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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO RAQUEL RIBEIRO DE MORAES APRENDIZAGEM INVENTIVA MUSICAL: UMA SONOROFABULAÇÃO VITÓRIA 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

RAQUEL RIBEIRO DE MORAES

APRENDIZAGEM INVENTIVA MUSICAL: UMA SONOROFABULAÇÃO

VITÓRIA 2017

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RAQUEL RIBEIRO DE MORAES

APRENDIZAGEM INVENTIVA MUSICAL: UMA SONOROFABULAÇÃO

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Educação, na linha de pesquisa Educação e Linguagens. Orientador: Prof. Dr. César Pereira Cola.

VITÓRIA

2017

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Setorial de Educação,

Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Moraes, Raquel Ribeiro de, 1961- M827a Aprendizagem inventiva musical : uma sonorofabulação /

Raquel Ribeiro de Moraes. – 2017.

221 f. : il. Orientador: César Pereira Cola. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do

Espírito Santo, Centro de Educação.

1. Adolescência. 2. Aprendizagem. 3. Criatividade. 4.

Infância. 5. Música – Estudo e ensino. I. Cola, César Pereira, 1956-. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.

CDU: 37

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Ao meu pai, Heráclito Rodrigues de Moraes (In memorian), com quem aprendi que a vida acontece nas relações, nas quais transitam diferentes pontos de vista sobre os fenômenos e os fatos.

À minha mãe, Wanda Ribeiro dos Santos, cuja sensibilidade artística influenciou minha visão sobre aprendizagem musical.

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Especialmente, às crianças e adolescentes aluno(a)s de piano do Curso de Musicalização Infantil da Faculdade de Música do Espírito Santo Maurício de Oliveira e às suas famílias, parceiro(a)s integrais na concretização deste trabalho.

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho só se tornou possível mediante o apoio, a confiança e o incentivo de diferentes pares que me acompanharam ao longo de sua execução, incentivando-me em diferentes situações, desde as mais adversas àquelas que correspondem à alegria das descobertas. É assim que agradeço:

− ao professor Dr. César Cola, por sua orientação competente, contribuindo de forma decisiva para a ampliação do meu olhar sobre as questões que constituem a aprendizagem no campo da arte;

− à professora Dra. Moema Lúcia Martins Rebouças, por integrar a banca de avaliação desta pesquisa;

− ao professor Dr. Hiran Pinel, pelas contribuições instigantes nos exames de qualificação I e II.

− à professora Dra. Sílvia Trugilho, por ter aceitado o convite para compor o processo avaliativo deste estudo;

− à professora Dra. Magali de Oliveira Kleber, pela disponibilidade de integrar a banca avaliadora desta pesquisa;

− à pianista e professora Célia Ottoni, por sua orientação musical em grande parte do percurso de meus estudos pianísticos, bem como por sua disponibilidade para diálogos concernentes à aprendizagem pianística no âmbito desta pesquisa;

− a Dalva Nickel e Marilene Loyola, respectivamente, coordenadora e secretária do Curso de Musicalização Infantil da Faculdade de Música do Espírito Santo Maurício de Oliveira, pelo apoio na condução dos trabalhos e disponibilização de dados;

− à professora Dra. Andressa Nathanaílides, por sua disponibilidade para a troca ideias, trazendo contribuições significativas para os conteúdos dissertados neste trabalho, enriquecendo o resultado final;

− à Joelma De Riz, revisora competente, que estabeleceu uma fina sintonia com a proposta deste estudo, trazendo perguntas indispensáveis ao esclarecimento das principais ideias nele contidas.

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Ninguém entra em um rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já serão outras.

Heráclito de Éfeso

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RESUMO

A expressividade musical no âmbito da aprendizagem pianística entre crianças e adolescentes tem se constituído, na atualidade, como temática de pesquisas, sinalizando para uma relação entre os processos de aprendizagem e a capacidade de expressão. Os trabalhos desenvolvidos por França (2000), Espiridião (2003), Borém (2006), Ray (2006), Gouveia (2010), Almeida (2014) e Gerling e Santos (2015) trataram da questão da expressividade musical, indicando a necessária investigação dos processos pedagógicos nela imbricados. Assim, restringindo-nos à aprendizagem pianística na infância e adolescência e tendo como referência o pensamento dos filósofos Deleuze e Guattari (2011), a investigação relatada nesta tese objetivou delinear cartografias que emergem no desenvolvimento da capacidade de expressão musical desse público, a partir da utilização de uma abordagem inventiva, participativa e experiencial. Para tanto, inicialmente, foram identificadas as principais concepções concernentes à expressão musical e caracterizadas as formas educativas no âmbito da aprendizagem da arte dos sons na infância em diferentes períodos históricos. O processo cartográfico foi realizado de fevereiro a dezembro de 2016, envolvendo 11 crianças e adolescentes (10 a 15 anos), aluno(a)s do Curso de Musicalização da Faculdade de Música do Espírito Santo (Fames) Maurício de Oliveira. A cartografia foi produzida a partir de um processo de intervenção composto por momentos individuais e coletivos. Nestes, foram realizadas oficinas com temáticas que se definiram ao longo do processo, a partir da observação das necessidades do(a)s aluno(a)s e sempre em negociação com ele(a)s. Desse modo, ocorreram cinco oficinas, nesta ordem: textura, modelagem de piano (piano preparado de John Cage), peso do corpo, funcionamento do piano, estilos musicais e pianistas. A produção de dados foi feita com gravação de imagens, observação e a partir dos diálogos mantidos durante os encontros. A análise foi realizada tendo-se como base os conceitos de fabulação e expressão dos filósofos mencionados, bem como com os conceitos de aprendizagem propostos por Deleuze (2003, 2006), Kastrup (2000, 2001, 2008), Maturana (1998) e Maturana e Varela (2001). Na cartografia resultante do processo de investigação, delinearam-se sete territórios. No conjunto, a investigação mostra que o desenvolvimento da capacidade expressiva no âmbito da música não se situa à margem das formas instituídas socialmente, sendo forjada no cruzamento das linhas e dos espaços que compõem as relações e as formas de pensamento, incluindo-se aí as concepções de expressão musical e aprendizagem, levando-nos à elaboração do conceito de sonorofabulação. Palavras-chave: Expressão. Piano. Infância e adolescência. Inventividade

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ABSTRACT

Musical expressivity in the field of piano learning among children and teenagers is currently a theme of research, indicating a relation between the processes of learning and the capacity of expression. Work carried out by França (2000), Espiridião (2003), Borém (2006), Ray (2006), Gouveia (2010), Almeida (2014) and Gerling and Santos (2015) dealt with the issue of musical expressivity, indicating the need to investigate the interwoven pedagogic processes. Therefore, restraining ourselves to the piano learning during childhood and adolescence and having as reference the thoughts of the philosophers Deleuze e Guattari (2011), the investigation reported in this thesis aimed to outline cartographies that emerge in the development of the capacity of musical expression of the referred public, from the use of an inventive, participative and experiential approach. For this purpose, initially, the main concerning conceptions were musical expression and educational forms in the field of learning of the art of sounds in childhood in different periods of history were identified. The cartographic process took place from February to December 2016, and involved 11 children and teenagers (from 10 to 15 years old), students from the course of musicalization from the College of Music of the state of Espírito Santo (Fames) Maurício de Oliveira. The cartography was produced by means of an intervention process composed in individual and collective moments. Thematic workshops were defined throughout the process, considering the needs of the students and always negotiating with them. In this manner, five workshops took place, in the following order: texture, piano modeling (piano prepared of John Cage), weight of the body, functioning of the piano, musical styles and pianists. The data production was done through the recording of images, observation and consideration the dialogs that took place during the meetings. The analysis was based on the concepts of fabulation and the expression of the mentioned philosophers, as well as the concepts of learning proposed by Deleuze (2003, 2006) Kastrup (2000, 2001, 2008), Maturana (1998) and Maturana and Varela (2001). In the cartography generated by the investigation process, seven territories were outlined. All together, the investigation shows that the development of the expressive ability in the musical field isn‟t different from what is established socially. It is forged in the intersections of the lines and spaces that compose the relations and the forms of thought, including the conceptions of musical expression and learning, leading us to the elaboration of the concept of soundfabulation.

Keywords: Expression. Piano. Childhood and adolescence. Inventivity.

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RESUMEN

La expresividad musical en el ámbito del aprendizaje pianístico entre niños y adolescentes se ha constituido, en la actualidad, como temática de estudio, señalando una relación entre los procesos de aprendizaje y la capacidad de expresión. Los trabajos desarrollados por França (2000), Espiridião (2003), Borém (2006), Gouveia (2010), Almeida (2014) y Gerling y Santos (2015) tratan la cuestión de la expresividad musical, indicando la necesaria investigación de los procesos pedagógicos en ella implicados. Así pués, acotando el aprendizaje pianístico en la infancia y adolescencia, y teniendo como referencia el pensamiento de los filósofos Deleuze y Guattari (2011), la investigación relatada en esta tesis tiene como objetivo delinear cartografías que emerjan del desarrollo de la capacidad de expresión musical de ese público, abordándola de una manera inventiva, participativa y experiencial. Por lo tanto, inicialmente fueron identificadas las principales concepciones referentes a la expresión musical y caracterizadas las formas educativas en el ámbito del aprendizaje del arte de los sonidos en la infancia en diferentes periodos históricos. El proceso cartográfico fue realizado de febrero a diciembre de 2016, envolviendo a 11 niños y adolescentes (de 10 a 15 años), alumnos/as del Curso de Musicalización de la Facultad de Música de Espíritu Santo (Fames) Mauricio de Oliveira. La cartografía fue producida a partir de un proceso de intervención compuesto por momentos individuales y colectivos. En ellos, fueron realizados talleres con temáticas que se fueron definiendo a lo largo del proceso, a partir de la observación de las necesidades de los/as alumnos/as, y siempre en negociación con ellos. De ese modo, tuvieron lugar 5 talleres en el siguiente orden: Textura; Modelado de piano (piano preparado de John Cage); Peso del cuerpo; Funcionamiento del piano; Estilos musicales y pianistas. La producción de los datos fue realizada con grabación de imágenes, observación y también a partir de los diálogos mantenidos durante los encuentros. El análisis fue realizado teniendo como base los conceptos de Fabulación y Expresión de los filósofos mencionados, a la vez que con los conceptos de aprendizaje propuestos por Deleuze (2003 y 2006), Kastrup (2000, 2001 y 2008), Maturana (1998) y Maturana y Varela (1998). En la cartografía resultante del proceso de investigación se delinearon 7 territorios. En conjunto, la investigación muestra que el desarrollo de la capacidad expresiva en el ámbito de la música no se situa al margen de las formas constituidas socialmente, siendo forjada ésta al cruzar las líneas y los espacios que componen las relaciones y las formas de pensamiento, incluyéndose las concepciones de expresión musical y aprendizaje, y llevándonos a la creación del concepto de sonorofabulación.

Palabras clave: Expresión. Piano. Infancia y adolescencia. Inventividad.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - O mestre da música, obra de Fletcher Charles Ransom .......................... 18

Figura 2 - Escrita por neumas ................................................................................... 22

Figura 3 - Jovem tocando clavicórdio, pintura de Jan van Hamessen (1534) ........... 55

Figura 4 - O concerto, óleo sobre tela de Gerrit van Honthorst (1624) ...................... 55

Figura 5 - Mulher sentada ao virginal, óleo sobre tela de Vermeer (1675) ................ 60

Figura 6 - Piano de Bartolomeo Christofori (1720) .................................................... 63

Figura 7 - Piano no século XIX .................................................................................. 70

Figura 8 - Piano no século XX ................................................................................... 80

Figura 9 - Sarau, o reencontro, óleo sobre tela retratando a participação musical das crianças ..................................................................................................................... 94

Figura 10 - Serenata, óleo sobre tela, Portinari (1925) ............................................. 96

Figura 11 - Modelo de Russel ................................................................................. 101

Figura 12 - Acorde de ré menor seguido de alteração de uma nota, que modifica seu afeto - canção Dear hearts and gentle people, de Sammy Fain e Bob Hilliard (1949)106

Figura 13 - Início da composição Danse, de Claude Debussy (1890) ..................... 110

Figura 14 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890) .................. 111

Figura 15 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890) .................. 112

Fonte: partitura avulsa usada na Fames ................................................................. 112

Figura 16 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890) .................. 113

Figura 17 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890) .................. 114

Figura 18 - Trecho do Estudo Op. 25 nº, de Chopin ............................................... 119

Figura 19 - Trecho do Estudo Op. 25 nº, de Fréderic Chopin (1837) ...................... 120

Figuras 20 e 21 - Glenn Gould, que criou maneira própria de tocar piano, rompendo o modelo instituído .................................................................................................. 124

Figura 22 - Karla, em período de leituras e estudos iniciais (março, 2016) ............. 146

Figuras 23 e 24 - Anderson e Júlia, em período de leituras e estudos iniciais (março, 2016) ....................................................................................................................... 146

Figura 25 - Aluno(a)s do segundo grupo e eu na oficina de texturas (setembro, 2016) ....................................................................................................................... 151

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Figura 26 - Leonardo (esquerda) observa Ângelo experienciar o algodão na oficina de texturas para o primeiro grupo (setembro, 2016) ............................................... 151

Figura 27 - Júlia, experienciando o algodão na oficina de texturas para o primeiro grupo (setembro, 2016) .......................................................................................... 152

Figura 28 - Lídia (esquerda), sendo observada por Karla ao experienciar a textura de um coral marinho na oficina de texturas para o segundo grupo (setembro, 2016).. 153

Figura 29 - Ariana, explanando sobre aspectos das peças A bela e a fera e Burlesque ................................................................................................................ 155

Figura 30 - Lídia, explorando as diferenças nos efeitos sonoros das cordas do piano157

Figura 31 - Ângelo, estudando detalhes de um minueto de Bach ........................... 158

Figura 32 - Sofia, durante estudo ............................................................................ 159

Figura 33 - Alunos durante a oficina de modelagem do piano com diferentes materiais .................................................................................................................. 161

Figura 34 - Rodeado pelos colegas, Anderson, ao piano, experiência as sonoridades inusitadas do piano modelado. ................................................................................ 162

Figura 35 - Selena, apreciando a movimentação dos martelos ao tocar um minueto de Bach ................................................................................................................... 165

Figura 36 - Karla, explicando sobre o caráter marcial de uma música de seu repertório ................................................................................................................. 166

Figura 37 - Aline, mostrando como faziam “seus” fantasmas na peça Bruxas e fantasmas ................................................................................................................ 167

Figura 38 - Em sentido horário, Selena, Ângelo, Júlia e eu nas atividades da oficina do peso do corpo ..................................................................................................... 170

Figura 39 - Em sentido anti-horário, Selena, eu, Júlia, Leonardo e Ângelo, na roda de conversa sobre as atividades da oficina do peso do corpo ..................................... 171

Figura 40 - Aluna Nina observa o afinador Lucas Velasque (ao piano) discorrer para o(a)s participantes desta pesquisa sobre os efeitos do uso do pedal durante a oficina de funcionamento do piano ..................................................................................... 174

Figura 41 - Alunas visualizam a parte interna do piano na sala usada para conserto dos pianos da Fames, acompanhadas pelo afinador Lucas Velasque .................... 175

Figura 42 - Da esquerda para a direita, Karla, Nina, Lídia, Ariana, Franco, Anderson e Lucas observam atentamente o pianista Vladimir Horowitz durante exibição de vídeo ....................................................................................................................... 176

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 14

1.1 CONTEXTO ........................................................................................................ 14

1.2 QUESTÃO DE INVESTIGAÇÃO ......................................................................... 24

1.3.1 Objetivo geral ................................................................................................... 25

1.3.2 Objetivos específicos........................................................................................ 25

1.4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ............................................................ 25

1.4.1 Cartografia deleuziana ..................................................................................... 25

1.4.2 Sobre o território de pesquisa .......................................................................... 29

1.4.3 Participantes da pesquisa ................................................................................ 33

1.5 REFERENCIAL TEÓRICO .................................................................................. 38

1.6 ESTRUTURA DO TRABALHO ............................................................................ 41

2 EXPRESSÃO E APRENDIZAGEM MUSICAIS EM DIFERENTES TEMPOS E ESPAÇOS ................................................................................................................. 42

2.1 CONCEPÇÕES, SONORIDADES E EDUCAÇÃO MUSICAL ............................. 42

2.1.1 Roma antiga ..................................................................................................... 46

2.1.2 Idade Média ...................................................................................................... 51

2.1.3 Renascença ..................................................................................................... 53

2.1.4 Períodos barroco e clássico ............................................................................. 59

2.1.5 Romantismo ..................................................................................................... 68

3 EXPRESSÃO MUSICAL NO BRASIL ................................................................... 84

3.1 SÉCULOS XVI E XVII ......................................................................................... 84

3.2 SÉCULO XVIII ..................................................................................................... 89

3.3 SÉCULO XIX ....................................................................................................... 92

3.4 SÉCULOS XX E ATUALIDADE ........................................................................... 95

4 EXPRESSÃO MUSICAL: UMA SONOROFABULAÇÃO .................................... 104

4.1 EXPRESSÃO EM DELEUZE E GUATTARI ...................................................... 104

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4.1.1 Formação de territórios na música: um exemplo a partir da composição Danse,

de Claude Debussy ................................................................................................. 109

4.2 FABULAÇÃO EM DELEUZE E GUATTARI ...................................................... 115

4.2.1 Fabulação e suas áreas de vizinhança .......................................................... 125

4.3 SOBRE O ENTENDIMENTO DE ARTE EM DELEUZE E GUATTARI .............. 128

4.4 RELAÇÕES ENTRE FABULAÇÃO E A APRENDIZAGEM EM DELEUZE E

GUATTARI, KASTRUP E MATURANA ................................................................... 132

5 DIÁLOGOS E VIVÊNCIAS COMO POSSIBILIDADES NO FAZER MUSICAL ENTRE CRIANÇAS E ADOLESCENTES............................................................... 143

5.1 PRIMEIRO TERRITÓRIO (FEVEREIRO-MAIO/2016) ...................................... 145

5.2 FORMANDO-SE UM SEGUNDO TERRITÓRIO (MAIO-AGOSTO/2016) ......... 147

5.3 CONSTITUINDO UM TERCEIRO TERRITÓRIO (05 E 12 DE SETEMBRO/2016)

................................................................................................................................ 150

5.3.1 Oficina de texturas ......................................................................................... 150

5.4 QUARTO TERRITÓRIO (13 A 25 DE SETEMBRO/2016) ................................ 154

5.5 QUINTO TERRITÓRIO (QUARTA SEMANA DE OUTUBRO/2016) ................. 159

5.5.1 Oficina de modelagens no piano .................................................................... 159

5.6 SEXTO TERRITÓRIO (INÍCIO DE NOVEMBRO-2016) .................................... 164

5.6.1 Oficina de peso do corpo ................................................................................ 169

5.7 SÉTIMO TERRITÓRIO: COMPONDO NOVAS ROTAS (15 DE NOVEMBRO A

10 DE DEZEMBRO/2016) ....................................................................................... 172

5.7.1 Oficina de funcionamento do piano ................................................................ 172

5.7.2 Oficina de estilos musicais e pianistas ........................................................... 175

5.8 ANÁLISE GERAL .............................................................................................. 177

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 202

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 210

ANEXO – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO .................. 220

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1 INTRODUÇÃO

1.1 CONTEXTO

A problemática da expressividade no campo da aprendizagem da performance

instrumental na infância e adolescência vem sendo tratada por diferentes

pesquisadores no âmbito da música, vinculando os estudos às áreas da linguagem

ou da psicologia.

Tratando diretamente das principais tendências de pensamento relativas à

expressão musical do século XX, identificamos a teoria de Swanwick (2003) –

vinculada à linguagem - investindo na ideia de música como um processo

metafórico. Apoiando-se em estudos realizados por Mac Cormac, Ortony, Sacks,

Wheelwright e Roger Scruton, Swanwick (2003) sugeriu que todas as práticas

musicais, bem como os elementos que compõem uma obra, tais como as notas, os

timbres e ritmos, são maneiras de expressar ideias e sentimentos por substituição de

elementos da linguagem, levando-nos a ver que

esses materiais sonoros devem ser presumidos dentro de um novo enfoque. Podemos ter de esquecer o que sabemos sobre „dó‟ e „sol‟, para poder dar o salto metafórico, para ouvir uma série prévia de nomes de notas como uma forma expressiva. [...] Embora as melodias sejam feitas de notas, uma atenção exclusiva às notas nos afasta das melodias (SWANWICK, 2003, p. 62)

Esse musicólogo apresentou não somente uma concepção de música, mas um

arcabouço teórico no qual a obra musical é entendida como um processo metafórico,

que ocorre em níveis, em uma espiral. Assim, a teoria espiral por ele elaborada é

composta de três níveis metafóricos, a saber: o primeiro nível, “[...] quando

escutamos „notas‟ como se fossem melodias, soando como formas expressivas [...]”;

o segundo nível, “[...] quando escutamos essas formas expressivas assumirem

novas relações [...]”; o terceiro, “[...] quando essas formas parecem fundir-se com

nossas experiências prévias [...]” (SWANWICK, 2003, p. 28).

No que se refere aos trabalhos que vinculam a expressividade musical ao campo da

psicologia, destacam-se as propostas de Juslin (1997, 2003), que se situa como

principal linha de reflexão na atualidade, principalmente entre professores-

pesquisadores brasileiros ligados à performance instrumental.

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Os trabalhos investigativos de Juslin (1997) partem do princípio de que performance

musical é uma ato comunicativo, implicando uma correlação probabilística entre as

intenções do instrumentista e as decodificações do ouvinte. Suas pesquisas

concentram-se no campo da psicologia, baseando-se na teoria funcionalista de

Brunswick (1903-1955), cujo modelo de lente procura selecionar e categorizar as

sensações e emoções conforme sua validade no contexto de audição. Apoiado

nessa ideia, Juslin desenvolveu suas pesquisas aplicando, de maneira sistemática, a

perspectiva funcionalista ao estudo da comunicação emocional na performance

musical, buscando evidenciar a existência de uma correlação probabilística entre as

emoções intencionadas por um instrumentista e o ouvinte, concluindo que

[...] (a) as intenções expressivas de instrumentistas afetaram todas as categorias de medida das performances, (b) que as categorias tinham apenas uma relação probabilística para as intenções do instrumentista, e (c) que as categorias apresentaram correlação. As performances foram igualmente validadas em uma audição experimental, a qual mostrou que os ouvintes foram bem-sucedidos na decodificação das intenções da expressão emocional e que não houve diferenças na decodificação acurada entre ouvintes musicalmente treinados e não-treinados [sic] (JUSLIN, 1997, p. 1, tradução minha).

No Brasil, a questão da expressão musical vem sendo investigada por

pesquisadores tais como França (2000), Borém (2006), Ray (2006), Gerling e

Santos (2015), defendendo que o cerne da problemática incide nas questões

educativas, ou mais precisamente, no modelo de aula que não propicia o seu

desenvolvimento.

O trabalho de França (2000), que comparou, a partir de gravações, crianças tocando

suas próprias composições e tocando peças do repertório escolar. Essa

investigação evidenciou diferenças importantes na capacidade de expressão de uma

mesma criança nas duas situações: na execução de suas próprias composições, as

crianças revelaram capacidade técnica para produzir as sonoridades desejadas, pois

estavam “[...] expressando seu próprio pensamento musical, com suas formas,

expressividade e significado [...]” (FRANÇA, 2000, p. 53).

Essa pesquisadora ressaltou que, na atividade de compor, os alunos “[...] têm a

oportunidade de „falar‟ por eles mesmos” (FRANÇA, 2000, p. 53); já no caso da

execução da peça do repertório, para a qual os alunos tiveram seis meses para se

preparar, ela verificou que “[...] os gestos cadenciais, muitas vezes revelados em

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suas composições, desapareciam por completo nas suas performances” (FRANÇA,

2000, p. 57). A conclusão de sua investigação sugere que o uso da técnica musical

está sempre associado ao “[...] propósito imediato de expressar uma ideia ou efeito

desejado [...]” (FRANÇA, 2000, p. 57). Essa pesquisadora tratou, ainda, da questão

das performances desprovidas de sentido estético, explanando que

todo o prazer e a realização estética da experiência musical [são] [...] facilmente substituídos por uma performance mecânica, comprometendo o desenvolvimento musical dos alunos. Não raro, sua performance resulta sem um sentido musical, sem caracterização estilística, sem refinamento expressivo e/ou coerência. Só é possível a um indivíduo tomar decisões expressivas dentro de uma gama de exigências técnicas que ele possa controlar (FRANÇA, 2000, p. 59).

Guiando-se também por tal linha de pensamento, Borém (2006) desenvolveu

estudos vinculando a problemática da aprendizagem da performance aos processos

educativos, indicando a necessária documentação das reflexões e experiências dos

professores no ato de fazer e ensinar música, principalmente no que diz respeito a

métodos que propiciem aos alunos o fazer musical como fazer artístico,

[...] para que o trabalho envolvido no processo de ensinar um instrumento nos seus diversos níveis – leitura, obediência e desobediência à partitura, decisões técnico-interpretativas, gestual e interação com o público – não se perca na efemeridade dos concertos ou na frágil transmissão oral de conhecimentos das salas de aula [...] (BORÉM, 2006, p. 46).

Ray (2006, p. 40) corrobora tal pensamento, assinalando a necessidade de novos

fundamentos para nortear o trabalho do professor de música, ressaltando que “[...] a

transmissão do conhecimento precisa de ferramentas teóricas e práticas para que o

aprendizado seja estimulado”. A respeito dessa questão, Gerling e Santos (2015)

trazem a seguinte explanação:

o ensino da música instrumental tem sido visto e praticado de maneira tediosa, desligada de emoção, afeto, criatividade ou qualquer sentimento de apreciação musical, salvo a questão da precisão e da realização escorreita. A busca pela perfeição técnica, diga-se, mecânica, se entendida como fim maior, pode, de fato, coibir a expressão de sentimento, afeto ou emoção (GERLING; SANTOS, 2015, p. 38).

Situando minha1 atuação profissional como professora-pesquisadora de piano para

crianças e adolescentes alunos do curso de piano do Curso de Musicalização Infantil

1 Tenho ciência de que minha atuação no mundo é perpassada pela participação de muitos atores

com os quais tive e tenho a oportunidade de conviver. Se sou, sou com o outro. No entanto, nesta tese, optei por usar uma mescla de conjugações verbais: a primeira pessoa do singular é usada

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da Faculdade de Música do Espírito Santo (Fames) Maurício de Oliveira, compartilho

do olhar e da percepção dos pesquisadores brasileiros aqui mencionados, o que me

conduziu, de maneira decisiva, à produção de um processo investigativo que

propiciasse a problematização expressividade musical no âmbito da infância e

adolescência, buscando estudar os vínculos entre as formas educativas e o

desenvolvimento da capacidade de expressão.

Buscando, portanto, aprofundamento a respeito de tais vínculos, podemos verificar

que as aulas de piano, de um modo geral, têm seguido um esquema fixo, invariável,

sendo uma redundância de um modelo surgido no século XIX, que consiste no

seguinte enquadramento: o(a) aluno(a) senta-se ao piano e o(a) professor(a), em

uma cadeira, ao seu lado, ouvindo-o e fazendo comentários, bem como sugerindo

maneiras de tocar e realizar os elementos constitutivos de uma determinada

partitura. Há um baixo índice de interação e poucos movimentos, chegando o(a)

professor(a) a aproximar-se pouco do(a) aluno(a) e do instrumento.

Fernandes (2015) questionou esse formato de aula, caracterizando-o como um

modelo instituído no século XIX, baseado no paradigma musical europeu:

o modelo de educação e o repertório europeu privilegiavam as músicas dos séculos XVIII e XIX, mantendo as seguintes características: a) aulas de piano individuais; b) a técnica muito valorizada com vistas ao virtuosismo; c) os alunos mais talentosos e melhor desempenho eram premiados recebendo mais atenção e pensões para estudarem na Europa (FERNANDES, 2015, p. 20).

As características que constituem esse modelo de aula são igualmente observadas

por Jardim (2009), que concorda que nosso sistema de ensino musical é uma

reprodução do sistema europeu, pois os professores de música erudita brasileiros

tiveram sua formação profissional elaborada na Europa, o que os levou a se

impregnarem das formas educativas e musicais desse contexto. Dessa maneira,

houve uma transposição daquele modelo para o Brasil, trazendo para cá “[...] os

mesmos valores que regiam seu ensino: o virtuosismo, a extrema precisão e

fidelidade na execução, a supremacia da questão técnica – características que

marcaram a cultura musical erudita e seu ensino no Brasil” (JARDIM, 2009, p. 21).

quando as ações foram vivenciadas por mim, professora-pesquisadora-aprendiz-cartógrafa; a primeira pessoa do plural, por sua vez, é usada quando eu e o(a)s aluno(a)s, juntos, vivenciamos as ações. Esta conjugação também foi usada para situações em que o leitor pode executar determinadas ações comigo.

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Figura 1 - O mestre da música, obra de Fletcher Charles Ransom

Fonte: Ludwig (2013)

Retomando os estudos de Fernandes (2015, p 21), verificamos que a autora retrata

o formato de aula como aquele em que “[...] o professor transmite os conteúdos e

cabe ao aluno recebê-los”, tendo como objetivo desenvolver a alta performance

instrumental.

Embora esse enquadramento de aula persista no Brasil (FERNANDES, 2015;

JARDIM, 2009), detectamos, na década de 1930, estudos relativos ao ensino

pianístico para crianças e adolescentes que buscaram reconfigurar o modelo

novecentista, aproximando sua pedagogia às características da faixa etária em

questão. Essas transformações ocorreram em consonância com o movimento

educacional escolanovista no Brasil, que influenciou o pensamento de professores

de música, inspirando-os na elaboração de novas abordagens para o processo de

ensino-aprendizagem no âmbito da infância e adolescência. Assim, pedagogos

musicais inauguraram o campo da educação musical, passando a enfatizar a

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necessidade da vivência e a prioridade em se trabalhar a expressão musical,

entendendo a técnica como um de seus desdobramentos.

Assim sendo, no ano de 1937, identificamos o trabalho da educadora e musicista

Liddy Chiafarelli Mignone, que, com o músico Sá Pereira, criou, no Conservatório

Brasileiro de Música, no Rio de Janeiro, um curso de iniciação musical destinado a

crianças. Conforme descrito em Paz (2000, p. 63), o trabalho dessa professora

baseava-se na ideia de que os conhecimentos musicais na infância deveriam ser

adquiridos na recreação, pela intuição e ação, destacando que “[...] a criança brinca

impulsionada por uma necessidade tão primordial como a do alimento. [...] O

brinquedo musical liberta e afirma”. A musicalidade era inicialmente desenvolvida em

aulas coletivas, nas quais os ritmos eram trabalhados por meio de jogos, do canto e

de movimentos corporais, sendo encaminhados, posteriormente, para as aulas

individuais de instrumento.

Passando à década de 1940, podemos lembrar o trabalho desenvolvido pela

musicista e educadora Anita Guarnieri, no Estado de São Paulo. Constatamos em

Paz (2000) que sua atuação baseava-se na Escola Ativa, não tendo por objetivo a

formação de grandes musicistas. Suas aulas refletiam a influência da perspectiva

educacional de Jacques Dalcroze, baseando-se não somente na prática

instrumental, mas igualmente em atividades lúdicas, por meio de “[...] histórias e

projeções” (PAZ, 2000, p. 72).

Os posicionamentos desta professora apresentavam semelhanças com as

concepções de Liddy Chiafarelli, enfatizando o ponto de vista de que a educação

musical “[...] começava antes do estudo do instrumento, e começar a aprender um

instrumento sem antes estar musicalizado era como enveredar por um caminho

errado de saída” (PAZ, 2000, p. 71). Também em consonância com o ponto de vista

de Chiafarelli, Anita Guarnieri afirmava que a música não era um luxo, mas uma

necessidade natural do ser humano (PAZ, 2000).

Na esteira dessas modificações conceituais sobre o fazer musical, constatamos o

trabalho pedagógico-musical desenvolvido por Maria de Lurdes Junqueira

Gonçalves, na década de 1970, cuja proposta era desenvolver a educação musical

por meio do teclado. Conforme Paz (2000), o método por ela elaborado previa aulas

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individuais ou em grupo, assegurando o elemento lúdico no processo de

aprendizagem. Assim, sua proposta metodológica utilizava-se das diferenças entre

as teclas brancas e pretas que formam o teclado do piano, incentivando os alunos a

brincar com os movimentos de tocar nas direções ascendente e descendente, ora

seguindo as teclas pretas, ora, as brancas, servindo-se de uma notação não

convencional. A essas sequências de sons ascendentes ou descendentes era

também associado um modelo rítmico, permitindo aos alunos criar músicas, inclusive

com a inserção de letras.

Também na década de 1970, outra proposta para o ensino de piano pode ser

observada com Carmem Mettig Rocha, a qual baseou seu trabalho no método

Willems, adaptando-o à realidade musical brasileira. Seu método envolvia exercícios

“[...] para despertar a consciência rítmica métrica, [...] audição rítmica interior e

improvisação melódica” (PAZ, 2000, p. 252).

Os trabalhos desenvolvidos por Maria de Lurdes Junqueira influenciaram de maneira

decisiva na criação de metodologias de piano em grupo nas instituições de ensino

de música no Brasil, sendo essa metodologia aplicada tanto para adultos quanto

para crianças. Brandão (1999) focaliza seu trabalho com crianças de quatro a seis

anos de idade, tendo como objetivo aulas coletivas de piano, buscando o

desenvolvimento da expressividade por meio da criação e a experimentação do

teclado. De modo semelhante a Brandão (1999), Harder Ducatti (2005) advogou a

favor de aulas de piano como meio musicalizador para crianças, apoiando-se em

atividades de composição musical.

Entre as dissertações e teses desenvolvidas no âmbito da pedagogia do piano,

identificamos aquelas que apresentam maior proximidade com a investigação aqui

relatada, que são os trabalhos de Gouveia (2010) e Almeida (2014), sinalizando para

os processos criativos na aprendizagem pianística entre crianças. Gouveia (2010)

propôs a utilização do método criado pelo compositor húngaro Gÿorky Kurtág

(1926-), cujas composições funcionam como ferramenta para propiciar a ludicidade

e o envolvimento do corpo. Almeida (2014), por sua vez, defendeu as atividades de

composição e improvisação de músicas pelas crianças na aprendizagem pianística.

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Em um conjunto, observamos nas referidas pesquisas uma tendência à utilização do

piano como elemento musicalizador, adotando como estratégia o desenvolvimento

da criação musical, não seguindo a trajetória de se desenvolver a capacidade de

expressão das particularidades inscritas nas partituras que compõem os repertórios

dos cursos de piano no âmbito da educação musical.

No que concerne especificamente à expressão musical, verificamos que ela vem

sendo abordada sob diferentes ângulos nos diversos contextos sociais e

geográficos, englobando tanto as reflexões sobre o fazer musical quanto as

maneiras de executar as obras elaboradas pelos compositores. Assim sendo, o

ponto de partida desta investigação é a noção de que a expressão na arte dos sons

é dotada de uma historicidade, comportando significações diversas em cada

grupamento humano.

No entanto, para além dessa diversidade de significações, é consenso entre

pesquisadores o fato de que “[...] em todas as épocas estabeleceu-se alguma

relação entre a música e as paixões [...]” (SADIE; TYRRELL, 2001a, p. 466,

tradução minha). Dessa maneira, é possível observar transformações relativas à

notação musical no percurso da história, permitindo “[...] apreender as

características que os músicos esforçaram-se por privilegiar no mundo sonoro,

considerando-se as mutações do pensamento estético” (BOSSEUR, 1997, p. 99).

Na atualidade, a palavra expressão, no âmbito da música, comporta duas diferentes

significações: a primeira, vinculada à indicação de variações de dinâmica, timbre,

ênfases, alterações rítmicas, de andamento etc., formando as microestruturas de

uma performance (JUSLIN, 2003); a segunda, relacionando-se com os aspectos

emocionais da obra, que também são percebidos pelos ouvintes, que, nesse caso,

têm acesso à expressão da emoção.

Em se tratando da primeira significação, verificamos em Sadie e Tyrrell (2001a) que

as variações de ritmo, dinâmica, ênfases etc. são partes integrantes de toda

composição. A indicação precisa do desejo do compositor, porém, é uma

característica da música dos séculos XVIII em diante, especialmente dos séculos

XIX e XX. Na Idade Média, por exemplo, as sonoridades desejadas eram indicadas

por determinados sinais, denominados neumas, que não traduziam um som definido,

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mas as relações entre sons mais agudos e mais graves, compondo um sistema mais

próximo à ideia de “[...] um lembrete, que supõe o conhecimento prévio da melodia

sugerida [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 206).

Esse tipo de representação do que se deseja expressar é própria do século IX, cujos

sinais têm origem na acentuação da linguagem verbal: “[...] acento agudo (elevação

da voz), acento grave (abaixamento da voz), acentos circunflexo e anticircunflexo

(dupla inflexão). [...] virga, indicando um som mais agudo que o precedente, e o

punctum, indicando um som mais grave” (CANDÉ, 2001a, p. 206).

Diferentes maneiras de se registrar os sons foram criadas ao longo dos séculos IX,

X e XI, sendo produzida uma unificação da escrita dos neumas no fim do século XII,

com o “[...] emprego da pena de ganso de bico largo, [...] fazendo os neumas

assumirem o aspecto característico da „notação quadrada‟” (CANDÉ, 2001a, p. 208).

Figura 2 - Escrita por neumas

Fonte: Candé (2001a)

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Nos períodos renascentista e barroco, já com a notação atual, as composições não

traziam referências sobre a maneira de executar a obra, tendo apenas a notação

das notas e dos ritmos. Os primeiros registros relativos aos afetos musicais

intencionados pelos compositores e indicados na partitura podem ser encontrados a

partir dos séculos XVII e XVIII nas produções dos integrantes da Escola Florentina,

objetivando minimizar abusos de ornamentação sonora praticados por intérpretes,

abusos esses que traziam prejuízos à compreensão do texto musical. Com tal

estratégia, os adeptos dessa escola reduziam

[...] os ornamentos a efeitos (affetti) mais expressivos [...]. Esse interesse pela expressividade fará com que tais compositores introduzam efeitos como a esclamazione (o descrescendo e o crescendo de uma nota) e o rubato (literalmente, “roubado”), que consiste em relaxar a rigidez do tempo: o rubato viria a influir consideravelmente sobre a interpretação durante o romantismo, em particular sobre a interpretação pianística (BOSSEUR, 1997, p. 109).

De acordo com Bosseur (1997), é somente no Romantismo, século XIX, que as

partituras passaram a indicar, com maior precisão, o desejo do compositor, que, por

meio de marcas apropriadas, passou a conduzir o executante às ações de tocar com

maior ou menor leveza, diminuir ou acelerar o andamento, realizar sons mais

enfáticos ou uma sequência em sons fortes, entre outras indicações. Também é

desse período a marcação do caráter da peça – Alegro (alegre), Alegro ma non

tropo (rápido, mas não muito), Adagio (mais introspecção) e Apassionato

(apaixonado), entre outros –, sinalizando para o ethos, a ambiência geral da

composição2.

De um modo geral, podemos afirmar que há mútua influência entre o pensamento

musical e sua notação, a qual faz parte dos movimentos de criação na arte dos

sons, considerando que o compositor, “[...] movido pelas necessidades de uma

estética sempre em evolução, [...] é levado continuamente a transgredir as regras de

notação vigentes em sua época” (BOSSEUR, 1997, p. 99). Dessa maneira, a

notação musical adquire a função de expressar as múltiplas extensões do

pensamento, tanto de compositores quanto de seus intérpretes.

2 Nas partituras, tais indicações costumam vir logo no início, traduzindo “clima” que o compositor quis

dar à peça.

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Passando a uma visão do conjunto das investigações que compuseram a revisão de

literatura, podemos observar que a prática e a aprendizagem musicais vêm fazendo

parte dos processos educacionais na infância e na adolescência em diferentes

tempos e espaços, embora nem sempre tais processos educativos tenham como

propósito o desenvolvimento da capacidade expressiva dos aprendizes. Essa visão

vai ao encontro do pensamento do educador musical Edgar Willems, o qual

sustentava a percepção de que “[...] com frequência, a cultura das emoções é

banida do ensino musical, pela incompreensão da natureza da música e de suas

relações com o ser humano” (apud FONTERRADA, 2005, p. 131).

É, portanto, na perspectiva da função de expressar as múltiplas extensões do

pensamento que, aqui, advogamos por uma aula de música na área da performance

instrumental, na qual seja viabilizado às crianças e adolescentes o desenvolvimento

de sua capacidade de expressão na aprendizagem de músicas do repertório erudito,

agregando ao debate aspectos fundamentais relativos ao campo da educação:

“devido às particularidades [...] dessa faixa etária, trata-se de uma questão

essencialmente educacional. Cabe ao educador ou ao músico/educador sempre se

perguntar: será que a criança quer música? O que ela quer com a música?”

(MORAES, 1989, p. 3-4, grifo da autora).

1.2 QUESTÃO DE INVESTIGAÇÃO

A partir do exposto, delimitamos nosso eixo de investigação tendo como norte as

seguintes indagações: de que forma a educação pode potencializar o fazer

musical entre crianças e adolescentes? Como uma aula de música pode

despertar e potencializar a capacidade expressiva musical de crianças e

adolescentes que frequentam as aulas de piano da Faculdade de Música do

Espírito Santo? Tendo como inspiração a filosofia de Deleuze e Guattari, quais

são os afetos sonoros que povoam o universo-criança? Que elos poderão

fortalecer a rede que sustenta esse fazer sonoro?

Aprofundando nossos estudos e guiando-nos por tais indagações, chegamos à tese

que desejamos defender, a saber, que o desenvolvimento da capacidade de

expressão musical, no âmbito da infância e da adolescência, não se restringe

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às questões próprias ao campo da performance, mas se insere no campo da

expressão, de forma ampla, em sua interface com os processos educativos.

1.3 OBJETIVOS

1.3.1 Objetivo geral

Delinear cartografias que emergem no desenvolvimento da capacidade de

expressão musical de crianças e adolescentes aluno(a)s de piano erudito a partir da

utilização de uma abordagem inventiva, participativa e experiencial.

1.3.2 Objetivos específicos

a) Levantar as principais concepções concernentes à expressão musical;

b) caracterizar as formas educativas no âmbito da aprendizagem musical, na

infância, em diferentes períodos históricos;

c) estimular o desenvolvimento da expressividade por meio de oficinas

diversificadas no campo da arte dos sons;

d) cartografar e analisar processos inventivos em contextos de aprendizagem

musical.

1.4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

1.4.1 Cartografia deleuziana

A proposta deste trabalho é acompanhar o desenvolvimento criativo no âmbito da

expressividade musical de crianças e adolescentes que estudam piano erudito a

partir do desenvolvimento de oficinas que tiveram como foco a inventividade, a

participação e a experimentação. Assim sendo, percebemos no método da

cartografia deleuziana o guia de nossas ações, visto que “[...] a pesquisa

cartográfica consiste no acompanhamento de processos, e não na representação de

objetos [...]” (BARROS; KASTRUP, 2014, p. 53).

A pesquisa cartográfica parte do pressuposto geral de que a produção do

conhecimento não é um recorte estanque da realidade, valendo-se como um

conhecimento universal, mas é um processo que ocorre nos interstícios que

pavimentam “[...] o plano movente da realidade das coisas [...]” (ESCÓSSIA;

TEDESCO, 2014, p. 92). Esse caráter processual confere ao método uma dupla

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natureza, operando “[...] ao mesmo tempo como pesquisa e intervenção [...]”

(ESCÓSSIA; TEDESCO, 2014, p. 92).

Nesse sentido, essa modelagem investigativa não prevê apenas o estudo das

formas instituídas e cristalizadas, mas convoca uma ampliação do olhar sobre “[...] a

processualidade que marca os acontecimentos no mundo [...]” (ESCÓSSIA;

TEDESCO, 2014, p. 100), buscando afetar as circunstâncias de criação das coisas,

dentro de um continuum de variação, espaço-tempo de emergência de diferenças

potenciais.

Por essa perspectiva, meu campo de ação-reflexão como aprendiz-cartógrafa é um

campo complexo, entendendo-o no “[...] plano coletivo das forças moventes [...]”

(ESCÓSSIA; TEDESCO, 2014, p. 99), cujo ato investigativo integra-se ao vivido,

compondo “[...] a própria experimentação ancorada no real [...]” (DELEUZE;

GUATTARI, 1995, p. 21).

Desse modo, como aprendiz de cartografia, entendo que a realização desta

pesquisa implicou habitar o território, impregnando-me das ações e modos de ser

que constituem esse campo, constituindo-me com ele, habitando, portanto, um

território existencial – do qual faço parte não só profissionalmente, mas afetivamente

falando –, sendo parte da minha trajetória de vida. Nesse contexto, “[...] cartografar é

sempre compor com o território existencial, engajando-se nele [...]” (ALVAREZ;

PASSOS, 2014, p. 135).

Assim, no processo de intervenção, busquei modular o ser-estar nesse campo,

lançando-me na elaboração de estratégias, práticas, exercícios – enfim, vivências –

que pudessem engendrar novas formas de conceber o processo de aprendizagem

na área da performance pianística para crianças e adolescentes integrantes do

Curso de Musicalização Infantil da Fames. Nesse processo de pesquisa e

intervenção, intentei escapar dos modos de ensinar-aprender próprios das

macroformas educativas, pois essas se assentam em uma visão arbórea e extensiva

do conhecimento, gerando “[...] classificações, hierarquizações, dicotomias, formas e

figuras, tão familiares à nossa realidade cotidiana [...]” (ESCÓSSIA; TEDESCO,

2014, p. 100).

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Assim sendo, compreendi ser necessária a elaboração de atividades que

propiciassem o tempo inventivo ao(à)s aluno(a)s, objetivando cultivar a sensibilidade

aos códigos e signos dos diferentes estilos musicais. Pensei, nesse sentido, em abrir

linhas que pudessem conduzi-lo(a)s ao contato e manuseio da matéria sonora,

tendo em vista a elaboração de expressividades, afastando-nos do padrão de aula

“[...] de natureza fixa, de [...] invariância [...]” (ESCÓSSIA; TEDESCO, 2014, p. 94).

Para tanto, considerei que, como uma modalidade educacional, a oficina poderia vir

ao encontro da minha proposta, facultando o surgimento de processos criativos,

imprimindo velocidade aos fluxos, bem como envolvendo o(a)s aluno(a)s e a mim

mesma, professora-aprendiz-cartógrafa.

Em se tratando das oficinas de música no Brasil, verificamos em Fernandes (2000)

que sua aplicabilidade manteve-se vinculada às atividades de composição musical e

vivência dos elementos da arte dos sons. No contexto das oficinas, “[...] o

experimentar, o explorar tornam-se [...] as grandes linhas mestras do processo [...]”

(FERNANDES, 2000, p. 102). Nelas, a função do professor difere da abordagem

instituída, assumindo-se como “[...] catalizador do processo [...]” (FERNANDES,

2000, p. 94), empenhando-se em uma atitude problematizadora.

Para o acompanhamento e os registros do processo, realizei filmagens e anotações

escritas, servindo-me primordialmente da atenção háptica, cuja característica “[...]

não é de simples seleção de informações [...]” (KASTRUP, 2014, p. 33), mas uma

atenção modulável, de caráter paradoxal ou complexo, sendo ao mesmo tempo um

modo de ação “[...] seletivo ou flutuante, focado ou desfocado, concentrado ou

disperso, voluntário ou involuntário, em várias combinações como [...] concentração

desfocada, focalização dispersa etc.” (KASTRUP, 2014, p. 33).

Esse tipo de atenção movente mantém uma sintonia fina com o problema em

estudo, possibilitando captar os gestos, as singularidades na criação de uma

determinada sonoridade, um olhar, um movimento, propiciando um pouso e um

reconhecimento atento. Kastrup (2014, p. 41) trata essa atenção como atenção

háptica, na qual “[...] o olho tateia, explora, rastreia, o mesmo podendo ocorrer com

o ouvido ou outro órgão [...]”.

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Deleuze (2007, p. 62) distingue a atenção óptica da atenção háptica, salientando

que a percepção ótica é mais focalizada, estática, enquanto que a háptica está

aberta às ações de forças invisíveis, “[...] como pressão, inércia, peso, atração,

gravidade, germinação [...]”, devires-imperceptíveis... Assim sendo, a percepção

háptica, “[...] muito mais do que a óptica [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 192),

tenderá a uma acuidade dos sentidos para acompanhar os nomadismos e os

sedentarismos dos trânsitos entre espaço-tempo liso-estriado, as passagens

Cronos-Aion entre as linhas molares e moleculares dos territórios sonoros que

constituem o campo desta investigação.

Por essa via, busquei tangenciar as bordas do método da cartografia deleuziana,

adotando um olhar transversal sobre o campo de investigação, no sentido de que a

intenção não era traçar uma linha evolutiva dos processos de aprendizagem nem

mesmo um olhar circular, verificando o caso de cada aluno(a). Assim sendo, esta

investigação alinha-se à visão de que “[...] a diretriz cartográfica se faz por pistas

que orientam o percurso da pesquisa, sempre considerando os efeitos do processo

sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados [...]” (PASSOS;

BARROS, 2014, p. 17), visto que “[...] o pesquisador se coloca numa posição de

atenção ao acontecimento [...]” (ALVAREZ; PASSOS, 2014, p. 143).

A prática investigativa aqui relatada sustenta-se, portanto, em uma perspectiva na

qual os pares sujeito-objeto, pesquisador-campo, teoria-prática não constituem

antinomias, encontrando-se conectados, marcando “[...] a dissolução do ponto de

vista do observador [...]” (PASSOS; EIRADO, 2014, p. 109). Isso implica dizer que

essa perspectiva mantém-se distante dos pressupostos metodológicos nos quais

sujeito e objeto são entendidos como elementos totalmente separados e intocáveis

no processo de produção do conhecimento (PASSOS; EIRADO, 2014), passando

pelo processo de contágio e propagação, de corporificação e conjugação entre as

subjetividades e as matérias e seus signos. Assim, o contágio e o envolvimento são

vistos como aspectos do ato de conhecer, pois “[...] o aprendiz-cartógrafo deve

cultivar uma posição de estar com a experiência, e não sobre esta” (ALVAREZ;

PASSOS, 2014, p. 142, grifos meus).

Em se tratando de uma pesquisa com crianças e adolescentes, é indispensável a

orientação de “[...] ser inventivo para poder trocar com as crianças e tocá-las de

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algum modo” (KASTRUP, 2014, p. 62), preservando a espontaneidade na

manifestação de seus pontos de vista, de suas experiências e estratégias na

elaboração do mundo sonoro. Por esse prisma, fez parte do plano de ações desta

investigação uma forma de conhecer que incluiu o cuidar. Cuidar e conhecer

superpõem-se, agregam-se em mútua inspiração, não se tratando, porém, de um

“[...] conhecer para cuidar [...], mas da inseparabilidade imediata entre cuidar e

conhecer [...]” (PASSOS; EIRADO, 2014, p. 122-123).

1.4.2 Sobre o território de pesquisa

Nosso campo investigativo, o qual, seguindo a perspectiva deleuziana,

denominamos território, constitui-se de um grupo de alunos de piano do Curso de

Musicalização Infantil da Faculdade de Música do Espírito Santo (Fames) Maurício

de Oliveira, tendo como objeto de estudo o processo de elaboração da

expressividade musical.

A vivência na Fames como musicista e professora de piano, especialmente para

crianças, faz-me perceber que, desde sua criação, a instituição – tal como a quase

totalidade dos centros educativos em música erudita no Brasil – moveu-se partir do

modelo pedagógico-musical fundamentado na formação de concertistas, ou de

músicos virtuoses, tal como explicitado anteriormente.

Por outro lado, nas últimas duas décadas, ocorreram transformações relevantes no

perfil musical da instituição, tendo sido criados os cursos de Formação Musical

Popular e de Licenciatura em Música, trazendo uma nova ambiência sonora e

influenciando de maneira significativa os repertórios de algumas modalidades de

instrumento, nas quais se formaram grupos e bandas de música erudita e de música

popular brasileira, jazz e chorinho, além das orquestras jovens.

Essas transformações podem ser verificadas na organização dos seguintes grupos

oficiais da Fames: Caixinha de Música, Coro da Musicalização Infantil, Orquestra

Jovem de Sopros, Grupo Jovem de Trompetes da Fames, Fames Dixieland, Fames

Jazz Band, Fames MB Trio, Orquestra experimental de Cordas, Conjunto de Música

Antiga da Fames, sem falar do Coral Villa-Lobos, que já existia, do Coro Curumins,

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de caráter mais popular, voltado para crianças e adolescentes, e do Coro Sinfônico,

voltado exclusivamente para o erudito e para coristas jovens e adultos.

O campo desta investigação, no entanto, se restringiu à modalidade piano erudito, o

qual, segundo minhas percepções, não incorporou essa atualização ocorrida em

diversos setores da instituição, indicando, do meu ponto de vista, a necessária

busca de caminhos que proporcionem às crianças e adolescentes o

desenvolvimento de sua capacidade de expressão.

A Fames conta atualmente com um total de 1156 alunos3, distribuídos nos cursos de

Musicalização Infantil (460), Curso de Formação Musical (CFM) (375), Licenciatura

(224) e Bacharelado (97). Um recorte desse quantitativo por habilidade instrumental

é apresentado na Tabela 1.

TABELA 1 – TOTAL DE ALUNOS POR CURSO (2015)

CURSO PIANO

Musicalização 356 60 CFM 390 67 Bacharelado 97 8 Licenciatura 208 Total 1051 135

Fonte: Secretaria Acadêmica da Fames

Em outubro de 2016, o Curso de Musicalização Infantil contava com 460 aluno(a)s,

com idade entre cinco e 15 anos. Sua estrutura curricular é cumprida em seis anos

de estudos, compreendendo as seguintes modalidades de aula e atividades: Teoria

Musical, Coral, Prática de Conjunto e Prática Instrumental, exclusivamente coletivas

do nível I ao nível III; a partir do nível IV, as aulas de instrumento passam a ser

individuais, mantendo-se as demais atividades em caráter coletivo.

Na sequência do Curso de Musicalização Infantil, o(a) aluno(a) pode, mediante

processo seletivo, prosseguir nos estudos no CFM, para o qual a Tabela 2, a seguir,

apresenta a quantidade de alunos por modalidade em 2016, destacando a elevada

procura para a modalidade piano.

3 Nesse montante, não foram incluídos os alunos do Preparatório Graduação, cuja quantidade oscila,

em função de esse ser um curso que ainda está se instituindo.

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TABELA 2 – QUANTITATIVO DE ALUNOS NO CFM (2016)

Modalidade Número de alunos

Canto 48 Clarineta 18 Contrabaixo 7 Fagote 1 Flauta Doce 16 Flauta Transversa 37 Oboé 4 Percussão 6 Piano 67 Saxofone 17 Trombone 16 Trompa 5 Trompete 21 Tuba 7 Viola 4 Violão 35 Violino 67 Violoncelo 14 Total 390

Fonte: Secretaria Acadêmica da Fames

A Tabela 3, a seguir, evidencia a enorme quantidade de aluno(a)s de 11 a 21 anos

frequentando a modalidade piano do Curso de Formação Musical da Fames.

Chamar atenção para esse fato é importante, pois essa é uma faixa etária em que o

estudo do piano não deveria por ênfase na profissionalização para a performance,

tal como tem sido, devendo ser algo mais voltado para a educação musical,

centrado na experiência, no contato com os estilos musicais, propiciando ao(à)s

aprendizes o desenvolvimento da capacidade de expressão musical.

Aqui, não se trata de fazer oposição ao fato de que algun(ma)s aluno(a)s aproveitam

o Curso de Musicalização Infantil, assim como o Curso de Formação Musical, para

dar segmento à carreira de pianista com um cunho mais profissional, mas de

defender esses espaços de formação musical sendo voltados para o conhecimento

do repertório erudito, de suas técnicas, seus aspectos históricos e culturais, mas em

sintonia com a faixa etária do(a) aluno(a).

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TABELA 3 – DISTRIBUIÇÃO DE ALUNOS QUANTO À IDADE NO CFM GERAL E NO CFM PIANO (2015)

4

(continua)

Idade Matriculados no CFM geral

Matriculados no CFM Piano

11 3 1 12 1 1 13 19 3 14 27 8 15 20 1 16 33 10 17 31 6 18 26 3 19 18 3 20 16 5 21 16 4 22 13 2 23 12 2 24 8 0 25 11 2 26 7 3 27 9 0 28 6 0 29 12 0 30 10 0 31 8 0 32 3 1 33 5 0 34 5 0 35 6 1 36 5 0 37 3 1 38 5 0 39 1 1 40 3 0 41 1 0 42 3 3 43 1 0 44 3 0 45 3 1 46 2 0 47 1 0 48 2 0 49 2 0 50 0 0 51 0 0 52 1 0 53 2 0 54 0 0 55 2 1 56 0 57 0 58 0 59 2 60 1

4 Da faixa etária dos 56 aos 69 anos para o CFM Piano não foi possível obter os dados junto à

Fames.

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TABELA 3 – DISTRIBUIÇÃO DE ALUNOS QUANTO À IDADE NO CFM GERAL E NO CFM PIANO (2015)

5

(conclusão)

Idade Matriculados no CFM geral

Matriculados no CFM Piano

61 0 62 0 63 0 64 0 65 0 66 0 67 1 68 1 69 0

Fonte: Secretaria Acadêmica da Fames

1.4.3 Participantes da pesquisa

O grupo que integra o campo desta investigação compõe-se de 11 aluno(a)s,

compreendidos na faixa etária de nove a 15 anos, sendo cinco meninos e seis

meninas. Para a formação do grupo, os critérios foram a frequência e o interesse em

relação às atividades da pesquisa. Vivenciando a experiência de aprendiz-

cartógrafa, entendi-me como parte desse processo investigativo, perfazendo,

portanto, um total de 12 integrantes. Assim, por ordem alfabética, passaremos à

apresentação do(a)s aluno(a)s, que receberam nomes fictícios.

a) Aline

A aluna tem 11 anos, reside no bairro Nossa Senhora da Penha, Vila Velha-

ES, Grande Vitória. Estuda na Escola César, mesmo município, estando no 6º

ano em 2016. Faz natação e frequenta a Igreja Batista, onde tem participação

significativa nas atividades musicais, realizando solos em diversos eventos,

em diferentes comunidades. Possui piano digital e está no nível V do Curso

de Musicalização Infantil. Suas músicas preferidas são as da cantora e

compositora evangélica Aline Barros e as composições do repertório da

Fames: Tarantela e Bruxas e Fantasmas.

5 Da faixa etária dos 56 aos 69 anos para o CFM Piano não foi possível obter os dados junto à

Fames.

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b) Anderson

Anderson tem 11 anos, mora no bairro Sotema, Cariacica-ES, e em 2016

estudava o 6º ano no Centro Educacional Sonho Meu, no mesmo bairro. Além

da Fames e da escola, pratica jiu-jítsu e judô em dois dias na semana. Com

sua família, frequenta a Igreja Quadrangular, participando de eventos

musicais como Natal e outras datas comemorativas. No Curso de

Musicalização, está no nível V. Possui teclado e suas músicas preferidas são

as dos compositores Calvin Harris, David Guetta e Bastile Pompe, da música

eletrônica. Referentemente às músicas de sua igreja, gosta do cantor

Anderson Freire.

c) Angelo

Ângelo tem 15 anos, mora no Centro de Vitória-ES, onde também estuda,

cursando o 8º ano no Colégio São Vicente. Além da Fames e da escola,

pratica tae kwen do. Está no nível VI do Curso de Musicalização e possui

piano digital. As músicas de sua preferência são as do pop internacional.

d) Ariana

A aluna está com 13 anos, mora no bairro Monte Belo, Vitória-ES, e estuda na

Escola Municipal Adilson da Silva Castro, localizada no mesmo bairro,

cursando o 7º ano em 2016. A agenda de Ariana é repleta de atividades: em

duas tardes semanais, pratica vôlei, futebol e basquete como integrante de

um projeto de difusão de prática esportiva oferecido pela Prefeitura Municipal

de Vitória. Em outras duas tardes, também semanalmente (aos sábados e

domingos), a menina participa de um grupo denominado Desbravadores.

Essa programação constitui-se de ações desenvolvidas pela igreja que ela

frequenta junto à sua família, sendo pautada pela prática dos escoteiros, em

que Ariana aprende e vivencia situações de acampamento e trilhas em matas.

Com relação ao estudo de seu repertório pianístico, Ariana pratica as músicas

no teclado, não possuindo piano. Porém, tem acesso ao instrumento na casa

de uma prima sempre que a visita e, algumas vezes, em sua igreja, embora

deixe claro que não deseja tocar nos cultos. Suas músicas preferidas fazem

parte do universo pop, internacional e brasileiro, ouvindo a banda Fifth

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Harmony, a compositora e cantora Ariana Grande, bem como o estilo kpop

(música que agrega coreano, japonês e inglês). Ariana também costuma ouvir

uma estação de rádio, a Jovem Pan.

e) Franco

Franco tem 13 anos, reside no bairro Itapemirim, município de Cariacica,

também na Grande Vitória. Estuda piano no nível VI da Musicalização Infantil.

Em 2016, era aluno do 6º ano do Centro Educacional Vicente Pelicioni,

situado no mesmo município. Já possui experiência musical significativa,

paralelamente aos estudos desenvolvidos na Fames: é músico em sua igreja,

onde toca piano, e tem uma banda com o irmão e alguns amigos, com a qual

se apresenta tocando outros instrumentos, tais como contrabaixo, guitarra,

violão, bateria e teclado. Essas práticas propiciaram-lhe um desenvolvimento

sonoro com ênfase mais notadamente popular, evidenciada na maneira de se

expressar de um modo geral: ao tocar (o toque), ao conversar e na postura

corporal. Franco tem piano elétrico e prefere as músicas eletrônicas em geral.

f) Júlia

A aluna tem 13 anos, mora no centro de Vitória. Em 2016, estudou o 8º ano,

no Colégio Darwin, mesmo bairro. Estuda inglês duas vezes na semana, além

do colégio e da Fames. Todos os domingos frequenta, junto à sua família, a

Igreja Católica Comunidade Santíssima Trindade. Na Fames, está no nível VI

do Curso de Musicalização, repetindo o ano para realizar os estudos com

menos estresse. As músicas de sua preferência são as dos compositores

Shawn Mendes e Halsey, pop internacional. Das músicas do repertório da

Fames, gosta mais de Burlesque e de Bolinhas de sabão. Não gosta dos

estudos de Czerny.

g) Karla

Karla tem dez anos, reside no bairro São José, região da Praia do Suá,

Vitória-ES. Estuda na Escola Municipal Aristóbulo Barbosa Leão, cursando o

5º ano em 2016. Além da escola e da Fames, duas tardes por semana,

pratica vôlei no Colégio Salesiano e canta no grupo de crianças da igreja que

frequenta, denominação Assembleia de Deus Ministério Reviver. Na Fames,

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em 2016, a aluna estava no nível IV do Curso de Musicalização Infantil, sendo

o primeiro ano de aula individual no instrumento. Afirma gostar de música,

experimentando outras sonoridades como o violão, por exemplo.A aluna

desenvolve essa habilidade de forma livre, em sua casa. Com relação ao

piano, conforme suas palavras, é uma escolha pessoal. Não possui o

instrumento nem teclado em casa, sendo necessário que, dois dias na

semana, desloque-se até a casa de um parente para realizar seus estudos

em um teclado. Suas músicas preferidas são as das cantoras evangélicas

Bruna Karla, Eyshila e Priscila Alcântara.

h) Selena

Selena tem 13 anos, mora no bairro Jardim Camburi, Vitória-ES, está no nível

VI no curso da Fames e estuda no Colégio Renovação, mesmo bairro onde

reside. Cursava o 8º ano em 2016 e, em 2017, passará a estudar em outra

escola, o Seb COC, que combina duas estruturas curriculares, a brasileira e a

da High School (americana), assegurando um certificado bilíngue. Na Igreja

Católica, Selena frequenta o Grupo da Perseverança Nossa Senhora do

Rosário de Fátima, cantando assiduamente nos eventos musicais, pois tem

uma belíssima voz. Para os estudos em casa, a aluna usa teclado, não

possuindo piano. Em relação às músicas preferidas, ultimamente, tem

escutado todo tipo de composição. Gosta muito de rock e grupos e cantores

como Maroon Five, Selena Gomes e Demi Lovato.

i) Leonardo

Lucas tem 12 anos, mora no Centro de Vitória, está no nível VI do Curso de

Musicalização da Fames. Estuda na escola São Vicente de Paula, mesma

região onde reside, estando no 6º ano em 2016. Em relação às atividades

extraescolares, pratica tae kwon do. Tem piano digital e prefere música

eletrônica. Das peças do repertório da Fames, gosta muito das composições

populares, como The sound of silence e The Entertainer.

j) Lídia

Lídia tem 11 anos, reside no Bairro Mata da Serra, Serra-ES, e em 2016

cursava o 5º ano do Ensino Fundamental no Colégio Americano Batista, no

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mesmo bairro em que mora. Com sua família, frequenta a Igreja Missão

Batista, onde atua tocando teclado e flauta doce, acompanhando a

congregação nos cantos, bem como participa de um grupo musical dessa

instituição religiosa, denominado Grupo Som da Liberdade. Lídia estuda

inglês, uma vez por semana. Na Fames, está cursando o nível V do Curso de

Musicalização Infantil e tem como músicas preferidas algumas peças do

repertório erudito, como as do compositor Czerny (1791-1857) e a música

Ballade, de Burgmüller (1806-1864).

k) Lucas

Lucas tem 12 anos, reside no bairro Feu Rosa, município da Serra-ES,

Grande Vitória. Paralelamente à Fames, estuda no Centro de Atenção Integral

à Criança e ao Adolescente Feu Rosa, localizado em seu bairro, cursando o

7º ano em 2016. Participa ativamente dos trabalhos de música em sua igreja

(Batista), tocando nos cultos, acompanhando a congregação. Embora não

tenha piano em sua casa, tem acesso frequente ao piano de sua avó, com o

qual estuda regularmente seu repertório musical. Na Fames, em 2016, o

aluno frequentava o nível VI do Curso de Musicalização Infantil, preparando-

se para o processo seletivo para o Curso de Formação Musical.

a) Sofia

A aluna está com 11 anos, mora no bairro Vale Encantado, Vila Velha-ES.

Estuda na Escola Jofre Fraga, no mesmo bairro onde mora, cursando o 6º ano

em 2016. Frequenta a Igreja Quadrangular, mas não participa de atividades

musicais nesse contexto. Sofia não pratica atividades extraescolares além das

que ela realiza na Fames. No Curso de Musicalização, está repetindo o nível

IV. Possui teclado, não tendo acesso a piano em outros ambientes. Suas

músicas preferidas são as da cantora Sofia Carson, pop internacional.

É importante salientar que a investigação atendeu a aspectos das Resoluções nº

466/2013, do Conselho Nacional de Saúde, e nº 16/2000, do Conselho Federal de

Psicologia, que regulam a ética em pesquisa com seres humanos. Desse modo,

identificamos o(a)s aluno(a)s com nomes fictícios e elaboramos o Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo), no qual seus pais e/ou responsáveis

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autorizaram sua participação no processo investigativo, assim como o uso da

informação e imagem, tendo este ocorrido exclusivamente para fins desta pesquisa.

Além disso, quando presentes nas imagens que ilustram esta tese, os rostos dos

participantes receberam aplicação de recurso gráfico, para manter sua identidade

em anonimato.

1.5 REFERENCIAL TEÓRICO

Entendendo que o desenvolvimento da capacidade de expressão musical situa-se

no tangenciamento do campo da expressão e dos processos relativos à educação,

em função das aproximações com nossa experimentação de mundo, podemos

tomar Deleuze e Guattari (1995, 2010, 2011, 2012a, 2012b, 2012c, 2014), Kastrup

(2000, 2001, 2008) e Maturana (1997, 1998, 2001, 2014) como referenciais

pertinentes à questão da aprendizagem do campo da arte, apresentando uma fina

sintonia com a arte dos sons. Esses pensadores foram, portanto, eleitos como

intercessores no desenvolvimento das ideias a respeito da expressão e da

aprendizagem musicais, temas que se estabelecem como eixos do processo

investigativo aqui relatado.

Levamos ao campo de investigação, ainda, pressupostos defendidos na educação

musical, apoiando-nos nas obras de Edgar Willems e Orff (apud FONTERRADA;

2005; PAZ, 2000), Sloboda e Davidson (1996) e Fonterrada (2005).

Em se tratando da performance pianística, o trabalho musical desenvolvido pela

pianista e professora Célia Ottoni foi adotado como referência. Essa referência foi

consolidada não apenas a partir da convivência que com ela estabeleci nos períodos

em que fui sua aluna na Fames, de 1972 a 1982 e de 1996 a 2000, mas, ainda, em

duas sessões de entrevista sobre tal temática, realizadas em sua residência, no

período de execução da investigação, especificamente na fase de análise dos

dados.

Ottoni advoga por uma educação musical que promova a integração entre corpo-

percepção-pensamento, baseando-se na perspectiva holística, partindo do princípio

de que o aprendiz é um todo. Esse princípio traz implicações importantes no que diz

respeito à aprendizagem das técnicas pianísticas, pois a entende como instância

inseparável dos aspectos estéticos que constituem cada composição. Nesse caso,

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as sonoridades solicitadas pelos compositores em suas partituras serão realizadas

pelo executante a partir de sua própria sensibilidade e percepção, sempre

considerando os aspectos históricos e estilísticos que integram cada obra.

No que diz respeito estritamente à percepção, Célia Ottoni destaca a necessidade

de o professor levar o(a) aluno(a) a entender o que está executando, por meio de

uma autoescuta pois, argumenta a professora,

[...] quando ele entende, ele começa a se ouvir, ativando a consciência corporal e o ouvido crítico, que se estabelecem como pré-requisitos indispensáveis à aprendizagem da performance. Além disso, o professor precisa levar o aluno a sentir o tipo de toque, sentir o desenho, o fraseado, como ele é realizado. O aluno tem que ser crítico de si próprio (INFORMAÇÃO VERBAL)

6.

Outro aspecto fundamental da aprendizagem pianística apontado por Ottoni refere-

se à prática de cantar as melodias que integram determina obra, destacando que se

trata de um dos meios mais eficazes de se trabalhar o entendimento musical, pois

estabelece um contato mais direto do executante consigo mesmo:

via de regra, antes mesmo de executarmos uma composição em um instrumento musical, podemos ouvi-la em nossa mente no momento em que olhamos para sua partitura, sendo possível cantá-la. A maneira de entoá-la, portanto, corresponderá ao entendimento e à concepção da música pelo executante, que nem sempre está em sintonia com o contexto da obra. Assim, o professor poderá trabalhar o entendimento musical do aluno, levando-o inicialmente a cantar a melodia, considerando sua construção e ambiência estilística e, posteriormente, traduzindo essa mesma ideia, tocando no instrumento. Nesse sentido, a expressão corporal do professor em suas explicações deverá estar em sintonia com o texto musical que está sendo trabalhado (INFORMAÇÃO VERBAL).

No que se refere especificamente à expressão corporal, Ottoni afirma que a

corporalidade

faz parte do todo que compõe o fazer musical, incluindo as ações que antecedem a aprendizagem no instrumento, tais como o momento de leitura, que pode propiciar a percepção das diferentes ambiências, frases, entre outros aspectos da obra. Dessa maneira, o aluno é inserido nos diferentes contextos de uma peça musical de maneira lúdica, vivenciando-a por meio do cantar, do dançar e do andar (INFORMAÇÃO VERBAL).

6 As informações dadas pela pianista e professora Célia Ottoni foram obtidas em conversa informal

sobre a investigação aqui relatada.

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Em se tratando do processo de estudo ao piano, Célia Ottoni considera fundamental

que a composição seja trabalhada, inicialmente, de mãos separadas, com o objetivo

de propiciar ao aluno o entendimento das diferentes vozes que a integram:

é fundamental perceber o diálogo que há entre as diferentes vozes que compõem a música e seus significados, pois a junção da melodia da mão esquerda com a melodia da mão direita expressará o entendimento do conjunto, preservando-se o sentido de cada voz. Essa forma de estudo facilita, igualmente, a memorização, que é um fator importante para se imprimir fluência à execução (INFORMAÇÃO VERBAL).

Ainda se referindo à forma de estudar, Ottoni abordou a questão do uso de

dedilhado, mencionando a importância da escolha e da anotação da digitação7 que

possa facilitar a execução em determinadas passagens da peça musical.

Outro aspecto fundamental do trabalho de Ottoni refere-se ao entendimento de que

toda criança e todo adolescente são aprendizes em potencial, a partir do que seu

trabalho tem como alvo principal promover o desenvolvimento das capacidades

expressivas de todo aluno que deseje aprender. A esse respeito, ela registra a

necessidade do estudo acurado: “é indispensável estudar, ter dedicação, tempo. E a

forma de estudar diferencia-se de uma repetição automática de trechos da música.

Estudar significa ter consciência do que se está fazendo, sabendo o que se deseja

realizar, quais as melhores maneiras de se obter uma determinada sonoridade”.

O professor também precisa saber realizar os desenhos e fraseados musicais pelo

sentir, pondo em desenvolvimento tanto sua consciência corporal quanto seu ouvido

crítico. Nessa perspectiva, Ottoni afirma contundentemente: “é indispensável saber-

fazer; é tocando e se ouvindo que o professor aprende e ensina. O professor de

música não pode ser um teórico ou alguém que não pratica a sua arte”.

Complementando essa ideia, Ottoni aponta para o cuidado no sentido de não se

tentar reproduzir um determinado instrumentista, “[...] o que acarretaria uma espécie

de caricatura de um modelo”. Nesse sentido, a pianista e professora sublinha que

é imprescindível a assinatura do executante, mesmo que se seja aprendiz, pois cada intérprete dá a sua contribuição pessoal, respeitando as características da obra que está sendo executada. Nesse caso, as

7 Termo usado para se referir à anotação dos dedos que serão utilizados para se tocar determinada

sequência. O polegar é o dedo 1, o indicador é o dedo 2, o dedo médio, o 3 e assim por diante. Essa anotação facilita o movimento da mão na condução das notas, pois minimiza tropeços e interrupções na execução.

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gravações de pianistas situam-se apenas como referências (INFORMAÇÃO VERBAL).

A experiência como aluna da pianista e professora Célia Ottoni sem dúvida teve

grande influência na minha atuação como professora de piano erudito e no

entendimento de que é necessário que os educadores musicais busquemos vias

alternativas ao modelo de aula instituído no século XIX, caminho no qual a pesquisa

relatada nesta tese transita.

1.6 ESTRUTURA DO TRABALHO

Esta tese está assim organizada: o Capítulo 2 resgata as sonoridades em diferentes

espaços e períodos da história, bem como as formas educativas em música na

infância e adolescência.

O Capítulo 3 focaliza na caracterização das práticas musicais na infância brasileira,

bem como as sonoridades que se formaram desde os indígenas até o presente

século.

No Capítulo 4, são apresentados os conceitos de fabulação e expressão, de

Deleuze e Guattari, além das concepções de expressão e de aprendizagem desses

dois filósofos e também em pensadores como Kastrup e Maturana.

Os diálogos e as vivências do campo experienciado e os dados produzidos a partir

das expressividades que compuseram diferentes territórios nesse processo são

apresentados e analisados no Capítulo 5, que destaca aspectos que se

configuraram peças-chave para se refletir sobre a aprendizagem pianística no

âmbito da educação musical, sugerindo uma mútua colaboração entre a filosofia e a

arte, lembrando à arte sua natureza, sua diversidade de meios e sua função de “[...]

criar um finito que restitua o infinito [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 233).

Por fim, o Capítulo 6 sublinha as considerações a que o estudo permitiu chegar,

buscando refletir sobre o processo em seu conjunto, observando os

desdobramentos que dele advêm, dos quais podemos destacar a importância de se

ter clareza sobre as concepções de música e de aprendizagem, considerando as

vivências da criança e do adolescente.

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2 EXPRESSÃO E APRENDIZAGEM MUSICAIS EM DIFERENTES

TEMPOS E ESPAÇOS

O ser humano buscou expressar-se por meio da música em diferentes tempos e

contextos sociais, elaborando-a em diversas configurações rítmicas e timbrísticas,

impregnando diferentes matérias sonoras com as ideias, sensações e emoções de

seus praticantes. Há um consenso em torno da ideia de que “[...] o fazer musical é

virtualmente uma atividade humana universal. Em seu sentido mais fundamental, é

uma forma de necessidade biológica particular” (SADIE; TYRRELL, 2001c, p. 346,

tradução minha). A essa atividade se atribui a capacidade de influenciar os humores

e os comportamentos humanos nas suas relações afetivas e políticas.

É nesse mesmo enquadramento que se encontram as práticas musicais na infância,

constituindo-se uma atividade que dialoga com os valores e as formas de pensar do

contexto sonoro experienciado pelas crianças e pelos adolescentes. Nesse caso, a

expressividade veiculada pela criança por meio da arte dos sons mantém estreitos

vínculos com as vivências sonoras e as concepções de música e educação em cada

sociedade.

Assim, neste capítulo, serão esboçadas as diferentes concepções a respeito da

expressão musical, das sonoridades e dos processos educativos no âmbito da

música para crianças em diferentes contextos sociais e históricos, tendo como ponto

de partida a Grécia antiga.

2.1 CONCEPÇÕES, SONORIDADES E EDUCAÇÃO MUSICAL

2.1.1 Grécia antiga

A expressividade musical na Grécia antiga coadunava-se com os valores e as

percepções de mundo ali vigentes, integrando as atividades que tinham por

finalidade alcançar o belo, no sentido estrito de bom e justo, constituindo a formação

de crianças e jovens, almejando alcançar a “[...] vida virtuosa [...]” (CHAUÍ, 1994, p.

212). Nesse sentido, o fazer musical estava associado à ideia platônica de

separação entre um mundo inteligível e um mundo sensível, articulados pelo “[...]

desejo de sabedoria, amor da formosura, isto é, da perfeição das Formas ou das

Ideias” (CHAUÍ, 1994, p. 212). A relação entre esses mundos desenvolvia-se a partir

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da noção de similitude entre as ideias e nossa razão ou intelecto, visto serem de

mesma natureza: “[...] as ideias são de mesma natureza que nossa razão ou nosso

intelecto e por isso podem agir sobre eles (somente o semelhante age sobre o

semelhante), causando em nós o conhecimento e a virtude” (CHAUÍ, 1994, p. 212).

Musicalmente falando, tal princípio de semelhança – ou mimese – operava por meio

de escalas de notas musicais ou modos que possuíam sonoridades específicas,

relacionando-se, cada um deles, a um ethos, tendo como resultado final afetar os

ouvintes e praticantes. O conjunto desses pensamentos compunha a Doutrina do

Ethos, de concepção pitagórica, na qual a música constituía-se como um “[...]

sistema de tons e ritmos regido pelas mesmas leis matemáticas que operam no

conjunto da criação visível e invisível. A música, nesta concepção [...], era uma força

capaz de afetar o universo” (GROUT; PALISCA, 2007, p. 20). Dessa maneira, por

meio de uma sonoridade, era possível “[...] imitar tanto o bem quanto o mal; [...]

sendo a música uma intermediária entre a ordem natural e a alma humana. [...] Ora,

em música os modelos não são objetos, mas ideias, ações, e a ordem das coisas”

(DAMON apud CANDÉ, 2001a, p. 73).

Em termos práticos, cada escala ou modo possuía um caráter expressivo próprio,

agindo sobre a moral de maneira específica. Assim sendo, uma determinada escala

musical era associada à força e à coragem, enquanto outras estariam ligadas à

preguiça ou moleza. Em diálogos entre Platão e Glauco, podemos verificar o estudo

sobre os afetos veiculado em cada modo musical.

− E certamente a harmonia e o ritmo devem acompanhar as palavras?

− Como não?

− Contudo, afirmamos que não queríamos lamentos e gemidos nos discursos.

− Pois não.

− Quais são as harmonias lamentosas? Dize-me, já que és músico.

− São a mixolídia, a sintolídia e outras semelhantes.

− Portanto, essas são as que se devem excluir, visto que são inúteis para as mulheres, que convém que sejam honestas, para já não falar dos homens.

− Absolutamente.

− Mas, na verdade, nada convém menos aos guardiões do que a embriaguez, a moleza e a preguiça.

− Como não?

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− Quais são, pois, dentre as harmonias, as lentas e as dos banquetes?

− Há umas variedades da iónia e da lídia, as que chamam efeminadas.

− E essas, poderias utilizá-las na formação de guerreiros, meu amigo?

− De modo algum, respondeu. Mas te arriscas a que fiquem apenas a dória e a frígia.

− [...] Mas deixa-nos ficar aquela que for capaz de imitar convenientemente a voz e as inflexões de um homem valente na guerra e em toda ação violenta, ainda que malsucedido e caminhe para a morte [...]. E deixa-nos ainda outra para aquele que se encontra em atos pacíficos, não-violentos, mas voluntários, que usa do rogo e da persuasão, ou por meio da prece aos deuses, ou pelos seus ensinamentos e admoestações aos homens, ou, pelo contrário, se submete aos outros quando lhe pedem. [...] Estas duas harmonias, a violenta e a voluntária, que imitarão admiravelmente as vozes de homens bem e malsucedidos, de sensatos e corajosos, essas, deixa-as ficar (PLATÃO, 2005, p. 78-79).

Além do princípio de mimese na busca pela bondade e verdade, a concepção e a

prática de música na Grécia antiga vinculavam-se intimamente à melodia e ao ritmo

da poesia, estando “[...] sempre associada[s] à palavra, à dança ou a ambas”

(GROUT; PALISCA, 2007, p. 19). Por essa ótica, a expressão da arte dos sons era

proporcionada no entrelaçamento dos sons musicais e da musicalidade e rítmica das

palavras, constituindo um bom ou um mau ritmo.

− Mas, ao menos isto, podes decidi-lo já: que a beleza ou a fealdade de forma dependem do bom ou do mau ritmo.

− Como não?

− Mas, na verdade, o bom e o mau ritmo seguem, imitando-o, aquele, o estilo bom, este, o inverso; e do mesmo modo sucede com a boa e a má harmonia, se o ritmo e a harmonia se adaptam à palavra, como há pouco se disse, e não a palavra a esses.

− Realmente, são eles que devem adaptar-se às palavras.

− Mas o modo de expressão e a palavra não dependem do caráter da alma?

− Como não?

− E, da expressão, tudo o mais?

− Sim (PLATÃO, 2005, p. 80).

Essa noção de mimese em Platão considerava que as produções no mundo sensível

– a arte, por exemplo – eram degenerações da pureza do modelo ideal de arte,

próprio do mundo inteligível. Nesse sentido, os instrumentos musicais eram

imitações, que, juntamente aos seus fabricantes, eram excluídos da pólis,

confirmando o fato de que “[...] na república ideal, a maioria dos artistas não teria

lugar, havendo lugar apenas para os artesãos que realizassem obras úteis para a

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vida” (CHAUÍ, 1994, p. 334). Essa assertiva pode ser corroborada no excerto que

segue, um diálogo entre Glauco e Platão:

− Portanto, não precisaremos para os nossos cantos e melodias de instrumentos com muitas cordas e com muitas harmonias.

− Não me parece que precisaremos.

− Logo, não teremos que sustentar artífices para fabricarem harpas, trígonos e toda a espécie de instrumentos de muitas cordas e de muitas harmonias.

− Acho que não.

− E, então, os fabricantes de flautas e os flautistas, os receberemos na cidade? (PLATÃO, 2005, p. 79).

Toda essa forma de pensamento constituía a base de desenvolvimento da educação

musical na infância, tendo como propósito inculcar na criança o juízo de beleza

(bom) e de fealdade (mau) por meio de sonoridades específicas. Desse modo, à

arte dos sons era conferida a capacidade de formação do caráter e dos princípios

éticos e estéticos de todos os cidadãos, incluindo-se aí a criança, por meio da

associação das noções morais ao prazer, como podemos entender a partir do

diálogo que segue:

− [...] que logo desde a infância, insensivelmente, os tenha levado a imitar, a apreciar e a estar em harmonia com a razão formosa?

− Seria essa, de longe, a melhor educação.

− Não é então por esse motivo, ó, Glauco, que a educação pela música é capital, porque o ritmo e a harmonia penetram mais fundo na alma e afetam-na mais fortemente, trazendo consigo a perfeição [...] e com razão honraria as coisas belas [...]; ao passo que as coisas feias, com razão as censuraria e odiaria desde a infância [...].

− A mim, afigura-se que é por razões dessas que se deve fazer a educação pela música (PLATÃO, 2005, p. 81).

As atividades musicais estavam relacionadas à poesia lírica e aos grandes jogos

artísticos em Delfos, Esparta e, posteriormente, em Atenas. Assim, os torneios

poético-musicais eram frequentemente apresentados ao julgamento dos filósofos e

do povo, atraindo expressivo número de espectadores ao teatro de Dionísio, em

Atenas, de forma que “[...] desde a madrugada, se acotovelavam nas

arquibancadas, comendo e bebendo durante intermináveis audições, sem que o

interesse nem a exuberância [...]” esmorecessem (CANDÉ, 2001a, p. 69).

Com isso, verificamos uma modificação na concepção musical da Grécia clássica,

passando a ser entendida como saber indispensável aos homens livres, não se

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estabelecendo uma diferenciação entre produtores de música e espectadores. Essa

maneira de fazer música coadunava-se com a forma de pensamento geral dessa

sociedade, pois a democracia ateniense baseava-se em dois princípios

fundamentais, a saber, “a isonomía, isto é, a igualdade de todos os cidadãos perante

a lei, e a isegoría, isto é, o direito de todo cidadão se exprimir em público” (CHAUÍ,

1994, p. 111, grifos da autora). A expressividade musical era veiculada

especialmente nas tragédias – gênero literário e teatral –, cuja temática girava em

torno do nascimento da democracia. De acordo com Chauí (1994), há um diálogo

entre personagens do mundo aristocrático – que se postam no palco – e um colégio

de cidadãos, representando o presente, que estão no coro. Por meio dessa “[...]

iniciação coral e social efetuava-se a preparação dos adolescentes para as tarefas

da vida adulta do cidadão” (MANACORDA, 2006, p. 47).

A cultura helênica exerceu influência determinante em todo o Mediterrâneo na

Antiguidade e, mesmo após sua decadência, a partir do ano 395 a. C., muitos de

seus aspectos foram incorporados por diferentes sociedades, que os modificaram ou

acrescentaram-lhes elementos de suas próprias culturas. Com a decadência política,

cultural e econômica da Grécia antiga, Roma ascendeu ao poder, instaurando uma

nova ordem social, constituída de valores e concepções totalmente diferentes

daqueles cultivados na sociedade helênica (CANDÉ, 2001a).

2.1.1 Roma antiga

No que diz respeito à Roma antiga, verificamos em Chauí (1994) uma mudança na

visão sobre a arte, englobando-se aí a música. Enquanto na Grécia clássica

prevaleciam as ideias de Platão, nas quais a arte musical estava associada à ética,

no período de ascensão da sociedade romana prevaleciam as teorias do filósofo

Aristóteles, para o qual a ética e a arte situavam-se em esferas diferentes. Para

Aristóteles, a ética era uma ciência cujos fins não eram a produção de algo fora dela,

compondo as ciências práticas, ou seja, aquelas atividades “[...] que possuem nelas

mesmas os seus fins” (CHAUÍ, 1994, p. 309). Em se tratando das artes, essas eram

concebidas no universo das ciências produtivas, situando-se junto àquelas “[...] cujo

fim é uma obra diferente das próprias atividades realizadas para produzi-la” (CHAUÍ,

1994, p. 309), tendo o fim fora de si mesmas. Assim, o fim último das ciências

produtivas – entre as quais estavam inseridas as artes – não consistia em ser um

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veículo para alcançar a bondade (categoria ética), como algo separado do homem,

presente no mundo perfeito, inteligível, mas uma atividade que, por meio da criação

de uma obra, “[...] imita, narrativa ou dramaticamente, ações e sentimentos, feitos e

virtudes, situações e vícios dos seres humanos” (CHAUÍ, 1994, p. 336).

Além de estabelecer diferenças entre ciências práticas e produtivas, Aristóteles

também distinguiu as atividades que compunham essas últimas, entre as quais

encontravam-se a prosa e a poesia, ou, ainda, a arte retórica e a arte poética. De

acordo com Chauí (1994), a arte retórica referia-se às maneiras de construir

discursos com base em uma argumentação persuasiva, cabendo à arte poética as

regras dos gêneros literários. A diferença básica entre prosa e poesia residia na

vinculação ou não à música.

Aristóteles distingue prosa e poesia. A distinção não se faz entre linguagem métrica

ou versificada e linguagem não métrica e não versificada, pois pode haver prosa

metrificada e pode haver poesia sem que seja versos, como a melodia instrumental.

“Prosa é a linguagem que diz diretamente as coisas; poesia, a que imita as coisas

(ações, paixões, feitos, gestos)” (CHAUÍ, 1994, p. 338).

É assim que a arte dos sons passa a integrar o terreno da poesia ou da produção

poética, sendo dividida por gêneros literários, cada qual com seus meios, objetos e

maneiras de imitar. Os gêneros literários relacionados à poesia (música) eram “[...] a

poesia trágica e também a comédia, a poesia ditirâmbica, a maior parte da aulética e

da citarística, consideradas em geral, todas se enquadram nas artes de imitação”

(ARISTÓTELES, 2004, p. 23). Tais gêneros guardavam entre si três diferenças,

relativamente aos meios, aos objetos e às maneiras de imitar. Assim sendo,

alguns fazem imitações segundo um modelo de cores e atitudes, [...] outros [...], com a voz; assim também, nas artes acima indicadas, a imitação é produzida por meio do ritmo, da linguagem e da harmonia, empregados separadamente ou em conjunto (ARISTÓTELES, 2004, p. 23).

Segundo Chauí (1994), as atividades que reuniam linguagem, ritmo e melodia eram

tratadas no âmbito da tragédia, da comédia, da lírica e da elegia; o conjunto

envolvendo ritmo e melodia, a saber “[...] a aulética e a citarística, bem como as

demais artes análogas em seu modo de expressão, por exemplo, a flauta de Pã”

(ARISTÓTELES, 2004, p. 23), apenas era o que entendemos como música

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instrumental. A aulética referia-se às práticas do aulos – um tipo de flauta dupla –,

enquanto a citarística relacionava-se às práticas da cítara, ambos instrumentos

musicais próprios da época.

As práticas sonoras ou poesia objetivavam falar das paixões humanas por meio da

imitação dos vícios e das virtudes humanas de um modo geral, e não de uma

personagem determinada. Assim, a poesia trágica não trata de um Édipo ou de uma

Electra específicos, “[...] mas de um destino humano; a epopeia não fala de Helena,

Ulisses ou Agamenon, mas de tipos humanos. [...] por meio [...] do relato dramático

de uma guerra, fala sobre a guerra” (CHAUÍ, 1994, p. 337, grifos da autora).

Nessa perspectiva, os gêneros poéticos, segundo Aristóteles, envolviam três

elementos essenciais à sua realização, interligados: mímesis, mýthos e katharsis. A

mímesis tinha como objeto de imitação “[...] as ações humanas enquanto virtuosas

ou viciosas” (CHAUÍ, 1994, p. 337); o mýthos, que é uma narrativa fundada, não em

uma história concreta, que aconteceu, mas que pode vir a acontecer, ou “[...] poderia

acontecer [...]” (CHAUÍ, 1994, p. 337), vinculada às paixões humanas; a katharsis

possui caráter ético-pedagógico, imputando à arte um poder tanto educativo quanto

terapêutico, “[...] pois a poesia deve atuar sobre a alma do ouvinte, fazendo-o sentir

as paixões narradas-representadas e permitindo-lhe, ao imitá-las, em seu interior,

liberar-se delas, purificando-se” (CHAUÍ, 1994, p. 337). Esse tríptico – mímesis,

mýthos e katharsis – tem como maior referência a tragédia, considerada uma ação

importante e completa, constituindo-se uma

[...] imitação [...] de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas [...]; ação apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções (ARISTÓTELES, 2004, p. 35).

Tratando a arte dos sons no contexto da educação, verificamos em Manacorda

(2006) que o exercício da musicalidade na cidade de Roma deixou de ser um

veículo para a formação ética dos cidadãos, tal como na Grécia, e assumiu um papel

coadjuvante na aprendizagem da gramática e da arte retórica. Para a sociedade

romana, ser um homem culto significava ser capaz de falar corretamente e entender

bem os autores, exigindo o conhecimento de algumas disciplinas principais, a saber,

“[...] a música, a astronomia (mencionada em outros termos), a filosofia natural, isto

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é, as ciências, e a eloquência, cujo estudo se completa na escola de nível mais

elevado, a escola de retórica” (MANACORDA, 2006, p. 87). Dessa forma, a arte

retórica passou a ser o centro e o objetivo último da educação em Roma, tendo nas

demais disciplinas uma fonte de recursos para a elaboração de um discurso passível

de persuadir seus ouvintes.

Conforme Quintiliano (2001), importante orador romano, essa persuasão

relacionava-se à utilização de determinados aspectos da música, tais como o ritmo,

a melodia e a “modulação” nos tons, compondo uma expressividade capaz de mover

e comover os ouvintes. Dessa maneira, os mecanismos de expressão das emoções

em um discurso seriam os mesmos utilizados na música, os seus modos de

expressão, proporcionando a formação necessária ao bom orador.

O teórico musical Aristoxenus distingue o que concerne aos aspectos rítmicos (rhytmos) e melódicos (melos) do som compreendendo primeiramente a “modulação”, e posteriormente o tom e a qualidade do som. Não são todos esses aspectos essenciais ao orador? Um ponto relevante é o gesto, o segundo relaciona-se ao arranjo da palavra, e o terceiro refere-se às inflexões da voz, muitas das quais estão envolvidas na produção do discurso. Ou o orador não emprega várias dessas composições e sons conforme as necessidades dos assuntos tal como a música faz? (QUINTILIANO, 2001, p. 225, tradução minha).

A expressão musical, nessa ótica, relacionava-se às paixões humanas, presentes

mais precisamente no gênero trágico, tendo por finalidade “[...] não só [...] imitar uma

ação em seu conjunto, mas também fatos capazes de excitarem o terror e a

compaixão” (ARISTÓTELES, 2004, p. 45), veiculados por meio da música e da

elocução. Aristóteles destacou a importância da elocução no âmbito da tragédia,

pois congregava tanto o ritmo quanto a melodia, nos quais se assentava a

expressividade, ou seja, “[...] a composição métrica, e a melopeia (canto), a força

expressiva musical evidente para todos” (ARISTÓTELES, 2004, p. 35).

Outra abordagem a esse respeito foi elaborada por Quintiliano (2001), vinculando a

expressão da arte dos sons às paixões, tais como graça, doçura e pensamentos

sublimes, explicitando a perfeita adequação dos elementos musicais para a uso na

arte da oratória: “[...] música de fato emprega tom e modulação, para expressar

pensamentos sublimes de maneira nobre, pensamentos agradáveis com doçura, e,

de modo usual, pensamentos com graça” (QUINTILIANO, 2001, p. 225, tradução

minha).

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O fazer musical em Roma também se relacionava à dança, buscando a

expressividade corporal, pois “[...] é por atitudes rítmicas que o dançarino exprime os

caracteres, as paixões, as ações [...]” (ARISTÓTELES, 2004, p. 23). Em uma

perspectiva semelhante, Quintiliano (2001, p. 227, tradução minha) pontuou a

importância do vínculo entre o ritmo, o corpo, os gestos e a dança para a oratória,

apresentando em seus escritos o conceito de eurhythmia, de origem grega,

notadamente, na rítmica musical.

[…] nós, inclusive, sentimos que as atitudes mentais são afetadas de vários modos pelos quais os instrumentos são incapazes de articular o discurso. Além disso o movimento apropriado e elegante do corpo – o que os gregos denominam como eurythmia – é essencial, e não pode ser obtido por nenhuma outra maneira

No que diz respeito às práticas estritamente musicais, tem-se registros de que os

cantores e instrumentistas “[...] se utilizavam de técnicas virtuosísticas bastante

semelhante [sic] às dos modernos artistas dos séculos XVIII, XIX e XX”

(FONTERRADA, 2005, p. 21), havendo, inclusive, um tipo de “[...] culto às estrelas:

espectadores aclamando artistas, pulando de seus assentos, agitando-se como

loucos” (CANDÉ, 2001a, p. 82). De um modo geral, a música produzida em Roma

tinha um caráter de puro divertimento, sendo entendida como um luxo, participando

do “[...] embelezamento da vida, mas já não realmente integrada à cultura” (CANDÉ,

2001a, p. 81).

Nessa sociedade, verificamos também a nítida separação entre a música erudita e a

música popular, relacionadas a “[...] categorias sócio-musicais [...]” (CANDÉ, 2001a,

p. 82), observando a prática comum de pessoas ricas terem escravos músicos, que

produziam uma “[...] espécie de „música de consumo‟ refinada, que participa do

embelezamento dos lugares, mas que ninguém ouve” (CANDÉ, 2001a, p. 81).

Nessa perspectiva, a vida musical em Roma era movimentada e exercida em um

número significativo de escolas de música e dança, “[...] frequentadas pelos filhos

dos patriarcas [...]” (FONTERRADA, 2005, p. 22).

No tocante à música popular, conforme Candé (2001a), já era possível perceber os

primeiros sinais de censura e repressão aos processos criativos, que se tornarão a

tônica nos primeiros séculos da Idade Média. Assim, “[...] os censores, como os

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padres, não se privarão de censurar a música popular, cujas tradições Gregório

Magno se esforçará por aniquilar” (CANDÉ, 2001a, p. 82).

Em uma visão geral, podemos dizer que a arte musical ocupou um lugar secundário

na escala de valores da sociedade romana, assumindo o papel de auxiliar na

aprendizagem da retórica, bem como de adorno de ambientes ou de status social,

no que se refere à sua relação com seus consumidores, pois tanto no gênero trágico

quanto na lírica “[...] a música ocupava um lugar menos importante [...]” (CANDÉ,

2001a, p. 81).

2.1.2 Idade Média

A produção musical no período medieval comportou diferentes tendências e

movimentos de expressão das sonoridades, tendo na base do desenrolar dos fatos

um mundo sacro e um mundo laico.

Em decorrência da queda do Império Romano – e sua subsequente divisão em

Impérios do Ocidente e do Oriente –, aliada ao advento do cristianismo, o poder

anteriormente exercido pelo Estado, na figura do imperador, passou a instalar-se na

Igreja, tendo no papa e nos senhores feudais os protagonistas das leis e da

condução da sociedade. Nesse sentido, os valores, as formas de pensar e a

produção do saber passaram a ser controlados pela Igreja, definindo conteúdos,

didáticas, bem como as maneiras de expressão, levando-nos à visão de que “[...] a

educação [...] foi basicamente um monopólio da igreja” (VEIGA, 2007, p. 18),

abarcando toda a produção criativa, incluindo, nesse contexto, o fazer musical.

Dessa forma, se no Império do Oriente a música “[...] resplandecia por toda parte

[...]” (CANDÉ, 2001a, p. 189), na Itália e regiões a ela ligadas, “[...] a música se

refugiava nos mosteiros” (CANDÉ, 2001a, p. 189), passando a desenvolver-se de

acordo com as premissas da Igreja, que estabeleceu regras composicionais,

conteúdos, maneiras de execução sonora, bem como o uso de instrumentos e os

modos de expressão. Mesmo considerando que as canções cristãs fossem o

resultado de um processo de fusão da civilização greco-romana, das tradições

célticas e das tradições orientais judaico-cristãs, a institucionalização do cristianismo

por Constantino aboliu as danças de seus repertórios, compilando os cantos em um

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único formato e estética. Assim sendo, o fazer musical no universo sacro foi

resultado de uma moldagem eclesiástica, cuja expressividade era composta por

conteúdos, motivos e paradigmas cristãos, havendo a proibição de instrumentos e

de algumas notas musicais nas melodias, de acordo com as prescrições da Igreja:

preocupada com preservar a pureza de uma arte de essência religiosa, a Igreja não cessava de condenar todas as formas de música profana. [...] Os padres da Igreja condenavam qualquer desvio, qualquer pesquisa, qualquer iniciativa musical que emanasse de um leigo [...]. Os cristãos são advertidos contra os perigos de certas músicas de entretenimento. [...] as práticas coreográficas levam direto ao inferno (CANDÉ, 2001a, p. 220).

Podemos verificar as mesmas ações cerceantes nos escritos de Santo Agostinho,

nos quais esse pensador medieval confessa que os sons musicais incidiam em seus

ouvidos, fazendo despertar diferentes emoções, sendo algumas consideradas

impróprias:

os prazeres do ouvido prendem-me e subjugam-me com mais tenacidade. Mas Vós desligaste-me deles, libertando-me. [...] Quando, às vezes, a música me sensibiliza mais do que as letras que se cantam, confesso com dor que pequei. Nesse caso, por castigo, preferiria não cantar. Eis em que estado me encontro (SANTO AGOSTINHO, 2000, p. 292).

Paralelamente ao mundo sacro, cuja produção sonora era exclusivamente vocal e

endereçada a Deus, desenrolava-se no mundo laico uma música que agrupava às

vozes as sonoridades dos instrumentos, além de danças, poesias e a arte dos

acrobatas. Trata-se dos menestréis e dos trovadores, duas tendências da música

medieval que se diferenciavam pela maneira e pelos conteúdos que expressavam,

escapando à centralização do poder eclesiástico.

De acordo com Sadie e Tyrrell (2001b), os menestréis eram músicos de rua,

acrobatas, contadores de história, além de, usualmente, instrumentistas; os

trovadores, por sua vez, eram tocadores e cantores cuja música estava intimamente

relacionada à poesia e às temáticas do gentil lovying. Dedicando-se à “[...] criação

de versos e [...] canto, além do domínio do alaúde [...]. Os tocadores de flauta e lira

[...] exerciam a invocação dos prazeres por meio de suas produções artísticas,

melodias e composições” (FONTERRADA, 2005, p. 30-31).

No século X, embora a igreja se opusesse à livre expressão artística, algumas

comunidades monásticas ansiavam por inovar nos cantos, enxertando “[...] novos

elementos numa velha tradição ameaçada de esterilidade ou degeneração [...]”

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(CANDÉ, 2001a, p. 237). Desse modo, o estilo canção, próprio dos trovadores,

passou a ser utilizado para preencher “[...] todos os momentos „vazios‟ da liturgia,

em particular para acompanhar os diferentes deslocamentos durante o ofício”

(CANDÉ, 2001a, p. 237). Esse movimento de inovação no exercício das sonoridades

propiciou o surgimento da figura do músico como compositor, destacando-se os

nomes de Léonin, Pérotin, Guillaume de Machaut, Dufay e Dunstable, relacionados

principalmente à música sacra, reinaugurando, de forma sutil, o livre proceder em

música.

Tendo por base esse cenário, constatamos que o fazer musical junto a crianças não

fugia a tais regras, assentando a elaboração de sua expressividade no âmbito do

mundo sacro, vinculada tão somente à adoração a Deus (FONTERRADA, 2005).

Tais práticas eram realizadas em seminários, conventos e igrejas, denominadas

scholae cantori, cujas atividades eram organizadas por músicos das igrejas, que “[...]

arregimentavam crianças dotadas de boa voz para suprir as necessidades de seus

coros. Geralmente provindas de lares pobres, essas crianças garantiam, muitas

vezes, o sustento próprio e o da família” (FONTERRADA, 2005, p. 27).

Esse fazer sonoro não tinha como propósito o desenvolvimento musical da criança,

restringindo-se à função de “[...] servir de suplemento à oração e à expressão da

emoção e do sentimento religiosos” (FONTERRADA, 2005, p. 28), sendo que “[...]

muitos dos importantes músicos dos períodos gótico, renascentista e barroco foram

meninos cantores” (FONTERRADA, 2005, p. 28). Os conteúdos musicais variavam

de acordo com a igreja, consistindo em aulas de canto, contraponto e improvisação.

Essa forma de organização da aprendizagem musical perdurou até a Renascença.

Assim, as scholae cantori estenderam sua atuação até o fim do século XV,

extinguindo-se à medida que uma nova ordem econômica e social se estabelecia na

Europa.

2.1.3 Renascença

Acontecimentos que se sucederam nos séculos XIV, XV e XVI levaram a um gradual

desmantelamento das estruturas feudais e consequente diminuição do poder

eclesiástico, relativizando as prescrições e o controle exercidos pela Igreja, fechando

as configurações econômicas, políticas e sociais que caracterizaram a era medieval.

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Inaugura-se, assim, a Renascença, período em que, praticamente em todas as

regiões da Europa, eclodiu “[...] uma vasta fermentação de ideias [...] e a liberdade

de pensamento [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 306), que impulsionaram o desenvolvimento

técnico, bem como o “[...] espírito científico, cujo procedimento experimental se opõe

à superstição e à rotina” (CANDÉ, 2001a, p. 306).

No tocante à música como fazer artístico, a Renascença marcou uma transformação

importante para os processos criativos e sua expressão, constituindo-se um período

de libertação dos dogmas da Igreja Católica, alimentando nos músicos o desejo de

superar as rígidas regras de composição e execução, consagrando “[...] todas as

suas atenções ao estilo e à expressão poética. O estilo se ajusta mais ao prazer do

que à convenção, e a expressão poética impõe ao canto uma nova flexibilidade”

(CANDÉ, 2001a, p. 337).

Impulsionados pelo desejo de novos timbres e formas musicais e encorajados pelos

avanços tecnológicos, músicos lançam-se na criação de instrumentos musicais, bem

como em uma maior liberdade de expressar suas ideias e emoções por meio da arte

dos sons, marcando “[...] o abandono de um equilíbrio perfeito e [a] descoberta de

uma nova expressão” (CANDÉ, 2001a, p. 321).

Nessa perspectiva, constatamos a construção de diferentes tipos de teclado, que, ao

longo da Renascença, serão dotados de um riquíssimo repertório: “em 1386, [surge]

um instrumento munido de dois teclados manuais [...] o teclado de pedal, [...] o

échiquier, que não possui os mecanismos engenhosos que darão origem, no século

XVI, ao clavicórdio (cordas percutidas) e ao cravo [...], mas tem certo sucesso”

(CANDÉ, 2001a, p. 303). Outras sonoridades comumente usadas no contexto dos

Quatrocentos e dos Quinhentos são as das vielas (espécie de viola), harpas,

alaúdes, saltério, órgão e flautas.

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Figura 3 - Jovem tocando clavicórdio, pintura de Jan van Hamessen (1534)

Fonte: Bennett (1993)

A liberdade no fazer musical renascentista fez-se perceber não somente entre os

compositores, mas também entre os instrumentistas ou cantores, pois “[...] a coisa

escrita ainda não impõe nenhum respeito impositivo e a variabilidade das execuções

será constante até a metade do século XVIII” (CANDÉ, 2001a, p. 337). As

execuções sonoras se utilizavam de instrumentos e vozes de maneira não habitual,

agrupando uma diversidade de instrumentos “[...] cujo uso não é prescrito pela

música escrita [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 337). Nesse sentido, muitos compositores

queixavam-se de que os cantores entoavam as músicas usando “[...] toda sorte de

artifícios: trêmulos, trinados, diminuições, floreios, mudanças de registro, voz de

cabeça e, sobretudo, certo tremolos na voz que delicia as multidões na Itália”

(CANDÉ, 2001a, p. 337).

Figura 4 - O concerto, óleo sobre tela de Gerrit van Honthorst (1624)

Fonte: O livro da Arte (1996, p. 228)

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Outro fato de fundamental importância para a liberdade na expressão musical na

Renascença foi a invenção da imprensa, que estendeu suas atividades ao campo da

arte dos sons, propiciando a divulgação e a aprendizagem das composições, por

meio da leitura de partituras, desprendendo-se das mãos e das orientações do

compositor. A partir de 1473, foram criadas diversas oficinas que usavam o mesmo

procedimento tipográfico de Gutenberg, abrindo caminho para os primeiros

impressores-editores de música, constituindo-se um “[...] trabalho delicado, pois a

impressão deve ser feita em três tempos: uma primeira passagem para as pautas,

uma segunda para as notas, uma terceira para o texto e a paginação” (CANDÉ,

2001a, p. 322).

Embora a produção de partituras impressas tenha sido um fator decisivo na abertura

de uma nova trajetória nos processos sonoros, propiciando a aprendizagem de

músicas executadas por grandes cantores e instrumentistas, a invenção da

imprensa sinalizou igualmente para uma diferenciação no status social, visto que

os impressores-editores desempenharam um papel considerável na difusão da nova música e na formação de um público de diletante. Mas essa promoção cultural se limita às classes sociais mais favorecidas, porque os livros e também o papel de música custam caríssimos [sic]. Se a impressão favoreceu a difusão da polifonia erudita, também contribuiu para criar classes sócio-musicais. Não tendo acesso à música notada, o povo é obrigado a cultivar outra música, improvisada ou de tradição oral. [...] na parte superior da escala social, a música faz obrigatoriamente parte da cultura geral: deve-se saber tocar um instrumento, como se deve saber compor versos latinos (CANDÉ, 2001a, p. 322).

Assim, na década de 1520, verificamos a publicação de um grande número de

diferentes estilos musicais. Intérpretes que tivessem possibilidade de acesso aos

materiais teriam liberdade de execução: “[...] o cantor solista podia, assim, dar um

tratamento bastante livre às notas escritas, introduzindo ornamentos [...]

improvisados em uma ou várias cadências principais” (GROUT; PALISCA, 2007, p.

224). Músicos talentosos e virtuoses adquiriram reconhecimento e sucesso,

superando o prestígio dos compositores, valorizando sua arte, tomando

[...] toda sorte de liberdades com o texto. Os diletantes tomarão outras, por motivos diferentes: desejosos de executar a música em voga, devem contar com os limites de seu talento, a quantidade e a qualidade de seus parceiros, sem falar na preocupação de imitar determinado virtuose renomado (CANDÉ, 2001a, p. 338).

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Tratando ainda do acesso dos diletantes renascentistas às composições, Candé

(2001a) abordou a produção e a divulgação de canções francesas com tablatura

apropriada para o alaúde, permitindo a execução por uma ou mais vozes, com

acompanhamento instrumental, em cujas partituras o compositor apresentava

sugestões para diferentes modos de execução, destinada ao público em geral.

No que diz respeito à educação musical, suas trilhas seguiram os mesmos passos

da educação em geral, constituindo-se um reflexo das ordens social e econômica,

visto que as mudanças políticas ocorridas tiveram especial interferência na estrutura

dos valores sociais, bem como na geração de uma nova dinâmica na vida cotidiana,

passando a ser regida “[...] por disputas de prestígio – e que exigia a educação e

comportamentos capazes de diferenciar os cortesãos uns dos outros” (VEIGA, 2007,

p. 34).

Desse modo, passou-se a atribuir à aquisição de conhecimento um importante valor

como elemento de diferenciação de prestígio na sociedade, produzindo novas

concepções de educação, bem como “[...] a proliferação dos colégios [...]” (VEIGA,

2007, p. 33). Nessa perspectiva, tem-se início “[...] uma preocupação com as

distinções para a educação das crianças – ou pelo menos dos filhos dos burgueses

e aristocratas” (VEIGA, 2007, p. 38).

Essas novas feições sociais fizeram-se refletir na modificação dos antigos colégios,

que, “[...] no século XIII [...] eram asilos para estudantes pobres [...] bolsistas [...]”

(ARIÈS, 2006, p. 110), tornando-se “[...] institutos de ensino [...] a partir do século

XV” (ARIÈS, 2006, p. 110). Tais institutos passaram a atender não somente aos

bolsistas, mas a uma numerosa população de estudantes. Esses estabelecimentos

constituíram o modelo de escola que iria vigorar entre os séculos XV e XVII, nos

quais “[...] todo o ensino das artes passou a ser ministrado” (ARIÈS, 2006, p. 110). É

por essa via que, a partir do século XVI, os colégios, ou hospitia, passam a ser os

espaços nos quais as práticas musicais e sua aprendizagem eram desenvolvidas.

Assim, originaram-se as “[...] escolas de formação básica em música, dentro de um

princípio de organização diferente do das scholae. [...], conhecidas como

„conservatórios‟ [...]” (FONTERRADA, 2005, p. 38), que funcionavam, na verdade,

como orfanatos, sendo oficialmente denominados como Ospedali (hospitais).

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Os orfanatos musicais eram comumente organizados para acolher meninas e

meninos separadamente, tendo o primeiro desses sido criado em Nápoles, em 1537,

destinado a meninos, e outro, em Veneza, direcionado a meninas. Embora o fazer

musical das scholae cantori fosse direcionado ao louvor a Deus, já havia uma

preocupação em se organizar os conteúdos e métodos, incluindo-se aí a escrita

musical e sua execução em língua materna.

Tais modificações podiam ser observadas tanto em escolas católicas quanto em

escolas protestantes, evidenciando “[...] a necessidade de buscar critérios uniformes

que não descaracterizassem a música cristã que se expandia” (FONTERRADA,

2005, p. 39), “[...] criando a necessidade da transmissão formal de conhecimento”

(FONTERRADA, 2005, p. 39). Podemos afirmar que se inicia aí um processo de

alfabetização musical, facilitado pela notação da arte dos sons, já em curso,

conforme Candé (2001a), desde o século XI.

No que diz respeito à visão de criança, a sociedade renascentista passa a entendê-

la “[...] como um ser que necessita de cuidados, [...] educação e lazer”

(FONTERRADA, 2005, p. 38), distanciando-se da concepção medieval em relação

aos infantes.

As instituições escolares nesse período – os colégios, ou hospitia, ospedale – eram

divididas em “[...] colégios dos jesuítas, os colégios dos doutrinários e os colégios

dos oratorianos [...]” (ARIÈS, 2006, p. 110), sendo os primeiros os que mais se

proliferaram na Europa e, posteriormente, em outros continentes, constituindo-se

como “[...] o grande marco de ensino nas sociedades católicas europeias e latino-

americanas, [...] integrando a pedagogia humanista ao espírito da cristandade”

(VEIGA, 2007, p. 41). Especificamente, a ordem dos jesuítas, ou Companhia de

Jesus, foi fundada por Inácio de Loyola, em 1534, tendo como objetivos centrais o

combate à Reforma Protestante e às “heresias”, dedicando-se “[...] principalmente à

formação das classes dirigentes da sociedade [...]” (MANACORDA, 2006, p. 203).

Na verdade, os jesuítas fundaram dois diferentes tipos de colégios, de acordo com a

estratificação social: “[...] havia tanto escolas para burgueses e nobres quanto

escolas exclusivas para filhos de nobres [...]” (VEIGA, 2007, p. 41).

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Com as mudanças ocorridas no campo científico e da criação músico-instrumental,

constatamos, já no século XVI, o movimento dos reformadores, que defendiam o uso

da língua materna para a leitura da Bíblia, bem como para a execução de seus

cantos. Além desses aspectos, alguns grupos de reformadores reivindicavam um

novo modelo de instrução popular, verificando-se mobilizações de pequenos

artesãos associados ao campesinato, que chegaram a projetar “[...] corajosamente

um sistema de instrução popular [...]” (MANACORDA, 2006, p. 195). Na esteira da

Reforma e da Contrarreforma, Lutero emergiu como força propulsora para a

programação de um novo sistema escolar, “[...] voltado também à instrução de

meninos, destinados não à continuação dos estudos, mas ao trabalho”

(MANACORDA, 2006, p. 196).

Em se tratando das concepções relativas à expressividade sonora, constatamos em

Sadie e Tyrrell (2001a) que a doutrina aristotélica de arte como imitação da natureza

permanece do fim da Antiguidade até o princípio do século XVIII, atravessando todo

o período medieval e renascentista como a principal referência para as reflexões a

respeito dessa temática, constituindo-se uma base fundamental para o

desenvolvimento dos processos criativos no campo da arte. Nessa perspectiva, de

acordo com Bennett (1986), no fim do século XVI, um grupo musical – Grupo

Camerata – de Florença, Itália, passou a compor uma linha melódica simples

acompanhada de um baixo instrumental, associando a essa simplicidade a

expressão das emoções, dos estados da alma.

2.1.4 Períodos barroco e clássico

No período compreendido entre 1600 e 1750, observamos uma ampliação dos

processos de liberdade de expressão e de inventividade musical originados na

Renascença, estando esse fortalecimento associado principalmente “[...] à criação

do melodrama [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 424), gênero musical originado na Itália,

constituindo-se uma nova junção entre a poesia e a música. Praticando-se o que se

imaginava ser a recitação lírica da Grécia e Roma antigas, a expressão passou a ser

reivindicada como um aspecto independente das regras de composição musical

vigentes, reacendendo as digressões acerca da alma e das paixões: “[...] o estilo de

música vocal deve ser a conjunção do sentido poético e do sentimento individual. [...]

[os compositores pretendiam] substituir as [...] construções da polifonia pela livre

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expressão musical das paixões” (CANDÉ, 2001a, p. 424). Nesse caso, tais paixões

poderiam ser traduzidas não mais na significação convencional das palavras, mas

na maneira de cantar, devendo “[...] dispor o músico de uma liberdade soberana”

(CANDÉ, 2001a, p. 424).

Em relação aos instrumentos, a expressão de tais paixões requisitava sonoridades

específicas, diferentes dos sons da Idade Média, levando ao aprimoramento ou à

elaboração de novos instrumentos musicais, que proporcionassem outras texturas,

outros timbres. Tratando especificamente dos instrumentos de teclado, identificamos

em Candé (2001a) que, entre os séculos XVI e XVIII, tem-se a invenção de

[...] pequenos instrumentos portáteis (um só teclado de quatro oitavas, um só registro) de forma retangular que, até meados do século XVII, pelo menos, eplipsarão o clavicórdio. Dá-se-lhe o nome de épinette na França, de spinetta na Itália, de virginal na Inglaterra (CANDÉ, 2001a, p. 402).

Na Inglaterra, o virginal transformou-se no instrumento mais popularmente usado

entre as famílias elisabetanas, sendo, igualmente, a sonoridade preferida dos

compositores, tais como William Byrd e John Bull, formando uma profícua escola de

virginalistas.

Figura 5 - Mulher sentada ao virginal, óleo sobre tela de Vermeer (1675)

Fonte: O livro (1996, p. 474)

Os compositores não se pouparam à criação de incontáveis obras para virginais, de

caráter virtuosístico, assinalando “[...] uma etapa decisiva na evolução da técnica do

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teclado [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 405). Com referência à sonoridade, identificamos

descrições do som de determinados instrumentos de teclado: “apesar da [sic]

sonoridade do virginal não ser muito rica e possante, e ser menos variada do que a

do cravo, suas notas agudas cintilam como brilhantes e as do baixo podem

surpreender pelos sons arredondados e cheios” (BENNETT, 1993, p. 26).

Em 1600, o gênero referido como melodrama passou a ser qualificado como

representativo ou recitativo, influenciando a criação de um tipo de Oratório, na

verdade, “[...] um melodrama religioso em stile representativo, [...] montado por

iniciativa dos padres como uma piedosa alternativa para os espetáculos profanos

que se multiplicavam naquele período de carnaval” (CANDÉ, 2001a, p. 426), bem

como abrindo espaços para a ópera. O estilo melodrama ficou mais nítido no século

XVII, especialmente na produção de Cláudio Monteverdi, cuja obra Orfeo traz “[...]

uma „recitação cantada‟, moldada na expressão dos sentimentos: intervenção

dramática dos coros, [...] esplendor instrumental [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 436),

inaugurando o período barroco.

Por essa via, os processos expressivos na arte dos sons unificaram a música vocal e

instrumental, esfumaçando-se, de uma vez por todas, as fronteiras entre música

sacra e música laica, que, a partir desse ponto, poderiam ser distinguidas apenas

por meio da “[...] espiritualidade que a eventual fé religiosa do compositor irradia [...]”

(CANDÉ, 2001a, p. 598). A forma de pensamento do homem barroco e clássico e,

consequentemente, seus modos de sentir, em geral, seguem os pressupostos

cartesianos, expressando suas paixões de maneira que “[...] não é desenfreada [...]”

(FONTERRADA, 2005, p. 47), obedecendo às regras composicionais previamente

organizadas: “[...] Haydn e Mozart nunca se esforçaram para exprimir „paixões‟

exteriores à sua inspiração puramente musical” (CANDÉ, 2001a, p. 12).

A eclosão da música instrumental e sua consequente prevalência em relação à

composição vocal sinalizou para uma modificação profunda nos valores relativos à

produção da arte dos sons, fazendo nascer a figura do concertista, que dialoga com

o restante da orquestra, mesmo que ela seja de pequeno porte. Por essa via, “[...] a

emancipação da música instrumental iniciada no século XV se realiza plenamente

na era barroca” (CANDÉ, 2001a, p. 501), inaugurando um processo de descobertas

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das singularidades e possibilidades timbrísticas de cada instrumento, bem como das

vozes.

De acordo com Bennett (1993), o desejo de expressar as sutilezas das sonoridades

ocupa a atenção central dos músicos, que passaram a buscar uma amplitude maior

no que diz respeito ao crescendo e ao diminuendo, bem como uma variação nas

texturas e timbres. Bennett (1993, p. 37) destaca comentários feitos pelo compositor

e instrumentista Couperin (1668-1733) a respeito do cravo, observando que esse

instrumento musical possuía ótima extensão, sendo, “[...] por si só, um instrumento

brilhante, mas já que é impossível fazer crescer ou diminuir a sua sonoridade, ficarei

para sempre grato a quem, com infinita arte e bom gosto, contribua para tornar esse

instrumento capaz de expressão”.

A “expressão” de que trata Couperin é a possibilidade de realizar uma variedade de

sonoridades em um mesmo trecho melódico, indo dos sons fortes, passando por

sons de média intensidade até chegar a sonoridades suaves ou extremamente

delicadas. Tal expressividade corresponde às ideias sonoras dos músicos

oitocentistas, que requisitavam novos instrumentais, capazes de corresponder aos

sons que tinham em suas mentes, haja vista que a conformação sonora medieval

era de pouco trânsito no que se refere aos sons graves e agudos, mantendo-se

preponderantemente nos sons médios, e não apresentava mobilidade significativa

nas intensidades mais fortes ou mais suaves.

Dessa maneira, entre 1709 e 1736 foram desenvolvidos alguns tipos de piano que

tinham como objetivo “[...] privilegiar o toque expressivo, permitindo executarem-se à

vontade as nuanças piano e forte, coisa impossível no cravo e incerta no clavicórdio”

(CANDÉ, 2001a, p. 562, grifos do autor). A invenção de Bartolomeo Christofori

(1655-1731) abriu inúmeras e interessantes possibilidades aos instrumentistas e aos

compositores, visto que

[...] era possível controlar as múltiplas nuanças intermediárias de volume. [...] Um outro contraste era o de legato (notas sustentadas e uniformes) por oposição ao staccato (notas secas e destacadas). Fora isso, podia ainda o instrumentista, com a mão direita, modelar uma expressiva melodia ao estilo cantabili [cantado], enquanto a esquerda fornecia um acompanhamento sóbrio, mas sutilmente colorido (BENNETT, 1993, p. 37-38).

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Figura 6 - Piano de Bartolomeo Christofori (1720)

Fonte: Bennett (1993)

Tais transformações nas sonoridades, que colocavam a música instrumental como a

principal referência no âmbito do fazer musical, propiciaram a elaboração de novas

concepções sobre a expressão da arte dos sons, trazendo diferentes reflexões e

teorias que, de certa maneira, remontavam à concepção da arte como imitação da

natureza, elaborada por Aristóteles. Dentre essas reflexões, destacamos duas

vertentes de pensamento que defendiam a ideia de que os eventos musicais teriam

estreita relação com os sentimentos humanos (FONTERRADA, 2005): trata-se da

Teoria dos Afetos e da Doutrina das Figuras, vinculada à retórica.

No que se refere à Teoria dos Afetos, constatamos reflexões semelhantes a respeito

da expressão dos afetos pela via musical, algumas delas apresentando descrições

detalhadas de suas relações com determinados sons, bem como da maneira de

executá-los. Esse é o caso da proposta de J. Matheson (1796-1878), cujo trabalho

apresenta um elenco de diferentes afetos (mais de 20), acompanhados da indicação

do modo pelo qual deveriam ser expressos na música: “[...] a tristeza deve ser

expressa por melodias de movimento lento e lânguido, e quebrada por saltos; o ódio

é representado por uma harmonia repulsiva e rude, e por uma melodia semelhante”

(FONTERRADA, 2005, p. 44). Referindo-nos à Doutrina das Figuras, a

expressividade baseava-se no empréstimo das figuras da retórica, tais como “[...] a

aposiopesis (parada súbita, silêncio expressivo), a pathopoeia (expressão de

sentimentos) [...]” (FONTERRADA, 2005, p. 45 grifos da autora).

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Outra importante referência acerca das concepções sobre expressão na arte dos

sons é o pensamento de Jean Dubos (1670-1742), pensador francês cuja teoria

defendia que a música seria “[...] um meio de despertar as paixões moderadas no

homem, através [sic] da imitação, afastando-o dos aborrecimentos” (SADIE;

TYRRELL, 2001a, p. 463, tradução minha). Ou, nas palavras do próprio autor,

[...] tal como o pintor imita os traços e as cores da natureza, de modo semelhante, o músico imita os tons, os acentos, suspiros e inflexões da voz; em um conjunto daqueles, daqueles sons, pelos quais a natureza, ela mesma expressa seus sentimentos e paixões (DUBOS, p. 360, acesso em 4 jun. 2016, tradução minha).

Para Dubos (p. 363, acesso em 4 jun. 2016, tradução minha), a música era um meio

de imitar a natureza do homem, em suas paixões e sentimentos, bem como uma

imitação literal da natureza, pois “[...] a música não se satisfaz por imitar as

modulações da linguagem não articulada do homem, bem como os diversos sons

dos quais ele faz uso por instinto; ela tem buscado igualmente formar imitações de

todos os outros sons naturais”. Esse autor afirmava ainda que a música possuía

uma verdade e que essa verdade consistiria na imitação de sons que se adequam

“[...] naturalmente aos sentimentos que as palavras contêm [...]” (DUBOS, p. 363,

acesso em 4 jun. 2016, tradução minha). Ao fazer referência ao estilo musical

sinfônico, ele salientou seu caráter exclusivamente instrumental, e, na mesma

perspectiva, afirmou que

[...] a verdade da imitação nas sinfonias consiste na semelhança com os sons que ela intenciona imitar. Existe verdade em uma sinfonia composta para imitar uma tempestade [...] quando a modulação, a harmonia e a rítmica chegam aos nossos ouvidos, com o som semelhante às baforadas de vento no ar, e as quedas das ondas, com suas precipitações impetuosas umas contra as outras, ou quebrando-se nas rochas (DUBOS, p. 364, acesso em 4 jun. 2016, grifo do autor, tradução minha).

Além do pensamento de Matheson e Dubos, coexistiam no período outras reflexões

a respeito da expressão musical, tecidas na mesma perspectiva da arte como

imitação da natureza, apresentando pequenas diferenças entre si. Nesse sentido, o

crítico de arte inglês Charles Avison (1775, p. 4-5) argumentava que a música nos

faz “[...] exaltados com júbilo, ou afundados em tristeza agradável, incitados à

coragem, ou esmagados por gratos terrores, desfeitos em piedade, ternura e amor

[...]”, porém, “[...] as tristezas e os terrores da música não são emoções nossas, mas

são sentidas por nós simpaticamente”.

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Estabelecendo uma aproximação com a temática da pesquisa aqui relatada,

verificamos transformações importantes no século XVIII, tendo como princípio geral

o ato de distinguir a infância da vida adulta. A atenção à infância já se manifestara

nas sociedades europeias desde o século XVI, porém, teve um lento

desenvolvimento, vindo a ser notada com clareza somente no fim dos Setecentos.

Os processos educativos começaram, portanto, a ser pensados em uma nova

perspectiva, a qual tinha como premissas o respeito aos ritmos da criança e à sua

espontaneidade. Esse modelo de pensamento a respeito da infância tem como

principal representante o filósofo Jean-Jacques Rousseau, o qual elaborou uma

pedagogia própria às diferentes faixas etárias, a saber: “[...] infância, puerícia,

puberdade, adolescência e jovem adulto [...]” (VEIGA, 2007, p. 44), sendo tais

orientações válidas tanto para as mães quanto para os educadores.

Rousseau (apud VEIGA, 2007) defendia o equilíbrio entre razão e sensibilidade,

apostando na educação dos sentidos, com ênfase nos processos exploratórios, na

experiência e nas descobertas. Por essa via, todo ato educativo deveria propiciar

aos infantes o autoconhecimento, bem como a descoberta do corpo e da natureza,

por meio da autoexpressão. Tais princípios e procedimentos seriam a condição

única para que o indivíduo formasse, ao longo de seu desenvolvimento, uma atitude

moral.

Na esfera da filosofia da música, Rousseau teceu amplas reflexões acerca da

significação da arte dos sons, sendo o primeiro pensador, no campo da educação, a

formular um “[...] esquema pedagógico especialmente voltado para a educação

musical” (FONTERRADA, 2005, p. 51). Em sua proposta para a música na infância,

esse filósofo sustentava que as canções deveriam ser “[...] simples e não dramáticas

[...]” (FONTERRADA, 2005, p. 51), deixando a leitura musical para etapas

posteriores do processo de musicalização.

A partir de meados do século XVIII, a pedagogia ilustrada ou iluminista – tendo como

mola propulsora o pensamento de Rousseau – instigou a realização de diversas

reformas nos programas educacionais na Europa, que possuíam duas

características comuns: “[...] o fechamento dos colégios dos jesuítas e o fato de o

Estado assumir a administração educacional” (VEIGA, 2007, p. 93). Esse fato é um

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desdobramento da configuração política e econômica na qual se assentava a

sociedade no século XVIII, movida pela primeira Revolução Industrial, expansão das

relações mercantilistas, processo de monopolização do ensino pelo Estado, bem

como pelo aprimoramento das identidades individuais, marcando a formação dos

modernos Estados nacionais. Tais modificações repercutiram na estruturação das

escolas, que, a partir de então, passariam a ter como objetivo central a formação de

um cidadão eficiente, um trabalhador que atendesse às demandas das recém-

criadas indústrias e suas máquinas.

Assim, na perspectiva da profissionalização e eficiência, a educação musical passou

a apresentar diferenciações relacionadas à classe social: os antigos colégios ou

ospedale que se mantinham em funcionamento atendendo a crianças órfãs

passaram a ter um objetivo “[...] decididamente de caráter profissionalizante [...]”

(FONTERRADA, 2005, p. 48). Relatos concernentes às práticas musicais nos

ospedale, ou, ainda, “hospitais”, destinados a meninas, em Veneza, revelam que

haviam treinamentos com vistas à excelência musical.

Relativamente às crianças da nobreza e burguesia, era comum as famílias formarem

grupos musicais que tocavam em suas residências, como atividade diletante.

Consideramos importante destacar que “[...] as crianças tomavam parte em todos

esses concertos de câmara” (ARIÈS, 2006, p. 57). Também os adultos tocavam para

elas. Desse modo, “[...] embora a prática familiar e popular de um instrumento ou do

canto talvez fosse mais comum na Inglaterra elisabetana do que no resto da Europa,

ela era também difundida na França, na Itália, na Espanha e na Alemanha [...] até os

séculos XVIII e XIX” (ARIÈS, 2006, p. 57). Em se tratando da arte dos sons no meio

popular, verificamos as práticas “[...] entre camponeses, [...] mendigos, cujos

instrumentos eram a gaita de foles, o realejo e a rabeca” (ARIÈS, 2006, p. 57).

No fim do século XVIII, podemos afirmar que a arte dos sons ganhou ênfase em sua

utilização como marca identitária, exercendo o papel de demarcadora de territórios e

expressão de poder, sendo possível entendê-la como “[...] o mito da voz única de

uma nação” (BUCH, 2001, p. 10). Na Inglaterra, a canção God save the King (que

posteriormente foi denominada God save the Queen) marca o surgimento do gênero

“hino nacional”, que é seguido pela França revolucionária, com La Marseilhaise, que

continha em si os ideais da Revolução Francesa (1789). O hino francês foi precedido

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por inúmeras canções populares perpassadas pelo caráter nacionalista, ainda que

independentes de uma orientação do Estado, constituindo-se melodias que

delimitavam por completo e nitidamente as fronteiras entre o pensamento medieval e

o moderno, por exemplo, “[...] na língua, com a substituição do latim pelo francês; na

temática, passando da invocação do Deus cristão à [temática] da liberdade, [...] e a

entronização de um sujeito coletivo que se transforma em voz geral do povo pela

reunião de todos os indivíduos” (BUCH, 2001, p. 43).

Essa nova forma de expressão musical surgiu em diferentes nações, firmando-se no

cenário geopolítico como demarcação de territórios e interesses de natureza diversa,

como é o caso do Estado austríaco, que encomendou um hino imperial ao

compositor Joseph Haydn, com o objetivo de marcar o posicionamento

contrarrevolucionário do governo. Na Alemanha, Beethoven compôs Ode à alegria,

que se tornou uma canção emblemática para os germanos, cantada em alemão,

sendo utilizada tanto como grito do povo quanto como a voz do Estado.

A enunciação dos hinos revolucionários vai oscilar entre a representação da voz coletiva no canto dos músicos profissionais e as tentativas para fazer a população, por si mesma, cantar. Essas variações são frequentemente ligadas às questões práticas, mas nelas reside o traço dos debates políticos sobre a participação popular, em geral, e incidindo sobre o estatuto da democracia (BUCH, 2001, p. 42).

A Revolução Francesa, no fim do século XVIII, definiu-se como uma linha divisória

entre formas econômicas e políticas que moldavam as sociedades europeias,

sinalizando para grandes transformações nos modos de produção e nas relações de

trabalho. Nessa perspectiva, o conceito de nação, “[...] que tende a substituir o de

Estado [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 629), impulsionou a valorização da cultura como

patrimônio nacional e modificou “[...] profundamente o sentido e as condições da

comunicação artística [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 629). Beethoven emergiu como o

grande músico desse período de transição, situando-se como um artista

revolucionário, insubmisso ao poder instituído, “[...] porque essa disposição

individual irrompe em sua obra [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 628). Sua música não

expressa as ideias revolucionárias, mas antes, ela, em si mesma, “[...] é um ato de

revolução [...]” (CANDÉ, 2001a, p. 628).

Tais fatos incidiram nas ideias a respeito das concepções sobre a expressão musical

da época, culminando na ruptura com a doutrina aristotélica, tendo na figura de

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William Jones (1746-1894) o precursor da argumentação de que a música não era

uma arte imitativa, mas simplesmente a expressão das paixões. Conforme Sadie e

Tyrrell (2001a, p. 463, tradução minha), esse filósofo afastou-se das concepções

aristotélicas a respeito da arte, defendendo a ideia de que “[...] as partes mais

refinadas da poesia, da música e da pintura são expressões das paixões e operam

em nossas mentes [...] por substituição [...]”. Conforme os autores, a concepção de

William Jones apresentou uma diferença significativa para a compreensão a respeito

do fazer musical, pois, ao considerar a arte musical como expressão das paixões,

abriram-se as possibilidades para se expressar o visível e o invisível, representando

“[...] um passo para o que denominamos ser a „interpretação‟, na perspectiva da

subjetividade no romantismo” (SADIE; TYRRELL, 2001a, p. 463, tradução minha).

2.1.5 Romantismo

Os últimos anos do século XVIII e todo o século XIX foram palco de intensas

transformações nos modos de produção, bem como nas relações de trabalho,

caracterizando a consolidação do sistema capitalista em toda a Europa (VEIGA,

2007). A Segunda Revolução Industrial, em meados do século XIX, também afetou

as configurações sociais e políticas em diversas regiões europeias, reordenando a

formatação das cidades, que sofreram significativo aumento no volume populacional,

acelerando o processo de urbanização.

Esse enquadramento trouxe diferentes demandas para a organização dos centros

urbanos, levando a administração pública à criação de departamentos

especializados em áreas tais como programas de higiene, coleta de dados sobre

doenças e outros temas relacionados à condição de vida das populações. Dessa

forma, as cidades passaram a se constituir centros de formação e educação, visão

“[...] enfatizada em diversos projetos de reordenação dos espaços urbanos,

evidenciando a necessidade de converter tais espaços em polos de

desenvolvimento das novas relações de trabalho e de produção” (VEIGA, 2007, p.

207).

Igualmente, tais transformações propiciaram o nascimento de uma nova

sensibilidade, que poderia ser traduzida, de um modo geral, nas antíteses entre “[...]

o progresso e o mal do século, as monarquias liberais e as repúblicas autoritárias, o

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nacionalismo e o internacionalismo, o individualismo e o sentimento da natureza, o

sonho e a revolta” (CANDÉ, 2001b, p. 10). Essa sensibilidade afetou, de forma

determinante, as construções musicais, que passaram a expressar as angústias,

buscas, descobertas, alegrias, além das formas sociais e profissionais do contexto

oitocentista. Nessa perspectiva, o músico passou a não mais compor por

encomenda de um papa, imperador ou duque, mas para um grande público, e, “[...]

não sabendo mais para quem nem por que cria, o compositor encontra em si mesmo

o motor de sua inspiração” (CANDÉ, 2001b, p. 16).

Trata-se de uma forma inusitada de ser profissional da música, pois, “[...] entregue a

si mesmo, o compositor terá dificuldades para organizar sua nova situação. [...] O

compositor organiza concertos em seu benefício, exerce uma profissão anexa

(crítico, maestro, professor)” (CANDÉ, 2001b, p. 16). Esse fato criou dificuldades

relativas à subsistência, mas, ao mesmo tempo, estando o profissional “[...] livre da

obrigação de escrever por encomenda, [o novo cenário] deixa-lhe a liberdade de

escrever o que lhe apraz e apresentar sua música onde bem entender” (CANDÉ,

2001b, p. 11).

Por esse ângulo, a expressividade na arte dos sons passou a estar associada à

criação individual, tornando a empunhar a bandeira da expressão, abandonada no

classicismo. Assim, na sonoridade oitocentista, a alma do artista é “[...] o objeto que

se deve retratar, que a música tem por função essencial expressar. [...] O

romantismo consagrou-se ao culto da personalidade” (CANDÉ, 2001b, p. 12-13).

Com objetivo, portanto, de expressar as paixões de uma alma específica, que vão

desde a paz mais profunda até as angústias avassaladoras, os compositores

criaram, por meio de blocos sonoros, a ideia dessas sensações, compondo a

matéria sonora arquitetonicamente, tanto na verticalização quanto nos

encadeamentos horizontais entre os sons. Assim, buscaram a intensidade sonora,

que passou a ser mais encorpada, radicalizando na extensão das sonoridades

graves e agudas, bem como na magnitude dos sons fortes ou de extrema leveza. Se

compararmos ao período clássico e barroco, os forte, no romantismo,

frequentemente chegaram aos sons fortíssimos, e os piano, às sonoridades muito

leves, doces, geralmente na conjugação de contrastes repentinos.

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Tais sonoridades imaginadas pelos compositores tiveram como melhor veículo de

expressão o piano, que, no século XIX, já apresentava diferenças significativas

comparativamente ao utilizado por Mozart. Dessa maneira, tendo passado por

inúmeras melhorias técnicas e visivelmente remodelado, o piano oitocentista era “[...]

capaz de produzir um som pleno e firme a qualquer nível dinâmico, de responder em

todos os aspectos às exigências de expressividade e do mais extremo virtuosismo”

(GROUT; PALISCA, 2007, p. 590).

Por essa via, o piano passou a ocupar um lugar central na sociedade musical do

século XIX, apresentando “[...] possibilidades absolutamente inauditas: sua técnica

dá o maior salto de sua história” (CANDÉ, 2001b, p. 23). Podemos afirmar que o

piano consagrou-se como “[...] o instrumento romântico por excelência [...]” (GROUT;

PALISCA, 2007, p. 590), fortalecendo a figura do virtuose como referência e objetivo

último das práticas sonoras. Com essa finalidade, são criadas inúmeras obras

específicas para o desenvolvimento técnico nesse instrumento, destacando-se os

Estudos de Chopin, nos quais “[...] todas as dificuldades, mas também todos os

recursos do instrumento são abordados de maneira ousada” (CANDÉ, 2001b, p.

170).

Figura 7 - Piano no século XIX

Fonte: Bennett (1993)

Relativamente às concepções sobre expressão musical, verificamos no período

romântico, conforme ressaltam Sadie e Tyrrell (2001a), duas vertentes de

pensamento opostas: a que entendia a música como a representação de uma ideia

ou de um estado mental, conforme as reflexões de Hegel, Schopenhauer, Wagner e

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Nietzsche, e outra que defendia a noção de que a arte dos sons só pode ser

compreendida em si mesma, nas suas formas sonoras, não expressando nada além

de si mesma, conforme ideias defendidas por Hanslick (2011).

Sadie e Tyrrell (2001a, p. 467, tradução minha) salientam ainda que a arte para

Hegel “[...] poderia ser somente expressão [...]”, já que esse filósofo a entendia como

um produto unicamente humano, que dá forma à vida mental, corporificando suas

ideias e concepções. Na perspectiva de Hegel, a expressão sonora não se

associava a nenhum estado particular da mente, consistindo em uma representação

das possibilidades mentais. Por essa via, não haveria modo de “[...] estudar a

geometria de um rosto desconsiderando suas características enquanto [sic] a

revelação intrínseca da vida mental” (SADIE; TYRRELL, 2001a, p. 468, tradução

minha).

Em Schopenhauer (1997, p. 88), por sua vez, observamos a concepção de que a

arte dos sons “[...] é uma reprodução e uma objetivação tão imediata de toda a

vontade8, como a constitui o próprio mundo, como o são as ideias, cujo fenômeno

multiplicado forma o mundo das coisas individuais”. Nessa ótica, a música não era

entendida como a apresentação de ideias extraídas dos fenômenos cotidianos, mas

representava “[...] em si mesma uma ideia compreensível de mundo,

automaticamente incluindo o drama” (SADIE; TYRRELL, 2001a, p. 465, tradução

minha).

O ponto de vista defendido por Schopenhauer encontrou ressonância nas ideias de

Wagner (1893), que sustentava a noção de que a expressão musical não se referia

a um determinado modo de sentimento ou à tormenta de um indivíduo em uma

situação específica, salientando sua função abstrativa. Wagner (1893) sublinhou o

caráter da música como representação de emoções, constituindo uma linguagem

que expressa aquilo que é indizível na linguagem verbal.

8 Um ponto extremamente importante na obra de Schopenhauer é o conceito denominado vontade.

Por influência da filosofia oriental, esse filósofo entende o homem como um microcosmo, um microuniverso. Homem e universo estão em constante luta, em função da Vontade que está no Universo, mas também mora no corpo do homem (vontade) (GHIRALDELLI JÚNIOR, 2007). Nem sempre essas duas vontades coincidem, o que causa sofrimento ao homem. Já que a vontade é irracional e não passível de controle, não podemos escapar de tal sofrimento. É aqui que a arte e a contemplação da natureza assumem um importante papel na filosofia schopenhaueriana, já que prática da ascese estética é sugerida como algo que pode minimizar esse sofrimento.

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Semelhantemente a essa perspectiva, para Nietzsche (1974, p. 25), a música “[...] é

um fenômeno eterno: a vontade ávida sempre encontra um meio, graças a uma

ilusão espraiada sobre as coisas, para manter suas criaturas na vida e forçá-las a

continuar a viver”. De acordo com Sadie e Tyrrell (2001a, p. 465, tradução minha),

Nietzsche concebia a arte dos sons como o resultado de um equilíbrio entre seus

aspectos dionisíacos (os sentidos) e apolíneos (as regras, a estrutura, a ordem),

destacando que “[...] o poder expressivo da música, e consequentemente o seu

valor, emergem da tensão entre esses dois extremos”.

Sadie e Tyrrell (2001a) salientaram a proximidade de pensamento entre

Schopenhauer, Wagner e Nietzsche, destacando que suas abordagens sinalizavam,

de certa maneira, para uma retomada da concepção de arte como imitação da

natureza, porém, o que estava sendo imitado ou representado “[...] não é um outro

mundo da natureza. No lugar disso, trata-se agora, da profunda natureza da força da

vontade em si mesma” (SADIE; TYRRELL, 2001a, p. 465, tradução minha).

Em se tratando das ideias de Hanslick, observamos que em sua concepção a

música é um conjunto articulado de sons e ritmos, cujos sentidos residem na própria

sequência de seus elementos. Esse musicólogo defendeu a ideia de que “[...] o

único e exclusivo conteúdo e objeto da música são formas sonoras em movimento”

(HANSLICK, 2011, p. 41), não expressando nada além de si mesma: “diante do

belo, a fantasia não é apenas um contemplar, mas um contemplar com

entendimento, um representar e um julgar [...]” (HANSLICK, 2011, p. 11).

No que diz respeito à educação musical, constatamos sua inter-relação com os

modos de produção e relações de trabalho característicos da sociedade oitocentista.

De acordo com Veiga (2007), a maneira capitalista de se produzir bens materiais,

baseada no manejo eficiente de máquinas com tarefas especializadas, influenciou,

de maneira determinante, as formas de produção do conhecimento e sua

subsequente difusão. Ou seja, o tempo e o processo de produção do conhecimento

deixaram de ser controlados por seus próprios produtores, passando à

administração de um sistema gerencial que hierarquizou, racionalizou, classificou e

diferenciou as profissões e os salários.

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Esse modo de produção englobou igualmente a escola, influenciando sua

estruturação, organização e forma funcionamento. Nesse sentido, as capacidades

humanas foram compartimentalizadas, criando-se as habilidades direcionadas para

a indústria, fazendo com que o saber “[...] se restringisse à atividade específica de

cada um na cadeia de produção” (VEIGA, 2007, p. 203).

Por essa via, as práticas educativas no âmbito da música sofreram uma profunda

modificação no que se refere aos objetivos, ao público atendido, bem como ao

espaço de aprender: no âmbito da música, “[...] o século XIX assiste ao surgimento

das primeiras escolas particulares de caráter profissionalizante. A primeira delas é o

Conservatório de Paris, criado em 1794. Na Inglaterra, em 1822, é fundada a The

Royal Academy of Music” (FONTERRADA, 2005, p. 70). Tais instituições de ensino

de música funcionavam como externato, afastando-se dos modelos dos colégios

italianos dos séculos XVI a XVIII, que atendiam a crianças órfãs. Ao longo de todo o

século XIX, esse estilo de escola de música passa a ser criado em diversas cidades

da Europa – Praga (1811), Viena (1817), Berlim (1850) e Genebra (1815) –, Estados

Unidos – Boston, Illinois (1860) – e também no Canadá – Montreal (1860)

(FONTERRADA, 2005).

É esse formato de conservatório de música que chegou ao Brasil. As primeiras

instituições nas quais ele se fez presente foram o Conservatório Brasileiro de

Música, no Rio de Janeiro (1845), e o Conservatório Dramático e Musical, em São

Paulo (1906). Por aqui, o modelo de conservatório europeu foi implantado seguindo

a estrutura curricular, o elenco de músicas (o repertório), bem como as balizas para

se avaliar as interpretações dos alunos, sendo seguido até hoje na formação da

maior parte dos músicos no País (FONTERRADA, 2005).

Retomando a questão do modo de produção capitalista e sua relação com a

produção do conhecimento, constatamos que a divisão de classes sociais dele

resultante determinou uma diferenciação no que diz respeito à relação com a arte

dos sons: as práticas musicais da classe trabalhadora desenvolviam-se na

perspectiva da tradição oral, enquanto a classe burguesa passou a determinar os

valores e os critérios de legitimidade em torno da qualidade no fazer artístico. Assim,

a sociedade burguesa do século XIX passou a instituir os critérios que iriam

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selecionar os produtores e os consumidores de uma determinada modalidade

musical, tendo como centro desse cenário o piano:

[...] nos países independentes e unificados, em estado de revolução social, a música torna-se [...] elitista [...]; será um setor preservado, a que a burguesia culta fornece seus mitos e suas instituições. De fato, em torno do piano, a música começa a instituir-se; ela seleciona seus fiéis, que são reconhecidos por seu „gosto‟ e sua atitude (CANDÉ, 2001b, p. 19).

Essa mesma burguesia criou uma espécie de establishment musical, inventando

“[...] o mito da música „verdadeira‟ (mais tarde, a música erudita)” (CANDÉ, 2001b, p.

19), por meio da sacralização das obras, da afetação de transcender o prazer, bem

como pela compreensão “[...] que fecha o círculo dos iniciados, desencorajando os

neófitos” (CANDÉ, 2001b, p. 19). O mito da interpretação verdadeira foi a tônica das

práticas musicais eruditas ao longo do século XIX e boa parte do século XX,

determinando um tipo específico de sonoridade a que todo instrumentista deveria

alcançar por meio de dedicação praticamente exclusiva aos estudos. A eficiência

musical tornou-se palavra de ordem tanto na esteira da produção industrial quanto

administrativa das sociedades modernas.

2.1.7 Século XX

O século XX é o tempo de amplo desenvolvimento tecnológico, da profusão de

diversas e inusitadas formas de pensamento e expressão musical, bem como da

consolidação da ideia de “[...] infância enquanto [sic] lugar de criança [...]” (VEIGA,

2007, p. 209), trazendo à cena teorias educacionais que tinham como centro o

desenvolvimento infantil.

No que diz respeito às produções musicais, os Novecentos marcam a inauguração

de timbres musicais eletrônicos e novos sistemas sonoros e rítmicos,

desenquadrando as regras e as formas composicionais criadas no período barroco e

ampliadas até o romantismo. Nessa perspectiva, verificamos o surgimento de

diversas linhas de expressão musical, que elaboraram novas estruturas sonoras

para expressar as ideias que tinham em mente, a saber: o impressionismo, o

nacionalismo, as influências jazzísticas, a politonalidade, a atonalidade, o

expressionismo, o serialismo ou dodecafonismo, a música aleatória, o serialismo

total e a música eletrônica.

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Embora todas essas tendências tenham participado na formação de nossa

sonoridade atual, verificamos em Candé (2001b) a assertiva de que, estritamente no

campo musical, o que realmente desestabilizou os alicerces românticos foram as

estéticas impressionistas e jazzísticas, identificando nas tendências atonais e

dodecafônicas um menor poder de mover os processos de criação. Assim, conforme

destaca esse autor, o compositor Arnold Schöenberg, ligado ao serialismo e à

atonalidade, “[...] é, em suma, o menos subversivo dos [...] compositores que

orientaram as principais correntes musicais de nosso século” (CANDÉ, 2001b, p.

219).

Relativamente aos impressionistas, destacamos o compositor Claude Debussy que,

entre os anos de 1893 e 1894, apresentou publicamente sua obra Prélude à l’après-

midi d’un faune, de concepção revolucionária, “[...] que seduziu os ouvintes, pelo

canto voluptuoso de sua melodia, de seu ritmo suave, pelas sutis cores da harmonia

e da orquestração” (CANDÉ, 2001b, p. 178). Semelhantemente ao movimento

impressionista nas artes visuais, Debussy utilizou os sons da mesma forma que “[...]

os pintores lidavam com as luzes e cores [...]” (BENNETT, 1986, p. 70), criando

diferentes ambiências em agregados sensíveis de acordes em movimento paralelo,

dando à música “[...] o efeito de algo vago, fluídico, bruxelante, [...] novos efeitos de

luz e sombra” (BENNETT, 1986, p. 70), sugerindo uma realidade em devir. Debussy

transitava em espaços tais como os cafés artísticos e salões literários, “[...]

escapando, assim, das igrejinhas de todas as tendências [...]” (CANDÉ, 2001b, p.

196), sintonizado com a visão de que a intuição prevalece em relação à razão

(CANDÉ, 2001b, p. 208). Outra tendência na expressão dos afetos musicais está

relacionada às influências do jazz e do blues norte-americanos, tendo como

principais compositores Maurice Ravel, Gershwin, Aaron Copland e Igor Stravinsky.

Concernentemente à educação, verificamos que as concepções de criança e das

metodologias de aprendizagem inauguradas por Rousseau nos Setecentos

ganharam novos encaminhamentos no século XX, nas reflexões e propostas de

pensadores e pedagogos dos Estados Unidos e da Europa. Tais reflexões tomaram

forma com o movimento que no Brasil foi denominado escolanovista, tendo como

principais referências – entre outros importantes pedagogos – o pensador e

educador John Dewey (1859-1952), nos Estados Unidos; Maria Montessori (1870-

1952), na Itália; Edouard Claparède (1873-1940), na Suíça.

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Na perspectiva de Dewey, a aprendizagem está diretamente relacionada à interação

e exploração dos objetos e do meio pela criança, tendo como fundamento o princípio

de que o conhecimento só se produz quando “[...] vinculado à atividade e à

experiência. Assim, o ambiente escolar deve estimular a criança a desenvolver seus

interesses fundamentais: a conversação e comunicação; pesquisa e descoberta;

fabricação e construção de objetos, expressão artística” (VEIGA, 2007, p. 228).

No que diz respeito à pedagogia montessoriana, o processo educativo visava à

autonomia das crianças, bem como ao desenvolvimento dos sentidos, “[...] cabendo

ao professor interferir minimamente, já que a base da aprendizagem são o ambiente

e o material pedagógico” (VEIGA, 2007, p. 228). Em relação a Claparède, por sua

vez, verificamos em Veiga (2007) que sua contribuição deu-se preponderantemente

no campo da psicologia e da psicopedagogia, tendo como participantes de seus

projetos pesquisadores psicólogos renomados, tais como Henri Wallon e Jean

Piaget.

Essa nova vertente educacional incidiu no campo das artes, propiciando o

surgimento da livre expressão como fundamento para os processos de educação

artística. Por essa via, o educador tcheco Franz Cizek passou a desenvolver um

trabalho educacional na esfera das artes, sintonizado com o ideário da Escola Nova,

tendo recebido apoio de John Dewey, que explanou “[...] o seu entusiasmo com

relação a essa maneira de ensinar arte, escrevendo o artigo Franz Cizek e o método

da Livre Expressão, [...] publicado no Journal of Barnes Foundation, em outubro de

1925” (FUSARI; FERRAZ, 2001, p. 39).

No que tange ao ensino da música, esse novo movimento educacional influenciou a

formação de pedagogos, que produziram diferentes abordagens e metodologias

para os processos educativos com as crianças, privilegiando as atividades corporais,

o desenvolvimento da sensibilidade e da expressão musicais. Desse modo, “[...] o

século XX viu despertar, em um curto espaço de tempo, uma série de músicos

comprometidos com o ensino de música” (FONTERRADA, 2005, p. 109), dando

início à nomenclatura “educação musical” como ensino da arte dos sons

especificamente direcionado à infância. Provenientes da Europa, como a primeira

geração de educadores em música, destacaram-se os seguintes nomes: Émile-

Jacques Dalcroze (1865-1950), na Suíça; Edgar Willems (1890-1978), na Bélgica;

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Zoltán Kodaly (1882-1967), na Hungria; Carl Orff (1895-1982), na Alemanha, e

Shinichi Suzuki (1898-1998), de origem japonesa, mas que viveu por vários anos na

Alemanha.

Para Dalcroze, o desenvolvimento da sensibilidade e entendimento musicais tem

como base uma estreita ligação entre a escuta e os movimentos corporais. Com

base nesse pressuposto, esse músico criou o método denominado Eurritmia, tendo

como proposta “[...] despertar e desenvolver, pela repetição de exercícios, os ritmos

naturais do corpo. [...] O registro através [sic] do corpo propicia uma fixação mais

profunda e racional da aprendizagem” (PAZ, 2000, p. 257-258). Por essa

abordagem, os alunos deveriam experimentar o que iriam escrever posteriormente,

fazendo com que os sons e os ritmos fossem “[...] vivenciados pelo aluno, num

movimento integrado que reúne capacidades psicomotoras, sensíveis, mentais,

espirituais, [...] como agente de educação coletiva” (FONTERRADA, 2005, p. 116).

Com relação a Edgar Willems, aluno de Dalcroze, sua abordagem de ensino musical

para crianças apoiou-se na relação entre a música e a intuição e entre a música e a

natureza biológica. Willems estabeleceu distinção entre aspectos teóricos e práticos

em sua proposta, frisando que a base teórica “[...] engloba os elementos

fundamentais da audição e da natureza humanas, e a correlação entre som e

natureza humana” (FONTERRADA, 2005, p. 125), enquanto que a base prática trata

da organização do material didático.

Nesse sentido, esse pedagogo defendeu o trabalho musical em três dimensões, a

saber, sensorial, afetiva e mental, relacionando-as aos “[...] três domínios da

natureza, que considera essencialmente diferentes entre si: o físico, o afetivo e o

mental” (FONTERRADA, 2005, p. 125-126). Nessa perspectiva, a aplicabilidade

dessas três dimensões não se dava de maneira dissociada, mas, sim, de forma

integrada, entendendo que a prática musical “[...] é uma experiência global [...]”

(FONTERRADA, 2005, p. 127). Os trabalhos desenvolvidos por Edgar Willems

davam especial atenção ao funcionamento do ouvido, diferenciando o ouvir do ato

de escutar, visto que

ouvimos do jeito que ouvimos porque há uma estreita relação entre a fisiologia do ouvido e a escuta. Do mesmo modo, fazemos a música que fazemos porque somos dotados de características físicas, fisiológicas,

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afetivas, mentais e espirituais que se assemelham estreitamente à nossa maneira de ouvir (FONTERRADA, 2005, p. 127).

Nesse sentido, a diferença entre o ouvir e o escutar reside no fato de que a

sensibilidade auditiva ocorre somente quando passamos do ato de ouvir para o

escutar: “[...] quando se ouve possuído por um desejo, uma emoção, como o medo

ou a surpresa, um interesse específico está em jogo, e esse interesse conduz à

atenção, necessária à eclosão da consciência sonora, [...] uma intenção de escutar”

(FONTERRADA, 2005, p. 131).

A abordagem de Willems, portanto, tem como eixo central o desenvolvimento da

sensibilidade musical por meio da escuta, alcançada pela prática de exercícios

específicos. Nesse sentido, verificamos em sua perspectiva uma aproximação com a

Teoria dos Afetos, renascida no século XVIII por Matheson, visto que a sensibilidade

musical a que se refere aquele educador está relacionada às emoções que a música

pode evocar, instigando a criança a perceber esses afetos e até mesmo a nomeá-

los, conforme sua criatividade:

no ensino dos intervalos e das organizações escalares, por Willems, aparecem algumas sugestões de exploração da sensibilidade auditiva que se baseiam no caráter qualitativo dos intervalos [...]. Willems atribui, a cada intervalo, uma emoção, o que remete à teoria dos Afetos (FONTERRADA, 2005, p. 132).

A proposta para a educação musical desenvolvida por Edgar Willlems teve

repercussão importante no Brasil, sendo aplicada em diferentes escolas e

conservatórios de música a partir de 1960, conforme trataremos mais adiante.

Ainda em Fonterrada (2005), assim como em Paz (2000), verificamos que a

pedagogia do educador e músico húngaro Zoltán Kodály, por sua vez, fundamentou-

se preponderantemente nas produções folclóricas de seu país, tendo desenvolvido

com o compositor Bela Bartók pesquisas musicológicas e um sistema de

musicalização encampado pelo governo e aplicado em toda a Hungria. O Método

Kodály, como era denominado, parte do princípio de que a musicalização deve ser

feita a partir do ato de cantar, envolvendo, igualmente, o treinamento auditivo, a

rítmica, a leitura e a escrita musicais. Esse método foi introduzido no Brasil na

década de 1950, por George Geszti e Ian Guest, conforme relata Paz (2000, p. 262),

sendo que até hoje, conforme observa Fonterrada (2005, p. 145), é utilizado e

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difundido pela Sociedade Kodály do Brasil, localizada em São Paulo, na qual,

lançando-se mão do folclore brasileiro, são ofertados cursos regulares e de curta

duração.

Tratando do compositor e educador alemão Carl Orff, seu trabalho tem por base a

prática instrumental coletiva, partindo de instrumentos de percussão, especialmente

os xilofones, sendo entendido não como um método, pois “[...] Orff sempre fez

questão de não metodizar nada [...]” (PAZ, 2000, p. 261), mas como uma proposta

de trabalho aberta. A abordagem pedagógico-musical de Orff privilegia a prática

instrumental coletiva, apoiando-se em um material básico, bem como no

instrumental Orff. Essa prática musical propicia o contato com grandes sonoridades,

fazendo com que as crianças se confrontem “[...] muito mais com a expressão do

que com o aprendizado de regras” (FONTERRADA, 2005, p. 148). Dessa maneira, o

conhecimento da arte dos sons é possibilitado pela via da experiência, da imitação e

da improvisação, enfatizando a capacidade expressiva, e não o “[...] conhecimento

técnico, que surge em decorrência da primeira” (FONTERRADA, 2005, p. 151).

Com relação ao método Suzuki, sua proposta pedagógica apoia-se no princípio

geral de que “[...] toda criança, potencialmente, tem capacidade para aprender

música, do mesmo modo que para aprender a falar a língua de seu país”

(FONTERRADA, 2005, p. 151). Suzuki defendeu a necessidade de se criar um

ambiente favorável ao desenvolvimento desse potencial, aliando-se a ele

determinados procedimentos, tais como: ensinar um conteúdo de cada vez; expor as

crianças a gravações das músicas que elas irão tocar, acompanhando a gravação

com o livro de exercícios, bem como observando os pais tocarem. Desse modo, o

método Suzuki prevê a “[...] repetição constante, [...] a utilização de discos e

gravações; [...] estímulo à habilidade da memória; [...] estímulo à execução „de

ouvido‟ [...] [bem como] a presença dos pais” (FONTERRADA, 2005, p. 157).

Paralelamente ao enorme desenvolvimento tecnológico e às mudanças relativas à

educação musical na infância, trazendo a visão de criança como ser ativo em seu

próprio processo de aprendizagem, as atividades em torno das práticas pianísticas

no âmbito da performance erudita seguiram em direção oposta, reafirmando as

crenças e os valores da sociedade oitocentista. Com base em tais valores, foram

organizados concursos internacionais voltados exclusivamente para o garimpo da

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excelência pianística, incentivando a competitividade e buscando premiar os

instrumentistas que apresentassem o mais alto grau de habilidade técnica e

virtuosismo.

Nessa mesma perspectiva, abriu-se um campo de pesquisas especialmente voltado

para o estudo da técnica pianística, evidenciando “[...] duas linhas gerais de

pensamento, duas maneiras básicas de se encarar a técnica pianística: a empírica e

a analítica, tratando-se mais que de uma divisão absoluta” (RICHERME, 1996, p. 12,

grifos do autor).

Figura 8 - Piano no século XX

Fonte: Bennett (1993)

Na vertente empírica, alinhavam-se muitos dos grandes pianistas e compositores,

tais como Mozart, Beethoven, Chopin e Liszt, os quais “[...] encontraram suas

verdades técnicas através [sic] da experiência prática e intuitiva” (GERIG apud

RICHERME, 1996, p. 12). De um modo geral, os empíricos não focalizaram em seu

trabalho os aspectos fisiológicos e mecânicos da técnica, sustentando a ideia de que

“[...] esta deve ser adquirida naturalmente, através [sic] do desenvolvimento musical

e da experiência individual, sem uma orientação específica” (RICHERME, 1996, p.

12).

Referindo-nos à tendência analítica, verificamos que sua ênfase incidia

principalmente sobre os “[...] diferentes tipos de coordenação muscular [...]”

(RICHERME, 1996, p. 15). Os trabalhos desenvolvidos na perspectiva analítica

tratam minuciosamente da postura corporal, da utilização dos dedos, bem como da

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posição correta das mãos, as quais poderiam assumir a “[...] posição curva (bent

position) e posição plana (flat position), [...]. A preferência por outra posição é um

dos muitos pontos polêmicos da técnica pianística, o que torna importante a análise

de algumas teorias a respeito” (RICHERME, 1996, p. 108). Assim sendo, a

expressividade musical nessa ótica está vinculada a uma sensibilidade cinestésica,

entendida como coordenação motora e intensidade de força empregada no ato de

tocar o instrumento, observando que “[...] os terminais nervosos que permitem tal

sensibilidade (receptores proprioceptivos) se concentram não na camada periférica

da pele, mas no tecido carnoso entre a pele e o osso, nas articulações e nos

próprios músculos” (RICHERME, 1996, p. 109).

A interpretação e a técnica pianísticas foram temas de diferentes trabalhos

científicos, abordando os principais problemas técnicos, orientações para alunos a

respeito da maneira correta de estudar, incrementando a concentração, bem como

apresentando descrições detalhadas sobre determinados padrões de movimento de

mãos e braços. Há importantes pontos de vista concernentes a essa questão,

frisando ser prejudicial ao aluno estudar escalas e exercícios por muitas horas

seguidas, porém, mesmo assim é exigida a perfeição: “eu permito aos meus alunos

tocarem somente estudos bem pequenos, mas exijo que esses sejam trazidos ao

máximo da perfeição possível” (GIESEKING; LEIMER, 1972, p. 50, tradução minha).

Concernentemente às concepções sobre expressão musical, o século XX tem como

principais referências as teorias de Leonard Meyer (1956) e Keith Swanwick (1994,

2003). Sobre o pensamento de Meyer, constatamos em Sadie e Tyrrell (2001a) e em

Mattos (2005) que sua teoria sobre a expressão musical tem por base a ideia de que

as emoções propiciadas pela música assentam-se no campo da psicologia,

afastando-se, portanto, das reflexões de caráter filosófico. Conforme Mattos (2005),

Meyer recorreu particularmente a três principais aspectos que compõem a psicologia

da Gestalt, associando-os à maneira pela qual percebemos a música: a lei da

experiência, a lei da conclusão e a lei da Boa continuação ou sequência.

No tocante à lei da experiência, nossa mente tenderia a “[...] construir unidades

estruturais [...] de acordo com a experiência [...]” (MATTOS, 2005, p. 1), tendo os

elementos musicais como materiais da percepção. Em relação à lei da conclusão,

ela estaria ligada à ideia de que “[...] a percepção dirige-se espontaneamente para

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uma ordem que tende para a unidade de todos concluídos [...]” (MATTOS, 2005, p.

1). Por fim, sobre a lei da Boa continuação, verifica-se aí a noção de que “[...] toda a

unidade linear (sucessão) tende a se prolongar psicologicamente na mesma direção,

mesma ordem e com o mesmo processo de desenvolvimento” (MATTOS, 2005,

p. 1).

Nessa perspectiva, conforme Sadie e Tyrrell (2001a), a expressão musical em Meyer

é o resultado de desvios nessa unidade linear, cujo fluxo pode retardar, realizar ou

frustrar o alcance da tendência de um impulso musical presente em uma obra.

Nesse caso, a emoção e a significação musical, no pensamento de Meyer, “[...] se

manifestam prioritariamente em função das relações entre a expectação e a

realização, retardação ou frustração dos elementos musicais” (MATTOS, 2005, p. 2,

grifos do autor). Tal concepção sobre a expressividade sonora encontra-se

estreitamente vinculada ao campo da comunicação (teleologia) entre o intérprete e o

ouvinte, tendo como pares a emissão e a recepção do material musical, propiciando

a expectativa “[...] ou antecipação da conclusão, de lacunas a serem preenchidas

[...]” (SADIE; TYRRELL, 2001a, p. 465, tradução minha).

Em se tratando dos estudos de Swanwick (2003, 1994), é preciso pontuar que sua

obra trata especialmente do aspecto filosófico da expressão musical, estabelecendo

o posicionamento de que a música é um processo metafórico. Esse musicólogo

popôs níveis de aprendizagem e avaliação musical, incluindo-se a aprendizagem do

piano, porém, não tratou das questões metodológicas de uma aula, não discutindo

as concepções de aprendizagem.

Assim, a partir da visão de conjunto do século XX, podemos afirmar que, muito

embora o movimento escolanovista na educação e as inovações nas formas

expressivas entre compositores tenham alcançado a educação musical, a ação

desses movimentos restringiu-se à condução pedagógica do ensino coletivo de

música na infância, não atingindo as aulas de instrumento – muito especialmente as

de piano –, que, com raras exceções, permaneceram reproduzindo o modelo da

aprendizagem instrumental formatada no século XIX. Esse fato produziu, portanto,

uma divisão no que se refere ao processo de aprendizagem musical, em especial no

Brasil, sendo desenvolvido em diversas universidades e faculdades públicas de

música, no formato de cursos de extensão oferecidos à comunidade em geral: um

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tipo de educação musical coletiva baseada em métodos ativos (atividades de caráter

lúdico, privilegiando a vivência dos ritmos, melodias e timbres por meio de

bandinhas, corais associados a dramatizações etc.) e outra forma de aula, individual

e específica para a aprendizagem instrumental, reforçadora do modelo concertista,

bem como apoiada preponderantemente em uma visão analítica no que diz respeito

à técnica instrumental, não apresentando nenhuma vinculação com as concepções

de educação nas quais o processo educativo esteja pensando a criança ou o

adolescente como tais.

Nessa perspectiva, portanto, o capítulo a seguir, discorre sobre a musicalidade no

Brasil, chegando à conjuntura social da atualidade, com seus jeitos peculiares de ser

adolescente e criança, sonoridades, concepções e práticas educativas na arte dos

sons.

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3 EXPRESSÃO MUSICAL NO BRASIL

Muito embora as escolas públicas de música erudita no Brasil tenham seguido o

mesmo modelo europeu descrito no capítulo anterior, consideramos indispensável

traçar um breve histórico das práticas musicais na infância brasileira, bem como das

sonoridades que vieram se formando ao longo dos séculos XX e XXI. Tal

consideração se deve ao fato de que, paralelamente aos estudos sistematizados de

música erudita, as crianças e os adolescentes, na atualidade, experienciam uma

musicalidade muito diversa daquela oferecida nas escolas de música, influenciando

de modo decisivo sua relação com o fazer musical.

Dessa forma, neste capítulo, é apresentada uma breve retrospectiva dos processos

sonoros brasileiros, trazendo à tona o entrelaçamento das criações populares e

eruditas, bem como a influência das produções europeias, africanas e norte-

americanas, abordando, por fim, a chegada do piano ao Brasil, seus métodos e

espaços de aprendizagem.

3.1 SÉCULOS XVI E XVII

A musicalidade no Brasil é anterior à chegada dos portugueses, em 1500. Porém, é

fundamental entendermos que há um lapso na historiografia oficial em relação à

produção musical indígena: todas as obras de história da música brasileira,

especialmente aquelas utilizadas em cursos de graduação e pós-graduação em

música, focalizam as musicalidades erudita e popular – em especial a primeira –,

tecendo comentários muito breves a respeito do acervo musical dos povos

indígenas. Desse modo, há referência apenas ao período inicial da colonização,

fazendo tal produção desaparecer totalmente do cenário da historiografia musical no

Brasil, como se não mais existissem tais povos e suas culturas musicais. Nesse

sentido, transcrevemos a seguir trechos importantes de obras desse campo do

conhecimento nas quais essas observações se fazem explícitas.

Pouco se sabe da música indígena do período da descoberta e pode-se dizer que sua parte na constituição do que seria a música típica brasileira foi mínima, e isto [sic] sobretudo em razão da fragilidade da cultura indígena brasileira. [...] na medida em que se processava a conquista da terra e a imposição da cultura europeia, obra dos missionários jesuítas, [...] desapareciam pouco a pouco os traços característicos da cultura nativa (NEVES, 1977, p. 13).

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Os conhecimentos de que dispomos ainda hoje sobre as atividades musicais no Brasil colonial são muito incompletos. Prevalecem vazios enormes de várias décadas que dão margem a especulações por vezes ousadas. [...] A qualidade dessa música era bastante modesta. Muito inferior ao que ocorria em várias capitais da América espanhola. [...] A conversão de indígenas provenientes de civilizações sofisticadas como os incas, astecas e maias exigiu dos espanhóis esforços muito superiores aos que foram suficientes para os portugueses desenvolverem junto aos nossos insipientes silvícolas (MARIZ, 2005, p. 33).

Embora a música dos indígenas praticamente não deixasse vestígios em nossa música, constituindo até hoje um fenômeno exótico, não se pode iniciar uma história da música brasileira sem breves referências a seu respeito. [...] Naturalmente a música dos índios não civilizados ou dos que se afastaram do contato com a civilização ocidental, esquecendo em pouco tempo o que aprenderam, conservou, ao longo do tempo, as suas características fundamentais. Mas esta [sic] música, que ainda hoje está sendo recolhida e estudada, não pertence à “música brasileira” (KIEFER, 1977, p. 9-13).

A partir de meados do século XVI, durante os dois primeiros séculos de colonização portuguesa, a música produzida no Brasil estava diretamente vinculada à Igreja Católica e à catequese. [...] A contribuição dos índios à música brasileira foi limitada, em comparação com a dos africanos (MARIZ, 2008, p. 12).

O primeiro nome a entrar para a história de nossa música popular é o poeta, compositor e cantor Domingos Caldas Barbosa, no final do século XVIII. Naturalmente, houve compositores anônimos que o precederam, além de conhecidos como o baiano Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno. [...] A obra de Domingos Caldas Barbosa (1740-1800) pode ser considerada o marco zero da música popular brasileira (SEVERIANO, 2009, p. 13-15).

Essa ausência da musicalidade indígena brasileira de nossa própria história é

comentada nos círculos acadêmicos da etnomusicologia, sinalizando que “[...] a falta

de atenção acadêmica à música indígena das terras baixas da América do Sul

mascara a real importância da música nas vidas dessas comunidades. [...] A cada

dia, podem passar horas tocando flauta ou cantando” (SEEGER, 2015, p. 35).

Pesquisas a respeito dos modos de viver dos indígenas indicam que é plenamente

viável assegurar a subsistência com três ou quatro horas de trabalho por dia,

tornando-se viável cantar e tocar o mesmo número de horas. Esse critério de

organização do tempo pode ser um indicativo importante quanto à significação e ao

grau de relevância da música para essas comunidades. De acordo com Seeger

(2015), apesar desse cenário, pesquisadores em geral focalizam a maior parte de

seus estudos nos aspectos socioeconômicos dessas sociedades, deixando a música

apenas como um detalhe.

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Os primeiros relatos acerca dos processos sonoros indígenas no Brasil datam de

1578, em um trabalho minucioso de Jean de Léry (1961), em viagem pelo País. De

acordo com o antropólogo Rafael Menezes Bastos (2007, p. 1), trata-se de uma das

“[...] descrições mais antigas do mundo sobre „música primitiva‟ [...], sobre canções

Tupinambá do Rio de Janeiro”.

Essas cerimônias duraram cerca de duas horas e durante esse tempo os quinhentos ou seiscentos selvagens não cessaram de dançar e cantar de um modo tão harmonioso, que ninguém diria não conhecerem música. [...] já agora me mantinha absorto em coro ouvindo os acordes dessa imensa multidão e sobretudo a cadência e o estribilho repetido a cada copla (LÉRY, 1961, p. 169-170).

Vasconcelos (1977) indica outra melodia entoada pelos Tupinambá, também

registrada por Léry (1961), em que falavam da ave Canindé e de um peixe

denominado camuroponi-uassu. Souza (1851, p. 55), em relato descritivo de sua

viagem por toda a costa brasileira, destaca a musicalidade dos indígenas Potiguara,

no nordeste brasileiro de 1587, indicando que eram “[...] grandes pescadores de

linha, assim no mar como nos rios de água doce. Cantam e bailam, comem e bebem

pela ordem dos Tupinambá, que é [...] quase o geral de toda a costa do Brasil”. O

autor também menciona os Caeté, afirmando que são “[...] grandes músicos e

amigos do bailar [...]” (SOUZA, 1851, p. 63). A respeito dos Tamoio, esse mesmo

autor enfatiza suas práticas melódicas como grandes compositores de cantigas de

improviso. Com relação à etnia Tupiniquim, na região de “[...] Ilhéus, Porto Seguro e

do Espírito Santo, [...] são valentes homens, caçam, pescam, cantam bailam [...]”

(SOUZA, 1851, p. 88). Os Papanases, situados “[...] ao longo do mar, entre a

capitania de Porto Seguro e a do Espírito Santo, pintam-se e enfeitam-se; [...]

cantam e bailam; têm muitas gentilidades” (SOUZA, 1851, p. 97). O grupo

Goitacazes “[...] tem muita parte dos costumes dos Tupinambás, assim no cantar, no

bailar, no tingir-se de jenipapo” (SOUZA, 1851, p. 96).

Vemos, portanto, que a musicalidade brasileira no período que antecede a ação

jesuíta é indígena por excelência, tendo sido experienciada e apreciada por

diferentes viajantes, que tinham exatamente a incumbência de registrar os fatos e os

costumes dos lugares pelos quais passavam, descrevendo os povos com os quais

entravam em contato. A continuidade dessa modalidade musical em constante

transformação é atestada em diversos tratados de antrolopogia e etnomusicologia,

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além dos relatos dos referidos viajantes: Debret (1824), tecendo comentários acerca

dos Botocudos, no período entre 1816 e 1831; Kurt Nimuendaju (1987), em aldeia

da etnia Guarani Nhãdeva, durante os anos de 1905 e 1913; entre os anos de 1969

e 1981, Menezes Bastos (2013), com processo investigativo a respeito dos

Kamaiurá, no Alto Xingu, observando a prática da cerimônia do Yawari (Festa da

Jaguatirica); no período compreendido entre 1971 e 1982, Kilza Setti (1993, 1997),

sobre a possibilidade de um sistema musical Guarani Nhãdeva; Seeger (2004; 2015)

desenvolveu pesquisa junto aos Suyá, atuais Kisêdjê, registrando a Festa do Rato

ou Cerimônia do Rato; em 2002, Deyse Lucy Montardo (2009) pesquisou os Guarani

Kaiowa no estado de São Paulo; além de Marília Raquel Stein (2009, 2011),

Dallanhol (2002) e Raquel Moraes (2012), que estudaram a musicalidade Guarani

Nhãdeva nos estados de Santa Catarina, Paraná e Espírito Santo, respectivamente,

entre outros pesquisadores e fazedores da arte dos sons no universo indígena nas

mais diferentes regiões do Brasil.

A respeito das nações indígenas na fase jesuítica no Brasil, verificamos em Tinhorão

(1972) a informação de que elas se assentavam em uma estrutura social própria,

apresentando uma cultura e uma artisticidade fecundas, tendo como consequência a

não adesão à estrutura colonial – esperada pelos jesuítas e pela corte portuguesa.

Assim sendo, “[...] toda vez que o indígena voltava a integrar-se na vida tribal, os

conceitos morais e religiosos que tendiam a prevalecer eram, é lógico, os que mais

fielmente traduziam o tipo de relações originais” (TINHORÃO, 1972, p. 14).

Em se tratando da música na infância, constatamos a ativa participação das crianças

nos rituais de catequese-dominação dos jesuítas, considerada como atividade

obrigatória: “o ensino musical era de suma importância não só para o aprendizado

da doutrina, mas também para a participação nas mais variadas formas da vida

religiosa [...]” (CHAMBOULEYRON, 2000, p. 65). Era comum que crianças

cantassem e tocassem instrumentos musicais portugueses em diferentes

celebrações, pois, “[...] além das missas, as procissões também eram marcadas pela

participação dos meninos. Em 1564, na Aldeia do Espírito Santo, na Bahia, [...] uma

grande multidão de meninos [...] vinham [sic] cantando as litanias”

(CHAMBOULEYRON, 2000, p. 65-66).

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Em meio às crianças indígenas, misturavam-se os meninos do Colégio de Jesus dos

Meninos Órfãos de Lisboa, que eram trazidos nas viagens marítimas de Portugal

para o Brasil como auxiliares de marinheiro ou pajens. Nas reduções jesuítas, “[...] o

trabalho dos órfãos de Portugal era importante, como explicava o padre Nóbrega em

agosto de 1551, ao relatar que os meninos de Portugal atraíam as crianças com

seus cantares” (CHAMBOULEYRON, 2000, p. 64).

À parte as obrigações, a música fazia parte da vida das crianças indígenas, que

manifestavam seu gosto pela arte dos sons cantando e tocando em diferentes

situações, em meio às brincadeiras e jogos: “[...] crianças indígenas adoravam

instrumentos europeus como a gaita ou o tamboril, que acompanhavam, segundo os

cronistas jesuítas, ao som de maracas e paus de chuva” (DEL PRIORE, 2000, p.

98).

Paralelamente à música indígena, em Tinhorão (1972), Heitor (1956), Kiefer (1977),

Vasconcelos (1977) e Mariz (2005; 2008), verificamos no século XVII outras duas

modalidades de fazer musical: um tipo de música produzido, organizado e

controlado pela Igreja Católica, sendo desenvolvido por padres e negros, e outro

modo, de caráter popular, produzido pelos negros. Kiefer (1977) e Tinhorão (1972)

afirmam que a Bahia foi o primeiro centro de cultivo da música no Brasil, em virtude

de ser a primeira capital e sede do primeiro bispado, havendo registros de

contratação de moços para formação de um coro, mestre de capela e um organista.

No que diz respeito às práticas populares, eram realizadas pelos escravos, nos

momentos de folga concedidos pelos padres ou senhores, e também quando se

juntavam às inúmeras procissões ou festas oficiais. Desse modo, atrelados às

rígidas regras senhoriais e religiosas, a expressão musical entre os negros era

realizada mediante permissão, como podemos constatar no trecho que segue.

A mais antiga referência à participação de negros na criação de ritmos – que logo seriam definidos pelo nome genérico de batuques – é do aventureiro francês Pyard de Laval. Arribado à Bahia a 8 de agosto de 1610, indo de Goa, na Índia, para a Europa, [...] viu nos domingos e dias santificados ruas e praças de Salvador cheias de escravos e africanos, homens e mulheres, dançando e folgando com permissão dos seus senhores (TINHORÃO, 1972, p. 36).

Vemos, portanto, que nos séculos XVI e XVII as sonoridades brasileiras e as formas

de aprendizagem musical transitavam entre as composições sacras de origem

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europeia a música e produções musicais de diferentes etnias provenientes da costa

ocidental da África negra9, que corresponde aos atuais estados de Gana, Togo,

Benin e Nigéria.

Vemos, portanto, que o fazer musical e sua aprendizagem no Brasil comportam esse

conjunto de diferentes ethos sonoros, influenciando a formação de uma

musicalidade que transita entre o erudito e o popular, compondo, muitas vezes, um

hibridismo dessas duas instâncias da arte dos sons.

3.2 SÉCULO XVIII

As sonoridades setecentistas no Brasil concentraram-se especialmente na cidade do

Rio de Janeiro, agregando composições eruditas e populares. As de caráter erudito

seguiam os modelos italianos da ópera cômica, além de adaptações de minuetos,

modinhas e fandangos. De forma geral, as apresentações musicais aconteciam nas

igrejas ou nas residências das famílias mais ricas, tendo sido construídas salas de

concerto, intituladas casas de ópera, em virtude da grande plateia que afluía a essas

atividades.

A respeito da distinção entre as artes popular e erudita, Neves (1977) ressalta que,

no século XVIII, essa última se desenvolvia em caráter e espaço primordialmente

religiosos, baseando-se nos modelos europeus, sem apresentar os traços das

sonoridades populares. Complementando tais ideias, Heitor (1956) tece comentários

sobre o padre José Maurício, destacando-o como excelente organista e compositor,

sendo nomeado inspetor de música da antiga Capela da Sé, considerado, segundo

afirmação de Neves (1977), exímio compositor e improvisador por músicos

profissionais portugueses, deixando 400 obras.

Com referência à vida musical na capitania mineira durante o século XVIII, Kiefer

(1977) traz informações sobre o grande desenvolvimento das produções sonoras,

sublinhando que as atividades de composição eram as mais exercidas. Lange

(1981) corrobora tal fato, salientando que havia uma devoção pela música desde os

primórdios da formação de tal capitania.

9 De acordo com a historiadora Mary Del Priore (2010), as etnias da África vindas como escravos

para o Brasil são provenientes da região da Costa da Mina e Daomé, atual Benin, na costa ocidental da África.

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No que diz respeito às melodias populares, Mariz (2008) destaca em seus relatos o

trabalho de Antônio José da Silva, apelidado como Judeu, que apresentava

comédias de costume de caráter político, de sabor mordaz, incluindo cenas faladas,

declamadas, duetos, árias e danças. Esse compositor e poeta, “[...] por ter

despertado a ira da Inquisição, foi degolado e queimado [...]” (MARIZ, 2008, p. 13)

em Lisboa, a 19 de outubro de 1739.

Ainda no domínio da historiografia musical popular no Brasil do século XVIII,

especialmente em seu fim, detectamos referências à obra de Domingos Caldas

Barbosa, poeta, compositor e cantor. Tinhorão (1991) destaca sua habilidade como

tocador de viola e trovador desenvolto, que, com suas modinhas em tom satírico,

provocou reviravoltas, não somente na corte portuguesa, mas, igualmente, em sua

própria vida. Em virtude de sua veia satírica ser direcionada a alguns poderosos da

época, Caldas Barbosa foi severamente punido por ordem do governador da então

denominada Repartição Sul, “[...] sendo ele despachado como soldado para a

longínqua Colônia de Sacramento” (SEVERIANO, 2009, p. 14), retornando ao Rio de

Janeiro alguns anos mais tarde.

A música de Caldas Barbosa não se limitava às questões de caráter político; muito

pelo contrário, expandia-se “[...] na forma direta no tratamento dos temas do amor

sensual [...]” (TINHORÃO, 1991, p. 14), sendo suas composições consideradas “[...]

uma tafularia do amor, a meiguice do Brasil, [cujas trovas] respiram os ares

voluptuosos de Pafus e Cítara e encantam com venenosos filtros as fantasias dos

moços e corações das damas” (SEVERIANO, 2009, p. 15).

Após sua atuação como soldado na colônia de Sacramento, o compositor seguiu

para Portugal, contando com a ajuda de amigos, personalidades com bons

relacionamentos na corte portuguesa, tendo como objetivo completar seus estudos.

Porém, devido aos preconceitos relativos à sua origem e cor negra, não foi aceito

pela elite portuguesa, o que levou seus protetores a nomeá-lo capelão da Casa da

Suplicação: “[...] é assim, de batina e se acompanhando numa viola de arame, que o

poeta-compositor entra em cena na década de 1770, cantando suas modinhas e

lundus para a corte de D. Maria I” (SEVERIANO, 2009, p. 14). Caldas Barbosa

prossegue na corte portuguesa, passando a liderar a Academia de Belas Artes – a

Nova Arcádia, sendo, porém, hostilizado por figuras tais como Felinto Elísio e

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Manoel Maria du Bocage. Suas composições foram publicadas em Lisboa, em 1798,

em dois volumes, com o título Viola de Lereno: colecções de improvisos e cantigas

de Domingos Caldas Barbosa.

Em se tratando da música na infância, ao longo do século XVIII, verificamos o

costume de crianças e jovens participarem de bandas e grupos musicais que se

apresentavam em festas religiosas. Assim sendo, “[...] os que tinham boa voz se

viam treinados por músicos para cantar, inclusive como sopraninos nas festividades,

soltando seus sons infantis e agudos, causando grande prazer aos assistentes”

(SCARANO, 2000, p. 125).

Constatamos, ainda, registros a respeito de donos de crianças cativas que, por sua

participação em bandas ou grupos semiprofissionais ou profissionais, recebiam “[...]

uma boa recompensa [...]” (SCARANO, 2000, p. 126). Essa prática encontra-se

detalhada, por exemplo, na lista de pagamentos da Igreja de Nossa Senhora do Pilar

de Outro Preto, que menciona a remuneração realizada pela irmandade a dois

meninos: “[...] um „muleque‟ de Anna Guedes, tocador de tambor, e um outro de um

Jerônimo Roiz, tocador de caixa [...]” (SCARANO, 2000, p. 126).

Igualmente, observamos que as festividades cívicas e de rua constituíam-se outros

espaços para tais apresentações musicais, nas quais a participação de crianças e

jovens implicava uma boa remuneração: “[...] as crianças participavam ativamente

das atividades lúdicas como profissionais, inclusive, sendo pagas para isso, se

fossem livres, ou, quando escravas, aos donos que as treinavam e empregavam

para esse fim, e faziam delas uma fonte de lucro” (SCARANO, 2000, p. 126).

Observamos outros relatos acerca da participação de crianças na vida musical dos

Setecentos, trazendo o exemplo de uma festa mineira denominada Triunfo

Eucarístico, em Vila Rica, 1734, na qual “[...] onze mulatinhos vestidos como

indígenas, enfeitados com saiotes de penas e cocares, levando nas pernas fitas e

guizos, cantaram ao som de tamboris, flautas e pífaros, bailando uma „dança dos

carijós‟” (DEL PRIORE, 2000, p. 99).

Vemos, portanto, que a aprendizagem musical na infância desenvolvia-se a partir da

experiência junto a grupos profissionais, aprendendo as maneiras de tocar e cantar

conforme os métodos da tradição oral, assumindo, muitas vezes, o caráter de

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trabalho remunerado. Ainda, em virtude de a sociedade brasileira ainda não ter

desenvolvido instituições de ensino superior no campo da arte dos sons nessa fase,

também não há um movimento acadêmico voltado às reflexões sobre o fazer

musical. Essa atividade irá render os primeiros frutos somente a partir do século XX.

3.3 SÉCULO XIX

As sonoridades dos Oitocentos no Brasil desenvolveram-se no contexto de uma

urbanização que dava seus primeiros passos, sendo possível observar práticas

musicais sacras, eruditas e populares, nas quais se destacaram alguns

compositores e instrumentistas. No âmbito estrito da música popular, persistia a

influência das modinhas e dos lundus, tendo no compositor, violonista e

cavaquinhista Joaquim Manoel da Câmara o primeiro “modinheiro”, no começo de

1800. Há registros de outros compositores de modinhas e lundus cujas criações

marcaram a sonoridade dessa época, como Cândido José de Araújo Viana, o

Marquês de Sapucaí, que, em 1984, deu nome à famosa avenida do carnaval

brasileiro. Outros tocadores e compositores musicalmente ativos nesse período são

Cândido Inácio da Silva, Lino José Nunes e os padres baianos Augusto Baltazar da

Silveira e Guilherme Pinto da Silveira Sales, com as canções Lamentos e Deixa

mulher que eu te ame, respectivamente (TINHORÃO, 1991).

No contexto da linguagem erudita, nesse período foram vivenciados os primeiros

sinais do desejo de se desenvolver uma linguagem musical acadêmica passível de

expressar as sonoridades nacionais. Os indícios relativos a esse desejo podem ser

percebidos na obra de Carlos Gomes, em especial, na ópera O Guarani, que teria

como temática a questão da escravatura. Porém, em obediência às regras do teatro

italiano, onde estudava esse compositor, a obra foi modificada, saindo da temática

relativa à escravidão (que havia recebido o nome de Lo Schiavo) para a temática

indígena, dando-lhe o nome com o qual a ópera ficou conhecida. Apesar da

mudança na temática e na denominação da obra, Carlos Gomes manteve a

perspectiva romântica. De qualquer modo, a partir dessa composição, esse músico

aderiu totalmente ao nacionalismo.

Assim, a temática folclórica ganhou força entre os compositores eruditos, sendo

criada, em 1896, por Alberto Nepomuceno, a Sociedade de Concertos Populares.

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Carlos Gomes foi, portanto, “[...] o primeiro dos compositores nacionalistas, aquele

que abriu os caminhos para várias gerações de compositores, mostrando-lhes a

enorme riqueza do material de origem folclórica e popular e as maneiras de utilizá-

lo” (NEVES, 1977, p. 22). A preocupação nacionalista guardava certas restrições,

que podem ser observadas nas ideias do escritor Escragnole Dória a respeito de

uma obra do compositor Francisco Braga (Marabá): “[...] o assunto brasileiro é quase

em mim uma ideia fixa, [...] gostaria que o assunto fosse nacional, mas que não

tivesse índios [...]” (NEVES, 1977, p. 22).

No que tange ao fazer musical na infância, verificamos sua relação com as

concepções educacionais dessa época, as quais separavam a educação de

meninas e de meninos, bem como estabeleciam os destinos dos filhos das elites e

dos filhos de antigos escravos ou da crescente classe popular urbana. Observa-se,

nesse período, a presença marcante do estudo do piano como um dos principais

conteúdos da educação geral de crianças oriundas de famílias ricas, sinalizando

para um distintivo de classe e prestígio social.

Por esse prisma, a educação destinada às meninas da Corte Imperial ou das

famílias da alta sociedade exigia “[...] a perfeição no piano, destreza em língua

inglesa e francesa, e habilidade no desenho, além de bordar e tricotar” (MAUAD,

2000, p. 154). Os filhos da elite rural e urbana frequentavam colégios pagos, nos

quais eram ministradas “[...] aulas extras de piano, canto e desenho ou qualquer

outro idioma além do inglês e francês” (MAUAD, 2000, p. 154).

Observamos a aula de piano em residências sendo desenvolvida como ensino

complementar, destinado a meninas, tal como no relato que segue: “[...] como Alice,

Maria Angélica foi interna no colégio da Imaculada Conceição. [...] Feita a sua

educação, veio para casa, onde terminou estudando inglês, piano e ajudando nos

serviços da casa” (MAUAD, 2000, p. 154). Assim, “[...] multiplicavam-se os

professores particulares, principalmente os professores de piano, já que [...] o

aprendizado deste [sic] instrumento fazia parte da boa educação dada às moças da

elite” (MARTINS, 1993, p. 167). Aos meninos das famílias abastadas, era indicada a

formação para serem advogados, engenheiros do Império ou, ainda, políticos

republicanos.

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Figura 9 - Sarau, o reencontro, óleo sobre tela retratando a participação musical das crianças

Fonte: Morais (2015)

Verificamos, portanto, que as práticas musicais entre crianças da elite faziam parte

da educação geral, sendo desenvolvidas em aulas nos colégios pagos ou em aulas

particulares, nas residências, especialmente voltadas para as meninas. Em relação

às crianças de famílias pobres, não constatamos registros a respeito de suas

práticas musicais nesse período, verificando que sua formação educacional era

realizada em “[...] instituições para crianças pobres ou órfãs e que eram mantidas

por repartições militares, câmaras municipais ou congregações religiosas” (VEIGA,

2007, p. 161).

Em se tratando das criações sonoras no Rio de Janeiro nos Oitocentos, destacamos

a obra de Chiquinha Gonzaga, firmando-se como pianista e uma das maiores

compositoras na arte dos sons nesse período, assim como Ernesto Nazareth e

Anacleto de Medeiros. As práticas musicais aconteciam em bailes dos teatros, nas

sociedades carnavalescas, salas de espera dos cinemas, bem como nos teatros

musicados. Dentre os gêneros musicais da época, destacamos o maxixe, que,

dando prosseguimento ao discurso popular do lundu, foi classificado pelos

governantes como “[...] a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as

danças selvagens, irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba”, conforme

constatamos em Severiano (2009, p. 45).

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Chiquinha Gonzaga compôs inúmeros maxixes, alcançando sucesso nacional com a

obra O corta-jaca, “[...] pivô involuntário de uma crise política no final do governo

Hermes da Fonseca. Interpretado pela primeira dama, Nair de Teffé, numa recepção

no palácio do Catete [...], provocando faniquitos de indignação na oposição”

(SEVERIANO, 2009, p. 45).

Com referência à educação musical na infância, o século XIX não apresenta

diferenças significativas em relação ao século anterior, permanecendo o piano como

instrumento das elites, integrando a formação geral de adolescentes e jovens,

especialmente entre as meninas e moças.

3.4 SÉCULOS XX E ATUALIDADE

No Brasil, o século XX caracterizou-se pelas influências da Segunda Revolução

Industrial, ocorrida na Europa e Estados Unidos, bem como pelas consequências da

primeira e segunda guerras mundiais, que alteraram significativamente o cenário

geopolítico no mundo e as relações econômicas do Brasil. Nas primeiras décadas

dos Novecentos, observamos a invenção de artefatos mecânicos – tais como a

locomotiva a vapor, o telégrafo, a iluminação elétrica, o telefone e a fotografia – que

impulsionaram a organização de uma nova dinâmica social, movida por uma nova

concepção de tempo e de espaço, levando à “[...] consolidação dos espaços

privados, particularmente no âmbito do lar e da família, [...] célula-base da

sociedade” (VEIGA, 2007, p. 201).

No Rio de Janeiro, esse cenário propiciou as condições para o nascimento de um

novo modo de fazer musical, essencialmente popular: os grupos de choro ou os

chorões. Os grupos de choro tiveram como lugar de prática as próprias residências

dos instrumentistas, que eram, também, em sua grande maioria, funcionários

públicos: “[...] militares componentes de bandas do exército, ou de corporações

locais, e civis empregados de repartições federais e municipais, [...] entrando os

Correios e Telégrafos com o maior contingente” (TINHORÃO, 1991, p. 107).

Segundo Neves (1977), o compositor Villa-Lobos participou de grupos de chorões,

tendo realizado sua aprendizagem inicial em meio a compositores e instrumentistas

dessa modalidade de música popular, nos subúrbios da zona norte carioca. Dentre

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os nomes que se consagraram como compositores de choros, destacamos Alfredo

da Rocha Viana, o Pixinguinha, que em 1917 criava a obra Carinhoso.

Figura 10 - Serenata, óleo sobre tela, Portinari (1925)

Fonte: Instituto (2016)

O nacionalismo brasileiro iniciado no fim do século XIX teve sua sequência no

século XX com o movimento modernista, assinalando uma ruptura definitiva com as

formas expressivas românticas, bem como imprimindo uma originalidade sonora

propriamente brasileira. O modernismo, no campo da arte dos sons no Brasil, teve

influência decisiva de diversas tendências estéticas surgidas na primeira década do

século passado na Europa e nos Estados Unidos, em especial, o movimento

impressionista na França.

Desse modo, as sonoridades brasileiras nas duas primeiras décadas do século XX

expressaram não somente o desejo de brasilidade, mas, igualmente, a necessidade

de não mais reproduzir as formas românticas, criando um estilo ao mesmo tempo

próprio e inovador. Por essa via, Villa-Lobos destacou-se como principal referência

no âmbito da composição erudita nacional, trazendo em suas obras nossos afetos

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rurais, folclóricos, bem como indígenas, expressando-os em perfeita comunhão com

as formas sonoras impressionistas dos compositores franceses. Situou-se como “[...]

o criador da música [...] nacional e continua a ser o nosso mais importante

compositor” (MARIZ, 2005, p. 159), tendo organizado, com a colaboração de

diferentes artistas e escritores, a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, em 1922,

expondo à sociedade as novas formas de fazer arte.

Nesse mesmo período, porém, tratando das práticas instrumentais, observamos em

Mário Andrade (1922) a crônica intitulada Pianolatria, na qual o escritor teceu críticas

à sociedade paulista, afirmando que falar de música na cidade de São Paulo “[...]

quase significa dizer piano. Qualquer audição de alunos de piano enche salões.

Qualquer pianista estrangeiro aqui tem uma acolhida incondicional. [...] E só agora a

sinfonia parece atrair um pouco os pianólatras paulistanos” (ANDRADE, 1922, p. 8).

Sobre a educação musical nesse período, constatamos que o movimento

escolanovista firmou-se como tendência pedagógica ao longo do século XX em

diferentes países, chegando ao Brasil por meio do educador Lourenço Filho, na

década de 1930, apresentando uma visão própria da nova tendência educacional.

Nesse sentido, Veiga (2007, p. 227) ressalta que o educador e pensador Lourenço

Filho sustentou o entendimento de que “[...] todo pensamento se origina de uma

situação problemática – ou seja, o pensamento não existe isolado da ação; é preciso

agir para pensar, e a ação pressupõe uma deliberação”. Lourenço Filho defendeu os

pressupostos da Escola Nova como abordagem apropriada à educação brasileira,

influenciando o pensamento de alguns professores no campo da música para

crianças, em especial, as aulas de piano.

A esse respeito, constatamos em Paz (2000) as propostas de musicalização por

meio do piano desenvolvidas por Liddy Chiaffarelli Mignone e Anita Guarnieri. Com

relação à professora Chiaffarelli, “[...] em 1948 criou o curso de especialização em

Iniciação Musical, formando os primeiros professores que iriam atuar nas escolas

particulares e do governo” (PAZ, 2000, p. 61). Sua perspectiva pedagógica

valorizava o intercâmbio de ideias e a “[...] realidade do aluno, procurando respeitar

e procurando compreender sua bagagem psicológica e emocional” (PAZ, 2000, p.

62). No que se refere ao trabalho de Anita Guarnieri, verificamos que sua pedagogia

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musical não visava à formação de virtuoses, mas “[...] à formação de futuras plateias

para os [...] concertos” (PAZ, 2000, p. 71).

Em relação aos aspectos mais gerais da arte dos sons, observamos que, na década

de 1950, houve uma modificação relevante nos modos de produzir música, tendo

nos Estados Unidos uma importante fonte de transformação dos timbres e estilos.

Nesse contexto, sob influência do beepbop, do jazz, do ragtime e do blues norte-

americanos, surge uma nova maneira de escrever e fazer música, tendo nos

instrumentos eletrônicos e de percussão suas referências. A guitarra, o baixo elétrico

e o teclado tornaram-se os mais novos objetos de consumo entre músicos

profissionais e amadores. Essa nova sonoridade influenciou de maneira decisiva os

repertórios ouvidos por jovens e adolescentes, que passaram a adotar as modas e

os jeitos do rock’roll (HESS, 1997).

Tratando das práticas educativas na segunda metade dos Novecentos, constatamos

em Fonterrada (2005) que a educação musical entre crianças no Brasil, a partir da

década de 1950, passou a ser desenvolvida no sistema público de ensino, no âmbito

das universidades federais e estaduais, com formato de cursos de extensão, bem

como proposta pedagógica e repertório voltado para as práticas instrumentais.

Nesse caso, os cursos de musicalização, denominação dada a esses cursos no

século XX, foram organizados nas mesmas bases dos conservatórios europeus,

descritas no Capítulo 2, cuja proposta agrega duas modalidades de aula: uma

coletiva, de caráter lúdico, vinculada à pedagogia ativa; outra, individual, de caráter

técnico, vinculada mais predominantemente à pedagogia tradicional, voltada para a

prática instrumental.

Tal proposta também encontrou lugar no Estado do Espírito Santo, que, com

objetivo nítido de atender a uma demanda crescente na sociedade capixaba, criou,

em 1952, por meio da Lei nº 661, o Instituto de Música do Espírito Santo. “[...] Sua

instalação aconteceu dois anos depois, no dia 23 de maio de 1954, com a nova

denominação de Escola de Música do Espírito Santo (Emes)” (CARNEIRO, 2010, p.

24), oferecendo aulas de piano, canto e violino. Em 1955, foi criado o Curso de

Iniciação Musical, voltado a crianças de cinco a oito anos, seguindo os moldes dos

cursos ofertados no Instituto de Música do Rio de Janeiro (atual Escola de Música

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da Universidade Federal do Rio de Janeiro), pois “[...] os capixabas que tinham

interesse em aprender um instrumento só o conseguiriam com a contratação de um

professor particular. Nas igrejas e escolas [...], ensinava-se apenas o canto

orfeônico” (LIMA JUNIOR, 2005, p. 41).

Os cursos de piano tinham suas atividades embasadas em estudos desenvolvidos

por músicos pesquisadores brasileiros, seguindo o modelo europeu, cujas obras

tratavam especificamente da aprendizagem pianística, abordando as principais

técnicas e pedagogias. Dentre essas obras, destacamos as de Guilherme Halfeld

Fontainha (1956) e José Alberto Kaplan (1987), que apresentavam diversas

considerações acerca da técnica pianística, indicando o que e como deve ser uma

aula desse instrumento musical, bem como fornecendo o perfil de um bom professor

de música. No caso de Fontainha (1956), é interessante observar que, com

orientações específicas relativas à técnica e a uma visão tradicional de professor, o

músico sinaliza em sua obra a importância da concepção de música e de criança,

explanando em outras palavras que

[...] os trechos fáceis para principiantes também requerem interpretação. Muitos professores não entendem assim. Dizem mesmo que as crianças não possuem sentimento. Como que não sentem, as crianças? Sentem tanto quanto os adultos. Os motivos é que diferem (FONTAINHA, 1956, p. 28).

Este músico acentuou a necessidade de se levar o aluno a sentir “[...] a beleza que

os sinais expressivos da música encerram [...]” (FONTAINHA, 1956, p. 28),

estimulando sua expressão própria em alguns trechos da música, pois, na relação

entre professor e aluno, “[...] o respeito é mútuo e a liberdade, sem limites.

Discutimos e cada qual dá a sua opinião e, muitas vezes (por que não o dizer?),

acabo adotando o ponto de vista do aluno” (FONTAINHA, 1956, p. 33).

Em se tratando de Kaplan (1987, p. 20), observamos que sua perspectiva de

trabalho baseia-se preponderantemente na ideia de que “a aprendizagem da

execução de um instrumento musical, sendo de caráter perceptivo-motor, com forte

carga do elemento cognitivo, [...] consiste, principalmente, em melhorar a rapidez e a

precisão com que o sistema nervoso central coordena a atividade [...]”. Sua

perspectiva educacional e suas teorias analíticas da técnica pianística alinham-se à

psicologia behaviorista, baseando-se nas propostas de Skinner e Thorndyke, que

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tiveram ampla influência nos cursos de pedagogia no Brasil ao longo da década de

1980, nos quais o enfoque de caráter biológico-comportamental, de Skinner, era

contraposto ao enfoque humanista, proposto por Carl Rogers, configurando um

amplo debate em torno de duas tendências diametralmente opostas.

Por essa via, Kaplan (1987, p. 29) explanou os aspectos de maior importância de

seu ponto de vista, como “[...] o controle e a coordenação dos variados movimentos

através [sic] dos quais, acionando[-se] as teclas do instrumento, procura-se

interpretar, isto é, dar vida ao código musical impresso na partitura”. Assim, a

aprendizagem musical estava associada ao desenvolvimento de habilidades

motoras, tendo como pré-requisitos dois tipos de fatores, sendo um deles de ordem

biológica – como a maturação –, e o outro, de ordem psicológica – por exemplo, a

motivação –, pois “[...] existe uma íntima relação entre a maturação de nosso

sistema nervoso central e a aprendizagem motora” (KAPLAN, 1987, p. 50).

A partir da década de 1990, tem-se o início de uma série de debates a respeito do

mito da música “verdadeira”, tendo como ponta de lança os questionamentos

apresentados por Rosen (1999, p. 56): “[...] a noção de fidelidade relacionada ao

mito da autenticidade [...] é um dilema que suscita, atualmente, uma viva polêmica

[...]”. Musicólogo e pianista, ele argumentou a favor de um equilíbrio entre a

fidelidade aos contextos históricos de uma obra e a liberdade de recriação ao

executante, pois defendia a importância de se “[...] alcançar uma execução bem

pessoal e inventiva, mas apoiando-se completamente no texto” (ROSEN, 1999, p.

56).

Essa inovação no pensamento acerca da interpretação pianística apresentou

consonância com novas práticas pedagógicas, observadas no Brasil na década de

1990, por exemplo, nos trabalhos desenvolvidos por Maria de Lourdes Junqueira

Gonçalves. Essa musicista criou um método próprio para o ensino de piano em

grupo, denominando-o Educação Musical através do Teclado (PAZ, 2000). Tal

método direcionava-se especialmente às crianças, sendo caracterizado “[...] pelo

enfoque dado à correlação entre executar, criar e ouvir música, atividades que,

requerendo uma diversidade de comportamentos musicais, podem ser integradas ao

processo ensino-aprendizagem” (PAZ, 2000, p. 110, grifo da autora).

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Passando à atualidade, mais precisamente entre os anos de 2014 e 2015,

identificamos pesquisas relativas à expressão musical, relacionando-a ao campo da

aprendizagem da performance instrumental. Tais pesquisas basearam-se nos

estudos desenvolvidos por Russel (1980), Sloboda e Davidson (1996) e Juslin

(1997, 2003), tratando mais especificamente de três aspectos por eles abordados, a

saber: comunicação intencional da expressividade musical (a emissão e a

recepção), fluxo (boa sequência) e motivação.

Em se tratando da comunicação intencional da expressividade musical, as

pesquisas atuais têm se apoiado preponderantemente no Modelo Circumplexo de

Russel (1980), que “[...] consiste em uma estrutura circular bidimensional, e os

estados emocionais e as emoções sentidas” (GERLING; SANTOS, 2015, p. 18), os

quais se encontram associados a duas variáveis, denominadas valência e atividade:

Figura 11 - Modelo de Russel

Fonte: Gerling e Santos (2015, p. 19)

Gerling e Santos (2015, p. 19) assim explicam o modelo:

para resumir graficamente essa concepção em um plano cartesiano, a abscissa desempenha o papel da valência e a ordenada representa a

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atividade. Níveis de atividade correspondem a respostas fisiológicas, tal como calmo/agitado, cansado/excitado, enquanto valências correspondem a estados de alegria/tristeza, satisfação/descontentamento, por exemplo (GERLING; SANTOS, 2015, p. 19).

As teorias de Russel têm como ponto de partida a ideias de que as emoções

básicas, assim como todos os estados afetivos, têm sua origem em sistemas

neurofisiológicos independentes, com ações diferenciadas: um sistema voltado para

o contínuo entre o prazer e o descontentamento (valência) estando vinculado aos

sentimentos de atração ou rejeição; o outro sistema, relacionado ao espectro

ativação-desativação (atividade), correspondendo às atividades fisiológicas. Dessa

forma, todos os sentimentos derivariam de um estado ou atividade fisiológica,

permitindo “[...] classificar emoções específicas, como raiva, medo ou alegria”

(GERLING; SANTOS, 2015, p. 17). Assim, haveria, de um lado, as emoções, e, de

outro, um núcleo afetivo ou núcleo de sentimentos inerentes ao ser humano, de

cunho neurofisiológico, diferenciados pela característica de que as “[...] emoções são

descritas como limitadas no tempo, enquanto o núcleo afetivo varia continuamente

no âmbito de suas dimensões” (GERLING; SANTOS, 2015, p. 18).

De acordo com Gerling e Santos (2015, p. 16-17), o modelo de Russel tem se

mostrado como uma eficiente ferramenta pedagógica no campo da performance

musical, pois tem possibilitado “[...] caracterizar a emoção percebida na performance

de estudantes e instigá-los sobre o processo deliberado de expressar um dado

caráter na interpretação de uma dada obra” (GERLING; SANTOS, 2015, p. 16-17).

Em se tratando da pedagogia da performance instrumental no Brasil, encontramos

teses e artigos enfocando a cognição musical, trazendo ao debate questões tais

como o repertório previsto nos cursos de música para crianças, a motivação, a

ludicidade, bem como os processos de criação e a eficácia do instrumentista em

comunicar as emoções das e nas composições. Tais trabalhos abordaram a

europeização dos repertórios e das formas pedagógicas calcadas no modelo

virtuose, apontando para possibilidades de realização da aprendizagem pianística

em óticas diferentes.

Espiridião (2003), por exemplo, questionou os programas e currículos dos

conservatórios de música; Rufini (2003) tratou dos fatores relacionados à motivação

na aprendizagem musical, adotando uma escala de avaliação do estilo motivacional

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do professor, intitulada Problems in schools; Ramos (2008), por sua vez, focalizou a

expressão musical como comunicação de emoções entre o instrumentista e o

ouvinte; a temática do ensino de piano em uma perspectiva lúdica, envolvendo os

gestos e o corpo, foi abordada por Gouveia (2010), enquanto Almeida (2014) propôs

uma educação musical por meio do piano que proporcionasse encontros criativos

entre as crianças e a música; por fim, Gerling e Santos (2015) discutiu as conexões

entre música e emoção a partir do modelo Russel.

Em se tratando das concepções sobre a expressão musical e sua aprendizagem,

verificamos no campo da educação e da filosofia o desenvolvimento de ideias que

revigoram seu entendimento como instância criativa do ser humano, indo ao

encontro dos principais pressupostos da educação musical, incluindo-se as

abordagens de educadores musicais dos séculos XX e XXI. Assim, no capítulo que

segue, passamos ao estudo dessas vertentes de pensamento, discorrendo sobre os

conceitos que constituem o pensamento de Deleuze e Guattari, bem como de

Virgínia Kastrup e Maturana, referências teóricas principais da investigação aqui

relatada.

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4 EXPRESSÃO MUSICAL: UMA SONOROFABULAÇÃO

Este capítulo discorre sobre o conceito de fabulação em Deleuze e Guattari (1995,

2010, 2011, 2012a, 2012b, 2012c, 2014), trazendo à cena a concepção de

expressão desses filósofos, tendo como vetor a arte dos sons. Nesse sentido, busca

articular a fabulação deleuziana aos demais conceitos que a ela se avizinham e que

se apresentam como bons condutores para a reflexão sobre o fazer e o aprender

música.

4.1 EXPRESSÃO EM DELEUZE E GUATTARI

A expressão musical na perspectiva de Deleuze e Guattari encontra-se articulada à

concepção de expressão na linguagem, constituindo um dos elementos que

compõem a visão deleuziana sobre a produção do conhecimento. Os filósofos

Deleuze e Guattari conceberam a produção do saber a partir do movimento entre

três grandes formas de pensamento, a saber, a filosofia, a ciência e a arte, operando

em colaboração e “[...] mútua inspiração [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 151).

Por esse ângulo, visualiza-se a forma de pensamento na filosofia como espaço de

criação de conceitos; o pensamento na ciência, como lugar de criação de funções e

prospectos; enquanto na arte se “[...] pensa por afectos e perceptos [...]” (DELEUZE;

GUATTARI, 2010, p. 80).

Essas três grandes formas de pensamento ou de criação não operam pela vontade

de Verdade, mas pelo ato de “[...] enfrentar o caos, [...] esboçar um plano sobre o

caos” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 233), buscando salvar o infinito, por meio

dos conceitos consistentes da filosofia; renunciando ao infinito, gerando uma

referência de funções e proposições na ciência; criando um finito que nos devolve ao

infinito, como no caso da arte.

A filosofia, a ciência e a arte são, assim, vias de pensamento específicas, cujas

trilhas traçadas distinguem-se pela natureza de cada plano, bem como dos

elementos que os povoam, entendendo-se que “[...] os três planos são tão

irredutíveis quanto seus elementos: plano de imanência da filosofia, plano de

composição da arte, plano de referência ou de coordenadas da ciência; forma do

conceito, força da sensação, função do conhecimento (DELEUZE; GUATTARI,

2010, p. 255, grifos dos autores).

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Um plano não é um método, nem mesmo um conceito, mas “[...] a imagem do

pensamento, a imagem que ele se dá do que significa pensar, fazer uso do

pensamento, se orientar no pensamento [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 47).

Assim, pensamos pela via dos conceitos, das funções e das sensações, sendo que

“[...] um desses pensamentos não é melhor que um outro, ou mais plenamente, mais

completamente, mais sinteticamente pensado [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.

233).

Essas formas de pensar se entrelaçam, conectando-se, sem, no entanto, se

identificar ou produzir alguma síntese. São diferentes maneiras de conhecer que

traçam uma relação entre si, podendo haver uma sensibilidade em um conceito ou

em uma função: “[...] tanto as percepções quanto as afecções especiais da filosofia

ou da ciência se ligarão necessariamente aos perceptos e afectos da arte”

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 158). Da mesma maneira, os functivos e os

prospectos da ciência, assim como os conceitos da filosofia, estarão presentes na

arte, operando por junção, e não por unidade.

Nesse sentido, mesmo que a filosofia e a ciência sigam em linhas independentes –

uma pensando pela via da consistência dos acontecimentos e a outra, pelo estado

das coisas –, o estado das coisas e os acontecimentos não são propriedades de

nenhum dos campos: “[...] a filosofia não para de extrair, por conceitos, do estado de

coisas, um acontecimento consistente, [...] ao passo que a ciência não cessa de

atualizar, por funções, o acontecimento num estado de coisas, uma coisa ou um

corpo referíveis [sic]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 150).

O tríptico formado pela filosofia, pela ciência e pela arte assinala uma eventual

correspondência entre os planos, gerando possibilidades de conceito de sensação

ou de função, função de uma sensação ou de um conceito e sensação de um

conceito ou de uma função. Assim, o processo de construção de uma fórmula

matemática pode envolver a elaboração de conceitos e expressar uma beleza,

apresentando seus afectos e perceptos; o mesmo ocorrendo em relação a uma obra

de arte, cujos perceptos e afectos estabelecem funções e podem conectar-se a

conceitos.

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Esse movimento entre conceitos, funções e afectos está diretamente relacionado às

modificações corpóreas e incorpóreas em um determinado campo, sendo tais

modificações carreadas por duas formalizações distintas, “[...] uma de conteúdo e

outra de expressão [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 27), compondo os modos

de enunciação próprios a cada linguagem. Nessa perspectiva, a expressão não

forma um par correspondente ao conteúdo, eles, expressão e conteúdo, são corpos

diferenciados, visto que “[...] as duas formalizações não são de mesma natureza, e

são independentes, heterogêneas” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 28).

Tomando como exemplo um acorde musical que aparece na Figura 12, veremos que

sua forma de conteúdo é constituída por quatro sons (notas); em si mesma essa

matéria sonora nada expressa, podendo assumir diferentes afetos a cada vez que

executada, ou seja, podendo assumir uma diversidade de formas de expressão,

conforme lhe seja impresso pelo executante.

Figura 12 - Acorde de ré menor seguido de alteração de uma nota, que modifica seu afeto - canção Dear hearts and gentle people, de Sammy Fain e Bob Hilliard (1949)

Fonte: partitura avulsa do acervo da professora-pesquisadora

Isso traduz a independência entre as formas de expressão e conteúdo, bem como

suas naturezas distintas que reagem entre si, pois “[...] as expressões ou os

expressos vão se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos [...]” (DELEUZE;

GUATTARI, 1995, p. 29), manifestando alterações corpóreas e “[...] transformações

incorpóreas de natureza completamente diferente (acontecimentos)” (DELEUZE;

GUATTARI, 1995, p. 28, grifos dos autores). O mesmo é válido para a situação

inversa, em que a própria expressividade poderá propiciar modificações nas formas

de conteúdo.

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Esse entendimento sobre as formas de expressão e de conteúdo funda o conceito

de linguagem em Deleuze e Guattari, a qual se baliza não no dualismo entre as

diferentes instâncias que a constituem, mas na coexistência de diferentes

formalizações que nela operam. Assim sendo, os corpos que atuam na produção

das diferentes linguagens não estabelecem entre si uma relação antagônica, pois

“[...] não nos encontramos [...] diante de uma correspondência estrutural entre duas

espécies de formas [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 57), mas diante de uma

“[...] pragmática [...] da língua [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 23).

A partir dessa visão, portanto, no lugar da compreensão de linguagem como produto

das relações estruturais entre pares correspondentes, tem-se a concepção de

linguagem como máquina. Máquina, no universo-Deleuze e Guattari, opera por

junções, acoplamentos de corpos de naturezas diversas, criando uma engrenagem

na qual cada elemento atua de acordo com suas funções, gerando conceptos,

afectos e perceptos diferenciados. Nesse contexto, a música é entendida como uma

linguagem, premissa reiterada por Deleuze e Guattari (1995, p. 42) na seguinte

afirmação: “[...] ainda aqui, objeta-se que a música não é uma linguagem”. A

linguagem musical, portanto, é uma máquina composta por diferentes corpos

reagindo entre si, pois a arte dos sons

[...] ligou a voz e os instrumentos de maneiras bem diversas; mas, como a voz é canto, tem por papel principal „manter‟ o som, preenche uma função de constante, circunscrita a uma nota, ao mesmo tempo em que é acompanhada pelo instrumento. É somente quando relacionada ao timbre que ela desvela uma tessitura que a torna heterogênea a si mesma e lhe dá uma potência de variação contínua: assim não é mais [sic] acompanhada, é realmente „maquinada‟, pertence a uma máquina musical que coloca em prolongamento ou superposição em um mesmo plano sonoro as partes faladas, cantadas, sonoplastizadas, instrumentais e eventualmente eletrônicas (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 42).

A máquina musical opera, portanto, a partir do movimento entre seus diferentes

corpos, que vão produzindo seus enunciados em mútua inspiração entre as formas

de conteúdo e as formas de expressão. Assim, em um processo musical, a sucessão

de acontecimentos sonoros é uma cadeia de transformações corpóreas e

incorpóreas. Assim, “[...] a forma de expressão será constituída pelo encadeamento

dos expressos, como a forma de conteúdo pela trama dos corpos” (DELEUZE;

GUATTARI, 1995, p. 28). Temos, portanto, atributos corpóreos – as formas de

conteúdo – e atributos incorpóreos, que “[...] são os expressos dos enunciados [...]”

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(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 28), como o acorde musical: “os acordes são

afectos. Consoantes e dissonantes, os acordes de tons [...] são os afectos de

música” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 194).

As transformações corpóreas e incorpóreas não cessam de se interferir, indo de um

segmento a outro, de modo que “[...] a independência funcional das duas formas [...]

faz com que um segmento de uma reveze, sem cessar, com um segmento da outra,

que se insinue ou se introduza na outra” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 29). Em

se tratando da música, temos os corpos sonoros – as formas de conteúdo –, as

notas musicais, os diferentes espécimes de instrumentos, timbres, os diversos

instrumentistas, as paixões; temos as formas de expressão que são atribuídas a

esses corpos, dando-lhes variadas feições, atmosferas, texturas. Ou seja, há a

mistura de corpos “[...] reagindo uns sobre os outros [...]” (DELEUZE; GUATTARI,

1995, p. 31) e as transformações incorpóreas, que “[...] são o expresso dos

enunciados que são atribuídos aos corpos [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 28,

grifo dos autores), modificando os afectos e os perceptos, bem como as funções e

os conceitos.

Esse movimento de passagem de um segmento a outro, em mútua inspiração e

transformação, constitui o que Deleuze e Guattari (2012b) denominaram como

territórios, que vão constantemente se desterritorializando e reterritorializando, pois,

[...] precisamente, há território a partir do momento em que componentes de meios param de ser direcionais para devirem dimensionais, quando eles param de ser funcionais para devirem expressivos. É a emergência de matérias de expressão (qualidades) que vai definir o território (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 127).

Assim, vemos que um território não preexiste às formas, mas, antes, a

expressividade o constitui, no entrelaçamento e colaboração entre as formas de

conteúdo e de expressão, não sendo possível “[...] postular um primado da

expressão sobre o conteúdo, ou o inverso [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 30),

estando ambas as formas no movimento de compor territórios e de desterritorializá-

los.

Por essa ótica, a expressão não é fixa, nem mesmo algo subjetivo ou objetivo, mas,

antes, é um ato em que “[...] as qualidades ou matérias de expressão entram em

relações móveis umas com as outras, as quais vão „exprimir‟ a relação do território

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que elas traçam com o meio interior dos impulsos e com o meio exterior das

circunstâncias” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 131). Essa ideia quer dizer que a

expressividade não se limita a um impulso que desencadeia uma ação, tratando-se

de gestos que envolvem transformações dimensionais e de intensidade, tendo por

sentido “[...] marcar um território [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 128),

performatizando um território sonoro.

As funções, por sua vez, não preexistem ao território, mas emergem em sintonia

com a expressividade, compondo territórios sempre pelos movimentos de

territorialização, desterritorialização e reterritorialização. Nesse sentido, a

expressividade musical não existe de per se, mas se compõe no processo mesmo

da execução, na conjugação e mútua interferência entre as formas de conteúdo e de

expressão, bem como entre os atributos corpóreos e incorpóreos. Ou seja, a

expressividade é produzida nas engrenagens próprias das transformações

corpóreas e incorpóreas, em movimento de territorialização, desterritorialização e

reterritorialização da substância sonora.

Para Deleuze e Guattari (2010, p. 208), portanto, a arte é uma expressão de afectos,

isto é, “[...] a arte é a linguagem das sensações [...]”, na qual se expõem os

perceptos e os afectos do vivido, para além das percepções, opiniões e afecções

das vivências. Por essa via, a música não é a representação de estados do ser ou a

semelhança com algo vivenciado no cotidiano – no sentido de não ser um faz de

conta ou uma imitação –, pois no entendimento deleuziano, o fazer artístico é o

transbordamento do vivido, transcodificando-se em uma linguagem de sensações

“[...] que faz entrar nas palavras, nas cores, nos sons ou nas pedras [...]” (DELEUZE;

GUATTARI, 2010, p. 208). Assim, fazemos música sentindo e seguindo a lógica das

sensações, expressando o que os afectos pedem, pensando por afectos e

perceptos, não por funções ou conceitos. Os perceptos e os afectos são inerentes à

arte.

4.1.1 Formação de territórios na música: um exemplo a partir da composição

Danse, de Claude Debussy

Com o objetivo de aprofundarmos nossa compreensão do pensamento de Deleuze e

Guattari a respeito da linguagem das sensações, em específico, na arte sonora,

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tomamos por empréstimo a peça musical Danse (ARRAU, acesso em: 2 nov. 2015),

composta por Claude Debussy (1862-1918), cujo desenvolvimento coloca em

evidência diferentes intensidades, afectos, perceptos, densidades e atmosferas,

permitindo-nos compreender o sentido da fabulação e os processos de

territorialização, desterritorialização e reterritorialização.

Observando o trecho inicial da música (Figura 13), vemos que ela começa em

sonoridade muito leve, indicada pelo sinal pp logo no início da composição. Território

sonoro de corpo extremamente suave...

Figura 13 - Início da composição Danse, de Claude Debussy (1890)

Fonte: partitura avulsa usada na Fames

No trecho que está na Figura 14, a seguir, o som desterritorializa-se, começa a

crescer e vai a fortíssimo (ff), reterritorializando-se em determinadas sonoridades de

acordes mais enfatizadas (sfz), para, logo em seguida, desterritorializar-se em

sonoridade que segue diminuindo e cai em pianíssimo novamente, mas um outro

pianíssimo – não mais aquele do início da música; é um outro território.

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Figura 14 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890)

Fonte: partitura avulsa usada na Fames

Observando-se o trecho exposto na Figura 15, a seguir, a composição dá início a

outro território sonoro, em crescendo, chegando novamente a fortíssimo, mantendo-

se nessa ambiência, e começa, em seguida, uma nova trajetória, com as

sonoridades diminuindo até se perderem; nossos corpos se desterritorializam com o

som, já sentindo o som que virá.

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Figura 15 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890)

Fonte: partitura avulsa usada na Fames

No trecho subsequente (Figura 16), o som desterritorializa-se para uma atmosfera

completamente diferente das anteriores, levando a música para um território etéreo,

diáfano. Mudam-se os tons, a textura e os timbres... O trecho prolonga-se, passando

por ambientações mais expressivas, indo em direção a uma elaboração mais rítmica

do que melódica, o território sonoro transforma-se em notas marcadas, sons

enfáticos, velocidades, chegando ao fortíssimo e, ao mesmo tempo, diminuindo o

andamento (rit.). Lentidões...

Na sequência, a música retoma tal e qual o início, em som muito leve, uma

reterritorialização. Logo desterritorializa-se em velocidades, indo a fortíssimo, com

um grand finale (Figura 17).

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Figura 16 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890)

Fonte: partitura avulsa usada na Fames

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Figura 17 - Trecho da composição Danse, de Claude Debussy (1890)

Fonte: partitura avulsa usada na Fames

Olhando para a partitura e ouvindo a música, verificamos que ela é feita de notas

musicais, linhas, sons, timbres e ritmos, que são os materiais com os quais o

compositor e o instrumentista criam suas obras. Porém, não são exatamente os

sons, os timbres e os ritmos que compõem uma obra sonora, mas, sim, os afectos,

perceptos e blocos de sensações. São eles que “[...] fazem as vezes de linguagem

[...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 208), em constante movimento de

territorialização, desterritorialização e reterritorialização. Isso implica a ideia de que

não existe uma relação biunívoca entre uma sonoridade pensada por um compositor

ou instrumentista e um instrumento musical em si, mas que um determinado

instrumento pode “fazer as vezes” daquela sonoridade imaginada, daquele afecto:

“[...] pintamos, esculpimos, compomos, escrevemos com sensações. Pintamos,

esculpimos, compomos, escrevemos sensações” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.

196), o que é o mesmo que se pode dizer sobre quando ouvimos música e tocamos

um instrumento musical.

Tratando do universo-Debussy, em Danse, a partitura em si, à primeira vista, pouco

expressa sobre seu universo, mas, atendo-nos às suas pistas – de pianíssimo,

expressivo, fortíssimo, perdendo-se etc. –, começamos a adentrar seu plano de

composição das sensações. Imaginemos um som qualquer muito leve, suave; na

sequência, outro som, porém, forte; seguindo em frente, encontramos outro som

suave e outros sons que vão diminuindo até se perderem, se dispersarem...

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Passamos ao território do etéreo, sons vagos... sons surdos, lentidões. Tempo liso...

Continuando, chegamos à melodia apaixonada e outra mais delicada. Após um

fortíssimo, ouve-se a antiga cançãozinha, do começo, leve, suave, reconduzindo-nos

para seu tema inicial, tempo marcado, mas... De repente, no fim, em um rompante,

entramos numa nuvem de sons fortíssimos que nos arrastam para o alto, para o

cosmos, numa postura quase acrobática, na força de sua verticalidade.

Velocidades... E o som escapa universo afora... É assim que “[...] a sensação não se

realiza no material, sem que o material entre inteiramente na sensação, no percepto

ou no afecto [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 197).

A composição Danse é uma tarantela, que tem como percepto a história de aranhas

que picavam as pessoas em uma região da Itália, o que levava essas pessoas a

dançar. Conhecida como a dança da aranha, “[...] a tarantela é uma estranha dança

que conjura ou exorciza as supostas vítimas de uma picada de tarântula: mas,

quando a vítima faz sua dança [...], não se imita; constitui-se um bloco de devir, pura

cor e puro som, segundo os quais o outro dança” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p.

113). Porém, a composição é, de fato, uma dança, uma máquina de expressividade

em que as formas de expressão e as formas de conteúdo se polinizam, movendo os

afectos e os percetos, realinhando as funções e os conceptos. Assim, o mover do

pensamento musical entre conceptos, functivos, afectos e perceptos compõe uma

verdadeira máquina de expressão, constituindo o que Deleuze e Guattari (2010)

conceberam como fabulação, conceito sobre o qual discorreremos no tópico a

seguir.

4.2 FABULAÇÃO EM DELEUZE E GUATTARI

O conceito de fabulação deleuziano é significativamente adequado para a

investigação aqui relatada, visto que não nos remete aos contos, nem mesmo às

estorietas que reproduzem a vida, não se referindo, da mesma forma, a “[...] uma

lembrança mesmo amplificada [...]. Com efeito, o artista [...] excede os estados

perceptivos e as passagens do vivido. Como contaria ele o que lhe aconteceu, ou o

que imagina, já que é uma sombra?” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 202).

A fabulação deleuziana remete-nos às narrativas de ficção, uma narrativa que “[...]

compõe [...] perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepções

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vividas” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 202). Bogue (2011) trabalhou o conceito

deleuziano de fabulação na relação Cronos-Aion, entendendo-os como

personagens-tempo coexistentes, apoiando-se na concepção de tempo em Deleuze.

A partir das visões de Bergson e Nietzsche, Deleuze pensou o tempo em três

sínteses passivas; passivas porque, para este filósofo, a percepção de tempo “[...]

vem até nós através [sic] de sínteses de momentos, [...] que acontecem

automaticamente, sem ação deliberada” (BOGUE, 2011, p. 26). A primeira síntese, o

habitus, “[...] exprime a fundação do tempo sobre um presente vivo, fundação que dá

ao prazer seu valor de princípio empírico em geral [...]” (DELEUZE, 2006, p. 169);

por sua vez, a segunda síntese do tempo “[...] exprime o fundamento do tempo por

um passado puro [...]” (DELEUZE, 2006, p. 169); por fim, a terceira síntese passiva

do tempo, segundo afirma Deleuze (2006, p. 169), “[...] designa o sem-fundo [...],

para além do fundamento de Eros e da fundação de Habitus”.

Especificamente com relação à terceira síntese, Deleuze (2006, p. 169) assinala sua

potência de ser para-além das antinomias, cabendo-lhe desfazer “[...] seu círculo

físico ou natural [habitus], bem centrado demais, e formar uma linha reta, mas que,

levada pelo seu próprio comprimento, torna a formar um círculo eternamente

descentrado”. Esta síntese é, portanto, o espaço aberto ao futuro no presente, “[...] o

momento de liberdade e de possibilidades impensáveis [...]” (BOGUE, 2011, p. 28).

Desse ângulo de visão, Deleuze sugere que “[...] nós não vivemos em uma

sequência ininterrupta de pontos de presente, mas em um movimento, em um devir,

que incorpora em si um passado mantido no presente, e que segue em direção ao

futuro” (BOGUE, 2011, p. 26), sendo que, “[...] sob todas as circunstâncias, o estado

presente é um estado possível” (NIETZSCHE, 1974, p. 396).

Essa ideia de tempo concebida por Deleuze abriu perspectivas para o entendimento

e a vivência cotidiana que transita na modulação temporal. Nesse sentido, partindo

das personagens conceituais Cronos e Aion, Deleuze imprimiu-lhes um novo

sentido, instando-as a uma relação de coexistência, e não mais de oposição. Assim,

Cronos é a marcação linear, instituída, e Aion, “[...] o tempo não pulsado flutuante,

[...] isto é, o tempo do acontecimento puro ou do devir, enunciando velocidades e

lentidões relativas, independente [sic] dos valores cronológicos ou cronométricos

[...]” (DELEUZE, 2012b, p. 53). Desse ponto de vista, Cronos e Aion coexistem,

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dobrando o tempo em politempos, de forma tal que, “[...] a cada momento do

presente [cronos, habitus], uma extensão suspensa, em Aion, pode surgir [...]”

(BOGUE, 2011, p. 28), possibilitando a expressão criadora. É nesse campo que a

fabulação se constitui, delineando um entre-lugar, “[...] uma fenda no tempo, uma

„cesura‟ que assinala um „antes‟ e um „depois‟ [...]” (BOGUE, 2011, p. 28). Ou, nos

termos deleuzianos, “[...] o hábito transvasa à repetição algo de novo: a diferença

[...]” (DELEUZE, 2006, p. 79, grifo do autor).

Cronos e Aion estão na música: na música tonal, Cronos é contagem regular dos

tempos, como uma régua; nas barras de compasso que separam os conjuntos de

tempo, não de acordo com as sonoridades, mas de acordo com a fórmula do

compasso; ou nas séries. Aion está mais presente na indicação do caráter da peça –

Allegro, Scherzando, Vivo, Adagio etc. –, as marcas que indicam a expressividade,

os afectos; a época do compositor e seus perceptos.

Vemos, portanto, que a experiência musical não é da ordem de uma sequência

linear cujos momentos seguem-se repetitivos, igualmente. Em se tratando

especialmente de música, cada tempo do ritmo é único, fazendo com que o tempo 1

de um compasso seja inteiramente diverso do tempo 1 de outro compasso.

Da mesma maneira, Cronos é o plano de composição técnica, tempo metrificado;

Aion, o plano de composição estético das sensações, tempo não metrificado, não de

forma antagônica, em oposição, nem mesmo alternada, mas um eterno movimento,

em coexistência. Deleuze e Guattari (2012b, p. 51) elaboraram essa concepção de

tempo-espaço a partir das formulações do músico Pierre Boulez a respeito do tempo

musical, afirmando que esse músico fazia a distinção entre “[...] o tempo e o não-

tempo, o „tempo pulsado‟ de uma música formal e funcional fundada em valores, e o

„tempo não pulsado‟ para uma música flutuante, flutuante e maquínica, que só tem

velocidades ou diferenças de dinâmica [...]”. Desse modo, a diferença entre Aion e

Cronos não se passa apenas entre as noções de tempo regular ou irregular, nem

entre o efêmero e o duradouro, “[...] mas entre dois modos de individuação, dois

modos de temporalidade” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 51).

Tais modos de temporalidade, Cronos e Aion, estabelecem ressonância com os

modos de enunciação ou ação, criando relações de movimento e repouso,

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velocidades e lentidões relativas: “[...] é preciso que a obra de arte marque os

segundos, os décimos, os centésimos de segundo. Ou se trata de uma liberação do

tempo, Aion [...]”, afirmam Deleuze e Guattari (2012b, p. 59), trazendo exemplos

musicais nos quais essas modalidades de tempo e de ação emergem no transcorrer

mesmo da obra:

[...] talvez o gênio de Schumann seja o caso mais chocante, onde [sic] uma forma não é desenvolvida senão para as relações de velocidade e lentidão pelas quais ela é afetada material e emocionalmente [...] Com mais razão ainda, Wagner e os pós-wagnerianos irão liberar as variações de velocidade entre partículas sonoras. [...] Ravel e Debussy preservam da forma precisamente aquilo que é necessário para quebrá-la, afetá-la, modificá-la, sob as velocidades e as lentidões. [...] Mesmo um rubato de Chopin não pode ser reproduzido, pois terá a cada vez características diferentes de tempo (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 64).

Essa coexistência de tempos pode ser percebida na composição Danse, que se

desenvolve na contagem de seus tempos cronológicos da fórmula de compasso 1,

2, 3, 4, 5, 6, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 1... E também se desprende dessa contagem no “não

tempo” da sonoridade, perde-se em um número determinado de tempos; nem mais,

nem menos. O músico e a música criam, então, um terceiro tempo no tempo-espaço

cronológico, caindo no espaço-tempo flutuante Cronos-Aion. Nessa coexistência dos

planos de composição técnica e o plano das sensações, Aion contamina Cronos,

movimenta a régua rítmica; Cronos, por sua vez, potencializa Aion, criando o campo

dos possíveis, no qual os afectos não são a narrativa ou lembrança de um vivido,

mas sua saturação, seu transbordamento em diferentes intensidades. As

sonoridades da composição Danse são da ordem de um devir-criança e, quando a

ouvimos ou tocamos, dançamos com Aion e Cronos. Ou melhor, talvez Aion e

Cronos façam-nos dançar.

Se em Danse o universo-Debussy é da ordem de um devir-criança, Chopin já nos

traz ou nos leva a sonoridades soturnas, interiorizadas, à fabulação de perceptos de

outros vividos. O tempo do e no universo-Chopin é a narrativa de outra intensidade e

densidade:

a moldura harmônica do tema dá lugar a uma espécie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composição [...] o trabalho criador já não mais versa sobre os componentes sonoros, motivos e temas, abrindo um plano de composição, para fazer nascer dele compostos bem mais livres e desenquadrados, quase agregados incompletos [...]. É a „cor‟ do som que conta cada vez mais. Passa-se da

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Casa ao Cosmos (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 225-226, grifo dos autores).

Chopin satura a dor, excede a languidez, criando um tempo denso, entre

velocidades e lentidões. Suas sonoridades são da ordem de um devir-mulher, em

que as frases são de uma incompletude que se dissipam no espaço. Podemos ver

isso no Estudo Op. 25 nº 7 (F. CHOPIN, Acesso em 2 nov. 2015) (Figuras 18 e 19).

O fortíssimo de Chopin não nos eleva às alturas do cosmos, mas expande a energia

sônica, compondo o ser da sensação em um movimento catabático, para baixo, para

dentro, para a terra: “[...] é a carne que vai se libertar ao mesmo tempo do corpo

vivido, do mundo percebido, e da intencionalidade de um ao outro, ainda muito

ligada à experiência” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 210), uma carne que é tanto

da ordem da sensualidade quanto da religiosidade, compondo o ser de sensação

que não existiria sem ela, ou que deixaria a música desabar aos clichês de paixão

ou aos sons pseudorromânticos. Para encontrar o universo-Chopin, é preciso achar

suas pistas.

Figura 18 - Trecho do Estudo Op. 25 nº, de Chopin

Fonte: partitura avulsa usada na Fames

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Figura 19 - Trecho do Estudo Op. 25 nº, de Fréderic Chopin (1837)

Fonte: partitura avulsa usada na Fames

Passando ao universo-Guarani Nhãdeva, nos cantos da tradição, Cronos e Aion

estão presentes tanto na régua rítmica quanto nos desenhos melódicos, que, juntos,

formam um sistema musical, o sistema-Nhãdeva. O desenquadramento dessa casa

Guarani acontece quando algum indígena resolve achar uma linha de fuga,

desterritorializando suas formas, sua linguagem sonora, seus modos de tocar. Um

exemplo disso é a canção Tangará mirim (Mborai Marei), de autoria de Wanderley

Moreira (MOREIRA, acesso em 20 jul. 2015), integrante do grupo musical Nuvens

Azuis, da Aldeia Biguaçu, em Santa Catarina. Aion está igualmente presente nos

cantos-lamentações, composições de tempo liso, sem marcações, que são entoadas

entre o falar e o cantar (sprechgesang), em que

ora uma primeira parte diatônica vocal dá lugar a uma descida cromática em língua secreta, deslizando de um som a outro de forma contínua, modulando um continuum sonoro em intervalos cada vez menores, até alcançar um parlando cujos intervalos param; e ora é a parte diatônica que se encontra ela mesma transportada segundo os níveis cromáticos de uma arquitetura em plataformas, sendo o canto às vezes interrompido pelo parlando, uma simples conversa sem altura definida (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 43).

Indo ao universo-pop, vemos na canção Como uma onda no mar, de Lulu Santos,

um bom exemplo de fabulação. É interessante observar a perfeita composição entre

o que a letra sugere e as sonoridades instrumentais. O composto feito pelo ritmo, a

forma do arranjo harmônico e a maneira como a música é tocada criam exatamente

a sensação do balanço das ondas do mar; é a percepção do mar de Lulu Santos

transbordada em percepto, “[...] estendendo um plano de composição arquitetônico

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em que ela se tornaria um puro ser espiritual, uma matéria radiante pensante e

pensada, não mais uma sensação do mar [...], mas uma sensação do conceito de

mar” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 234). Essa ideia é fundamental, pois, de que

adiantaria falar das ondas do mar em uma narrativa sonora que segue uma única

linha de tempos e ritmos regulares e corretos, “certinhos”? De que estaríamos

falando? Não, música não é uma execução “correta” de notas e ritmos; música é

composição; “[...] composição, composição, eis a única definição de arte. A

composição é estética, e o que não é estético não é uma obra de arte” (DELEUZE;

GUATTARI, 2010, p. 227).

Nesse plano de composição, os símbolos são pistas importantes que conduzem o

instrumentista ao plano de composição estético, indicando as sonoridades sugeridas

nos afectos. Ou seja, a lógica do fazer artístico sonoro não está nas regras (embora

elas existam), não está no material em si, muito menos em um compêndio de

teorias: a lógica é a da sensação! É assim que “[...] só passamos de um material a

outro, como do violão ao piano, [...] se o composto de sensações o exigir [...]”

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 197). O tipo de som suave que fazemos no início

de Danse é pedido pelo som, pela música em seus momentos específicos, levando-

nos a entender que fazer música não é uma representação ou reprodução de algo,

mas é o esforço “[...] para tornar sonoras forças que não são sonoras” (DELEUZE,

2007, p. 62).

Dando continuidade às investigações mais restritas sobre a fabulação deleuziana,

de acordo com as incursões de Bogue (2011, p. 21), esse conceito possui cinco

características que movem e fazem mover o plano da criação, a saber: “[...] devir-

outro, experimentação no real, „mito‟, invenção de um povo por vir, e

desterritorialização da linguagem”.

Referindo-nos à primeira característica, vemos sua relação com o objeto da

pesquisa aqui relatada naquilo que diz respeito aos desequilíbrios metamórficos que

podem constituir a musicalidade na própria música; em uma aula, situando alunos,

professores e músicas; em uma passagem contínua entre formas de existência e

entre corpos distintos. Dessa maneira, os alunos e as partituras dizem um do outro,

assim como, no encontro, professor, aluno, compositor e partitura imprimem-se

mutuamente em relações-devires. Outro aspecto fundamental dessa característica é

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a possibilidade de apontar caminhos para superar conceitos e categorias que não

funcionam, tal como o modelo-concertista na educação musical instrumental.

A segunda característica, experimentação no real, vincula-se à ideia de máquina

como meio de processamento. A aula de música por nós pensada, nesse contexto

da fabulação deleuziana, é um dispositivo que funciona como intervenção em um

universo institucional, a escola de música, entendendo que “[...] os signos dos

sistemas semióticos, incluindo a língua, não se separam das instituições, das

práticas, e das relações de poder que permeiam as interações humanas” (BOGUE,

2011, p. 23).

No tocante à terceira e quarta características – fabulação deleuziana do mito e

invenção de um povo por vir –, podemos identificar conexão entre ambas, pois a

dimensão do mito existe na ressonância de um povo que falta. Assim, segundo

Bogue (2011, p. 24), as projeções mitográficas criam personagens que são

máquinas de agenciamento coletivo de enunciação, assumindo “[...] um lugar maior-

que-a-vida, heroico, ou quase divino [...]”.

A desterritorialização da linguagem, por sua vez, é uma característica que se refere

à visão de que as diversas formas de linguagem e seus modos de enunciação não

são modelos universais, herméticos ou constantes, mas fazem parte de um

continuum de variação, no qual transitam o sistema-padrão de uma língua e suas

incontáveis criações e recriações. Nesse sentido, um sistema padrão de linguagem

ou linguagem estabelecida é sempre territorializado, prescrito, adotando um

procedimento que parte do conteúdo e segue à expressão: “[...] dado um conteúdo,

em uma dada forma, achar, descobrir, ou ver a forma de expressão que lhe convém”

(DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 57). A criação na linguagem, por sua vez, abarcará

seus processos de desterritorialização, estando “[...] necessariamente em ruptura

com a ordem das coisas [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 58), visto que a

expressividade em uma dada língua emerge do movimento e da mútua interferência

entre as transformações corpóreas e incorpóreas.

A desterritorialização da língua é, portanto, o movimento de descoberta ou, ainda, a

abertura de uma linha em que a criação e a recriação se tornam possíveis, em meio

às formas molares, demarcadas, entendendo que o poder de expressão e os

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mecanismos de repressão e cristalização coexistem em um mesmo campo, pois “[...]

toda sociedade, mas também todo indivíduo, são [...] atravessados pelas duas

segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e outra molecular” (DELEUZE;

GUATTARI, 2012a, p. 99, grifo dos autores).

Em se tratando da música, podemos retomar à composição Danse, no universo-

Debussy, para exemplificar. Embora suas sonoridades sejam estruturadas em uma

arquitetura formal – a música contém suas clausuras –, inerente ao próprio plano de

composição técnico da forma sonata, o músico criou saídas feitas de modulações,

transposições, tessituras que desterritorializaram o conceito de sonata, que estava

em vigor naquele momento em que Claude Debussy criou essa composição. Nesse

caso, o compositor criou seu estilo próprio, “[...] os modos e ritmos de um músico

[...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 201), estruturando uma escala de tons

inteiros, com sonoridades pictóricas impressionistas, quase sempre, nuvens de som,

as quais se elevaram “[...] das percepções vividas ao percepto, das afecções vividas

ao afecto” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 201).

A composição Danse segue, portanto, a forma enquadrante rígida da sonata, a casa,

que tem seus aposentos definidos, suas paredes e enquadramentos, e também

aberturas, suas portas ou suas janelas que convidam a espreitar linhas de fuga,

desagregando a moldura tonal por “[...] tons justapostos que separam e dispersam

as forças agenciando suas passagens reversíveis, em Debussy” (DELEUZE;

GUATTARI, 2010, p. 226).

Ainda referindo-nos à forma sonata, vemos que sua estrutura básica em três

movimentos distintos é comumente recriada, pois “[...] é raro que um grande músico

siga a forma canônica [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 225). Liszt, por

exemplo, abriu linhas de fuga ao promover “[...] uma fusão dos movimentos no

„poema sinfônico‟. A sonata aparece, então, antes, como uma forma-cruzamento em

que, da junção das dimensões musicais, da clausura dos compostos sonoros, nasce

a abertura de um plano de composição” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 225).

O mesmo podemos dizer do nascimento de determinados estilos musicais, como a

bossa nova, que, a partir da alteração de uma pequena célula rítmica agregada a

uma sonoridade atípica, João Gilberto (1931-) produziu um novo estilo musical,

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desterritorializando o conceito de samba, sendo o novo estilo praticado no Brasil nas

décadas de 1950 e 1960 (SEVERIANO, 2009).

No campo da performance instrumental, temos o pianista Glenn Gould (1932-1982),

cujo modo de tocar desconcertou os parâmetros e as prescrições técnico-

comportamentais do conceito de pianista, abalando as linhas molares do “mito da

música verdadeira”. As interpretações de Bach, especialmente as Variações

Goldberg, executadas pelo referido pianista, são consideradas um marco na música

ocidental do século XX.

Figuras 20 e 21 - Glenn Gould, que criou maneira própria de tocar piano, rompendo o modelo instituído

Fonte: La respiration (acesso em 22 ago. 2016).

Tais são os processos de desterritorialização da linguagem que nos fazem ver que,

“[...] por toda parte, a música organizada é atravessada por uma linha de abolição,

como a linguagem sensata, por uma linha de fuga, para liberar uma matéria viva

expressiva que fala por ela mesma e não tem mais necessidade de ser formada”

(DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 43). Os processos de desterritorialização sempre

estarão em relação a um processo de territorialização, sendo o mesmo que dizer

que as variações da linguagem e seus processos criativos só o são em relação aos

sistemas-padrão.

Vemos, portanto, que a desterritorialização da linguagem, como característica do

conceito de fabulação deleuziana, sinaliza para os usos da linguagem que levam à

criação na temporalidade Cronos-Aion, escapando às repetições, às reproduções

dos modelos instituídos ou territorializados. Nesse caso, a expressividade compõe

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novos territórios, agenciando modos próprios de enunciação, trilhando linhas

moleculares, linhas de fuga, desterritorializando-se.

4.2.1 Fabulação e suas áreas de vizinhança

A elaboração de conceitos na perspectiva deleuziana tem, em si, a ideia de que “[...]

não há conceito simples. Todo conceito tem componentes e se define por eles. [...] É

uma multiplicidade [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 23). Assim, o conceito de

fabulação agrega-se a outras ideias e conceitos, visto que “[...] cada conceito remete

a outros conceitos, não somente em sua história, mas em seu devir ou suas

conexões presentes [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 27).

Entre os conceitos agregados, estão os conceitos de máquina abstrata e

agenciamento coletivo de enunciação. Máquina abstrata é “[...] sempre singular,

designada por um nome próprio, de grupo ou de indivíduo, ao passo que o

agenciamento de enunciação é sempre coletivo, no indivíduo ou no grupo”

(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 48). As máquinas abstratas e os agenciamentos

coletivos não se opõem, mas coexistem na linguagem numa relação de ressonância,

não sendo possível distinguir o que são as constantes e o que são as variáveis em

uma língua, ou seus atos de fala e uma língua coletiva, reagindo entre si de variadas

formas:

máquina abstrata-Lênin e agenciamento coletivo-bolchevique... O mesmo é válido para a literatura, para a música. Nenhum primado do indivíduo, mas indissolubilidade de um Abstrato singular e de um Concreto coletivo. A máquina abstrata não existe mais independentemente do agenciamento, assim como o agenciamento não funciona independentemente da máquina (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 48).

Os agenciamentos coletivos de enunciação são as produções, os gestos, enfim,

todas as expressões que desterritorializam a linguagem cristalizada, afastando-se de

“[...] uma linguagem de papel [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 39). Por essa

via, o que um músico ou “[...] o escritor sozinho diz já constitui uma ação comum, e o

que ele diz ou faz é necessariamente político, mesmo que os outros não estejam de

acordo [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 37). Por esse exato ângulo, podemos

afirmar que “[...] não há sujeitos, há apenas agenciamentos coletivos de enunciação

[...], a ligação do individual no imediato-político” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 38-

39, grifos dos autores).

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Nesse sentido, podemos mencionar o agenciamento coletivo Debussy, que

desterritorializou as formas de expressão e de conteúdo próprias do romantismo,

criando um estilo, uma assinatura, bem como abrindo linha de fuga por onde

transitavam os anseios por novas texturas sonoras. Destacamos, ainda, o

agenciamento coletivo Ravel, cujo “Bolero [...] é um tipo de agenciamento maquínico

que conserva da forma o mínimo para leva-la à explosão” (DELEUZE; GUATTARI,

2012b, p. 64).

A questão dos diferentes estilos da linguagem musical no universo-Deleuze e

Guattari são da ordem de um continuum, ou seja, as modelagens sonoras de cada

época não sinalizam para uma evolução, mas são, antes, diferentes agenciamentos,

que “[...] comportam máquinas diferentes, ou relações diferentes com a máquina [...]”

(DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 173). Assim, a desterritorialização sonora não

comporta uma antinomia entre estilos, mas uma coexistência, como “[...] matéria em

movimento de uma variação contínua [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 164,

grifo dos autores). Nessa perspectiva, o romantismo não desterritorializou o

classicismo, tampouco o modernismo é uma evolução do período romântico:

não se deve interpretar essas três „idades‟, o clássico, o romântico e o moderno [...], como evolução, nem como estruturas com cortes significantes. São agenciamentos que comportam máquinas diferentes, ou relações diferentes com a máquina. Num certo sentido, tudo o que atribuímos a uma idade já estava presente na idade precedente (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 173).

Para os filósofos Deleuze e Guattari, o fazer musical é, portanto, um agenciamento

contendo a ideia de tornar-se, um transbordamento do campo das virtualidades para

o real, compondo a ordem do devir. O conceito de devir no pensamento deleuziano

diferencia-se da noção de possibilidade, comportando o sentido de atualização e

criação:

a atualização do virtual [...] sempre se faz por diferença, divergência ou diferenciação. A atualização rompe tanto com a semelhança como processo quanto com a identidade como princípio. A atualização, a diferenciação, nesse sentido, é sempre uma verdadeira criação (DELEUZE, 2006, p. 202).

A música comporta devires de diferentes naturezas, por exemplo, as obras de

Schumann, que remetem às infâncias e aos animais, e as obras de Villa-Lobos, que

aludem às brasilidades sertanejas. Deleuze e Guattari (2012b, p. 111-112) discorrem

sobre o devir-criança, devir-animal e devir-mulher: “[...] a música toma por conteúdo

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um devir-animal; mas o cavalo, por exemplo, adquire aí, como expressão, as

pequenas batidas de timbale; [...] os pássaros toam expressão em grupetos”.

A obra deleuziana apresenta outro conceito, igualmente importante para o

desenvolvimento do estudo relatado nesta tese: a ideia de ritornelo, entendendo-o

como matéria de expressão “[...] essencialmente territorial, territorializante ou

reterritorializante [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 106). Assim, o ritornelo

pode ser entendido como o canto de um pássaro, um som ou ideia repetitiva, o

motivo musical que gruda na cabeça. Engloba em si mesmo as possibilidades de

territorialização, desterritorialização e reterritorialização sonoras, consistindo na

própria aventura da arte dos sons, podendo ser desterritorializado na e pela música,

observando que “a música é precisamente a aventura de um ritornelo: a maneira

pela qual a música vira de novo um ritornelo em nossa cabeça, “[...] nos dispositivos

pseudorrastreadores da TV e do rádio, um grande músico como prefixo musical [...]”

(DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 108).

O canto dos pássaros e as pedras são ritornelos na mesma medida em que são

agenciamentos territoriais que podem ser desprendidos de suas clausuras em

processos metamorfoseantes de sons melódicos ou de silêncios. Nesse sentido, o

compositor Olivier Messiaen (1908-1992) transcodificou o canto dos pássaros em

paisagens musicais e Luigi Nono (1924-1990), as pedras em silêncios potenciais, ur-

som10. Assim, a matéria de expressão sonora está em qualquer lugar, diante do que

Deleuze e Guattari (2010, p. 200-201) observam: “[...] que estranhos devires

desencadeiam a música através de suas „paisagens melódicas‟ e seus „personagens

rítmicos‟, como diz Messiaen, compondo, num mesmo ser de sensação, o molecular

e o cósmico, as estrelas, os átomos e os pássaros?”.

O ritornelo é o próprio material musical arrancado de sua territorialidade, tornando-

se som, devindo-som, em um processo de transcodificação de afeções e

percepções em afectos e perceptos. A música é atravessada de ritornelos, ritornelos

de etnias, de crianças, de amor, de mulheres, de pássaros, transbordados em

floreios, blocos sonoros, rítmicas, timbres, pois “[...] a expressão musical é

10

Luigi Nono (1924-1990), cujas obras privilegiavam o timbre, trabalhou em suas últimas composições com as ideias de som-silêncio, som-sopro, som-voz e ur-som, significando este o som das pedras.

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inseparável de um devir-mulher, um devir-criança, um devir-animal que constituem

seu conteúdo” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 104). Universo-Schumann,

universo-Villa-Lobos, povoados de blocos de infância, blocos-mulher, blocos-animal,

submetidos a um tratamento especial: “[...] o motivo do ritornelo pode ser a angústia,

o medo, a alegria, o amor, o trabalho, a marcha, o território... mas, quanto ao

ritornelo, ele é o conteúdo da música” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 106).

Assim, na perspectiva deleuziana, a ação do músico consiste em desterritorializar o

ritornelo, “[...] escrevê-lo em música [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 106),

tornando-o musical: “é desde sempre que a pintura se propôs tornar [o invisível]

visível, ao invés de reproduzir o visível, e a música, a tornar [o insonoro] sonoro, ao

invés de reproduzir o sonoro” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 174).

Nessa trajetória, adentramos o território da concepção de arte, que, na perspectiva

de Deleuze e Guattari (2010), é um processo criação, e não de uma representação,

imitação ou metáfora, afastando-se das concepções de Platão, Aristóteles,

Schopenhauer e Swanwick. Para esses filósofos, ao contrário, a arte ou sua

expressão é ato criativo que faz “[...] estourar as percepções vividas numa espécie

de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de azul,

que não têm mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos” (DELEUZE;

GUATTARI, 2010, p. 202).

4.3 SOBRE O ENTENDIMENTO DE ARTE EM DELEUZE E GUATTARI

Na visão deleuziana, compomos imagens, sonoridades, gestos, cenas,

expressando-nos de determinados modos, constituindo motivos e contrapontos que

dão forma aos corpos, conjugando um estilo. Assim, os pintores, os músicos ou os

atores não representam e não imitam elementos ipsis litteris, mas compõem visões,

sonoridades e cenas, em uma conjugação de si e dos signos que conformam uma

determinada matéria. O pintor Millet (1814-1875), por exemplo, ao ser criticado a

respeito de uma obra sua em que camponeses carregavam um ofertório como um

saco de batatas, “[...] respondia que o peso comum aos dois objetos era mais

profundo que sua distinção figurativa. Ele, pintor, se esforçava para pintar a força do

peso, e não o ofertório ou o saco de batatas” (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 63,

grifo dos autores).

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A respeito das artes dramáticas, os dois filósofos comentam a composição de um

personagem em De Niro, ressaltando afirmações do ator sobre as cenas de um filme

nas quais anda como caranguejo: “[...] não se trata, diz ele, de imitar o caranguejo;

trata-se de compor com a imagem, com a velocidade da imagem, algo que tem a ver

com o caranguejo” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 70).

Já no que se refere à arte dos sons, temos a ideia de que ela esforça-se “[...] para

tornar sonoras forças que não são sonoras [...]”, conforme destacam Deleuze e

Guattari (2007, p. 66), que tomam como exemplo o ato do grito, fazendo uma

analogia entre a pintura O grito e a sonorização por ela evocada. Nesse sentido, os

filósofos afirmam que “[...] a música se encontra diante da mesma tarefa do pintor,

que não é a de tornar o grito harmonioso, mas de colocar o grito sonoro em relação

com as forças que o suscitam, [...] pois o grito é como a captura ou a detecção de

uma força invisível” (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 65-66).

Em relação a essa visão, os filósofos tecem comentários sobre dois tipos de grito

criados pelo compositor austríaco Alban Berg (1885-1935) em duas de suas óperas,

Wozzeck (1922) e Lulu (1929): “Berg soube fazer a música do grito no grito de

Maria, depois, no grito muito diferente de Lulu; mas, em ambas as músicas, foi

colocando a sonoridade do grito em relação com forças insonoras” (DELEUZE;

GUATTARI, 2007, p. 66).

Na ópera Wozzeck, vê-se a dinâmica de multiplicidades de afectos e perceptos

desencadeados pelos ritornelos da “cantiga de ninar, o ritornelo militar, o ritornelo de

beber, o ritornelo de caça [...], a voz de Wozzeck [sic] através da qual a terra devém

sonora, o grito de morte de Maria que corre pelo charco, o Si redobrado, quando a

terra urrou [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 163). É assim que o músico vive a

obra em sua dinâmica metamorfoseante, não representando, não figurando, mas

criando algo novo na sintonização com os signos, pois “[...] tanto em pintura quanto

em música, não se trata de reproduzir ou inventar formas, mas de captar as forças.

[...] É por isso que nenhuma arte é figurativa” (DELEUZE, 2007, p. 62).

Um determinado som, por essa via, é formado na conjugação de um plano de

composição estética e um plano técnico, que se interceptam e se definem em uma

ação comum: não há separação entre os planos, mas uma inter-relação, pois “[...]

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nunca uma obra de arte é feita por técnica ou pela técnica [...]” (DELEUZE;

GUATTARI, 2010, p. 227). Assim, a escolha de determinado instrumento em uma

orquestração, a busca por uma determinada sonoridade no piano ou na voz

compõem matérias de expressão ou enunciados maquínicos, que operam diferentes

funções em um território sonoro:

[...] a importância decisiva que toma a orquestração em Berlioz; a subida dos timbres em Stravinsky e em Boulez; a proliferação dos afectos de percussão com os metais, as peles e as madeiras, e sua ligação com os instrumentos de sopro, para constituir blocos inseparáveis do material (Varèse); a redefinição do percepto em função do ruído, do som bruto e complexo (Cage); não apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura, mas a tendência a uma aparição não cromática do som num continuum infinito (música eletrônica ou eletroacústica) (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 231).

Na ótica deleuziana, uma palavra, um som, um timbre são, em si mesmos,

sensação, cujos planos de composição estética e de composição técnica operam em

mútua inspiração: ora a sensação se realiza no material, ora o material entra na

sensação: “os escritores, [...] não estão numa situação diferente da dos pintores, dos

músicos, dos arquitetos. O material dos escritores são as palavras, e a sintaxe, a

sintaxe criada que se ergue irresistivelmente em sua obra e entra na sensação [...]”

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 198).

As matérias de expressão, portanto, são agenciamentos maquínicos que expressam

afectos e perceptos, estabelecendo diferentes funções em processos de

desterritolização e reterritorialização, de modo que a sensação desejada e o material

formam um só plano. “[...] É sob esta condição que a matéria se torna expressiva: o

composto de sensações se realiza no material, ou material entra no composto, mas

sempre de modo a se situar sobre um plano de composição propriamente estético

[...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 231).

Desse modo, as qualidades expressivas entram em relação umas com as outras,

constituindo motivos e contrapontos, entendendo-se que a expressividade se dá na

conjugação heterogênea entre as matérias de expressão: “[...] é no motivo e no

contraponto que é dada a relação com a alegria e a tristeza, com o sol, com o

perigo, com a perfeição [...]. É no motivo e no contraponto que o sol, a alegria ou a

tristeza, o perigo, devêm sonoros, rítmicos ou melódicos” (DELEUZE; GUATTARI,

2012b, p. 133).

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É, pois, nessa perspectiva, que a arte musical produz afectos e perceptos sonoros

que fazem fabulação, fabulam, transbordando as opiniões correntes. O músico,

assim, buscará mostrar, fazer soar os afectos que povoam cada universo sonoro,

fazendo blocos de sensações, territórios metamorfoseantes de bravura, de

delicadeza, de dança ou de passos andantes. A música, da mesma forma que as

demais artes, produz afectos e perceptos “[...] de pedra, de metal, de cordas e de

ventos, de linhas e de cores, sobre um plano de composição do universo”

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 80).

Nesse ponto, é pertinente retomarmos as perguntas que movem este processo

investigativo, pois, se consideramos que a arte é uma transcodificação das

percepções em perceptos e das afecções em afectos, temos aqui uma questão:

como um instrumentista aprendiz pode tornar sonoras as forças insonoras da

música, evidenciando os afetos e perceptos que a compõem? Como deslocar o

padrão-concertista do processo e, ao mesmo tempo, fazer soar a música, mostrar os

afectos e perceptos que a compõem ou, nos termos de Kastrup (2001, p. 25), “[...] é

possível ensinar ou fazer inventar?”. Sabemos que isso não ocorre por meio da

execução “correta” do ritmo em si mesmo nem por meio das notas musicais ipsis

litteris, nem mesmo pelos timbres, pois “[...] o que conserva, de direito, não é o

material, que constitui somente a condição de fato; [...] o que se conserva em si é o

percepto ou o afecto” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 197).

Porém, verificamos que as aulas de música instrumental nem sempre estiveram

conjugadas com o desenvolvimento da capacidade expressiva das crianças e

adolescentes, repetindo os velhos modos de ensinar, ideias que vão se tornando

ritornelos, e que não funcionam, conforme constatamos em França (2000), Sloboda

e Davidson (1996), Borém (2006), Ray (2006) e Gerlinger e Santos (2015). Assim,

passamos às reflexões sobre as concepções de aprendizagem em Deleuze (2003,

2006, acesso em 4 fev. 2016), Deleuze e Guattari (2012b, 2012c), Kastrup (2000,

2001, 2008) e Maturana (1997, 1998, 2001, 2014), correlacionando-as com o

conceito de fabulação.

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4.4 RELAÇÕES ENTRE FABULAÇÃO E A APRENDIZAGEM EM DELEUZE E

GUATTARI, KASTRUP E MATURANA

A aprendizagem no contexto do pensamento deleuziano é entendida com processo

entre o aprendiz e aquilo que ele está a aprender, estabelecendo uma relação de

sensibilidade com códigos e signos que compõem as matérias, criando-se um

campo que Deleuze (2003, 2006) caracteriza como problemático, não no sentido

mais usual desse vocábulo, mas no sentido de que envolve uma conjugação de

características de corpos diferentes. Deleuze (2003, p. 21) explana que a

aprendizagem ocorre “[...] por intermédio de signos [...], e não pela assimilação de

conteúdos objetivos [...]”. Nessa ótica, ela ocorre na relação entre os sujeitos e as

matérias e Ideias em um processo de envolvimento e contágio com os signos que os

constituem, por exemplo, aprender a nadar: “[...] aprender a nadar é conjugar pontos

relevantes de nosso corpo com os pontos singulares da Ideia objetiva para formar

um campo problemático” (DELEUZE, 2006, p. 160).

Dessa maneira, aprender significa “[...] ser sensível aos signos, considerar o mundo

como coisa a ser decifrada [...]” (DELEUZE, 2003, p. 25), processo no qual o

aprendiz é tocado pelos signos em uma experiência que instiga o pensamento: “[...]

aprender a cozinhar é ser sensível aos odores, às cores, às texturas dos

ingredientes na comida; aprender a jogar futebol é ser sensível aos signos da bola,

do campo, da torcida, dos jogadores [...]” (KASTRUP, 2001, p. 20). Ou seja, “os

problemas e suas simbólicas estão em relação com os signos. São os signos que

„dão problema‟ e que se desenvolvem num campo simbólico” (DELEUZE, 2006, p.

160).

Nessa mesma linha de pensamento, encontramos a concepção de Maturana (1997)

a respeito da aprendizagem, entendida como um processo que envolve a

corporalidade e a linguagem, baseando-se no conceito de epigênese, ou seja, a

contínua transformação envolvendo as características biológicas e o ambiente

vivencial:

é por isso que tudo o que fazemos, e todas as nossas maneiras distintas de viver, aparecem incorporadas em nossas corporalidades e se mostram em nossas ações, e é por isso que precisamos mudar nossas corporalidades para mudar os domínios de ações que nos constituem como pessoas (MATURANA, 1997, p. 292).

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Assim, verifica-se o entendimento de que o ato de aprender não é a modificação de

um estado de não saber em relação ao saber, mas “[...] vem a ser tão-somente o

intermediário [...], a passagem viva de um a outro [...]” (DELEUZE, 2006, p. 161), o

espaço subliminar das pequenas percepções. Ser aprendiz, então, significa

enveredar-se na conformação de si e do objeto/Ideia, constituindo e inventando “[...]

problemas práticos ou especulativos como tais. Aprender é o nome que convém aos

atos subjetivos operados em face da objetividade do problema (Ideia)” (DELEUZE,

2006, p. 160). Esse ponto de vista é partilhado por Maturana (1997, p. 292) ao frisar

que aprender “[...] não acarreta um processo dirigido de adaptação, ou a elaboração

de uma representação de um ambiente para computar um comportamento

adequado a ele”.

Nessa perspectiva, os contextos educativos são aqueles que propiciam um nível de

consciência no qual nossos atos se ajustam às nossas percepções, indicando

precisamente que “[...] „aprender‟ passa sempre pelo inconsciente, passa sempre no

inconsciente, estabelecendo, entre a natureza e o espírito, o liame de uma

cumplicidade profunda” (DELEUZE, 2006, p. 160).

Essa percepção traz implícita a ideia de que “o signo é aquilo que exerce sobre a

subjetividade uma ação direta, sem mediação da representação [...]” (KASTRUP,

2001, p. 20), entendendo-se por subjetividade um processo de “[...] invenção de si e

do mundo [...]” (KASTRUP, 2001, p. 20), não tendo a individualidade como um

centro. Ou seja, a aprendizagem pressupõe encontro de dessemelhanças,

constituindo “[...] um plano impessoal e múltiplo, denominado plano de produção da

subjetividade” (KASTRUP, 2001, p. 20).

Relativamente a esse entendimento, Deleuze (2003, p. 15) afirma que o ato de

aprender “[...] depende de um encontro que nos força a pensar e buscar o que é

verdadeiro. [...] Pois é precisamente o signo que é objeto de um encontro [...] que

garante a necessidade daquilo que é pensado”. A partir dessa visão, Kastrup (2001)

delineou a concepção de aprendizagem como ação inventiva, entendida nos termos

deleuzianos como “experiência de problematização”, que move o nosso

pensamento. Essa concepção de aprendizagem se caracteriza por dois aspectos: a

invenção como criação do novo, afastando-se das redundâncias de um fazer; a

invenção como experiência de problematização, e não de solução de problemas.

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Nessa ótica, o processo educativo configura-se como ação criadora, distanciando-se

das concepções de aprendizagem como recognição ou síntese homogeneizadora e

convergente de habilidades e repostas.

Nessa concepção, “[...] a arte surge como modo de exposição do problema do

aprender [...]” (KASTRUP, 2001, p. 19), tal como se produz nos diferentes campos

artísticos, com o que podemos depreender que o processo de aprendizagem está

para a criação assim como um artista está para a inventividade de sua obra. É por

essa via que Deleuze e Guattari refutam a ideia de que as produções humanas e

suas aprendizagens sejam representações, mas criações nascidas da conjugação

de corpos dessemelhantes em uma condição problematizadora, que se dá na

experimentação imediata dos signos.

Esse processo de aprendizagem inventiva constitui um território, uma ambiência,

“[...] cujos limites não são topográficos, mas semióticos [...]” (KASTRUP, 2001, p.

22), demarcando as possibilidades e os limites de movimentação e uso de uma

matéria determinada. Disso resulta uma “[...] corporificação do conhecimento,

envolvendo órgãos dos sentidos e também músculos [...]” (KASTRUP, 2001, p. 22).

É por isso que “[...] aprender não é somente ter hábitos, mas habitar um território”

(KASTRUP, 2001, p. 22).

Aprender habitando um território implica, pois, a dobra do tempo em suas

modalidades cronológicas e criativas, para a lapidação da matéria, tornando-a

expressiva. Ocorre aí um processo que “[...] envolve o „perder tempo‟, que implica

errância e também assiduidade, resultando numa experiência direta e íntima com a

matéria” (KASTRUP, 2001, p. 22). Assim, Cronos e Aion estão nos processos

educativos da mesma maneira que estão na música.

Nessa abordagem, a aprendizagem é uma política de cognição, um agenciamento

em suas duas faces: agenciamento maquínico, no qual se encontram articulados

diversos fluxos – técnicos, linguísticos, políticos etc. –, e agenciamento coletivo,

estando para além do indivíduo e do social, remetendo às vias nas quais “[...]

circulam processos, forças, intensidades, afetos” (KASTRUP, 2001, p. 23).

No cerne dessa política pedagógica, encontramos, como menor partícula, o tempo-

espaço da aula, que, nessa perspectiva, não tem por objetivo o entendimento de um

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conteúdo em sua totalidade, mas configura-se como território em movimento, tal

como a música. De acordo com Deleuze (acesso em 4 fev. 2016), uma aula é o

espaço-tempo em que cada aluno capta o que lhe toca, “[...] o que lhe convém [...]”,

indicando que uma aula ruim é aquela que não toca ninguém, “[...] não convém a

ninguém [...]”.

A esse respeito, o filósofo sinaliza para o fato de que nem tudo convém a todos,

havendo um despertamento daquilo que diz respeito a cada um, destacando que

não há uma lei, uma teoria que diga o que interessa a alguém, e conclui seu

pensamento afirmando que “[...] uma aula é emoção. É tanto emoção quanto

inteligência. Sem emoção, não há nada” (DELEUZE, acesso em 4 fev. 2016).

Complementando essa ideia, Maturana (2014, p. 138) mostra que transitamos no

cotidiano, nas relações, movimentando-nos a partir de uma dinâmica de emoções,

de modo que “[...] ao nos movermos de uma emoção para outra mudamos nosso

domínio de ações, e isto [sic] vemos como uma mudança de emoção” (MATURANA,

2014, p. 138). Para esse autor, portanto, “[...] as emoções são disposições corporais

dinâmicas que especificam os domínios de ações nos quais [...] nós, seres

humanos, em particular, operamos num instante” (MATURANA, 2014, p. 138),

definindo nossos fazeres.

Em sua concepção, o termo emoção indica que “todas as ações humanas

acontecem num espaço de ação especificado estruturalmente como emoção [...]”

(MATURANA, 2001, p. 46). A esse respeito, esse pensador indica que as emoções

marcam as interações, podendo ser elas recorrentes ou não.

Essa dinâmica de emoções presentifica-se nos processos educativos, no sentido de

que uma aula não será qualificada por fazer com que o(a)s aluno(a)s entendam e

ouçam tudo, nem mesmo que cumpram scripts. Na ótica deleuziana, uma boa aula

exige a capacidade de propiciar o despertamento para cada um “[...] captar o que lhe

convém pessoalmente [...]” (DELEUZE, acesso em 4 fev. 2016). Uma aula ou um

conjunto de aulas compõe uma heterogeneidade de pensamentos e afetos,

constituindo centros de interesse que, segundo o filósofo, formam “[...] uma espécie

de tecido esplêndido, uma espécie de textura” (DELEUZE, acesso em 4 fev. 2016).

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Uma aula não transcorre, portanto, em um plano transcendente, ideal e homogêneo,

mas em um campo de forças, levando-nos ao encontro da visão de que todos os

nossos fazeres – sejam eles práticos, sejam eles teóricos – situam-se e movem-se

em um plano constituído por diferentes linhas: cristalização, homogeneização,

repressão, padronização, ou por linhas de fuga, de criação ou arrebatamento, pois

somos segmentarizados por todos os lados e em todas as direções. [...] Habitar, circular, trabalhar, brincar: o vivido é segmentarizado espacial e socialmente. A casa é segmentarizada conforme a destinação de seus cômodos; as ruas, conforme a ordem da cidade; a fábrica, conforme a natureza dos trabalhos e das operações. Somos segmentarizados binariamente, a partir de grandes oposições duais: as classes sociais, mas também os homens e as mulheres, os adultos e as crianças etc. [...] Somos segmentarizados circularmente. [...] Somos segmentarizados linearmente (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 92, grifos dos autores).

Assim, no ângulo de visão deleuziano, todos os nossos trânsitos, produções e

relações são perpassados por mecanismos de territorialização – fechamento,

alinhamento, cristalização – e movimentos de desterritorialização – abertura,

recriação –, sendo, ou não, novamente territorializados, ou seja, ocorrendo um

movimento de reterritorialização. Tais movimentos são perpassados por linhas de

segmentaridade, “[...] linha de segmentaridade dura ou molar, linha de segmentação

maleável e molecular, linha de fuga” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 85).

Como tempo-espaço de produção do conhecimento, a aula é, portanto, perpassada

por essas linhas, incidindo nas semióticas que compõem os territórios nos quais

transitam professores e alunos, atravessando as relações de ensino-aprendizagem,

mestre-aprendiz, com seus saberes, interesses e desejos. Para Deleuze e Guattari

(2012a, p. 101), tais processos de segmentarização e atravessamentos incidem nos

desejos que compõem os agenciamentos e microagenciamentos, moldando “[...] de

antemão as posturas, as atitudes, as percepções, as antecipações [...] etc.”,

descodificando ou sobrecodificando a expressão.

É nesse exato sentido que esses dois filósofos falam de uma máquina abstrata que

produz rostos, pois, “[...] os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata de

rostidade” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 37, grifos dos autores). Tal máquina

abstrata produz os rostos de um chefe, de um juiz, até mesmo de um professor, ou

professora, aluno ou aluna, ou de um executivo, neutralizando as expressões que

escapam aos padrões dominantes ou estabelecidos. Na corporificação desses

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rostos, fala-se uma língua, “[...] não uma língua geral, mas uma língua cujos traços

significantes são indexados nos traços de rostidade específicos” (DELEUZE;

GUATTARI, 2012a, p. 36).

Essa “língua geral”, nos termos de Deleuze e Guattari (1995, p. 12), aponta para o

caráter performativo da linguagem, possibilitando-nos verificar que “[...] a unidade

elementar da linguagem [...] é a palavra de ordem [...]”. Nessa ótica, todo enunciado

carreia um discurso indireto, uma sentença, um comando, depreendendo-se disso

que os enunciados – qualquer enunciado – comportam “[...] pressupostos implícitos

[...] que percorrem uma língua em um dado momento [...]” (DELEUZE; GUATTARI,

1995, p. 17).

Essa noção esculpe o que Deleuze e Guattari (1995, p. 17) consideram como a

função da linguagem, que não é de comunicação nem de informação, mas de “[...]

transmissão de palavras de ordem [...]”. Isso pode ser observado no enunciado “[...]

você não é mais uma criança [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 20), o qual

expressa coordenadas semióticas e axiológicas, compondo os pressupostos

implícitos presentes no contexto de sua emissão.

Os dois filósofos expandem essa ideia para todas as práticas discursivas,

abrangendo atos e procedimentos cotidianos em diferentes ambiências, por

exemplo, a máquina do ensino. Eles descrevem as ações automatizadas no âmbito

escolar, nos quais “[...] a professora não se questiona quando interroga um aluno,

assim como não se questiona quando ensina uma regra de cálculo. Ela „ensigna‟, dá

ordens, comanda [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 11-12). Tem-se, portanto, a

reprodução ad infinitum de um modelo de ensinar no qual as palavras de ordem

operam por redundância.

Esse aspecto da linguagem é igualmente tratado por Maturana (1997, p. 177, grifos

do autor), que percebe vínculos específicos entre a linguagem e os sistemas de

convivência, entendidos como “[...] sistemas sociais [...], sistemas de trabalho [...] [e]

sistemas hierárquicos ou de poder [...]”. O autor ainda destaca que cada um desses

contextos constitui uma linguagem particular ou, nos termos de Maturana (1997, p.

177) “[...] uma rede particular de conversações [...]”, resultando em um “[...] modo

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particular de entrelaçamento do linguajar e do emocionar [...]” (MATURANA, 1997, p.

177), moldando as dinâmicas relacionais.

Vemos, dessa maneira, que os contextos, inclusive os educacionais, são

constituídos por uma corporeidade e uma linguagem que operam igualmente em

função de linhas que produzem rostificações, podendo implicar segmentarizações

binárias, circulares e lineares, erigindo muros: “[...] o rosto constrói o muro [...],

sistema muro branco-buraco negro” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 36). Em

relação às segmentarizações binárias, temos “[...] rosto de professora e de aluno, de

pai e de filho, de operário e de patrão, de policial e de cidadão, de acusado e de juiz.

[...] A correlação binária [...] do tipo „sim-não‟ [...]”, afirmam Deleuze e Guattari

(2012a, p. 49), assinalando que tais processos estendem-se inevitavelmente ao

corpo, depreendendo-se que “[...] a cabeça e seus elementos não serão rostificados

sem que o corpo inteiro não o possa ser, não seja levado a sê-lo, em um processo

inevitável” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 39).

Esse ponto de vista acerca dessas modalidades de interação foi abordado por

Maturana (1998), ao tratar das interações entre os seres. De acordo com esse autor,

somos sistemas estruturalmente fechados, porém, em congruência com o meio,

constituímo-nos “máquinas moleculares” e, por isso, somos autopoiéticos, sistemas

autopoiéticos moleculares. Ou seja, ele afirma que “[...] somos como somos em

congruência com nosso meio e que nosso meio é como é em congruência conosco,

e, quando essa congruência se perde, não somos mais” (MATURANA, 1998, p. 63,

grifos do autor). Cessando as interações recorrentes, cessam as escutas e as

reformulações da experiência, os caminhos explicativos entre-parênteses.

No ângulo de visão aqui explicitado, os processos de educação não existem de per

se, mas se desenrolam em um campo que, para além de ser um espaço

devidamente planejado, é formado por tecidos que operam nos fluxos, ora

engendrando deslizamentos, ora, retenções, asperezas.

Essa ideia é traduzida por Deleuze e Guattari (2012c, p. 194) como espaços lisos e

espaços estriados. O espaço-tempo liso é “[...] aberto onde o corpo se move [...]”,

ocupando-se das intensidades, das forças sonoras, tácteis, “[...] os ventos e os

ruídos [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 198), enquanto que o espaço-tempo

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estriado é demarcado por latitudes e longitudes, tendo “[...] todas as direções

subordinadas a pontos [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 212), ocupando-se

das “[...] qualidades visuais mensuráveis que derivam dele [...]” (DELEUZE;

GUATTARI, 2012c, p. 198).

Nesse sentido, o espaço-tempo liso compõe territórios de intensidades, sendo “[...]

um espaço de afetos, mais que de propriedades. [...] É um espaço mais intensivo do

que extensivo, de distâncias, e não de medidas” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p.

198). No tempo-espaço estriado “[...] conta-se a fim de ocupar [...]” (DELEUZE;

GUATTARI, 2012c, p. 196), supondo multiplicidades métricas.

É importante lembrar, ainda, que o pensamento deleuziano é marcado pela ausência

de antinomias, considerando sempre a coexistência, alternância e superposição dos

elementos; o espaço liso e o estriado não se opõem – não se trata de fazer uma

escolha entre uma e outra modalidades de espaço-tempo –, mas ocorrem no devir

do movimento e das relações. Desse modo, tais modalidades de espaço operam

também por funções, compondo territórios ora dimensionais, ora direcionais,

sinalizando para aquilo que de fato os dois filósofos consideram interessante: “[...] as

passagens e as combinações, nas operações de estriagem e alisamento [...]”

(DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 228).

Assim sendo, o espaço-tempo da aprendizagem é atravessado por linhas e espaços

que podem impulsionar ou travar os fluxos, mover ou cortar as interações em

velocidades e lentidões, pois as linhas moleculares e as linhas molares não se

definem pela pequenez ou grandeza “[...] de seus elementos, mas pela natureza de

sua „massa‟– o fluxo de quanta [...]”, como salientam Deleuze e Guattari (2012a, p.

105). Esses filósofos definem fluxo como crença ou desejo, aquilo que impulsiona,

entendendo-se que “[...] as crenças e os desejos são o fundo de toda sociedade, [...]

os dois aspectos de todo agenciamento” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 107).

Tais desejos podem ser de dominação ou de criação, repressão ou expressão.

A esse respeito, Deleuze e Guattari (2012a) assinalam que o desejo em si mesmo

não é uma pulsão indiferenciada, mas uma pulsão que corre nas linhas de

segmentaridade, exigindo um engineering para que algo aconteça. Indo além nesse

entendimento, Kastrup (2001, p. 24) trata do esforço, da exigência do trabalho,

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salientando que embora ocorra um despertamento inicial propiciado pelo signo, a

criação de algo envolve “[...] um esforço a mais, que encontra sua fonte num corpo

inventivo, que não se furta à exigência do trabalho [...]”. Esse trabalho não consiste

em um automatismo, pois a força de um signo reside em sua decifração,

encontrando sua potência justamente em sua interpretação inventiva, na qual se faz

novo, novamente. Assim, “[...] esse modo de relação com o signo é também um

modo de relação consigo mesmo. O aprendiz artista não se conforma com seus

limites atuais, mas toma-se a si mesmo como objeto de uma invenção complexa e

difícil” (KASTRUP, 2001, p. 24).

Nesses termos, a aprendizagem também traz implícita a ideia de inventividade como

exercício de busca, de disciplina, “[...] de um trabalho, de uma repetição, de

exercícios e práticas que resultam na formação de hábitos e competências

específicas [...]” (KASTRUP, 2001, p. 24). É criativa, e a criação não é

espontaneísmo. Essa ideia nos remete a outra visão sobre a relação ensino-

aprendizagem, mestre-aprendiz, indicando o necessário mecanismo de contágio e

propagação, e não de identificação e transmissão. Assim, “[...] o plano de sintonia

mestre-aprendiz é um campo de criação [...]” (KASTRUP, 2001, p. 25), pois

experiência não se transmite, mas se vivencia: “[...] nada aprendemos com aquele

que nos diz: „faça como eu‟. Nossos únicos mestres são aqueles que nos dizem „faça

comigo‟ e que, em vez de nos propor gestos a serem reproduzidos, sabem emitir

signos a serem desenvolvidos no heterogêneo” (DELEUZE, 2006, p. 31).

O professor é aquele que conduz o processo, que tem a função “[...] de fazer

acontecer o contato, de possibilitar a intimidade, de acompanhar, e mesmo [...] atrair

[...], não para junto de si, mas para a matéria, acompanhando a sua fluidez”

(KASTRUP, 2001, p. 26). Assim, os agenciamentos serão sempre agenciamentos de

professor(a)-aluno(a), formando uma relação “[...] com o saber, que não é de

acumular e consumir soluções, mas de experimentar e compartilhar” (KASTRUP,

2001, p. 26) diferentes processos de elaboração do saber, entre microfluxos e forças

criativas.

Nessa circularidade de forças e intensidades, de técnicas e políticas, o(a)

professor(a)-mestre tem a função de catalização, de arregimentar processos,

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interesses, capacidades. Assim sendo, a aprendizagem inventiva não é um método,

mas “[...] uma política pedagógica a ser praticada [...]” (KASTRUP, 2001, p. 26).

No caso da música, sua aprendizagem inventiva implica necessariamente a vivência

e a corporificação de seus códigos e signos, ultrapassando o conhecimento retórico

das notas musicais e ritmos. Esse processo de aprendizagem é, ao mesmo tempo,

múltiplo e singular, uma vez que as produções humanas não são universais, mas

ambientais e subjetivantes, pois “[...] cada sujeito exprime o mundo de um certo

ponto de vista [...]” (DELEUZE, 2003, p. 41).

A esse respeito, Maturana (2001, p. 22) afirma que os processos de cognição em

geral ocorrem a partir de referenciais internos e que, portanto, os objetos externos

não são totalmente independentes de nós, sujeitos. Como consequência, tal

perspectiva indica que “[...] toda experiência cognitiva inclui aquele que conhece de

um modo pessoal [...]”. Desse modo, as diferentes experiências e fenômenos

presentes no cotidiano são vivências singulares, visto que “[...] todos os domínios

cognitivos diferentes em que nós, seres humanos, vivemos, se entrecruzam em

nossa corporalidade como o domínio operacional através [sic] do qual tudo aparece

[...]” (MATURANA, 1997, p. 296).

Vemos, portanto, no conjunto das reflexões apresentadas, que a expressividade não

é algo transcendente, à parte das relações em sua dinâmica de emoções, mas é

fruto da elaboração complexa de agenciamentos de diversas naturezas, sendo

forjada no seio mesmo do tecido liso-estriado que constitui os processos educativos.

Por essa via, a aprendizagem inventiva no âmbito da música é fabulação –

sonorofabulação –, pois faz mover o pensamento, os afetos e os perceptos,

excedendo ao senso comum, fazendo estourar o átomo. De acordo com Deleuze e

Guattari (2010), todo conceito é uma cifra, comportando em si uma multiplicidade de

sentidos, constituindo-se, portanto, em um agregado de outros conceitos, ideias e

sensações. No caso do conceito de fabulação, como possibilidade de ser um

conceito guia no percurso da aprendizagem musical, vemos a ele agregada a

concepção de expressão deleuziana, expressão de afectos e perceptos e suas

diferentes funções, constituindo um território que é tanto musical quanto educativo,

desterritorializando-se e tornando a territorializar-se em uma configuração totalmente

nova. Devir-zero...

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O conceito de fabulação sonora ou sonorofabulação contém implícita a ideia de

deslizamento, propiciando a abertura de linhas e espaços de criação, linhas

moleculares, que desterritorializam as formas pedagógicas cristalizadas. Nesse

sentido, uma aula de piano é, primordialmente, um encontro de seres que desejam

confabular a respeito dos afectos e perceptos das obras, esperando que o(a)s

aluno(a)s se expressem, em uma dinâmica de emoções, na sequência de interações

recorrentes. Micropolíticas da conversa, do linguajar e do emocionar...

Sonorofabulação é agenciamento coletivo de enunciação.

Desse modo, no próximo capítulo, deslizamos ao plano da experiência, ao encontro

dos modos de enunciação, a fim de habitar, transitar, conhecer e cartografar os

fluxos, as lentidões, as velocidades, as linhas molares, as molecularizações, as

estriagens e os alisamentos dos processos de aprendizagem musical, tendo em

vista a capacidade expressiva de crianças e adolescentes aluno(a)s de piano do

Curso de Musicalização Infantil da Faculdade de Música do Espírito Santo, nossos

companheiros de viagem.

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5 DIÁLOGOS E VIVÊNCIAS COMO POSSIBILIDADES NO FAZER

MUSICAL ENTRE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Como podemos afetar o corpo humano por meio da música? Ou, de acordo com

Deleuze e Guattari (2010, p. 197), como “[...] arrancar o percepto das percepções do

objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções,

como passagem de um estado a outro”? No embalo desses questionamentos, neste

capítulo, os objetivos são descrever e analisar o processo de modulação da

expressão musical de aluno(a)s da Faculdade de Música do Espírito Santo em sua

articulação com as variações nas formas educativas das aulas de piano, captando

acontecimentos relacionados a processos inventivos desencadeados em aulas

individuais e em oficinas.

O estudo cartográfico aqui relatado transcorreu no período de fevereiro a dezembro

de 2016, abrangendo aulas individuais e coletivas de piano, com um grupo de 11

aluno(a)s de diferentes níveis (IV, V e VI) do Curso de Musicalização Infantil. O

convite à participação nas atividades de intervenção foi feito ao(à)s aluno(a)s em

aulas individuais, sendo direcionado àquele(a)s que apresentavam maior

assiduidade.

Intervimos no processo, buscando derivar do formato de aula padrão, mantendo o

repertório programático, porém, incluindo músicas populares escolhidas pelo(a)s

aluno(a)s. No início da intervenção, estávamos nos dedicando à leitura das

partituras. Nessa fase, eu mesma, aprendiz-cartógrafa, estava tentando entender

como o processo iria se configurar. No entanto, em se tratando da condução de uma

pesquisa cartográfica em uma perspectiva deleuziana, é fundamental

compreendermos que um de seus princípios é a liberdade autogestionada dos que

nela estão envolvidos, no caso deste processo investigativo, eu, professora-

aprendiz-cartógra, e o(a)s aluno(a)s. Assim sendo, o posicionamento do aprendiz-

cartógrafo nessa modalidade investigativa é semelhante à atitude de um guia de

cegos, “[...] que não determina para onde o cego vai, mas segue também às cegas,

tateante, acompanhando um processo que ele também não conhece de antemão”

(PASSOS; EIRADO, 2014, p. 123). Essa atitude não sinaliza para uma postura

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negligente, mas indica que a cartografia deleuziana “[...] não toma o eu como objeto,

mas, sim, os processos de emergência do si” (PASSOS; EIRADO, 2014, p. 123).

Ao longo do processo, promovemos modificações no caráter das aulas,

desenvolvendo oficinas temáticas paralelamente às aulas individuais, com o objetivo

de viabilizar maior tempo-espaço para a experimentação de sonoridades e a

vivência de outras formas educativas. Os temas das oficinas foram escolhidos a

partir de necessidades constatadas nas aulas e durante a realização das oficinas.

Dessa maneira, as observações feitas em um determinado encontro apontavam

para a temática do encontro seguinte, sempre em discussão com o grupo.

Observei que, na fase inicial, o(a)s aluno(a)s estavam “travado(a)s”, a partir do que

propus a realização de uma oficina de textura. Percebi, no entanto, que ele(a)s não

estavam realizando a diferenciação nos sons que os materiais evocavam. Assim,

promovemos uma oficina inspirada no piano preparado de John Cage, que, inseriu

materiais de diversas naturezas no instrumento para dele obter novos sons.

Inicialmente, mostrei ao(à)s aluno(a)s vídeos com o resultado obtido com esse

trabalho, perguntando, em seguida, se ele(a)s gostariam de experimentá-lo. Assim,

usamos sacos plásticos, garfos, lixas, parafusos para intervir no piano.

Posteriormente, ele(a)s demonstraram o desejo de conhecer os estilos musicais e o

funcionamento do instrumento. Promovemos, ainda, uma oficina do corpo.

Em geral, o tempo de duração das oficinas oscilou entre 1h e 1h30, sendo que a

oficina de texturas foi repetida, para que todos pudessem participar – a dificuldade

inicial na participação ocorreu em função das atividades extra-Fames de vários

aluno(a)s, o que se normalizou nas oficinas subsequentes.

Para o processo de coleta de dados, adquiri um smartphone (Samsung J7) com

câmera e áudio de boa qualidade. Algumas vezes aconteceu de estarmos

conversando e de eu já estar filmando, pois havia tomado a decisão de registrar a

aula com a câmera. Mas a câmera não ficou ligada o tempo todo. Quando ocorriam

cenas e criações, por exemplo, um toque diferente ao piano, denotando a

expressividade musical objeto da observação nesta pesquisa, o(a)s aluno(a)s eram

solicitados a repeti-las, para que, então, fossem filmadas.

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As modificações na dinâmica das atividades produziram diferenças significativas na

expressão do(a)s aluno(a)s como um todo – musical, verbal e corporal. Ele(a)s

começaram a querer compreender o que eu estava buscando com aquele processo.

Quando perceberam os critérios a partir dos quais eu selecionava as cenas,

sentiram-se incentivados a criar, processo que foi se intensificando, impulsionados,

talvez, pelo fato de que fazem parte de uma geração dos que querem ser vistos.

Isso foi potencializando sua expressividade, pois se sentiam seguro(a)s para se

soltar, uma vez que notaram que o que faziam despertava minha atenção.

Assim, percebemos a configuração de territórios em um continuum de variações,

composto pela movimentação das intensidades. O processo vivenciado abriu-se a

diferentes planos de análise, sinalizando para reflexões sobre a relação entre as

formas educativas e o desenvolvimento da capacidade expressiva. Assim, ao longo

deste capítulo, são destacadas as passagens de um território a outro, territórios

delineados a partir da modificação na expressividade, percebida tanto no ambiente –

as relações que se estabelecem na aula, o crescimento das expressões verbal e

corporal, o nível de liberdade – quanto na música. Tais territórios são assinados

pelas vivências e diálogos, estando eu neles inserida, fazendo parte do processo,

entendendo que uma pesquisa científica não se realiza sobre sujeitos e objetos, mas

“[...] sem distanciamento, [...] mergulhada na experiência coletiva em que tudo e

todos estão implicados” (PASSOS; BARROS, 2014, p. 19).

5.1 PRIMEIRO TERRITÓRIO (FEVEREIRO-MAIO/2016)

O período de fevereiro a maio de 2016 constituiu-se de linhas costumeiras, momento

indispensável ao acolhimento do(a)s aluno(a)s, sendo algun(ma)s novato(a)s,

agendamento de horários das aulas individuais, escolha das músicas e trabalho de

leitura das partituras, suas notas, ritmos, dedilhados e expressividades (o fazer

musical implica a realização dessas atividades, que acontecem de maneira

simultânea, e não por etapas).

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Figura 22 - Karla, em período de leituras e estudos iniciais (março, 2016)

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)

Figuras 23 e 24 - Anderson e Júlia, em período de leituras e estudos iniciais (março, 2016)

Fonte: frame extraído de filmes produzidos durante o processo de intervenção (gravação minha)

Nesse espaço-tempo, percebemos sonoridades ainda imprecisas, em que o(a)s

aluno(a)s expressavam dúvidas sobre as músicas que estavam lendo: que música

era aquela? Era aquilo mesmo que estavam lendo?

Acho que esse é o momento mais difícil... porque, tipo assim... depois que você que você já está tocando... é uma coisa. Agora, quando você tá lendo... você fica agarrado numa [sic] parte, agarrado em [sic] outra... É o momento mais difícil da música. (FRANCO)

É o período que a gente mais se esforça porque... até a gente ler as notas... com o tempo certo... [...] se tiver com as mãos juntas... se for forte, forte; se for fraco, fraco... É a parte que mais exige da gente. (ARIANA)

Outras dúvidas surgiram nesse período: dois alunos do grupo manifestaram

desânimo em relação ao repertório. Franco queria desistir do curso, pois sua

vivência musical segue a linha popular, enquanto o programa de acesso ao Curso

de Formação Musical (CFM) é erudito; o aluno estava encontrando barreiras para se

expressar nessa modalidade musical. No que se refere a Júlia, observamos que ela

não deslanchava com as peças já iniciadas no ano anterior, mas sustentava o

desejo de seguir estudos no CFM. Após conversas com o(a)s aluno(a)s e com os

pais, encontramos algumas possibilidades de encaminhamento: Franco poderia

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ingressar no CFM Erudito e, em um ano, passaria para o CFM Popular, aguardando

o atendimento ao critério de idade para ingresso neste curso. Quanto a Júlia,

faríamos uma recomposição de seu repertório, escolhendo outras músicas, mais ao

encontro do gosto e das necessidades da aluna.

No que diz respeito ao grupo como um todo, conversamos com o(a)s aluno(a)s

sobre a realização desta pesquisa, explicando sobre as atividades que estavam

sendo pensadas: filmagens em aula, oficinas de expressão musical, formas de

estudar em casa com eventual envio de vídeos por Whatsapp. Assim, demos

sequência à nossas criações.

5.2 FORMANDO-SE UM SEGUNDO TERRITÓRIO (MAIO-AGOSTO/2016)

Percebi que estava se delineando um novo território quando as crianças começaram

a interagir mais, começaram a se soltar, a se movimentar, a falar, a trazer sugestões

de músicas. No novo modo de aula, proposto no processo de intervenção desta

pesquisa, Aline, por exemplo, chegou a sentar-se de joelhos sobre o banco, e isso

não foi um problema. Destacamos tal fato, pois em uma aula padrão a exigência da

postura do(a) aluno(a) ao piano geralmente não se encontra integrada com a

consciência do uso do corpo, constando apenas como um comportamento modelo.

No caso de Aline, a possibilidade de movimentar-se é importante, uma vez que a

aluna convive com o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade11. Ou

seja, exigir que ela permaneça em uma única postura durante toda a aula constituiria

um aspecto limitante para sua expressão.

Nesse segundo território, percebi que o(a)s aluno(a)s faziam sugestões para a

própria música que estavam tocando, denotando contentamento, alegria de

participação etc. Nesse sentido, é importante registrar que Aline também criou uma

letra para um trecho da melodia que estava estudando.

A proposta de realização de filmagens gerou algumas alterações no enquadramento

da aula, fazendo emergir expressividades diferentes das anteriores, formando um

novo território. A câmera abriu um canal de comunicação entre nós,

11

A menção ao transtorno com o qual Aline convive não tem o intuito de classificá-la, mas de salientar como a aula de piano erudito no modelo padrão apresenta limites, inclusive na perspectiva da inclusão.

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desestabilizando os códigos conhecidos no sistema aluno-professor. Assim, iniciou-

se um processo de busca sobre as nossas intencionalidades: o que eu buscava? O

que queriam o(a)s aluno(a)s? Algun(ma)s me perguntaram: “por que a senhora está

filmando a gente?” E, então, conversávamos a respeito da pesquisa sobre

expressão musical.

Elementos novos começaram a surgir: Aline criou formas para o estudo de Czerny nº

7, lembrando-se de que havia inventado algumas estratégias12 com finalidade

semelhante no ano anterior. Disse ela:

Eu bolei uma estratégia para estudar!

Fez anotações na partitura e quis registrar o momento com filmagem. Estudou o

trecho ao piano, seguindo suas próprias anotações.

Franco, por sua vez, já havia escolhido as músicas do repertório e – por incrível que

pareça, já que sua vivência na igreja está mais voltada para o repertório popular – a

que ele mais gostou foi um minueto de Bach. Quando começamos a ler a música,

Franco parou e chorou. Aproximei-me dele e perguntei:

O que houve? (PESQUISADORA)

Ao que ele respondeu:

Nada. Não é nada não... (FRANCO)

Insisti:

Você gostou muito dessa música? (PROFESSORA-APRENDIZ-CARTÓGRAFA)

Ele, então, afirmou:

Sim, é muito bonita (enxugando as lágrimas). (FRANCO)

Em outro momento, ainda se referindo ao minueto de Bach, ele disse:

Gótico! sei lá... Medieval! (FRANCO)

12

Em 2015, no estudo da música Ciranda cirandinha, Aline revelou que “bolou” estratégias para a execução correta de alguns trechos que não estavam bem executados e disse: “eu tipo bolei uma estratégia para não errar”.

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E lançou-se intensivamente no estudo dessa obra...

Karla começou a se soltar e a sorrir durante a aula, explorando as diferenças de

toque para executar as músicas de seu repertório. Executou uma mesma música,

imprimindo-lhe um afecto alegre, depois “com sono” e, posteriormente, “pulando”.

Essa atividade propiciou o despertamento da aluna para o fato de que podemos criar

diferentes ambiências em uma música.

Lucas deslanchava com a Tarantela, trabalhando os afectos e perceptos dessa

dança. Fizemos uma busca no canal YouTube, assistindo a alguns vídeos de grupos

italianos tocando e dançando diferentes composições desse gênero da arte dos

sons. Em um dos vídeos, dançamos ao som da música, sentindo sua pulsação e sua

rítmica.

A aluna Selena, sua mãe, Demi, o professor José Carlos e eu ainda estávamos

empenhados na digitalização e ampliação das partituras em tamanho adequado

para a leitura, já que a aluna possui apenas 30 por cento da capacidade de visão.

Leonardo manifestou que não tinha interesse em seguir estudos no CFM, afirmando

que gosta de algumas músicas eruditas, mas prefere as composições populares.

Dentre as músicas que ele escolheu, demonstrou predileção pela canção Sounds of

silence, de Simon e Garfunkel. Nessa peça, trabalhamos os perceptos e os afectos

pensando no silêncio. Como seriam os sons do silêncio? A esse respeito, Leonardo

declarou:

eu gosto muito da música The sound of silence, por que me faz sentir tristeza e ao mesmo tempo alegria. (LEONARDO)

Ângelo e Anderson descobriam seu próprio potencial para música, manifestando

grande apreço por estudar as peças do repertório para o CFM. Júlia, Ariana, Lídia e

Sofia estavam concentradas em suas leituras e estudos. Nessa via, imersos em um

plano de intensidades, lançamo-nos no “[...] aprendizado dos afetos [...]” (BARROS;

KASTRUP, 2014, p. 74), sendo despertados para a elaboração de saberes em uma

prática coletiva. Os movimentos de aproximação entre mim e o(a)s aluno(a)s, nesse

território, impulsionaram a tessitura de uma rede afetiva que animou nossos atos de

fazer-saber. Esse direcionamento propiciou o envolvimento do(a)s aluno(a)s, sendo

esse um fator fundamental do processo.

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No que diz respeito às quatro alunas supramencionadas, registramos tal fato,

justamente porque isso vai ao encontro da noção de território, que não segue uma

ordem ou sequência de desenvolvimento homogêneo, mas um movimento que se

configura na diferença dos afectos, perceptos e suas funções. Naquele momento,

essas quatro alunas estavam elaborando suas ideias de forma aparentemente

tímida, mas o fato é que estavam produzindo de acordo com seus próprios jeitos de

ser – Sofia, por exemplo, vai tímida quase até o final do processo, contrariando a

ideia de que o desenvolvimento se dá em etapas lineares e previsíveis.

Assim, observamos aqui a consonância com a visão de que o conhecimento é

produzido em um campo no qual se conjugam diferentes forças, inserindo-se aí “[...]

valores, interesses, expectativas, compromissos, desejos, crenças etc.” (PASSOS;

BARROS, 2014, p. 19). Esse entendimento levou-nos ao encontro dos jeitos de

viver, dos gostos, bem como as maneiras pelas quais o(a)s aluno(a)s lidam com a

música no dia a dia. Tais movimentos afetaram meu olhar e pensamento, como

professora-aprendiz-cartógrafa, sobre a própria organização das atividades das

oficinas, bem como das aulas individuais, ampliando a participação do(a)s aluno(a)s

no processo.

Durante esse período, como professora do grupo, eu sentia que algo me

incomodava, mas não sabia nomeá-lo. Aos poucos, fui percebendo que, no que se

referia à produção de sonoridades, o(a)s aluno(a)s não faziam uso do piano com

liberdade. Isso me levou a pensar em uma oficina que trabalhasse o despertamento

para a criação de diferentes matérias sonoras expressivas. Foi assim que organizei

a oficina de texturas, sobre a qual discorre o tópico a seguir.

5.3 CONSTITUINDO UM TERCEIRO TERRITÓRIO (05 E 12 DE SETEMBRO/2016)

5.3.1 Oficina de texturas

Buscando uma maior intimidade com o piano, desenvolvemos uma oficina de

texturas, utilizando diferentes materiais, por exemplo, tecidos diversos, corais secos

do mar, lixa e algodão.

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151

Figura 25 - Aluno(a)s do segundo grupo e eu na oficina de texturas (setembro, 2016)

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)

Sentamos no chão, em círculo, e manuseamos os diferentes materiais. À medida

que os alunos sentiam as texturas, verbalizavam suas sensações e percepções.

a) Primeiro grupo (05 de setembro):

A respeito de um tecido e de uma pedra coral:

O tecido é liso e a pedra é mais áspera. (ÂNGELO)

Figura 26 - Leonardo (esquerda) observa Ângelo experienciar o algodão na oficina de texturas para o primeiro grupo (setembro, 2016)

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)

O(a)s demais assim se expressaram:

Esse aqui [tecido] é macio; essa aqui [pedra coral] é dura, né?! (LEONARDO)

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Eu acho que esse (tecido) tem o som mais leve... Mais pesado [referindo-se à pedra coral]. (JÚLIA)

A respeito da textura do algodão:

Isso é áspero. (ÂNGELO)

Mais ou menos como a pedra, só que mais leve, macio... Desmancha... (LEONARDO)

Macio. (JÚLIA)

Figura 27 - Júlia, experienciando o algodão na oficina de texturas para o primeiro grupo (setembro, 2016)

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)

Podemos observar em algumas imagens o riso do(a)s alunos durante a

experienciação, talvez estivessem achando inusitado associar a textura dos objetos

utilizados à expressão musical. Nem todo(a)s puderam estar na oficina, em razão

do que ela foi repetida.

b) Segundo grupo (12 de setembro):

A respeito da pedra coral:

Áspero. (SOFIA; ANDERSON; KARLA)

Se cair na cabeça de alguém, machuca. (LUCAS)

Duro. (LÍDIA)

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Figura 28 - Lídia (esquerda), sendo observada por Karla ao experienciar a textura de um coral marinho na oficina de texturas para o segundo grupo (setembro, 2016)

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)

Em um segundo momento da oficina, sugeri que poderíamos tocar essas texturas ao

piano, realizando sons conforme a sensação do material. Observei, então, que os

alunos não ficaram à vontade para fazer isso. Nesse momento “caiu uma ficha”: há

uma marcação de distância entre o piano, os alunos e professores, pois a aula

padrão carreia uma palavra de ordem em relação ao piano, como se ele fosse um

instrumento sagrado, que não se pode manusear ou explorar sem que o(a)

professor(a) dê o comando.

Havia tempo que eu vinha fazendo essa observação também nas aulas individuais,

mas ainda não de maneira evidente. Porém, com a realização da oficina, que é um

tipo de aula coletiva, essa inibição tornou-se mais nítida, permitindo-me ver que os

alunos não tinham uma relação de intimidade com a produção de sonoridades ao

piano. Eles agem como se não pudessem tocá-lo, explorá-lo conforme suas

curiosidades e ideias (ver arquivo Cena_1 no DVD). Esse despertamento fez-me

pensar sobre a relação da criança e do adolescente com o instrumento. Ainda,

pensei no meu posicionamento, como professora, nessa relação.

É interessante observar que, no caso de todos os demais instrumentos, por

exemplo, o saxofone, o violão, as flautas e até mesmo o contrabaixo acústico, o

instrumentista toma o instrumento em suas mãos, estabelecendo com ele uma

relação de proximidade e de quase proteção... Já no caso do piano, o próprio

tamanho e estrutura fechada do instrumento – além da forma educativa – causam

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certo estranhamento, afastamento e inibição, como se o(a) aluno(a) estivesse diante

de um objeto intocável. Isso me levou a propor outra oficina, que propiciasse maior

envolvimento com o piano, de modo que o(a)s aluno(a)s pudessem “abraçá-lo”.

Essas percepções nos remetem à reflexão sobre uma das lógicas presentes na

forma educativa padronizada, que se refere à redundância dos sentidos sobre o que

é ser aluno(a) e ser professor(a), de maneira tal que a prática pedagógica segue em

palavras de ordem, por reprodução automática, sem questionamentos sobre seus

efeitos no tocante ao ato de aprender. Em termos de expressividade, para lembrar a

fala de Deleuze (acesso em 4 fev. 2016), é uma aula que “[...] não convém [...]”.

Por essa via, cabe ao(à) aluno(a) e ao(à) professor(a) reproduzir ad infinitum as

palavras de ordem propagadas pela máquina abstrata do ensino obrigatório, sem

necessariamente produzir o desenvolvimento da capacidade expressiva. Nesse

quadro, identificamos a distância entre o(a) aluno(a) e o instrumento e entre o(a)

aluno(a) e o(a) professor(a). Entre os pares, erguem-se muros, aquilo a que Deleuze

e Guattari (2012a, p. 36) chamariam de “sistema muro branco-buraco negro”, já que,

no sistema de rostificação, conforme argumentam esses pensadores, o rosto de

cada função (professor, aluno, policial etc.) se forma socialmente e isso pode erguer

muros na relação. No que diz respeito ao buraco negro, esses filósofos usam essa

expressão referindo-se às cavidades do corpo humano – olho, nariz, boca, ouvidos –

a partir das quais assimilamos informações que nos levam a acolher ou refutar as

pessoas, sendo que o buraco negro pode surgir, inclusive, a partir de uma

gestualidade, que pode fazer um dos pares subsumir, configurando relações de

dominação.

O desenvolvimento da oficina de texturas permitiu-me observar que o(a)s aluno(a)s

soltaram-se, mas ainda de forma tímida, formando um novo território, caracterizado

no tópico a seguir.

5.4 QUARTO TERRITÓRIO (13 A 25 DE SETEMBRO/2016)

À medida que se desenvolviam as aulas com filmagem, somando-se às oficinas de

texturas, comecei a observar uma modificação na relação do(a)s aluno(a)s com o

seu próprio fazer musical, bem como em mim mesma, como aprendiz-cartógrafa.

Ele(a)s passaram a expressar verbalmente as maneiras que criaram para produzir

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determinadas sonoridades. Começaram a se soltar... Assim, durante as aulas,

surgiram conversas a respeito de como se pode produzir um determinado efeito nas

músicas, comentando sobre as maneiras pelas quais poderiam fabricar uma

determinada sonoridade ou efeito em seus diferentes trechos (ver arquivo Cena_2

no DVD).

Ariana conversou sobre duas composições de seu repertório, falando a respeito do

uso do peso do corpo na realização de passagens musicais, com dinâmica forte e

piano, e também sobre as cifras na peça A bela e a fera.

Figura 29 - Ariana, explanando sobre aspectos das peças A bela e a fera e Burlesque

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)

Em relação à peça erudita, ela afirmou:

essa música se chama Burlesque. Quem compôs ela [sic] foi Leopold Mozart [...]. É uma música estrangeira. [...] tem um toque na melodia... Como eu posso dizer? Que no começo você começa forte, depois diminui um pouquinho, aí fica forte e fraco, alternando. [...] Quando você toca forte – pelo menos eu – inclino meu corpo um pouco prá frente, colocando mais força na minha mão; quando eu toco fraco, eu toco levinho, quase não encosto no piano, meu corpo vai um pouco prá trás. (ARIANA)

Sobre a peça do universo popular, a aluna ressaltou que

essa música é A bela e a fera...[...] acho que... também é uma música estrangeira e... nela... parece que você está dançando... É toda por cifras. Tem umas partes, que elas são meio alegres. E outras que são... como vou dizer? Românticas, mais dançantes... (ARIANA)

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Semelhantemente a Ariana, Franco fez explanações sobre sua maneira de sentir e

realizar os afectos do minueto de Bach que estava estudando, salientando a

necessidade de tocar fazendo as diferenciações de plano sonoro em um

determinado trecho. A respeito dessa composição, o aluno fez os seguintes

comentários:

se eu fizer a música do mesmo jeito, sem nenhuma alternância entre a força de tocar, igual eu faço esse crescendo, a música fica sem graça. Com o final crescendo, ela fica mais bonita, fica... diferente. [...] Nesse final, eu achei que ficou muito melhor, muito mais bonito com o crescendo. (FRANCO)

O mesmo foi feito em relação a outra peça musical, Bruxas e fantasmas, cujo estilo

solicita a constante modificação nos modos de tocar (o toque). Franco criou uma

maneira de realizar uma sonoridade em sintonia com os afectos e perceptos que

constituíam essa composição, identificando-a como uma música “de circo”.

Conversamos sobre as cenas de um circo, o que acontece nesse espaço, a partir do

que ele fez a seguinte explanação:

cada toque tem um sentido nessa música. É tipo... no começo, é tipo um circo, um palhaço. Ele chega assim, devagarinho... vai lá, futuca [sic] o outro, depois, sai de fininho, aí, volta de novo, sai de fininho. Aí, depois, vai crescendo, como se tivesse correndo, o outro atrás dele... Aí, depois, morre o som, como se tivesse parado. (FRANCO)

Lucas comentou sobre uma música erudita brasileira – A baianinha das cocadas –,

explicando que havia realizado uma sonoridade em seu fim, provocando um susto

no ouvinte:

No final, dá um susto! (LUCAS)

E tocou para demonstrar o que estava falando...

Para o estudo dessa composição, conversamos sobre as baianas que vendem

cocadas e acarajés, com tabuleiros sobre a cabeça. Andamos pela sala, captando

os ritmos desse andar com tabuleiro na cabeça, os passos e os movimentos.

O ritmo dessa música tem como inspiração os batuques. Enquanto ele a tocava, fui

fazendo um batuque na madeira do piano. Num dado momento, nós nos

empolgamos com o ritmo, eu acabei intensificando a batida e a estante da partitura

caiu. Nós dois caímos no riso... A partir disso, sempre que ia começar a música, ele

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se lembrava desse episódio e começava a rir, falando sempre, em tom de

brincadeira:

é o ritmo, né? (LUCAS)

Lídia, por sua vez, ao tocar uma de suas músicas, observou uma diferença no efeito

de determinados sons e perguntou:

Por que esse som some... e esse... fica? (LÍDIA)

A partir da pergunta da aluna, abrimos o piano e experimentamos dedilhar as

cordas, observando a vibração nas cordas finas e nas cordas mais grossas.

Figura 30 - Lídia, explorando as diferenças nos efeitos sonoros das cordas do piano

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação da aluna Ariana)

Criou-se uma dúvida, pois quando ela tocava as teclas os sons ressoavam de uma

maneira, mas quando dedilhava diretamente as cordas outro efeito era produzido,

oposto ao que Lídia havia percebido ao tocar as teclas. Vimos que os sons nas

cordas finas, sob a ação dos martelos do piano, produzem sons quase estridentes,

“gritam”; as sonoridades nas cordas grossas, por sua vez, são menos estridentes,

fazendo com que o som desaparecesse mais rapidamente.

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Outra aluna, Aline, incentivada pelas filmagens, fez um pequeno vídeo de um

momento de seus estudos em casa, enviando-o a mim via Whatsapp. Nesse vídeo,

ela fala sobre a tarantela que havia estudado no início de 2016, mencionando uma

pesquisa que havia feito sobre a origem da dança homônima.

Nesse mesmo período, também observamos fatos relevantes durante as aulas de

Ângelo. O aluno brincou com o fato de estar sendo filmado, lançando olhares de

soslaio para a câmera, imprimindo um tom de ludicidade à aula (ver arquivo Cena_3

no DVD). Em outro momento, ele tomou a iniciativa de estudar no horário da aula,

fazendo anotações próprias na partitura, verificando detalhes e fazendo perguntas.

Relativamente a outras músicas de seu repertório, vale ressaltar que Ângelo estava

tocando a peça Burlesque com muita fluência e desenvoltura, demonstrando

contentamento em virtude de seu desenvolvimento. Observando vídeos de práticas

musicais de Ângelo, podemos notar que é evidente a autorrealização que ele

encontra nessa atividade.

Figura 31 - Ângelo, estudando detalhes de um minueto de Bach

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)

Júlia, por sua vez, começava a soltar os movimentos para a realização da peça

Bolinhas de sabão. Em um de nossos encontros – durante a oficina de texturas –,

realizamos algumas dinâmicas corporais, procurando imitar a movimentação própria

de bolinhas de sabão, para sentir os ritmos e as intensidades. Essa atividade

instigou-a a tocar as frases musicais produzindo sonoridades mais leves e rápidas,

buscando traduzir o “pipocar” das bolinhas.

Sofia, Selena, Anderson e Karla continuavam seus estudos, ainda em surdina.

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Figura 32 - Sofia, durante estudo

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)

Vemos as transformações na expressividade dos alunos – observadas até esse

momento da pesquisa – como dado importante para o fortalecimento da hipótese da

pesquisa aqui relatada, a de que o desenvolvimento da capacidade de expressão é

um fenômeno complexo, perpassado por linhas e movimentos que podem travar ou

impulsionar os processos enunciativos e criativos de alunos e professores.

5.5 QUINTO TERRITÓRIO (QUARTA SEMANA DE OUTUBRO/2016)

5.5.1 Oficina de modelagens no piano

Durante a oficina de texturas, notei que os alunos ainda estavam bastante tímidos

para produzir diferentes sonoridades ao piano, fazendo tentativas de tocá-las de

maneira rápida, e, muitas vezes, repetindo o mesmo som para texturas diferentes.

Essa postura de timidez pode ser observada no vídeo dos dois grupos que

participaram da oficina de texturas, estando mais evidente no momento em que eles

vão ao piano para criar sonoridades relativas às texturas, que havíamos

experienciado por meio do tato em encontro realizado anteriormente.

Esse fato reportou-me aos estudos deleuzianos sobre as relações entre as matérias

de expressão e os fatores inibidores e desencadeadores que agem sobre elas

(DELEUZE; GUATTARI, 2012b), deslocando o acento comportamental da inibição

para uma visão mais ampla dos fatores que nela operam. Por esse prisma, a

inibição é uma expressão do aluno que pode estar relacionada aos regimes de

signos praticados nas relações dominantes entre professor e aluno, encerrando “[...]

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uma operação muito mais inconsciente e maquínica que faz passar todo o corpo

pela superfície esburacada, e onde o rosto não tem o papel de modelo ou de

imagem, mas o de sobrecodificação” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 40). Dessa

maneira, a rostificação – sistema muro branco-buraco-negro – poderá atuar na

articulação dos gestos, das falas, rosto e mãos: “[...] o rosto é um mapa [...]”

(DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 39).

É nesse sentido que é fundamental conhecer as diferenças sobre as concepções de

aprendizagem, sabendo que suas respectivas práticas poderão ou não fomentar os

contextos de desencadeamento da expressão. Nessa perspectiva, momento em que

a dificuldade relatada foi observada, busquei linhas de fuga que pudessem

desmontar ainda mais os formatos instituídos nas aulas de piano, visando a

incentivar os alunos a uma maior soltura e reconceituação de si mesmos, passando

ao entendimento de que são seres de criação, e não de repetição ou de petição de

obediência.

Desse modo, na preparação da oficina de modelagem de piano, lembrei-me dos

trabalhos pianísticos realizados por John Cage (1912-1992), que criou um sistema

de composição que participou de maneira contundente dos movimentos de levar o

“[...] público a aceitar a igualdade de todos os fenômenos sonoros [...]” (ISAACS;

MARTIN, 1985, p. 62). A preparação do piano feita por John Cage previa a utilização

de materiais inusitados, lançando mão de “[...] nozes, correntes, parafusos, pedaços

de borracha e de plástico [que] eram inseridos sob e certas cordas desse

instrumento. Isso afetava tanto o timbre quanto a afinação das notas, produzindo

sonoridades profusamente variadas” (BENNETT, 1986, p. 76).

Assim, com o objetivo de provocar uma situação de maior intimidade do(s) aluno(a)s

com o piano, preparei uma sessão de vídeo sobre os trabalhos do referido

compositor, sugerindo a eles, posteriormente, a preparação do nosso piano de sala

de aula. Relativamente à sessão do vídeo, o(a)s aluno(a)s reagiram com os

comentários a seguir.

Diferente, né? Com objetos simples... garfos... A gente não usa, né? O som, quando você ouve primeiro, é meio estranho. Depois você vai acostumando com o som. (FRANCO)

Quando eu não vi que era[m] aqueles negócios [parafusos, garfos, pedaços de plástico], eu pensei que nem era o piano. (LUCAS)

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Bem diferente. (KARLA)

Meio estranho... É... porque não parece muito com piano! (ANDERSON)

Assim, na sequência, passamos à recriação do piano preparado com o piano que

usamos em aula, introduzindo materiais diferentes entre suas cordas. Parecia que

os alunos tinham gostado da ideia, titubeando entre a curiosidade e o

estranhamento. Sobre tal proposta, Lucas respondeu:

Seria bem legal! (LUCAS)

Passamos, então, à modelagem do piano. Coloquei os materiais à disposição

dele(a)s, que passaram a explorar as possibilidades de criação sonora.

Animadamente, ele(a)s foram experimentando os sons à medida que iam colocando

na harpa do piano materiais como garfos, parafusos, brocas e sacolas plásticas, lixa

e pinças.

Figura 33 - Alunos durante a oficina de modelagem do piano com diferentes materiais

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)

Foi possível notar a alegria nos rostos dos alunos, que se concentraram na

modelagem do som, conforme o material utilizado. Fizeram experimentos, tocando

teclas isoladamente e também tocando peças musicais que não são trabalhadas no

repertório da Fames. Sugeri que experimentassem tocar as composições do

repertório programático, observando a modificação dos timbres e afectos das

músicas. As expressões de surpresa e contentamento ficaram visíveis.

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Anderson, ao experimentar tocar uma de suas músicas do repertório, estranhou os

sons. Ele tocava o primeiro acorde e parava, surpreso... (ver arquivo Cena_4 no

DVD)

Figura 34 - Rodeado pelos colegas, Anderson, ao piano, experiência as sonoridades inusitadas do piano modelado.

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)

As paisagens desse território remeteram-me ao pensamento de Deleuze e Guattari

(2010), para quem a experiência integra os processos de elaboração do

conhecimento em suas diversas instâncias, sendo condição mesma da criação dos

sistemas científicos, dos conceitos filosóficos, da mesma maneira que os afectos e

perceptos da arte. Tais elementos “[...] não preexistem inteiramente prontos [...]”

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 152) nos referidos sistemas, sendo forjados nos

processos de experiência e de experimentação do pensamento, tanto na ciência

quanto na filosofia e na arte, “[...] nenhuma criação existe sem experimentação [...]”

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 152).

No âmbito da educação musical – tanto para educadores da primeira geração

quanto para os que a ela se seguiram –, a experimentação é entendida como

aspecto fundamental na aprendizagem. Em relação aos educadores musicais do

século XX, suas metodologias enfatizam a experimentação como o elemento

propulsor do despertamento e desenvolvimento da musicalidade, sendo,

[...] sem dúvida, o que motivou sua classificação como „métodos ativos‟, isto é, todas elas descartam a aproximação da criança com a música como procedimento técnico ou teórico, preferindo que entre em contato com ela como experiência de vida. É pela vivência que a criança aproxima-se da

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música, envolve-se com ela, passa a amá-la e permite que faça parte de sua vida (FONTERRADA, 2005, p. 163).

Com referência ao pensamento de Carl Orff, por exemplo, verificamos em

Fonterrada (2005, p. 151) sua aposta na premissa de que “[...] todo conhecimento

[...] provém da experiência, e o que ocorre com a música e a palavra também se dá

com o movimento e a expressão plástica”.

A vivência na oficina de piano preparado de John Cage levou o(a)s aluno(a)s a se

aproximar mais do piano, tocá-lo, imprimir-lhe ideias sonoras. Essa oficina moveu

nosso pensamento de maneira mais intensiva, proporcionando ainda maior soltura

na expressão musical. O(A)s aluno(a)s como um todo e eu, como aprendiz-

cartógrafa, passamos a nos manifestar com maior confiança, intensificando os

processos inventivos. Apesar do estranhamento inicial por parte dele(a)s em relação

às sonoridades do piano preparado mostradas no vídeo apresentado em aula,

podemos afirmar que essa atividade despertou-lhes o conhecimento de que a

matéria sonora é plástica, moldável, colocando-o(a)s em contato direto com

diferentes aspectos dos códigos e signos da arte dos sons.

A partir disso, é preciso sublinhar a necessidade de se criar diferentes contextos

educacionais para as aulas de performance pianística, especialmente aquelas

direcionadas a crianças e adolescentes, pois, de maneira geral, os cursos de

formação de pianistas – mesmo aqueles intitulados como cursos de pedagogia do

piano – focalizam aspectos técnicos como sendo os principais fundamentos da

aprendizagem da performance, ancorados no campo da psicologia comportamental,

como relatado em capítulo anterior. A teoria de Russel (1980) e os princípios de

Juslin (1997, 2003) vêm se firmando como referências exclusivas nesse campo,

imprimindo uma concepção de aprendizagem que entende os temas de motivação e

fluxo como aspectos desvinculados dos desejos, interesses e vivências dos

aprendizes. Ou seja, os estudos sobre a aprendizagem da performance na

perspectiva da psicologia comportamental tratam a motivação e os resultados da

aprendizagem como fenômenos neurofisiológicos, desconsiderando a visão de que

todo processo de aprendizagem implica – preponderantemente – relações

educacionais, relações de desejos, aprendizagens e vivências sociais e culturais.

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5.6 SEXTO TERRITÓRIO (INÍCIO DE NOVEMBRO-2016)

Nesse sexto território, observamos os resultados da oficina do piano preparado,

sendo possível notar o desprendimento dos alunos para criar sonoridades: eles

começaram a “se arriscar”, experimentando algumas maneiras diferentes de tocar,

ou na proposição de atividades, bem como nos comentários e expressão corporal

acerca das músicas.

Selena trouxe para a aula uma música popular que “tirou de ouvido” na internet.

Tocou e cantou em espanhol. Em outra aula, manifestou interesse em saber como

seria o piano por dentro, como ele funciona, já que não havia tido a possibilidade de

participar de algumas oficinas, em virtude das limitações que enfrenta com sua baixa

visão, o que exige mais tempo de investimento nas tarefas escolares,

especificamente as relacionadas às atividades de leitura.

Como o horário de sua aula estava se encerrando, combinamos de abrir o

instrumento no encontro seguinte. E assim foi feito, possibilitando que ela visse o

mecanismo de funcionamento do piano, sentisse suas cordas, observando os

demais componentes. Selena sentou-se ao piano para tocar uma peça de Bach e

ficou encantada, observando os martelos se mexerem, produzindo sons sob seu

comando. Assim ela caracterizou a experiência que estava vivenciando (ver arquivo

Cena_5 no DVD):

Que maneiro! (LARA)

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Figura 35 - Selena, apreciando a movimentação dos martelos ao tocar um minueto de Bach

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)

Karla, ao tocar a composição de uma marcha, assim comentou:

é igual ao do exército mesmo [fazendo gesto de marchar]. (KARLA)

Em seguida, tocou a música, fazendo diferenciações dos planos sonoros – mais

forte e menos forte – propostos na partitura, de maneira autônoma, sem que eu

desse a ordem ou falasse para ela se atentar a essas marcações. Nesse período, foi

possível notar que Karla estava se expressando com maior desenvoltura, estando

mais solta para tocar e falar sobre os processos vivenciados.

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Figura 36 - Karla, explicando sobre o caráter marcial de uma música de seu repertório

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)

Se analisarmos a postura da aluna nos primeiros vídeos, vemos uma fisionomia

mais fechada, sem sorriso, o que chamaríamos de uma criança com certa apatia.

Nos últimos vídeos, ela aparece com sorrisos, falando mais, numa clara

desenvoltura, apresentando uma postura corporal mais participativa, se

compararmos com o período de início das aulas.

Por sua vez, Lídia estudava a música A caminho da escola. Em determinada aula,

rememoramos sua caminhada de ida à escola, andamos pela sala, sentindo o

fraseado da composição, as respirações e o tipo de pulsação. Esse tipo de

experimentação é muito importante para a compreensão do caráter da peça, pois a

ação proposta na música é sentida corporalmente, propiciando, por meio do andar, a

dinâmica e a geografia sonoras.

Aline começava a leitura de uma composição intitulada Bruxas e fantasmas, para ser

estudada no próximo ano (2017). Ela se contagiou com os afetos de mistério

envolvendo os personagens sugeridos no nome da música, criando uma letra para a

melodia, bem como fazendo sons alusivos a fantasmas e uma risada de bruxa ao

final.

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Figura 37 - Aline, mostrando como faziam “seus” fantasmas na peça Bruxas e fantasmas

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)

Anderson, por sua vez, prosseguia com os estudos e tinha claro que não cumpriria

todo o repertório que havia escolhido para seu nível em 2016. Então, resolveu trazer

as composições do ano anterior, para recordar e tocar nas aulas coletivas, tendo

criado uma maneira diferente para tocar uma dessas composições: pela partitura, a

música deveria seguir no mesmo andamento, mas ele propôs a primeira parte lenta;

a segunda parte, em que a música tinha um ritmo mais animado, ele a tocou em um

andamento mais rápido. Se eu fosse rigorosa com a partitura, isso não seria

considerado correto, mas, avaliando tal proposta tendo em mente a dimensão da

aprendizagem de expressão musical, o contato com os códigos e signos, a proposta

do aluno ficou interessante. Assim, ainda que configure uma expressão em

desobediência à partitura, sinaliza para o seu envolvimento com a elaboração da

música.

As vivências desse território convidam-nos à reflexão sobre o binômio das

capacidades inatas e aprendidas. A aula padrão de piano, carreada até nós desde o

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século XIX, traz implícitas algumas lógicas. Uma delas é a ideia de que a habilidade

expressiva possui vínculos com aspectos genéticos ou transcendentes. Sadie e

Tyrrell (2001a) tecem comentários concernentes a esse assunto, fazendo referência

a textos de críticos de arte, poetas e compositores românticos cujos escritos tratam

da expressão na arte dos sons imprimindo-lhe um caráter místico. Tais textos trazem

a clara ideia de que “[...] o material musical continha em si mesmo um misterioso

potencial expressivo [...] como uma arte expressiva de infinitos e [...] indefinidos

sentimentos transmitidos por estados de revelação mística” (SADIE; TYRRELL,

2001, p. 464, tradução minha).

Vemos que essa tendência de pensamento instalou-se na prática pedagógica,

operando por linhas segmentárias que alojam os alunos em grupos, identificando-os

como talentosos ou sem talento, ou sem possibilidades para estudar música. Essa

questão é tratada sob o prisma de uma cultura de conservatório, na qual “[...] o

individualismo, o raciocínio a partir do talento individual [...] faz parte dessa cultura”

(LOURO, 2009, p. 266). Vemos esses traçados de linhas associados a um

mecanismo pedagógico aprendido, tal como máquina, que, na perspectiva

deleuziana, “[...] assume um papel de resposta seletiva ou de escolha: dado um

rosto concreto, a máquina julga se ele passa ou não passa, se vai ou não vai [...]. A

correlação binária [...] é do tipo „sim-não‟” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 49).

A esse respeito, compartilhamos do pensamento de Deleuze e Guattari (2012b, p.

152), para os quais o tratamento antinômico e comportamental dos fatores inatos e

adquiridos consiste em um equívoco etológico. Os filósofos em questão visualizam

tais fatores como um rizoma, em coexistência. Porém, essa coexistência não se

define “[...] em termos comportamentais, [...] mas em termos de agenciamento [...]”.

Assim, tem-se um embaralhamento dos tradicionais limites entre o que é inato e

adquirido: seguindo o modo de criar na arte, tem-se do comportamento adquirido

“[...] o caráter de construção, mas do inato [...] a fluidez e a aparente naturalidade”

(KASTRUP, 2001, p. 25). Assim, as matérias de expressão estarão associadas aos

dispositivos que as inibem ou as desencadeiam, agindo sobre os “[...] mecanismos

inatos ou aprendidos, herdados ou adquiridos que as modulam [...]” (DELEUZE;

GUATTARI, 2012b, p. 152).

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Se retomarmos as avalições de pesquisadores a respeito da forma de aula instituída

no campo da performance instrumental (GERLING; SANTOS, 2015; ALMEIDA,

2014; ESPIRIDIÃO, 2003; BORÉM, 2006), apresentadas no Capítulo 1, vamos notar

que a exaustão desse modelo se vincula exatamente à ausência dos elementos que

poderiam funcionar como dispositivos desencadeadores da expressão. A aula

padrão opera por estratégias de ensino que produzem muito mais a inibição e a

representação de modelos, e não a vivência e criação. No âmbito da educação

musical, verificamos que a aula, como espaço-tempo, resulta de uma cultura de

conservatório, que reproduz um “[...] processo „naturalizado‟ de imitação musical e

profissional do „faça como eu [professor(a)] faço e seja como eu sou‟” (LOURO,

2009, p. 266-267).

5.6.1 Oficina de peso do corpo

Essa oficina surgiu de nossas conversas sobre a produção de sonoridades e o

envolvimento do corpo na sua produção. É importante ficar claro que não se usa

força quando se toca piano, mas é preciso ter consciência de como o peso corporal

participa na produção das diferentes sonoridades. Eu percebia que o(a)s aluno(a)s

se limitavam ao emprego da mão, sem a participação do corpo como um todo. Essa

situação levou-me a lembrar do entendimento de Deleuze (2003, 2006) a respeito da

aprendizagem como um campo problemático no qual entram em conjugação a ideia

e o nosso corpo. Nesse sentido, a postura que o(a)s aluno(a)s estavam adotando

não era favorável a essa conjugação; ele(a)s estavam com a coluna meio “arriada”.

Diante dessa inibição, se o(a) professor(a) não estimula o envolvimento, como o

corpo será trazido para o processo?

Na seleção dos exercícios, lembrei-me dos que eram aplicados pela professora

Célia Ottoni em minhas aulas como aprendiz de piano: soltar os braços sobre o

instrumento, apoiar-se na parede, fazer pêndulo com o corpo... Lembrei-me de como

esses exercícios foram valiosos para mim, pois o som tinha que ser o que eu

intencionava produzir, visto que a professora Célia desejava que eu, a partir da

minha experiência, produzisse o som com meu próprio corpo. Assim, eu sabia que

poderia trabalhar meu corpo para produzir sonoridade. Cada corpo é um corpo e

cada um está apto a produzir determinada sonoridade, sendo necessário, portanto,

consciência do que se pode com ele fazer.

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Assim, durante essa oficina, buscamos trabalhar o corpo, sentindo os pesos, os

gestos. Fizemos movimentos de soltar braços, cabeça e girar pulsos. Começamos

com um exercício de soltar os braços, em pêndulo. Em seguida, realizamos

movimentos com os pulsos e mãos, para soltá-los. Logo após essa sequência,

experimentamos o jogo do peso do corpo em uma superfície, utilizando a parede

como apoio. Fizemos gradações de peso e apoio com o corpo, como um pêndulo.

Após essas experimentações, passamos ao piano, para usar na execução das

músicas do repertório as sensações percebidas. Cada aluno(a) tocou o trecho de

uma música, fazendo diferenciações: tocando com mais peso e menos peso do

corpo. Depois, sentamo-nos em círculo para conversar sobre o que tinham

vivenciado.

Figura 38 - Em sentido horário, Selena, Ângelo, Júlia e eu nas atividades da oficina do peso do corpo

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Roberto, pai da aluna Júlia)

Selena disse que já havia vivenciado essa atividade em uma de nossas aulas e que

tentou mostrar a diferença entre as sonoridades, com mais e com menos peso:

Ah, eu não sei, porque eu já estava fazendo algumas coisas assim, parecidas! Aí eu não sei, tipo... Eu não sinto muita diferença, não... Eu procurei mostrar a diferença, mas eu não sei se deu muito certo, não. (SELENA)

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Leonardo observou que havia começado a tocar suave o que intencionara ser de

sonoridade forte, com mais peso. Ao passar para a execução mais leve, quase não

conseguia extrair som, falhando muitas notas:

quando eu tocava o mais leve, parece que eu nem sentia o piano, tipo... Aí, quase que eu não tocava a nota. Mas a forte dava pra tocar, tipo... Mais feliz. (LEONARDO)

Ângelo, por sua vez, disse que sentiu o som mais leve:

Senti mais leve, suave... (ÂNGELO)

A oficina corporal tem sua importância no fato de despertar os alunos para seus

próprios corpos, pois o ato de tocar um instrumento não se resume aos movimentos

dos braços e dedos; envolve o corpo como um todo, incluindo-se aí a respiração,

bem como uma dinâmica de pesos, conforme as partes do corpo que acionamos.

Assim, obteremos diferentes efeitos sonoros se usarmos apenas o peso das mãos,

que é diferente de quando usamos o peso das mãos e dos braços, diferenciando-se

ainda mais de quando acrescentamos o peso do tronco.

Figura 39 - Em sentido anti-horário, Selena, eu, Júlia, Leonardo e Ângelo, na roda de conversa sobre as atividades da oficina do peso do corpo

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação do pai da aluna Júlia, Roberto)

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Além desses aspectos mais físicos, podemos ponderar o uso de nosso corpo

afetivo, aliando as emoções às ações. Essa consciência corporal é indispensável à

aprendizagem pianística, pois é um dos aspectos fundamentais no que diz respeito

ao contato com os signos e códigos que regem o fazer musical. Aqui, é possível

fazermos uma conexão com a visão de Maturana (2014) a respeito das relações

entre o corpo, a linguagem e as emoções, sugerindo que todas as nossas criações

são o resultado de um conjunto de fatores, tendo-se em vista não somente o

pensamento autônomo, mas, igualmente, a corporalidade, que constitui e é

constituída no linguajar:

o amor, a mente, a consciência e a autoconsciência, a responsabilidade, o pensamento autônomo, são centrais para a nossa existência como seres humanos – mas não apenas eles, a nossa corporalidade também. A presente corporalidade humana é o resultado [...] [do] viver em conversações (MATURANA et. al., 2014, p. 209).

Desse modo, observamos que a capacidade de expressão pode comportar fatores

extramusicais, integrando o pensamento, os sentimentos e o corpo, atentando para

os aspectos relacionais que o processo engendra.

5.7 SÉTIMO TERRITÓRIO: COMPONDO NOVAS ROTAS (15 DE NOVEMBRO A

10 DE DEZEMBRO/2016)

5.7.1 Oficina de funcionamento do piano

O desenvolvimento das oficinas de textura, de piano preparado, de John Cage e de

peso corporal e os diversos diálogos com o grupo despertaram no(a)s aluno(a)s a

busca por outros conhecimentos, fazendo-nos notar a necessidade de oficinas com

novas temáticas: eles queriam saber mais sobre a vida dos compositores e sobre

diferentes estilos (o caráter) das músicas, pois, conforme observou Lídia, há

[...] uns que são mais rápidos, outros, mais lentos. (LÍDIA)

Assim, programamo-nos para essas oficinas com vídeos. Para essa atividade,

realizada em grupo, convidamos um afinador de pianos e estudante de piano do

curso de Bacharelado da Fames, Lucas Velasque. Os alunos tinham diversas

perguntas para fazer, já estando às voltas com o piano antes mesmo da chegada do

afinador à sala. Assim, Ariana gostaria de saber por que havia três cordas para cada

martelo na parte das cordas mais finas:

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uma nota só tem três cordas. Por quê? (ARIANA)

Nesse momento, Lídia revelou que “essa ia ser a minha pergunta!”. O afinador,

então, problematizou:

Imagine uma banda. Se é uma só pessoa cantando, quase ninguém escuta, não é? Se botar 200 pessoas cantando... Nossa! Claro que todo mundo vai escutar! As cordas estão aí para fazer mais volume. (LUCAS VELASQUE)

Na sequência, o afinador chamou a atenção dos alunos para o fato de as três cordas

serem afinadas exatamente no mesmo tom:

elas são afinadas na mesma nota exata, apesar de serem três cordas. (LUCAS VELASQUE)

Em seguida, o aluno Anderson perguntou sobre os pedais do piano, qual sua

utilidade, ao que o afinador passou a demonstrar suas funções, mostrando a inter-

relação entre os pedais e os martelos, tocando ao piano para mostrar as diferenças:

vocês estão vendo que muda o som? (LUCAS VELASQUE)

O(A)s aluno(a)s, então, perguntaram o motivo, ao que o afinador respondeu-lhes

com a seguinte indagação:

estão vendo que os martelos andam? (LUCAS VELASQUE)

E prosseguiu na explanação:

os martelos são feitos de feltro, um feltro bem duro, e, à medida que vai tocando na corda, vai se tornando mais rígido, [...] dando um som brilhante. [...] Esse pedal da esquerda [...] faz com que o martelo mude um pouquinho de posição, pra tirar daquela parte que está já mais rígida do feltro... e vai prá [sic] jogar o martelo prá [sic] bater nas cordas na parte mais macia [...]. Então, além dele [sic] andar pro [sic] lado, ele deixa de pegar uma corda, [...] ele só pega duas, por isso que ele anda pro [sic] lado. (LUCAS VELASQUE)

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Figura 40 - Aluna Nina13

observa o afinador Lucas Velasque (ao piano) discorrer para o(a)s participantes desta pesquisa sobre os efeitos do uso do pedal durante a oficina de funcionamento do

piano

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)

Após as conversas em nossa sala de aula, Lucas Velasque convidou-nos para estar

na oficina de afinação e reparos de pianos da Fames, pela qual ele é responsável.

Então, fomos até essa sala para conhecer outros aspectos do instrumento. Ao

chegar à oficina, encontramos a harpa do piano exposta sobre uma mesa, sendo

possível ver todo o mecanismo de construção e funcionamento desse instrumento

musical.

13

Essa aluna não pode integrar o grupo de crianças e adolescentes que participaram da produção dos dados na pesquisa aqui relatada. No entanto, solicitou a permissão para estar em algumas atividades sempre que lhe fosse possível, sendo atendida. Como essa imagem foi inserida na tese, solicitei à sua mãe que também assinasse o termo de autorização de uso de imagem.

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Figura 41 - Alunas visualizam a parte interna do piano na sala usada para conserto dos pianos da Fames, acompanhadas pelo afinador Lucas Velasque

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação minha)

Nesse ambiente, o(a)s aluno(a)s observaram como as teclas são feitas, sua

articulação com os martelos e as cordas, verificando que as nuances sonoras são

produzidas a partir do manuseio desses materiais, desenvolvendo uma habilidade

fina de execução e escuta. Em seguida, experimentaram tocar o piano, observando

a movimentação dos martelos e as sonoridades de um piano em estado de reforma.

5.7.2 Oficina de estilos musicais e pianistas

Após a visita à oficina de afinação de pianos, retornamos à sala e assistimos a

alguns vídeos sobre estilos musicais, atendendo ao interesse de Lídia e de

algun(ma)s de seu(ua)s colegas. Vimos, então, um vídeo mostrando o minueto e sua

dança; uma sarabanda e sua dança. Passamos a outros estilos, por exemplo, as

valsas de Strauss. Em seguida, o(a)s aluno(a)s pediram para colocar um rap e um

funk, escolhendo os compositores e cantores de sua preferência.

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Na sequência, sugeri concluirmos as atividades assistindo a vídeos de pianistas da

música erudita. A partir do YouTube, acessamos vídeos dos pianistas Vladimir

Horowitz (1903-1989), ucraniano, e Nelson Freire (1944-), brasileiro. O(A)s aluno(a)s

observaram os sons que os músicos conseguiam produzir no instrumento, bem

como as diferenças de sonoridade entre eles e suas maneiras de tocar. Franco

observou as diferenças nas nuances de sonoridade, bem como na postura corporal

adotada por Nelson Freire e Vladimir Horowitz, salientando o uso das mãos e as

expressões faciais.

Figura 42 - Da esquerda para a direita, Karla, Nina, Lídia, Ariana, Franco, Anderson e Lucas observam atentamente o pianista Vladimir Horowitz durante exibição de vídeo

Fonte: frame extraído de filme produzido durante o processo de intervenção (gravação de Denis Ramos)

Neste território, destacamos o crescimento da participação do(a)s aluno(a)s, que,

além de terem escolhido os temas dos encontros, passaram a fazer mais perguntas

e observações, especialmente no que diz respeito ao despertamento para a

singularidade que há nos modos de tocar piano dos diferentes concertistas. As

observações sobre tais diferenças proporcionaram-lhes um momento interessante

de introspecção, formando-se um silêncio que pode ser sentido: seus semblantes

mudaram, portando-se de maneira mais compenetrada, ao mesmo tempo em que

começaram a tecer alguns comentários a respeito das maneiras como os pianistas

se sentavam, a forma pela qual usavam as mãos e o corpo (ver arquivo Cena_6 no

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DVD). Outro fato importante refere-se à atenção do(a)s aluno(a)s às modificações

nas expressões faciais dos pianistas, conforme os afectos que estavam

expressando na música.

Nessa experiência, vemos uma conexão com a ideia de espaço liso e espaço

estriado em Deleuze e Guattari (2012c), observando uma ênfase no espaço liso,

visto que se delineia pelas sequências intensivas, e não extensivas, propiciando a

emergência dos processos de subjetivação. Essa percepção vai ao encontro do

pensamento deleuziano, cujo teor assinala que a constituição das singularidades

está diretamente ligada às formações intensivas, pois

[...] o processo essencial das quantidades intensivas é a individuação. A intensidade é individuante; as quantidades intensivas são fatores individuantes. Os indivíduos são sistemas sinal-signo. Toda individualidade é intensiva: logo cascateante, [...] compreendendo e afirmando em si a diferença nas intensidades que a constituem (DELEUZE, 2006, p. 235).

Com base nessa visão, torna-se claro o entendimento da vinculação entre a

inventividade na aprendizagem e os processos de subjetivação, visto que os

espaços de afetividade e intensidade são condição si ne qua non para a emergência

e cocriação de si e do mundo. Assim, onde há somente a representação e a

repetição de ideias, não havendo inventividade, não há espaço para a relação entre

subjetividade e objeto, anulando-se, portanto, qualquer possibilidade de uma

aprendizagem que apresente sentido para os aprendizes. De modo contrário, é no

espaço da inventividade que o(a)s aprendizes dão sentido às suas aprendizagens,

abrindo linhas investigativas norteadas por seus desejos, interesses e sentimentos,

inteirando-se dos mecanismos de funcionamento dos signos que constituem a

diversidade das matérias.

5.8 ANÁLISE GERAL

Procedendo a uma análise geral da nossa experiência no campo de pesquisa, é

possível afirmar que o conjunto das vivências e das atividades realizadas produziu

dados relevantes no que diz respeito à vinculação entre o desenvolvimento da

capacidade expressiva e os modos educativos. A participação ativa do(a)s aluno(a)s

em todos os contextos, na elaboração de questionamentos, na expressão de suas

sensações e percepções, assim como na verbalização das vivências, evidencia um

caráter problematizador do processo. Paralelamente a essa participação ativa, notei

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que ele(a)s buscavam por uma sintonia mais acurada com as matérias sonoras,

trabalhando a expressividade dos afectos e perceptos das composições musicais.

Do meu ponto de vista como pesquisadora, isso nos aproxima da concepção de

aprendizagem como ação inventiva, pois

a aprendizagem é sobretudo [...] experiência de problematização. A experiência de problematização distingue-se da experiência de recognição. A experiência de recognição envolve uma síntese convergente entre as faculdades. [...] Ao contrário, na experiência de problematização as faculdades – sensibilidade, memória, imaginação – atuam de modo divergente. Por exemplo, quando alguém viaja a um país estrangeiro, as atividades mais cotidianas, como abrir uma torneira para lavar as mãos, tomar um café ou chegar a um destino desejado, tornam-se problemáticas (KASTRUP, 2001, p. 1).

Debruçando-nos sobre os dados produzidos, serão destacados aqueles que podem

ser considerados peças-chave para a reflexão sobre o que pode ser uma

aprendizagem inventiva musical, considerando o âmbito do fazer pianístico. São

eles: 1) a condição da aula como espaço-tempo de se tornar sensível aos códigos e

signos das diferentes matérias sonoras; 2) o despertamento para a possibilidade de

criar sonoridades; 3) a abertura a um novo conceito de ser aluno(a) e de ser

professor(a), entendidos como seres de potência e de desejo, escapando à

representação de papeis; 4) a configuração da aprendizagem pianística como ação

exigente e ao mesmo tempo prazerosa; 5) o desvio da noção de sujeito entendido

como “culto ao eu”, abrindo-se ao plano das relações, na produção de

subjetividades; 6) o entendimento do fazer musical como produção de vida, e não

como ação redundante.

Tratando do primeiro aspecto – a aula de música como espaço-tempo para se

tornar sensível aos signos sonoros –, vemos claramente a concepção deleuziana

de que o ato de aprender é ser sensível às matérias, exigindo as condições

ambientais para que isso ocorra, pois “[...] a aprendizagem inventiva não é

espontânea [...]” (KASTRUP, 2001, p. 23). Disso se depreende que uma aula

visando ao desenvolvimento da capacidade de expressão exige a elaboração de

diferentes atividades que propiciem pensar por afectos e percetos, movendo o

pensamento em sua articulação com as sensações e percepções. Nesse sentido,

uma aula precisa, necessariamente, oferecer as condições para que essa

experiência ocorra, pois

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o hábito é condição da experiência, mas esta [sic] condição é, ela própria, condicionada pela realização, pelos seus produtos, num movimento de retroação inventiva. Condição processual, e não invariante, condição concreta, e não abstrata; enfim, condição que é condicionada (KASTRUP, 2001, p. 19).

Tais condições não são históricas, mas referem-se ao processo de aprendizagem

como ação em devir, e não como aquisição de conteúdos programáticos, pois as

formas de conteúdo não são separadas das formas de expressão. Ou seja, o

desenvolvimento da capacidade expressiva exige a experiência, visto que não há

“[...] um vínculo a priori [...] entre a Sentença e a Figura, entre a forma de expressão

e a forma de conteúdo [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 60). Dessa maneira,

“[...] assiste-se a uma transformação das substâncias e a uma dissolução das

formas, [...] em benefício das forças fluidas, dos fluxos, do ar, da luz [...]. Potência

incorpórea dessa matéria intensa” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 60).

A contextualização do ambiente de aprendizagem passa, inevitavelmente, pela

questão do tempo e, a esse respeito, compartilhamos da visão de que “[...] não

basta o decorrer do tempo cronológico [...]” (KASTRUP, 2001, p. 22) para tornar a

matéria sonora expressiva. Ou seja, é também condição contextual de

aprendizagem que o tempo cronológico esteja em conexão com um tempo inventivo,

a mútua interferência entre Cronos e Aion.

O sentido desse tempo inventivo não é, como dito anteriormente, da ordem de um

espontaneísmo, mas designa, “[...] de modo inelutável, um trabalho, uma série de

experiências [...]” (KASTRUP, 2001, p. 24), como maneira de desenvolver uma “[...]

competência [...] fina e contextualizada [...]” (KASTRUP, 2001, p. 22). Nessa ótica,

vemos que é necessário experienciar, pois, repetindo, “[...] nenhuma criação existe

sem experiência [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 152). Tempo inventivo,

assim, que comporta tanto uma assiduidade quanto uma dissolução das formas,

pois “[...] o artista acrescenta sempre novas variedades ao mundo [...]” (DELEUZE;

GUATTARI, 2010, p. 207).

O segundo aspecto, despertamento para a possibilidade de criar sonoridades,

por sua vez, estabelece ressonância com a ideia deleuziana a respeito da

performatividade da linguagem, assim como com os conceitos de espaço liso e

estriado. No caso da performatividade da linguagem, vemos que as formas de

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expressão e de conteúdo carreiam sentidos, palavras de ordem, possuindo uma

dupla natureza: uma relacionada à morte, de petição de obediência – não faça, não

crie; a outra vinculada à vida, potência criativa. Assim, nossas ações cotidianas são

permeadas por orientações implícitas nos enunciados: “[...] existem senhas sob as

palavras [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 62).

Tomando a aula padrão como ponto de análise, vemos que as ações que lhe dão

forma encontram-se já automatizadas: como máquinas abstratas, “[...] procedem por

redundância [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 17), carreando palavras de

ordem que norteiam o que é esperado que se faça ou não se faça nesse espaço-

tempo. Via de regra, não se experiencia, não se trocam percepções. Nesse sentido,

podemos dizer que é um padrão de aula que compõe um espaço mais estriado que

liso; espaço-tempo “[...] definido pela [...] constância da orientação, invariância da

distância por troca de referenciais de inércia, [...] constituição de uma perspectiva

central” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 219). É uma aula ritornelo, porém, de

baixo índice de desterritorialização.

Vemos, igualmente, que as lógicas que regem as macroformas pedagógicas

encontram-se impregnadas em nós, como que difusas em “[...] uma rede [...] de

dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os hábitos e as

práticas produtivas, levando-nos à constatação de que “[...] o mando é cada vez

mais interiorizado [...]” (CARVALHO, 2014, p. 73). É por essa via que vemos o papel

fundamental da educação, circunscrevendo um espaço para se pensar a respeito

dos dispositivos que compõem as formas educativas, propiciando sentidos ao fazer

musical na infância e na adolescência.

É nesse movimento de pensar a educação – que educação estou fazendo? – que

vamos abrindo as linhas inventivas, os traçados de sentidos e forças criativas,

moldando novos processos e novos fluxos. É contemplando o hábito que abrimos o

tempo da criação, pois “[...] contemplar é questionar [...]” (DELEUZE, 2006, p. 83).

Assim, a desmontagem da aula padrão a partir da organização de oficinas

diversificadas e também de modificações nas atividades individuais inaugurou

sentidos diferentes às aulas, compondo novas coordenadas semióticas no campo

em questão. Desse modo, compartilhamos do pensamento deleuziano de que é

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preciso abrir linhas educativas moleculares cujas palavras sejam de passagem,

rastreando atos e palavras que sejam pulsões de vida, e não de redundância: “[...] é

preciso extrair uma da outra – transformar as composições de ordem em

componentes de passagens. [...] as palavras [...] seriam como que passagens,

componentes de passagem” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 62).

Nessa perspectiva, a aprendizagem inventiva busca orientar-se por palavras de vida,

cuja “[...] palavra de ordem [...] deve responder à resposta de morte, não fugindo,

mas fazendo com que a fuga aja e crie” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 62), uma

criação que se dê em consonância com as formas de expressão e de conteúdo,

fazendo mover os afectos da música. Aqui, ressaltamos a correspondência com o

pensamento de Deleuze e Guattari (2014, p. 153): “[...] é a expressão que adianta ou

avança, é ela que precede os conteúdos”, ou, ainda, “[...] a expressão nos dá o

procedimento [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 35).

Por esse ângulo, uma aula inventiva configura-se como dispositivo que abre as

possibilidades de articulação entre pensamento-sentimento-ação, escapando de um

fazer musical meramente por repetição, reprodução do Mesmo. Vemos, assim, que o

continuum de variação formando territórios trouxe implícita e explicitamente palavras

de ordem vinculadas à vida, impulsionando os alunos a criar maneiras próprias de

“fazer soar a música”, tornando sonoras as forças insonoras. Desse modo, há uma

mútua influência entre os meios e os fins, as sonoridades e as circunstâncias, em

um movimento no qual “[...] o interior e o exterior entram em relação de troca”

(DELEUZE; GUATTARI, 2014a, p. 83), constituindo agenciamentos mais nômades.

No que diz respeito à abertura a um novo conceito de ser aluno(a) e de ser

professor(a), a produção desse dado está relacionada à alteração nessas duas

funções, deixando de ser uma representação de papéis. Desse modo, as atividades

vivenciadas no campo constituíram-se agenciamentos, configurando-se como

espaço-tempo que deseja que o(a) aluno(a) deseje saber. De acordo com Kastrup

(2001), a aprendizagem inventiva convoca agenciamentos: maquínicos, de

conexões e entrelaçamentos entre corpos materiais e imateriais, sejam partituras,

seja o instrumento musical, sejam os sons, sejam as ambiências, e coletivos,

agregando e fazendo transitar ideias, perguntas, afetos, percepções. Por isso,

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durante a experiência com o(a)s aluno(a)s, habitamos um território, não apenas

estivemos nele.

Um agenciamento é sempre o desejo em ação, a pulsão de criação em movimento,

arregimentando os meios, as transformações corpóreas e incorpóreas. Nesse

sentido, todo agenciamento “[...] é a dupla articulação rosto-mão, gesto-fala, e a

pressuposição recíproca entre ambos” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 233).

Vemos que, em uma perspectiva inventiva, aluno(a) e professor(a) criam suas

formas de expressão e de conteúdo em um processo de desterritorialização e

inauguração de novos territórios, não fixando um rosto, um gesto ou fala. Por essa

via, sentimos ressonância com o entendimento de que “[...] cada agenciamento

professor-aluno é um ponto de bifurcação, de proliferação de possíveis14, de

multiplicação de fontes” (KASTRUP, 2001, p. 26).

Em se tratando especificamente do(a) professor(a), a inventividade aponta para seu

papel de atrator(a), não se situando no centro do processo nem mesmo transmitindo

informações. Do ponto de vista da problematização, o(a) professor(a) é aquele(a)

que “[...] faz circular afetos [...]” (KASTRUP, 2001, p. 25) e alimenta sua condição de

aprendiz. Assim, uma política da invenção implica um desligamento das máquinas

abstratas que sobrecodificam o rosto e a linguagem – rosto de aluno, rosto de

professor; linguagem e rosto de aluno –, entendendo-se que, “[...] se o rosto é uma

política, desfazer o rosto também o é, engajando devires reais [...]. Desfazer o rosto

é o mesmo que atravessar o muro do significante, sair do buraco negro da

subjetividade” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 64).

Dessa maneira, o modelo de aula de piano historicamente instituído, situado no

âmbito das macroformas educativas, tem em seus fundamentos uma visão de

educação que se orienta de acordo com a lógica comportamental, baseada nos

procedimentos da ciência moderna, conforme observa Kastrup (2001), ao assinalar

a influência desse sistema cultural nos estudos sobre a aprendizagem no âmbito da

história da psicologia, entendendo que, com ele, o “[...] processo de aprender

encontra-se submetido a leis científicas [cujos] resultados são passíveis de previsão.

14

Em consonância com Deleuze e Guattari, ao fazer menção aos “possíveis”, a autora não se refere ao devir, especificamente, mas a algo que se aproxima da ideia de devir, àquilo que é aberto a possibilidades. Deleuze (2006), inclusive, diferencia os termos devir e possível.

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[...] Neste [sic] campo, a aprendizagem encontra-se dissociada da invenção”

(KASTRUP, 2001, p. 18).

Nesse modo de aprender postulado pelo método da ciência moderna, vemos um

conjunto de conceitos articulados, formando um sistema educacional que engloba

uma concepção de professor(a), de aluno(a) e uma forma de conhecer na qual o

objeto – no caso, a música – é algo separado de ambo(a)s, situando-se em um

campo transcendente, desconectado dos sujeitos e dos contextos. Nesse caso, não

há um encontro de subjetividades com os signos e os códigos que constituem os

diferentes universos musicais, alocando o ato de aprender como uma ação de

estímulo-resposta, uma experiência de recognição. Isto é, não há relação

intersubjetiva em movimento de ação-contemplação.

A respeito do quarto aspecto, a saber, a aprendizagem pianística como ação

exigente, e, ao mesmo tempo, prazerosa, temos, aí, duas questões: uma que se

refere à noção de que “[...] a aprendizagem inventiva é crítica, no sentido de que

concerne aos limites e envolve sua transposição, impedindo o sujeito de continuar

sendo o mesmo” (KASTRUP, 2001, p. 24), enquanto a outra aponta para as

singularidades da faixa etária a que se propõe a investigação aqui relatada.

No tocante à aprendizagem exigente, essa questão está relacionada à premissa de

que a aprendizagem musical requer “[...] um mergulho no mundo da matéria [...]”

(KASTRUP, 2001, p. 24), a fim de desenvolver as habilidades e as competências

específicas para tornar sonoras as forças insonoras. Esse mergulho não é exigido

de fora, mas nasce do próprio contágio com os signos, mediante o contexto

apropriado. Assim, o espaço problematizador na educação musical inventiva

pressupõe o trânsito entre as coordenadas semióticas do território sonoro,

registrando “[...] um certo ethos, uma atitude. Essa atitude consiste em [...] manter

ou perpetuar sua força e sua exigência de decifração [...]” (KASTRUP, 2001, p. 24).

Dessa maneira, podemos estabelecer aqui uma diferenciação entre disciplina e

controle: a aprendizagem inventiva relativiza os procedimentos de disciplinarização

da aula padrão, pois, no bojo de sua constituição, essa aula agrega um sistema de

controle e avaliação das respostas aos estímulos dados: “[...] o controle busca impor

regras de ação a partir do exterior: controle do tempo, sistema de recompensas e

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punições, protocolos de avaliação e outras estratégias” (KASTRUP, 2001, p. 23).

Nessa via, o que seria um trabalho de disciplina consciente torna-se a verificação de

uma aprendizagem mecânica. No entanto, lembra Kastrup (2001, p. 23), “[...] atribuir

a disciplina apenas à aprendizagem mecânica é por certo confundir a noção de

disciplina com a de controle”.

Em contraponto ao controle, a educação como processo problematizador tem seu

acento em uma competência ética que implica uma atitude de comprometimento de

si com a diversidade de mundos. Relativamente a esse posicionamento, subjaz a

ideia de que “[...] tal ética implica na [sic] adoção de um ponto de vista pluricêntrico

[...], que não deve ser confundida com uma posição relativista, que ronda as

abordagens construtivistas” (KASTRUP, 2008, p. 128).

No que concerne à faixa etária dos alunos, podemos considerar esse um fator

determinante do modo pelo qual uma aula deve se desenvolver. Assim, um processo

problematizador inclui a observância à faixa etária, considerando-se o contexto em

que ela é vivenciada. Kastrup (2000, p. 373) tece críticas importantes às teorias da

cognição que traçam uma progressão da forma de conhecimento da criança para a

forma de conhecimento do adulto, pois elas tomam “[...] o homem adulto como ponto

de chegada e termo eminente da série de transformações que têm lugar na cognição

da criança [...]”. A série de transformações previstas estabelece como parâmetro de

avaliação aquilo que falta à criança, comparando-a ao modo adulto de conhecer,

fazendo com que a cognição na infância seja “[...] assombrada pela ideia do déficit.

Pergunta-se, então, o que falta à cognição da criança para chegar à cognição do

adulto” (KASTRUP, 2000, p. 373).

Nesse modo de pensar, a cognição estará vinculada a uma abordagem epistêmica,

avaliando o desenvolvimento a partir de categorias lógico-formais de

desenvolvimento do adulto – que, para a criança, têm um caráter negativo: “[...]

ausência de função simbólica, irreversibilidade das formas, inteligência pré-

operatória, pré-lógica etc. [...]” (KASTRUP, 2000, p. 374). Essa ótica é marcada pela

ideia de desenvolvimento como superação de deficiências, progredindo em direção

ao modo de conhecer tal como um cientista. Assim, a pergunta que move as

escolhas pedagógicas na perspectiva comportamental é: “o que falta à criança para

pensar como um cientista?” (KASTRUP, 2000, p. 374). Transpondo essa crítica

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para nosso campo de investigação, podemos observar princípio semelhante

no que diz respeito ao norteamento da aprendizagem pianística de caráter

tecnicista: o que falta à criança e ao adolescente para tocar como um

concertista?

De acordo com Kastrup (2000), essa abordagem apresenta dois problemas no

tocante à aprendizagem na infância: o primeiro consiste no fato de que “[...] a

questão da subjetividade fica definida no âmbito do sujeito epistêmico, e não da

singularidade” (KASTRUP, 2000, p. 374); o segundo ponto refere-se ao pressuposto

de que o aspecto sensório-motor deve ser superado, sinalizando, assim, uma

progressão no desenvolvimento. Como contraponto a tais pressupostos, a autora

afirma que a corporificação do conhecimento não é uma etapa a ser ultrapassada,

sendo condição mesma de uma aprendizagem inventiva.

A partir dessas considerações, podemos perceber a sintonia da investigação

relatada nesta tese com o pensamento em Deleuze e Guattari a respeito da criança,

afirmando sua frutífera coexistência em nós: “„uma‟ criança coexiste conosco, numa

zona de vizinhança ou num bloco devir, numa linha de desterritorialização que

arrasta a ambos – contrariamente à criança que fomos” [...] (DELEUZE; GUATTARI,

2012b, p. 97). Essa assertiva remete-nos à concepção de tempo deleuziana, na qual

“[...] o passado, o presente e o futuro não se sucedem, não se perdem, mas

subsistem como coexistência virtual” (KASTRUP, 2000, p. 375).

Em se tratando dos processos cognitivos, essa concepção incide no entendimento

de que há sempre formas em estados nascentes, cujo “[...] processo é a atualização

[...]” (DELEUZE, 2006, p. 201). Assim, há blocos de infância que funcionam a partir

da diferença:

[...] o bloco de infância [...] é a única e verdadeira vida da criança; ele é desterritorializante; desloca-se no tempo, com o tempo, para reativar o desejo e fazer suas conexões proliferarem; ele é intensivo, e mesmo nas baixas intensidades, relança delas uma alta (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 140).

Com relação ao campo da aprendizagem pianística, verificamos essa atenção à

faixa etária na observação de que “[...] a excelência na performance musical deve

assentar-se em duas grandes dimensões, a técnica e a expressiva [...]” (SLOBODA;

DAVIDSON, 1996, p. 172), sublinhando, porém, a necessidade de se assegurar o

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prazer no fazer musical de crianças e adolescentes. Além disso, Kastrup (2000) trata

das transformações referentes às formas de viver da criança na atualidade,

mencionando as agendas cheias de compromissos, os atos de violência praticados

por crianças etc., salientando a necessária busca pela infância na atualidade, no

sentido de se evitar uma identificação universal de criança, bem como uma

naturalização de sua constituição:

procurando identificar onde está a criança contemporânea, vemos que ela se mantém viva no devir-criança. Encontramo-la na criança sem-terra, nos meninos de rua, na criança super-protegida pela babá eletrônica, ou pela parafernália tecnológica. Em resumo, o conceito de devir-criança evita a miopia causada pelo pressuposto da identidade e a nostalgia de uma infância naturalizada (KASTRUP, 2000, p. 382).

Assim, para além das agendas cheias e parafernálias tecnológicas, há que se trazer

a infância e a adolescência para as aulas de piano, abarcando suas singularidades,

interesses e gostos musicais. Dessa maneira, é possível abrir-se a um processo

educativo com diferentes formas de produção do conhecimento, mais afeitas à faixa

etária com a qual se trabalha. Nesse sentido, é pertinente inspirarmo-nos em pontos

de vista próprios à educação musical, que, ainda que em contextos diferentes, como

a organização não governamental em que trabalhou Kleber (2006, p. 305-306), têm

o mesmo propósito de promover o desenvolvimento da expressão na arte dos sons,

fazendo-nos ver que

as implicações para o campo da educação musical incidem em uma visão que [reconhece] que a produção de conhecimento pedagógico-musical deve considerar o múltiplo contexto da realidade social, dissolvendo categorias hierárquicas de valores culturais. Para tanto, é preciso refletir sobre as categorias dominantes de mérito artístico e pedagógico, questionando, problematizando, borrando os limites das estruturas de avaliação e julgamento de práticas musicais. Faz-se necessário também, reexaminar as relações entre o conhecimento da cultura popular e o conhecimento estabelecido pela academia, como já tem sido proposto pela área de educação musical.

Nesse sentido, verificamos que os alunos de piano do Curso de Musicalização

Infantil da Fames vivenciam a musicalidade em outros ambientes que não a

instituição, trazendo em sua bagagem experiências e gostos por gêneros musicais

não eruditos. Porém, tais interesses não são considerados, tendo o repertório se

fixado em uma perspectiva unicamente erudita.

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Passando ao quinto aspecto, a fuga da noção de sujeito como “culto ao eu”,

vemos nesse dado a concepção de subjetividade em Deleuze (1953), entendendo-a

como instância em construção permanente, e não como algo preexistente às

circunstâncias; da mesma forma, a circunstância não é independente àquela. Ambas

as instâncias se determinam em uma atividade de cocriação permanente:

[...] mas, pelo menos, já podemos pressentir como se manifestará essa unidade no sujeito: se a relação não se separa das circunstâncias, se o sujeito não pode separar-se de um conteúdo singular que lhe é estritamente essencial, é porque, em sua essência, a subjetividade é prática. É nos vínculos do motivo e da ação, do meio e do fim, que se revelará sua unidade definitiva, isto é, a unidade das próprias relações e das circunstâncias: com efeito, esses vínculos meio-fim, motivo-ações, são relações, mas outra coisa também. Que não haja e não possa haver subjetividade teórica vem a ser a proposição fundamental do empirismo. E, olhando bem, isso é tão-só uma outra maneira de dizer: o sujeito se constitui no dado. Se o sujeito se constitui no dado, somente há, com efeito, sujeito prático (DELEUZE, 1953, p. 98).

Nessa via, verificamos que o pensamento deleuziano não se instala em uma

perspectiva subjetivista nem tampouco em uma tendência objetivista a respeito do

ser humano e suas relações com a produção do conhecimento: “a abordagem

deleuziana realiza a crítica ao subjetivismo e ao culto ao eu, bem como a crítica ao

objetivismo e ao ambientalismo [...]” (KASTRUP, 2001, p. 21). Dessa maneira, tal

abordagem inscreve uma linha para além, tanto das “[...] perspectivas subjetivantes

quanto àquelas que veem na aprendizagem um processo de assujeitamento a um

suposto mundo dado” (KASTRUP, 2001, p. 21).

Nessa perspectiva, a subjetividade não é algo pronto, mas está sempre em processo

de elaboração, situando-se como pré-individualidade, ou pré-subjetividade, “[...]

constituída de múltiplos vetores heterogêneos – dispositivos sociais, técnicos, físicos

e semiológicos –, a partir dos quais pode ganhar consistência um território

existencial” (KASTRUP, 2010, p. 96). Em termos educativos, essa ideia assinala que

a aprendizagem pressupõe um coengendramento, “[...] a invenção recíproca de si e

do mundo” (KASTRUP, 2001, p. 21). Tal visão toca de maneira muito pertinente a

questão de investigação sobre a qual este trabalho se debruçou, visto que a aula

padrão institui-se exatamente no primado ao indivíduo, concebido nos modos de

pensar bem como nos valores do século XIX. No campo da educação musical, essa

observação é tratada nos seguintes termos:

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a habilidade técnica levada ao máximo da capacidade humana e a performance artística baseada em critérios interpretativos de caráter marcadamente individual e subjetivo, espelhando duas facetas igualmente presentes no pensamento romântico: o individualismo exacerbado e o domínio técnico instrumental, o qual, por sua vez, contribui para a [...] exacerbação dos egos (FONTERRADA, 2005, p. 72).

Na mesma linha de pensamento, porém, no campo da performance instrumental,

Sloboda e Davidson (1996) frisam que esse campo tem sido fortemente marcado

pela figura do concertista virtuose, apoiando-se em uma concepção de educação

que não tem propiciado às crianças o espaço para a experiência estética. No mesmo

sentido, esses autores apontam, igualmente, para o problema do excesso de busca

de realização pelo virtuosismo e pela competição entre muitos alunos, que, estando

preocupados “[...] em ser „o melhor‟, quase menosprezam o ato de ouvir música por

prazer, entendendo essa atividade como „perda de tempo‟” (SLOBODA; DAVIDSON,

1996, p. 186).

Vemos, portanto, que a aprendizagem no modelo de aula instituído está vinculada à

ideia de se alcançar um alvo, um ponto fixo, eliminando exatamente aquilo que mais

importa na trajetória do aprender: a conjugação entre sujeito e signo, que é uma

relação íntima e problematizadora. Tal prática educativa apoia-se em uma

concepção adaptacionista e comportamental da psicologia, a qual reduziu o ato de

aprender “[...] a um processo de solução de problemas [...]” (KASTRUP, 2001, p.

19). Essa concepção do aprender “[...] não leva em consideração, em suas

formulações teóricas, a distinção deleuziana [...] entre as representações e os

signos” (KASTRUP, 2001, p. 23).

Ou seja, essa perspectiva comportamental elimina a condição si ne qua non da

aprendizagem, que é a instauração de um plano de produção de subjetividades

mediado pela experiência de elaboração da matéria sonora, na qual o aprendiz entra

em contato com coordenadas semióticas em um campo perceptivo determinado.

Ignorada essa produção de subjetividade, a aprendizagem passa a ser entendida

como repetição de movimentos, sendo, portanto, “[...] movimento reflexo, quando

sou compelido a me mover. [...] trata-se de movimento compulsivo e mecânico, [...]

de escravidão do músculo ao estímulo [...]” (KASTRUP, 2001, p. 23).

Isso nos remete a outro dado produzido neste estudo, que é a compreensão do

fazer musical como produção de vida, e não como uma representação.

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Observamos esse aspecto na relação com a prática de imprimir à aprendizagem

musical – no âmbito da formação erudita – o alcance de uma meta, desligando-se

dos sentidos de vida, que se encontram agregados a essa atividade. Podemos dizer

que alunos e professores incorporaram a lógica dominante, perseguindo metas a

serem alcançadas, em uma escalada de competição. Nessa perspectiva, não ocorre

o tempo inventivo propiciador do contágio com as formas de conteúdo e as formas

de expressão, com os signos musicais. Assim, a função do estético se perde ou

passa a um plano de menor importância.

Relativamente a esse pensamento, Ray (2006, p. 50) observou que, “[...] no âmbito

da performance musical, a musicalidade não tem função quando não expressa [...]”.

A autora explica tal posicionamento enfatizando que “[...] é na articulação entre a

musicalidade e a expressividade que se encontra grande parte da essência da

performance musical” (RAY, 2006, p. 50). Assim, os esforços são orientados para

vivenciar a problematização que os signos e códigos musicais impõem, e não para

simplesmente cumprir o conteúdo programático: “[...] a sensação composta, feita de

afectos e perceptos, desterritorializa o sistema de opinião que reunia as percepções

e afecções dominantes num meio natural, histórico e social” (DELEUZE; GUATTARI,

2010, p. 232).

Transpondo-nos para o campo da educação musical, Fonterrada (2005, p. 106)

lembra que a arte musical e a vida comungam de um mesmo espaço, visão da qual

compartilho:

o mais significativo na educação musical é que ela pode ser o espaço de inserção da arte na vida do ser humano, dando-lhe possibilidade de atingir outras dimensões de si mesmo e de ampliar e aprofundar seus modos de relação consigo próprio, com o outro e com o mundo. Essa é a real função da arte e deveria estar na base de toda proposta de educação musical.

Assim, fazer música não é se preparar para um processo seletivo – isso pode ser a

consequência do processo; é preciso descolar, desmontar essa palavra de ordem.

Fazer música é expressar afectos e perceptos dentro da lógica das sensações.

Portanto, uma aula não pode estar relacionada à finalidade última de preparação

para um processo seletivo, mas precisa, necessariamente, estar intimamente

vinculada ao desenvolvimento das formas expressivas musicais, pois “[...] a arte

nunca é um fim, é [...] um instrumento para traçar linhas de vida” (DELEUZE;

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GUATTARI, 2012a, p. 63). Essa afirmação estabelece ressonância com a premissa

de que o conhecer é uma “ação efetiva, ação que [permite] a um ser vivo continuar

sua existência em um determinado meio ao fazer surgir o seu mundo. Nem mais,

nem menos” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 36, grifo dos autores).

Em termos de arte, não se tem uma meta; “[...] não se trata de ter na arte, ou numa

certa obra de arte, um alvo, um ponto fixo a ser atingido, e que orientaria o processo

do aprender [...]” (KASTRUP, 2001, p. 19). Arte é linguagem tornada intensiva e

aprendê-la é um processo que “[...] diz respeito essencialmente aos signos [...]”

(DELEUZE, 2003, p. 4), demandando um tempo inventivo, “[...] um tempo que

redescobrimos no âmago do tempo perdido e que nos revela a imagem da

eternidade: verdadeira eternidade que se afirma na arte” (DELEUZE, 2003, p. 16).

Vemos, no conjunto dos estudos, que a aula padrão tem se desenvolvido em um

movimento de redundância, sem questionar suas bases e seus processos, em um

modelo de aula padrão concertista, marcado pelo virtuosismo, voltado para o

sucesso individual. Desse modo, reforçamos nossa tese de que é necessário que a

aprendizagem de piano se descole desse modelo para inserir-se no campo da

educação musical, constituindo um espaço-tempo que respeita o ser criança ou

adolescente em suas características.

Vemos, ainda, que os pressupostos que subjazem ao modelo de aula atualmente

praticado encontram-se alicerçados nos princípios da psicologia comportamental e

do método da ciência moderna, calcado na formação de um sujeito epistêmico, e

não singular. Nessa perspectiva, a aula padrão encontra-se alinhada às

macroformas educativas, que, como ritornelo, reproduzem uma ideia padronizada de

aprender, colocando como meta a ser alcançada uma sonoridade abstrata, que se

situa fora da vivência do(a) aluno(a).

Identificamos aqui o cerne de nossa tese, a saber, que a temática da expressão

musical não se situa à margem das formas instituídas socialmente, sendo forjada no

cruzamento das linhas e dos espaços que compõem as relações e as formas de

pensamento, incluindo-se aí as concepções de educação e de música, assim como

os valores que se encontram agregados a esses campos do conhecimento. Nesse

sentido, o desenvolvimento da capacidade de expressão musical não é imune às

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linhas de segmentação que perpassam as posturas, as rostidades, as concepções

sobre aprendizagem e arte, a relação professor(a)-aluno(a), podendo ou não

produzir o seu desenvolvimento.

Ou seja, em um conjunto, vemos que a aula padrão, baseada na busca por

reproduzir as sonoridades de concertistas, acaba por seguir a direção exatamente

oposta ao desenvolvimento da capacidade expressiva dos alunos, pois tais

sonoridades não correspondem aos seus modos próprios de sentir, suas percepções

de mundo, constituindo-se uma abstração situada fora de suas realidades. Surge,

portanto, um paradoxo: como pode a arte esvaziar-se da própria arte?

Deleuze e Guattari tiveram no fazer artístico a perspectiva para a elaboração de seu

pensamento, tendo como principal vetor a ideia de que “[...] o aprendizado temporal

converge para a arte: os signos da arte possuem uma superioridade em relação aos

demais [...]” (KASTRUP, 2001, p. 21). No entanto, vemos a própria arte

desimcumbir-se de si mesma, esquecendo-se de seus signos, adentrando um

caminho de adestramento e redundância, o que nos leva a deambular na ideia

deleuziana, enxergando na filosofia um plano de imanência para se pensar a própria

arte e sua aprendizagem. Seria o caso de sugerir, então, não uma convergência à

arte, mas uma mútua interferência em igualdade axiológica entre a arte e a filosofia,

cujos movimentos convergem a um devir, lugar das pré-individualidades e das

formas nascentes. Nesse prisma, o conceito de fabulação torna-se vetor filosófico de

pensamento e ação, lembrando à arte quem ela é, sua diferença e sua potência.

Exatamente nesse ângulo, entendemos que uma aprendizagem musical inventiva é

fabulação, uma sonorofabulação: música é fabulação, é espaço-tempo de potência

de afirmar e de afirmar a potência de criar, momento que pode ser a cesura no

tempo, o momento para além das diferenças e repetições do Mesmo. A música e,

portanto, a sua aprendizagem, é processo que excede as percepções e afecções do

vivido, sendo, por isso, fabulação, uma fabulação criadora, pois

[...] aquilo que faz com que o músico descubra os pássaros o faz também descobrir o elementar e o cósmico. [...] A música envia fluxos moleculares. [...] a questão da música é de uma potência de desterritorialização que atravessa a Natureza, os animais, os elementos e os desertos não menos do que o homem (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 118-119).

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Por essa trajetória, abrimo-nos precisamente ao eterno retorno como potência de

afirmar tudo aquilo que é dissimilar, múltiplo e acaso, pois “[...] o eterno retorno

existe somente para o terceiro tempo: o tempo do drama, após o cômico, após o

trágico [...]” (DELEUZE, 2006, 410). Assim, “[...] é neste plano que a aprendizagem

inventiva tem lugar [...]” (KASTRUP, 2001, p. 23), uma aprendizagem inventiva

musical. Estando no terreno da educação musical, a aprendizagem pianística abre-

se a uma perspectiva em que aprendizes e mestres entram em sintonia com a

matéria sonora, vivenciando um processo de corporificação de seus modos de

funcionamento, tornando-se sensíveis aos seus signos e códigos, em um plano de

produção de subjetividades. Assim, a aprendizagem pianística inventiva configura-se

como ação-contemplação que é desenvolvida por meio de uma escuta crítica, pela

qual o(a) aprendiz procura se ouvir, ouvindo as sonoridades que está produzindo,

verificando se essas sonoridades correspondem à ambiência desejada, enquanto

o(a) professor(a), por sua vez, não esquece “[...] sua condição de aprendiz, o que é

uma condição de política cognitiva” (KASTRUP, 2001, p. 25).

Assim, uma aula na perspectiva da sonorofabulação é território que se

desterritorializa e torna a se territorializar, escapando das forças que nos

despotencializam, das posturas rígidas que muitas vezes assombram professore(a)s

e aluno(a)s. Tornamo-nos rígidos quando nos fixamos somente na execução correta

das notas – embora elas sejam importantes – e na posição das mãos, esquecendo-

nos de que o(a) aluno(a) é um todo, quando não abarcamos o(a)s aluno(a)s em

suas dimensões criativas, sociais e afetivas, apagando as linhas de criação, nas

quais poderiam surgir – na repetição –, a diferença, em um fraseado, ou em um

crescendo, ou staccato. Seguimos as linhas molares quando não valorizamos os

afetos e perceptos do(a)s aluno(a)s, refreando as possibilidades de ir ao encontro de

seus gestos e gostos musicais, bem como quando cedemos ao percurso prescrito

pelos modelos cristalizados, territorializados – os ritornelos –, ou quando não

buscamos a sustentação dos gestos mais espontâneos de nós mesmo(a)s,

professore(a)s, e de nosso(a)s aluno(a)s.

Por esse prisma, a sonorofabulação não é um conceito fixo, rígido, devendo ser visto

como um veículo que nos situa nas aulas de forma diferente em relação a cada

aluno(a), em momentos e contextos diversificados. Dessa maneira, é um conceito

em permanente desterritorialização e reterritorialização, constituindo e sendo

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constituído por territórios diferentes, e, no caso de um(a) mesmo(a) aluno(a), que

nos lembremos de que seu próprio território intelectual-emocional-afetivo segue em

desterritorializações.

Essa aula possível desenquadra as formatações burocratizadas de aula, achando

uma linha de fuga que movimenta as ideias, o corpo, a capacidade de sentir e de

criar; é um conceito que traz agregado a si a sugestão de desterritorializar em nós

as forças da rigidez e da inércia, pois, nesse movimento, “[...] a música submete o

ritornelo [...], ela o arranca de sua territorialidade. A música é operação ativa,

criadora, que consiste em desterritorializar o ritornelo” (DELEUZE, 2012b, p. 106).

A alegria da música é essa possibilidade de criar afetos, ambiências. Podemos

afirmar que fazer música é, de certa forma, ser sonoplasta de um teatro invisível, e o

músico, um “[...] mostrador de afectos, inventor de afectos, criador de afectos, em

relação com os perceptos ou as visões que nos dá. Não é somente em sua obra que

ele os cria, ele os dá para nós e nos faz [transformarmo-nos] com eles [...]”

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 207).

Essa plasticidade sonora exige a coexistência de Aion flutuante que movimenta

Cronos, abrindo a nós o campo das virtualidades expressivas musicais. Nessa

perspectiva, dobramos o tempo da aula: não mais somente Cronos, mas Cronos-

Aion, desmolarizando os processos educativos em uma aula de piano,

desmolarizando-nos. Assim, fomentamos o desejo de escapar às linhas

costumeiras.

Nesse sentido, uma aula musical inventiva rege-se tanto pela exigência quanto pelo

mergulho, conjugando os jeitos de ser e de aprender do(a)s aluno(a)s. Transitamos,

assim, entre espaços lisos e estriados, velocidades e lentidões, com abertura às

linhas moleculares, linhas de fuga que nos levam às criações, e também aos

esforços e desafios: “[...] jamais acreditar que um espaço liso basta para nos salvar”

(DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 228).

Por essa via, é preciso retomar aqui os elementos da fabulação deleuziana,

considerando-a como dispositivo que provocou o “[...] movimento de

desterritorialização na expressão [...], a desterritorialização da língua, a ligação do

individual no imediato-político, constituindo agenciamentos coletivos e maquínicos

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de enunciação” (DELEUZE; GUATTARI, 2014b, p. 39), sendo, portanto, sonoridades

que “[...] desenham um território [...] a marca constituinte de um domínio [...]”

(DELEUZE, 2012b, p. 130).

Essa ligação do individual no imediato-político não se relaciona de modo algum a

questões ideológicas, pois “[...] é determinada a satisfazer as condições de uma

enunciação coletiva que falta [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 37). São as

crianças – como povo que falta – que tocam, a partir de suas próprias línguas, de

seu modo de sentir, suas vivências, relativizando as sonoridades estabelecidas e

oficializadas. Por esse prisma, podemos considerar o(a)s aluno(a)s como atletas

sonoros, “[...] um atletismo que não é orgânico ou muscular, mas um atletismo

afetivo [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 204).

Dessa maneira, a busca é por trilhar as linhas moleculares, movimentando as pautas

escolares, o tempo e os ritmos, gerando maior alegria e expressividade no processo

educativo pianístico, no qual o corpo é territorializado e desterritorializado pelo som,

pelas diferentes afectos e perceptos que compõem cada música. O som, na obra

musical, segue em contínua territorialização-desterritorialização-reterritorialização –

como experienciamos na peça Danse, de Debussy.

Em se tratando da questão técnica, consideramos fundamental nos orientarmos pela

premissa de que o objetivo do fazer musical é tornar a matéria expressiva, tomando

as formas de expressão e de conteúdo como elementos amalgamados, como corpos

relacionados, e não separados, pois “[...] nunca uma obra de arte é feita por técnica

ou pela técnica [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 227), isto é, “[...] a arte não

comporta outro plano diferente do da composição estética: o plano técnico, com

efeito, é necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composição

estética” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 231). É o aluno como um todo, isto é,

com seus afetos, experiência de mundo, maneiras de tocar, com o corpo que ele

possui, que produzirá o som, a partir de suas experiências sensória e perceptiva, por

despertamento, para sua realização, e não como palavras de ordem.

Um dos fatores determinantes na aglutinação entre os planos de composição técnico

e estético é a maneira pela qual tocamos o instrumento musical, o toque ou touché.

Podemos criar inúmeras texturas e sugerir sensações e movimentos por meio de

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diferentes toques: suaves, fortes, saltitantes, ligados etc., que seriam as inúmeras

pinceladas do pintor. Dessa maneira, manipulamos a matéria sonora imprimindo-lhe

aspectos diversos, sendo isso possível seguindo-se as orientações inscritas na

partitura, como verificamos nas peças de Debussy e Chopin. Os sinais p, pp, f, fff,

Szf, e os termos Apassionato, Allegro, Allegro ma non tropo, Adagio, cantábile e

smorzando15, entre outros, são todos indicações relativas à expressão musical e que

são realizadas por meio do toque. Portanto, a realização dos diferentes caráteres

das peças musicais precisa, necessariamente, estar relacionada à experiência do

executante-aprendiz.

Embalados em uma sonorofabulação, não nos movemos em função estrita do

cumprimento de programas, reprodução de esquemas ou alcance de metas. Mas, se

não temos metas a alcançar, o que temos? Temos desejo, vontade de potência...

Desejo de conversar com os afetos musicais, de confabular com eles e com o(a)s

aluno(a)s, criando atmosferas sonoras, tempos lisos e, às vezes, estriados, fá-

brincando blocos de afetos e sensações com os sons.

Uma sonorofabulação pode ser pensada, em parte, como um sistema entreaberto-

entrefechado, no qual a canção só ganha vida quando o instrumentista cria suas

sonoridades, quando algo brota de seus dedos, de sua voz, de sua mente, fazendo

surgir “[...] compostos bem mais livres e desenquadrados, quase agregados

incompletos, [...] em desequilíbrio permanente” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.

225).

Tais assertivas levam-nos ao encontro de uma aprendizagem que tem em seu bojo

possibilidade de emergência da subjetividade, cuja elaboração está intimamente

relacionada ao ato de criar, situando-se como condição fundamental que “[...]

responde pela criação do si [...]” (KASTRUP, 2001, p. 18). É por essa via que

podemos entender que a expressão musical inscreve sua interseção com o campo

da educação, abrindo uma linha de fazer sonoro que não é a repetição de modelos

nem mesmo uma petição de obediência ou palavra de ordem, mas que engendra a

formação de territórios a partir de expressividades elaboradas pelos sujeitos em sua

15

Alegro, Alegro ma non tropo, Adagio e Apassionato referem-se ao caráter dado pelo compositor à peça , enquanto cantábile (melodioso, como se fosse alguém cantando) e smorzando (morrendo, um som que vai diminuindo) sinalizam para técnicas das quais o executante lançará mão para alcançar o efeito por elas indicado. Por essa razão, aqui, esses termos aparecem com as iniciais minúsculas.

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existência coletiva, compondo um plano de produção de subjetividades “[...] em um

encontro de diferenças, num plano de diferenciação mútua [...]” (KASTRUP, 2001,

p. 20).

Em um conjunto, o processo investigativo conduz ao entendimento de que as aulas

de piano na infância e na adolescência têm um duplo compromisso: com a

performance e com a educação musical. No que tange à performance, vemos a

necessária aproximação do aprendiz com os afetos das composições, incidindo no

seu envolvimento como um todo: corpo, ideias, sensações. No tocante à educação

musical, sobressai-se como necessária a revisão dos meios e dos fins, bem como de

sua articulação com as linhas de vida que estão sendo produzidas no

entrelaçamento dos processos educativos.

Atualmente, observamos uma acessibilidade de meios para se aprender a tocar um

instrumento, transformando essa atividade em uma simples associação bionívoca

entre um código e um clique em um comando ou um ícone que aparece nas telas

dos dispositivos eletrônicos. Os usuários da internet dispõem de diversos tutoriais

que, por palavras de ordem, designam a correspondência exata entre o clique e

determinada figura musical, não levando o aprendiz à experiência estética. Surge,

aqui, a necessidade urgente de revisão da aprendizagem pianística – considerada

em seu âmbito de ensino público e de atendimento a um número muito significativo

de alunos –, passando a afirmar sua potência de existir como lugar de construção do

conhecimento, lugar de educação musical cujos objetivos se delineiam como

desenvolvimento da capacidade expressiva dos afectos e perceptos que compõem

os universos musicais.

A esse respeito, é pertinente pontuar que a produção do conhecimento em uma

perspectiva inventiva – nos campos filosófico, científico ou artístico – afasta-se das

proposições que buscam a prova da Verdade. Nesse caso, produzir conhecimento

envolve uma concepção do ato de pensar: “[...] pensamento é criação, não vontade

de verdade, [...]. Mas, se não há vontade de verdade, [...] é que o pensamento

constitui uma simples „possibilidade‟ de pensar [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.

67). De maneira semelhante, Maturana (2014, p. 33) vê a produção do

conhecimento como um processo em que as percepções e as ilusões são separadas

por uma linha tênue, relativizando o sentido da verdade, e, nesse sentido, afirma

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que, “[...] toda explicação é uma reformulação da experiência com elementos da

experiência [...]”. Esse ponto de vista aponta para um caminho no qual o

conhecimento não é propriedade de um determinado sujeito, colocando a verdade

entre-parênteses, para usar a expressão por ele cunhada: “[...] a verdade deixa de

ser um argumento que possa ser usado sem especificar suas condições de

constituição e validação, e o observador tem a possibilidade de abandonar a

pretensão de ser dono dela [sic] [...]” (MATURANA, 2014, p. 170).

Escola, portanto, é lugar de construção do conhecimento, demandando uma

aprendizagem inventiva capaz de mover a diferença no pensamento, levando

aprendizes e mestres musicais a pensar por afectos e perceptos e a refletir sobre

suas relações com as funções e os conceitos, pois o ato de fazer soar a música não

é uma operação mecânica: envolve um uso das emoções, das ideias, do corpo, dos

sentimentos, transversalizando o tempo, os conceitos e as relações.

Assim sendo, na experiência promovida na pesquisa relatada nesta tese, buscamos

escapar à redundância da aula padrão, repetida como palavra de ordem, indo ao

encontro de modalidades educativas que propiciassem ao(a)s aluno(a)s o contato

mais direto com a matéria sonora. Esse percurso pedagógico-musical levou-nos a

ensaiar diferentes interações com as coordenadas semióticas que delineiam os

territórios musicais, seus códigos e signos, independentemente da complexidade ou

simplicidade da composição. Disso subentende-se que onde houver uma criação

musical – composta até mesmo da repetição de uma mesma nota –, aí está um

campo semiótico.

Nesse sentido, essa interação com os signos musicais exigiu uma conexão maior

do(a)s aluno(a)s participantes da investigação para consigo mesmo(a)s, o que lhes

propiciou uma conjugação entre o instrumento musical, a matéria sonora e seus

corpos, desenvolvendo a escuta crítica interna e externa. Ou seja, aprenderam a ser

sensíveis aos signos e códigos que povoam os diferentes estilos musicais,

sensibilizando-se, portanto, às particularidades que caracterizam cada composição.

Todo(a)s o(a)s aluno(a)s, à sua maneira, criaram ressonâncias com as músicas

propostas nas partituras, envolvendo os sentidos corporais, suas ideias e emoções.

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Assim, compusemos territórios expressivos, movendo-nos no fluxo do emocionar e

do linguajar, proporcionando interações recorrentes entre elementos constitutivos da

experiência, e não “[...] como se a experiência fosse a experiência de algo que é

independente de nós [...]” (MATURANA, 2014, p. 43). Desse modo, buscamos a

produção de conhecimentos como agenciamentos coletivos e maquínicos, pois “[...]

a cognição é uma maquinação autopoiética, isto é, um ato de criação de uma

máquina que constitui tanto o polo objetivo quanto o subjetivo do fenômeno cognitivo

[...]” (PASSOS; EIRADO, 2014, p. 121).

Esse plano de visão remete-nos a outro platô, a saber, o de que todo ato

investigativo ou educacional exige de nós a consciência do que queremos e de que

nos tornamos responsáveis por aquilo que fazemos e escolhemos: “assim, uma vez

que nossas emoções especificam o domínio relacional no qual instamos a cada

instante, é nosso emocionar – e não nossa razão – que define o curso do nosso

viver individual, bem como o curso de nossa história cultural” (MATURANA, 2014, p.

206, grifo do autor).

Tais processos de escolha, de interação, que envolvem os caminhos explicativos

(entre-parênteses), impregnaram-se de uma linguagem viva, encarnada, falada,

vibrada e sentida como explicação do viver, em uma rede de afectos e perceptos

constituídos no e com o mundo. Percebemo-nos, portanto, no domínio das

interações recorrentes, propiciando reformulações da experiência, com elementos

da experiência, vivenciadas na linguagem, deslizando pelo e no emocionar.

Ainda deixando-nos guiar por Maturana (1997), movemo-nos no mundo, nas

relações, a partir de uma dinâmica de emoções, de uma afecção a outra,

entendendo que as emoções marcam nossas interações, podendo estas ser

recorrentes ou não. Nesse sentido, podemos afirmar que o encontro do(a) aluno(a),

do(a) professor(a) e da música pode propiciar uma disposição que desencadeia

transformações, abrindo espaço para uma sucessão de interações recorrentes,

também denominadas por Maturana (1997) como coordenações de coordenações

consensuais de conduta:

todo afazer humano se dá [...] como um fluir de coordenações consensuais de conduta [...] com o fluir emocional [...]. Por isso, os diferentes afazeres humanos se distinguem tanto pelo domínio experiencial em que ocorrem as ações que os constituem quanto pelo fluir emocional que envolvem, e de

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fato se dão na convivência como distintas redes de conversações (MATURANA, 1997, p. 175).

Por essa via, somos sujeitos em rede, operando como redes entrefechadas e

entreabertas de produções moleculares, em dinâmicas de estados e de estruturas

em constante reformulação. Como organismos vivos em movimentos congruentes

com o meio, deslizamos na vida, à deriva, no domínio das coordenações

consensuais de condutas de coordenações consensuais de condutas, nas quais se

dá constitui a linguagem. “[...] Essa circularidade, esse encadeamento entre ação e

experiência, essa inseparabilidade entre ser de uma maneira particular e como o

mundo nos parece ser, nos diz que todo ato de conhecer faz surgir um mundo”

(MATURANA; VARELA, 2001, p. 31-32, grifo dos autores).

Vemos, portanto, a música e a aula de música como uma forma de expressão do

pensamento-sentimento humano, pensamento como lugar de pensar a diferença, a

heterogênese, ou seja, “[...] se a diferença tende a repartir-se no diverso, de maneira

a desaparecer e a uniformizar este diverso que ela cria, ela deve primeiramente ser

sentida como aquilo que leva o diverso a ser sentido. E deve ser pensada como

aquilo que cria o diverso” (DELEUZE, 2006, p. 319), evitando escorregar na

mesmice da opinião, bom senso ou senso comum, ou na aderência ao caos.

Tal é a fabulação sonora transcodificada em universos-Debussy, Chopin, universo-

Guarani-Nhãdeva, Jobim, Lulu Santos, entre outros tantos, que somos levados a

considerar uma sonorofabulação como pensamento-sentimento musical como lugar

possível da criação do diverso, como tempo de criar e experienciar expressividades

em música. Não sabemos aonde esse conceito irá nos levar, mas certamente

caminharemos com ele. Um conceito é tal como um vetor que orienta o fluxo das

reflexões e ações. Dessa forma, se vemos a música a partir de um conceito, os

processos educativos a ela relacionados não podem ser diferentes, coadunam-se ao

conceito e nele surfam, lembrando que “[...] um conceito, assim como uma flor, ou

um inseto, tem seus ambientes e seus territórios. Toda uma etologia do conceito, por

meio da qual não se pode separar seus componentes do ambiente concreto em que

eles se depositam” (MARTIN, 2012a, segunda orelha).

Vemos, então, que a questão da música é da ordem de uma energia sônica

espalhada em todo o universo, como onda ou fluxos compondo uma “[...] linha de

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fuga desvairada [...]” (DELEUZE, 2012b, p. 119), incidindo em um grupo de rock, em

uma rua do morro de Caratoíra (Vitória-ES), à beira de uma praia, em uma aldeia

indígena, entre cidadãos germânicos que tocam em uma orquestra, ou uma banda

de jazz. Essa energia sônica brinca com nossos corpos, com nossas ideias e

afetos, neles carimbando suas digitais.

Por esse veio, o conceito deleuziano de fabulação foi considerado um veículo

adequado para apoiar e fomentar o processo de investigação aqui relatado,

considerando que as reflexões sobre a arte nele contidas abrem o pensamento para

aquilo que entendo ser fundamental no fazer musical, ou seja, a capacidade da

matéria para tornar-se expressiva.

Isso traz implícita uma visão de ser humano que não é aquele que faz retornar o

Mesmo, na busca insólita de reproduzir o vivido tal como é, apenas, como se tudo

fosse uma eterna repetição idêntica, pois “[...] com efeito, repete-se eternamente,

mas [...] o eterno retorno não é o efeito do Idêntico sobre um mundo tornado

semelhante; não é uma ordem exterior imposta ao caos do mundo” (DELEUZE,

2006, p. 411). Dessa maneira, o tempo, a vida, não é uma ordenação linear e em

uma eterna repetição: “[...] como acreditar que [Nietzsche] concebeu o eterno

retorno como um ciclo [...]? Como acreditar que tenha caído na ideia insípida e falsa

de uma oposição entre um tempo circular e um tempo linear, um tempo antigo e um

tempo moderno?” (DELEUZE, 2006, p. 411).

Essa visão de ser humano comporta em si uma terceira via, para além de uma

subpotência – “[...] o pequeno homem passivo ou o último dos homens [...]”

(DELEUZE, 2006, p. 410) – e de uma superpotência – “[...] o grande homem ativo,

heroico, tornado o homem „que deve perecer‟ [...]” (DELEUZE, 2006, p. 410): há uma

potência que retorna e faz retornar o eterno retorno da diferença.

Que seja, então, o eterno retorno da diferença expresso em afectos e perceptos

transbordados na potência do ser humano como ser de criação, que aposta no

surgimento do Diferente, do Dissimilar, pois “[...] se o eterno retorno é um círculo [...]”

(DELEUZE, 2006, p. 92), tal concepção não é um procedimento mecânico. Assim, é

“[...] a Diferença que está no centro, estando o Mesmo somente na circunferência –

centro descentrado a cada instante, constantemente tortuoso, que gira apenas em

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torno do desigual [...]” (DELEUZE, 2006, p. 92). Vemos que não é a música, em si, o

objeto, mas a própria dinâmica de criar e destruir ritornelos, girando na roda do

eterno retorno.

Tomamos, portanto, o conceito deleuziano de arte como a linguagem das sensações

(DELEUZE; GUATTARI, 2010), bem como o conceito de fabulação, formando um

plano de composição de ideias no qual uma aula é o tempo de “[...] fazer soar a

música [...]” (BORÉM, 2006, p. 46), tornando a matéria sonora expressiva

(DELEUZE; GUATTARI, 2010). A expressão, nesse sentido, é da ordem da

transcodificação de afecções e percepções em afectos e perceptos e, por isso, a

arte expressa.

Considerando que a música é uma forma de expressão presente em todas as

sociedades e tempos e, ainda, que sua historicidade está estreitamente vinculada

aos modos de ensinar e aprender, esperamos que este estudo possa contribuir para

uma educação musical mais afetiva e efetiva, desejando que as crianças passem a

se utilizar de suas próprias experiências sonoras, fazendo soar a música.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos encontros e conversas com o(a)s aluno(a)s do Curso de Musicalização Infantil

da Faculdade de Música do Espírito Santo, emergiram questões fundamentais para

o entendimento do processo de elaboração da expressividade, formando um plano

implicacional, englobando aspectos teóricos, práticos, culturais, sociais e afetivos.

Dessa maneira, a partir da retomada ao objetivo geral da pesquisa relatada nesta

tese – a saber, delinear cartografias que emergem no desenvolvimento da

capacidade de expressão musical de crianças e adolescentes, aluno(a)s de piano

erudito, a partir da utilização de uma abordagem inventiva, participativa e

experiencial –, podemos verificar a sintonia do método cartográfico com o caráter

processual da investigação, possibilitando-nos acompanhar o delineamento gradual

das expressividades dos alunos, e especialmente as passagens que marcaram o

trânsito entre os territórios.

Com relação aos objetivos específicos, é fundamental frisar que o ato de identificar

as principais concepções concernentes à expressão musical pôs a mim, aprendiz-

cartógrafa, em contato com a mutabilidade que marca o pensamento e as

percepções humanas, sendo possível ver, tanto na filosofia quanto na ciência e na

arte, uma constante criação de novos conceitos, novas funções e novos afectos. No

caso da arte, vimos com clareza os processos de transformação nos modos de

sentir e perceber os fenômenos no e do mundo, alterando sistematicamente as

formas de conteúdo e de expressão. Em se tratando especificamente da arte dos

sons, observamos as mutações nos desejos dos músicos em relação às

sonoridades, propiciando a fabricação de diferentes instrumentos musicais,

apresentando novos timbres.

Em relação ao segundo objetivo, é possível afirmar que o conhecimento sobre as

características das formas educativas no âmbito da aprendizagem musical na

infância em diferentes períodos históricos constituiu-se como uma ferramenta

fundamental para entender os vínculos entre as configurações sociais e as práticas

pedagógicas, observando que a aprendizagem artística não escapa a essas

instâncias. Nesse sentido, verificamos que as diferentes propostas de educadores

musicais – tanto os da primeira quanto os da segunda geração – estabelecem-se

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como bússolas fundamentais em relação às práticas pedagógicas em música,

resgatando os sentidos mais profundos da educação musical, bem como abrindo

linhas de fuga que a libertem das macroformas educacionais.

Dessa maneira, o terceiro objetivo específico da pesquisa, que se refere ao

planejamento e à realização das oficinas voltadas para a expressão na arte dos

sons, constituiu um espaço de articulação entre diferentes aspectos do estudo aqui

relatado: a questão de investigação, o referencial teórico, os aspectos históricos,

ideias e práticas que construí na minha vivência no campo da aprendizagem

pianística, bem como o não saber.

A articulação desses diversos aspectos levou-me a trilhar territórios de um jeito

diferente, caminhando com os fatos, com os alunos e os pensadores que balizaram

o desenvolvimento desta investigação. Assim que, em relação ao quarto e último

objetivo específico, considero que cartografar e analisar os processos inventivos nos

contextos de aprendizagem musical são ações que desencadearam diferentes

experiências e vivências relativas à performance pianística pautadas nos diálogos

produzidos com os alunos, nos quais ele(a)s demonstraram a capacidade de

elaborar a expressão musical na prática.

Estando em um momento posterior ao desenvolvimento desta pesquisa, como

aprendiz-cartógrafa, encontro-me em uma posição na qual se torna possível pinçar o

extrato do processo vivenciado e experimentado, observando as evidências que

emergiram como fundamentais no tocante àquilo que me dispus a investigar, a

saber, o processo de desenvolvimento da capacidade expressiva musical entre

crianças e adolescentes, envolvendo a educação e a arte dos sons. Retomando a

pergunta que impulsionou este trabalho – a saber, como uma aula de música pode

despertar e potencializar a capacidade expressiva musical de crianças e

adolescentes que frequentam as aulas de piano da Faculdade de Música do

Espírito Santo? –, trataremos, a seguir, das referidas evidências, conforme a ordem

de sua importância neste estudo.

a) Como ponto principal, destacamos a constatação de que o desenvolvimento

da capacidade da expressão musical entre crianças e adolescentes é um

processo complexo, constituído pelas concepções de aprendizagem e de

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música, abarcando, consequentemente, as vivências, as experiências, os

saberes e as expectativas que aluno(a)s e professore(a)s trazem para seus

encontros. Esse processo complexo envolve, igualmente, os valores e as

concepções que, implicitamente, regem as práticas instituídas no contexto

investigado, incluindo-se aí não somente as formas educativas, mas também

os modos e os critérios de avaliação. Nessa perspectiva, vemos que a

aprendizagem da expressão musical não é imune às linhas de

segmentaridade enunciadas por Deleuze e Guattari, sendo, portanto, por elas

perpassada, moldando as relações entre professore(a)s e aluno(a)s, bem

como instalando rostidades e palavras de ordem que podem gerar

desdobramentos opostos no processo: um direcionamento que acata o(a)

aluno(a) em sua inteireza, ou, diferentemente, um posicionamento que o

classifica como talentoso ou sem talento; uma postura que percebe suas

capacidades e limitações ou uma visão que cria rótulos, identificando

aprendizes como capazes ou sem capacidade e, dessa forma, atesta quais

são o(a)s aluno(a)s que poderão fazer parte do seleto grupo de estudantes de

piano e quais não apresentam as características consideradas necessárias.

b) Toda criança e todo(a) adolescente é capaz de aprender. Tornou-se clara,

em nossa visão, que todos os aluno(a)s desenvolveram habilidades e

capacidades correlatas à expressão da arte dos sons, trilhando, cada um, seu

próprio processo, lidando com suas possibilidades, limitações, interesses,

curiosidades, bem como com o desejo de aprender sonoridades diferentes

daquelas que lhes são familiares. Assim, causaram surpresa os fatos de que

Franco teve como peça favorita um minueto de Bach, chorando diante da

composição – fato que o fez esquecer-se completamente de sua intenção de

desistir do curso; Sofia, que, com sua timidez, apresentou uma evolução

considerável em suas habilidades ao piano, tendo participado de nosso recital

demonstrando muita alegria e contentamento; Selena, com apenas 30 por

cento de visão, estudou as obras eruditas escolhidas, mostrando eficácia,

brilhantismo e – vale destacar – fluência na execução das obras de seu

repertório; Ângelo causou impacto ao estudar e tocar com desenvoltura o

repertório do nível VI, mesmo apresentando dislexia e déficit no aprendizado

(conforme informações de sua mãe, Patrícia). Vale destacar que, durante os

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anos anteriores, o aluno permaneceu no estudo das peças de níveis pelos

quais já havia passado, estando como em um processo de estagnação; Aline,

que convive com o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade,

moveu-se entre os afectos e perceptos das obras de seu repertório, buscando

realizar sonoridades mais leves, indo ao encontro dos sons imaginados e

indicados na partitura por seus compositores; Leonardo, em sua singular

introspecção, percebeu que tinha predileção por músicas do repertório

popular, destacando Sounds of Silence, de Simon e Garfunkel; Lídia,

manifestando suas curiosidades acerca do funcionamento do piano e da

produção de sons; Ariana e Lucas, na capacidade de entendimento rápido

dos afectos musicais; Lucas, pela própria surpresa em relação às

possibilidades de o piano gerar diferentes sonoridades, timbres, alterando as

atmosferas e as ambiências de executantes e ouvintes.

Dessa maneira, como professora e pesquisadora, percebo afetos específicos

que povoam o universo de aluno(a)s que são crianças e adolescentes,

podendo citar alguns exemplos: os afetos circenses e góticos, enunciados

por Franco; os afetos do mistério, trazidos por Aline na música Bruxas e

fantasmas; os afetos do silêncio, de Leonardo; os afetos da alegria, expressos

por Selena.

Essa capacidade geral de aprender, do meu ponto de vista como

pesquisadora-aprendiz-cartógrafa, vincula-se diretamente à minha postura

diante deles, ou seja, à capacidade da qual me investi como professora para

me aproximar de seus mundos, de seus sentimentos e de seus

cotidianos. Registro, portanto, a importância de se ouvir o(a)s aluno(a)s,

conhecer suas experiências de vida, seus gostos musicais. É fundamental

querer saber do(a)s nosso(a)s aluno(a)s, construir com ele(a)s os saberes

que uma instituição pública de ensino de música como a Fames se propõe.

Vemos, ainda, que a aprendizagem pianística precisa modificar um

movimento: ao invés de somente o(a) aprendiz aproximar-se

apreensivamente de uma performance consagrada, o(a) professor(a) deve

aproximar-se dos modos de ser e de aprender de cada aprendiz, passando a

considerá-lo em seus avanços, não somente naquilo que lhe falta.

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O objetivo de um curso de piano para crianças e adolescentes –

especialmente no âmbito da educação pública – é o desenvolvimento das

capacidades e habilidades musicais, não o alcance de determinado

desempenho, correspondente o mais próximo possível das sonoridades de

performances de pianistas consagrados. A predeterminação desse grau de

desempenho cria um abismo entre a aprendizagem pianística e a educação

musical, pois esta – conforme assegurado pelos principais educadores da arte

dos sons – visa, primordialmente, ao desencadeamento das capacidades de

expressão sonora do(a)s aprendizes, esperando justamente o surgimento das

singularidades que constituem cada indivíduo. Nesse sentido, a passagem

para o Curso de Formação Musical – no caso do Piano – significa um desvio

dos objetivos de aprendizagem, pois impõe ao Curso de Musicalização Infantil

uma meta que impede o processo da elaboração da expressividade da

criança e do adolescente.

c) A importância de aulas de piano individuais e também coletivas. Emergiu

no estudo aqui relatado a importância do desenvolvimento de atividades nas

quais o(a)s aluno(a)s se encontrem para trocar experiências e ouvir uns aos

outros. Nesse sentido, as oficinas proporcionaram momentos de conversas

sobre as músicas, o conhecimento dos diferentes processos de aprendizagem

vivenciados por cada aluno(a), levando-o(a)s a pensar e sentir a elaboração

das músicas de seus repertórios por diferentes ângulos. Paralelamente a

essas vantagens das aulas coletivas, verificamos como aspecto positivo a

formação de laços de amizade entre o(a)s estudantes, quebrando o

individualismo que marca o campo da performance pianística. Em relação às

aulas individuais, considero necessária sua manutenção –

concomitantemente às aulas coletivas –, visto que o piano erudito implica uma

dinâmica de escuta crítica do(a) aprendiz em suas singularidades,

independentemente do nível de estudo em que ele(a) se encontre.

d) A necessária diversificação dos tipos de aula. Nossas vivências e

experimentações em campo permitem afirmar que a aprendizagem

instrumental ao piano não se restringe exclusivamente a tocar, trazendo

evidências de que a implementação de diferentes contextos de aula e de

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estratégias otimiza de maneira significativa a produção do conhecimento a

respeito dos meios de se criar determinadas sonoridades. Assim, as oficinas

de textura, do piano preparado de John Cage, do peso do corpo, do

funcionamento do piano, bem como das sessões de vídeos sobre estilos

musicais e pianistas mostraram-se como ferramentas essenciais para o

processo de aprendizagem, proporcionando o indispensável mergulho e

contágio com os signos e os códigos que constituem o campo pianístico.

Dessa maneira, é possibilitado ao(à)s aprendizes o contato direto com a

virtualidade no que diz respeito à diferença nas performances, passando,

assim, a se enxergarem como sujeitos capazes de criar sons e efeitos

relativos aos afectos e perceptos propostos nas obras.

e) A problemática da aprendizagem da expressividade musical, no âmbito

das aulas de piano, do meu ponto de vista e experiência, não reside no

repertório ou na extensão das peças que o integram, mas nas formas

educativas, no modo de se trabalhar com os alunos. Assim, nesta pesquisa,

verificamos que a potencialização da capacidade de expressão mostrou-se

intimamente relacionada à abordagem educacional inventiva, nos termos

estritos propostos pelos filósofos e educadores que fundamentam este

trabalho.

No que diz respeito aos limites que a pesquisa encerra em si mesma, seria

interessante o desenvolvimento de um maior número de oficinas – elas poderiam ter

sido propostas desde o início do ano letivo. Considero também minha própria

condição de aprendiz-cartógrafa como um aspecto limitante no processo, pois

passei um longo período aprendendo o que significava fazer uma pesquisa-

intervenção na perspectiva da cartografia deleuziana.

Em se tratando das possibilidades de estudos futuros, o desenvolvimento deste

trabalho permite sugerir a abertura para pesquisas relativas a outras estratégias de

aprendizagem pianística, diferentes daquelas que foram desenvolvidas no escopo

do processo desta investigação. De forma aliada às estratégias, é possível indicar a

realização de estudos com novas configurações de aulas e de oficinas, ampliando

as possibilidades de contato com os signos da música. No que diz respeito aos

repertórios no campo erudito, pode ser visualizado um estudo que trate de organizar

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e registrar os aspectos interpretativos mais importantes dos estilos musicais,

oferecendo um guia didático para o professor. Relativamente à infância e

adolescência, é possível notarmos a necessidade de uma pesquisa que aborde de

maneira mais aprofundada as maneiras pelas quais os aprendizes sentem e

percebem a transitoriedade de expressão que constitui os territórios musicais em

determinadas obras, evidenciando a diferença no pensamento e no sentimento

musical nessa faixa etária.

No tocante às implicações que este trabalho investigativo aponta, é possível

destacarmos os seguintes tópicos:

a) são indispensáveis o estudo e o debate a respeito das concepções

educacionais, estabelecendo uma ponte entre a educação e a música,

fortalecendo os elos de sustentação da rede de produção do conhecimento,

em especial no âmbito da aprendizagem pianística;

b) a necessidade de se repensar o conceito de avaliação no curso de piano da

Fames, especialmente no que se refere ao processo seletivo para o Curso de

Formação Musical;

c) a importância de se promover a formação continuada dos professores que

atuam na área da aprendizagem pianística, tratando de temáticas situadas

não somente no campo da performance, mas especialmente na área da

educação musical;

d) a preparação e disponibilização de salas apropriadas para aulas coletivas,

nas quais possam ser desenvolvidas oficinas diversificadas, sessões de

vídeo, debates, conversas etc., seguindo-se a uma configuração diferenciada

no modo pelo qual o(a)s aluno(a)s e o(a)s professore(a)s se situam no

ambiente. Ou seja, um espaço no qual o(a)s aluno(a)s possam movimentar-se

em atividades corporais, ou sentar-se ao chão, compondo rodas de conversa.

Tratando de aspectos mais gerais, é importante destacar o conjunto de tarefas

realizadas pelo(a)s aluno(a)s, com agendas repletas de compromissos, bem como

os interesses musicais extra-Fames, as atividades extraescolares, o fato de não

possuírem piano para estudar – estudando em teclados –, bem como as

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expectativas pedagógico-musicais institucionalmente prescritas, por exemplo, o

processo seletivo ao Curso de Formação Musical.

No que se refere à expressão musical propriamente dita, é importante sublinharmos

a ideia de que o termo expressão deve ser distinguido de evocação, entendendo-se

a ideia de que, quando “[...] uma peça musical expressa melancolia não quer dizer

que ela evoca (desperta) melancolia [...]” (SADIE; TYRRELL, 2001a, p. 466,

tradução minha). Assim, a elaboração da expressão em uma música não é uma

representação de estados de espírito, estabelecendo uma relação biunívoca entre

um som e um afeto. A elaboração da expressão em uma peça musical é, portanto,

um processo de criação povoado pelas afecções e percepções daqueles que tornam

suas forças audíveis.

Paralelamente a essa compreensão, é fundamental observarmos que,

diferentemente da produção do desenho infantil, no qual a criança cria formas e

texturas livremente a partir de materiais apropriados, a execução musical exige uma

elaboração minuciosa, tendo como ponto de partida uma obra criada por um

compositor, a qual será recriada pelo(a) aluno(a).

Assim, não é possível acreditar em fórmulas pedagógicas, mas entender que é

fundamental que o aluno faça a experiência dos afetos musicais, incluindo não

somente seus dedos, mãos e braços, mas seu corpo como um todo, no qual se

inclui sua mente. Nesse sentido, as estratégias de aprendizagem podem variar de

aluno(a) para aluno(a), ou conforme os contextos, tendo-se por objetivo propiciar a

experiência, o contágio com os signos, as sensações e afectos das diferentes obras

na arte dos sons.

Tomando o conjunto dos estudos empreendidos, é possível considerarmos as

tendências de pensamento e as linhas de pesquisa no âmbito da educação e da

música como agenciamentos, compondo o devir na criação humana, frutos da

virtualidade da existência. É assim que, como agenciamento, e paralelamente aos

estudos que apontam para a aprendizagem da performance como vinculados à

psicologia, de minha parte, aposto na fabulação deleuziana como vetor para se

pensar a aprendizagem musical, fazendo mover os conceitos, as funções e os

afectos.

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ANEXO – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Universidade Federal do Espírito Santo Curso de Pós-graduação em Educação – Mestrado e Doutorado Doutoranda – Raquel Ribeiro de Moraes Tema da tese: Aprendizagem inventiva musical: uma sonorofabulação Eu, .............................., RG ...................., órgão expedidor...................., autorizo a

participação de meu(inha) filho(a)...................................................... na pesquisa

intitulada Aprendizagem inventiva: uma sonorofabulação, realizada junto a

aluno(a)s de piano do Curso de Musicalização Infantil da Faculdade de Música do

Espírito Santo “Maurício de Oliveira”, integrando as atividades do curso de

doutorado em Educação do Programa de Pós-graduação em Educação da

Universidade Federal do Espírito Santo.

Outrossim, declaro para os devidos fins que autorizo o uso das imagens e

informações contidas nas filmagens e fotografias realizadas no processo de

pesquisa, transcorrido de fevereiro a dezembro de 2016, podendo as mesmas serem

utilizadas integralmente ou em partes, sem restrição de prazo, desde a presente

data, para fins exclusivos de publicação acadêmico-científica.

Assim sendo, subscrevo-me.

Vitória, ......... de .................. de 2016.

_______________________

Assinatura do pai, mãe ou responsável