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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO PEDAGÓGICO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ANA PAULA PATROCINIO HOLZMEISTER DOCÊNCIA COMO DEVIR: ENTRE OBSTRUÇÕES E INVENÇÕES, UMA CARTOGRAFIA DAS EXPERIMENTAÇÕES EDUCATIVAS ENGENDRADAS PELAS PROFESSORAS DE UM CENTRO DE EDUCAÇÃO INFANTIL Vitória 2007

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1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO PEDAGÓGICO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ANA PAULA PATROCINIO HOLZMEISTER

DOCÊNCIA COMO DEVIR: ENTRE OBSTRUÇÕES E INVENÇÕES,

UMA CARTOGRAFIA DAS EXPERIMENTAÇÕES EDUCATIVAS

ENGENDRADAS PELAS PROFESSORAS DE UM CENTRO DE

EDUCAÇÃO INFANTIL

Vitória

2007

2

ANA PAULA PATROCINIO HOLZMEISTER

A DOCÊNCIA COMO DEVIR - ENTRE OBSTRUÇÕES E INVENÇÕES:

UMA CARTOGRAFIA DAS EXPERIMENTAÇÕES EDUCATIVAS

ENGENDRADAS PELAS PROFESSORAS DE UM CENTRO DE

EDUCAÇÃO INFANTIL

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Educação da Univer-sidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação, na linha de pesqui-sa Formação de Professores e Práticas Pedagógicas. Orientadora: Janete Magalhães Carvalho.

Vitória

2007

3

Ao Gabriel pela intensidade do nosso encontro.

Encontro cheio de alegrias, que têm produzido

um aumento indescritível de potência vital em

diferentes dimensões de minha existência.

Aos meus familiares, minhas/meus amigas/os

que me emprestam seu olhar, sua escuta, seu

afeto e canalizam suas intensidades, conectan-

do-as ao meu corpo; encontros intensos e ale-

gres, que têm produzido desestabilizações,

deslocamentos e constituição de outros modos

existenciais.

4

“Pluralidade de forças em permanente tensão, o seu mo-

vimento estabelece hierarquias temporárias. Pensamen-

tos, sentimentos e impulsos encontram-se em luta, mas

também tecidos, órgãos e células. Atua contra sentidos

estabelecidos, normas coercitivas, querer divino, ídolos

axiológicos da moral, arrière-monde. Opera, antes de tu-

do, contra a morte. Não visa objetivos, não admite tré-

guas, não prevê fim. A partir do combate incessante, sur-

gem forças dominantes, que fazem agir, e forças domina-

das, que o levam a reagir. São forças que constituem sua

vida, natureza e cultura.”

Sandra Mara Corazza

5

RESUMO

Este trabalho se propõe a acompanhar os movimentos inventivos instaurados pelas

professoras nos encontros promovidos com as crianças em um Centro Municipal de

Educação Infantil de Vitória, em meio aos obstáculos e dificuldades que tentam inter-

romper os fluxos intensivos liberados por usuários e educadoras. Fazendo uso de

uma cartografia do diagrama de forças produzido nos cotidianos escolares e de uma

base teórico-metodológica inspirada nos estudos de Gilles Deleuze, Michel Foucault,

Suely Rolnik e Virgínia Kastrup; procuro perceber as expansões produzidas para os

conceitos de pensamento, aprendizagem e conhecimento no âmbito do currículo

praticado pelas professoras. Nesse sentido, busca-se evidenciar a emergência de

outros campos de possíveis para o acontecimento da docência como devir, onde

forças díspares, ao produzirem a diferença, criam movimentos virtualmente potentes

para a irrupção de modos singulares de existência, pensamento e ação educativa,

úteis para se pensar a partir de um ponto de vista de inflexão, novas aberturas para

os percursos de formação continuada de professores.

Palavras Chaves: Aprendizagem-pensamento, invenção-experimentação, currículo-

formação continuada.

6

SUMMARY

This work considers following the inventive movements restored by the teachers in

the meeting promoted with the children in a Municipal Center of Infantile Education of

Vitória, in between to the obstacles and difficulties that try to interrupt the intensive

flows set free by users and educators. Making use of a cartography of the diagram of

forces produced in the daily pertaining to school and of a base theoretician-

methodological inspired by the studies of Gilles Deleuze, Michel Foucault, Suely Rol-

nik and Virginia Kastrup; I look for to perceive the expanses produced for the con-

cepts of thought, learning and knowledge in the scope of the practiced resume by the

teachers. In this direction, it searches to evidence the emergency of other fields of

possible for the event of the educational practice as devir, where differentials forces,

when producing the difference, creates virtually powerful movements for the irruption

singular ways of existence, thought and educative action, useful to think from a point

of view of inflection, new openings for the continued formation of professors passag-

es.

Words Keys: Learning-thought, invention-experimentation, resume-continued forma-

tion.

7

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.................................................................................................... 9

1.1 PROFESSORA-USUÁRIA-PESQUISADORA ................................................ 9

1.2 APROXIMAÇÕES, DISTANCIAMENTOS... OU A CHEGADA/RETORNO AO

CMEI.....................................................................................................................10

1.3 DOS LIMITES DA PESQUISADORA... CORTES, TOMADAS, PERSPECTI-

VAS E OLHARES.................................................................................................12

2 A QUESTÃO.....................................................................................................24

3 OS BONS ENCONTROS E TÍMIDAS APROXIMAÇÕES.................................30

3.1 PENSAMENTO EM DELEUZE ......................................................................30

3.2 APRENDIZAGEM OU ... OS PROCESSOS DE EXPERIMENTAÇÃO .........34

3.3 DIVERGÊNCIA E DIFERENCIAÇÃO ............................................................37

3.4 DO MOVIMENTO ENTRE AS LINHAS OU ... POLÍTICA, DIFERENÇA E BI-

NARISMOS...........................................................................................................39

3.5 ÉTICA E MORAL ...........................................................................................49

4 MOVIMENTANDO-ME EM MEIO AS ONDULAÇÕES E MARESIAS..............54

4.1 A CHEGADA OU ENTRANDO EFETIVAMENTE NOS MOVIMENTOS PRO-

DUZIDOS COTIDIANAMENTE NOS ESPAÇOS-TEMPOS EDUCATIVO...........57

4.2 UM POUCO SOBRE A MINHA MOVIMENTAÇÃO........................................60

5 DOS SISTEMAS DE CAPTURAS AOS PROBLEMAS E OBSTRUÇÕES......68

5.1 PLANTE A PRIMAVERA................................................................................70

5.2 O VENDEDOR DE SONHOS ........................................................................71

5.3 AS DANÇARINAS COR DE ROSA................................................................74

8

6 DOS MOVIMENTOS PRODUZIDOS NA CONSTITUIÇÃO PROFISSIONAL

DAS PERSONAGENS..........................................................................................81

6.1 A TENTATIVA DE PRODUÇÃO DE UMA IDENTIDADE PROFISSIONAL...

OU QUANDO A FORÇA SE VINCULA AO APRISIONAMENTO ........................87

6.2 DAS EXIGÊNCIAS DE FORMAÇÃO SUPERIOR OU QUANDO O AVANÇO

PODE VIR A SE TORNAR RETROCESSO.........................................................90

7 DAS TENSÕES E ARTICULAÇÕES: CONSTITUINDO UM COMPLEXO DIA-

GRAMA DE FORÇAS..........................................................................................95

8 AS EXPERIMENTAÇÕES INVENTIVAS PRODUZIDAS PELAS PROFESSO-

RAS: DESVIOS, QUEBRAS, RUPTURAS... AINDA QUE TEMPORÁRI-

RI-

AS.....................................................................................................................107

8.1 PROCESSOS DE EXPERIMENTAÇÕES COMUNITÁRIAS........................109

8.1.1 Estratégias de sobrevivências desejantes I: das punições vinganças às a-

berturas de espaçostempos de encontros..........................................................109

8.1.2 Diferentes espaçostempos de formação continuada.................................114

8.1.3 As crianças com necessidades especiais: quando elas nos ajudam a des-

prendermos dos nossos adoecimentos e paralisias...........................................120

8.1.4 Estratégias de sobrevivências desejantes II: de mulher “limpa-peixe” à es-

posa do rei..........................................................................................................127

8.2 DAS PERSONAGENS PRINCIPAIS E SEUS MOVIMENTOS INVENTI-

VOS.....................................................................................................................130

8.2.1 A professora do pré .................................................................................130

8.2.2 A professora dinamizadora ................................................................... 141

8.2.3 Professora-usuária-mãe...........................................................................148

9 EDUCAÇÃO COMO OBRA DE ARTE...........................................................152

10 REFERÊNCIAS............................................................................................156

9

1 INTRODUÇÃO

Este texto busca iniciar um percurso de produção escrita de si que expresse (ainda

que precariamente) os múltiplos encontros e desencontros que tive durante a reali-

zação deste trabalho de estudo e pesquisa. Ao destacar no processo investigativo a

Escrita de si falo sobre a produção de uma estética da existência – a vida como o-

bra de arte (FOUCAULT, 2004), com Suely Rolnik (1996 – 2005) argumento que se

trata:

[...] Da produção que se dá na experiência, ou seja, diz respeito ao rigor com que escutamos as diferenças que nos inquietam, nos desestabilizam e, se fazem presentes em nós. Consiste ainda, na luta contra as forças que se efetuam em nós, as quais tentam obstruir o devir outro de nós mesmos.

A oportunidade de me distanciar das atividades docentes para imprimir um esforço

de estudos, análises e reflexões sobre as práticas e discursos educacionais me ar-

remessou a um desafio outro de assumir o lugar de professora-usuária-

pesquisadora para dele tentar analisar, a partir de um recorte muito específico, as

ações inventivas engendradas pelas professoras1 nos processos educativos; que se

desdobram em meio à produção de modos de subjetivação, ou seja, os modos co-

mo os profissionais em relação com outros profissionais e os usuários, vão se rein-

ventando, entre as linhas constitutivas de diferentes modos existenciais, compondo,

decompondo e recompondo territórios. Diferentes modos existenciais que são com-

postos por três linhas abstratas pelas quais o desejo vai traçando movimentos de

composições singulares: a linha dos afetos, a linha da simulação e a linha dos terri-

tórios. Toda e qualquer formação no campo social se dá através do exercício ativo

dessas três linhas – sempre emaranhadas, sempre imanentes uma às outras

(ROLNIK, P. 52-53).

Fazer a pesquisa, do ponto de vista dessa perspectiva, me impôs o desafio de pro-

duzir um estudo de forma tridimensional, pois, desde a elaboração do tema de estu-

do à escolha do campo de pesquisa, fui sendo convocada a pensar a partir dessas

três diferentes e muitas vezes conflituosas dimensões – a professora-pesquisadora-

usuária; o que, durante todo processo, me colocou diversas questões e imprimiu

1 Nesse texto, usarei, predominantemente, o termo no feminino por considerar que, na Educação Infantil os pro-fissionais que compõem o quadro de professores são, em sua esmagadora maioria, do sexo feminino.

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muitas vezes um mal-estar, gerando paralisias e também intensos deslocamentos.

Mas, em função disso e em contrapartida, freqüentemente me pus a rever e a anali-

sar mais atentamente as paisagens que iam se formando.

1.1 APROXIMAÇÕES, DISTANCIAMENTOS... OU A CHEGADA/RETORNO AO

CMEI

Fazer a opção em realizar a pesquisa em um Centro de Educação Infantil não che-

gou a ser exatamente uma escolha, na medida em que, desde o momento de elabo-

ração do Projeto de Pesquisa, meu corpo encontrava-se totalmente afetado pelos

movimentos produzidos nesse nível de ensino.

Quando iniciei os estudos no mestrado, atuava há alguns anos em sala de aula, em

um Centro de Educação Infantil do Município de Vitória (CMEI) e, por isso, o campo

problemático desta pesquisa foi sendo elaborado também a partir das experiências

e obstáculos enfrentados nas diferentes escolas em que trabalhei. Sendo assim, ao

elaborar a questão inicial de estudo e suas inúmeras alterações, considero que os

problemas enfrentados pelas professoras que participaram desta pesquisa entrela-

çavam-se, pelo menos em parte, às minhas questões. Como nos sinaliza, há algum

tempo, Ferraço (2003, p.160), eu estava em busca de mim mesma – “Eu caçaçador

de mim”, 2 isto é, instigada por questões muito específicas e singulares que, no de-

correr da pesquisa, foram se agregando há outras questões relacionadas com as

modificações percebidas no contexto sócio-político-cultural local pesquisado.

Por outro lado, pela primeira vez, sentia no corpo a experiência de ser usuária de

uma escola, em especial um Centro de Educação Infantil, pois, naquele ano, aos

oito meses de idade, meu então bebê iniciava sua experiência educativa institucio-

nalizada; e eu, mesmo atuando, nos últimos oito anos, nesse nível de ensino, em

diferentes espaçostempos3 educativos públicos, confesso que chegar à escola públi-

2 “Penso ser essa uma das razões que justificam estudos envolvendo os cotidianos das escolas: [...] estamos sem-pre em busca de nós mesmos, de nossas histórias de vida, de nossos ‘lugares’, tanto como alunosalunas que fomos quanto professoresprofessoras que somos” (FERRAÇO, 2003, p. 158). 3 Estética de escrita proposta por Nilda Alves, na tentativa de ao unir as palavras, romper com as dicotomias, abrindo possíveis para outros modos de escrita.

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ca de Educação Infantil como usuária-mãe foi uma experiência muito diferenciada,

provocando em mim um sentimento de estranhamento indescritível. Estranho estra-

nhamento, pois aquele espaçotempo educativo que, no último ano, era também meu

local de trabalho docente, passou a ser espaçotempo de consumo. Consumo no

sentido atribuído por Certeau (2003, p. 39),

Como sendo os usos, ou as produções que os indivíduos fabricam ao con-sumirem os artefatos culturais disponíveis. Aos usos, [...] “corresponde outra produção, qualificada de ‘consumo’: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante”.

Incrivelmente, era como se aquele lugar tivesse sido todo reformado: eu não reco-

nhecia as cores, os cheiros e os temperos; ao contrário, ao chegar, à escola pela

primeira vez com o meu bebê e olhar a sua sala de aula da perspectiva de consu-

midora, nada mais me parecia conhecido. Meu corpo foi profundamente tocado por

um estranhamento... Nada me remetia aos registros de minha lembrança-recente do

que era um CMEI... Tudo me parecia estranho, novo, desconhecido... Essa experi-

ência inicial e sua continuidade constituíram-se num desafio de imprimir um sentido

para o que era ser usuário de uma escola pública. Essas marcas-traços esboçam-se

sobre o meu corpo e conseqüentemente, neste trabalho e, ao longo dele, foram e-

mergindo e (re) emergindo, ainda que na escrita apareça ocasionalmente de forma

velada.

Diante do exposto, a idéia de desenvolver a pesquisa, nesse nível de ensino, me

parecia inescapável.

Em função disso, estabeleci alguns critérios para a seleção do CMEI e fui conversar

com alguns profissionais que atuam nesse nível de ensino. O critério inicial era o

interesse e a aceitação do grupo de profissionais pelo projeto de pesquisa que pro-

punha, considerando o número de professoras e de turmas existentes na escola,

pois, como pretendia trabalhar com todo o grupo, precisava de um CMEI de um ta-

manho compatível. Em segundo lugar achei importante que a escola a envolver e

ser envolvida pela pesquisa fosse freqüentado por usuários de baixa renda.

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Assim busquei por um dos CMEIs4 do Sistema Municipal de Vitória que atendesse a

tais critérios. Entretanto é preciso considerar que o texto que aqui rabisco traz mar-

cas dos diferentes processos acompanhados no CMEI de referência da pesquisa a

partir dos encontros realizados com as professoras em diversos espaçostempos; e

de encontros paralelos com professoras que atuam ainda em outros estabelecimen-

tos de ensino com as quais compartilhava aspectos gerais da pesquisa em anda-

mento, pois minha movimentação em meios educacionais confunde-se com um cír-

culo de amizades composto principalmente por professoras, no qual as convoca-

ções em torno de uma análise sobre a profissão docente são constantes.

1.2 DOS LIMITES DA PESQUISADORA E SUA PESQUISA: CORTES, TOMADAS,

PERSPECTIVAS E OLHARES...

Os entrelaçamentos colocados, anteriormente, são relevantes, na medida em que

sinalizam os percursos assumidos e os recortes feitos num amplo universo que é a

Educação Infantil, pois considero que, ao analisar as práticas educativas das pro-

fessoras deste nível de ensino, opero a partir de tomadas específicas selecionadas

por mim; escolhas que exigiram tantas outras recusas, renúncias e descartes que

poderiam produzir certamente uma forma outra de análise e problematização.

Em função da tríade de perspectivas em relação às posições que ocupei em meio

ao esforço investigativo, as abordagens produzidas por este discurso trazem marcas

de uma intenção de entrar no movimento educativo institucionalizado a partir de

uma análise micropolítica; 5 buscando ampliar qualitativamente as produções de-

senvolvidas sobre esse nível do ensino que, comumente, tendem a fazer uma abor-

dagem investigativa das estruturas instituídas, como se estas se efetivassem na

dinâmica do cotidiano tal e qual foram pensadas formalmente.

Tais abordagens tendem a analisar os problemas educacionais atuais a partir de

uma lógica binária de convocação explícita a oposições entre pares dicotômicos, do

tipo opressor e oprimido, em que as professoras assumem uma passividade lamen-

4 Centro Municipal de Educação Infantil. 5 “Micropolítica – que trata da formação social do campo do desejo, ou seja, das questões que envolvem os pro-cessos de subjetivação em sua relação com o político, o social e o cultural, através dos quais se configuram os contornos da realidade em seu movimento contínuo de criação coletiva” (ROLNIK, 2006, p.11).

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tável, sendo usualmente consideradas como pobres coitadas, eternas heroínas a-

nônimas − apesar dos baixos salários, desarticuladas politicamente e pouco reco-

nhecidas profissionalmente e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, são culpabiliza-

das pelos fracassos escolares dos (as) alunos (as). Em quaisquer representações

que as enquadrem, os discursos científicos, que tentam falar em nome do outro,

tendem a fazer com que as professoras ocupem o lugar passivo nas relações de

poder que vão sendo produzidas nas instituições educativas.

É justamente esse tipo de argumento que procuro ultrapassar, ao inverter os modos

habituais de investigação-análise, produzindo uma problematização a respeito das

práticas educativas no contexto político de um diagrama6 de forças, em que os pro-

fissionais de Educação atuam ativamente, ocupando tanto posições de dominadores

quanto de dominados. Problematização no sentido atribuído por Foucault (2004),

como sendo:

“elaboração de um domínio de fatos, práticas e pensamentos capazes de por em questão uma forma habitual de prática discursiva [...] Trata-se, en-tão, de pensar as relações das diferentes experiências com a política; o que não significa que se buscará na política o princípio constituinte dessas expe-riências ou a solução que regulará definitivamente seu destino. É preciso elaborar os problemas que as experiências colocam para a política [...] A problematização elabora para suas propostas as condições nas quais pos-síveis respostas podem ser dadas, define os elementos que constituíram aquilo que diferentes soluções se esforçam para responder [...] é essa ela-boração de um dado em questão, essa transformação de um conjunto de complicações e dificuldades em problemas para os quais as diversas solu-ções tentarão trazer uma resposta” (FOUCAULT, 2004, P. 228-233) que denominamos aqui problematização.

A partir dessa forma de racionalidade anti-dialética, busco produzir uma análise das

práticas cotidianas a partir de uma postura de desconfiança em relação aos discur-

sos instituídos que centralizam seus esforços de pesquisa em questões como o fra-

casso escolar, a precariedade dos recursos tecnológicos e didáticos e a fragilidade

da atuação e formação inicial e continuada dos professores; compondo, assim, um

campo de problematização restrito aos limites e insuficiências educacionais a se-

rem, dessa forma, mecanicamente abordadas. Pois concordando com Barros

(2000), considero que: 6 Diagrama no sentido atribuído por Foucault como sendo [...] “o mapa, a cartografia – a exposição das relações de força que constituem o poder” [...] (DELEUZE, 1992, p.115). Diagrama de força que dele deriva uma força dominante.

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[...] A pedagogia e suas práticas não são, em muitas situações entendidas como mecanismo de poder, ou seja, fábricas de subjetividades, máquinas de fazer falar, pensar e sentir... O papel produtivo/produtos da pedagogia tem ficado elidido, supervalorizando-se o que “falta” para que a Educação no Brasil alcance os objetivos de “realização humana”. Este parece consti-tuir boa parte do ideário de modos de subjetivação em curso no processo educacional. (p.01).

Nesse sentido, entendo que tais questões remetem a articulações mais amplas e

complexas, envolvendo dimensões políticas vinculadas às formações sociais do

campo social do desejo.

Dessa forma, uma das questões que levanto aqui é que, para justificar a necessida-

de de produzir reformas consecutivas no âmbito educacional, reformas que vão mo-

delando a Educação às necessidades exteriores de modelização do capital, múlti-

plas crises vêm sendo permanentemente fabricadas pelo modelo de organização

vigente de sociedade; modelo o qual tenta produzir e disseminar, por todo corpo

social, a crença na ineficiência generalizada da Educação Pública; por meio da mí-

dia em geral, com múltiplas e repetidas formas de abordagem, mas também por va-

riadas pesquisas científicas de sustentação desenvolvida nos meios acadêmicos, as

quais reforçam a existência de uma crise educacional como sendo um problema

localizado. Desse modo, ferramentas conceituais são produzidas em meio a jogos

de poder vinculados à Analítica da Verdade (conforme abordagem posterior).

Nesse sentido, tende-se a produzir verdades que falam sobre a incapacidade do

professor e a defasagem dos alunos. Assim, informações negativas sobre o desem-

penho da Educação nacional vão sendo pulverizadas por meio de manchetes de

jornais e chamadas de telejornais veiculadas diariamente em âmbito local-regional,

disseminando, por anos a fios, a culpabilização dos professores e de seus alunos

pelo referido fracasso.

15

Reportagem publicada no jornal A Tribuna do dia 16-7-2006

Reportagem 1: Vítima de sua inoperância

Concomitantemente, reportagens sobre experiências pedagógicas de sucesso, em

que o esforço pessoal do professor, atuando sobre condições extremamente adver-

sas, consegue um resultado considerado excepcional com seus alunos, sendo por

tal feito socialmente premiado e reconhecido, reforçam a idéia de que os problemas

educacionais estão vinculados direta e prioritariamente à atuação do professor e às

condições sócio-históricas e econômico-culturais dos alunos.

Figura 1: Professores Nota 10

Esse tipo de estratégia ocorreu durante a pesquisa, quando o trabalho de uma das

professoras da escola ganhou grande destaque, a partir de um convite feito pela

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Secretaria Municipal de Educação para que ela fizesse um relato público de suas

práticas, o que, posteriormente, tornou-se alvo de uma reportagem em um jornal

local, publicada em 16-7-2006 e intitulada “Professores Nota 10”. Essa reportagem

destacava algumas experiências consideradas de sucesso; no entanto, tal movi-

mento produziu um desconforto indisfarçável entre os profissionais do CMEI, pois,

de modo geral, eles consideraram que o destaque pessoal desmerecia o trabalho

coletivo dos demais professores. Contudo, o CTA7 festejou orgulhosamente a publi-

cação, o que produziu uma ampliação de privilégios profissionais da professora em

destaque, reificando o sistema de hierarquizações entre as professoras. Seguem

alguns fragmentos do Diário de Campo, no qual tento registrar o movimento produ-

zido por essa estratégia discriminatória de valorização individual:

Na sala das professoras [...]. Neste momento, fiquei sabendo que a equipe de reportagem da Tribuna havia estado na escola, naquela manhã, para fazer uma reportagem sobre o Projeto desenvolvido por uma das professo-ras. [...] Apesar de a escola ser pequena, o fato da equipe de jornalismo ter estado naquele estabelecimento de ensino não era um assunto que conta-giava a todos, ao contrário, houve um silêncio generalizado por parte do restante do grupo de professoras diante do fato.

Silencioso movimento de descontentamento: o desconforto das outras professoras

podia ser sentido nos momentos de encontro entre elas; desconforto produzido pelo

fato do não reconhecimento do grupo como parte daquela conquista. Desconforto

que não foi verbalizado, mas que era facilmente captado pelo corpo vibrátil, nas tro-

cas de olhares, nas aproximações e afastamentos entre professores e nas expres-

sões de descontentamento e, posteriormente, em comentários tecidos no pátio do

CMEI.

7 Corpo Técnico-administrativa.

17

Reportagem publicada no jornal A Tribuna do dia 16-7-2006

Figura 3: Um mundo dentro das caixas

É interessante observar que, junto à matéria publicada no jornal, foram vinculadas

outras matérias sobre Educação relacionadas com o empenho do Estado em garan-

tir melhores condições de trabalho para as professoras, e também entrevistas con-

cedidas por especialistas (como Içami Tiba e José Pacheco), fazendo uma análise

sobre a Educação Brasileira e a atuação das professoras. Os fragmentos seguintes

dão uma noção dos discursos utilizados-produzidos por esses autores:

- Hoje, os políticos investem dinheiro numa instituição falida. Fico revoltado com a situação de miséria em que a escola pública está, mas não é mais dinheiro que vai melhorar. É criando condições de trabalho e exigindo dos professores aquilo que eles devem dar. (Pacheco, 2006, p.4, grifo meu). [...] - Os professores devem dar chances iguais a todos os alunos. Se perguntarem como, respondo: estudem. Se disserem ganhamos pouco e precisamos trabalhar para outros lugares, digo: ganhem mais e ganhem direito a isso. (Pacheco, 2006, p.4, grifo meu). - Cabe ao educador cidadão ajudar na reconstrução do Brasil. Cada aula pode ser um “tijolinho” a ser integrado na constituição da sociedade. (Tiba, 2006, p.5)

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Reportagem publicada no jornal A Tribuna do dia 16-7-2006

Figura 4: Por uma escola de verdade

Esse conjunto de reportagens veiculadas por um jornal local, por meio de uma ex-

tensa reportagem sobre Educação, fornece um interessante quadro sobre como os

discursos são produzidos. A partir de um conjunto de enunciados repetidos inces-

santemente como verdades inquestionáveis (autorizadas por estudos científicos), as

quais apontam à ineficiência da Educação Pública, a necessidade de um maior es-

forço individual do professor, o desperdício de dinheiro do contribuinte e a não rela-

ção desse serviço entre a necessidade de aumento de verbas para a Educação e

melhoria efetiva desse serviço público. Argumenta-se sobre o empenho do governo

19

em melhorar as condições de trabalho dos profissionais de Educação, mas atribuin-

do a esses últimos à responsabilidade por garantir a melhoria do salário, vinculada,

desse modo, à necessidade incessante e inatingível de estudos adicionais. Por ou-

tro lado, alguns especialistas consideram que nem cursos, nem recursos resolvem o

problema do déficit da Educação pública, pois a solução está condicionada a paixão

pela docência.

Esse conjunto de comentários e indicações está circunscrito numa articulada rede

de produtos de sentido onde, de fato, não há nada oculto, constituindo uma superfí-

cie de inscrição que nos permite trazer à visibilidade os jogos de verdade em sua

constituição.

[...] Precisamente em Foucault, a superfície torna-se de inscrição: é todo o temo do enunciado ‘ao mesmo tempo não visível e não oculto’. A arqueolo-gia é a constituição de uma superfície de inscrição. Se você não constitui uma superfície de inscrição, o não-oculto permanecerá não visível [...]. A superfície não se opõe à profundidade (voltemos à superfície), mas à inter-pretação [...]. É preciso pegar as coisas para extrair delas as visibilidades. E a visibilidade de uma época é o regime de luz, e as cintilações, os reflexos, os clarões que se produzem no contato da luz com as coisas. Do mesmo modo é preciso rachar as palavras ou as frases para delas extrair os enun-ciados... Toda formação histórica diz tudo o que pode dizer, e vê tudo o que pode ver [...]. Leve-se a linguagem a seu extremo limite, elevando à potên-cia do indizível (DELEUZE, 1992, p.109-121).

Nesse contexto, muitos professores passam a reconhecerem-se como incapazes de

ensinar, especialmente aos alunos oriundos de grupos marginalizados, relacionando

essa incapacidade com as questões concretas de trabalho colocadas no cotidiano,

como: a questão salarial e o número de alunos em sala, a universalização do ensi-

no, problemas sociais e familiares dos alunos. Deslocam o foco de análise do plano

de imanência8 em que essas questões efetivamente acontecem para justificar o

“fracasso” do aluno (e o seu próprio “fracasso” como profissional em Educação) a

partir de valores transcendentais, como fala uma das professoras.

8 O plano de imanência cresce em dimensões, nunca tendo uma dimensão suplementar ao que se passa sobre ele [...] O plano de imanência é como um corte do caos, e age como um crivo... Pressentimos com efeito que há algo importante a ser extraído do caos [...] falta-nos um plano que recupere o caos, condições que nos permitam ligar esses dados e neles encontrar sentido, antes no modo de uma problemática do que no de uma interpretação [...] ‘De imanência’ e não mais ‘transcendental’: porque o plano não precede o que vem povoá-lo ou preenchê-lo, mas é constituído e remanejado na experiência [...]. A experiência pensada a partir do plano de imanência é sem-pre singular, inseparável de uma produção de uma novidade. Trata-se de pensar o conceito de alguma coisa que nunca é dada de uma vez nem para sempre, que tampouco se dá progressivamente, parte a parte, mas que se diferencia ou se redistribui, só existindo em suas próprias variações (ZOURABICHVILI, 2004, p. 75-87).

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- É difícil trabalhar com o aluno Luiz, 9 porque ele ter uma atitude muito di-ferenciada [...]. Ele tem uma família muito desestruturada. A mãe dele afir-mou que não abre mão de ter a própria sua vida em função da criança. Por isso, não deixa de ir a pagodes e leva o menino com ela. O pai do menino é um ex-presidiário que leva o menino para fazer musculação. Isto tudo in-fluencia no comportamento dele, ora é muito agressivo com os colegas e, em outros momentos, é muito carinhoso e carismático.

Tal posicionamento desloca o campo problemático dos encontros vividos nos cotidi-

anos no CMEIs, assumindo-se, ainda que provisoriamente, os enunciados desclas-

sificatórios vinculados pela mídia como verdades inquestionáveis. Dessa forma, al-

guns professores passam a desconsiderar os múltiplos processos de experimenta-

ção estendidos nos espaçostempos educativos, reconhecendo e aceitando a inefici-

ência do ensino público. Nesse sentido, a partir dos discursos produzidos pela mí-

dia, as professoras expõem, abaixo, em sua argumentação:

[...] A visão que a gente tem do Magistério, como sendo uma profissão me-nos digna, não reconhecida financeiramente, é um discurso que a gente repete tanto, tanto, tanto que acabou sendo uma realidade. Agora a gente tem que fazer o discurso, do contrário, a gente tem uma prática que está tentando romper com algumas coisas que estão aí colocadas. A gente está tentando fazer um trabalho diferente e até está sendo reconhecido. – Quando a gente deprecia a Escola Pública, praticamente nós estamos nos depreciando, porque colocamos assim: que a escola particular é dessa e dessa forma... E nós? Nós também não estudamos?

Entretanto, algumas professoras, na tentativa de ocupar um lugar social de status e

obter reconhecimento e valorização profissional, procuram a qualquer custo desen-

volver uma prática de acordo com as prescrições das reformas educacionais, des-

qualificando, muitas vezes, as singularidades produzidas no trabalho do grupo em

que atuam. Esse tentativa de responder a uma forma de atuação padronizada gera

muita tensão nas relações e uma prática educativa de vitrine, ou maquiada; nas

quais os processos educativos e as práticas cotidianas que escapam aos modelos

pouco ou nada importam, pois o que conta é a culminância, ou seja, o produto final

a ser apresentado nas exposições culturais anuais que assumem, assim, a função

de vitrines.

9 Todos os nomes presentes nesse texto são fictícios.

21

A superficialidade da composição dessas vitrines, que pouco ou nada dizem sobre a

complexidade10 dos processos produzidos no dia-a-dia das práticas educativas, pra-

ticamente não foi problematizada nos encontros entre as professoras, durante a

pesquisa. Esse movimento está atrelado a um modo de organização social da con-

temporaneidade, especialmente nos países ocidentais, denominado Sociedade de

Controle, forma do capitalismo atual, no qual o controle se deslocou do sistema de

produção para uma ênfase nas estratégias de marketing que deve envolver o produ-

to.

Como afirmou Deleuze (1992, p. 223), [...] “o capitalismo não é mais dirigido para a

produção [...] O que ele quer é vender serviços e o que quer comprar ações. Já não

é mais um capitalismo voltado para a produção, mas para o produto, isto é, para a

venda ou para o mercado” [...]. Se o que importa é a venda e o produto, as vitrines

são indispensáveis na sedução ao consumidor (palavra aqui tomada, no sentido

corrente).

Nesse contexto, os professores passam a identificar os alunos como incapazes de

aprender, buscando, nos meios científicos tecnológicos, modos de tratamentos para

superação dos déficits; reafirmando, assim, o mito do fracasso escolar, o mito das

dificuldades de aprendizagem e, por conseqüência, o mito da ineficiência do traba-

lho docente.

Então, de tanto promover tais mitos, por meio dos mais diversos artefatos culturais,

instaura-se uma poderosa produção discursiva que cria certa realidade. Nesse con-

texto busca-se justificar a produção de importantes mecanismos econômicos de fi-

nanciamentos e a elaboração de novas políticas educacionais que, sobre o pretexto

de solucionar tecnicamente os referidos problemas, enfatizam a necessidade de

criar projetos de formação continuada e de reformulação curricular; destacando-se a

ineficiência das professoras no processo educativo e, conseqüentemente, a carên-

cia da escola-Educação pública.

10 Complexo é o sistema portador de uma diferença interna, sistema inventivo, criador de regimes de funciona-mento variados e imprevisíveis. Complexo no sentido que resiste a simplificação e á identidade. (KASTRUP, 2005, p.27)

22

Isso tudo, não significa dizer que não há sérios problemas em relação às condições

concretas de trabalho colocadas aos educadores ou dizer que a Educação pública

tem se desdobrado plenamente a contento. Entretanto, aderir a essa forma de pro-

blematização desconsiderando os demais e importantes fatores de uma complexa

trama, pode significar cair na armadilha de culpabilização do Magistério, restringindo

o campo de análise e distanciando-se de outras formas de elaboração de questões

mais potentes sobre o que é o conhecimento, aprendizagem e o próprio sentido de

educar.

Nesse sentido, é preciso colocar as verdades dominantes em suspenso, duvidar dos

enunciados habituais, os quais falam prescritivamente de necessidades de forma-

ção permanente e reformas constantes, alimentando um poderoso mercado de títu-

los, publicações e cursos de formação; assim como, se faz necessário colocar em

suspenso os diagnósticos preliminares que atestam como causa da crise da escola,

diversos transtornos de aprendizagem provocados por alunos que apresentam re-

sistências em adequar-se às formas instituídas de escolarização.

Diante do que foi exposto até aqui, talvez seja importante inverter a lógica da pro-

blematização usualmente produzidas e disseminadas e elaborar questões11 a partir

de outra forma de racionalidade, pôr em discussão a forma dominante de pensar-

agir em Educação, o conhecimento, a prática docente, a aprendizagem e o ensino.

Faz-se necessário analisar as formas de liquidação operadas sobre a escola públi-

ca, pois se observa que, nesses espaçostempos educativos, têm-se reduzido a a-

bertura para o debate sobre os diferentes sentidos que os profissionais, alunos, pais

e funcionários atribuem para o que é ser professora (o), ser aluno (a) e sobre o pró-

prio sentido da escola. Essa situação produz um esvaziamento da escola como es-

paçotempo público de discussão.

Ao destacar o esvaziamento da escola como espaçotempo público, é importante

considerar que [...] “não existe o público ou políticas públicas em estado puro e ab-

11 Deleuze [199_] diferencia questões das interrogações, por considerar que as interrogações pressupõem uma resposta pessoal – uma opinião. Já as questões instauram um campo problemático e nos convocam a pôr em suspenso às formas habituais de argumentações, produzindo um movimento na forma corrente de análise. Colo-car uma questão está atrelado a um modo de pensar que utiliza como parâmetro à ética, ou seja, ampliação ou redução da potência de vida.

23

soluto” (Lopes, 2006, p. 34), pois “toda força, todo movimento [...] que tenta construir

alguma forma de [...] exercício de poder coloca o projeto como sendo público [...]”.

“Mas na verdade todo projeto público é uma composição de interesses [...]” (Cam-

pos, 2005, p. 92, aput Lopes, 2006, p. 34).

Dessa maneira todo poder ou força que propõe um projeto público é ne-cessariamente uma forma de associação entre interesses particulares que conseguem abrir e manter negociações em torno de necessidades co-muns, criando um movimento político de composição que pode então a-contecer como de interesse e caráter público (LOPES, 2006, p. 34).

Nesse sentido, é preciso analisar quais forças têm predominado na composição pa-

ra averiguar se essas forças cumprem efetivamente funções associadas às neces-

sidades colocadas pelo coletivo ou se essas forças têm atuado primordialmente, no

atendimento, a interesses particulares.

24

2 A QUESTÃO

O problema de estudo que, inicialmente propus a investigar foi focalizado nas inven-

ções produzidas pelas professoras nos processos de experimentações pensados

como produção da diferença, em Deleuze, diferença é justamente o que nos arranca

de nós mesmos e nos faz devir outro (ROLNIK, 1996, P. 255). No entanto, no decor-

rer do percurso da pesquisa de modo entrelaçado, agregaram-se a questão de estu-

do proposta, outras dimensões relativas aos obstáculos e dificuldades urgentes en-

frentadas pelos educadores produzidos na intercessão entre os enunciados domi-

nantes nas ações educativas e práticas comuns engendradas pelas professoras, isto

é, os problemas enfrentados por elas na atualidade vivida.

Assim, minha entrada no movimento do espaçotempo educativo de um CMEI, a fim

de captar as ações inventivas das professoras produzidas nesses cotidianos, fui

convocada a analisar os entrelaçamentos correlativos produzidos pelos discursos

dominantes em sua estreita relação com as práticas educativas (discursivas e não

discursivas) singulares ali desenvolvidas.

Dessa forma, deparei-me com a necessidade de cartografar os múltiplos e difíceis

obstáculos, os quais têm interrompido os fluxos inventivos, bem como os efeitos tó-

xicos que têm provocado adoecimentos nos corpos vibráteis; tanto quanto atentar

para não perder de vista a intenção inicial de focar-me nos movimentos inventivos

ou processos de experimentação que buscam canais de expansão para as intensi-

dades que deles emanam, rompendo, ainda que temporariamente, com as referidas

barreiras e interrupções.

Assim, busquei traçar uma cartografia das paisagens que ali foram se formando e se

deformando, sabendo de estar participando da produção de novo-outras paisagens.

Com Barros (2000), aprecio, portanto, que:

A dimensão de pesquisa que estamos que propomos é outra: considerar as teorias e práticas, colocadas em ação hoje, em seus efeitos de produção de subjetividade. Pesquisa que utilizem ferramentas teórico-metodológicas que se expressem por meio de outras formas de interrogação e estratégias analíticas... Pesquisadores cartógrafos, que não se preocupam em transmi-tir o puro acontecimento, mas que incorporam os fatos da própria vida, para

25

comunicá-los como sua própria experiência, deixando na pesquisa seu tra-ço, “como a mão do artesão na argila”. ... Apostamos na afirmação de um pensamento que se apresente como problema, como multiplicidade dispersa, onde a pergunta não cessa de se mover e as respostas se transformam, incessantemente em novas pergun-tas. (BARROS, 2000, p. 02-03)

Acompanhando os movimentos dos cotidianos de um CMEI, o movimento dos cor-

pos (inclusive dos corpos institucionais) entre as linhas do desejo – nas salas, nos

corredores, pelos pátios, nas praças, teatros e passeios, enfim, [...] ”nos diferentes

espaços – e produzir um pensamento problematizante” (BARROS, 2000, p. 02-03).

Para tanto, utilizo uma perspectiva de análise micropolítica que diz respeito às for-

mações do campo social de desejo e que se dá no entrelaçamento das três linhas

constitutivas dos diferentes modos de existências: as linhas molares, as linhas flexí-

veis e as linhas de fuga. Uma análise nessa perspectiva cria um plano de possíveis

que nos permite desestabilizar “as redes discursivas vinculadas à moral, que tem

atuado de forma dominante nas práticas educativas” (idem).

Ao assumir um estudo cartográfico, na tentativa de rascunhar os movimentos das

três linhas constitutivas dos campos do desejo, é preciso considerar que o conceito

de desejo, aqui cunhado, não remete ao conceito de psicanalítico atrelado ao triân-

gulo edipiano, mas ao conceito de desejo forjado por Deleuze e Guattari, que não

opera sobre uma coisa ou alguém, mas remete à paisagem, ao entorno; isto é, dese-

jo como conjunto de um contexto onde paisagens e pessoas afirmam (ou negam)

certo modo de ser, viver, pensar e agir, certo estilo de vida. Assim, deseja-se algo

que tem um significado dentro de uma rede de relações.

É justamente aí que a lógica capitalística12 opera, produzindo formas de ser e estar

aceitas como “normais” e desejáveis dentro de um determinado contexto, formas

essas valorizadas por um conjunto de corpos que as reafirmam dentro de uma de-

terminada paisagem.

12 Lógica capitalística refere-se à produção de subjetividade de uma natureza industrial, ou seja, fabricada, mode-lada e consumida em escala internacional, presentes em modelos de sociedade organizada sob a forma do capita-lismo, mas também do socialismo autoritário.

26

Desejo é produção. Remete a agenciamentos em que o inconsciente funciona como

uma fábrica que, nos diferentes encontros, vai produzindo outras formas de si. As-

sim o desejo fala da produção de territórios e de processos de desterritorialização.

Nesse sentido, pode-se argumentar que, quando o poder dominante atua produzin-

do um processo de modelização sobre a forma de ser professora ou criança, aceito

como válido em determinado momento, essas formas dominantes precisam ser valo-

rizadas pelos corpos que compõem determinado contexto, sendo necessário que se

responda afirmativamente a esses enunciados.

No entanto, o desejo é múltiplo. Outros agenciamentos vão se constituindo, forman-

do, variadas paisagens que desestabilizam a modelização capitalística, outros mo-

dos de funcionamento vão sendo produzidos.

A partir dessa forma de problematização, podemos afirmar que o processo capitalís-

tico atua no campo social do desejo tentando conter, minimizar, desqualificar esses

fluxos criativos de novos campos existenciais. Entretanto, para que esse projeto se

concretize, é preciso que ele funcione em nós mesmos, em nossos amigos e em

todas as partes, direções e sentidos.

Ao analisar os movimentos das professoras entre as três linhas constitutivas no

campo social do desejo, procurarei enfatizar os processos de subjetivação. Conside-

rando “que a subjetivação consiste na invenção de outras possibilidades de vida,

como diz Nietzsche, na constituição de verdadeiros estilos de vida: dessa vez, um

vitalismo sobre o fundo estético” (DELEUZE, 1992, p. 114).

... Subjetivação, no sentido de processo, e ‘Si’, no sentido de relação (rela-ção a si). E do que se trata? Trata-se de uma relação de força consigo (ao passo que o poder era relação com outras forças), trata-se de uma ‘dobra’ da força. Segundo a maneira de dobrar a linha de força, trata-se da consti-tuição de modos de existência, ou da invenção de possibilidades de vida que também dizem respeito à morte, as nossas relações com a morte: não como existência, como sujeito, mas como obra de arte. Trata-se da inven-ção de modos de existência [...]. Modos [esses] que não cessam de se re-criar, e surgem novos (DELEUZE, 1992, p. 116).

Assim, ao analisar os processos de subjetivação, tomo como referência as linhas

molares, a partir do uso da percepção, na medida em que essas linhas estão bem

mais delimitadas. No entanto, começar a análise por essas linhas não significa que

27

seja possível separá-las assim tão facilmente, pois elas se entrelaçam e se confun-

dem. Para problematizar a partir de uma análise a olho nu, introduzo, concomitan-

temente, um movimento imperceptível − deixando-me afetar − através do meu corpo

vibrátil, pelas intensidades que circulam nos encontros educativos produzidos nos

espaçostempos educativos.

Diante do exposto, busquei cartografar os movimentos do pensamento nas ações

educativas engendradas pelas professoras, tendo como parâmetro de análise uma

perspectiva ético-estético-política. Barros (2000) destaca que [...] “Guattari propõe a

expressão paradigma ético-estético-político para se contrapor ao paradigma cientifi-

co.” Assim, argumenta que esse paradigma é...

[...] Estético porque diz de uma necessidade de criação permanente, sub-vertendo a pretensa unidade do mundo capitalista, ético porque é potência ativa que surge na imanência das práticas para coordenar a vida e escolher a forma de vivê-la, e política porque implica na escolha de modos de mundo em que se quer viver” (BARROS, 2000).

Assumir esse parâmetro de análise significa problematizar nossa relação com a a-

tualidade, se ocupando com a elaboração de uma crítica permanente em relação a

nós mesmos, nossos modos de ser pensar, de sentir e de viver; problematizar nos-

sas tradições, valores e normas, “[...] modos como nos constituímos e fazem reco-

nhecermo-nos como sujeitos individual-coletivos do discurso da Educação” (Lopes,

2006, p. 8).

Assim, na sessão seguinte dessa primeira parte do texto, procurarei fazer algumas

considerações sobre os modos como habitualmente se concebe a cognição tentan-

do expandir os conceitos de pensamento, conhecimento e aprendizagem usualmen-

te associados ao campo da Educação (re) significando esses mesmo conceitos ba-

seando-me em estudos desenvolvidos por Deleuze, Bergson e Kastrup; de modo

adicional e entrelaçado, busco utilizar a abertura instaurada por Foucault13 ao fazer

uma análise sobre a atualidade a partir de um texto produzido por Kant.

[...] nessa análise que Foucault elabora sobre a modernidade [a partir do texto de Kant] [...] situa a obra do referido autor como ponto de abertura pa-ra duas linhas divergentes: a analítica da verdade e a ontologia do presente.

13Foucault, em O que são as Luzes, 1984 – publicado no livro da coleção Dito & Escritos II. 2ª ed. Rio de Janei-ro, Ed. Florense Universitária, 2005.

28

A primeira concentra-se na questão das condições nas quais um conheci-mento verdadeiro é possível e a segunda consiste numa ontologia do tempo [...] Foucault fala de divisão da filosofia moderna com o sentido positivo de criação de diferença. (KASTRUP, 1999, p. 29)

Considerando que Kant produziu uma bifurcação na Modernidade dividindo o pen-

samento filosófico em duas vertentes distintas: a Ontologia do Presente e a Analítica

da Verdade. É então a partir dessa primeira vertente que encontro frestas para pen-

sar outras formas de abordagens para os conceitos acima destacados.

Por fim, termino essa primeira parte, traçando um mapa extensivo e intensivo dos

movimentos desdobrados no decorrer da pesquisa. Movimentos que possibilitaram

a produção de processos os quais, mais a frente, analiso.

A partir dessas considerações, na segunda parte do texto, procurarei produzir análi-

ses sobre os processos engendrados nos encontros educativos, durante a produção

da pesquisa. Como foi dito anteriormente, abordarei as experimentações inventivas

das professoras produzidas nos encontros entre elas e entre elas e as crianças, den-

tro de um complexo e dinâmico diagrama de forças, no qual linhas de segmentarida-

de duras atravessam os conjuntos práticos singulares podendo vir a produzir obstru-

ções e estancamentos nos canais de passagem dos fluxos emitidos pelos corpos

desejantes de ampliação da potência vital.

Assim, no quinto capitulo denominado Dos Sistemas de Capturas aos Problemas e

Obstruções, trato dos atravessamentos produzidos pelo modo de organização social

contemporâneo especificamente no que se refere à tentativa de captura dos proces-

sos de subjetivações em meio à imposição de subjetividades atreladas a valores

mercadológicos, discutindo questões relativas às obstruções dos processos de ex-

perimentações inventivas nas negociações entre as forças que compõem o caráter

público desse espaçotempo educativo, muitas vezes, privilegiando interesses parti-

culares e privados.

No sexto capítulo, intitulado Dos Movimentos produzidos na constituição das perso-

nagens principais, subdividido em três tópicos, sendo eles: Dos Movimentos Produ-

zidos na Constituição Profissional, A Tentativa de Produção de uma Identidade Pro-

29

fissional e, por último, Das Exigências de Formação Superior, abordarei questões

relativas à profissionalização e a profissionalidade docente, a partir dos fluxos carto-

grafados durante a realização da pesquisa. Mais à frente, no sétimo capítulo, procu-

ro traçar um quadro provisório e parcial do dinâmico e complexo diagrama de forças

produzido nos espaçostempos educativos em que a pesquisa foi sendo realizada,

onde esses, atuando sobre forte grau de dominação, podem reduzir a liberdade e

podendo produzir adoecimentos nos corpos vibráteis; concomitantemente procuro

traçar as estratégias de sobrevivências desejantes produzidas pelos corpos ao quais

não se deixam aprisionar.

Por fim, no oitavo capítulo coloco um foco de luminosidade nas ações inventivas

produzidas pelas professoras no encontro entre elas e entre elas e as crianças, en-

fatizando o movimento onde o pensamento se vê forçado a pensar - a colocar um

problema, ou mesmo, quando esses encontros produzem questões para os modos

de escolarização institucionalizada habituais.

Por fim, analiso a partir dos processos cartografados nos espaçoestempos dos coti-

dianos de um Centro de Educação Infantil a importância de se pensar-praticar a E-

ducação como uma Obra de Arte, buscando evidenciar a emergência de outros

campos de possíveis para o acontecimento da docência como devir.

30

3 ALGUNS BONS ENCONTROS E TÍMIDAS APROXIMAÇÕES...

3.1 PENSAMENTO EM DELEUZE

Recorro a Deleuze (2006), em seu livro Diferença e Repetição para discutir a ques-

tão do pensamento, pois nessa obra, ele procurou fazer uma crítica a uma imagem

dogmática do pensamento, produzida no decorrer da história do pensamento filosó-

fico. Nesse estudo ele propõe uma inversão na forma de conceber o pensamento.

Sua argumentação tem como proposta determinante, estampar um foco de luz sobre

os problemas que a imagem dogmática do pensamento produz, considerando que

esta foi sendo estruturada a partir de um quadro fixo de representações – verdades

válidas em determinado contexto que, por sua vez, determinam o que tem sentido

ou não, desconsiderando a dimensão inventiva do pensamento. É justamente essa

dimensão que Deleuze traz à visibilidade possibilitando uma grande ampliação de

possíveis novas composições educativas cujo parâmetro seja a expansão da vida.

Deleuze argumentou que, ao contrário do que se acredita freqüentemente, pensar é

raro; pensa-se muito mais por força de uma “pancada” do que uma boa vontade. O

pensamento é forçado a pensar por força de um desequilíbrio provocado por signos

que nos desestabilizam, de tal forma que produzem um mal-estar, exigindo o movi-

mento do pensamento na medida em que já não temos elementos disponíveis, ca-

pazes de produzir um sentido para suprir o mal estar provocado pela violência ope-

rada por um signo. Assim “[...] pensa-se muito mais por um choque, do que por um

desejo” ou exercício natural de uma faculdade mental fundada numa boa vontade

(Deleuze, 2006). O próprio Deleuze, ao analisar a formação histórica que sustenta a

imagem dogmática do pensamento considerou que...

“[...] pensar seja o exercício de uma faculdade, que esta faculdade tenha uma boa natureza e uma boa vontade, não se pode entender de fato. ‘To-da a gente’ sabe que, de fato, os homens raramente pensam e fazem-no mais sob um choque do que no impulso de um gosto” (2000, p. 230, grifo meu)

Em suas considerações, Deleuze (2006) traçou uma crítica aos mitos fundadores

que até então propagavam a idéia de que a todos é concedido, naturalmente, o dom

de pensar, por considerar que essa idéia está vinculada ao pensamento como direito

31

de todos, sendo esse direito estabelecido por referências morais arbitrárias. Para

Deleuze, a imagem tradicionalmente vinculada ao pensamento se impõe sobre o

direito e se sustenta no modelo da recognição. Nessa perspectiva, o pensamento só

se compunha da dimensão do reconhecimento de representações disponíveis, o que

acarretou numa forte redução do pensamento que, por extensão, neutralizou a sua

dimensão inventiva.

Para garantir que a imagem dogmática pudesse restringir o pensamento à sua con-

dição de recognição e de ato natural que se daria no intelecto, de forma a desconsi-

derar o pensamento inventivo, fez-se necessário criar algumas condições (ou postu-

lados) 14 para que essa imagem pudesse se estabelecer. É a partir da crítica a esses

postulados que Deleuze (2006) inverte a imagem do pensamento, remetendo-o ao

indeterminado.

Um dos postulados analisados por Deleuze é o que se refere ao bom senso e ao

senso comum. Para ele, é aqui que se opera o corte, por meio da moral, o qual divi-

de o que seria um estado puro inicial (uma norma identitária) que é transversalmente

cortada por uma moral transcendental (não estando esta, colocada no plano de ima-

nência – mas no mundo das idéias), produzindo divisões e diferenciações. Assim, as

verdades, que seriam, por direito, partes da imagem do pensamento, sofrem elas

mesmas determinações abstratas e arbitrárias.

O pensamento é suposto como sendo naturalmente recto, porque ele não é mais uma faculdade como as outras, mas, referido a um sujeito, é a unida-de de todas as outras faculdades que são apenas os seus modos e que ele orienta sob a forma do Mesmo no modelo da recognição. O modelo da re-cognição está necessariamente compreendido na imagem do pensamento. [...] é ainda este modelo que reina e que orienta a análise filosófica do que significa pensar (DELEUZE, 2006, p. 232).

Pode-se considerar, então, que a imagem dogmática do pensamento está funda-

mentada como elemento do senso comum que dele deriva por direito.

14 São oito os postulados que, segundo Deleuze (2006, p. 239-240) sustentam a imagem dogmática do pensamen-to, sendo eles: “[...] 1) postulado do princípio ou do Cogitatio natura universalis (a boa vontade do pensador e a boa natureza do pensamento); 2) postulado do ideal ou do senso comum; 3) postulado do modelo ou da recogni-ção; 4) postulado do elemento ou da representação (quando a diferença é subordinada às dimensões complemen-tares do Mesmo e do Semelhante, do Análogo e do Oposto; 5) postulado do negativo ou do erro; 6) postulado da função lógica ou a preposição; 7) postulado da modalidade ou das soluções; 8) postulado do saber (a subordina-ção do aprender ao saber e da cultura ao método)”.

32

Entretanto o autor considera que “[...] é evidente que os actos de recognição existem

e ocupam grande parte da nossa vida quotidiana: é uma mesa, uma maçã [...]” (De-

leuze, 2006). No entanto, o pensamento não se restringe ao simples ato de reco-

nhecer o conhecido. Parece-me que o ponto central da crítica que Deleuze (2006)

faz à imagem dogmática do pensamento está justamente na limitação de sua di-

mensão inventiva, restringindo o pensamento às formas e normas conhecidas, o que

produz um massacre em relação aos processos de diferenciação – atingindo e redu-

zindo a potência do pensamento que nasce no próprio pensamento – pensamento

que se inventa em si mesmo; potências de engendrar modos de existências os quais

possam quebrar as representações conhecidas que já não respondem mais às ne-

cessidades de expansão que a vida vai produzindo nos encontros onde os signos

fazem irromper a diferença.

O pensamento, na perspectiva da recognição, reconhece as verdades de seu tempo.

Reconhece os valores e os objetos de um momento determinado, não em sua con-

dição de provisoriedade, mas como valores universais e eternos.

A partir dessa forma de argumentação, Deleuze (2006) denuncia que a estruturação

de uma imagem dogmática do pensamento operou, fundamentalmente, pela elimi-

nação da diferença, e ele o faz a partir da seguinte consideração:

A idéia de que o cogito universalis ‘Eu Penso’ é o princípio mais geral da representação o que significa que ele seria fonte destes elementos e a uni-dade de todas as faculdades: eu concebo, eu julgo, eu imagino e recordo-me, eu percebo – como os quatro ramos do Cogito. E, precisamente sobre estes ramos, é crucificada a diferença. Quadrúpla sujeição, em que só po-de ser pensado diferente o que é idêntico, semelhante, análogo e oposto; é sempre em relação a uma identidade concebida, a uma analogia julgada, a uma oposição imaginada, a uma similitude percebida que a diferença se torna objecto de representação. (DELEUZE, 2006, p. 238)

Ou seja, a partir dessa imagem do pensamento só pode ser pensado o que é colo-

cado em relação com os modelos de referência produzidos historicamente.

Em função disso, é que a representação se caracteriza por sua impossibilidade de

pensar a diferença em si mesma e a repetição como eterna diferença. Repetição

33

que não se deixa aprisionar numa reprise, mas que é sempre em si mesma potência

de diferimento.

Em DR15, Deleuze (2006) então distingue duas formas de pensar: a primeira vincu-

lada à recognição – reconhecimento de representações disponíveis por meio de es-

quemas pré-fixados – denominado por ele como o pensamento tranqüilo; e uma se-

gunda forma que nos força a pensar o impensado – que nos desestabiliza, que nos

arromba.

São nos encontros engendrados no quotidiano que nós somos forçados a pensar. E

esses são encontros contingentes, encontros de corpos, quando signos (um filme,

um olhar, uma luminosidade...) nos impõem problemas e forçam a pensar; e, segun-

do o autor, o que nos afeta, nos arromba e nos força a pensar só pode ser sentido:

“[...] aquilo que só pode ser sentido sensibiliza a alma, torna-a perplexa, isto é, força-

a a colocar um problema, como se o objecto do encontro, o signo, fosse portador de

problema – como se ele suscitasse problema” (DELEUZE, 2006, p. 241).

Eis, portanto, que a sensibilidade, forçada pelo encontro a sentir o sentien-dum, força a memória, por sua vez, a recordar-se do memorando, daquilo que só pode ser lembrado [...]. Cada faculdade saiu de seus eixos. Cada uma, por sua conta e na sua ordem, quebrou-se a forma do senso comum, [...] para atingir a enésima potência, como ao elemento do paradoxo no e-xercício transcendente. Em vez de todas as faculdades convergirem e con-tribuírem para o esforço comum de reconhecer um objecto, assiste-se a um esforço divergente, sendo cada uma colocada em presença do seu próprio, daquilo que lhe diz respeito essencialmente. Discórdia das faculdades, ca-deia de força e pavio de pólvora, em que uma enfrenta o seu limite e só re-cebe da outra (ou só comunica à outra) uma violência que a coloca em face do seu elemento próprio, como do seu disparate ou do seu incomparável [...]. É, portanto, a coexistência dos contrários, a coexistências do mais e do menos num devir qualitativo ilimitado, que constitui o signo ou o ponto de partida daquilo que nos força a pensar (DELEUZE, 2006, p. 242-243).

Nessa perspectiva discursiva, as faculdades (memória, imaginação, linguagem...)

não têm relação com algo já dado – não remetem à essência, mas, ao contrário, são

estados livres ou selvagens, diferenças em si mesmas.

Assim, o corte operado pela diferença irrompe a partir de signos, e o inesperado, o

imprevisível nos força a pensar. Para tanto, utilizamos as ferramentas conceituais

15 Refere-se ao livro Diferença e Repetição.

34

que dispomos para instaurar outros campos problemáticos. Logo, os saberes vão se

constituindo forçosamente por simulacros-fantamas os quais nos desterritorializam e

nos fazem, afundados na experiência, pensar o impensável ou o que ainda não foi

pensado. Simulacros-fantasmas reportam-se a algo que não tem referência qualquer

com um modelo a priori. É aqui utilizado para designar os saberes singulares, os

quais se desviam dos saberes até então engendrados, produzindo outros até então

inconcebíveis. Saberes que nos assombram em suas diferenças inquietantes

Toda essa inversão na forma de expor a imagem dogmática do pensamento traz

implicações diretas na forma de pensar a aprendizagem, o saber e a cognição. Tan-

to que um dos postulados apontados por Deleuze diz respeito à ênfase ao saber em

detrimento da aprendizagem, na qual foi engendrada a referida imagem do pensa-

mento. Isso me parece crucial para problematizar as questões educativas de outro

plano, a partir de outra forma de pensar essas dimensões tão importantes no pro-

cesso educativo.

3.2 A APRENDIZAGEM OU... OS PROCESSOS DE EXPERIMENTAÇÕES

Se aprendo a nadar, ou a dançar, é preciso que meus movimentos e meus

repousos, minhas velocidades e minhas lentidões ganhem um ritmo co-

mum aos do mar mais ou menos durável.

Gilles Deleuze

A aprendizagem, assim, não é apenas um ato humano – mas um pensamento. E se

pensar é produzir/criar/inventar problemas é preciso considerar aqui que “[...] um

problema não existe fora de suas soluções. Mas, em vez de desaparecer, ele insiste

e persiste nas soluções que o recobrem” (DELEUZE, 2000, p. 275), criando abertura

para outras tantas problematizações – constituindo-se num processo em que a a-

prendizagem não se fecha ou se restringe às soluções de problemas - a ênfase do

aprender é a produção de problemas. Os problemas estão em relação aos signos.

“[...] São os signos que ‘dão problema’ e que se desenvolvem num campo simbólico”

(DELEUZE, 2000, p. 276).

35

O que significa então aprender?

Aprender é problematizar, colocar questões práticas – mas é também agir, introduzir

processos de experimentações. Na aprendizagem o aprendiz convoca involuntaria-

mente o uso paradoxal das faculdades, ele “[...] conjuga pontos relevantes para a

produção de sua subjetividade com pontos relevantes da objetividade do problema”

(KOHAN, 2005, p. 223). A aprendizagem se dá primeiro na sensibilidade, essa po-

tência que “[...] só apreende o que pode ser sentido. É esta a Educação dos senti-

dos” (DELEUZE, 2000, p. 237).

Aprender é abrir os sentidos ao que nos força a pensar, o que exige inventar um

pensamento que ainda não foi pensado. E invenção, aqui, não tem nada a ver com

improvisação em sua dimensão pejorativa de espontaneidade, ou ausência de pre-

paração. Invenção como uma trabalhosa e meticulosa preparação que permite uma

escuta sensível (escuta que não se restringe ao aparelho auditivo, mas que é toma-

da por todo o corpo). “Escuta” que possa intensificar/aprimorar a sensibilidade, que

permite abrir-se ao novo, ao pensamento inusitado. Preparação que não se fecha

em si, mas que possibilita uma abertura ao imprevisível, ao inesperado, ao que não

é possível antecipar/prever.

Ao considerar que o pensamento e a aprendizagem nascem na sensibilidade, é pre-

ciso recorrer a Rolnik (2006) para argumentar que sentimos de duas maneiras bem

distintas. Os órgãos do sentido operam por duas funções – dupla-capacidade:

A primeira corresponde à percepção, a qual permite apreender o mundo em suas formas para, em seguida, projetar sobre elas as representações que dispomos, de modo a lhes atribuir sentido (ROLNIK, 2006, p. 12).

E prossegue a autora: Uma segunda capacidade dos órgãos do sentido que nos permite apreender a alteridade em sua condição de composição de forças vivas que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. O que é sentido existe concretamente embora em sua condição de invisibilidade (p.12).

No entanto, Rolnik (2006, p.12) destaca que, entre essas duas funções, há uma re-

lação paradoxal:

36

É a tensão desse paradoxo que mobiliza e impulsiona a potência de criação, na medida em que nos coloca em crise e nos impõe a necessidade de criar-mos formas de expressão para as sensações intransmissíveis por meio das representações que dispomos. Assim movidos por esse paradoxo somos continuamente forçados a pensar/agir de modo a transformar a paisagem subjetiva e objetiva.

Ocorre que os sistemas educacionais, com todos os seus aparatos educativos, fo-

ram e têm sido pensados, majoritariamente, a partir da imagem dogmática do pen-

samento, produzindo implicações na forma de conceber a aprendizagem, o ensino,

processos formativos... Enfim, é essa imagem que tem determinado toda uma políti-

ca educacional.

A aprendizagem e o pensamento são considerados em sua função perceptiva de

reconhecimento de formas fixas anteriormente projetadas. Tudo o que foge às re-

presentações que dispomos é considerado erro, equívoco, coisas sem sentido, 16 e,

portanto, precisam ser duramente banidas dos processos de aprendizagem institu-

cionalizada.

No âmbito da formação sócio-histórica discursiva são engendrados ‘regi-mes de verdade’ nos quais se incluem os processos de produção de subje-tividade, assim como as práticas discursivas e não discursivas que incidem na formação contínua de professores no Brasil (Carvalho, 2007).

Algumas dessas formações discursivas, mais especificamente as produzidas pela

vertente denominada como a analítica da verdade, produziram formas de conceber o

conhecimento que, apesar de diferentes abordagens, tinham como ponto em comum

a utilização da concepção de tempo pautada em duas coordenadas: uma horizontal,

que diz respeito à consideração de sua ocorrência no curso do tempo histórico, se-

qüencial e cronológico; e outra vertente vertical, referindo-se a uma ordem de su-

cessão marcada pelo progresso. A intenção desses estudos era explicar a gênese

das estruturas cognitivas, “[...] sua derivação umas das outras por filiação progressi-

va durante o processo de construção, ou seja, acompanhar as transformações da

criança ao adulto” (KASTRUP, 2000, p. 2).

16 Sentido e sem-sentido só podem ser estabelecidos em jogos de verdades produzidos em um contexto específi-co, localizado e datado, o qual determina as verdades válidas do seu tempo.

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Ocorre que pensar o tempo como sendo cronológico e seqüencial não é a única

possibilidade disponível. Outra forma de conceber o tempo foi instaurada por estu-

dos filosóficos vinculados à Ontologia do Presente, especialmente nos estudos so-

bre o tempo produzidos por Bergson, cuja ênfase se dá na consideração do tempo

como intempestivo, o que abriu possíveis para a dimensão inventiva do pensamento.

Encontra-se em Bergson (1897/1990) uma concepção de tempo distinto do tempo cronológico, e que se apresenta como coexistência de todos os tempos. “Trata-se de uma concepção que Deleuze (1966/1991) denomina paradoxal, posto que presente, passado e futuro não se sucedem, não se perdem, mas subsistem como coexistência virtual” (KASTRUP, 2000, p. 4). No conceito de evolução criadora encontram-se alguns elementos para pensar a transformação temporal da cognição. Para Bergson (1907/1979) a evolução não segue uma só direção, não possui uma trajetória única, mas desenvolve-se em forma de feixe, de modo rizomático (KASTRUP, 2000, p. 4).

Essa perspectiva de tempo prioriza o tempo presente, pois é nele que se entrelaçam

traços de múltiplos encontros quando projeções são esboçadas a partir da reativa-

ção desses traços pela memória involuntária, de forma a possibilitar o deslocamento

das representações vigentes, liberando a produção de movimentos existenciais ou-

tros; ou produzindo adoecimentos e paralisias nas formas atualizadas, 17 as quais

não conseguem mais responder às inquietudes provocadas pelos signos e, diante

da recusa ou impossibilidade temporária de invenção de outro si, enrijecem, produ-

zindo adoecimentos.

3.3 DIVERGÊNCIA E DIFERENCIAÇÃO

Bergson define a vida como força explosiva e suas formas como portadoras de um

equilíbrio estável das tendências. Desse modo, toda evolução ocorre sob o signo da

divergência e da diferenciação.

A vida bifurca-se em duas tendências divergentes − tendência repetitiva e tendência inventiva – que se misturam nas formas atualizadas. Toda forma atualizada − e aí podemos ver o caso do sistema cognitivo é um misto de ma-

17 A atualização é criação, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e de finalida-de (LÉVY, 1996, p. 16).

38

téria e tempo, guardando uma abertura e encontrando-se sujeito a estabiliza-ção (KASTRUP, 2000, p. 5).

Deste modo, o tema da transformação temporal da cognição revela-se mais amplo.

A Psicologia do desenvolvimento cognitivo descreve certo regime de transformação

temporal da cognição baseada no tempo cronológico e seqüencial uma evolução

progressiva e assimétrica. No entanto, essa não é a única possibilidade, os estudos

de Bergson, Deleuze, Kastrup nos mostram como a instauração do tempo nos estu-

dos da cognição pode ser ampliada e fecunda, exigindo uma ultrapassagem no de-

bate em que adultos e crianças são pensados de modo separados. Nesse sentido,

operou-se um deslocamento nas análises sobre os processos cognitivos, instauran-

do uma análise a partir do conceito de devir. 18

Se o pensamento e a aprendizagem nascem na sensibilidade, e não há somente a

possibilidade de tempo seqüencial, cronológico e sucessivo – mas sim a coexistên-

cia de tempos – pode-se considerar que também não há possibilidades de prever

aprendizagem, o que acarreta outro problema – que é a questão do método. Há um

método capaz de ensinar a pensar?

Recorro, mais uma vez, a Deleuze (2006) para argumentar que não se sabe como

ou quando se vai aprender; ou não se pode definir por que amores se aprende. As-

sim, é impossível prever, regular ou controlar a aprendizagem. Os processos educa-

tivos se efetivam de forma rizomática, de uma forma singular e imprevisível.

No entanto a Educação dos sentidos exige rigoroso adestramento. Na fala do pró-

prio Deleuze (1988, p. 278):

[...] Não há método para encontrar tesouros nem para aprender, mas um violento adestramento, uma cultura ou Paidéia (forma integral) que percorre inteiramente todo o indivíduo [...]. O método constitui o modo de saber que regula a colaboração de todas as faculdades: além disso, ele é a manifes-tação de um senso comum ou a realização de um Cogitatio natura, pressu-pondo uma boa vontade como uma ‘decisão premeditada’ do pensador.

18 O conceito de devir acompanha o abandono das concepções substancialistas e da perspectiva "hilemorfista" da individuação (simples encontro de forma e matéria), para pensar os corpos como singularidades e seus devires como processos irredutíveis às sobrecodificações do organismo, do significante e do sujeito. Nesse sentido, os devires são moleculares e minoritários; imperceptíveis (anorgânicos), indiscerníveis (assignificantes) e impessoais (assubjetivos) (ABREU FILHO, 1998).

39

Mas a cultura é o movimento de aprender, a aventura do involuntário, en-cadeando uma sensibilidade, uma memória, depois um pensamento, com todas as violências e crueldades necessárias, dizia Nietzsche, justamente para ‘adestrar um povo de pensadores’, ‘adestrar o espírito’.

Nesse sentido, uma questão inicial já se configura: a aprendizagem se realiza em

encontros, ela é sempre coletiva. O aprendiz é, por conseguinte um corpo coletivo, 19

que se constitui e constitui outros corpos sempre nas relações, nos encontros. En-

contros que potencializam a vida (o que Spinoza chamou de paixões alegres); mas

encontros que também podem produzir adoecimentos, envenenamentos e mortes –

denominados pelo mesmo autor, de paixões tristes. “O aprendiz é aquele que se

inventa a partir de desestabilizações que sofre, cria modos de ver/sentir/pensar o

mundo e a si no contato com toda sorte de signos, sejam pessoas, coisas ou even-

tos” (KOHAN, 2005, p. 222). Nesse sentido, a atuação do professor não se restringe

á transmissão de conhecimentos, mas trata-se de trabalhar com uma matéria em

movimento – a matéria pensamento.

Dessa forma, uma proposta de formação de professores ou ação educativa não po-

deria desconsiderar os múltiplos e diferenciados processos de experimentações ex-

pandidos a todos os encontros e entrelaçamentos engendrados nos encontros edu-

cativos, alargados para além dos muros das escolas. Encontros impossíveis de se-

rem descritos e apreendidos em sua totalidade, mas possíveis de serem considera-

dos. O reconhecimento de que qualquer coisa ou lugar pode ser lugar de aprender,

de aprender-se (inventar-se) é imprescindível para garantir a elaboração conjunta de

processos formativos. Logo, a desconsideração da expansão dos conceitos de tem-

po e cognição pode significar a formatação de tantas outras políticas educacionais

que venham a cair no vazio – sem poder de ressonância ou contágio – políticas in-

férteis e inócuas.

3.4 DO MOVIMENTO ENTRE AS LINHAS OU... POLÍTICA, DIFERENÇA E BINA-

RISMOS

19 Coletivo aqui não tem a ver com um aglomerado de pessoas, mas significa considerar os múltiplos agencia-mentos que produzem marcas (registros), as quais são reativadas pela memória involuntária nos momentos de desestabilizações – produzindo uma nova aprendizagem.

40

A elaboração de uma imagem dogmática do pensamento tem vinculações adicionais

com a questão política atrelada ao Direito e às garantias de liberdade civil, assim

como tem relação com a própria constituição dos Estados Nacionais e suas ondula-

ções na composição de modelos de organizações sociais (especialmente no Ociden-

te). Organizações capazes de sustentar o próprio Estado em sua estreita afinidade

com uma noção de ética fundamentada no direito e na moral.

A defesa de um sujeito centrado e consciente, cidadão de direitos dotado de liberdade, sustenta a necessidade de uma redução da potência da vida que se curva a uma sociedade de direitos normatizado por rígidos padrões mo-rais, os quais, em última instância, sustentam a necessidade de um Estado unificado que possa manter a organização civil e suprir seus cidadãos de suas necessidades vitais. Sob o ideal de unificação e de bem-estar social mantém-se o corpo social reduzido no mínimo de sua potência de vida, sub-trai dele boa parte de seu poder inventivo de outros modos de organização que possam se expandir em multiplicidades (FUNGANTI, 2001).

Para discutir essas relações entre Estado, Sociedade, Direito, constituição de sabe-

res em seus entrelaçamentos e o próprio funcionamento do capitalismo contempo-

râneo, Deleuze, em parceria com Guattari, faz um giro nas formas convencionais de

argumentação, problematizando a constituição da sociedade capitalista a partir de

outra dimensão: a formação do campo social do desejo ou as constituições existen-

ciais, ou seja, o problema se desloca para o domínio dos fluxos.

A questão política é abordada a partir da distinção entre dois tipos de agenciamen-

tos, como bem nos esclarece Abreu Filho (1998): a máquina de guerra e o aparelho

do estado...

O real é feito de linhas, isto é, de movimentos heterogêneos que operam segmentações (binárias, circulares e lineares), duras ou flexíveis, cons-tituindo dimensões molares ou moleculares, e fugas criadoras, tudo em perpétua coexistência e interpenetração. A diferença de natureza dos planos molares e moleculares - que remetem a sistemas de referência dis-tintos, linhas sobrecodificadas de segmentos e fluxos mutantes - não impe-de, pelo contrário, sua pressuposição recíproca. Os autores propõem uma visão original sobre o que denominam centros de poder, definidos por suas operações de conversão dos fluxos moleculares em segmentos mola-res, e sobre o Estado, pensado como agenciamento de reterritorialização ou movimento de sobrecodificação que organiza a ressonância dos centros de poder. (ABREU FILHO, 1998, p.4, grifo meu).

Assim, indivíduos e grupos são constituídos por três linhas imanentes e interpene-

tráveis: a linha segmentária dura, a linha flexível e a linha de fuga. A linha de seg-

41

mentaridade é aquela onde todas as espécies de segmentos são determinadas, em

todas as direções, e nos recorta em todos os sentidos.

A partir desses estudos, foi possível considerar que a lógica capitalista opera a partir

de um plano de organização em que diferentes e múltiplas linhas segmentárias

constitutivas de indivíduos e grupos, em diferentes agenciamentos, são cortadas por

máquinas binárias que operam dicotomicamente, produzindo hierarquizações e ho-

mogeneizações.

Definir linhas segmentárias20 e cortá-las em binarismos implica a criação de disposi-

tivos de poder, os quais, por meio da delimitação de territórios e da criação de códi-

gos específicos para cada segmento, tentam impedir a invasão/atuação nos territó-

rios por outro segmento.

A partir dessa forma de análise sobre a organização social definida pelo capital, foi

possível superar uma análise política centrada num Estado abstrato e absoluto, pos-

suidor de todo mal em si, constituindo-se desse modo, como um lugar de dominação

exclusiva e operando sobre uma massa de dominados que se articulava, a partir da

luta de classes, em favor da revolução.

O Estado é um corpo formado por instituições, estruturado em sua dimensão moral-

técnica, a partir da qual quem o controla, atuam primordialmente a serviço de inte-

resses privados e, garantindo-os por meio da implementação de um poder opressor

e tirano. No entanto, junto a esse poder, coexiste uma multidão de corpos que ali-

mentam o tirano com seu medo e submissão, alimentando-se ambos das paixões

tristes num jogo de premiações e punições. Nessa perspectiva, são maus21 os tira-

nos que só conseguem governar sobre a impotência alheia, tanto quanto os servi-

çais que alimentam a necessidade do tirano (FUNGANTI, 2001).

A partir desses estudos, uma forma diferenciada de análise política do Estado pode

ser engendrada, conforme problematização produzida por Deleuze (1988, p. 150):

20 As linhas de segmentaridade são territórios existenciais delimitados que se caracterizam por terem uma forma – um modo de funcionamento. 21 Mau sempre relativo e determinado pelo encontro entre os corpos.

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O aparelho de Estado é um agenciamento concreto que efetua a máquina abstrata de sobrecodificação de uma sociedade. Essa máquina, por sua vez, não é, portanto, o próprio Estado, é a máquina abstrata que organiza os enunciados dominantes e a ordem estabelecida de uma sociedade, as línguas e os saberes dominantes, as ações e sentimentos conformes, os segmentos que prevalecem sobre os outros.

Para operar, a máquina do Estado utiliza-se de múltiplos instrumentos coletivos (es-

colas, ambulatórios, universidades, postos de saúde, imprensa, mídia em geral), os

quais atuam diretamente na produção e modelização dos processos de subjetiva-

ção.

Máquinas abstratas de sobrecodificação organizam enunciados dominantes que, por

uma complexa relação entre saberes e dispositivos de poder, fabricam subjetivida-

des conformadas à lógica capitalística da organização da sociedade, tendo como

meio de atuação máquinas binárias que incidem sobre a linha segmentária.

No entanto, as linhas de segmentaridade duras sofrem intercessão por outros mo-

dos de funcionamento que interrogam sua forma, desestabilizando-a. Essas deses-

tabilizações criam ondulações – processos de flexibilizações.

[...] temos linhas de segmentaridade bem mais flexível, de certa maneira moleculares. Não que sejam mais íntimas ou pessoais, pois elas atraves-sam tanto as sociedades, os grupos quanto os indivíduos. Elas traçam pe-quenas modificações, fazem desvios, delineiam quedas ou impulsos: não são, entretanto, menos precisas; [...] Muitas coisas se passam sobre essa segunda espécie de linhas, devires, micro-devires, que não têm o mesmo ritmo que nossa ‘história’. (DELEUZE, 1988, p.145).

A linha segmentária, no corte da diferença, operado por modos de funcionamentos

singulares, que também se caracterizam por fluxos de desejos de produção de um

si, pode se romper completamente produzindo linhas de fuga. Essa terceira espécie

de linha nos atravessa transversalmente e nos leva em direção ao desconhecido, ao

imprevisível. Assim, movimentos de diferentes intensidades, velocidades, fluxos, rit-

mos e densidades cortam as linhas segmentárias e podem, no momento do aconte-

cimento e, a partir do rompimento com os modelos de referência, tornar-se potência

criativa de outros modos de existência (processos de singularização); tanto quanto

produzir processos de reterritorialização, ou ambos.

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Ao fazer a análise política da forma de organização da sociedade contemporânea

ocidental, Deleuze (2000) parte de uma crítica aos binarismos, por meio dos quais a

lógica capitalística opera. Gilles Deleuze faz uma reversão do platonismo, ou seja,

analisa que, ao formular sua teorização sobre o mundo das essências e o mundo

das aparências, pelo método da divisão, Platão, utilizando-se dos mitos, funda o

modelo ideal e, a partir dele, as boas cópias, as más cópias e os simulacros. “Po-

demos então definir o conjunto de motivação platônica: trata-se de selecionar os pre-

tendentes, distinguir as boas e más cópias, ou antes, as cópias bem fundadas e os

simulacros sempre submersos na dessemelhança” (DELEUZE, 2000, p. 263).

No decorrer da pesquisa, foi interessante analisar um intenso movimento de rejeição

por parte do grupo de professoras e do CTA, em relação à determinada professora.

Em diversas situações essa professora era agredida por ser considerada alguém

sem bom senso, ou fora do juízo (evidências que mais à frente, serão apontadas).

Fui fortemente tocada e instigada por aquela situação, pois os modos de atuação

profissional, as falas e outros procedimentos daquela professora eram, freqüente-

mente, julgados de modo pejorativo nas rodas de conversas e discussões. Atenta a

esse movimento coletivo, em uma das atividades promovidas pelo CMEI, resolvi a-

companhar a referida professora mais de perto. Seguem-se alguns registros de

seu/nosso movimento:

Neste dia, sexta-feira, dia de Piquenique Legal e Dia do Brinquedo, foi pro-gramada uma visita ao Parque da Pedra da Cebola, com as turmas de Ber-çário I e Berçário II. No caminho até lá (na fazendinha), uma professora demonstrava um preo-cupação excessiva com as crianças. Freqüentemente aos gritos alertava: ‘Cuidado com os gansos, eles são perigosos! Olhe mãe, cuidado. Ele está muito próximo’. [...] Ao ver as tartarugas, essa mesma professora puxou uma música conheci-da das crianças que, envolvidas pela paisagem, não se entusiasmaram em cantar. [...] Ao chegar ao lago dos patos, todos ficaram à volta e uma professora do Berçário I reiniciou a cantoria. Para cada animal observado, ela cantava uma música correspondente. Cantava, fazia gestos, gritava com uma ou outra criança que julgava estar próximo a algum suposto perigo, mesmo acompanhada de perto pelos pais.

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Fotografia 1: Passeio ao Parque

Na fazendinha, seguia o ritual. A cada animal visto... Uma música. Até que a professora em questão fez um comentário, esclarecendo sobre seu pro-cedimento:

− Tem que juntar o pedagógico. Tem que colocar o pedagógico, não é, Paula?Trazer o pedagógico. Mostrar o nosso trabalho. Na areia do parquinho, a professora gritava para uma criança no balanço: − “Maria”, eu tô aqui, heim! Diante dessa situação, comentei em tom de brincadeira: − É duro ser querida, não é professora? As crianças te procuram o tempo todo. E ela respondeu: − Não é uma questão de ser querida, mas de repercussão. Tem que mostrar aos pais que sou atenciosa, que fico de olho nas crianças o tempo inteiro.

Penso que essa professora parece ocupar um lugar marginalizado no grupo de pro-

fessoras dessa escola, lugar manifesto pela tentativa de isolamento que lhe é impos-

to por algumas das outras professoras e pelo CTA. Nessa atividade, realizada du-

rante o passeio ao Parque Municipal da Pedra da Cebola, sua performance educati-

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va é produzida como numa obra de dramaturgia, em que ela encena comportamen-

tos pedagógicos corriqueiros, levando-os ao exagero: seus cuidados são excessi-

vos, sua preocupação caricaturada, sua performance histérica.

O modo de pedagogizar as vivências das crianças e o excesso de registro fotográfi-

co das atividades realizadas acabam por denunciar o quanto essa forma de organi-

zação escolar é inconsistente do ponto de vista educativo. Levar ao exagero, carica-

turar, possibilita o reposicionamento do ângulo de visão, trazendo à luz outros mo-

dos de funcionamentos pedagógicos que passam despercebidos em muitas outras

práticas educativas desenvolvidas nesse CMEI. Do excesso ao exagero essa pro-

fessora desvirtua completamente o modelo de referência, passando então a produzir

uma prática sem analogia a qualquer modelo a priori.

Argumento a favor da produtividade analítica que considera que essa professora é

hostilizada por trazer à visibilidade a precariedade do modelo de atuação pedagógi-

ca utilizada como de referência para o trabalho de outras professoras e também em

boa parte produzida pela pedagoga em seu trabalho de orientação pedagógica e por

colocá-lo em questão, desestabilizando-o radicalmente.

Se sua atuação é considerada patética, não é menos ou mais patética do que os

modos de organização traçados para o passeio, o qual tentava garantir uma exces-

siva rigidez no desenvolvimento das atividades a serem realizadas, tentando repro-

duzir as relações espaçostemporais típicas da escola22 naquele amplo espaço de

lazer. Em função disso, o passeio foi marcado por um rígido cronograma de horários

e seqüência de atividades que deveriam ser cumpridas, conforme registrado no Diá-

rio de Campo da pesquisa.

Após uns instantes a pedagoga convocou todos a irem para a área coberta lanchar. Diante da convocação, uma mãe comentou: − “Nossa! Lanchar de novo?” (a criança já havia lanchando no CMEI).

Apesar da imensa área de gramado verde, cuja sombra era convidativa, as professoras, sob a orientação da pedagoga, organizaram o lanche sobre a

22 Modo de organização habitual que, embora prescrito, arquitetonicamente planejado nos quadros de horários e tendo o cumprimento exigido às professoras pelo corpo técnico-administrativo, nem sempre se confirma no intenso movimento dos cotidianos do CMEI.

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mesa, mesmo sendo numa altura desconfortável para as crianças ainda tão pequenas. Após o lanche, a pedagoga novamente convidou todos para irem à fazen-dinha... ...todos ficaram reunidos na caixa de areia e brinquedos, quando ela solici-tou que as mães deixassem as crianças com as professoras e se juntas-sem no campo gramado para fazer uma brincadeira. As expressões das mães revelaram certo desconforto com a idéia de brincar. Algumas ignora-ram a solicitação e continuaram brincando com as suas crianças. Outras tentaram se fazer de desentendidas, mas, diante da insistência do apito, acabaram por se dirigir ao gramado. Algumas crianças quiseram acompa-nhar as mães, entretanto foram impedidas pelas professoras que ficaram no tanque de areia brincando. Ana foi uma delas, sua mãe foi jogar peteca e ela quis ir junto de qualquer jeito. Uma professora até tentou impedi-la, mas não conseguiu, ela acabou indo brincar também com o grupo de fami-liares. Na areia, uma professora resmungava: - Só as mães é que brincam? Não vai chegar à hora das professoras brin-carem não? Só as mães é que podem brincar?

Fotografia 2: Sombra e água fresca

Um pai que acompanhava o grupo optou por ler um livro sentado à sombra de uma árvore, enquanto sua filha brincava na areia. Ao ver o quadro, a pedagoga afirmou:

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− “Olha lá! Questão de gênero. As mães brincam, mas o homem não entra na brincadeira”. Em seguida, convocou-o a participar: − “Estamos precisando de uma força masculina.”. Ele fechou o livro, observou o jogo por um tempo. E depois entrou na brin-cadeira.

De todas as partes, os indivíduos tentavam imprimir outros movimentos possíveis na

organização escolar como: o pai, as mães, as crianças, uma professora... Quebra-

vam a forma dura de arranjo imprimindo seu modo de participação na proposta de

atividade de integração proposta. Integração que tentava impor papéis previamente

determinados a serem desempenhados pelos participantes. Agora, os familiares jo-

gam peteca, as crianças brincam na areia e as professoras tomam conta. Cada um

no seu lugar definido, montando um quadro de atividades pedagógicas (quase) per-

feito.

Entretanto, a organização é quebrada por todos os lados: a aluna-usuária se recusa

a obedecer à separação adulto-criança e entra na brincadeira dos pais; uma profes-

sora marca seu descontentamento pela separação professora-mãe tentando des-

construir as fronteiras e limites rígidos nos modos de organização da escolarização;

algumas mães se mantiveram ao lado dos filhos e das professoras no parquinho.

Desse modo, a produção de modelos, definidos como ideais que servem de base,

de referência para todos, produz formas identitárias duras. Formas dominantes de

ser criança, filho, aluno, professora, formas de relacionamentos e formas de pensar.

O modelo fala de uma postura política vinculada aos enunciados dominantes de um

dado momento histórico. Isso resulta em toda uma prática social produzida para a-

justar as más cópias ao modelo. Assim, a concepção platônica de representação

cria a figura do simulacro, que se caracterizam pelo desvio radical do modelo origi-

nal, como algo que não tem qualquer semelhança com ele, simulacros-fantasmas

que assombram/desestabilizam os modelos e, por isso, devem ser eliminados, silen-

ciados. “Trata-se de assegurar o triunfo das cópias sobre os simulacros, de recalcar

os simulacros, de mantê-los encadeados no fundo, de impedi-los de subir à superfí-

cie e de se ‘insinuar’ por toda parte” (DELEUZE, 2000, p. 263).

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Em sua crítica ao sistema de representação, Deleuze (2000) considera que Platão,

ao tentar silenciar a diferença, marginalizando-a por não corresponder aos padrões

de referência, acabou por fazer emergir a potência criativa do simulacro como algo

capaz de produzir agenciamentos diferenciados e sem qualquer analogia com o mo-

delo original. Simulacro se produz como aquele capaz de provocar uma fissura no

modelo dominante, podendo desestabilizá-lo. “O simulacro não é uma cópia degra-

dada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tan-

to o modelo como a reprodução” (DELEUZE, 2000, p. 267). Assim, em seus estu-

dos, o referido autor prefere buscar, nas linhas de fuga, potência criativa de outros

modos de existência, defendendo a necessidade de deixar emergir os simulacros.

Em suas análises sobre o capitalismo e seu desenvolvimento, o autor segue muitas

direções. Entretanto, entre as principais, está justamente a idéia de que a sociedade

se define muita mais por suas linhas de fuga, vazamentos, do que pelas contradi-

ções dialéticas. Com isso, o autor investe, preferencialmente, nos movimentos mino-

ritários, pois estes podem criar potências criativas a partir do estranhamento e im-

plosão dos modelos. Minoritários que não se define pelo número de indivíduos, mas

por questionar os modos dominantes de funcionamento, produzindo modos de vida

singulares.

Investir na diferença, como potência criativa que pode vir a engendrar outros modos

de existência, vinculados ao ethos ético, político e estético, proposto pelos filósofos

da diferença, exige (como já foi dito) uma mudança radical na forma de se pensar o

conhecimento, pois este não está mais vinculado à busca de uma verdade univer-

salmente válida; não sendo assim tomados como a priori.

O processo de produção/criação de outras formas de viver, conhecer, saber; ou se-

ja, a produção de processos de singularização, que se dá a partir de problematiza-

ções rigorosas sobre as formas existentes viabilizando a irrupção de diferentes mo-

dos de aprender e se desenvolver, nos afetam, exigindo outras formulações e inven-

ções acerca das ações educativas.

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Conhecimento, mundo e individuação são partes de um movimento autopoiético, 23

no quais esses elementos vão se constituindo nas experimentações. A ênfase, en-

tão, se coloca na produção de processos de experimentações, que se dão no instan-

te do acontecimento, e que podem instaurar uma bifurcação, abrirem uma fresta,

produzirem um vazamento, uma ruptura com enunciados dominantes que tentam,

utilizando-se dos conhecimentos científicos legitimados, instaurarem um pa-

drão/modelo de desenvolvimento, de aprendizagem, de educabilidade. A aposta que

se coloca é no devir.

Essa é, portanto, uma postura ética, política e estética. Ética, no sentido de que exi-

ge uma escuta criteriosa e rigorosa do que pode constituir-se como potência de cria-

ção de novos campos de possíveis, ou seja, do que nos afeta e exige que nós nos

tornemos diferentes do que somos (como grupo ou indivíduo – que nessa perspecti-

va também se constitui num coletivo); é estética, porque exige a criação/invenção de

outros modos de existências necessariamente em revolução com a diferença; e é

política porque exige de nós mesmos um enfrentamento diante das forças que nos

impedem de tentarmos ser diferentes do que somos.

É preciso diferenciar aqui o uso habitual do termo ética, estreitamente vinculado ao

conceito de moral, do conceito de ético aqui cunhado. Para tanto, recorro ao texto À

Ética como Potência e a Moral como servidão, de Luiz Fuganti (2001) onde ele, a

partir dos estudos de Spinoza, faz uma análise muito consistente sobre Ética e Moral

na estruturação do Estado.

3.5 ÉTICA E MORAL

A palavra Ética, utilizada comumente para definir um modo ou estilo de vida vincula-

do a um comportamento comunitariamente reconhecido como apropriado. Desse

modo à ética tem como referência o bem estar de toda a sociedade; sendo muitas

vezes confundida ou reduzida ao cumprimento de leis e das normas comuns. A atu-

ação ética de um cidadão lhe concederia uma liberdade assistida por fora e vigiada

23 Termo cunhado por Maturana e Varela.

50

por dentro (Luiz Fuganti, 2001), tendo, como referência, certo grau de liberdade que

não desestabilize a constituição da organização social vigente. É como se ensina

nas escolas, por exemplo, ao estabelecerem combinados ou regras comuns, as

quais, muitas vezes, beneficiam apenas a organização da instituição, desconside-

rando as necessidades vitais dos indivíduos.

Essa forma de pensar uma postura ética produz uma submissão da vida aos limites

impostos pela sociedade contemporânea, na medida em que tenta sufocar os fluxos

de desejos de constituição de outros modos de existência que possam pôr em risco

a ordem social – ainda que esta se sustente pela banalização da vida em prol do

mercado de consumo.

Esse tipo de comportamento ético se sustenta em torno da obediência e do medo,

atuando por meio de recompensas e punições, frutificando encontros vinculados às

paixões tristes. Segundo Spinoza é por medo dos castigos e das punições que os

indivíduos se submetem à servidão, distanciando-se de sua capacidade de pensar e

agir livremente. É pela tentativa de atender às necessidades de constituição de um

sujeito consciente, que acabamos aprisionados a uma moral exterior (o Estado, a lei,

os valores de uma época que, apesar de serem historicamente datados são toma-

dos como universais e atemporais), distanciando-nos da capacidade de criar condi-

ções existenciais de efetuação de nossas potências vitais.

Valores morais que bloqueiam e separam o indivíduo de sua capacidade imanente de pensar e agir por ordem própria, desqualificando seus saberes locais e singulares como meras crenças ou opiniões e destituindo-os de suas potências autônomas que criam seus próprios modos de efetuação. (FUGANTI, 2001, p.3).

O modo de vida ético incita à constituição de planos existenciais vinculados a afir-

mação das potências criativas de um si, não mais vinculados à dominação pelo me-

do e pela obediência, mas tendo como parâmetro a expansão da vida. E a expansão

da vida significa, necessariamente, afirmar e estender os processos de diferencia-

ções. O que está em jogo não é o Bem e o Mal que segundo, Spinoza é sempre re-

lativo (e não substâncias em si), o parâmetro é o bom e o mau – no sentido do que

favorece e amplia as potências de vida e o que envenena e provoca adoecimento ou

51

morte. O que é bom ou ruim tem a ver não só com atitudes, mas com a perpetuação

da vida – diferentes modos de vida.

[...] Não existe o Bem ou Mal, mas há o bom ou mau [...]. O bom existe quando um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso, e, com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa [...]. O mau para nós existe quando um corpo decompõe a relação do nosso, [...]. Bom e mau têm, pois um primeiro sentido, objetivo, mas relativo e parcial: o que convém a nossa natureza e o que não convém. E, em conseqüência, bom e mau têm um segundo sentido, subjetivo e modal, qualificando dois tipos, dois modos de existência do homem: será dito bom (ou livre, ou razoavel-mente, ou forte) aquele que se esforça tanto quanto pode por organizar os encontros... Pois bondade tem a ver com o dinamismo, a potência e a composição de potências. Dir-se-a mau, ou escravo, ou fraco, ou insensa-to, aquele que vive ao acaso com encontros, que se contenta em sofrer as conseqüências, pronto a gemer e a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrário e lhe revela a sua própria impotência (DELEUZE, 2002, p. 28-29).

A Ética tem relação com a alegria – com os bons encontros (Spinoza). Com os en-

contros que potencializam a vida, quando os indivíduos buscam compreender as

causas e não ficam a mercê dos efeitos. Tende a superar a ignorância, a liberdade

vazia e permanentemente policiada. Ter uma atitude ética ou viver sob um estilo de

vida ético é compreender o que se compõe com seu corpo em determinado momen-

to e que pode vir a potencializar suas ações e, em contrapartida, o que decompõe as

relações particulares de seu corpo produzindo adoecimento, envenenamento e/ou

morte. São ações sempre coletivas, pois se estabelecem nos encontros. Essas são

as problematizações vinculadas à Ética, o que é bom ou mau só pode ser pensado

em relação aos encontros, aos processos de composição e decomposição. Ética,

segundo Fuganti (2001, p. 5), não é um dever para com a lei ou o Bem,

Mas uma capacidade da vida e do pensamento que nos atravessa em selecionar, nos encontros que produzimos algo que nos faça ultrapas-sar as próprias condições da experiência condicionada pelo social ou pelo poder, na direção se uma experiência liberadora, como num aprendizado contínuo. Fazendo coexistir as diferenças, conectando-as ao acaso dos espaços e dos tempos que as misturam e tornam seus encontros, ao mes-mo tempo, contingentes e necessários num plano comum de natureza ad-jacente ao campo social (pois a vida não existe fora dos encontros e dos acontecimentos que lhe advém), afirmamos o que há de fatal nestes en-contros, algo como o sentido superior de tudo o que é. Pois é querendo o acontecimento no próprio acontecimento, que liberamos algo que se dis-tingue dos fatos cotidianos (grifo do autor).

É preciso ressaltar aqui que os corpos que compõem com meu corpo em determina-

do momento, tempo, lugar e contexto, podem desencadear processos de decompo-

sição em outro. Assim, avaliar bons e maus encontros é sempre ações locais e tem-

52

porais, vinculadas ao contexto aonde os encontros vão sendo produzidos – não há

nada de universal; a não ser o desejo de preservação da vida.

O campo social passa a ser compreendido ou constituído por um conjunto de forças em relação e não mais como um agregado de formas atomiza-das, fechadas em limites morais e capturadas por valores utilitários ou fina-listas. A vontade social torna-se propriamente plural, um autêntico campo de multiplicidades virtuais ou potências de atualização (com repulsa a unifi-cações e fechamentos totalitários), torna-se verdadeiramente autônoma e aberta (Fuganti, 2001, p. 4, grifo meu).

Uma análise, tendo como parâmetro a Ética permite-nos avaliar o quanto um encon-

tro produz expansão ou redução da vida. Neste estudo, procurei me movimentar no

entrelaçamento das linhas constitutivas dos diferentes modos existenciais. Assim,

em minhas análises, busco enfocar como as professoras criam outros possíveis para

a docência, diante da intercessão de uma força dominante que atravessa os fluxos

inventivos produzidos nos processos de experimentação, os quais tentam encontrar

canais de efetuação para que a vida possa persistir e ampliar sua potência de exis-

tência.

Em função disso, considero que, ao cartografar as paisagens, priorizando as inven-

ções das professoras, faço-o considerando as múltiplas obstruções operadas nos

atravessamentos dos discursos dominantes, obstruções que não são poucas e que

têm provocando o estreitamento dos canais de passagem das intensidades emitidas

pelos fluxos. Considerando que as dimensões molar e molecular só se distinguem

pelo tipo de referência considerado na análise – uma relativa aos territórios e outra

aos fluxos ─ o campo social e as representações, não podem ser pensados como

instâncias separadas e, é justamente a partir desses atravessamentos que pretendo

afirmar os processos educativos em sua dimensão inventiva tentando captar os en-

contros que têm produzido alegrias e interrogar os encontros que têm causado tris-

teza e adoecimento. No encontro entre os corpos, a partir da obra de Deleuze (2002)

que trata sobre a teorização produzida por Spinoza:

[...] A ordem das causas define-se pelo seguinte: cada corpo em extensão, cada idéia ou cada espírito no pensamento são constituídos por relações características que subsumem as partes desses corpos, as partes dessa idéias. Quando um corpo ‘encontra’ outro corpo [...] tanto acontece que as duas relações se compõem para formar um todo potente, quanto que um decompõe o outro e destrói a coesão de suas partes [...] (Deleuze, 2002, p. 25).

53

[...] Sentimos alegria quando um corpo se encontra com o nosso e com ele se compõe, quando uma idéia se encontra com a nossa alma e com ela se compõe; (p. 25). ... Sentimos tristeza quando um corpo ou uma idéia ameaçam nossa pró-pria coerência... Mau encontro, indigestão, envenenamento, intoxicação, decomposição de relação. (p. 28) ... Essa seleção é muito dura, muito difícil. É que as alegrias e as tristezas, os aumentos e as diminuições [...] costumam ser ambíguos, parciais, cam-biantes, misturados uns aos outros. (p.163).

Assim, a questão política se desloca à análise centrada nas leis e no direito (garanti-

do pelas instituições) passando para o domínio dos fluxos – das linhas que escapam

às modelizações.

A criação desses conceitos, a análise de suas transformações e de suas relações, e a distinção de duas modalidades de temporalização e de espa-cialização configuram novas direções para a compreensão das sociedades: não defini-las por suas contradições, mas por suas linhas de fuga; conside-rar não as classes e sim as minorias como potências revolucionárias; defi-nir as máquinas de guerra não pela guerra, mas, antes, por certo modo de ocupar e de inventar novos blocos espaços-temporais. (ABREU FILHO, 1998, p. 4)

54

4 MOVIMENTANDO-ME EM MEIO ÀS ONDULAÇÕES E MARESIAS...

O presente estudo tem a intencionalidade de acompanhar os movimentos produzi-

dos nos cotidianos de um CMEI, durante o período compreendido entre os meses de

junho a outubro de 2006, no qual me fiz presente no espaçotempo escolar em, pelo

menos, três dias por semana, a fim de seguir os passos das professoras e entrela-

çar-me às seqüências de cenas (ou processos) que foram se compondo e decom-

pondo; buscando analisar, nas constituições dessas paisagens onde há pensamento

no trabalho das professoras; pensamento em sua dimensão inventiva e tentando

trazer à visibilidade as invenções engendradas nas práticas educativas produzidas

em um contexto muito específico, local e datadas.

A questão que proponho a partir da análise micropolítica estendida é a seguinte:

como os corpos das professoras (e usuários) criam estratégias de sobrevivência de-

sejantes nos encontros educativos que promovem no cotidiano para expandir os (es-

treitos) canais que permitem a passagem das intensidades e a produção do pensa-

mento; inventando, simultaneamente, formas de neutralizar a atuação das linhas

molares quando estas tentam estrangular a vida?

A partir da questão proposta, busca-se analisar o diagrama de forças que atraves-

sam nossos corpos na invenção cotidiana da escola pública e os possíveis que tais

forças liberam tanto para a expansão da vida como para o adoecimento (via enve-

nenamento).

Diante das considerações aqui descritas, a idéia deste trabalho é traçar uma carto-

grafia; ou seja, ao seguir as linhas, acompanhando as práticas engendradas pelas

professoras, buscar nos agenciamentos coletivos que as compõem, a produção a

potência de outros modos de vida como forma de atualização de outros Eus que co-

existem em mim, de forma virtual, isto é, o novo se refere à emergência e à atualiza-

ção de outro Eu, no instante preciso em que o Eu habitual perde sua consistência e

se desestabiliza. Entendendo que...

[...] O virtual não se opõe ao real, mas ao atual: virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras diferentes. O virtual é como o complexo problemático, o nó de ten-dências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou

55

uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização... Por outro lado, a entidade carrega e produz suas virtualidades, um acontecimento [...] o virtual constitui a entidade: as virtualidades inerentes a um ser, sua problemática [...] as questões que o movem, são uma parte essencial de sua determinação” (LEVY, 1996, p.15-16).

Ao considerar as desestabilizações das formas, parto da análise dos territórios por

estarem mais nitidamente delimitados para, a partir daí, cartografar os vazamentos,

as linhas de fuga. Isso não significa dizer que vou dar primazia à macropolítica ou a

política dos fatos, pois ela nada nos diz dos acontecimentos; aos fatos há sempre

algo escapar...

Assim, ocupando a abertura teórico-metodológica instaurada pelos estudos com co-

tidianos em Educação, a partir da sua postura de rejeição da idéia de composição de

um método de pesquisa a priori, mas buscando a constituição do método no proces-

so de pesquisa a partir da valorização dos saberesfazeres produzidos localmente,

do rompimento com a suposta neutralidade científica e com a dicotomia entre sujeito

e objeto e negando a ciência como produtora de verdades absolutas; procurei duran-

te a pesquisa entrar no movimento dos cotidianos de um Centro de Educação Infan-

til, a fim de captar as intensidades produzidas nos encontros entre os corpos para

criar canais de expansão e problematização do vivido, nesse sentido, me propus a

fazer uso de recursos de investigação que atuassem como analisadores, ou seja,

meios que pudessem possibilitar que as personagens colocassem em análise suas

próprias práticas educativas.

Desse modo, todos os registros: conversas, reuniões de encontros educativos, en-

contros de formação, reunião de pais, momentos de pátio, e momentos de encontros

na sala de professores e eventos cartografados, foram compondo um mosaico da

vida praticada na escola que, mais à frente, procuro analisar. Todos os lugares onde

os encontros se estabeleciam foram potencialmente pensados como espaçostempos

de pesquisa. Assim, as conversas na sala das professoras, os bate-papos estabele-

cidos nos pátios, às relações entre as personagens principais e as personagens mi-

rins, os inúmeros passeios programados... E tantos outros encontros produzidos pe-

los corredores do CMEI, tudo me interessava e foi sendo registrado detalhadamente

no diário de campo.

56

As personagens que envolveram e foram envolvidas pelo esforço investigativo confi-

guraram-se como autoras dos textos que foram compondo as folhas brancas do re-

ferido diário com imagens móveis da vida em seus processos de criação. Tais textos

foram tomados aqui como discursos autênticos e válidos, os quais passaram então a

dialogar com outros autores/as conhecidos/as (FERRAÇO, 2003). Assim, tento en-

trelaçar conversas entre as personagens principais desta pesquisa e Deleuze, Fou-

cault, Rolnik, Kastrup, dentre outros.

No entanto, ao propor essa tessitura estou ciente de que, ao estabelecer esse diálo-

go entre esses/as autores/as, faço-o a partir de leituras próprias, ou seja, não do que

o/a autor/a quis dizer a partir do que escreveu ou falou, mas da relação estabeleci

com sua escrita e suas falas, pois, como Ferraço (2003) destacou, quando leio um

texto leio-o sempre a partir de mim. Assim, ao costurar esses discursos, vou com-

pondo outro discurso que procura colocar um foco de luminosidade nos processos

de diferenciação produzido pelas personagens locais em seus movimentos por entre

as linhas do desejo.

O CMEI escolhido para a realização deste trabalho de pesquisa fica localizado em

um bairro comercial de Vitória, atendendo tanto moradores dos morros que se situ-

am em seu entorno, como moradores de outros bairros e até de outros municípios

da Grande Vitória, como no caso dos filhos de funcionários da Prefeitura Municipal

de Vitória, os quais o têm como referência, por terem prioridade no preenchimento

das vagas. A escola, no período de desdobramento da pesquisa, fazia funcionar por

seis turmas em cada turno, atendendo crianças de seis meses a seis anos, nos dois

turnos.

A participação das professoras na pesquisa foi requisitada pelo critério de adesão,

ao conhecerem a proposta de pesquisa, todas as professoras do turno matutino se

dispuseram a participar. Apesar da concordância unânime, durante a investigação,

uma das professoras se manteve distante dos processos esquivando-se freqüente-

mente. Assim, procurei respeitar os limites estabelecidos por elas, focalizando poste-

riormente as personagens que demonstravam mais abertura para com os trabalhos

e que, simultaneamente, produziram movimentos qualitativos nas mudanças das

paisagens educativas cartografadas.

57

Nesse CMEI, no turno matutino, atuam nove professoras regentes, uma professora

dinamizadora, uma pedagoga, uma diretora e duas estagiárias – além de duas pro-

fissionais de apoio que trabalham diretamente com as professoras e as crianças.

Embora a ênfase nesse trabalho seja dada às práticas inventivas das professoras, o

grupo constituído pelo CTA e estagiárias também contribuíram intensamente para o

enriquecimento do estudo. Bem como as atividades desenvolvidas pela equipe de

apoio.

Trago, nesse texto, as professoras como personagens principais, pois, a partir de-

las, é que irei entrelaçar-me as composições das paisagens que vão se formando

nos encontros educativos tecidos. Não tenho a necessidade de nomeá-las nem iden-

tificá-las, na medida em que a ação não está localizada em nenhuma delas especifi-

camente; mas a partir dos muitos encontros que foram sendo estabelecidos entre

elas, entre elas e as crianças e seus respectivos familiares e entre elas e si próprias.

Assim, ao abordar as práticas das professoras, procuro me descolar da questão do

sujeito individualizado e focalizar os movimentos das linhas que compõem individua-

ção como processo dinâmico, isso é, nos movimentos produzidos nos encontros, no

qual o olhar do Outro é determinante para interrogação de um Eu existencial habitu-

al, possibilitando a emergência de outros Eus potenciais que em cada um de nós

coabitam. Não me refiro a um Outro qualquer, vinculado aos papéis sociais institu-

cionalizados (a pedagoga, a diretora, ou mesmo a professora, o aluno, a mãe, o pai),

e fortemente marcado por excessivos graus de dominação; mas ao Outro que nos

empresta seu olhar, sua escuta, seu afeto e canaliza suas intensidades, conectando-

as ao nosso corpo; conexão que produz desestabilizações em nossas verdades ─

quando essas nos aprisionam. Outro que nos acompanha em nossas mortes exis-

tenciais e nas constituições de nossos outros Eus que deixamos emergir.

4.1 A CHEGADA OU ENTRANDO EFETIVAMENTE NO INTENSO MOVIMENTO

PRODUZIDO NO ESPAÇOTEMPO EDUCATIVO

Era uma segunda-feira. O sol aquecia preguiçosamente os corpos (alguns ainda sonolentos). Aquecimento diferenciado em ritmos singulares, de a-cordo com a reação/atração de cada um daqueles corpos no encontro com

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o corpo solar. Cada um dos corpos infantis, 24 em ritmos distintos, ia preen-chendo o espaço disponível ia penetrando o ambiente escolar em busca de dar passagem a suas afecções – preenchendo seu próprio corpo de inten-sidades que ali circulam. Observando a olho nu, cada corpo infantil seguia para o espaço que lhe foi previamente destinado (espaço da sala de aula onde as crianças são distribuídas por faixa etária?!). Seguia um após outro, cada qual para o local casulo preestabelecido. No entanto, outras vibrações eram sentidas, abrindo passagens para liberação (ainda que efêmera) de outros fluxos. Os corpos, levemente aquecidos pelo calor do corpo solar, iam sutilmente, em busca de encontros inusitados e, muitas vezes imprevi-síveis, os quais possibilitam a ampliação de sua potência. Nesse dia ensolarado, e em muitos outros dias, uma menina desvia-se de sua rota e vai até a cozinha: − Bom-dia, Maria! Maria, personagem coadjuvante, tem seguidamente encontros inespera-dos, inusitados e muito potentes. Sempre com um sorriso no rosto, no en-contro com os pequenos usuários, troca uma dose de afeto. Pequena, mas constante. Esse movimento foi resgatado por uma personagem principal em um dos grupos de estudos onde foi produzida a análise a seguir: − Isso me fez lembrar a questão da Gilda. A Gilda e a Bruna chegam e an-tes mesmo de ir para sala elas querem ir para cozinha ver a Maria. E ai uma professora chegou e questionou: − Pedagoga, o que você acha disso? − “Olha eu vou dar uma resposta para você que talvez não tenha sido a minha resposta em algum outro momento atrás... Eu hoje me pergunto: Que mal há nisso? O que tem isso? Por que a gente fica naquela cobran-ça? Tem que ir para sala, as atividades já vai começar, todo mundo vai en-trar... E se um vê que um ou outro se desprendeu do grupo vai atrás... A gente fica apegada a essas questões da ordem e da disciplina, disciplina entre aspas, e impede que isso aconteça que é o que é importante a crian-ça, pela situação que ela vive.

Estendendo um pouco sobre mais o pensamento sobre o relato anterior, percebe-se

que essa menina produz, no encontro com outros corpos infantis e as personagens

principais, intensos movimentos ora na superfície de aderência habitual, ora em ou-

tro plano da relação se consideramos que sua movimentação pelo espaçotempo e-

ducativo escapava as formas de organização habitual.

Outro corpo infantil seguia a rota predestinada (?). Entrava na sala-casulo, explorava todos os cantos, preenchia, com sua intensidade, cada um dos espaços disponíveis para, em seguida, desvencilhar-se da sala-casulo e expandir-se no amplo corredor em busca de outros encontros, encontros que pudessem preencher seu corpo. O amplo espaço do corredor, que po-deria levá-lo aos pátios, a outras salas-casulo, as salas de encontros das

24 Corpo Infantil aqui tomado como criança, mas não qualquer criança, crianças que tem vinculação com o alto grau de potência de divergência e diferenciação contida no devir-criança, mas que não se restringe a elas, perma-necem no adulto virtualmente. Infantil como potência de abertura para atualização de um outro modo existencial.

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personagens principais, os espaçostempos de tráfegos operavam aqui co-mo a rua, 25 abertura para passagem de outras intensidades, sempre de modo dissimulado. Em suas andanças fixava-se num ou noutro encontro, somente o tempo preciso onde os seus fluxos pudessem fluir, para, assim que estes fossem interrompidos, expandir-se em outros espaços.

Esses movimentos de segundo plano e, muitas vezes, difíceis de captar (des) confi-

guram completamente a organização espaçotemporal rigidamente marcada da esco-

la, compondo múltiplas outras formas de produção do cotidiano impossíveis de se

apreender, prever, controlar.

Em função disso, ao tentar caracterizar esse espaçotempo de escolarização, não é

possível definir categoricamente como é feita sua organização. É preciso considerar

que, em função dos fluxos de intensidades que insistem em romper com as formas

instituídas que organizam, por exemplo, as turmas por faixa etária; uma negociação

coletiva é produzida no encontro entre os corpos, uma vez que alguns deles ou to-

dos eles potencialmente tomam como necessidade que tais modos de organização

sejam flexibilizados, de modo que a rigidez da organização espaçotemporal acaba

por desestabilizar-se.

Em outro sentido, trago aqui um trecho de uma entrevista com uma das persona-

gens principais que traça um quadro bastante peculiar para caracterizar a escola e

importante de ser aqui evidenciado:

Bom, [...] Os alunos eles são muito diversificados. Na raça, na cor, na classe social [...] Mas, resumindo, é a classe média baixa que predo-mina. E vejo que isso é bem distribuído, em cada sala tem cinco ou quatro alunos somente da classe baixa. Eles resolvem bem isso. Não discriminam [...] Não sei se eu comentei com você que tem uma menina da tarde que vem toda arrumadinha, roupa boa mesmo, de grife infantil, ela tem o olho azul [...] mas ela ama brincar com os mais pobrezinhos, ela é bem moleca, ela suja a roupa toda, e a mãe dela acha o máximo. Não briga... De manhã é a mesma coisa, tanto de manhã como à tarde, essa clientela dos alunos é bem equilibrada, na cor [...] na questão da higiene também é muito equi-librado, tem criança que vem toda arrumadinha e limpinha, tem criança que você vê que já não tomou banho. Mas são poucos e eles se dão bem. É bem equilibrada (grifo meu).

25 A rua ou o corredor é aqui tomado como “[...] um meio feito de qualidades, substâncias e acontecimentos: por exemplo, a rua e suas matérias, com os paralelepípedos, seus barulho [...] O trajeto se confunde não só com a subjetividade dos que percorrem um meio, mas com a subjetividade do próprio meio, uma vez que se reflete naqueles que o percorrem [...] À sua maneira, a arte diz o que dizem as crianças. Ela é feita de trajetos de devi-res, por isso faz mapas, extensivos e intensivos” (DELEUZE, 2006, p. 76).

60

[...] Tem criança de morro e tem criança da Praia do Canto, de Jardim da Penha, por exemplo [...]. Tanto da Serra, quanto gente de Cariacica. E é uma diversidade que não atrapalha. Não vejo, não sinto que atrapalha em momento nenhum. É uma interação muito grande. Acho que o nome dessa escola deveria ser interação. Interação em todos os sentidos26.

É nesse cenário esboçado que, aos poucos, eu vou sendo apresentada, às perso-

nagens principais (as professoras), às personagens mirins (as crianças) e às perso-

nagens coadjuvantes (funcionários e pais). Cada uma dessas personagens assume

nesta pesquisa, um papel preponderante, no sentido de que, nos encontros produzi-

dos, vão engendrando movimentos inusitados e imprevisíveis, os quais operam na

constituição e desmanche de mundos existenciais.

4.2 UM POUCO SOBRE A MINHA MOVIMENTAÇÃO

Inicialmente, em função da necessidade de cartografar os movimentos de produção

dos modos de existências das personagens principais, organizei o trabalho de pes-

quisa de modo a acompanhar cada uma delas durante uma semana inteira; seguin-

do os encontros por elas engendrados com os usuários.

Diante do interesse de todas as professoras em participar da pesquisa e, da expec-

tativa gerada em torno do acompanhamento de suas práticas pedagógicas, as edu-

cadoras passaram a me requisitar recorrentemente para que fosse às suas salas de

aula. Desse modo, rascunhei um calendário provisório de permanência em cada

uma das turmas junto às professoras e passei a entrelaçar-me aos movimentos teci-

dos nos espaçostempos de suas práticas.

Logo de início, um primeiro desafio se colocou. Percebi que a idéia de organizar por

turma, seguindo uma professora durante toda a semana, não seria possível, pois

havia uma grande sazonalidade na presença desses profissionais na escola, pelos

mais diversos motivos (licenças médicas, participação em oficinas de vivências, 27

faltas e deslocamentos para outras turmas, etc.). Assim, tornou-se impossível acom-

panhar as professoras por uma semana inteira. O máximo que consegui foi perma- 26 Entrevista com a professora dinamizadora. 27 Oficinas de vivências eram os grupos de formação organizados pela Secretaria Municipal de Educação, em que as professoras que atuam como determinada faixa etária se reuniam para trocar experiências, por meio de relatos.

61

necer durante três dias consecutivos numa mesma turma. Diante disso, decidi seguir

o movimento da escola, combinando a cada dia, em que sala me faria presente.

O movimento inicial de entrada nas salas de aula não me pareceu muito potente,

pois as professoras, embora demonstrassem interesse pela minha presença, procu-

ravam montar um cenário e uma performance que julgavam adequados para o exer-

cício de sua função. É claro que essa produção também funcionava como um indica-

tivo do que elas imaginavam como uma prática educativa exemplar, ainda que pro-

duzido como encenação, tal movimento fez-se útil para a análise das necessidades

que os justificam.

Nesse sentido percebi que havia uma grande necessidade de valorização do traba-

lho educativo produzido associado à necessidade de conseguir aliados políticos

(pais e alunos) para disputas internas em torno do reconhecimento do trabalho e

desenvolvido, conseqüentemente, por uma maior participação nas decisões peda-

gógicas e administrativas da escola, ou seja, por assumir um lugar de poder.

Assim, pelo menos inicialmente, os locais de encontros menos formais foram se fa-

zendo mais potentes. Locais como o pátio, corredores, refeitório, entrada das crian-

ças como espaçotempo privilegiado de contato direto com seus familiares e a pró-

pria sala das professoras onde conversas inusitadas, sobre os mais diferentes as-

suntos, foram engendradas tornaram-se meus principais alvos. Os assuntos aborda-

dos nesses locais foram indicando os problemas enfrentados pelas professoras, a

partir das tensões estabelecidas entre os profissionais em seus encontros e nas re-

lações entre eles e os usuários. Eram nesses lugares de encontros que as professo-

ras se sentiam um pouco mais à vontade para fazer as análises de suas próprias

práticas, suas queixas e considerações sobre a profissão.

Outro momento importante de encontro e produção de dados desta pesquisa se deu

na participação nos grupos de estudo que ocorriam no início do turno nas segundas-

feiras. Inicialmente, minha participação nesse espaço de discussão, foi restringida à

função de espectadora, pois as personagens principais, sob a organização e gerên-

cia da pedagoga, havia traçado um plano de trabalho e estudo que já estava em an-

damento, como explica a pedagoga:

62

A partir de minhas inquietações com o desinteresse das professoras e a necessidade relatada por elas em socializar no grupo o trabalho o que cada uma desenvolvia; propus que, em cada encontro, uma dupla de professo-ras faria a exposição de um relato sobre uma experiência de prática peda-gógica de outras escolas (os textos do relato eram oferecidos por uma pe-dagoga). A intenção inicial era envolver todo o grupo na condução do estu-do e, ao mesmo tempo, dar um suporte para o registro de suas próprias práticas. O registro das práticas pedagógicas desenvolvidas no CMEI é um antigo projeto que ainda não saiu da gaveta.

Somente após os dois primeiros meses de pesquisa, consegui abrir um espaço de

discussão nesses encontros, aproveitando um sábado, quando as professoras fazi-

am à reposição dos dias letivos perdidos na greve. Nesse encontro, propus assistir-

mos e conversarmos um pouco sobre um trecho do filme Histórias do Coração I do

Ursinho Pooh, em que a personagem Kessie faz uma abordagem sobre o conheci-

mento e a experiência; e, posteriormente, a leitura individual e em pequenos grupos

do texto Experiência e Paixão de Larrosa, a partir daí estabelecemos um debate so-

bre o sentido atribuído ao conceito de experiência, buscando estender as reflexões

tecidas aos processos de experimentações engendrados pelas professoras no es-

paçotempo educativo do CMEI, o que perpassava por questões relativas às condi-

ções de trabalho e à escassez de tempo para discussões mais aprofundadas sobre

as práticas produzidas naqueles cotidianos praticados. Nesse encontro, produzimos

muitos processos que busco apresentar neste registro cartográfico.

Além desse encontro, participei de outro momento de formação proposto pela peda-

goga da escola, no qual um músico28 veio fazer um trabalho de iniciação de práticas

para Educação musical. Esse foi um momento muito importante para a pesquisa,

uma vez que as professoras dos dois turnos estavam reunidas (além de algumas

professoras de outro CMEI que fica localizado na vizinhança). Durante oito horas de

um sábado elas foram convocadas a fazer improvisações e criações artísticas, com-

pondo paisagens a partir de suas vivências pessoais, nas quais foram incluídas ce-

nas de nossos medos contemporâneos: como a violência urbana e a deteriorização

da vida, por exemplo. Esses problemas foram apresentados com humor e inventivi-

dade.

28 Músico que pretende fazer um trabalho posterior com os alunos do CMEI.

63

Outro fato de destaque nesse encontro ocorreu quando, ao tentar compor um grupo

musical harmônico, em que cada subgrupo deveria executar uma seqüência de bati-

das específicas com a utilização de pequenas baquetas, surgiu o problema dos dife-

rentes tempos de entendimento e execução do comando proposto, o que provocou

ironias e risadas, desestabilizando o grupo que mais tempo necessitou para a exe-

cução da tarefa. A necessidade de negociar um tempo comum para a realização de

um projeto coletivo (no caso um ensaio musical) trouxe à tona a dificuldade e a

complexidade desse tipo de negociação, considerando que os corpos são compos-

tos por diferentes relações de velocidades e repouso, o que, em última instância,

remeteu aos problemas enfrentados cotidianamente junto aos corpos infantis, cada

um deles com suas relações particulares de velocidade e lentidão.

A partir do segundo mês da realização da pesquisa, passei a coordenar juntamente

com a pedagoga os encontros de grupos de estudos, nesses encontros as professo-

ras passaram a fazer o relato de uma experiência pedagógica desenvolvida em sala

com as crianças. A idéia dos relatos partiu do próprio grupo de professoras, na ten-

tativa de atender à demanda por fazer circular as experiências engendradas naquele

espaçotempo educativo.

Minha expectativa, como pesquisadora, era que, ao fazer circular as referidas expe-

riências, pudéssemos discutir coletivamente os problemas enfrentados pelas profes-

soras e suas ações inventivas desdobradas em meio a tais obstáculos e dificulda-

des.

No entanto, esse espaçotempo de troca, discussões e produções foi, em certa me-

dida, capturado por forças que tentavam a todo custo institucionalizar as experiên-

cias e moldá-las a fim de organizar uma publicação. Era forte o desejo por parte do

corpo técnico, de organizar aqueles relatos sob forma de um produto final, que pu-

desse, de certo modo, dar visibilidade ao CMEI, mas a partir de interesses e neces-

sidades particulares. Novamente senti a desvalorização dos processos de experi-

mentação em relação ao produto final a ser formalmente organizado: os processos

de trocas e formação mútua se tornaram secundários uma vez que a valorização da

composição de vitrines tornou-se a prioridade institucional.

64

Como esse desejo de produção identificava-se a necessidades institucionais - co-

nectando-se a projeções e visibilidades políticas de alinhamento em relação às pro-

postas oficiais a formalização dos relatos provocou intimidações notórias nas profes-

soras que, diante do CTA, optaram por dissimular os problemas enfrentados nos

cotidianos, em suas exposições orais.

Assim, esse cada vez mais rarefeito espaço de estudo e discussão coletiva, em

grande medida, se configurou como um espaço de projeções de práticas maquiadas,

em que cada uma das professoras ia adequando as suas experiências aos modos

de atuação prescritos pelos artefatos educativos fornecidos pelo poder proprietário.

A superficialidade dos relatos produziu um esvaziamento do espaçotempo de dis-

cussão, tornando-o muitos momentos monótonos e enfadonhos. Entretanto, em ou-

tros instantes, fazia fugir uma linha para constituir situações de prazer frente ao into-

lerável de modo que a alegria e a troca se faziam presentes, especialmente quando

as professoras que apresentavam os relatos de experiência propuseram que as co-

legas de trabalho vivenciassem por si certas atividades realizadas com as crianças,

como por exemplo, a dança da cadeira. Momentos de descontração em que os cor-

pos se entregaram ao prazer, à diversão e à espontaneidade das linhas de fuga que

fizeram passar.

Foi possível perceber que a partir dessas trocas, as professoras foram adaptando as

idéias de umas às das outras, sobre como atender a uma necessidade particular e

estranha às suas expectativas.

Outro fato de destaque ocorrido nesse encontro refere-se à exposição dos trabalhos

na qual a mãe-professora-usuária relatou para as professoras de sua filha outros

usos e procedimentos possíveis no encaminhamento das atividades de casa. Proce-

dimentos outros que adequavam tais atividades (muitas vezes excessivamente abs-

tratas), às necessidades mais especificas da criança em questão. Assim, a necessi-

dade de certa qualidade de troca e diálogo entre usuários e profissionais foi um dos

temas emergidos nessas discussões.

65

Todos os relatos dos encontros de formação foram gravados em áudio e transcritos.

No entanto, pouco aparece neste trabalho, já que, diante do elevado grau de vigilân-

cia e policiamento institucional, durante esses encontros poucos movimentos foram

produzidos nas linhas constitutivas dos modos existenciais daquelas mulheres-

professoras.

A minha participação nas atividades da escola se estendeu também às Reuniões de

Pais, reuniões de Conselho de Classe, reuniões de planejamentos individuais (en-

volvendo professoras e pedagoga), passeios das turmas promovidas pelo CMEI e a

outros eventos culturais que foram surgindo no decorrer da pesquisa (como a Festa

Junina e a Semana da Criança); além, como já foi dito, da participação intensiva nas

atividades desenvolvidas em salas de aula, nos pátios, nos corredores e em outros

espaçostempos informais da escola.

Durante toda a movimentação pela escola e também fora dela, fui produzindo regis-

tros detalhados das atividades propostas, das conversas entre professoras, entre as

professoras e as crianças, entre as professoras e os pais e entre as professoras e o

CTA. Conversas que, aos poucos, foram sendo discutidas com as professoras a par-

tir da entrega de cópias dos registros produzidos. Tentando fazer com que esses

registros também funcionassem como um elemento de análise coletiva, de modo

que, ao ler sobre um ponto de vista por mim registrado sobre o seu trabalho, as per-

sonagens principais pudessem discutir sobre suas impressões, suas considerações

e suas discordâncias e, assim, pôr em análise sua própria prática. Esse movimento

investigativo também tinha a intenção de garantir que cada personagem tivesse a-

cesso ao que o registro dizia em relação ao seu trabalho, estreitando os laços de

cumplicidade entre nós e estendendo os afetos de confiança.

No desenrolar da pesquisa, essa estratégia se tornou poderosa para suscitar trocas

menos vigiadas, espontâneas e mais contundentes, na medida em que produziram

uma desestabilização na tentativa institucional que busca criar um modo de atuação

formalmente “correto” para apresentar ao órgão mantenedor e ao próprio esforço

investigativo. Essas leituras e conversas sobre o registro das práticas produziram

momentos de insatisfação, de distanciamento, mas também de cumplicidade, nos

quais as professoras me procuravam para conversar sobre suas ações educativas,

66

seus conflitos, suas dificuldades e sobre os problemas enfrentados nos encontros

educativos. Problemas associados ao relacionamento com o CTA, às próprias cole-

gas de trabalho, as crianças e pais.

Em um desses momentos de aproximações e confidências, a professora do Berçário

I falou que é muito perseguida na escola. Disse que as pessoas a pressionam sis-

tematicamente, e que, para suportar, conta com a ajuda de fora, de profissionais que

atuam na área de medicina e esporte. Revelou que faz hidroginástica, por orientação

médica, e que tem feito vários tratamentos de saúde, pois as relações ali no CMEI

têm provocado seu adoecimento.

Falou que, ao contrário do que se pensa, ela não é burra. Que conhece os seus di-

reitos e que ainda não processou judicialmente algumas colegas por considerar que

elas precisam do emprego, pois têm família para sustentar:

Eu penso muito nas pessoas, mas está cada dia mais insuportável. Se isto não acabar, vou ter que recorrer a meios jurídicos. Tenho uma irmã médi-ca, que me acompanha, e meu sogro é procurador. Tenho meus meios, e não vou recorrer à SEME para resolver este problema, vou apelar para os meios jurídicos. 29

Toda essa experimentação engendrada no decorrer da pesquisa foi configurando

um cenário local-atual e específico, mas que possivelmente possa ser estendido a

outros cenários educativos, onde se percebe um forte abalo nas crenças e utopias

pedagógicas, nas quais, comumente, víamos nos apoiando, ainda que nos momen-

tos de desespero e incertezas nossas personagens busquem soluções pré-

fabricadas, prescrições e orientações de terceiros.

No âmbito da macropolítica, muitas professoras falam sobre a queda de utopias, so-

bre o desânimo de ver desmoronar as crenças, recentemente alimentada pela ilusão

de que um apoio irrestrito à eleição de um governo de tendência progressiva pudes-

se solucionar os problemas enfrentados pela Educação local, e, correlativamente,

reverter o quadro de desvalorização profissional constituído e agravado nas quatro

últimas gestões municipais.

29 Desabafo da professora do Berçário I em conversa na biblioteca. Diário de campo, dia 10 de julho.

67

Utopia que vem caindo por terra, sendo substituída por um duro, penoso e restrito

processo de negociação traduzido em uma desenfreada disputa pela supremacia de

interesses particulares, em que não só os dirigentes municipais se mostraram de-

terminados a garantir a satisfação desses interesses, como também parte dos edu-

cadores – especialmente os que passaram a ocupar funções de chefia dentro e fora

das escolas − acabaram por dar suporte e sustentação direta ou indiretamente para

aprovação das propostas retrogradas da reformulação das políticas públicas educa-

cionais da gestão municipal. O que se tem perdido é a oportunidade histórica de im-

plementar um processo de negociação composto por diferentes forças que possam

efetivamente garantir a consolidação de uma política educacional de interesses, de

fato, públicos.

Assim, no próximo capítulo trato dos atravessamentos produzidos pelo modo de or-

ganização social contemporâneo especificamente no que se refere à tentativa de

captura dos processos de subjetivações em meio à imposição de subjetividades a-

treladas a valores mercadológicos, discutindo questões relativas às obstruções dos

processos de experimentações inventivas nas negociações entre as forças que

compõem o caráter público desse espaçotempo educativo, muitas vezes, privilegi-

ando interesses particulares e privados.

68

5 DOS SISTEMAS DE CAPTURAS AOS PROBLEMAS E OBSTRUÇÕES...

O sistema de controle implícito nas inúmeras possibilidades de modulação subjetiva

produzida pela sociedade capitalista contemporânea, agora denominada sociedade

da cognição; tem tentado capturar os fluxos criativos de desejo na tentativa de atua-

lizar no campo da Educação um modo de fazer funcionar a escola vinculada a práti-

cas discursivas e não discursivas que pretendem dar existência a uma forma de ges-

tão do tipo empresarial no âmbito da Educação. Tal movimento se manifesta na ten-

tativa de criar modelos aparentemente mais dinâmicos de profissionais competentes

e, a esses são oferecidas vantagens e premiações expressas em pequenas cotas de

participação em espaços VIP de reconhecimento social; assim como modelos de

pai, mãe, aluno, Educação de qualidade, professores nota dez, etc. Modelos ideais

que compõem a ilusão de um modo de educabilidade harmônico, em que todos par-

ticipam democraticamente das decisões, incluindo as crianças consideradas como

“Sujeitos de Direitos”, cidadãos dentre outros. Modelo que se caracteriza pela ênfase

na qualidade suposta do produto final em detrimento dos complexos processos de

experimentação que se entrelaçam ao plano de imanência do cotidiano escolar. No

entanto, esse modelo pode ser expresso anatomicamente em múltiplas, inúmeras,

variadas roupagens, o que nos oferece uma sensação de acolhimento ou reconhe-

cimento às multiplicidades, uma falsa sensação de pertencimento, na medida em

que só é possível pertencer se abdicarmos da nossa capacidade de invenção de

modos singulares de existência, pensamento e ação.

Observa-se assim, que uma das formas de captura e recuperação dos modos de

subjetivação é a produção de um modo sutil de consumo de uma escola pública de

maneira privatizada, o que se efetua com o auxílio de imagens divulgadas pela mídia

de massa, mas, também, como força potencialmente avassaladora que opera por

uma propaganda do tipo “boca a boca”; imagem essa que tem se manifestado sob

signos ínfimos e fabricados de sucesso associado à capacidade de adquirida para

competir no mundo globalizado. Troca-se a negociação do público como espaço-

tempo de discussão sobre os sentidos a serem atribuídos coletivamente à Educação

por interesses privados-particulares, que, em suma, precisam direcionar a escola

para suas necessidades mercadológicas impondo-lhe suas próprias lógicas e modos

de funcionamento, seja na produção de uma reserva de mão-de-obra, seja na pro-

69

dução do perfil desejado para um atual-futuro consumidor. Tais processos têm co-

nexão com um movimento mais amplo que diz respeito às recentes modulações na

forma de organização social-econômico-cultural, difundido a partir da instauração do

capitalismo neoliberal. Para analisar um pouco mais as novas forças de atuação de

poder dominante, recorremos a Deleuze (1992, p. 216):

É certo que entramos em sociedades de ‘controle’, que já não são exatamen-te disciplinares. [...] que funcionam não mais por confinamento, mas por con-trole contínuo e comunicação instantânea [...]. Certamente não se deixou de falar da prisão, da escola, do hospital: essas instituições estão em crise, e precisamente em combates de retaguarda. O que está sendo implantado, às cegas, são novos tipos de sanções, de Educação, de tratamento.

Na perspectiva colocada por Deleuze outra forma de poder e controle há muito já

começou a se configurar.

São as Sociedades de Controle que estão substituindo as sociedades disci-plinares [...] Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os con-troles são modulações, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante [...] [nessa forma de organização social], mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emula-ção, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. [...] Mas o capitalismo não é mais dirigido para a produção [...] Mas para o produ-to, isto é, para a venda ou para o mercado [...] a fábrica cedeu lugar à em-presa [...] A família, a escola, o exército [...] São figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma empresa que só tem gerentes (DELEUZE, 1992, p. 220-224).

Não é por acaso que a gestão municipal central imprimiu a partir da contratação de

uma empresa privada de consultoria administrativa, toda uma reformulação estrutu-

ral na Secretaria Municipal de Educação local, dividindo os seus setores em gerên-

cias: Gerência do Ensino Fundamental, Gerência da Educação Infantil, Gerência de

Tecnologia em Educação...

Este movimento de privatização da escola pública que poderia se constituir em mais

um espaço de problematização dos modos atuais de organização social, infelizmen-

te, tem se constituindo, em grande medida, num espaço de consumo das imagens

vinculadas ao paraíso prometido, imagens que permitem instaurar, provisoriamente

70

e de forma dominante, um sentido para a escola atrelado a interesses particulares

sob roupagem de Escola Pública democrática.

Esses movimentos dissimulados de privatização se manifestam em inúmeras práti-

cas engendradas no CMEI em que a pesquisa foi produzida, que apesar de supos-

tamente público e gratuito (ou melhor, pré-pago, na medida em que antecipamos o

pagamento por meio dos impostos); pratica-se um grande e permanente movimento

de arrecadação de verbas extras [junto aos usuários], o qual produz tanto um enor-

me consumo de tempo na produção de atividades pouco problematizadas, tais como

atividades como rifas, sorteios, arrecadação de pequenas cotas de dinheiro para os

mais diversos fins, tanto quanto um desgaste financeiro e relacional para os usuários

que passam a imprimir um movimento de discordância em relação a essas práticas,

muitas vezes, por não disponibilizarem dos recursos requisitados. Os fins a que se

destina o dinheiro ajudam a compor a imagem de uma escola imaginada de qualida-

de, tendo como referência certos padrões de escolas particulares, que vão sendo

expressos na produção de passeios, comparecimento em peças teatrais e promoção

de exposições de trabalhos pedagógicos e festas diversas, nos quais a discussão do

processo educativo que poderia perpassar o envolvimento em tais eventos torna-se

esvaziada.

5.1 PLANTE A PRIMAVERA

Um dos modos de liquidação da escola como espaçotempo de debate público vem

da constituição de parcerias com empresas privadas ou profissionais autônomos.

Essas parcerias se constituem a partir da arrecadação de verbas (diretas e/ou indire-

tamente) e pela transferência de atividades pedagógicas das professoras para pro-

fissionais liberais e animadores das empresas em questão. Como exemplo disso,

observamos a movimentação produzida pelo grupo do Banco Itaú, que, uma vez por

ano, desenvolve na escola uma atividade de conscientização ecológica em comemo-

ração ao início da primavera. A negociação se baseia em autorizar a empresa a de-

senvolver com as crianças uma atividade de plantio de uma muda de árvore. No

trânsito de interesses a escola recebe (além da muda de uma árvore) destaque e

status no reconhecimento social que produz para si, às crianças ganham um lanche

71

farto e a empresa um amplo espaço publicitário a custo bastante baixo que perma-

nece por mais de uma semana, nos muros da escola (foto 10).

O interessante desse processo de negociação é que, em nenhum momento, durante

a realização da pesquisa, as personagens discutiram sobre os sentidos educativos a

serem atribuídos àquela atividade oferecida pela empresa, o que me pareceu bas-

tante estranho, já que a escola rejeita, em seu projeto educativo, referências às da-

tas comemorativas. Apenas algumas delas são festejadas: como é o caso do Dia da

Criança, da Semana da Família e da Festa Junina. Datas escolhidas no início do

ano letivo em discussão coletiva.

Figura 10: Plante a Primavera

5.3 O VENDEDOR DE SONHOS

Outro movimento cartografado, nesse mesmo sentido, diz respeito à atuação de um

profissional liberal que atua como fotógrafo. Durante o período de pesquisa, esse

profissional foi autorizado a vender seu serviço aos pais, com intermédio das pró-

prias professoras. Seu serviço consistia em tirar fotos das crianças fantasiadas de

policial, executivo, bombeiro, fada, dama antiga ou princesa e depois vendê-las aos

pais em forma de fotos avulsas, chaveiros, agendas e calendários. Em troca da gen-

tileza de ceder o espaço educativo para prestação de serviço e posterior comércio

de fotografias, a escola recebeu como brinde – um aparelho de DVD que então foi

rifado na Festa Junina. Em conversa com as professoras, em uma das reuniões de

grupo do estudo realizada após a realização da atividade profissional acima descrita,

a pedagoga posicionou-se inicialmente discordando da oferta desse tipo de serviço

nas dependências da escola, no entanto, em função do que ela mesma definiu como

sendo uma necessidade emergencial (adquirir um brinde para sorteio da rifa) optou,

juntamente com a diretora, por abrir negociações com o profissional em questão.

72

Esse movimento de compra e venda de sonhos, a partir de modelos estereotipados

de papéis sociais e fantasias do imaginário coletivo, produziu inúmeros efeitos nos

encontros educativos. Efeitos nem sempre facilmente captáveis, pois se dispersaram

no intenso movimento dos cotidianos ali produzidos, mas que foram ao poucos, rea-

tivados nas análises dos processos desencadeados durante a pesquisa registrados

no diário de campo.

Essa é outra característica marcante dos movimentos engendrados no espaçotempo

local-atual daquele estabelecimento público de Educação. A intensa e permanente

oferta de serviços e atividades sortidas e pouco problematizadas no seio da comuni-

dade escolar tem imprimido um movimento de interferência direta e indireta no traba-

lho das professoras dificultando a discussão coletiva dos sentidos da diversidade de

práticas ali produzidas, interrompendo e/ou dificultando os processos de experimen-

tação de outros possíveis. O número de corpos que entram e saem da escola tra-

zendo e levando interesses, excessivamente, particulares é incrível. Oferta-se de

tudo: cursos relâmpagos de formação (nas mais diversas áreas – de Educação de

trânsito à musicalização), cursos extensos de formação continuada, eventos e expo-

sições dos trabalhos produzidos pelas professoras com as crianças (Feira do Verde,

Encontro do Fórum de Educação Infantil,...), serviços profissionais os mais diversos

(fotografias, livros personalizados, bem como venda direta de assinaturas de revis-

tas, coleção de livros-receitas para uso das professoras, enciclopédias, roupas, lin-

geries, bijuterias...), enfim uma gama enorme de atividades vai sendo pulverizada

entre as práticas engendradas pelas professoras, sem que se possa pensar bem os

efeitos desses encontros.

Esses movimentos de privatização do público tendem a ocupar um enorme espaço

de tempo, tanto nas atividades docentes com as crianças, como nos escassos mo-

mentos de encontros coletivos das professoras, subtraindo, substancialmente, a

condição de problematização, discussão e análise dos trabalhos realizados.

73

Esse problema foi discutido pelas professoras em um de nossos encontros, quando

trabalhamos com o texto Experiência e Paixão, produzido por Larrosa30, que discute

entre outras, questões sobre o que impede a experiência: o excesso de trabalho, de

opinião e a falta de tempo. Nas palavras das professoras:

Ele [o autor] coloca aqui como um dos impeditivos no processo de experi-ência é o excesso de informação. A gente percebe muito isso nos proces-sos que a própria SEME... Um monte de coisas sendo revistas ao mesmo tempo, com prazos... Coisas sérias, então o excesso de informação que a gente tem que dar conta, um excesso de opinião [...] O terceiro é a falta de tempo, que tudo acontece numa velocidade. E o excesso de traba-lho [...] será que é por que a gente não abre mão de algumas delas? Será que é possível abrir? A gente trabalha, trabalha, trabalha dentro da nossa sala de aula. Podemos fazer alguma coisa para ter esse tempo de escuta. Será que isso vai fazer uma diferença no resultado final, uma dife-rença tão grande [...] de você não ter executado aquilo para poder parar um pouco, ouvir, né [...] Esse parar e escutar, deixar com que isso nos passe, nos toque, nos sensibilize. A gente já [...] tá tão naturalizado [...] Que a gen-te já não a enxerga, não nos toca mais, não nos sensibiliza. Porque a gente também não considera a experiência desse ponto de vista. A gente consi-dera experiência dos anos trabalhados, dos cursos estudados, dos núme-ros de certificados que temos... 31

Em suas considerações, as personagens apontam o modo de gerenciamento Secre-

taria Municipal de Educação como um das responsáveis pelo excesso de trabalho e

a velocidade alucinante nos processos educativos. Considerando que tem sido im-

plementado um número absurdo de mudanças que se estendem em várias direções,

nas quais as professoras são convocadas a emitir determinadas opiniões sobre os

mais diferentes assuntos num curto espaço de tempo.

Assim, se interrompe exaustivamente os processos de experimentações na tentativa

de responder às convocações do órgão gestor. Convocações que abordam as modi-

ficações nas políticas salariais, reformulações nos direcionamentos curriculares, im-

plantações dos mais diversos projetos, discussão sobre a avaliação profissional e

muitos outros assuntos. Como, por exemplo, no caso da proposta de mudança na

alimentação das crianças que visava discutir a inserção no cardápio da merenda

escolar itens da alimentação orgânica. Sob o pretexto de conscientizar alunos, pro-

fessores e familiares sobre as vantagens de se adotar uma alimentação mais sau-

dável e da necessidade de solidarizar-se com as causas dos trabalhadores rurais ─

30 Linguagem e Educação depois de Babel. ED. Autêntica, 2004. 31 Grupo de Estudo realizado em 5-8-2006 (sábado de reposição)

74

os quais teriam, a partir dessa forma de cultivo e comercialização, incentivos para a

permanência no campo e melhores condições de vida e de trabalho; cria-se um pro-

jeto piloto, que antes mesmo de sair do papel, já é utilizado como publicidade em

favor dos modos de gestão municipais.

Esses movimentos vão exigindo a abertura de um espaço no interior do CMEI, nos

grupos de estudos, para expor o projeto às professoras. Exige, ainda, a participação

em atividades de visitas às propriedades rurais a fim de conhecer o trabalho do agri-

cultor familiar, sendo disponibilizado, para isso um dia de domingo. Assim, até nos

dias de folga, as professoras vêem seu tempo ocupado por supostas atividades de

formação. Diante da proliferação de tantos movimentos para formar as professoras,

não é de se estranhar que uma ou outra professora seja seriamente capturada por

um desses modelos sedentários, ainda que temporariamente.

5.4 AS DANÇARINAS COR-DE-ROSA

Fotografia 11: As Bailarinas

Outro forte movimento de captura foi sendo paulatinamente engendrado, para mais

a diante, tomar volume e dimensões impressionantes. Esse movimento se deu com

a entrada da professora dinamizadora no CMEI. Sua experiência em balé clássico e

com o trabalho corporal vinculado a atividades de dança possibilitou que a diretora

projetasse a inclusão de aulas de balé na escola. Então certos enunciados passa-

75

ram a aparecer sutilmente entre uma e outra conversa, quando a diretora não se

cansava em dizer o quanto achava bonito o balé: “Gostaria que minha neta fizesse

balé, mas é muito caro” 32.

A professora, solícita, mostrava-se bem receptiva para atuar em qualquer atividade

que lhe fosse proposta e sempre afirmava: “Estou aqui para somar, pode me sugar a

vontade. No que eu puder ajudar, estarei à disposição”. 33

Paralelamente, ia desenvolvendo seu trabalho na área de movimento com as crian-

ças. Trabalhava com artes visuais, movimento, fantasia, imaginação, noções ele-

mentares de ginástica olímpica, danças folclóricas, muitas vezes a partir de rigorosa

pesquisa histórica com as crianças, especialmente as da faixa etária de quatro a

seis anos sobre a origem das danças, das manifestações populares, das brincadei-

ras. Nas turmas menores, seu trabalho estava focado nos movimentos das crianças.

Assim, com lenços, tules, bambolês, rolamentos, saltos e bolas iam trabalhando a

imaginação, a fantasia e o movimento corporal das crianças.

Nesse contexto, durante a reunião de pais, aparentemente de forma inesperada, a

diretora falou sobre sua intenção de inserir aulas de balé na escola. Idéia que foi

bem recebida por muitos pais e ignorada por outros tantos. A partir daí, o registro do

projeto, o envio à SEME, a organização dos horários, a reestruturação do espaço

físico... Tudo aconteceu muito rapidamente. Em menos de duas semanas, o início

das aulas de balé já havia sido marcado. Como efeito, no mesmo dia do início das

aulas publicou no site da Prefeitura uma reportagem sobre essa experiência. O en-

vio do projeto para SEME possibilitou a entrada no caixa escolar de uma verba su-

plementar no valor de R$ 5.000,00 para custear despesas com a apresentação de

dança a ser promovida ao final do projeto conforme informação da professora então

já responsável pelo mesmo. Ao fazer o projeto, a professora incluiu aula de hip-hop

na tentativa de possibilitar a participação dos meninos nesse trabalho, na medida em

que nenhum deles foi matriculado nas aulas de balé.

32 Fala da diretora. 33 Fala da professora dinamizadora.

76

É interessante observar que diferentes de outras manifestações artísticas e esporti-

vas que entraram no currículo da área de movimento sob forma de brincadeira, o

balé assumiu um caráter mais formalizado: tanto na exigência de roupas apropriadas

(vestimenta completa), quanto na grande preocupação em atingir uma performance

previamente imaginada na apresentação final na qual, o desempenho das alunas/os

deveria estar condizente com uma imagem modelizada de balé clássico. Essa preo-

cupação foi verbalizada em uma conversa entre a professora responsável pelo pro-

jeto e o membros do CTA, conforme anotações do diário de campo:

[...] na sala das professoras, ao analisar sobre o primeiro dia da aula de ba-lé, a professora falou sobre a dificuldade de alcançar uma performance considerada mínima num prazo tão curto de tempo. Ela se mostrava ansio-sa em ensinar os posicionamentos (de braço, perna, mãos e pé) necessá-rios para uma boa exibição. 34

No meio da conversa a professora dinamizada recebeu uma ligação de uma colega através da qual ficou sabendo que o curso de dança oferecido pelo CMEI estava sendo divulgado no site da prefeitura de Vitória, o que causou um furor entre elas incluindo a diretora. Essa tinha se juntado a conversa, pois propunha que a experiência com curso de dança que se ini-ciava naquele dia fosse ampliado, para garantir que, com o aumento do número de aulas, oportunizasse uma apresentação mais elaborada, na medida em que já estávamos muito próximos ao final do ano.

Tal preocupação mostra-se, assim, muito diferenciada se a tomamos em relação a

outras atividades desenvolvidas pela referida professora, nas quais ela apresentava

o posicionamento de um salto ou um rolamento, por exemplo, como no caso da gi-

nástica olímpica, em que as crianças iam experimentando aquele movimento de

forma bastante informal. Cada um a seu tempo, do seu modo – com a intervenção

da professora na garantia da segurança das crianças − ia explorando o corpo na

velocidade que desejavam. A movimentação era bem descontraída, sem qualquer

preocupação com um resultado final. Conforme descrição da atividade feita no diário

de campo:

Todos executam várias vezes, o rolamento [exceto uma aluna]. Sempre que julgava necessário, a professora parava a atividade e demonstrava como era feito o rolamento, novamente. Ela se preocupou em mostrar a forma de entrar e sair do colchão, mas não fica presa a essas formas. As crianças vão experimentando seus modos de ações. Umas com mais des-trezas, outras com mais cuidado. Não houve nenhuma comparação ou va-

34 Comentário da professora dinamizadora em conversa com a pedagoga e a diretora na sala das professoras, no dia 19-9-2006.

77

lorização de uma ou outra performance (nem por parte da professora e nem entre as crianças). O clima era de diversão.

Na mesma conversa sobre as aulas de balé a professora destacou a importância da

dança para desenvolver a disciplina nas crianças.

Algumas crianças, apesar de demonstrar interesse em participar das aulas de balé,

tiveram sua participação dificultada/impedida por falta de roupa adequada. Em cada

turma, duas ou três meninas ficaram fora dessa atividade. Outras crianças que tive-

ram a oportunidade de participar por disponibilizar de condições para adquirir o traje

demonstraram notório desinteresse e cansaço frente à rigidez necessária para uma

Educação forçada do corpo. As crianças menores, muitas vezes, se recusavam, cho-

ravam, buscavam por brinquedos e/ou cochilavam nos cantos da sala.

Fotografia 13: Bailarina Cansada I Fotografia 14: Bailarina Cansada II

Aqui o esforço pessoal também se fez presente. Algumas famílias com baixo poder

aquisitivo conseguiram capitalizar-se para garantir a participação de suas filhas. To-

do esse movimento produziu muitos efeitos positivos e também negativos nos cor-

pos dos participantes. Os últimos foram se dissipando no intenso e contínuo movi-

mento naquele espaçotempo educativo.

Dentre os efeitos positivos, considero que as crianças muitas vezes se divertiram

com as aulas e utilizaram esse espaçotempo de música e movimento para imprimir

suas experimentações, o que nos dão pista sobre os usos imprimidos pelos usuários

na Educação Infantil. Em função disso, considero que não se trata de eliminar essa

78

atividade do currículo, que, em certa medida, agrada a crianças, familiares e profis-

sionais; mas adequá-la à necessidade se de conhecer às necessidades; ou seja,

colocar-se em escuta daquilo que as crianças nos dizem sobre como usar esse re-

curso a seu favor.

Nesse sentido, a questão a ser problematizada se localiza na importação formatada

de um determinado modo de se pensar a utilização da dança como vitrine, modo de

entender vinculado a exibições, projeções e captações de recursos extras. Essa

forma de organização garante muito mais uma visibilidade esvaziada do que consti-

tui os processos escolares, nos quais, o gesto, o movimento, deve adquirir um valor

supostamente artístico. A ênfase por um produto final, em detrimento dos processos

de experimentação do uso de movimentos e os encontros musicais, deteriora sensi-

velmente a proposta.

O mal não está na inserção das aulas de balé no currículo, mas nos adoecimentos

que a forma padronizada que essa atividade assumiu pode ter produzido nos corpos

dos usuários. Forma de adoecimento vislumbrada nas expressões de cansaço, nos

choros, nas recusas, nas buscas por outras atividades durante a aula de balé, mas,

principalmente, na devastação afetiva que pode ter sido produzida em alguns daque-

les corpos que não conseguiram corresponder ao padrão de execução esperado e,

também, na frustração daqueles que não puderam sequer participar da atividade de

dança e música promovida no CMEI.

Desse modo, a escola vem compondo seu currículo com inúmeras atividades cultu-

rais, ampliando as ofertas de propostas aos alunos a partir do modelo dominante do

que seriam referências externas e elitizadas de cultura (teatro, balé,...). Em algumas

situações tenta-se, possibilitar que todos participem desses eventos, como no caso

do comparecimento a peça teatral, quando foi feita uma arrecadação de valores de

acordo com a condição dos familiares. Assim, eram oferecidas cotas de valores dife-

renciados, acima e abaixo do valor nominal do ingresso, para que, no montante total

arrecadado, todos pudessem participar inclusive os que não pagaram algum valor.

No entanto, isso não se fez suficiente para atender a todos, pois alguns familiares

não conseguiram compreender essa lógica e sem condição de contribuir, acabaram

79

por excluir seus próprios filhos da referida atividade. Como argumentam as crianças

do Pré em conversa com a pesquisadora:

Pesquisadora – E o que acontece na escola que é muito legal e poderia acontecer mais vezes? Sâmia – Passeio no Teatro. Camila− Mas eu não fui. Pesquisadora – Por que você não foi? Camila − Porque minha mãe não tinha dinheiro. Pesquisadora – Mas não tinha como ir sem ter contribuído com dinheiro? Sâmia − Tinha. A pé. Pesquisadora – Você queria ir?Acho que tinha jeito de você ir? Quem não deu o dinheiro poderia ir sem dinheiro? Gilda – Eu fui e não dei o dinheiro. Suelen − Eu também não fui não. Sâmia – Eu fui. Minha mãe me deu dinheiro. Camila− Porque minha mãe não tinha dinheiro pra pagar. Camila− Eu fiquei muito triste. Gilda repete − Eu fui e não paguei. Pesquisadora − Como você ficou sabendo que podia ir sem pagar? Gilda− Porque uma professora falou para minha mãe que ela ia pagar para mim. Só que eu não sei se ela pagou ou não?

É importante destacar aqui que as crianças que não participam das aulas de balé,

muitas vezes, são as mesmas que não foram aos passeios, às apresentações tea-

trais, não participaram também da Festa Junina... Sendo que, de modo espantoso,

essas reiteradas ausências, muitas vezes, não são sequer notadas pelo grupo de

trabalho que compõe o CMEI.

Em síntese, há dois problemas centrais: o primeiro é que, na ânsia por criar um cur-

rículo variado que possa ser exibido como garantia da constituição de uma escola de

qualidade, enfatiza-se o produto final a ser exibido em detrimento dos processos in-

ventivos de experimentação que são engendrados nesse espaçotempo educativo

pelos profissionais de Educação. Por outro lado, na medida em que não são todos

que atendem a um perfil de educador-educando para compor esse padrão de quali-

dade, muitos são sumariamente isolados dessa diversidade de ações, mantendo-se

à margem desse processo. Por meio de critérios abstratos e autoritários os alunos

considerados inadequados para compor esse modelo são isolados para não conta-

miná-lo. A questão é que as crianças, se elas não cabem, não é por uma falta pes-

soal suposta, mas pela afirmação perturbadora de sua multiplicidade incontida, o

que significa que atividades que se abrissem á necessidade comum de imprimir ca-

80

da um suas próprias experimentações nos processos estendidos, poderiam vir a

ampliar os possíveis nos cotidianos desse espaçotempo educativo.

Portanto, a partir desse quadro, que trata de algumas dos movimentos de captura,

argumento que a produção de dominação nas trocas produzidas no dia-a-dia da es-

cola se dá pela venda-oferta-captura de uma imagem idealizada de uma escola-

piloto, escola-referência, escola de qualidade ─ uma escola infantil ideal, como a

própria diretora do CMEI a define. Imagem que tenta, a todo o momento, se aproxi-

mar de uma imagem-referência-modelo, que parece ser, em última instância, a esco-

la particular, onde certos padrões de qualidade assumem um caráter indiscutível.

Imagem esta que trás, em si, a promessa de preparação dos personagens mirins

para ocupar o espaço VIP reservado aos garantidos. Não de todos, obviamente,

mas de alguns que, desde sempre se destacam e são destacados no contexto da

escolarização.

A venda da imagem paradisíaca da Escola de qualidade é desenvolvida em diferen-

tes momentos e situações, sendo sempre vinculada à necessidade de um (re) inves-

timento financeiro, mas, especialmente, à produção de um amplo investimento no

campo social do desejo.

A negociação de compra e venda da referida imagem envolve diferentes corpos;

corpos institucionais, como o órgão gestor e empresas privadas, bem como corpos

desejantes de outra natureza: como os pais, crianças, professoras e profissionais

autônomos que, freqüentemente, vêm oferecer seus produtos. Esse processo se dá

em meio de uma barganha acompanhada, muitas vezes, por uma verba suplementar

gentilmente cedida e efetivada pela SEME e/ou por prestadores autônomos de ser-

viços e, às vezes, sem qualquer registro legal. Verba ora concedida em espécie, ora

em prêmios e brindes (bicicletas, DVDs, etc.).

Na próxima sessão abordarei questões relativas à profissionalidade e a profissionali-

zação docente, a partir dos fluxos cartografados durante a realização da pesquisa.

81

6 DOS MOVIMENTOS PRODUZIDOS NA CONSTITUIÇÃO DAS PERSONAGENS-

PROFISSIONAIS

Ao acompanhar o trabalho das professoras, tendo como referência de análise uma

abordagem ético-estético-política, a intenção expressa é a de analisar onde há in-

venção, nas “repetições” de práticas educativas habituais, ou seja, onde se opera

uma diferenciação.

Ao argumentar sobre as “repetições” de práticas educativas ou modos habituais de

atuação docente, considero importante destacar que a institucionalização desse ní-

vel de ensino, assim como os modos de estruturação do trabalho pedagógico foi, por

muito tempo, vista como um apêndice do Ensino Fundamental.

Atualmente, observa-se um aumento no número de estudos e pesquisas que consi-

deram as especificidades desse nível de ensino e que buscam criar novos campos

problemáticos. Esses esforços se constituem em formas de problematização hetero-

gêneas.

Desse modo, pesquisadores vinculados à vertente mais tradicional de pesquisa cien-

tífica procuram analisar os efeitos produzidos pelas intervenções governamentais na

institucionalização do processo educativo, priorizando uma análise fundamentada no

processo evolutivo e gradual do desenvolvimento e também na Educação como di-

reito do cidadão. Nessa perspectiva discursiva, mantêm-se a posição privilegiada do

direito vinculada as verdades determinadas por um pensamento científico, que tende

a desconsiderar a condição temporal e histórica em que essas verdades foram pro-

duzidas. A aposta é na igualdade de direitos, tendo como base uma análise moral

(moral tomada no sentido restrito), enfatizando questões relativas ao processo de

ensino-aprendizagem e as políticas públicas, freqüentemente, vinculadas aos défi-

cits e faltas, alimentando o mito da crise educacional.

Outra vertente busca analisar os movimentos produzidos nas práticas educativas

institucionalizadas, enfatizando os saberesfazeres ali produzidos, no sentido de valo-

rizar o trabalho docente e os usos ordinários dos artefatos culturais disponíveis. U-

82

sos que ao serem afirmados acabam por desvirtuar totalmente o modelo prescrito,

nesse sentido o prescrito não se realizariam nos cotidianos educativos.

Uma terceira vertente de estudos e pesquisas procura inverter o modo de análise,

instaurando outros campos problemáticos, cuja ênfase é no deslocamento da análi-

se estrutural priorizando os fluxos, ou seja, procura captar o que é potente e produti-

vo nos encontros ali engendrados. Essa vertente tem um posicionamento político

muito definido, o qual procura expandir, por meio do contágio, os modos de existên-

cia singulares que são produzidos a partir do rompimento com modelos predefinidos,

onde eles asfixiam a vida impedido a criação. A aposta é na multiplicidade a partir de

uma análise ética.

Essas diferentes formas de abordagem discursivas não são aqui colocadas como

modo de aprisionamento em dimensões estanques, pois se comunicam se nutrem e

também divergem. O que quero apontar é a tentativa de ocupar um espaço inaugu-

rado recentemente, buscando contribuir para expansão desses estudos. Assim, co-

locando em suspenso às argumentações que se sustentam na idéia de déficit e mi-

tos baseados em dificuldades e faltas, procuro, neste estudo, unir-me a tendência

que focaliza o que está nas bordas em vias de romper a delimitação territorial, enfa-

tizando os processos inventivos de experimentação.

Desse modo, considero que, no contexto educativo em que me inseri a fim de reali-

zar o presente estudo, foi possível captar intensidades que tentam desestabilizar a

idéia da Educação Infantil como um espaçotempo de cuidar, de brincar e/ou de pre-

parar as crianças para ingressarem no Ensino Fundamental.

Pois foi a partir de uma concepção da Educação Infantil, como um lugar de prepara-

ção para o próximo nível de ensino e também um lugar para cuidar das crianças,

enquanto os pais trabalhavam, e que se constituiu o papel de berçarista ─ função

fortemente atrelada ao desempenho de babá e/ou recreadoras – restringindo seu

campo de atuação às questões de cuidados desconectados com as abordagens e-

ducativas, o que acarretou baixa qualificação, piores condições de trabalho e remu-

neração reduzida.

83

Até hoje a necessidade de desvinculação da função de babá é freqüente nas falas e

ações das professoras:

Eles [os pais] só perguntam se as crianças comeram bem. Não procuram saber o que os filhos fizeram naquele dia. Eles [os pais] me tratam como babá. Eles nunca perguntam sobre as atividades realizadas; querem saber in-formações sobre a alimentação, a saúde das crianças, se ficaram bem ou não, entre outras questões relacionadas com o cuidar. [...] Os pais, mas eles estão muito inteirados no que a criança está fazendo na creche, no CMEI, mas eles têm essa concepção de creche, de cuidado em primeiro plano. Então eles querem saber se a criança comeu, se ela es-tá com o nariz sujo, se ela está com a boca suja, depois, às vezes, pode perguntar o que eles fizeram principalmente até os três [anos]. Se mor-deu... Se não mordeu, se bateu se não bateu, eles têm primeiro - em pri-meira instância essa preocupação.

Durante a pesquisa algumas situações inusitadas provocaram a ampliação da dis-

cussão em torno da dicotomia entre cuidar e educar e as funções de babá-

berçarista. Uma dessas situações se deu, quando a babá respondeu de forma ríspi-

da ao comunicado de que um das crianças que freqüenta o CMEI havia sido mordi-

da. Diante do bilhete das professoras avisando sobre o ocorrido, a babá responde

com rigidez. As professoras consideraram uma afronta, serem chamadas a atenção,

por uma babá. Segue do bilhete enviado pelas professoras, e a repostas destacada

da babá (grifo dela):

FIGURA 5: Bilhete de uma babá

84

Outro fato se deu quando uma professora, com formação em Magistério, procurou a

escola para realizar um estágio obrigatório com crianças de zero a seis anos, como

exigência básica para atuar no exterior na profissão de babá. O estágio junto às pro-

fessoras gerou descontentamento, na medida em que a presença da estagiária po-

deria vincular a função de professora à atividade profissional de babá.

Esses dois casos trazem, para essa escrita, um pouco sobre a necessidade de mar-

cação de um território profissional e a legitimação desse território por saberes cientí-

ficos específicos o que parece ser determinante para a valorização profissional. Por

isso é freqüente a discussão entre as professoras sobre as preocupações dos pais

em relação aos cuidados com os pequenos, considerando que essa preocupação

vincula as ações das professoras à função de babá. As queixas sobre o não enten-

dimento dos pais em relação ao trabalho pedagógico desenvolvido pelos CMEIs,

assim como, a necessidade de distinguir o atendimento em creches dos trabalhos

pedagógicos desenvolvidos nos Centros de Educação Infantil é freqüente nas con-

versas e reuniões.

Para analisar mais cuidadosamente essas queixas, é preciso considerar que, por

muito tempo, as profissionais que atuaram nesse nível de ensino não tinham forma-

ção específica, pois, no início, esse atendimento era oferecido pelo serviço de ação

social vinculado à Secretaria da Saúde, sendo entendido, exclusivamente, por seu

caráter assistencialista. O objetivo era cuidar das crianças, não havia qualquer in-

tenção de sistematizar um trabalho educativo. Só mais tarde, é que as creches pas-

saram a ser administradas pela Secretaria de Educação, passando a ter, prioritaria-

mente, um caráter educativo, denominando-se Centros de Educação.

Assim, uma das professoras que atua a mais tempo no CMEI fez este breve relato

do histórico dessa escola. Em seu registro, ela marca o momento da entrada das

pedagogas nesse espaçotempo como um marco na sistematização dos trabalhos

educativos. Para ela, foi à entrada desse profissional que possibilitou que o “barco

tomasse um rumo”, apesar de considerar a seguir que em suas práticas a intenção

85

educativa já estava presente: “com as suas orientações [da pedagoga] pudemos dar

continuidade a nossas práticas e conhecimentos pedagógicos” 35.

35 Trecho do relato de uma professora.

86

Figura 6: Relato de uma professora

Esse modo de conceber a institucionalização da Educação das crianças pequenas

acabou por colocar as professoras que atuam na Educação Infantil num lugar de

desvalorização, em relação à categoria do Magistério. Especialmente pelo fato de

que, nesse espaçotempo, até hoje, o trabalho pedagógico é desenvolvido tanto por

profissionais habilitados e certificados, como por pessoas sem qualificação específi-

ca. Assim, tanto as professoras de diferentes graus de qualificação – de formação

em ensino de nível médio, passando pela formação em nível superior e, em menor

ocorrência, em mestrado, quanto às profissionais sem qualificação específica (como

o caso dos profissionais de apoio) todos atuam diretamente com as crianças. Assim,

na medida em que a fronteira que marca uma abordagem profissional intencional de

uma abordagem intuitiva é tênue, a constituição de uma identidade profissional se

tornou uma questão imprescindível para as profissionais que atuam nesse nível de

ensino.

Assim, em função da necessidade de desvincular as atividades docentes das fun-

ções de cuidado e higienização e da necessidade de valorização profissional ope-

rou-se um movimento de tentativa de criação de um espaço de saber específico que

pudesse garantir a profissionalização. No entanto, esses saberes específicos se res-

tringiram a Estudos Cognitivistas produzidos durante a modernidade (em uma de

suas formas de abordagens – Analítica da Verdade). Estudos que determinaram to-

do processo evolutivo da criança, destacando essa fase como sendo um período de

preparação para a vida adulta. Estudos fortemente vinculados a uma única concep-

ção de tempo cronológico e seqüencial, onde essa fase de desenvolvimento – a in-

87

fância - passou a ser considerada como uma das etapas para se atingir a forma ple-

na de pensamento – o pensamento adulto.

Estudos que acabaram por produzir modelos de atuação docente centrado em di-

mensões estanques e imutáveis os quais serviram de base para avaliação do de-

senvolvimento das crianças, tanto quanto para o próprio aprisionamento de fazer

docente, na medida em que este precisava garantir o atendimento a certa seqüência

lógica e cronológica de atividades de acordo com a base estrutural de evolução do

pensamento infantil em suas diferentes fases. As Teorias do Conhecimento ─ tendo

como destaque os estudos piagetianos e, em menor proporção e maior distorção o

trabalho de Vygostsky em suas múltiplas interpretações passaram a produzir um

forte estrangulamento nas ações educativas engendrados nos CMEIs.

6.1 A TENTATIVA DE PRODUÇÃO DE UMA IDENTIDADE PROFISSIONAL OU...

QUANDO A FORÇA SE VINCULA AO APRISIONAMENTO

Na tentativa de constituição de um lugar de saber específico para a Educação Infan-

til, a chefia dessa pasta, atuando na Secretaria Municipal de Educação, sob o argu-

mento de compor uma identidade profissional para o professor da Educação Infantil,

reorganizou todo o quadro de educadores/as que atuam no Magistério, criando no-

vas categorias e nomenclaturas classificatórias.

Essa proposta/determinação chegou à escola por meio de uma conversa na sala

dos professores onde a diretora afirmou que as mudanças na nomenclatura do qua-

dro de cargos do magistério municipal foi proposta pela chefa da divisão infantil, a

qual, em reunião com as diretoras e pedagogas dos CMEIS realizada na SEME ela,

argumentou sobre a necessidade de se criar uma identidade do professor que atua

na Educação Infantil.

Ao tentar instituir uma identidade profissional a tentativa era a de suprimir as dife-

renças e hierarquizações nesse nível de ensino, tanto quanto criar um espaço pro-

fissional distinto. Afirmo que a idéia era suprimir as diferenciações, pois até então,

nesse nível escolar, atuavam dois tipos distintos de profissionais: o MAPA e o MAPI.

88

Sendo que, entre eles, havia diferenças marcantes seja na formação acadêmica,

seja na própria constituição de saberesfazeres profissionais.

Ocorre que, ao propor a criação de uma identidade profissional para essas professo-

ras o que se produziu foi uma redução e aprisionamento dos profissionais MAPAs

em um só nível de ensino, impossibilitando sua movimentação entre o Ensino Fun-

damental e a Educação Infantil. Uma vez que até então os professores que atuavam

na Educação Infantil, na função de MAPA, poderiam deslocar-se para a fase inicial

do Ensino Fundamental e vice-versa.

Esse contexto de mudança que, a princípio, poderia valorizar as professoras berça-

ristas (cujo campo de atuação se restringia às turmas de zero a três anos, agora ex-

pandidas para turmas de quatro a seis), trouxe consigo outro contra-senso: ao mes-

mo tempo em que indicava uma tentativa de construção de uma identidade profis-

sional para os professores que atuam na Educação Infantil e, conseqüentemente,

uma delineação de territórios de atuação (o que, em certa medida, poderia vir a valo-

rizar esses profissionais), criou-se um terceiro cargo formalizado de professor dina-

mizador para atuar nesse nível de ensino, na área de movimento, porém na condi-

ção de professor PEBIII; cargo vinculado aos professores que atuam no Ensino

Fundamental em áreas específicas, como História, Matemática, Português, Geogra-

fia, etc. Desse modo esse profissional, mesmo atuando exclusivamente na Educa-

ção Infantil, passou a usufruir dos benefícios dos professores que atuam no Ensino

Fundamental, operando-se uma distorção no projeto inicial que buscava justificar as

mudanças estruturais no quadro do Magistério municipal, ou seja, a formação de

uma suposta identidade para as educadoras da Educação Infantil.

Esse movimento simultâneo de aproximação e afastamento em relação à condição

de profissionalização-profissionalidade docente produziu uma grande desestabiliza-

ção nos processos de subjetivação das professoras nos encontros cotidianos que

rabiscam com os usuários. Pois, se por um lado, tem sido necessário marcar forte-

mente certo caráter profissional particular como modo garantir e expandir direitos

profissionais e campos de atuação das educadoras, por outro, a cada encontro com

uma mãe, um pai ou com uma criança, as professoras são convocadas a pensar o

que significa educar nesse nível de ensino. O que poderia ser uma ação pedagógica

89

com crianças de zero a seis? Como separar o cuidar do educar? Quais os limites

para a marcação de um território profissional a partir das próprias práticas cotidia-

nas? E em que sentido essa marcação abstratamente formalizada de um território

profissional pode vir a produzir adoecimentos e paralisias.

É importante considerar, por exemplo, que, se por um lado, a função de professor

dinamizador ─ função recém-criada pelo órgão gestor, via concurso público – produ-

ziu abalos nas subjetividades das professoras por questões de diferenças associa-

das às condições de trabalho, de planejamentos e de hierarquizações; a inserção

desse novo profissional instaurou um movimento muito interessante, cujos efeitos

descontinuadores são facilmente percebidos no CMEI em que a pesquisa foi produ-

zida, efeitos que se relacionam tanto à forma de falar do seu saber docente específi-

co que a nova profissional trouxe consigo, como à necessidade produzida na sua

prática de romper com a rigidez das fronteiras disciplinares. Pois, apesar das profes-

soras da Educação Infantil atuarem com diferentes conteúdos, como: linguagem oral

e escrita, linguagem matemática, história, geografia,... Há em seus discursos uma

forte tentativa de demarcação de limites fronteiriços entre as “disciplinas” e, concomi-

tantemente, uma queixa sempre reafirmada sobre suas incapacidades de atuação

nas áreas de Educação Física, Artes e Música, por exemplo. Atuação essa exigida

pelo referencial curricular proposto em nível nacional para a Educação Infantil.

Assim, como a função de professora dinamizadora não se vinculava, exclusivamen-

te, a nenhuma área específica de conhecimento, já que a proposta era englobar con-

teúdos de Artes e de Educação Física numa nova abordagem genericamente deno-

minada Movimento, provoca-se um desvio na idéia de vinculação de atuação profis-

sional às fronteiras estabelecidas pela formação acadêmica, potente para produzir

ressonâncias, inclusive em outros níveis de ensino.

No CMEI onde a pesquisa se realizou, a atuação desse profissional produziu um

efeito inusitado na produção de modos de atuação da professora que assumiu essa

cadeira, conseqüentemente, nas práticas educativas comumente engendradas na

escola, pois ela foi forçada a buscar subsídios para compor um conjunto prático (já

que ainda não havia nenhum modelo de atuação disponível). Para tanto, buscou

referências no trabalho das professoras do CMEI, na sua formação (em formação

90

Educação Física e em balé clássico) e também nos parâmetros genéricos definidos

pela própria Secretaria de Educação do município.

Desse modo, construiu-se uma prática com as crianças envolvendo elementos da

dança, da música, de esportes, da linguagem escrita (por meio de práticas de leitu-

ras e pesquisas), da expressão corporal, entre outros. Sua ação educativa não era

mais determinada, exclusivamente, por nenhuma área do conhecimento, agregando

várias áreas ao mesmo tempo.

Percebe-se que o movimento de produção de um modo singular de atuação a partir

da recém-criada função provocou ressonâncias para além dos muros da escola, de-

sestabilizando as subjetividades de outros dinamizadores. No entanto, as próprias

dinamizadoras passaram a reclamar o direito de atuarem em sua área específica de

formação, ou seja, recusando a essa proposta transdisciplinar que poderia caracteri-

zar sua função e, defendendo assim uma atuação restrita ao seu referencial estrito

de formação. Nessa perspectiva, os professores dinamizadores formados em Edu-

cação Física e os dinamizadores com formação em Artes atuariam cada um, respec-

tivamente, em sua área específica de formação, restabelecendo as fronteiras disci-

plinares. Problematizando tal condição a professora dinamizadora da escola adverte

que

[...] este profissional especializado... Se ele trabalhar especificamente, iso-ladamente, ele não vai contribuir para quase nada. Quase nada. Nada... Mas aquele profissional que articula esse sim... Aí caiu de mão cheia.

No entanto, diante da pressão do pensamento maior dos professores dinamizado-

res, a gerência da Educação Infantil vinculada à Secretaria Municipal de Educação

recuou em sua proposta inicial que objetivava traçar um novo perfil profissional de-

satrelado da formação acadêmica e, a partir do ano letivo de 2007, a atuação do di-

namizador é estritamente associada a sua formação acadêmica.

6.2 DAS EXIGÊNCIAS DE FORMAÇÃO SUPERIOR... OU QUANDO O AVANÇO

PODE VIR A SE TORNAR UM RETROCESSO

91

Outro fator determinante nesse quadro da condição profissional vivenciada na pro-

dução da pesquisa e que procuro aqui traçar, é o fato de que, muito recentemente,

as professoras foram convocadas a cursar Pedagogia ou Curso de Magistério supe-

rior, em função da necessidade suposta de cumprimento da atual Lei de Diretrizes e

Bases da Educação, de nº. 9394/96. Assim pretendia-se promover um grande salto

na qualificação das professoras que atuam na Rede Municipal de Vitória no que diz

respeito à questão da titulação; e, conseqüentemente garantir uma melhoria qualita-

tiva imaginada nas formas de atuação docente. Isto, no entanto, não veio a se con-

firmar na prática devido em grande parte, à qualidade questionável dos cursos de

pedagogia e licenciaturas disponibilizados na expansão desmedida da rede privada

de ensino superior e pela recém-inaugurada modalidade de ensino a distância ofe-

recida pelo Governo Federal. Desse modo, durante a pesquisa, percebeu-se que, a

garantia de formação superior, de modo geral, não propiciou o aprofundamento de

discussões das questões educacionais em torno de conceitos fundamentais sobre o

conhecimento, pensamento, aprendizagem..., tanto quanto em relação às questões

mais específicas referentes á Educação Infantil, pois em grande medida continuou a

ter como referência abordagens técnicas habituais associadas à necessidade de

superar falta e déficits da formação prática deficiente das professoras a partir de

uma imagem teórica dogmática do pensamento.

Entretanto, em meio a essa expectativa de afirmação profissional a partir da forma-

ção superior “obrigatória”, foi se configurando um perverso quadro da condição pro-

fissional das professoras. Diante da melhoria de qualificação – o que exigiria uma

correspondente melhoria na remuneração (sendo esse era um dos critérios para o

aumento de salários estabelecido pela Lei de Cargos e Salários até então vigente);

ocorre um ousado e lamentável movimento de inversão desses critérios legais no

qual o órgão gestor da Educação Municipal operou uma manobra política em nada

ética ao utilizar de uma reivindicação do Magistério, relativa à revisão do Plano de

Cargos e Salários, contratou uma empresa privada de consultoria para adequar os

avanços salariais a avaliação de desempenho das profissionais, aumentando o pra-

zo entre os avanços por merecimento segundo os mais rígidos critérios do Banco

Mundial. Sendo que, aqueles aumentos salariais atrelados a um sistema de avalia-

92

ção profissional, não tiveram, até agora, nem critérios nem responsáveis bem defini-

dos. 36

Esse processo de mudanças nas políticas salariais, que se arrastou por mais de um

ano, compreendendo um longo período de manifestações e greves, produziu um

forte agravamento do adoecimento da categoria em geral e, mais especificamente,

em nível da Educação Infantil, no qual as mudanças foram ainda mais graves. Em

muitos grupos de estudos realizados no CMEI durante o período da pesquisa, a dis-

cussão sobre a reformulação do Plano de Cargos e Salários do Magistério municipal

esteve presente nessas conversas, tanto a partir de esclarecimentos vindos do CTA,

quanto de questionamentos produzidos pelas professoras angustiadas com as inú-

meras mudanças anunciadas.

De modo muito resumido, a reformulação do plano produziu uma redução concreta

de benefícios, redução e maior espaçamento de tempo nas possibilidades de au-

mento de salário no decorrer da carreira e uma diminuição de profissionais qualifica-

dos; profissionais que, aos poucos, estão sendo substituídos por pessoas sem quali-

ficação específica para atuar no Magistério na função de auxiliar de berçário, por

exemplo. A exigência para ocupar o cargo como profissional efetivo da Educação

(em substituição definitiva de uma professora) restringe-se a que se tenha o segun-

do grau completo o que, por conseqüência, o agrava ainda mais as condições de

trabalho.

Todos esses processos de experimentação estendidos nas atuações docentes ante-

riormente analisadas produziram outras marcas que foram reativadas em meio à

pesquisa, as quais, buscarei tratar no decorrer deste texto.

Ao adentrar no movimento da escola, a fim de captar as ações inventivas das pro-

fessoras, fui tocada/afetada por intensos fluxos que tentavam a todo custo criar ma-

térias de expressão. Muitas vezes as personagens principais, diante da impossibili-

36 O trecho retirado da Lei nº. 069-06 esclarece os critérios da progressão salarial do magistério por mérito e desempenho: “Seção III – Da Progressão horizontal. I – por merecimento e desempenho, a cada triênio, mediante critérios de apresentação de comprovantes de cursos e/ou eventos de qualificação profissional e de avaliação de

desempenho a ser regulamentada por ato do chefe do Poder Executivo”. Projeto de Lei nº. 069-06-fls12. Prefeitura Municipal de Vitória, grifo meu.

93

dade de criar canais de expressão para seus fluxos de desejos e da incapacidade

provisória de tomar uma atitude na direção de seu desejo, acabavam por aprisionar-

se em procedimentos educativos duplamente sufocantes, tanto para elas quanto pa-

ra as crianças, criando justificativas bipolares, na tentativa de deslocar o movimento

de si mesmas para atribuir a responsabilidade aos usuários.

Assim, o problema inicial de estudo que era centrado nas invenções produzidas nos

processos de experimentações agregou-se as questões relativas às pressões e obs-

táculos enfrentados pelas professoras na atualidade local. Desse modo, tais estran-

gulamentos vinham inescapavelmente entrelaçados a estratégias de sobrevivência

da potência de existir. “Foi essa vulnerabilidade ao outro, a capacidade de me deixar

afetar por elas, que possibilitou que o outro se tornasse uma presença que se inte-

grou a minha textura sensível, tornando parte de mim mesma” (ROLNIK, 2006, p.

15).

Parafraseando Deleuze (1988), ao se referir à obra de Foucault, argumento que, ao

analisar as práticas educativas, fez-se necessário tomá-las por inteiro, segui-las e

não julgá-las, captar suas bifurcações, estagnações, avanços, brechas, aceitá-las e

recebê-las inteiras, seguir os problemas que essas personagens têm enfrentado nas

rupturas ou desvios que lhes são necessários, antes de pretender julgar suas solu-

ções.

Para tanto, foi necessário “[...] seguir as linhas desemaranhá-las, buscar as ondula-

ções, captar as intensidades e ressonâncias” (DELEUZE, 1988, p. 119), buscando,

na produção das problematizações aquilo que possibilita a experimentação, as idéi-

as que antecedem a invenção de outros modos de funcionamento possíveis. A es-

tratégia investigativa nesse estudo dedica-se a analisar nas práticas educativas das

professoras, como os enunciados dominantes sobre o que é ser professor, funda-

mentados em saberes pedagógicos prescritivos, são problematizados no campo de

força, por outros enunciados que tentam afirmar/produzir saberesfazeres docentes

diferenciais. É preciso, analisar como esses fundamentos autoritários podem sofrer

intercessão de ações singulares das crianças e dos próprios docentes ou como os

fluxos de desejo que emergem nas práticas educativas podem vir a instaurar modos

de funcionamento inusitados por meio de processos de experimentação em uma

94

multiplicidade de agenciamentos que vão se compondo imanentemente nos cotidia-

nos escolares. Segundo Deleuze (1988, p. 119), “[...] é nos agenciamentos que en-

contraríamos focos de unificação, nós de totalização, processos de subjetivação,

sempre relativos, a serem sempre desfeitos a fim de seguirmos ainda mais longe

uma linha agitada”.

95

7 DAS TENSÕES E ARTICULAÇÕES: CONSTITUINDO UM COMPLEXO DIA-

GRAMA DE FORÇAS

Para pensar sobre as formas de estrangulamento operadas nos encontros produzi-

dos nas práticas educativas, é preciso considerar como se tem configurado o dinâ-

mico diagrama de forças nesses espaçostempos educativos institucionalizados.

Não foi difícil perceber, a partir da inserção da pesquisa no movimento do espaço-

tempo educativo, que há uma forte articulação entre os agenciamentos produzidos

nos encontros internos de formação profissional, com outros que se estendem para

além do ambiente escolar. Assim, pode-se considerar que um dos modos de funcio-

namento desse diagrama de força se constitui no entrelaçamento de agenciamentos

produzidos pelo CTA do CMEI. Entrelaçamento, o qual, em articulação com o Con-

selho de Escola e o órgão mantenedor, tenta conduzir certo movimento nas práticas

pedagógicas, nos espaçostempos de formação continuada, que se manifesta sob a

necessidade imaginada de se tentar estabelecer um nível intolerável de dominação.

Por meio de poder oficialmente legitimado que confere ao CTA: o direito de decisão

sobre a constituição e distribuição das turmas, a distribuição das vagas para partici-

pação em cursos, a negociação de pequenas ausências ou atrasos no cumprimento

do horário de trabalho, o acesso ou restrição aos materiais pedagógicos, a escolha

de quem deve usufruir das verbas que, ocasionalmente, são concedidas aos profis-

sionais para participação em congressos e seminários fora do Estado e a contrata-

ção de extensões de carga horária.

Assim, desde a composição do Conselho de Escola, 37 quando determinados pais e

professoras foram valorizados e incentivados pelo CTA para a disputa pelos cargos,

por serem consideradas como adequadas ou mais fáceis de lidar, e, manifestada-

mente, apóiam o trabalho pedagógico, administrativo e financeiro da escola; vai-se

constituindo uma rede de poder cuja atuação se estende a todas as práticas ali pro-

duzidas por tal conselho, uma vez que, até a produção do calendário e dos horários

de reuniões e encontros dos membros do Conselho - horários que viabilizam ou não

37 Conselho escolar com função administrativa, financeira e pedagógica que se constitui por eleição direta, por segmentos Entre os segmentos que compõe a comunidade escolar: funcionários, pais, alunos, professores e a direção da escola.

96

a participação deles parecem estar organizados para dificultar essa presença. Como

comentou a pedagoga, em uma de nossas conversas, justificando o fato de uma das

representantes de professoras não participar mais do conselho, pois o horário dos

encontros era incompatível com suas possibilidades de participação.

No entanto, no intenso e complexo movimento do CMEI, esses agenciamentos com-

põem-se e decompõe-se de acordo com as situações que vão se formando. Assim,

corpos que, em várias situações atuam como elemento pertencente ao grupo de

gestores do CMEI (grupo que, majoritariamente, tenta determinar as ações pedagó-

gicas e administrativas, assim como sobre a aplicação das verbas disponíveis), em

outro momento, posiciona-se contra o absolutismo de força, constituindo-se então,

em contraposição ao grupo do órgão gestor da Educação municipal. Desse modo, o

CTA que na maioria das vezes se constitui como um aliado da gestão centralizado-

ra, em situações extraordinárias, atua em discordância com as determinações ema-

nadas da SEME (como no caso dos jogos da copa do mundo de futebol de 2006, por

exemplo).

De tal modo, a escola e seus profissionais se constituem como um corpo nem sem-

pre harmônico, mas que pode produzir-se com certo grau de autonomia para gerir

seus recursos e definir suas propostas administrativas e pedagógicas de trabalho.

No entanto, esse movimento se configura numa liberdade relativa, pois não depen-

de, exclusivamente, como foi visto, de relações externas de oposição, mas da multi-

plicidade de agenciamentos que a cada vez se faz passar entre os corpos para

constituí-los.

No caso do Conselho de escola, por exemplo, sob a ótica da democracia represen-

tativa e em nome de um processo democrático de discussão, são escolhidos repre-

sentantes de cada um dos segmentos que compõem a comunidade escolar a fim de

atuar nos processos de decisão em relação às questões atuais que perpassam a

instituição escolar garantindo-se assim um espaço público de fala e atuação nos

processos de negociação junto ao órgão gestor e no interior do próprio CMEI. Entre-

tanto, é interessante perceber como que nesse suposto processo democrático, fe-

cha-se o círculo em torno de uma tentativa abusiva de dominação.

97

Não quero dizer com isso que o Conselho de Escola, é um mal em si, pois mal e

bem são sempre relativos. Mas o modo de funcionamento democrático corrente tem

produzido muito mais adoecimento em grande parte do corpo docente e dos usuá-

rios do que possíveis para expansão da vida, espaços de abertura para passagens

de outros fluxos ou abertura para a invenção do novo.

No caso específico da participação do Magistério nos processos administrativos, fi-

nanceiros e pedagógicos, somente um restrito grupo professoras que é incentivado

a participar do Conselho de Escola, do Conselho Fiscal e da representação no sindi-

cato da categoria e também de momentos estratégicos de formação na SEME (co-

mo no caso do curso do PPP) 38. É nesse restrito grupo de poder, que faz passar um

feixe de agenciamentos entre algumas professoras escolhidas a dedo e o CTA para

compor um corpo que já nasce sedentário, que participam das decisões sobre as

atividades culturais e educativas a serem desenvolvidas, comunitariamente no

CMEI. Essas decisões então posteriormente apenas são comunicadas aos demais

profissionais. Em troca da fidelidade e colaboração, essas poucas professoras rece-

bem alguns privilégios da direção e apoio quase irrestrito da coordenação pedagógi-

ca, atuando com destaque no processo educativo e na gestão da escola.

Tais profissionais têm sua atuação educativa validada e festejada pela escola e pela

Secretaria Municipal de Educação (sendo convidados a fazer seus relatos nos en-

contros de vivência pela última promovida). São eles, ainda, que recebem a maior

parte dos materiais didáticos necessários para uma atuação supostamente exem-

plar, além de premiações extras, como as extensões de carga horária, estendendo

sua atuação política nos dois turnos letivos. Assim, nesse jogo de premiações e pu-

nições por meio de isolamentos forçados, monta-se uma imagem de gestão demo-

crática, na qual é garantida a participação de cada um dos segmentos que constitu-

em a comunidade escolar, por meio de uma representatividade, legitimando, por

conseguinte, as múltiplas decisões administrativas, financeiras e pedagógicas en-

gendradas ao longo da gestão, assim sustentada por esse grupo restrito de privilegi-

ados.

38 Curso de cem horas oferecido pela Prefeitura Municipal de Vitória no ano de 2006, em que foram discutidos conceitos e questões que poderiam dar suporte a elaboração do Projeto Político Pedagógico [PPP] da escola. Participaram desse curso o diretor, as pedagogas e uma professora de cada turno representando a categoria.

98

No entanto, este lugar de profissional cercado de privilégios não é fixo A professora,

que deseja manter-se nessa posição de status que lhe permite circular nesse grupo

de maioria (assim como o CTA junto a SEME), precisa estar em perfeita harmonia

com seus pares, e com seus modos de atuação no diagrama. Qualquer movimenta-

ção estranha pode desestabilizar esse agenciamento. Por outro lado, o medo de

perder essa posição privilegiada também gera adoecimentos e paralisias, além de

uma necessidade sufocante de obediência.

Para garantir o funcionamento desse modo de gestão democrática, instauram-se

múltiplos outros agenciamentos entre os corpos, os quais vão negociando entre si

cotas mínimas de participação na gestão do processo educativo. Sendo múltiplos e,

muitas vezes, contraditórios, esses agenciamentos vão se entrelaçando a diferentes

interesses e necessidades na luta pela manutenção e expansão dessas cotas, mas

tendem a produzir abertura para processos descontinuadores.

Essa configuração, ainda parcial, do diagrama de forças que se constituiu no CMEI

produziu adoecimentos profundos em muitos professores da escola; no entanto es-

ses adoecimentos não se reduziram apenas a paralisias, pois algumas professoras,

na impossibilidade de abrir um espaço de valorização e reconhecimento profissional

no interior do CMEI, passaram a buscar outras aberturas – como ocorreu em um dos

encontros de vivência.

Os encontros de vivências foram propostos e organizados pela SEME e se constituí-

ram, no ano de 2006, como um espaço de formação ocasionalmente exposto as

descontinuidades criativas onde as professoras da Educação Infantil participavam

com os profissionais ─ que atuam no setor correspondente no órgão central ─ de

encontros semanais. Nesses momentos, as professoras que compartilhavam relatos

de outras colegas que atuam no Sistema Municipal de Ensino, também trocavam

experiências e discutiam questões relativas ao desenvolvimento de nesse nível de

Educação.

Foi em um desses encontros que uma professora encontrou um espaço de divulga-

ção do seu trabalho. Lá ela conversou com o chefe de Educação Infantil e ofereceu

o relato escrito do seu trabalho para ser utilizado em futuras publicações da Secreta-

99

ria. Esse movimento de abertura de outras possibilidades de espaços de reconheci-

mento, valorização e de visibilidade do trabalho produzido gerou um grande incômo-

do na escola, porque a pedagoga considerou que a professora em questão não po-

deria ter entregado tal documento, sem antes passar por dispositivos de filtragem

justificando que o trabalho entregue continha sérias questões textuais técnicas, as

quais comprometiam o conjunto de profissionais da escola. A professora em questão

contra-argumentou que a pedagoga já havia lido o relato na ocasião da reunião com

os pais, quando o material foi apresentado pela primeira vez e, na oportunidade, não

havia feito nenhuma consideração sobre os erros ortográficos.

Esse processo em que cada componente (individualmente ou em pequenos grupos)

tenta a todo custo imprimir e estender seu poder de atuação vai indicando como as

professoras vão se compondo, para produzir movimentos inventivos na tentativa de

garantir um lugar próprio de atuação profissional, respeitabilidade e sobrevivência.

No entanto é preciso considerar que há movimentos truculentos de recuperação do

poder, pois, nas situações em que o grupo CTA considera que o atual representante

das professoras não é o mais adequado para garantir o atendimento às suas neces-

sidades particulares, estes rompem politicamente com a professora de referência

substituindo-a por outra, agravando, assim o que já era intolerável, provocando um

intenso sentimento de descontentamento do grupo de professoras.

O modo de funcionamento do pensamento majoritário da escola veio à tona em uma

das reuniões de grupos de estudo, quando o CTA tirou um tempinho para dar alguns

informes de cunho administrativo. Nesse encontro, a diretora falou da necessidade

de escolher um tesoureiro temporário para o Caixa Fiscal, devido ao longo afasta-

mento da professora que, até então, ocupava esse cargo. Nesse momento, ocorreu

uma situação inusitada que deixou tanto a diretora como a pedagoga, atônitas. Situ-

ação que provocou um deslocamento drástico nas forças que compõem os jogos de

poder no CMEI. Muitas professoras, ao serem questionadas sobre a possibilidade de

participação, silenciaram-se. Uma das professoras aproveitou para questionar sobre

as reuniões do Conselho, pois não tinha visto nenhum movimento de convoca-

ção/realização das mesmas nesse sentido durante o tempo em que atuava naquele

CMEI. Outra professora perguntou, ironicamente, à professora do Maternal que tem

100

funcionado muito próxima ao CTA se ela não se candidataria ao cargo. Uma vez que

era do conhecimento geral que a mesma compactuava com muitos movimentos pro-

duzidos nos encontros a portas fechadas promovidos pela administração da escola

sugerindo o seu nome como forma de denunciar um pacto entre as forças que atu-

am nessa posição privilegiada e na tentativa de opressão de outras tantas. Observe

que a proximidade da professora do maternal era tamanha em relação à diretora,

que essa última, na avaliação profissional engendrada no Conselho de Classe, fez a

seguinte afirmação:

“Se um dia se ela sair da escola, eu saio também”. Em sua fala destacou a disponibilidade da professora fora dos horários e períodos letivos. Falou da importância de sua colaboração para o CMEI e do reconhecimento dos pais. “A escola é pequena e nós temos uma relação familiar”

No entanto, surpreendentemente, a professora do maternal, como resposta a colega

que anteriormente havia indicado seu nome para o cargo de tesoureira do caixa es-

colar, fez o seguinte desabafo:

Não faço parte de coisa alguma nessa escola. Quando as pessoas preci-sam, estou sempre disponível, mas acho que há muito desrespeito. Fui destituída do cargo de suplente (no Conselho de Escola) sem sequer ser informada [...] Acho que vocês [dirigindo-se à diretora e pedagoga] não me consideram uma pessoa de confiança. Chamem as pessoas autorizadas a receber o vale-transporte, as mesmas que são convidadas a ficar no caixa da festa junina. Não sei por que estão perguntando, se quem vai assumir já foi escolhida?

Essa exaltação causou um forte mal-estar na equipe do CTA, pois, diante das evi-

dências e denúncias de que há uma composição de forças já previamente estabele-

cida, o qual detém o poder, dentre outros, em torno dos recursos financeiros da es-

cola; as administradoras ficaram mudas e sem resposta. Essa denúncia, ao partir do

interior do próprio grupo de maioria era, portanto, inquestionável e originou silêncio

perturbador diante da impossibilidade de se contrapor a denúncia e também à sur-

presa, uma vez que fora desencadeado justamente a partir de um dos corpos fre-

qüentes na composição de forças sedentárias; que, apesar de ter forte poder de

dominação, atuando por meio de um dispositivo excludente de hierarquização im-

posto às professoras; tal composição, nem por isso se constitui num grupo homogê-

neo, mas, ao contrário produz em si fissuras as quais podem ser expandidas, resul-

tando em desestabilizações no diagrama de forças traçado.

101

Trago esses conflitos cotidianos neste texto por considerar que esse modo de fun-

cionamento produz fortes implicações nas práticas educativas e, em função disso,

considero que cartografar as ações inventivas pressupõe, necessariamente, localizá-

las nesse complexo diagrama. Fora desse contexto, trazer à visibilidade essas práti-

cas pode soar como uma ingênua atuação panfletária em favor da categoria de pro-

fessores e/ou por uma homenagem a ela. Não acredito que, como profissionais, ne-

cessitamos nem de uma coisa nem de outra. É na rede de poderes, nas relações de

força, que podemos analisar e produzir questões sobre as práticas das professoras

e os possíveis que se abre para os processos formativos.

Nesse sentido, a atuação de uma professora, que produz um intenso incômodo no

diagrama de forças que se instaura no CMEI, é por mim considerada, nesta pesqui-

sa, como um potente instrumento de análise nas constituições das paisagens.

Ao atuar em movimentos inventivos e em aberturas de outros espaçostempos de

valorização e reconhecimento profissional, ou mesmo quando ridiculariza, pelo exa-

gero técnico-moralista, a performance pedagógica dominante, ela produz grandes

desestabilizações na escola. Assim, por esses e outros motivos que, mais à frente,

vão surgindo na costura desta escrita, tal profissional tem sido, permanentemente,

colocada no lugar de louca nessa instituição educativa. Seu nome está presente em

muitas conversas, em vários comentários, sendo sempre atribuído à função de emo-

cionalmente desequilibrada ou destacando a sua suposta falta de senso, em função

da sua condição de freqüente discordância em relação ao senso comum. A ocupa-

ção desse lugar social foi se constituindo aos poucos, com a participação de muitos

agentes e constituição de diversos modos de funcionamento que operam desde a

negação de atendimento e intervenção dialógica em seu trabalho - sendo a referida

professora “arremessada a sua própria sorte”, sem ter com quem falar ou discutir

seus pontos de vista e suas práticas educativas, devido ao isolamento que lhe foi

imposto por parte do próprio grupo de docentes.

Ocorre que não é possível controlar com precisão esses movimentos classificatórios

e excludentes. Se, em algum momento, foi preciso produzir na repetição incessante

de muitas falas um lugar de louca, em uma das paisagens que se formou, essa prá-

102

tica preconceituosa produziu uma grave tensão na escola, pois uma das colegas que

assumiu função mais declaradamente de ridicularização do trabalho da professora

tomou o problema como pessoal e passou a não aceitar que ela ocupasse outro lu-

gar senão o de louca:

A professora do Berçário II não suporta ver colega que atua no B I ocupar outro lugar que não seja o lugar de ‘doida’ ou de desorientada. Ela tenta manter a professora do Berçário I no lugar de quem atrapalha o trabalho pedagógico do CMEI e não produz nada de interessante (grifo meu).

Esse comentário, feito pela pedagoga se deu em uma conversa na sala dos profes-

sores onde a professora que atua no Berçário II se queixava, veementemente, de

um suposto destaque dado à atuação de colega do Berçário I, apontado o relatório

do passeio ao Parque da Pedra da Cebola. O mais curioso é perceber que a profes-

sora do Berçário II, apesar de ser professora de uma das turmas envolvidas na ativi-

dade, sequer participou do referido passeio, sendo impossível, portanto, que sua

própria atuação fosse registrada. O registro a que a professora se refere foi descrito

na primeira parte desse texto.

Nessa mesma conversa a professora do Berçário II também falou sobre sua recusa

em colaborar com o CTA disponibilizando, em alguns momentos, a sala de aula que

utiliza para realizar o trabalho educativo junto às crianças do Berçário II, para ade-

quação do espaço educativo, viabilizando assim, a realização das aulas de balé.

Sua recusa em ceder a sala de aula para a realização das aulas de balé estava atre-

lada à necessidade de compartilhar o varandão com a turma do Berçário I.

Essa distorção no posicionamento da professora que atua no B II, sua prática de

perseguição em relação a sua colega de trabalho, só se tornou um problema para a

escola, quando passou a prejudicar outros projetos considerados importantes para o

CTA como as aulas de balé. Até então, não havia qualquer movimento na tentativa

de minimizar os conflitos entre as duas profissionais, como se pode notar nas dis-

cussões travadas entre elas na reunião de Conselho de Classe, conforme registro

do diário de campo:

Ao iniciar uma avaliação sobre a atuação das professoras, a pedagoga pergunta às professoras do Berçário II sobre os desafios enfrentados no primeiro semestre, e uma delas responde: ‘Desafio de trabalhar com a co-

103

lega atual, o próximo desafio será o de trabalhar com a professora que ora atua no B I’. Esse comentário foi feito em tom de ironia e provocação, demonstrando hostilidade em relação à colega de trabalho do BI. Essa postura tem res-paldo do CTA e de outros profissionais da escola, os quais, freqüentemen-te, ridicularizam e hostilizam uma professora, com chacotas e comentários irônicos sobre as suas falas e posturas educativas. 39

E essa não é uma ação isolada. Num outro dia, outra professora expressou com ve-

emência um forte descontentamento em relação à professora do Berçário I. Em con-

versa travada com a diretora no pátio, falou:

Eu não suporto a forma como essa mulher fala. Ela é muito debochada. Disse que não concorda com a luta, que está muito satisfeita com seu salá-rio e que faz o que gosta. Até parece, que faz tanta coisa assim! Dá vonta-de de dar um soco na cara dela (grifo meu).

Ocorre que, no movimento dinâmico de mudança das paisagens, a professora do

Berçário I, buscando inventar um modo de criação de si que pudesse neutralizar a-

quele que se tentava atribuir ─ deslocou-se dos modelos que lhe eram freqüente-

mente atribuídos passando a promover um convívio de outra qualidade com o grupo

de professoras. Nesse movimento, buscou considerar as críticas que lhe eram feitas,

mudou de postura nas relações praticadas e também denunciou o processo de en-

louquecimento que lhe foi imposto. Assim, com o apoio dos pais, que a consideram

uma boa professora, e com sua mudança qualitativa de posicionamento, provocou

em muitos momentos a problematização dos movimentos de exclusão produzidos

em relação a ela por outros profissionais que atuam no CMEI.

Percebendo o movimento de alguns corpos que compõem o corpo docente e do

CTA e buscando o apoio dos pais passou a desmontar o movimento que lhe foi im-

posto. Tudo isso em meio ao sofrimento e ao adoecimento de seu corpo: “Não sei

por que as pessoas fazem isto comigo. Gosto de todo mundo e procuro ajudar a to-

dos. Mas as pessoas ficam me perseguindo”. Ainda assim, ela não se intimidou e

encontrou forças para atuar a seu favor, para abrir caminhos para a manutenção de

39 Conselho de Classe- 07 de agosto/2006

104

sua vida. Na mesma reunião, fez algumas considerações sobre sua postura e pas-

sou a comentar sobre o seu processo de constituição de um Si:

A gente tá tentando fazer um entrosamento. Todo mundo tem seus defeitos e suas qualidades. Eu acho que a gente não pode ficar rotulando negati-vamente a pessoa, pois ela vai murchando. Ao invés de destacar os de-feitos, é melhor dar uma sugestão para a situação observada40 (grifo meu)...

Em síntese percebe-se dentro do complexo diagrama produzido no CMEI, possivel-

mente, em muitos outros, há a produção de modos de funcionamentos nas quais

diferentes vetores que tentam imprimir seus sentidos para o que consideram dever

ser a escola, a professora, o aluno e ser família, desses campos de luta derivam

modelos de atuação dominantes e a multiplicidades que os estilhaçam.

Ocorre que, por diversas vezes, esse grupo se compõe e decompõe de acordo com

a situação política mais favorável como tentativa de criar canais de expansão dos

fluxos vitais, tanto quanto para garantir a manutenção e/ou obtenção de recursos

materiais, status e outros privilégios; produzindo-se, freqüentemente, desestabiliza-

ções a partir de diferentes e inusitadas articulações de forças de minoria que atuam

micropoliticamente para provocar abalos, rachaduras, rompimentos e recuos nas

linhas sedentárias.

Aparentemente, uma lógica similar à que opera entre os funcionários também se faz

presente nas relações entre usuários mirins, e entre eles e os profissionais em Edu-

cação. Devido às grandes diferenças e disparidades no que se refere às condições

socioeconômicas e culturais que compõem o grupo de usuários desse CMEI; há,

ainda que silenciosamente, um forte embate entre os diferentes sentidos atribuídos à

definição conceitual e à efetivação prática de um projeto educativo. Nesse sentido,

verifica-se, também uma tendência predominante na produção de um currículo que

atenda a interesses particulares associados a modelos sociais instituídos o que se

refere nos produtos e artefatos culturais disponibilizados e produzidos pelo CMEI.

Entretanto, ocorre que essa elaboração tendenciosa do currículo não anula as inter-

venções inventivas das forças díspares, as quais buscam imprimir outros movimen-

40 Conselho de Classe – 7 de agosto.

105

tos/elementos na sua composição dos currículos possíveis produzidos em relação

com a diferença.

Essa abordagem do contexto político atual local em sua conexão com contextos po-

líticos mais amplos aqui brevemente esboçados reforça a posição que afirma uma

mudança nas formas de operação no sistema capitalista e nas formas de poder por

ele engendrado. Recorrendo a Rolnik (2006, p. 18), procuro destacar, nesse sentido,

que...

O cenário de nossos tempos é outro: não estamos mais sob o regime iden-titário, a política de subjetividade já não é mais a mesma. Dispomos todos de uma subjetividade flexível, experimental e processual e nossa força de criação em sua liberdade de experimentação não só é bem percebida e re-cebida, mas ela é inclusive insuflada, celebrada e freqüentemente glamuri-zada. Mas há um, porém, e que não é dos mais negligenciáveis: o principal destino desta força hoje não é a invenção de formas de expressividade pa-ra as emanações do corpo vibrátil – estas formas veiculam a incorporação da força do mundo em nossa subjetividade e que são indissociáveis de um devir − outro de nós mesmos. O capitalismo cognitivo apropriou-se da po-tência de criação que então se emancipava na vida social, para colocá-la de fato no poder. Entretanto, sabemos todos que se trata aí de uma opera-ção perversa cujo objetivo é o de fazer desta potência, o principal combus-tível de sua insaciável hipermáquina de produção e acumulação de capital. É esta força, assim cafetinada, que com uma velocidade exponencial vem transformando o planeta num gigantesco mercado e, seus habitantes em zumbis hiperativos incluídos ou trapos humanos excluídos.

A política de criação de territórios tem como referência modelos mais dinâmicos e

adaptáveis (múltiplos e variados) de papéis sociais a serem projetados em nossos

modos existenciais, imagens criadas e vinculados pelos diversos meios comunica-

ção os quais constroem e vendem a imagem do paraíso como possibilidades infini-

tas de consumo de identidades e necessidades vazias. A questão é que, indepen-

dente da tribo com a qual você se identifique, independente das imagens para as

quais você canaliza seus quereres, elas estarão sempre vinculadas à necessidade

não pensada de carimbar um passaporte que lhe permitiria transitar temporariamen-

te no paraíso prometido. Assim, quaisquer que sejam os modos existenciais propa-

gados:

Eles são portadores da mensagem que existem paraísos, que agora eles estão neste mundo e não num além dele, que alguns privilegiados têm a-cesso a eles e, sobretudo, que podemos ser um destes Vips, bastando pa-ra isso investirmos toda nossa energia vital de desejo, de afeto, de conhe-cimento, de intelecto, de erotismo, de imaginação, de ação [...] – para atua-lizar em nossas existências estes mundos virtuais de signos, através do

106

consumo de objetos e serviços que os mesmos nos propõem (ROLNIK, 2006, p. 20).

Nessa perspectiva, o trabalho de pesquisa e estudo que pode fazer-se útil na atuali-

dade precisa se ocupar em cartografar quais são as forças que atravessam nossos

corpos, onde elas interrompem os fluxos criativos, fazendo com que exerçamos so-

bre nós uma força outra no sentido de desvincular nosso desejo-pensamento das

imagens disponibilizadas. É preciso analisar os movimentos que possibilitam que

nossas subjetividades sejam capturadas pelo mercado, aprisionando nossa força

vital de existência.

Assim, na próxima sessão e a partir dos pontos de vista acima estendidos, procuro

analisar as invenções que as professoras são capazes de produzir-nos entre-

espaçostempos das linhas de corte binário que tentam organizar os saberes-fazeres

escolares.

107

8 AS EXPERIMENTAÇÕES INVENTIVAS PRODUZIDAS PELAS PROFESSO-

RAS... OU QUEBRAS, RUPTURAS, BIFURCAÇÕES... AINDA QUE TEMPORÁ-

RIAS

Ao destacar as experimentações inventivas co-engendradas pelas professoras nos

encontros educativos com os usuários diante da produção da diferença, faço a partir

da concepção de pensamento anteriormente explicitada nessa escrita buscando in-

vestigar nas práticas educativas como essas personagens inauguram processos

singulares de experimentações profissional-pessoal diante do arrombamento produ-

zido por signos que as forçam a pensar; ou seja, procuro analisar os processos de

aprendizagens inventivas das professoras.

O conceito de aprendizagem inventiva utilizado como ferramenta nessa pesquisa foi

proposto por Kastrup (1999 - 2005) em seus estudos sobre a cognição. Nessa con-

cepção teórico-metodológica o conceito de invenção não é utilizado como sinônimo

de criatividade; recorro aos estudos da referida autora para fazer a devida distinção

entre um termo e outro:

É preciso dizer que invenção não se confunde com a criatividade [...]. Criati-vidade é a capacidade de produzir soluções originais para os problemas. Mas a invenção não é uma capacidade de solução de problemas, mas, sobretudo, de invenção de problemas. Além disso, a invenção é sempre invenção do novo, sendo dotada de uma imprevisibilidade que impede sua investigação e o tratamento no interior de um quadro de leis e princípios invariantes da cog-nição [...] Fazer da invenção um problema significa recusar a invariância das condições de possibilidades da cognição e reconhecer seu caráter temporal e de diferenciação interna. A invenção é uma potência que a cognição tem de diferir de si mesma. [...] a invenção não é um processo que possa ser a-tribuído a um sujeito [...] O sujeito, bem como o objeto, são efeitos, resultado do processo de invenção (KASTRUP, 2005, p. 1274-1275, grifo meu).

Assim a aprendizagem que não se restringe a solução de problemas, nem tampou-

co, a apropriação e, uso técnico, de formas de ensinar. Mas aprendizagem em sua

dimensão inventiva a partir da reativação de restos arqueológicos, que, composto

em agenciamentos outros, produzem um modo novo de experimentar-praticar a do-

cência. Pois, segundo Kastrup (2005, p. 1278), ao falarmos sobre invenção é preciso

destacar que:

Recorremos a sua etimologia latina – invenire−, que significa compor com restos arqueológicos [...]. As mãos do pianista não são uma invenção ex-

108

nihilo nem se definem por seu aparato biológico. Define-se pela destreza, firmeza, precisão e perícia no movimento dos dedos, que são cuidadosa-mente produzidas. A capacidade de desenvolver movimentos tão finos e precisos existia como virtualidade, mas precisou ser cultivada por meio do ritmo de uma prática repetida.

Em recorrentes análises estendidas sobre as experiências educativas engendradas

nos espaçostempos institucionalizados de Educação, as referidas práticas são vin-

culadas à imagem dogmática do pensamento em sua dimensão de recognição. A-

prendizagem inventiva é entendida como processos de composições de experimen-

tações, que não se restringem a aquisição de conhecimentos numa seqüência de

tempo cronológico e seqüencial. Assim, considero que para professoras que partici-

param dessa pesquisa a seqüência cronológica de formação profissional que vai

progressivamente da formação inicial, passando na maioria dos casos pela especia-

lização e chegando em outros, à formação em nível de pós-graduação strito sensu;

muitas vezes não foram suficientes para garantir composições de conjuntos práticos

capazes de responder as complexas questões que emergem nos cotidianos educati-

vos diante da emergência de processos singulares de aprendizagens inauguradas

pelas crianças.

Na perspectiva que se procura desenvolver seria preciso considerar a docência co-

mo devir, o destaque aqui é para o caráter intempestivo41 da constituição profissional

considerando a composição de forças que se organizam nos cotidianos educativos

para produzir como potência diferença; ou seja, a concepção rizomática de conhe-

cimento que vai produzindo uma constituição singular de si e do mundo. Constitui-

ção profissional que, a exemplo do pianista é produzida a partir de um rigoroso pro-

cesso de experimentação que necessitaria ser cultivada para ganhar ritmo e cadên-

cia, precisaria ser aprimorada por meio da emergência de novas experimentações e

seleção dos feixes de agenciamentos que irão compô-las. Ao afirmar a docência

como devir considero os movimentos produzidos pelos corpos desejantes nos des-

locamentos e deslizamentos entre as linhas constitutivas do campo do desejo, pois o

devir diz respeito aos movimentos que nos arrancam de um território delimitado,

produzindo processos de desterritorialização de diferentes graus e intensidades e

que podem vir a se constituir em singulares de afirmação da vida, ou seja, produção

41 “Intempestivo como a emergência de uma diferença desestabilizadora das formas vigentes, a qual nos separa do que somos e nos coloca uma exigência de criação”. (ROLNIK, 1996, p. 247)

109

de experimentações que colocam em questão os modelos dominantes de atuação

que tentam restringir essa mesma vida.

Assim, considero que as professoras em seus processos de subjetivação produzem

conjuntos práticos os quais instauram espaçostempos informais de formação e en-

contros comunitários de modo que possam fazer circular algum oxigênio por entre as

angústias que tocam e sensibilizam suas almas e buscando inaugurar novidades

nos processos de negociação que desencadeiam na relação com os usuários, para,

assim, criar canais de passagem para os fluxos intensivos que, insistentemente, ne-

cessitam aumentar a potência de existir.

A partir das considerações anteriores começo a análise do que considerei aqui como

sendo os processos de experimentações inventivas produzidas nos espaçostempos

educativos do CMEI em que a pesquisa foi desenvolvida. Inicialmente analisarei os

processos de experimentação comunitários mais amplos engendrados pelo corpo

profissionais de Educação que atuam nessa escola no encontro com os outros cor-

pos que compõem a comunidade escolar (crianças, familiares e funcionários); num

segundo momento desse capítulo, analisarei alguns processos mais específicos

produzidos por três professoras que, no encontro-negociação com os usuários e

demais colegas de trabalho, fizeram irromper processos singulares de experimenta-

ção docente. Trago aqui esses processos de produção de conjuntos práticos por

considerar que eles produziram desestabilizações marcantes nos modos de docên-

cia habitualmente praticados no cotidiano do CMEI, colocando questões tanto para

outras professoras que atuam nesse espaçotempo educativo, como para o modo

tradicional de organização escolar que tenta impor formas sedentárias de pensar-

praticar a Educação Infantil.

8.1. PROCESSOS DE EXPERIMENTAÇÕES COMUNITÁRIAS

8.1.1 Estratégias de sobrevivência desejantes I: das pequenas-grandes vin-

ganças à abertura de espaços alternativos de encontros e de negociações.

110

O processo que trago para essa análise se deu durante uma reunião realizada den-

tro do horário de aula, no qual a pedagoga convocou as professoras para informar

que a Secretaria Municipal de Educação não iria dispensá-las mais cedo das fun-

ções docentes nos dias de jogos do Brasil na Copa do Mundo de futebol realizada

no ano de 2006.

Concomitantemente, afirmou-se que a PMV havia reduzido a jornada de trabalho

dos outros funcionários públicos municipais dispensando-os mais cedo de suas ati-

vidades durante os horários de jogos do Brasil e destacou-se à exceção conferida

aos serviços ditos essenciais; sendo a Educação escolar foi considerada, nesse

momento, como serviço público essencial.

Durante essa reunião, a pedagoga esclareceu que a mãe de um dos alunos e presi-

dente do Conselho de Escola (representando a diretora, pois esta à época estava de

férias) foi à reunião de diretores, convocada pela própria SEME, na qual tal decisão

foi então comunicada.

No retorno ao CMEI, a presidente do Conselho determinou por conta própria que as

professoras fechassem à escola nos dias dos jogos do Brasil e fizessem a reposição

aos sábados, os quais se encontravam comprometidos com a reposição dos dias

letivos referente à greve do Magistério, ocorrida no início do ano letivo.

Então diante do ocorrido à pedagoga manifestou seu sentimento de estranheza em

relação à surpreendente decisão da presidente do Conselho, pois considerou que

não houve tempo suficiente para discutir o problema com toda a comunidade esco-

lar. Entretanto considerou que era uma decisão tomada em nível pessoal, e, portan-

to, não acordada no grupo. Desse modo, propôs às professoras que, para atender à

determinação da SEME, que dizia respeito à necessidade de garantir o dia letivo nos

dias de jogos do Brasil, a escola organizaria a seguinte forma de atendimento aos

alunos.

Nos dias em que o Brasil jogasse às 16h ficaria assim:

Turno matutino: 7h às 11h (o portão abriria às 10h30min)

Turno Vespertino: 11h às 15h (o portão abriria às 14h30min)

111

Nos dias em que o Brasil jogasse às 12h todas as crianças seriam todas recebidas

no turno matutino de 7h as 10h30m.

No modo de organização proposto, a pedagoga reconheceu que os profissionais que

atuam no turno vespertino ficariam prejudicados considerando que teriam menos

tempo para se locomover apropriadamente até a sua casa, uma vez que alguns pro-

fissionais moravam em bairros bem distantes da escola. No entanto, apostando na

idéia de que, diante dos transtornos provocados pela mudança de horário dos tur-

nos, a maioria dos pais não traria seus filhos à escola e, que desse modo, a fre-

qüência seria bastante reduzida; todos acabariam por sair em horário compatível

com suas necessidades de tempo para transportarem-se ao conforto de seus lares e

assistir aos jogos.

É preciso destacar que na tentativa de garantir o dia letivo e supostamente evitar

trazer maiores transtornos para as famílias e/ou, alternativamente, buscando-se im-

primir um dispositivo de punição sobre os profissionais de Educação que meses an-

tes enfrentaram a gestão municipal por meio de uma greve bastante longa e não

menos penosas aos próprios profissionais e usuários, o que se viu na prática foi a

perda de parte de um turno do dia letivo, que efetivamente inviabilizava todo o dia de

trabalho educativo, na medida em que, ao mexer no horário dos dois turnos, produ-

ziu-se uma incompatibilidade intratável com o horário de saída/chegada do trabalho

de muitos pais, os quais, em sua maioria, seriam dispensados às 12h de suas res-

pectivas atividades para não mais retornarem.

Jogando... Driblando... Criações inusitadas no campo: diferenciação nos horá-

rios de atendimento

Toda essa movimentação durante a copa do mundo de 2006 torna mais visível a

dificuldade dos profissionais envolvidos em abrir espaçostempos de negociação nos

processos de experimentações engendrados nos estabelecimentos públicos de en-

sino; negociações e procedimentos que pudessem atender (ainda que parcialmente)

às necessidades de todas as forças que compõem a comunidade escolar. Neste ca-

so específico, a Secretaria Municipal de Educação, em nome da garantia do atendi-

112

mento de um serviço público então considerado essencial, desconsiderou a diversi-

dade de necessidades dos educadores, determinando de modo autoritário e arbitrá-

rio a manutenção do atendimento educativo regular.

Os professores, por sua vez, de modo a garantir a satisfação seus interesses, des-

consideraram as necessidades dos usuários passando a cumprir parcialmente, sem

nenhuma negociação com os mesmos, a determinação da Secretaria Municipal de

Educação.

Desse ponto de vista, perde-se a oportunidade de estabelecer uma negociação en-

tre os interesses particulares a fim de constituir um interesse comum, o que poderia

garantir a instauração de um debate sobre as diversas necessidades envolvidas e a

produção de atendimento público especial para essa situação específica e transitó-

ria.

Por outro lado, é preciso considerar que todo esse movimento produziu também e-

feitos positivos. O primeiro diz respeito às experimentações de encontros e discus-

sões coletivos não previstos produzidos, por diversas vezes, no decorrer da pesqui-

sa, sempre em função de uma necessidade local e específica inadiável sobre a qual

se fazia inescapável a aplicação de uma lógica imanente à situação. Como exemplo

pode-se citar antes as reuniões extraordinárias em que as professoras e o CTA se

encontravam para discutir problemas considerados urgentes, de modo que as crian-

ças ficavam sob os cuidados das estagiárias e de profissionais de apoio. Em tais

encontros, o coletivo da escola se organiza para abrir outros campos de possíveis

para o acontecimento da escola pública sobrevivendo assim, aos penosos jogos de

determinações, punições e recompensas exteriores implementados por um modo de

funcionamento autoritário do órgão gestor. Nesses momentos, as desavenças inter-

nas são então como que diluídas, e o grupo se fecha num acordo silencioso.

Outro efeito produzido pela movimentação espaçotemporal desencadeada em fun-

ção dos jogos do Brasil na Copa do Mundo de 2006, se refere à quebra do modo de

organização usual do agrupamento de crianças em salas de aula em encontros ex-

traordinários promovidos na data de alguns jogos da seleção brasileira, todas as cri-

anças que compareceram a escola foram recebidos em um só turno. É claro que

113

nesses momentos, a freqüência foi consideravelmente reduzida e o trabalho mais

sistematizado com as crianças necessitou ser bastante flexibilizado. No entanto, es-

ses processos possibilitaram a produção de encontros muito mais espontâneos e

descontraídos. Encontros onde às práticas educativas não estavam submetidas ex-

clusivamente aos conhecimentos que poderiam gerar, mas a uma forma de coorde-

nar o grupo que pudesse garantir a segurança física de todos e a manutenção de

um modo coletivo de gestão escolar. Ocorre que essa atitude abriu espaços para

experimentações inusitadas na medida em que as crianças e as professoras organi-

zaram-se de forma a desenvolver atividades educativas variadas (jogos, vídeos, his-

tórias, atividades de pintura, desenho, escrita, movimento e modelagem) sem um

controle rigoroso de avaliação permanente das aprendizagens efetivadas. Assim...

Um grupo de crianças é convidado a fazer massinha. Enquanto a professora aquece a água colocando-a na tigela e mistura os ingredientes algumas cri-anças se interessam pelo trigo que está derramado sobre a mesa, Elas to-cam a farinha, espalham-na pela mesa, amassam o trigo seco, sentindo-o escorrer pelas mãos. Passam a farinha no corpo, jogam pela cabeça e vão entrando cada vez mais na textura da farinha. De modo que não se pode mais discernir o que é criança o que é farinha. É um contato intenso, onde cada faculdade em sua diferença é convocada a experimentar as intensida-des da farinha. Um processo de experimentação que não tem objetivo de produzir nenhum saber específico. O que está em jogo são as sensações que esse contato proporciona. O desejo é captar aquele corpo em toda sua extensão. 42

Esse modo de funcionamento singular do espaçotempo escolar coloca questões im-

portantes às formas modelizadas das diferentes propostas de atividades educativas

nesse nível de ensino. Atividades que, em alguns momentos, buscam atravessar-se

para rachar com as rígidas fronteiras disciplinares que tentam delimitar áreas especí-

ficas de conhecimento e atuação profissional. Essa abertura ocorreu diante do nú-

mero de crianças e da mistura dos dois turnos letivos, o que tornou impossível con-

trolar rigorosamente os movimentos caóticos das crianças, tanto quanto separar ar-

quitetonicamente as atividades a serem desenvolvidas por cada turma, em função

dos conteúdos e objetivos específicos das diversas áreas que compõem o orientador

curricular (RCNs) prescrito para esse nível de ensino (freqüentemente utilizado como

referência para o planejamento das atividades). Assim, tanto as crianças como as

professoras foram se organizando em grupos de interesse e promovendo encontros

42 Fragmento produzido a parte de registros de atividades realizadas nesses dias de jogos da seleção brasileira. Registros retirados do diário de campo.

114

inusitados e potentes sem a excessiva marcação de uma necessidade pedagógica

formalizada.

8.1.2 DIFERENTES ESPAÇOSTEMPOS DE FORMAÇÃO CONTINUADA.

Outro movimento que também se vincula a necessidade de criar processos de expe-

rimentações como potência do coletivo (Lopes, 2007), se manifesta na produção de

múltiplos espaçostempos de intercâmbio, bate-papos e troca de experiências, que

passam então a constituírem como processos formativos não oficiais, nos quais as

professoras elaboram sugestões a fim de viabilizar trabalhos comunitários e amplia-

ção dos encontros entre elas nos cotidianos desse CMEI. Em seus comentários,

destacam a importância de fazer circular os conjuntos práticos que vão compondo

em suas produções profissionais; mas que, no entanto, não se limitam a ele. Em um

desses momentos a professora dinamizadora, em conversa informal produzida na

sala das professoras, destaca a importância de ampliar os modos de atuação docen-

te tendo como referência as próprias ações educativas desdobradas pelas professo-

ras: gostaria de pegar um pouquinho de cada uma [professora]. Vejo uma situação

em uma sala e penso na forma como outra professora da escola agiu em uma situa-

ção similar.

Esse movimento se manifesta em diferentes espaçostempos da escola e vai se es-

tendendo em muitas outras direções: desde a necessidade de compor momentos

coletivos de lanches, em que o maior número de professoras possam estar juntas, à

utilização de reuniões para discutir pendências entre elas e inaugurar processos

formativos, onde cada uma, a partir de suas experiências e formações específicas,

possa contribuir para discussão e criação de modos singulares de atuação.

Na reunião do Conselho de classe das turmas de seis meses a três anos, por exem-

plo, a professora dinamizadora explicou para as colegas de trabalho um pouco sobre

a sua prática junto às crianças na área de Movimento. A professora argumentou so-

bre a importância de alguns movimentos (como rolamento ou o rastejar no chão)

para a experiência de iniciar os primeiros passos e, posteriormente, andar. Ela expli-

cou que todas as capacidades estão em nós, no entanto, se não praticamos uma ou

115

outra capacidade, crescemos com dificuldades naquela área específica, como, por

exemplo, a dança, o equilíbrio ou a organização espaçotemporal.

A partir desse comentário a professora do maternal falou sobre sua experiência ma-

terna, pois, por orientação do pediatra, teve que praticar com seu filho o movimento

de engatinhar e rastejar na areia da praia, devido ao fato dele ter andado sem ter

experimentado tais sensações, o que mais tarde por volta dos quatro anos, segundo

ela, acarretou num problema de equilíbrio.

Após a contribuição da colega de trabalho, a professora dinamizadora continua sua explanação...

Para andar é preciso desenvolver a capacidade de apreender. É necessá-rio ter o movimento de apreensão das mãos, firmeza, para que possamos equilibrar o peso do corpo sobre os pés, e assim, controlarmos as passa-das equilibrando o peso num e noutro pé. [...] O ato de engatinhar é uma forma de caminhar num nível mais baixo, pois para executar este movimento eles precisam coordenar o ritmo e as pas-sadas. Coordenar os movimentos dos braços, intercalando com os movi-mentos das pernas. [...]

Isto, no entanto é uma regra geral, tomada nas falas das professoras como regra

universal. Serve para muitas crianças e indicam o modo pelo qual se pode fazer a

intervenção educativa de forma mais precisa, no sentido de propor atividades que

possibilitem a atualização e aperfeiçoamento das capacidades que estão em nós

como virtualidade. Mas, apesar disso, é preciso considerar que muitas outras formas

de aprender vão sendo produzidas diante da necessidade de superar uma dificulda-

de específica como é o caso do Vitório, por exemplo, que não dispõe da condição de

desenvolver-se a partir do movimento de apreensão das mãos, na medida em que

tem uma paralisia parcial, imprimi outros modos de aprendizagem, como foi relatado

pela sua professora:

Eu fico encantada com as formas que essas crianças [referindo-se as cri-anças com necessidades educativas especiais] arrumam para se virar sem a ajuda de um adulto. O bebedouro é um grande desafio para Vitório por sua dificuldade motora no lado esquerdo de seu corpo. No entanto, ele faz

116

todo um movimento corporal inusitado, para possibilitar o uso do bebedou-ro, imprimindo sua forma de uso pessoal. 43

Assim, ainda que os corpos das professoras estivessem atravessados por modos de

aprendizagem padronizados desenvolvidos por teorias do conhecimento que tentam

definir de modo pretensioso como os corpos aprendem, parece que as professoras

estão atentas aos outros modos de experimentação imprimidos pelas crianças nos

encontros educativos. De alguma forma, dá-se atenção às diferentes formas de a-

prendizagem que não são uniformes, homogêneas e lineares, e que exigem de nós,

professoras, práticas educativas singulares e diferenciadas. Essa atenção às dife-

rentes formas de aprendizagem pode ser observada em uma conversa com uma das

professoras que atuam nesse CMEI. Nessa conversa ela analisou as diferentes lin-

guagens utilizadas pelas crianças, linguagens que, segundo ela, nos dão pistas para

o trabalho educativo. Segue fragmento do seu relato retirado do diário de campo:

Se uma criança não fala, não produz graficamente como se espera, não avança na produção gráfica, mas apresenta um desenvolvimento corporal mais amplo expressivo, ou uma condição diferenciada de expressão plásti-ca (pintura de um desenho, por exemplo), ela está nos dizendo alguma coi-sa. Ela nos dá pistas de suas potencialidades que podem ser exploradas e expandidas. É preciso observar os movimentos corporais.

Na perspectiva das considerações sobre o trabalho com a área de movimento pela

professora dinamizadora, a professora do Berçário I disse que achava o trabalho da

dinamizadora muito importante e que gostaria de participar mais de suas atividades

educativas a fim de conhecer melhor o trabalho por ela desenvolvido com as crian-

ças, mas infelizmente nem sempre será possível devido ao fato de que nos momen-

tos em que a dinamizadora estava trabalhando junto às crianças de sua turma, ela

estava em planejamento com a pedagoga; confessando que: “Um dia eu consegui

ficar lá com ela e foi muito legal”.

Diante do comentário da colega de trabalho, a professora do maternal amplia a pro-

posta, sugerindo que as professoras pudessem sair de suas salas de referência para

participar das atividades educativas promovidas pela dinamizadora. Não só partici-

par das atividades produzidas pela professora dinamizadora, mas também daquelas

desdobradas por outras professoras regentes que atuam no CMEI, o que, segundo a 43 Fala da professora do maternal.

117

professora do maternal, possibilitaria a observação/participação de outra prática pe-

dagógica diferente da sua, o que poderia vir a produzir reflexões interessantes sobre

intervenções educativas produzidas pelas colegas e por ela própria junto às crian-

ças.

Essa demanda já havia sido colocada pelas professoras em outro momento mais

informal de conversa no pátio da escola. No entanto, a proposta de instauração de

uma prática em que as professoras pudessem participar das atividades docentes de

outras colegas de trabalho foi abortada pela pedagoga, antes mesmo de ter sido

mais bem consolidada pelo grupo de professoras; ainda que a diretora tentasse via-

bilizar a efetivação da proposta de ações comunitárias projetadas pela professoras,

argumentando com a pedagoga sobre as formas possíveis de promover o intercâm-

bio entre as professoras. Em contrapartida, a pedagoga sugeriu, em um tom irônico,

que as professoras poderiam abrir mão de um dos horários de planejamento para

estar junto com uma de suas colegas de trabalho de acordo com o interesse e dis-

ponibilidade de cada uma delas. Tal comentário nos remete a um papel institucional

assumido pela mesma, onde se acreditava que um modo de gerenciamento basea-

do em ações de policiamento e vigilância eram determinantes para o bom desempe-

nho do trabalho pedagógico. Argumento aqui, que se essa ironia se fundamentaria

em uma possível desconfiança, de que as professoras, ao proporem a permanência

em outra turma a fim de conhecer outros modos de fazer Educação, o que, de fato,

não articulavam um distanciamento do cumprimento de suas funções. Assim a cria-

ção de um espaço de troca de experiência, recém concebido pelo grupo de profes-

soras nesse encontro foi, sumariamente, frustrado pela interrupção da pedagoga.

O papel institucional da pedagoga

No decorrer desta pesquisa, foi possível perceber que a ação desse corpo profissio-

nal atua na organização geral das atividades educativas, como também na formação

de professores promovidas no interior do CMEI, estendendo-se inclusive a participa-

ção em decisões sobre assuntos de ordem financeira e administrativa. Participando

ainda, da reformulação da proposta curricular municipal para Educação Infantil pro-

duzida recentemente pelo órgão gestor. Tal profissional, entretanto assume sentidos

118

diversos em relação à população a que pertence (população que se constitui numa

multiplicidade), como um indivíduo excepcional (Deleuze). Este indivíduo excepcio-

nal ocupa múltiplas e dinâmicas posições, ora aparece como chefe do bando, ora é

um solitário destituído da chefia, ora age como estrangeiro, ora é o mentor espiritual.

De modo paradoxal a referida profissional atuou nos encontros educativos produzi-

dos pelos corpos desejantes assumindo múltiplas posições em agenciamentos dife-

renciados que, em alguns encontros, produziu canais de passagem de intensidades

vitais, já em outros momentos, interrompendo os fluxos inventivos produzidos nos

encontros educativos, tentando determinar um modo dominante de educar.

Esses encontros de corpos desejantes têm sido vivenciados de forma aleatória no

cotidiano escolar, encontros que interrompem os processos de experimentações e,

ao mesmo tempo, e em certa medida, potencializam outras formas de educar que

são engendradas sem que os indivíduos se dêem conta, produzindo oscilações as

quais, muitas vezes, simultaneamente, aumentam e reduzem a potência vital.

Assim, considero que os processos anteriormente cartografados, colocam questões

sobre alguns papéis institucionais – a função da diretora, a função da pedagoga − a

partir dos quais, numa relação de poder, uma linha dominante na negociação de a-

desões e imposição de isolamentos nos encontros produzidos nas instituições edu-

cativas. Colocar questões significa aqui, problematizar esses modos naturalizados

de dominação onde, precisamente, a atuação marcada por abuso de poder produz

adoecimentos e paralisias recíprocos, impedindo que os processos de experimenta-

ções possam se expandir.

Parece-me que a necessidade não é de eliminar essas funções as quais considero

importantes por possibilitarem a circulação de saberesfazeres e as discussões cole-

tivas, mas, problematizar os modos vigentes na medida em que atuando predomi-

nantemente por opressão, estancam os fluxos, reduzindo fortemente a alegria nos

processos educativos; faz-se necessário, então que, os corpos que compõem o cor-

po técnico-administrativo criem conjuntos práticos diferenciados, modos que vão se

constituindo nos processos de negociação-experimentação entre as forças que

compõem os cotidianos do CMEI.

119

Alguns desses modos diferenciais de ação foram rascunhados pelos praticantes do

cotidiano durante a pesquisa. A intervenção investigativa a qual produziu no encon-

tro com os corpos profissionais a problematização das situações vividas e alguns

efeitos inusitados, tanto no que se refere à constituição de novos campos problemá-

ticos sobre as situações vividas, quanto à instauração de jogos de poder, temporari-

amente, menos opressores. Isso foi percebido durante uma das reuniões de Conse-

lho de Classe, quando a abertura de uma pequena fresta possibilitou uma ampla

discussão sobre as redes de poder ali engendradas; sobre a atuação de cada um

nessa rede e sobre o adoecimento produzido a partir atuação autoritária de forças

dominantes, conforme análise desenvolvida no sexto capítulo deste texto.

Em outro momento, o papel profissional da pedagoga foi expandido, no sentido de

ampliar junto aos pais as discussões sobre a natureza dos encaminhamentos educa-

tivos assumidos pela escola. Assim, numa outra abertura não calculada, a pedagoga

criou um espaço de discussão para definir com as professoras sobre os assuntos

que seriam abordados com os familiares presentes na reunião de pais a ser posteri-

ormente realizada. Essa abertura se deu dentro do horário letivo, em que as profis-

sionais de apoio e as estagiárias ficaram com as crianças para que as professoras

pudessem elaborar a pauta de reunião com os pais, assim como a melhor forma de

abordagem. Durante esse encontro foram discutidas algumas questões:

Uma professora reclamou sobre o fato de algumas mães, permanecerem muito tempo na porta de sua sala e, que uma delas chegou a afirmar que tinha vontade de ficar na escola a manhã inteira. Diante disso, considerou que seria necessário estabelecer os limites de tolerância na permanência dos pais dentro da escola, especialmente no horário de entrada das crian-ças. Outra professora reclamou da exigência excessiva dos pais por resultados positivos na aquisição da leitura e da escrita. Alguns pais cobram desde o Jardim I o conhecimento das letras. Abordaram a questão da necessidade de uma reunião específica para tra-tar a questão do processo de alfabetização. Outra professora falou que: o curioso é que vim para cá este ano. Aqui os pais cobram mais. Já no início do Jardim II querem os alunos alfabetizados. A professora atribui essa exigência ao maior nível sócio-econômico, consi-dera que nos bairros mais carente a cobrança é só na turma de seis anos. E completa: Aqui elas [as mães] têm contato fora da escola com outras cri-anças que estudam nas escolas particulares, e, por comparação, ficam in-seguras. Não sabe se seus filhos vão ler ou não?

120

Essa mesma professora contou que a mãe de uma de suas alunas detonou com o seu trabalho na porta da sala de aula, no horário da entrada dos a-lunos. Questionou o fato das crianças supostamente brincarem excessiva-mente. Falou, ainda, sobre a escassez de tarefas de casa.

Esses breves espaços não autorizados de discussão foram de uma potência indes-

critível, pois garantiram a abertura para a exposição de algumas dificuldades enfren-

tadas cotidianamente nos encontros com os pais, possibilitando uma breve conversa

sobre os sentidos atribuídos à escola pelos profissionais e os distanciamentos em

relação àqueles atribuídos pelos pais, além de criar em possíveis para que as pro-

fessoras e a pedagoga pudessem pensar-atuar em uma função formativa mais di-

nâmica, horizontal e menos prescritiva.

A diretora tentou produzir um estancamento desse processo de discussão coletiva,

reduzindo ao máximo o espaçotempo do encontro. No entanto, a pedagoga e as pro-

fessoras imprimiram seus ritmos, insistindo na discussão sobre as tensões vividas

cotidianamente nos entrelaçamentos produzidos com questões trazidas pelos famili-

ares das crianças que freqüentam o CMEI.

Em função do conjunto anteriormente exposto a pedagoga aparece na tessitura des-

te texto, de modo paradoxal, assumindo diferentes posições: ora como personagem

principal em alguns processos inventivos, ora como componente do CTA em mo-

mentos de sua atuação dominante-opressora na composição do diagrama de forças.

8.1.3 DAS CRIANÇAS COM NECESSIDADE ESPECIAIS QUANDO NOS AJUDAM

A NOS DESPRENDERMOS DOS NOSSOS ADOECIMENTOS E PARALISIAS

Ao destacar o movimento inaugurado nesse CMEI, no encontro entre as professoras

e as crianças consideradas com necessidades educativas especiais analiso que, ao

seguir as professoras, acompanhando o movimento de constituição e desmancha-

mento das paisagens educativas em seus encontros com esses pequenos usuários,

um interessante movimento em relação aos processos educativos está sendo inau-

gurado no espaçotempo institucionalizado. A presença das crianças ditas com ne-

121

cessidades especiais no CMEI deslocou-me das análises e estudos acadêmicos

produzidos predominantemente a partir do conceito de inclusão. Conceito o qual

destaca à necessidade de inserção das crianças com necessidades especiais no

processo de escolarização vigente por meio de um atendimento diferenciado a es-

tas, de acordo com suas necessidades específicas. Práticas discursivas que, muito

freqüentemente, trabalham com ferramentas conceituais que focalizam a diferença

no sujeito. O sujeito como sendo portador de uma (ou algumas) necessidade(s) es-

pecífica(s) que o diferencia dos demais [considerados normais] exigindo-se, assim,

cuidados especiais. Parece-me que nesse tipo de abordagem, “a diferença é pensa-

da no sentido identitário [representação das características particulares de cada in-

divíduo ou grupo]” (ROLNIK, 1996, p. 255). Essa postura moral-investigativa remete

a outro problema crucial, como nos adverte Suely Rolnik:

[...] é que defender características particulares passa a neutralizar os efei-tos das diferenças, já que estes consistem exatamente no abalo das identi-dades vigentes e na exigência de criar novas figuras [...] a diferença é ne-cessariamente produção de um coletivo, já que ela é o fruto de composição das forças que constituem determinado contexto sociocultural, [...] abrir-se para a diferença implica se deixar afetar pelas forças de seu tempo. Uma política que não consiste simplesmente em reconhecer o outro, respeitá-lo, preocupar-se com as conseqüências que nossa conduta possa ter sobre ele; mas além, trata-se de assumir as conseqüências de sermos perma-nentemente atravessados pelo outro, uma política indissociável de uma éti-ca de respeito pela vida (ROLNIK, 1996, p. 255-256).

No entanto, os encontros singulares produzidos nos cotidianos desse CMEI, têm

desestabilizado essa forma moralista de análise da diferença. De modo que, neste

estudo, a diferença tem sido predominantemente pensada como um processo de

composição e recomposição de forças, novas combinações de forças, as quais pro-

duzem diferença nos modos de aprendizagem e nos encontros educativos.

Nesse sentido, considero que as crianças ditas com necessidades especiais, ao en-

trarem e permanecerem na escola, diante de uma dura e complexa negociação com

os profissionais de Educação; ao invés de serem incluídas às formas e aos modos

de funcionamentos tradicionais que, a partir da fala das próprias professoras, muitas

vezes tentam aprisioná-las nas salas de aulas, tentando estancar os fluxos intensi-

vos de seus desejos; ao invés disso, conseguem instaurar um movimento de deses-

tabilização na perspectiva inclusiva. Algumas dessas crianças, nos encontros com

as professoras e os colegas, impõem um modo outro de movimentação e de rela-

122

ções produzindo conjuntos práticos singulares, que implodem as normas e rotinas

do CMEI.

Assim, essas movimentações erráticas e formas singulares de aprender provocaram

um abalo fundamental nos modos de abordagem que tratam dessa temática tirando-

as do prumo; pois, ao invés de se pensar sobre o que necessitam essas crianças,

como atendê-las em suas necessidades, ou mesmo como adequar estruturalmente

a escola para melhor recebê-las, o que se atualiza nesses encontros educativos ali

engendrados é o que considero como sendo a emergência do novo. Novo aqui é

utilizado a partir da problematização de Deleuze (1992, p. 109), quando ele propõe

que, ao invés de buscarmos origens perdidas ou rasuradas, se faz necessário pegar

as coisas onde elas crescem, pelo meio: rachar as coisas, rachar as palavras [...]

Buscaríamos a formação do novo, a emergência ou o que Foucault chamou de ‘a

atualidade’.

O que as crianças consideradas com necessidades educativas especiais proporcio-

naram nos encontros com os profissionais de Educação que atuam nesse espaço-

tempo educativo, diante de um longo e difícil processo de experimentação-

negociação é algo formidável. Atuando como analisadores críticos dos processos

educativos centrados na idéia de inclusão, essas crianças colocam tais práticas em

questão (cujo modelo de referência é a diferença pensada no sentido identitário, e o

objetivo a garantia de melhor adequação possível desses alunos ao processo edu-

cativo institucionalizado). Assim, os educandos instauram questões que interrogam

radicalmente saberes pedagógicos clássicos e/ou formas arquitetônicas de conceber

o desenvolvimento infantil e a aprendizagem; modos formatados de aprender que

muitas vezes se caracterizam pelo seqüestro e confinamento em salas de aulas e a

exigência de uma atenção automática direcionada às diversas metodologias meca-

nicamente reproduzidas pelas professoras. O movimento engendrado por essas e

outras crianças no encontro com as professoras promovem uma profunda modifica-

ção no processo educativo e na organização do espaçotempo dos cotidianos desse

CMEI, como se pode seguir nas falas a abaixo:

O Saulo vai direto lá para o pátio, ele faz as atividades com as outras tur-mas, e a turma acolhe.

123

Entra na fila... Se eu estou fazendo um estafeta, um circuito, ele entra na fi-la e faz. E dali ele vai para outro lugar. 44 No ano passado, quando eu estava na sala do B II ele sentava lá para ouvir história e ficava assim, de boca aberta...

O vídeo, então, ele nem piscava.

Ele faz isso, com a gente, troca de canal, pra ver qual programação que vai agradar... [risos] Então ele vai de sala em sala ver se tem um programa bom: ‘Vou entrar aqui que o negócio aqui está bom’, até que ele cansa e muda de canal. A mudança de canal é a mudança de sala [Muitos murmúrios, entre risos]. 45

Em função da negociação com essas crianças, negociação no qual se possibilita

que cada corpo envolvido se diferencie cada vez mais foi possível colocar em análi-

se muitas certezas e verdades bastante preciosas para os educadores que atuam

nesse CMEI, questões que dizem respeito às fases do desenvolvimento infantil, por

exemplo.

Na fala das personagens principais, notei que há uma evidente abertura produzida

no encontro como esses corpos infantis, corpos que se movimentam de modo singu-

lar no espaçotempo educativo. Abertura que põe em análise a relação produzida

com outros corpos infantis em muitos outros encontros do CMEI como destaca no

trecho a seguir:

E observe bem, nosso olhar para com o Saulo que é tido como uma crian-ça especial. A gente permite isso, porque ele não pode prender [na sala de aula], porque ele fica nervoso... Mas porque as outras crianças não têm o mesmo direito? A gente tem esse olhar para o Saulo, porque ele nos toca pela deficiência, entre aspas a deficiência aí. Mas a gente não considera os outros com a mesma necessidade, que é uma necessidade que uma crian-ça. Pode ser uma necessidade da criança 46 [grifo meu].

No ano passado, quando tentamos prendê-lo na sala, foi um baque. Ele me batia, gritava... Rejeitava-me, chorava... Até que ele dormia47 [grifo meu].

44 Professora dinamizadora 45 Conversa entre as professoras produzidas no grupo de estudo realizado no dia 5-8-2006 46 Conversa entre as professoras. 47 Depoimento da estagiária de Ed. Especial responsável por acompanhar os movimentos desse aluno.

124

É interessante notar que, aos poucos, essa abertura vai se estendendo potencial-

mente há outras crianças: “Tem os bebês ali do Berçário que fogem, dois ou três, e

as crianças do Pré abraçam. Eles pegam no colo. Eles acolhem.” 48 (grifo meu)

A partir da problematização dessa forma de utilização do espaçotempo educativo

por alguns de seus usuários, foi possível instaurar uma análise coletiva sobre as prá-

ticas educativas engendradas no CMEI na quais as personagens principais passa-

ram a vislumbrar outros possíveis, como nos ilustra o diálogo abaixo:

− Que é o caso da Gilda. Ela a gente acha que não dá para ela ir à cozinha ver Maria, porque tem que estar na sala. Mas a gente já olha a criança com a necessidade especial evidente de outra maneira. Todas são crianças. 49 – Essa liberdade desse movimento é muito legal. Naquela época que eu fa-lei com você para a gente criar aqueles espaços, uns anos atrás, as salas ambientes, lembra? A gente podia sonhar e realizar, não foi à frente, né?50 – Quem sabe uma nova tentativa, com esse grupo mais fortalecido... Eu já tava pensando assim: num momento da rotina ter um horário... que fosse, por exemplo, de nove as dez. Isto tem que ser num momento da ro-tina, de nove as dez, a escola tá funcionando com diferentes temáticas [...] É uma experiência que a gente pode estar iniciando, eu acho que este ano a gente já começou com o interclasses, e isso já deu uma amplitude desse olhar que aquele menino não é o meu, que aquela não é a mi-nha professora, eu estou fazendo uma atividade que eu estou gostan-do com outras crianças, com outra professora, eu acho que já demos um passo. 51

INTERCLASSES

A partir do relato acima grafado, uma professora argumenta sobre a importância de

uma experiência produzida no CMEI, denominada por elas como atividades inter-

classes. Essas atividades acontecem uma vez por mês, quando cada turma visita

outra turma e as crianças desenvolvem uma atividade coletiva associada ao projeto

pedagógico e de responsabilidade da turma que recebe a outra. A professora em

seu relato destaca o fato desse movimento produzir uma modificação na forma de

organizar a escola ainda que cada criança tenha uma professora e um grupo de re- 48 Professora dinamizadora. 49 Pedagoga 50 Professora do maternal 51 Professora do maternal.

125

ferência. É notório que essa atividade pode constituir em si numa tentativa de insti-

tucionalização dos movimentos aleatórios que são engendrados pelos corpos dese-

jantes como necessidade de liberação da locomoção, de escolhas e criações de a-

genciamentos outros – para além dos autorizados.

Assim, ao destacar os objetivos dessa proposta de trabalho a pedagoga descreve a

importância do desenvolvimento atitudinal, deixando em segundo plano a potência

inventiva produzida nesses encontros educativos, como se pode analisar em suas

orientações direcionadas a uma das professoras envolvidas, no momento do plane-

jamento individual:

É preciso conversar com eles [os alunos] sobre as atitudes, os procedimen-tos... Sobre a necessidade de receber bem os coleguinhas, agradecer a vi-sita... O importante desse trabalho é resgatar os valores [do que a pedago-ga considera como uma boa Educação]. É preciso trabalhar a fala e o afeto. Sua turma precisa falar e receber afeto. Na casa deles, também tem bebês, mas lá é tudo de qualquer jeito52.

Desse modo, mesmo com algumas as tentativas de captura dos movimentos dos

corpos desejantes, há uma abertura para novas experimentações, instaurada pelos

usuários no encontro com as professoras, na modificação dos modos de produção

das atividades anteriormente planejadas. A própria pedagoga relatou que, no primei-

ro dia em que as turmas participaram do interclasses e as crianças do Pré foram visi-

tar a turma do Berçário, ao chegar lá “nada saiu como o previsto”. As atividades pro-

gramadas (que era o trabalho com a bandinha de música) “foram por água abaixo”,

pois as crianças se dispersaram e passaram a explorar aquele espaço tão diferenci-

ado de sua sala de referência no qual, ao entrarem em relação com os bebês cuida-

ram deles “como se fossem seus irmãos” (muitos, inclusive, eram de fato irmãos/as).

Mesmo assim, apesar dos imensos desvios produzidos pelas crianças, a pedagoga

considerou a atividade positiva, dizendo:

Essas experiências do interclasses, eu tenho gostado demais, porque fa-zem com que esses elos sejam estabelecidos entre essas outras turmas. Não ficam só as crianças daquela turma, o professor com aquela turma.

52 Falar da pedagoga em planejamento junto à professora do Pré – 01/09/2006

126

Concomitantemente, para além - aquém dos espaçostempos autorizados para ins-

taurações de outros agenciamentos possíveis, mas relações entre as diversas tur-

mas da escola, esses pequenos usuários vão constituindo processos de subjetiva-

ção...

Pode-se, com efeito, falar de processos de subjetivação quando se conside-ra as diversas maneiras pelas quais os indivíduos ou as coletividades se constituem [precária, parcial e provisoriamente] como sujeitos: tais proces-sos só valem na medida em que, quando acontecem, escapam tanto aos saberes constituídos como aos poderes dominantes. (Deleuze, 1992, p. 217).

A partir de micro-movimentos minoritários, colocam em questão os padrões de de-

senvolvimento cognitivo e modelos de comportamentos sociais tidos moral e tecni-

camente como adequados assim, instaurando processos de experimentação nos

encontros singulares que promovem no espaçotempo educativo.

Outros movimentos

É preciso destacar que a instauração de processos de experimentação não se res-

tringe aos movimentos singulares engendrados pelas crianças que apresentam al-

gum tipo de necessidade educativa especial. Outras crianças do CMEI instauram

diversos momentos de intercâmbio não autorizado entre as turmas, determinando

parcialmente, inclusive, as práticas educativas estendidas na turma que freqüentam.

A partir dos encontros que estabelece com as crianças de outras turmas e dos ele-

mentos inusitados que introduz em seu repertório de imprevisibilidades, propõe ati-

vidades a serem realizadas em sua turma de referência.

Nota-se que ao engendrar esses deslocamentos entra as turmas, as crianças, nas

negociações com as professoras, introduzem outras formas de pensar-agir nos es-

paçostempos educativos. Modos esses, que produzem outros sentidos, para ativida-

des muitas vezes mecanicamente executadas.

Deslocamentos... Possíveis que se abrem introduzindo agenciamentos potentes pa-

ra produzir e fazer circular formas singulares de aprender.

127

8.1.4 ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA DESEJANTES II: DE MULHER “LIMPA-

PEIXE” À ESPOSA DO REI

Durante a pesquisa, outro movimento muito interessante foi inaugurado no encontro

entre as professoras, algumas crianças e o CTA, contando com a participação indi-

reta, embora determinante, de um grupo de pais que aguardavam no portão o horá-

rio de entrada. Esse processo foi relatado pela professora me abordou, no corredor

da escola, para contar sobre a apresentação cultural de sua turma, apresentada na

sexta-feira anterior. Segue fragmento do seu relato registrado no diário de campo:

As crianças apresentaram a música do anel. Logo na entrada, a diretora chegou à escola e encontrou Bruna sentada esperando o portão abrir e, quando a viu, comentou: − Você está linda! − e a menina prontamente respondeu: − Vou fazer o teatro, hoje. Vou lavar peixes! − Lavar peixes? Mas você está parecendo uma princesa. Porque vai lavar peixes? Em seguida, a diretora veio me procurar para saber que história era aquela de lavar peixes (disse que ficou constrangida com o comentário da menina diante dos outros pais que aguardavam para entrar). Expliquei que a turma iria apresentar o teatro do Anel, mas que, por serem muito numerosos, não tinha papel para todos, então tive que colocar alguns para serem pescado-res, outras rendeiras e algumas mulheres de pescadores que ficavam em casa limpando peixe. Mas a Bruna estava linda demais, você tem que ver as fotos. Ela colocou um vestido rendado, um laço no cabelo, uma meia de rendinha com um la-cinho. Ela estava toda enfeitada. Arrumou-se toda sozinha. 53

Diante da produção da menina e do constrangimento da diretora que, na presença

de alguns pais, foi explicitado à atribuição do papel de figurante à aluna Bruna (e a

outras crianças que aceitaram mais passivamente o papel), a diretora, segundo a

professora, fez o seguinte comentário:

Tem que dar um jeito. Tem que ter uma princesa para ela na história. Sen-do acompanhada pela pedagoga, argumentaram que a menina tinha que fazer um papel de princesa. Tinha que ser rainha. Elas teriam que mudar a

53 Relato produzindo pela professora do Pré, em conversa com a pesquisadora no corredor, no dia 30 de outubro de 2006.

128

história e ela faria a mulher do rei. E, assim, foi aquela correria. Arrumei uma coroa, perdida por aí. E ela ficou sendo a rainha. Na hora do teatro, todo mundo ria, pois ela ficava grudada no rei, fazia pose, cruzava e des-cruzava as pernas, ajeitava o cabelo, uma comédia – você tinha que ter visto. Todo mundo se divertiu com ela. Ela falava com o rei, mas o teatro era para ser mudo. Foi muito engraçado. Depois Sabrina [outra criança da turma] me cobrou duramente, questio-nando por que eu havia mudado o teatro. Porque Bruna tinha sido a rainha. Considerou injusto, pois havíamos sorteados juntos as personagens e, na última hora, eu mudei a história. Ficou aborrecidíssima. 54

Esse processo é analisado aqui, atravessado por outros movimentos engendrados

nos cotidianos do CMEI, durante a produção da pesquisa. Esse processo produzido

por esse corpo infantil nos encontros com as personagens principais, e com outras

crianças, me parece muito potente, pois produziu várias desestabilizações no modo

de funcionamento dominante da escola, colocando-o em questão. A partir de sua

inserção nos encontros educativos atuou de forma determinante de modo a subverte

o papel de figurante que lhe foi, insistentemente, atribuído, em um papel principal

(como será apresentado a partir da análise de alguns processos no decorrer desse

texto).

Esse corpo infantil ocupa as salas, os corredores, as falas e discussões das perso-

nagens principais e, nessa dinâmica de atuação, por mais que lhe seja negado um

lugar, ela volta a afirmar uma posição de existência naquele grupo: ora nos comen-

tários de uma professora, ora nas propostas de modificação das atividades educati-

vas (adequações que lhe sejam mais favoráveis, sem que seja, necessariamente,

desfavorável às outras crianças). Esse seu modo singular de funcionamento produz

diferentes afecções – efeitos de atração e efeitos de repulsão. Entretanto produz

efetivamente intervenções no currículo produzido nos cotidianos desse CMEI.

Embora essa menina também deseje “comprar” o sonho de ser princesa, ou um lu-

gar VIP vendido nas entrelinhas de algumas práticas ali desenvolvidas (no caso do

fotógrafo, nas aulas de balé, nas apresentações teatrais...) seu sonho não é de uma

princesa egoísta, egocêntrica, ressentida, mas ela produz uma forma outra princesa

que curte coletivamente com seus colegas todas às conquistas; e, também, disputa

duramente com eles a condição de negociar um espaço de sobrevivência. Desde a

54 Idem

129

chegada do fotógrafo à escola, ela já havia manifestado o desejo de vestir-se de

princesa para ser fotografada por ele, sendo impedida pela professora que argumen-

tou que ela não compunha o padrão estético (beleza, docilidade, meiguice...) exigido

pelo modelo de realeza idealizado. Nessa ocasião teve de se conformar em vestir-se

de dama antiga, por sugestão da professora itinerante, modelo que vinha ao encon-

tro com características da personagem Sinhá Moça (da novela exibida pela TV Glo-

bo), em especial ao que se refere ao perfil “revolucionária/abolicionistas atribuídos à

personagem pela professora itinerante.

No entanto, em seus encontros educativos a menina opera microrrevoluções, como

no caso do teatro e da atividade de bingo (que mais a frente será apresentada), das

visitas à cozinha e tantos outros encontros em que cria outros possíveis para as re-

lações educativas ali produzidas. Possíveis que problematizam as formas habitual-

mente assumidas nesse espaçotempo institucionalizado de Educação, imprimindo

outras formas de aprender e conviver nas experimentações educativas, na medida

em que às ações educativas padronizadas ela impõe uma recusa produtiva; produti-

va no sentido de que cria outra forma de fazer.

Em contrapartida, o movimento de inversão que instaura nas práticas educativas

desenvolvidas no CMEI expõe um novo problema a ser enfrentado pelas persona-

gens principais que atuam hoje na Educação. O problema de negociar e responder

às exigências de um considerável número de crianças que convivem em meios so-

cioeconômicos e culturais privilegiados, os quais, em conformidade com o modelo

organizacional da sociedade atual, cultuam essa forma de subjetividade contempo-

rânea vinculada ao individualismo e à competição desenfreada. Assim, o excessivo

destaque de alguns: evidenciados e reforçados por premiações e aplausos; está di-

retamente atrelado ao detrimento do atendimento de tantos outros que, na tentativa

de evidenciar suas criações singulares são, muitas vezes, duramente punidos e ne-

gligenciados.

No pátio, em conversa com a professora do Jardim II ela relatou que há muitos problemas em sua turma. Que o João é muito complicado, “é do contra”. Tudo que é combinado ele contraria. Quando suas necessidades não são prontamente atendidas, ficar muito nervoso e descontrolado. Fica gago, de tão nervoso. Ele não aceita ser contrariado.

130

É claro que os consumidores menos favorecidos financeiramente também são cap-

turados por formações subjetivas dominantes e estão bastante incluídos nessa lógi-

ca de organização social contemporânea. Mas, no caso dos processos especifica-

mente destacados na tessitura desse texto, o foco de luz que quero imprimir é dire-

cionado às criações vinculadas à menoridade, ou seja, aos processos de subjetiva-

ções.

Pois considero que entre alguns, que manifestam a incapacidade de lidar com o fra-

casso, a derrota ou, simplesmente, a posição temporária de coadjuvante, respon-

dendo a isso de forma reativa e violenta, e tantos outros que de pouco espaçotempo

dispõem nos processos educativos institucionalizados, inaugura-se um novo desafio

a ser enfrentado. Que é o desafio de se colocar nessa intensa e difícil negociação

entre essas diferentes forças; desafio que, em última instância, fica a cargo das pro-

fessoras em função de sua, necessária, proximidade com esses corpos em tensão.

8.2 DAS PERSONAGENS PRINCIPAIS E SEUS MOVIMENTOS ou... Quando as

professoras inauguram a composição de um conjunto prático singular

8.2.1 A PROFESSORA DO PRÉ

Essa personagem entrou no movimento da escola no final de abril ou início de maio

de 2006. Voltava de licença para cursar o Mestrado em Educação e assumiu a tur-

ma de Pré. Sua entrada e permanência na escola produziram um enorme movimen-

to na constituição das paisagens educativas. Apesar de ter uma formação acadêmi-

ca mais elevada do que a da maioria das professoras que atuam nesse nível de en-

sino, sua prática profissional era marcada por muita insegurança, na medida em

que, instaurava um processo de experimentação de ser professora alfabetizadora

em turmas de crianças na faixa etária de seis anos. Esse processo de experimenta-

ção trouxe muitos elementos de análise, na medida em que, ao engendrar uma prá-

tica desconhecida, foi rascunhando formas de compor um modo singular de ação

docente que lhe fosse a contento.

131

Aparentemente, a professora do Pré tinha uma imagem estereotipada do que seria

uma turma de alfabetização, assim como sobre a forma conduzir esses processos

de aprendizagem, o que dificultou a valorização da composição desse modo singular

de experimentação profissional. Para essa professora, a necessidade de uma com-

posição original de um conjunto prático acarretou muito sofrimento e angústia, difi-

cultando a visualização de seu processo de aprendizagem, tanto quanto dos proces-

sos engendrados pelos corpos infantis nos encontros educativos.

Mesmo considerando sua experiência no trabalho de docência (ainda que em nível

de graduação) e sua participação na produção do documento curricular municipal

norteador da Educação de jovens e adultos, no qual incluía o processo de aquisição

da língua escrita; a emergência de crianças concretas, as quais inauguravam uma

experiência singular de uso do código lingüístico, sensibilizou sua alma, afetou seus

sentidos e fez com que ela instaurasse um processo de experimentação singular de

ação docente e constituição de si, que não se restringia a dimensão profissional,

mas que possivelmente contagiava diferentes dimensões de sua existência.

No entanto, fortemente vinculada à política da recognição (Kastrup, 2005), nesse

processo de experimentação, buscava incessantemente, modelos de referências

que lhe trouxessem a possibilidade de organização de uma prática educativa ideali-

zada (o encontro com suas alunas, o horário de planejamento, o livro de Didática, a

conversa com a colega de trabalho). Essa busca abriu outros possíveis, pois, a cada

encontro (bom ou ruim), viu-se forçada a pensar. No entanto esse processo intenso

que ela experimenta é atravessado por um sentimento de impotência, na medida em

que sua busca se vincula a uma falta pessoal, uma deficiência. Esse processo foi

marcado pela angústia e a queixa atribuída à ausência de prescrições que fossem

capazes de sossegar sua alma, reduzindo o mal-estar causado pelo arrombamento

provocado pelos signos. Entretanto, argumento que o problema não estava no seu

sentimento de desconforto “[...] O problema é que ela sente desconforto pela “coisa

errada”! (YALOM, 2005, p.245, grifo meu) Em suas análises o desconforto está atre-

lado à sua inexperiência profissional, à falta de prescrições, mas, é justamente isso

potencializava a composição de um conjunto prático singular, na medida em que

estava desvinculada de um modelo a priori de atuação podendo assim, abrir espa-

ços de liberdade para a criação de si.

132

Em nossas conversas, encontros e entrevistas não estruturadas problematizam so-

bre a insegurança de uma primeira experiência em turmas de alfabetização de cri-

anças. Nesses encontros ela argumentava sobre a necessidade de uma referência,

de trocar experiências com outras pessoas que pudessem orientá-la, revelando se

sua prática estava certa ou errada. A busca por prescrições é uma constante em sua

fala:

Não tem ninguém para dizer o que eu tenho que fazer. Fico atirando no escuro... Não tenho apoio nenhum... Ninguém conversa comigo sobre o que estou fazendo, se está certo ou errado. Fiquei duas semanas na turma totalmente perdida, pedindo pelo amor de Deus para ter um planejamento. Colocava uma fita (DVD) e os meninos diziam que já tinham assistido. No dia anterior em que iria ter planejamento individual com a pedagoga, fui à livraria e comprei dois livros de didáticas (didática da Educação Infantil e Didática da Alfabetização). Fiquei lendo até de madrugada e quando che-quei para conversar com a pedagoga, ela passou o olho rapidamente no que eu havia rascunhado dizendo que era parecido com a proposta da es-cola. Fico completamente desorientada. [...] No desespero de ter que achar alguma coisa para fazer com esses meni-nos: juntei minhas alunas da Faculdade de uma cidade do interior, as mais discretas, que não iriam espalhar pela faculdade que uma professora não sabe alfabetizar e, elas me deram uma aula. Ensinaram-me tudo. Passo a passo: assim, primeiro você faz a rodinha, depois... E foram explicando tu-do para mim. Aqui na escola quem me salva é uma professora, ela me deu uma pilha de coleções, que depois avaliei que não eram interessantes. Mas ela me ajuda. 55

No entanto considero que talvez suas lamentações não fossem, exatamente, pela

falta, mas pelo aumento da intensidade de potência de existir, pois como nos agracia

Deleuze (199_, p. 37-38) com esse belíssimo fragmento...

Eis o que é a queixa: ‘o que está acontecendo comigo é grande demais para mim’ [...] Acho que é a expressão daquele que não tem mais um status soci-al, temporariamente ou não. É por isso que é interessante. Um pobre velho se queixa [...]. Não tem nada a ver com a tristeza, é a reivindicação. Há uma coisa na queixa que é impressionante. Existe uma adoração na queixa, é como uma oração [...]. O lamento é sublime! [...] São os excluídos sociais que estão em situação de lamento. [...] Interpretam erroneamente como se eles quisessem voltar a serem escravos! [...]. É neste momento que nasce o grande lamento. Mas não é pela dor, é uma espécie de canto e é por isso uma fonte poética [...]. A queixa é isto. Eu bem que gostaria de todas as ma-nhãs sentir que o que vivo é grande para mim porque seria a alegria em seu estado mais puro. Mas esse lamento não é só alegria, também é uma inquie-tude louca.

55 Fala da professora no Pré, registrada no diário de campo do dia 10-7-2006.

133

Na medida em que estranhava-desconhecia os modos habituais de docência, abriu-

se para essa professora um amplo plano de experimentação que, pela amplitude de

suas dimensões, produziu angústia, inquietude e, em algumas situações, desespero.

Nesse movimento de inquietude e sofrimento, muitas vezes essa personagem opta-

va por distanciar-se das colegas de trabalho, temendo por expor o processo inaugu-

ral de ser alfabetizadora, exposição que poderia vir a inviabilizar o retorno para posi-

ção de status, antes experimentada na composição da chefia do órgão central. Ao

conversarmos sobre esse distanciamento, falou que realmente ainda não está inse-

rida na escola, dizendo compreender a escola como o conjunto de sujeitos pratican-

tes, o que consiste em afirmar que o afastamento se dá na relação com as pessoas.

Isso, no relato dela, tem uma explicação. Contou que, antes de chegar à escola, a

diretora entrou em contato com a SEME que a indicou para o cargo, tecendo mil e-

logios a seu trabalho, pois ela já havia atuado na formação de professores no E-

JA/SEME e já era conhecida por lá. Além disso, estava retornando do mestrado e,

por isso, era uma pessoa muito qualificada para ocupar o cargo. Assim, ao chegar

ao CMEI, já havia uma grande expectativa em relação ao seu trabalho como profes-

sora, ao mesmo tempo em que havia certa hostilidade, certo afastamento das outras

professoras.

Para ela, havia uma cobrança por ela ter uma formação elevada, e ao mesmo tem-

po, por não dar conta de uma turma de alfabetização. Cobrança manifestada pela

diretora no Conselho de Classe, no qual diante de uma discussão sobre as tensões

em torno do processo de alfabetização, ela argumentou que:

Em sua época, não havia um aprofundamento teórico sobre essa questão, mas que, apesar disso, todo mundo aprendia a ler. Era na base do BA, BE, BI, BO, BU mesmo, entretanto todas as crianças liam no final da primeira série. Hoje em dia as crianças não sabem nem escrever CASA.

Em função do que exposto, considero que esse movimento de afastamento e apro-

ximação de uma professora em relação aos seus alunos nos encontros educativos

engendrados nos cotidianos de um CMEI, foi muito potente. O estranhamento com

as especificidades desse nível de ensino, o conhecimento sobre os entrelaçamentos

das redes de poder que se estendem muito além dos muros da escola e a necessi-

134

dade de compor um modo singular de docência condizente com suas próprias ex-

pectativas, forneceu inúmeras contribuições para pensarmos sobre as invenções

produzidas pelas professoras em seus processos de produção de conjuntos práti-

cos.

Nesse contexto de constituição de práticas, de processos de diferenciação é que

proponho algumas análises sobre os processos engendrados durante a pesquisa, a

partir dos encontros produzidos nessa turma, mas que não se restringem a ela. Pro-

cessos que dizem respeito aos modos singulares que vão produzindo diferença, nos

quais os corpos vão negociando diferentes sentidos atribuídos nesse processo de

experimentação da linguagem escrita. Experimentação que não se restringe exclusi-

vamente a nenhuma abordagem discursa que tenta determinar um modo específico

e universal de aquisição da linguagem escrita, mas que, simultaneamente, foi atra-

vessada por muitos desses discursos.

PROCESSOS DE DIFERENCIAÇÃO OU A PRODUÇÃO DA DIFERENÇA

Em um dia de permanência na sala do Pré, acompanhando o movimento das pro-

fessoras que conduziam os trabalhos educativos juntos as crianças, pude presenciar

um intenso processo de experimentação na instauração de uma prática singular na

relação educativa. Concomitantemente, participei de um intenso processo de expe-

rimentação no uso e apropriação da língua escrita por aquele coletivo de corpos in-

fantis. Segue fragmentos do registro do diário de campo sobre o processo de dife-

renciação desse movimento de experimentação.

A professora propõe as crianças que elas trabalhem com a letra da música do Alfabeto da Xuxa. A proposta de trabalho é a produção de um texto cole-tivo utilizando como referência o Alfabeto da Xuxa. Assim, cada palavra a ser empregada no texto seria então sugerida pelas crianças a partir de cada uma das letras do alfabeto. As crianças participaram da atividade proposta com entusiasmo. Cada uma ia arriscando um palpite, e, coletivamente, foram montando seu próprio al-fabeto. Havia grupos em que uns ajudavam aos outros, sem solicitar o au-xílio da professora. Algumas crianças recorriam à produção do colega, para certificar de suas hipóteses. Outros faziam sem se preocupar com o cole-ga, embora solicitassem a ajuda das professoras. Outros tantos, faziam, paravam e voltavam a fazer. Uma criança foi tentando antecipar as letras, recorrendo a outro quadro onde continha outro alfabeto.

135

A professora do Pré mostra-se incomodada com a postura de um grupo de alunos/as que, segundo ela, não fazem nada. Eles estão sentados no mesmo grupo. [...] Nesse momento, muitos alunos querem mostrar suas produções para a professora, e também para a pesquisadora. Ela e a sua colega de trabalho vão se dividindo e, na medida do possível, atendem a cada uma das crian-ças individualmente. Ao mesmo tempo, que as crianças vão trocando in-formações entre elas. Todos opinam (ao mesmo tempo) contribuindo para a produção coletiva. Eles produzem juntos: uns se levantam, outros ficam de joelho na cadeira, outros tantos permanecem sentados. Alguns falam al-to, na empolgação de descobrir a próxima palavra. [...] Outro aluno vem e mostra o caderno. E a professora diz: ‘Dá vontade de chorar. Olha, ela não faz nem o nome. Não sabe traçar ne-nhuma letra’. [...] A professora não se fixa num único lugar. Vai do quadro às mesas e se desloca para o painel onde as crianças, espontaneamente, foram recorrer para pesquisar palavras iniciadas por determinada letra. Todos na turma estão organizados, envolvidos, interessados e curiosos com a escrita e a leitura das palavras. Pesquisam, opinam, buscam por re-ferências que possam auxiliá-los. Cada um de sua forma vai compondo sua produção.

Diante do exposto, considero que simultaneamente instaurou-se, a partir da multipli-

cidade explicitada de modos de aprender-produzir sentidos, um processo de experi-

mentação de pesar-se professora alfabetizadora que forçou a abertura de um espa-

ço de negociação com as crianças em torno da necessidade de outros possíveis pa-

ra a prática educativa.

Independente da intenção dessa professora e de sua visão sobre a aprendizagem e

o ensino, no processo de negociação (dissenso) as crianças imprimiram seus ritmos

singulares produzindo um processo de experimentação, em que cada uma delas,

entra em relação com o código lingüístico e com o próprio processo educativo, cri-

ando seus próprios sentidos. Referenciais vão sendo estabelecidos e descartados

de acordo com os diferentes modos de percepção. Independente dos objetivos da

professora e de sua forma de abordagem, as crianças vão estabelecendo suas me-

tas, fazendo usos dos recursos disponíveis na sala. Múltiplos agenciamentos entram

na composição de um texto: a música da Xuxa, o cartaz com o alfabeto ilustrado, a

escrita no caderno do colega, a fala das professoras, seu próprio nome, o nome de

136

uma tia e outros tantos modos de relação e atribuição de sentido surgem de forma

imprevisível nesse emaranhado criando um processo inusitado de uso da língua es-

crita. Simultaneamente, instaurou-se um processo de experimentação de pensar-se

professora alfabetizadora, inaugurado pelas personagens envolvidas que, diante de

suas dúvidas e incertezas, abriram espaço para negociações com as crianças de

outros possíveis para a prática educativa.

A questão da competição e do individualismo

Em outro dia de permanência na turma do Pré, a professora propôs aos alunos um

jogo de bingo.

A proposta de atividades envolvendo jogos competitivos é muito freqüente nessa

turma, pois, segundo uma professora, as crianças só se interessem em realizar as

atividades se estas estiverem vinculadas a uma premiação.

Em uma das reuniões realizadas no CMEI, durante o período da pesquisa a profes-

sora do Pré contou que para atender a uma sugestão de trabalho feita pela pedago-

ga instaurou uma brincadeira baseada na competitividade.

A proposta da pedagoga consistia em sugerir as crianças à produção de textos em

duplas a partir da hipótese de escrita que dispunham. Essa produção e outras técni-

cas de leitura e escrita utilizadas no CMEI foram difundidas pelo PROFA56, curso de

formação proposta pelo governo municipal em convênio com o governo federal.

Formação Continuada que estruturou um conjunto de estratégias pedagógicas para

treinar os professores que trabalhavam em salas de alfabetização, tendo como base

teórica de referência os estudos produzidos por Emilia Ferreiro e Ana Teberosky so-

bre a Psicogênese da Língua Escrita.

Nesse momento, a professora que atuou na turma do Pré no período em que a pes-

quisa foi realizada, argumentou que utilizou os jogos competitivos como forma atrair

56 Programa de Formação Continuada de Professoras Alfabetizadores.

137

as crianças para a atividade proposta. Considerando que os alunos são cheios de

vontade, Sâmia, por exemplo, muitas vezes, se recusa a participar por considerar

que corre o risco de perder. Falou a professora em uma das reuniões de grupo de

estudo.

Diante de suas considerações a pedagoga advertiu sobre os problemas que o ex-

cesso de atividades competitivas pode produzir, defendendo a necessidade de or-

ganizar jogos com caráter cooperativos, onde a ênfase se coloca no cumprimento de

tarefas e não, na figura do vencedor. A professora contra-argumentou que diante da

dificuldade de ser ouvida pelas crianças, propõe com freqüência jogos competitivo,

pois eles ficam mais interessados nesses momentos de disputa. A partir de sua co-

locação a professora dinamizadora sugere então a possibilidade de trabalhar com os

jogos tradicionais modificando as regras. Modificação que no processo que analiso a

seguir foi produzida por uma criança no encontro com as professoras e os colegas

de sala.

A professora regente distribuiu, entre os alunos, cartelas contendo uma ta-bela, para que cada uma delas preenchesse com algumas palavras da mú-sica do alfabeto da Xuxa. Os alunos foram escrevendo as palavras escolhi-das, enquanto uma professora fazia uma tabela de premiação no quadro, com a seguinte distribuição: 1º lugar: ___________________ prêmio 3 pirulitos 2º lugar: ____________________ prêmio 2 pirulitos 3º lugar: ____________________ prêmio 1 pirulito Iniciada a partida, os alunos iam marcando as palavras sorteadas por uma professora e eram, freqüentemente, estimulados pela lembrança da premi-ação. Apesar de alguns (poucos) alunos terem condições financeiras de comprar pirulitos, a perspectiva da disputa era bastante estimulante. Duran-te todo o jogo, a professora foi apontando o comportamento de uma das crianças, dizendo para mim: − Observe, Bruna, quando o jogo terminar e ela perder, vai dar o maior “pi-ti”. Ela não aceita perder e faz a maior pirraça. 57

Essa menina, a qual uma professora se referia é sempre muito marcada por uma

fala negativa em relação às suas atitudes. No entanto, com o desenrolar da partida,

o que ocorreu foi bastante inusitado e surpreendente.

57 Fala da professora do Pré.

138

Sâmia que é uma aluna de nível sócio-econômico privilegiado e portadora de um grande status perante o grupo (por ser uma aluna que obtém suces-so em todas as atividades que participa e por já saber ler) ficou indignada, ao perceber que outra criança havia conquistado o primeiro lugar, recusan-do-se, terminantemente, a continuar a partida. Mais adiante, Bruna, ao ver que as três linhas da tabela de premiação ha-viam sido preenchidas com o nome dos três primeiros colocados, continuou sentada à mesa e propôs a uma professora que desenhasse mais linhas na tabela. Virando-se para o grupo de crianças que brincava, contou quantas eram as crianças e solicitou que a professora colocasse o número de linhas suficientes para que todos pudessem ganhar.

A sua intervenção causou-me uma enorme surpresa, pois aguardava a reação nega-

tiva prometida e esperada pela professora, no entanto, ao invés de se indignar, ela

propôs outras regras (ou uma flexibilização das regras iniciais) para que todos fos-

sem contemplados com premiação. Sua atitude é muito interessante, pois destaca

dois aspectos de um movimento muito vinculado a um coletivo: primeiro porque ela

não pleiteava vencer sozinha, todos poderiam ganhar a premiação. Seu movimento

não era definido por uma competitividade individual, ela não estava preocupada em

ser o destaque – a campeã −, mas pretendia receber a premiação tão prometida.

Por outro lado, ao se deparar numa situação cotidiana com uma posição desfavorá-

vel, ao invés de se indignar e optar pela recusa, nesse momento posicionou-se num

movimento de criação de uma forma outra que pudesse favorecer a todos às crian-

ças que participaram do jogo indiscriminadamente.

A partir desse movimento do grupo e de outros observados durante a pesquisa, per-

cebi que a escola tem sido convocada a responder a novos desafios. Desafios ou-

tros que não se vinculam estritamente a produzir modos singulares de conjuntos prá-

ticos a fim de atender às crianças menos desfavorecidas social e economicamente,

mas a criar modos de funcionamento capazes de lidar com situações de individua-

lismos e exigências de manutenção de posicionamentos privilegiados conquistados

tanto no convívio escolar como em outros movimentos produzidos fora da escola.

Esses rompantes de insatisfação e recusa das crianças consideradas líderes cujo

sucesso é obtido em diferentes atividades propostas, crianças cujas famílias apre-

sentam um comportamento considerado ideal e participativo (na medida “certa”), que

tem um ótimo desenvolvimento intelectual e respondem muito satisfatoriamente às

expectativas da escola; mas que, no entanto manifestam incapazes de lidar com as

mínimas situações de perda do status, expressando seu descontentamento de forma

139

violenta e descontrolada (choros histéricos, pirraças, socos e chutes em colegas,

recusas e isolamentos...), nos faz pensar sobre os problemas que esses modos de

funcionamentos dominantes têm produzidos.

Distribuição diferenciada dos profissionais que atuam no CMEI

Outra quebra observada nos processos educativos engendrados no CMEI em que a

pesquisa foi realizada refere-se ao deslocamento de uma professora que atuava no

Berçário I, passando a atuar na turma do Pré. Essa quebra na norma geral de orga-

nização de profissionais por turma, proposta pela Secretaria de Educação, ocorreu

em função de uma necessidade muito específica e imprevisível, que foi a entrada na

escola de uma professora que se julgava inexperiente para conduzir o trabalho na

turma do Pré. Essa dificuldade exigiu uma resposta diferenciada para essa situação.

Nesse sentido, houve uma quebra na forma como a Secretaria prevê e determina a

organização das professoras por turma.

A estruturação-padrão do quadro de professoras no período em que a pesquisa foi

produzida era a seguinte: nas turmas de Berçário I, atuavam três professores e um

profissional de apoio para atender a 25 crianças na faixa etária de seis meses a um

ano e meio; na turma do Berçário II, atuavam duas professoras para atender a 25

crianças na faixa etária de um ano e meio a dois anos e seis meses; na turma de

Maternal, atua uma professora e uma estagiária com 25 crianças de dois a três a-

nos; nas turmas de Jardim I, Jardim II e de Pré havia apenas uma professora para

cada turma, atendendo a 25 crianças. A Secretaria disponibilizava ainda uma esta-

giária de Educação Infantil e uma estagiária de Educação Especial para as escolas

que atendem a crianças com necessidades especiais. Nesse CMEI, eram atendidas

quatro crianças com necessidades especiais no turno matutino.

No entanto, em função da necessidade anteriormente indicada, uma professora do

Berçário I foi deslocada para atuar na turma do Pré – junto à professora de referên-

cia. Essa situação não era fixa, estava atrelada à freqüência do Berçário I. Esse mo-

vimento produziu três quebras simultâneas: a primeira se refere ao deslocamento

em si; a segunda, ao descumprimento de uma norma da Secretaria a qual impedia

que um professor MAPI atuasse como MAPA; e a terceira diz respeito sobre ter uma

140

professora de referência em cada turma e cada uma delas ter uma turma referência.

Nesse caso, a professora itinerante ou curinga, não tinha uma turma de referência,

movendo-se entre duas turmas, de acordo com a necessidade da escola.

Considero que esse movimento indica a necessidade de ampliar a autonomia da

escola na gerência do quadro de funcionários lotados naquele estabelecimento, pois

quem pode melhor negociar a distribuição dos profissionais por turma é o grupo da

escola, diante das suas necessidades específicas e locais.

No entanto, esse encaminhamento não pode ser arbitrariamente ditado pelo corpo

técnico-administrativo da escola, na medida em que isso gera grande descontenta-

mento entre os profissionais que ali atuam. Nesse caso específico, as professoras

do BI se sentiram prejudicadas, porque em função da redução de um profissional

aumentaria o número de crianças per capita. No entanto, essa queixa não tinha pro-

cedência, pois a freqüência do Berçário I matutino era muito oscilante, ficando sujei-

ta às mudanças climáticas e à saúde dos bebês, os quais apresentavam freqüentes

crises alérgicas, quadros gripais e outras enfermidades que inviabilizavam sua per-

manência na escola.

Também havia uma queixa por parte da professora curinga ou itinerante, pois essa,

apesar de garantir que gostava de atuar no Pré, queixava-se de não ter uma refe-

rência fixa. Por esse motivo, muitas vezes, deixava de ser considerada como parte

do grupo, como ocorreu na ocasião dos relatos das professoras, quando esta não

participou nem do relato do Berçário I, tampouco do Pré, embora a importância de

sua presença na turma do Pré tenha sido muito destacada pela colega com quem

partilha os trabalhos nessa última turma, no momento do relato.

Chequei a propor que ela fizesse um relato sobre essa experiência de estar dividida

entre duas turmas diferentes. Turmas com interesse, necessidade e demandas mui-

to singulares. No entanto, este movimento de propor uma discussão sobre essas

aberturas instauradas nesse espaçotempo educativo foi, sumariamente, bloqueado.

Levanto a hipótese de que este bloqueio tem a ver com a dificuldade em discutir co-

letivamente esses encaminhamentos, de forma a deixar submersas as queixas de

diferentes partes. No entanto considero que a ausência dessa conversa impediu que

141

discutíssemos a importância desses movimentos inaugurados por nossas persona-

gens principais e pelas profissionais que compõem o corpo técnico-administrativo.

Todo esse movimento colocou em questão o modo habitual de distribuição dos pro-

fissionais de Educação nos estabelecimentos de Educação infantil, os quais atribu-

em a necessidade de atrelar a atuação das professoras a uma única turma de refe-

rência, organizada por faixa etária, limitando assim, as possibilidades de encontros

diferenciados. Desse modo, os encontros ficam, freqüentemente, reduzidos à rela-

ção entre essa professora e as crianças de sua turma. Ocorre que cotidianamente,

muitos outros processos são instaurados na tentativa de criar encontros imprevisí-

veis e, muito potentes, para criação de canais que possam dar passagem a expan-

são dos fluxos, tanto quanto responder a uma situação temporária e local, como nos

processos aqui analisados, como foi exaustivamente abordado no decorrer desse

registro.

Desse modo, esses processos acabam por desestabilizar as fortes tentativas de en-

quadramento de funções docentes em áreas de atuação muito específicas e em

grupos de trabalho muito fechado e restrito, forçando as profissionais que atuam

nesse espaçotempo educativo a problematizar os argumentos que utilizam para jus-

tificar a necessidade de delimitação extrema em territórios fixos e imutáveis. Parece

que o trânsito de corpos mais livres e a composição de encontros inusitados são

muito potentes para as experimentações de organizações de espaçostempos educa-

tivos, onde a dimensão inventiva do pensamento pode ser mais considerada.

8.2.2 PROFESSORA DINAMIZADORA

A professora dinamizadora que atua no CMEI onde esta pesquisa foi produzida tem

formação em Educação Física pela UFES e em balé clássico pela FAFI. Sua partici-

pação, na constituição e desmanchamento de paisagens educativas foi intensa, pois

sua entrada no CMEI produziu grande movimento de deslocamento nas forças que

constituem o diagrama, por diferentes razões: primeiro, por atuar em todas as tur-

mas nos dois turnos; segundo, por dispor de tempo e movimentação diferenciada

das outras professoras o que proporcionou grande visibilidade do quadro político

geral da escola; terceiro, porque assumiu a coordenação de todos os eventos cultu-

142

rais da escola estando muito próxima do CTA. Em função disso, dispunha de grande

influência na participação das decisões sobre organizações de práticas educativas

comunitárias desfrutando de um grau de autonomia diferenciado em relação às ou-

tras professoras, conforme se próprio relato:

Bom, as relações são muito facilitadas. Tudo o que eu preciso, inclusive o acesso às materiais, é facilitada... O CTA com os professores, por exem-plo, fazem um registro no caderninho, toda quinta-feira elas tem que pedir o material, comigo não eles já me mostram onde guardam a chave, tenho acesso, vou lá e pego o material, tenho essa liberdade, rodo pela escola o tempo inteiro. Eu tô na sala da diretora, estou na Secretaria pedindo algu-ma coisa, daqui a pouco vou à sala dos professores (onde eu fico o maior tempo quando eu não estou dando aula). Circulo por toda escola: vou à sa-la de aula, ao pátio, à cozinha, ao refeitório; então eu convivo com todos os funcionários, com todo tipo de funcionários. 58

As condições de trabalho a que está submetida também são muito diferenciadas,

produzindo desafios diferenciados se pensarmos sua prática em relação ao trabalho

das outras professoras. Sua atuação se estende as turmas de faixa etárias muito

distintas cujos usuários têm necessidades e interesses muito diversos, como ela nos

aponta em seus comentários:

Ás vezes, durante a manhã, eu passo por três turmas. Então eu tenho que parar e respirar, porque são universos diferentes, são linguagens diferentes, rotinas diferentes, professores diferentes, tudo diferente. Então tem dia que eu vou do Berçário I para o Pré. [...] Então é um pouquinho complicado, mas a gente tenta respirar e entrar no mundo deles. É uma tática que eu uso é entrar no mundo deles, eu tô ali com um planejamento, mas, se eles estão sonolentos, eu vou procurar não dar uma música, uma agitação ou uma gi-nástica, não. Vou cantar uma música, faço uma atividade mais carinhosa, voltada para aquilo.

Um fator relevante na análise das modificações das paisagens educativas e existen-

ciais produzidas por sua inserção nesse espaçotempo educativo foi o fato de que

sua familiaridade com um amplo repertório artístico possibilitou a composição de

uma atuação interdisciplinar muito interessante (como já foi anteriormente abordado

nesse texto). No entanto, essa mesma formação produziu influências na composição

de suas práticas educativas que, às vezes, assume no encontro com os corpos in-

fantis uma postura de disciplinar mais rígida. Esse aspecto é destacado em suas

58 Entrevista com a professora dinamizadora

143

considerações sobre a sua formação acadêmica e artística, registrada em uma en-

trevista que realizamos, segue trechos de seus comentários:

- No balé clássico, há um controle e uma rigidez enorme. A disciplina é to-tal. Há perspectivas esportivas que trabalham para competição onde o con-trole, a rigidez e a disciplina são muito intensos. Já na prática esportiva nos CMEIS, os jogos esportivos, não há necessidade desse tipo de disciplina. Nós trabalhamos com disciplina, onde estabelecemos uma meta e as cri-anças se empenham a superar os obstáculos. “Trabalhamos a determina-ção deles”. E continua: - “Minha experiência na dança contemporânea me ajudou a trabalhar a es-pontaneidade, sem desconsiderar a disciplina. O foco é na expressividade. O que quero com o corpo?”. Durante essa nossa conversa, contou um caso de um professor de Dança cubano que explicava os passos com as mãos. Disse que ele era muito rí-gido e disciplinador, mas que não utilizava seu corpo, não demonstrava os movimentos, apenas gesticulava. Para ela, ele não era um professor, em-bora fosse muito conceituado – “era um ensaísta, um coreógrafo – menos um professor”. Ela destacou que este professor a marcou muito.

Por todas essas razões, sua entrada no CMEI produziu fortes movimentos nas sub-

jetividades das professoras, pois, de forma intencional ou não, introduziu um novo

modo de ser professora, modo fortemente marcado pela profissionalização. Em ne-

nhum momento, abria mão de explicar o quanto sua ação pedagógica era minucio-

samente pensada para atingir a um objetivo e, em nome dele, lançava mão de dife-

rentes modos de operar. Em função do que até aqui exposto, tanto alguns processos

de experimentação produzidos a partir da necessidade inadiável dessa professora

em compor uma experiência educativa, mas que não se restringiu a ela, causando

modificações e problematizações das práticas educativas engendradas por outras

professoras e, ao mesmo tempo, produzindo questões para ela própria. Esse intenso

encontro entre os corpos profissionais produziu movimentos muito potentes, descri-

tos na análise dos processos, a seguir:

Agrupamentos diferenciados

Nas negociações engendradas no encontro entre nossas personagens principais e

nossas personagens mirins, na tentativa de instaurar um processo educativo mais

dinâmico, foi possível captar, nas práticas cotidianas diferentes modos de organiza-

144

ção do espaçotempo, tanto quanto diferentes agrupamentos; em que as professoras

fazem uso de diferentes recursos para quebrar a forma habitual de organização.

Em uma atividade planejada por uma professora dinamizadora – a produção do con-

vite para a Festa Junina – esta considerou importante organizar uma turma em gru-

pos menores, para melhor realização das tarefas. Assim, foi agrupando a turma em

turmas menores – com seis alunos e, com o auxílio da estagiária, ia realizando a

produção, deixando o restante da turma com uma professora regente e sua estagiá-

ria. Ao conversarmos sobre essa questão, a professora fez as seguintes considera-

ções:

Porque era uma atividade artística, e a atividade artística ela tem um mo-mento de apreciação, eu precisava, nós precisamos produzir um trabalho que fosse representativo, então, se eu deixasse as crianças fazerem, elas iam ter o momento delas de imaginação, de prazer, mas talvez não ficasse algo apresentativo para que fosse o convite, então assim... Os pais iam re-ceber os convites. Então eu quis direcionar um pouco mais [...] E, para es-tar monitorando, eu tinha que estar com um número reduzido, então que-brou um pouco a rotina. [...] eu precisava de um lugar que eu tivesse quie-tinha com eles, porque, se eu não tenho um lugar fechado, eu ficava ali com eles. Mas é uma coisa assim meio nova, que assusta um pouco. Tem professo-res que acham que a gente não trabalha por conta disso. Que acha que a gente está ali com três alunos e eu estou aqui com 25. Tem professores que não têm essa conscientização. Mas acho que é uma cultura, que, ven-do os resultados, e bem contato com esse apreciar artístico, vai tendo uma valorização. Que é realmente uma dinâmica que dá certo.

O espaçostempos dos pátios, do varandão e do refeitório passou a ser espaçotempo

de aula. E a própria noção de aula assumiu outros contornos. Diferentes agrupa-

mentos foram organizados e estes, não se restringiam mais as faixas etárias. No

entanto, isso não se deu sem que as linhas de segmentaridade fossem abaladas.

Em função disso, no diagrama de força, algumas forças sedentárias tentaram atuar

no sentido de fechamento de fronteiras, buscando (re) marcar os rígidos limites de

organização espaçotemporal, assumindo valores e normas que argumentavam se-

rem imprescindíveis no trabalho com crianças da Educação Infantil. Assim, ao propor

essas formas diferenciadas de trabalho a professora dinamizadora se confrontou

com a reação das professoras regentes que consideraram aquela atitude imprópria,

por dois principais motivos: o primeiro, porque consideravam que às mudanças na

forma habitual de agrupamento por faixa etária atrapalhava o horário de planejamen-

145

to individual; segundo, devido ao fato de considerarem problemático fazer produções

de forma individualizante. Para algumas delas, isso poderia acarretar uma interven-

ção muito forte na produção das crianças, o que acaba por descaracterizá-la.

Sem querer julgar as diferentes posições, acho fundamental pensar sobre a possibi-

lidade de quebra na organização dos espaçostempos escolares, além de estabele-

cer outras funções para os profissionais que atuam na escola, profissionais que cir-

culam e se posicionam de diferentes formas de acordo com a necessidade da co-

munidade escolar. Há aí a possibilidade de pensar diferentes formas de agrupamen-

to de alunos, tanto no que se refere à quantidade de alunos, quanto no que diz res-

peito a faixas etárias. Esse movimento se estendeu às outras atividades, como nos

ensaios para Festa Junina e nas composições das turmas de balé. Organização de

grupos que, no caso da Festa Junina, por exemplo, foi feita e refeita de acordo com

o instante preciso, quando o grupo de participantes nunca se repetia. A cada ensaio

era um novo grupo, uma nova composição, pois havia oscilações na freqüência das

crianças, no interesse pela dança (que tinha relações com o humor e a disponibili-

dade dos pequenos), pois a participação nessas atividades era facultativa.

Considero essa mobilidade muito potente no encontro com as crianças. Assim, pro-

duzir agrupamentos menores que não estão relacionados com a turma de referên-

cia, explorar outros espaços disponíveis na escola (refeitório, biblioteca, sala de in-

formática, por exemplo), utilizar outros recursos (computadores, cordas, pula-pula...)

pode ser bastante interessante na ampliação do repertório das crianças, na compo-

sição de múltiplos agenciamentos e na produção de outros processos de experimen-

tação. Agrupamentos variados, compostos no instante preciso em que eles se mos-

trem necessários, pois, se em determinado momento consideramos as atividades

diversificadas59 como importante estratégia de atendimento aos diferentes interesses

e necessidades; nos encontros educativos em que essa esta forma de organização

não se mostra suficientemente eficiente, não podemos nos aprisionar a esse modelo

de organização. 59 Atividades diversificadas é uma proposta de trabalho, produzida nos anos noventa, com grande aceitação e uso em turmas de Educação Infantil, na qual as crianças de uma turma, vão se organizando em pequenos de acordo com seus interesses, possibilitando que cada um deles possa escolher a atividade a ser realizada; assim, a inter-venção pedagógica pode ser direcionada de forma mais especifica e individualizada. Essa forma de organização do espaçotempo educativo possibilita maior autonomia das crianças na escolha do grupo de trabalho e na reali-zação das tarefas.

146

Pondero aqui que fixar e aprisionar-se em formas habituais de atuação nos tem im-

pedido de avançar com as crianças que exigem outras aberturas para expansão de

seus fluxos. Em função disso, argumento que esse ensaio de ação docente, inaugu-

rado por essa professora, mas não restrita a ela, em diferentes momentos, pode nos

indicar outros caminhos, outros percursos. Não se trata de escolher entre um tipo de

organização ou outro, mas criar tantos quantos for necessário para que o encontro

educativo se estenda à todas as crianças.

Assim, destaco agora, um dos movimentos engendrados por essa personagem prin-

cipal, por considerar que eles nos trazem a potência da versatilidade e a abertura

para composição de outros modos de funcionamento produzidos nos encontros junto

às crianças de diferentes faixas etárias:

Na turma do Jardim I, a professora dinamizadora conversa com as crianças sobre a

atividade a ser desenvolvida naquele dia. Fixa uma gravura de Volpi no quadro e

inicia uma conversa com as crianças:

Professora:

Observem essa pintura. O que é?

As crianças:

- Um barco;

- Um navio;

- Bandeirinhas.

Professora:

- Observem a posição das bandeirinhas? Por que Volpi fez assim?

Uma criança diz:

- Por que ele quis.

O que ele quis representar?

Uma criança:

- O vento,

Professora:

- É o vento tem movimento.

147

-

VOLPI, Lucca, Itália, 1896.

Uma criança:

- E a chuva molha.

Professora:

- Como é o barulho do vento?

Uma menina faz um som com a boca.

A professora diz que traria em outra aula o som do vento em um CD.

- Eu já trouxe o barulho da tempestade, vocês se lembram?

Luiz observa que o vento está entrando pela janela, movimentando a gravura afixa-

da no quadro, convocando os colegas a entrar no movimento do vento. Eles come-

çam a imitar o movimento do vento com o próprio corpo, jogando o corpo para lá e

para cá.

O modelo de aula expositiva está presente nesse encontro, à professora faz a ex-

planação no quadro e os alunos a observam a gravura respondendo de suas cartei-

ras aos questionamentos da professora. No entanto, a partir das observações de

uma das crianças, muitos corpos passam a experimentar as sensações produzidas

148

no encontro de seus corpos com o vento. Além disso, a própria professora expande

o trabalho com a arte visual envolvendo outros elementos: movimentos corporais,

diferentes sons e ruídos,... Sua proposta de trabalho é ampliada pela intervenção

das crianças, as quais ela acolhe produzindo uma atuação docente entrelaçada por

diferentes linguagens que se comunicam em suas diferenças produzidos outras ex-

perimentações na composição de um conjunto prático.

8.2.3 PROFESSORA-MÃE-USUÁRIA : produzindo outros sentidos-usos possíveis –

a potência de invenção do usuário.

A atuação da professora do Jardim II na composição das paisagens se deu em duas

frentes muito específicas. Por um lado, à sua função de professora agregava-se sua

posição de consumidora. Consumidora discreta, que em poucos e silenciosos mo-

mentos, formulava uma ou outra questão sobre as atividades educativas engendra-

das pelas colegas de trabalho que atuavam junto com sua filha.

Em outra dimensão, sua atuação em um centro de Educação Infantil era recente, e a

sua experiência profissional mais expressiva era em turmas de Ensino Fundamental,

predominantemente, em escola privadas, cujo regime de trabalho e as relações de

poder eram muito diferenciados das estabelecidas na Educação Pública.

Em função dessas duas dimensões, essa personagem nos encontros entre as cole-

gas de trabalho e as crianças engendrou processos muito relevantes para a pesqui-

sa que agora me ponho a registrar. Foi de extrema importância para as nossas dis-

cussões, seu estranhamento às imensas disparidades entre o atendimento das cri-

anças com melhores condições financeiras em detrimento ao atendimento ás crian-

ças de baixa renda, cujos elementos de referências em diferentes áreas do conhe-

cimento, eram totalmente estranhos à maioria das professoras com seus aparatos

pedagógicos. É interessante analisar esse distanciamento a partir de um comentário

de uma professora sobre sua experiência em outro CMEI onde a clientela é constitu-

ída predominantemente por crianças com poucos recursos financeiros:

Porque lá, quando eu vim com a proposta do movimento eu tinha muita di-ficuldade para organizar as atividades, porque eles moravam numa favela,

149

e eles que organizavam os espaços. Eles brincavam nos becos e eles que organizavam os espaços. A percepção de espaço deles era muito diferen-ciada. Então vinha alguém para direcionar o movimento deles, eles não gostaram. Tive muita dificuldade.

Outra dimensão de sua atuação no dinâmico diagrama de forças, agora como con-

sumidora, também foi muito importante. Como, por exemplo, em um dos encontros

de estudos, suas colegas faziam um relato de experiência do trabalho realizado com

a turma freqüentada por sua filha, a professora narrou como fez uso de uma ativida-

de proposta pelas professoras do Berçário II. A proposta de trabalho era para ser

realizada em casa, junto aos familiares. Ao propor outro modo de desenvolver a ati-

vidade significou a mesma, de modo a adequá-la com o que julgava ser do interesse

e a necessidade de sua filha, naquele momento. Era uma atividade de medida, em

que os pais deveriam preencher dados sobre o crescimento e a aumento de peso de

sua filha durante seus dois anos de vida. Diante do que considerou uma abstração

muito grande para uma criança tão pequena, decidiu, a partir do álbum de fotos,

mostrar à criança as mudanças ocorridas durante esse período de vida inicial. Sua

argumentação foi interessante, no sentido de trazer, para dentro da escola, outra

abordagem para a atividade anteriormente proposta. Segue o trecho de seus co-

mentários sobre os usos singulares as quais produziram profundas mudanças na

proposta inicial:

Naquela atividade de preencher o formulário sobre algumas características das crianças: quando estas nasceram (altura, peso...), considerei a propos-ta muito abstrata e complexa para o entendimento de uma criança de dois anos. Assim, para aproximar a Ana da atividade sugerida, eu e meu marido fomos mostrando fotos de um álbum e conversando sobre as diferentes si-tuações em que ela aparecia. Este movimento provocou muito interesse, e ela, freqüentemente, passou a mostrar as fotos para nós.

Como efeito desse momento criando pela família da menina, segundo o relato de

sua mãe, Ana se percebeu como criança, e não mais bebê, o que solucionou o que

a família da menina considerava um problema difícil de resolver – superar a forma

de alimentação via amamentação. Esse outro sentido atribuído à atividade inicial-

mente proposta, tanto quanto os efeitos produzidos por ela, só veio ao conhecimento

das professoras pela intervenção da mãe, no momento do relato de experiência.

Uma das considerações que as professoras fizeram a partir dessa conversa no Gru-

po de Estudos é que os sentidos que as mães (e outros familiares) atribuem às tare-

150

fas elaboradas pelas professoras podem ajudá-las a aproximar os objetivos de suas

ações aos interesses, necessidades e elementos de referência de cada uma das

crianças e seus familiares.

Nesse momento, a professora-mãe-usuária aproveita a oportunidade e fala sobre

sua experiência com a menina, introduzindo uma sugestão de trabalho, a partir do

interesse que observa na maneira como a menina a convoca:

Ela quer ouvir a história, quer saber. ‘Agora não canta, me fala a história’, diz Ana, segundo relato de sua mãe, e aí tem que contar a história: Então tinha uma praia... E nessa praia a menina foi com o anel. A gente não vai para praia de anel, porque o anel cai no mar [comentário de Ana, enquanto sua mãe contava a história]. Mas aí tem uma concha. E a menina pega a concha e diz que o mar deu de presente para ela. Professora-mãe – Eu tive que contar essa história para ela muitas vezes! E, quando ela canta a música, ela canta pensando na história. Ela entende a música, por isso é que ela gosta tanto. E ela chora... Porque a menina perdeu o anel... 60

Nesse encontro de estudo, conversando com as personagens principais sobre o fato

de esses possíveis terem sido engendrados naquele local específico, a partir de pro-

cessos e práticas que exigiram ou permitiram tal ousadia. Considerei que em outros

CMEIs, é diferente, tem outros modos de funcionamento. Destaquei o fato daquelas

experiências de rompimentos com formas de organização padronizadas e, que, de

certa forma, não se concretizam nos movimentos educativos, eram potentes na a-

bertura de espaçostempos mais livres para criação de processos de experimenta-

ções singulares. Assim, fixar os planejamentos em formas e objetivos que não dizem

respeito aos movimentos efetivamente engendrados nos cotidianos da escola acaba

por fazê-las caírem no vazio.

Por fim, falei sobre meu interesse em problematizar as práticas educativas conside-

rando também essas convocações, essas desestabilizações das nossas certezas

mais preciosas e nos forçam a pensar... E destaquei a necessidade de cartografar

nossas invenções para estar negociando com essas crianças.

60 Idem.

151

Em função do que foi acima exposto, observa-se que essa personagem participa

intensamente das transformações operadas na interseção de diferentes forças nos

corpos vibráteis, nas formações das paisagens educativas.

É preciso destacar que outras professoras participaram da produção dessa pesqui-

sa, contribuindo ativamente na composição das paisagens, no encontro entre elas e

os usuários nos processos inventivos, no entanto, seus trajetos intensivos e extensi-

vos foram por mim, cartografados de forma superficiais em função das limitações de

tempo e dos numerosos movimentos produzidos no CMEI. Assim, priorizei os traça-

dos das linhas que produziram maior afetação em meu corpo vibrátil, compondo e

rascunhando, parcial e precariamente, os fluxos de intensidades que produziram

ondulações nas formas habituais de educar, quando elas produziam paralisias e a-

doecimentos, compondo a cartografia que ora apresento.

152

9 EDUCAÇÃO COMO OBRA DE ARTE

Das múltiplas formações de paisagens que foram se constituindo, se desmanchando

e recompondo durante a realização da pesquisa, considerando que os mais diferen-

tes modos de funcionamento, que foram engendrados pelos corpos educativos, em

seus encontros com as crianças e seus familiares; aprecio que a ênfase em tentar

criar-expandir espaços de discussões comunitárias sobre as invenções produzidas

nesses espaçotempo educativo, tanto quanto, sobre os problemas e obstruções en-

frentados cotidianamente por esses profissionais, nos dão pistas interessantes sobre

a criação de novos possíveis para os processos formativos. Ao destacar sobre a ne-

cessidade de compor agenciamentos coletivos singulares, recorro a Carvalho para

destacar que nesses tipos de encontros se procura estabelecer...

[...] práticas de singularização e diferenciação, de modo que a exigência da comunidade é de uma comunidade que se dá na estranheza e na “descons-trução” [criação de um novo]. [...] que é sempre mais e outra coisa que ela mesma, uma comunidade que não se pode fechar ou totalizar (2005 p. 4-5).

Assim, destaco que, ao insistir em criar e expandir os espaços de experimentação

como potência do coletivo, essas professoras dizem sobre como aprendem a serem

professoras. É claro que a formação inicial tem sua contribuição e que não é das

menores. No entanto o campo problemático, em torno do qual me inquieto e tento

colocar questões, diz respeito aos processos cotidianos formativos; nos quais, no

decorrer da profissão docente, em seus processos de experimentação, as professo-

ras “[...] perseguem outro modo de ser trabalhadoras da Educação, um novo modo

de estar com o outro, com os outros, de se misturar com eles; de sentir, ver, compar-

tilhar,... Ansiando aquilo que ainda não somos e que estamos em via de tornarmos-

nos” (BARROS, 2004). Esses outros modos de ser professora surgem da necessi-

dade permanente e inadiável de invenção de si, buscando assim, criar canais para

expansões de intensidades inventivas que possam dar conta de garantir o aumento

da potência vital e, conseqüentemente, a desobstrução das interrupções provocadas

pela interseção de discursos autoritários.

Diante do exposto, para pensar-praticar a Educação como uma obra de arte faz-se

necessário analisar as composições dinâmicas do diagramas de forças estendidos;

problematizando seus modos de funcionamento e atuando politicamente a favor da

153

afirmação e manutenção das singularidades que se consegue imprimir. E ali, onde

certas forças se mostram esclerosa das – ir além, ultrapassá-las. Trata-se da neces-

sidade de “duplicar” a relação com as forças que nos atravessam de modo a provo-

car uma “dobra” sobre as mesmas, como prática ética-estética de si. (DELEUZE,

1998).

A criação de si em uma abordagem ética-estético-política exige que as práticas edu-

cativas; mas não só elas sejam pensadas dentro do diagrama de forças, onde as

relações de poder (inerentes às relações humanas) têm operado a partir de um alto

grau de dominação reduzindo fortemente a margem de liberdade e de elaboração de

relações mais potentes de atuação coletiva nesse diagrama. Nessa perspectiva,

propor a Educação como obra de arte exige que cada corpo individual-coletivo cui-

de, trabalhe intensamente no conhecimento de si próprio, atente para os encontros

que favoreçam a ampliação de sua potência de existir, analise cuidadosamente as

relações de poder engendradas em âmbito local e recuse, com veemência, opres-

sões e repressões que se tenta impor. Trata-se de uma ação ética-estética sobre si

mesmo, uma afirmação das diferenças que nos atravessam exigindo a expulsão, o

exorcismo das forças que tentam apropriar da nossa energia vital (Barros, 2004).

Em função disso, considero que as práticas instauradas pelas professoras em seus

processos de experimentação esse modo outro de fazer-pensar Educação produ-

zem novos campos de possíveis; uma contribuição de extrema importância à expan-

são dos espaços de negociações comunitárias, onde cada corpo contribui na consti-

tuição de regras comuns de conduta e critérios de avaliação (que não são definidas

a priori, mas na própria experiência), e que devem ser modificadas sempre que se

tornam obsoletas, passando a impedir a expansão da vida.

Entretanto, o problema não se restringe apenas em elaborar diferentes formas para

adequar ações às normas comuns provisoriamente acordadas em meio aos proces-

sos de experimentação, “[...] mas sim [...] tentar transformar a si mesmo em sujeito

moral de sua conduta” (FOUCAULT, 2004, p. 213).

Uma ação para ser dita ‘moral’, não deve se reduzir a um ato ou uma série de atos conforme uma regra, a uma lei ou a um valor. Na verdade, toda a-ção moral implica uma relação com o real em que ela se realiza, e uma re-

154

lação com o código com qual ela se refere; mas também implica certa rela-ção consigo mesmo; esta não é simplesmente ‘consciência de si’, mas constituição de si como ‘sujeito moral’, na qual o individuo circunscreve a parte dele próprio que constitui esse objeto de prática moral, define a sua posição em relação ao preceito que ele acata, determina para si certo mo-do de ser que valerá como cumprimento moral dele mesmo e, para reali-zar-se, age sobre ele mesmo, levando-o a se conhecer, a se controlar, a pôr-se à prova, a se aperfeiçoar e a se transformar [...] (FOUCAULT, 2004, p. 214).

A moral tem aqui um sentido mais amplo que engloba tanto os códigos facultativos

de comportamentos quanto os processos de subjetivação, ou seja, múltiplas práticas

de si, produzidas em meio a práticas de liberdade, na constituição de um estilo de

vida ético.

Assim, na composição dos conjuntos práticos educativos em que a ética permeie as

experimentações produzindo múltiplas formas de educar, os modos como cada cor-

po individual-coletivo produz práticas de constituição de si são fundamentais; como

se esforça para se conhecer, se controlar e pôr-se à prova; como negociam os fei-

xes de agenciamentos que definem suas ações, suas escolhas, suas recusas, tendo

como parâmetro, nessa negociação, normas de condutas provisórias e facultativas

estabelecidas pelo próprio grupo em função dos processos vividos em suas práticas

educativas, acordos sempre a serem refeitos, no instante em que estes se constitu-

em em obstáculos para a expansão da potência vital.

Nesse sentido, se faz urgente discutir nos percursos de formação continuada quais

são os modelos educativos que têm servido de referência para a composição de ex-

periências engendradas nos espaçostempos escolares; de modo que se pudesse

compor um pensamento educativo prático e ético capaz de problematizar a qualida-

de dos empreendimentos que temos dispensados as práticas estendidas junto as

crianças no cotidiano da escola.

Assim, um modo de pesquisa e uma formação continuada que queira dar conta dos

intensos estancamentos, adoecimentos e paralisias, facilmente diagnosticadas nes-

se breve olhar lançado à escola (captáveis pelo número excessivo de licenças médi-

cas, nos aspectos deteriorados de alguns corpos e em práticas educativas endureci-

das de existência), necessitaria buscar afirmar a dimensão inventiva do pensamento;

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dimensão que permite uma abertura para a constituição de outros modos de apren-

der a ser professora. O desafio é:

Promover nosso próprio aprendizado da atenção às forças do presente, que trazem o novo em seu caráter disruptivo. Pois ensinar é, em grande parte, compartilhar experiências de problematização. Estas podem ser fu-gazes, emergindo no campo da percepção e se dissipando em seguida. Mas é imprescindível a manutenção de sua potência para a invenção de novas subjetividades e de novos mundos (KASTRUP, 2005, p. 15).

Nessa perspectiva uma abordagem formativa que quisesse analisar a complexidade

dos contextos educativos precisariam se ocupar em traçar um campo problemático

para as práticas cotidianas a partir de questões concretas - dos pontos de obstru-

ções que interrompem os fluxos inventivos. Assim “[...] a discussão sobre a formação

de professores não pode abrir mão da questão da política cognitiva que praticamos”.

(idem), pois se continuarmos atrelados à política da recognição, à qual comporta

propostas educativas prescritivas, pouco avançaremos nessa discussão, sobre os

problemas a serem enfrentados na atualidade e, muito menos, sobre como enfrentá-

los. Desse modo, parece ser necessário, investirmos em uma política cognitiva vin-

culada à problematização, na produção de questões e na constituição de soluções,

que não se fecham em si, mas que criam aberturas para colocação de novos/outros

problemas. Questionamentos que são criados nos encontros em meio ao dinâmico

diagrama de forças que produzem a diferença.

Assim, a formação continuada poderia ser pensada, de modo geral, a partir de duas

funções e modos de abordagens distintos, ainda que concomitantes e complementa-

res: de um lado buscando anular o efeito das forças que promovem o adoecimento

dos corpos vibráteis e a retração das potências inventivas das professoras; e, em

outra dimensão, afirmação ética-estética-política e cognitiva dos processos de expe-

rimentação estendidos.

156

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