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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO
RAQUEL RIBEIRO DE MORAES
APRENDIZAGEM INVENTIVA MUSICAL: UMA SONOROFABULAÇÃO
VITÓRIA 2017
RAQUEL RIBEIRO DE MORAES
APRENDIZAGEM INVENTIVA MUSICAL: UMA SONOROFABULAÇÃO
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Educação, na linha de pesquisa Educação e Linguagens. Orientador: Prof. Dr. César Pereira Cola.
VITÓRIA
2017
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Setorial de Educação,
Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Moraes, Raquel Ribeiro de, 1961- M827a Aprendizagem inventiva musical : uma sonorofabulação /
Raquel Ribeiro de Moraes. – 2017.
221 f. : il. Orientador: César Pereira Cola. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do
Espírito Santo, Centro de Educação.
1. Adolescência. 2. Aprendizagem. 3. Criatividade. 4.
Infância. 5. Música – Estudo e ensino. I. Cola, César Pereira, 1956-. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.
CDU: 37
Ao meu pai, Heráclito Rodrigues de Moraes (In memorian), com quem aprendi que a vida acontece nas relações, nas quais transitam diferentes pontos de vista sobre os fenômenos e os fatos.
À minha mãe, Wanda Ribeiro dos Santos, cuja sensibilidade artística influenciou minha visão sobre aprendizagem musical.
Especialmente, às crianças e adolescentes aluno(a)s de piano do Curso de Musicalização Infantil da Faculdade de Música do Espírito Santo Maurício de Oliveira e às suas famílias, parceiro(a)s integrais na concretização deste trabalho.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho só se tornou possível mediante o apoio, a confiança e o incentivo de diferentes pares que me acompanharam ao longo de sua execução, incentivando-me em diferentes situações, desde as mais adversas àquelas que correspondem à alegria das descobertas. É assim que agradeço:
− ao professor Dr. César Cola, por sua orientação competente, contribuindo de forma decisiva para a ampliação do meu olhar sobre as questões que constituem a aprendizagem no campo da arte;
− à professora Dra. Moema Lúcia Martins Rebouças, por integrar a banca de avaliação desta pesquisa;
− ao professor Dr. Hiran Pinel, pelas contribuições instigantes nos exames de qualificação I e II.
− à professora Dra. Sílvia Trugilho, por ter aceitado o convite para compor o processo avaliativo deste estudo;
− à professora Dra. Magali de Oliveira Kleber, pela disponibilidade de integrar a banca avaliadora desta pesquisa;
− à pianista e professora Célia Ottoni, por sua orientação musical em grande parte do percurso de meus estudos pianísticos, bem como por sua disponibilidade para diálogos concernentes à aprendizagem pianística no âmbito desta pesquisa;
− a Dalva Nickel e Marilene Loyola, respectivamente, coordenadora e secretária do Curso de Musicalização Infantil da Faculdade de Música do Espírito Santo Maurício de Oliveira, pelo apoio na condução dos trabalhos e disponibilização de dados;
− à professora Dra. Andressa Nathanaílides, por sua disponibilidade para a troca ideias, trazendo contribuições significativas para os conteúdos dissertados neste trabalho, enriquecendo o resultado final;
− à Joelma De Riz, revisora competente, que estabeleceu uma fina sintonia com a proposta deste estudo, trazendo perguntas indispensáveis ao esclarecimento das principais ideias nele contidas.
Ninguém entra em um rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já serão outras.
Heráclito de Éfeso
RESUMO
A expressividade musical no âmbito da aprendizagem pianística entre crianças e adolescentes tem se constituído, na atualidade, como temática de pesquisas, sinalizando para uma relação entre os processos de aprendizagem e a capacidade de expressão. Os trabalhos desenvolvidos por França (2000), Espiridião (2003), Borém (2006), Ray (2006), Gouveia (2010), Almeida (2014) e Gerling e Santos (2015) trataram da questão da expressividade musical, indicando a necessária investigação dos processos pedagógicos nela imbricados. Assim, restringindo-nos à aprendizagem pianística na infância e adolescência e tendo como referência o pensamento dos filósofos Deleuze e Guattari (2011), a investigação relatada nesta tese objetivou delinear cartografias que emergem no desenvolvimento da capacidade de expressão musical desse público, a partir da utilização de uma abordagem inventiva, participativa e experiencial. Para tanto, inicialmente, foram identificadas as principais concepções concernentes à expressão musical e caracterizadas as formas educativas no âmbito da aprendizagem da arte dos sons na infância em diferentes períodos históricos. O processo cartográfico foi realizado de fevereiro a dezembro de 2016, envolvendo 11 crianças e adolescentes (10 a 15 anos), aluno(a)s do Curso de Musicalização da Faculdade de Música do Espírito Santo (Fames) Maurício de Oliveira. A cartografia foi produzida a partir de um processo de intervenção composto por momentos individuais e coletivos. Nestes, foram realizadas oficinas com temáticas que se definiram ao longo do processo, a partir da observação das necessidades do(a)s aluno(a)s e sempre em negociação com ele(a)s. Desse modo, ocorreram cinco oficinas, nesta ordem: textura, modelagem de piano (piano preparado de John Cage), peso do corpo, funcionamento do piano, estilos musicais e pianistas. A produção de dados foi feita com gravação de imagens, observação e a partir dos diálogos mantidos durante os encontros. A análise foi realizada tendo-se como base os conceitos de fabulação e expressão dos filósofos mencionados, bem como com os conceitos de aprendizagem propostos por Deleuze (2003, 2006), Kastrup (2000, 2001, 2008), Maturana (1998) e Maturana e Varela (2001). Na cartografia resultante do processo de investigação, delinearam-se sete territórios. No conjunto, a investigação mostra que o desenvolvimento da capacidade expressiva no âmbito da música não se situa à margem das formas instituídas socialmente, sendo forjada no cruzamento das linhas e dos espaços que compõem as relações e as formas de pensamento, incluindo-se aí as concepções de expressão musical e aprendizagem, levando-nos à elaboração do conceito de sonorofabulação. Palavras-chave: Expressão. Piano. Infância e adolescência. Inventividade
ABSTRACT
Musical expressivity in the field of piano learning among children and teenagers is currently a theme of research, indicating a relation between the processes of learning and the capacity of expression. Work carried out by França (2000), Espiridião (2003), Borém (2006), Ray (2006), Gouveia (2010), Almeida (2014) and Gerling and Santos (2015) dealt with the issue of musical expressivity, indicating the need to investigate the interwoven pedagogic processes. Therefore, restraining ourselves to the piano learning during childhood and adolescence and having as reference the thoughts of the philosophers Deleuze e Guattari (2011), the investigation reported in this thesis aimed to outline cartographies that emerge in the development of the capacity of musical expression of the referred public, from the use of an inventive, participative and experiential approach. For this purpose, initially, the main concerning conceptions were musical expression and educational forms in the field of learning of the art of sounds in childhood in different periods of history were identified. The cartographic process took place from February to December 2016, and involved 11 children and teenagers (from 10 to 15 years old), students from the course of musicalization from the College of Music of the state of Espírito Santo (Fames) Maurício de Oliveira. The cartography was produced by means of an intervention process composed in individual and collective moments. Thematic workshops were defined throughout the process, considering the needs of the students and always negotiating with them. In this manner, five workshops took place, in the following order: texture, piano modeling (piano prepared of John Cage), weight of the body, functioning of the piano, musical styles and pianists. The data production was done through the recording of images, observation and consideration the dialogs that took place during the meetings. The analysis was based on the concepts of fabulation and the expression of the mentioned philosophers, as well as the concepts of learning proposed by Deleuze (2003, 2006) Kastrup (2000, 2001, 2008), Maturana (1998) and Maturana and Varela (2001). In the cartography generated by the investigation process, seven territories were outlined. All together, the investigation shows that the development of the expressive ability in the musical field isn‟t different from what is established socially. It is forged in the intersections of the lines and spaces that compose the relations and the forms of thought, including the conceptions of musical expression and learning, leading us to the elaboration of the concept of soundfabulation.
Keywords: Expression. Piano. Childhood and adolescence. Inventivity.
RESUMEN
La expresividad musical en el ámbito del aprendizaje pianístico entre niños y adolescentes se ha constituido, en la actualidad, como temática de estudio, señalando una relación entre los procesos de aprendizaje y la capacidad de expresión. Los trabajos desarrollados por França (2000), Espiridião (2003), Borém (2006), Gouveia (2010), Almeida (2014) y Gerling y Santos (2015) tratan la cuestión de la expresividad musical, indicando la necesaria investigación de los procesos pedagógicos en ella implicados. Así pués, acotando el aprendizaje pianístico en la infancia y adolescencia, y teniendo como referencia el pensamiento de los filósofos Deleuze y Guattari (2011), la investigación relatada en esta tesis tiene como objetivo delinear cartografías que emerjan del desarrollo de la capacidad de expresión musical de ese público, abordándola de una manera inventiva, participativa y experiencial. Por lo tanto, inicialmente fueron identificadas las principales concepciones referentes a la expresión musical y caracterizadas las formas educativas en el ámbito del aprendizaje del arte de los sonidos en la infancia en diferentes periodos históricos. El proceso cartográfico fue realizado de febrero a diciembre de 2016, envolviendo a 11 niños y adolescentes (de 10 a 15 años), alumnos/as del Curso de Musicalización de la Facultad de Música de Espíritu Santo (Fames) Mauricio de Oliveira. La cartografía fue producida a partir de un proceso de intervención compuesto por momentos individuales y colectivos. En ellos, fueron realizados talleres con temáticas que se fueron definiendo a lo largo del proceso, a partir de la observación de las necesidades de los/as alumnos/as, y siempre en negociación con ellos. De ese modo, tuvieron lugar 5 talleres en el siguiente orden: Textura; Modelado de piano (piano preparado de John Cage); Peso del cuerpo; Funcionamiento del piano; Estilos musicales y pianistas. La producción de los datos fue realizada con grabación de imágenes, observación y también a partir de los diálogos mantenidos durante los encuentros. El análisis fue realizado teniendo como base los conceptos de Fabulación y Expresión de los filósofos mencionados, a la vez que con los conceptos de aprendizaje propuestos por Deleuze (2003 y 2006), Kastrup (2000, 2001 y 2008), Maturana (1998) y Maturana y Varela (1998). En la cartografía resultante del proceso de investigación se delinearon 7 territorios. En conjunto, la investigación muestra que el desarrollo de la capacidad expresiva en el ámbito de la música no se situa al margen de las formas constituidas socialmente, siendo forjada ésta al cruzar las líneas y los espacios que componen las relaciones y las formas de pensamiento, incluyéndose las concepciones de expresión musical y aprendizaje, y llevándonos a la creación del concepto de sonorofabulación.
Palabras clave: Expresión. Piano. Infancia y adolescencia. Inventividad.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - O mestre da música, obra de Fletcher Charles Ransom .......................... 18
Figura 2 - Escrita por neumas ................................................................................... 22
Figura 3 - Jovem tocando clavicórdio, pintura de Jan van Hamessen (1534) ........... 55
Figura 4 - O concerto, óleo sobre tela de Gerrit van Honthorst (1624) ...................... 55
Figura 5 - Mulher sentada ao virginal, óleo sobre tela de Vermeer (1675) ................ 60
Figura 6 - Piano de Bartolomeo Christofori (1720) .................................................... 63
Figura 7 - Piano no século XIX .................................................................................. 70
Figura 8 - Piano no século XX ................................................................................... 80
Figura 9 - Sarau, o reencontro, óleo sobre tela retratando a participação musical das crianças ..................................................................................................................... 94
Figura 10 - Serenata, óleo sobre tela, Portinari (1925) ............................................. 96
Figura 11 - Modelo de Russel ................................................................................. 101
Figura 12 - Acorde de ré menor seguido de alteração de uma nota, que modifica seu afeto - canção Dear hearts and gentle people, de Sammy Fain e Bob Hilliard (1949)106
Figura 13 - Início da composição Danse, de Claude Debussy (1890) ..................... 110
Figura 14 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890) .................. 111
Figura 15 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890) .................. 112
Fonte: partitura avulsa usada na Fames ................................................................. 112
Figura 16 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890) .................. 113
Figura 17 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890) .................. 114
Figura 18 - Trecho do Estudo Op. 25 nº, de Chopin ............................................... 119
Figura 19 - Trecho do Estudo Op. 25 nº, de Fréderic Chopin (1837) ...................... 120
Figuras 20 e 21 - Glenn Gould, que criou maneira própria de tocar piano, rompendo o modelo instituído .................................................................................................. 124
Figura 22 - Karla, em período de leituras e estudos iniciais (março, 2016) ............. 146
Figuras 23 e 24 - Anderson e Júlia, em período de leituras e estudos iniciais (março, 2016) ....................................................................................................................... 146
Figura 25 - Aluno(a)s do segundo grupo e eu na oficina de texturas (setembro, 2016) ....................................................................................................................... 151
Figura 26 - Leonardo (esquerda) observa Ângelo experienciar o algodão na oficina de texturas para o primeiro grupo (setembro, 2016) ............................................... 151
Figura 27 - Júlia, experienciando o algodão na oficina de texturas para o primeiro grupo (setembro, 2016) .......................................................................................... 152
Figura 28 - Lídia (esquerda), sendo observada por Karla ao experienciar a textura de um coral marinho na oficina de texturas para o segundo grupo (setembro, 2016).. 153
Figura 29 - Ariana, explanando sobre aspectos das peças A bela e a fera e Burlesque ................................................................................................................ 155
Figura 30 - Lídia, explorando as diferenças nos efeitos sonoros das cordas do piano157
Figura 31 - Ângelo, estudando detalhes de um minueto de Bach ........................... 158
Figura 32 - Sofia, durante estudo ............................................................................ 159
Figura 33 - Alunos durante a oficina de modelagem do piano com diferentes materiais .................................................................................................................. 161
Figura 34 - Rodeado pelos colegas, Anderson, ao piano, experiência as sonoridades inusitadas do piano modelado. ................................................................................ 162
Figura 35 - Selena, apreciando a movimentação dos martelos ao tocar um minueto de Bach ................................................................................................................... 165
Figura 36 - Karla, explicando sobre o caráter marcial de uma música de seu repertório ................................................................................................................. 166
Figura 37 - Aline, mostrando como faziam “seus” fantasmas na peça Bruxas e fantasmas ................................................................................................................ 167
Figura 38 - Em sentido horário, Selena, Ângelo, Júlia e eu nas atividades da oficina do peso do corpo ..................................................................................................... 170
Figura 39 - Em sentido anti-horário, Selena, eu, Júlia, Leonardo e Ângelo, na roda de conversa sobre as atividades da oficina do peso do corpo ..................................... 171
Figura 40 - Aluna Nina observa o afinador Lucas Velasque (ao piano) discorrer para o(a)s participantes desta pesquisa sobre os efeitos do uso do pedal durante a oficina de funcionamento do piano ..................................................................................... 174
Figura 41 - Alunas visualizam a parte interna do piano na sala usada para conserto dos pianos da Fames, acompanhadas pelo afinador Lucas Velasque .................... 175
Figura 42 - Da esquerda para a direita, Karla, Nina, Lídia, Ariana, Franco, Anderson e Lucas observam atentamente o pianista Vladimir Horowitz durante exibição de vídeo ....................................................................................................................... 176
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 14
1.1 CONTEXTO ........................................................................................................ 14
1.2 QUESTÃO DE INVESTIGAÇÃO ......................................................................... 24
1.3.1 Objetivo geral ................................................................................................... 25
1.3.2 Objetivos específicos........................................................................................ 25
1.4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ............................................................ 25
1.4.1 Cartografia deleuziana ..................................................................................... 25
1.4.2 Sobre o território de pesquisa .......................................................................... 29
1.4.3 Participantes da pesquisa ................................................................................ 33
1.5 REFERENCIAL TEÓRICO .................................................................................. 38
1.6 ESTRUTURA DO TRABALHO ............................................................................ 41
2 EXPRESSÃO E APRENDIZAGEM MUSICAIS EM DIFERENTES TEMPOS E ESPAÇOS ................................................................................................................. 42
2.1 CONCEPÇÕES, SONORIDADES E EDUCAÇÃO MUSICAL ............................. 42
2.1.1 Roma antiga ..................................................................................................... 46
2.1.2 Idade Média ...................................................................................................... 51
2.1.3 Renascença ..................................................................................................... 53
2.1.4 Períodos barroco e clássico ............................................................................. 59
2.1.5 Romantismo ..................................................................................................... 68
3 EXPRESSÃO MUSICAL NO BRASIL ................................................................... 84
3.1 SÉCULOS XVI E XVII ......................................................................................... 84
3.2 SÉCULO XVIII ..................................................................................................... 89
3.3 SÉCULO XIX ....................................................................................................... 92
3.4 SÉCULOS XX E ATUALIDADE ........................................................................... 95
4 EXPRESSÃO MUSICAL: UMA SONOROFABULAÇÃO .................................... 104
4.1 EXPRESSÃO EM DELEUZE E GUATTARI ...................................................... 104
4.1.1 Formação de territórios na música: um exemplo a partir da composição Danse,
de Claude Debussy ................................................................................................. 109
4.2 FABULAÇÃO EM DELEUZE E GUATTARI ...................................................... 115
4.2.1 Fabulação e suas áreas de vizinhança .......................................................... 125
4.3 SOBRE O ENTENDIMENTO DE ARTE EM DELEUZE E GUATTARI .............. 128
4.4 RELAÇÕES ENTRE FABULAÇÃO E A APRENDIZAGEM EM DELEUZE E
GUATTARI, KASTRUP E MATURANA ................................................................... 132
5 DIÁLOGOS E VIVÊNCIAS COMO POSSIBILIDADES NO FAZER MUSICAL ENTRE CRIANÇAS E ADOLESCENTES............................................................... 143
5.1 PRIMEIRO TERRITÓRIO (FEVEREIRO-MAIO/2016) ...................................... 145
5.2 FORMANDO-SE UM SEGUNDO TERRITÓRIO (MAIO-AGOSTO/2016) ......... 147
5.3 CONSTITUINDO UM TERCEIRO TERRITÓRIO (05 E 12 DE SETEMBRO/2016)
................................................................................................................................ 150
5.3.1 Oficina de texturas ......................................................................................... 150
5.4 QUARTO TERRITÓRIO (13 A 25 DE SETEMBRO/2016) ................................ 154
5.5 QUINTO TERRITÓRIO (QUARTA SEMANA DE OUTUBRO/2016) ................. 159
5.5.1 Oficina de modelagens no piano .................................................................... 159
5.6 SEXTO TERRITÓRIO (INÍCIO DE NOVEMBRO-2016) .................................... 164
5.6.1 Oficina de peso do corpo ................................................................................ 169
5.7 SÉTIMO TERRITÓRIO: COMPONDO NOVAS ROTAS (15 DE NOVEMBRO A
10 DE DEZEMBRO/2016) ....................................................................................... 172
5.7.1 Oficina de funcionamento do piano ................................................................ 172
5.7.2 Oficina de estilos musicais e pianistas ........................................................... 175
5.8 ANÁLISE GERAL .............................................................................................. 177
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 202
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 210
ANEXO – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO .................. 220
14
1 INTRODUÇÃO
1.1 CONTEXTO
A problemática da expressividade no campo da aprendizagem da performance
instrumental na infância e adolescência vem sendo tratada por diferentes
pesquisadores no âmbito da música, vinculando os estudos às áreas da linguagem
ou da psicologia.
Tratando diretamente das principais tendências de pensamento relativas à
expressão musical do século XX, identificamos a teoria de Swanwick (2003) –
vinculada à linguagem - investindo na ideia de música como um processo
metafórico. Apoiando-se em estudos realizados por Mac Cormac, Ortony, Sacks,
Wheelwright e Roger Scruton, Swanwick (2003) sugeriu que todas as práticas
musicais, bem como os elementos que compõem uma obra, tais como as notas, os
timbres e ritmos, são maneiras de expressar ideias e sentimentos por substituição de
elementos da linguagem, levando-nos a ver que
esses materiais sonoros devem ser presumidos dentro de um novo enfoque. Podemos ter de esquecer o que sabemos sobre „dó‟ e „sol‟, para poder dar o salto metafórico, para ouvir uma série prévia de nomes de notas como uma forma expressiva. [...] Embora as melodias sejam feitas de notas, uma atenção exclusiva às notas nos afasta das melodias (SWANWICK, 2003, p. 62)
Esse musicólogo apresentou não somente uma concepção de música, mas um
arcabouço teórico no qual a obra musical é entendida como um processo metafórico,
que ocorre em níveis, em uma espiral. Assim, a teoria espiral por ele elaborada é
composta de três níveis metafóricos, a saber: o primeiro nível, “[...] quando
escutamos „notas‟ como se fossem melodias, soando como formas expressivas [...]”;
o segundo nível, “[...] quando escutamos essas formas expressivas assumirem
novas relações [...]”; o terceiro, “[...] quando essas formas parecem fundir-se com
nossas experiências prévias [...]” (SWANWICK, 2003, p. 28).
No que se refere aos trabalhos que vinculam a expressividade musical ao campo da
psicologia, destacam-se as propostas de Juslin (1997, 2003), que se situa como
principal linha de reflexão na atualidade, principalmente entre professores-
pesquisadores brasileiros ligados à performance instrumental.
15
Os trabalhos investigativos de Juslin (1997) partem do princípio de que performance
musical é uma ato comunicativo, implicando uma correlação probabilística entre as
intenções do instrumentista e as decodificações do ouvinte. Suas pesquisas
concentram-se no campo da psicologia, baseando-se na teoria funcionalista de
Brunswick (1903-1955), cujo modelo de lente procura selecionar e categorizar as
sensações e emoções conforme sua validade no contexto de audição. Apoiado
nessa ideia, Juslin desenvolveu suas pesquisas aplicando, de maneira sistemática, a
perspectiva funcionalista ao estudo da comunicação emocional na performance
musical, buscando evidenciar a existência de uma correlação probabilística entre as
emoções intencionadas por um instrumentista e o ouvinte, concluindo que
[...] (a) as intenções expressivas de instrumentistas afetaram todas as categorias de medida das performances, (b) que as categorias tinham apenas uma relação probabilística para as intenções do instrumentista, e (c) que as categorias apresentaram correlação. As performances foram igualmente validadas em uma audição experimental, a qual mostrou que os ouvintes foram bem-sucedidos na decodificação das intenções da expressão emocional e que não houve diferenças na decodificação acurada entre ouvintes musicalmente treinados e não-treinados [sic] (JUSLIN, 1997, p. 1, tradução minha).
No Brasil, a questão da expressão musical vem sendo investigada por
pesquisadores tais como França (2000), Borém (2006), Ray (2006), Gerling e
Santos (2015), defendendo que o cerne da problemática incide nas questões
educativas, ou mais precisamente, no modelo de aula que não propicia o seu
desenvolvimento.
O trabalho de França (2000), que comparou, a partir de gravações, crianças tocando
suas próprias composições e tocando peças do repertório escolar. Essa
investigação evidenciou diferenças importantes na capacidade de expressão de uma
mesma criança nas duas situações: na execução de suas próprias composições, as
crianças revelaram capacidade técnica para produzir as sonoridades desejadas, pois
estavam “[...] expressando seu próprio pensamento musical, com suas formas,
expressividade e significado [...]” (FRANÇA, 2000, p. 53).
Essa pesquisadora ressaltou que, na atividade de compor, os alunos “[...] têm a
oportunidade de „falar‟ por eles mesmos” (FRANÇA, 2000, p. 53); já no caso da
execução da peça do repertório, para a qual os alunos tiveram seis meses para se
preparar, ela verificou que “[...] os gestos cadenciais, muitas vezes revelados em
16
suas composições, desapareciam por completo nas suas performances” (FRANÇA,
2000, p. 57). A conclusão de sua investigação sugere que o uso da técnica musical
está sempre associado ao “[...] propósito imediato de expressar uma ideia ou efeito
desejado [...]” (FRANÇA, 2000, p. 57). Essa pesquisadora tratou, ainda, da questão
das performances desprovidas de sentido estético, explanando que
todo o prazer e a realização estética da experiência musical [são] [...] facilmente substituídos por uma performance mecânica, comprometendo o desenvolvimento musical dos alunos. Não raro, sua performance resulta sem um sentido musical, sem caracterização estilística, sem refinamento expressivo e/ou coerência. Só é possível a um indivíduo tomar decisões expressivas dentro de uma gama de exigências técnicas que ele possa controlar (FRANÇA, 2000, p. 59).
Guiando-se também por tal linha de pensamento, Borém (2006) desenvolveu
estudos vinculando a problemática da aprendizagem da performance aos processos
educativos, indicando a necessária documentação das reflexões e experiências dos
professores no ato de fazer e ensinar música, principalmente no que diz respeito a
métodos que propiciem aos alunos o fazer musical como fazer artístico,
[...] para que o trabalho envolvido no processo de ensinar um instrumento nos seus diversos níveis – leitura, obediência e desobediência à partitura, decisões técnico-interpretativas, gestual e interação com o público – não se perca na efemeridade dos concertos ou na frágil transmissão oral de conhecimentos das salas de aula [...] (BORÉM, 2006, p. 46).
Ray (2006, p. 40) corrobora tal pensamento, assinalando a necessidade de novos
fundamentos para nortear o trabalho do professor de música, ressaltando que “[...] a
transmissão do conhecimento precisa de ferramentas teóricas e práticas para que o
aprendizado seja estimulado”. A respeito dessa questão, Gerling e Santos (2015)
trazem a seguinte explanação:
o ensino da música instrumental tem sido visto e praticado de maneira tediosa, desligada de emoção, afeto, criatividade ou qualquer sentimento de apreciação musical, salvo a questão da precisão e da realização escorreita. A busca pela perfeição técnica, diga-se, mecânica, se entendida como fim maior, pode, de fato, coibir a expressão de sentimento, afeto ou emoção (GERLING; SANTOS, 2015, p. 38).
Situando minha1 atuação profissional como professora-pesquisadora de piano para
crianças e adolescentes alunos do curso de piano do Curso de Musicalização Infantil
1 Tenho ciência de que minha atuação no mundo é perpassada pela participação de muitos atores
com os quais tive e tenho a oportunidade de conviver. Se sou, sou com o outro. No entanto, nesta tese, optei por usar uma mescla de conjugações verbais: a primeira pessoa do singular é usada
17
da Faculdade de Música do Espírito Santo (Fames) Maurício de Oliveira, compartilho
do olhar e da percepção dos pesquisadores brasileiros aqui mencionados, o que me
conduziu, de maneira decisiva, à produção de um processo investigativo que
propiciasse a problematização expressividade musical no âmbito da infância e
adolescência, buscando estudar os vínculos entre as formas educativas e o
desenvolvimento da capacidade de expressão.
Buscando, portanto, aprofundamento a respeito de tais vínculos, podemos verificar
que as aulas de piano, de um modo geral, têm seguido um esquema fixo, invariável,
sendo uma redundância de um modelo surgido no século XIX, que consiste no
seguinte enquadramento: o(a) aluno(a) senta-se ao piano e o(a) professor(a), em
uma cadeira, ao seu lado, ouvindo-o e fazendo comentários, bem como sugerindo
maneiras de tocar e realizar os elementos constitutivos de uma determinada
partitura. Há um baixo índice de interação e poucos movimentos, chegando o(a)
professor(a) a aproximar-se pouco do(a) aluno(a) e do instrumento.
Fernandes (2015) questionou esse formato de aula, caracterizando-o como um
modelo instituído no século XIX, baseado no paradigma musical europeu:
o modelo de educação e o repertório europeu privilegiavam as músicas dos séculos XVIII e XIX, mantendo as seguintes características: a) aulas de piano individuais; b) a técnica muito valorizada com vistas ao virtuosismo; c) os alunos mais talentosos e melhor desempenho eram premiados recebendo mais atenção e pensões para estudarem na Europa (FERNANDES, 2015, p. 20).
As características que constituem esse modelo de aula são igualmente observadas
por Jardim (2009), que concorda que nosso sistema de ensino musical é uma
reprodução do sistema europeu, pois os professores de música erudita brasileiros
tiveram sua formação profissional elaborada na Europa, o que os levou a se
impregnarem das formas educativas e musicais desse contexto. Dessa maneira,
houve uma transposição daquele modelo para o Brasil, trazendo para cá “[...] os
mesmos valores que regiam seu ensino: o virtuosismo, a extrema precisão e
fidelidade na execução, a supremacia da questão técnica – características que
marcaram a cultura musical erudita e seu ensino no Brasil” (JARDIM, 2009, p. 21).
quando as ações foram vivenciadas por mim, professora-pesquisadora-aprendiz-cartógrafa; a primeira pessoa do plural, por sua vez, é usada quando eu e o(a)s aluno(a)s, juntos, vivenciamos as ações. Esta conjugação também foi usada para situações em que o leitor pode executar determinadas ações comigo.
18
Figura 1 - O mestre da música, obra de Fletcher Charles Ransom
Fonte: Ludwig (2013)
Retomando os estudos de Fernandes (2015, p 21), verificamos que a autora retrata
o formato de aula como aquele em que “[...] o professor transmite os conteúdos e
cabe ao aluno recebê-los”, tendo como objetivo desenvolver a alta performance
instrumental.
Embora esse enquadramento de aula persista no Brasil (FERNANDES, 2015;
JARDIM, 2009), detectamos, na década de 1930, estudos relativos ao ensino
pianístico para crianças e adolescentes que buscaram reconfigurar o modelo
novecentista, aproximando sua pedagogia às características da faixa etária em
questão. Essas transformações ocorreram em consonância com o movimento
educacional escolanovista no Brasil, que influenciou o pensamento de professores
de música, inspirando-os na elaboração de novas abordagens para o processo de
ensino-aprendizagem no âmbito da infância e adolescência. Assim, pedagogos
musicais inauguraram o campo da educação musical, passando a enfatizar a
19
necessidade da vivência e a prioridade em se trabalhar a expressão musical,
entendendo a técnica como um de seus desdobramentos.
Assim sendo, no ano de 1937, identificamos o trabalho da educadora e musicista
Liddy Chiafarelli Mignone, que, com o músico Sá Pereira, criou, no Conservatório
Brasileiro de Música, no Rio de Janeiro, um curso de iniciação musical destinado a
crianças. Conforme descrito em Paz (2000, p. 63), o trabalho dessa professora
baseava-se na ideia de que os conhecimentos musicais na infância deveriam ser
adquiridos na recreação, pela intuição e ação, destacando que “[...] a criança brinca
impulsionada por uma necessidade tão primordial como a do alimento. [...] O
brinquedo musical liberta e afirma”. A musicalidade era inicialmente desenvolvida em
aulas coletivas, nas quais os ritmos eram trabalhados por meio de jogos, do canto e
de movimentos corporais, sendo encaminhados, posteriormente, para as aulas
individuais de instrumento.
Passando à década de 1940, podemos lembrar o trabalho desenvolvido pela
musicista e educadora Anita Guarnieri, no Estado de São Paulo. Constatamos em
Paz (2000) que sua atuação baseava-se na Escola Ativa, não tendo por objetivo a
formação de grandes musicistas. Suas aulas refletiam a influência da perspectiva
educacional de Jacques Dalcroze, baseando-se não somente na prática
instrumental, mas igualmente em atividades lúdicas, por meio de “[...] histórias e
projeções” (PAZ, 2000, p. 72).
Os posicionamentos desta professora apresentavam semelhanças com as
concepções de Liddy Chiafarelli, enfatizando o ponto de vista de que a educação
musical “[...] começava antes do estudo do instrumento, e começar a aprender um
instrumento sem antes estar musicalizado era como enveredar por um caminho
errado de saída” (PAZ, 2000, p. 71). Também em consonância com o ponto de vista
de Chiafarelli, Anita Guarnieri afirmava que a música não era um luxo, mas uma
necessidade natural do ser humano (PAZ, 2000).
Na esteira dessas modificações conceituais sobre o fazer musical, constatamos o
trabalho pedagógico-musical desenvolvido por Maria de Lurdes Junqueira
Gonçalves, na década de 1970, cuja proposta era desenvolver a educação musical
por meio do teclado. Conforme Paz (2000), o método por ela elaborado previa aulas
20
individuais ou em grupo, assegurando o elemento lúdico no processo de
aprendizagem. Assim, sua proposta metodológica utilizava-se das diferenças entre
as teclas brancas e pretas que formam o teclado do piano, incentivando os alunos a
brincar com os movimentos de tocar nas direções ascendente e descendente, ora
seguindo as teclas pretas, ora, as brancas, servindo-se de uma notação não
convencional. A essas sequências de sons ascendentes ou descendentes era
também associado um modelo rítmico, permitindo aos alunos criar músicas, inclusive
com a inserção de letras.
Também na década de 1970, outra proposta para o ensino de piano pode ser
observada com Carmem Mettig Rocha, a qual baseou seu trabalho no método
Willems, adaptando-o à realidade musical brasileira. Seu método envolvia exercícios
“[...] para despertar a consciência rítmica métrica, [...] audição rítmica interior e
improvisação melódica” (PAZ, 2000, p. 252).
Os trabalhos desenvolvidos por Maria de Lurdes Junqueira influenciaram de maneira
decisiva na criação de metodologias de piano em grupo nas instituições de ensino
de música no Brasil, sendo essa metodologia aplicada tanto para adultos quanto
para crianças. Brandão (1999) focaliza seu trabalho com crianças de quatro a seis
anos de idade, tendo como objetivo aulas coletivas de piano, buscando o
desenvolvimento da expressividade por meio da criação e a experimentação do
teclado. De modo semelhante a Brandão (1999), Harder Ducatti (2005) advogou a
favor de aulas de piano como meio musicalizador para crianças, apoiando-se em
atividades de composição musical.
Entre as dissertações e teses desenvolvidas no âmbito da pedagogia do piano,
identificamos aquelas que apresentam maior proximidade com a investigação aqui
relatada, que são os trabalhos de Gouveia (2010) e Almeida (2014), sinalizando para
os processos criativos na aprendizagem pianística entre crianças. Gouveia (2010)
propôs a utilização do método criado pelo compositor húngaro Gÿorky Kurtág
(1926-), cujas composições funcionam como ferramenta para propiciar a ludicidade
e o envolvimento do corpo. Almeida (2014), por sua vez, defendeu as atividades de
composição e improvisação de músicas pelas crianças na aprendizagem pianística.
21
Em um conjunto, observamos nas referidas pesquisas uma tendência à utilização do
piano como elemento musicalizador, adotando como estratégia o desenvolvimento
da criação musical, não seguindo a trajetória de se desenvolver a capacidade de
expressão das particularidades inscritas nas partituras que compõem os repertórios
dos cursos de piano no âmbito da educação musical.
No que concerne especificamente à expressão musical, verificamos que ela vem
sendo abordada sob diferentes ângulos nos diversos contextos sociais e
geográficos, englobando tanto as reflexões sobre o fazer musical quanto as
maneiras de executar as obras elaboradas pelos compositores. Assim sendo, o
ponto de partida desta investigação é a noção de que a expressão na arte dos sons
é dotada de uma historicidade, comportando significações diversas em cada
grupamento humano.
No entanto, para além dessa diversidade de significações, é consenso entre
pesquisadores o fato de que “[...] em todas as épocas estabeleceu-se alguma
relação entre a música e as paixões [...]” (SADIE; TYRRELL, 2001a, p. 466,
tradução minha). Dessa maneira, é possível observar transformações relativas à
notação musical no percurso da história, permitindo “[...] apreender as
características que os músicos esforçaram-se por privilegiar no mundo sonoro,
considerando-se as mutações do pensamento estético” (BOSSEUR, 1997, p. 99).
Na atualidade, a palavra expressão, no âmbito da música, comporta duas diferentes
significações: a primeira, vinculada à indicação de variações de dinâmica, timbre,
ênfases, alterações rítmicas, de andamento etc., formando as microestruturas de
uma performance (JUSLIN, 2003); a segunda, relacionando-se com os aspectos
emocionais da obra, que também são percebidos pelos ouvintes, que, nesse caso,
têm acesso à expressão da emoção.
Em se tratando da primeira significação, verificamos em Sadie e Tyrrell (2001a) que
as variações de ritmo, dinâmica, ênfases etc. são partes integrantes de toda
composição. A indicação precisa do desejo do compositor, porém, é uma
característica da música dos séculos XVIII em diante, especialmente dos séculos
XIX e XX. Na Idade Média, por exemplo, as sonoridades desejadas eram indicadas
por determinados sinais, denominados neumas, que não traduziam um som definido,
22
mas as relações entre sons mais agudos e mais graves, compondo um sistema mais
próximo à ideia de “[...] um lembrete, que supõe o conhecimento prévio da melodia
sugerida [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 206).
Esse tipo de representação do que se deseja expressar é própria do século IX, cujos
sinais têm origem na acentuação da linguagem verbal: “[...] acento agudo (elevação
da voz), acento grave (abaixamento da voz), acentos circunflexo e anticircunflexo
(dupla inflexão). [...] virga, indicando um som mais agudo que o precedente, e o
punctum, indicando um som mais grave” (CANDÉ, 2001a, p. 206).
Diferentes maneiras de se registrar os sons foram criadas ao longo dos séculos IX,
X e XI, sendo produzida uma unificação da escrita dos neumas no fim do século XII,
com o “[...] emprego da pena de ganso de bico largo, [...] fazendo os neumas
assumirem o aspecto característico da „notação quadrada‟” (CANDÉ, 2001a, p. 208).
Figura 2 - Escrita por neumas
Fonte: Candé (2001a)
23
Nos períodos renascentista e barroco, já com a notação atual, as composições não
traziam referências sobre a maneira de executar a obra, tendo apenas a notação
das notas e dos ritmos. Os primeiros registros relativos aos afetos musicais
intencionados pelos compositores e indicados na partitura podem ser encontrados a
partir dos séculos XVII e XVIII nas produções dos integrantes da Escola Florentina,
objetivando minimizar abusos de ornamentação sonora praticados por intérpretes,
abusos esses que traziam prejuízos à compreensão do texto musical. Com tal
estratégia, os adeptos dessa escola reduziam
[...] os ornamentos a efeitos (affetti) mais expressivos [...]. Esse interesse pela expressividade fará com que tais compositores introduzam efeitos como a esclamazione (o descrescendo e o crescendo de uma nota) e o rubato (literalmente, “roubado”), que consiste em relaxar a rigidez do tempo: o rubato viria a influir consideravelmente sobre a interpretação durante o romantismo, em particular sobre a interpretação pianística (BOSSEUR, 1997, p. 109).
De acordo com Bosseur (1997), é somente no Romantismo, século XIX, que as
partituras passaram a indicar, com maior precisão, o desejo do compositor, que, por
meio de marcas apropriadas, passou a conduzir o executante às ações de tocar com
maior ou menor leveza, diminuir ou acelerar o andamento, realizar sons mais
enfáticos ou uma sequência em sons fortes, entre outras indicações. Também é
desse período a marcação do caráter da peça – Alegro (alegre), Alegro ma non
tropo (rápido, mas não muito), Adagio (mais introspecção) e Apassionato
(apaixonado), entre outros –, sinalizando para o ethos, a ambiência geral da
composição2.
De um modo geral, podemos afirmar que há mútua influência entre o pensamento
musical e sua notação, a qual faz parte dos movimentos de criação na arte dos
sons, considerando que o compositor, “[...] movido pelas necessidades de uma
estética sempre em evolução, [...] é levado continuamente a transgredir as regras de
notação vigentes em sua época” (BOSSEUR, 1997, p. 99). Dessa maneira, a
notação musical adquire a função de expressar as múltiplas extensões do
pensamento, tanto de compositores quanto de seus intérpretes.
2 Nas partituras, tais indicações costumam vir logo no início, traduzindo “clima” que o compositor quis
dar à peça.
24
Passando a uma visão do conjunto das investigações que compuseram a revisão de
literatura, podemos observar que a prática e a aprendizagem musicais vêm fazendo
parte dos processos educacionais na infância e na adolescência em diferentes
tempos e espaços, embora nem sempre tais processos educativos tenham como
propósito o desenvolvimento da capacidade expressiva dos aprendizes. Essa visão
vai ao encontro do pensamento do educador musical Edgar Willems, o qual
sustentava a percepção de que “[...] com frequência, a cultura das emoções é
banida do ensino musical, pela incompreensão da natureza da música e de suas
relações com o ser humano” (apud FONTERRADA, 2005, p. 131).
É, portanto, na perspectiva da função de expressar as múltiplas extensões do
pensamento que, aqui, advogamos por uma aula de música na área da performance
instrumental, na qual seja viabilizado às crianças e adolescentes o desenvolvimento
de sua capacidade de expressão na aprendizagem de músicas do repertório erudito,
agregando ao debate aspectos fundamentais relativos ao campo da educação:
“devido às particularidades [...] dessa faixa etária, trata-se de uma questão
essencialmente educacional. Cabe ao educador ou ao músico/educador sempre se
perguntar: será que a criança quer música? O que ela quer com a música?”
(MORAES, 1989, p. 3-4, grifo da autora).
1.2 QUESTÃO DE INVESTIGAÇÃO
A partir do exposto, delimitamos nosso eixo de investigação tendo como norte as
seguintes indagações: de que forma a educação pode potencializar o fazer
musical entre crianças e adolescentes? Como uma aula de música pode
despertar e potencializar a capacidade expressiva musical de crianças e
adolescentes que frequentam as aulas de piano da Faculdade de Música do
Espírito Santo? Tendo como inspiração a filosofia de Deleuze e Guattari, quais
são os afetos sonoros que povoam o universo-criança? Que elos poderão
fortalecer a rede que sustenta esse fazer sonoro?
Aprofundando nossos estudos e guiando-nos por tais indagações, chegamos à tese
que desejamos defender, a saber, que o desenvolvimento da capacidade de
expressão musical, no âmbito da infância e da adolescência, não se restringe
25
às questões próprias ao campo da performance, mas se insere no campo da
expressão, de forma ampla, em sua interface com os processos educativos.
1.3 OBJETIVOS
1.3.1 Objetivo geral
Delinear cartografias que emergem no desenvolvimento da capacidade de
expressão musical de crianças e adolescentes aluno(a)s de piano erudito a partir da
utilização de uma abordagem inventiva, participativa e experiencial.
1.3.2 Objetivos específicos
a) Levantar as principais concepções concernentes à expressão musical;
b) caracterizar as formas educativas no âmbito da aprendizagem musical, na
infância, em diferentes períodos históricos;
c) estimular o desenvolvimento da expressividade por meio de oficinas
diversificadas no campo da arte dos sons;
d) cartografar e analisar processos inventivos em contextos de aprendizagem
musical.
1.4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
1.4.1 Cartografia deleuziana
A proposta deste trabalho é acompanhar o desenvolvimento criativo no âmbito da
expressividade musical de crianças e adolescentes que estudam piano erudito a
partir do desenvolvimento de oficinas que tiveram como foco a inventividade, a
participação e a experimentação. Assim sendo, percebemos no método da
cartografia deleuziana o guia de nossas ações, visto que “[...] a pesquisa
cartográfica consiste no acompanhamento de processos, e não na representação de
objetos [...]” (BARROS; KASTRUP, 2014, p. 53).
A pesquisa cartográfica parte do pressuposto geral de que a produção do
conhecimento não é um recorte estanque da realidade, valendo-se como um
conhecimento universal, mas é um processo que ocorre nos interstícios que
pavimentam “[...] o plano movente da realidade das coisas [...]” (ESCÓSSIA;
TEDESCO, 2014, p. 92). Esse caráter processual confere ao método uma dupla
26
natureza, operando “[...] ao mesmo tempo como pesquisa e intervenção [...]”
(ESCÓSSIA; TEDESCO, 2014, p. 92).
Nesse sentido, essa modelagem investigativa não prevê apenas o estudo das
formas instituídas e cristalizadas, mas convoca uma ampliação do olhar sobre “[...] a
processualidade que marca os acontecimentos no mundo [...]” (ESCÓSSIA;
TEDESCO, 2014, p. 100), buscando afetar as circunstâncias de criação das coisas,
dentro de um continuum de variação, espaço-tempo de emergência de diferenças
potenciais.
Por essa perspectiva, meu campo de ação-reflexão como aprendiz-cartógrafa é um
campo complexo, entendendo-o no “[...] plano coletivo das forças moventes [...]”
(ESCÓSSIA; TEDESCO, 2014, p. 99), cujo ato investigativo integra-se ao vivido,
compondo “[...] a própria experimentação ancorada no real [...]” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 21).
Desse modo, como aprendiz de cartografia, entendo que a realização desta
pesquisa implicou habitar o território, impregnando-me das ações e modos de ser
que constituem esse campo, constituindo-me com ele, habitando, portanto, um
território existencial – do qual faço parte não só profissionalmente, mas afetivamente
falando –, sendo parte da minha trajetória de vida. Nesse contexto, “[...] cartografar é
sempre compor com o território existencial, engajando-se nele [...]” (ALVAREZ;
PASSOS, 2014, p. 135).
Assim, no processo de intervenção, busquei modular o ser-estar nesse campo,
lançando-me na elaboração de estratégias, práticas, exercícios – enfim, vivências –
que pudessem engendrar novas formas de conceber o processo de aprendizagem
na área da performance pianística para crianças e adolescentes integrantes do
Curso de Musicalização Infantil da Fames. Nesse processo de pesquisa e
intervenção, intentei escapar dos modos de ensinar-aprender próprios das
macroformas educativas, pois essas se assentam em uma visão arbórea e extensiva
do conhecimento, gerando “[...] classificações, hierarquizações, dicotomias, formas e
figuras, tão familiares à nossa realidade cotidiana [...]” (ESCÓSSIA; TEDESCO,
2014, p. 100).
27
Assim sendo, compreendi ser necessária a elaboração de atividades que
propiciassem o tempo inventivo ao(à)s aluno(a)s, objetivando cultivar a sensibilidade
aos códigos e signos dos diferentes estilos musicais. Pensei, nesse sentido, em abrir
linhas que pudessem conduzi-lo(a)s ao contato e manuseio da matéria sonora,
tendo em vista a elaboração de expressividades, afastando-nos do padrão de aula
“[...] de natureza fixa, de [...] invariância [...]” (ESCÓSSIA; TEDESCO, 2014, p. 94).
Para tanto, considerei que, como uma modalidade educacional, a oficina poderia vir
ao encontro da minha proposta, facultando o surgimento de processos criativos,
imprimindo velocidade aos fluxos, bem como envolvendo o(a)s aluno(a)s e a mim
mesma, professora-aprendiz-cartógrafa.
Em se tratando das oficinas de música no Brasil, verificamos em Fernandes (2000)
que sua aplicabilidade manteve-se vinculada às atividades de composição musical e
vivência dos elementos da arte dos sons. No contexto das oficinas, “[...] o
experimentar, o explorar tornam-se [...] as grandes linhas mestras do processo [...]”
(FERNANDES, 2000, p. 102). Nelas, a função do professor difere da abordagem
instituída, assumindo-se como “[...] catalizador do processo [...]” (FERNANDES,
2000, p. 94), empenhando-se em uma atitude problematizadora.
Para o acompanhamento e os registros do processo, realizei filmagens e anotações
escritas, servindo-me primordialmente da atenção háptica, cuja característica “[...]
não é de simples seleção de informações [...]” (KASTRUP, 2014, p. 33), mas uma
atenção modulável, de caráter paradoxal ou complexo, sendo ao mesmo tempo um
modo de ação “[...] seletivo ou flutuante, focado ou desfocado, concentrado ou
disperso, voluntário ou involuntário, em várias combinações como [...] concentração
desfocada, focalização dispersa etc.” (KASTRUP, 2014, p. 33).
Esse tipo de atenção movente mantém uma sintonia fina com o problema em
estudo, possibilitando captar os gestos, as singularidades na criação de uma
determinada sonoridade, um olhar, um movimento, propiciando um pouso e um
reconhecimento atento. Kastrup (2014, p. 41) trata essa atenção como atenção
háptica, na qual “[...] o olho tateia, explora, rastreia, o mesmo podendo ocorrer com
o ouvido ou outro órgão [...]”.
28
Deleuze (2007, p. 62) distingue a atenção óptica da atenção háptica, salientando
que a percepção ótica é mais focalizada, estática, enquanto que a háptica está
aberta às ações de forças invisíveis, “[...] como pressão, inércia, peso, atração,
gravidade, germinação [...]”, devires-imperceptíveis... Assim sendo, a percepção
háptica, “[...] muito mais do que a óptica [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 192),
tenderá a uma acuidade dos sentidos para acompanhar os nomadismos e os
sedentarismos dos trânsitos entre espaço-tempo liso-estriado, as passagens
Cronos-Aion entre as linhas molares e moleculares dos territórios sonoros que
constituem o campo desta investigação.
Por essa via, busquei tangenciar as bordas do método da cartografia deleuziana,
adotando um olhar transversal sobre o campo de investigação, no sentido de que a
intenção não era traçar uma linha evolutiva dos processos de aprendizagem nem
mesmo um olhar circular, verificando o caso de cada aluno(a). Assim sendo, esta
investigação alinha-se à visão de que “[...] a diretriz cartográfica se faz por pistas
que orientam o percurso da pesquisa, sempre considerando os efeitos do processo
sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados [...]” (PASSOS;
BARROS, 2014, p. 17), visto que “[...] o pesquisador se coloca numa posição de
atenção ao acontecimento [...]” (ALVAREZ; PASSOS, 2014, p. 143).
A prática investigativa aqui relatada sustenta-se, portanto, em uma perspectiva na
qual os pares sujeito-objeto, pesquisador-campo, teoria-prática não constituem
antinomias, encontrando-se conectados, marcando “[...] a dissolução do ponto de
vista do observador [...]” (PASSOS; EIRADO, 2014, p. 109). Isso implica dizer que
essa perspectiva mantém-se distante dos pressupostos metodológicos nos quais
sujeito e objeto são entendidos como elementos totalmente separados e intocáveis
no processo de produção do conhecimento (PASSOS; EIRADO, 2014), passando
pelo processo de contágio e propagação, de corporificação e conjugação entre as
subjetividades e as matérias e seus signos. Assim, o contágio e o envolvimento são
vistos como aspectos do ato de conhecer, pois “[...] o aprendiz-cartógrafo deve
cultivar uma posição de estar com a experiência, e não sobre esta” (ALVAREZ;
PASSOS, 2014, p. 142, grifos meus).
Em se tratando de uma pesquisa com crianças e adolescentes, é indispensável a
orientação de “[...] ser inventivo para poder trocar com as crianças e tocá-las de
29
algum modo” (KASTRUP, 2014, p. 62), preservando a espontaneidade na
manifestação de seus pontos de vista, de suas experiências e estratégias na
elaboração do mundo sonoro. Por esse prisma, fez parte do plano de ações desta
investigação uma forma de conhecer que incluiu o cuidar. Cuidar e conhecer
superpõem-se, agregam-se em mútua inspiração, não se tratando, porém, de um
“[...] conhecer para cuidar [...], mas da inseparabilidade imediata entre cuidar e
conhecer [...]” (PASSOS; EIRADO, 2014, p. 122-123).
1.4.2 Sobre o território de pesquisa
Nosso campo investigativo, o qual, seguindo a perspectiva deleuziana,
denominamos território, constitui-se de um grupo de alunos de piano do Curso de
Musicalização Infantil da Faculdade de Música do Espírito Santo (Fames) Maurício
de Oliveira, tendo como objeto de estudo o processo de elaboração da
expressividade musical.
A vivência na Fames como musicista e professora de piano, especialmente para
crianças, faz-me perceber que, desde sua criação, a instituição – tal como a quase
totalidade dos centros educativos em música erudita no Brasil – moveu-se partir do
modelo pedagógico-musical fundamentado na formação de concertistas, ou de
músicos virtuoses, tal como explicitado anteriormente.
Por outro lado, nas últimas duas décadas, ocorreram transformações relevantes no
perfil musical da instituição, tendo sido criados os cursos de Formação Musical
Popular e de Licenciatura em Música, trazendo uma nova ambiência sonora e
influenciando de maneira significativa os repertórios de algumas modalidades de
instrumento, nas quais se formaram grupos e bandas de música erudita e de música
popular brasileira, jazz e chorinho, além das orquestras jovens.
Essas transformações podem ser verificadas na organização dos seguintes grupos
oficiais da Fames: Caixinha de Música, Coro da Musicalização Infantil, Orquestra
Jovem de Sopros, Grupo Jovem de Trompetes da Fames, Fames Dixieland, Fames
Jazz Band, Fames MB Trio, Orquestra experimental de Cordas, Conjunto de Música
Antiga da Fames, sem falar do Coral Villa-Lobos, que já existia, do Coro Curumins,
30
de caráter mais popular, voltado para crianças e adolescentes, e do Coro Sinfônico,
voltado exclusivamente para o erudito e para coristas jovens e adultos.
O campo desta investigação, no entanto, se restringiu à modalidade piano erudito, o
qual, segundo minhas percepções, não incorporou essa atualização ocorrida em
diversos setores da instituição, indicando, do meu ponto de vista, a necessária
busca de caminhos que proporcionem às crianças e adolescentes o
desenvolvimento de sua capacidade de expressão.
A Fames conta atualmente com um total de 1156 alunos3, distribuídos nos cursos de
Musicalização Infantil (460), Curso de Formação Musical (CFM) (375), Licenciatura
(224) e Bacharelado (97). Um recorte desse quantitativo por habilidade instrumental
é apresentado na Tabela 1.
TABELA 1 – TOTAL DE ALUNOS POR CURSO (2015)
CURSO PIANO
Musicalização 356 60 CFM 390 67 Bacharelado 97 8 Licenciatura 208 Total 1051 135
Fonte: Secretaria Acadêmica da Fames
Em outubro de 2016, o Curso de Musicalização Infantil contava com 460 aluno(a)s,
com idade entre cinco e 15 anos. Sua estrutura curricular é cumprida em seis anos
de estudos, compreendendo as seguintes modalidades de aula e atividades: Teoria
Musical, Coral, Prática de Conjunto e Prática Instrumental, exclusivamente coletivas
do nível I ao nível III; a partir do nível IV, as aulas de instrumento passam a ser
individuais, mantendo-se as demais atividades em caráter coletivo.
Na sequência do Curso de Musicalização Infantil, o(a) aluno(a) pode, mediante
processo seletivo, prosseguir nos estudos no CFM, para o qual a Tabela 2, a seguir,
apresenta a quantidade de alunos por modalidade em 2016, destacando a elevada
procura para a modalidade piano.
3 Nesse montante, não foram incluídos os alunos do Preparatório Graduação, cuja quantidade oscila,
em função de esse ser um curso que ainda está se instituindo.
31
TABELA 2 – QUANTITATIVO DE ALUNOS NO CFM (2016)
Modalidade Número de alunos
Canto 48 Clarineta 18 Contrabaixo 7 Fagote 1 Flauta Doce 16 Flauta Transversa 37 Oboé 4 Percussão 6 Piano 67 Saxofone 17 Trombone 16 Trompa 5 Trompete 21 Tuba 7 Viola 4 Violão 35 Violino 67 Violoncelo 14 Total 390
Fonte: Secretaria Acadêmica da Fames
A Tabela 3, a seguir, evidencia a enorme quantidade de aluno(a)s de 11 a 21 anos
frequentando a modalidade piano do Curso de Formação Musical da Fames.
Chamar atenção para esse fato é importante, pois essa é uma faixa etária em que o
estudo do piano não deveria por ênfase na profissionalização para a performance,
tal como tem sido, devendo ser algo mais voltado para a educação musical,
centrado na experiência, no contato com os estilos musicais, propiciando ao(à)s
aprendizes o desenvolvimento da capacidade de expressão musical.
Aqui, não se trata de fazer oposição ao fato de que algun(ma)s aluno(a)s aproveitam
o Curso de Musicalização Infantil, assim como o Curso de Formação Musical, para
dar segmento à carreira de pianista com um cunho mais profissional, mas de
defender esses espaços de formação musical sendo voltados para o conhecimento
do repertório erudito, de suas técnicas, seus aspectos históricos e culturais, mas em
sintonia com a faixa etária do(a) aluno(a).
32
TABELA 3 – DISTRIBUIÇÃO DE ALUNOS QUANTO À IDADE NO CFM GERAL E NO CFM PIANO (2015)
4
(continua)
Idade Matriculados no CFM geral
Matriculados no CFM Piano
11 3 1 12 1 1 13 19 3 14 27 8 15 20 1 16 33 10 17 31 6 18 26 3 19 18 3 20 16 5 21 16 4 22 13 2 23 12 2 24 8 0 25 11 2 26 7 3 27 9 0 28 6 0 29 12 0 30 10 0 31 8 0 32 3 1 33 5 0 34 5 0 35 6 1 36 5 0 37 3 1 38 5 0 39 1 1 40 3 0 41 1 0 42 3 3 43 1 0 44 3 0 45 3 1 46 2 0 47 1 0 48 2 0 49 2 0 50 0 0 51 0 0 52 1 0 53 2 0 54 0 0 55 2 1 56 0 57 0 58 0 59 2 60 1
4 Da faixa etária dos 56 aos 69 anos para o CFM Piano não foi possível obter os dados junto à
Fames.
33
TABELA 3 – DISTRIBUIÇÃO DE ALUNOS QUANTO À IDADE NO CFM GERAL E NO CFM PIANO (2015)
5
(conclusão)
Idade Matriculados no CFM geral
Matriculados no CFM Piano
61 0 62 0 63 0 64 0 65 0 66 0 67 1 68 1 69 0
Fonte: Secretaria Acadêmica da Fames
1.4.3 Participantes da pesquisa
O grupo que integra o campo desta investigação compõe-se de 11 aluno(a)s,
compreendidos na faixa etária de nove a 15 anos, sendo cinco meninos e seis
meninas. Para a formação do grupo, os critérios foram a frequência e o interesse em
relação às atividades da pesquisa. Vivenciando a experiência de aprendiz-
cartógrafa, entendi-me como parte desse processo investigativo, perfazendo,
portanto, um total de 12 integrantes. Assim, por ordem alfabética, passaremos à
apresentação do(a)s aluno(a)s, que receberam nomes fictícios.
a) Aline
A aluna tem 11 anos, reside no bairro Nossa Senhora da Penha, Vila Velha-
ES, Grande Vitória. Estuda na Escola César, mesmo município, estando no 6º
ano em 2016. Faz natação e frequenta a Igreja Batista, onde tem participação
significativa nas atividades musicais, realizando solos em diversos eventos,
em diferentes comunidades. Possui piano digital e está no nível V do Curso
de Musicalização Infantil. Suas músicas preferidas são as da cantora e
compositora evangélica Aline Barros e as composições do repertório da
Fames: Tarantela e Bruxas e Fantasmas.
5 Da faixa etária dos 56 aos 69 anos para o CFM Piano não foi possível obter os dados junto à
Fames.
34
b) Anderson
Anderson tem 11 anos, mora no bairro Sotema, Cariacica-ES, e em 2016
estudava o 6º ano no Centro Educacional Sonho Meu, no mesmo bairro. Além
da Fames e da escola, pratica jiu-jítsu e judô em dois dias na semana. Com
sua família, frequenta a Igreja Quadrangular, participando de eventos
musicais como Natal e outras datas comemorativas. No Curso de
Musicalização, está no nível V. Possui teclado e suas músicas preferidas são
as dos compositores Calvin Harris, David Guetta e Bastile Pompe, da música
eletrônica. Referentemente às músicas de sua igreja, gosta do cantor
Anderson Freire.
c) Angelo
Ângelo tem 15 anos, mora no Centro de Vitória-ES, onde também estuda,
cursando o 8º ano no Colégio São Vicente. Além da Fames e da escola,
pratica tae kwen do. Está no nível VI do Curso de Musicalização e possui
piano digital. As músicas de sua preferência são as do pop internacional.
d) Ariana
A aluna está com 13 anos, mora no bairro Monte Belo, Vitória-ES, e estuda na
Escola Municipal Adilson da Silva Castro, localizada no mesmo bairro,
cursando o 7º ano em 2016. A agenda de Ariana é repleta de atividades: em
duas tardes semanais, pratica vôlei, futebol e basquete como integrante de
um projeto de difusão de prática esportiva oferecido pela Prefeitura Municipal
de Vitória. Em outras duas tardes, também semanalmente (aos sábados e
domingos), a menina participa de um grupo denominado Desbravadores.
Essa programação constitui-se de ações desenvolvidas pela igreja que ela
frequenta junto à sua família, sendo pautada pela prática dos escoteiros, em
que Ariana aprende e vivencia situações de acampamento e trilhas em matas.
Com relação ao estudo de seu repertório pianístico, Ariana pratica as músicas
no teclado, não possuindo piano. Porém, tem acesso ao instrumento na casa
de uma prima sempre que a visita e, algumas vezes, em sua igreja, embora
deixe claro que não deseja tocar nos cultos. Suas músicas preferidas fazem
parte do universo pop, internacional e brasileiro, ouvindo a banda Fifth
35
Harmony, a compositora e cantora Ariana Grande, bem como o estilo kpop
(música que agrega coreano, japonês e inglês). Ariana também costuma ouvir
uma estação de rádio, a Jovem Pan.
e) Franco
Franco tem 13 anos, reside no bairro Itapemirim, município de Cariacica,
também na Grande Vitória. Estuda piano no nível VI da Musicalização Infantil.
Em 2016, era aluno do 6º ano do Centro Educacional Vicente Pelicioni,
situado no mesmo município. Já possui experiência musical significativa,
paralelamente aos estudos desenvolvidos na Fames: é músico em sua igreja,
onde toca piano, e tem uma banda com o irmão e alguns amigos, com a qual
se apresenta tocando outros instrumentos, tais como contrabaixo, guitarra,
violão, bateria e teclado. Essas práticas propiciaram-lhe um desenvolvimento
sonoro com ênfase mais notadamente popular, evidenciada na maneira de se
expressar de um modo geral: ao tocar (o toque), ao conversar e na postura
corporal. Franco tem piano elétrico e prefere as músicas eletrônicas em geral.
f) Júlia
A aluna tem 13 anos, mora no centro de Vitória. Em 2016, estudou o 8º ano,
no Colégio Darwin, mesmo bairro. Estuda inglês duas vezes na semana, além
do colégio e da Fames. Todos os domingos frequenta, junto à sua família, a
Igreja Católica Comunidade Santíssima Trindade. Na Fames, está no nível VI
do Curso de Musicalização, repetindo o ano para realizar os estudos com
menos estresse. As músicas de sua preferência são as dos compositores
Shawn Mendes e Halsey, pop internacional. Das músicas do repertório da
Fames, gosta mais de Burlesque e de Bolinhas de sabão. Não gosta dos
estudos de Czerny.
g) Karla
Karla tem dez anos, reside no bairro São José, região da Praia do Suá,
Vitória-ES. Estuda na Escola Municipal Aristóbulo Barbosa Leão, cursando o
5º ano em 2016. Além da escola e da Fames, duas tardes por semana,
pratica vôlei no Colégio Salesiano e canta no grupo de crianças da igreja que
frequenta, denominação Assembleia de Deus Ministério Reviver. Na Fames,
36
em 2016, a aluna estava no nível IV do Curso de Musicalização Infantil, sendo
o primeiro ano de aula individual no instrumento. Afirma gostar de música,
experimentando outras sonoridades como o violão, por exemplo.A aluna
desenvolve essa habilidade de forma livre, em sua casa. Com relação ao
piano, conforme suas palavras, é uma escolha pessoal. Não possui o
instrumento nem teclado em casa, sendo necessário que, dois dias na
semana, desloque-se até a casa de um parente para realizar seus estudos
em um teclado. Suas músicas preferidas são as das cantoras evangélicas
Bruna Karla, Eyshila e Priscila Alcântara.
h) Selena
Selena tem 13 anos, mora no bairro Jardim Camburi, Vitória-ES, está no nível
VI no curso da Fames e estuda no Colégio Renovação, mesmo bairro onde
reside. Cursava o 8º ano em 2016 e, em 2017, passará a estudar em outra
escola, o Seb COC, que combina duas estruturas curriculares, a brasileira e a
da High School (americana), assegurando um certificado bilíngue. Na Igreja
Católica, Selena frequenta o Grupo da Perseverança Nossa Senhora do
Rosário de Fátima, cantando assiduamente nos eventos musicais, pois tem
uma belíssima voz. Para os estudos em casa, a aluna usa teclado, não
possuindo piano. Em relação às músicas preferidas, ultimamente, tem
escutado todo tipo de composição. Gosta muito de rock e grupos e cantores
como Maroon Five, Selena Gomes e Demi Lovato.
i) Leonardo
Lucas tem 12 anos, mora no Centro de Vitória, está no nível VI do Curso de
Musicalização da Fames. Estuda na escola São Vicente de Paula, mesma
região onde reside, estando no 6º ano em 2016. Em relação às atividades
extraescolares, pratica tae kwon do. Tem piano digital e prefere música
eletrônica. Das peças do repertório da Fames, gosta muito das composições
populares, como The sound of silence e The Entertainer.
j) Lídia
Lídia tem 11 anos, reside no Bairro Mata da Serra, Serra-ES, e em 2016
cursava o 5º ano do Ensino Fundamental no Colégio Americano Batista, no
37
mesmo bairro em que mora. Com sua família, frequenta a Igreja Missão
Batista, onde atua tocando teclado e flauta doce, acompanhando a
congregação nos cantos, bem como participa de um grupo musical dessa
instituição religiosa, denominado Grupo Som da Liberdade. Lídia estuda
inglês, uma vez por semana. Na Fames, está cursando o nível V do Curso de
Musicalização Infantil e tem como músicas preferidas algumas peças do
repertório erudito, como as do compositor Czerny (1791-1857) e a música
Ballade, de Burgmüller (1806-1864).
k) Lucas
Lucas tem 12 anos, reside no bairro Feu Rosa, município da Serra-ES,
Grande Vitória. Paralelamente à Fames, estuda no Centro de Atenção Integral
à Criança e ao Adolescente Feu Rosa, localizado em seu bairro, cursando o
7º ano em 2016. Participa ativamente dos trabalhos de música em sua igreja
(Batista), tocando nos cultos, acompanhando a congregação. Embora não
tenha piano em sua casa, tem acesso frequente ao piano de sua avó, com o
qual estuda regularmente seu repertório musical. Na Fames, em 2016, o
aluno frequentava o nível VI do Curso de Musicalização Infantil, preparando-
se para o processo seletivo para o Curso de Formação Musical.
a) Sofia
A aluna está com 11 anos, mora no bairro Vale Encantado, Vila Velha-ES.
Estuda na Escola Jofre Fraga, no mesmo bairro onde mora, cursando o 6º ano
em 2016. Frequenta a Igreja Quadrangular, mas não participa de atividades
musicais nesse contexto. Sofia não pratica atividades extraescolares além das
que ela realiza na Fames. No Curso de Musicalização, está repetindo o nível
IV. Possui teclado, não tendo acesso a piano em outros ambientes. Suas
músicas preferidas são as da cantora Sofia Carson, pop internacional.
É importante salientar que a investigação atendeu a aspectos das Resoluções nº
466/2013, do Conselho Nacional de Saúde, e nº 16/2000, do Conselho Federal de
Psicologia, que regulam a ética em pesquisa com seres humanos. Desse modo,
identificamos o(a)s aluno(a)s com nomes fictícios e elaboramos o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo), no qual seus pais e/ou responsáveis
38
autorizaram sua participação no processo investigativo, assim como o uso da
informação e imagem, tendo este ocorrido exclusivamente para fins desta pesquisa.
Além disso, quando presentes nas imagens que ilustram esta tese, os rostos dos
participantes receberam aplicação de recurso gráfico, para manter sua identidade
em anonimato.
1.5 REFERENCIAL TEÓRICO
Entendendo que o desenvolvimento da capacidade de expressão musical situa-se
no tangenciamento do campo da expressão e dos processos relativos à educação,
em função das aproximações com nossa experimentação de mundo, podemos
tomar Deleuze e Guattari (1995, 2010, 2011, 2012a, 2012b, 2012c, 2014), Kastrup
(2000, 2001, 2008) e Maturana (1997, 1998, 2001, 2014) como referenciais
pertinentes à questão da aprendizagem do campo da arte, apresentando uma fina
sintonia com a arte dos sons. Esses pensadores foram, portanto, eleitos como
intercessores no desenvolvimento das ideias a respeito da expressão e da
aprendizagem musicais, temas que se estabelecem como eixos do processo
investigativo aqui relatado.
Levamos ao campo de investigação, ainda, pressupostos defendidos na educação
musical, apoiando-nos nas obras de Edgar Willems e Orff (apud FONTERRADA;
2005; PAZ, 2000), Sloboda e Davidson (1996) e Fonterrada (2005).
Em se tratando da performance pianística, o trabalho musical desenvolvido pela
pianista e professora Célia Ottoni foi adotado como referência. Essa referência foi
consolidada não apenas a partir da convivência que com ela estabeleci nos períodos
em que fui sua aluna na Fames, de 1972 a 1982 e de 1996 a 2000, mas, ainda, em
duas sessões de entrevista sobre tal temática, realizadas em sua residência, no
período de execução da investigação, especificamente na fase de análise dos
dados.
Ottoni advoga por uma educação musical que promova a integração entre corpo-
percepção-pensamento, baseando-se na perspectiva holística, partindo do princípio
de que o aprendiz é um todo. Esse princípio traz implicações importantes no que diz
respeito à aprendizagem das técnicas pianísticas, pois a entende como instância
inseparável dos aspectos estéticos que constituem cada composição. Nesse caso,
39
as sonoridades solicitadas pelos compositores em suas partituras serão realizadas
pelo executante a partir de sua própria sensibilidade e percepção, sempre
considerando os aspectos históricos e estilísticos que integram cada obra.
No que diz respeito estritamente à percepção, Célia Ottoni destaca a necessidade
de o professor levar o(a) aluno(a) a entender o que está executando, por meio de
uma autoescuta pois, argumenta a professora,
[...] quando ele entende, ele começa a se ouvir, ativando a consciência corporal e o ouvido crítico, que se estabelecem como pré-requisitos indispensáveis à aprendizagem da performance. Além disso, o professor precisa levar o aluno a sentir o tipo de toque, sentir o desenho, o fraseado, como ele é realizado. O aluno tem que ser crítico de si próprio (INFORMAÇÃO VERBAL)
6.
Outro aspecto fundamental da aprendizagem pianística apontado por Ottoni refere-
se à prática de cantar as melodias que integram determina obra, destacando que se
trata de um dos meios mais eficazes de se trabalhar o entendimento musical, pois
estabelece um contato mais direto do executante consigo mesmo:
via de regra, antes mesmo de executarmos uma composição em um instrumento musical, podemos ouvi-la em nossa mente no momento em que olhamos para sua partitura, sendo possível cantá-la. A maneira de entoá-la, portanto, corresponderá ao entendimento e à concepção da música pelo executante, que nem sempre está em sintonia com o contexto da obra. Assim, o professor poderá trabalhar o entendimento musical do aluno, levando-o inicialmente a cantar a melodia, considerando sua construção e ambiência estilística e, posteriormente, traduzindo essa mesma ideia, tocando no instrumento. Nesse sentido, a expressão corporal do professor em suas explicações deverá estar em sintonia com o texto musical que está sendo trabalhado (INFORMAÇÃO VERBAL).
No que se refere especificamente à expressão corporal, Ottoni afirma que a
corporalidade
faz parte do todo que compõe o fazer musical, incluindo as ações que antecedem a aprendizagem no instrumento, tais como o momento de leitura, que pode propiciar a percepção das diferentes ambiências, frases, entre outros aspectos da obra. Dessa maneira, o aluno é inserido nos diferentes contextos de uma peça musical de maneira lúdica, vivenciando-a por meio do cantar, do dançar e do andar (INFORMAÇÃO VERBAL).
6 As informações dadas pela pianista e professora Célia Ottoni foram obtidas em conversa informal
sobre a investigação aqui relatada.
40
Em se tratando do processo de estudo ao piano, Célia Ottoni considera fundamental
que a composição seja trabalhada, inicialmente, de mãos separadas, com o objetivo
de propiciar ao aluno o entendimento das diferentes vozes que a integram:
é fundamental perceber o diálogo que há entre as diferentes vozes que compõem a música e seus significados, pois a junção da melodia da mão esquerda com a melodia da mão direita expressará o entendimento do conjunto, preservando-se o sentido de cada voz. Essa forma de estudo facilita, igualmente, a memorização, que é um fator importante para se imprimir fluência à execução (INFORMAÇÃO VERBAL).
Ainda se referindo à forma de estudar, Ottoni abordou a questão do uso de
dedilhado, mencionando a importância da escolha e da anotação da digitação7 que
possa facilitar a execução em determinadas passagens da peça musical.
Outro aspecto fundamental do trabalho de Ottoni refere-se ao entendimento de que
toda criança e todo adolescente são aprendizes em potencial, a partir do que seu
trabalho tem como alvo principal promover o desenvolvimento das capacidades
expressivas de todo aluno que deseje aprender. A esse respeito, ela registra a
necessidade do estudo acurado: “é indispensável estudar, ter dedicação, tempo. E a
forma de estudar diferencia-se de uma repetição automática de trechos da música.
Estudar significa ter consciência do que se está fazendo, sabendo o que se deseja
realizar, quais as melhores maneiras de se obter uma determinada sonoridade”.
O professor também precisa saber realizar os desenhos e fraseados musicais pelo
sentir, pondo em desenvolvimento tanto sua consciência corporal quanto seu ouvido
crítico. Nessa perspectiva, Ottoni afirma contundentemente: “é indispensável saber-
fazer; é tocando e se ouvindo que o professor aprende e ensina. O professor de
música não pode ser um teórico ou alguém que não pratica a sua arte”.
Complementando essa ideia, Ottoni aponta para o cuidado no sentido de não se
tentar reproduzir um determinado instrumentista, “[...] o que acarretaria uma espécie
de caricatura de um modelo”. Nesse sentido, a pianista e professora sublinha que
é imprescindível a assinatura do executante, mesmo que se seja aprendiz, pois cada intérprete dá a sua contribuição pessoal, respeitando as características da obra que está sendo executada. Nesse caso, as
7 Termo usado para se referir à anotação dos dedos que serão utilizados para se tocar determinada
sequência. O polegar é o dedo 1, o indicador é o dedo 2, o dedo médio, o 3 e assim por diante. Essa anotação facilita o movimento da mão na condução das notas, pois minimiza tropeços e interrupções na execução.
41
gravações de pianistas situam-se apenas como referências (INFORMAÇÃO VERBAL).
A experiência como aluna da pianista e professora Célia Ottoni sem dúvida teve
grande influência na minha atuação como professora de piano erudito e no
entendimento de que é necessário que os educadores musicais busquemos vias
alternativas ao modelo de aula instituído no século XIX, caminho no qual a pesquisa
relatada nesta tese transita.
1.6 ESTRUTURA DO TRABALHO
Esta tese está assim organizada: o Capítulo 2 resgata as sonoridades em diferentes
espaços e períodos da história, bem como as formas educativas em música na
infância e adolescência.
O Capítulo 3 focaliza na caracterização das práticas musicais na infância brasileira,
bem como as sonoridades que se formaram desde os indígenas até o presente
século.
No Capítulo 4, são apresentados os conceitos de fabulação e expressão, de
Deleuze e Guattari, além das concepções de expressão e de aprendizagem desses
dois filósofos e também em pensadores como Kastrup e Maturana.
Os diálogos e as vivências do campo experienciado e os dados produzidos a partir
das expressividades que compuseram diferentes territórios nesse processo são
apresentados e analisados no Capítulo 5, que destaca aspectos que se
configuraram peças-chave para se refletir sobre a aprendizagem pianística no
âmbito da educação musical, sugerindo uma mútua colaboração entre a filosofia e a
arte, lembrando à arte sua natureza, sua diversidade de meios e sua função de “[...]
criar um finito que restitua o infinito [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 233).
Por fim, o Capítulo 6 sublinha as considerações a que o estudo permitiu chegar,
buscando refletir sobre o processo em seu conjunto, observando os
desdobramentos que dele advêm, dos quais podemos destacar a importância de se
ter clareza sobre as concepções de música e de aprendizagem, considerando as
vivências da criança e do adolescente.
42
2 EXPRESSÃO E APRENDIZAGEM MUSICAIS EM DIFERENTES
TEMPOS E ESPAÇOS
O ser humano buscou expressar-se por meio da música em diferentes tempos e
contextos sociais, elaborando-a em diversas configurações rítmicas e timbrísticas,
impregnando diferentes matérias sonoras com as ideias, sensações e emoções de
seus praticantes. Há um consenso em torno da ideia de que “[...] o fazer musical é
virtualmente uma atividade humana universal. Em seu sentido mais fundamental, é
uma forma de necessidade biológica particular” (SADIE; TYRRELL, 2001c, p. 346,
tradução minha). A essa atividade se atribui a capacidade de influenciar os humores
e os comportamentos humanos nas suas relações afetivas e políticas.
É nesse mesmo enquadramento que se encontram as práticas musicais na infância,
constituindo-se uma atividade que dialoga com os valores e as formas de pensar do
contexto sonoro experienciado pelas crianças e pelos adolescentes. Nesse caso, a
expressividade veiculada pela criança por meio da arte dos sons mantém estreitos
vínculos com as vivências sonoras e as concepções de música e educação em cada
sociedade.
Assim, neste capítulo, serão esboçadas as diferentes concepções a respeito da
expressão musical, das sonoridades e dos processos educativos no âmbito da
música para crianças em diferentes contextos sociais e históricos, tendo como ponto
de partida a Grécia antiga.
2.1 CONCEPÇÕES, SONORIDADES E EDUCAÇÃO MUSICAL
2.1.1 Grécia antiga
A expressividade musical na Grécia antiga coadunava-se com os valores e as
percepções de mundo ali vigentes, integrando as atividades que tinham por
finalidade alcançar o belo, no sentido estrito de bom e justo, constituindo a formação
de crianças e jovens, almejando alcançar a “[...] vida virtuosa [...]” (CHAUÍ, 1994, p.
212). Nesse sentido, o fazer musical estava associado à ideia platônica de
separação entre um mundo inteligível e um mundo sensível, articulados pelo “[...]
desejo de sabedoria, amor da formosura, isto é, da perfeição das Formas ou das
Ideias” (CHAUÍ, 1994, p. 212). A relação entre esses mundos desenvolvia-se a partir
43
da noção de similitude entre as ideias e nossa razão ou intelecto, visto serem de
mesma natureza: “[...] as ideias são de mesma natureza que nossa razão ou nosso
intelecto e por isso podem agir sobre eles (somente o semelhante age sobre o
semelhante), causando em nós o conhecimento e a virtude” (CHAUÍ, 1994, p. 212).
Musicalmente falando, tal princípio de semelhança – ou mimese – operava por meio
de escalas de notas musicais ou modos que possuíam sonoridades específicas,
relacionando-se, cada um deles, a um ethos, tendo como resultado final afetar os
ouvintes e praticantes. O conjunto desses pensamentos compunha a Doutrina do
Ethos, de concepção pitagórica, na qual a música constituía-se como um “[...]
sistema de tons e ritmos regido pelas mesmas leis matemáticas que operam no
conjunto da criação visível e invisível. A música, nesta concepção [...], era uma força
capaz de afetar o universo” (GROUT; PALISCA, 2007, p. 20). Dessa maneira, por
meio de uma sonoridade, era possível “[...] imitar tanto o bem quanto o mal; [...]
sendo a música uma intermediária entre a ordem natural e a alma humana. [...] Ora,
em música os modelos não são objetos, mas ideias, ações, e a ordem das coisas”
(DAMON apud CANDÉ, 2001a, p. 73).
Em termos práticos, cada escala ou modo possuía um caráter expressivo próprio,
agindo sobre a moral de maneira específica. Assim sendo, uma determinada escala
musical era associada à força e à coragem, enquanto outras estariam ligadas à
preguiça ou moleza. Em diálogos entre Platão e Glauco, podemos verificar o estudo
sobre os afetos veiculado em cada modo musical.
− E certamente a harmonia e o ritmo devem acompanhar as palavras?
− Como não?
− Contudo, afirmamos que não queríamos lamentos e gemidos nos discursos.
− Pois não.
− Quais são as harmonias lamentosas? Dize-me, já que és músico.
− São a mixolídia, a sintolídia e outras semelhantes.
− Portanto, essas são as que se devem excluir, visto que são inúteis para as mulheres, que convém que sejam honestas, para já não falar dos homens.
− Absolutamente.
− Mas, na verdade, nada convém menos aos guardiões do que a embriaguez, a moleza e a preguiça.
− Como não?
44
− Quais são, pois, dentre as harmonias, as lentas e as dos banquetes?
− Há umas variedades da iónia e da lídia, as que chamam efeminadas.
− E essas, poderias utilizá-las na formação de guerreiros, meu amigo?
− De modo algum, respondeu. Mas te arriscas a que fiquem apenas a dória e a frígia.
− [...] Mas deixa-nos ficar aquela que for capaz de imitar convenientemente a voz e as inflexões de um homem valente na guerra e em toda ação violenta, ainda que malsucedido e caminhe para a morte [...]. E deixa-nos ainda outra para aquele que se encontra em atos pacíficos, não-violentos, mas voluntários, que usa do rogo e da persuasão, ou por meio da prece aos deuses, ou pelos seus ensinamentos e admoestações aos homens, ou, pelo contrário, se submete aos outros quando lhe pedem. [...] Estas duas harmonias, a violenta e a voluntária, que imitarão admiravelmente as vozes de homens bem e malsucedidos, de sensatos e corajosos, essas, deixa-as ficar (PLATÃO, 2005, p. 78-79).
Além do princípio de mimese na busca pela bondade e verdade, a concepção e a
prática de música na Grécia antiga vinculavam-se intimamente à melodia e ao ritmo
da poesia, estando “[...] sempre associada[s] à palavra, à dança ou a ambas”
(GROUT; PALISCA, 2007, p. 19). Por essa ótica, a expressão da arte dos sons era
proporcionada no entrelaçamento dos sons musicais e da musicalidade e rítmica das
palavras, constituindo um bom ou um mau ritmo.
− Mas, ao menos isto, podes decidi-lo já: que a beleza ou a fealdade de forma dependem do bom ou do mau ritmo.
− Como não?
− Mas, na verdade, o bom e o mau ritmo seguem, imitando-o, aquele, o estilo bom, este, o inverso; e do mesmo modo sucede com a boa e a má harmonia, se o ritmo e a harmonia se adaptam à palavra, como há pouco se disse, e não a palavra a esses.
− Realmente, são eles que devem adaptar-se às palavras.
− Mas o modo de expressão e a palavra não dependem do caráter da alma?
− Como não?
− E, da expressão, tudo o mais?
− Sim (PLATÃO, 2005, p. 80).
Essa noção de mimese em Platão considerava que as produções no mundo sensível
– a arte, por exemplo – eram degenerações da pureza do modelo ideal de arte,
próprio do mundo inteligível. Nesse sentido, os instrumentos musicais eram
imitações, que, juntamente aos seus fabricantes, eram excluídos da pólis,
confirmando o fato de que “[...] na república ideal, a maioria dos artistas não teria
lugar, havendo lugar apenas para os artesãos que realizassem obras úteis para a
45
vida” (CHAUÍ, 1994, p. 334). Essa assertiva pode ser corroborada no excerto que
segue, um diálogo entre Glauco e Platão:
− Portanto, não precisaremos para os nossos cantos e melodias de instrumentos com muitas cordas e com muitas harmonias.
− Não me parece que precisaremos.
− Logo, não teremos que sustentar artífices para fabricarem harpas, trígonos e toda a espécie de instrumentos de muitas cordas e de muitas harmonias.
− Acho que não.
− E, então, os fabricantes de flautas e os flautistas, os receberemos na cidade? (PLATÃO, 2005, p. 79).
Toda essa forma de pensamento constituía a base de desenvolvimento da educação
musical na infância, tendo como propósito inculcar na criança o juízo de beleza
(bom) e de fealdade (mau) por meio de sonoridades específicas. Desse modo, à
arte dos sons era conferida a capacidade de formação do caráter e dos princípios
éticos e estéticos de todos os cidadãos, incluindo-se aí a criança, por meio da
associação das noções morais ao prazer, como podemos entender a partir do
diálogo que segue:
− [...] que logo desde a infância, insensivelmente, os tenha levado a imitar, a apreciar e a estar em harmonia com a razão formosa?
− Seria essa, de longe, a melhor educação.
− Não é então por esse motivo, ó, Glauco, que a educação pela música é capital, porque o ritmo e a harmonia penetram mais fundo na alma e afetam-na mais fortemente, trazendo consigo a perfeição [...] e com razão honraria as coisas belas [...]; ao passo que as coisas feias, com razão as censuraria e odiaria desde a infância [...].
− A mim, afigura-se que é por razões dessas que se deve fazer a educação pela música (PLATÃO, 2005, p. 81).
As atividades musicais estavam relacionadas à poesia lírica e aos grandes jogos
artísticos em Delfos, Esparta e, posteriormente, em Atenas. Assim, os torneios
poético-musicais eram frequentemente apresentados ao julgamento dos filósofos e
do povo, atraindo expressivo número de espectadores ao teatro de Dionísio, em
Atenas, de forma que “[...] desde a madrugada, se acotovelavam nas
arquibancadas, comendo e bebendo durante intermináveis audições, sem que o
interesse nem a exuberância [...]” esmorecessem (CANDÉ, 2001a, p. 69).
Com isso, verificamos uma modificação na concepção musical da Grécia clássica,
passando a ser entendida como saber indispensável aos homens livres, não se
46
estabelecendo uma diferenciação entre produtores de música e espectadores. Essa
maneira de fazer música coadunava-se com a forma de pensamento geral dessa
sociedade, pois a democracia ateniense baseava-se em dois princípios
fundamentais, a saber, “a isonomía, isto é, a igualdade de todos os cidadãos perante
a lei, e a isegoría, isto é, o direito de todo cidadão se exprimir em público” (CHAUÍ,
1994, p. 111, grifos da autora). A expressividade musical era veiculada
especialmente nas tragédias – gênero literário e teatral –, cuja temática girava em
torno do nascimento da democracia. De acordo com Chauí (1994), há um diálogo
entre personagens do mundo aristocrático – que se postam no palco – e um colégio
de cidadãos, representando o presente, que estão no coro. Por meio dessa “[...]
iniciação coral e social efetuava-se a preparação dos adolescentes para as tarefas
da vida adulta do cidadão” (MANACORDA, 2006, p. 47).
A cultura helênica exerceu influência determinante em todo o Mediterrâneo na
Antiguidade e, mesmo após sua decadência, a partir do ano 395 a. C., muitos de
seus aspectos foram incorporados por diferentes sociedades, que os modificaram ou
acrescentaram-lhes elementos de suas próprias culturas. Com a decadência política,
cultural e econômica da Grécia antiga, Roma ascendeu ao poder, instaurando uma
nova ordem social, constituída de valores e concepções totalmente diferentes
daqueles cultivados na sociedade helênica (CANDÉ, 2001a).
2.1.1 Roma antiga
No que diz respeito à Roma antiga, verificamos em Chauí (1994) uma mudança na
visão sobre a arte, englobando-se aí a música. Enquanto na Grécia clássica
prevaleciam as ideias de Platão, nas quais a arte musical estava associada à ética,
no período de ascensão da sociedade romana prevaleciam as teorias do filósofo
Aristóteles, para o qual a ética e a arte situavam-se em esferas diferentes. Para
Aristóteles, a ética era uma ciência cujos fins não eram a produção de algo fora dela,
compondo as ciências práticas, ou seja, aquelas atividades “[...] que possuem nelas
mesmas os seus fins” (CHAUÍ, 1994, p. 309). Em se tratando das artes, essas eram
concebidas no universo das ciências produtivas, situando-se junto àquelas “[...] cujo
fim é uma obra diferente das próprias atividades realizadas para produzi-la” (CHAUÍ,
1994, p. 309), tendo o fim fora de si mesmas. Assim, o fim último das ciências
produtivas – entre as quais estavam inseridas as artes – não consistia em ser um
47
veículo para alcançar a bondade (categoria ética), como algo separado do homem,
presente no mundo perfeito, inteligível, mas uma atividade que, por meio da criação
de uma obra, “[...] imita, narrativa ou dramaticamente, ações e sentimentos, feitos e
virtudes, situações e vícios dos seres humanos” (CHAUÍ, 1994, p. 336).
Além de estabelecer diferenças entre ciências práticas e produtivas, Aristóteles
também distinguiu as atividades que compunham essas últimas, entre as quais
encontravam-se a prosa e a poesia, ou, ainda, a arte retórica e a arte poética. De
acordo com Chauí (1994), a arte retórica referia-se às maneiras de construir
discursos com base em uma argumentação persuasiva, cabendo à arte poética as
regras dos gêneros literários. A diferença básica entre prosa e poesia residia na
vinculação ou não à música.
Aristóteles distingue prosa e poesia. A distinção não se faz entre linguagem métrica
ou versificada e linguagem não métrica e não versificada, pois pode haver prosa
metrificada e pode haver poesia sem que seja versos, como a melodia instrumental.
“Prosa é a linguagem que diz diretamente as coisas; poesia, a que imita as coisas
(ações, paixões, feitos, gestos)” (CHAUÍ, 1994, p. 338).
É assim que a arte dos sons passa a integrar o terreno da poesia ou da produção
poética, sendo dividida por gêneros literários, cada qual com seus meios, objetos e
maneiras de imitar. Os gêneros literários relacionados à poesia (música) eram “[...] a
poesia trágica e também a comédia, a poesia ditirâmbica, a maior parte da aulética e
da citarística, consideradas em geral, todas se enquadram nas artes de imitação”
(ARISTÓTELES, 2004, p. 23). Tais gêneros guardavam entre si três diferenças,
relativamente aos meios, aos objetos e às maneiras de imitar. Assim sendo,
alguns fazem imitações segundo um modelo de cores e atitudes, [...] outros [...], com a voz; assim também, nas artes acima indicadas, a imitação é produzida por meio do ritmo, da linguagem e da harmonia, empregados separadamente ou em conjunto (ARISTÓTELES, 2004, p. 23).
Segundo Chauí (1994), as atividades que reuniam linguagem, ritmo e melodia eram
tratadas no âmbito da tragédia, da comédia, da lírica e da elegia; o conjunto
envolvendo ritmo e melodia, a saber “[...] a aulética e a citarística, bem como as
demais artes análogas em seu modo de expressão, por exemplo, a flauta de Pã”
(ARISTÓTELES, 2004, p. 23), apenas era o que entendemos como música
48
instrumental. A aulética referia-se às práticas do aulos – um tipo de flauta dupla –,
enquanto a citarística relacionava-se às práticas da cítara, ambos instrumentos
musicais próprios da época.
As práticas sonoras ou poesia objetivavam falar das paixões humanas por meio da
imitação dos vícios e das virtudes humanas de um modo geral, e não de uma
personagem determinada. Assim, a poesia trágica não trata de um Édipo ou de uma
Electra específicos, “[...] mas de um destino humano; a epopeia não fala de Helena,
Ulisses ou Agamenon, mas de tipos humanos. [...] por meio [...] do relato dramático
de uma guerra, fala sobre a guerra” (CHAUÍ, 1994, p. 337, grifos da autora).
Nessa perspectiva, os gêneros poéticos, segundo Aristóteles, envolviam três
elementos essenciais à sua realização, interligados: mímesis, mýthos e katharsis. A
mímesis tinha como objeto de imitação “[...] as ações humanas enquanto virtuosas
ou viciosas” (CHAUÍ, 1994, p. 337); o mýthos, que é uma narrativa fundada, não em
uma história concreta, que aconteceu, mas que pode vir a acontecer, ou “[...] poderia
acontecer [...]” (CHAUÍ, 1994, p. 337), vinculada às paixões humanas; a katharsis
possui caráter ético-pedagógico, imputando à arte um poder tanto educativo quanto
terapêutico, “[...] pois a poesia deve atuar sobre a alma do ouvinte, fazendo-o sentir
as paixões narradas-representadas e permitindo-lhe, ao imitá-las, em seu interior,
liberar-se delas, purificando-se” (CHAUÍ, 1994, p. 337). Esse tríptico – mímesis,
mýthos e katharsis – tem como maior referência a tragédia, considerada uma ação
importante e completa, constituindo-se uma
[...] imitação [...] de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas [...]; ação apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções (ARISTÓTELES, 2004, p. 35).
Tratando a arte dos sons no contexto da educação, verificamos em Manacorda
(2006) que o exercício da musicalidade na cidade de Roma deixou de ser um
veículo para a formação ética dos cidadãos, tal como na Grécia, e assumiu um papel
coadjuvante na aprendizagem da gramática e da arte retórica. Para a sociedade
romana, ser um homem culto significava ser capaz de falar corretamente e entender
bem os autores, exigindo o conhecimento de algumas disciplinas principais, a saber,
“[...] a música, a astronomia (mencionada em outros termos), a filosofia natural, isto
49
é, as ciências, e a eloquência, cujo estudo se completa na escola de nível mais
elevado, a escola de retórica” (MANACORDA, 2006, p. 87). Dessa forma, a arte
retórica passou a ser o centro e o objetivo último da educação em Roma, tendo nas
demais disciplinas uma fonte de recursos para a elaboração de um discurso passível
de persuadir seus ouvintes.
Conforme Quintiliano (2001), importante orador romano, essa persuasão
relacionava-se à utilização de determinados aspectos da música, tais como o ritmo,
a melodia e a “modulação” nos tons, compondo uma expressividade capaz de mover
e comover os ouvintes. Dessa maneira, os mecanismos de expressão das emoções
em um discurso seriam os mesmos utilizados na música, os seus modos de
expressão, proporcionando a formação necessária ao bom orador.
O teórico musical Aristoxenus distingue o que concerne aos aspectos rítmicos (rhytmos) e melódicos (melos) do som compreendendo primeiramente a “modulação”, e posteriormente o tom e a qualidade do som. Não são todos esses aspectos essenciais ao orador? Um ponto relevante é o gesto, o segundo relaciona-se ao arranjo da palavra, e o terceiro refere-se às inflexões da voz, muitas das quais estão envolvidas na produção do discurso. Ou o orador não emprega várias dessas composições e sons conforme as necessidades dos assuntos tal como a música faz? (QUINTILIANO, 2001, p. 225, tradução minha).
A expressão musical, nessa ótica, relacionava-se às paixões humanas, presentes
mais precisamente no gênero trágico, tendo por finalidade “[...] não só [...] imitar uma
ação em seu conjunto, mas também fatos capazes de excitarem o terror e a
compaixão” (ARISTÓTELES, 2004, p. 45), veiculados por meio da música e da
elocução. Aristóteles destacou a importância da elocução no âmbito da tragédia,
pois congregava tanto o ritmo quanto a melodia, nos quais se assentava a
expressividade, ou seja, “[...] a composição métrica, e a melopeia (canto), a força
expressiva musical evidente para todos” (ARISTÓTELES, 2004, p. 35).
Outra abordagem a esse respeito foi elaborada por Quintiliano (2001), vinculando a
expressão da arte dos sons às paixões, tais como graça, doçura e pensamentos
sublimes, explicitando a perfeita adequação dos elementos musicais para a uso na
arte da oratória: “[...] música de fato emprega tom e modulação, para expressar
pensamentos sublimes de maneira nobre, pensamentos agradáveis com doçura, e,
de modo usual, pensamentos com graça” (QUINTILIANO, 2001, p. 225, tradução
minha).
50
O fazer musical em Roma também se relacionava à dança, buscando a
expressividade corporal, pois “[...] é por atitudes rítmicas que o dançarino exprime os
caracteres, as paixões, as ações [...]” (ARISTÓTELES, 2004, p. 23). Em uma
perspectiva semelhante, Quintiliano (2001, p. 227, tradução minha) pontuou a
importância do vínculo entre o ritmo, o corpo, os gestos e a dança para a oratória,
apresentando em seus escritos o conceito de eurhythmia, de origem grega,
notadamente, na rítmica musical.
[…] nós, inclusive, sentimos que as atitudes mentais são afetadas de vários modos pelos quais os instrumentos são incapazes de articular o discurso. Além disso o movimento apropriado e elegante do corpo – o que os gregos denominam como eurythmia – é essencial, e não pode ser obtido por nenhuma outra maneira
No que diz respeito às práticas estritamente musicais, tem-se registros de que os
cantores e instrumentistas “[...] se utilizavam de técnicas virtuosísticas bastante
semelhante [sic] às dos modernos artistas dos séculos XVIII, XIX e XX”
(FONTERRADA, 2005, p. 21), havendo, inclusive, um tipo de “[...] culto às estrelas:
espectadores aclamando artistas, pulando de seus assentos, agitando-se como
loucos” (CANDÉ, 2001a, p. 82). De um modo geral, a música produzida em Roma
tinha um caráter de puro divertimento, sendo entendida como um luxo, participando
do “[...] embelezamento da vida, mas já não realmente integrada à cultura” (CANDÉ,
2001a, p. 81).
Nessa sociedade, verificamos também a nítida separação entre a música erudita e a
música popular, relacionadas a “[...] categorias sócio-musicais [...]” (CANDÉ, 2001a,
p. 82), observando a prática comum de pessoas ricas terem escravos músicos, que
produziam uma “[...] espécie de „música de consumo‟ refinada, que participa do
embelezamento dos lugares, mas que ninguém ouve” (CANDÉ, 2001a, p. 81).
Nessa perspectiva, a vida musical em Roma era movimentada e exercida em um
número significativo de escolas de música e dança, “[...] frequentadas pelos filhos
dos patriarcas [...]” (FONTERRADA, 2005, p. 22).
No tocante à música popular, conforme Candé (2001a), já era possível perceber os
primeiros sinais de censura e repressão aos processos criativos, que se tornarão a
tônica nos primeiros séculos da Idade Média. Assim, “[...] os censores, como os
51
padres, não se privarão de censurar a música popular, cujas tradições Gregório
Magno se esforçará por aniquilar” (CANDÉ, 2001a, p. 82).
Em uma visão geral, podemos dizer que a arte musical ocupou um lugar secundário
na escala de valores da sociedade romana, assumindo o papel de auxiliar na
aprendizagem da retórica, bem como de adorno de ambientes ou de status social,
no que se refere à sua relação com seus consumidores, pois tanto no gênero trágico
quanto na lírica “[...] a música ocupava um lugar menos importante [...]” (CANDÉ,
2001a, p. 81).
2.1.2 Idade Média
A produção musical no período medieval comportou diferentes tendências e
movimentos de expressão das sonoridades, tendo na base do desenrolar dos fatos
um mundo sacro e um mundo laico.
Em decorrência da queda do Império Romano – e sua subsequente divisão em
Impérios do Ocidente e do Oriente –, aliada ao advento do cristianismo, o poder
anteriormente exercido pelo Estado, na figura do imperador, passou a instalar-se na
Igreja, tendo no papa e nos senhores feudais os protagonistas das leis e da
condução da sociedade. Nesse sentido, os valores, as formas de pensar e a
produção do saber passaram a ser controlados pela Igreja, definindo conteúdos,
didáticas, bem como as maneiras de expressão, levando-nos à visão de que “[...] a
educação [...] foi basicamente um monopólio da igreja” (VEIGA, 2007, p. 18),
abarcando toda a produção criativa, incluindo, nesse contexto, o fazer musical.
Dessa forma, se no Império do Oriente a música “[...] resplandecia por toda parte
[...]” (CANDÉ, 2001a, p. 189), na Itália e regiões a ela ligadas, “[...] a música se
refugiava nos mosteiros” (CANDÉ, 2001a, p. 189), passando a desenvolver-se de
acordo com as premissas da Igreja, que estabeleceu regras composicionais,
conteúdos, maneiras de execução sonora, bem como o uso de instrumentos e os
modos de expressão. Mesmo considerando que as canções cristãs fossem o
resultado de um processo de fusão da civilização greco-romana, das tradições
célticas e das tradições orientais judaico-cristãs, a institucionalização do cristianismo
por Constantino aboliu as danças de seus repertórios, compilando os cantos em um
52
único formato e estética. Assim sendo, o fazer musical no universo sacro foi
resultado de uma moldagem eclesiástica, cuja expressividade era composta por
conteúdos, motivos e paradigmas cristãos, havendo a proibição de instrumentos e
de algumas notas musicais nas melodias, de acordo com as prescrições da Igreja:
preocupada com preservar a pureza de uma arte de essência religiosa, a Igreja não cessava de condenar todas as formas de música profana. [...] Os padres da Igreja condenavam qualquer desvio, qualquer pesquisa, qualquer iniciativa musical que emanasse de um leigo [...]. Os cristãos são advertidos contra os perigos de certas músicas de entretenimento. [...] as práticas coreográficas levam direto ao inferno (CANDÉ, 2001a, p. 220).
Podemos verificar as mesmas ações cerceantes nos escritos de Santo Agostinho,
nos quais esse pensador medieval confessa que os sons musicais incidiam em seus
ouvidos, fazendo despertar diferentes emoções, sendo algumas consideradas
impróprias:
os prazeres do ouvido prendem-me e subjugam-me com mais tenacidade. Mas Vós desligaste-me deles, libertando-me. [...] Quando, às vezes, a música me sensibiliza mais do que as letras que se cantam, confesso com dor que pequei. Nesse caso, por castigo, preferiria não cantar. Eis em que estado me encontro (SANTO AGOSTINHO, 2000, p. 292).
Paralelamente ao mundo sacro, cuja produção sonora era exclusivamente vocal e
endereçada a Deus, desenrolava-se no mundo laico uma música que agrupava às
vozes as sonoridades dos instrumentos, além de danças, poesias e a arte dos
acrobatas. Trata-se dos menestréis e dos trovadores, duas tendências da música
medieval que se diferenciavam pela maneira e pelos conteúdos que expressavam,
escapando à centralização do poder eclesiástico.
De acordo com Sadie e Tyrrell (2001b), os menestréis eram músicos de rua,
acrobatas, contadores de história, além de, usualmente, instrumentistas; os
trovadores, por sua vez, eram tocadores e cantores cuja música estava intimamente
relacionada à poesia e às temáticas do gentil lovying. Dedicando-se à “[...] criação
de versos e [...] canto, além do domínio do alaúde [...]. Os tocadores de flauta e lira
[...] exerciam a invocação dos prazeres por meio de suas produções artísticas,
melodias e composições” (FONTERRADA, 2005, p. 30-31).
No século X, embora a igreja se opusesse à livre expressão artística, algumas
comunidades monásticas ansiavam por inovar nos cantos, enxertando “[...] novos
elementos numa velha tradição ameaçada de esterilidade ou degeneração [...]”
53
(CANDÉ, 2001a, p. 237). Desse modo, o estilo canção, próprio dos trovadores,
passou a ser utilizado para preencher “[...] todos os momentos „vazios‟ da liturgia,
em particular para acompanhar os diferentes deslocamentos durante o ofício”
(CANDÉ, 2001a, p. 237). Esse movimento de inovação no exercício das sonoridades
propiciou o surgimento da figura do músico como compositor, destacando-se os
nomes de Léonin, Pérotin, Guillaume de Machaut, Dufay e Dunstable, relacionados
principalmente à música sacra, reinaugurando, de forma sutil, o livre proceder em
música.
Tendo por base esse cenário, constatamos que o fazer musical junto a crianças não
fugia a tais regras, assentando a elaboração de sua expressividade no âmbito do
mundo sacro, vinculada tão somente à adoração a Deus (FONTERRADA, 2005).
Tais práticas eram realizadas em seminários, conventos e igrejas, denominadas
scholae cantori, cujas atividades eram organizadas por músicos das igrejas, que “[...]
arregimentavam crianças dotadas de boa voz para suprir as necessidades de seus
coros. Geralmente provindas de lares pobres, essas crianças garantiam, muitas
vezes, o sustento próprio e o da família” (FONTERRADA, 2005, p. 27).
Esse fazer sonoro não tinha como propósito o desenvolvimento musical da criança,
restringindo-se à função de “[...] servir de suplemento à oração e à expressão da
emoção e do sentimento religiosos” (FONTERRADA, 2005, p. 28), sendo que “[...]
muitos dos importantes músicos dos períodos gótico, renascentista e barroco foram
meninos cantores” (FONTERRADA, 2005, p. 28). Os conteúdos musicais variavam
de acordo com a igreja, consistindo em aulas de canto, contraponto e improvisação.
Essa forma de organização da aprendizagem musical perdurou até a Renascença.
Assim, as scholae cantori estenderam sua atuação até o fim do século XV,
extinguindo-se à medida que uma nova ordem econômica e social se estabelecia na
Europa.
2.1.3 Renascença
Acontecimentos que se sucederam nos séculos XIV, XV e XVI levaram a um gradual
desmantelamento das estruturas feudais e consequente diminuição do poder
eclesiástico, relativizando as prescrições e o controle exercidos pela Igreja, fechando
as configurações econômicas, políticas e sociais que caracterizaram a era medieval.
54
Inaugura-se, assim, a Renascença, período em que, praticamente em todas as
regiões da Europa, eclodiu “[...] uma vasta fermentação de ideias [...] e a liberdade
de pensamento [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 306), que impulsionaram o desenvolvimento
técnico, bem como o “[...] espírito científico, cujo procedimento experimental se opõe
à superstição e à rotina” (CANDÉ, 2001a, p. 306).
No tocante à música como fazer artístico, a Renascença marcou uma transformação
importante para os processos criativos e sua expressão, constituindo-se um período
de libertação dos dogmas da Igreja Católica, alimentando nos músicos o desejo de
superar as rígidas regras de composição e execução, consagrando “[...] todas as
suas atenções ao estilo e à expressão poética. O estilo se ajusta mais ao prazer do
que à convenção, e a expressão poética impõe ao canto uma nova flexibilidade”
(CANDÉ, 2001a, p. 337).
Impulsionados pelo desejo de novos timbres e formas musicais e encorajados pelos
avanços tecnológicos, músicos lançam-se na criação de instrumentos musicais, bem
como em uma maior liberdade de expressar suas ideias e emoções por meio da arte
dos sons, marcando “[...] o abandono de um equilíbrio perfeito e [a] descoberta de
uma nova expressão” (CANDÉ, 2001a, p. 321).
Nessa perspectiva, constatamos a construção de diferentes tipos de teclado, que, ao
longo da Renascença, serão dotados de um riquíssimo repertório: “em 1386, [surge]
um instrumento munido de dois teclados manuais [...] o teclado de pedal, [...] o
échiquier, que não possui os mecanismos engenhosos que darão origem, no século
XVI, ao clavicórdio (cordas percutidas) e ao cravo [...], mas tem certo sucesso”
(CANDÉ, 2001a, p. 303). Outras sonoridades comumente usadas no contexto dos
Quatrocentos e dos Quinhentos são as das vielas (espécie de viola), harpas,
alaúdes, saltério, órgão e flautas.
55
Figura 3 - Jovem tocando clavicórdio, pintura de Jan van Hamessen (1534)
Fonte: Bennett (1993)
A liberdade no fazer musical renascentista fez-se perceber não somente entre os
compositores, mas também entre os instrumentistas ou cantores, pois “[...] a coisa
escrita ainda não impõe nenhum respeito impositivo e a variabilidade das execuções
será constante até a metade do século XVIII” (CANDÉ, 2001a, p. 337). As
execuções sonoras se utilizavam de instrumentos e vozes de maneira não habitual,
agrupando uma diversidade de instrumentos “[...] cujo uso não é prescrito pela
música escrita [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 337). Nesse sentido, muitos compositores
queixavam-se de que os cantores entoavam as músicas usando “[...] toda sorte de
artifícios: trêmulos, trinados, diminuições, floreios, mudanças de registro, voz de
cabeça e, sobretudo, certo tremolos na voz que delicia as multidões na Itália”
(CANDÉ, 2001a, p. 337).
Figura 4 - O concerto, óleo sobre tela de Gerrit van Honthorst (1624)
Fonte: O livro da Arte (1996, p. 228)
56
Outro fato de fundamental importância para a liberdade na expressão musical na
Renascença foi a invenção da imprensa, que estendeu suas atividades ao campo da
arte dos sons, propiciando a divulgação e a aprendizagem das composições, por
meio da leitura de partituras, desprendendo-se das mãos e das orientações do
compositor. A partir de 1473, foram criadas diversas oficinas que usavam o mesmo
procedimento tipográfico de Gutenberg, abrindo caminho para os primeiros
impressores-editores de música, constituindo-se um “[...] trabalho delicado, pois a
impressão deve ser feita em três tempos: uma primeira passagem para as pautas,
uma segunda para as notas, uma terceira para o texto e a paginação” (CANDÉ,
2001a, p. 322).
Embora a produção de partituras impressas tenha sido um fator decisivo na abertura
de uma nova trajetória nos processos sonoros, propiciando a aprendizagem de
músicas executadas por grandes cantores e instrumentistas, a invenção da
imprensa sinalizou igualmente para uma diferenciação no status social, visto que
os impressores-editores desempenharam um papel considerável na difusão da nova música e na formação de um público de diletante. Mas essa promoção cultural se limita às classes sociais mais favorecidas, porque os livros e também o papel de música custam caríssimos [sic]. Se a impressão favoreceu a difusão da polifonia erudita, também contribuiu para criar classes sócio-musicais. Não tendo acesso à música notada, o povo é obrigado a cultivar outra música, improvisada ou de tradição oral. [...] na parte superior da escala social, a música faz obrigatoriamente parte da cultura geral: deve-se saber tocar um instrumento, como se deve saber compor versos latinos (CANDÉ, 2001a, p. 322).
Assim, na década de 1520, verificamos a publicação de um grande número de
diferentes estilos musicais. Intérpretes que tivessem possibilidade de acesso aos
materiais teriam liberdade de execução: “[...] o cantor solista podia, assim, dar um
tratamento bastante livre às notas escritas, introduzindo ornamentos [...]
improvisados em uma ou várias cadências principais” (GROUT; PALISCA, 2007, p.
224). Músicos talentosos e virtuoses adquiriram reconhecimento e sucesso,
superando o prestígio dos compositores, valorizando sua arte, tomando
[...] toda sorte de liberdades com o texto. Os diletantes tomarão outras, por motivos diferentes: desejosos de executar a música em voga, devem contar com os limites de seu talento, a quantidade e a qualidade de seus parceiros, sem falar na preocupação de imitar determinado virtuose renomado (CANDÉ, 2001a, p. 338).
57
Tratando ainda do acesso dos diletantes renascentistas às composições, Candé
(2001a) abordou a produção e a divulgação de canções francesas com tablatura
apropriada para o alaúde, permitindo a execução por uma ou mais vozes, com
acompanhamento instrumental, em cujas partituras o compositor apresentava
sugestões para diferentes modos de execução, destinada ao público em geral.
No que diz respeito à educação musical, suas trilhas seguiram os mesmos passos
da educação em geral, constituindo-se um reflexo das ordens social e econômica,
visto que as mudanças políticas ocorridas tiveram especial interferência na estrutura
dos valores sociais, bem como na geração de uma nova dinâmica na vida cotidiana,
passando a ser regida “[...] por disputas de prestígio – e que exigia a educação e
comportamentos capazes de diferenciar os cortesãos uns dos outros” (VEIGA, 2007,
p. 34).
Desse modo, passou-se a atribuir à aquisição de conhecimento um importante valor
como elemento de diferenciação de prestígio na sociedade, produzindo novas
concepções de educação, bem como “[...] a proliferação dos colégios [...]” (VEIGA,
2007, p. 33). Nessa perspectiva, tem-se início “[...] uma preocupação com as
distinções para a educação das crianças – ou pelo menos dos filhos dos burgueses
e aristocratas” (VEIGA, 2007, p. 38).
Essas novas feições sociais fizeram-se refletir na modificação dos antigos colégios,
que, “[...] no século XIII [...] eram asilos para estudantes pobres [...] bolsistas [...]”
(ARIÈS, 2006, p. 110), tornando-se “[...] institutos de ensino [...] a partir do século
XV” (ARIÈS, 2006, p. 110). Tais institutos passaram a atender não somente aos
bolsistas, mas a uma numerosa população de estudantes. Esses estabelecimentos
constituíram o modelo de escola que iria vigorar entre os séculos XV e XVII, nos
quais “[...] todo o ensino das artes passou a ser ministrado” (ARIÈS, 2006, p. 110). É
por essa via que, a partir do século XVI, os colégios, ou hospitia, passam a ser os
espaços nos quais as práticas musicais e sua aprendizagem eram desenvolvidas.
Assim, originaram-se as “[...] escolas de formação básica em música, dentro de um
princípio de organização diferente do das scholae. [...], conhecidas como
„conservatórios‟ [...]” (FONTERRADA, 2005, p. 38), que funcionavam, na verdade,
como orfanatos, sendo oficialmente denominados como Ospedali (hospitais).
58
Os orfanatos musicais eram comumente organizados para acolher meninas e
meninos separadamente, tendo o primeiro desses sido criado em Nápoles, em 1537,
destinado a meninos, e outro, em Veneza, direcionado a meninas. Embora o fazer
musical das scholae cantori fosse direcionado ao louvor a Deus, já havia uma
preocupação em se organizar os conteúdos e métodos, incluindo-se aí a escrita
musical e sua execução em língua materna.
Tais modificações podiam ser observadas tanto em escolas católicas quanto em
escolas protestantes, evidenciando “[...] a necessidade de buscar critérios uniformes
que não descaracterizassem a música cristã que se expandia” (FONTERRADA,
2005, p. 39), “[...] criando a necessidade da transmissão formal de conhecimento”
(FONTERRADA, 2005, p. 39). Podemos afirmar que se inicia aí um processo de
alfabetização musical, facilitado pela notação da arte dos sons, já em curso,
conforme Candé (2001a), desde o século XI.
No que diz respeito à visão de criança, a sociedade renascentista passa a entendê-
la “[...] como um ser que necessita de cuidados, [...] educação e lazer”
(FONTERRADA, 2005, p. 38), distanciando-se da concepção medieval em relação
aos infantes.
As instituições escolares nesse período – os colégios, ou hospitia, ospedale – eram
divididas em “[...] colégios dos jesuítas, os colégios dos doutrinários e os colégios
dos oratorianos [...]” (ARIÈS, 2006, p. 110), sendo os primeiros os que mais se
proliferaram na Europa e, posteriormente, em outros continentes, constituindo-se
como “[...] o grande marco de ensino nas sociedades católicas europeias e latino-
americanas, [...] integrando a pedagogia humanista ao espírito da cristandade”
(VEIGA, 2007, p. 41). Especificamente, a ordem dos jesuítas, ou Companhia de
Jesus, foi fundada por Inácio de Loyola, em 1534, tendo como objetivos centrais o
combate à Reforma Protestante e às “heresias”, dedicando-se “[...] principalmente à
formação das classes dirigentes da sociedade [...]” (MANACORDA, 2006, p. 203).
Na verdade, os jesuítas fundaram dois diferentes tipos de colégios, de acordo com a
estratificação social: “[...] havia tanto escolas para burgueses e nobres quanto
escolas exclusivas para filhos de nobres [...]” (VEIGA, 2007, p. 41).
59
Com as mudanças ocorridas no campo científico e da criação músico-instrumental,
constatamos, já no século XVI, o movimento dos reformadores, que defendiam o uso
da língua materna para a leitura da Bíblia, bem como para a execução de seus
cantos. Além desses aspectos, alguns grupos de reformadores reivindicavam um
novo modelo de instrução popular, verificando-se mobilizações de pequenos
artesãos associados ao campesinato, que chegaram a projetar “[...] corajosamente
um sistema de instrução popular [...]” (MANACORDA, 2006, p. 195). Na esteira da
Reforma e da Contrarreforma, Lutero emergiu como força propulsora para a
programação de um novo sistema escolar, “[...] voltado também à instrução de
meninos, destinados não à continuação dos estudos, mas ao trabalho”
(MANACORDA, 2006, p. 196).
Em se tratando das concepções relativas à expressividade sonora, constatamos em
Sadie e Tyrrell (2001a) que a doutrina aristotélica de arte como imitação da natureza
permanece do fim da Antiguidade até o princípio do século XVIII, atravessando todo
o período medieval e renascentista como a principal referência para as reflexões a
respeito dessa temática, constituindo-se uma base fundamental para o
desenvolvimento dos processos criativos no campo da arte. Nessa perspectiva, de
acordo com Bennett (1986), no fim do século XVI, um grupo musical – Grupo
Camerata – de Florença, Itália, passou a compor uma linha melódica simples
acompanhada de um baixo instrumental, associando a essa simplicidade a
expressão das emoções, dos estados da alma.
2.1.4 Períodos barroco e clássico
No período compreendido entre 1600 e 1750, observamos uma ampliação dos
processos de liberdade de expressão e de inventividade musical originados na
Renascença, estando esse fortalecimento associado principalmente “[...] à criação
do melodrama [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 424), gênero musical originado na Itália,
constituindo-se uma nova junção entre a poesia e a música. Praticando-se o que se
imaginava ser a recitação lírica da Grécia e Roma antigas, a expressão passou a ser
reivindicada como um aspecto independente das regras de composição musical
vigentes, reacendendo as digressões acerca da alma e das paixões: “[...] o estilo de
música vocal deve ser a conjunção do sentido poético e do sentimento individual. [...]
[os compositores pretendiam] substituir as [...] construções da polifonia pela livre
60
expressão musical das paixões” (CANDÉ, 2001a, p. 424). Nesse caso, tais paixões
poderiam ser traduzidas não mais na significação convencional das palavras, mas
na maneira de cantar, devendo “[...] dispor o músico de uma liberdade soberana”
(CANDÉ, 2001a, p. 424).
Em relação aos instrumentos, a expressão de tais paixões requisitava sonoridades
específicas, diferentes dos sons da Idade Média, levando ao aprimoramento ou à
elaboração de novos instrumentos musicais, que proporcionassem outras texturas,
outros timbres. Tratando especificamente dos instrumentos de teclado, identificamos
em Candé (2001a) que, entre os séculos XVI e XVIII, tem-se a invenção de
[...] pequenos instrumentos portáteis (um só teclado de quatro oitavas, um só registro) de forma retangular que, até meados do século XVII, pelo menos, eplipsarão o clavicórdio. Dá-se-lhe o nome de épinette na França, de spinetta na Itália, de virginal na Inglaterra (CANDÉ, 2001a, p. 402).
Na Inglaterra, o virginal transformou-se no instrumento mais popularmente usado
entre as famílias elisabetanas, sendo, igualmente, a sonoridade preferida dos
compositores, tais como William Byrd e John Bull, formando uma profícua escola de
virginalistas.
Figura 5 - Mulher sentada ao virginal, óleo sobre tela de Vermeer (1675)
Fonte: O livro (1996, p. 474)
Os compositores não se pouparam à criação de incontáveis obras para virginais, de
caráter virtuosístico, assinalando “[...] uma etapa decisiva na evolução da técnica do
61
teclado [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 405). Com referência à sonoridade, identificamos
descrições do som de determinados instrumentos de teclado: “apesar da [sic]
sonoridade do virginal não ser muito rica e possante, e ser menos variada do que a
do cravo, suas notas agudas cintilam como brilhantes e as do baixo podem
surpreender pelos sons arredondados e cheios” (BENNETT, 1993, p. 26).
Em 1600, o gênero referido como melodrama passou a ser qualificado como
representativo ou recitativo, influenciando a criação de um tipo de Oratório, na
verdade, “[...] um melodrama religioso em stile representativo, [...] montado por
iniciativa dos padres como uma piedosa alternativa para os espetáculos profanos
que se multiplicavam naquele período de carnaval” (CANDÉ, 2001a, p. 426), bem
como abrindo espaços para a ópera. O estilo melodrama ficou mais nítido no século
XVII, especialmente na produção de Cláudio Monteverdi, cuja obra Orfeo traz “[...]
uma „recitação cantada‟, moldada na expressão dos sentimentos: intervenção
dramática dos coros, [...] esplendor instrumental [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 436),
inaugurando o período barroco.
Por essa via, os processos expressivos na arte dos sons unificaram a música vocal e
instrumental, esfumaçando-se, de uma vez por todas, as fronteiras entre música
sacra e música laica, que, a partir desse ponto, poderiam ser distinguidas apenas
por meio da “[...] espiritualidade que a eventual fé religiosa do compositor irradia [...]”
(CANDÉ, 2001a, p. 598). A forma de pensamento do homem barroco e clássico e,
consequentemente, seus modos de sentir, em geral, seguem os pressupostos
cartesianos, expressando suas paixões de maneira que “[...] não é desenfreada [...]”
(FONTERRADA, 2005, p. 47), obedecendo às regras composicionais previamente
organizadas: “[...] Haydn e Mozart nunca se esforçaram para exprimir „paixões‟
exteriores à sua inspiração puramente musical” (CANDÉ, 2001a, p. 12).
A eclosão da música instrumental e sua consequente prevalência em relação à
composição vocal sinalizou para uma modificação profunda nos valores relativos à
produção da arte dos sons, fazendo nascer a figura do concertista, que dialoga com
o restante da orquestra, mesmo que ela seja de pequeno porte. Por essa via, “[...] a
emancipação da música instrumental iniciada no século XV se realiza plenamente
na era barroca” (CANDÉ, 2001a, p. 501), inaugurando um processo de descobertas
62
das singularidades e possibilidades timbrísticas de cada instrumento, bem como das
vozes.
De acordo com Bennett (1993), o desejo de expressar as sutilezas das sonoridades
ocupa a atenção central dos músicos, que passaram a buscar uma amplitude maior
no que diz respeito ao crescendo e ao diminuendo, bem como uma variação nas
texturas e timbres. Bennett (1993, p. 37) destaca comentários feitos pelo compositor
e instrumentista Couperin (1668-1733) a respeito do cravo, observando que esse
instrumento musical possuía ótima extensão, sendo, “[...] por si só, um instrumento
brilhante, mas já que é impossível fazer crescer ou diminuir a sua sonoridade, ficarei
para sempre grato a quem, com infinita arte e bom gosto, contribua para tornar esse
instrumento capaz de expressão”.
A “expressão” de que trata Couperin é a possibilidade de realizar uma variedade de
sonoridades em um mesmo trecho melódico, indo dos sons fortes, passando por
sons de média intensidade até chegar a sonoridades suaves ou extremamente
delicadas. Tal expressividade corresponde às ideias sonoras dos músicos
oitocentistas, que requisitavam novos instrumentais, capazes de corresponder aos
sons que tinham em suas mentes, haja vista que a conformação sonora medieval
era de pouco trânsito no que se refere aos sons graves e agudos, mantendo-se
preponderantemente nos sons médios, e não apresentava mobilidade significativa
nas intensidades mais fortes ou mais suaves.
Dessa maneira, entre 1709 e 1736 foram desenvolvidos alguns tipos de piano que
tinham como objetivo “[...] privilegiar o toque expressivo, permitindo executarem-se à
vontade as nuanças piano e forte, coisa impossível no cravo e incerta no clavicórdio”
(CANDÉ, 2001a, p. 562, grifos do autor). A invenção de Bartolomeo Christofori
(1655-1731) abriu inúmeras e interessantes possibilidades aos instrumentistas e aos
compositores, visto que
[...] era possível controlar as múltiplas nuanças intermediárias de volume. [...] Um outro contraste era o de legato (notas sustentadas e uniformes) por oposição ao staccato (notas secas e destacadas). Fora isso, podia ainda o instrumentista, com a mão direita, modelar uma expressiva melodia ao estilo cantabili [cantado], enquanto a esquerda fornecia um acompanhamento sóbrio, mas sutilmente colorido (BENNETT, 1993, p. 37-38).
63
Figura 6 - Piano de Bartolomeo Christofori (1720)
Fonte: Bennett (1993)
Tais transformações nas sonoridades, que colocavam a música instrumental como a
principal referência no âmbito do fazer musical, propiciaram a elaboração de novas
concepções sobre a expressão da arte dos sons, trazendo diferentes reflexões e
teorias que, de certa maneira, remontavam à concepção da arte como imitação da
natureza, elaborada por Aristóteles. Dentre essas reflexões, destacamos duas
vertentes de pensamento que defendiam a ideia de que os eventos musicais teriam
estreita relação com os sentimentos humanos (FONTERRADA, 2005): trata-se da
Teoria dos Afetos e da Doutrina das Figuras, vinculada à retórica.
No que se refere à Teoria dos Afetos, constatamos reflexões semelhantes a respeito
da expressão dos afetos pela via musical, algumas delas apresentando descrições
detalhadas de suas relações com determinados sons, bem como da maneira de
executá-los. Esse é o caso da proposta de J. Matheson (1796-1878), cujo trabalho
apresenta um elenco de diferentes afetos (mais de 20), acompanhados da indicação
do modo pelo qual deveriam ser expressos na música: “[...] a tristeza deve ser
expressa por melodias de movimento lento e lânguido, e quebrada por saltos; o ódio
é representado por uma harmonia repulsiva e rude, e por uma melodia semelhante”
(FONTERRADA, 2005, p. 44). Referindo-nos à Doutrina das Figuras, a
expressividade baseava-se no empréstimo das figuras da retórica, tais como “[...] a
aposiopesis (parada súbita, silêncio expressivo), a pathopoeia (expressão de
sentimentos) [...]” (FONTERRADA, 2005, p. 45 grifos da autora).
64
Outra importante referência acerca das concepções sobre expressão na arte dos
sons é o pensamento de Jean Dubos (1670-1742), pensador francês cuja teoria
defendia que a música seria “[...] um meio de despertar as paixões moderadas no
homem, através [sic] da imitação, afastando-o dos aborrecimentos” (SADIE;
TYRRELL, 2001a, p. 463, tradução minha). Ou, nas palavras do próprio autor,
[...] tal como o pintor imita os traços e as cores da natureza, de modo semelhante, o músico imita os tons, os acentos, suspiros e inflexões da voz; em um conjunto daqueles, daqueles sons, pelos quais a natureza, ela mesma expressa seus sentimentos e paixões (DUBOS, p. 360, acesso em 4 jun. 2016, tradução minha).
Para Dubos (p. 363, acesso em 4 jun. 2016, tradução minha), a música era um meio
de imitar a natureza do homem, em suas paixões e sentimentos, bem como uma
imitação literal da natureza, pois “[...] a música não se satisfaz por imitar as
modulações da linguagem não articulada do homem, bem como os diversos sons
dos quais ele faz uso por instinto; ela tem buscado igualmente formar imitações de
todos os outros sons naturais”. Esse autor afirmava ainda que a música possuía
uma verdade e que essa verdade consistiria na imitação de sons que se adequam
“[...] naturalmente aos sentimentos que as palavras contêm [...]” (DUBOS, p. 363,
acesso em 4 jun. 2016, tradução minha). Ao fazer referência ao estilo musical
sinfônico, ele salientou seu caráter exclusivamente instrumental, e, na mesma
perspectiva, afirmou que
[...] a verdade da imitação nas sinfonias consiste na semelhança com os sons que ela intenciona imitar. Existe verdade em uma sinfonia composta para imitar uma tempestade [...] quando a modulação, a harmonia e a rítmica chegam aos nossos ouvidos, com o som semelhante às baforadas de vento no ar, e as quedas das ondas, com suas precipitações impetuosas umas contra as outras, ou quebrando-se nas rochas (DUBOS, p. 364, acesso em 4 jun. 2016, grifo do autor, tradução minha).
Além do pensamento de Matheson e Dubos, coexistiam no período outras reflexões
a respeito da expressão musical, tecidas na mesma perspectiva da arte como
imitação da natureza, apresentando pequenas diferenças entre si. Nesse sentido, o
crítico de arte inglês Charles Avison (1775, p. 4-5) argumentava que a música nos
faz “[...] exaltados com júbilo, ou afundados em tristeza agradável, incitados à
coragem, ou esmagados por gratos terrores, desfeitos em piedade, ternura e amor
[...]”, porém, “[...] as tristezas e os terrores da música não são emoções nossas, mas
são sentidas por nós simpaticamente”.
65
Estabelecendo uma aproximação com a temática da pesquisa aqui relatada,
verificamos transformações importantes no século XVIII, tendo como princípio geral
o ato de distinguir a infância da vida adulta. A atenção à infância já se manifestara
nas sociedades europeias desde o século XVI, porém, teve um lento
desenvolvimento, vindo a ser notada com clareza somente no fim dos Setecentos.
Os processos educativos começaram, portanto, a ser pensados em uma nova
perspectiva, a qual tinha como premissas o respeito aos ritmos da criança e à sua
espontaneidade. Esse modelo de pensamento a respeito da infância tem como
principal representante o filósofo Jean-Jacques Rousseau, o qual elaborou uma
pedagogia própria às diferentes faixas etárias, a saber: “[...] infância, puerícia,
puberdade, adolescência e jovem adulto [...]” (VEIGA, 2007, p. 44), sendo tais
orientações válidas tanto para as mães quanto para os educadores.
Rousseau (apud VEIGA, 2007) defendia o equilíbrio entre razão e sensibilidade,
apostando na educação dos sentidos, com ênfase nos processos exploratórios, na
experiência e nas descobertas. Por essa via, todo ato educativo deveria propiciar
aos infantes o autoconhecimento, bem como a descoberta do corpo e da natureza,
por meio da autoexpressão. Tais princípios e procedimentos seriam a condição
única para que o indivíduo formasse, ao longo de seu desenvolvimento, uma atitude
moral.
Na esfera da filosofia da música, Rousseau teceu amplas reflexões acerca da
significação da arte dos sons, sendo o primeiro pensador, no campo da educação, a
formular um “[...] esquema pedagógico especialmente voltado para a educação
musical” (FONTERRADA, 2005, p. 51). Em sua proposta para a música na infância,
esse filósofo sustentava que as canções deveriam ser “[...] simples e não dramáticas
[...]” (FONTERRADA, 2005, p. 51), deixando a leitura musical para etapas
posteriores do processo de musicalização.
A partir de meados do século XVIII, a pedagogia ilustrada ou iluminista – tendo como
mola propulsora o pensamento de Rousseau – instigou a realização de diversas
reformas nos programas educacionais na Europa, que possuíam duas
características comuns: “[...] o fechamento dos colégios dos jesuítas e o fato de o
Estado assumir a administração educacional” (VEIGA, 2007, p. 93). Esse fato é um
66
desdobramento da configuração política e econômica na qual se assentava a
sociedade no século XVIII, movida pela primeira Revolução Industrial, expansão das
relações mercantilistas, processo de monopolização do ensino pelo Estado, bem
como pelo aprimoramento das identidades individuais, marcando a formação dos
modernos Estados nacionais. Tais modificações repercutiram na estruturação das
escolas, que, a partir de então, passariam a ter como objetivo central a formação de
um cidadão eficiente, um trabalhador que atendesse às demandas das recém-
criadas indústrias e suas máquinas.
Assim, na perspectiva da profissionalização e eficiência, a educação musical passou
a apresentar diferenciações relacionadas à classe social: os antigos colégios ou
ospedale que se mantinham em funcionamento atendendo a crianças órfãs
passaram a ter um objetivo “[...] decididamente de caráter profissionalizante [...]”
(FONTERRADA, 2005, p. 48). Relatos concernentes às práticas musicais nos
ospedale, ou, ainda, “hospitais”, destinados a meninas, em Veneza, revelam que
haviam treinamentos com vistas à excelência musical.
Relativamente às crianças da nobreza e burguesia, era comum as famílias formarem
grupos musicais que tocavam em suas residências, como atividade diletante.
Consideramos importante destacar que “[...] as crianças tomavam parte em todos
esses concertos de câmara” (ARIÈS, 2006, p. 57). Também os adultos tocavam para
elas. Desse modo, “[...] embora a prática familiar e popular de um instrumento ou do
canto talvez fosse mais comum na Inglaterra elisabetana do que no resto da Europa,
ela era também difundida na França, na Itália, na Espanha e na Alemanha [...] até os
séculos XVIII e XIX” (ARIÈS, 2006, p. 57). Em se tratando da arte dos sons no meio
popular, verificamos as práticas “[...] entre camponeses, [...] mendigos, cujos
instrumentos eram a gaita de foles, o realejo e a rabeca” (ARIÈS, 2006, p. 57).
No fim do século XVIII, podemos afirmar que a arte dos sons ganhou ênfase em sua
utilização como marca identitária, exercendo o papel de demarcadora de territórios e
expressão de poder, sendo possível entendê-la como “[...] o mito da voz única de
uma nação” (BUCH, 2001, p. 10). Na Inglaterra, a canção God save the King (que
posteriormente foi denominada God save the Queen) marca o surgimento do gênero
“hino nacional”, que é seguido pela França revolucionária, com La Marseilhaise, que
continha em si os ideais da Revolução Francesa (1789). O hino francês foi precedido
67
por inúmeras canções populares perpassadas pelo caráter nacionalista, ainda que
independentes de uma orientação do Estado, constituindo-se melodias que
delimitavam por completo e nitidamente as fronteiras entre o pensamento medieval e
o moderno, por exemplo, “[...] na língua, com a substituição do latim pelo francês; na
temática, passando da invocação do Deus cristão à [temática] da liberdade, [...] e a
entronização de um sujeito coletivo que se transforma em voz geral do povo pela
reunião de todos os indivíduos” (BUCH, 2001, p. 43).
Essa nova forma de expressão musical surgiu em diferentes nações, firmando-se no
cenário geopolítico como demarcação de territórios e interesses de natureza diversa,
como é o caso do Estado austríaco, que encomendou um hino imperial ao
compositor Joseph Haydn, com o objetivo de marcar o posicionamento
contrarrevolucionário do governo. Na Alemanha, Beethoven compôs Ode à alegria,
que se tornou uma canção emblemática para os germanos, cantada em alemão,
sendo utilizada tanto como grito do povo quanto como a voz do Estado.
A enunciação dos hinos revolucionários vai oscilar entre a representação da voz coletiva no canto dos músicos profissionais e as tentativas para fazer a população, por si mesma, cantar. Essas variações são frequentemente ligadas às questões práticas, mas nelas reside o traço dos debates políticos sobre a participação popular, em geral, e incidindo sobre o estatuto da democracia (BUCH, 2001, p. 42).
A Revolução Francesa, no fim do século XVIII, definiu-se como uma linha divisória
entre formas econômicas e políticas que moldavam as sociedades europeias,
sinalizando para grandes transformações nos modos de produção e nas relações de
trabalho. Nessa perspectiva, o conceito de nação, “[...] que tende a substituir o de
Estado [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 629), impulsionou a valorização da cultura como
patrimônio nacional e modificou “[...] profundamente o sentido e as condições da
comunicação artística [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 629). Beethoven emergiu como o
grande músico desse período de transição, situando-se como um artista
revolucionário, insubmisso ao poder instituído, “[...] porque essa disposição
individual irrompe em sua obra [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 628). Sua música não
expressa as ideias revolucionárias, mas antes, ela, em si mesma, “[...] é um ato de
revolução [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 628).
Tais fatos incidiram nas ideias a respeito das concepções sobre a expressão musical
da época, culminando na ruptura com a doutrina aristotélica, tendo na figura de
68
William Jones (1746-1894) o precursor da argumentação de que a música não era
uma arte imitativa, mas simplesmente a expressão das paixões. Conforme Sadie e
Tyrrell (2001a, p. 463, tradução minha), esse filósofo afastou-se das concepções
aristotélicas a respeito da arte, defendendo a ideia de que “[...] as partes mais
refinadas da poesia, da música e da pintura são expressões das paixões e operam
em nossas mentes [...] por substituição [...]”. Conforme os autores, a concepção de
William Jones apresentou uma diferença significativa para a compreensão a respeito
do fazer musical, pois, ao considerar a arte musical como expressão das paixões,
abriram-se as possibilidades para se expressar o visível e o invisível, representando
“[...] um passo para o que denominamos ser a „interpretação‟, na perspectiva da
subjetividade no romantismo” (SADIE; TYRRELL, 2001a, p. 463, tradução minha).
2.1.5 Romantismo
Os últimos anos do século XVIII e todo o século XIX foram palco de intensas
transformações nos modos de produção, bem como nas relações de trabalho,
caracterizando a consolidação do sistema capitalista em toda a Europa (VEIGA,
2007). A Segunda Revolução Industrial, em meados do século XIX, também afetou
as configurações sociais e políticas em diversas regiões europeias, reordenando a
formatação das cidades, que sofreram significativo aumento no volume populacional,
acelerando o processo de urbanização.
Esse enquadramento trouxe diferentes demandas para a organização dos centros
urbanos, levando a administração pública à criação de departamentos
especializados em áreas tais como programas de higiene, coleta de dados sobre
doenças e outros temas relacionados à condição de vida das populações. Dessa
forma, as cidades passaram a se constituir centros de formação e educação, visão
“[...] enfatizada em diversos projetos de reordenação dos espaços urbanos,
evidenciando a necessidade de converter tais espaços em polos de
desenvolvimento das novas relações de trabalho e de produção” (VEIGA, 2007, p.
207).
Igualmente, tais transformações propiciaram o nascimento de uma nova
sensibilidade, que poderia ser traduzida, de um modo geral, nas antíteses entre “[...]
o progresso e o mal do século, as monarquias liberais e as repúblicas autoritárias, o
69
nacionalismo e o internacionalismo, o individualismo e o sentimento da natureza, o
sonho e a revolta” (CANDÉ, 2001b, p. 10). Essa sensibilidade afetou, de forma
determinante, as construções musicais, que passaram a expressar as angústias,
buscas, descobertas, alegrias, além das formas sociais e profissionais do contexto
oitocentista. Nessa perspectiva, o músico passou a não mais compor por
encomenda de um papa, imperador ou duque, mas para um grande público, e, “[...]
não sabendo mais para quem nem por que cria, o compositor encontra em si mesmo
o motor de sua inspiração” (CANDÉ, 2001b, p. 16).
Trata-se de uma forma inusitada de ser profissional da música, pois, “[...] entregue a
si mesmo, o compositor terá dificuldades para organizar sua nova situação. [...] O
compositor organiza concertos em seu benefício, exerce uma profissão anexa
(crítico, maestro, professor)” (CANDÉ, 2001b, p. 16). Esse fato criou dificuldades
relativas à subsistência, mas, ao mesmo tempo, estando o profissional “[...] livre da
obrigação de escrever por encomenda, [o novo cenário] deixa-lhe a liberdade de
escrever o que lhe apraz e apresentar sua música onde bem entender” (CANDÉ,
2001b, p. 11).
Por esse ângulo, a expressividade na arte dos sons passou a estar associada à
criação individual, tornando a empunhar a bandeira da expressão, abandonada no
classicismo. Assim, na sonoridade oitocentista, a alma do artista é “[...] o objeto que
se deve retratar, que a música tem por função essencial expressar. [...] O
romantismo consagrou-se ao culto da personalidade” (CANDÉ, 2001b, p. 12-13).
Com objetivo, portanto, de expressar as paixões de uma alma específica, que vão
desde a paz mais profunda até as angústias avassaladoras, os compositores
criaram, por meio de blocos sonoros, a ideia dessas sensações, compondo a
matéria sonora arquitetonicamente, tanto na verticalização quanto nos
encadeamentos horizontais entre os sons. Assim, buscaram a intensidade sonora,
que passou a ser mais encorpada, radicalizando na extensão das sonoridades
graves e agudas, bem como na magnitude dos sons fortes ou de extrema leveza. Se
compararmos ao período clássico e barroco, os forte, no romantismo,
frequentemente chegaram aos sons fortíssimos, e os piano, às sonoridades muito
leves, doces, geralmente na conjugação de contrastes repentinos.
70
Tais sonoridades imaginadas pelos compositores tiveram como melhor veículo de
expressão o piano, que, no século XIX, já apresentava diferenças significativas
comparativamente ao utilizado por Mozart. Dessa maneira, tendo passado por
inúmeras melhorias técnicas e visivelmente remodelado, o piano oitocentista era “[...]
capaz de produzir um som pleno e firme a qualquer nível dinâmico, de responder em
todos os aspectos às exigências de expressividade e do mais extremo virtuosismo”
(GROUT; PALISCA, 2007, p. 590).
Por essa via, o piano passou a ocupar um lugar central na sociedade musical do
século XIX, apresentando “[...] possibilidades absolutamente inauditas: sua técnica
dá o maior salto de sua história” (CANDÉ, 2001b, p. 23). Podemos afirmar que o
piano consagrou-se como “[...] o instrumento romântico por excelência [...]” (GROUT;
PALISCA, 2007, p. 590), fortalecendo a figura do virtuose como referência e objetivo
último das práticas sonoras. Com essa finalidade, são criadas inúmeras obras
específicas para o desenvolvimento técnico nesse instrumento, destacando-se os
Estudos de Chopin, nos quais “[...] todas as dificuldades, mas também todos os
recursos do instrumento são abordados de maneira ousada” (CANDÉ, 2001b, p.
170).
Figura 7 - Piano no século XIX
Fonte: Bennett (1993)
Relativamente às concepções sobre expressão musical, verificamos no período
romântico, conforme ressaltam Sadie e Tyrrell (2001a), duas vertentes de
pensamento opostas: a que entendia a música como a representação de uma ideia
ou de um estado mental, conforme as reflexões de Hegel, Schopenhauer, Wagner e
71
Nietzsche, e outra que defendia a noção de que a arte dos sons só pode ser
compreendida em si mesma, nas suas formas sonoras, não expressando nada além
de si mesma, conforme ideias defendidas por Hanslick (2011).
Sadie e Tyrrell (2001a, p. 467, tradução minha) salientam ainda que a arte para
Hegel “[...] poderia ser somente expressão [...]”, já que esse filósofo a entendia como
um produto unicamente humano, que dá forma à vida mental, corporificando suas
ideias e concepções. Na perspectiva de Hegel, a expressão sonora não se
associava a nenhum estado particular da mente, consistindo em uma representação
das possibilidades mentais. Por essa via, não haveria modo de “[...] estudar a
geometria de um rosto desconsiderando suas características enquanto [sic] a
revelação intrínseca da vida mental” (SADIE; TYRRELL, 2001a, p. 468, tradução
minha).
Em Schopenhauer (1997, p. 88), por sua vez, observamos a concepção de que a
arte dos sons “[...] é uma reprodução e uma objetivação tão imediata de toda a
vontade8, como a constitui o próprio mundo, como o são as ideias, cujo fenômeno
multiplicado forma o mundo das coisas individuais”. Nessa ótica, a música não era
entendida como a apresentação de ideias extraídas dos fenômenos cotidianos, mas
representava “[...] em si mesma uma ideia compreensível de mundo,
automaticamente incluindo o drama” (SADIE; TYRRELL, 2001a, p. 465, tradução
minha).
O ponto de vista defendido por Schopenhauer encontrou ressonância nas ideias de
Wagner (1893), que sustentava a noção de que a expressão musical não se referia
a um determinado modo de sentimento ou à tormenta de um indivíduo em uma
situação específica, salientando sua função abstrativa. Wagner (1893) sublinhou o
caráter da música como representação de emoções, constituindo uma linguagem
que expressa aquilo que é indizível na linguagem verbal.
8 Um ponto extremamente importante na obra de Schopenhauer é o conceito denominado vontade.
Por influência da filosofia oriental, esse filósofo entende o homem como um microcosmo, um microuniverso. Homem e universo estão em constante luta, em função da Vontade que está no Universo, mas também mora no corpo do homem (vontade) (GHIRALDELLI JÚNIOR, 2007). Nem sempre essas duas vontades coincidem, o que causa sofrimento ao homem. Já que a vontade é irracional e não passível de controle, não podemos escapar de tal sofrimento. É aqui que a arte e a contemplação da natureza assumem um importante papel na filosofia schopenhaueriana, já que prática da ascese estética é sugerida como algo que pode minimizar esse sofrimento.
72
Semelhantemente a essa perspectiva, para Nietzsche (1974, p. 25), a música “[...] é
um fenômeno eterno: a vontade ávida sempre encontra um meio, graças a uma
ilusão espraiada sobre as coisas, para manter suas criaturas na vida e forçá-las a
continuar a viver”. De acordo com Sadie e Tyrrell (2001a, p. 465, tradução minha),
Nietzsche concebia a arte dos sons como o resultado de um equilíbrio entre seus
aspectos dionisíacos (os sentidos) e apolíneos (as regras, a estrutura, a ordem),
destacando que “[...] o poder expressivo da música, e consequentemente o seu
valor, emergem da tensão entre esses dois extremos”.
Sadie e Tyrrell (2001a) salientaram a proximidade de pensamento entre
Schopenhauer, Wagner e Nietzsche, destacando que suas abordagens sinalizavam,
de certa maneira, para uma retomada da concepção de arte como imitação da
natureza, porém, o que estava sendo imitado ou representado “[...] não é um outro
mundo da natureza. No lugar disso, trata-se agora, da profunda natureza da força da
vontade em si mesma” (SADIE; TYRRELL, 2001a, p. 465, tradução minha).
Em se tratando das ideias de Hanslick, observamos que em sua concepção a
música é um conjunto articulado de sons e ritmos, cujos sentidos residem na própria
sequência de seus elementos. Esse musicólogo defendeu a ideia de que “[...] o
único e exclusivo conteúdo e objeto da música são formas sonoras em movimento”
(HANSLICK, 2011, p. 41), não expressando nada além de si mesma: “diante do
belo, a fantasia não é apenas um contemplar, mas um contemplar com
entendimento, um representar e um julgar [...]” (HANSLICK, 2011, p. 11).
No que diz respeito à educação musical, constatamos sua inter-relação com os
modos de produção e relações de trabalho característicos da sociedade oitocentista.
De acordo com Veiga (2007), a maneira capitalista de se produzir bens materiais,
baseada no manejo eficiente de máquinas com tarefas especializadas, influenciou,
de maneira determinante, as formas de produção do conhecimento e sua
subsequente difusão. Ou seja, o tempo e o processo de produção do conhecimento
deixaram de ser controlados por seus próprios produtores, passando à
administração de um sistema gerencial que hierarquizou, racionalizou, classificou e
diferenciou as profissões e os salários.
73
Esse modo de produção englobou igualmente a escola, influenciando sua
estruturação, organização e forma funcionamento. Nesse sentido, as capacidades
humanas foram compartimentalizadas, criando-se as habilidades direcionadas para
a indústria, fazendo com que o saber “[...] se restringisse à atividade específica de
cada um na cadeia de produção” (VEIGA, 2007, p. 203).
Por essa via, as práticas educativas no âmbito da música sofreram uma profunda
modificação no que se refere aos objetivos, ao público atendido, bem como ao
espaço de aprender: no âmbito da música, “[...] o século XIX assiste ao surgimento
das primeiras escolas particulares de caráter profissionalizante. A primeira delas é o
Conservatório de Paris, criado em 1794. Na Inglaterra, em 1822, é fundada a The
Royal Academy of Music” (FONTERRADA, 2005, p. 70). Tais instituições de ensino
de música funcionavam como externato, afastando-se dos modelos dos colégios
italianos dos séculos XVI a XVIII, que atendiam a crianças órfãs. Ao longo de todo o
século XIX, esse estilo de escola de música passa a ser criado em diversas cidades
da Europa – Praga (1811), Viena (1817), Berlim (1850) e Genebra (1815) –, Estados
Unidos – Boston, Illinois (1860) – e também no Canadá – Montreal (1860)
(FONTERRADA, 2005).
É esse formato de conservatório de música que chegou ao Brasil. As primeiras
instituições nas quais ele se fez presente foram o Conservatório Brasileiro de
Música, no Rio de Janeiro (1845), e o Conservatório Dramático e Musical, em São
Paulo (1906). Por aqui, o modelo de conservatório europeu foi implantado seguindo
a estrutura curricular, o elenco de músicas (o repertório), bem como as balizas para
se avaliar as interpretações dos alunos, sendo seguido até hoje na formação da
maior parte dos músicos no País (FONTERRADA, 2005).
Retomando a questão do modo de produção capitalista e sua relação com a
produção do conhecimento, constatamos que a divisão de classes sociais dele
resultante determinou uma diferenciação no que diz respeito à relação com a arte
dos sons: as práticas musicais da classe trabalhadora desenvolviam-se na
perspectiva da tradição oral, enquanto a classe burguesa passou a determinar os
valores e os critérios de legitimidade em torno da qualidade no fazer artístico. Assim,
a sociedade burguesa do século XIX passou a instituir os critérios que iriam
74
selecionar os produtores e os consumidores de uma determinada modalidade
musical, tendo como centro desse cenário o piano:
[...] nos países independentes e unificados, em estado de revolução social, a música torna-se [...] elitista [...]; será um setor preservado, a que a burguesia culta fornece seus mitos e suas instituições. De fato, em torno do piano, a música começa a instituir-se; ela seleciona seus fiéis, que são reconhecidos por seu „gosto‟ e sua atitude (CANDÉ, 2001b, p. 19).
Essa mesma burguesia criou uma espécie de establishment musical, inventando
“[...] o mito da música „verdadeira‟ (mais tarde, a música erudita)” (CANDÉ, 2001b, p.
19), por meio da sacralização das obras, da afetação de transcender o prazer, bem
como pela compreensão “[...] que fecha o círculo dos iniciados, desencorajando os
neófitos” (CANDÉ, 2001b, p. 19). O mito da interpretação verdadeira foi a tônica das
práticas musicais eruditas ao longo do século XIX e boa parte do século XX,
determinando um tipo específico de sonoridade a que todo instrumentista deveria
alcançar por meio de dedicação praticamente exclusiva aos estudos. A eficiência
musical tornou-se palavra de ordem tanto na esteira da produção industrial quanto
administrativa das sociedades modernas.
2.1.7 Século XX
O século XX é o tempo de amplo desenvolvimento tecnológico, da profusão de
diversas e inusitadas formas de pensamento e expressão musical, bem como da
consolidação da ideia de “[...] infância enquanto [sic] lugar de criança [...]” (VEIGA,
2007, p. 209), trazendo à cena teorias educacionais que tinham como centro o
desenvolvimento infantil.
No que diz respeito às produções musicais, os Novecentos marcam a inauguração
de timbres musicais eletrônicos e novos sistemas sonoros e rítmicos,
desenquadrando as regras e as formas composicionais criadas no período barroco e
ampliadas até o romantismo. Nessa perspectiva, verificamos o surgimento de
diversas linhas de expressão musical, que elaboraram novas estruturas sonoras
para expressar as ideias que tinham em mente, a saber: o impressionismo, o
nacionalismo, as influências jazzísticas, a politonalidade, a atonalidade, o
expressionismo, o serialismo ou dodecafonismo, a música aleatória, o serialismo
total e a música eletrônica.
75
Embora todas essas tendências tenham participado na formação de nossa
sonoridade atual, verificamos em Candé (2001b) a assertiva de que, estritamente no
campo musical, o que realmente desestabilizou os alicerces românticos foram as
estéticas impressionistas e jazzísticas, identificando nas tendências atonais e
dodecafônicas um menor poder de mover os processos de criação. Assim, conforme
destaca esse autor, o compositor Arnold Schöenberg, ligado ao serialismo e à
atonalidade, “[...] é, em suma, o menos subversivo dos [...] compositores que
orientaram as principais correntes musicais de nosso século” (CANDÉ, 2001b, p.
219).
Relativamente aos impressionistas, destacamos o compositor Claude Debussy que,
entre os anos de 1893 e 1894, apresentou publicamente sua obra Prélude à l’après-
midi d’un faune, de concepção revolucionária, “[...] que seduziu os ouvintes, pelo
canto voluptuoso de sua melodia, de seu ritmo suave, pelas sutis cores da harmonia
e da orquestração” (CANDÉ, 2001b, p. 178). Semelhantemente ao movimento
impressionista nas artes visuais, Debussy utilizou os sons da mesma forma que “[...]
os pintores lidavam com as luzes e cores [...]” (BENNETT, 1986, p. 70), criando
diferentes ambiências em agregados sensíveis de acordes em movimento paralelo,
dando à música “[...] o efeito de algo vago, fluídico, bruxelante, [...] novos efeitos de
luz e sombra” (BENNETT, 1986, p. 70), sugerindo uma realidade em devir. Debussy
transitava em espaços tais como os cafés artísticos e salões literários, “[...]
escapando, assim, das igrejinhas de todas as tendências [...]” (CANDÉ, 2001b, p.
196), sintonizado com a visão de que a intuição prevalece em relação à razão
(CANDÉ, 2001b, p. 208). Outra tendência na expressão dos afetos musicais está
relacionada às influências do jazz e do blues norte-americanos, tendo como
principais compositores Maurice Ravel, Gershwin, Aaron Copland e Igor Stravinsky.
Concernentemente à educação, verificamos que as concepções de criança e das
metodologias de aprendizagem inauguradas por Rousseau nos Setecentos
ganharam novos encaminhamentos no século XX, nas reflexões e propostas de
pensadores e pedagogos dos Estados Unidos e da Europa. Tais reflexões tomaram
forma com o movimento que no Brasil foi denominado escolanovista, tendo como
principais referências – entre outros importantes pedagogos – o pensador e
educador John Dewey (1859-1952), nos Estados Unidos; Maria Montessori (1870-
1952), na Itália; Edouard Claparède (1873-1940), na Suíça.
76
Na perspectiva de Dewey, a aprendizagem está diretamente relacionada à interação
e exploração dos objetos e do meio pela criança, tendo como fundamento o princípio
de que o conhecimento só se produz quando “[...] vinculado à atividade e à
experiência. Assim, o ambiente escolar deve estimular a criança a desenvolver seus
interesses fundamentais: a conversação e comunicação; pesquisa e descoberta;
fabricação e construção de objetos, expressão artística” (VEIGA, 2007, p. 228).
No que diz respeito à pedagogia montessoriana, o processo educativo visava à
autonomia das crianças, bem como ao desenvolvimento dos sentidos, “[...] cabendo
ao professor interferir minimamente, já que a base da aprendizagem são o ambiente
e o material pedagógico” (VEIGA, 2007, p. 228). Em relação a Claparède, por sua
vez, verificamos em Veiga (2007) que sua contribuição deu-se preponderantemente
no campo da psicologia e da psicopedagogia, tendo como participantes de seus
projetos pesquisadores psicólogos renomados, tais como Henri Wallon e Jean
Piaget.
Essa nova vertente educacional incidiu no campo das artes, propiciando o
surgimento da livre expressão como fundamento para os processos de educação
artística. Por essa via, o educador tcheco Franz Cizek passou a desenvolver um
trabalho educacional na esfera das artes, sintonizado com o ideário da Escola Nova,
tendo recebido apoio de John Dewey, que explanou “[...] o seu entusiasmo com
relação a essa maneira de ensinar arte, escrevendo o artigo Franz Cizek e o método
da Livre Expressão, [...] publicado no Journal of Barnes Foundation, em outubro de
1925” (FUSARI; FERRAZ, 2001, p. 39).
No que tange ao ensino da música, esse novo movimento educacional influenciou a
formação de pedagogos, que produziram diferentes abordagens e metodologias
para os processos educativos com as crianças, privilegiando as atividades corporais,
o desenvolvimento da sensibilidade e da expressão musicais. Desse modo, “[...] o
século XX viu despertar, em um curto espaço de tempo, uma série de músicos
comprometidos com o ensino de música” (FONTERRADA, 2005, p. 109), dando
início à nomenclatura “educação musical” como ensino da arte dos sons
especificamente direcionado à infância. Provenientes da Europa, como a primeira
geração de educadores em música, destacaram-se os seguintes nomes: Émile-
Jacques Dalcroze (1865-1950), na Suíça; Edgar Willems (1890-1978), na Bélgica;
77
Zoltán Kodaly (1882-1967), na Hungria; Carl Orff (1895-1982), na Alemanha, e
Shinichi Suzuki (1898-1998), de origem japonesa, mas que viveu por vários anos na
Alemanha.
Para Dalcroze, o desenvolvimento da sensibilidade e entendimento musicais tem
como base uma estreita ligação entre a escuta e os movimentos corporais. Com
base nesse pressuposto, esse músico criou o método denominado Eurritmia, tendo
como proposta “[...] despertar e desenvolver, pela repetição de exercícios, os ritmos
naturais do corpo. [...] O registro através [sic] do corpo propicia uma fixação mais
profunda e racional da aprendizagem” (PAZ, 2000, p. 257-258). Por essa
abordagem, os alunos deveriam experimentar o que iriam escrever posteriormente,
fazendo com que os sons e os ritmos fossem “[...] vivenciados pelo aluno, num
movimento integrado que reúne capacidades psicomotoras, sensíveis, mentais,
espirituais, [...] como agente de educação coletiva” (FONTERRADA, 2005, p. 116).
Com relação a Edgar Willems, aluno de Dalcroze, sua abordagem de ensino musical
para crianças apoiou-se na relação entre a música e a intuição e entre a música e a
natureza biológica. Willems estabeleceu distinção entre aspectos teóricos e práticos
em sua proposta, frisando que a base teórica “[...] engloba os elementos
fundamentais da audição e da natureza humanas, e a correlação entre som e
natureza humana” (FONTERRADA, 2005, p. 125), enquanto que a base prática trata
da organização do material didático.
Nesse sentido, esse pedagogo defendeu o trabalho musical em três dimensões, a
saber, sensorial, afetiva e mental, relacionando-as aos “[...] três domínios da
natureza, que considera essencialmente diferentes entre si: o físico, o afetivo e o
mental” (FONTERRADA, 2005, p. 125-126). Nessa perspectiva, a aplicabilidade
dessas três dimensões não se dava de maneira dissociada, mas, sim, de forma
integrada, entendendo que a prática musical “[...] é uma experiência global [...]”
(FONTERRADA, 2005, p. 127). Os trabalhos desenvolvidos por Edgar Willems
davam especial atenção ao funcionamento do ouvido, diferenciando o ouvir do ato
de escutar, visto que
ouvimos do jeito que ouvimos porque há uma estreita relação entre a fisiologia do ouvido e a escuta. Do mesmo modo, fazemos a música que fazemos porque somos dotados de características físicas, fisiológicas,
78
afetivas, mentais e espirituais que se assemelham estreitamente à nossa maneira de ouvir (FONTERRADA, 2005, p. 127).
Nesse sentido, a diferença entre o ouvir e o escutar reside no fato de que a
sensibilidade auditiva ocorre somente quando passamos do ato de ouvir para o
escutar: “[...] quando se ouve possuído por um desejo, uma emoção, como o medo
ou a surpresa, um interesse específico está em jogo, e esse interesse conduz à
atenção, necessária à eclosão da consciência sonora, [...] uma intenção de escutar”
(FONTERRADA, 2005, p. 131).
A abordagem de Willems, portanto, tem como eixo central o desenvolvimento da
sensibilidade musical por meio da escuta, alcançada pela prática de exercícios
específicos. Nesse sentido, verificamos em sua perspectiva uma aproximação com a
Teoria dos Afetos, renascida no século XVIII por Matheson, visto que a sensibilidade
musical a que se refere aquele educador está relacionada às emoções que a música
pode evocar, instigando a criança a perceber esses afetos e até mesmo a nomeá-
los, conforme sua criatividade:
no ensino dos intervalos e das organizações escalares, por Willems, aparecem algumas sugestões de exploração da sensibilidade auditiva que se baseiam no caráter qualitativo dos intervalos [...]. Willems atribui, a cada intervalo, uma emoção, o que remete à teoria dos Afetos (FONTERRADA, 2005, p. 132).
A proposta para a educação musical desenvolvida por Edgar Willlems teve
repercussão importante no Brasil, sendo aplicada em diferentes escolas e
conservatórios de música a partir de 1960, conforme trataremos mais adiante.
Ainda em Fonterrada (2005), assim como em Paz (2000), verificamos que a
pedagogia do educador e músico húngaro Zoltán Kodály, por sua vez, fundamentou-
se preponderantemente nas produções folclóricas de seu país, tendo desenvolvido
com o compositor Bela Bartók pesquisas musicológicas e um sistema de
musicalização encampado pelo governo e aplicado em toda a Hungria. O Método
Kodály, como era denominado, parte do princípio de que a musicalização deve ser
feita a partir do ato de cantar, envolvendo, igualmente, o treinamento auditivo, a
rítmica, a leitura e a escrita musicais. Esse método foi introduzido no Brasil na
década de 1950, por George Geszti e Ian Guest, conforme relata Paz (2000, p. 262),
sendo que até hoje, conforme observa Fonterrada (2005, p. 145), é utilizado e
79
difundido pela Sociedade Kodály do Brasil, localizada em São Paulo, na qual,
lançando-se mão do folclore brasileiro, são ofertados cursos regulares e de curta
duração.
Tratando do compositor e educador alemão Carl Orff, seu trabalho tem por base a
prática instrumental coletiva, partindo de instrumentos de percussão, especialmente
os xilofones, sendo entendido não como um método, pois “[...] Orff sempre fez
questão de não metodizar nada [...]” (PAZ, 2000, p. 261), mas como uma proposta
de trabalho aberta. A abordagem pedagógico-musical de Orff privilegia a prática
instrumental coletiva, apoiando-se em um material básico, bem como no
instrumental Orff. Essa prática musical propicia o contato com grandes sonoridades,
fazendo com que as crianças se confrontem “[...] muito mais com a expressão do
que com o aprendizado de regras” (FONTERRADA, 2005, p. 148). Dessa maneira, o
conhecimento da arte dos sons é possibilitado pela via da experiência, da imitação e
da improvisação, enfatizando a capacidade expressiva, e não o “[...] conhecimento
técnico, que surge em decorrência da primeira” (FONTERRADA, 2005, p. 151).
Com relação ao método Suzuki, sua proposta pedagógica apoia-se no princípio
geral de que “[...] toda criança, potencialmente, tem capacidade para aprender
música, do mesmo modo que para aprender a falar a língua de seu país”
(FONTERRADA, 2005, p. 151). Suzuki defendeu a necessidade de se criar um
ambiente favorável ao desenvolvimento desse potencial, aliando-se a ele
determinados procedimentos, tais como: ensinar um conteúdo de cada vez; expor as
crianças a gravações das músicas que elas irão tocar, acompanhando a gravação
com o livro de exercícios, bem como observando os pais tocarem. Desse modo, o
método Suzuki prevê a “[...] repetição constante, [...] a utilização de discos e
gravações; [...] estímulo à habilidade da memória; [...] estímulo à execução „de
ouvido‟ [...] [bem como] a presença dos pais” (FONTERRADA, 2005, p. 157).
Paralelamente ao enorme desenvolvimento tecnológico e às mudanças relativas à
educação musical na infância, trazendo a visão de criança como ser ativo em seu
próprio processo de aprendizagem, as atividades em torno das práticas pianísticas
no âmbito da performance erudita seguiram em direção oposta, reafirmando as
crenças e os valores da sociedade oitocentista. Com base em tais valores, foram
organizados concursos internacionais voltados exclusivamente para o garimpo da
80
excelência pianística, incentivando a competitividade e buscando premiar os
instrumentistas que apresentassem o mais alto grau de habilidade técnica e
virtuosismo.
Nessa mesma perspectiva, abriu-se um campo de pesquisas especialmente voltado
para o estudo da técnica pianística, evidenciando “[...] duas linhas gerais de
pensamento, duas maneiras básicas de se encarar a técnica pianística: a empírica e
a analítica, tratando-se mais que de uma divisão absoluta” (RICHERME, 1996, p. 12,
grifos do autor).
Figura 8 - Piano no século XX
Fonte: Bennett (1993)
Na vertente empírica, alinhavam-se muitos dos grandes pianistas e compositores,
tais como Mozart, Beethoven, Chopin e Liszt, os quais “[...] encontraram suas
verdades técnicas através [sic] da experiência prática e intuitiva” (GERIG apud
RICHERME, 1996, p. 12). De um modo geral, os empíricos não focalizaram em seu
trabalho os aspectos fisiológicos e mecânicos da técnica, sustentando a ideia de que
“[...] esta deve ser adquirida naturalmente, através [sic] do desenvolvimento musical
e da experiência individual, sem uma orientação específica” (RICHERME, 1996, p.
12).
Referindo-nos à tendência analítica, verificamos que sua ênfase incidia
principalmente sobre os “[...] diferentes tipos de coordenação muscular [...]”
(RICHERME, 1996, p. 15). Os trabalhos desenvolvidos na perspectiva analítica
tratam minuciosamente da postura corporal, da utilização dos dedos, bem como da
81
posição correta das mãos, as quais poderiam assumir a “[...] posição curva (bent
position) e posição plana (flat position), [...]. A preferência por outra posição é um
dos muitos pontos polêmicos da técnica pianística, o que torna importante a análise
de algumas teorias a respeito” (RICHERME, 1996, p. 108). Assim sendo, a
expressividade musical nessa ótica está vinculada a uma sensibilidade cinestésica,
entendida como coordenação motora e intensidade de força empregada no ato de
tocar o instrumento, observando que “[...] os terminais nervosos que permitem tal
sensibilidade (receptores proprioceptivos) se concentram não na camada periférica
da pele, mas no tecido carnoso entre a pele e o osso, nas articulações e nos
próprios músculos” (RICHERME, 1996, p. 109).
A interpretação e a técnica pianísticas foram temas de diferentes trabalhos
científicos, abordando os principais problemas técnicos, orientações para alunos a
respeito da maneira correta de estudar, incrementando a concentração, bem como
apresentando descrições detalhadas sobre determinados padrões de movimento de
mãos e braços. Há importantes pontos de vista concernentes a essa questão,
frisando ser prejudicial ao aluno estudar escalas e exercícios por muitas horas
seguidas, porém, mesmo assim é exigida a perfeição: “eu permito aos meus alunos
tocarem somente estudos bem pequenos, mas exijo que esses sejam trazidos ao
máximo da perfeição possível” (GIESEKING; LEIMER, 1972, p. 50, tradução minha).
Concernentemente às concepções sobre expressão musical, o século XX tem como
principais referências as teorias de Leonard Meyer (1956) e Keith Swanwick (1994,
2003). Sobre o pensamento de Meyer, constatamos em Sadie e Tyrrell (2001a) e em
Mattos (2005) que sua teoria sobre a expressão musical tem por base a ideia de que
as emoções propiciadas pela música assentam-se no campo da psicologia,
afastando-se, portanto, das reflexões de caráter filosófico. Conforme Mattos (2005),
Meyer recorreu particularmente a três principais aspectos que compõem a psicologia
da Gestalt, associando-os à maneira pela qual percebemos a música: a lei da
experiência, a lei da conclusão e a lei da Boa continuação ou sequência.
No tocante à lei da experiência, nossa mente tenderia a “[...] construir unidades
estruturais [...] de acordo com a experiência [...]” (MATTOS, 2005, p. 1), tendo os
elementos musicais como materiais da percepção. Em relação à lei da conclusão,
ela estaria ligada à ideia de que “[...] a percepção dirige-se espontaneamente para
82
uma ordem que tende para a unidade de todos concluídos [...]” (MATTOS, 2005, p.
1). Por fim, sobre a lei da Boa continuação, verifica-se aí a noção de que “[...] toda a
unidade linear (sucessão) tende a se prolongar psicologicamente na mesma direção,
mesma ordem e com o mesmo processo de desenvolvimento” (MATTOS, 2005,
p. 1).
Nessa perspectiva, conforme Sadie e Tyrrell (2001a), a expressão musical em Meyer
é o resultado de desvios nessa unidade linear, cujo fluxo pode retardar, realizar ou
frustrar o alcance da tendência de um impulso musical presente em uma obra.
Nesse caso, a emoção e a significação musical, no pensamento de Meyer, “[...] se
manifestam prioritariamente em função das relações entre a expectação e a
realização, retardação ou frustração dos elementos musicais” (MATTOS, 2005, p. 2,
grifos do autor). Tal concepção sobre a expressividade sonora encontra-se
estreitamente vinculada ao campo da comunicação (teleologia) entre o intérprete e o
ouvinte, tendo como pares a emissão e a recepção do material musical, propiciando
a expectativa “[...] ou antecipação da conclusão, de lacunas a serem preenchidas
[...]” (SADIE; TYRRELL, 2001a, p. 465, tradução minha).
Em se tratando dos estudos de Swanwick (2003, 1994), é preciso pontuar que sua
obra trata especialmente do aspecto filosófico da expressão musical, estabelecendo
o posicionamento de que a música é um processo metafórico. Esse musicólogo
popôs níveis de aprendizagem e avaliação musical, incluindo-se a aprendizagem do
piano, porém, não tratou das questões metodológicas de uma aula, não discutindo
as concepções de aprendizagem.
Assim, a partir da visão de conjunto do século XX, podemos afirmar que, muito
embora o movimento escolanovista na educação e as inovações nas formas
expressivas entre compositores tenham alcançado a educação musical, a ação
desses movimentos restringiu-se à condução pedagógica do ensino coletivo de
música na infância, não atingindo as aulas de instrumento – muito especialmente as
de piano –, que, com raras exceções, permaneceram reproduzindo o modelo da
aprendizagem instrumental formatada no século XIX. Esse fato produziu, portanto,
uma divisão no que se refere ao processo de aprendizagem musical, em especial no
Brasil, sendo desenvolvido em diversas universidades e faculdades públicas de
música, no formato de cursos de extensão oferecidos à comunidade em geral: um
83
tipo de educação musical coletiva baseada em métodos ativos (atividades de caráter
lúdico, privilegiando a vivência dos ritmos, melodias e timbres por meio de
bandinhas, corais associados a dramatizações etc.) e outra forma de aula, individual
e específica para a aprendizagem instrumental, reforçadora do modelo concertista,
bem como apoiada preponderantemente em uma visão analítica no que diz respeito
à técnica instrumental, não apresentando nenhuma vinculação com as concepções
de educação nas quais o processo educativo esteja pensando a criança ou o
adolescente como tais.
Nessa perspectiva, portanto, o capítulo a seguir, discorre sobre a musicalidade no
Brasil, chegando à conjuntura social da atualidade, com seus jeitos peculiares de ser
adolescente e criança, sonoridades, concepções e práticas educativas na arte dos
sons.
84
3 EXPRESSÃO MUSICAL NO BRASIL
Muito embora as escolas públicas de música erudita no Brasil tenham seguido o
mesmo modelo europeu descrito no capítulo anterior, consideramos indispensável
traçar um breve histórico das práticas musicais na infância brasileira, bem como das
sonoridades que vieram se formando ao longo dos séculos XX e XXI. Tal
consideração se deve ao fato de que, paralelamente aos estudos sistematizados de
música erudita, as crianças e os adolescentes, na atualidade, experienciam uma
musicalidade muito diversa daquela oferecida nas escolas de música, influenciando
de modo decisivo sua relação com o fazer musical.
Dessa forma, neste capítulo, é apresentada uma breve retrospectiva dos processos
sonoros brasileiros, trazendo à tona o entrelaçamento das criações populares e
eruditas, bem como a influência das produções europeias, africanas e norte-
americanas, abordando, por fim, a chegada do piano ao Brasil, seus métodos e
espaços de aprendizagem.
3.1 SÉCULOS XVI E XVII
A musicalidade no Brasil é anterior à chegada dos portugueses, em 1500. Porém, é
fundamental entendermos que há um lapso na historiografia oficial em relação à
produção musical indígena: todas as obras de história da música brasileira,
especialmente aquelas utilizadas em cursos de graduação e pós-graduação em
música, focalizam as musicalidades erudita e popular – em especial a primeira –,
tecendo comentários muito breves a respeito do acervo musical dos povos
indígenas. Desse modo, há referência apenas ao período inicial da colonização,
fazendo tal produção desaparecer totalmente do cenário da historiografia musical no
Brasil, como se não mais existissem tais povos e suas culturas musicais. Nesse
sentido, transcrevemos a seguir trechos importantes de obras desse campo do
conhecimento nas quais essas observações se fazem explícitas.
Pouco se sabe da música indígena do período da descoberta e pode-se dizer que sua parte na constituição do que seria a música típica brasileira foi mínima, e isto [sic] sobretudo em razão da fragilidade da cultura indígena brasileira. [...] na medida em que se processava a conquista da terra e a imposição da cultura europeia, obra dos missionários jesuítas, [...] desapareciam pouco a pouco os traços característicos da cultura nativa (NEVES, 1977, p. 13).
85
Os conhecimentos de que dispomos ainda hoje sobre as atividades musicais no Brasil colonial são muito incompletos. Prevalecem vazios enormes de várias décadas que dão margem a especulações por vezes ousadas. [...] A qualidade dessa música era bastante modesta. Muito inferior ao que ocorria em várias capitais da América espanhola. [...] A conversão de indígenas provenientes de civilizações sofisticadas como os incas, astecas e maias exigiu dos espanhóis esforços muito superiores aos que foram suficientes para os portugueses desenvolverem junto aos nossos insipientes silvícolas (MARIZ, 2005, p. 33).
Embora a música dos indígenas praticamente não deixasse vestígios em nossa música, constituindo até hoje um fenômeno exótico, não se pode iniciar uma história da música brasileira sem breves referências a seu respeito. [...] Naturalmente a música dos índios não civilizados ou dos que se afastaram do contato com a civilização ocidental, esquecendo em pouco tempo o que aprenderam, conservou, ao longo do tempo, as suas características fundamentais. Mas esta [sic] música, que ainda hoje está sendo recolhida e estudada, não pertence à “música brasileira” (KIEFER, 1977, p. 9-13).
A partir de meados do século XVI, durante os dois primeiros séculos de colonização portuguesa, a música produzida no Brasil estava diretamente vinculada à Igreja Católica e à catequese. [...] A contribuição dos índios à música brasileira foi limitada, em comparação com a dos africanos (MARIZ, 2008, p. 12).
O primeiro nome a entrar para a história de nossa música popular é o poeta, compositor e cantor Domingos Caldas Barbosa, no final do século XVIII. Naturalmente, houve compositores anônimos que o precederam, além de conhecidos como o baiano Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno. [...] A obra de Domingos Caldas Barbosa (1740-1800) pode ser considerada o marco zero da música popular brasileira (SEVERIANO, 2009, p. 13-15).
Essa ausência da musicalidade indígena brasileira de nossa própria história é
comentada nos círculos acadêmicos da etnomusicologia, sinalizando que “[...] a falta
de atenção acadêmica à música indígena das terras baixas da América do Sul
mascara a real importância da música nas vidas dessas comunidades. [...] A cada
dia, podem passar horas tocando flauta ou cantando” (SEEGER, 2015, p. 35).
Pesquisas a respeito dos modos de viver dos indígenas indicam que é plenamente
viável assegurar a subsistência com três ou quatro horas de trabalho por dia,
tornando-se viável cantar e tocar o mesmo número de horas. Esse critério de
organização do tempo pode ser um indicativo importante quanto à significação e ao
grau de relevância da música para essas comunidades. De acordo com Seeger
(2015), apesar desse cenário, pesquisadores em geral focalizam a maior parte de
seus estudos nos aspectos socioeconômicos dessas sociedades, deixando a música
apenas como um detalhe.
86
Os primeiros relatos acerca dos processos sonoros indígenas no Brasil datam de
1578, em um trabalho minucioso de Jean de Léry (1961), em viagem pelo País. De
acordo com o antropólogo Rafael Menezes Bastos (2007, p. 1), trata-se de uma das
“[...] descrições mais antigas do mundo sobre „música primitiva‟ [...], sobre canções
Tupinambá do Rio de Janeiro”.
Essas cerimônias duraram cerca de duas horas e durante esse tempo os quinhentos ou seiscentos selvagens não cessaram de dançar e cantar de um modo tão harmonioso, que ninguém diria não conhecerem música. [...] já agora me mantinha absorto em coro ouvindo os acordes dessa imensa multidão e sobretudo a cadência e o estribilho repetido a cada copla (LÉRY, 1961, p. 169-170).
Vasconcelos (1977) indica outra melodia entoada pelos Tupinambá, também
registrada por Léry (1961), em que falavam da ave Canindé e de um peixe
denominado camuroponi-uassu. Souza (1851, p. 55), em relato descritivo de sua
viagem por toda a costa brasileira, destaca a musicalidade dos indígenas Potiguara,
no nordeste brasileiro de 1587, indicando que eram “[...] grandes pescadores de
linha, assim no mar como nos rios de água doce. Cantam e bailam, comem e bebem
pela ordem dos Tupinambá, que é [...] quase o geral de toda a costa do Brasil”. O
autor também menciona os Caeté, afirmando que são “[...] grandes músicos e
amigos do bailar [...]” (SOUZA, 1851, p. 63). A respeito dos Tamoio, esse mesmo
autor enfatiza suas práticas melódicas como grandes compositores de cantigas de
improviso. Com relação à etnia Tupiniquim, na região de “[...] Ilhéus, Porto Seguro e
do Espírito Santo, [...] são valentes homens, caçam, pescam, cantam bailam [...]”
(SOUZA, 1851, p. 88). Os Papanases, situados “[...] ao longo do mar, entre a
capitania de Porto Seguro e a do Espírito Santo, pintam-se e enfeitam-se; [...]
cantam e bailam; têm muitas gentilidades” (SOUZA, 1851, p. 97). O grupo
Goitacazes “[...] tem muita parte dos costumes dos Tupinambás, assim no cantar, no
bailar, no tingir-se de jenipapo” (SOUZA, 1851, p. 96).
Vemos, portanto, que a musicalidade brasileira no período que antecede a ação
jesuíta é indígena por excelência, tendo sido experienciada e apreciada por
diferentes viajantes, que tinham exatamente a incumbência de registrar os fatos e os
costumes dos lugares pelos quais passavam, descrevendo os povos com os quais
entravam em contato. A continuidade dessa modalidade musical em constante
transformação é atestada em diversos tratados de antrolopogia e etnomusicologia,
87
além dos relatos dos referidos viajantes: Debret (1824), tecendo comentários acerca
dos Botocudos, no período entre 1816 e 1831; Kurt Nimuendaju (1987), em aldeia
da etnia Guarani Nhãdeva, durante os anos de 1905 e 1913; entre os anos de 1969
e 1981, Menezes Bastos (2013), com processo investigativo a respeito dos
Kamaiurá, no Alto Xingu, observando a prática da cerimônia do Yawari (Festa da
Jaguatirica); no período compreendido entre 1971 e 1982, Kilza Setti (1993, 1997),
sobre a possibilidade de um sistema musical Guarani Nhãdeva; Seeger (2004; 2015)
desenvolveu pesquisa junto aos Suyá, atuais Kisêdjê, registrando a Festa do Rato
ou Cerimônia do Rato; em 2002, Deyse Lucy Montardo (2009) pesquisou os Guarani
Kaiowa no estado de São Paulo; além de Marília Raquel Stein (2009, 2011),
Dallanhol (2002) e Raquel Moraes (2012), que estudaram a musicalidade Guarani
Nhãdeva nos estados de Santa Catarina, Paraná e Espírito Santo, respectivamente,
entre outros pesquisadores e fazedores da arte dos sons no universo indígena nas
mais diferentes regiões do Brasil.
A respeito das nações indígenas na fase jesuítica no Brasil, verificamos em Tinhorão
(1972) a informação de que elas se assentavam em uma estrutura social própria,
apresentando uma cultura e uma artisticidade fecundas, tendo como consequência a
não adesão à estrutura colonial – esperada pelos jesuítas e pela corte portuguesa.
Assim sendo, “[...] toda vez que o indígena voltava a integrar-se na vida tribal, os
conceitos morais e religiosos que tendiam a prevalecer eram, é lógico, os que mais
fielmente traduziam o tipo de relações originais” (TINHORÃO, 1972, p. 14).
Em se tratando da música na infância, constatamos a ativa participação das crianças
nos rituais de catequese-dominação dos jesuítas, considerada como atividade
obrigatória: “o ensino musical era de suma importância não só para o aprendizado
da doutrina, mas também para a participação nas mais variadas formas da vida
religiosa [...]” (CHAMBOULEYRON, 2000, p. 65). Era comum que crianças
cantassem e tocassem instrumentos musicais portugueses em diferentes
celebrações, pois, “[...] além das missas, as procissões também eram marcadas pela
participação dos meninos. Em 1564, na Aldeia do Espírito Santo, na Bahia, [...] uma
grande multidão de meninos [...] vinham [sic] cantando as litanias”
(CHAMBOULEYRON, 2000, p. 65-66).
88
Em meio às crianças indígenas, misturavam-se os meninos do Colégio de Jesus dos
Meninos Órfãos de Lisboa, que eram trazidos nas viagens marítimas de Portugal
para o Brasil como auxiliares de marinheiro ou pajens. Nas reduções jesuítas, “[...] o
trabalho dos órfãos de Portugal era importante, como explicava o padre Nóbrega em
agosto de 1551, ao relatar que os meninos de Portugal atraíam as crianças com
seus cantares” (CHAMBOULEYRON, 2000, p. 64).
À parte as obrigações, a música fazia parte da vida das crianças indígenas, que
manifestavam seu gosto pela arte dos sons cantando e tocando em diferentes
situações, em meio às brincadeiras e jogos: “[...] crianças indígenas adoravam
instrumentos europeus como a gaita ou o tamboril, que acompanhavam, segundo os
cronistas jesuítas, ao som de maracas e paus de chuva” (DEL PRIORE, 2000, p.
98).
Paralelamente à música indígena, em Tinhorão (1972), Heitor (1956), Kiefer (1977),
Vasconcelos (1977) e Mariz (2005; 2008), verificamos no século XVII outras duas
modalidades de fazer musical: um tipo de música produzido, organizado e
controlado pela Igreja Católica, sendo desenvolvido por padres e negros, e outro
modo, de caráter popular, produzido pelos negros. Kiefer (1977) e Tinhorão (1972)
afirmam que a Bahia foi o primeiro centro de cultivo da música no Brasil, em virtude
de ser a primeira capital e sede do primeiro bispado, havendo registros de
contratação de moços para formação de um coro, mestre de capela e um organista.
No que diz respeito às práticas populares, eram realizadas pelos escravos, nos
momentos de folga concedidos pelos padres ou senhores, e também quando se
juntavam às inúmeras procissões ou festas oficiais. Desse modo, atrelados às
rígidas regras senhoriais e religiosas, a expressão musical entre os negros era
realizada mediante permissão, como podemos constatar no trecho que segue.
A mais antiga referência à participação de negros na criação de ritmos – que logo seriam definidos pelo nome genérico de batuques – é do aventureiro francês Pyard de Laval. Arribado à Bahia a 8 de agosto de 1610, indo de Goa, na Índia, para a Europa, [...] viu nos domingos e dias santificados ruas e praças de Salvador cheias de escravos e africanos, homens e mulheres, dançando e folgando com permissão dos seus senhores (TINHORÃO, 1972, p. 36).
Vemos, portanto, que nos séculos XVI e XVII as sonoridades brasileiras e as formas
de aprendizagem musical transitavam entre as composições sacras de origem
89
europeia a música e produções musicais de diferentes etnias provenientes da costa
ocidental da África negra9, que corresponde aos atuais estados de Gana, Togo,
Benin e Nigéria.
Vemos, portanto, que o fazer musical e sua aprendizagem no Brasil comportam esse
conjunto de diferentes ethos sonoros, influenciando a formação de uma
musicalidade que transita entre o erudito e o popular, compondo, muitas vezes, um
hibridismo dessas duas instâncias da arte dos sons.
3.2 SÉCULO XVIII
As sonoridades setecentistas no Brasil concentraram-se especialmente na cidade do
Rio de Janeiro, agregando composições eruditas e populares. As de caráter erudito
seguiam os modelos italianos da ópera cômica, além de adaptações de minuetos,
modinhas e fandangos. De forma geral, as apresentações musicais aconteciam nas
igrejas ou nas residências das famílias mais ricas, tendo sido construídas salas de
concerto, intituladas casas de ópera, em virtude da grande plateia que afluía a essas
atividades.
A respeito da distinção entre as artes popular e erudita, Neves (1977) ressalta que,
no século XVIII, essa última se desenvolvia em caráter e espaço primordialmente
religiosos, baseando-se nos modelos europeus, sem apresentar os traços das
sonoridades populares. Complementando tais ideias, Heitor (1956) tece comentários
sobre o padre José Maurício, destacando-o como excelente organista e compositor,
sendo nomeado inspetor de música da antiga Capela da Sé, considerado, segundo
afirmação de Neves (1977), exímio compositor e improvisador por músicos
profissionais portugueses, deixando 400 obras.
Com referência à vida musical na capitania mineira durante o século XVIII, Kiefer
(1977) traz informações sobre o grande desenvolvimento das produções sonoras,
sublinhando que as atividades de composição eram as mais exercidas. Lange
(1981) corrobora tal fato, salientando que havia uma devoção pela música desde os
primórdios da formação de tal capitania.
9 De acordo com a historiadora Mary Del Priore (2010), as etnias da África vindas como escravos
para o Brasil são provenientes da região da Costa da Mina e Daomé, atual Benin, na costa ocidental da África.
90
No que diz respeito às melodias populares, Mariz (2008) destaca em seus relatos o
trabalho de Antônio José da Silva, apelidado como Judeu, que apresentava
comédias de costume de caráter político, de sabor mordaz, incluindo cenas faladas,
declamadas, duetos, árias e danças. Esse compositor e poeta, “[...] por ter
despertado a ira da Inquisição, foi degolado e queimado [...]” (MARIZ, 2008, p. 13)
em Lisboa, a 19 de outubro de 1739.
Ainda no domínio da historiografia musical popular no Brasil do século XVIII,
especialmente em seu fim, detectamos referências à obra de Domingos Caldas
Barbosa, poeta, compositor e cantor. Tinhorão (1991) destaca sua habilidade como
tocador de viola e trovador desenvolto, que, com suas modinhas em tom satírico,
provocou reviravoltas, não somente na corte portuguesa, mas, igualmente, em sua
própria vida. Em virtude de sua veia satírica ser direcionada a alguns poderosos da
época, Caldas Barbosa foi severamente punido por ordem do governador da então
denominada Repartição Sul, “[...] sendo ele despachado como soldado para a
longínqua Colônia de Sacramento” (SEVERIANO, 2009, p. 14), retornando ao Rio de
Janeiro alguns anos mais tarde.
A música de Caldas Barbosa não se limitava às questões de caráter político; muito
pelo contrário, expandia-se “[...] na forma direta no tratamento dos temas do amor
sensual [...]” (TINHORÃO, 1991, p. 14), sendo suas composições consideradas “[...]
uma tafularia do amor, a meiguice do Brasil, [cujas trovas] respiram os ares
voluptuosos de Pafus e Cítara e encantam com venenosos filtros as fantasias dos
moços e corações das damas” (SEVERIANO, 2009, p. 15).
Após sua atuação como soldado na colônia de Sacramento, o compositor seguiu
para Portugal, contando com a ajuda de amigos, personalidades com bons
relacionamentos na corte portuguesa, tendo como objetivo completar seus estudos.
Porém, devido aos preconceitos relativos à sua origem e cor negra, não foi aceito
pela elite portuguesa, o que levou seus protetores a nomeá-lo capelão da Casa da
Suplicação: “[...] é assim, de batina e se acompanhando numa viola de arame, que o
poeta-compositor entra em cena na década de 1770, cantando suas modinhas e
lundus para a corte de D. Maria I” (SEVERIANO, 2009, p. 14). Caldas Barbosa
prossegue na corte portuguesa, passando a liderar a Academia de Belas Artes – a
Nova Arcádia, sendo, porém, hostilizado por figuras tais como Felinto Elísio e
91
Manoel Maria du Bocage. Suas composições foram publicadas em Lisboa, em 1798,
em dois volumes, com o título Viola de Lereno: colecções de improvisos e cantigas
de Domingos Caldas Barbosa.
Em se tratando da música na infância, ao longo do século XVIII, verificamos o
costume de crianças e jovens participarem de bandas e grupos musicais que se
apresentavam em festas religiosas. Assim sendo, “[...] os que tinham boa voz se
viam treinados por músicos para cantar, inclusive como sopraninos nas festividades,
soltando seus sons infantis e agudos, causando grande prazer aos assistentes”
(SCARANO, 2000, p. 125).
Constatamos, ainda, registros a respeito de donos de crianças cativas que, por sua
participação em bandas ou grupos semiprofissionais ou profissionais, recebiam “[...]
uma boa recompensa [...]” (SCARANO, 2000, p. 126). Essa prática encontra-se
detalhada, por exemplo, na lista de pagamentos da Igreja de Nossa Senhora do Pilar
de Outro Preto, que menciona a remuneração realizada pela irmandade a dois
meninos: “[...] um „muleque‟ de Anna Guedes, tocador de tambor, e um outro de um
Jerônimo Roiz, tocador de caixa [...]” (SCARANO, 2000, p. 126).
Igualmente, observamos que as festividades cívicas e de rua constituíam-se outros
espaços para tais apresentações musicais, nas quais a participação de crianças e
jovens implicava uma boa remuneração: “[...] as crianças participavam ativamente
das atividades lúdicas como profissionais, inclusive, sendo pagas para isso, se
fossem livres, ou, quando escravas, aos donos que as treinavam e empregavam
para esse fim, e faziam delas uma fonte de lucro” (SCARANO, 2000, p. 126).
Observamos outros relatos acerca da participação de crianças na vida musical dos
Setecentos, trazendo o exemplo de uma festa mineira denominada Triunfo
Eucarístico, em Vila Rica, 1734, na qual “[...] onze mulatinhos vestidos como
indígenas, enfeitados com saiotes de penas e cocares, levando nas pernas fitas e
guizos, cantaram ao som de tamboris, flautas e pífaros, bailando uma „dança dos
carijós‟” (DEL PRIORE, 2000, p. 99).
Vemos, portanto, que a aprendizagem musical na infância desenvolvia-se a partir da
experiência junto a grupos profissionais, aprendendo as maneiras de tocar e cantar
conforme os métodos da tradição oral, assumindo, muitas vezes, o caráter de
92
trabalho remunerado. Ainda, em virtude de a sociedade brasileira ainda não ter
desenvolvido instituições de ensino superior no campo da arte dos sons nessa fase,
também não há um movimento acadêmico voltado às reflexões sobre o fazer
musical. Essa atividade irá render os primeiros frutos somente a partir do século XX.
3.3 SÉCULO XIX
As sonoridades dos Oitocentos no Brasil desenvolveram-se no contexto de uma
urbanização que dava seus primeiros passos, sendo possível observar práticas
musicais sacras, eruditas e populares, nas quais se destacaram alguns
compositores e instrumentistas. No âmbito estrito da música popular, persistia a
influência das modinhas e dos lundus, tendo no compositor, violonista e
cavaquinhista Joaquim Manoel da Câmara o primeiro “modinheiro”, no começo de
1800. Há registros de outros compositores de modinhas e lundus cujas criações
marcaram a sonoridade dessa época, como Cândido José de Araújo Viana, o
Marquês de Sapucaí, que, em 1984, deu nome à famosa avenida do carnaval
brasileiro. Outros tocadores e compositores musicalmente ativos nesse período são
Cândido Inácio da Silva, Lino José Nunes e os padres baianos Augusto Baltazar da
Silveira e Guilherme Pinto da Silveira Sales, com as canções Lamentos e Deixa
mulher que eu te ame, respectivamente (TINHORÃO, 1991).
No contexto da linguagem erudita, nesse período foram vivenciados os primeiros
sinais do desejo de se desenvolver uma linguagem musical acadêmica passível de
expressar as sonoridades nacionais. Os indícios relativos a esse desejo podem ser
percebidos na obra de Carlos Gomes, em especial, na ópera O Guarani, que teria
como temática a questão da escravatura. Porém, em obediência às regras do teatro
italiano, onde estudava esse compositor, a obra foi modificada, saindo da temática
relativa à escravidão (que havia recebido o nome de Lo Schiavo) para a temática
indígena, dando-lhe o nome com o qual a ópera ficou conhecida. Apesar da
mudança na temática e na denominação da obra, Carlos Gomes manteve a
perspectiva romântica. De qualquer modo, a partir dessa composição, esse músico
aderiu totalmente ao nacionalismo.
Assim, a temática folclórica ganhou força entre os compositores eruditos, sendo
criada, em 1896, por Alberto Nepomuceno, a Sociedade de Concertos Populares.
93
Carlos Gomes foi, portanto, “[...] o primeiro dos compositores nacionalistas, aquele
que abriu os caminhos para várias gerações de compositores, mostrando-lhes a
enorme riqueza do material de origem folclórica e popular e as maneiras de utilizá-
lo” (NEVES, 1977, p. 22). A preocupação nacionalista guardava certas restrições,
que podem ser observadas nas ideias do escritor Escragnole Dória a respeito de
uma obra do compositor Francisco Braga (Marabá): “[...] o assunto brasileiro é quase
em mim uma ideia fixa, [...] gostaria que o assunto fosse nacional, mas que não
tivesse índios [...]” (NEVES, 1977, p. 22).
No que tange ao fazer musical na infância, verificamos sua relação com as
concepções educacionais dessa época, as quais separavam a educação de
meninas e de meninos, bem como estabeleciam os destinos dos filhos das elites e
dos filhos de antigos escravos ou da crescente classe popular urbana. Observa-se,
nesse período, a presença marcante do estudo do piano como um dos principais
conteúdos da educação geral de crianças oriundas de famílias ricas, sinalizando
para um distintivo de classe e prestígio social.
Por esse prisma, a educação destinada às meninas da Corte Imperial ou das
famílias da alta sociedade exigia “[...] a perfeição no piano, destreza em língua
inglesa e francesa, e habilidade no desenho, além de bordar e tricotar” (MAUAD,
2000, p. 154). Os filhos da elite rural e urbana frequentavam colégios pagos, nos
quais eram ministradas “[...] aulas extras de piano, canto e desenho ou qualquer
outro idioma além do inglês e francês” (MAUAD, 2000, p. 154).
Observamos a aula de piano em residências sendo desenvolvida como ensino
complementar, destinado a meninas, tal como no relato que segue: “[...] como Alice,
Maria Angélica foi interna no colégio da Imaculada Conceição. [...] Feita a sua
educação, veio para casa, onde terminou estudando inglês, piano e ajudando nos
serviços da casa” (MAUAD, 2000, p. 154). Assim, “[...] multiplicavam-se os
professores particulares, principalmente os professores de piano, já que [...] o
aprendizado deste [sic] instrumento fazia parte da boa educação dada às moças da
elite” (MARTINS, 1993, p. 167). Aos meninos das famílias abastadas, era indicada a
formação para serem advogados, engenheiros do Império ou, ainda, políticos
republicanos.
94
Figura 9 - Sarau, o reencontro, óleo sobre tela retratando a participação musical das crianças
Fonte: Morais (2015)
Verificamos, portanto, que as práticas musicais entre crianças da elite faziam parte
da educação geral, sendo desenvolvidas em aulas nos colégios pagos ou em aulas
particulares, nas residências, especialmente voltadas para as meninas. Em relação
às crianças de famílias pobres, não constatamos registros a respeito de suas
práticas musicais nesse período, verificando que sua formação educacional era
realizada em “[...] instituições para crianças pobres ou órfãs e que eram mantidas
por repartições militares, câmaras municipais ou congregações religiosas” (VEIGA,
2007, p. 161).
Em se tratando das criações sonoras no Rio de Janeiro nos Oitocentos, destacamos
a obra de Chiquinha Gonzaga, firmando-se como pianista e uma das maiores
compositoras na arte dos sons nesse período, assim como Ernesto Nazareth e
Anacleto de Medeiros. As práticas musicais aconteciam em bailes dos teatros, nas
sociedades carnavalescas, salas de espera dos cinemas, bem como nos teatros
musicados. Dentre os gêneros musicais da época, destacamos o maxixe, que,
dando prosseguimento ao discurso popular do lundu, foi classificado pelos
governantes como “[...] a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as
danças selvagens, irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba”, conforme
constatamos em Severiano (2009, p. 45).
95
Chiquinha Gonzaga compôs inúmeros maxixes, alcançando sucesso nacional com a
obra O corta-jaca, “[...] pivô involuntário de uma crise política no final do governo
Hermes da Fonseca. Interpretado pela primeira dama, Nair de Teffé, numa recepção
no palácio do Catete [...], provocando faniquitos de indignação na oposição”
(SEVERIANO, 2009, p. 45).
Com referência à educação musical na infância, o século XIX não apresenta
diferenças significativas em relação ao século anterior, permanecendo o piano como
instrumento das elites, integrando a formação geral de adolescentes e jovens,
especialmente entre as meninas e moças.
3.4 SÉCULOS XX E ATUALIDADE
No Brasil, o século XX caracterizou-se pelas influências da Segunda Revolução
Industrial, ocorrida na Europa e Estados Unidos, bem como pelas consequências da
primeira e segunda guerras mundiais, que alteraram significativamente o cenário
geopolítico no mundo e as relações econômicas do Brasil. Nas primeiras décadas
dos Novecentos, observamos a invenção de artefatos mecânicos – tais como a
locomotiva a vapor, o telégrafo, a iluminação elétrica, o telefone e a fotografia – que
impulsionaram a organização de uma nova dinâmica social, movida por uma nova
concepção de tempo e de espaço, levando à “[...] consolidação dos espaços
privados, particularmente no âmbito do lar e da família, [...] célula-base da
sociedade” (VEIGA, 2007, p. 201).
No Rio de Janeiro, esse cenário propiciou as condições para o nascimento de um
novo modo de fazer musical, essencialmente popular: os grupos de choro ou os
chorões. Os grupos de choro tiveram como lugar de prática as próprias residências
dos instrumentistas, que eram, também, em sua grande maioria, funcionários
públicos: “[...] militares componentes de bandas do exército, ou de corporações
locais, e civis empregados de repartições federais e municipais, [...] entrando os
Correios e Telégrafos com o maior contingente” (TINHORÃO, 1991, p. 107).
Segundo Neves (1977), o compositor Villa-Lobos participou de grupos de chorões,
tendo realizado sua aprendizagem inicial em meio a compositores e instrumentistas
dessa modalidade de música popular, nos subúrbios da zona norte carioca. Dentre
96
os nomes que se consagraram como compositores de choros, destacamos Alfredo
da Rocha Viana, o Pixinguinha, que em 1917 criava a obra Carinhoso.
Figura 10 - Serenata, óleo sobre tela, Portinari (1925)
Fonte: Instituto (2016)
O nacionalismo brasileiro iniciado no fim do século XIX teve sua sequência no
século XX com o movimento modernista, assinalando uma ruptura definitiva com as
formas expressivas românticas, bem como imprimindo uma originalidade sonora
propriamente brasileira. O modernismo, no campo da arte dos sons no Brasil, teve
influência decisiva de diversas tendências estéticas surgidas na primeira década do
século passado na Europa e nos Estados Unidos, em especial, o movimento
impressionista na França.
Desse modo, as sonoridades brasileiras nas duas primeiras décadas do século XX
expressaram não somente o desejo de brasilidade, mas, igualmente, a necessidade
de não mais reproduzir as formas românticas, criando um estilo ao mesmo tempo
próprio e inovador. Por essa via, Villa-Lobos destacou-se como principal referência
no âmbito da composição erudita nacional, trazendo em suas obras nossos afetos
97
rurais, folclóricos, bem como indígenas, expressando-os em perfeita comunhão com
as formas sonoras impressionistas dos compositores franceses. Situou-se como “[...]
o criador da música [...] nacional e continua a ser o nosso mais importante
compositor” (MARIZ, 2005, p. 159), tendo organizado, com a colaboração de
diferentes artistas e escritores, a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, em 1922,
expondo à sociedade as novas formas de fazer arte.
Nesse mesmo período, porém, tratando das práticas instrumentais, observamos em
Mário Andrade (1922) a crônica intitulada Pianolatria, na qual o escritor teceu críticas
à sociedade paulista, afirmando que falar de música na cidade de São Paulo “[...]
quase significa dizer piano. Qualquer audição de alunos de piano enche salões.
Qualquer pianista estrangeiro aqui tem uma acolhida incondicional. [...] E só agora a
sinfonia parece atrair um pouco os pianólatras paulistanos” (ANDRADE, 1922, p. 8).
Sobre a educação musical nesse período, constatamos que o movimento
escolanovista firmou-se como tendência pedagógica ao longo do século XX em
diferentes países, chegando ao Brasil por meio do educador Lourenço Filho, na
década de 1930, apresentando uma visão própria da nova tendência educacional.
Nesse sentido, Veiga (2007, p. 227) ressalta que o educador e pensador Lourenço
Filho sustentou o entendimento de que “[...] todo pensamento se origina de uma
situação problemática – ou seja, o pensamento não existe isolado da ação; é preciso
agir para pensar, e a ação pressupõe uma deliberação”. Lourenço Filho defendeu os
pressupostos da Escola Nova como abordagem apropriada à educação brasileira,
influenciando o pensamento de alguns professores no campo da música para
crianças, em especial, as aulas de piano.
A esse respeito, constatamos em Paz (2000) as propostas de musicalização por
meio do piano desenvolvidas por Liddy Chiaffarelli Mignone e Anita Guarnieri. Com
relação à professora Chiaffarelli, “[...] em 1948 criou o curso de especialização em
Iniciação Musical, formando os primeiros professores que iriam atuar nas escolas
particulares e do governo” (PAZ, 2000, p. 61). Sua perspectiva pedagógica
valorizava o intercâmbio de ideias e a “[...] realidade do aluno, procurando respeitar
e procurando compreender sua bagagem psicológica e emocional” (PAZ, 2000, p.
62). No que se refere ao trabalho de Anita Guarnieri, verificamos que sua pedagogia
98
musical não visava à formação de virtuoses, mas “[...] à formação de futuras plateias
para os [...] concertos” (PAZ, 2000, p. 71).
Em relação aos aspectos mais gerais da arte dos sons, observamos que, na década
de 1950, houve uma modificação relevante nos modos de produzir música, tendo
nos Estados Unidos uma importante fonte de transformação dos timbres e estilos.
Nesse contexto, sob influência do beepbop, do jazz, do ragtime e do blues norte-
americanos, surge uma nova maneira de escrever e fazer música, tendo nos
instrumentos eletrônicos e de percussão suas referências. A guitarra, o baixo elétrico
e o teclado tornaram-se os mais novos objetos de consumo entre músicos
profissionais e amadores. Essa nova sonoridade influenciou de maneira decisiva os
repertórios ouvidos por jovens e adolescentes, que passaram a adotar as modas e
os jeitos do rock’roll (HESS, 1997).
Tratando das práticas educativas na segunda metade dos Novecentos, constatamos
em Fonterrada (2005) que a educação musical entre crianças no Brasil, a partir da
década de 1950, passou a ser desenvolvida no sistema público de ensino, no âmbito
das universidades federais e estaduais, com formato de cursos de extensão, bem
como proposta pedagógica e repertório voltado para as práticas instrumentais.
Nesse caso, os cursos de musicalização, denominação dada a esses cursos no
século XX, foram organizados nas mesmas bases dos conservatórios europeus,
descritas no Capítulo 2, cuja proposta agrega duas modalidades de aula: uma
coletiva, de caráter lúdico, vinculada à pedagogia ativa; outra, individual, de caráter
técnico, vinculada mais predominantemente à pedagogia tradicional, voltada para a
prática instrumental.
Tal proposta também encontrou lugar no Estado do Espírito Santo, que, com
objetivo nítido de atender a uma demanda crescente na sociedade capixaba, criou,
em 1952, por meio da Lei nº 661, o Instituto de Música do Espírito Santo. “[...] Sua
instalação aconteceu dois anos depois, no dia 23 de maio de 1954, com a nova
denominação de Escola de Música do Espírito Santo (Emes)” (CARNEIRO, 2010, p.
24), oferecendo aulas de piano, canto e violino. Em 1955, foi criado o Curso de
Iniciação Musical, voltado a crianças de cinco a oito anos, seguindo os moldes dos
cursos ofertados no Instituto de Música do Rio de Janeiro (atual Escola de Música
99
da Universidade Federal do Rio de Janeiro), pois “[...] os capixabas que tinham
interesse em aprender um instrumento só o conseguiriam com a contratação de um
professor particular. Nas igrejas e escolas [...], ensinava-se apenas o canto
orfeônico” (LIMA JUNIOR, 2005, p. 41).
Os cursos de piano tinham suas atividades embasadas em estudos desenvolvidos
por músicos pesquisadores brasileiros, seguindo o modelo europeu, cujas obras
tratavam especificamente da aprendizagem pianística, abordando as principais
técnicas e pedagogias. Dentre essas obras, destacamos as de Guilherme Halfeld
Fontainha (1956) e José Alberto Kaplan (1987), que apresentavam diversas
considerações acerca da técnica pianística, indicando o que e como deve ser uma
aula desse instrumento musical, bem como fornecendo o perfil de um bom professor
de música. No caso de Fontainha (1956), é interessante observar que, com
orientações específicas relativas à técnica e a uma visão tradicional de professor, o
músico sinaliza em sua obra a importância da concepção de música e de criança,
explanando em outras palavras que
[...] os trechos fáceis para principiantes também requerem interpretação. Muitos professores não entendem assim. Dizem mesmo que as crianças não possuem sentimento. Como que não sentem, as crianças? Sentem tanto quanto os adultos. Os motivos é que diferem (FONTAINHA, 1956, p. 28).
Este músico acentuou a necessidade de se levar o aluno a sentir “[...] a beleza que
os sinais expressivos da música encerram [...]” (FONTAINHA, 1956, p. 28),
estimulando sua expressão própria em alguns trechos da música, pois, na relação
entre professor e aluno, “[...] o respeito é mútuo e a liberdade, sem limites.
Discutimos e cada qual dá a sua opinião e, muitas vezes (por que não o dizer?),
acabo adotando o ponto de vista do aluno” (FONTAINHA, 1956, p. 33).
Em se tratando de Kaplan (1987, p. 20), observamos que sua perspectiva de
trabalho baseia-se preponderantemente na ideia de que “a aprendizagem da
execução de um instrumento musical, sendo de caráter perceptivo-motor, com forte
carga do elemento cognitivo, [...] consiste, principalmente, em melhorar a rapidez e a
precisão com que o sistema nervoso central coordena a atividade [...]”. Sua
perspectiva educacional e suas teorias analíticas da técnica pianística alinham-se à
psicologia behaviorista, baseando-se nas propostas de Skinner e Thorndyke, que
100
tiveram ampla influência nos cursos de pedagogia no Brasil ao longo da década de
1980, nos quais o enfoque de caráter biológico-comportamental, de Skinner, era
contraposto ao enfoque humanista, proposto por Carl Rogers, configurando um
amplo debate em torno de duas tendências diametralmente opostas.
Por essa via, Kaplan (1987, p. 29) explanou os aspectos de maior importância de
seu ponto de vista, como “[...] o controle e a coordenação dos variados movimentos
através [sic] dos quais, acionando[-se] as teclas do instrumento, procura-se
interpretar, isto é, dar vida ao código musical impresso na partitura”. Assim, a
aprendizagem musical estava associada ao desenvolvimento de habilidades
motoras, tendo como pré-requisitos dois tipos de fatores, sendo um deles de ordem
biológica – como a maturação –, e o outro, de ordem psicológica – por exemplo, a
motivação –, pois “[...] existe uma íntima relação entre a maturação de nosso
sistema nervoso central e a aprendizagem motora” (KAPLAN, 1987, p. 50).
A partir da década de 1990, tem-se o início de uma série de debates a respeito do
mito da música “verdadeira”, tendo como ponta de lança os questionamentos
apresentados por Rosen (1999, p. 56): “[...] a noção de fidelidade relacionada ao
mito da autenticidade [...] é um dilema que suscita, atualmente, uma viva polêmica
[...]”. Musicólogo e pianista, ele argumentou a favor de um equilíbrio entre a
fidelidade aos contextos históricos de uma obra e a liberdade de recriação ao
executante, pois defendia a importância de se “[...] alcançar uma execução bem
pessoal e inventiva, mas apoiando-se completamente no texto” (ROSEN, 1999, p.
56).
Essa inovação no pensamento acerca da interpretação pianística apresentou
consonância com novas práticas pedagógicas, observadas no Brasil na década de
1990, por exemplo, nos trabalhos desenvolvidos por Maria de Lourdes Junqueira
Gonçalves. Essa musicista criou um método próprio para o ensino de piano em
grupo, denominando-o Educação Musical através do Teclado (PAZ, 2000). Tal
método direcionava-se especialmente às crianças, sendo caracterizado “[...] pelo
enfoque dado à correlação entre executar, criar e ouvir música, atividades que,
requerendo uma diversidade de comportamentos musicais, podem ser integradas ao
processo ensino-aprendizagem” (PAZ, 2000, p. 110, grifo da autora).
101
Passando à atualidade, mais precisamente entre os anos de 2014 e 2015,
identificamos pesquisas relativas à expressão musical, relacionando-a ao campo da
aprendizagem da performance instrumental. Tais pesquisas basearam-se nos
estudos desenvolvidos por Russel (1980), Sloboda e Davidson (1996) e Juslin
(1997, 2003), tratando mais especificamente de três aspectos por eles abordados, a
saber: comunicação intencional da expressividade musical (a emissão e a
recepção), fluxo (boa sequência) e motivação.
Em se tratando da comunicação intencional da expressividade musical, as
pesquisas atuais têm se apoiado preponderantemente no Modelo Circumplexo de
Russel (1980), que “[...] consiste em uma estrutura circular bidimensional, e os
estados emocionais e as emoções sentidas” (GERLING; SANTOS, 2015, p. 18), os
quais se encontram associados a duas variáveis, denominadas valência e atividade:
Figura 11 - Modelo de Russel
Fonte: Gerling e Santos (2015, p. 19)
Gerling e Santos (2015, p. 19) assim explicam o modelo:
para resumir graficamente essa concepção em um plano cartesiano, a abscissa desempenha o papel da valência e a ordenada representa a
102
atividade. Níveis de atividade correspondem a respostas fisiológicas, tal como calmo/agitado, cansado/excitado, enquanto valências correspondem a estados de alegria/tristeza, satisfação/descontentamento, por exemplo (GERLING; SANTOS, 2015, p. 19).
As teorias de Russel têm como ponto de partida a ideias de que as emoções
básicas, assim como todos os estados afetivos, têm sua origem em sistemas
neurofisiológicos independentes, com ações diferenciadas: um sistema voltado para
o contínuo entre o prazer e o descontentamento (valência) estando vinculado aos
sentimentos de atração ou rejeição; o outro sistema, relacionado ao espectro
ativação-desativação (atividade), correspondendo às atividades fisiológicas. Dessa
forma, todos os sentimentos derivariam de um estado ou atividade fisiológica,
permitindo “[...] classificar emoções específicas, como raiva, medo ou alegria”
(GERLING; SANTOS, 2015, p. 17). Assim, haveria, de um lado, as emoções, e, de
outro, um núcleo afetivo ou núcleo de sentimentos inerentes ao ser humano, de
cunho neurofisiológico, diferenciados pela característica de que as “[...] emoções são
descritas como limitadas no tempo, enquanto o núcleo afetivo varia continuamente
no âmbito de suas dimensões” (GERLING; SANTOS, 2015, p. 18).
De acordo com Gerling e Santos (2015, p. 16-17), o modelo de Russel tem se
mostrado como uma eficiente ferramenta pedagógica no campo da performance
musical, pois tem possibilitado “[...] caracterizar a emoção percebida na performance
de estudantes e instigá-los sobre o processo deliberado de expressar um dado
caráter na interpretação de uma dada obra” (GERLING; SANTOS, 2015, p. 16-17).
Em se tratando da pedagogia da performance instrumental no Brasil, encontramos
teses e artigos enfocando a cognição musical, trazendo ao debate questões tais
como o repertório previsto nos cursos de música para crianças, a motivação, a
ludicidade, bem como os processos de criação e a eficácia do instrumentista em
comunicar as emoções das e nas composições. Tais trabalhos abordaram a
europeização dos repertórios e das formas pedagógicas calcadas no modelo
virtuose, apontando para possibilidades de realização da aprendizagem pianística
em óticas diferentes.
Espiridião (2003), por exemplo, questionou os programas e currículos dos
conservatórios de música; Rufini (2003) tratou dos fatores relacionados à motivação
na aprendizagem musical, adotando uma escala de avaliação do estilo motivacional
103
do professor, intitulada Problems in schools; Ramos (2008), por sua vez, focalizou a
expressão musical como comunicação de emoções entre o instrumentista e o
ouvinte; a temática do ensino de piano em uma perspectiva lúdica, envolvendo os
gestos e o corpo, foi abordada por Gouveia (2010), enquanto Almeida (2014) propôs
uma educação musical por meio do piano que proporcionasse encontros criativos
entre as crianças e a música; por fim, Gerling e Santos (2015) discutiu as conexões
entre música e emoção a partir do modelo Russel.
Em se tratando das concepções sobre a expressão musical e sua aprendizagem,
verificamos no campo da educação e da filosofia o desenvolvimento de ideias que
revigoram seu entendimento como instância criativa do ser humano, indo ao
encontro dos principais pressupostos da educação musical, incluindo-se as
abordagens de educadores musicais dos séculos XX e XXI. Assim, no capítulo que
segue, passamos ao estudo dessas vertentes de pensamento, discorrendo sobre os
conceitos que constituem o pensamento de Deleuze e Guattari, bem como de
Virgínia Kastrup e Maturana, referências teóricas principais da investigação aqui
relatada.
104
4 EXPRESSÃO MUSICAL: UMA SONOROFABULAÇÃO
Este capítulo discorre sobre o conceito de fabulação em Deleuze e Guattari (1995,
2010, 2011, 2012a, 2012b, 2012c, 2014), trazendo à cena a concepção de
expressão desses filósofos, tendo como vetor a arte dos sons. Nesse sentido, busca
articular a fabulação deleuziana aos demais conceitos que a ela se avizinham e que
se apresentam como bons condutores para a reflexão sobre o fazer e o aprender
música.
4.1 EXPRESSÃO EM DELEUZE E GUATTARI
A expressão musical na perspectiva de Deleuze e Guattari encontra-se articulada à
concepção de expressão na linguagem, constituindo um dos elementos que
compõem a visão deleuziana sobre a produção do conhecimento. Os filósofos
Deleuze e Guattari conceberam a produção do saber a partir do movimento entre
três grandes formas de pensamento, a saber, a filosofia, a ciência e a arte, operando
em colaboração e “[...] mútua inspiração [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 151).
Por esse ângulo, visualiza-se a forma de pensamento na filosofia como espaço de
criação de conceitos; o pensamento na ciência, como lugar de criação de funções e
prospectos; enquanto na arte se “[...] pensa por afectos e perceptos [...]” (DELEUZE;
GUATTARI, 2010, p. 80).
Essas três grandes formas de pensamento ou de criação não operam pela vontade
de Verdade, mas pelo ato de “[...] enfrentar o caos, [...] esboçar um plano sobre o
caos” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 233), buscando salvar o infinito, por meio
dos conceitos consistentes da filosofia; renunciando ao infinito, gerando uma
referência de funções e proposições na ciência; criando um finito que nos devolve ao
infinito, como no caso da arte.
A filosofia, a ciência e a arte são, assim, vias de pensamento específicas, cujas
trilhas traçadas distinguem-se pela natureza de cada plano, bem como dos
elementos que os povoam, entendendo-se que “[...] os três planos são tão
irredutíveis quanto seus elementos: plano de imanência da filosofia, plano de
composição da arte, plano de referência ou de coordenadas da ciência; forma do
conceito, força da sensação, função do conhecimento (DELEUZE; GUATTARI,
2010, p. 255, grifos dos autores).
105
Um plano não é um método, nem mesmo um conceito, mas “[...] a imagem do
pensamento, a imagem que ele se dá do que significa pensar, fazer uso do
pensamento, se orientar no pensamento [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 47).
Assim, pensamos pela via dos conceitos, das funções e das sensações, sendo que
“[...] um desses pensamentos não é melhor que um outro, ou mais plenamente, mais
completamente, mais sinteticamente pensado [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.
233).
Essas formas de pensar se entrelaçam, conectando-se, sem, no entanto, se
identificar ou produzir alguma síntese. São diferentes maneiras de conhecer que
traçam uma relação entre si, podendo haver uma sensibilidade em um conceito ou
em uma função: “[...] tanto as percepções quanto as afecções especiais da filosofia
ou da ciência se ligarão necessariamente aos perceptos e afectos da arte”
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 158). Da mesma maneira, os functivos e os
prospectos da ciência, assim como os conceitos da filosofia, estarão presentes na
arte, operando por junção, e não por unidade.
Nesse sentido, mesmo que a filosofia e a ciência sigam em linhas independentes –
uma pensando pela via da consistência dos acontecimentos e a outra, pelo estado
das coisas –, o estado das coisas e os acontecimentos não são propriedades de
nenhum dos campos: “[...] a filosofia não para de extrair, por conceitos, do estado de
coisas, um acontecimento consistente, [...] ao passo que a ciência não cessa de
atualizar, por funções, o acontecimento num estado de coisas, uma coisa ou um
corpo referíveis [sic]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 150).
O tríptico formado pela filosofia, pela ciência e pela arte assinala uma eventual
correspondência entre os planos, gerando possibilidades de conceito de sensação
ou de função, função de uma sensação ou de um conceito e sensação de um
conceito ou de uma função. Assim, o processo de construção de uma fórmula
matemática pode envolver a elaboração de conceitos e expressar uma beleza,
apresentando seus afectos e perceptos; o mesmo ocorrendo em relação a uma obra
de arte, cujos perceptos e afectos estabelecem funções e podem conectar-se a
conceitos.
106
Esse movimento entre conceitos, funções e afectos está diretamente relacionado às
modificações corpóreas e incorpóreas em um determinado campo, sendo tais
modificações carreadas por duas formalizações distintas, “[...] uma de conteúdo e
outra de expressão [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 27), compondo os modos
de enunciação próprios a cada linguagem. Nessa perspectiva, a expressão não
forma um par correspondente ao conteúdo, eles, expressão e conteúdo, são corpos
diferenciados, visto que “[...] as duas formalizações não são de mesma natureza, e
são independentes, heterogêneas” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 28).
Tomando como exemplo um acorde musical que aparece na Figura 12, veremos que
sua forma de conteúdo é constituída por quatro sons (notas); em si mesma essa
matéria sonora nada expressa, podendo assumir diferentes afetos a cada vez que
executada, ou seja, podendo assumir uma diversidade de formas de expressão,
conforme lhe seja impresso pelo executante.
Figura 12 - Acorde de ré menor seguido de alteração de uma nota, que modifica seu afeto - canção Dear hearts and gentle people, de Sammy Fain e Bob Hilliard (1949)
Fonte: partitura avulsa do acervo da professora-pesquisadora
Isso traduz a independência entre as formas de expressão e conteúdo, bem como
suas naturezas distintas que reagem entre si, pois “[...] as expressões ou os
expressos vão se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos [...]” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 29), manifestando alterações corpóreas e “[...] transformações
incorpóreas de natureza completamente diferente (acontecimentos)” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 28, grifos dos autores). O mesmo é válido para a situação
inversa, em que a própria expressividade poderá propiciar modificações nas formas
de conteúdo.
107
Esse entendimento sobre as formas de expressão e de conteúdo funda o conceito
de linguagem em Deleuze e Guattari, a qual se baliza não no dualismo entre as
diferentes instâncias que a constituem, mas na coexistência de diferentes
formalizações que nela operam. Assim sendo, os corpos que atuam na produção
das diferentes linguagens não estabelecem entre si uma relação antagônica, pois
“[...] não nos encontramos [...] diante de uma correspondência estrutural entre duas
espécies de formas [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 57), mas diante de uma
“[...] pragmática [...] da língua [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 23).
A partir dessa visão, portanto, no lugar da compreensão de linguagem como produto
das relações estruturais entre pares correspondentes, tem-se a concepção de
linguagem como máquina. Máquina, no universo-Deleuze e Guattari, opera por
junções, acoplamentos de corpos de naturezas diversas, criando uma engrenagem
na qual cada elemento atua de acordo com suas funções, gerando conceptos,
afectos e perceptos diferenciados. Nesse contexto, a música é entendida como uma
linguagem, premissa reiterada por Deleuze e Guattari (1995, p. 42) na seguinte
afirmação: “[...] ainda aqui, objeta-se que a música não é uma linguagem”. A
linguagem musical, portanto, é uma máquina composta por diferentes corpos
reagindo entre si, pois a arte dos sons
[...] ligou a voz e os instrumentos de maneiras bem diversas; mas, como a voz é canto, tem por papel principal „manter‟ o som, preenche uma função de constante, circunscrita a uma nota, ao mesmo tempo em que é acompanhada pelo instrumento. É somente quando relacionada ao timbre que ela desvela uma tessitura que a torna heterogênea a si mesma e lhe dá uma potência de variação contínua: assim não é mais [sic] acompanhada, é realmente „maquinada‟, pertence a uma máquina musical que coloca em prolongamento ou superposição em um mesmo plano sonoro as partes faladas, cantadas, sonoplastizadas, instrumentais e eventualmente eletrônicas (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 42).
A máquina musical opera, portanto, a partir do movimento entre seus diferentes
corpos, que vão produzindo seus enunciados em mútua inspiração entre as formas
de conteúdo e as formas de expressão. Assim, em um processo musical, a sucessão
de acontecimentos sonoros é uma cadeia de transformações corpóreas e
incorpóreas. Assim, “[...] a forma de expressão será constituída pelo encadeamento
dos expressos, como a forma de conteúdo pela trama dos corpos” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 28). Temos, portanto, atributos corpóreos – as formas de
conteúdo – e atributos incorpóreos, que “[...] são os expressos dos enunciados [...]”
108
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 28), como o acorde musical: “os acordes são
afectos. Consoantes e dissonantes, os acordes de tons [...] são os afectos de
música” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 194).
As transformações corpóreas e incorpóreas não cessam de se interferir, indo de um
segmento a outro, de modo que “[...] a independência funcional das duas formas [...]
faz com que um segmento de uma reveze, sem cessar, com um segmento da outra,
que se insinue ou se introduza na outra” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 29). Em
se tratando da música, temos os corpos sonoros – as formas de conteúdo –, as
notas musicais, os diferentes espécimes de instrumentos, timbres, os diversos
instrumentistas, as paixões; temos as formas de expressão que são atribuídas a
esses corpos, dando-lhes variadas feições, atmosferas, texturas. Ou seja, há a
mistura de corpos “[...] reagindo uns sobre os outros [...]” (DELEUZE; GUATTARI,
1995, p. 31) e as transformações incorpóreas, que “[...] são o expresso dos
enunciados que são atribuídos aos corpos [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 28,
grifo dos autores), modificando os afectos e os perceptos, bem como as funções e
os conceitos.
Esse movimento de passagem de um segmento a outro, em mútua inspiração e
transformação, constitui o que Deleuze e Guattari (2012b) denominaram como
territórios, que vão constantemente se desterritorializando e reterritorializando, pois,
[...] precisamente, há território a partir do momento em que componentes de meios param de ser direcionais para devirem dimensionais, quando eles param de ser funcionais para devirem expressivos. É a emergência de matérias de expressão (qualidades) que vai definir o território (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 127).
Assim, vemos que um território não preexiste às formas, mas, antes, a
expressividade o constitui, no entrelaçamento e colaboração entre as formas de
conteúdo e de expressão, não sendo possível “[...] postular um primado da
expressão sobre o conteúdo, ou o inverso [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 30),
estando ambas as formas no movimento de compor territórios e de desterritorializá-
los.
Por essa ótica, a expressão não é fixa, nem mesmo algo subjetivo ou objetivo, mas,
antes, é um ato em que “[...] as qualidades ou matérias de expressão entram em
relações móveis umas com as outras, as quais vão „exprimir‟ a relação do território
109
que elas traçam com o meio interior dos impulsos e com o meio exterior das
circunstâncias” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 131). Essa ideia quer dizer que a
expressividade não se limita a um impulso que desencadeia uma ação, tratando-se
de gestos que envolvem transformações dimensionais e de intensidade, tendo por
sentido “[...] marcar um território [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 128),
performatizando um território sonoro.
As funções, por sua vez, não preexistem ao território, mas emergem em sintonia
com a expressividade, compondo territórios sempre pelos movimentos de
territorialização, desterritorialização e reterritorialização. Nesse sentido, a
expressividade musical não existe de per se, mas se compõe no processo mesmo
da execução, na conjugação e mútua interferência entre as formas de conteúdo e de
expressão, bem como entre os atributos corpóreos e incorpóreos. Ou seja, a
expressividade é produzida nas engrenagens próprias das transformações
corpóreas e incorpóreas, em movimento de territorialização, desterritorialização e
reterritorialização da substância sonora.
Para Deleuze e Guattari (2010, p. 208), portanto, a arte é uma expressão de afectos,
isto é, “[...] a arte é a linguagem das sensações [...]”, na qual se expõem os
perceptos e os afectos do vivido, para além das percepções, opiniões e afecções
das vivências. Por essa via, a música não é a representação de estados do ser ou a
semelhança com algo vivenciado no cotidiano – no sentido de não ser um faz de
conta ou uma imitação –, pois no entendimento deleuziano, o fazer artístico é o
transbordamento do vivido, transcodificando-se em uma linguagem de sensações
“[...] que faz entrar nas palavras, nas cores, nos sons ou nas pedras [...]” (DELEUZE;
GUATTARI, 2010, p. 208). Assim, fazemos música sentindo e seguindo a lógica das
sensações, expressando o que os afectos pedem, pensando por afectos e
perceptos, não por funções ou conceitos. Os perceptos e os afectos são inerentes à
arte.
4.1.1 Formação de territórios na música: um exemplo a partir da composição
Danse, de Claude Debussy
Com o objetivo de aprofundarmos nossa compreensão do pensamento de Deleuze e
Guattari a respeito da linguagem das sensações, em específico, na arte sonora,
110
tomamos por empréstimo a peça musical Danse (ARRAU, acesso em: 2 nov. 2015),
composta por Claude Debussy (1862-1918), cujo desenvolvimento coloca em
evidência diferentes intensidades, afectos, perceptos, densidades e atmosferas,
permitindo-nos compreender o sentido da fabulação e os processos de
territorialização, desterritorialização e reterritorialização.
Observando o trecho inicial da música (Figura 13), vemos que ela começa em
sonoridade muito leve, indicada pelo sinal pp logo no início da composição. Território
sonoro de corpo extremamente suave...
Figura 13 - Início da composição Danse, de Claude Debussy (1890)
Fonte: partitura avulsa usada na Fames
No trecho que está na Figura 14, a seguir, o som desterritorializa-se, começa a
crescer e vai a fortíssimo (ff), reterritorializando-se em determinadas sonoridades de
acordes mais enfatizadas (sfz), para, logo em seguida, desterritorializar-se em
sonoridade que segue diminuindo e cai em pianíssimo novamente, mas um outro
pianíssimo – não mais aquele do início da música; é um outro território.
111
Figura 14 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890)
Fonte: partitura avulsa usada na Fames
Observando-se o trecho exposto na Figura 15, a seguir, a composição dá início a
outro território sonoro, em crescendo, chegando novamente a fortíssimo, mantendo-
se nessa ambiência, e começa, em seguida, uma nova trajetória, com as
sonoridades diminuindo até se perderem; nossos corpos se desterritorializam com o
som, já sentindo o som que virá.
112
Figura 15 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890)
Fonte: partitura avulsa usada na Fames
No trecho subsequente (Figura 16), o som desterritorializa-se para uma atmosfera
completamente diferente das anteriores, levando a música para um território etéreo,
diáfano. Mudam-se os tons, a textura e os timbres... O trecho prolonga-se, passando
por ambientações mais expressivas, indo em direção a uma elaboração mais rítmica
do que melódica, o território sonoro transforma-se em notas marcadas, sons
enfáticos, velocidades, chegando ao fortíssimo e, ao mesmo tempo, diminuindo o
andamento (rit.). Lentidões...
Na sequência, a música retoma tal e qual o início, em som muito leve, uma
reterritorialização. Logo desterritorializa-se em velocidades, indo a fortíssimo, com
um grand finale (Figura 17).
113
Figura 16 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890)
Fonte: partitura avulsa usada na Fames
114
Figura 17 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890)
Fonte: partitura avulsa usada na Fames
Olhando para a partitura e ouvindo a música, verificamos que ela é feita de notas
musicais, linhas, sons, timbres e ritmos, que são os materiais com os quais o
compositor e o instrumentista criam suas obras. Porém, não são exatamente os
sons, os timbres e os ritmos que compõem uma obra sonora, mas, sim, os afectos,
perceptos e blocos de sensações. São eles que “[...] fazem as vezes de linguagem
[...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 208), em constante movimento de
territorialização, desterritorialização e reterritorialização. Isso implica a ideia de que
não existe uma relação biunívoca entre uma sonoridade pensada por um compositor
ou instrumentista e um instrumento musical em si, mas que um determinado
instrumento pode “fazer as vezes” daquela sonoridade imaginada, daquele afecto:
“[...] pintamos, esculpimos, compomos, escrevemos com sensações. Pintamos,
esculpimos, compomos, escrevemos sensações” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.
196), o que é o mesmo que se pode dizer sobre quando ouvimos música e tocamos
um instrumento musical.
Tratando do universo-Debussy, em Danse, a partitura em si, à primeira vista, pouco
expressa sobre seu universo, mas, atendo-nos às suas pistas – de pianíssimo,
expressivo, fortíssimo, perdendo-se etc. –, começamos a adentrar seu plano de
composição das sensações. Imaginemos um som qualquer muito leve, suave; na
sequência, outro som, porém, forte; seguindo em frente, encontramos outro som
suave e outros sons que vão diminuindo até se perderem, se dispersarem...
115
Passamos ao território do etéreo, sons vagos... sons surdos, lentidões. Tempo liso...
Continuando, chegamos à melodia apaixonada e outra mais delicada. Após um
fortíssimo, ouve-se a antiga cançãozinha, do começo, leve, suave, reconduzindo-nos
para seu tema inicial, tempo marcado, mas... De repente, no fim, em um rompante,
entramos numa nuvem de sons fortíssimos que nos arrastam para o alto, para o
cosmos, numa postura quase acrobática, na força de sua verticalidade.
Velocidades... E o som escapa universo afora... É assim que “[...] a sensação não se
realiza no material, sem que o material entre inteiramente na sensação, no percepto
ou no afecto [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 197).
A composição Danse é uma tarantela, que tem como percepto a história de aranhas
que picavam as pessoas em uma região da Itália, o que levava essas pessoas a
dançar. Conhecida como a dança da aranha, “[...] a tarantela é uma estranha dança
que conjura ou exorciza as supostas vítimas de uma picada de tarântula: mas,
quando a vítima faz sua dança [...], não se imita; constitui-se um bloco de devir, pura
cor e puro som, segundo os quais o outro dança” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p.
113). Porém, a composição é, de fato, uma dança, uma máquina de expressividade
em que as formas de expressão e as formas de conteúdo se polinizam, movendo os
afectos e os percetos, realinhando as funções e os conceptos. Assim, o mover do
pensamento musical entre conceptos, functivos, afectos e perceptos compõe uma
verdadeira máquina de expressão, constituindo o que Deleuze e Guattari (2010)
conceberam como fabulação, conceito sobre o qual discorreremos no tópico a
seguir.
4.2 FABULAÇÃO EM DELEUZE E GUATTARI
O conceito de fabulação deleuziano é significativamente adequado para a
investigação aqui relatada, visto que não nos remete aos contos, nem mesmo às
estorietas que reproduzem a vida, não se referindo, da mesma forma, a “[...] uma
lembrança mesmo amplificada [...]. Com efeito, o artista [...] excede os estados
perceptivos e as passagens do vivido. Como contaria ele o que lhe aconteceu, ou o
que imagina, já que é uma sombra?” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 202).
A fabulação deleuziana remete-nos às narrativas de ficção, uma narrativa que “[...]
compõe [...] perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepções
116
vividas” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 202). Bogue (2011) trabalhou o conceito
deleuziano de fabulação na relação Cronos-Aion, entendendo-os como
personagens-tempo coexistentes, apoiando-se na concepção de tempo em Deleuze.
A partir das visões de Bergson e Nietzsche, Deleuze pensou o tempo em três
sínteses passivas; passivas porque, para este filósofo, a percepção de tempo “[...]
vem até nós através [sic] de sínteses de momentos, [...] que acontecem
automaticamente, sem ação deliberada” (BOGUE, 2011, p. 26). A primeira síntese, o
habitus, “[...] exprime a fundação do tempo sobre um presente vivo, fundação que dá
ao prazer seu valor de princípio empírico em geral [...]” (DELEUZE, 2006, p. 169);
por sua vez, a segunda síntese do tempo “[...] exprime o fundamento do tempo por
um passado puro [...]” (DELEUZE, 2006, p. 169); por fim, a terceira síntese passiva
do tempo, segundo afirma Deleuze (2006, p. 169), “[...] designa o sem-fundo [...],
para além do fundamento de Eros e da fundação de Habitus”.
Especificamente com relação à terceira síntese, Deleuze (2006, p. 169) assinala sua
potência de ser para-além das antinomias, cabendo-lhe desfazer “[...] seu círculo
físico ou natural [habitus], bem centrado demais, e formar uma linha reta, mas que,
levada pelo seu próprio comprimento, torna a formar um círculo eternamente
descentrado”. Esta síntese é, portanto, o espaço aberto ao futuro no presente, “[...] o
momento de liberdade e de possibilidades impensáveis [...]” (BOGUE, 2011, p. 28).
Desse ângulo de visão, Deleuze sugere que “[...] nós não vivemos em uma
sequência ininterrupta de pontos de presente, mas em um movimento, em um devir,
que incorpora em si um passado mantido no presente, e que segue em direção ao
futuro” (BOGUE, 2011, p. 26), sendo que, “[...] sob todas as circunstâncias, o estado
presente é um estado possível” (NIETZSCHE, 1974, p. 396).
Essa ideia de tempo concebida por Deleuze abriu perspectivas para o entendimento
e a vivência cotidiana que transita na modulação temporal. Nesse sentido, partindo
das personagens conceituais Cronos e Aion, Deleuze imprimiu-lhes um novo
sentido, instando-as a uma relação de coexistência, e não mais de oposição. Assim,
Cronos é a marcação linear, instituída, e Aion, “[...] o tempo não pulsado flutuante,
[...] isto é, o tempo do acontecimento puro ou do devir, enunciando velocidades e
lentidões relativas, independente [sic] dos valores cronológicos ou cronométricos
[...]” (DELEUZE, 2012b, p. 53). Desse ponto de vista, Cronos e Aion coexistem,
117
dobrando o tempo em politempos, de forma tal que, “[...] a cada momento do
presente [cronos, habitus], uma extensão suspensa, em Aion, pode surgir [...]”
(BOGUE, 2011, p. 28), possibilitando a expressão criadora. É nesse campo que a
fabulação se constitui, delineando um entre-lugar, “[...] uma fenda no tempo, uma
„cesura‟ que assinala um „antes‟ e um „depois‟ [...]” (BOGUE, 2011, p. 28). Ou, nos
termos deleuzianos, “[...] o hábito transvasa à repetição algo de novo: a diferença
[...]” (DELEUZE, 2006, p. 79, grifo do autor).
Cronos e Aion estão na música: na música tonal, Cronos é contagem regular dos
tempos, como uma régua; nas barras de compasso que separam os conjuntos de
tempo, não de acordo com as sonoridades, mas de acordo com a fórmula do
compasso; ou nas séries. Aion está mais presente na indicação do caráter da peça –
Allegro, Scherzando, Vivo, Adagio etc. –, as marcas que indicam a expressividade,
os afectos; a época do compositor e seus perceptos.
Vemos, portanto, que a experiência musical não é da ordem de uma sequência
linear cujos momentos seguem-se repetitivos, igualmente. Em se tratando
especialmente de música, cada tempo do ritmo é único, fazendo com que o tempo 1
de um compasso seja inteiramente diverso do tempo 1 de outro compasso.
Da mesma maneira, Cronos é o plano de composição técnica, tempo metrificado;
Aion, o plano de composição estético das sensações, tempo não metrificado, não de
forma antagônica, em oposição, nem mesmo alternada, mas um eterno movimento,
em coexistência. Deleuze e Guattari (2012b, p. 51) elaboraram essa concepção de
tempo-espaço a partir das formulações do músico Pierre Boulez a respeito do tempo
musical, afirmando que esse músico fazia a distinção entre “[...] o tempo e o não-
tempo, o „tempo pulsado‟ de uma música formal e funcional fundada em valores, e o
„tempo não pulsado‟ para uma música flutuante, flutuante e maquínica, que só tem
velocidades ou diferenças de dinâmica [...]”. Desse modo, a diferença entre Aion e
Cronos não se passa apenas entre as noções de tempo regular ou irregular, nem
entre o efêmero e o duradouro, “[...] mas entre dois modos de individuação, dois
modos de temporalidade” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 51).
Tais modos de temporalidade, Cronos e Aion, estabelecem ressonância com os
modos de enunciação ou ação, criando relações de movimento e repouso,
118
velocidades e lentidões relativas: “[...] é preciso que a obra de arte marque os
segundos, os décimos, os centésimos de segundo. Ou se trata de uma liberação do
tempo, Aion [...]”, afirmam Deleuze e Guattari (2012b, p. 59), trazendo exemplos
musicais nos quais essas modalidades de tempo e de ação emergem no transcorrer
mesmo da obra:
[...] talvez o gênio de Schumann seja o caso mais chocante, onde [sic] uma forma não é desenvolvida senão para as relações de velocidade e lentidão pelas quais ela é afetada material e emocionalmente [...] Com mais razão ainda, Wagner e os pós-wagnerianos irão liberar as variações de velocidade entre partículas sonoras. [...] Ravel e Debussy preservam da forma precisamente aquilo que é necessário para quebrá-la, afetá-la, modificá-la, sob as velocidades e as lentidões. [...] Mesmo um rubato de Chopin não pode ser reproduzido, pois terá a cada vez características diferentes de tempo (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 64).
Essa coexistência de tempos pode ser percebida na composição Danse, que se
desenvolve na contagem de seus tempos cronológicos da fórmula de compasso 1,
2, 3, 4, 5, 6, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 1... E também se desprende dessa contagem no “não
tempo” da sonoridade, perde-se em um número determinado de tempos; nem mais,
nem menos. O músico e a música criam, então, um terceiro tempo no tempo-espaço
cronológico, caindo no espaço-tempo flutuante Cronos-Aion. Nessa coexistência dos
planos de composição técnica e o plano das sensações, Aion contamina Cronos,
movimenta a régua rítmica; Cronos, por sua vez, potencializa Aion, criando o campo
dos possíveis, no qual os afectos não são a narrativa ou lembrança de um vivido,
mas sua saturação, seu transbordamento em diferentes intensidades. As
sonoridades da composição Danse são da ordem de um devir-criança e, quando a
ouvimos ou tocamos, dançamos com Aion e Cronos. Ou melhor, talvez Aion e
Cronos façam-nos dançar.
Se em Danse o universo-Debussy é da ordem de um devir-criança, Chopin já nos
traz ou nos leva a sonoridades soturnas, interiorizadas, à fabulação de perceptos de
outros vividos. O tempo do e no universo-Chopin é a narrativa de outra intensidade e
densidade:
a moldura harmônica do tema dá lugar a uma espécie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composição [...] o trabalho criador já não mais versa sobre os componentes sonoros, motivos e temas, abrindo um plano de composição, para fazer nascer dele compostos bem mais livres e desenquadrados, quase agregados incompletos [...]. É a „cor‟ do som que conta cada vez mais. Passa-se da
119
Casa ao Cosmos (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 225-226, grifo dos autores).
Chopin satura a dor, excede a languidez, criando um tempo denso, entre
velocidades e lentidões. Suas sonoridades são da ordem de um devir-mulher, em
que as frases são de uma incompletude que se dissipam no espaço. Podemos ver
isso no Estudo Op. 25 nº 7 (F. CHOPIN, Acesso em 2 nov. 2015) (Figuras 18 e 19).
O fortíssimo de Chopin não nos eleva às alturas do cosmos, mas expande a energia
sônica, compondo o ser da sensação em um movimento catabático, para baixo, para
dentro, para a terra: “[...] é a carne que vai se libertar ao mesmo tempo do corpo
vivido, do mundo percebido, e da intencionalidade de um ao outro, ainda muito
ligada à experiência” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 210), uma carne que é tanto
da ordem da sensualidade quanto da religiosidade, compondo o ser de sensação
que não existiria sem ela, ou que deixaria a música desabar aos clichês de paixão
ou aos sons pseudorromânticos. Para encontrar o universo-Chopin, é preciso achar
suas pistas.
Figura 18 - Trecho do Estudo Op. 25 nº, de Chopin
Fonte: partitura avulsa usada na Fames
120
Figura 19 - Trecho do Estudo Op. 25 nº, de Fréderic Chopin (1837)
Fonte: partitura avulsa usada na Fames
Passando ao universo-Guarani Nhãdeva, nos cantos da tradição, Cronos e Aion
estão presentes tanto na régua rítmica quanto nos desenhos melódicos, que, juntos,
formam um sistema musical, o sistema-Nhãdeva. O desenquadramento dessa casa
Guarani acontece quando algum indígena resolve achar uma linha de fuga,
desterritorializando suas formas, sua linguagem sonora, seus modos de tocar. Um
exemplo disso é a canção Tangará mirim (Mborai Marei), de autoria de Wanderley
Moreira (MOREIRA, acesso em 20 jul. 2015), integrante do grupo musical Nuvens
Azuis, da Aldeia Biguaçu, em Santa Catarina. Aion está igualmente presente nos
cantos-lamentações, composições de tempo liso, sem marcações, que são entoadas
entre o falar e o cantar (sprechgesang), em que
ora uma primeira parte diatônica vocal dá lugar a uma descida cromática em língua secreta, deslizando de um som a outro de forma contínua, modulando um continuum sonoro em intervalos cada vez menores, até alcançar um parlando cujos intervalos param; e ora é a parte diatônica que se encontra ela mesma transportada segundo os níveis cromáticos de uma arquitetura em plataformas, sendo o canto às vezes interrompido pelo parlando, uma simples conversa sem altura definida (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 43).
Indo ao universo-pop, vemos na canção Como uma onda no mar, de Lulu Santos,
um bom exemplo de fabulação. É interessante observar a perfeita composição entre
o que a letra sugere e as sonoridades instrumentais. O composto feito pelo ritmo, a
forma do arranjo harmônico e a maneira como a música é tocada criam exatamente
a sensação do balanço das ondas do mar; é a percepção do mar de Lulu Santos
transbordada em percepto, “[...] estendendo um plano de composição arquitetônico
121
em que ela se tornaria um puro ser espiritual, uma matéria radiante pensante e
pensada, não mais uma sensação do mar [...], mas uma sensação do conceito de
mar” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 234). Essa ideia é fundamental, pois, de que
adiantaria falar das ondas do mar em uma narrativa sonora que segue uma única
linha de tempos e ritmos regulares e corretos, “certinhos”? De que estaríamos
falando? Não, música não é uma execução “correta” de notas e ritmos; música é
composição; “[...] composição, composição, eis a única definição de arte. A
composição é estética, e o que não é estético não é uma obra de arte” (DELEUZE;
GUATTARI, 2010, p. 227).
Nesse plano de composição, os símbolos são pistas importantes que conduzem o
instrumentista ao plano de composição estético, indicando as sonoridades sugeridas
nos afectos. Ou seja, a lógica do fazer artístico sonoro não está nas regras (embora
elas existam), não está no material em si, muito menos em um compêndio de
teorias: a lógica é a da sensação! É assim que “[...] só passamos de um material a
outro, como do violão ao piano, [...] se o composto de sensações o exigir [...]”
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 197). O tipo de som suave que fazemos no início
de Danse é pedido pelo som, pela música em seus momentos específicos, levando-
nos a entender que fazer música não é uma representação ou reprodução de algo,
mas é o esforço “[...] para tornar sonoras forças que não são sonoras” (DELEUZE,
2007, p. 62).
Dando continuidade às investigações mais restritas sobre a fabulação deleuziana,
de acordo com as incursões de Bogue (2011, p. 21), esse conceito possui cinco
características que movem e fazem mover o plano da criação, a saber: “[...] devir-
outro, experimentação no real, „mito‟, invenção de um povo por vir, e
desterritorialização da linguagem”.
Referindo-nos à primeira característica, vemos sua relação com o objeto da
pesquisa aqui relatada naquilo que diz respeito aos desequilíbrios metamórficos que
podem constituir a musicalidade na própria música; em uma aula, situando alunos,
professores e músicas; em uma passagem contínua entre formas de existência e
entre corpos distintos. Dessa maneira, os alunos e as partituras dizem um do outro,
assim como, no encontro, professor, aluno, compositor e partitura imprimem-se
mutuamente em relações-devires. Outro aspecto fundamental dessa característica é
122
a possibilidade de apontar caminhos para superar conceitos e categorias que não
funcionam, tal como o modelo-concertista na educação musical instrumental.
A segunda característica, experimentação no real, vincula-se à ideia de máquina
como meio de processamento. A aula de música por nós pensada, nesse contexto
da fabulação deleuziana, é um dispositivo que funciona como intervenção em um
universo institucional, a escola de música, entendendo que “[...] os signos dos
sistemas semióticos, incluindo a língua, não se separam das instituições, das
práticas, e das relações de poder que permeiam as interações humanas” (BOGUE,
2011, p. 23).
No tocante à terceira e quarta características – fabulação deleuziana do mito e
invenção de um povo por vir –, podemos identificar conexão entre ambas, pois a
dimensão do mito existe na ressonância de um povo que falta. Assim, segundo
Bogue (2011, p. 24), as projeções mitográficas criam personagens que são
máquinas de agenciamento coletivo de enunciação, assumindo “[...] um lugar maior-
que-a-vida, heroico, ou quase divino [...]”.
A desterritorialização da linguagem, por sua vez, é uma característica que se refere
à visão de que as diversas formas de linguagem e seus modos de enunciação não
são modelos universais, herméticos ou constantes, mas fazem parte de um
continuum de variação, no qual transitam o sistema-padrão de uma língua e suas
incontáveis criações e recriações. Nesse sentido, um sistema padrão de linguagem
ou linguagem estabelecida é sempre territorializado, prescrito, adotando um
procedimento que parte do conteúdo e segue à expressão: “[...] dado um conteúdo,
em uma dada forma, achar, descobrir, ou ver a forma de expressão que lhe convém”
(DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 57). A criação na linguagem, por sua vez, abarcará
seus processos de desterritorialização, estando “[...] necessariamente em ruptura
com a ordem das coisas [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 58), visto que a
expressividade em uma dada língua emerge do movimento e da mútua interferência
entre as transformações corpóreas e incorpóreas.
A desterritorialização da língua é, portanto, o movimento de descoberta ou, ainda, a
abertura de uma linha em que a criação e a recriação se tornam possíveis, em meio
às formas molares, demarcadas, entendendo que o poder de expressão e os
123
mecanismos de repressão e cristalização coexistem em um mesmo campo, pois “[...]
toda sociedade, mas também todo indivíduo, são [...] atravessados pelas duas
segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e outra molecular” (DELEUZE;
GUATTARI, 2012a, p. 99, grifo dos autores).
Em se tratando da música, podemos retomar à composição Danse, no universo-
Debussy, para exemplificar. Embora suas sonoridades sejam estruturadas em uma
arquitetura formal – a música contém suas clausuras –, inerente ao próprio plano de
composição técnico da forma sonata, o músico criou saídas feitas de modulações,
transposições, tessituras que desterritorializaram o conceito de sonata, que estava
em vigor naquele momento em que Claude Debussy criou essa composição. Nesse
caso, o compositor criou seu estilo próprio, “[...] os modos e ritmos de um músico
[...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 201), estruturando uma escala de tons
inteiros, com sonoridades pictóricas impressionistas, quase sempre, nuvens de som,
as quais se elevaram “[...] das percepções vividas ao percepto, das afecções vividas
ao afecto” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 201).
A composição Danse segue, portanto, a forma enquadrante rígida da sonata, a casa,
que tem seus aposentos definidos, suas paredes e enquadramentos, e também
aberturas, suas portas ou suas janelas que convidam a espreitar linhas de fuga,
desagregando a moldura tonal por “[...] tons justapostos que separam e dispersam
as forças agenciando suas passagens reversíveis, em Debussy” (DELEUZE;
GUATTARI, 2010, p. 226).
Ainda referindo-nos à forma sonata, vemos que sua estrutura básica em três
movimentos distintos é comumente recriada, pois “[...] é raro que um grande músico
siga a forma canônica [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 225). Liszt, por
exemplo, abriu linhas de fuga ao promover “[...] uma fusão dos movimentos no
„poema sinfônico‟. A sonata aparece, então, antes, como uma forma-cruzamento em
que, da junção das dimensões musicais, da clausura dos compostos sonoros, nasce
a abertura de um plano de composição” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 225).
O mesmo podemos dizer do nascimento de determinados estilos musicais, como a
bossa nova, que, a partir da alteração de uma pequena célula rítmica agregada a
uma sonoridade atípica, João Gilberto (1931-) produziu um novo estilo musical,
124
desterritorializando o conceito de samba, sendo o novo estilo praticado no Brasil nas
décadas de 1950 e 1960 (SEVERIANO, 2009).
No campo da performance instrumental, temos o pianista Glenn Gould (1932-1982),
cujo modo de tocar desconcertou os parâmetros e as prescrições técnico-
comportamentais do conceito de pianista, abalando as linhas molares do “mito da
música verdadeira”. As interpretações de Bach, especialmente as Variações
Goldberg, executadas pelo referido pianista, são consideradas um marco na música
ocidental do século XX.
Figuras 20 e 21 - Glenn Gould, que criou maneira própria de tocar piano, rompendo o modelo instituído
Fonte: La respiration (acesso em 22 ago. 2016).
Tais são os processos de desterritorialização da linguagem que nos fazem ver que,
“[...] por toda parte, a música organizada é atravessada por uma linha de abolição,
como a linguagem sensata, por uma linha de fuga, para liberar uma matéria viva
expressiva que fala por ela mesma e não tem mais necessidade de ser formada”
(DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 43). Os processos de desterritorialização sempre
estarão em relação a um processo de territorialização, sendo o mesmo que dizer
que as variações da linguagem e seus processos criativos só o são em relação aos
sistemas-padrão.
Vemos, portanto, que a desterritorialização da linguagem, como característica do
conceito de fabulação deleuziana, sinaliza para os usos da linguagem que levam à
criação na temporalidade Cronos-Aion, escapando às repetições, às reproduções
dos modelos instituídos ou territorializados. Nesse caso, a expressividade compõe
125
novos territórios, agenciando modos próprios de enunciação, trilhando linhas
moleculares, linhas de fuga, desterritorializando-se.
4.2.1 Fabulação e suas áreas de vizinhança
A elaboração de conceitos na perspectiva deleuziana tem, em si, a ideia de que “[...]
não há conceito simples. Todo conceito tem componentes e se define por eles. [...] É
uma multiplicidade [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 23). Assim, o conceito de
fabulação agrega-se a outras ideias e conceitos, visto que “[...] cada conceito remete
a outros conceitos, não somente em sua história, mas em seu devir ou suas
conexões presentes [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 27).
Entre os conceitos agregados, estão os conceitos de máquina abstrata e
agenciamento coletivo de enunciação. Máquina abstrata é “[...] sempre singular,
designada por um nome próprio, de grupo ou de indivíduo, ao passo que o
agenciamento de enunciação é sempre coletivo, no indivíduo ou no grupo”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 48). As máquinas abstratas e os agenciamentos
coletivos não se opõem, mas coexistem na linguagem numa relação de ressonância,
não sendo possível distinguir o que são as constantes e o que são as variáveis em
uma língua, ou seus atos de fala e uma língua coletiva, reagindo entre si de variadas
formas:
máquina abstrata-Lênin e agenciamento coletivo-bolchevique... O mesmo é válido para a literatura, para a música. Nenhum primado do indivíduo, mas indissolubilidade de um Abstrato singular e de um Concreto coletivo. A máquina abstrata não existe mais independentemente do agenciamento, assim como o agenciamento não funciona independentemente da máquina (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 48).
Os agenciamentos coletivos de enunciação são as produções, os gestos, enfim,
todas as expressões que desterritorializam a linguagem cristalizada, afastando-se de
“[...] uma linguagem de papel [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 39). Por essa
via, o que um músico ou “[...] o escritor sozinho diz já constitui uma ação comum, e o
que ele diz ou faz é necessariamente político, mesmo que os outros não estejam de
acordo [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 37). Por esse exato ângulo, podemos
afirmar que “[...] não há sujeitos, há apenas agenciamentos coletivos de enunciação
[...], a ligação do individual no imediato-político” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 38-
39, grifos dos autores).
126
Nesse sentido, podemos mencionar o agenciamento coletivo Debussy, que
desterritorializou as formas de expressão e de conteúdo próprias do romantismo,
criando um estilo, uma assinatura, bem como abrindo linha de fuga por onde
transitavam os anseios por novas texturas sonoras. Destacamos, ainda, o
agenciamento coletivo Ravel, cujo “Bolero [...] é um tipo de agenciamento maquínico
que conserva da forma o mínimo para leva-la à explosão” (DELEUZE; GUATTARI,
2012b, p. 64).
A questão dos diferentes estilos da linguagem musical no universo-Deleuze e
Guattari são da ordem de um continuum, ou seja, as modelagens sonoras de cada
época não sinalizam para uma evolução, mas são, antes, diferentes agenciamentos,
que “[...] comportam máquinas diferentes, ou relações diferentes com a máquina [...]”
(DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 173). Assim, a desterritorialização sonora não
comporta uma antinomia entre estilos, mas uma coexistência, como “[...] matéria em
movimento de uma variação contínua [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 164,
grifo dos autores). Nessa perspectiva, o romantismo não desterritorializou o
classicismo, tampouco o modernismo é uma evolução do período romântico:
não se deve interpretar essas três „idades‟, o clássico, o romântico e o moderno [...], como evolução, nem como estruturas com cortes significantes. São agenciamentos que comportam máquinas diferentes, ou relações diferentes com a máquina. Num certo sentido, tudo o que atribuímos a uma idade já estava presente na idade precedente (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 173).
Para os filósofos Deleuze e Guattari, o fazer musical é, portanto, um agenciamento
contendo a ideia de tornar-se, um transbordamento do campo das virtualidades para
o real, compondo a ordem do devir. O conceito de devir no pensamento deleuziano
diferencia-se da noção de possibilidade, comportando o sentido de atualização e
criação:
a atualização do virtual [...] sempre se faz por diferença, divergência ou diferenciação. A atualização rompe tanto com a semelhança como processo quanto com a identidade como princípio. A atualização, a diferenciação, nesse sentido, é sempre uma verdadeira criação (DELEUZE, 2006, p. 202).
A música comporta devires de diferentes naturezas, por exemplo, as obras de
Schumann, que remetem às infâncias e aos animais, e as obras de Villa-Lobos, que
aludem às brasilidades sertanejas. Deleuze e Guattari (2012b, p. 111-112) discorrem
sobre o devir-criança, devir-animal e devir-mulher: “[...] a música toma por conteúdo
127
um devir-animal; mas o cavalo, por exemplo, adquire aí, como expressão, as
pequenas batidas de timbale; [...] os pássaros toam expressão em grupetos”.
A obra deleuziana apresenta outro conceito, igualmente importante para o
desenvolvimento do estudo relatado nesta tese: a ideia de ritornelo, entendendo-o
como matéria de expressão “[...] essencialmente territorial, territorializante ou
reterritorializante [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 106). Assim, o ritornelo
pode ser entendido como o canto de um pássaro, um som ou ideia repetitiva, o
motivo musical que gruda na cabeça. Engloba em si mesmo as possibilidades de
territorialização, desterritorialização e reterritorialização sonoras, consistindo na
própria aventura da arte dos sons, podendo ser desterritorializado na e pela música,
observando que “a música é precisamente a aventura de um ritornelo: a maneira
pela qual a música vira de novo um ritornelo em nossa cabeça, “[...] nos dispositivos
pseudorrastreadores da TV e do rádio, um grande músico como prefixo musical [...]”
(DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 108).
O canto dos pássaros e as pedras são ritornelos na mesma medida em que são
agenciamentos territoriais que podem ser desprendidos de suas clausuras em
processos metamorfoseantes de sons melódicos ou de silêncios. Nesse sentido, o
compositor Olivier Messiaen (1908-1992) transcodificou o canto dos pássaros em
paisagens musicais e Luigi Nono (1924-1990), as pedras em silêncios potenciais, ur-
som10. Assim, a matéria de expressão sonora está em qualquer lugar, diante do que
Deleuze e Guattari (2010, p. 200-201) observam: “[...] que estranhos devires
desencadeiam a música através de suas „paisagens melódicas‟ e seus „personagens
rítmicos‟, como diz Messiaen, compondo, num mesmo ser de sensação, o molecular
e o cósmico, as estrelas, os átomos e os pássaros?”.
O ritornelo é o próprio material musical arrancado de sua territorialidade, tornando-
se som, devindo-som, em um processo de transcodificação de afeções e
percepções em afectos e perceptos. A música é atravessada de ritornelos, ritornelos
de etnias, de crianças, de amor, de mulheres, de pássaros, transbordados em
floreios, blocos sonoros, rítmicas, timbres, pois “[...] a expressão musical é
10
Luigi Nono (1924-1990), cujas obras privilegiavam o timbre, trabalhou em suas últimas composições com as ideias de som-silêncio, som-sopro, som-voz e ur-som, significando este o som das pedras.
128
inseparável de um devir-mulher, um devir-criança, um devir-animal que constituem
seu conteúdo” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 104). Universo-Schumann,
universo-Villa-Lobos, povoados de blocos de infância, blocos-mulher, blocos-animal,
submetidos a um tratamento especial: “[...] o motivo do ritornelo pode ser a angústia,
o medo, a alegria, o amor, o trabalho, a marcha, o território... mas, quanto ao
ritornelo, ele é o conteúdo da música” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 106).
Assim, na perspectiva deleuziana, a ação do músico consiste em desterritorializar o
ritornelo, “[...] escrevê-lo em música [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 106),
tornando-o musical: “é desde sempre que a pintura se propôs tornar [o invisível]
visível, ao invés de reproduzir o visível, e a música, a tornar [o insonoro] sonoro, ao
invés de reproduzir o sonoro” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 174).
Nessa trajetória, adentramos o território da concepção de arte, que, na perspectiva
de Deleuze e Guattari (2010), é um processo criação, e não de uma representação,
imitação ou metáfora, afastando-se das concepções de Platão, Aristóteles,
Schopenhauer e Swanwick. Para esses filósofos, ao contrário, a arte ou sua
expressão é ato criativo que faz “[...] estourar as percepções vividas numa espécie
de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de azul,
que não têm mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos” (DELEUZE;
GUATTARI, 2010, p. 202).
4.3 SOBRE O ENTENDIMENTO DE ARTE EM DELEUZE E GUATTARI
Na visão deleuziana, compomos imagens, sonoridades, gestos, cenas,
expressando-nos de determinados modos, constituindo motivos e contrapontos que
dão forma aos corpos, conjugando um estilo. Assim, os pintores, os músicos ou os
atores não representam e não imitam elementos ipsis litteris, mas compõem visões,
sonoridades e cenas, em uma conjugação de si e dos signos que conformam uma
determinada matéria. O pintor Millet (1814-1875), por exemplo, ao ser criticado a
respeito de uma obra sua em que camponeses carregavam um ofertório como um
saco de batatas, “[...] respondia que o peso comum aos dois objetos era mais
profundo que sua distinção figurativa. Ele, pintor, se esforçava para pintar a força do
peso, e não o ofertório ou o saco de batatas” (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 63,
grifo dos autores).
129
A respeito das artes dramáticas, os dois filósofos comentam a composição de um
personagem em De Niro, ressaltando afirmações do ator sobre as cenas de um filme
nas quais anda como caranguejo: “[...] não se trata, diz ele, de imitar o caranguejo;
trata-se de compor com a imagem, com a velocidade da imagem, algo que tem a ver
com o caranguejo” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 70).
Já no que se refere à arte dos sons, temos a ideia de que ela esforça-se “[...] para
tornar sonoras forças que não são sonoras [...]”, conforme destacam Deleuze e
Guattari (2007, p. 66), que tomam como exemplo o ato do grito, fazendo uma
analogia entre a pintura O grito e a sonorização por ela evocada. Nesse sentido, os
filósofos afirmam que “[...] a música se encontra diante da mesma tarefa do pintor,
que não é a de tornar o grito harmonioso, mas de colocar o grito sonoro em relação
com as forças que o suscitam, [...] pois o grito é como a captura ou a detecção de
uma força invisível” (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 65-66).
Em relação a essa visão, os filósofos tecem comentários sobre dois tipos de grito
criados pelo compositor austríaco Alban Berg (1885-1935) em duas de suas óperas,
Wozzeck (1922) e Lulu (1929): “Berg soube fazer a música do grito no grito de
Maria, depois, no grito muito diferente de Lulu; mas, em ambas as músicas, foi
colocando a sonoridade do grito em relação com forças insonoras” (DELEUZE;
GUATTARI, 2007, p. 66).
Na ópera Wozzeck, vê-se a dinâmica de multiplicidades de afectos e perceptos
desencadeados pelos ritornelos da “cantiga de ninar, o ritornelo militar, o ritornelo de
beber, o ritornelo de caça [...], a voz de Wozzeck [sic] através da qual a terra devém
sonora, o grito de morte de Maria que corre pelo charco, o Si redobrado, quando a
terra urrou [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 163). É assim que o músico vive a
obra em sua dinâmica metamorfoseante, não representando, não figurando, mas
criando algo novo na sintonização com os signos, pois “[...] tanto em pintura quanto
em música, não se trata de reproduzir ou inventar formas, mas de captar as forças.
[...] É por isso que nenhuma arte é figurativa” (DELEUZE, 2007, p. 62).
Um determinado som, por essa via, é formado na conjugação de um plano de
composição estética e um plano técnico, que se interceptam e se definem em uma
ação comum: não há separação entre os planos, mas uma inter-relação, pois “[...]
130
nunca uma obra de arte é feita por técnica ou pela técnica [...]” (DELEUZE;
GUATTARI, 2010, p. 227). Assim, a escolha de determinado instrumento em uma
orquestração, a busca por uma determinada sonoridade no piano ou na voz
compõem matérias de expressão ou enunciados maquínicos, que operam diferentes
funções em um território sonoro:
[...] a importância decisiva que toma a orquestração em Berlioz; a subida dos timbres em Stravinsky e em Boulez; a proliferação dos afectos de percussão com os metais, as peles e as madeiras, e sua ligação com os instrumentos de sopro, para constituir blocos inseparáveis do material (Varèse); a redefinição do percepto em função do ruído, do som bruto e complexo (Cage); não apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura, mas a tendência a uma aparição não cromática do som num continuum infinito (música eletrônica ou eletroacústica) (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 231).
Na ótica deleuziana, uma palavra, um som, um timbre são, em si mesmos,
sensação, cujos planos de composição estética e de composição técnica operam em
mútua inspiração: ora a sensação se realiza no material, ora o material entra na
sensação: “os escritores, [...] não estão numa situação diferente da dos pintores, dos
músicos, dos arquitetos. O material dos escritores são as palavras, e a sintaxe, a
sintaxe criada que se ergue irresistivelmente em sua obra e entra na sensação [...]”
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 198).
As matérias de expressão, portanto, são agenciamentos maquínicos que expressam
afectos e perceptos, estabelecendo diferentes funções em processos de
desterritolização e reterritorialização, de modo que a sensação desejada e o material
formam um só plano. “[...] É sob esta condição que a matéria se torna expressiva: o
composto de sensações se realiza no material, ou material entra no composto, mas
sempre de modo a se situar sobre um plano de composição propriamente estético
[...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 231).
Desse modo, as qualidades expressivas entram em relação umas com as outras,
constituindo motivos e contrapontos, entendendo-se que a expressividade se dá na
conjugação heterogênea entre as matérias de expressão: “[...] é no motivo e no
contraponto que é dada a relação com a alegria e a tristeza, com o sol, com o
perigo, com a perfeição [...]. É no motivo e no contraponto que o sol, a alegria ou a
tristeza, o perigo, devêm sonoros, rítmicos ou melódicos” (DELEUZE; GUATTARI,
2012b, p. 133).
131
É, pois, nessa perspectiva, que a arte musical produz afectos e perceptos sonoros
que fazem fabulação, fabulam, transbordando as opiniões correntes. O músico,
assim, buscará mostrar, fazer soar os afectos que povoam cada universo sonoro,
fazendo blocos de sensações, territórios metamorfoseantes de bravura, de
delicadeza, de dança ou de passos andantes. A música, da mesma forma que as
demais artes, produz afectos e perceptos “[...] de pedra, de metal, de cordas e de
ventos, de linhas e de cores, sobre um plano de composição do universo”
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 80).
Nesse ponto, é pertinente retomarmos as perguntas que movem este processo
investigativo, pois, se consideramos que a arte é uma transcodificação das
percepções em perceptos e das afecções em afectos, temos aqui uma questão:
como um instrumentista aprendiz pode tornar sonoras as forças insonoras da
música, evidenciando os afetos e perceptos que a compõem? Como deslocar o
padrão-concertista do processo e, ao mesmo tempo, fazer soar a música, mostrar os
afectos e perceptos que a compõem ou, nos termos de Kastrup (2001, p. 25), “[...] é
possível ensinar ou fazer inventar?”. Sabemos que isso não ocorre por meio da
execução “correta” do ritmo em si mesmo nem por meio das notas musicais ipsis
litteris, nem mesmo pelos timbres, pois “[...] o que conserva, de direito, não é o
material, que constitui somente a condição de fato; [...] o que se conserva em si é o
percepto ou o afecto” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 197).
Porém, verificamos que as aulas de música instrumental nem sempre estiveram
conjugadas com o desenvolvimento da capacidade expressiva das crianças e
adolescentes, repetindo os velhos modos de ensinar, ideias que vão se tornando
ritornelos, e que não funcionam, conforme constatamos em França (2000), Sloboda
e Davidson (1996), Borém (2006), Ray (2006) e Gerlinger e Santos (2015). Assim,
passamos às reflexões sobre as concepções de aprendizagem em Deleuze (2003,
2006, acesso em 4 fev. 2016), Deleuze e Guattari (2012b, 2012c), Kastrup (2000,
2001, 2008) e Maturana (1997, 1998, 2001, 2014), correlacionando-as com o
conceito de fabulação.
132
4.4 RELAÇÕES ENTRE FABULAÇÃO E A APRENDIZAGEM EM DELEUZE E
GUATTARI, KASTRUP E MATURANA
A aprendizagem no contexto do pensamento deleuziano é entendida com processo
entre o aprendiz e aquilo que ele está a aprender, estabelecendo uma relação de
sensibilidade com códigos e signos que compõem as matérias, criando-se um
campo que Deleuze (2003, 2006) caracteriza como problemático, não no sentido
mais usual desse vocábulo, mas no sentido de que envolve uma conjugação de
características de corpos diferentes. Deleuze (2003, p. 21) explana que a
aprendizagem ocorre “[...] por intermédio de signos [...], e não pela assimilação de
conteúdos objetivos [...]”. Nessa ótica, ela ocorre na relação entre os sujeitos e as
matérias e Ideias em um processo de envolvimento e contágio com os signos que os
constituem, por exemplo, aprender a nadar: “[...] aprender a nadar é conjugar pontos
relevantes de nosso corpo com os pontos singulares da Ideia objetiva para formar
um campo problemático” (DELEUZE, 2006, p. 160).
Dessa maneira, aprender significa “[...] ser sensível aos signos, considerar o mundo
como coisa a ser decifrada [...]” (DELEUZE, 2003, p. 25), processo no qual o
aprendiz é tocado pelos signos em uma experiência que instiga o pensamento: “[...]
aprender a cozinhar é ser sensível aos odores, às cores, às texturas dos
ingredientes na comida; aprender a jogar futebol é ser sensível aos signos da bola,
do campo, da torcida, dos jogadores [...]” (KASTRUP, 2001, p. 20). Ou seja, “os
problemas e suas simbólicas estão em relação com os signos. São os signos que
„dão problema‟ e que se desenvolvem num campo simbólico” (DELEUZE, 2006, p.
160).
Nessa mesma linha de pensamento, encontramos a concepção de Maturana (1997)
a respeito da aprendizagem, entendida como um processo que envolve a
corporalidade e a linguagem, baseando-se no conceito de epigênese, ou seja, a
contínua transformação envolvendo as características biológicas e o ambiente
vivencial:
é por isso que tudo o que fazemos, e todas as nossas maneiras distintas de viver, aparecem incorporadas em nossas corporalidades e se mostram em nossas ações, e é por isso que precisamos mudar nossas corporalidades para mudar os domínios de ações que nos constituem como pessoas (MATURANA, 1997, p. 292).
133
Assim, verifica-se o entendimento de que o ato de aprender não é a modificação de
um estado de não saber em relação ao saber, mas “[...] vem a ser tão-somente o
intermediário [...], a passagem viva de um a outro [...]” (DELEUZE, 2006, p. 161), o
espaço subliminar das pequenas percepções. Ser aprendiz, então, significa
enveredar-se na conformação de si e do objeto/Ideia, constituindo e inventando “[...]
problemas práticos ou especulativos como tais. Aprender é o nome que convém aos
atos subjetivos operados em face da objetividade do problema (Ideia)” (DELEUZE,
2006, p. 160). Esse ponto de vista é partilhado por Maturana (1997, p. 292) ao frisar
que aprender “[...] não acarreta um processo dirigido de adaptação, ou a elaboração
de uma representação de um ambiente para computar um comportamento
adequado a ele”.
Nessa perspectiva, os contextos educativos são aqueles que propiciam um nível de
consciência no qual nossos atos se ajustam às nossas percepções, indicando
precisamente que “[...] „aprender‟ passa sempre pelo inconsciente, passa sempre no
inconsciente, estabelecendo, entre a natureza e o espírito, o liame de uma
cumplicidade profunda” (DELEUZE, 2006, p. 160).
Essa percepção traz implícita a ideia de que “o signo é aquilo que exerce sobre a
subjetividade uma ação direta, sem mediação da representação [...]” (KASTRUP,
2001, p. 20), entendendo-se por subjetividade um processo de “[...] invenção de si e
do mundo [...]” (KASTRUP, 2001, p. 20), não tendo a individualidade como um
centro. Ou seja, a aprendizagem pressupõe encontro de dessemelhanças,
constituindo “[...] um plano impessoal e múltiplo, denominado plano de produção da
subjetividade” (KASTRUP, 2001, p. 20).
Relativamente a esse entendimento, Deleuze (2003, p. 15) afirma que o ato de
aprender “[...] depende de um encontro que nos força a pensar e buscar o que é
verdadeiro. [...] Pois é precisamente o signo que é objeto de um encontro [...] que
garante a necessidade daquilo que é pensado”. A partir dessa visão, Kastrup (2001)
delineou a concepção de aprendizagem como ação inventiva, entendida nos termos
deleuzianos como “experiência de problematização”, que move o nosso
pensamento. Essa concepção de aprendizagem se caracteriza por dois aspectos: a
invenção como criação do novo, afastando-se das redundâncias de um fazer; a
invenção como experiência de problematização, e não de solução de problemas.
134
Nessa ótica, o processo educativo configura-se como ação criadora, distanciando-se
das concepções de aprendizagem como recognição ou síntese homogeneizadora e
convergente de habilidades e repostas.
Nessa concepção, “[...] a arte surge como modo de exposição do problema do
aprender [...]” (KASTRUP, 2001, p. 19), tal como se produz nos diferentes campos
artísticos, com o que podemos depreender que o processo de aprendizagem está
para a criação assim como um artista está para a inventividade de sua obra. É por
essa via que Deleuze e Guattari refutam a ideia de que as produções humanas e
suas aprendizagens sejam representações, mas criações nascidas da conjugação
de corpos dessemelhantes em uma condição problematizadora, que se dá na
experimentação imediata dos signos.
Esse processo de aprendizagem inventiva constitui um território, uma ambiência,
“[...] cujos limites não são topográficos, mas semióticos [...]” (KASTRUP, 2001, p.
22), demarcando as possibilidades e os limites de movimentação e uso de uma
matéria determinada. Disso resulta uma “[...] corporificação do conhecimento,
envolvendo órgãos dos sentidos e também músculos [...]” (KASTRUP, 2001, p. 22).
É por isso que “[...] aprender não é somente ter hábitos, mas habitar um território”
(KASTRUP, 2001, p. 22).
Aprender habitando um território implica, pois, a dobra do tempo em suas
modalidades cronológicas e criativas, para a lapidação da matéria, tornando-a
expressiva. Ocorre aí um processo que “[...] envolve o „perder tempo‟, que implica
errância e também assiduidade, resultando numa experiência direta e íntima com a
matéria” (KASTRUP, 2001, p. 22). Assim, Cronos e Aion estão nos processos
educativos da mesma maneira que estão na música.
Nessa abordagem, a aprendizagem é uma política de cognição, um agenciamento
em suas duas faces: agenciamento maquínico, no qual se encontram articulados
diversos fluxos – técnicos, linguísticos, políticos etc. –, e agenciamento coletivo,
estando para além do indivíduo e do social, remetendo às vias nas quais “[...]
circulam processos, forças, intensidades, afetos” (KASTRUP, 2001, p. 23).
No cerne dessa política pedagógica, encontramos, como menor partícula, o tempo-
espaço da aula, que, nessa perspectiva, não tem por objetivo o entendimento de um
135
conteúdo em sua totalidade, mas configura-se como território em movimento, tal
como a música. De acordo com Deleuze (acesso em 4 fev. 2016), uma aula é o
espaço-tempo em que cada aluno capta o que lhe toca, “[...] o que lhe convém [...]”,
indicando que uma aula ruim é aquela que não toca ninguém, “[...] não convém a
ninguém [...]”.
A esse respeito, o filósofo sinaliza para o fato de que nem tudo convém a todos,
havendo um despertamento daquilo que diz respeito a cada um, destacando que
não há uma lei, uma teoria que diga o que interessa a alguém, e conclui seu
pensamento afirmando que “[...] uma aula é emoção. É tanto emoção quanto
inteligência. Sem emoção, não há nada” (DELEUZE, acesso em 4 fev. 2016).
Complementando essa ideia, Maturana (2014, p. 138) mostra que transitamos no
cotidiano, nas relações, movimentando-nos a partir de uma dinâmica de emoções,
de modo que “[...] ao nos movermos de uma emoção para outra mudamos nosso
domínio de ações, e isto [sic] vemos como uma mudança de emoção” (MATURANA,
2014, p. 138). Para esse autor, portanto, “[...] as emoções são disposições corporais
dinâmicas que especificam os domínios de ações nos quais [...] nós, seres
humanos, em particular, operamos num instante” (MATURANA, 2014, p. 138),
definindo nossos fazeres.
Em sua concepção, o termo emoção indica que “todas as ações humanas
acontecem num espaço de ação especificado estruturalmente como emoção [...]”
(MATURANA, 2001, p. 46). A esse respeito, esse pensador indica que as emoções
marcam as interações, podendo ser elas recorrentes ou não.
Essa dinâmica de emoções presentifica-se nos processos educativos, no sentido de
que uma aula não será qualificada por fazer com que o(a)s aluno(a)s entendam e
ouçam tudo, nem mesmo que cumpram scripts. Na ótica deleuziana, uma boa aula
exige a capacidade de propiciar o despertamento para cada um “[...] captar o que lhe
convém pessoalmente [...]” (DELEUZE, acesso em 4 fev. 2016). Uma aula ou um
conjunto de aulas compõe uma heterogeneidade de pensamentos e afetos,
constituindo centros de interesse que, segundo o filósofo, formam “[...] uma espécie
de tecido esplêndido, uma espécie de textura” (DELEUZE, acesso em 4 fev. 2016).
136
Uma aula não transcorre, portanto, em um plano transcendente, ideal e homogêneo,
mas em um campo de forças, levando-nos ao encontro da visão de que todos os
nossos fazeres – sejam eles práticos, sejam eles teóricos – situam-se e movem-se
em um plano constituído por diferentes linhas: cristalização, homogeneização,
repressão, padronização, ou por linhas de fuga, de criação ou arrebatamento, pois
somos segmentarizados por todos os lados e em todas as direções. [...] Habitar, circular, trabalhar, brincar: o vivido é segmentarizado espacial e socialmente. A casa é segmentarizada conforme a destinação de seus cômodos; as ruas, conforme a ordem da cidade; a fábrica, conforme a natureza dos trabalhos e das operações. Somos segmentarizados binariamente, a partir de grandes oposições duais: as classes sociais, mas também os homens e as mulheres, os adultos e as crianças etc. [...] Somos segmentarizados circularmente. [...] Somos segmentarizados linearmente (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 92, grifos dos autores).
Assim, no ângulo de visão deleuziano, todos os nossos trânsitos, produções e
relações são perpassados por mecanismos de territorialização – fechamento,
alinhamento, cristalização – e movimentos de desterritorialização – abertura,
recriação –, sendo, ou não, novamente territorializados, ou seja, ocorrendo um
movimento de reterritorialização. Tais movimentos são perpassados por linhas de
segmentaridade, “[...] linha de segmentaridade dura ou molar, linha de segmentação
maleável e molecular, linha de fuga” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 85).
Como tempo-espaço de produção do conhecimento, a aula é, portanto, perpassada
por essas linhas, incidindo nas semióticas que compõem os territórios nos quais
transitam professores e alunos, atravessando as relações de ensino-aprendizagem,
mestre-aprendiz, com seus saberes, interesses e desejos. Para Deleuze e Guattari
(2012a, p. 101), tais processos de segmentarização e atravessamentos incidem nos
desejos que compõem os agenciamentos e microagenciamentos, moldando “[...] de
antemão as posturas, as atitudes, as percepções, as antecipações [...] etc.”,
descodificando ou sobrecodificando a expressão.
É nesse exato sentido que esses dois filósofos falam de uma máquina abstrata que
produz rostos, pois, “[...] os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata de
rostidade” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 37, grifos dos autores). Tal máquina
abstrata produz os rostos de um chefe, de um juiz, até mesmo de um professor, ou
professora, aluno ou aluna, ou de um executivo, neutralizando as expressões que
escapam aos padrões dominantes ou estabelecidos. Na corporificação desses
137
rostos, fala-se uma língua, “[...] não uma língua geral, mas uma língua cujos traços
significantes são indexados nos traços de rostidade específicos” (DELEUZE;
GUATTARI, 2012a, p. 36).
Essa “língua geral”, nos termos de Deleuze e Guattari (1995, p. 12), aponta para o
caráter performativo da linguagem, possibilitando-nos verificar que “[...] a unidade
elementar da linguagem [...] é a palavra de ordem [...]”. Nessa ótica, todo enunciado
carreia um discurso indireto, uma sentença, um comando, depreendendo-se disso
que os enunciados – qualquer enunciado – comportam “[...] pressupostos implícitos
[...] que percorrem uma língua em um dado momento [...]” (DELEUZE; GUATTARI,
1995, p. 17).
Essa noção esculpe o que Deleuze e Guattari (1995, p. 17) consideram como a
função da linguagem, que não é de comunicação nem de informação, mas de “[...]
transmissão de palavras de ordem [...]”. Isso pode ser observado no enunciado “[...]
você não é mais uma criança [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 20), o qual
expressa coordenadas semióticas e axiológicas, compondo os pressupostos
implícitos presentes no contexto de sua emissão.
Os dois filósofos expandem essa ideia para todas as práticas discursivas,
abrangendo atos e procedimentos cotidianos em diferentes ambiências, por
exemplo, a máquina do ensino. Eles descrevem as ações automatizadas no âmbito
escolar, nos quais “[...] a professora não se questiona quando interroga um aluno,
assim como não se questiona quando ensina uma regra de cálculo. Ela „ensigna‟, dá
ordens, comanda [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 11-12). Tem-se, portanto, a
reprodução ad infinitum de um modelo de ensinar no qual as palavras de ordem
operam por redundância.
Esse aspecto da linguagem é igualmente tratado por Maturana (1997, p. 177, grifos
do autor), que percebe vínculos específicos entre a linguagem e os sistemas de
convivência, entendidos como “[...] sistemas sociais [...], sistemas de trabalho [...] [e]
sistemas hierárquicos ou de poder [...]”. O autor ainda destaca que cada um desses
contextos constitui uma linguagem particular ou, nos termos de Maturana (1997, p.
177) “[...] uma rede particular de conversações [...]”, resultando em um “[...] modo
138
particular de entrelaçamento do linguajar e do emocionar [...]” (MATURANA, 1997, p.
177), moldando as dinâmicas relacionais.
Vemos, dessa maneira, que os contextos, inclusive os educacionais, são
constituídos por uma corporeidade e uma linguagem que operam igualmente em
função de linhas que produzem rostificações, podendo implicar segmentarizações
binárias, circulares e lineares, erigindo muros: “[...] o rosto constrói o muro [...],
sistema muro branco-buraco negro” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 36). Em
relação às segmentarizações binárias, temos “[...] rosto de professora e de aluno, de
pai e de filho, de operário e de patrão, de policial e de cidadão, de acusado e de juiz.
[...] A correlação binária [...] do tipo „sim-não‟ [...]”, afirmam Deleuze e Guattari
(2012a, p. 49), assinalando que tais processos estendem-se inevitavelmente ao
corpo, depreendendo-se que “[...] a cabeça e seus elementos não serão rostificados
sem que o corpo inteiro não o possa ser, não seja levado a sê-lo, em um processo
inevitável” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 39).
Esse ponto de vista acerca dessas modalidades de interação foi abordado por
Maturana (1998), ao tratar das interações entre os seres. De acordo com esse autor,
somos sistemas estruturalmente fechados, porém, em congruência com o meio,
constituímo-nos “máquinas moleculares” e, por isso, somos autopoiéticos, sistemas
autopoiéticos moleculares. Ou seja, ele afirma que “[...] somos como somos em
congruência com nosso meio e que nosso meio é como é em congruência conosco,
e, quando essa congruência se perde, não somos mais” (MATURANA, 1998, p. 63,
grifos do autor). Cessando as interações recorrentes, cessam as escutas e as
reformulações da experiência, os caminhos explicativos entre-parênteses.
No ângulo de visão aqui explicitado, os processos de educação não existem de per
se, mas se desenrolam em um campo que, para além de ser um espaço
devidamente planejado, é formado por tecidos que operam nos fluxos, ora
engendrando deslizamentos, ora, retenções, asperezas.
Essa ideia é traduzida por Deleuze e Guattari (2012c, p. 194) como espaços lisos e
espaços estriados. O espaço-tempo liso é “[...] aberto onde o corpo se move [...]”,
ocupando-se das intensidades, das forças sonoras, tácteis, “[...] os ventos e os
ruídos [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 198), enquanto que o espaço-tempo
139
estriado é demarcado por latitudes e longitudes, tendo “[...] todas as direções
subordinadas a pontos [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 212), ocupando-se
das “[...] qualidades visuais mensuráveis que derivam dele [...]” (DELEUZE;
GUATTARI, 2012c, p. 198).
Nesse sentido, o espaço-tempo liso compõe territórios de intensidades, sendo “[...]
um espaço de afetos, mais que de propriedades. [...] É um espaço mais intensivo do
que extensivo, de distâncias, e não de medidas” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p.
198). No tempo-espaço estriado “[...] conta-se a fim de ocupar [...]” (DELEUZE;
GUATTARI, 2012c, p. 196), supondo multiplicidades métricas.
É importante lembrar, ainda, que o pensamento deleuziano é marcado pela ausência
de antinomias, considerando sempre a coexistência, alternância e superposição dos
elementos; o espaço liso e o estriado não se opõem – não se trata de fazer uma
escolha entre uma e outra modalidades de espaço-tempo –, mas ocorrem no devir
do movimento e das relações. Desse modo, tais modalidades de espaço operam
também por funções, compondo territórios ora dimensionais, ora direcionais,
sinalizando para aquilo que de fato os dois filósofos consideram interessante: “[...] as
passagens e as combinações, nas operações de estriagem e alisamento [...]”
(DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 228).
Assim sendo, o espaço-tempo da aprendizagem é atravessado por linhas e espaços
que podem impulsionar ou travar os fluxos, mover ou cortar as interações em
velocidades e lentidões, pois as linhas moleculares e as linhas molares não se
definem pela pequenez ou grandeza “[...] de seus elementos, mas pela natureza de
sua „massa‟– o fluxo de quanta [...]”, como salientam Deleuze e Guattari (2012a, p.
105). Esses filósofos definem fluxo como crença ou desejo, aquilo que impulsiona,
entendendo-se que “[...] as crenças e os desejos são o fundo de toda sociedade, [...]
os dois aspectos de todo agenciamento” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 107).
Tais desejos podem ser de dominação ou de criação, repressão ou expressão.
A esse respeito, Deleuze e Guattari (2012a) assinalam que o desejo em si mesmo
não é uma pulsão indiferenciada, mas uma pulsão que corre nas linhas de
segmentaridade, exigindo um engineering para que algo aconteça. Indo além nesse
entendimento, Kastrup (2001, p. 24) trata do esforço, da exigência do trabalho,
140
salientando que embora ocorra um despertamento inicial propiciado pelo signo, a
criação de algo envolve “[...] um esforço a mais, que encontra sua fonte num corpo
inventivo, que não se furta à exigência do trabalho [...]”. Esse trabalho não consiste
em um automatismo, pois a força de um signo reside em sua decifração,
encontrando sua potência justamente em sua interpretação inventiva, na qual se faz
novo, novamente. Assim, “[...] esse modo de relação com o signo é também um
modo de relação consigo mesmo. O aprendiz artista não se conforma com seus
limites atuais, mas toma-se a si mesmo como objeto de uma invenção complexa e
difícil” (KASTRUP, 2001, p. 24).
Nesses termos, a aprendizagem também traz implícita a ideia de inventividade como
exercício de busca, de disciplina, “[...] de um trabalho, de uma repetição, de
exercícios e práticas que resultam na formação de hábitos e competências
específicas [...]” (KASTRUP, 2001, p. 24). É criativa, e a criação não é
espontaneísmo. Essa ideia nos remete a outra visão sobre a relação ensino-
aprendizagem, mestre-aprendiz, indicando o necessário mecanismo de contágio e
propagação, e não de identificação e transmissão. Assim, “[...] o plano de sintonia
mestre-aprendiz é um campo de criação [...]” (KASTRUP, 2001, p. 25), pois
experiência não se transmite, mas se vivencia: “[...] nada aprendemos com aquele
que nos diz: „faça como eu‟. Nossos únicos mestres são aqueles que nos dizem „faça
comigo‟ e que, em vez de nos propor gestos a serem reproduzidos, sabem emitir
signos a serem desenvolvidos no heterogêneo” (DELEUZE, 2006, p. 31).
O professor é aquele que conduz o processo, que tem a função “[...] de fazer
acontecer o contato, de possibilitar a intimidade, de acompanhar, e mesmo [...] atrair
[...], não para junto de si, mas para a matéria, acompanhando a sua fluidez”
(KASTRUP, 2001, p. 26). Assim, os agenciamentos serão sempre agenciamentos de
professor(a)-aluno(a), formando uma relação “[...] com o saber, que não é de
acumular e consumir soluções, mas de experimentar e compartilhar” (KASTRUP,
2001, p. 26) diferentes processos de elaboração do saber, entre microfluxos e forças
criativas.
Nessa circularidade de forças e intensidades, de técnicas e políticas, o(a)
professor(a)-mestre tem a função de catalização, de arregimentar processos,
141
interesses, capacidades. Assim sendo, a aprendizagem inventiva não é um método,
mas “[...] uma política pedagógica a ser praticada [...]” (KASTRUP, 2001, p. 26).
No caso da música, sua aprendizagem inventiva implica necessariamente a vivência
e a corporificação de seus códigos e signos, ultrapassando o conhecimento retórico
das notas musicais e ritmos. Esse processo de aprendizagem é, ao mesmo tempo,
múltiplo e singular, uma vez que as produções humanas não são universais, mas
ambientais e subjetivantes, pois “[...] cada sujeito exprime o mundo de um certo
ponto de vista [...]” (DELEUZE, 2003, p. 41).
A esse respeito, Maturana (2001, p. 22) afirma que os processos de cognição em
geral ocorrem a partir de referenciais internos e que, portanto, os objetos externos
não são totalmente independentes de nós, sujeitos. Como consequência, tal
perspectiva indica que “[...] toda experiência cognitiva inclui aquele que conhece de
um modo pessoal [...]”. Desse modo, as diferentes experiências e fenômenos
presentes no cotidiano são vivências singulares, visto que “[...] todos os domínios
cognitivos diferentes em que nós, seres humanos, vivemos, se entrecruzam em
nossa corporalidade como o domínio operacional através [sic] do qual tudo aparece
[...]” (MATURANA, 1997, p. 296).
Vemos, portanto, no conjunto das reflexões apresentadas, que a expressividade não
é algo transcendente, à parte das relações em sua dinâmica de emoções, mas é
fruto da elaboração complexa de agenciamentos de diversas naturezas, sendo
forjada no seio mesmo do tecido liso-estriado que constitui os processos educativos.
Por essa via, a aprendizagem inventiva no âmbito da música é fabulação –
sonorofabulação –, pois faz mover o pensamento, os afetos e os perceptos,
excedendo ao senso comum, fazendo estourar o átomo. De acordo com Deleuze e
Guattari (2010), todo conceito é uma cifra, comportando em si uma multiplicidade de
sentidos, constituindo-se, portanto, em um agregado de outros conceitos, ideias e
sensações. No caso do conceito de fabulação, como possibilidade de ser um
conceito guia no percurso da aprendizagem musical, vemos a ele agregada a
concepção de expressão deleuziana, expressão de afectos e perceptos e suas
diferentes funções, constituindo um território que é tanto musical quanto educativo,
desterritorializando-se e tornando a territorializar-se em uma configuração totalmente
nova. Devir-zero...
142
O conceito de fabulação sonora ou sonorofabulação contém implícita a ideia de
deslizamento, propiciando a abertura de linhas e espaços de criação, linhas
moleculares, que desterritorializam as formas pedagógicas cristalizadas. Nesse
sentido, uma aula de piano é, primordialmente, um encontro de seres que desejam
confabular a respeito dos afectos e perceptos das obras, esperando que o(a)s
aluno(a)s se expressem, em uma dinâmica de emoções, na sequência de interações
recorrentes. Micropolíticas da conversa, do linguajar e do emocionar...
Sonorofabulação é agenciamento coletivo de enunciação.
Desse modo, no próximo capítulo, deslizamos ao plano da experiência, ao encontro
dos modos de enunciação, a fim de habitar, transitar, conhecer e cartografar os
fluxos, as lentidões, as velocidades, as linhas molares, as molecularizações, as
estriagens e os alisamentos dos processos de aprendizagem musical, tendo em
vista a capacidade expressiva de crianças e adolescentes aluno(a)s de piano do
Curso de Musicalização Infantil da Faculdade de Música do Espírito Santo, nossos
companheiros de viagem.
143
5 DIÁLOGOS E VIVÊNCIAS COMO POSSIBILIDADES NO FAZER
MUSICAL ENTRE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Como podemos afetar o corpo humano por meio da música? Ou, de acordo com
Deleuze e Guattari (2010, p. 197), como “[...] arrancar o percepto das percepções do
objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções,
como passagem de um estado a outro”? No embalo desses questionamentos, neste
capítulo, os objetivos são descrever e analisar o processo de modulação da
expressão musical de aluno(a)s da Faculdade de Música do Espírito Santo em sua
articulação com as variações nas formas educativas das aulas de piano, captando
acontecimentos relacionados a processos inventivos desencadeados em aulas
individuais e em oficinas.
O estudo cartográfico aqui relatado transcorreu no período de fevereiro a dezembro
de 2016, abrangendo aulas individuais e coletivas de piano, com um grupo de 11
aluno(a)s de diferentes níveis (IV, V e VI) do Curso de Musicalização Infantil. O
convite à participação nas atividades de intervenção foi feito ao(à)s aluno(a)s em
aulas individuais, sendo direcionado àquele(a)s que apresentavam maior
assiduidade.
Intervimos no processo, buscando derivar do formato de aula padrão, mantendo o
repertório programático, porém, incluindo músicas populares escolhidas pelo(a)s
aluno(a)s. No início da intervenção, estávamos nos dedicando à leitura das
partituras. Nessa fase, eu mesma, aprendiz-cartógrafa, estava tentando entender
como o processo iria se configurar. No entanto, em se tratando da condução de uma
pesquisa cartográfica em uma perspectiva deleuziana, é fundamental
compreendermos que um de seus princípios é a liberdade autogestionada dos que
nela estão envolvidos, no caso deste processo investigativo, eu, professora-
aprendiz-cartógra, e o(a)s aluno(a)s. Assim sendo, o posicionamento do aprendiz-
cartógrafo nessa modalidade investigativa é semelhante à atitude de um guia de
cegos, “[...] que não determina para onde o cego vai, mas segue também às cegas,
tateante, acompanhando um processo que ele também não conhece de antemão”
(PASSOS; EIRADO, 2014, p. 123). Essa atitude não sinaliza para uma postura
144
negligente, mas indica que a cartografia deleuziana “[...] não toma o eu como objeto,
mas, sim, os processos de emergência do si” (PASSOS; EIRADO, 2014, p. 123).
Ao longo do processo, promovemos modificações no caráter das aulas,
desenvolvendo oficinas temáticas paralelamente às aulas individuais, com o objetivo
de viabilizar maior tempo-espaço para a experimentação de sonoridades e a
vivência de outras formas educativas. Os temas das oficinas foram escolhidos a
partir de necessidades constatadas nas aulas e durante a realização das oficinas.
Dessa maneira, as observações feitas em um determinado encontro apontavam
para a temática do encontro seguinte, sempre em discussão com o grupo.
Observei que, na fase inicial, o(a)s aluno(a)s estavam “travado(a)s”, a partir do que
propus a realização de uma oficina de textura. Percebi, no entanto, que ele(a)s não
estavam realizando a diferenciação nos sons que os materiais evocavam. Assim,
promovemos uma oficina inspirada no piano preparado de John Cage, que, inseriu
materiais de diversas naturezas no instrumento para dele obter novos sons.
Inicialmente, mostrei ao(à)s aluno(a)s vídeos com o resultado obtido com esse
trabalho, perguntando, em seguida, se ele(a)s gostariam de experimentá-lo. Assim,
usamos sacos plásticos, garfos, lixas, parafusos para intervir no piano.
Posteriormente, ele(a)s demonstraram o desejo de conhecer os estilos musicais e o
funcionamento do instrumento. Promovemos, ainda, uma oficina do corpo.
Em geral, o tempo de duração das oficinas oscilou entre 1h e 1h30, sendo que a
oficina de texturas foi repetida, para que todos pudessem participar – a dificuldade
inicial na participação ocorreu em função das atividades extra-Fames de vários
aluno(a)s, o que se normalizou nas oficinas subsequentes.
Para o processo de coleta de dados, adquiri um smartphone (Samsung J7) com
câmera e áudio de boa qualidade. Algumas vezes aconteceu de estarmos
conversando e de eu já estar filmando, pois havia tomado a decisão de registrar a
aula com a câmera. Mas a câmera não ficou ligada o tempo todo. Quando ocorriam
cenas e criações, por exemplo, um toque diferente ao piano, denotando a
expressividade musical objeto da observação nesta pesquisa, o(a)s aluno(a)s eram
solicitados a repeti-las, para que, então, fossem filmadas.
145
As modificações na dinâmica das atividades produziram diferenças significativas na
expressão do(a)s aluno(a)s como um todo – musical, verbal e corporal. Ele(a)s
começaram a querer compreender o que eu estava buscando com aquele processo.
Quando perceberam os critérios a partir dos quais eu selecionava as cenas,
sentiram-se incentivados a criar, processo que foi se intensificando, impulsionados,
talvez, pelo fato de que fazem parte de uma geração dos que querem ser vistos.
Isso foi potencializando sua expressividade, pois se sentiam seguro(a)s para se
soltar, uma vez que notaram que o que faziam despertava minha atenção.
Assim, percebemos a configuração de territórios em um continuum de variações,
composto pela movimentação das intensidades. O processo vivenciado abriu-se a
diferentes planos de análise, sinalizando para reflexões sobre a relação entre as
formas educativas e o desenvolvimento da capacidade expressiva. Assim, ao longo
deste capítulo, são destacadas as passagens de um território a outro, territórios
delineados a partir da modificação na expressividade, percebida tanto no ambiente –
as relações que se estabelecem na aula, o crescimento das expressões verbal e
corporal, o nível de liberdade – quanto na música. Tais territórios são assinados
pelas vivências e diálogos, estando eu neles inserida, fazendo parte do processo,
entendendo que uma pesquisa científica não se realiza sobre sujeitos e objetos, mas
“[...] sem distanciamento, [...] mergulhada na experiência coletiva em que tudo e
todos estão implicados” (PASSOS; BARROS, 2014, p. 19).
5.1 PRIMEIRO TERRITÓRIO (FEVEREIRO-MAIO/2016)
O período de fevereiro a maio de 2016 constituiu-se de linhas costumeiras, momento
indispensável ao acolhimento do(a)s aluno(a)s, sendo algun(ma)s novato(a)s,
agendamento de horários das aulas individuais, escolha das músicas e trabalho de
leitura das partituras, suas notas, ritmos, dedilhados e expressividades (o fazer
musical implica a realização dessas atividades, que acontecem de maneira
simultânea, e não por etapas).
146
Figura 22 - Karla, em período de leituras e estudos iniciais (março, 2016)
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)
Figuras 23 e 24 - Anderson e Júlia, em período de leituras e estudos iniciais (março, 2016)
Fonte: frame extraído de filmes produzidos durante o processo de intervenção (gravação minha)
Nesse espaço-tempo, percebemos sonoridades ainda imprecisas, em que o(a)s
aluno(a)s expressavam dúvidas sobre as músicas que estavam lendo: que música
era aquela? Era aquilo mesmo que estavam lendo?
Acho que esse é o momento mais difícil... porque, tipo assim... depois que você que você já está tocando... é uma coisa. Agora, quando você tá lendo... você fica agarrado numa [sic] parte, agarrado em [sic] outra... É o momento mais difícil da música. (FRANCO)
É o período que a gente mais se esforça porque... até a gente ler as notas... com o tempo certo... [...] se tiver com as mãos juntas... se for forte, forte; se for fraco, fraco... É a parte que mais exige da gente. (ARIANA)
Outras dúvidas surgiram nesse período: dois alunos do grupo manifestaram
desânimo em relação ao repertório. Franco queria desistir do curso, pois sua
vivência musical segue a linha popular, enquanto o programa de acesso ao Curso
de Formação Musical (CFM) é erudito; o aluno estava encontrando barreiras para se
expressar nessa modalidade musical. No que se refere a Júlia, observamos que ela
não deslanchava com as peças já iniciadas no ano anterior, mas sustentava o
desejo de seguir estudos no CFM. Após conversas com o(a)s aluno(a)s e com os
pais, encontramos algumas possibilidades de encaminhamento: Franco poderia
147
ingressar no CFM Erudito e, em um ano, passaria para o CFM Popular, aguardando
o atendimento ao critério de idade para ingresso neste curso. Quanto a Júlia,
faríamos uma recomposição de seu repertório, escolhendo outras músicas, mais ao
encontro do gosto e das necessidades da aluna.
No que diz respeito ao grupo como um todo, conversamos com o(a)s aluno(a)s
sobre a realização desta pesquisa, explicando sobre as atividades que estavam
sendo pensadas: filmagens em aula, oficinas de expressão musical, formas de
estudar em casa com eventual envio de vídeos por Whatsapp. Assim, demos
sequência à nossas criações.
5.2 FORMANDO-SE UM SEGUNDO TERRITÓRIO (MAIO-AGOSTO/2016)
Percebi que estava se delineando um novo território quando as crianças começaram
a interagir mais, começaram a se soltar, a se movimentar, a falar, a trazer sugestões
de músicas. No novo modo de aula, proposto no processo de intervenção desta
pesquisa, Aline, por exemplo, chegou a sentar-se de joelhos sobre o banco, e isso
não foi um problema. Destacamos tal fato, pois em uma aula padrão a exigência da
postura do(a) aluno(a) ao piano geralmente não se encontra integrada com a
consciência do uso do corpo, constando apenas como um comportamento modelo.
No caso de Aline, a possibilidade de movimentar-se é importante, uma vez que a
aluna convive com o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade11. Ou
seja, exigir que ela permaneça em uma única postura durante toda a aula constituiria
um aspecto limitante para sua expressão.
Nesse segundo território, percebi que o(a)s aluno(a)s faziam sugestões para a
própria música que estavam tocando, denotando contentamento, alegria de
participação etc. Nesse sentido, é importante registrar que Aline também criou uma
letra para um trecho da melodia que estava estudando.
A proposta de realização de filmagens gerou algumas alterações no enquadramento
da aula, fazendo emergir expressividades diferentes das anteriores, formando um
novo território. A câmera abriu um canal de comunicação entre nós,
11
A menção ao transtorno com o qual Aline convive não tem o intuito de classificá-la, mas de salientar como a aula de piano erudito no modelo padrão apresenta limites, inclusive na perspectiva da inclusão.
148
desestabilizando os códigos conhecidos no sistema aluno-professor. Assim, iniciou-
se um processo de busca sobre as nossas intencionalidades: o que eu buscava? O
que queriam o(a)s aluno(a)s? Algun(ma)s me perguntaram: “por que a senhora está
filmando a gente?” E, então, conversávamos a respeito da pesquisa sobre
expressão musical.
Elementos novos começaram a surgir: Aline criou formas para o estudo de Czerny nº
7, lembrando-se de que havia inventado algumas estratégias12 com finalidade
semelhante no ano anterior. Disse ela:
Eu bolei uma estratégia para estudar!
Fez anotações na partitura e quis registrar o momento com filmagem. Estudou o
trecho ao piano, seguindo suas próprias anotações.
Franco, por sua vez, já havia escolhido as músicas do repertório e – por incrível que
pareça, já que sua vivência na igreja está mais voltada para o repertório popular – a
que ele mais gostou foi um minueto de Bach. Quando começamos a ler a música,
Franco parou e chorou. Aproximei-me dele e perguntei:
O que houve? (PESQUISADORA)
Ao que ele respondeu:
Nada. Não é nada não... (FRANCO)
Insisti:
Você gostou muito dessa música? (PROFESSORA-APRENDIZ-CARTÓGRAFA)
Ele, então, afirmou:
Sim, é muito bonita (enxugando as lágrimas). (FRANCO)
Em outro momento, ainda se referindo ao minueto de Bach, ele disse:
Gótico! sei lá... Medieval! (FRANCO)
12
Em 2015, no estudo da música Ciranda cirandinha, Aline revelou que “bolou” estratégias para a execução correta de alguns trechos que não estavam bem executados e disse: “eu tipo bolei uma estratégia para não errar”.
149
E lançou-se intensivamente no estudo dessa obra...
Karla começou a se soltar e a sorrir durante a aula, explorando as diferenças de
toque para executar as músicas de seu repertório. Executou uma mesma música,
imprimindo-lhe um afecto alegre, depois “com sono” e, posteriormente, “pulando”.
Essa atividade propiciou o despertamento da aluna para o fato de que podemos criar
diferentes ambiências em uma música.
Lucas deslanchava com a Tarantela, trabalhando os afectos e perceptos dessa
dança. Fizemos uma busca no canal YouTube, assistindo a alguns vídeos de grupos
italianos tocando e dançando diferentes composições desse gênero da arte dos
sons. Em um dos vídeos, dançamos ao som da música, sentindo sua pulsação e sua
rítmica.
A aluna Selena, sua mãe, Demi, o professor José Carlos e eu ainda estávamos
empenhados na digitalização e ampliação das partituras em tamanho adequado
para a leitura, já que a aluna possui apenas 30 por cento da capacidade de visão.
Leonardo manifestou que não tinha interesse em seguir estudos no CFM, afirmando
que gosta de algumas músicas eruditas, mas prefere as composições populares.
Dentre as músicas que ele escolheu, demonstrou predileção pela canção Sounds of
silence, de Simon e Garfunkel. Nessa peça, trabalhamos os perceptos e os afectos
pensando no silêncio. Como seriam os sons do silêncio? A esse respeito, Leonardo
declarou:
eu gosto muito da música The sound of silence, por que me faz sentir tristeza e ao mesmo tempo alegria. (LEONARDO)
Ângelo e Anderson descobriam seu próprio potencial para música, manifestando
grande apreço por estudar as peças do repertório para o CFM. Júlia, Ariana, Lídia e
Sofia estavam concentradas em suas leituras e estudos. Nessa via, imersos em um
plano de intensidades, lançamo-nos no “[...] aprendizado dos afetos [...]” (BARROS;
KASTRUP, 2014, p. 74), sendo despertados para a elaboração de saberes em uma
prática coletiva. Os movimentos de aproximação entre mim e o(a)s aluno(a)s, nesse
território, impulsionaram a tessitura de uma rede afetiva que animou nossos atos de
fazer-saber. Esse direcionamento propiciou o envolvimento do(a)s aluno(a)s, sendo
esse um fator fundamental do processo.
150
No que diz respeito às quatro alunas supramencionadas, registramos tal fato,
justamente porque isso vai ao encontro da noção de território, que não segue uma
ordem ou sequência de desenvolvimento homogêneo, mas um movimento que se
configura na diferença dos afectos, perceptos e suas funções. Naquele momento,
essas quatro alunas estavam elaborando suas ideias de forma aparentemente
tímida, mas o fato é que estavam produzindo de acordo com seus próprios jeitos de
ser – Sofia, por exemplo, vai tímida quase até o final do processo, contrariando a
ideia de que o desenvolvimento se dá em etapas lineares e previsíveis.
Assim, observamos aqui a consonância com a visão de que o conhecimento é
produzido em um campo no qual se conjugam diferentes forças, inserindo-se aí “[...]
valores, interesses, expectativas, compromissos, desejos, crenças etc.” (PASSOS;
BARROS, 2014, p. 19). Esse entendimento levou-nos ao encontro dos jeitos de
viver, dos gostos, bem como as maneiras pelas quais o(a)s aluno(a)s lidam com a
música no dia a dia. Tais movimentos afetaram meu olhar e pensamento, como
professora-aprendiz-cartógrafa, sobre a própria organização das atividades das
oficinas, bem como das aulas individuais, ampliando a participação do(a)s aluno(a)s
no processo.
Durante esse período, como professora do grupo, eu sentia que algo me
incomodava, mas não sabia nomeá-lo. Aos poucos, fui percebendo que, no que se
referia à produção de sonoridades, o(a)s aluno(a)s não faziam uso do piano com
liberdade. Isso me levou a pensar em uma oficina que trabalhasse o despertamento
para a criação de diferentes matérias sonoras expressivas. Foi assim que organizei
a oficina de texturas, sobre a qual discorre o tópico a seguir.
5.3 CONSTITUINDO UM TERCEIRO TERRITÓRIO (05 E 12 DE SETEMBRO/2016)
5.3.1 Oficina de texturas
Buscando uma maior intimidade com o piano, desenvolvemos uma oficina de
texturas, utilizando diferentes materiais, por exemplo, tecidos diversos, corais secos
do mar, lixa e algodão.
151
Figura 25 - Aluno(a)s do segundo grupo e eu na oficina de texturas (setembro, 2016)
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)
Sentamos no chão, em círculo, e manuseamos os diferentes materiais. À medida
que os alunos sentiam as texturas, verbalizavam suas sensações e percepções.
a) Primeiro grupo (05 de setembro):
A respeito de um tecido e de uma pedra coral:
O tecido é liso e a pedra é mais áspera. (ÂNGELO)
Figura 26 - Leonardo (esquerda) observa Ângelo experienciar o algodão na oficina de texturas para o primeiro grupo (setembro, 2016)
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)
O(a)s demais assim se expressaram:
Esse aqui [tecido] é macio; essa aqui [pedra coral] é dura, né?! (LEONARDO)
152
Eu acho que esse (tecido) tem o som mais leve... Mais pesado [referindo-se à pedra coral]. (JÚLIA)
A respeito da textura do algodão:
Isso é áspero. (ÂNGELO)
Mais ou menos como a pedra, só que mais leve, macio... Desmancha... (LEONARDO)
Macio. (JÚLIA)
Figura 27 - Júlia, experienciando o algodão na oficina de texturas para o primeiro grupo (setembro, 2016)
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)
Podemos observar em algumas imagens o riso do(a)s alunos durante a
experienciação, talvez estivessem achando inusitado associar a textura dos objetos
utilizados à expressão musical. Nem todo(a)s puderam estar na oficina, em razão
do que ela foi repetida.
b) Segundo grupo (12 de setembro):
A respeito da pedra coral:
Áspero. (SOFIA; ANDERSON; KARLA)
Se cair na cabeça de alguém, machuca. (LUCAS)
Duro. (LÍDIA)
153
Figura 28 - Lídia (esquerda), sendo observada por Karla ao experienciar a textura de um coral marinho na oficina de texturas para o segundo grupo (setembro, 2016)
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)
Em um segundo momento da oficina, sugeri que poderíamos tocar essas texturas ao
piano, realizando sons conforme a sensação do material. Observei, então, que os
alunos não ficaram à vontade para fazer isso. Nesse momento “caiu uma ficha”: há
uma marcação de distância entre o piano, os alunos e professores, pois a aula
padrão carreia uma palavra de ordem em relação ao piano, como se ele fosse um
instrumento sagrado, que não se pode manusear ou explorar sem que o(a)
professor(a) dê o comando.
Havia tempo que eu vinha fazendo essa observação também nas aulas individuais,
mas ainda não de maneira evidente. Porém, com a realização da oficina, que é um
tipo de aula coletiva, essa inibição tornou-se mais nítida, permitindo-me ver que os
alunos não tinham uma relação de intimidade com a produção de sonoridades ao
piano. Eles agem como se não pudessem tocá-lo, explorá-lo conforme suas
curiosidades e ideias (ver arquivo Cena_1 no DVD). Esse despertamento fez-me
pensar sobre a relação da criança e do adolescente com o instrumento. Ainda,
pensei no meu posicionamento, como professora, nessa relação.
É interessante observar que, no caso de todos os demais instrumentos, por
exemplo, o saxofone, o violão, as flautas e até mesmo o contrabaixo acústico, o
instrumentista toma o instrumento em suas mãos, estabelecendo com ele uma
relação de proximidade e de quase proteção... Já no caso do piano, o próprio
tamanho e estrutura fechada do instrumento – além da forma educativa – causam
154
certo estranhamento, afastamento e inibição, como se o(a) aluno(a) estivesse diante
de um objeto intocável. Isso me levou a propor outra oficina, que propiciasse maior
envolvimento com o piano, de modo que o(a)s aluno(a)s pudessem “abraçá-lo”.
Essas percepções nos remetem à reflexão sobre uma das lógicas presentes na
forma educativa padronizada, que se refere à redundância dos sentidos sobre o que
é ser aluno(a) e ser professor(a), de maneira tal que a prática pedagógica segue em
palavras de ordem, por reprodução automática, sem questionamentos sobre seus
efeitos no tocante ao ato de aprender. Em termos de expressividade, para lembrar a
fala de Deleuze (acesso em 4 fev. 2016), é uma aula que “[...] não convém [...]”.
Por essa via, cabe ao(à) aluno(a) e ao(à) professor(a) reproduzir ad infinitum as
palavras de ordem propagadas pela máquina abstrata do ensino obrigatório, sem
necessariamente produzir o desenvolvimento da capacidade expressiva. Nesse
quadro, identificamos a distância entre o(a) aluno(a) e o instrumento e entre o(a)
aluno(a) e o(a) professor(a). Entre os pares, erguem-se muros, aquilo a que Deleuze
e Guattari (2012a, p. 36) chamariam de “sistema muro branco-buraco negro”, já que,
no sistema de rostificação, conforme argumentam esses pensadores, o rosto de
cada função (professor, aluno, policial etc.) se forma socialmente e isso pode erguer
muros na relação. No que diz respeito ao buraco negro, esses filósofos usam essa
expressão referindo-se às cavidades do corpo humano – olho, nariz, boca, ouvidos –
a partir das quais assimilamos informações que nos levam a acolher ou refutar as
pessoas, sendo que o buraco negro pode surgir, inclusive, a partir de uma
gestualidade, que pode fazer um dos pares subsumir, configurando relações de
dominação.
O desenvolvimento da oficina de texturas permitiu-me observar que o(a)s aluno(a)s
soltaram-se, mas ainda de forma tímida, formando um novo território, caracterizado
no tópico a seguir.
5.4 QUARTO TERRITÓRIO (13 A 25 DE SETEMBRO/2016)
À medida que se desenvolviam as aulas com filmagem, somando-se às oficinas de
texturas, comecei a observar uma modificação na relação do(a)s aluno(a)s com o
seu próprio fazer musical, bem como em mim mesma, como aprendiz-cartógrafa.
Ele(a)s passaram a expressar verbalmente as maneiras que criaram para produzir
155
determinadas sonoridades. Começaram a se soltar... Assim, durante as aulas,
surgiram conversas a respeito de como se pode produzir um determinado efeito nas
músicas, comentando sobre as maneiras pelas quais poderiam fabricar uma
determinada sonoridade ou efeito em seus diferentes trechos (ver arquivo Cena_2
no DVD).
Ariana conversou sobre duas composições de seu repertório, falando a respeito do
uso do peso do corpo na realização de passagens musicais, com dinâmica forte e
piano, e também sobre as cifras na peça A bela e a fera.
Figura 29 - Ariana, explanando sobre aspectos das peças A bela e a fera e Burlesque
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)
Em relação à peça erudita, ela afirmou:
essa música se chama Burlesque. Quem compôs ela [sic] foi Leopold Mozart [...]. É uma música estrangeira. [...] tem um toque na melodia... Como eu posso dizer? Que no começo você começa forte, depois diminui um pouquinho, aí fica forte e fraco, alternando. [...] Quando você toca forte – pelo menos eu – inclino meu corpo um pouco prá frente, colocando mais força na minha mão; quando eu toco fraco, eu toco levinho, quase não encosto no piano, meu corpo vai um pouco prá trás. (ARIANA)
Sobre a peça do universo popular, a aluna ressaltou que
essa música é A bela e a fera...[...] acho que... também é uma música estrangeira e... nela... parece que você está dançando... É toda por cifras. Tem umas partes, que elas são meio alegres. E outras que são... como vou dizer? Românticas, mais dançantes... (ARIANA)
156
Semelhantemente a Ariana, Franco fez explanações sobre sua maneira de sentir e
realizar os afectos do minueto de Bach que estava estudando, salientando a
necessidade de tocar fazendo as diferenciações de plano sonoro em um
determinado trecho. A respeito dessa composição, o aluno fez os seguintes
comentários:
se eu fizer a música do mesmo jeito, sem nenhuma alternância entre a força de tocar, igual eu faço esse crescendo, a música fica sem graça. Com o final crescendo, ela fica mais bonita, fica... diferente. [...] Nesse final, eu achei que ficou muito melhor, muito mais bonito com o crescendo. (FRANCO)
O mesmo foi feito em relação a outra peça musical, Bruxas e fantasmas, cujo estilo
solicita a constante modificação nos modos de tocar (o toque). Franco criou uma
maneira de realizar uma sonoridade em sintonia com os afectos e perceptos que
constituíam essa composição, identificando-a como uma música “de circo”.
Conversamos sobre as cenas de um circo, o que acontece nesse espaço, a partir do
que ele fez a seguinte explanação:
cada toque tem um sentido nessa música. É tipo... no começo, é tipo um circo, um palhaço. Ele chega assim, devagarinho... vai lá, futuca [sic] o outro, depois, sai de fininho, aí, volta de novo, sai de fininho. Aí, depois, vai crescendo, como se tivesse correndo, o outro atrás dele... Aí, depois, morre o som, como se tivesse parado. (FRANCO)
Lucas comentou sobre uma música erudita brasileira – A baianinha das cocadas –,
explicando que havia realizado uma sonoridade em seu fim, provocando um susto
no ouvinte:
No final, dá um susto! (LUCAS)
E tocou para demonstrar o que estava falando...
Para o estudo dessa composição, conversamos sobre as baianas que vendem
cocadas e acarajés, com tabuleiros sobre a cabeça. Andamos pela sala, captando
os ritmos desse andar com tabuleiro na cabeça, os passos e os movimentos.
O ritmo dessa música tem como inspiração os batuques. Enquanto ele a tocava, fui
fazendo um batuque na madeira do piano. Num dado momento, nós nos
empolgamos com o ritmo, eu acabei intensificando a batida e a estante da partitura
caiu. Nós dois caímos no riso... A partir disso, sempre que ia começar a música, ele
157
se lembrava desse episódio e começava a rir, falando sempre, em tom de
brincadeira:
é o ritmo, né? (LUCAS)
Lídia, por sua vez, ao tocar uma de suas músicas, observou uma diferença no efeito
de determinados sons e perguntou:
Por que esse som some... e esse... fica? (LÍDIA)
A partir da pergunta da aluna, abrimos o piano e experimentamos dedilhar as
cordas, observando a vibração nas cordas finas e nas cordas mais grossas.
Figura 30 - Lídia, explorando as diferenças nos efeitos sonoros das cordas do piano
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação da aluna Ariana)
Criou-se uma dúvida, pois quando ela tocava as teclas os sons ressoavam de uma
maneira, mas quando dedilhava diretamente as cordas outro efeito era produzido,
oposto ao que Lídia havia percebido ao tocar as teclas. Vimos que os sons nas
cordas finas, sob a ação dos martelos do piano, produzem sons quase estridentes,
“gritam”; as sonoridades nas cordas grossas, por sua vez, são menos estridentes,
fazendo com que o som desaparecesse mais rapidamente.
158
Outra aluna, Aline, incentivada pelas filmagens, fez um pequeno vídeo de um
momento de seus estudos em casa, enviando-o a mim via Whatsapp. Nesse vídeo,
ela fala sobre a tarantela que havia estudado no início de 2016, mencionando uma
pesquisa que havia feito sobre a origem da dança homônima.
Nesse mesmo período, também observamos fatos relevantes durante as aulas de
Ângelo. O aluno brincou com o fato de estar sendo filmado, lançando olhares de
soslaio para a câmera, imprimindo um tom de ludicidade à aula (ver arquivo Cena_3
no DVD). Em outro momento, ele tomou a iniciativa de estudar no horário da aula,
fazendo anotações próprias na partitura, verificando detalhes e fazendo perguntas.
Relativamente a outras músicas de seu repertório, vale ressaltar que Ângelo estava
tocando a peça Burlesque com muita fluência e desenvoltura, demonstrando
contentamento em virtude de seu desenvolvimento. Observando vídeos de práticas
musicais de Ângelo, podemos notar que é evidente a autorrealização que ele
encontra nessa atividade.
Figura 31 - Ângelo, estudando detalhes de um minueto de Bach
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)
Júlia, por sua vez, começava a soltar os movimentos para a realização da peça
Bolinhas de sabão. Em um de nossos encontros – durante a oficina de texturas –,
realizamos algumas dinâmicas corporais, procurando imitar a movimentação própria
de bolinhas de sabão, para sentir os ritmos e as intensidades. Essa atividade
instigou-a a tocar as frases musicais produzindo sonoridades mais leves e rápidas,
buscando traduzir o “pipocar” das bolinhas.
Sofia, Selena, Anderson e Karla continuavam seus estudos, ainda em surdina.
159
Figura 32 - Sofia, durante estudo
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)
Vemos as transformações na expressividade dos alunos – observadas até esse
momento da pesquisa – como dado importante para o fortalecimento da hipótese da
pesquisa aqui relatada, a de que o desenvolvimento da capacidade de expressão é
um fenômeno complexo, perpassado por linhas e movimentos que podem travar ou
impulsionar os processos enunciativos e criativos de alunos e professores.
5.5 QUINTO TERRITÓRIO (QUARTA SEMANA DE OUTUBRO/2016)
5.5.1 Oficina de modelagens no piano
Durante a oficina de texturas, notei que os alunos ainda estavam bastante tímidos
para produzir diferentes sonoridades ao piano, fazendo tentativas de tocá-las de
maneira rápida, e, muitas vezes, repetindo o mesmo som para texturas diferentes.
Essa postura de timidez pode ser observada no vídeo dos dois grupos que
participaram da oficina de texturas, estando mais evidente no momento em que eles
vão ao piano para criar sonoridades relativas às texturas, que havíamos
experienciado por meio do tato em encontro realizado anteriormente.
Esse fato reportou-me aos estudos deleuzianos sobre as relações entre as matérias
de expressão e os fatores inibidores e desencadeadores que agem sobre elas
(DELEUZE; GUATTARI, 2012b), deslocando o acento comportamental da inibição
para uma visão mais ampla dos fatores que nela operam. Por esse prisma, a
inibição é uma expressão do aluno que pode estar relacionada aos regimes de
signos praticados nas relações dominantes entre professor e aluno, encerrando “[...]
160
uma operação muito mais inconsciente e maquínica que faz passar todo o corpo
pela superfície esburacada, e onde o rosto não tem o papel de modelo ou de
imagem, mas o de sobrecodificação” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 40). Dessa
maneira, a rostificação – sistema muro branco-buraco-negro – poderá atuar na
articulação dos gestos, das falas, rosto e mãos: “[...] o rosto é um mapa [...]”
(DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 39).
É nesse sentido que é fundamental conhecer as diferenças sobre as concepções de
aprendizagem, sabendo que suas respectivas práticas poderão ou não fomentar os
contextos de desencadeamento da expressão. Nessa perspectiva, momento em que
a dificuldade relatada foi observada, busquei linhas de fuga que pudessem
desmontar ainda mais os formatos instituídos nas aulas de piano, visando a
incentivar os alunos a uma maior soltura e reconceituação de si mesmos, passando
ao entendimento de que são seres de criação, e não de repetição ou de petição de
obediência.
Desse modo, na preparação da oficina de modelagem de piano, lembrei-me dos
trabalhos pianísticos realizados por John Cage (1912-1992), que criou um sistema
de composição que participou de maneira contundente dos movimentos de levar o
“[...] público a aceitar a igualdade de todos os fenômenos sonoros [...]” (ISAACS;
MARTIN, 1985, p. 62). A preparação do piano feita por John Cage previa a utilização
de materiais inusitados, lançando mão de “[...] nozes, correntes, parafusos, pedaços
de borracha e de plástico [que] eram inseridos sob e certas cordas desse
instrumento. Isso afetava tanto o timbre quanto a afinação das notas, produzindo
sonoridades profusamente variadas” (BENNETT, 1986, p. 76).
Assim, com o objetivo de provocar uma situação de maior intimidade do(s) aluno(a)s
com o piano, preparei uma sessão de vídeo sobre os trabalhos do referido
compositor, sugerindo a eles, posteriormente, a preparação do nosso piano de sala
de aula. Relativamente à sessão do vídeo, o(a)s aluno(a)s reagiram com os
comentários a seguir.
Diferente, né? Com objetos simples... garfos... A gente não usa, né? O som, quando você ouve primeiro, é meio estranho. Depois você vai acostumando com o som. (FRANCO)
Quando eu não vi que era[m] aqueles negócios [parafusos, garfos, pedaços de plástico], eu pensei que nem era o piano. (LUCAS)
161
Bem diferente. (KARLA)
Meio estranho... É... porque não parece muito com piano! (ANDERSON)
Assim, na sequência, passamos à recriação do piano preparado com o piano que
usamos em aula, introduzindo materiais diferentes entre suas cordas. Parecia que
os alunos tinham gostado da ideia, titubeando entre a curiosidade e o
estranhamento. Sobre tal proposta, Lucas respondeu:
Seria bem legal! (LUCAS)
Passamos, então, à modelagem do piano. Coloquei os materiais à disposição
dele(a)s, que passaram a explorar as possibilidades de criação sonora.
Animadamente, ele(a)s foram experimentando os sons à medida que iam colocando
na harpa do piano materiais como garfos, parafusos, brocas e sacolas plásticas, lixa
e pinças.
Figura 33 - Alunos durante a oficina de modelagem do piano com diferentes materiais
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)
Foi possível notar a alegria nos rostos dos alunos, que se concentraram na
modelagem do som, conforme o material utilizado. Fizeram experimentos, tocando
teclas isoladamente e também tocando peças musicais que não são trabalhadas no
repertório da Fames. Sugeri que experimentassem tocar as composições do
repertório programático, observando a modificação dos timbres e afectos das
músicas. As expressões de surpresa e contentamento ficaram visíveis.
162
Anderson, ao experimentar tocar uma de suas músicas do repertório, estranhou os
sons. Ele tocava o primeiro acorde e parava, surpreso... (ver arquivo Cena_4 no
DVD)
Figura 34 - Rodeado pelos colegas, Anderson, ao piano, experiência as sonoridades inusitadas do piano modelado.
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)
As paisagens desse território remeteram-me ao pensamento de Deleuze e Guattari
(2010), para quem a experiência integra os processos de elaboração do
conhecimento em suas diversas instâncias, sendo condição mesma da criação dos
sistemas científicos, dos conceitos filosóficos, da mesma maneira que os afectos e
perceptos da arte. Tais elementos “[...] não preexistem inteiramente prontos [...]”
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 152) nos referidos sistemas, sendo forjados nos
processos de experiência e de experimentação do pensamento, tanto na ciência
quanto na filosofia e na arte, “[...] nenhuma criação existe sem experimentação [...]”
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 152).
No âmbito da educação musical – tanto para educadores da primeira geração
quanto para os que a ela se seguiram –, a experimentação é entendida como
aspecto fundamental na aprendizagem. Em relação aos educadores musicais do
século XX, suas metodologias enfatizam a experimentação como o elemento
propulsor do despertamento e desenvolvimento da musicalidade, sendo,
[...] sem dúvida, o que motivou sua classificação como „métodos ativos‟, isto é, todas elas descartam a aproximação da criança com a música como procedimento técnico ou teórico, preferindo que entre em contato com ela como experiência de vida. É pela vivência que a criança aproxima-se da
163
música, envolve-se com ela, passa a amá-la e permite que faça parte de sua vida (FONTERRADA, 2005, p. 163).
Com referência ao pensamento de Carl Orff, por exemplo, verificamos em
Fonterrada (2005, p. 151) sua aposta na premissa de que “[...] todo conhecimento
[...] provém da experiência, e o que ocorre com a música e a palavra também se dá
com o movimento e a expressão plástica”.
A vivência na oficina de piano preparado de John Cage levou o(a)s aluno(a)s a se
aproximar mais do piano, tocá-lo, imprimir-lhe ideias sonoras. Essa oficina moveu
nosso pensamento de maneira mais intensiva, proporcionando ainda maior soltura
na expressão musical. O(A)s aluno(a)s como um todo e eu, como aprendiz-
cartógrafa, passamos a nos manifestar com maior confiança, intensificando os
processos inventivos. Apesar do estranhamento inicial por parte dele(a)s em relação
às sonoridades do piano preparado mostradas no vídeo apresentado em aula,
podemos afirmar que essa atividade despertou-lhes o conhecimento de que a
matéria sonora é plástica, moldável, colocando-o(a)s em contato direto com
diferentes aspectos dos códigos e signos da arte dos sons.
A partir disso, é preciso sublinhar a necessidade de se criar diferentes contextos
educacionais para as aulas de performance pianística, especialmente aquelas
direcionadas a crianças e adolescentes, pois, de maneira geral, os cursos de
formação de pianistas – mesmo aqueles intitulados como cursos de pedagogia do
piano – focalizam aspectos técnicos como sendo os principais fundamentos da
aprendizagem da performance, ancorados no campo da psicologia comportamental,
como relatado em capítulo anterior. A teoria de Russel (1980) e os princípios de
Juslin (1997, 2003) vêm se firmando como referências exclusivas nesse campo,
imprimindo uma concepção de aprendizagem que entende os temas de motivação e
fluxo como aspectos desvinculados dos desejos, interesses e vivências dos
aprendizes. Ou seja, os estudos sobre a aprendizagem da performance na
perspectiva da psicologia comportamental tratam a motivação e os resultados da
aprendizagem como fenômenos neurofisiológicos, desconsiderando a visão de que
todo processo de aprendizagem implica – preponderantemente – relações
educacionais, relações de desejos, aprendizagens e vivências sociais e culturais.
164
5.6 SEXTO TERRITÓRIO (INÍCIO DE NOVEMBRO-2016)
Nesse sexto território, observamos os resultados da oficina do piano preparado,
sendo possível notar o desprendimento dos alunos para criar sonoridades: eles
começaram a “se arriscar”, experimentando algumas maneiras diferentes de tocar,
ou na proposição de atividades, bem como nos comentários e expressão corporal
acerca das músicas.
Selena trouxe para a aula uma música popular que “tirou de ouvido” na internet.
Tocou e cantou em espanhol. Em outra aula, manifestou interesse em saber como
seria o piano por dentro, como ele funciona, já que não havia tido a possibilidade de
participar de algumas oficinas, em virtude das limitações que enfrenta com sua baixa
visão, o que exige mais tempo de investimento nas tarefas escolares,
especificamente as relacionadas às atividades de leitura.
Como o horário de sua aula estava se encerrando, combinamos de abrir o
instrumento no encontro seguinte. E assim foi feito, possibilitando que ela visse o
mecanismo de funcionamento do piano, sentisse suas cordas, observando os
demais componentes. Selena sentou-se ao piano para tocar uma peça de Bach e
ficou encantada, observando os martelos se mexerem, produzindo sons sob seu
comando. Assim ela caracterizou a experiência que estava vivenciando (ver arquivo
Cena_5 no DVD):
Que maneiro! (LARA)
165
Figura 35 - Selena, apreciando a movimentação dos martelos ao tocar um minueto de Bach
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)
Karla, ao tocar a composição de uma marcha, assim comentou:
é igual ao do exército mesmo [fazendo gesto de marchar]. (KARLA)
Em seguida, tocou a música, fazendo diferenciações dos planos sonoros – mais
forte e menos forte – propostos na partitura, de maneira autônoma, sem que eu
desse a ordem ou falasse para ela se atentar a essas marcações. Nesse período, foi
possível notar que Karla estava se expressando com maior desenvoltura, estando
mais solta para tocar e falar sobre os processos vivenciados.
166
Figura 36 - Karla, explicando sobre o caráter marcial de uma música de seu repertório
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)
Se analisarmos a postura da aluna nos primeiros vídeos, vemos uma fisionomia
mais fechada, sem sorriso, o que chamaríamos de uma criança com certa apatia.
Nos últimos vídeos, ela aparece com sorrisos, falando mais, numa clara
desenvoltura, apresentando uma postura corporal mais participativa, se
compararmos com o período de início das aulas.
Por sua vez, Lídia estudava a música A caminho da escola. Em determinada aula,
rememoramos sua caminhada de ida à escola, andamos pela sala, sentindo o
fraseado da composição, as respirações e o tipo de pulsação. Esse tipo de
experimentação é muito importante para a compreensão do caráter da peça, pois a
ação proposta na música é sentida corporalmente, propiciando, por meio do andar, a
dinâmica e a geografia sonoras.
Aline começava a leitura de uma composição intitulada Bruxas e fantasmas, para ser
estudada no próximo ano (2017). Ela se contagiou com os afetos de mistério
envolvendo os personagens sugeridos no nome da música, criando uma letra para a
melodia, bem como fazendo sons alusivos a fantasmas e uma risada de bruxa ao
final.
167
Figura 37 - Aline, mostrando como faziam “seus” fantasmas na peça Bruxas e fantasmas
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)
Anderson, por sua vez, prosseguia com os estudos e tinha claro que não cumpriria
todo o repertório que havia escolhido para seu nível em 2016. Então, resolveu trazer
as composições do ano anterior, para recordar e tocar nas aulas coletivas, tendo
criado uma maneira diferente para tocar uma dessas composições: pela partitura, a
música deveria seguir no mesmo andamento, mas ele propôs a primeira parte lenta;
a segunda parte, em que a música tinha um ritmo mais animado, ele a tocou em um
andamento mais rápido. Se eu fosse rigorosa com a partitura, isso não seria
considerado correto, mas, avaliando tal proposta tendo em mente a dimensão da
aprendizagem de expressão musical, o contato com os códigos e signos, a proposta
do aluno ficou interessante. Assim, ainda que configure uma expressão em
desobediência à partitura, sinaliza para o seu envolvimento com a elaboração da
música.
As vivências desse território convidam-nos à reflexão sobre o binômio das
capacidades inatas e aprendidas. A aula padrão de piano, carreada até nós desde o
168
século XIX, traz implícitas algumas lógicas. Uma delas é a ideia de que a habilidade
expressiva possui vínculos com aspectos genéticos ou transcendentes. Sadie e
Tyrrell (2001a) tecem comentários concernentes a esse assunto, fazendo referência
a textos de críticos de arte, poetas e compositores românticos cujos escritos tratam
da expressão na arte dos sons imprimindo-lhe um caráter místico. Tais textos trazem
a clara ideia de que “[...] o material musical continha em si mesmo um misterioso
potencial expressivo [...] como uma arte expressiva de infinitos e [...] indefinidos
sentimentos transmitidos por estados de revelação mística” (SADIE; TYRRELL,
2001, p. 464, tradução minha).
Vemos que essa tendência de pensamento instalou-se na prática pedagógica,
operando por linhas segmentárias que alojam os alunos em grupos, identificando-os
como talentosos ou sem talento, ou sem possibilidades para estudar música. Essa
questão é tratada sob o prisma de uma cultura de conservatório, na qual “[...] o
individualismo, o raciocínio a partir do talento individual [...] faz parte dessa cultura”
(LOURO, 2009, p. 266). Vemos esses traçados de linhas associados a um
mecanismo pedagógico aprendido, tal como máquina, que, na perspectiva
deleuziana, “[...] assume um papel de resposta seletiva ou de escolha: dado um
rosto concreto, a máquina julga se ele passa ou não passa, se vai ou não vai [...]. A
correlação binária [...] é do tipo „sim-não‟” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 49).
A esse respeito, compartilhamos do pensamento de Deleuze e Guattari (2012b, p.
152), para os quais o tratamento antinômico e comportamental dos fatores inatos e
adquiridos consiste em um equívoco etológico. Os filósofos em questão visualizam
tais fatores como um rizoma, em coexistência. Porém, essa coexistência não se
define “[...] em termos comportamentais, [...] mas em termos de agenciamento [...]”.
Assim, tem-se um embaralhamento dos tradicionais limites entre o que é inato e
adquirido: seguindo o modo de criar na arte, tem-se do comportamento adquirido
“[...] o caráter de construção, mas do inato [...] a fluidez e a aparente naturalidade”
(KASTRUP, 2001, p. 25). Assim, as matérias de expressão estarão associadas aos
dispositivos que as inibem ou as desencadeiam, agindo sobre os “[...] mecanismos
inatos ou aprendidos, herdados ou adquiridos que as modulam [...]” (DELEUZE;
GUATTARI, 2012b, p. 152).
169
Se retomarmos as avalições de pesquisadores a respeito da forma de aula instituída
no campo da performance instrumental (GERLING; SANTOS, 2015; ALMEIDA,
2014; ESPIRIDIÃO, 2003; BORÉM, 2006), apresentadas no Capítulo 1, vamos notar
que a exaustão desse modelo se vincula exatamente à ausência dos elementos que
poderiam funcionar como dispositivos desencadeadores da expressão. A aula
padrão opera por estratégias de ensino que produzem muito mais a inibição e a
representação de modelos, e não a vivência e criação. No âmbito da educação
musical, verificamos que a aula, como espaço-tempo, resulta de uma cultura de
conservatório, que reproduz um “[...] processo „naturalizado‟ de imitação musical e
profissional do „faça como eu [professor(a)] faço e seja como eu sou‟” (LOURO,
2009, p. 266-267).
5.6.1 Oficina de peso do corpo
Essa oficina surgiu de nossas conversas sobre a produção de sonoridades e o
envolvimento do corpo na sua produção. É importante ficar claro que não se usa
força quando se toca piano, mas é preciso ter consciência de como o peso corporal
participa na produção das diferentes sonoridades. Eu percebia que o(a)s aluno(a)s
se limitavam ao emprego da mão, sem a participação do corpo como um todo. Essa
situação levou-me a lembrar do entendimento de Deleuze (2003, 2006) a respeito da
aprendizagem como um campo problemático no qual entram em conjugação a ideia
e o nosso corpo. Nesse sentido, a postura que o(a)s aluno(a)s estavam adotando
não era favorável a essa conjugação; ele(a)s estavam com a coluna meio “arriada”.
Diante dessa inibição, se o(a) professor(a) não estimula o envolvimento, como o
corpo será trazido para o processo?
Na seleção dos exercícios, lembrei-me dos que eram aplicados pela professora
Célia Ottoni em minhas aulas como aprendiz de piano: soltar os braços sobre o
instrumento, apoiar-se na parede, fazer pêndulo com o corpo... Lembrei-me de como
esses exercícios foram valiosos para mim, pois o som tinha que ser o que eu
intencionava produzir, visto que a professora Célia desejava que eu, a partir da
minha experiência, produzisse o som com meu próprio corpo. Assim, eu sabia que
poderia trabalhar meu corpo para produzir sonoridade. Cada corpo é um corpo e
cada um está apto a produzir determinada sonoridade, sendo necessário, portanto,
consciência do que se pode com ele fazer.
170
Assim, durante essa oficina, buscamos trabalhar o corpo, sentindo os pesos, os
gestos. Fizemos movimentos de soltar braços, cabeça e girar pulsos. Começamos
com um exercício de soltar os braços, em pêndulo. Em seguida, realizamos
movimentos com os pulsos e mãos, para soltá-los. Logo após essa sequência,
experimentamos o jogo do peso do corpo em uma superfície, utilizando a parede
como apoio. Fizemos gradações de peso e apoio com o corpo, como um pêndulo.
Após essas experimentações, passamos ao piano, para usar na execução das
músicas do repertório as sensações percebidas. Cada aluno(a) tocou o trecho de
uma música, fazendo diferenciações: tocando com mais peso e menos peso do
corpo. Depois, sentamo-nos em círculo para conversar sobre o que tinham
vivenciado.
Figura 38 - Em sentido horário, Selena, Ângelo, Júlia e eu nas atividades da oficina do peso do corpo
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Roberto, pai da aluna Júlia)
Selena disse que já havia vivenciado essa atividade em uma de nossas aulas e que
tentou mostrar a diferença entre as sonoridades, com mais e com menos peso:
Ah, eu não sei, porque eu já estava fazendo algumas coisas assim, parecidas! Aí eu não sei, tipo... Eu não sinto muita diferença, não... Eu procurei mostrar a diferença, mas eu não sei se deu muito certo, não. (SELENA)
171
Leonardo observou que havia começado a tocar suave o que intencionara ser de
sonoridade forte, com mais peso. Ao passar para a execução mais leve, quase não
conseguia extrair som, falhando muitas notas:
quando eu tocava o mais leve, parece que eu nem sentia o piano, tipo... Aí, quase que eu não tocava a nota. Mas a forte dava pra tocar, tipo... Mais feliz. (LEONARDO)
Ângelo, por sua vez, disse que sentiu o som mais leve:
Senti mais leve, suave... (ÂNGELO)
A oficina corporal tem sua importância no fato de despertar os alunos para seus
próprios corpos, pois o ato de tocar um instrumento não se resume aos movimentos
dos braços e dedos; envolve o corpo como um todo, incluindo-se aí a respiração,
bem como uma dinâmica de pesos, conforme as partes do corpo que acionamos.
Assim, obteremos diferentes efeitos sonoros se usarmos apenas o peso das mãos,
que é diferente de quando usamos o peso das mãos e dos braços, diferenciando-se
ainda mais de quando acrescentamos o peso do tronco.
Figura 39 - Em sentido anti-horário, Selena, eu, Júlia, Leonardo e Ângelo, na roda de conversa sobre as atividades da oficina do peso do corpo
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação do pai da aluna Júlia, Roberto)
172
Além desses aspectos mais físicos, podemos ponderar o uso de nosso corpo
afetivo, aliando as emoções às ações. Essa consciência corporal é indispensável à
aprendizagem pianística, pois é um dos aspectos fundamentais no que diz respeito
ao contato com os signos e códigos que regem o fazer musical. Aqui, é possível
fazermos uma conexão com a visão de Maturana (2014) a respeito das relações
entre o corpo, a linguagem e as emoções, sugerindo que todas as nossas criações
são o resultado de um conjunto de fatores, tendo-se em vista não somente o
pensamento autônomo, mas, igualmente, a corporalidade, que constitui e é
constituída no linguajar:
o amor, a mente, a consciência e a autoconsciência, a responsabilidade, o pensamento autônomo, são centrais para a nossa existência como seres humanos – mas não apenas eles, a nossa corporalidade também. A presente corporalidade humana é o resultado [...] [do] viver em conversações (MATURANA et. al., 2014, p. 209).
Desse modo, observamos que a capacidade de expressão pode comportar fatores
extramusicais, integrando o pensamento, os sentimentos e o corpo, atentando para
os aspectos relacionais que o processo engendra.
5.7 SÉTIMO TERRITÓRIO: COMPONDO NOVAS ROTAS (15 DE NOVEMBRO A
10 DE DEZEMBRO/2016)
5.7.1 Oficina de funcionamento do piano
O desenvolvimento das oficinas de textura, de piano preparado, de John Cage e de
peso corporal e os diversos diálogos com o grupo despertaram no(a)s aluno(a)s a
busca por outros conhecimentos, fazendo-nos notar a necessidade de oficinas com
novas temáticas: eles queriam saber mais sobre a vida dos compositores e sobre
diferentes estilos (o caráter) das músicas, pois, conforme observou Lídia, há
[...] uns que são mais rápidos, outros, mais lentos. (LÍDIA)
Assim, programamo-nos para essas oficinas com vídeos. Para essa atividade,
realizada em grupo, convidamos um afinador de pianos e estudante de piano do
curso de Bacharelado da Fames, Lucas Velasque. Os alunos tinham diversas
perguntas para fazer, já estando às voltas com o piano antes mesmo da chegada do
afinador à sala. Assim, Ariana gostaria de saber por que havia três cordas para cada
martelo na parte das cordas mais finas:
173
uma nota só tem três cordas. Por quê? (ARIANA)
Nesse momento, Lídia revelou que “essa ia ser a minha pergunta!”. O afinador,
então, problematizou:
Imagine uma banda. Se é uma só pessoa cantando, quase ninguém escuta, não é? Se botar 200 pessoas cantando... Nossa! Claro que todo mundo vai escutar! As cordas estão aí para fazer mais volume. (LUCAS VELASQUE)
Na sequência, o afinador chamou a atenção dos alunos para o fato de as três cordas
serem afinadas exatamente no mesmo tom:
elas são afinadas na mesma nota exata, apesar de serem três cordas. (LUCAS VELASQUE)
Em seguida, o aluno Anderson perguntou sobre os pedais do piano, qual sua
utilidade, ao que o afinador passou a demonstrar suas funções, mostrando a inter-
relação entre os pedais e os martelos, tocando ao piano para mostrar as diferenças:
vocês estão vendo que muda o som? (LUCAS VELASQUE)
O(A)s aluno(a)s, então, perguntaram o motivo, ao que o afinador respondeu-lhes
com a seguinte indagação:
estão vendo que os martelos andam? (LUCAS VELASQUE)
E prosseguiu na explanação:
os martelos são feitos de feltro, um feltro bem duro, e, à medida que vai tocando na corda, vai se tornando mais rígido, [...] dando um som brilhante. [...] Esse pedal da esquerda [...] faz com que o martelo mude um pouquinho de posição, pra tirar daquela parte que está já mais rígida do feltro... e vai prá [sic] jogar o martelo prá [sic] bater nas cordas na parte mais macia [...]. Então, além dele [sic] andar pro [sic] lado, ele deixa de pegar uma corda, [...] ele só pega duas, por isso que ele anda pro [sic] lado. (LUCAS VELASQUE)
174
Figura 40 - Aluna Nina13
observa o afinador Lucas Velasque (ao piano) discorrer para o(a)s participantes desta pesquisa sobre os efeitos do uso do pedal durante a oficina de funcionamento do
piano
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)
Após as conversas em nossa sala de aula, Lucas Velasque convidou-nos para estar
na oficina de afinação e reparos de pianos da Fames, pela qual ele é responsável.
Então, fomos até essa sala para conhecer outros aspectos do instrumento. Ao
chegar à oficina, encontramos a harpa do piano exposta sobre uma mesa, sendo
possível ver todo o mecanismo de construção e funcionamento desse instrumento
musical.
13
Essa aluna não pode integrar o grupo de crianças e adolescentes que participaram da produção dos dados na pesquisa aqui relatada. No entanto, solicitou a permissão para estar em algumas atividades sempre que lhe fosse possível, sendo atendida. Como essa imagem foi inserida na tese, solicitei à sua mãe que também assinasse o termo de autorização de uso de imagem.
175
Figura 41 - Alunas visualizam a parte interna do piano na sala usada para conserto dos pianos da Fames, acompanhadas pelo afinador Lucas Velasque
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)
Nesse ambiente, o(a)s aluno(a)s observaram como as teclas são feitas, sua
articulação com os martelos e as cordas, verificando que as nuances sonoras são
produzidas a partir do manuseio desses materiais, desenvolvendo uma habilidade
fina de execução e escuta. Em seguida, experimentaram tocar o piano, observando
a movimentação dos martelos e as sonoridades de um piano em estado de reforma.
5.7.2 Oficina de estilos musicais e pianistas
Após a visita à oficina de afinação de pianos, retornamos à sala e assistimos a
alguns vídeos sobre estilos musicais, atendendo ao interesse de Lídia e de
algun(ma)s de seu(ua)s colegas. Vimos, então, um vídeo mostrando o minueto e sua
dança; uma sarabanda e sua dança. Passamos a outros estilos, por exemplo, as
valsas de Strauss. Em seguida, o(a)s aluno(a)s pediram para colocar um rap e um
funk, escolhendo os compositores e cantores de sua preferência.
176
Na sequência, sugeri concluirmos as atividades assistindo a vídeos de pianistas da
música erudita. A partir do YouTube, acessamos vídeos dos pianistas Vladimir
Horowitz (1903-1989), ucraniano, e Nelson Freire (1944-), brasileiro. O(A)s aluno(a)s
observaram os sons que os músicos conseguiam produzir no instrumento, bem
como as diferenças de sonoridade entre eles e suas maneiras de tocar. Franco
observou as diferenças nas nuances de sonoridade, bem como na postura corporal
adotada por Nelson Freire e Vladimir Horowitz, salientando o uso das mãos e as
expressões faciais.
Figura 42 - Da esquerda para a direita, Karla, Nina, Lídia, Ariana, Franco, Anderson e Lucas observam atentamente o pianista Vladimir Horowitz durante exibição de vídeo
Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)
Neste território, destacamos o crescimento da participação do(a)s aluno(a)s, que,
além de terem escolhido os temas dos encontros, passaram a fazer mais perguntas
e observações, especialmente no que diz respeito ao despertamento para a
singularidade que há nos modos de tocar piano dos diferentes concertistas. As
observações sobre tais diferenças proporcionaram-lhes um momento interessante
de introspecção, formando-se um silêncio que pode ser sentido: seus semblantes
mudaram, portando-se de maneira mais compenetrada, ao mesmo tempo em que
começaram a tecer alguns comentários a respeito das maneiras como os pianistas
se sentavam, a forma pela qual usavam as mãos e o corpo (ver arquivo Cena_6 no
177
DVD). Outro fato importante refere-se à atenção do(a)s aluno(a)s às modificações
nas expressões faciais dos pianistas, conforme os afectos que estavam
expressando na música.
Nessa experiência, vemos uma conexão com a ideia de espaço liso e espaço
estriado em Deleuze e Guattari (2012c), observando uma ênfase no espaço liso,
visto que se delineia pelas sequências intensivas, e não extensivas, propiciando a
emergência dos processos de subjetivação. Essa percepção vai ao encontro do
pensamento deleuziano, cujo teor assinala que a constituição das singularidades
está diretamente ligada às formações intensivas, pois
[...] o processo essencial das quantidades intensivas é a individuação. A intensidade é individuante; as quantidades intensivas são fatores individuantes. Os indivíduos são sistemas sinal-signo. Toda individualidade é intensiva: logo cascateante, [...] compreendendo e afirmando em si a diferença nas intensidades que a constituem (DELEUZE, 2006, p. 235).
Com base nessa visão, torna-se claro o entendimento da vinculação entre a
inventividade na aprendizagem e os processos de subjetivação, visto que os
espaços de afetividade e intensidade são condição si ne qua non para a emergência
e cocriação de si e do mundo. Assim, onde há somente a representação e a
repetição de ideias, não havendo inventividade, não há espaço para a relação entre
subjetividade e objeto, anulando-se, portanto, qualquer possibilidade de uma
aprendizagem que apresente sentido para os aprendizes. De modo contrário, é no
espaço da inventividade que o(a)s aprendizes dão sentido às suas aprendizagens,
abrindo linhas investigativas norteadas por seus desejos, interesses e sentimentos,
inteirando-se dos mecanismos de funcionamento dos signos que constituem a
diversidade das matérias.
5.8 ANÁLISE GERAL
Procedendo a uma análise geral da nossa experiência no campo de pesquisa, é
possível afirmar que o conjunto das vivências e das atividades realizadas produziu
dados relevantes no que diz respeito à vinculação entre o desenvolvimento da
capacidade expressiva e os modos educativos. A participação ativa do(a)s aluno(a)s
em todos os contextos, na elaboração de questionamentos, na expressão de suas
sensações e percepções, assim como na verbalização das vivências, evidencia um
caráter problematizador do processo. Paralelamente a essa participação ativa, notei
178
que ele(a)s buscavam por uma sintonia mais acurada com as matérias sonoras,
trabalhando a expressividade dos afectos e perceptos das composições musicais.
Do meu ponto de vista como pesquisadora, isso nos aproxima da concepção de
aprendizagem como ação inventiva, pois
a aprendizagem é sobretudo [...] experiência de problematização. A experiência de problematização distingue-se da experiência de recognição. A experiência de recognição envolve uma síntese convergente entre as faculdades. [...] Ao contrário, na experiência de problematização as faculdades – sensibilidade, memória, imaginação – atuam de modo divergente. Por exemplo, quando alguém viaja a um país estrangeiro, as atividades mais cotidianas, como abrir uma torneira para lavar as mãos, tomar um café ou chegar a um destino desejado, tornam-se problemáticas (KASTRUP, 2001, p. 1).
Debruçando-nos sobre os dados produzidos, serão destacados aqueles que podem
ser considerados peças-chave para a reflexão sobre o que pode ser uma
aprendizagem inventiva musical, considerando o âmbito do fazer pianístico. São
eles: 1) a condição da aula como espaço-tempo de se tornar sensível aos códigos e
signos das diferentes matérias sonoras; 2) o despertamento para a possibilidade de
criar sonoridades; 3) a abertura a um novo conceito de ser aluno(a) e de ser
professor(a), entendidos como seres de potência e de desejo, escapando à
representação de papeis; 4) a configuração da aprendizagem pianística como ação
exigente e ao mesmo tempo prazerosa; 5) o desvio da noção de sujeito entendido
como “culto ao eu”, abrindo-se ao plano das relações, na produção de
subjetividades; 6) o entendimento do fazer musical como produção de vida, e não
como ação redundante.
Tratando do primeiro aspecto – a aula de música como espaço-tempo para se
tornar sensível aos signos sonoros –, vemos claramente a concepção deleuziana
de que o ato de aprender é ser sensível às matérias, exigindo as condições
ambientais para que isso ocorra, pois “[...] a aprendizagem inventiva não é
espontânea [...]” (KASTRUP, 2001, p. 23). Disso se depreende que uma aula
visando ao desenvolvimento da capacidade de expressão exige a elaboração de
diferentes atividades que propiciem pensar por afectos e percetos, movendo o
pensamento em sua articulação com as sensações e percepções. Nesse sentido,
uma aula precisa, necessariamente, oferecer as condições para que essa
experiência ocorra, pois
179
o hábito é condição da experiência, mas esta [sic] condição é, ela própria, condicionada pela realização, pelos seus produtos, num movimento de retroação inventiva. Condição processual, e não invariante, condição concreta, e não abstrata; enfim, condição que é condicionada (KASTRUP, 2001, p. 19).
Tais condições não são históricas, mas referem-se ao processo de aprendizagem
como ação em devir, e não como aquisição de conteúdos programáticos, pois as
formas de conteúdo não são separadas das formas de expressão. Ou seja, o
desenvolvimento da capacidade expressiva exige a experiência, visto que não há
“[...] um vínculo a priori [...] entre a Sentença e a Figura, entre a forma de expressão
e a forma de conteúdo [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 60). Dessa maneira,
“[...] assiste-se a uma transformação das substâncias e a uma dissolução das
formas, [...] em benefício das forças fluidas, dos fluxos, do ar, da luz [...]. Potência
incorpórea dessa matéria intensa” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 60).
A contextualização do ambiente de aprendizagem passa, inevitavelmente, pela
questão do tempo e, a esse respeito, compartilhamos da visão de que “[...] não
basta o decorrer do tempo cronológico [...]” (KASTRUP, 2001, p. 22) para tornar a
matéria sonora expressiva. Ou seja, é também condição contextual de
aprendizagem que o tempo cronológico esteja em conexão com um tempo inventivo,
a mútua interferência entre Cronos e Aion.
O sentido desse tempo inventivo não é, como dito anteriormente, da ordem de um
espontaneísmo, mas designa, “[...] de modo inelutável, um trabalho, uma série de
experiências [...]” (KASTRUP, 2001, p. 24), como maneira de desenvolver uma “[...]
competência [...] fina e contextualizada [...]” (KASTRUP, 2001, p. 22). Nessa ótica,
vemos que é necessário experienciar, pois, repetindo, “[...] nenhuma criação existe
sem experiência [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 152). Tempo inventivo,
assim, que comporta tanto uma assiduidade quanto uma dissolução das formas,
pois “[...] o artista acrescenta sempre novas variedades ao mundo [...]” (DELEUZE;
GUATTARI, 2010, p. 207).
O segundo aspecto, despertamento para a possibilidade de criar sonoridades,
por sua vez, estabelece ressonância com a ideia deleuziana a respeito da
performatividade da linguagem, assim como com os conceitos de espaço liso e
estriado. No caso da performatividade da linguagem, vemos que as formas de
180
expressão e de conteúdo carreiam sentidos, palavras de ordem, possuindo uma
dupla natureza: uma relacionada à morte, de petição de obediência – não faça, não
crie; a outra vinculada à vida, potência criativa. Assim, nossas ações cotidianas são
permeadas por orientações implícitas nos enunciados: “[...] existem senhas sob as
palavras [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 62).
Tomando a aula padrão como ponto de análise, vemos que as ações que lhe dão
forma encontram-se já automatizadas: como máquinas abstratas, “[...] procedem por
redundância [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 17), carreando palavras de
ordem que norteiam o que é esperado que se faça ou não se faça nesse espaço-
tempo. Via de regra, não se experiencia, não se trocam percepções. Nesse sentido,
podemos dizer que é um padrão de aula que compõe um espaço mais estriado que
liso; espaço-tempo “[...] definido pela [...] constância da orientação, invariância da
distância por troca de referenciais de inércia, [...] constituição de uma perspectiva
central” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 219). É uma aula ritornelo, porém, de
baixo índice de desterritorialização.
Vemos, igualmente, que as lógicas que regem as macroformas pedagógicas
encontram-se impregnadas em nós, como que difusas em “[...] uma rede [...] de
dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os hábitos e as
práticas produtivas, levando-nos à constatação de que “[...] o mando é cada vez
mais interiorizado [...]” (CARVALHO, 2014, p. 73). É por essa via que vemos o papel
fundamental da educação, circunscrevendo um espaço para se pensar a respeito
dos dispositivos que compõem as formas educativas, propiciando sentidos ao fazer
musical na infância e na adolescência.
É nesse movimento de pensar a educação – que educação estou fazendo? – que
vamos abrindo as linhas inventivas, os traçados de sentidos e forças criativas,
moldando novos processos e novos fluxos. É contemplando o hábito que abrimos o
tempo da criação, pois “[...] contemplar é questionar [...]” (DELEUZE, 2006, p. 83).
Assim, a desmontagem da aula padrão a partir da organização de oficinas
diversificadas e também de modificações nas atividades individuais inaugurou
sentidos diferentes às aulas, compondo novas coordenadas semióticas no campo
em questão. Desse modo, compartilhamos do pensamento deleuziano de que é
181
preciso abrir linhas educativas moleculares cujas palavras sejam de passagem,
rastreando atos e palavras que sejam pulsões de vida, e não de redundância: “[...] é
preciso extrair uma da outra – transformar as composições de ordem em
componentes de passagens. [...] as palavras [...] seriam como que passagens,
componentes de passagem” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 62).
Nessa perspectiva, a aprendizagem inventiva busca orientar-se por palavras de vida,
cuja “[...] palavra de ordem [...] deve responder à resposta de morte, não fugindo,
mas fazendo com que a fuga aja e crie” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 62), uma
criação que se dê em consonância com as formas de expressão e de conteúdo,
fazendo mover os afectos da música. Aqui, ressaltamos a correspondência com o
pensamento de Deleuze e Guattari (2014, p. 153): “[...] é a expressão que adianta ou
avança, é ela que precede os conteúdos”, ou, ainda, “[...] a expressão nos dá o
procedimento [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 35).
Por esse ângulo, uma aula inventiva configura-se como dispositivo que abre as
possibilidades de articulação entre pensamento-sentimento-ação, escapando de um
fazer musical meramente por repetição, reprodução do Mesmo. Vemos, assim, que o
continuum de variação formando territórios trouxe implícita e explicitamente palavras
de ordem vinculadas à vida, impulsionando os alunos a criar maneiras próprias de
“fazer soar a música”, tornando sonoras as forças insonoras. Desse modo, há uma
mútua influência entre os meios e os fins, as sonoridades e as circunstâncias, em
um movimento no qual “[...] o interior e o exterior entram em relação de troca”
(DELEUZE; GUATTARI, 2014a, p. 83), constituindo agenciamentos mais nômades.
No que diz respeito à abertura a um novo conceito de ser aluno(a) e de ser
professor(a), a produção desse dado está relacionada à alteração nessas duas
funções, deixando de ser uma representação de papéis. Desse modo, as atividades
vivenciadas no campo constituíram-se agenciamentos, configurando-se como
espaço-tempo que deseja que o(a) aluno(a) deseje saber. De acordo com Kastrup
(2001), a aprendizagem inventiva convoca agenciamentos: maquínicos, de
conexões e entrelaçamentos entre corpos materiais e imateriais, sejam partituras,
seja o instrumento musical, sejam os sons, sejam as ambiências, e coletivos,
agregando e fazendo transitar ideias, perguntas, afetos, percepções. Por isso,
182
durante a experiência com o(a)s aluno(a)s, habitamos um território, não apenas
estivemos nele.
Um agenciamento é sempre o desejo em ação, a pulsão de criação em movimento,
arregimentando os meios, as transformações corpóreas e incorpóreas. Nesse
sentido, todo agenciamento “[...] é a dupla articulação rosto-mão, gesto-fala, e a
pressuposição recíproca entre ambos” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 233).
Vemos que, em uma perspectiva inventiva, aluno(a) e professor(a) criam suas
formas de expressão e de conteúdo em um processo de desterritorialização e
inauguração de novos territórios, não fixando um rosto, um gesto ou fala. Por essa
via, sentimos ressonância com o entendimento de que “[...] cada agenciamento
professor-aluno é um ponto de bifurcação, de proliferação de possíveis14, de
multiplicação de fontes” (KASTRUP, 2001, p. 26).
Em se tratando especificamente do(a) professor(a), a inventividade aponta para seu
papel de atrator(a), não se situando no centro do processo nem mesmo transmitindo
informações. Do ponto de vista da problematização, o(a) professor(a) é aquele(a)
que “[...] faz circular afetos [...]” (KASTRUP, 2001, p. 25) e alimenta sua condição de
aprendiz. Assim, uma política da invenção implica um desligamento das máquinas
abstratas que sobrecodificam o rosto e a linguagem – rosto de aluno, rosto de
professor; linguagem e rosto de aluno –, entendendo-se que, “[...] se o rosto é uma
política, desfazer o rosto também o é, engajando devires reais [...]. Desfazer o rosto
é o mesmo que atravessar o muro do significante, sair do buraco negro da
subjetividade” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 64).
Dessa maneira, o modelo de aula de piano historicamente instituído, situado no
âmbito das macroformas educativas, tem em seus fundamentos uma visão de
educação que se orienta de acordo com a lógica comportamental, baseada nos
procedimentos da ciência moderna, conforme observa Kastrup (2001), ao assinalar
a influência desse sistema cultural nos estudos sobre a aprendizagem no âmbito da
história da psicologia, entendendo que, com ele, o “[...] processo de aprender
encontra-se submetido a leis científicas [cujos] resultados são passíveis de previsão.
14
Em consonância com Deleuze e Guattari, ao fazer menção aos “possíveis”, a autora não se refere ao devir, especificamente, mas a algo que se aproxima da ideia de devir, àquilo que é aberto a possibilidades. Deleuze (2006), inclusive, diferencia os termos devir e possível.
183
[...] Neste [sic] campo, a aprendizagem encontra-se dissociada da invenção”
(KASTRUP, 2001, p. 18).
Nesse modo de aprender postulado pelo método da ciência moderna, vemos um
conjunto de conceitos articulados, formando um sistema educacional que engloba
uma concepção de professor(a), de aluno(a) e uma forma de conhecer na qual o
objeto – no caso, a música – é algo separado de ambo(a)s, situando-se em um
campo transcendente, desconectado dos sujeitos e dos contextos. Nesse caso, não
há um encontro de subjetividades com os signos e os códigos que constituem os
diferentes universos musicais, alocando o ato de aprender como uma ação de
estímulo-resposta, uma experiência de recognição. Isto é, não há relação
intersubjetiva em movimento de ação-contemplação.
A respeito do quarto aspecto, a saber, a aprendizagem pianística como ação
exigente, e, ao mesmo tempo, prazerosa, temos, aí, duas questões: uma que se
refere à noção de que “[...] a aprendizagem inventiva é crítica, no sentido de que
concerne aos limites e envolve sua transposição, impedindo o sujeito de continuar
sendo o mesmo” (KASTRUP, 2001, p. 24), enquanto a outra aponta para as
singularidades da faixa etária a que se propõe a investigação aqui relatada.
No tocante à aprendizagem exigente, essa questão está relacionada à premissa de
que a aprendizagem musical requer “[...] um mergulho no mundo da matéria [...]”
(KASTRUP, 2001, p. 24), a fim de desenvolver as habilidades e as competências
específicas para tornar sonoras as forças insonoras. Esse mergulho não é exigido
de fora, mas nasce do próprio contágio com os signos, mediante o contexto
apropriado. Assim, o espaço problematizador na educação musical inventiva
pressupõe o trânsito entre as coordenadas semióticas do território sonoro,
registrando “[...] um certo ethos, uma atitude. Essa atitude consiste em [...] manter
ou perpetuar sua força e sua exigência de decifração [...]” (KASTRUP, 2001, p. 24).
Dessa maneira, podemos estabelecer aqui uma diferenciação entre disciplina e
controle: a aprendizagem inventiva relativiza os procedimentos de disciplinarização
da aula padrão, pois, no bojo de sua constituição, essa aula agrega um sistema de
controle e avaliação das respostas aos estímulos dados: “[...] o controle busca impor
regras de ação a partir do exterior: controle do tempo, sistema de recompensas e
184
punições, protocolos de avaliação e outras estratégias” (KASTRUP, 2001, p. 23).
Nessa via, o que seria um trabalho de disciplina consciente torna-se a verificação de
uma aprendizagem mecânica. No entanto, lembra Kastrup (2001, p. 23), “[...] atribuir
a disciplina apenas à aprendizagem mecânica é por certo confundir a noção de
disciplina com a de controle”.
Em contraponto ao controle, a educação como processo problematizador tem seu
acento em uma competência ética que implica uma atitude de comprometimento de
si com a diversidade de mundos. Relativamente a esse posicionamento, subjaz a
ideia de que “[...] tal ética implica na [sic] adoção de um ponto de vista pluricêntrico
[...], que não deve ser confundida com uma posição relativista, que ronda as
abordagens construtivistas” (KASTRUP, 2008, p. 128).
No que concerne à faixa etária dos alunos, podemos considerar esse um fator
determinante do modo pelo qual uma aula deve se desenvolver. Assim, um processo
problematizador inclui a observância à faixa etária, considerando-se o contexto em
que ela é vivenciada. Kastrup (2000, p. 373) tece críticas importantes às teorias da
cognição que traçam uma progressão da forma de conhecimento da criança para a
forma de conhecimento do adulto, pois elas tomam “[...] o homem adulto como ponto
de chegada e termo eminente da série de transformações que têm lugar na cognição
da criança [...]”. A série de transformações previstas estabelece como parâmetro de
avaliação aquilo que falta à criança, comparando-a ao modo adulto de conhecer,
fazendo com que a cognição na infância seja “[...] assombrada pela ideia do déficit.
Pergunta-se, então, o que falta à cognição da criança para chegar à cognição do
adulto” (KASTRUP, 2000, p. 373).
Nesse modo de pensar, a cognição estará vinculada a uma abordagem epistêmica,
avaliando o desenvolvimento a partir de categorias lógico-formais de
desenvolvimento do adulto – que, para a criança, têm um caráter negativo: “[...]
ausência de função simbólica, irreversibilidade das formas, inteligência pré-
operatória, pré-lógica etc. [...]” (KASTRUP, 2000, p. 374). Essa ótica é marcada pela
ideia de desenvolvimento como superação de deficiências, progredindo em direção
ao modo de conhecer tal como um cientista. Assim, a pergunta que move as
escolhas pedagógicas na perspectiva comportamental é: “o que falta à criança para
pensar como um cientista?” (KASTRUP, 2000, p. 374). Transpondo essa crítica
185
para nosso campo de investigação, podemos observar princípio semelhante
no que diz respeito ao norteamento da aprendizagem pianística de caráter
tecnicista: o que falta à criança e ao adolescente para tocar como um
concertista?
De acordo com Kastrup (2000), essa abordagem apresenta dois problemas no
tocante à aprendizagem na infância: o primeiro consiste no fato de que “[...] a
questão da subjetividade fica definida no âmbito do sujeito epistêmico, e não da
singularidade” (KASTRUP, 2000, p. 374); o segundo ponto refere-se ao pressuposto
de que o aspecto sensório-motor deve ser superado, sinalizando, assim, uma
progressão no desenvolvimento. Como contraponto a tais pressupostos, a autora
afirma que a corporificação do conhecimento não é uma etapa a ser ultrapassada,
sendo condição mesma de uma aprendizagem inventiva.
A partir dessas considerações, podemos perceber a sintonia da investigação
relatada nesta tese com o pensamento em Deleuze e Guattari a respeito da criança,
afirmando sua frutífera coexistência em nós: “„uma‟ criança coexiste conosco, numa
zona de vizinhança ou num bloco devir, numa linha de desterritorialização que
arrasta a ambos – contrariamente à criança que fomos” [...] (DELEUZE; GUATTARI,
2012b, p. 97). Essa assertiva remete-nos à concepção de tempo deleuziana, na qual
“[...] o passado, o presente e o futuro não se sucedem, não se perdem, mas
subsistem como coexistência virtual” (KASTRUP, 2000, p. 375).
Em se tratando dos processos cognitivos, essa concepção incide no entendimento
de que há sempre formas em estados nascentes, cujo “[...] processo é a atualização
[...]” (DELEUZE, 2006, p. 201). Assim, há blocos de infância que funcionam a partir
da diferença:
[...] o bloco de infância [...] é a única e verdadeira vida da criança; ele é desterritorializante; desloca-se no tempo, com o tempo, para reativar o desejo e fazer suas conexões proliferarem; ele é intensivo, e mesmo nas baixas intensidades, relança delas uma alta (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 140).
Com relação ao campo da aprendizagem pianística, verificamos essa atenção à
faixa etária na observação de que “[...] a excelência na performance musical deve
assentar-se em duas grandes dimensões, a técnica e a expressiva [...]” (SLOBODA;
DAVIDSON, 1996, p. 172), sublinhando, porém, a necessidade de se assegurar o
186
prazer no fazer musical de crianças e adolescentes. Além disso, Kastrup (2000) trata
das transformações referentes às formas de viver da criança na atualidade,
mencionando as agendas cheias de compromissos, os atos de violência praticados
por crianças etc., salientando a necessária busca pela infância na atualidade, no
sentido de se evitar uma identificação universal de criança, bem como uma
naturalização de sua constituição:
procurando identificar onde está a criança contemporânea, vemos que ela se mantém viva no devir-criança. Encontramo-la na criança sem-terra, nos meninos de rua, na criança super-protegida pela babá eletrônica, ou pela parafernália tecnológica. Em resumo, o conceito de devir-criança evita a miopia causada pelo pressuposto da identidade e a nostalgia de uma infância naturalizada (KASTRUP, 2000, p. 382).
Assim, para além das agendas cheias e parafernálias tecnológicas, há que se trazer
a infância e a adolescência para as aulas de piano, abarcando suas singularidades,
interesses e gostos musicais. Dessa maneira, é possível abrir-se a um processo
educativo com diferentes formas de produção do conhecimento, mais afeitas à faixa
etária com a qual se trabalha. Nesse sentido, é pertinente inspirarmo-nos em pontos
de vista próprios à educação musical, que, ainda que em contextos diferentes, como
a organização não governamental em que trabalhou Kleber (2006, p. 305-306), têm
o mesmo propósito de promover o desenvolvimento da expressão na arte dos sons,
fazendo-nos ver que
as implicações para o campo da educação musical incidem em uma visão que [reconhece] que a produção de conhecimento pedagógico-musical deve considerar o múltiplo contexto da realidade social, dissolvendo categorias hierárquicas de valores culturais. Para tanto, é preciso refletir sobre as categorias dominantes de mérito artístico e pedagógico, questionando, problematizando, borrando os limites das estruturas de avaliação e julgamento de práticas musicais. Faz-se necessário também, reexaminar as relações entre o conhecimento da cultura popular e o conhecimento estabelecido pela academia, como já tem sido proposto pela área de educação musical.
Nesse sentido, verificamos que os alunos de piano do Curso de Musicalização
Infantil da Fames vivenciam a musicalidade em outros ambientes que não a
instituição, trazendo em sua bagagem experiências e gostos por gêneros musicais
não eruditos. Porém, tais interesses não são considerados, tendo o repertório se
fixado em uma perspectiva unicamente erudita.
187
Passando ao quinto aspecto, a fuga da noção de sujeito como “culto ao eu”,
vemos nesse dado a concepção de subjetividade em Deleuze (1953), entendendo-a
como instância em construção permanente, e não como algo preexistente às
circunstâncias; da mesma forma, a circunstância não é independente àquela. Ambas
as instâncias se determinam em uma atividade de cocriação permanente:
[...] mas, pelo menos, já podemos pressentir como se manifestará essa unidade no sujeito: se a relação não se separa das circunstâncias, se o sujeito não pode separar-se de um conteúdo singular que lhe é estritamente essencial, é porque, em sua essência, a subjetividade é prática. É nos vínculos do motivo e da ação, do meio e do fim, que se revelará sua unidade definitiva, isto é, a unidade das próprias relações e das circunstâncias: com efeito, esses vínculos meio-fim, motivo-ações, são relações, mas outra coisa também. Que não haja e não possa haver subjetividade teórica vem a ser a proposição fundamental do empirismo. E, olhando bem, isso é tão-só uma outra maneira de dizer: o sujeito se constitui no dado. Se o sujeito se constitui no dado, somente há, com efeito, sujeito prático (DELEUZE, 1953, p. 98).
Nessa via, verificamos que o pensamento deleuziano não se instala em uma
perspectiva subjetivista nem tampouco em uma tendência objetivista a respeito do
ser humano e suas relações com a produção do conhecimento: “a abordagem
deleuziana realiza a crítica ao subjetivismo e ao culto ao eu, bem como a crítica ao
objetivismo e ao ambientalismo [...]” (KASTRUP, 2001, p. 21). Dessa maneira, tal
abordagem inscreve uma linha para além, tanto das “[...] perspectivas subjetivantes
quanto àquelas que veem na aprendizagem um processo de assujeitamento a um
suposto mundo dado” (KASTRUP, 2001, p. 21).
Nessa perspectiva, a subjetividade não é algo pronto, mas está sempre em processo
de elaboração, situando-se como pré-individualidade, ou pré-subjetividade, “[...]
constituída de múltiplos vetores heterogêneos – dispositivos sociais, técnicos, físicos
e semiológicos –, a partir dos quais pode ganhar consistência um território
existencial” (KASTRUP, 2010, p. 96). Em termos educativos, essa ideia assinala que
a aprendizagem pressupõe um coengendramento, “[...] a invenção recíproca de si e
do mundo” (KASTRUP, 2001, p. 21). Tal visão toca de maneira muito pertinente a
questão de investigação sobre a qual este trabalho se debruçou, visto que a aula
padrão institui-se exatamente no primado ao indivíduo, concebido nos modos de
pensar bem como nos valores do século XIX. No campo da educação musical, essa
observação é tratada nos seguintes termos:
188
a habilidade técnica levada ao máximo da capacidade humana e a performance artística baseada em critérios interpretativos de caráter marcadamente individual e subjetivo, espelhando duas facetas igualmente presentes no pensamento romântico: o individualismo exacerbado e o domínio técnico instrumental, o qual, por sua vez, contribui para a [...] exacerbação dos egos (FONTERRADA, 2005, p. 72).
Na mesma linha de pensamento, porém, no campo da performance instrumental,
Sloboda e Davidson (1996) frisam que esse campo tem sido fortemente marcado
pela figura do concertista virtuose, apoiando-se em uma concepção de educação
que não tem propiciado às crianças o espaço para a experiência estética. No mesmo
sentido, esses autores apontam, igualmente, para o problema do excesso de busca
de realização pelo virtuosismo e pela competição entre muitos alunos, que, estando
preocupados “[...] em ser „o melhor‟, quase menosprezam o ato de ouvir música por
prazer, entendendo essa atividade como „perda de tempo‟” (SLOBODA; DAVIDSON,
1996, p. 186).
Vemos, portanto, que a aprendizagem no modelo de aula instituído está vinculada à
ideia de se alcançar um alvo, um ponto fixo, eliminando exatamente aquilo que mais
importa na trajetória do aprender: a conjugação entre sujeito e signo, que é uma
relação íntima e problematizadora. Tal prática educativa apoia-se em uma
concepção adaptacionista e comportamental da psicologia, a qual reduziu o ato de
aprender “[...] a um processo de solução de problemas [...]” (KASTRUP, 2001, p.
19). Essa concepção do aprender “[...] não leva em consideração, em suas
formulações teóricas, a distinção deleuziana [...] entre as representações e os
signos” (KASTRUP, 2001, p. 23).
Ou seja, essa perspectiva comportamental elimina a condição si ne qua non da
aprendizagem, que é a instauração de um plano de produção de subjetividades
mediado pela experiência de elaboração da matéria sonora, na qual o aprendiz entra
em contato com coordenadas semióticas em um campo perceptivo determinado.
Ignorada essa produção de subjetividade, a aprendizagem passa a ser entendida
como repetição de movimentos, sendo, portanto, “[...] movimento reflexo, quando
sou compelido a me mover. [...] trata-se de movimento compulsivo e mecânico, [...]
de escravidão do músculo ao estímulo [...]” (KASTRUP, 2001, p. 23).
Isso nos remete a outro dado produzido neste estudo, que é a compreensão do
fazer musical como produção de vida, e não como uma representação.
189
Observamos esse aspecto na relação com a prática de imprimir à aprendizagem
musical – no âmbito da formação erudita – o alcance de uma meta, desligando-se
dos sentidos de vida, que se encontram agregados a essa atividade. Podemos dizer
que alunos e professores incorporaram a lógica dominante, perseguindo metas a
serem alcançadas, em uma escalada de competição. Nessa perspectiva, não ocorre
o tempo inventivo propiciador do contágio com as formas de conteúdo e as formas
de expressão, com os signos musicais. Assim, a função do estético se perde ou
passa a um plano de menor importância.
Relativamente a esse pensamento, Ray (2006, p. 50) observou que, “[...] no âmbito
da performance musical, a musicalidade não tem função quando não expressa [...]”.
A autora explica tal posicionamento enfatizando que “[...] é na articulação entre a
musicalidade e a expressividade que se encontra grande parte da essência da
performance musical” (RAY, 2006, p. 50). Assim, os esforços são orientados para
vivenciar a problematização que os signos e códigos musicais impõem, e não para
simplesmente cumprir o conteúdo programático: “[...] a sensação composta, feita de
afectos e perceptos, desterritorializa o sistema de opinião que reunia as percepções
e afecções dominantes num meio natural, histórico e social” (DELEUZE; GUATTARI,
2010, p. 232).
Transpondo-nos para o campo da educação musical, Fonterrada (2005, p. 106)
lembra que a arte musical e a vida comungam de um mesmo espaço, visão da qual
compartilho:
o mais significativo na educação musical é que ela pode ser o espaço de inserção da arte na vida do ser humano, dando-lhe possibilidade de atingir outras dimensões de si mesmo e de ampliar e aprofundar seus modos de relação consigo próprio, com o outro e com o mundo. Essa é a real função da arte e deveria estar na base de toda proposta de educação musical.
Assim, fazer música não é se preparar para um processo seletivo – isso pode ser a
consequência do processo; é preciso descolar, desmontar essa palavra de ordem.
Fazer música é expressar afectos e perceptos dentro da lógica das sensações.
Portanto, uma aula não pode estar relacionada à finalidade última de preparação
para um processo seletivo, mas precisa, necessariamente, estar intimamente
vinculada ao desenvolvimento das formas expressivas musicais, pois “[...] a arte
nunca é um fim, é [...] um instrumento para traçar linhas de vida” (DELEUZE;
190
GUATTARI, 2012a, p. 63). Essa afirmação estabelece ressonância com a premissa
de que o conhecer é uma “ação efetiva, ação que [permite] a um ser vivo continuar
sua existência em um determinado meio ao fazer surgir o seu mundo. Nem mais,
nem menos” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 36, grifo dos autores).
Em termos de arte, não se tem uma meta; “[...] não se trata de ter na arte, ou numa
certa obra de arte, um alvo, um ponto fixo a ser atingido, e que orientaria o processo
do aprender [...]” (KASTRUP, 2001, p. 19). Arte é linguagem tornada intensiva e
aprendê-la é um processo que “[...] diz respeito essencialmente aos signos [...]”
(DELEUZE, 2003, p. 4), demandando um tempo inventivo, “[...] um tempo que
redescobrimos no âmago do tempo perdido e que nos revela a imagem da
eternidade: verdadeira eternidade que se afirma na arte” (DELEUZE, 2003, p. 16).
Vemos, no conjunto dos estudos, que a aula padrão tem se desenvolvido em um
movimento de redundância, sem questionar suas bases e seus processos, em um
modelo de aula padrão concertista, marcado pelo virtuosismo, voltado para o
sucesso individual. Desse modo, reforçamos nossa tese de que é necessário que a
aprendizagem de piano se descole desse modelo para inserir-se no campo da
educação musical, constituindo um espaço-tempo que respeita o ser criança ou
adolescente em suas características.
Vemos, ainda, que os pressupostos que subjazem ao modelo de aula atualmente
praticado encontram-se alicerçados nos princípios da psicologia comportamental e
do método da ciência moderna, calcado na formação de um sujeito epistêmico, e
não singular. Nessa perspectiva, a aula padrão encontra-se alinhada às
macroformas educativas, que, como ritornelo, reproduzem uma ideia padronizada de
aprender, colocando como meta a ser alcançada uma sonoridade abstrata, que se
situa fora da vivência do(a) aluno(a).
Identificamos aqui o cerne de nossa tese, a saber, que a temática da expressão
musical não se situa à margem das formas instituídas socialmente, sendo forjada no
cruzamento das linhas e dos espaços que compõem as relações e as formas de
pensamento, incluindo-se aí as concepções de educação e de música, assim como
os valores que se encontram agregados a esses campos do conhecimento. Nesse
sentido, o desenvolvimento da capacidade de expressão musical não é imune às
191
linhas de segmentação que perpassam as posturas, as rostidades, as concepções
sobre aprendizagem e arte, a relação professor(a)-aluno(a), podendo ou não
produzir o seu desenvolvimento.
Ou seja, em um conjunto, vemos que a aula padrão, baseada na busca por
reproduzir as sonoridades de concertistas, acaba por seguir a direção exatamente
oposta ao desenvolvimento da capacidade expressiva dos alunos, pois tais
sonoridades não correspondem aos seus modos próprios de sentir, suas percepções
de mundo, constituindo-se uma abstração situada fora de suas realidades. Surge,
portanto, um paradoxo: como pode a arte esvaziar-se da própria arte?
Deleuze e Guattari tiveram no fazer artístico a perspectiva para a elaboração de seu
pensamento, tendo como principal vetor a ideia de que “[...] o aprendizado temporal
converge para a arte: os signos da arte possuem uma superioridade em relação aos
demais [...]” (KASTRUP, 2001, p. 21). No entanto, vemos a própria arte
desimcumbir-se de si mesma, esquecendo-se de seus signos, adentrando um
caminho de adestramento e redundância, o que nos leva a deambular na ideia
deleuziana, enxergando na filosofia um plano de imanência para se pensar a própria
arte e sua aprendizagem. Seria o caso de sugerir, então, não uma convergência à
arte, mas uma mútua interferência em igualdade axiológica entre a arte e a filosofia,
cujos movimentos convergem a um devir, lugar das pré-individualidades e das
formas nascentes. Nesse prisma, o conceito de fabulação torna-se vetor filosófico de
pensamento e ação, lembrando à arte quem ela é, sua diferença e sua potência.
Exatamente nesse ângulo, entendemos que uma aprendizagem musical inventiva é
fabulação, uma sonorofabulação: música é fabulação, é espaço-tempo de potência
de afirmar e de afirmar a potência de criar, momento que pode ser a cesura no
tempo, o momento para além das diferenças e repetições do Mesmo. A música e,
portanto, a sua aprendizagem, é processo que excede as percepções e afecções do
vivido, sendo, por isso, fabulação, uma fabulação criadora, pois
[...] aquilo que faz com que o músico descubra os pássaros o faz também descobrir o elementar e o cósmico. [...] A música envia fluxos moleculares. [...] a questão da música é de uma potência de desterritorialização que atravessa a Natureza, os animais, os elementos e os desertos não menos do que o homem (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 118-119).
192
Por essa trajetória, abrimo-nos precisamente ao eterno retorno como potência de
afirmar tudo aquilo que é dissimilar, múltiplo e acaso, pois “[...] o eterno retorno
existe somente para o terceiro tempo: o tempo do drama, após o cômico, após o
trágico [...]” (DELEUZE, 2006, 410). Assim, “[...] é neste plano que a aprendizagem
inventiva tem lugar [...]” (KASTRUP, 2001, p. 23), uma aprendizagem inventiva
musical. Estando no terreno da educação musical, a aprendizagem pianística abre-
se a uma perspectiva em que aprendizes e mestres entram em sintonia com a
matéria sonora, vivenciando um processo de corporificação de seus modos de
funcionamento, tornando-se sensíveis aos seus signos e códigos, em um plano de
produção de subjetividades. Assim, a aprendizagem pianística inventiva configura-se
como ação-contemplação que é desenvolvida por meio de uma escuta crítica, pela
qual o(a) aprendiz procura se ouvir, ouvindo as sonoridades que está produzindo,
verificando se essas sonoridades correspondem à ambiência desejada, enquanto
o(a) professor(a), por sua vez, não esquece “[...] sua condição de aprendiz, o que é
uma condição de política cognitiva” (KASTRUP, 2001, p. 25).
Assim, uma aula na perspectiva da sonorofabulação é território que se
desterritorializa e torna a se territorializar, escapando das forças que nos
despotencializam, das posturas rígidas que muitas vezes assombram professore(a)s
e aluno(a)s. Tornamo-nos rígidos quando nos fixamos somente na execução correta
das notas – embora elas sejam importantes – e na posição das mãos, esquecendo-
nos de que o(a) aluno(a) é um todo, quando não abarcamos o(a)s aluno(a)s em
suas dimensões criativas, sociais e afetivas, apagando as linhas de criação, nas
quais poderiam surgir – na repetição –, a diferença, em um fraseado, ou em um
crescendo, ou staccato. Seguimos as linhas molares quando não valorizamos os
afetos e perceptos do(a)s aluno(a)s, refreando as possibilidades de ir ao encontro de
seus gestos e gostos musicais, bem como quando cedemos ao percurso prescrito
pelos modelos cristalizados, territorializados – os ritornelos –, ou quando não
buscamos a sustentação dos gestos mais espontâneos de nós mesmo(a)s,
professore(a)s, e de nosso(a)s aluno(a)s.
Por esse prisma, a sonorofabulação não é um conceito fixo, rígido, devendo ser visto
como um veículo que nos situa nas aulas de forma diferente em relação a cada
aluno(a), em momentos e contextos diversificados. Dessa maneira, é um conceito
em permanente desterritorialização e reterritorialização, constituindo e sendo
193
constituído por territórios diferentes, e, no caso de um(a) mesmo(a) aluno(a), que
nos lembremos de que seu próprio território intelectual-emocional-afetivo segue em
desterritorializações.
Essa aula possível desenquadra as formatações burocratizadas de aula, achando
uma linha de fuga que movimenta as ideias, o corpo, a capacidade de sentir e de
criar; é um conceito que traz agregado a si a sugestão de desterritorializar em nós
as forças da rigidez e da inércia, pois, nesse movimento, “[...] a música submete o
ritornelo [...], ela o arranca de sua territorialidade. A música é operação ativa,
criadora, que consiste em desterritorializar o ritornelo” (DELEUZE, 2012b, p. 106).
A alegria da música é essa possibilidade de criar afetos, ambiências. Podemos
afirmar que fazer música é, de certa forma, ser sonoplasta de um teatro invisível, e o
músico, um “[...] mostrador de afectos, inventor de afectos, criador de afectos, em
relação com os perceptos ou as visões que nos dá. Não é somente em sua obra que
ele os cria, ele os dá para nós e nos faz [transformarmo-nos] com eles [...]”
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 207).
Essa plasticidade sonora exige a coexistência de Aion flutuante que movimenta
Cronos, abrindo a nós o campo das virtualidades expressivas musicais. Nessa
perspectiva, dobramos o tempo da aula: não mais somente Cronos, mas Cronos-
Aion, desmolarizando os processos educativos em uma aula de piano,
desmolarizando-nos. Assim, fomentamos o desejo de escapar às linhas
costumeiras.
Nesse sentido, uma aula musical inventiva rege-se tanto pela exigência quanto pelo
mergulho, conjugando os jeitos de ser e de aprender do(a)s aluno(a)s. Transitamos,
assim, entre espaços lisos e estriados, velocidades e lentidões, com abertura às
linhas moleculares, linhas de fuga que nos levam às criações, e também aos
esforços e desafios: “[...] jamais acreditar que um espaço liso basta para nos salvar”
(DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 228).
Por essa via, é preciso retomar aqui os elementos da fabulação deleuziana,
considerando-a como dispositivo que provocou o “[...] movimento de
desterritorialização na expressão [...], a desterritorialização da língua, a ligação do
individual no imediato-político, constituindo agenciamentos coletivos e maquínicos
194
de enunciação” (DELEUZE; GUATTARI, 2014b, p. 39), sendo, portanto, sonoridades
que “[...] desenham um território [...] a marca constituinte de um domínio [...]”
(DELEUZE, 2012b, p. 130).
Essa ligação do individual no imediato-político não se relaciona de modo algum a
questões ideológicas, pois “[...] é determinada a satisfazer as condições de uma
enunciação coletiva que falta [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 37). São as
crianças – como povo que falta – que tocam, a partir de suas próprias línguas, de
seu modo de sentir, suas vivências, relativizando as sonoridades estabelecidas e
oficializadas. Por esse prisma, podemos considerar o(a)s aluno(a)s como atletas
sonoros, “[...] um atletismo que não é orgânico ou muscular, mas um atletismo
afetivo [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 204).
Dessa maneira, a busca é por trilhar as linhas moleculares, movimentando as pautas
escolares, o tempo e os ritmos, gerando maior alegria e expressividade no processo
educativo pianístico, no qual o corpo é territorializado e desterritorializado pelo som,
pelas diferentes afectos e perceptos que compõem cada música. O som, na obra
musical, segue em contínua territorialização-desterritorialização-reterritorialização –
como experienciamos na peça Danse, de Debussy.
Em se tratando da questão técnica, consideramos fundamental nos orientarmos pela
premissa de que o objetivo do fazer musical é tornar a matéria expressiva, tomando
as formas de expressão e de conteúdo como elementos amalgamados, como corpos
relacionados, e não separados, pois “[...] nunca uma obra de arte é feita por técnica
ou pela técnica [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 227), isto é, “[...] a arte não
comporta outro plano diferente do da composição estética: o plano técnico, com
efeito, é necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composição
estética” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 231). É o aluno como um todo, isto é,
com seus afetos, experiência de mundo, maneiras de tocar, com o corpo que ele
possui, que produzirá o som, a partir de suas experiências sensória e perceptiva, por
despertamento, para sua realização, e não como palavras de ordem.
Um dos fatores determinantes na aglutinação entre os planos de composição técnico
e estético é a maneira pela qual tocamos o instrumento musical, o toque ou touché.
Podemos criar inúmeras texturas e sugerir sensações e movimentos por meio de
195
diferentes toques: suaves, fortes, saltitantes, ligados etc., que seriam as inúmeras
pinceladas do pintor. Dessa maneira, manipulamos a matéria sonora imprimindo-lhe
aspectos diversos, sendo isso possível seguindo-se as orientações inscritas na
partitura, como verificamos nas peças de Debussy e Chopin. Os sinais p, pp, f, fff,
Szf, e os termos Apassionato, Allegro, Allegro ma non tropo, Adagio, cantábile e
smorzando15, entre outros, são todos indicações relativas à expressão musical e que
são realizadas por meio do toque. Portanto, a realização dos diferentes caráteres
das peças musicais precisa, necessariamente, estar relacionada à experiência do
executante-aprendiz.
Embalados em uma sonorofabulação, não nos movemos em função estrita do
cumprimento de programas, reprodução de esquemas ou alcance de metas. Mas, se
não temos metas a alcançar, o que temos? Temos desejo, vontade de potência...
Desejo de conversar com os afetos musicais, de confabular com eles e com o(a)s
aluno(a)s, criando atmosferas sonoras, tempos lisos e, às vezes, estriados, fá-
brincando blocos de afetos e sensações com os sons.
Uma sonorofabulação pode ser pensada, em parte, como um sistema entreaberto-
entrefechado, no qual a canção só ganha vida quando o instrumentista cria suas
sonoridades, quando algo brota de seus dedos, de sua voz, de sua mente, fazendo
surgir “[...] compostos bem mais livres e desenquadrados, quase agregados
incompletos, [...] em desequilíbrio permanente” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.
225).
Tais assertivas levam-nos ao encontro de uma aprendizagem que tem em seu bojo
possibilidade de emergência da subjetividade, cuja elaboração está intimamente
relacionada ao ato de criar, situando-se como condição fundamental que “[...]
responde pela criação do si [...]” (KASTRUP, 2001, p. 18). É por essa via que
podemos entender que a expressão musical inscreve sua interseção com o campo
da educação, abrindo uma linha de fazer sonoro que não é a repetição de modelos
nem mesmo uma petição de obediência ou palavra de ordem, mas que engendra a
formação de territórios a partir de expressividades elaboradas pelos sujeitos em sua
15
Alegro, Alegro ma non tropo, Adagio e Apassionato referem-se ao caráter dado pelo compositor à peça , enquanto cantábile (melodioso, como se fosse alguém cantando) e smorzando (morrendo, um som que vai diminuindo) sinalizam para técnicas das quais o executante lançará mão para alcançar o efeito por elas indicado. Por essa razão, aqui, esses termos aparecem com as iniciais minúsculas.
196
existência coletiva, compondo um plano de produção de subjetividades “[...] em um
encontro de diferenças, num plano de diferenciação mútua [...]” (KASTRUP, 2001,
p. 20).
Em um conjunto, o processo investigativo conduz ao entendimento de que as aulas
de piano na infância e na adolescência têm um duplo compromisso: com a
performance e com a educação musical. No que tange à performance, vemos a
necessária aproximação do aprendiz com os afetos das composições, incidindo no
seu envolvimento como um todo: corpo, ideias, sensações. No tocante à educação
musical, sobressai-se como necessária a revisão dos meios e dos fins, bem como de
sua articulação com as linhas de vida que estão sendo produzidas no
entrelaçamento dos processos educativos.
Atualmente, observamos uma acessibilidade de meios para se aprender a tocar um
instrumento, transformando essa atividade em uma simples associação bionívoca
entre um código e um clique em um comando ou um ícone que aparece nas telas
dos dispositivos eletrônicos. Os usuários da internet dispõem de diversos tutoriais
que, por palavras de ordem, designam a correspondência exata entre o clique e
determinada figura musical, não levando o aprendiz à experiência estética. Surge,
aqui, a necessidade urgente de revisão da aprendizagem pianística – considerada
em seu âmbito de ensino público e de atendimento a um número muito significativo
de alunos –, passando a afirmar sua potência de existir como lugar de construção do
conhecimento, lugar de educação musical cujos objetivos se delineiam como
desenvolvimento da capacidade expressiva dos afectos e perceptos que compõem
os universos musicais.
A esse respeito, é pertinente pontuar que a produção do conhecimento em uma
perspectiva inventiva – nos campos filosófico, científico ou artístico – afasta-se das
proposições que buscam a prova da Verdade. Nesse caso, produzir conhecimento
envolve uma concepção do ato de pensar: “[...] pensamento é criação, não vontade
de verdade, [...]. Mas, se não há vontade de verdade, [...] é que o pensamento
constitui uma simples „possibilidade‟ de pensar [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.
67). De maneira semelhante, Maturana (2014, p. 33) vê a produção do
conhecimento como um processo em que as percepções e as ilusões são separadas
por uma linha tênue, relativizando o sentido da verdade, e, nesse sentido, afirma
197
que, “[...] toda explicação é uma reformulação da experiência com elementos da
experiência [...]”. Esse ponto de vista aponta para um caminho no qual o
conhecimento não é propriedade de um determinado sujeito, colocando a verdade
entre-parênteses, para usar a expressão por ele cunhada: “[...] a verdade deixa de
ser um argumento que possa ser usado sem especificar suas condições de
constituição e validação, e o observador tem a possibilidade de abandonar a
pretensão de ser dono dela [sic] [...]” (MATURANA, 2014, p. 170).
Escola, portanto, é lugar de construção do conhecimento, demandando uma
aprendizagem inventiva capaz de mover a diferença no pensamento, levando
aprendizes e mestres musicais a pensar por afectos e perceptos e a refletir sobre
suas relações com as funções e os conceitos, pois o ato de fazer soar a música não
é uma operação mecânica: envolve um uso das emoções, das ideias, do corpo, dos
sentimentos, transversalizando o tempo, os conceitos e as relações.
Assim sendo, na experiência promovida na pesquisa relatada nesta tese, buscamos
escapar à redundância da aula padrão, repetida como palavra de ordem, indo ao
encontro de modalidades educativas que propiciassem ao(a)s aluno(a)s o contato
mais direto com a matéria sonora. Esse percurso pedagógico-musical levou-nos a
ensaiar diferentes interações com as coordenadas semióticas que delineiam os
territórios musicais, seus códigos e signos, independentemente da complexidade ou
simplicidade da composição. Disso subentende-se que onde houver uma criação
musical – composta até mesmo da repetição de uma mesma nota –, aí está um
campo semiótico.
Nesse sentido, essa interação com os signos musicais exigiu uma conexão maior
do(a)s aluno(a)s participantes da investigação para consigo mesmo(a)s, o que lhes
propiciou uma conjugação entre o instrumento musical, a matéria sonora e seus
corpos, desenvolvendo a escuta crítica interna e externa. Ou seja, aprenderam a ser
sensíveis aos signos e códigos que povoam os diferentes estilos musicais,
sensibilizando-se, portanto, às particularidades que caracterizam cada composição.
Todo(a)s o(a)s aluno(a)s, à sua maneira, criaram ressonâncias com as músicas
propostas nas partituras, envolvendo os sentidos corporais, suas ideias e emoções.
198
Assim, compusemos territórios expressivos, movendo-nos no fluxo do emocionar e
do linguajar, proporcionando interações recorrentes entre elementos constitutivos da
experiência, e não “[...] como se a experiência fosse a experiência de algo que é
independente de nós [...]” (MATURANA, 2014, p. 43). Desse modo, buscamos a
produção de conhecimentos como agenciamentos coletivos e maquínicos, pois “[...]
a cognição é uma maquinação autopoiética, isto é, um ato de criação de uma
máquina que constitui tanto o polo objetivo quanto o subjetivo do fenômeno cognitivo
[...]” (PASSOS; EIRADO, 2014, p. 121).
Esse plano de visão remete-nos a outro platô, a saber, o de que todo ato
investigativo ou educacional exige de nós a consciência do que queremos e de que
nos tornamos responsáveis por aquilo que fazemos e escolhemos: “assim, uma vez
que nossas emoções especificam o domínio relacional no qual instamos a cada
instante, é nosso emocionar – e não nossa razão – que define o curso do nosso
viver individual, bem como o curso de nossa história cultural” (MATURANA, 2014, p.
206, grifo do autor).
Tais processos de escolha, de interação, que envolvem os caminhos explicativos
(entre-parênteses), impregnaram-se de uma linguagem viva, encarnada, falada,
vibrada e sentida como explicação do viver, em uma rede de afectos e perceptos
constituídos no e com o mundo. Percebemo-nos, portanto, no domínio das
interações recorrentes, propiciando reformulações da experiência, com elementos
da experiência, vivenciadas na linguagem, deslizando pelo e no emocionar.
Ainda deixando-nos guiar por Maturana (1997), movemo-nos no mundo, nas
relações, a partir de uma dinâmica de emoções, de uma afecção a outra,
entendendo que as emoções marcam nossas interações, podendo estas ser
recorrentes ou não. Nesse sentido, podemos afirmar que o encontro do(a) aluno(a),
do(a) professor(a) e da música pode propiciar uma disposição que desencadeia
transformações, abrindo espaço para uma sucessão de interações recorrentes,
também denominadas por Maturana (1997) como coordenações de coordenações
consensuais de conduta:
todo afazer humano se dá [...] como um fluir de coordenações consensuais de conduta [...] com o fluir emocional [...]. Por isso, os diferentes afazeres humanos se distinguem tanto pelo domínio experiencial em que ocorrem as ações que os constituem quanto pelo fluir emocional que envolvem, e de
199
fato se dão na convivência como distintas redes de conversações (MATURANA, 1997, p. 175).
Por essa via, somos sujeitos em rede, operando como redes entrefechadas e
entreabertas de produções moleculares, em dinâmicas de estados e de estruturas
em constante reformulação. Como organismos vivos em movimentos congruentes
com o meio, deslizamos na vida, à deriva, no domínio das coordenações
consensuais de condutas de coordenações consensuais de condutas, nas quais se
dá constitui a linguagem. “[...] Essa circularidade, esse encadeamento entre ação e
experiência, essa inseparabilidade entre ser de uma maneira particular e como o
mundo nos parece ser, nos diz que todo ato de conhecer faz surgir um mundo”
(MATURANA; VARELA, 2001, p. 31-32, grifo dos autores).
Vemos, portanto, a música e a aula de música como uma forma de expressão do
pensamento-sentimento humano, pensamento como lugar de pensar a diferença, a
heterogênese, ou seja, “[...] se a diferença tende a repartir-se no diverso, de maneira
a desaparecer e a uniformizar este diverso que ela cria, ela deve primeiramente ser
sentida como aquilo que leva o diverso a ser sentido. E deve ser pensada como
aquilo que cria o diverso” (DELEUZE, 2006, p. 319), evitando escorregar na
mesmice da opinião, bom senso ou senso comum, ou na aderência ao caos.
Tal é a fabulação sonora transcodificada em universos-Debussy, Chopin, universo-
Guarani-Nhãdeva, Jobim, Lulu Santos, entre outros tantos, que somos levados a
considerar uma sonorofabulação como pensamento-sentimento musical como lugar
possível da criação do diverso, como tempo de criar e experienciar expressividades
em música. Não sabemos aonde esse conceito irá nos levar, mas certamente
caminharemos com ele. Um conceito é tal como um vetor que orienta o fluxo das
reflexões e ações. Dessa forma, se vemos a música a partir de um conceito, os
processos educativos a ela relacionados não podem ser diferentes, coadunam-se ao
conceito e nele surfam, lembrando que “[...] um conceito, assim como uma flor, ou
um inseto, tem seus ambientes e seus territórios. Toda uma etologia do conceito, por
meio da qual não se pode separar seus componentes do ambiente concreto em que
eles se depositam” (MARTIN, 2012a, segunda orelha).
Vemos, então, que a questão da música é da ordem de uma energia sônica
espalhada em todo o universo, como onda ou fluxos compondo uma “[...] linha de
200
fuga desvairada [...]” (DELEUZE, 2012b, p. 119), incidindo em um grupo de rock, em
uma rua do morro de Caratoíra (Vitória-ES), à beira de uma praia, em uma aldeia
indígena, entre cidadãos germânicos que tocam em uma orquestra, ou uma banda
de jazz. Essa energia sônica brinca com nossos corpos, com nossas ideias e
afetos, neles carimbando suas digitais.
Por esse veio, o conceito deleuziano de fabulação foi considerado um veículo
adequado para apoiar e fomentar o processo de investigação aqui relatado,
considerando que as reflexões sobre a arte nele contidas abrem o pensamento para
aquilo que entendo ser fundamental no fazer musical, ou seja, a capacidade da
matéria para tornar-se expressiva.
Isso traz implícita uma visão de ser humano que não é aquele que faz retornar o
Mesmo, na busca insólita de reproduzir o vivido tal como é, apenas, como se tudo
fosse uma eterna repetição idêntica, pois “[...] com efeito, repete-se eternamente,
mas [...] o eterno retorno não é o efeito do Idêntico sobre um mundo tornado
semelhante; não é uma ordem exterior imposta ao caos do mundo” (DELEUZE,
2006, p. 411). Dessa maneira, o tempo, a vida, não é uma ordenação linear e em
uma eterna repetição: “[...] como acreditar que [Nietzsche] concebeu o eterno
retorno como um ciclo [...]? Como acreditar que tenha caído na ideia insípida e falsa
de uma oposição entre um tempo circular e um tempo linear, um tempo antigo e um
tempo moderno?” (DELEUZE, 2006, p. 411).
Essa visão de ser humano comporta em si uma terceira via, para além de uma
subpotência – “[...] o pequeno homem passivo ou o último dos homens [...]”
(DELEUZE, 2006, p. 410) – e de uma superpotência – “[...] o grande homem ativo,
heroico, tornado o homem „que deve perecer‟ [...]” (DELEUZE, 2006, p. 410): há uma
potência que retorna e faz retornar o eterno retorno da diferença.
Que seja, então, o eterno retorno da diferença expresso em afectos e perceptos
transbordados na potência do ser humano como ser de criação, que aposta no
surgimento do Diferente, do Dissimilar, pois “[...] se o eterno retorno é um círculo [...]”
(DELEUZE, 2006, p. 92), tal concepção não é um procedimento mecânico. Assim, é
“[...] a Diferença que está no centro, estando o Mesmo somente na circunferência –
centro descentrado a cada instante, constantemente tortuoso, que gira apenas em
201
torno do desigual [...]” (DELEUZE, 2006, p. 92). Vemos que não é a música, em si, o
objeto, mas a própria dinâmica de criar e destruir ritornelos, girando na roda do
eterno retorno.
Tomamos, portanto, o conceito deleuziano de arte como a linguagem das sensações
(DELEUZE; GUATTARI, 2010), bem como o conceito de fabulação, formando um
plano de composição de ideias no qual uma aula é o tempo de “[...] fazer soar a
música [...]” (BORÉM, 2006, p. 46), tornando a matéria sonora expressiva
(DELEUZE; GUATTARI, 2010). A expressão, nesse sentido, é da ordem da
transcodificação de afecções e percepções em afectos e perceptos e, por isso, a
arte expressa.
Considerando que a música é uma forma de expressão presente em todas as
sociedades e tempos e, ainda, que sua historicidade está estreitamente vinculada
aos modos de ensinar e aprender, esperamos que este estudo possa contribuir para
uma educação musical mais afetiva e efetiva, desejando que as crianças passem a
se utilizar de suas próprias experiências sonoras, fazendo soar a música.
202
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos encontros e conversas com o(a)s aluno(a)s do Curso de Musicalização Infantil
da Faculdade de Música do Espírito Santo, emergiram questões fundamentais para
o entendimento do processo de elaboração da expressividade, formando um plano
implicacional, englobando aspectos teóricos, práticos, culturais, sociais e afetivos.
Dessa maneira, a partir da retomada ao objetivo geral da pesquisa relatada nesta
tese – a saber, delinear cartografias que emergem no desenvolvimento da
capacidade de expressão musical de crianças e adolescentes, aluno(a)s de piano
erudito, a partir da utilização de uma abordagem inventiva, participativa e
experiencial –, podemos verificar a sintonia do método cartográfico com o caráter
processual da investigação, possibilitando-nos acompanhar o delineamento gradual
das expressividades dos alunos, e especialmente as passagens que marcaram o
trânsito entre os territórios.
Com relação aos objetivos específicos, é fundamental frisar que o ato de identificar
as principais concepções concernentes à expressão musical pôs a mim, aprendiz-
cartógrafa, em contato com a mutabilidade que marca o pensamento e as
percepções humanas, sendo possível ver, tanto na filosofia quanto na ciência e na
arte, uma constante criação de novos conceitos, novas funções e novos afectos. No
caso da arte, vimos com clareza os processos de transformação nos modos de
sentir e perceber os fenômenos no e do mundo, alterando sistematicamente as
formas de conteúdo e de expressão. Em se tratando especificamente da arte dos
sons, observamos as mutações nos desejos dos músicos em relação às
sonoridades, propiciando a fabricação de diferentes instrumentos musicais,
apresentando novos timbres.
Em relação ao segundo objetivo, é possível afirmar que o conhecimento sobre as
características das formas educativas no âmbito da aprendizagem musical na
infância em diferentes períodos históricos constituiu-se como uma ferramenta
fundamental para entender os vínculos entre as configurações sociais e as práticas
pedagógicas, observando que a aprendizagem artística não escapa a essas
instâncias. Nesse sentido, verificamos que as diferentes propostas de educadores
musicais – tanto os da primeira quanto os da segunda geração – estabelecem-se
203
como bússolas fundamentais em relação às práticas pedagógicas em música,
resgatando os sentidos mais profundos da educação musical, bem como abrindo
linhas de fuga que a libertem das macroformas educacionais.
Dessa maneira, o terceiro objetivo específico da pesquisa, que se refere ao
planejamento e à realização das oficinas voltadas para a expressão na arte dos
sons, constituiu um espaço de articulação entre diferentes aspectos do estudo aqui
relatado: a questão de investigação, o referencial teórico, os aspectos históricos,
ideias e práticas que construí na minha vivência no campo da aprendizagem
pianística, bem como o não saber.
A articulação desses diversos aspectos levou-me a trilhar territórios de um jeito
diferente, caminhando com os fatos, com os alunos e os pensadores que balizaram
o desenvolvimento desta investigação. Assim que, em relação ao quarto e último
objetivo específico, considero que cartografar e analisar os processos inventivos nos
contextos de aprendizagem musical são ações que desencadearam diferentes
experiências e vivências relativas à performance pianística pautadas nos diálogos
produzidos com os alunos, nos quais ele(a)s demonstraram a capacidade de
elaborar a expressão musical na prática.
Estando em um momento posterior ao desenvolvimento desta pesquisa, como
aprendiz-cartógrafa, encontro-me em uma posição na qual se torna possível pinçar o
extrato do processo vivenciado e experimentado, observando as evidências que
emergiram como fundamentais no tocante àquilo que me dispus a investigar, a
saber, o processo de desenvolvimento da capacidade expressiva musical entre
crianças e adolescentes, envolvendo a educação e a arte dos sons. Retomando a
pergunta que impulsionou este trabalho – a saber, como uma aula de música pode
despertar e potencializar a capacidade expressiva musical de crianças e
adolescentes que frequentam as aulas de piano da Faculdade de Música do
Espírito Santo? –, trataremos, a seguir, das referidas evidências, conforme a ordem
de sua importância neste estudo.
a) Como ponto principal, destacamos a constatação de que o desenvolvimento
da capacidade da expressão musical entre crianças e adolescentes é um
processo complexo, constituído pelas concepções de aprendizagem e de
204
música, abarcando, consequentemente, as vivências, as experiências, os
saberes e as expectativas que aluno(a)s e professore(a)s trazem para seus
encontros. Esse processo complexo envolve, igualmente, os valores e as
concepções que, implicitamente, regem as práticas instituídas no contexto
investigado, incluindo-se aí não somente as formas educativas, mas também
os modos e os critérios de avaliação. Nessa perspectiva, vemos que a
aprendizagem da expressão musical não é imune às linhas de
segmentaridade enunciadas por Deleuze e Guattari, sendo, portanto, por elas
perpassada, moldando as relações entre professore(a)s e aluno(a)s, bem
como instalando rostidades e palavras de ordem que podem gerar
desdobramentos opostos no processo: um direcionamento que acata o(a)
aluno(a) em sua inteireza, ou, diferentemente, um posicionamento que o
classifica como talentoso ou sem talento; uma postura que percebe suas
capacidades e limitações ou uma visão que cria rótulos, identificando
aprendizes como capazes ou sem capacidade e, dessa forma, atesta quais
são o(a)s aluno(a)s que poderão fazer parte do seleto grupo de estudantes de
piano e quais não apresentam as características consideradas necessárias.
b) Toda criança e todo(a) adolescente é capaz de aprender. Tornou-se clara,
em nossa visão, que todos os aluno(a)s desenvolveram habilidades e
capacidades correlatas à expressão da arte dos sons, trilhando, cada um, seu
próprio processo, lidando com suas possibilidades, limitações, interesses,
curiosidades, bem como com o desejo de aprender sonoridades diferentes
daquelas que lhes são familiares. Assim, causaram surpresa os fatos de que
Franco teve como peça favorita um minueto de Bach, chorando diante da
composição – fato que o fez esquecer-se completamente de sua intenção de
desistir do curso; Sofia, que, com sua timidez, apresentou uma evolução
considerável em suas habilidades ao piano, tendo participado de nosso recital
demonstrando muita alegria e contentamento; Selena, com apenas 30 por
cento de visão, estudou as obras eruditas escolhidas, mostrando eficácia,
brilhantismo e – vale destacar – fluência na execução das obras de seu
repertório; Ângelo causou impacto ao estudar e tocar com desenvoltura o
repertório do nível VI, mesmo apresentando dislexia e déficit no aprendizado
(conforme informações de sua mãe, Patrícia). Vale destacar que, durante os
205
anos anteriores, o aluno permaneceu no estudo das peças de níveis pelos
quais já havia passado, estando como em um processo de estagnação; Aline,
que convive com o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade,
moveu-se entre os afectos e perceptos das obras de seu repertório, buscando
realizar sonoridades mais leves, indo ao encontro dos sons imaginados e
indicados na partitura por seus compositores; Leonardo, em sua singular
introspecção, percebeu que tinha predileção por músicas do repertório
popular, destacando Sounds of Silence, de Simon e Garfunkel; Lídia,
manifestando suas curiosidades acerca do funcionamento do piano e da
produção de sons; Ariana e Lucas, na capacidade de entendimento rápido
dos afectos musicais; Lucas, pela própria surpresa em relação às
possibilidades de o piano gerar diferentes sonoridades, timbres, alterando as
atmosferas e as ambiências de executantes e ouvintes.
Dessa maneira, como professora e pesquisadora, percebo afetos específicos
que povoam o universo de aluno(a)s que são crianças e adolescentes,
podendo citar alguns exemplos: os afetos circenses e góticos, enunciados
por Franco; os afetos do mistério, trazidos por Aline na música Bruxas e
fantasmas; os afetos do silêncio, de Leonardo; os afetos da alegria, expressos
por Selena.
Essa capacidade geral de aprender, do meu ponto de vista como
pesquisadora-aprendiz-cartógrafa, vincula-se diretamente à minha postura
diante deles, ou seja, à capacidade da qual me investi como professora para
me aproximar de seus mundos, de seus sentimentos e de seus
cotidianos. Registro, portanto, a importância de se ouvir o(a)s aluno(a)s,
conhecer suas experiências de vida, seus gostos musicais. É fundamental
querer saber do(a)s nosso(a)s aluno(a)s, construir com ele(a)s os saberes
que uma instituição pública de ensino de música como a Fames se propõe.
Vemos, ainda, que a aprendizagem pianística precisa modificar um
movimento: ao invés de somente o(a) aprendiz aproximar-se
apreensivamente de uma performance consagrada, o(a) professor(a) deve
aproximar-se dos modos de ser e de aprender de cada aprendiz, passando a
considerá-lo em seus avanços, não somente naquilo que lhe falta.
206
O objetivo de um curso de piano para crianças e adolescentes –
especialmente no âmbito da educação pública – é o desenvolvimento das
capacidades e habilidades musicais, não o alcance de determinado
desempenho, correspondente o mais próximo possível das sonoridades de
performances de pianistas consagrados. A predeterminação desse grau de
desempenho cria um abismo entre a aprendizagem pianística e a educação
musical, pois esta – conforme assegurado pelos principais educadores da arte
dos sons – visa, primordialmente, ao desencadeamento das capacidades de
expressão sonora do(a)s aprendizes, esperando justamente o surgimento das
singularidades que constituem cada indivíduo. Nesse sentido, a passagem
para o Curso de Formação Musical – no caso do Piano – significa um desvio
dos objetivos de aprendizagem, pois impõe ao Curso de Musicalização Infantil
uma meta que impede o processo da elaboração da expressividade da
criança e do adolescente.
c) A importância de aulas de piano individuais e também coletivas. Emergiu
no estudo aqui relatado a importância do desenvolvimento de atividades nas
quais o(a)s aluno(a)s se encontrem para trocar experiências e ouvir uns aos
outros. Nesse sentido, as oficinas proporcionaram momentos de conversas
sobre as músicas, o conhecimento dos diferentes processos de aprendizagem
vivenciados por cada aluno(a), levando-o(a)s a pensar e sentir a elaboração
das músicas de seus repertórios por diferentes ângulos. Paralelamente a
essas vantagens das aulas coletivas, verificamos como aspecto positivo a
formação de laços de amizade entre o(a)s estudantes, quebrando o
individualismo que marca o campo da performance pianística. Em relação às
aulas individuais, considero necessária sua manutenção –
concomitantemente às aulas coletivas –, visto que o piano erudito implica uma
dinâmica de escuta crítica do(a) aprendiz em suas singularidades,
independentemente do nível de estudo em que ele(a) se encontre.
d) A necessária diversificação dos tipos de aula. Nossas vivências e
experimentações em campo permitem afirmar que a aprendizagem
instrumental ao piano não se restringe exclusivamente a tocar, trazendo
evidências de que a implementação de diferentes contextos de aula e de
207
estratégias otimiza de maneira significativa a produção do conhecimento a
respeito dos meios de se criar determinadas sonoridades. Assim, as oficinas
de textura, do piano preparado de John Cage, do peso do corpo, do
funcionamento do piano, bem como das sessões de vídeos sobre estilos
musicais e pianistas mostraram-se como ferramentas essenciais para o
processo de aprendizagem, proporcionando o indispensável mergulho e
contágio com os signos e os códigos que constituem o campo pianístico.
Dessa maneira, é possibilitado ao(à)s aprendizes o contato direto com a
virtualidade no que diz respeito à diferença nas performances, passando,
assim, a se enxergarem como sujeitos capazes de criar sons e efeitos
relativos aos afectos e perceptos propostos nas obras.
e) A problemática da aprendizagem da expressividade musical, no âmbito
das aulas de piano, do meu ponto de vista e experiência, não reside no
repertório ou na extensão das peças que o integram, mas nas formas
educativas, no modo de se trabalhar com os alunos. Assim, nesta pesquisa,
verificamos que a potencialização da capacidade de expressão mostrou-se
intimamente relacionada à abordagem educacional inventiva, nos termos
estritos propostos pelos filósofos e educadores que fundamentam este
trabalho.
No que diz respeito aos limites que a pesquisa encerra em si mesma, seria
interessante o desenvolvimento de um maior número de oficinas – elas poderiam ter
sido propostas desde o início do ano letivo. Considero também minha própria
condição de aprendiz-cartógrafa como um aspecto limitante no processo, pois
passei um longo período aprendendo o que significava fazer uma pesquisa-
intervenção na perspectiva da cartografia deleuziana.
Em se tratando das possibilidades de estudos futuros, o desenvolvimento deste
trabalho permite sugerir a abertura para pesquisas relativas a outras estratégias de
aprendizagem pianística, diferentes daquelas que foram desenvolvidas no escopo
do processo desta investigação. De forma aliada às estratégias, é possível indicar a
realização de estudos com novas configurações de aulas e de oficinas, ampliando
as possibilidades de contato com os signos da música. No que diz respeito aos
repertórios no campo erudito, pode ser visualizado um estudo que trate de organizar
208
e registrar os aspectos interpretativos mais importantes dos estilos musicais,
oferecendo um guia didático para o professor. Relativamente à infância e
adolescência, é possível notarmos a necessidade de uma pesquisa que aborde de
maneira mais aprofundada as maneiras pelas quais os aprendizes sentem e
percebem a transitoriedade de expressão que constitui os territórios musicais em
determinadas obras, evidenciando a diferença no pensamento e no sentimento
musical nessa faixa etária.
No tocante às implicações que este trabalho investigativo aponta, é possível
destacarmos os seguintes tópicos:
a) são indispensáveis o estudo e o debate a respeito das concepções
educacionais, estabelecendo uma ponte entre a educação e a música,
fortalecendo os elos de sustentação da rede de produção do conhecimento,
em especial no âmbito da aprendizagem pianística;
b) a necessidade de se repensar o conceito de avaliação no curso de piano da
Fames, especialmente no que se refere ao processo seletivo para o Curso de
Formação Musical;
c) a importância de se promover a formação continuada dos professores que
atuam na área da aprendizagem pianística, tratando de temáticas situadas
não somente no campo da performance, mas especialmente na área da
educação musical;
d) a preparação e disponibilização de salas apropriadas para aulas coletivas,
nas quais possam ser desenvolvidas oficinas diversificadas, sessões de
vídeo, debates, conversas etc., seguindo-se a uma configuração diferenciada
no modo pelo qual o(a)s aluno(a)s e o(a)s professore(a)s se situam no
ambiente. Ou seja, um espaço no qual o(a)s aluno(a)s possam movimentar-se
em atividades corporais, ou sentar-se ao chão, compondo rodas de conversa.
Tratando de aspectos mais gerais, é importante destacar o conjunto de tarefas
realizadas pelo(a)s aluno(a)s, com agendas repletas de compromissos, bem como
os interesses musicais extra-Fames, as atividades extraescolares, o fato de não
possuírem piano para estudar – estudando em teclados –, bem como as
209
expectativas pedagógico-musicais institucionalmente prescritas, por exemplo, o
processo seletivo ao Curso de Formação Musical.
No que se refere à expressão musical propriamente dita, é importante sublinharmos
a ideia de que o termo expressão deve ser distinguido de evocação, entendendo-se
a ideia de que, quando “[...] uma peça musical expressa melancolia não quer dizer
que ela evoca (desperta) melancolia [...]” (SADIE; TYRRELL, 2001a, p. 466,
tradução minha). Assim, a elaboração da expressão em uma música não é uma
representação de estados de espírito, estabelecendo uma relação biunívoca entre
um som e um afeto. A elaboração da expressão em uma peça musical é, portanto,
um processo de criação povoado pelas afecções e percepções daqueles que tornam
suas forças audíveis.
Paralelamente a essa compreensão, é fundamental observarmos que,
diferentemente da produção do desenho infantil, no qual a criança cria formas e
texturas livremente a partir de materiais apropriados, a execução musical exige uma
elaboração minuciosa, tendo como ponto de partida uma obra criada por um
compositor, a qual será recriada pelo(a) aluno(a).
Assim, não é possível acreditar em fórmulas pedagógicas, mas entender que é
fundamental que o aluno faça a experiência dos afetos musicais, incluindo não
somente seus dedos, mãos e braços, mas seu corpo como um todo, no qual se
inclui sua mente. Nesse sentido, as estratégias de aprendizagem podem variar de
aluno(a) para aluno(a), ou conforme os contextos, tendo-se por objetivo propiciar a
experiência, o contágio com os signos, as sensações e afectos das diferentes obras
na arte dos sons.
Tomando o conjunto dos estudos empreendidos, é possível considerarmos as
tendências de pensamento e as linhas de pesquisa no âmbito da educação e da
música como agenciamentos, compondo o devir na criação humana, frutos da
virtualidade da existência. É assim que, como agenciamento, e paralelamente aos
estudos que apontam para a aprendizagem da performance como vinculados à
psicologia, de minha parte, aposto na fabulação deleuziana como vetor para se
pensar a aprendizagem musical, fazendo mover os conceitos, as funções e os
afectos.
210
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ANEXO – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Universidade Federal do Espírito Santo Curso de Pós-graduação em Educação – Mestrado e Doutorado Doutoranda – Raquel Ribeiro de Moraes Tema da tese: Aprendizagem inventiva musical: uma sonorofabulação Eu, .............................., RG ...................., órgão expedidor...................., autorizo a
participação de meu(inha) filho(a)...................................................... na pesquisa
intitulada Aprendizagem inventiva: uma sonorofabulação, realizada junto a
aluno(a)s de piano do Curso de Musicalização Infantil da Faculdade de Música do
Espírito Santo “Maurício de Oliveira”, integrando as atividades do curso de
doutorado em Educação do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo.
Outrossim, declaro para os devidos fins que autorizo o uso das imagens e
informações contidas nas filmagens e fotografias realizadas no processo de
pesquisa, transcorrido de fevereiro a dezembro de 2016, podendo as mesmas serem
utilizadas integralmente ou em partes, sem restrição de prazo, desde a presente
data, para fins exclusivos de publicação acadêmico-científica.
Assim sendo, subscrevo-me.
Vitória, ......... de .................. de 2016.
_______________________
Assinatura do pai, mãe ou responsável