 do Livro da receita e despesa; páginas 104 e 105 do Livro das

contas correntes; e, páginas 66 e 67 do Livro Auxiliar. Ainda segundo ele, uma das

páginas continha a importância total da receita e despesa do ano de 1776 e o saldo

passado para o ano seguinte.65 Silva declarou também que até a data daquela

declaração, 08 de julho, o ouvidor Monclaro ainda não havia averiguado as

denúncias, mantendo os livros em seu poder (por ordem do governador), longe das

vistas dos demais membros da Junta da Fazenda. E aproveitou para mais uma vez

se queixar dos procedimentos adotados na sua prisão, enfatizando que no

Maranhão os privilégios dos capitães não eram observados e cumpridos.66

No mesmo documento de Vicente (provavelmente anexado

posteriormente, por se tratar do mesmo processo) há uma declaração do ouvidor

Monclaro respondendo à queixa do capitão e explicando que procedera daquela

forma sem se dar conta que ofendia o capitão, uma vez que o mesmo já havia sido

64

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 58, doc. 5348 65

O desfecho do caso do arranque das folhas da Fazenda não aparece nos manuscritos posteriores. Se houve um processo e/ou condenação, a papelada ficou sob responsabilidade de outro órgão reinol que não o Conselho Ultramarino, não fazendo, portanto, parte do acervo da instituição – fonte primordial deste trabalho. 66

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 58, doc. 5378

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preso no passado, “remetido por Antonio Luís de Abreu, Provedor Comissário do

Julgado das Aldeias Altas, com o fundamento de ser escravo (...) Este fato é tão

notório no Maranhão que poucas pessoas deixaram de saber.”67

A referência à prisão que Vicente teria sofrido em Aldeias Altas por

suspeita de ser escravo foi reproduzida posteriormente por alguns opositores e por

Melo e Póvoas, como veremos. Conquanto não haja qualquer documento produzido

pelo evento, o que aqui nos interessa é a aceitação desse episódio entre indivíduos

contemporâneos a ele. A plausibilidade da suposta prisão por motivo de ser escravo

residia no fato de que Vicente era considerado um homem de cor. Fosse ele

considerado branco, tal história não teria respaldo no imaginário da época.

Ressaltemos que a cor branca aqui não é entendida enquanto cor da

pele. Durante o regime escravista, o termo branco assinalava, sobretudo, a condição

jurídica de um indivíduo, sendo esta diametralmente oposta à condição de escravo,

cujos vocábulos sinônimos eram preto e negro. A experiência escravista colonial

ensejou o uso de múltiplos termos para designar os indivíduos oriundos de

miscigenação, localizados entre os opostos branco e escravo/preto/negro. Assim,

nos registros documentais, encontramos categorias como mestiço, pardo, mulato,

cabra, cabrocha, cafuzo, mameluco e crioulo que estavam impregnadas de sentidos

diversos, subjacentes à condição (livre, forro, escravo), e à qualidade (branco, preto,

negro, crioulo, índio etc.) do indivíduo. A estas definições podiam, ainda, ser

acrescidos outros termos, como claro, escuro, acafuzado, fusco, retinto, moreno,

sombreado, trigueiro, pardacento, sujo, duvidoso etc. Além disso, tais definições não

carregavam um significado fixo, podendo ser usadas de maneira isolada ou

sobreposta, variando de região para região. Desta forma, mais do que a cor da pele,

um determinado adjetivo podia referir-se à descendência de um indivíduo, sugerindo

sua ligação com um passado de escravidão – ainda que fosse livre. O que

tencionamos é demonstrar que a presunção de que um branco tivesse sido tomado

por escravo seria impensável. Mas para indivíduos como Vicente, oriundos da

miscigenação e, portanto, de cor, era perfeitamente possível.68

67

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 58, doc. 5378 68

MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 93-103; GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 – c.1850). Rio de Janeiro: Mauad X : FAPERJ, 2008, pp. 93-108

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Também em junho do mesmo ano, escreveu Sales e Noronha à rainha,

comentando as denúncias de Vicente e acusando-o de “depravadíssima calúnia”.

Afirmava ele, que no caso dos livros da Fazenda, as averiguações que o ouvidor

Monclaro realizara mostravam que a troca de folhas de fato havia ocorrido, mas não

por malícia, e nem em segredo como afirmara o acusador.69

Sobre caso da prisão de Vicente, sem culpa formada, e dos

procedimentos dela, alegou Sales e Noronha que o capitão não requerera privilégios

em momento algum.

A argumentação do governador para o fato de Vicente não ter direito aos

privilégios em questão explicava-se pelo fato de que, ainda que capitão, ele o era de

uma companhia de pedestres, definindo-a como

(...) um corpo de gente tumultuária que pela maior parte anda descalça, formados da mais vil e ínfima escória do Estado, por serem os que neles servem mulatos, cabras, mestiços, pretos e todos os mais que tem alguma mistura de sangue, de cuja espécie são tirados os seus capitães e oficiais.

E no decorrer da epístola, teceu graves críticas a Vicente

Devo dizer que este homem, tanto no seu nascimento quanto nas suas cores, é escuro, por participar imediatamente na sua concepção da mistura de sangue etíope; que lhe é verdadeira a fama que dele corre, entrou nesta cidade fugindo da de Pernambuco por um delito de resistência feita à Justiça, que nela cometeu; que o seu exercício aqui tem sido o de advogar, em cujo emprego tem feito acreditar em suas qualidades de refinadíssimo rábula (...) Que neste exercício teve meio oportuno de se insinuar com o governador antecessor fazendo-se fomentador e parcial da grande intriga que aqui se levantou entre o dito governador e os ministros, por ele acusados na sua representação por cujos serviços obteve o posto de capitão de uma das Companhias de homens da sua mesma espécie (...)70

Mais uma vez, era atribuída a Vicente uma enorme capacidade de

influenciar Melo e Póvoas. De acordo com Sales e Noronha, teria sido ele o

responsável pela cisão entre o antecessor e os ministros Veloso e Gama e Henrique

Guilhon, por se tratar de um “pestífero e perniciosíssimo caluniador”. O governador

encerrou a carta pedindo à rainha que castigasse Vicente.71

69

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 58, doc. 5384 70

Idem 71

Idem

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39

Mas não foi o que aconteceu. Além de não ser castigado, Vicente Ferreira

Guedes foi nomeado ainda naquele ano para o posto de mestre-de-campo do Terço

de homens brancos da Infantaria Auxiliar da vila de Alcântara – o mais disputado da

capitania.

1.2 A organização militar na colônia

A força militar instituída na América pelos portugueses atuou, desde os

primórdios da colonização, como um importante instrumento de hierarquização

social e governança, moldando a sociedade colonial à imagem do modelo reinol.

Através da militarização, Portugal empreendeu um

enquadramento institucional e político das áreas conquistadas, possibilitando o exercício da soberania e a representação da monarquia lusitana à distância; a reprodução e reacomodação de valores caracteristicamente hierárquicos da sociedade portuguesa, agenciando a disseminação de uma cultura política ostensivamente baseada em desigualdades sociais e na instituição de privilégios; e a viabilização da formação, manutenção e reprodução de elites locais poderosas, garantindo a constante reatualização do pacto político estabelecido entre a Coroa e os poderosos locais, consistindo em eficaz mecanismo de controle da ascensão social periférica.72

Para muitos colonos servir a Coroa militarmente em troca de

recompensas foi a tática empregada mais certeira para amealhar gratificações

materiais e honoríficas – benefícios justificados e necessários numa sociedade

profundamente marcada pela hierarquização, edificada na honra e no privilégio.

Conforme resumiu Izecksohn, a organização militar portuguesa era

dividida em duas frentes: a primeira, chamada de tropa de linha ou primeira linha,

era formada por soldados profissionais; a segunda era composta pelas milícias e

ordenanças, que não recebiam soldo e eram formadas pelos súditos válidos em

cada território colonial.73 (Vide Tabela 1)

72

GOMES, José Eudes. As milícias d’El Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 51 73

IZECKSOHN, Vítor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares: mapeando os espaços militares luso-brasileiros. In: FRAGOSO; GOUVÊA (orgs.). O Brasil Colonial (1720-1821). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 491

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Tabela 1 – Estrutura militar do Brasil Colônia74

Corpos regulares (tropas pagas ou de linha)

Milícias (corpo de auxiliares)

Ordenanças (corpos regulares)

Criação 1640, em Portugal 1641, em Portugal Pelo regimento de 1548

Características principais

Regular, profissional e paga

Não remunerado e compulsório. Eram armados por conta própria ou por comandantes exercitados e disciplinados. Não são ligados permanentemente à função militar.

Forte caráter loca. Não recebiam soldo. Permaneciam com suas atividades particulares e só as abandonavam em casos graves, cooperando com o serviço militar. Não possuíam instrução militar.

Organização Terços e companhias Terços e companhias Regimento das Ordenanças de 1570 e da Provisão de 1574

Hierarquia Fidalgos de nomeação real

Mestre de campo, coronel, sargento-mor, tenente-coronel, capitão-tenente. Os oficiais inferiores eram: alferes, sargento, furriel, cabo de esquadra, porta-estandarte e tambor

Capitão-mor, sargento-mor, capitão. Os oficiais inferiores eram: alferes, sargento, furriel, cabo de esquadra, porta-estandarte e tambor

Recrutamento

Compulsório, com efetivos vindos do reino e complementados por tropas coloniais

Em bases territoriais, pela população civil. Compostas por homens aptos ao serviço militar (treinados)

População masculina entre 18-60 anos ainda não recrutada pelas duas outras forças, excetuando-se os privilegiados

Funções Diferenciadas em cada região

Além de cooperar com as tropas pagas, elas as substituiriam, caso essas fossem chamadas para fora do território

Eram utilizadas em missões de caráter militar e em atividades de controle interno

Ainda segundo Izecksohn, devido às condições de recrutamento e

exigências nas organizações militares, as tropas de linha eram justamente as que

absorviam a camada mais baixa da população, quer pela remuneração, quer pela

incapacidade de escapar ao recrutamento. Assim, este exército era composto de

pobres desclassificados¸ tais como “vagabundos, ladrões, criminosos (não

74

IZECKSOHN, op. cit., pp. 495-496

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homicidas), hereges (durante o período da Inquisição), fugitivos, devedores,

bêbados, órfãos, migrantes e alguns transeuntes”.75

Enrique Peregalli, em trabalho sobre o recrutamento militar no período

colonial em São Paulo, resumiu os direitos que teriam os soldados após a baixa:

“meio soldo, pão e farinha, uma fardeta (espécie de jaleco militar usado nas faxinas)

de dois em dois anos e uma farda inteira de quatro em quatro anos”.76

Por sua vez, as ordenanças eram formadas por todos aqueles que fugiam

do recrutamento das tropas de linha e das milícias. Os postos de oficiais eram

usualmente ocupados por herdeiros de famílias de prestígio ou agricultores mais

abastados, escapando à necessidade de galgar, um a um, os postos da longa

hierarquia militar das tropas de linha e milicianas. Dessa forma, sem necessidade de

instrução militar, prestação de exercícios e serviços (geralmente aos domingos),

esses homens mais abastados já começavam em postos de comando. Já os

soldados das ordenanças eram arregimentados entre a população masculina que

não estava ligada às tropas pagas ou às milícias, incluindo brancos, mestiços e

negros, livres e escravos.77

A respeito do perfil dos soldados das ordenanças, Silva afirma que eram,

sobretudo, profissionais mecânicos, que não dispunham das posses e renda

mínimas para se enquadrarem nas milícias. Embora sobre eles pairasse o fantasma

do recrutamento e da obrigatoriedade do serviço regular, afastando-os de suas

atividades econômicas, esses profissionais geralmente conseguiam as “adequadas

dispensas que o dinheiro [podia] comprar. Afinal, só os realmente pobres [sobravam]

como soldados da Coroa.78

Fechando a tripartição militar colonial havia as tropas milicianas, ou

auxiliares.

O fato de cada capitania possuir sua organização das tropas auxiliares

fazia da milícia um estrato fidedigno da hierarquia social vigente. A organização dos

terços se dava dentro de camadas sociais distintas, levando-se em consideração a

75

IZECKSOHN, op. cit., p. 494 76

PEREGALLI, Enrique. Recrutamento militar no Brasil colonial. Campinas: Unicamp, 1986, p. 71 77

SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001, pp. 119-120 78

SILVA, op. cit., p. 132

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cor, o cabedal, a nobreza e a condição de seus indivíduos.79 Assim, dentro de uma

mesma companhia de homens brancos, os terços poderiam ser divididos entre a

riqueza de seus membros: nobres, grandes proprietários de terras e/ou mecânicos

(termo atribuído aos indivíduos que viviam de seus ofícios), por exemplo.

No caso das companhias de homens de cor, seus terços podiam

apresentar-se divididos entre: índios, mestiços, mulatos e/ou pardos e pretos forros;

ou, ainda, um terço único englobando todas as categorias de indivíduos não-

brancos.

Como exemplo, podemos citar o caso de Pernambuco, estudado por

Silva, onde no início do século XIX, havia “dois regimentos de infantaria de brancos,

sendo um deles de nobres; dois regimentos de infantaria de pardos; um regimento

de cavalaria branco; dois regimentos de Henriques de negros livres”.80

Os membros das milícias possuíam foro militar e uma série de privilégios,

como isenção de impostos e tributos camarários e religiosos, desobrigação de servir

cargos públicos contra a vontade, não podiam ser presos em enxovias (cárcere

térreo ou subterrâneo, escuro, úmido e sujo) e suas posses materiais (casas, bestas,

galinhas, gado, vinho e outros gêneros) não podiam sofrer embargo.81

Dentre os milicianos, os postos de oficiais eram, sem dúvida, os mais

almejados e concorridos, sendo vistos como instrumento de ascensão social.82 O

fato de não haver vencimento de soldo – cabendo ao comandante a

responsabilidade de organizar, fardar e equipar toda a sua unidade – restringia a

ocupação dos postos de comando aos grandes proprietários ou comerciantes da

localidade. Também por isso era comum que os terços, regimentos ou companhias

fossem conhecidos pelo nome de seus comandantes. 83

Sobre as diferenças entre os milicianos brancos e negros, Kalina

Vanderlei Silva, baseando-se numa observação de Henry Koster84, afirma que

79

MENDES, Fábio Faria. Encargos, privilégios e direitos: o recrutamento militar no Brasil nos séculos XVIII e XIX. In: CASTRO; IZECKSOHN; KRAAY (orgs.). Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 116 80

SILVA, op. cit., p. 116 81

COTTA, Francis Albert. Negros e mestiços nas milícias da América Portuguesa. Belo Horizonte: Crisálida, 2010, pp. 43-44 82

SILVA, op. cit., pp. 132-133 83

COTTA, op. cit., pp. 39-40 84

Inglês que esteve no Brasil no início do século XIX e publicou suas impressões da viagem em 1816 sob o título de Viagens ao nordeste do Brasil.

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esses negros e pardos que compõem as milícias de cor não são muito pobres ou desprovidos de quaisquer propriedades, visto que devem arcar com as despesas de fardamento e armamento e que, para esse serviço, não recebem soldo: e sobre isso já observa Koster que são eles os mais garbosos e bem vestidos, em comparação com as milícias brancas, miseráveis.85

E, a respeito dos postos de comando desses corpos, nota que para se possuir a

patente de coronel de milícia ser proprietário era condição obrigatória. Tal distinção

reforça a evidência de que “nem todos os homens livres brancos eram grandes

proprietários ou grandes comerciantes, enquanto aparentemente, nem todos os

negros e mulatos livres [eram] miseráveis”.86

A historiografia brasileira referente ao tema tem reforçado a idéia de que

as milícias, embora separadas hierarquicamente de acordo com o status de seus

componentes, não sustentavam a rigor, e indefinidamente, a divisão rígida a que se

propunham.

Nas milícias brancas, os comandantes, ou seja, os mestres-de-campo87

deviam corresponder ao perfil de seus subordinados, ou seja, também deviam ser

brancos – legalmente brancos. Quanto à soldadesca, Silva assinalou que Koster

notara a presença de brancos duvidosos e pessoas de cor. 88

Outra questão importante dizia respeito à escolha e nomeação dos

oficiais. Até o início do século XVIII, esta decisão cabia exclusivamente às câmaras

das vilas a que pertenciam as ordenanças e milícias em questão. Entretanto, com o

início do processo de centralização da Coroa e subseqüente reforma da organização

militar sob o comando do conde de Lippe, tal poder ficou circunscrito à

administração régia. Às câmaras caberia a sugestão de três candidatos, por ordem

de preferência, devendo esta lista tríplice ser remetida pelo governador à Coroa89

Voltando à nomeação de Vicente Ferreira Guedes para o posto de

mestre-de-campo do Terço de homens brancos de Alcântara, cabe perguntar: o que

motivou sua escolha se ele não havia sido indicado e nem correspondia à qualidade

daquela companhia?

85

SILVA, op. cit., p. 117 86

Idem 87

Com a reorganização militar empreendida no Primeiro Reinado pela coroa portuguesa, o posto de mestre-de-campo passou a ser denominado coronel. Fonte: IZECKSOHN, op. cit., p. 510 88

SILVA, op. cit., p. 118 89

SALGADO, op. cit., p. 107

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44

2. SOBERBA LUCIFERINA: mestre-de-campo do Terço Auxiliar dos homens

brancos da vila de Alcântara e degredado (1783-1787)

Quando Vicente foi nomeado para o posto de mestre-de-campo do Terço

de Infantaria Auxiliar de Alcântara, aquela unidade já estava sem comando há pelo

menos um ano em virtude do falecimento de Teodoro Jansen Muller, que havia

ocupado aquela vaga por treze anos.90

A carta-patente expedida em 16 de novembro de 1782 apresentava

informações acerca dos postos militares ocupados por Vicente em Pernambuco e no

Maranhão. Por ela – e se levarmos em consideração a bibliografia a respeito do

perfil dos indivíduos ocupantes de postos semelhantes – percebemos claramente a

ascensão social que Vicente empreendeu ao longo de sua vida. (Vide Tabela 2)

Supondo que Vicente tenha ingressado como soldado por volta dos 18

anos em 1752, seu nascimento teria ocorrido em 1734, logo, ao ser nomeado

mestre-de-campo em 1782, tinha cerca de 48 anos. Entre 1760 e 1762 serviu como

ajudante de ordenanças ainda em Pernambuco, mas não sabemos por quanto

tempo, e nem o que o trouxe ao Maranhão mais tarde. Do hiato compreendido entre

1763 e 1770, não há informações. Podemos inferir, no entanto, que, escapando às

cruéis condições das tropas de linha, ao juntar-se às ordenanças Vicente já

dispusesse de uma renda mínima e/ou ofício.

Teria Vicente recebido alguma herança? Teria estudado? Não há

quaisquer referências ao exercício de advogado provisionado fora do Maranhão,

mas justamente por ser provisionado, sabemos que Vicente não era bacharel, ou

seja, não estudou em Coimbra ou em outra universidade. Se a soldadesca das

tropas pagas compunha-se dos indivíduos mais pobres e desclassificados

socialmente – como afirmaram Silva, Cotta, Mendes, Peregalli e Izecksohn91 –,

Vicente teria pouco ou nenhum recurso na juventude. Assim sendo, teria ele servido

no posto mais baixo das tropas pagas se já dispusesse de outros meios para prover

seu sustento? Devido às condições de vida dos soldados, julgamos minimamente

90

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 44, doc. 4314; APEM, Registros de Atos e da Correspondência do Reino e do Governo do Maranhão, Livro 12, fls. 44-44v 91

SILVA, op. cit., pp. 97-138; COTTA, op. cit., pp. 41-45; MENDES, op. cit., p. 115; PEREGALLI, op. cit., pp. 63-71; IZECKSOHN, op. cit., p. 492

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razoável supor que não: Vicente foi soldado na tropa paga porque não tinha escolha,

do contrário, teria preferido ingressar nas ordenanças logo de início.

Tabela 2 – A carreira militar de Vicente Ferreira Guedes92

Posto Local Datação Observações

Soldado voluntário Regimento da Infantaria (tropa paga)

Recife 07 de março de 1752

Serviu até 19 de outubro de 1759 na Companhia do coronel João Lobo de Lacerda

Ajudante Terço dos Homens Pardos (Ordenanças)

Recife não consta

Entre 1760 e 1761 passou em revista as companhias das freguesias de São Lourenço da Mata, Santo Antão e N. Sra. da [ilegível] em lugar do sargento-mor [ilegível] Coelho de Souza, que estava impedido por motivo de doença. Em 1762 passou em revista as seis companhias de ordenanças da vila de Goiana, na presença dos capitães-mores “mandando exercitar os soldados que se achavam no dito ato (...) o que executou com todo o desembaraço e acerto (...) mostrando-se cuidadoso e perito em tudo que pertencia à boa economia e disciplina militar”.

Capitão 1ª Companhia de Pedestres (Auxiliares)

São Luís carta-patente de 09 de março de 1776

“São soltas; compõem-se de Mulatos, Mestiços e Pretos Forros, que por não haver o competente número de homens dessas qualidades, senão firmou terço, e sim se criaram quatro companhias (...) por ordem Régia de 06 de abril de 1766”. “(...) fez avultada despesa fardando-se com o seu competente uniforme, pondo um tambor fardado e armado com caixa na sua companhia”.

Mestre-de-campo Terço de Infantaria (Auxiliares)

Alcântara carta-patente de 16 de novembro de 1782

O posto goza dos mesmos privilégios que tem os coronéis da Infantaria Paga (geralmente fidalgos)

92

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 53, doc. 5054; caixa 55, doc. 5169; caixa 59, doc. 5423; caixa 63, doc. 5652

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Tão logo a notícia da nomeação chegou ao Maranhão, requerimentos

passaram a ser enviados à Coroa, questionando a escolha de Vicente, a sua

idoneidade, a sua qualidade e o seu merecimento.

A primeira petição, enviada em abril, foi feita por Ricardo Antonio da Silva

Leitão, que era sargento-mor do terço de Alcântara, solicitando a vaga deixada por

Teodoro Jansen Muller, e que contava com a indicação do governador Sales e

Noronha. Conquanto Leitão já soubesse da nomeação de Vicente, argumentou que

o rival era homem “sem serviços alguns, e sem circunstâncias atendíveis (...) e sem

as precisas qualidades para sustentar com decência um posto de tanta graduação e

autoridade”.93

Para reforçar seu argumento, Leitão citou uma carta régia de 19 de abril

de 1766 que regulou a formação dos terços auxiliares e de ordenanças naquela

capitania, ordenando o alistamento de todos os moradores, sem exceção alguma de

“nobres, plebeus, brancos, mestiços, pretos, ingênuos e libertos” – o que mostrava,

segundo ele, que “não sendo o dito Vicente Ferreira Guedes da classe dos brancos

(...) não podia ser provido”.94

E concluiu alertando para o sentimento geral entre os oficiais do terço,

“sempre mandados com tanta distinção por Teodoro Jansen Muller”, mas na

“consideração de se verem subordinados a um chefe a quem [conheciam] há poucos

anos, preso em uma cadeia por ser escravo”.95

Duas observações a respeito da carta de Leitão cabem aqui: a primeira

diz respeito ao fato de que ele contava com a aprovação do governador para

assumir o posto vago – o que geralmente determinava a escolha do candidato; a

segunda é que Leitão, com patente de sargento-mor, seria o sucessor natural de

Muller, uma vez que estava logo abaixo dele na hierarquia daquele terço.

A carta régia de 1766, citada por Leitão, não foi encontrada na coleção de

manuscritos do Arquivo Histórico Ultramarino. A despeito disso, ela é importante

porque apresenta um resumo das categorias que compunham a hierarquia daquela

sociedade. Pode ser que a data correta da ordem régia não fosse 19 de abril porque,

curiosamente, o ex-governador Melo e Póvoas fizera observação semelhante numa

93

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 59, doc. 5467 94

Idem 95

Idem

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47

carta redigida em 02 de novembro de 177896, aludindo também a uma carta régia de

1766, porém datada de 06 de abril, sobre a criação dos terços e companhias

auxiliares e de ordenanças.

Meses mais tarde, em uma petição ao governador, Leitão argumentou

que servia à Coroa desde 1749, e que durante todo este tempo jamais servira a

oficial mais baixo que um sargento-mor, mas que com a notícia do novo superior da

tropa “tão digno de governar mulatos, como indigno de mandar-[lhe] e a outros

homens distintos e brancos de que se [compunha] o Terço de Alcântara”, rogava-lhe

a mercê de uma licença, ainda que houvesse serviço no terço, para não ter que

servir sob as ordens do novo mestre-de-campo.97

Em outubro, Sales e Noronha encaminhou uma carta redigida na câmara

de São Luís – assinada por Antonio da Rocha Araújo, Antonio Gomes Pires e José

Salgado de Moscoso – denunciando o comportamento de Vicente, mas sem fazer

qualquer menção direta à sua nomeação em Alcântara. Para os autores da carta,

Vicente era o responsável por

toda a desordem erigida com a sua perversa e má conduta [naquela] cidade, com parcialidades notáveis, bandos e conventículos e adjuntos e assembléias (...) pondo em notória confusão e desordem todos estes auditórios (governos, tribunais, magistrados, seculares como eclesiásticos, com tão diabólica e intrigante máxima (...)98

No mês seguinte, voltou à baila o sargento-mor Leitão, num tom ainda

mais incisivo, solicitando sua baixa. Alegou que já estava com 56 anos, dos quais 35

em funções militares, e que estava “quebrado em forma que de pé nem montado

[podia]. Não deixou de comentar o agravo de ver-se submetido ao novo superior

“que sempre fora o principal desassossego daquele Estado”.99

Ainda em novembro, duas cartas foram enviadas a Sales e Noronha, e

por ele encaminhadas ao Conselho Ultramarino. A primeira, vinda da câmara de

Alcântara e assinada por José Roberto de Sá, juiz e presidente, pelos vereadores

João Telles de Menezes e José Ignácio Pinheiro e Antonio da Silva Ribeiro, e pelo

procurador Francisco Xavier de Arouche, acusava Vicente de ter chegado à cidade

do Maranhão (São Luís) “preso em ferros, estando na cadeia muitos meses para ser

96

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 53, doc. 5054 97

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 61, doc. 5559 98

Idem 99

Idem

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48

vendido por cativo”.100 A segunda era assinada por 22 membros do terço de

auxiliares de Alcântara, dentre os quais, os mesmos José Roberto de Sá e João

Telles de Menezes, capitão e alferes, respectivamente. A acusação da segunda

missiva dizia respeito a um episódio ocorrido numa quinta-feira santa, anos antes.

Vicente, membro da irmandade de Nossa Senhora da Conceição dos homens

pardos (na carta, a congregação é chamada de Irmandade dos Mulatos), teria

pedido ao cabido da Sé licença para expor uma relíquia na capela. Tendo a licença

negada, o mestre-de-campo resolvera ele mesmo providenciar outra relíquia e

organizar uma procissão de modo que, no final, ele mesmo depositou um pedaço do

santo lenho no trono, para veneração dos presentes.101

No rol dos manuscritos que se referem à nomeação de Vicente, há outra

carta dos oficiais, muito mais longa, sem data, composta de argumentação jurídica

contestando a nomeação. Começava com a descrição da vila de Alcântara como a

mais opulenta do Maranhão, composta de nobres cidadãos que com seus

“abundantes cabedais a [tinham] enobrecido de edifícios”, e que portavam os mais

honrosos brasões, sempre úteis ao serviço real, fornecendo farinha às tropas por um

terço do preço que se costumava cobrar no comércio da cidade, realizando “um

grande, contínuo, diário e avultado donativo, merecedor do agrado e Benigna

Atenção de [Sua] Majestade”.102

Nessa mesma a carta dos oficiais havia uma detalhada biografia de

Vicente, que merece ser reproduzida integralmente:

É o dito Vicente Ferreira Guedes natural de Pernambuco, porém, segundo a sua vista, que é bem conhecida naquela cidade do Maranhão, é mulato acafuzado e muito fusco, e afeiado da natureza, dizem que filho de preta escrava da sua mesma naturalidade, homem mal intencionado, revoltoso em toda parte, cabeça de perniciosas parcialidades, perturbadoras da paz pública. Antes que se ausentasse da Praça de Pernambuco, já lá era tão insolente e atrevido que chegou temerariamente a resistir, ultrajar com armas, ferindo fortemente as Justiças da Ouvidoria de Vossa Majestade daquela Praça como é já constante e público na Cidade do Maranhão, por cuja razão se acha incurso nas gravíssimas penas que apontam. Para as iludir e delas escapar, fugiu daquela comarca e vários anos andou vagabundo como cigano por esses sertões interiores, no trato mais desprezível, que lá tem os da sua qualidade, fazendo

100

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 60, doc. 5530 101

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 61, doc. 5559 102

Idem

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49

continuamente mil revoluções, sem conseguir jazigo em parte alguma, até que nas Aldeias Altas foi denunciado por escravo e remetido em ferros à Cidade do Maranhão onde fez a sua primeira entrada (...) descalço de pé e perna. Foi logo a ordem do dito ouvidor que então era Bruno Antonio de Cardoso e Menezes recolhido à enxovia da cadeia da mesma cidade onde esteve muito tempo, sem mostrar ao dito Ministro, nem o contrário do cativeiro por que estava denunciado, nem o livramento do referido delito de resistência e ofensa de Justiça, de que estava, como ainda está infamado na mesma cidade, proveniente de muitas pessoas que de Pernambuco vieram ao Maranhão; nesta contumácia, lhe deferiu o dito Ministro, que dando fiança a mostrar-se desonerado de todo o referido o mandara soltar, no que ele nunca conveio, querendo antes estar preso, como esteve muito tempo, por lhe ser impossível mostrar-se sem culpa no dito Estado de Pernambuco, o que bem verossimilmente se descobre, porque havendo já passado tantos anos ainda não teve a [ilegível] para mandar vir de Pernambuco o livramento deste delito, ao menos por seu crédito, se dele tem algum sentimento. Quando ao mesmo tempo tem ele soberba, iníqua e afetadamente rompido em uma pública jactância de que só ele é ouvido na Presença de Vossa Majestade, fundada em umas provisões que ob-recticia e sub-repticiamente tem obtido do Conselho Ultramarino a favor de terceiras pessoas, com falsas provas e informações não verdadeiras, inquiridas por conluio, intrigas e parcialidades que atualmente suscita no Maranhão, com as suas perniciosas máximas, para as respectivas, nulas e fraudulentas atestações que dos ditos junta àquelas súplicas, fora de juízo contraditório, sem parte que as impugne, que este é o motivo por que persistem, aliás se teriam julgado na forma que determina a lei em semelhantes casos (...) (...) Finalmente chegou a conseguir naquele tempo, com ilícitos empenhos, que o dito Ministro o soltou, sem fiança, sem mais averiguação alguma, pondo-se silêncio neste particular até o presente. E após este favor do dito Ministro passou a requerer e a advogar naquela Cidade sendo conhecidamente Leigo, sem luz alguma, ao menos da Latinidade para interpretar qualquer disposição do Direito, e seus escritores, em cuja ocupação tem feito, de presente, as maiores e mais nocivas parcialidades naquela cidade, intrigando-se, ociosa e escandalosamente sem justas causas, com soberba luciferina com o Exmo. Governador, por Pacífico, Ministros, Senado da Câmara e a maior parte dos moradores daquela cidade, e que está com ele tão inquieta e desassossegada que com público juramento se pode afirmar não haverá nela mais paz e sossego enquanto ele nela se conservar... (...) Já passa de dois séculos no Brasil e em nenhuma de suas províncias se há de apontar à V. Majestade que se desse a um nobre terço de brancos como aquele tão útil ao Serviço de V. M. e defesa daquele estado, um mestre-de-campo mulato e acafuzado, com as péssimas circunstâncias da sua má conduta e procedimento, já referidos, como agora o tem obtido o mesmo Suplicado, enganando à V. M., com lhe ter ocultado todo o referido, e acrescentando a mais falsa que lhe pareceu, para obter aquela Graça, que pela ditas razões, se acha

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laborando em nulidade, por ob-repção e sub-repção, fazendo as Graças ineficazes...103

Como vimos, a alegação jurídica para o impedimento da nomeação de

Vicente baseava-se na sua conduta, no fato de não possuir a mesma qualidade do

terço, ou seja, ser branco e na interpretação de que se tratava de ato de ob-repção e

sub-repção. O termo ob-repção é dado à ação de se obter algo por meio astuto e

ardiloso, por se julgar impossível consegui-la por meio ordinário; já sub-repção é a

omissão ou alteração dolosa de fatos que iriam influir em determinadas medidas de

ordem legal. Em suma, alegaram os oficias que a nomeação de Vicente só teria sido

possível por meio de fraudes e falsificações.

É interessante notarmos a justificativa dos auxiliares de que não havia,

em dois séculos de presença portuguesa no Brasil, um só caso que se

assemelhasse ao de Alcântara. De fato, na historiografia sobre o militarismo colonial

não há qualquer referência à nomeação de um indivíduo de qualidade inferior para

comandar outros enquadrados como superiores. Entretanto, há casos do oposto:

nomeações de oficiais de qualidade superior para comandar outros considerados

inferiores.104 Assim, Vicente, mulato, poderia ser comandado por um oficial com

qualidade superior, mas o contrário, pelo menos para os membros do terço de

homens brancos de Alcântara, era inconcebível e inédito.

Russell-Wood afirmou que já no início do século XVIII, D. João V

empreendera diversas tentativas no sentido de impor uma política integralizadora

nas companhias de ordenança e milícia, para que homens brancos e de cor

servissem juntos – o que já era praxe nas tropas pagas desde a sua instituição.105

Todavia, notemos que essa integração se dava em bases hierárquicas,

permitindo que oficiais brancos comandassem indivíduos de cor, reforçando sua

superioridade naquele ethos social e exercendo – ou tentando exercer – um controle

da massa crescente de homens mestiços, livres e forros. Conforme observou

Russell-Wood, os regimentos e companhias de homens de cor não chegaram a

constituir ameaça à segurança, mas propiciaram aos seus membros uma chance de

ascensão social.

103

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 61, doc. 5559 104

SILVA, op. cit., pp. 97-115 105

RUSSELL-WOOD, A. J. R., Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 135

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Não há dúvida, contudo, de que os regimentos de negros e mulatos livres da milícia das cidades serviram de base às reivindicações das pessoas de cor, que se tornaram cada vez mais insistentes com o avanço do século XVIII. Essas reivindicações se concentravam em três questões: soldo, privilégios e possibilidades de milicianos de cor ocuparem postos superiores de seus regimentos.106

Ultrajados, os membros do terço de Alcântara concluíram a carta

solicitando a baixa de Vicente e a nomeação de Leitão para o posto de mestre-de-

campo.107

Já era dezembro quando o vereador Antonio Correia Furtado de

Mendonça escreveu a Martinho de Melo e Castro denunciando que a representação

da câmara de São Luís enviada em outubro (assinada por Araújo, Pires e Moscoso),

o fora sem autorização dos demais membros da casa. Expôs que a carta havia sido

redigida em sua ausência, e que só ficara sabendo dela já em novembro, quando

Vicente solicitou na secretaria da câmara uma cópia da mesma, para contestá-la.108

Mendonça defendeu a reputação de Vicente e acusou os que haviam

assinado a representação. Denunciou que Antonio da Rocha Araújo exercia

simultaneamente a função de oficial da Fazenda e de feitor da Alfândega –

concomitância proibida pela Coroa; acusou Antonio Gomes Pires de descaminhos

para com a Fazenda Real e de vender farinha ao povo por alto preço; e apontou

José Salgado de Moscoso como impossibilitado de exercer o cargo de vereador,

uma vez que era natural da Galícia – domínio de Castela, portanto estrangeiro, e

sem a cidadania obrigatória. Segundo Mendonça, Moscoso havia sido nomeado

almotacel e vereador por Melo e Póvoas apenas “pelo seu dinheiro”.109

O governador Sales e Noronha também escreveu à administração régia,

defendendo a posição dos oficiais de Alcântara. Começou contando que a notícia da

nomeação de Vicente chegara muito antes de sua patente, e que a notícia havia

provocado revolta e incredulidade no “espírito da maior parte dos seus moradores”.

Citou a consternação daqueles que, por direito de serviços prestados e nascimento,

haviam sido preteridos e subordinados “a um homem pardo, que todos tinham visto

chegar descalço e foragido por crimes grandes, depois preso para ser vendido em

praça pública”. Seguindo a mesma retórica dos oficiais, lembrava que Alcântara era

106

RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 137 107

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 61, doc. 5559 108

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 60, doc. 5537 109

Idem

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52

a “principal da capitania”, cujos moradores estavam entre os mais distintos e que,

por conseguinte, não podiam ser subordinados “a um mulato, filho de uma escrava,

destituído de serviços e indigno pelo seu procedimento de um semelhante posto”. 110

Mais uma vez em consonância com a carta dos oficiais, Sales e Noronha

reafirmou que, muito embora sua majestade honrasse homens de cor parda com

patentes idênticas em atenção a serviços prestados à coroa, a nomeação sempre

ocorria para terços compostos da mesma qualidade, e concluiu parecer-lhe não

haver exemplo que “na América tenha sido nomeado mestre-de-campo de um terço

de brancos (...) um mulato, filho de mãe escrava, e ele pelo seu nascimento, sujeito

à mesma baixeza da escravidão”.111

Em dezembro Vicente passou a responder às acusações e interpelar as

petições contra a sua nomeação. Primeiramente, encaminhou à Secretaria de

Estado da Marinha e Ultramar uma série de certidões contendo declarações de

homens considerados idôneos na capitania, atestando sua conduta. A lista dos

defensores de Vicente contava com militares, religiosos e funcionários régios.

Tabela 3 – Lista dos declarantes de Vicente Ferreira Guedes112

Nome Função Declaração

Ayres Carneiro Homem Souto Maior

Mestre-de-campo de uma dos terços da Cavalaria

“boa conduta, honrado, amante da paz, benemérito, idôneo, pacífico e digno do posto”

Caetano Ignácio de Mendonça

Tenente-coronel do Regimento da Infantaria paga

“distinto procedimento, capacidade de desembaraço e aptidão”

José Alexandre Ferreira Sargento-Mor do Regimento da Infantaria paga

“comporta-se com honra e distinto procedimento”

José Tomás da Silva Quintanilha

Professo na Ordem de Cristo; juiz de fora, crime e órfãos de São Luís; presidente do senado da câmara; juiz da Alfândega e das Demarcações; provedor dos resíduos, defuntos e ausentes; procurador da Coroa e Fazenda; deputado da Junta da Fazenda e das Justiças

“hábil, pronto e valoroso vassalo”

Antonio Correia Furtado de Mendonça

Cidadão da governança; vereador da câmara de São Luís

“advogado de melhor nota, defende com honra seus clientes e procura por meio das leis e práticas da advocacia defender a justiça das suas causas”

110

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 60, doc. 5539 111

Idem 112

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 61, doc. 5559

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Frei Angélico de Barros Membro da Ordem de Nossa Senhora do Carmo; deputado da Junta das Liberdades

“louvável procedimento e notável prudência; moderado e de gônis pacífica”

Frei José Tomás de Aquino

Comissário Geral da Real e Militar Ordem de Nossa Senhora das Mercês

“homem honrado, estimado e obsequiado; não sabe sair dos limites da moderação”

Francisco Matabosque Presbítero secular da Catedral de São Luís “de bom procedimento e muito pacífico”

João Maria da Luz Costa Cônego prebendado da Catedral de São Luís “nunca causou desordens, nem inquietou pessoa alguma; honrado procedimento e amante da paz”

José da Silva Deputado e escrivão da Junta da Arrematação e Arrecadação da Real Fazenda do Maranhão

“homem de maior honra, probidade e capacidade; comedido e prudente”

José Joaquim da Fonseca

Capitão dos granadeiros do Regimento da Infantaria paga

“honrado e pacífico; louvável conduta”

Francisco de Paula da Graça Correa

Juiz interino da Alfândega e da Arrecadação de São Luís

“amante da tranqüilidade, muito prudente e inimigo de desordens”

Francisco Machado de Souza

Tesoureiro das Rendas Reais; Deputado da Junta da Arrematação e Arrecadação da Real Fazenda do Maranhão; capitão da Infantaria auxiliar de São Luís

“nunca vi, nem me [contaram] que perturbasse a pessoa alguma”

Francisco Diogo de Moraes

Capitão do Regimento da Infantaria paga

“separado de todos os vícios que possam manchar o honrado procedimento com que sempre se distinguiu”

Valério Xavier Campelo Escrivão da Vedoria e Armazéns Reais, dos Feitos da Coroa e Real Fazenda e Demarcações

“amante da paz, do honesto e do prudente”

Francisco Duarte de Souza

Escrivão interino da Ouvidoria Geral e Correição

“íntegro e de boa conduta”

Em seguida, contestou a notificação do ouvidor Monclaro instando-o a

apresentar a sua carta-patente em juízo por se tratar de acusação de ob-repção e

sub-repção. Vicente explicou que não o faria por três razões: sua patente havia sido

firmada pelo punho real; seu cumprimento e execução haviam sido ordenados pelo

governador; e por último, o requerimento que gerara o despacho era assinado por

oficiais “sem nome”, portanto anônimo.113

Citando um disposto no Regulamento Militar, lembrou ao ouvidor que

nenhum oficial poderia disputar a autoridade de seu comandante, nem urdir

conspiração contrária à subordinação. Afirmou Vicente que estava ciente de que

José Roberto de Sá, capitão do terço e seu subordinado, havia mandado cartas

circulares a alguns oficiais convocando-os para prestar serviço real, um mero ardil

113

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 61, doc. 5559

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para fazê-los assinar uma procuração para requererem e disputarem sobre a

autoridade de sua jurisdição.114

No início de 1784, Vicente escreveu a Martinho de Melo e Castro

relatando a notificação do ouvidor para que apresentasse sua carta-patente,

ameaçando-o de que se não o fizesse, a mesma seria anulada. Atribuiu os

requerimentos contra a sua nomeação às maquinações de seus inimigos Antonio da

Rocha Araújo, Antonio Gomes Pires e José Salgado de Moscoso e ao ódio do

ouvidor Monclaro contra si. Ressaltou que a atitude dos oficiais do terço e do ouvidor

era contrária à soberania régia, uma vez que eles questionavam a validade de sua

carta-patente “não há coisa mais estranha que por em litígio a disposição do

príncipe. Se a lei é ou não justa, só pertence ao soberano o decidir nunca ao

magistrado”. Quanto à sua condição de homem de cor, Vicente justificou sua

escolha baseando-se nos conceitos de merecimento e idoneidade:

Não quero nem devo por na presença de Vossa Excelência, neste caso, lembrar-me da minha ascendência, quando me parece que só bastará dizer, que eu fiz certo a Vossa Majestade os meus serviços, e emprego (...) a menor ocupação que tenho exercido é a de advogado dos auditórios, de donde fui chamado para vogal da Junta da Justiça desta capital, por um general de tanta inteireza, como foi Joaquim de Melo e Povoas. (...) sabendo-me conter nos limites da moderação, regulei sempre os meus costumes e comportamento de tal modo que vivi, e vivo, como os homens honrados devem viver: E um vassalo que assim se conduz e que se reveste de idoneidade, ainda que fosse infeliz no seu nascimento, de cujo sucesso não tem culpa, é capaz de ser olhado do seu soberano: Sua Majestade o disse na lei de 16 de janeiro de 1773. (...) Quanto mais que é notório não ser eu de tão inferior qualidade como figuram.115

O alvará que Vicente mencionou como sendo lei é aquele que determinou

a liberdade dos escravos residentes em Portugal que já estivessem na quarta

geração; determinou também a libertação aos que estavam na terceira geração a

partir de sua publicação; extinguiu a denominação de liberto para estes indivíduos; e

habilitou-os para todos os ofícios e honras concernentes à monarquia.116

114

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 61, doc. 5559 115

Idem. Grifo nosso. 116

LIMA, Priscila de. De libertos a habilitados: interpretações populares dos alvarás anti-escravistas na América portuguesa (1761-1810). Dissertação. Curitiba: UFPR, 2011, pp. 73-80

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Não obstante o alvará tratasse exclusivamente dos escravos residentes

no reino, sua publicação gerou expectativas quanto à situação dos homens livres de

cor no Brasil, influenciando e, em muitos casos, instruindo interpretações e decisões

acerca desses indivíduos, ganhando status de lei – o que fica claro na

argumentação de Vicente. Segundo Lima, o alvará de 1773 representou para os

homens de cor

o fim das restrições sociais impostas àqueles com ascendência africana. Era o esteio legal que lhes inspirava a ação em busca do reconhecimento perante a Coroa através da elevação de seu status para a categoria social de “vassalos habilitados”.117

Numa outra carta, também de janeiro, Vicente expôs à rainha que a

origem de todos os seus desgostos era tão somente a oposição que os bacharéis

Veloso e Gama e Monclaro faziam à sua atuação como advogado. Acusava os

“ministros e os que [tinham] jurisdição nos Domínios da América” de oprimir aqueles

que, como ele, defendiam as causas dos súditos em prejuízo de seus interesses.

Para reforçar seu argumento, lembrou o caso dos livros da arrecadação e do

subseqüente desterro à época da devassa de Veloso e Gama. Ressaltou que sua

prisão, pouco tempo depois de voltar do degredo, resultara em prejuízo de sua

fábrica em virtude de ter sido mantido incomunicável, com sentinela à vista. Por fim,

alegou que abandonara sua atividade de advogado para dedicar-se somente à

fábrica e às lavouras, mas que ainda assim, seus inimigos o perseguiam.118

Mais uma vez, há uma citação explícita quanto à atuação de funcionários

régios que extrapolavam os direitos de sua função, sem conhecimento da Coroa. A

retórica de Vicente separa claramente o que ocorre na corte do que ocorre na

América. Observação semelhante à que fez Melo e Póvoas, quando alertou a rainha

que por meio das devassas jamais se saberia como serviam os ministros da

América.119

A contenda envolvendo Vicente e os auxiliares do terço de Alcântara já se

arrastava há mais de um ano quando a Coroa consultou Melo e Póvoas a respeito.

O ex-governador levava uma vida módica e no ostracismo. Ao que tudo indica,

117

LIMA, op. cit., p. 123 118

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 61, doc. 5560 119

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 55, doc. 5188

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apesar de ter sido louvado na historiografia maranhense como o mais profícuo

mandatário que o Maranhão teve no período colonial, não acumulara fortuna e

bens.120 Recolhido em Paço do Lumiar, escreveu um longo parecer onde teceu

considerações a respeito de Vicente e outros indivíduos da capitania.

Vicente Ferreira Guedes é um mulato de boa figura, muito vivo e desembaraçado, sabe das evoluções militares em que mostra ter tido exercícios, tem boa capacidade e é letrado de melhor nota que há no Maranhão, que por isso o nomeei para Adjunto da Junta de Justiça que criei naquela cidade, por ordem de Sua Majestade. Está nela casado com uma mulher branca que se trata com toda decência, andando em sua cadeirinha e trajando como as senhoras da terra. Está muito bem estabelecido em fábrica de descascar arroz nas vizinhanças da cidade, onde fui algumas vezes (...) e mostra bem este Mulato a sua distinta capacidade e boa conduta, porque vindo ao Maranhão já no tempo em que eu ali era Governador, preso para ser vendido por escravo (por influência forte que lhe fez o Ministro que assim o tratou), em dez ou doze anos se estabeleceu como tenho dito (...)121

Mais uma vez nos deparamos com uma referência à captura de Vicente

em Aldeias Altas. Divergindo um pouco das demais, Melo e Póvoas atribuiu a fama

de escravo de Vicente ao tratamento que ele havia recebido de um ministro.

Também não fez menção a qualquer crime que Vicente tivesse cometido (na Bahia

ou em Pernambuco) e que explicasse a sua presença em Aldeias Altas. Mas faz

uma referência explícita à época em que a prisão teria ocorrido, quando ele já

governava o Maranhão, ou seja, a partir de 1761. Lembremos, porém, que até 1762

Vicente estava servindo em Pernambuco, nas ordenanças; e que a sua nomeação

para vogal da Junta de Justiça só se deu em 1777. Se descontarmos os “dez ou

doze anos” da conta de Melo e Póvoas, chegamos à provável época de sua captura,

algo entre 1765 e 1767.

Sobre os vereadores de São Luís que haviam redigido uma

representação sobre Vicente, afirmou que José Salgado de Moscoso possuía grosso

cabedal, mas que requerera baixa do terço de Alcântara anos antes “porque não

podia deixar sua tenda na cidade” e que tendo sido nomeado para almoxarife da

Real Fazenda “se escusou dizendo e provando que não sabia ler nem escrever”, o

que não impediu a câmara de nomeá-lo para almotacé.

120

SANTOS, op. cit.,170-173 121

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 61, doc. 5559

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Contou que Antonio Gomes Pires já havia ocupado o mesmo cargo de

Moscoso no Pará, mas que havia sido denunciado por desvios que, depois

provados, tinha sido sentenciado e preso pela junta daquele estado.

Defendeu Antonio da Rocha Araújo, que ele considerou um “bom homem

verdadeiro”, mas que era fortemente influenciado pelos demais.

Quanto aos vereadores de Alcântara que haviam capitaneado o

requerimento do terço e da câmara, José Roberto de Sá e Francisco de Araújo

Serveira, Melo e Póvoas foi bastante condescendente. Relatou que os conhecia

muito bem, que o primeiro havia começado com “uma tenda de pouco cabedal, mas

que era [então] um dos maiores lavradores [daquele] Estado”; quanto ao segundo,

afirmou que era “natural do reino, casado em Alcântara, lavrador, ainda que mais

pobre”.122

Comentou, ainda, a lista tríplice enviada por Sales e Noronha com

candidatos à vaga deixada por Teodoro Jansen Muller: a primeira opção era o

sargento-mor Ricardo Antonio da Silva Leitão, “não merece nem por qualidade, nem

por merecimento”; seu preferido era o segundo, o capitão Estevão de Almeida;

avisou que o terceiro, o capitão Angelo Mendes, havia falecido.123

Melo e Póvoas recomendou à rainha que repreendesse asperamente o

vereador Mendonça pelo atrevimento de haver sugerido que os vereadores

queixosos de Vicente não eram merecedores de ocupar as vagas na câmara, uma

vez que ele próprio era “filho de um pintor, irmão de um tendeiro que no Maranhão

[vendia] aguardente e vinho, cujo exercício também [tivera]”.124

Neste trecho, Melo e Póvoas faz uma referência clara a uma das

distinções de qualidade que permeavam a hierarquia social nas sociedades do

Antigo Regime: o defeito mecânico. Os nobres viviam das rendas de sua nobreza, já

os mecânicos viviam das rendas oriundas de suas atividades – ainda que cercados

de muitas posses e escravos. Entretanto, como bem observou Nizza da Silva,

a escravidão fazia esquecer a alguns a sua origem plebéia, mas, mesmo que os chamados „mecânicos‟ (que no Reino se serviam de suas próprias mãos nas suas profissões) no Brasil fossem senhores de escravos e estes os eximissem do trabalho manual, isso não

122

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 61, doc. 5559 123

Idem 124

Idem

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58

significa que o ferreiro ou o sapateiro deixasse de ser considerado plebeu na Colônia, por muitos escravos que possuísse.125

Para exemplificar, citou uma passagem do cronista luso-brasileiro Domingos Loreto

Couto, autor de Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco: “Não é fácil

determinar nestas províncias, quais sejam os homens da plebe, porque todo aquele

que é branco na cor, entende estar fora da esfera vulgar”.126

Conivente com a lógica que regulava e classificava os vassalos do reino,

Melo e Póvoas reconheceu a boa conduta de Vicente, mas ponderou que não era

suficiente para ocupar a vaga no terço de Alcântara:

Sempre me parece que para mestre-de-campo do Terço de Auxiliares da vila de Alcântara, cujos oficiais estão entre os mais opulentos daquela capitania, lhe faltam as qualidades de ser das pessoas distintas e principais da terra como Vossa Majestade determina nas Suas Reais Ordens e que este vassalo ficaria muito bem satisfeito mandando-lhe Sua Majestade passar patente de mestre-de-campo de um Terço de Índios que vagou por falecimento de Francisco Barbosa de Lima, situado no sertão de Pastos Bons.127

A proposta de Melo e Póvoas era ambígua, pois agradaria aos anseios

dos homens de Alcântara, ao mesmo tempo que resguardava a honra de Vicente,

mantendo-o com a mesma patente.

Àquela altura dos acontecimentos, já em 1784, o governo tinha trocado de

mãos no Maranhão. Em fevereiro assumiu José Teles da Silva. Pouco tempo depois,

o novo governador já se manifestava a respeito de Vicente Ferreira Guedes.

Os oficiais de Alcântara haviam requerido ao governador que impedisse

Vicente de participar da mostra (exibição pública da tropa, com desfile) que

aconteceria em 31 de maio, puxando a vanguarda do terço e comandando os

exercícios, alegando que ainda aguardavam o desfecho dos recursos e embargos

que haviam enviado à Coroa. Teles da Silva acatou o pedido dos oficiais e mandou

comunicar Vicente que ele mesmo passaria o terço em revista.128

Vicente respondeu ao governador que acataria a sua decisão protestando

“sem violência”, mas que não podia deixar de observar que de acordo com as

Ordenações Militares, nos casos em que os oficiais tivessem razão para se queixar, 125

NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. Ser nobre na Colônia. São Paulo: UNESP, 2005, p. 19 126

Idem 127

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 61, doc. 5559 128

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 63, doc. 5619

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59

esta jamais deveria ser ensejada por mais de cinco indivíduos, e sempre com muita

humildade. Portanto, afirmou ele ao governador, o que se passava era uma “rebelião

formal” que infringia as leis do Reino. Quarenta e sete homens haviam assinado o

requerimento: oito capitães, dois ajudantes, doze alferes, sete sargentos, dez furriéis

e oito porta-bandeiras.129

A explicação que Teles da Silva encaminhou à Secretaria de Estado da

Marinha e Ultramar para substituir Vicente na mostra foi a de que o fizera para

preservá-lo, pois tinha informações seguras de que “todo o terço estava unido para

desentenderem [o mestre-de-campo], e talvez maltratarem”. Assim, mandou chamar

Vicente à sua casa para comunicar sua decisão sugerindo que

para não ficar desairoso [naquela] ocasião, achava que a prudência devia melhor aconselhar, se por doente e impossibilitado de fazer a viagem. Mas (...) o seu ânimo naturalmente altivo e orgulhoso não consentiu que ao menos uma vez (...) fosse moderado. Finalmente consentiu (...) mas que eu havia de lhe passar esta ordem por escrito.130

Vicente era profundo conhecedor dos trâmites burocráticos reinóis; sabia

que no âmbito da colônia, pouco ou nada podia fazer, e contestar o governador

perante a Coroa exigia provas. E foi o que fez: assim que recebeu a ordem por

escrito de Teles da Silva notificando-o de que faria a revista do terço no seu lugar,

escreveu à rainha anexando uma cópia lavrada do despacho.

A queixa de Vicente à rainha acirrou os ânimos no Maranhão, e agravou

suas relações com o governador. Teles da Silva se queixou na Secretaria de Estado,

alegando que Vicente contava com a proteção do Conselho Ultramarino e que na

colônia formava um partido que lhe afrontava freqüentemente. Acusou Vicente e o

escrivão da Fazenda, José da Silva, de conspirarem contra ele; ambos teriam

induzido o juiz da Alfândega, Francisco de Paula da Graça Correa a se opor às suas

ordens. Além disso, contavam com o apoio do tenente-coronel Caetano Ignácio de

Mendonça e do juiz de fora de São Luís, José Tomás da Silva Quintanilha.131

129

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 63, doc. 5619 130

Idem 131

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 63, doc. 5642

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Não por acaso, todos os integrantes do partido de Vicente já haviam se

manifestado a seu favor anteriormente, redigindo declarações favoráveis sobre sua

conduta e idoneidade.132

Teles da Silva também tinha o seu partido. Apoiado por alguns

vereadores da câmara de São Luís redigiu algumas queixas ao reino, acusando a

existência de uma “perniciosa parcialidade de homens intrigantes e sumamente

malévolos e de espíritos revoltosos contra a paz pública”. Não há uma referência

clara na documentação sobre as razões que motivaram tais queixas; o que há são

denúncias generalizadas do comportamento, sem explicitar em momento algum o

que de fato ocorria. Para o governador e os vereadores, os homens que

perturbavam o “sossego público” eram: Vicente Ferreira Guedes (o primeiro da lista),

o juiz de fora e ouvidor interino Quintanilha, o escrivão da Fazenda José da Silva, o

coronel Aires Carneiro Homem Souto Maior e o ex-administrador da já então extinta

Companhia Geral de Comércio, Marçal Ignácio Monteiro.133

Quando as queixas foram encaminhadas à metrópole, em outubro, Teles

da Silva já havia ordenado o desterro de Aires, Marçal e Vicente há pelo menos três

meses. Sabemos que Vicente saiu da cidade em 1º de julho134, mas não dispomos

de informações acerca dos outros degredados.

Isolado no Itapecuru, Vicente carregou na retórica hiperbólica e implorou

a Teles da Silva que revogasse sua decisão.

Eu suplico a Vossa Excelência que me valha: eu bem vejo que meu nome é odioso a V. Ex.a porém examinando a minha consciência, não acho que o tenha ofendido em coisa alguma, nem eu cairia nunca em tal absurdo, justamente quando conheço a grande distância que vai do profundo da minha humildade ao alto da grandeza de V. Ex.a. (...) V. Ex.a dilata o seu nome em fazer valer a um moreno como eu, e não em me fazer desgraçado. Quem sou eu para que V. Ex.a volte sobre mim a sua ira? Permita V. Ex.a que eu diga que a pequenez e humildade de que me revestiu a natureza, faz que eu seja incapaz para que V. Ex.a descarregue sobre mim os golpes de sua espada. Sirva-se V. Ex.a lembrar-se que em perder-me, também perde toda a minha família, e as lágrimas com que os meus ficaram arrastando os grilhões da infelicidade, em nada podem engrandecer a V. Ex.a.

132

Vide Tabela 3 133

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 64, doc. 5688 134

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 67, doc. 5849

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61

Mesmo sem resposta ou ordem contrária, Vicente retornou a São Luís no

dia 26 de outubro, por ocasião da chegada do novo bispo do Maranhão, frei D.

Antonio de Pádua. Haveria um cortejo para celebrar sua entrada pública e a

realização da primeira missa no dia 31 daquele mês; para tanto, as câmaras haviam

espalhado cartazes convocando os moradores a assisti-la. Entretanto, no dia 28

Vicente foi novamente notificado de que deveria deixar a cidade num prazo máximo

de 24 horas, o que ele fez no dia seguinte.135

2.1 O atentado a José da Silva

Na noite de 2 de dezembro o escrivão José da Silva foi atacado na porta

de sua casa, em São Luís, por três homens. Gravemente ferido, recebeu vários

golpes de arma branca, ficando entre a vida e a morte por vários dias.136 Havia 13

anos José da Silva servia a Coroa como escrivão da Fazenda Real, primeiro no

Pará, depois no Maranhão.137

No Maranhão, José da Silva se indispusera com os governadores Sales e

Noronha e Teles da Silva, além do fato de que era considerado por alguns

vereadores da câmara como um dos perturbadores do sossego público, sempre

atrelado ao nome de Vicente Ferreira Guedes, com quem era acusado de fomentar

intrigas e revoltas. A sua tentativa de assassinato gerou muitas versões e consolidou

divergências já existentes entre o governador Teles da Silva e o bispo D. Antonio de

Pádua.138

A mãe de José da Silva, Margarida da Silva, escreveu à rainha relatando

que o filho sofrera “sessenta e tantas feridas”, e que temia por sua vida. Suplicou

que o filho fosse embarcado para o reino “debaixo de muita segurança, na

embarcação que [escolhesse].139

O governador informou a tentativa de assassinato à Secretaria de Estado

afirmando que seria muito difícil descobrir o autor, posto que o escrivão possuía

inimigos “em toda a terra”. Avisou que mandara tirar devassa da ocorrência, mas

135

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 67, doc. 5849 136

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 64, doc. 5727 137

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 64, doc. 5698 138

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 65, doc. 5768 139

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 64, doc. 5698

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62

que o ouvidor interino Quintanilha estava fora da cidade, em correição; ordenou

então ao ouvidor do Piauí140, mas esse alegou que não possuía jurisdição para tal;

por fim, encarregou o juiz de fora e órfãos de São Luís, José da Costa Rodrigues, da

referida sindicância.141 A devassa, executada rapidamente cerca de 10 dias após o

ataque inquiriu 30 testemunhas. E apresentou o exame de corpo de delito, relatando

um grande ferimento na cabeça, no braço direito e nas mãos.142

Tabela 4 – As testemunhas inquiridas na devassa do atentado a José da Silva

nome idade / estado civil/ ocupação

naturalidade declaração

Francisco Vieira 36 anos “vive de seus negócios”

Ilha de São Miguel “nada sabia”

José Pereira 26 anos “negociante”

Lisboa “nada sabia”

João Gualberto Pereira de Berredo

26 anos, casado Maranhão “só soube de uma cutelada”

Manoel José dos Reis 20 anos “vive de seus negócios”

Guimarães (Braga) “soube de ouvir falar”

José Pedro da Silva 28 anos “anda embarcado”

Lisboa “nada sabia”

Antonio José Ribeiro 34 anos, casado “oficial de ourives”

Maranhão “ouviu dizer que haviam dado uma catanadas em José da Silva”

José da Silva Franco 31 anos “caixeiro de Manoel Ramos”

Vila de Torres “nada sabia”

Antonio José da Silva 19 anos “vive de seu negócio”

não menciona “ouviu que deram umas catanadas em José da Silva”

Lourenço Antonio dos Santos

37 anos, casado “vizinho de José da Silva”

Maranhão

“ouviu uma gritaria por volta das onze horas e que chegando à sua varanda vira dois vultos correndo (...) não reconheceu ninguém”

Joaquim Marques de Figueiredo

35 anos Coimbra “tinha ouvido falar de umas cuteladas em José da Silva”

Antonio de Souza 46 anos “vive de seu negócio”

Ilha de Santa Maria “nada sabia”

Caetano Francisco 38 anos “vive de seu negócio”

Aveiro “nada sabia”

José Brás 16 anos “vive de seu negócio”

Oliveira do Conde “nada sabia”

João Nepomuceno 18 anos “caixeiro de Antonio José de Souza”

Lisboa “ouvira dizer sobre cuteladas em José da Silva”

Manoel Fernandes 35 anos “vive de seu negócio”

Freguesia de São Salvador da Ribeira da Penna

“ouviu dizer que tinham dado em José da Silva”

140

Na época, a capitania do Piauí era subordinada à do Maranhão. 141

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 64, doc. 5703 142

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 64, doc. 5704

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Domingos Gonçalves Penna 44 anos “vive de seu negócio”

Ribeira da Penna “ouviu dizer de muitas pancadas em José da Silva”

João Joaquim Cascais 34 anos, casado Cascais “deram umas catanadas em José da Silva”

João Mendes da Silva 63 anos, casado Lisboa “deram uma cutelada em José da Silva, e ouviu dizer que sabe quem foi”

Antonio José de Oliveira 30 anos “vive de seu negócio”

Freguesia de São Salvador da Ribeira da Penna

“soube de cuteladas em José da Silva”

João Lopes Fragoso 58 anos “sineiro da catedral”

não menciona “soube de cuteladas em José da Silva”

Manoel da Mota 52 anos “vive de seu negócio”

Ilha de São Miguel “soube de cuteladas em José da Silva”

Manoel José dos Santos 63 anos “vive de seu negócio”

Porto “soube de cuteladas em José da Silva”

Amaro José Ribeiro 60 anos “vive de seu negócio”

Viana “soube de cutiladas em José da Silva”

Francisco Soares 35 anos “vive de seu negócio”

Freguesia de Benfica “soube de cutiladas em José da Silva”

João Francisco de Medeiros 30 anos “vive de suas lavouras”

Ilha de São Miguel “nada sabia”

Pedro Nolasco 64 anos “vive de seu ofício”

Lisboa “soube de cuteladas”

Antonio José de Meireles 19 anos “vive de seu negócio”

Santiago da Faia “ouviu dizer de umas cuteladas em José da Silva”

Antonio Rodrigues de Miranda

24 anos “mercador de fazendas”

Trás-os-Montes

“soube das cuteladas e foi visitar José da Silva, o qual lhe disse ter testemunha que conhecia quem lhe tinha dado como conhecia os dedos das suas mãos, e que era um grande seu inimigo. E nada mais disse.”

Marcelino Antonio da Trindade

33 anos, casado Lisboa “ouviu dizer que deram cuteladas em José da Silva”

José da Costa de Oliveira 28 anos “vive de seu negócio”

Ilha de São Miguel “soube de cutiladas em José da Silva”

O estrato social que a devassa de José da Silva nos apresenta é bastante

rico. Das 30 testemunhas inquiridas, 28 declararam procedência: 20 eram

portugueses (dos quais apenas 6 de Lisboa), 5 eram açorianos, e somente 3 do

Maranhão. Quanto às ocupações, nada menos que 18 testemunhas viviam das

rendas geradas por seus negócios, 2 possuíam ofício e 4 eram empregados por

terceiros (os 2 caixeiros, o sineiro e o marinheiro); os demais não declararam.

Convém observarmos que dentre os depoentes com renda independente, a imensa

maioria estava ligada ao comércio, sendo que apenas João Francisco de Medeiros

declarou que vivia de suas lavouras. Além disso, nenhum dos inquiridos declarou

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64

nobreza, patente militar ou ligação com o funcionalismo régio. Podemos inferir que

eram, em sua maioria, homens de poucos recursos.

A devassa não esclareceu muita coisa: dos 30 inquiridos, 8 declararam

que nada sabiam, 1 que apenas ouvira dizer e os demais citaram variações da

agressão – catanadas, cuteladas e cutiladas. A única testemunha ocular declarou

que não poderia reconhecer os agressores; e Antonio Rodrigues de Miranda, que

alegou ter visitado José da Silva, afirmou que o escrivão sabia quem era seu

inimigo. Mas não citou nome algum.

Em carta à rainha, José da Silva acusou o partido de D. Antonio Sales e

Noronha de orquestrar o ataque a ele; afirmou que a devassa havia sido conduzida

propositalmente com brevidade, sem que seus vizinhos fossem ouvidos, para que

não pudessem nomear seus agressores. José da Costa Rodrigues, o encarregado

da devassa, era cunhado de José dos Santos Freire, seu “capital inimigo” e também

procurador do ex-governador. O escrivão acusou diretamente Miguel Arcanjo dos

Passos, escrivão dos Armazéns, João Pereira de Melo, advogado, e um terceiro

(cujo nome está ilegível na documentação), pela tentativa de assassiná-lo – todos

contavam com a proteção e amizade do então governador, Teles da Silva, que teria

prometido “prender, sepultar e extinguir aos queixosos de D. Antonio [Sales e

Noronha], até as suas gerações, tendo cumprido com a maior parte de sua

promessa (...) com degredos e prisões sem se dar motivo”.143

Poucos dias depois do atentado, José da Silva pediu abrigo ao bispo D.

Antonio de Pádua, no que foi atendido. Nesse ínterim, o governador mandou

prender o cirurgião que cuidava do escrivão, nomeando o cirurgião-mor da capitania

como encarregado de seu tratamento. José da Silva dispensou o novo cirurgião,

recusando-se a ser tratado por ele. Teles da Silva então encaminhou um despacho

ao escrivão para que justificasse a dispensa; José da Silva respondeu apenas

“porque quis”.144

No dia 5 de janeiro, foi a vez do juiz de fora e ouvidor Quintanilha pedir

proteção ao bispo. Sua casa teria sido alvo de rondas e batidas na porta, tarde da

noite, insistindo para que ele a abrisse.145

143

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 64, doc. 5727 144

Idem 145

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 64, doc. 5731

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Tão logo o governador soube que Quintanilha havia pedido abrigo ao

religioso, mandou chamar o bispo ao palácio para prestar explicações e exigir que o

juiz de fora se abrigasse com ele. O bispo relatou à rainha que por duas vezes,

Teles da Silva enviou oficiais militares para buscar Quintanilha, mas que o mesmo

recusou-se a sair, lá permanecendo.

Teles da Silva, por sua vez, acusou o bispo de condescendência para

com José da Silva e Quintanilha, que, falsamente, alegavam ser procurados por

assassinos, insinuando que a ordem teria partido dele. Também relatou o episódio

em que ordenara que o juiz de fora saísse da casa de D. Antonio de Pádua,

afirmando que havia garantido pessoalmente a sua segurança, oferecendo uma

guarda militar para protegê-lo – proposta que não evitou a recusa de Quintanilha.

No início de fevereiro, José da Silva e seu irmão, Justiniano, partiram para

Lisboa. Teles da Silva informou à rainha que havia recomendado ao mestre da

corveta toda a vigilância, cumprindo, assim, a ordem régia que recebera.146

D. Antonio de Pádua também escreveu à rainha criticando severamente o

governador. Contou que tão logo chegou à cidade, já no primeiro dia, o governador o

preveniu contra cinco homens que ele chamou de “monstros da maldade”: Ayres

Carneiro Homem, Vicente Ferreira Guedes, José Tomás da Silva Quintanilha, José

da Silva e Marçal Ignácio Monteiro. E que nos dias que antecederam a sua entrada,

Teles da Silva desterrou três deles (Ayres, Vicente e Marçal).147

O bispo acusou o governador de transgredir o procedimento cerimonial

quando da sua entrada pública, pois as rédeas do cavalo que montaria deveriam ser

conduzidas pelo militar de mais alta patente da capitania (justamente o coronel de

cavalaria Carneiro Homem), seus estribos deveriam ser segurados pelos dois oficiais

cujas patentes estivessem logo abaixo da dele, já a calda do vestido episcopal

caberia à patente logo abaixo da dos oficias nos estribos. Este teria sido o motivo do

desterro do coronel Carneiro Homem, pois quem puxou as rédeas foi o governador,

e nos estribos foram colocados seus dois ajudantes de ordens. D. Antonio culpou

Teles da Silva por roubar a honra que a Coroa lhe concedera, com o intuito claro de

diminuí-lo.

Quando a primeira missa regida pelo novo bispo começou, o governador

teria se recusado a ajoelhar, sendo advertido por esse motivo. D. Antonio de Pádua

146

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 67, doc. 5846 147

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 65, doc. 5768

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também se incomodou com o fato de que Teles da Silva era especialmente

“incensado pelos religiosos do Carmo, por adulação nascida do medo de suas

descomposturas”.148

Em tom de ironia, o bispo relatou que Teles da Silva tinha por hábito se

referir a Sales e Noronha por ridículo, mas que depois que a devassa de seu

antecessor ficou pronta, passou a travar uma guerra ostensiva por medo de que o

mesmo acontecesse a ele. Uma de suas práticas era a interceptação de cartas, de

modo que era necessário usar de grande estratagema para enviá-las ou recebê-las.

Não encontramos na documentação pesquisada nada que indicasse que

Teles da Silva e Sales e Noronha mantivessem qualquer tipo de relação. A denúncia

do bispo se coaduna com àquela feita por José da Silva – a de que os seus algozes

teriam agido sob as ordens de Sales e Noronha, com a conivência do governador

em exercício. O fato é que, ao assumir o governo do Maranhão, Teles da Silva

endossou as críticas e queixas dirigidas aos opositores do seu antecessor: José

Tomas da Silva Quintanilha, José da Silva, Marçal Ignácio Monteiro e Vicente

Ferreira Guedes. O que o motivou, no entanto, não está claro.

2.2 Santa Maria Madalena

Vicente foi desterrado a mando de Teles da Silva em julho de 1784.

Tendo retornado a São Luís por ocasião da chegada do novo bispo, foi novamente

notificado para sair da cidade num prazo 24 horas, o que aconteceu em 29 de

outubro. Entre as duas datas de degredo, Vicente havia escrito uma carta ao

governador suplicando-lhe que não procedesse contra ele.

A julgarmos pela ausência de Vicente na documentação pesquisada, ele

teria se conformado, ou ao menos, se mantido ocupado, a ponto de não mais

escrever ao governador – ou mesmo à rainha, pedindo o fim do seu desterro.

Mas acontecimentos em setembro de 1785 fizeram com que ele voltasse

a se manifestar: num prazo de poucos dias, sua fazenda Santa Maria Madalena foi

incendiada e um dos seus escravos foi assassinado à luz do dia. Em virtude do

ocorrido, o mestre-de-campo escreveu ao governador solicitando licença para ir a

148

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 65, doc. 5768

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67

São Luís porque precisava providenciar coisas para a casa que haviam se perdido

no incêndio, restando apenas as roupas do corpo. Teles da Silva, todavia, negou o

pedido.149

As perdas sofridas por Vicente no incêndio foram grandes; as chamas

consumiram rapidamente toda a casa e o armazém em que estavam guardadas as

colheitas daquele ano. Segundo o auto de delito, ele e a família teriam escapado

“tão somente do modo em que se achavam”, e precisaram buscar abrigo na fábrica

e engenho que Vicente possuía nas margens do rio Itapecuru. Justamente quando lá

estavam, um dos escravos que ficara na fazenda incendiada foi assassinado.

Vicente e as testemunhas afirmaram ao tabelião que conduziu a vistoria

que o incêndio havia sido provocado. Contaram que pouco depois do meio dia do

dia 6 de setembro, presenciaram o início do incêndio em cima da casa, estando o

paiol logo abaixo, à direita. Concluíram que o fogo fora lá colocado, uma vez que a

casa possuía

cem palmos de comprido e cinqüenta de largo, e uma grande altura (...) sendo igualmente toda tapada de barro (...) não [sendo] fácil ali ir fogo sem ser lançado de propósito, muito principalmente da parte de trás, por onde principiou (...) o qual foi tão violento pela razão do vento e altura da dita casa, em um oiteiro, que em menos de dez minutos, não só ardeu toda a cobertura de pindoba, mas que também caindo depois toda ela, toda a madeira (...) incendiou tudo (...) o fofo passou da casa de paióis, a uma de oficina, de fazer farinha, depois passou (com o vento) a uma capoeira ou roça velha de algodão que tinha frutos pendentes.150

Os itens queimados na casa e nos paióis nos dão uma idéia dos hábitos e

bens de Vicente:

algodões em caroço e de pluma; sacas de arroz pilado já prontas; quatro rolos de pano grosso de contrato (três inteiros e um já desfeito em sacas); pilões; moinho de beneficiar arroz; milho; carnes, farinhas; coxos que tinham arroz pilado dentro; cinqüenta e um livros; roupa branca de seu uso e de toda a sua família; louça de estanho e bastante prata em colheres, garfos e facas; algumas peças de ouro do uso de sua mulher que tudo se derreteu e se misturou a prata com o estanho (...) dois relógios de algibeira de preço; e alguns papéis de importância, entre os quais (...) Autos de litígios de força nova, em que era autor Valério Xavier Campelo, e réu, o capitão José Marcelino Nunes (...) queimaram duas imagens de Nosso

149

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 67, doc. 5849 150

Idem

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68

Senhor Jesus Cristo e de Maria Santíssima e outros muitos móveis (...)151

As lavouras de Vicente haviam proporcionado uma produção considerável

naquele último ano, razão pela qual foi preciso pedir ajuda aos vizinhos na época da

colheita. Só o Convento do Carmo – também localizado na Ribeira do Itapecuru –

emprestou a ele mais de duzentos escravos, o que não impediu a perda de “muito

arroz no campo”, segundo relatou um dos religiosos.152

Depois do incêndio, Vicente encaminhou vários pedidos ao governador,

solicitando autorização para ir a São Luís. Nunca foi atendido. Passou então a

solicitar à Coroa, que expediu duas ordens a Teles da Silva, a primeira em junho e a

outra em 13 de novembro de 1786. Todavia, o degredo de Vicente só acabou em

dezembro, depois de dois anos e meio.153

Durante o desterro, Vicente certamente não exerceu seu posto de mestre-

de-campo, tampouco pôde advogar nos auditórios da São Luís. Contudo, o fato de

ter em seu poder papéis de um processo movido por Valério Xavier Campelo contra

José Marcelino Nunes, indica que ainda possuía clientes. É provável que tenha se

dedicado às lavouras, à fábrica e ao engenho em período quase integral,

conseguindo, como mostrou o auto de delito, colheitas abundantes; teria lucrado

muito se o fogo não tivesse consumido tudo. Vicente não acusou ninguém, e quando

perguntado pelo tabelião se possuía algum suspeito, respondeu que não. Não

sabemos se ele manteve a fazenda Santa Maria Madalena e os demais

empreendimentos, ou se a repassou a outro sesmeiro. O fato é que no ano seguinte,

Vicente recebeu uma confirmação de data e sesmaria no rio Turiaçu, distante quase

400 quilômetros do Itapecuru.154

Não obstante estivesse livre para voltar a São Luís, os problemas com o

governador e com os membros do terço de Alcântara ainda não haviam chegado ao

fim.

151

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 67, doc. 5849 152

Idem 153

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 68, doc. 5918 154

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 70, doc. 6084

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3. CIRCUNSTÂNCIAS ATENDÍVEIS: coronel de milícias e cavaleiro (1788-1802)

No início de 1785, depois de ter desterrado Vicente Ferreira Guedes, o

então governador Teles da Silva pôs as mãos em duas cartas155 que haviam sido

enviadas de Lisboa para o mestre-de-campo. Escritas por Francisco Xavier Gomes

Rebello, membro do Conselho Ultramarino, tratavam de interesses de Vicente em

trâmite naquela instituição: a legalidade de sua nomeação para o posto do terço dos

homens brancos de Alcântara.

Tão logo as conseguiu, Teles da Silva denunciou o fato a Martinho de

Melo e Castro, da Secretaria de Estado, pedindo providências, a fim de que não

passasse “pelas mesmas humilhações por que [tinha] passado o [seu] antecessor”,

advindas do fato de Vicente possuir amigos no Conselho Ultramarino.156

Nada me podia instruir melhor dos meios ocultos que este homem mau tem descoberto para conseguir as injustas mercês que tem obtido e tudo o mais que tem pretendido para si e para os seus parciais (...) e nada dará mais a conhecer a V. Ex.a o quanto se tem introduzido no expediente daquele Tribunal a venalidade e a corrupção. (...) Nem tampouco estranha-me que o referido mestre-de-campo fique conservado neste posto, suposta a Consulta que subiu à Real Presença de Sua Majestade pelo Conselho, onde segundo o que se observa do conteúdos das mesmas cartas, “se escrevendo coisas que nem pintadas se podiam formosear melhor”, como se explica o autor

delas, chegando desta sorte, tão desfigurada à Real Presença de Sua Majestade (...) Agora fica patente que na certeza de ter amigos e protetores naquele Tribunal, o referido Guedes se tem atrevido a afrontar todas as jurisdições nesta capitania.157

Criado em 1643, o Conselho Ultramarino era responsável por toda a

tramitação burocrática proveniente dos domínios de Portugal. A administração

fazendária, judiciária e militar passava pelas mãos dos seus conselheiros que, por

sua vez, recomendavam o parecer que o soberano deveria dar a requerimentos,

consultas, mercês, despachos etc. Os conselheiros eram escolhidos dentre os

155

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Feitos Findos (Brasil), mç. 13, nº 25 e nº 26 156

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 64, doc. 5723 157

Idem

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70

fidalgos de primeira nobreza que possuíssem alguma experiência militar e

administrativa. Muitos eram bacharéis. 158

Seu poder foi sendo esvaziado ao longo do século XVIII com a criação de

outros órgãos administrativos régios, como a Secretaria de Estado da Marinha e

Ultramar, por exemplo. Quando a família real portuguesa fugiu para o Brasil, as

atribuições do Conselho foram delegadas ao Desembargo do Paço, no Rio de

Janeiro. Quando foi extinto, em 1833, suas funções já eram poucas, limitando-se à

concessão de passaportes e licenças.159

Tendo funcionado por 190 anos, recebendo e gerando uma quantidade

monumental de documentos, o Conselho ainda hoje não mereceu um estudo

aprofundado sobre seu funcionamento. O único de que dispomos é o breve trabalho

de Marcello Caetano – aqui utilizado. Tampouco foram estudadas as relações que

seus conselheiros estabeleciam com os suplicantes.

Supor que favorecimentos regessem parte das decisões emitidas pelo

Conselho é razoável, assim como conjecturar que rivalidades contribuíssem para

indeferir ou embargar processos. Entretanto, a ação de agentes régios em

favorecimento ou detrimento de interesses particulares – quer no âmbito da

metrópole, quer no da colônia – também ainda não foi devidamente analisada pelos

historiadores. O caso das cartas de Rebello a Vicente nos permite vislumbrar um

exemplo dessa natureza.

Como vimos, o ex-governador Melo e Póvoas havia sido consultado pela

rainha a respeito da nomeação de Vicente para o posto de mestre-de-campo. Seu

parecer tecia severas críticas a respeito de seus opositores, e atestava sua

idoneidade e conduta, mas não sua qualidade – posto que os homens do terço eram

brancos, e o nomeado, mulato. Para tanto, recomendava a escolha do capitão

Estevão de Almeida (o 2º na preferência do governador Sales e Noronha) para o

posto, e a transferência de Vicente para o comando de um terço de índios, em

Pastos Bons, mantendo-se a patente de mestre-de-campo.

Seguindo os caminhos burocráticos, o parecer de Melo e Póvoas com

certeza passou pelas mãos dos conselheiros ultramarinos que deveriam anexá-la

aos demais documentos referentes ao caso, redigir um relatório e recomendar

158

CAETANO, Marcello. O Conselho Ultramarino: esboço de sua história. Rio de Janeiro: Sá Cavalcante Editores, 1969, pp. 42-44 159

Idem, pp. 53-55

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decisão favorável ou não à rainha. Esta consulta, assinada pelos conselheiros Luís

Diogo Lobo da Silva, Miguel Serrão Dinis e pelo desembargador João Batista Vaz

Pereira, foi encaminhada à soberana em 17 de agosto daquele ano de 1784. 160

Onze dias depois, Rebello escreveu a Vicente narrando os procedimentos

do Conselho

Amigo do coração, não quero deixar de dizer o que me dizem e vejo. Respondeu o Procurador da Fazenda sobre os seus papéis, mal, mas melhor que Joaquim de Melo e Póvoas, pois que ao menos em encrespando ao Conselho da (...) brevidade com que havia provido semelhante lugar (...) concorda na passagem de vossa mercê para o Terço de Pastos Bons, mas que na patente que se lhe passar, se introduzam cláusulas para que um semelhante vassalo fique bem, e isto é só o que se pode conseguir à força de empenho.161

Já explicava Rebello no início da carta que a decisão do procurador não

era a que Vicente desejava – ser mantido no terço de Alcântara, mas que havia

aceitado a sugestão de Melo e Póvoas de passá-lo para o terço [dos índios] de

Pastos Bons, conservando sua patente. O fato de o procurador se encrespar com a

rapidez com que a vaga havia sido preenchida, é um forte indício de que o

procedimento havia destoado das práticas burocráticas do Conselho.

Propôs o Conselho que se conformava com os dois pareceres, porém entrando a dizer, disse coisas a benefício de conservar a vossa mercê que nem pintadas se poderiam formosear melhor. É consulta de cinco folhas de papel, ontem subiu, e não desacompanhada de favor (...)162

Este é o trecho a que se referiu Teles da Silva quando denunciou as

cartas à Secretaria de Estado. O fragmento mostra o cuidado dos conselheiros em

resguardar Vicente, esforçando-se para mantê-lo no terço de Alcântara. Tal

empenho sugere diferentes interpretações: a primeira seria proteger o mestre-de-

campo de quaisquer insinuações ou punições futuras; a segunda, proteger a si

mesmos, justificando a nomeação de Vicente por ser ele, indiscutivelmente, o

melhor candidato para o posto, afastando assim, qualquer suspeita de conluio.

160

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 63, doc. 5652 161

ANTT, Feitos Findos (Brasil), mç. 13, nº 26 162

Idem. Grifo nosso.

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Ressaltemos, mais uma vez, que toda a refrega em torno da nomeação

de Vicente dizia respeito à sua qualidade (ou ausência dela), e não às suas

habilidades militares. Assim fosse, teria bastado apresentar sua folha corrida163,

elogiosa e com selo régio. De qualquer forma, seus conhecimentos militares foram

lembrados. Conquanto não pudessem atribuir a qualidade exigida a Vicente,

desqualificaram seus queixosos:

(...) que resta certeza tendo o provido patente (...) sendo pessoa de tanto merecimento, como ainda agora abona o governador Joaquim de Melo e Póvoas na sua informação, além de muitas atestações de pessoas de exceção maior, que o mesmo provido juntou com a sua representação, que todas justificam o seu bom comportamento, e mostrando-se enfim, plenamente justificado, que ele é muito perito na disciplina militar e dotado de um bom talento e de ciência do Direito, de nenhuma forma o Conselho se pode conformar com a passagem do dito provido para o terço dos homens pardos que o dito Póvoas propõe na sua informação, não só porque a Piedade de V. Majestade certamente não quererá consentir que publicamente seja injustiçado um homem que não recusou servir antes voluntariamente, passou a despender um avultado cabedal no seu Real Serviço, mas porque até seria ofensivo anuir a um tal parecer por causa de queixas sugeridas por intenções sinistras (...) sendo os mesmos queixosos faltos de qualidade e sem circunstâncias mais atendíveis que as do dito Guedes (...) porque devendo-se lhes estranhar sem dúvida a falta de subordinação, e de obediência com que se reportaram, sem quererem obedecer e reconhecer por mestre-de-campo ao provido com uma patente firmada pela Real Mão, viria com a passagem a aprovar-lhes as suas desordens, e ao animá-los pelo bom êxito desta a fazerem outras mais prejudiciais ao Real Serviço de V. Majestade. Que por isso mesmo que estes moradores são bastante orgulhosos e acostumados a suscitar motins por qualquer motivo que se não conforme com as suas idéias sinistras, eles precisam de um mestre-de-campo, não só perito na milícia, mas de talentos maiores que os saiba conter e conservá-los àquela submissão e respeitosa obediência com que se devem conduzir os vassalos (...) parece ao Conselho ainda agora, ser ele bem próprio para conseguir aquele fim.164

Os conselheiros também argumentaram que o fato de Vicente possuir a

qualidade de mulato, não o impedia de ser provido no cargo em função do alvará de

16 de janeiro de 1773 que havia habilitado “semelhantes para todo o emprego para

que por seu merecimento se fizessem hábeis, sem lhes servir de defeito aquela

qualidade”.165 Havia um dado na trajetória de Vicente que respaldava o argumento

163

Ver Tabela 2 164

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 63, doc. 5652. Grifos nossos. 165

Idem

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73

dos conselheiros, o fato de que ele havia sido nomeado vogal da Junta de Justiça do

Maranhão, anos antes. Na dedução do Conselho, a nomeação reforçava a sua

permanência no terço de Alcântara e desqualificava o raciocínio de Melo e Póvoas:

Que o mesmo governador informante foi quem (se lhe obstou a dita qualidade) o julgou hábil para nomeá-lo deputado da Junta de Justiça, que em observâncias das Ordens Régias criou na dita capitania do Maranhão. E quando sem embargo da qualidade foi o provido capaz de concorrer na dita Junta com o dito governador, de tomar assento na mesma Mesa de Votar, e julgar até da própria vida dos militares, parece que igualmente ficou hábil para os poder reger como mestre-de-campo, e que se não devem considerar com causa justa, injuriados os seus subalternos de os reger ele como mestre-de-campo no Real Nome de Vossa Majestade, visto que não se injuriaram de chegar ele por seu merecimento ao lugar de poder julgar-lhes as vidas como deputado.166

A julgar pelo tom de Rebello, a recomendação de Melo e Póvoas para

repreender asperamente Antonio Correa Furtado de Mendonça pelo atrevimento de

apontar a ausência de qualidades dos vereadores da câmara de São Luís seria

levada adiante.

Pela parte de Antonio Correa o mais barato que lhe poderão fazer (por insinuação minha, porque tentei ser o melhor) é passar-se ordem ao governador [Teles da Silva] que chamando-o perante si vá admoestar-lhe, estranhe asperamente a petulância (com que Joaquim de Melo diz) de as ver posto na presença de Sua Majestade a sua (verdadeira) conta; porque como Joaquim de Melo não lhe pode negar a verdade, achou na sua filosofia que essa mesma se podiam dizer, se não homens de nascimento ilustre, e isto bastou para que os mais informantes vão sobre o pobre Correa, o que agora me dá pena.167

Na tentativa de defender Vicente Ferreira Guedes, o vereador Mendonça

havia apontado a pouca ou nenhuma qualidade dos vereadores que se queixavam

de sua nomeação. Rebello não deixou de notar, ironicamente, que Melo e Póvoas

não havia gostado daquelas observações, conquanto não pudesse dizer que eram

falsas. Então, na sua filosofia, julgou que tais comentários só caberiam a indivíduos

de nascimento ilustre, ou seja, somente homens nobres poderiam apontar a

166

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 63, doc. 5652 167

ANTT, Feitos Findos (Brasil), mç. 13, nº 26

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ausência de qualidades em outros homens. Não sendo Mendonça nobre, devia ser

repreendido.

O trecho seguinte é, talvez, o mais elucidativo a respeito das manobras

dos conselheiros para fazer subir (ao despacho real) ou engavetar um processo:

Joaquim de Melo para persuadir a bondade do capitão Estevão Almeida (que está proposto para esse seu posto em 2º lugar) diz que basta repassar-se não assinar ele as representações dos oficiais, sendo ele um dos do dito terço, porém os meus amigos, pela má vontade com que ficaram ao dito Melo, já me disseram que caso nós fiquemos mal, nunca o dito Estevão conseguirá seu desejo cá por baixo, com que a este respeito diga-me o que entender para ver se devo ou não dar calor a esta paixão.168

Um ponto a ser observado é que não está claro se os amigos de Rebello

eram conselheiros, ou pessoas de fora com influência no Conselho. O próprio

Francisco Xavier Gomes Rebello não consta das listas169 de secretários e

conselheiros ultramarinos.

Acreditamos que Melo e Póvoas tenha irritado Rebello e seus amigos ao

sugerir a passagem de Vicente para o terço de índios de Pastos Bons e ao

recomendar-lhes que passassem orientação a Estevão de Almeida para abster-se170

dos requerimentos dos oficiais do terço, mostrando assim, quem sabe, bom

comportamento e obediência (diferente do procedimento revoltoso dos demais).

É provável que a passagem “Caso nós fiquemos mal” seja uma referência

a uma decisão real desfavorável a Vicente. O mais interessante, contudo, é a

afirmação de Rebello de que o capitão Estevão Almeida nunca realizaria seu desejo

caso seus amigos decidissem embargar a papelada lá por baixo, perguntando a

Vicente se devia ou não “botar lenha na fogueira”.

É bastante nítido o favorecimento que Vicente recebe por parte de

Rebello, mas a julgarmos pelo conteúdo da segunda carta – escrita uma semana

depois da primeira, a ajuda devia ser retribuída da mesma forma. Entre comentários

de ordem geral e amenidades, Rebello escreveu:

168

ANTT, Feitos Findos (Brasil), mç. 13, nº 26. Grifo nosso. 169

AH, CU, Posses, Cód. 2160 (Livro dos autos de posse dos Presidentes, Conselheiros e mais Ministros do Conselho Ultramarino). Parte dos registros se perdeu depois dos incêndios decorrentes do terremoto de 1755. 170

Mas o capitão assinou todos.

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vossa mercê diz me está de longe vendo as desordens que nessa se passam com as inquirições de D. Antonio [Sales e Noronha] e que tem os seus documentos, já se sabe, guardados para quando lhe chegar a sua ocasião; eu e os nossos amigos desejamos que em sem tempo nunca ela lhe chegasse e desejamos bem que em semelhante caso vossa mercê se mostrasse neutro, tanto porque nessa neutralidade agrada a esse Fidalgo, e não deixa este que cá está de ter notícia disso, razão porque cá não lhe fará guerra (...)171

Na época em que a carta foi escrita já ocorria em São Luís a devassa

sobre Sales e Noronha. Mesmo degredado no Itapecuru, acreditamos que Vicente

se preparava para apresentar provas contra o ex-governador, sobretudo referentes

ao caso dos livros da Arrecadação. Os principais acusados por Vicente, o juiz de

fora Guilhon e o ouvidor Monclaro, contavam com a simpatia de Sales e Noronha.

Além disso, o devassado era francamente contrário à sua nomeação para o terço de

Alcântara, e sob suas ordens, Vicente havia sido desterrado e preso em duas

ocasiões. A devassa era sua chance de obter justiça... ou vingança. Rebello,

entretanto pediu a seu “amigo do coração” que o agradasse, mantendo-se neutro.

Ainda nesta carta, Rebello pediu a Vicente que desse um recado:

dirá ao seu amigo Gularte, para que saiba, [que] se eu pegar no seu requerimento, ei de fazer a diligência possível para não me servir da Ordem, ele não será capaz de lhe prestar, não desejo eu ter ocasião de me embaralhar com ele.172

Na documentação que serviu de base para este trabalho não há menção

alguma da parte de Vicente a alguém de nome Gularte, menos ainda sabemos

acerca do requerimento a que Rebello se referia, mas a ameaça é bastante clara:

caso os papéis caíssem em suas mãos, ele faria tudo para anulá-los.

3.1 A decisão da Coroa

Após o fim do degredo em dezembro de 1786, Vicente finalmente pôde

comandar os oficiais brancos de Alcântara. Todavia, passado pouco mais de um

ano, a Coroa decidiu a questão: os oficiais seriam sentenciados na Junta de Justiça;

171

ANTT, Feitos Findos (Brasil), mç. 13, nº 25. Grifo nosso. 172

Idem. Grifo nosso.

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Vicente seria passado para o Terço dos Índios Pedestres com a mesma patente e a

tão almejada vaga de mestre-de-campo do Terço dos Homens Brancos ficaria com

Antonio Correa Furtado de Mendonça – o mesmo que fora repreendido pelo

governador Teles da Silva por defender a nomeação de Vicente.173

O novo governador, Fernando Pereira Leite de Foios, enviou ofício à

Secretaria de Estado dando conta do cumprimento das ordens reais, observando

que os “bons lavradores [do Terço] serviam com violência debaixo das ordens” de

Vicente Ferreira Guedes, mas que “desde que este [passara a servir] debaixo das

suas ordens, só lhe tinha conhecido o caráter de não se deixar pisar, e de ser muito

vivo”.174

Supomos que a interpretação mais acertada sobre a declaração de Foios

é a de que a violência partia dos oficiais, talvez com insubordinações, e não de

Vicente. Reforçando sua autoridade, deixava claro que o mestre-de-campo não lhe

causava problema algum, mas reconhecia sua altivez e sua perspicácia.

Não há nada na documentação pesquisada que sugira disputas entre

Vicente e Foios. Depois de noves anos envolvido em altercações com vários

indivíduos da colônia – incluindo-se aí dois governadores, acreditamos que Vicente

tenha iniciado um período de estabilidade.

Tudo indica, porém, que seu casamento com Maria Rosa tenha chegado

ao fim logo em seguida. Numa declaração posterior, informou Vicente que ela havia

“[se ausentado dele] para fora da capitania, e para parte aonde não se sabia”,

passando então a viver com Mariana de Souza Tavares, solteira, com quem tinha

três filhos: Maria Laura Benedita Guedes, Ana Vicência Celestina Guedes e Vicente

Mariano Guedes Alcoforado. Do casamento com Maria Rosa tinha apenas um filho,

João Ferreira Guedes Alcoforado.175

As referências a Vicente são bastante escassas na última década do

século XVIII, entretanto, um dos poucos manuscritos existentes é, novamente, uma

queixa sobre seu comportamento e suas ações. Datado de 1798, a reclamação

envolve Vicente e a irmandade que ele administrava.

173

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 73, doc. 6290 174

Idem. 175

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 105, doc. 8414

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3.2 A Irmandade de Nossa Senhora da Conceição dos Homens Pardos

As irmandades de homens de cor surgiram no Brasil a partir do século

XVII, num contexto colonial e escravista, profundamente arraigado à hierarquização

social vigente no Antigo Regime. Essas confrarias possuíam características em

comum: estavam inevitavelmente ligadas a um santo de devoção, possuíam capela

própria, rendimentos oriundos das doações de seus membros, prestavam auxílio na

doença e na morte e, mais tarde, já no século XIX, subsidiavam manumissões.

Viana constatou que a maioria das irmandades preferiu o qualificativo

pardo no título, o que se explica, segundo ela, pela freqüente atribuição de

características depreciativas ao qualificativo mulato, comumente associado “à noção

de „impureza‟ de sangue e atributos como preguiça, desonestidade, astúcia,

arrogância e falta de confiabilidade” e tido por moralmente inferior. Desta forma, as

irmandades teriam forjado “atributos alternativos”, fundados na honra, na devoção e

na descendência, distinguindo socialmente seus membros e valorizando a

mestiçagem. 176

Construía-se, especialmente nas irmandades de pardos, uma noção de distinção a um só tempo mestiça e colonial, capaz de integrar e criar oportunidades de coesão para aqueles que buscavam distinção em meio a um contexto marcado pelas idéias de “defeito” e “impureza”.177

As poucas informações de que dispomos sobre Vicente e a Irmandade de

Nossa Senhora da Conceição dos Homens Pardos constam de uma denúncia sobre

ele ao Santo Ofício, feita em 1779. Por meio dela, sabemos que Vicente foi acusado

de dois crimes. O primeiro envolvia a Irmandade; o segundo uma declaração

libertina.178

Membro da confraria desde 177, Vicente logo passou a administrá-la. No

ano seguinte, encarregado de organizar a celebração da Semana Santa, pediu ao

cabido da Sé que autorizasse o empréstimo de uma relíquia para ser exibida e

venerada na capela da irmandade na quinta-feira Santa. Pedido negado, Vicente

decidiu pedir emprestado um pedaço do “santo lenho” a um capitão, que consentiu.

176

VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas, SP: UNICAMP, 2007, p. 227 177

Idem, p. 37 178

ANTT, Tribunal do Santo Ofício (TSO), Inquisição de Lisboa (IL), processo 15955

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Como não havia religioso naquele dia, Vicente formou uma procissão,

adentrou a capela com a relíquia em mãos, caminhou até o altar e a depositou

“sobre o banco mais alto”.179

Acusado de heresia, a inquirição foi conduzida por dois cônegos que

redigiram o sumário e a denúncia encaminhados ao Santo Ofício, em Lisboa. No

caso da procissão, cinco testemunhas foram chamadas.

Destas, três relataram que Vicente justificara o ato de ele mesmo haver

posto a relíquia no altar (prerrogativa de um religioso) como inocente – pois,

explicou, se os devotos católicos podiam carregar símbolos sagrados no pescoço,

também podiam carregar nas mãos.

Com exceção de um interrogado, os demais eram membros da

Irmandade: José de Souza, pardo, sapateiro, do Maranhão, com 70 anos; Alexandre

dos Reis, pardo, forro, casado, também do Maranhão, ferreiro, de 45 anos; Silvestre

Ayres, pardo, forro, também ferreiro, casado, do Maranhão, tinha 48 anos; e, José

Luís da Rocha, alferes do terço de auxiliares, natural do Maranhão, 39 anos.

A idade média entre os confrades era de 50 anos, três deles possuíam

ofício, e dois haviam se declarado forros. Todos alegaram ter nascido no Maranhão.

Supondo que Vicente tivesse nascido em 1734, no ano da inquirição ele teria 45

anos – mesma faixa etária dos demais companheiros.

A segunda acusação contra Vicente não tinha qualquer relação com a

irmandade. Tratava-se de um evento recente à denúncia, ocorrido em 1779: um

comentário que ele teria feito depois de ler Tentativa Theologica: obra iluminista e

bastante polêmica na época.180

Presumimos que a denúncia ao Santo Ofício tenha sido deflagrada pelo

segundo delito, sendo o primeiro usado apenas para reforçar a acusação – uma vez

que já tinham se passado oito anos do ocorrido.

Após ler Tentativa Thelogica, Vicente, em conversa informal, declarou que

a autoridade dos padres e dos papas era igual, pois a primazia de que dispunham os

papas era conseqüência do poder de Roma, e não de uma escolha de Deus.181

Para esta denúncia foram ouvidas quatro testemunhas: o cirurgião Bento

da Cunha, 44 anos, de Castela; José Nepomuceno Gomes, ferreiro e alferes da

179

ANTT, TSO, IL, processo 15955 180

VILLALTA, Luís Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Prática de Leitura: usos do livro na América Portuguesa (tese). São Paulo: USP, 1999, pp. 357-358 181

ANTT, TSO, IL, processo 15276

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Companhia de Pedestres, de 29 anos; e, dois opositores de Vicente, José Ignácio de

Moraes Rego (partidário do juiz de fora Henrique Guilhon), que declarou ter 53, e o

sargento-mor do terço de Alcântara, Ricardo Antonio da Silva Leitão, que “vivia de

suas lavouras” e contava 50 anos – que viria a ser o primeiro queixoso da nomeação

de Vicente para o posto de mestre-de-campo de Alcântara.182

Acusado de heresia e libertinagem, Vicente redigiu sua defesa atribuindo

as denúncias às maquinações de seus inimigos. Acusou o cônego João Pedro

Gomes, inquiridor, de persegui-lo por conta de um litígio pendente que este tinha

contra Antonio de Araújo Serveira, defendido por Vicente. Também culpou José dos

Santos Freire, amigo do cônego e do ouvidor Veloso e Gama; o terceiro intrigante

era o Padre José Antonio de Macedo, “por razões particulares”.183

O resultado da denúncia ao Santo Ofício é desconhecido, o que não nos

impede de tecer algumas considerações. Vicente não foi o único a ter que se

explicar a inquisidores no Maranhão; Mott e Novinsky arrolaram cerca de sessenta

nomes além do dele.184 Dos citados neste trabalho, Marçal Ignácio Monteiro e Ayres

Carneiro Homem também tiveram que lidar com a Inquisição na mesma época que

Vicente, 1779, e por desvios semelhantes: leitura e difusão de idéias heréticas.

Coincidentemente, cinco anos depois, os três estariam na lista de prelados da

maldade de Teles da Silva e seriam desterrados. Podemos inferir que as afinidades

de Marçal, Ayres e Vicente iam além de adversários em comum, possuíam

bibliotecas e livros eivados de idéias iluministas.185

A inquirição realizada em São Luís correu em segredo, como era praxe.

Apesar das nove testemunhas ouvidas pelas duas acusações a Vicente, nenhuma

citação posterior foi feita a ela. Supomos que os opositores de Vicente não teriam

hesitado em incluí-la no rol de queixas que tantas vezes enviaram à Coroa.

No ano da inquirição, o Maranhão ainda era governado por Melo e

Póvoas, e sabemos que Vicente tinha amigos no Conselho Ultramarino. Teriam eles

encerrado o assunto?

Vicente continuou a pertencer à Irmandade até pelo menos 1798, ano

em que um dos advogados de São Luís, José Possidônio de Oliveira Maynarte o

182

ANTT, TSO, IL, processo 15276 183

Idem 184

MOTT, Luiz. A Inquisição no Maranhão. São Luís: EDUFMA, 1995 pp. 51-54; NOVINSKY, Anita. W. O Santo Ofício da Inquisição no Maranhão: a Inquirição de 1731. São Luís: UEMA, 2006, pp. 20-21 185

MOTT, op. cit. pp. 20-21; VILLALTA, op. cit., pp. 357-358

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denunciou, juntamente com José Luis da Rocha, por desmandos na administração

daquela confraria.186

Maynarte relatou à rainha as péssimas condições da igreja “cheia de

fendas (...) sem asseio algum (...) e o edifício finalmente ameaçando ruína pela

antigüidade”, apesar das muitas doações em forma de dízimos ou peças de ouro e

prata, entregues diretamente a Vicente, administrador, e a Rocha, escrivão.

o capitão de auxiliares, José da Silva Rocha, que unido com o coronel dos índios ou pedestres, Vicente Ferreira Guedes, são os que governam, mandam e dispõem tudo que há na tal Confraria (...) vivem com ostentação e a sobredita Igreja em tanta miséria e necessidade (...) Guedes e Rocha, um como definidor e o outro como escrivão, são os que movem os ditos confrades como ignorantes e pedestres, para tudo que querem e ainda outros seus parciais na conduta e orgulho. (...) V. Maj.e os beneficiou e honrou nos postos militares, quando um nascido de escravo e outro na escravidão (...)187

Através da carta de Maynarte, sabemos que Vicente permaneceu no terço

de auxiliares pedestres, para o qual fora transferido depois de perder o posto do

terço de Alcântara, dez anos antes. O fato de Maynarte se referir a ele como coronel

indica que a patente continuava a mesma, mestre-de-campo; mas no fim do século

XVIII o termo coronel já era mais usado.

A alegação de que Vicente e Rocha manipulavam os membros da

irmandade não é citada em documentos posteriores; àquela altura ambos já

pertenciam à confraria há pelo menos 27 anos. Se quisessem desviar as rendas

arrecadas, como acusou Maynarte, já dispunham de todos os meios para tal. É fato

que eram muito próximos e que a amizade avançou com os anos. O auto de

nobreza de José Luís da Rocha, registrado em 1804, tinha como principal declarante

Vicente. No mais, não foram encontrados outras referências à irmandade.188

186

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 101, doc. 8148 187

Idem 188

APEM, Registros Gerais, Livro1803-1805

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3.3 Das mercês

No fim de 1792, foi lavrado em Lisboa um auto de justificação de nobreza

em benefício de Vicente Ferreira Guedes. O auto189 era o primeiro documento que

um vassalo aspirante à nobreza deveria providenciar. Geralmente eram

apresentadas três testemunhas tidas por nobres, bacharéis, fidalgos ou clérigos que

confirmavam conhecer o requerente e o seu procedimento no uso de “armas,

criados e cavalos”.

A distinção a que Vicente aspirava era chamada de „nobreza civil‟ ou

„nobreza da terra‟, reconhecimento que dependia unicamente da vontade régia. Por

isso, os indivíduos que almejavam a condição de nobre tendiam a acumular várias

“fontes de nobreza: já sendo cavaleiros, ou comendadores, pretendiam um ofício

civil ou um posto militar, pois só graças a várias mercês, reforçadas umas pelas

outras, é que sua nobreza se impunha na sociedade”.190

Em seu auto de justificação constava ser “filho de legítimo, aliás,

legitimado” de João Ferreira Guedes e Luiza Soares Ferreira. Seus avós paternos

eram Jeremias Ferreira Guedes Alcoforado e Ana Guedes Mouzinho. Embora a

presença dos Guedes Alcoforado nas capitanias de Pernambuco e da Paraíba

remonte ao século XVII (1634), com várias ocorrências na coleção do Arquivo

Ultramarino191, do ponto de vista protocolar, o auto de Vicente era pouco

substancioso quanto à filiação: citava apenas duas gerações do lado paterno.

Quanto às origens maternas, nenhuma palavra, o que reforça as nossas suspeitas

de que realmente fosse filho de uma escrava ou forra.192

Outro detalhe no auto de justificação de Vicente é a expressão “filho

legítimo, aliás, legitimado” que aparece duas vezes, e “filho legitimado”, que aparece

três. Acreditamos que a interpretação mais assertiva aqui é a de legitimado

189

O Arquivo Nacional da Torre do Tombo possui centenas de autos de justificação de nobreza, havendo entre eles pouquíssimas variações. Constam do auto: descendência até pelo menos a terceira geração, documentos emitidos pela Coroa comprovando mercês (cartas-patentes, sesmarias, provimento em cargos régios, arrematação de contratos reais, habilitação em ordens religiosas e militares etc.) e o registro de três testemunhas de qualidade. Os autos anteriores a 1755 se perderam num incêndio provocado pelo terremoto que destruiu Lisboa naquele ano. 190

NIZZA DA SILVA, op. cit., p. 18 191

AHU, Pernambuco (Avulsos) e Paraíba (Avulsos). A maior parte dos manuscritos citando indivíduos com sobrenome Guedes Alcoforado é de concessão de mercês (sesmarias e cartas-patentes). 192

ANTT, Correição Cível da Corte (CCVC), 004/0032/00025

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enquanto habilitado, ou seja, a hipótese de que os pais de Vicente não fossem

casados.193

Vicente anexou cópias de suas cartas-patentes de capitão, e de mestre-

de-campo do terço de... Alcântara (não obstante tivesse sido transferido para o terço

de pedestres seis anos antes); provável manobra para conferir-lhe mais dignidade

antes os valores hierárquicos daquela sociedade.

Cabia aos depoentes confirmar as informações de filiação, ocupação e se

o candidato a nobre possuía ascendentes “conhecidos e reputados de muita

nobreza” e se estes se serviam de “armas, criados e cavalos”.194

A primeira testemunha era Frei Cosme Damião da Costa Medeiros,

cavaleiro professo na Ordem de São Bento de Avis, presbítero secular e pároco de

Santa Margarida da Aldeia Velha em Alentejo, de 36 anos, que afirmou ser tudo

verdade, pois fora educado em Pernambuco e conhecia Vicente há mais de 20 anos.

Como suspeitamos que a chegada de Vicente ao Maranhão tenha sido por volta de

1765, ou seja, 27 anos antes; frei Cosme e Damião o teria conhecido na infância. O

segundo atestante chamava-se Bento Machado Coelho, bacharel de Coimbra,

formado em Leis, morador da rua das Madres, na freguesia de Santos, tinha 56

anos; confirmou as informações pois conhecera Vicente em Pernambuco, onde

havia realizado a maior parte de seus estudos. Por fim, José Leite, morador de

Pernambuco que ”vivia de seus negócios”, hospedado na freguesia de Santos, na

casa do mestre sapateiro Francisco de Oliveira, de 60 anos, referendou as

informações do auto.195

Não encontramos referências posteriores sobre o seu processo de

nobilitação. Mas a julgar pelas exigências régias para reconhecimento de nobreza,

Vicente não cumpriu com os requisitos mínimos. A principal função em informar a

descendência consistia, justamente, em comprovar as ligações consangüíneas com

um antepassado nobre. Quando essa descendência era recente, bastavam apenas

três gerações. Entretanto, como vimos, Vicente mencionara apenas os pais e os

avós paternos, de modo que o seu auto de justificação de nobreza dificilmente o

habilitou para tal.196

193

ANTT, CCVC, 004/0032/00025 194

Idem 195

Idem 196

NIZZA DA SILVA, op. cit., p. 215

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Fazer-se nobre estava longe do alcance de Vicente, mas restava,

contudo, a distinção e a honra dos hábitos das ordens militares, o que lhe conferiria

o status de cavaleiro.

Dez anos mais tarde, Vicente ainda não havia alcançado a nobreza que

tanto almejava. Depois de várias súplicas indeferidas197, conseguiu a mercê do

hábito da Ordem de Cristo, tradicionalmente concedido àqueles que ocupavam os

maiores postos civis, militares e políticos.198 O hábito garantiria a Vicente uma tença

vitalícia anual de doze mil réis.199

Todos os outros coronéis do Maranhão já haviam recebido a graça há

muito tempo, dentre eles Antonio Correa Furtado de Mendonça, que ficara com a

vaga de Vicente no terço de Alcântara. A de Vicente vinha sendo negada

sistematicamente.

O despacho do secretário de Estado da Marinha e Ultramar trazia a

informação de que, pelos serviços militares prestados e pela patente que possuía,

Vicente estava habilitado para receber o hábito da Ordem de São Bento de Avis,

cuja tença era de duzentos mil réis – honraria raramente concedida a oficiais

auxiliares. Entretanto, como solicitara o hábito da Ordem de Cristo, ficaria com a

tença de doze mil réis.

Uma fina ironia régia.

197

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 108, doc. 8516, caixa 109, doc. 8567, caixa 123, doc. 9343 198

NIZZA DA SILVA, op. cit., p. 203 199

AHU, Maranhão, Avulsos, caixa 123, doc. 9343

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EPÍLOGO

Vicente Ferreira Guedes nasceu por volta de 1734, em Olinda,

Pernambuco. Mestiço, às vezes era chamado de mulato, às vezes de pardo, às

vezes de preto. No entendimento geral da sociedade da época, era um homem de

cor.

Era filho legitimado de João Ferreira Guedes e de Luiza Soares Ferreira,

provavelmente escrava ou forra; seus avós paternos eram Jeremias Ferreira Guedes

Alcoforado e Ana Guedes Mouzinho. Os Guedes Alcoforado, família de presença

antiga nas capitanias de Pernambuco e da Paraíba, têm registros que remontam à

primeira metade do século XVII.

Em 1752, por volta dos 18 anos, Vicente ingressou voluntariamente como

soldado no Regimento da Infantaria paga de Recife, onde permaneceu até 1759.

Provavelmente dispunha de pouco ou nenhum recurso na época, uma vez que as

tropas de linha (nome usual para as tropas pagas) eram geralmente procuradas por

indivíduos considerados pobres ou desclassificados, que não possuíam ofícios ou

outras perspectivas de subsistência.

Depois de obter baixa, Vicente ingressou como ajudante no Terço de

Homens Pardos das Ordenanças de Recife, tropas conhecidas como regulares, que

congregavam toda a população masculina que não estivesse ligada às tropas

auxiliares (ou milícia) ou tropas de linha. As ordenanças eram consideradas bem

menos rígidas, pois não possuíam obrigatoriedade de exercícios militares. Os

membros das ordenanças possuíam algum tipo de renda, uma vez que não

recebiam soldo e tinham que arcar com as despesas de fardamento e armamento.

Logo, é provável que Vicente já dispusesse de rendimentos melhores nessa época,

de modo que não precisasse depender do mísero soldo que a Coroa destinava à

soldadesca.

Enquanto esteve nas ordenanças, Vicente conseguiu se destacar. O

sargento-mor de seu terço, impedido por motivo de doença, delegou a ele a

responsabilidade de passar em revista outros terços, no interior do estado, o que lhe

rendeu elogios na sua folha corrida de serviços militares.

Sabemos que Vicente ficou no terço de ordenanças até 1762.

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Em algum momento entre 1765 e 1767, Vicente foi capturado no sertão

de Aldeias Altas (atual Caxias), já na capitania do Maranhão. Preso, foi mandado a

São Luís, suspeito de ser escravo. Já na capital, permaneceu na cadeia por algum

tempo, mas não há referência de quanto tempo teria durado seu encarceramento.

Sua próxima aparição se deu em 1771 quando, já membro da Irmandade

de Nossa Senhora da Conceição dos Homens Pardos, passou a administrar a

confraria. Nesse mesmo ano, encarregado de organizar as celebrações por ocasião

da Semana Santa, solicitou o empréstimo de uma relíquia ao cabido da Sé, que

negou o pedido. Vicente então, solicitou a um certo capitão, que sabidamente

possuía uma relíquia do santo lenho (um alegado pedaço da cruz de Cristo), que a

emprestasse à Irmandade. Logrou sucesso, e, na quinta-feira santa, organizou e

liderou uma procissão com seus confrades, colocando ele mesmo a relíquia no

banco mais alto do altar. Aos companheiros que acharam estranho,(pois Vicente não

era religioso autorizado) explicou que não havia problema: se os católicos podiam

carregar crucifixos no pescoço, podiam carregar pedaços do santo lenho nas mãos.

Entre 1772 e 1774, teria cometido um crime, ou infração, envolvendo uma

espada. Há duas versões: a espada teria sido carregada fora da cinta ou teria sido

trazida debaixo de um capote.

Por conta dessas acusações, o juiz de fora Henrique Guilhon, em 1777,

não quis aceitar sua nomeação para vogal da Junta de Justiça – cargo que Vicente

havia conseguido por indicação de Joaquim de Melo e Póvoas, governador do

Maranhão e seu simpatizante.

Para rebater as acusações, Vicente lembrou que o mesmo Guilhon o

tinha provido, dois anos antes, na função de repartidos de órfãos e um ano mais

tarde havia assinado sua patente de capitão de auxiliares pedestres, em 1775 e

1776 respectivamente.

Àquela altura, Vicente já advogava nos auditórios do Maranhão, pelo

menos desde 1775, pois em 1778 havia solicitado à rainha renovação de sua licença

por mais três anos – tendo sido atendido. Exercia a advocacia por meio de provisão,

pois não era formado em Coimbra e por isso não possuía o título de bacharel.

Apesar da oposição de Guilhon, o governador confirmou a nomeação de

Vicente na vaga da Junta de Justiça. Justificou sua escolha alegando que o

escolhido era „o melhor letrado da cidade, e por isso mesmo contava com a antipatia

do juiz‟. Guilhon se queixou à Coroa, acusando Vicente de influenciar o governador

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Melo e Póvoas e fomentar intrigas; para reforçar sua queixa, alegou que Vicente era

escravo fugido da Bahia, onde havia cometido crimes.

No ano de 1778, Vicente deu um passo importante na sua ascensão

social: arrematou um dos contratos de dízimos da capitania, o de Aldeias Altas, no

valor de 920 mil réis. Curiosamente, do mesmo lugar onde havia sido preso, cerca

de 13 anos antes. Antes do fim do ano, Melo e Póvoas o recomendou à Coroa para

ocupar o cargo de procurador da Coroa e Fazenda do Maranhão. Apesar de todos

os elogios, Vicente não foi nomeado.

Em 1779, Vicente foi denunciado à Inquisição, acusado de libertinagem.

Após ler um livro de inspiração iluminista, defendeu, durante uma conversa informal,

que a autoridade dos padres e dos papas era a mesma, pois a primazia de que

dispunham os papas era conseqüência do poder de Roma, e não de uma escolha de

Deus.

À acusação de libertinagem, somou-se outra, de heresia, baseada no

episódio ocorrido oito anos antes, durante a procissão da Irmandade. Não sendo

religioso autorizado, Vicente não tinha direito de conduzir uma procissão ou de levar

uma santa relíquia até um altar.

Nove testemunhas foram ouvidas em relação às duas acusações, mas

não houve citações posteriores. Nenhum dos futuros opositores de Vicente jamais

relatou a inquirição de 1779.

O governo de Melo e Póvoas acabou naquele ano e no seu lugar assumiu

D. Antonio Sales e Noronha. Na mesma época, começava a devassa de Henrique

Guilhon, pois a Coroa já havia nomeado outro juiz de fora, José Tomás da Silva

Quintanilha Cerca de um mês depois, Vicente foi preso a mando de Miguel

Marcelino Veloso e Gama, ouvidor do Maranhão e amigo de Guilhon. A prisão durou

nove dias.

Vicente se queixou à rainha alegando que havia sido preso com um único

propósito: o de se evitar que ele denunciasse um arrancamento de folhas em alguns

livros da Real Fazenda (sob responsabilidade de Guilhon) durante a devassa. Além

do arranque, as folhas teriam sido substituídas, configurando fraude. Também se

queixou dos procedimentos quando da sua prisão. Alegou que por se capitão de

auxiliares, gozava de privilégios, e um deles era o de não ser preso por meirinho,

como havia acontecido.

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No decorrer do ano, Vicente, Guilhon e Veloso e Gama continuaram

trocaram acusações em vários requerimentos dirigidos à Coroa.

Em janeiro do ano seguinte, 1781, Vicente foi desterrado para sua

fazenda no Itapecuru, onde ficou até abril. Mais tarde, queixou-se à rainha sobre os

prejuízos causados pelo seu degredo. Relatou que possuía engenho, fábrica de

beneficiar arroz e 42 escravos nos arredores de São Luís, mas que fora ordenado

abandonar o local em 24 horas, gerando perdas. Vicente alegou que, como

arrematador de um dos contratos da capitania, ainda tinha dívidas a pagar à Coroa.

Mesmo após voltar do desterro Vicente continuou denunciando Guilhon e

Veloso e Gama, reclamando também dos procedimentos do governador Sales e

Noronha.

Em agosto, sua casa foi cercada por uma tropa; foi conduzido à prisão,

onde ficou sob vigilância constante de sentinelas, sem autorização para se

comunicar com sua esposa e instruí-las sobre os negócios. Apesar das inúmeras

súplicas de Maria Rosa, esposa de Vicente, à rainha, e dos vários despachos

favoráveis à sua soltura, Sales e Noronha retardou ao máximo sua libertação, o que

só ocorreu em 1782, em meados de março.

No final do ano, Vicente, homem de cor, foi nomeado para o posto de

mestre-de-campo do Terço Auxiliar de homens brancos de Alcântara, o mais

tradicional e disputado da capitania.

A escolha de Vicente gerou uma tormenta de queixas e petições.

Reclamaram os vereadores da câmara de São Luís, da câmara de Alcântara e os

oficiais do terço. Sales e Noronha apoiou as queixas dos colonos.

A principal alegação dos queixosos consistia na ausência de qualidade de

Vicente. Tradicionalmente, os oficiais comandantes eram da mesma qualidade dos

homens do terço. Assim, Vicente, considerado indigno de procedimento por ser

mestiço, não estava apto a comandar o terço de Alcântara, composto de homens

brancos, de grosso cabedal.

Vicente passou o ano todo defendendo sua permanência do posto de

mestre-de-campo do terço de brancos de Alcântara, tecendo críticas aos seus

opositores e buscando apoio para sua causa.

No início de 1784, o Maranhão já possuía um novo governador, Teles da

Silva, e um novo ouvidor, Julião Francisco Xavier da Silva Sequeira Monclaro. Pouco

tempo depois, Vicente recebeu uma notificação de Monclaro para apresentar sua

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carta-patente em juízo, ameaçando anulá-la caso o mestre-de-campo não o fizesse.

Vicente não a apresentou e denunciou Monclaro à rainha.

Em maio, Teles da Silva o impediu de passar a tropa do terço em revista,

alegando temer pela segurança de Vicente. O mestre-de-campo hesitou, porém

disse que concordaria apenas se este lhe passasse a ordem por escrito. Com o

documento em mãos, Vicente redigiu outra queixa à Lisboa denunciando a atitude

do governador.

Foi novamente desterrado em julho. Por ocasião da chegada do novo

bispo do Maranhão, frei D. Antonio de Pádua, Vicente voltou a São Luís em outubro,

mas dois dias depois já havia sido expulso novamente.

Durante o degredo, Vicente dedicou-se à lavoura de algodão,

conseguindo grandes colheitas, mas um incêndio criminoso em sua fazenda em

setembro de 1785, seguido do assassinato de um de seus escravos dias depois, fez

com que Vicente voltasse a implorar a Teles da Silva pelo fim do desterro.

Como o governador não lhe respondia, Vicente passou a escrever

súplicas à rainha; mesmo assim, precisou esperar até o fim do ano seguinte para

poder voltar à capital Ficara desterrado por dois anos e meio.

De volta a São Luís, comandou finalmente o terço. O novo governador,

Fernando Pereira Leite de Foios, observou que os oficiais serviam com „violência‟.

Apesar de possuir amigos influentes no Conselho Ultramarino, Vicente

não conseguiu manter o posto para o qual havia sido nomeado seis anos antes. Em

1788, a Coroa decidiu nomear um homem branco para o terço de Alcântara, e

transferir Vicente para o comando de um terço de índios.

Sabemos que Vicente continuou administrando a Irmandade de Nossa

Senhora da Conceição dos Homens Pardos até, pelo menos, 1798, quando foi

acusado por um advogado de São Luís de aproveitar-se da ignorância de seus

confrades para usar em benefício próprio, os dízimos e rendas doados à entidade,

deixando a igreja à beira da ruína.

Vicente teve quatro filhos: um menino com a primeira esposa; e duas

meninas e outro menino com uma mulher „solteira‟. Quando pediu habilitação de

seus três filhos últimos, alegou que sua esposa, Maria Rosa, havia „se ausentado

dele‟ em meados de 1790, com rumo desconhecido.

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Em 1802, Vicente Ferreira Guedes foi agraciado com o Hábito da Ordem

de Cristo e uma tença vitalícia no valor de 200 mil réis – uma das maiores honrarias

da época.

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